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Portuguese Pages 64 Year 2017
WILLlAM
JAMES, A CONSTRUÇÃO
Título original:
William
DAVID LAPOUJADE
DA EXPERIÊNCIA
James, empirisme
et pragmatisme
© n-l edições, 2017 © Oavid lapoujade,
2007
Embora adote a maioria dos usos editoriais a n-l edições nâo segue necessariamente Instituições
normativas,
pois considera
criação que deve interagir especificidade
do âmbito
brasileiro,
as convenções
das
a edição um trabalho
com a plural idade de linguagens
WILLIAM JAMES, A CONSTRUÇÃO DA EXPERIÊNCIA
de e a
de cada obra publicada.
COORDENACÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes ASSISTENTE EDITORIAL Isabela Sanches PROJETO GRÁFICO Érico Peretta PREPARAÇÃO Humberto REVISÃO Roberta A reprodução
Amaral
Vasconcelos parcial deste livro sem fins lucrativos,
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t.apoujade,
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com os editores.
na Publicação
(CIP)
David [1964--]
Willlam James, a construção
da experiêncíe
São Paulo: n-l edições, 2017
ISBN 978-85-66943-31-3
1.James, William (1925-1995)
2. Filosofia Estaduruense
3. Pragmatismo
I. Titulo
79-0279
CDD:191 144.3
lndices para catálogo
sistemático:
1 Filósofos estadunienses 2. Pragmatismo
191
: Filosofia 144.3
n-l edições São Paulo
I Fevereiro,
n-1edicoes.org
2017
Tradução Hortência Santos Lencastre Revisão técnica Cassiano Terra Rodrigues
INTRODUÇÃO 09
A CONSTRUÇÃO DA EXPERIÊNCIA CAPiTULO 1
23
O EMPIRISMO RADICAL Plano e material: a experiência pura O "rnonismo vago": uma experiência sem "ego" A interpretação e as séries significantes Função e convenção (contra o hilemorfismo) CAPiTULO 2
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VERDADE E CONHECIMENTO Como criar verdades? Linhas e pedaços O conhecimento
deambulatório
CAPiTULO 3 85
CONFIANÇA E COMUNIDADE PRAGMATlSTA Confiar As convenções ou como escolher uma filosofia? A comunidade de interpretação CONCLUSÃO
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ACREDITAR NESTE MUNDO
123
EDiÇÕES UTILIZADAS
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SOBRE O AUTOR
A CONSTRUÇÃO DA EXPERIÊNCIA
Tudo o que conservamos de William [ames é uma contribuição à psicologia - a célebre descrição do "fluxo de consciência" [stream of consciousness]- e a instauração doutrinal do pragmatismo, principalmente através de sua teoria instrumentalista da verdade: "Nossa explicação da verdade é uma explicação de verdades no plural [... ] que têm somente essa qualidade em comum, a de que elas pagam. [... ] Para nós, a verdade é simplesmente um nome coletivo para processos de verificação, do mesmo modo que saúde, riqueza, força etc. são nomes para outros processos ligados à vida e também perseguidos porque compensa persegui-los"! A verdade é aquilo que é rentável, aquilo que "paga"," é a ação vantajosa bem sucedida. Basta reverter a definição para ver no pragmatismo apenas a caricatura do símbolo do sucesso à moda americana: o lucro, a saúde e a força são as únicas verdades. A obra de [ames é vista com frequência como a filosofia do capitalísmo selvagem, das ideias que "pagam", das verdades que "vivem a crédito" - enfim, tudo aquilo que o senso comum entende hoje por "pragmatismo', uma espécie de ready-made do capitalismo. É assim, por exemplo, que Horkheimer expõe o pragmatismo, de Peirce a
1. Pragmatism:
a new name for some old ways of thinking, p. 104 [Ed. bras.: "Pragrnatismo" in Pragmatismo e outros textos, trad. de Jorge Caetano da Silva e Pablo Rúben Mariconda. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 78. Aqui, como na grande maioria das vezes, a tradução foi modificada. Indicaremos tal mudança, a partir de agora, pela assinalação T.M.]. 2. Optamos por não utilizar o pronome apassivador (como em "aquilo que se paga") porque, para [arnes, os processos - a verdade, a saúde, a riqueza, a força etc. - valem, compensam, satisfazem, sem um caráter retroflexo, mas justamente porque levam a experiência adiante. [N.RT.]
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Dewey: "Afilosofia deles reflete, com uma sinceridade quase ingênua, o espírito da cultura comercial predominante, a própria atitude de 'ser prático' sendo algo em relação a que a meditação filosófica como tal era tido como oposta." Esforçamo-nos para estabelecer a imagem de uma filosofia propriamente americana - direta, inocente, mercantil - da qual o pragmatismo de [ames seria a mais forte encarnação. Curiosamente, quando se trata de [arries, invocamos, mais do que o fazemos em relação aos seus contemporâneos - Peirce ou Royce, por exemplo -, a ideia de uma filosofia propriamente americana. Nós o apresentamos como aquele que dá à América sua filosofia nacional, tal como o fazemos com Fenimore Cooper e Walt Whitman com relação à literatura. E, no entanto, nada está mais distante dele, por exemplo, do que as recentes teses ditas "neopragmatistas" de um Rorty, que propõe estabelecer um critério especificamente americano da Conversação democrática universal ou promover os Estados Unidos como fonte originária fundamental de valores. Nada menos pluralista, nada mais estranho ao pensamento de [ames ou de Dewey do que isso que Rorty, entretanto, reivindica. Os esforços de [ames para dissipar os contrassensos não acarretaram nenhuma mudança: o pragmatismo continuou sendo a filosofia do homem de negócios americano e o próprio termo nada mais designa a não ser um sentido de ação oportunista. Entretanto, é o próprio William [arries quem denuncia, em diversas ocasiões, as ambições imperialistas dos Estados Unidos, seu mercantilismo generalizado, seu culto do dinheiro e do sucesso financeiro.' O pragmatismo de Iames também não é uma "filosofia da ação", no sentido de que teria como objetivo, ao estabelecer a teoria, descrever os mecanismos para obter uma maior eficácia; ou, ainda, no 3· Max Horkheimer, Eclipse da razão, trad. bras. de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2010, p. 57. Cf. igualmente o primeiro capítulo de Ia philosofie américaine, de Ludwig Marcuse (trad. fr. de Danielle Bohler. Paris: Gallirnard, 1967, p. 845), no qual o autor destaca a frase de Russell: "Penso que o amor à verdade é obscurecido na América pelo comercialisrno, do qual o pragmatismo é a expressão filosófica:' 4· [ames denuncia, numa carta de II de setembro de 1906 a H. G. Wells, a "flacidez moral nascida do culto exclusivo da deusa cadela chamada Sucesso. É esta - com o sórdido sentido monetário que atribuímos à palavra sucesso - a nossa doença nacional" in Henry [ames (org.), The letters of William [ames, v. 2. Boston: Little, Brown, and Company, 1920, p. 259.
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Wllilam James. a construção da experiência
sentido em que apelaria constantemente à ação como um fim último. O pretenso "sejamos práticos" não quer dizer: "tem que dar certo" de qualquer maneira, sob qualquer condição, desde que se tire daí um rendimento satisfatório. A definição pragmatista da verdade também não se resume a uma validação pela própria ação, mesmo que James afirme que a verdade de uma ideia reside em parte nas suas "consequências práticas': Continuamos a identificar o campo da prática com o domínio da ação. No entanto, em [ames, o termo "prática" não diz respeito necessariamente ao domínio da ação por oposição ao campo da reflexão teórica; ele designa antes de mais nada um ponto de vista: "prática" significa que consideramos a realidade, o pensamento, o conhecimento (e também a ação) enquanto eles estão se produzindo. De maneira ainda muito genérica, a filosofia de William [ames é uma filosofia do homem que se produz num mundo que está ele mesmo se produzindo. O que ele criticará nos racionalistas e nos absolutistas (particularmente os hegelianos, que no entanto foram os primeiros a introduzir movimento no conceito) é chegar tarde demais, depois do acontecido, "quando uma forma de vida envelheceu" e o mundo já deu tudo o que poderia dar. Como diz [ames, "aquilo que realmente existe não são as coisas feitas, mas as coisas se fazendo': 5 Temos que considerar toda realidade no momento em que ela se cria. Isso não significa no entanto que se trata de uma filosofia do self-made man (individualismo pelo qual foi muitas vezes criticado), pois é evidente que o indivíduo não poderia se produzir se não estivesse ao mesmo tempo tomado pelo imenso fluxo do mundo, atravessado pelo movimento incessante daquilo que está sendo feito. Um problema percorre toda a filosofia de [ames: como o conhecimento, a verdade, a crença podem se produzir se o mundo no qual vivemos está sujeito a uma perpétua novidade? Não basta dizer, por exemplo, que uma ideia é pensada pela mente ou que a mente faz uma representação da ideia. Uma definição como essa está privada de movimento e, em relação a isso, bastante incompleta; é ainda preciso mostrar como a ideia se produz na mente e como a mente é produzida através dela, introduzir nessa definição aquilo que [ames chama de "consequências práticas", critério essencialmente 5. A Pluralistic Universe, p.
Introdução
ll7·
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pragmatista. A ideia não é mais definida como uma representação ou uma modificação da mente, mas como um processo através do qual a mente se produz. Esse já era o tema dos avanços essenciais da psicologia, por volta dos anos 1880-1890.6 Nos Princípios de psicologia (1890), as realidades psicológicas são tratadas como fluxos que se cruzam e se interpenetram num verdadeiro "emaranhado': A consciência não se define como uma realidade substancial, nem mesmo como um ato reflexivo; ela é o movimento daquilo que se torna consciente. Ali está demonstrado, na verdade, como a consciência não para de traçar seus limites no pensamento, como ela se estende ou se contrai fora do inconsciente que a contorna. O mesmo movimento é retomado mais tarde (por volta de 1904), porém bem mais amplificado, quando [ames instaura o "empirismo radical" e introduz a noção de experiência pura. Trata-se dessa vez de mostrar que existe um plano de pensamento que precede todas as categorias psicológicas ou filosóficas tradicionais e que estas últimas, longe de serem constitutivas, devem, pelo contrário, ser constituídas a partir desse plano. O sujeito, o objeto, a matéria e o pensamento são descritos não como dados ou formas a priori, mas como processos que se formam no pensamento ou fora dele. Tanto no plano psicológico como no plano filosófico, destacar o movimento daquilo que está sendo feito implica, a cada vez, uma crítica das formas nas quais costumamos distribuir com antecedência os fluxos de vida, de pensamento e de matéria. Se o empirismo radical é a filosofia de [ames propriamente dita, o que dizer então do pragmatismo? O pragmatismo não é uma filosofia. Como em Peirce, ele é um método, apenas um método, cuja máxima geral, tomada de empréstimo a este último, é a seguinte: "não há 6. Iarnes nasceu em 1842. Orientou-se primeiramente para os estudos de fisiologia e de medicina; mas, sob influência de Wundt e de Helmholtz, que admirava, voltou-se para a psicofisiologia. A partir de 1877, tornou-se professor, publicando seus primeiros artigos importantes. A maioria dos artigos desse período, reforrnulados, resultou, ao fim de doze anos de trabalho, na publicação de Princípios de psicologia (1890) ao qual se seguiram A vontade de crer (1897), Variedades da experiência religiosa (1902), Pragmatismo (1907), O significado da verdade e O universo pluralístico (1909). Iames morreu em 1910 em decorrência de problemas cardíacos, deixando uma obra inacabada (Alguns problemas de filosofia) e uma série de artigos reagrupados sob o título Ensaios em empirismo radical.
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William
James,
a construção
da experiência
qualquer distinção de significado tão sutil que consista em algo diferente de uma distinção de prática." É verdade que [ames, a partir de 1907, dá uma dupla definição de pragmatismo que sugere que o pragmatismo seja outra coisa além de um simples método: "Esse, então, seria o escopo do pragmatismo - primeiramente um método, em segundo lugar, uma teoria genética do que se entende por verdade." Mas essa teoria é um efeito do próprio método, e, por isso mesmo, é inseparável dele. Podemos, a partir de então, destacar esses dois aspectos do pragmatismo. Em primeiro lugar, ele é um método de avaliação prática. Ele examina as ideias, os conceitos, as filosofias, não mais do ponto de vista da sua coerência interna ou da sua racionalidade, mas em função da sua "consequência prática" Devemos avaliar as ideias segundo seu objetivo de nos fazer agir ou pensar. É exatamente o mesmo que fazer a seguinte pergunta: o que é que faz a verdade das nossas ideias? Ou então: como uma ideia se torna verdadeira? Como se faz uma ideia verdadeira? Portanto, o método pragmatista é, em segundo lugar e inseparavelmente, uma ferramenta de construção (ou uma teoria genética daquilo que entendemos por verdade, segundo os termos de [ames), O pragmatismo responde assim à pergunta: como fabricar ideias para agir ou pensar? A única coisa que ele pode fazer, como método de avaliação, é nos ajudar a escolher, entre as filosofias, as religiões, os ideais sociais, aqueles que mais favorecem nossa ação ou nosso pensamento. 7. De acordo
com Peirce, a regra para atingir
o terceiro
grau de clareza de apreensão:
"Considere quais efeitos, que concebivelmente poderiam ter consequências práticas, concebemos ter o objeto de nossa concepção. Então, a concepção desses efeitos é o todo de nossa concepção do objeto:' Cf. C. Peirce "How to make our ideas clear" in Collected Papers of Charles Sanders Peirce, v. 5. Cambridge: Harvard University Press, 1934, parágrafo 402. Como é padrão
em relação a Peirce, indicamos
ao final de cada citação a numeração
dos
Collected Papers ofCharles Sanders Peirce, editados pela Harvard University Press. Assim, CP 5.402 refere ao volume 5 dos Collected Papers, parágrafo 402. 8. Pragmatism, op. cit., p. 37 [p. 25 T.M.]. O termo humanismo era reservado à teoria da verdade (sob a influência de Schiller), como podemos ver em The Meaning of truth. Se [ames chega a falar de "filósofos pragmatistas" é apenas por razões táticas, para fazer do pragmatismo uma máquina de guerra contra correntes filosóficas rivais. Cf. Letters, p. 297, carta para Wilhelm Ierusalem de 15 de setembro de 1907: "Pragmatismo é uma palavra infeliz sob certos aspectos, e os dois significados que dou a ela são algo heterogêneo. Mas ela já estava na moda na França e na Itália, assim' como na Inglaterra e na América, e era taticamente vantajoso utilizá-Ia:'
Introdução
13
a confiança. O indivíduo deve ser o pioneiro que tem confiança em si mesmo, nas suas próprias forças, no seu julgamento, tanto quanto confia na força da Natureza à qual se une num sentimento de fusão (mesmo desconfiando do conformismo da sociedade e da cidade, como é o caso de Emerson, e também de Thoureau quando conclama à "desobediência civil"). A confiança é inseparável de uma união romântica com um Todo. Como diz Emerson em Autoconfiança [Self-Reliance], a prece do lavrador que arranca as ervas daninhas se estende por toda a Natureza. Ele comunga com a grande unidade total da Supra-Alma [Over-Soul]. Logo, não se pode ter confiança em si mesmo sem confiar no homem, em todos os homens, na Natureza e em Deus. Aliás, essa é a grande trindade circular, a Divina-Natural-Humanidade de um outro grande transcendentalista, Henry [ames Sr., pai de William.!' Vemos que o pragmatismo prolonga, sob certos aspectos, o transcendentalismo: como este, ele também apela para a ação individual, para o risco, para a confiança. Entretanto, há uma ruptura essencial: não se pode mais conservar a grande harmonia fusional entre o Homem, a Natureza e Deus. Como diz [ames, quando observamos o desenvolvimento das ciências, seu pluralismo, a desordem e a indeterminação que elas revelam na estrutura do nosso universo - para ficar apenas com esse exemplo -, torna-se difícil acreditar que exista um Deus único cujos arquétipos copiamos. O pluralismo quebra
Por exemplo, é curioso que a partir de um mesmo mundo possamos chegar à conclusão tanto de um determinismo generalizado quanto de um livre arbítrio soberano, como se isso não mudasse nada. Mas se podemos de maneira indiferente escolher teoricamente entre determinismo e livre arbítrio, o mesmo não acontece na prática. Nossa ação não é a mesma se formos partidários de um ou de outro. O pragmatismo não é uma filosofia, mas um método para escolher entre filosofias. Porém, o que 'ele tem que fazer - desta vez como ferramenta de construção - é nos ajudar a fabricar as ideias que possam servir à ação ou ao pensamento. Ele se torna, dessa maneira, uma ferramenta de criação. Como se jazem as ideias e o que jazemos com ideias, esses são os dois eixos do método pragmatista. De um ponto de vista muito geral, o pragmatismo, portanto, concebe as ideias como causa para a ação que nos permite criar e avaliar. Essa é a grande dificuldade: não um método da criação, mas um método para a criação. Esses dois aspectos inseparáveis remetem a duas formulações que se sobrepõem com frequência em James: a realidade se faz; a realidade está por fazer. É como se houvesse uma exigência moral do devir: o mundo não se faz sem estar ao mesmo tempo por fazer. Isso significa que a ação, longe de ser a solução universal, tornou-se um problema. Um problema porque, a partir de agora, agir e pensar tornam-se riscos. "É no decorrer do jogo da vida toda que a cada instante arriscamos a nós mesmos." É claro que nem todas as nossas ações e nem todos os nossos pensamentos são arriscados; mas antes de se tornarem hábitos tranquilos, foram primeiro experimentações. Como dissemos, é esse o momento que interessa a Iames. De modo mais amplo, o pragmatismo se dirige àquele que, num domínio ou no outro, não consegue mais agir, àquele para quem justamente a ação constitui um problema ou um risco. Ora, só podemos nos arriscar se tivermos confiança. Esse tema não é propriamente de [ames. É a condição essencial já invocada pelo transcendentalismo.w Ele apelava constantemente para
Hegel facilitou a introdução deste último, O livro mais técnico de J. H. Stirling, O segredo de Hegel (1865), iria ter uma notável influência sobre a geração seguinte. Quase ao mesmo tempo, William T. Harris fundava 1he [ournal of speculative philosophy. Através dele desenvolveu-se uma nova escola, da qual T. H. Green e os irmãos Caird foram os principais iniciadores. O uso que os americanos fazem de Hegel diz respeito principalmente à noção de totalidade - sob a influência do transcendentalismo - enquanto deixam de lado, com muita frequência, as progressões dialéticas. Será preciso esperar a geração de Royce (colega e amigo de [ames), com 1he world and the individual, e o inglês Bradley, com Appearance and reality, para ver um hegelianismo mais rigoroso se desenvolver, baseado, contudo, numa lógica das relações diferente da de Hegel. É neles que James mira diretamente quando critica o absolutismo. Sobre essas questões, cf. H. W. Schneider, Histoire de Ia philosophie américaine, trad. fr. de Cl. Sirnonnet. Paris: Gallimard, 1955, p. 343; Gérard Deledalle, La philosophie américaine. Bruxelas: De Boeck, 1992, pass.; e Emmanuel Leroux, Le pragmatisme, américain et anglais. Paris: Alcan, 1922, pp. 19 ss.
9, 1he Will to Believe, p, 78,
O transcendentalismo, sob a influência de Carlyle, Coleridge e Emerson, foi orientado para um pensamento de um Todo-Natureza inspirado no romantismo alemão (podemos ver isso no pai de William [ames, cuja filosofia é muito influenciada por Swedenborg). Todas as coisas se fundem, são absorvidas na grande unidade Deus- Natureza, A confusão entre os temas transcendentalistas da Fusão, da Supra-Alma (em Emerson) e a filosofia de 10,
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William James. a construção da exoeríêncre
11. Sobre estas questões, cf. H.W. Schneider, op. cit., em particular capítulos III e IV; G. Deledalle, primeira parte, IlI, p. 36: "Emerson insiste neste último ponto: ter confiança em si mesmo é ter confiança no homem, em todos os homens". Sobre Henry [ames Sr., ibid., pp. 43-45.
1.
Introdução
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Podemos lembrar que [ames passou por uma crise semelhante, como ele confessa a numa carta de 17 de setembro de 1867: "minha história externa ... parece a de uma anêmona marinha:' Na sequência, ele fala de uma "mortalidade do espírito produzida com isso" (Letters, p. 48).
O método pragmatista é inseparável desse problema geral. Quando [ames pergunta "o que é uma ideia verdadeira?': isso significa: "quais são os signos nos quais podemos confiar?" Pois é só em signos que podemos ou não confiar - mas em signos específicos que o método pragmatista deve permitir encontrar. Assim, por exemplo, o outro se manifesta através de signos, mas é preciso outros signos além daqueles manifestados explicitamente para saber se podemos acreditar naquilo que se diz. Os signos através dos quais compreendo o que o outro diz não são os mesmos através dos quais acredito naquilo que é dito. Da mesma forma, quando dizemos que não conseguimos mais acreditar neste mundo, isso significa na realidade que deixamos de acreditar em certos signos que fazem com que ele exista para nós. Nesse sentido, o pragmatismo precisa de uma nova teoria dos signos. O pragmatismo não é uma filosofia, mas exige com todas as suas forças uma filosofia que torne nossa ação novamente possível - não uma filosofia na qual possamos acreditar, mas uma filosofia que nos faça acreditar. Não nos faltam ideias em que acreditamos e que nos levam a agir - Deus, Eu, a Revolução, o Progresso -, mas alguma coisa se quebrou no nosso poder de acreditar. A menos que o método de avaliação pragmatista revele exatamente o seguinte: que o pluralismo, mais do que qualquer outra filosofia, nos dá motivos de ação. Então, a pergunta passa a ser: qual é a particularidade do pluralismo que nos faz agir? E, em correlação: o que é que falta às outras filosofias para produzir esse mesmo efeito? O paradoxo é que [ames vê no pluralismo a forma mais capaz de restaurar essa crença, enquanto outros, pelo contrário, veem ali um puro e simples relativismo - e, no relativismo, a forma que engendra todos os ceticismos. Não seria a pluralidade dos espaços em geometria que nos faz duvidar da verdade dos axiomas, a pluralidade das filosofias que nos faz duvidar da verdade de cada doutrina etc.? Por que a forma do pluralismo? Aquele que afirma a existência de uma verdade única, de uma ciência única, de um dogma único, aquele que Iames chama de "absolutista', esse também acredita. Ele acredita tão firmemente quanto o pluralista. Então, por que dizer que o pluralismo é mais capaz de nos fazer acreditar quando, pelo contrário, ele nos dá mais razões para duvidar do que o absolutismo? Precisamos tentar resolver essa questão: em que o pluralismo do empirismo
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Introdução
a unidade fusional assim como o darwinismo quebrou a finalidade harmônica. Há uma inocência, um otimismo confiante do qual nós, modernos, não somos mais capazes. James faz a mesma constatação num outro plano, quando descreve, nas Variedades da experiência religiosa, numerosos casos em que a crença se desfaz, em que o indivíduo não consegue mais acreditar não apenas em Deus ou num ideal, mas nele mesmo e até mesmo no mundo que está diante dele. Quando atravessamos essas crises, o mundo de repente perde toda significação. As diversas conexões que nos ligam a ele vão se rompendo uma após a outra. Enfim, não podemos mais acreditar como antes; a ação se tornou impossível porque perdemos a confiança. O pragmatismo nasce dessa constatação. Ele não é um eco triunfante da América; pelo contrário, é o sintoma de uma ruptura profunda no todo da ação. Ele não segue o movimento daquilo que se faz sem lutar contra o movimento daquilo que se desfaz. É nesse sentido que afirmamos que a ação é um problema, e não, de forma alguma, a solução universal. O diagnóstico de James é vizinho do de Nietzsche: não acreditamos em mais nada. Nietzsche faz esse diagnóstico através do sintoma do niilismo, principalmente da "vontade do nada" do niilismo ativo. Iames o faz nessa profunda perda de confiança traduzida por uma profunda crise de ação. Aquele que não acredita mais, aquele que não confia mais permanece imóvel e sem reação, desfeito. É como se tivesse sido atingido por uma morte da sensibilidade.P Continuamos agindo como sempre, e talvez até mesmo com um "rendimento" considerável, mas será que ainda acreditamos nisso? Com que intensidade? Será que ainda acreditamos no mundo que nos faz agir? Como confiar no outro, como confiar em si mesmo, e, inclusive, como confiar no mundo? Será que tal filosofia, tal doutrina nos dará confiança? Essas perguntas são as várias subdivisões do problema central. A tarefa da filosofia não é, portanto, procurar o verdadeiro ou o racional, e sim nos dar razões para acreditar neste mundo, assim como o religioso encontra razões para acreditar num outro mundo.
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o. w. Holmes
Wliliam James. a construção da experiência
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radical favorece a confiança (se ele supostamente engendra a dúvida e a desconfiança)? Ou melhor, como fazer da pluralidade em geral um objeto de confiança? Não vamos supor, porém, que a filosofia de [ames foi para ele um meio de "sair" da psicologia. O pragmatismo também precisa de uma psicologia. O pensamento de [ames sempre se definiu como um pluralismo, e esse pluralismo como um perspectivismo. É para cada consciência, tomada em si mesma, que se faz a pergunta: como acreditar e agir? Nesse sentido, o método pragmatista pode ser definido legitimamente como "democrático":" Ele não pode ditar nenhuma regra universal. É aí que vemos em que o pragmatismo precisa de uma psicologia, já que ele examina o efeito produzido pelas ideias em uma consciência. Essa ligação é ainda muito vaga; ela não diz respeito especificamente a essa psicologia. Em que o problema da consciência exige uma psicologia da consciência concebida como um fluxo? Por definição, o fluxo não para de variar, de passar por subidas e descidas, e os campos da consciência que correspondem a essas variações não param de se ampliar ou de se estreitar. Logo, uma consciência acredita, age, quando as variações que a afetam ultrapassam um certo limite; daí uma psicologia que estude as variações do campo de consciência, uma psicologia da intensidade. Nas Variedades da experiência religiosa, [ames mostra que um campo de consciência se amplia, estende suas conexões, em função da extensão da confiança. Isso significa que as variações de intensidade da consciência não são outra coisa senão as variações de seu sentimento de confiança. É uma psicologia da confiança ou, se preferirmos, para o problema da confiança. Nesse caso, longe de ser independente do pragmatismo, ela é a única psicologia possível para o problema geral que [ames coloca e para o qual é preciso encontrar a solução: do que uma consciência necessita para que os signos tenham um sentido, ou seja, para que eles a façam agir, ou, ainda, para que eles a levem a produzir outros signos, ações ou pensamentos, ligados aos primeiros? Sob essa forma condensada, encontramos três eixos distintos: o pragmatismo, cujo problema consiste em determinar quais são os signos ou as ideias 13·
Pragmatism, p.
44 [p. 30]: "Vê-se desde já, porém, quão democrático
segundo as quais podemos agir ou aumentar nossa potência de agir; o empirismo radical, cujo problema consiste em determinar como se constituem os signos e de acordo com que regras eles se organizam; e, em menor escala, a psicologia, cujo problema consiste em determinar aquilo que permite à consciência dar sentido aos signos que ela percebe e como ela reage a eles através das variações do seu fluxo. São esses três problemas que precisamos tentar resolver.
[o pragmatis-
mo] é."
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Willlam James. a construcão da experiência
Introdução
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o EMPIRISMO
RADICAL
Plano e material: a experiência pura Uma das características essenciais do empirismo em geral é a construção de um plano que permite observar como são feitas as ultrapassagens, as crenças, os julgamentos etc. Observamos a experiência a partir de uma espécie de experiência pura, um momento primeiro de inexperiência - a tábula rasa. Nos empiristas clássicos, como Locke e Hume, esse plano se confunde estritamente com a ignorância do primeiro homem ou do recém-nascido, quando a mente ainda é apenas um conjunto díspar de átomos psíquicos não ligados entre si. Desse modo, Hume pergunta se um homem que nunca viu a água pode inferir pela sua fluidez e transparência que ela o sufocará.' O que devemos ver nesse artifício não é um combate contra os inatistas e os cartesianos, mas sim a instauração de um novo método. É verdade que o método cartesiano da dúvida também consiste em fazer tábula rasa de todos os conhecimentos; só que a força da dúvida aparece como o reverso negativo da certeza essencial que ele ainda não descobriu, mas que já contém: o "Penso': Dito de outra forma, não se trata de uma autêntica tábula rasa, já que o método cartesiano deixa subsistir fora de si o "Penso" que o concebe e determina sua finalidade. A vantagem que os empiristas tiram de seu método é que eles não deixam nada de fora. Parte-se de um plano em que nada está preestabelecido, no qual nenhum conhecimento, nenhuma certeza mesmo que virtual - aparece, de modo que, legitimamente, tudo deve ser construí do. Cf. David Hume. Investigação sobre o entendimento humano, trad. bras. de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora Unesp, p. 56.
1.
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Na psicologia de [ames, tudo começa como nos empiristas clássicos. Em Iames, esse momento de inexperiência é denominado experiência pura. Nos Princípios de psicologia (1890), experiência pura são todos aqueles estados sem consciência. São as sensações do recém-nascido ou os estados comatosos, as alucinações provocadas por certas drogas, enfim, todos esses estados em que as distinções ainda não foram feitas ou que deixaram de existir. Se a psicologia só começa com o movimento reflexivo da introspecção, então esses estados marcam o limite da investigação psicológica propriamente dita. «Este estágio de condição reflexiva é, mais ou menos explicitamente, nosso habitual estado mental adulto. Não pode, entretanto, ser considerado como primitivo. A consciência dos objetos deve vir primeiro. Parecemos cair nessa condição primordial quando a consciência é reduzida a um mínimo pela inalação de anestésicos ou durante um desmaio"> O que torna esses estados tão dificilmente acessíveis à análise é que eles nos mergulham numa espécie de "monismo vago" no qual não mais distinguimos nem sujeito nem objeto, enquanto que o psicólogo, por princípio, é decididamente dualista. «Ele supõe dois elementos, mente que conhece e objeto conhecido, e os considera irredutíveis." O psicólogo só intervém como tal quando a consciência já se distinguiu do objeto que está à sua frente, quando, enfim, ela já o conhece. Sob o psicólogo naturalista - e antes dele -, que se limita a descrever o fato do conhecimento na sua dualidade, existe, portanto, um "ernpirista" que nos diz de que fundo impessoal esse conhecimento provém, mas sobre o qual ele não pode afirmar nada. Pode-se medir o limite de tais descrições. Quando a psicologia advém, a experiência pura é acessível apenas como algo que de início já se perdeu. Se dissermos que se trata de uma experiência sem consciência, a psicologia toma a expressão ao pé da letra; ela procura o fato: ao nível sensitivo, só não se faz a distinção entre consciência e objeto se a consciência ainda não está lá (o recém-nascido), ou se ela já não está mais lá (síncope, droga). Desse modo, a experiência é pura
porque é puro aquele que a faz. Ou melhor, o plano se reduz sempre a um momento rapidamente ultrapassado (e se encarna em personagens teóricos, eles mesmos fugidios), a psicologia, assim como o empirismo clássico, também não consegue extrair desses momentos um verdadeiro plano, ou seja, estabelecer uma realidade copresente a todos os dados que nele se produzem. Em outros termos, a psicologia não dispõe de um campo genético: ou ela remonta a uma experiência pura como se fosse seu limite, mas encontra estados por demais inconsistentes para construir suas gêneses; ou ela intervém quando tudo já está constituído e não tem outra escolha a não ser oferecer para si gêneses já prontas. Compreendemos por que Kant e Husserl, apesar de guiados por motivos bem diferentes, procuraram constituir um campo transcendental fora de qualquer psicologia. O domínio do transcendental de fato libera um campo que permite constituir verdadeiras gêneses porque o purificamos previamente da sua matéria empírica ou das ingenuidades do naturalismo psicológico. Podemos, assim, remontar às condições puras ligadas entre si por um ego transcendental e, desse modo, constituir um plano: é assim que Husserl pôde ter a pretensão de atingir verdadeiramente a experiência pura: «O início é a expediência pura e, por assim dizer, ainda muda, que se deve levar à expressão pura de seu próprio sentido. Ora, a expressão verdadeiramente primeira é a do eu sou cartesiano [... ]"4 Curiosamente, no momento em que atinge esse plano, ele encontra o mesmo problema de Descartes: o eu não é ele mesmo objeto de uma gênese, já que ele é, pelo contrário, a condição legítima dela. «Puro" significa precisamente que estudamos as vivências como imanentes da consciência. As filosofias transcendentais se liberam bem da matéria empírica, mas conservam as formas herdadas da psicologia, mesmo que elas sejam reorganizadas de acordo com as exigências do seu novo domínio. Se, como dissemos, a ambição do pensamento de [ames é a de capturar a realidade no momento em que ela se produz, compreenderemos que ele não pode tomar nenhuma das duas vias: nem seguir as gêneses materiais da psicologia, nem reconstruir as gêneses formais
1he Principies of Psychology, capo IX, p. 263 [Ed. bras. apenas do capoIX in Pragmatismo e outros textos, trad. de Jorge Caetano da Silva e Pablo Rúben Mariconda. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 156]. Grifo nosso. 3. Ibid., capovm, p. 214.
4. Edmund Husser!, Meditações cartesianas, trad. bras. de Frank de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001, p. 56.
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lugar definido deve ser encontrado no sistema final da realidade." A experiência pura, num sentido que ainda falta definir, é o Isto [1hat] universal. É o imenso mundo de material não qualificado, neutro. E é, ao mesmo tempo, "um fluxo de vida imediato': A rigor, ali só encontramos "isto': "aí está»,nada mais. Além disso, esses termos são apenas convenções para significar que nenhum qualificativo, mesmo tão rudimentar como esses, pode designar este universo. Não encontramos aí nenhuma das formas puras das filosofias transcendentais. Iames utiliza às vezes o termo matéria, mas no sentido vago de material [stuff/ materiaIs]. Diferentemente da matéria empírica, o material designa uma realidade que pode ser ao mesmo tempo física e mental. Ou seja, não há nada que seja puramente mental ou puramente material, tudo é composto por esse material físico-mental. Eis, então, o que [ames pode dizer sobre a consciência: "Quero dizer que não existe substrato [stuff] primordial, ou qualidade de ser, diferente daquilo de que os objetos materiais são feitos, a partir do que nossos pensamentos sobre esses objetos são constituídos." É uma nova versão do monismo vago.' Só que o monismo não é mais um pensamento do Todo, mas do entre dois. Trata-se de fato de uma realidade intermediária que se estende entre o espírito e a matéria, na qual eles se confundem intimamente mas a partir da qual eles também se distinguem, embora apenas de forma virtual." Na realidade ainda não os distinguimos, embora, na verdade, estejamos fazendo isso o tempo todo.
das filosofias transcendentais; nos dois casos, apesar do grande esforço para seguir o movimento daquilo que está sendo feito e para sermos imanentes a esse movimento, sempre fracassamos - e isso porque o submetemos a formas preexistentes que interrompem o processo. Toda a dificuldade consiste, portanto, em abrir uma terceira via, instaurar uma experiência pura que não se reduza nem a uma pura matéria sensitiva, nem seja constituída pelas formas de uma subjetividade pura. O que é preciso é que os momentos fugidios descritos acima possam constituir um verdadeiro plano de construção. É o que Iames tenta fazer com os Ensaios em empirismo radical (1904). Nos Princípios, e em certos textos posteriores, a experiência pura só é introduzida no contexto de uma análise psicológica ou de uma descrição epistemológica (ou seja, essencialmente como sensação). A reviravolta considerável dos textos tardios consiste em fazer precisamente o inverso: interpretar as análises psicológicas a partir do campo da experiência pura. O que se tornam, então, o sujeito, o objeto, a consciência, o corpo, do ponto de vista da experiência pura? Para isso é preciso clarear o horizonte que permite perceber como eles são construídos. Precisamos explorar os movimentos que se encontram sob as formas da psicologia ou que foram herdadas dela. Temos quase a sensação de assistir ao nascimento de um novo mundo. Toda a engenhosidade de Iames consiste em voltar para aquém dos dualismos epistemológicos, retomar ao lugar onde as relações se apresentam em estado puro, quando elas ainda não estão divididas em uma dupla qualquer de categorias (sujeito/objeto, matéria/espírito etc.). Trata-se de instaurar um novo ponto de vista. Se anteriormente a experiência pura se manifestava, por assim dizer, local e pontualmente através de certos interstícios que deixavam passar um vislumbre de caos liberado pela matéria das sensações (vertigens do desmaio ou anestesia), a partir de agora a experiência pura será tudo aquilo que acontece, qualquer acontecimento, o fogo que queima, um homem que lê num trem. Ela pode até mesmo ser uma reação química estritamente material. Como tal extensão se faz possível? O princípio geral da experiência pura é o seguinte: "Nada será admitido como fato, à exceção daquilo que pode ser experienciado num tempo definido por algum [ente] que tem a experiência [by some experient]; e para cada aspecto factual experienciado, algum
5. Essays in Radical Empiricism, p. 81 [Trata-se do sexto capítulo, "The experience of activity" discurso feito por [arries quando assumiu a presidência da American Psychological Association, ainda inédito em português, N.RT.] 6. Ibid., p. 4 [Ed. bras. "Ensaios em empirismo radical - capítulos I ao v" in Pragmatismo e outros textos op. cit., p. 174, T.M.]. 7. Ibid., p. 113: "Será um monismo, se quiserem, mas um monismo completamente rudimentar e absolutamente oposto ao assim chamado monismo bilateral do positivismo científico ou espinosista" [Trata-se do oitavo capítulo, "La notion de conscíence', comunicação apresentada originalmente em francês por [ames no 5" Congresso Internacional de Psicologia, em Roma, em 30 de abril de 1905, inédito em português, N.RT.] 8. É o sentido da profunda observação de Bergson em uma carta enviada a [ames, em 5 de fevereiro de 1905: "Essa existência de alguma realidade fora de toda consciência atual provavelmente não é a existência em si da qual falava o antigo substancialismo; e, no entanto, também não é aquela atualmente apresentada a uma consciência, é alguma coisa intermediária entre ambas, sempre prestes a se tornar ou a se tornar novamente consciente, alguma coisa intimamente ligada à vida consciente, entrelaçada à vida
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Em outros termos, Iames eleva o material ao estado de verdadeiro plano. Ele parte da suposição de que existe apenas "uma coisa [stu.ff] primordial ou material no mundo, alguma coisa da qual tudo se compõe e [... ] nós chamamos essa coisa de 'experiência pura'?" Aqui, puro não quer dizer não empírico; pelo contrário, quer dizer ernpírico, apenas empírico. É o dado no estado puro. Não é o dado de ninguém. Ele é dado em si. Ele nem mesmo é dado por alguém; é um mundo no qual ainda não aparecem nem sujeito nem objeto. Nesse sentido, podemos falar de um empirismo radical. A palavra experiência deve ser entendida, dessa forma, em um sentido muito amplo: a experiência pura é o conjunto de tudo aquilo que está em relação com outra coisa, sem que exista necessariamente uma consciência dessa relação. Encontramos alguma coisa desse uso da palavra "experiência" na expressão: "fazer uma experiência" por exemplo, a experiência da cristalização entre o cloro e o sódio. Somos nós que fazemos a experiência; mas a experiência não diz nada sobre nós, ela fala das coisas que colocamos em relação: são o cloro e o sódio que cristalizam; nesse caso, são eles que fazem a experiência da cristalização. A experiência, quando pura, se refere tanto aos "sujeitos" quanto aos "objetos" (o que é apenas maneira de dizer, pois nesse nível não há nem um nem outro).
o "monismo vago": uma experiência sem "ego" Aqui, trata-se de um horizonte percorrido unicamente por relações e povoado por termos relativos. Há relações na medida em que se trata, justamente, de um campo de experiências que se cruzam, que se prolongam indefinidamente, se colidem, se interpenetram, às vezes sem nenhum limite demarcado. As únicas unidades "experienciais" ou "materiais" são retalhos [patches], fragmentos ou porções [bits] de experiência, ou seja, ainda relações. Iames frequentemente compara a experiência a um tecido - mas um tecido composto de retalhos.'? [interwoven with it], e não subjacente a ela [underlying it], como queria o substancialísMélanges. Paris: PUF, 1972, p. 652. 9· Essays in Radical Empiricism, p. 4 ["Ensaios em empirismo radical" in Pragmatismo e outros textos op. cit., p. 174, T.M.]. Aspas nossas em "experiência pura". mo:' Henri Bergson,
10. Cf. Ibid., p. 29 [p. 193, T.M.]: "O conhecimento das realidades tecido da experiêncía" Cf. Igualmente em The Meaning ofTruth,
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sensíveis vem à luz no p. 246: "Mas o objeto e
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Esse é o mundo neutro anterior à psicologia, anterior à consciência. Pluralismo e continuidade são suas duas características essenciais. É um campo no qual ainda não distinguimos nem sujeito nem objeto, um mundo de movimentos puros. Ele explica, em termos bem próximos aos de Bergson: "Todo o campo da experiência revela-se transparente do início ao fim, ou composto como um espaço inteiramente feito de espelhos,"!' É evidente que, ao atingir esse grau de extensão, a descrição de [ames se inspira de fato em Matéria e memória. Na verdade, no magistral primeiro capítulo, Bergson descreve um mundo extraordinário composto unicamente por um fluxo primordial de imagens que se refratam umas às outras num reflexo ilimitado.'> Tudo é imagem. A matéria, o corpo, o cérebro são feitos de imagens. Mas, assim como em [ames, não são imagens para alguém. Não são imagens das coisas, pois as "coisas" também são imagens. São imagens em si. 13 A imagem bergsoniana corresponde à experiência pura de [ames. Bergson substitui um sistema de causalidade mecânica por um sistema de refração ele são dois fragmentos do grande pano e do tecido da realidade no seu conjunto:' Lembremos que material, em inglês significa tanto material em si, quanto tecido ou pano, quer no sentido literal [dress materiaIs] quer no figurado, como em "só material de primeira" lhe is champion material]. O mesmo acontece com stufJ, que pode ser tanto um termo para designar algo genérico, quanto para designar "estofo", relativo a estofamento. Bergson tem razão ao usar o verbo interwoven. Essays in Radical Empiricism, p. 113. Notemos que Russell irá propor, em A análise da mente (1921) (trad. bras. de Antônio Cirurgião. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976), um Nesse sentido, 11.
"monisrno neutro" bastante inspirado em [ames - embora igualmente influenciado por Whitehead. Cf. Bertrand Russel, Meu desenvolvimento filosófico, trad. bras. de Cerqueira & Oliva. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, capítulos IX e XII; bem como o estudo de Ali Benmakhlouf, Bertrand Russel, Latomisme logique. Paris: PUF, 1996, pp. 71-75· 12. O artigo de [ames foi publicado em 1904 e Matéria e memória em 1896. Numa carta de 14 de dezembro de 1902, [ames declara ter lido a obra de Bergson logo que foi publicada. Ele encontra ali elementos essenciais numa releitura recente: "Do meu ponto de vista, o Hauptpunkt conquistado e essencial é a sua demolição definitiva do dualismo e da velha distinção entre sujeito e objeto na percepção. Creio que a 'transcendência' do objeto não se recuperará do tratamento que o senhor lhe deu, e como eu também trabalho há muitos anos no mesmo sentido, apenas com outras concepções gerais diferentes das suas, vejo-me muito satisfatoriamente corroborado" (Letters, p. 179)· Cf. Bergson.
Mélanges, op. cit., p. 567. 13. H. Bergson, Matéria e memória, trad. bras. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 32: "É verdade que uma imagem pode ser sem ser percebida; pode estar presente sem estar representada:'
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ótica. Um movimento é uma propagação luminosa através de um fluxo de matéria ele mesmo luminoso, ele mesmo em movimento. Há uma transparência da matéria: ela torna o movimento visível quando este atravessa um corpo, ele mesmo em movimento. A imagem se define como matéria e movimento. Ela não é especificamente mental, mesmo que as imagens mentais sejam específicas. "Se considerarmos um lugar qualquer do universo, podemos dizer que a ação da matéria inteira passa por aí sem resistência e sem perda, e que a fotografia do todo é translúcida: falta, atrás da placa, uma tela negra sobre a qual a imagem se destacarta.vTanto as descrições de [ames quanto as de Bergson apresentam, no entanto, uma dificuldade evidente. Como pode existir uma experiência pura ou uma imagem em si? Não devemos supor que o fragmento de experiência pura ou a imagem bergsoniana exijam ao menos alguém para quem aparecer? Uma experiência que ninguém faz, uma imagem que ninguém percebe não seriam puras impossibilidades? Não devemos supor pelo menos uma distinção entre aquilo que faz a experiência e aquilo de que a experiência é feita? Formas, mesmo rudimentares, mesmo embrionárias, de sujeito ou de objeto? Acaso [ames não diz que a experiência pura "é consciente e [que] ela é aquilo de que temos consciência'T'" Podemos pensar que [ames e Bergson usam os termos de imagem e de experiência num sentido abusivo; mas, na verdade, seria a tradição filosófica que os utiliza num sentido restrito, na medida em que as relaciona arbitrariamente a um sujeito para o qual imagem e experiência existem. Pressupomos então, implicitamente, que o sujeito é anterior, que tudo aquilo que acontece, acontece para um sujeito. Ora, o que [ames e Bergson recusam é justamente um sujeito fundador e constituinte. Pois tão logo tenhamos um sujeito é preciso deixá-lo. É necessário atingir o caráter neutro da experiência - neutro no sentido de que tudo permanece indefinido, de que não podemos qualificar de objetivo ou de subjetivo, de material ou de espiritual. É preciso partir de um campo de acontecimentos indivisíveis, mas cujas repercussões ou reverberações possam, posteriormente, se "dividir': 14. Ibid. 15· Manuscripts,
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Essays and Notes, p. 18, anotação
número
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A experiência pura é a experiência apreendida do ponto de vista do acontecimento. Ora, o acontecimento surge na intersecção do encontro sujeito/objeto (se privilegiarmos essa relação), no entre-dois, mas antes que eles estejam ali: é por isso que o acontecimento não é a sua fusão; ele os precede. Sujeito e objeto são seus sucedâneos. O erro da divisão sujeito/objeto está exatamente em supor, implicitamente, a existência de dois mundos, um duplicando o outro ou um regulando o outro. De qualquer forma, só existe um acontecimento porque só existe um mundo. 16 A unidade precede e contém virtualmente sua divisão. Por isso, mais uma vez, o empirista vem antes do psicólogo, antes das distinções das filosofias transcendentais - de fato como de direito. Será que o empirismo levado ao limite, "radicalizado", poderia encontrar, contra qualquer expectativa, uma inspiração transcendental? O "fluxo de vida imediato" é a condição imanente de qualquer experiência. Afirmar que se trata de uma experiência anterior à consciência responde bem, desse ponto de vista, à exigência transcendental. Atingimos assim um novo transcendental, um empirismo transcendentalcomo chamá-lo de outro modoi"? Poderemos objetar que a experiência pura já é experiência e que, por essa razão, deve ser constituída. Mas isso não é verdade para uma experiência em si. Não temos que nos questionar sobre "como uma experiência em si é possível" uma vez que, agora, é ela que torna possível qualquer experiência para cada sujeito. É por isso que ela é condição, mesmo que, evidentemente, não seja condição a priori, visto que já é experiência. 16. Cf. E. Durkheim, Pragmatismo e sociologia, trad. bras. de Aldo Litaiff. Florianópolis: ussc/Unísul, 2004. "O que caracteriza o empirismo radical é a unicidade absoluta do plano de existência. Ele se recusa a admitir que existam dois mundos, o mundo da experiência e o mundo da realidade:' 17. Tomamos emprestada de Deleuze a expressão que propõe instaurar em Diferença e repetição um "empírismo transcendental". Cf. Gilles Deleuze, Diferença e repetição, trad. bras. coord. por Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 209. "O empirismo transcendental é o único meio de não decalcar o transcendental sobre as figuras do ernpírico," Numa perspectiva totalmente diferente, Deleuze invoca um campo transcendental sem ego nem intencionalidade, percorrido unicamente por multiplicidades. Cf. a invocação de um empirismo radical nas análises de Lógica do sentido, trad. bras. de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1974; e O que é a filosofia?, trad. bras. de Bento Prado Ir, e Alberto Alonso Mufioz. São Paulo: Editora 34, 1992: "É quando a imanência não é mais imanente a outra coisa que a si mesma que podemos falar de um plano de imanência. Esse plano talvez seja um empirismo radical:'
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[ames inverte totalmente a perspectiva e permite a identificação entre empírico e transcendental" Assim, ele não se opõe à ideia de construir um campo transcendental; ele se opõe à ideia de que possamos fazer esse campo depender de uma forma-sujeito. O que constitui a novidade e a originalidade de [ames, tanto quanto a de Bergson a esse respeito, é exatamente pensar que o campo da experiência pura se desdobra por si só. Essa inversão já está esboçada na psicologia. Contrariamente ao que com frequência se diz, [ames não parte do "fluxo de consciência" [stream of consciousness], mas de um dado mais radical, do qual o fluxo de consciência deriva. O que o psicólogo encontra primeiro é um fluxo de pensamento impessoal [stream of thoughtl. "Dessaforma, para nós, como psicólogos, o primeiro fato é que alguma sorte de pensamento acontece ... Se pudéssemos dizer, em inglês, 'pensa, como dizemos 'chove' ou 'venta, essa seria a maneira mais simples de enunciar o fato, com o mínimo de pressupostos. Como isso é impossível, devemos dizer simplesmente que o pensamento acontece:"> Não partimos do ego, mas de um acontecimento neutro, indefinido. A imanência do fluxo não está diretamente ligada a um ego, como é o caso em Kant e Husserl, que conservam mais da psicologia do que querem acreditar. A constituição do campo transcendental permite de fato esvaziar a psicologia de seu núcleo positivo empírico, mas nem por isso ela pode se liberar das categorias da psicologia, particularmente do ego.
As filosofias transcendentais surgem como épuras da psicologia, cujas formas elas expandem ou duplicam.>? Kant e Husserl certamente purificaram as formas da sua matéria empírica; mas podemos perguntar legitimamente: por que eles não estenderam essa purificação às formas em si mesmas? Por que eles não examinaram se as formas do ego, do objeto, da imaginação, da intencionalidade, da temporalidade eram puras? Podemos implantá-Ias no campo transcendental sem examiná-Ias, sem considerar quais comprometimentos elas implicam? Criticamos a psicologia por seu empirismo ou por seu naturalismo quando deveríamos tê-Ia criticado por retirar deles formas ruins, formas já constituídas. Não é isso que faz Iames, quando se propõe a considerar a consciência e o cérebro como fluxos? Na verdade, não criticamos a psicologia por seu empirismo ou por seu naturalismo; nós a criticamos por ter sido incapaz de fazer distinções, por ter falseado as descrições, por não ter, enfim, sido capaz de seguir os fluxos da matéria. Isso permite perceber que, tanto para Kant quanto para Husserl, as formas são puras desde que sejam formas. O que importa é partir das formas e apenas delas, pois reservamos para elas um papel constituinte (um deles através dos a priori de toda experiência possível, o outro através da imanência pura do que foi vivido pela consciência). Existe aí uma espécie de pressuposto aristotélico ou tomista que assume as formas como superiores por direito às suas matérias." Mas a hipótese de [ames mostra que não conseguiremos estabelecer um campo transcendental independente da Sartre é o primeiro a observar que Husserl duplica o eu psicofísico no transcendental sob a forma de um Eu, estrutura da consciência absoluta. Ele critica essa operação, que julga inútil. Cf. La transcendance de lego. Paris: Vrin, 2000, p. 19 [Ed. bras.: "A transcendência do ego'; trad. de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco in Cadernos Espinosanos, n· 22. São Paulo: Edusp, 2010, pp. 183-228]. Sobre o duplo de Kant. Cf. Mikel Dufrenne, La notion da priori. Paris: PUF, 1959, pp. 20-21. Esclareçamos que Iames não comenta Husserl (que ele não conhece); apenas acreditamos ser possível fazer tais observaçõesassim como as precedentes - a partir de sua crítica da psicologia. 21. Cf. Kant, "Sobre um recentemente enaltecido tom de distinção na Filosofia" trad. bras. de Valerio Rohden in Studia Kantiana, n- io. Natal: UFRN,2010, pp. 152-170; em que se lê "o formal em nosso conhecimento [... ] é a ocupação mais importante da filosofia [... ]. Sobre essas formas baseia-se a possibilidade de todo o conhecimento sintético a priori" Sobre o formalismo de Husserl, cf. M. Dufrenne, op. cit., e E. Cassirer, Philosophie des formes symboliques, trad. fr. Claude Fronty. Paris: Minuit, 1972, pp. 225-226 [Ed. bras.: Filosofia das formas simbólicas, trad. de Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011]. 20.
Schelling já havia feito uma tentativa semelhante com seu "empirísmo filosófico': A ambição da filosofia da Natureza é estabelecer o fato puro do mundo. Trata-se de uma subjetiva-objetividade universal que não deve ser estabelecida nem pelo sujeito nem no objeto. Schelling faz surgir entre o sujeito e o objeto um centro, uma "espécie de ponto de indiferença" situado sobre a linha magnética que liga os dois polos. Cada ponto da linha exprime ao mesmo tempo sua bipolaridade, seu ponto mediano ou indiferente. "No universo inteiro, não existe nada que seja totalmente subjetivo ou objetivo; a mesma coisa, de acordo com o que ela é comparada, pode ser subjetiva ou objetiva:' Encontramos aqui uma substância mental-física como realidade intermediária entre o sujeito e o objeto, as "polaridades universais da natureza". Mas Schelling introduz a seguir um esquema hilemórfico, e submete o processo dessa linha ao par pitagórico limitado/ilimitado que irá constituir dois dos termos da triplicidade divina. Cf. "Exposé de lernpirisme philosophique" in Philosophie n· 40-41. Paris: Les Éditions de Minuit, 1994. 19· The Principies of Psychology, capo IX, pp. 219-220. 18.
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psicologia se conservarmos um esquema hilemórfico, quer a primazia seja atribuída à matéria, quer à forma. Em outros termos, o par matéria-forma não está apto a descrever o movimento daquilo que se faz. A interpretação e as séries significantes Com o mundo da experiência pura talvez possamos dispor, mais uma vez, de um plano propriamente genético que permita seguir esse movimento com precisão. Afirmamos que o mundo da experiência pura é um mundo sem sujeito nem objeto - mais exatamente, um mundo neutro que se desenvolve e que se estende entre a relação sujeito/objeto. Isso significa, ao mesmo tempo, que a experiência pura "é consciente e é aquilo de que temos consciência" inseparavelmente. Sob um primeiro ponto de vista, ela não é nem sujeito nem objeto, nem mental nem física, mas, sob outro ponto de vista, ela é ambas ao mesmo tempo, simultaneamente, ainda que de maneira virtual. Como diz Bergson em sua carta, "não se trata do efetivamente apresentado a uma consciência" O mundo da experiência pura surge assim como um vasto campo percorrido por virtualidades, "um aquilo, que não é ainda um o quê definido, apesar de poder ser todas as espécies de o quês':22 É sobre esse plano que se opera a divisão e que as distinções podem ser construídas. O que faz então com que uma relação seja chamada de subjetiva ou de objetiva? A questão deixa de ser "como produzir uma experiência pura?" para ser, pelo contrário, "como uma experiência deixa de ser pura?". Como vimos, a experiência pura não se refere mais apenas a certas sensações (desmaio etc.): ela se refere a qualquer experiência. "Deixemos o leitor, agora, interromper a si mesmo no ato de ler este artigo. Agora esta é uma experiência pura, um fenômeno ou dado, um mero aquilo ou conteúdo de fato. 'Ler' simplesmente é, está ali; e se está ali para a consciência de alguém ou está ali para a natureza física, é uma questão ainda não colocada.T" É preciso explicar claramente: toda experiência é pura, mas apenas na sua ponta neutra do presente. "O campo instantâneo do presente é, em todos os tempos, o que chamo
a experiência 'pura"> Ora, o próprio de cada pensamento consciente é ser como um caule de bambu que liga passado e futuro num mesmo presente contínuo - o que [ames chama de "presente especioso" [specious present); mas isso também significa que existe uma ponta de presente puro cujo pensamento não pertence à consciência, pelo menos ainda não; é como se ele estivesse separado dela pelo fluxo da continuidade temporal. Só depois, refletindo sobre o que se passou, é que dividimos o acontecimento para distinguir a consciência de seu objeto. No intervalo, efetuou-se um processo de apropriação: o pensamento seguinte se apropria ou herda do pensamento precedente; é o ato de apropriação retrospectivo do pensamento, mesmo que este esteja igualmente voltado para o futuro. "Cada pulsação da consciência cognitiva, cada Pensamento morre e é substituído por outro ... Desse modo, cada Pensamento nasce dono e morre possuído, transmitindo tudo aquilo que ele realizou como seu eu [Self] para seu próprio dono posterior ... "25 É assim que o acontecimento-pensamento, o "pensamento acontece" neutro e indefinido descrito pela psicologia, torna-se meu pensamento, o pensamento da minha consciência, através de um trabalho de apropriação retrospectivo imediato que o integra - apropria - aos pensamentos precedentes. Trata-se de um processo de interpretação. Ter consciência é precisamente interpretar o pensamento presente ainda impessoal como meu." Desde que o ato de apropriação se produz (num segundo momento), a experiência pura se transforma e desaparece como tal; ela entra numa perspectiva. O dado torna-se meu dado, constituído a partir de um passado, em vista de um futuro. A experiência se tornou matéria para interpretação. Interpretar é constituir séries. Considere-se o seguinte acontecimento: um indivíduo está lendo numa sala. "Ora, quais são os dois processos em que a experiência da sala entra, dessa maneira, simultaneamente? Um deles é a biografia pessoal do leitor, o outro é a história 24.Ibid., 25.
pp. 36-37[p. 181]. The PrincipIes af Psychalagy, capo IX, p.
322.
26.Ibid.,
22.
Essays in Radical Empiricism, pp.
23·Ibid.,
34
pp.
46 [p. 206].
72-73[p. 227].
Wllllam James. a construção da experiência
capo x, p. 279."Mas é claro que entre aquilo que um homem chama de eu e aquilo que ele chama simplesmente de meu é difícil traçar uma linha ... No seu sentido mais amplo possível, entretanto, o Eu de um homem é a soma total de tudo aquilo que ele é capaz de chamar de seu:'
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da casa da qual a sala faz parte. [... ] As operações físicas e mentais formam grupos curiosamente incompatíveis. Enquanto sala, a experiência ocupou aquele local e teve aquele ambiente por trinta anos. Enquanto campo de consciência do leitor, ela pode nunca ter existido até agora:'27 É um único e mesmo acontecimento primitivamente neutro, "ler-numa-sala'; mas que se torna objetivo ou subjetivo (se privilegiarmos essa relação) de acordo com a série - "biografia" ou "história" - na qual ele está integrado. Assim, vão se constituir séries chamadas "objetivas" e séries chamadas "subjetivas': É nesse sentido que interpretar consiste em construir e percorrer séries. Não devemos pensar, no entanto, que o conjunto desse processo recursivo consiste em um simples retorno sobre si, e que Iames renova as tradicionais definições de consciência como ato reflexivo em oposição a um fluxo de pensamento irrefletido. Também não devemos supor que esse movimento implica recurso a um ego doador de sentido. Parece que [ames está atento a outra coisa: ou consideramos um acontecimento isoladamente - e trata-se então de uma "experiência pura", ou o acontecimento está integrado a uma série - e assim muda de natureza: ele começa a significar. Para retomar os termos de Iames, o alguma coisa se torna uma coisa. O processo de significação começa com a colocação em série. De fato, o acontecimento em si mesmo pode muito bem ser um signo, mas nem por isso ele consegue significar. Um termo não é suficiente. Ora, a significação não supõe de fato dois termos, o signo e aquilo a que ele remete? É o que acontece em Saussure, na união do significante com o significado." Colocado, porém, desse modo, não sabemos como o signo significa. É certo que existe um significado, mas não determinamos o que é significar. Os dois termos estão juntos um ao outro, indissociáveis, sem que saibamos no entanto como é feita a significação. O processo de significação exige necessariamente, portanto, uma série de três termos, como o processo de apropriação descrito acima sugere. Um signo não se refere a uma coisa, mesmo em uma relação
rudimentar de designação. Temos que saber o que de fato estamos significando da coisa, a qual aspecto da coisa o signo visa. Assim, qual aspecto do acontecimento-sala é visado, seu aspecto subjetivo ou seu aspecto objetivo? Para deterrniná-lo, o signo deve primeiramente se referir a um segundo signo no pensamento, o qual, por sua vez, interpreta o primeiro signo referindo-o ao acontecimento naquilo que ele tem de significado (pois não significamos nunca a totalidade daquilo que um objeto pode significar), ou seja, também a um terceiro termo. De acordo com a terminologia de Peirce, na qual [ames se inspira consideravelmente, aqui, diremos que o segundo signo é o interpretante do primeiro. É nessa condição que o signo significa e que o objeto é significado. De modo que é sempre um segundo signo (o interpretante) que se refere a um terceiro termo (o aspecto do objeto significado pelo primeiro). Um signo não significa porque ele se relaciona com o objeto. Ele significa através de um signo que o liga ao objeto naquilo que este tem de significado, e esse último se torna ele mesmo signo. Dizer então que o acontecimento-pensamento significa ao mesmo tempo meu pensamento (um) só é possível se o interpretante (dois) - a emoção ou o sentimento de pertencimentoapreende esse aspecto do acontecimento (três) para fazer significar essa ínterpretação.v Encontramos aqui o movimento de apropriação que descrevíamos acima, definido dessa vez, contudo, como processo semiótico. Não há nada de reflexivo aí; pelo contrário, trata-se de um processo de interpretação indefinidamente aberto, de acordo com seu caráter serial. Como diz Peirce, "o pensamento é um signo que se refere não a um objeto, mas a um pensamento que é seu signo interpretante, e este, por sua vez, se refere a um outro pensamento-signo que o interpreta, e isso num processo contínuo'P? o que significa que 29. De acordo com a classificação de Peirce, o interpretante pode ser tanto um sentimen-
a um significado (como conteúdo mental), quanto a um referente objetivo. Cf. Émile de Benveniste, Problemas de linguística geral, trad. bras. de Maria da Glória Novak e Luiza Neri. São Paulo: Cia. Editora Nacional/Edusp, 1976.
to (interpretante afetivo), um esforço físico ou mental (interpretante dinâmico), quanto um hábito (interpretante lógico), todos são signos. [cr- 5.475; 5-476]. Aqui nos inspiramos nas descrições de C. Tiercelin. La pensée-signe. Nimes: Ed. J. Chambon, 1993; e de C. Chauviré, Peirce et Ia signification. Paris: PUF, 1995, cujas notáveis análises simplificamos. 30. Aqui, Lapoujade resume algumas ideias atribuídas a Peirce. Em CP 5.284, Peirce desenvolve sua tese de que não há cognições imediatas, isto é, que toda cognição é sempre precedida por outra. Diz ele: "o surgimento repentino de uma nova experiência nunca é um caso instantâneo, mas é um evento que ocupa tempo e que vem a acontecer por um processo contínuo. Sua proeminência na consciência, portanto, tem de
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Essays in Radical Empiricism, pp. 8-9 [p. 177]. 28. Observaremos, aliás, a ambiguidade da díade saussuriana: o significante remete tanto
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radica!
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tudo é signo. Os objetos, as coisas são signos, ou inversamente: os signos são coisas. Dizer "nós passamos de signo em signo" quer dizer exatamente que "nós percebemos as coisas em si".Quando passamos do quarto subjetivo ao quarto objetivo, só estamos passando de uma série de signos a outra, de uma interpretação a outra, mas trata-se de uma única e mesma realidade em signos. Podemos ver, a partir de então, como as interpretações vêm povoar o deserto "neutro" da experiência pura e introduzir nele pontos de referência para o percurso de uma experiência. De fato, tudo o que encontramos aí são interpretações. Do ponto de vista do empirismo radical, as distinções sujeito/objeto, pensamento/matéria, mundo psíquico/mundo físico são apenas interpretações - nada mais do que séries de signos. "Os atributos sujeito e objeto, representado e representação, coisa e pensamento significam uma distinção prática, que é da máxima importância, mas que é apenas de ordem funcional, nem um pouco ontológica tal como o dualismo clássico a representa.">' Mas então, o que é que faz a realidade dessas experimentações se elas são apenas signos? É a crença, ou melhor, a reação emocional provocada pelo acontecimento que nos faz crer. Chamamos de "real" aquilo que provoca em nós uma emoção: "Na sua natureza íntima, a crença, ou o sentido da realidade, é uma espécie de sentimento aliado mais às emoções do que a qualquer outra coisa ... a realidade significa simplesmente aquilo que está relacionado com a nossa vida emocional e ativa ... "32 A emoção se define ao mesmo tempo como crença e interpretação. Acreditar é interpretar um acontecimento como "real': ou seja, fazer os signos significarem. provavelmente ser a consumação de um processo crescente; e, se for assim, não há causa suficiente para o pensamento que fora o principal logo antes de cessar abrupta e instantaneamente. Mas, se um curso de pensamento [train of thought] cessa ao morrer gradualmente, ele segue sua própria lei de associação livremente enquanto durar, e não há momento algum no qual haja um pensamento pertencente a essa série, em seguida do qual não haja um pensamento que o interprete ou repita. Não há exceção, portanto, à lei de que todo signo-pensamento é traduzido ou interpretado em um outro subsequente, a menos que aconteça de todo pensamento chegar a um término abrupto e final na morte:' [N.RT.] 31. [ames apud E. Durkheim, op.cit. Se Durkheim se proclama pragmatista, Iarnes, por sua vez, é muito reservado em relação às teses do sociólogo. 32. The Principies of Psychoiogy, capo XXI, pp. 913 e 924.
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Nesse sentido, a crença é o "sentido da realidade': Aquilo em que acreditamos é real, é interpretado como real. Essa é uma tendência fundamental da consciência. "O impulso primitivo é afirmar imediatamente a realidade de tudo aquilo que se concebe ... Acreditaríamos em tudo se pudéssemos."> Quando Iames diz que a crença é o "sentido da realidade", isso significa, paradoxalmente, que a existência das coisas fora de mim não depende da minha crença. Em outros termos, creio que as coisas existem independentemente da crença que tenho de que elas existam. Assim, dizer "creio que as coisas existem fora da percepção que tenho delas" e dizer "as coisas existem fora da percepção que tenho delas" é dizer praticamente a mesma coisa.>' A existência de um mundo exterior é portanto um postulado do qual não podemos prescindir. Sim, existe um mundo exterior, objetivo, independente de nós, e que precede a experiência que fazemos dele." As coisas estão lá "antes" de nós. É uma das nossas primeiras crenças. Ela não tem nada de arbitrário; ela não resulta de uma escolha, mas de uma interpretação a qual somos obrigados. Existe alguma coisa no acontecimento que faz com que eu o perceba como sendo independente da minha percepção (mas não como ele seria sem a minha percepção). É que os acontecimentos da experiência pura são choques, e não alguma coisa que admitimos ou representamos para nós. E são esses choques que nos obrigam a afirmar a coisa como sendo exterior à nossa percepção. Entre o mundo e nós há um choque incessante que nos força a acreditar na sua exterioridade pela sua própria brutalidade e seu caráter inesperado: "Que a realidade é 'independente' significa que existe alguma coisa em cada experiência que escapa ao nosso controle arbitrário. Se for uma experiência sensível, ela força nossa atenção; se for uma sucessão, não podemos invertê-Ia; se compararmos dois termos, só podemos obter um único resultado. Existe um 33· Ibid., pp. 928 e 946. 34· Cf. a definição de Peirce em "How to Make Our Ideas Clear" op. cit.: "Podemos, assim,
definir o real como aquilo cujas características são independentes do que qualquer um pense que elas possam ser:' 35· Cf. The Meaning of Truth, p. 211, "se nosso próprio pensamento particular fosse aniquilado, ainda assim a realidade subsistiria sob uma forma qualquer, embora possivelmente faltasse a essa forma alguma coisa fornecida pelo nosso pensamento':
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impulso, uma urgência, dentro de nossa própria experiência, contra a qual somos impotentes, e que nos conduz numa direção que é o destino de nossa crençal> Não vamos supor, porém, que a crença nasce de um choque puramente físico ou fisiológico. Considerar a realidade como exterior a nós não significa que precisamos nos submeter a seu princípio: pelo contrário, temos que construí-Ia, colocá-Ia em signos, pois, nesse caso, acreditar é interpretar o choque como real. Essa é a definição de percepção e, de modo mais geral, de crença em [ames: interpretar como real, significar como real. "Que nossa percepção queira dizer entes [beings] [... ] torna uma interpretação daquilo que nos acontece tão luminosa, que, uma vez empregada, não é jamais esquecida."? Em outras palavras, o choque é, ao mesmo tempo, para nós, um signo, um signo de exterioridade. Os acontecimentos se tornam reais por uma inferência imediata violenta. Só depois, na medida em que os choques se multiplicam e os signos se desenvolvem pouco a pouco, é que progressivamente se forma um contexto, no interior do qual nossas crenças vêm se inscrever e através do qual elas são determinadas. Um poderoso determinismo, ligado, ao mesmo tempo, ao que o mundo nos força a pensar e ao que nossos hábitos (impressos nos circuitos nervosos) nos levam igualmente a inferir, nos poupa dos choques, que são, por assim dizer, amortecidos pelo contexto que os acolhe. Os signos se tornam reais pelo simples fato de que eles estão de acordo com o conjunto de hábitos adquiridos e o contexto presente que os acompanha. O presente puro do choque se atenua, deixando lugar para o sentimento de continuidade temporal. Acreditar não significa mais apenas interpretar o choque, mas também interpretar esses choques múltiplos de acordo com o conjunto de crenças que se constrói progressivamente em nós, e que transforma nossas percepções em pré-percepções. Então, e somente então, se diz real- menos do choque do que do acordo; de modo que fica fácil supor que a função do sujeito que conhece consiste precisamente em produzir esse acordo, que o conhecimento é constituído por um sujeito. Daí pode nascer a ilusão de que o acordo vem primeiro. Como antes, a gênese começa tarde demais, quando tudo já acabou. 36. Cf. Ibid. Grifo nosso. 37· Cf. Ibid., p.
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Grifo nosso.
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É fácil notar a objeção que poderia ser colocada aqui. James recusa a necessidade de recorrer a um ego: no entanto, a crença, a emoção, a interpretação - seja como quisermos chamar -, não implicam, a cada vez, a presença subjacente de um ego que crê, que se emociona, que interpreta? Essa pergunta inverte a relação de primazia: o que vem primeiro são as interpretações, as crenças: não um "eu acredito", mas uma intensidade, uma emoção que nos atravessa e nos faz acreditar. Não é um sujeito que faz as interpretações, mas o inverso: o sujeito se faz nas interpretações: ou melhor, ele mesmo é uma interpretação, uma interpretação das afecções corporais: "Aquilo de que estou mais seguro é que, em mim mesmo, o fluxo de pensamento [... ] é apenas um nome grosseiro para aquilo que, ao examinarmos de perto, revela-se ser principalmente o fluxo da minha respiração. O 'Eu penso' que . Kant dizia dever estar apto a acompanhar todas as minhas representações, é o 'Eu respiro' que presentemente as acompanha'?" Podemos ver nessas fórmulas provocantes a ilustração de um postulado psicofisiológico; mais essencialmente, porém, elas sublinham que a matéria pode ser interpretada ou como fluxo respiratório ou como fluxo mental. Nos dois casos, o que vem primeiro é a emoção, inseparável da afecção corporal que determina a interpretação. [ames está novamente muito próximo de Bergson quando este último evoca, em Matéria e memória, a "imagem central" do corpo." De fato, [ames escreve: "O mundo que experienciamos (também chamado de 'campo de consciência') surge a cada vez com nosso corpo como centro, centro de visão, centro de ação, centro de interesse. Onde o corpo está é 'aqui'; quando o corpo age é 'agora', aquilo que o corpo toca é 'isto'; todas as outras coisas são 'lá', 'então' e 'aquilo: Essas 38. Cf. Essays in Radical Empiricism, p. 19 [p. 186 T.M.]. Já reconheceríamos formulações semelhantes em 1he PrincipIes o] Psychology, capo x, p. 324: "O sentido da minha existência corporal. mesmo sendo obscuramente reconhecido como tal, pode assim ser a origem absoluta da identidade da minha consciência, a percepção fundamental de que eu sou. Todas as apropriações podem ser feitas em vista dele, e isto, através de um Pensamento que não se conhece ele mesmo imediatamente, pelo menos não naquele momento:' 39. H. Bergson, Matéria e memória, op. cit., p. 21: "Ora, nenhuma doutrina filosófica contesta que as mesmas imagens possam entrar em dois sistemas distintos, um que pertence à ciência e onde cada imagem, referindo-se apenas a si mesma, conserva um valor absoluto, o outro que é o mundo da consciência, e onde todas as imagens se regulam por uma imagem central, nosso corpo, cujas variações elas seguem:'
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palavras, que realçam a posição, implicam uma sistematização das coisas em referência a um núcleo de ação e de interesse que reside no corpo [... ]. O corpo é o olho do furacão, a fonte das coordenadas, o lugar constante das acentuações em todo esse curso da experiência. Tudo está a sua volta e é sentido a partir do seu ponto de vista. A palavra 'Eu' é, então, primordialmente uma palavra de posição, exatamente como 'isto' e 'aqui'":'? Passamos do That inicial a uma série de Here, There, Now. Criamos uma série de signos organizados em departamentos a partir do corpo. Através desses modestos substitutos se produzem os primeiros fatores individuantes que vão levar à construção da consciência, mas como se a consciência, por sua vez, fosse apenas a integração das repercussões das afecções corporais. A experiência pessoal corresponde ao traçado de uma espécie de mapa que é a projeção de um ponto focal, o levantamento topográfico das suas relações dinâmicas com os objetos dispostos panoramicamente em volta do corpo e de seu campo de ação virtual. É porque o corpo está sempre no centro das experiências ditas "subjetivas" que posso interpretá-lo como um eu. Não diremos, no entanto, "o corpo é o eu", numa espécie de cartesianismo ao inverso, mas sim "o corpo me pertence", contanto que o eu não seja nada mais do que esse ato de apropriação sempre renovado, de acordo com as descrições precedentes. [ames substitui um eu invariável pela variação contínua de um meu. Isso significa que a extensão, ou melhor, a obturação dos campos de consciência varia de um momento a outro. Ora a consciência se retrai e o campo daquilo que ela chama de "meu" diminui - nos estados de fadiga, por exemplo -, ora, pelo contrário, ela amplia seu horizonte e desdobra novas conexões - quando encontramos novamente a energia." Não se trata de contar minhas posses, mas, subitamente, de uma coisa que eu acreditava estar em meu poder se tornar impossível, seja porque estou cansado ou porque meu corpo cai numa profunda astenia. É a consciência que pensa, mas é o corpo que limita o que posso pensar, o que está em meu poder de pensar. 40. Essays in Radical Empiricism,
pp. 85-86, nota 14.
41. The Principies of Psychology, capo IX, p. 24T "Esse campo de visão da consciência varia muito em extensão, principalmente em função do grau de frescor ou de cansaço mental. Quando estam os cheios de energia, nosso espírito carrega em si um imenso horizonte ... E nos estados de fadiga cerebral extrema, o horizonte se retrai quase à palavra passageira:'
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O ponto focal - ou a consciência - se forma pelos mapas que ele desenha, o mapa daquilo que seu corpo pode. Essas primeiras interpretações dão lugar a uma segunda interpretação, que se superpõe a elas. Eu me interpreto como eu a partir da coleta de um certo número de relações "neutras" em si mesmas. O que é uma outra maneira de afirmar: não existe eu. "Eu" é uma convenção que designa um conjunto de coordenadas móveis: uma palavra de posição. Função e convenção (contra o hilemorfismo) Assim, aquilo que descobrimos a partir do horizonte da experiência pura é que o material-acontecimento não pode ser matéria para formas ou categorias. Descobrimos que não existem formas, ou melhor, que as formas não são constitutivas. O que descobrimos "no lugar disso"? Funções, apenas funções. O material é matéria para funções ou criações. Longe de serem constitutivas, as formas são sempre julgadas por uma função que as produz.? Não há mais formações de matérias, mas sim seriações de matérias. Além disso, mais do que formas gerais, buscamos uma função-sujeito, uma função-objeto, uma função-conhecimento, uma função-realidade etc. Essa substituição aparece claramente através de um texto recapitulativo de Iames: "Esta 'caneta, por exemplo, é, à primeira instância, um puro isto, um dado, fato, fenômeno, conteúdo, ou qualquer outro nome neutro ou ambíguo que se prefira aplicar. Eu a chamei de [... ] 'experiência pura' Para ser classificada seja como caneta física, seja como o percepto de alguém da caneta, ela deve assumir uma junção, e isto só pode acontecer num mundo mais complicado. [... ] A caneta, assim imaginada retrospectivamente como meu percepto, figura como um fato da vida 'consciente: Mas ela o é somente na medida em que a 'apropriação' ocorreu; e a apropriação é parte do conteúdo de uma experiência posterior totalmente
É um empreendimento da mesma natureza que Peirce persegue através da sua semiologia, como observa Tiercelin em La pensée-signe, op. cit., capo IV, pp. 194-196. "Assim se explica que o conceito central da semiótica de Peirce não seja na realidade nem o de representação [... ] nem mesmo o de signo: mas o de 'signo em ato" As classificações de signos "só têm sentido à luz da semiose e das funções que o signo pode preencher". Cf. igualmente Deledalle, no posfácio da coletânea dos textos de Peirce por ele organizada, Écrits sur le signe. Paris: Seuil, p. 222: "A significação do signo está ligada à ação do signo, não ao signo como tal:'
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adicional à caneta originalmente 'puni. Aquela caneta, virtualmente tanto objetiva quanto subjetiva, não é, em seu próprio momento, efetiva e intrinsicamente nem uma coisa nem outra:'43 Não definimos mais pela forma. O empirismo radical substitui portanto o par matéria/forma (ferramentas de constituição teórica) por uma nova relação material/função (ferramentas de construção prática). No primeiro caso, trata-se de legislar (submeter a matéria do dado à legalidade das formas puras para determinar o sentido delas). No segundo, trata-se de criar (aumentar a realidade pela produção de interpretações através da combinação de signos). Num caso, o método "crítico" ou fenomenológico nos revela legisladores (porque o projeto é teórico); no outro, ele nos revela criadores (porque o projeto é prático). Todos os principais conceitos são então destruídos como formas constitutivas, mas restituídos como funções construtivas. Por exemplo, quando [ames pergunta, no célebre artigo, "A 'consciência' existe?': ele responde negativamente, mas acrescenta: a noção de consciência responde a uma função ou a um conjunto de funções destinadas a conhecer.v' Nesse sentido, a verdadeira pergunta é: sob uma forma pura dada, quais são as funções? Sob esse primeiro aspecto, o empirismo radical dá lugar a um funcionalismo generalizado. Mais uma vez a pergunta não é mais: "o que é o sujeito? O que é o objeto? O que é o conhecimento?" - perguntas que questionam a forma ou a essência daquilo que está em questão. Perguntamos, "dado um material, quais são as funções virtuais ou possíveis?': É isso que explica que um mesmo acontecimento possa ser considerado ora como subjetivo ora como objetivo, de acordo com a função que está em jogo. O vasto horizonte neutro da experiência pura não se confunde com nada que seja original, embora ele possua uma potência genética. O ponto de vista que o acompanha não é originário, mas inocente, a inocência nada tem a ver com qualquer credulidade ou ignorância. Pois se a ignorância é um estado rapidamente ultrapassado, a inocência é um estado recoberto, mas não ultrapassado. A inocência, nesse caso,
43· Essays in Radical Empiricism, pp. 61 e 64 [pp. 218 e 220, T.M.]. 44· Cf ibid., p. 4 [p. 174, T.M.]: "Seja-me permitido, então, explicar imediatamente que que quero dizer é negar que a palavra [consciência] significa uma entidade, e insistir enfaticamente que ela significa uma função:'
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é apenas aquilo que permite ver as ultrapassagens. Desse ponto de vista, Husserl está errado em rejeitar tão rapidamente a inocência e substitui-Ia pelo método da dúvida cartesiana, mesmo que renovado. [ames e Peirce, cada um a seu modo, opõem-se ao método da dúvida, ainda muito carregado de pressupostos implícitos. A dúvida é sempre conduzi da segundo uma certeza essencial da qual ela é o signo precursor. Chega o momento, inevitavelmente, em que ela se volta para instituir aquilo cuja força de constituição ela já manifestava através de seu poder de suspensão. Em princípio, o sujeito é colocado, mas, ao mesmo tempo, ele não sabe que é precedido por todo um mundo, o qual ele tem a ilusão de oferecer a si mesmo. O método da dúvida não permite perceber que o sujeito é também ele mesmo uma construção. O plano da experiência pura é o horizonte no qual vemos surgir todas as crenças, todas as construções, todas as interpretações. É o "estranhamento" desse ponto de vista - a um só tempo puramente imanente à experiência e radicalmente exterior às formas constituídas - que faz com que tudo apareça como convenção. Se [ames continua a falar de "consciência" de "objeto", de "sujeito", é, pois, por convenção, como se fizéssemos um acordo com essas ideias. Mas, na verdade, trata-se apenas de "substantivos coletivos". Por meio disso, sabemos que os termos "Eu': "ego" ou "sujeito" se referem a uma realidade efetiva completamente diferente - uma palavra de posição; desse modo, ao invés de um "Eu" invariável, devemos invocar uma consciência móvel que planta e desplanta suas coordenadas em função das novas relações que o corpo, ele próprio em perpétua mudança, não para de instaurar num emaranhado de relações. Um "sujeito" é convencionalmente um conjunto de coordenadas organizado a partir do feixe de relações que passam pelo corpo. Fazemos de conta que isso era uma consciência, uma realidade objetiva etc., por comodidade. Seria preciso, como faz Nietzsche (e como às vezes faz [ames), colocar entre aspas todos os conceitos para sublinhar seu caráter convencional, interpretativo ou funcional. Tudo deve se tornar convenção, inclusive as funções operatórias. Isso significa que os conceitos são destruídos como legislações, mas restituídos como convenções. Dado um material, podemos pensá-Ia como subjetivo ou objetivo, mas ainda assim uma convenção, pois ele não é primeiro nem a uma coisa nem a outra. Uma forma é apenas uma
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função simbólica. Funcionalismo e convencionalismo se juntam e se exprimem numa mesma pergunta: dado um material, o que é que tem afunção de ... Se tudo é convenção (ou interpretação), isso não significa que todas as convenções têm o mesmo valor. Só devemos aceitar como bem fundamentadas as convenções funcionais. Consequentemente, é preciso instaurar um método muito rigoroso que só diga respeito às funções e nos dê os meios para isso. É preciso seguir as funções, determinar qual é a função da consciência, dos conceitos, da ação, da verdade. Esse método é o pragmatismo (que já podemos presumir ser muito mais rigoroso do que as simplificações abusivas que costumamos lhe imputar ao considerá-lo como uma simples regra de apreciação subjetiva e um método de validação psicológica arbitrário).
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VERDADE E CONHECIMENTO
Como criar verdades? Uma vez que o método pragmatista consiste em tratar as ideias não mais como formas, mas como função, não precisamos mais perguntar o que é a ideia, mas sim o que ela faz. Não consideramos mais a ideia como sendo pensada, mas como jazendo pensar. As definições tradicionais da ideia como imagem, representação ou modificação da mente são incompletas na medida em que elas não dão conta de sua característica essencial: produzir efeitos no pensamento e no corpo. A ideia age; e ela não age sem fazer agir. Do ponto de vista pragmatista, portanto, uma ideia é inseparável de suas consequências. Ela produz um efeito no pensamento ou sob a forma de uma outra ideia que a ela se associe, ou de uma percepção que a individualize, ou, ainda, de uma ação que a prolongue. Ela é um processo. Qual é, portanto, a função da ideia? É próprio da ideia nos fazer pensar numa determinada direção. As ideias são condutoras. "O que decide a situação para nós não é de onde vem, mas para onde leva,"! A ideia não tem como função essencial representar adequadamente a realidade ou estabelecer correspondências entre uma imagem na mente e um objeto na realidade. [ames contesta que as ideias sejam cópias de uma realidade preexistente, física ou metafísica. "Copiar uma realidade é certamente uma maneira muito importante de concordar com ela, longe, porém, de ser essencial. O essencial é o processo de ser guiado." Não se trata de representar as realidades, mas sim The Will to Believe, p. 24 [Ed. bras.: A vontade de crer, trad. de Cecilia Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola, 2001, p. 30]. 2. Pragmatism, conferência VI, p. 102 [p. 76]. 1.
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de estabelecer suas coordenadas. Como fazer, na geografia mental, para ir de uma ideia a outra, de uma realidade a outra? Uma ideia é aquilo através do qual uma consciência orienta e dirige o fluxo de pensamento que a atravessa. Como diz [ames: "Ao combinar conceitos com perceptos, podemos traçar mapas que representam a distribuição de outros perceptos no espaço e no tempo distantes ... o mapeamento conceitual tem importância prática enorme"? Uma ideia dá uma direção. Dirigimo-nos, mental ou fisicamente, na direção do objeto visado, através de uma série de signos intermediários, de experiências colaterais que nos conduzem até ele ou à sua vizinhança. Essa função já era atestada pelas descrições precedentes, quando a consciência traçava seus primeiros pontos de referência e desenhava seus mapas de acordo com as potencialidades de seu corpo. A consciência se desenvolve porque ela "segue" as ideias graças às quais ela é conduzida ou dirigida. Entretanto, só podemos ser guiados ou conduzidos se a ideia concordar efetivamente com a realidade que ela tem a intenção de percorrer. Em outras palavras, é preciso garantir que as ideias conheçam essa realidade. Embora essa realidade seja construída por interpretações, é preciso, no entanto, que essas interpretações nos garantam a verdade daquilo que antecipam. Essa questão ganha força, pois sabemos que, para [ames, a semelhança não é mais um critério decisivo da relação de conhecimento. O que nos garante que essas crenças, essas interpretações conheçam de fato? Ou seja, qual é a definição da verdade que o pragmatismo pode propor? Sabemos a resposta de James. "Verdadeiro
é o nome do que quer que prove ser bom no sentido da crença, e bom, também, por razões determináveis e definidas.": Se, porém, como fez [ames, identificamos crença e verdade, e se a própria crença repousa sobre a intensidade das nossas emoções, não estaremos indo na direção do relativismo ou do subjetivismo, como certos críticos não deixaram de assinalar? Se uma ideia se torna real - ou verdadeira pelo simples fato de que ela é objeto de crença, o conhecimento não estará entregue à arbitrariedade dessa própria crença? Chegaríamos rapidamente, desse modo, ao absurdo mostrado por Russell: "a declaração de que 'A existe' pode ser verdadeira no sentido pragmatista
3. A Pluralistic Universe, capo VI, nota 1, pp. 122-123. 4. Pragmatism, conferência 11,p. 42 [p. 28]. Grifo do autor.
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a construção
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mesmo que A não exista:' Ou ainda: "Segue-se [... ] que se A acredita numa coisa e B acredita no contrário, pode acontecer que as crenças de A e B sejam igualmente verdadeiras." De que critérios dispomos para distinguir, entre as crenças, quais são aquelas que se referem a um objeto real e quais são aquelas que, como as alucinações, os erros, as ilusões, são puros delírios? Em termos pragmatistas, a pergunta é formulada deste modo: "através de qual processo a verdade se constrói?" Aqui retomamos às definições que suscitaram tantas polêmicas e equívocos: a verdade sempre advém do exterior para uma ideia, uma vez que são as consequências para as quais a verdade conduz que a determinam. É um dos textos mais conhecidos de James: ''A verdade de uma ideia não é uma propriedade estagnada que lhe é inerente. A verdade compete a uma ideia. Ela se torna verdadeira, ela é feita verdadeira pelos acontecimentos." Isso, no entanto, apenas desloca as objeções. [ames sempre enfrentou críticas de filósofos, mas por numerosas que elas tenham sido, podem ser reduzidas a uma objeção maior: o que é criticado no pragmatismo de [ames é o fato de que a verdade da ideia depende de condições extrínsecas. De um lado ela depende de suas consequências práticas (embora estas não pertençam de fato à ideia): por outro, ela é identificada a um sentimento subjetivo de satisfação (embora ele próprio também seja um fenômeno concomitante e não constitutivo, diferente, por exemplo, do funcionamento lógico). Em outras palavras, o pragmatismo de Iames é um subjetivismo e um relativismo. A verdade nada mais é do que aquilo que um sujeito faz dela (consequências), nada mais do que um sentimento que ele tem (satisfação). A verdade não possui mais nem necessidade nem universalidade. É preciso considerar cada objeção separadamente. Primeiro, a satisfação. Sabemos que a ideia é verdadeira quando suas consequências são satisfatórias para aquele que foi conduzido até ela. Uma ideia, portanto, não é verdadeira em si mesma. O que faz a sua verdade é a satisfação obtida com as suas consequências: "Entretanto, em todo 5·Cf. B. Russell, "A definição de verdade" in Meu desenvolvimento filosófico, trad. bras. de Alberto Cerqueira e N. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, capo 15 [T.M.]. Nesse capítulo, Russell retoma as diversas etapas das suas trocas - por artigos interpostos - com [ames e recapitula o conjunto das suas objeções ao pragmatismo. 6. Pragmatism, conferência VI, p. 97 [p. 72].
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e em cada momento concreto, a verdade para cada homem é aquilo em que esse homem 'se arrima' [trowethF naquele momento com o máximo de satisfação para si mesmo ... o verdadeiro e o satisfatório querem dizer a mesma coisa." Só que aqui a satisfação não é mais relativa ou arbitrária do que antes era a crença. Podemos sempre dizer que, para mim, é satisfatório acreditar que uma aparição espírita é um fato real e não uma alucinação, que o monstro do Lago Ness existe, que Espinosa não morreu de doença, mas foi assassinado por seu médico. Nesse caso, [ames sempre concordou com seus críticos. Sempre esquecemos em que domínio citamos esses exemplos: sempre em um domínio no qual estou efetivamente livre para escolher esta ou aquela hipótese. Nesse caso, de fato, a satisfação representa um critério subjetivo que varia de acordo com os motivos da cada um. Pode-se supor, então, que é possível achar qualquer crença satisfatória ou, como diz Russell, afirmar A mesmo que A não exista. Em síntese, pode-se pensar que existem satisfações que repousam no erro. Mas isso significa esquecer que a satisfação resulta exatamente da relação entre uma crença e a realidade. Para que uma ideia seja satísfatória, isto é, verdadeira, ela deve concordar com o contexto da realidade e com o conjunto de hábitos lógicos acumulados pela nossa mente. A satisfação, em consequência disso, está submetida a condições e não tem nada de arbitrário. Ela acompanha a harmonia sentida entre esses dois contextos. E, na maior parte do tempo, a ideia só é verdadeira porque ela assegura a ligação entre o estoque de ideias acumuladas durante a experiência e a nova realidade que se apresenta para nós." Não podemos nos satisfazer com ideias em contradição com um desses dois conjuntos. "Devemos 7. O verbo to trow é indicado pelo Oxford English Dictionary como raro, cujo significado
imediato é crer.fiar-se em, confiar. Além disso, [ames ainda usa a grafia arcaica. Escolhi "arrimar-se" levando isso em conta, mas também o fato de que, para [ames (assim como para Peirce e todos os pragmatistas em geral), as crenças verdadeiras são um sustentáculo da ação, isto é, as pessoas agem baseadas no que acreditam como verdade. Outra possibilidade seria traduzir to trow por atar-se a, no sentido de uma teoria adotada que uma pessoa não quer abandonar, atendo-se a ela com afinco e teimosia; nesse caso, contudo, a ideia de verdade como satisfação fica um pouco comprometida. [N.RT.] 8. 1he Meaning ofTruth, p. 220. 9. Cf. Pragmatism, conferência n, p. 37 [p. 25]: "nossos pensamentos tornam-se verdadeiros à proporção que exercem com êxito a sua função de intermediários:'
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Wllliam James. a construção da experiência
encontrar uma teoria que funcione; e isso significa algo extremamente difícil; pois nossa teoria deve mediar entre todas as verdades prévias e certas experiências novas. [... ] 'Funcionar' quer dizer essas duas coisas; e a área de folga é tão reduzida que há pouco espaço livre para qualquer outra hipótese."" Ao contrário do que supõe Russell, não estamos livres para acreditar em qualquer coisa ou para pensar no que for melhor para nós; e como a satisfação acompanha aquilo em que somos abrigados a acreditar, também aí não encontraremos um critério de validação arbitrária. Resta, no entanto, o caso das ilusões, que, apesar de tudo, parece dar razão a Russell. Estar iludido não seria afirmar a existência de A quando A não existe? De fato, [ames pode dizer: determinada ideia é verdadeira para aquele que acredita nela, mesmo que seja uma ilusão, mesmo que seja uma alucinação (afirmar que fantasmas existem etc.), e é falsa para aquele que não acredita. As ilusões e as alucinações não têm nada de arbitrário (elas só são possíveis quando nada na experiência as contradiz); elas são até mesmo, na maioria das vezes, longa e obscuramente preparadas antes de aparecerem para a mente com uma "intensidade explosiva". E isso é igualmente verdadeiro para as aparições de fantasmas: é preciso todo um contexto anterior, uma realidade propícia, para que elas apareçam sem contradição, para que possamos verdadeiramente acreditar nisso. Uma ideia deve sempre ter sido preparada; ela não se limita a uma oração do tipo "A pensa que os fantasmas existem". A tese de [ames não implica nenhum relativismo; não se trata de dizer que "tudo é relativo", mas sim que toda verdade é inseparável do ponto de vista que a enuncia. Só nessa condição um enunciado tem sentido. O perspectivismo não é relativista; ele está ligado a uma função de interpretação. Não devemos, portanto, considerar um enunciado como uma simples oração abstrata, suspensa no vazio, como faz Russell. Como examinar o teor de verdade dessas orações, independentemente do sentido que elas possuem no interior de um dado contexto? Enquanto ação, uma ideia não é um elemento isolado (como a oração). Ela forma um traço de união, uma realidade transitiva inserida 10.
Ibid., conferência
Verdade e conhecimento
VI,
p.
104
[p. 78].
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num contexto'! - sem isso ela seria desprovida de significação. A verdade não é mais a qualidade de uma ideia; ela é, como diz [ames, "um substantivo coletivo para um processo de verificação", uma série em devir. Ela nunca se refere apenas à ideia, mas ao seu desenvolvimento; e isso porque cada momento de consciência forma um campo do qual uma parte permanece vaga, confusa, virtual. A verdade se dá através das consequências, mas as consequências não devem ser separadas da ideia já que elas são seu desenvolvimento. O racionalismo - ou aquilo que Iames chama de "abstracionismo vicioso" -, preocupado em repudiar todo psicologismo, negligencia o fato de que uma ideia é um pedaço de fluxo de consciência. Uma ideia surge do fundo obscuro indeterminado da consciência para se lançar num futuro também indeterminado. A verdade só é uma propriedade inerente à ideia se for concebida exatamente como uma simples representação sem movimento - de maneira abstrata. Foi por ter desejado considerar a verdade (e, de modo geral, a teoria do conhecimento que ela supõe, sem recorrer à psicologia) que o abstracionismo se perdeu. Pois implicitamente ele criou uma psicologia, a qual, não tendo sido explicada de maneira suficiente, não deu certo. Não podemos abstrair a ideia de consciência para examinarmos sua validade. Precisamos, pelo contrário, mergulhar a ideia na consciência para ver aquilo que nos faz acreditar na sua verdade. A partir de agora estamos aptos para ver até que ponto o pragmatismo renova a concepção da verdade. Talvez possamos compreender melhor por que ele suscitou tanto equívoco. É que a tradição filosófica - principalmente o racionalismo - pensa a verdade a partir de um modelo preexistente, para qual a ideia deve ser reportada. Isso explica por que estamos sempre descobrindo uma verdade que preexiste numa realidade em si (física ou metafísica). Nesse sentido, é verdade que as leis de Newton descobrem uma estrutura que preexiste à sua descoberta. Desde a eternidade os corpos estão submetidos a uma força de gravidade. Nessas condições, é claro que a verdade das leis de Newton não poderia depender do sentimento de satisfação do físico, a não ser que reduzíssemos as leis científicas aos seus concomitantes Cf. ibid., conferência amaciado r de transições:'
11.
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11,
p. 35 [p. 23]: "A nova verdade
Willram
é sempre um intermediário,
James. a construção
um
da expenéncia
psicológicos. Em vista disso, como sustentar que a ideía é verdadeira em virtude de efeitos satisfatórios? É preciso dizer o contrário, que os efeitos só são satisfatórios porque a ideia é primeiro verdadeira. Se digo que a Ursa Maior é composta de sete estrelas, a verdade não provém do fato que elas são efetivamente sete desde sempre? A verdade é então definida como uma relação de correspondência com uma realidade em si, invariável. De modo que, para verificar uma ideia, não é necessário antecipar as consequências para as quais ela nos orienta, mas sim retornar ao princípio do qual ela depende. Então, naquilo que James chama genericamente de "racionalismo" a relação de verdade é pensada sob o modelo das verdades eternas. Os racionalistas não examinam a verdade como ação, mas apenas como retroação. O que faz a originalidade do pragmatismo, no caso, é considerar a verdade não a partir das ideias eternas, mas das ideias novas. Todas as nossas ideias são primeiro experimentais. Afirmar a existência de um mundo exterior é uma hipótese experimental: ultrapasso o dado das primeiras sensações e emito a hipótese de que deve existir uma realidade "objetiva" independente da percepção que tenho dela. Dizer que o pragmatismo repudia o modelo das verdades eternas significa igualmente dizer que ele se apresenta como uma ampla e poderosa crítica da representação, e isto por três razões essenciais. As ideias não são reproduções ou representações, primeiro porque elas são ações, segundo porque elas são transições, e principalmente porque elas são criações. Compreendemos melhor, assim, por que o modelo geral da verdade não pode ser a semelhança, a não ser que digamos que a própria semelhança tem que ser criada, assim como um artista cria semelhança em um retrato. Mas da mesma forma que o artista não tem como objetivo único "fazer semelhante': a semelhança, em filosofia, é igualmente apenas um meio para sermos conduzidos, guiados, até mesmo forçados para outras realidades. Tomemos novamente o exemplo da Ursa Maior. Quando descobrimos uma determinada constelação e aplicamos a ela a denominação "Ursa Maior", aparentemente só estamos descobrindo uma coisa que existe desde sempre. Mas, pergunta [ames, por que projetar num passado eterno um pensamento recente? Por acaso elas eram explicitamente sete, eram explicitamente "semelhantes" a uma Ursa, antes que o pensamento as distinguisse? Elas eram apenas virtualmente aquilo
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que as nomeamos; foi o pensamento que as explicou e as tornou reais, mesmo que seja verdade que as próprias estrelas ditem o resultado. Esse pensamento é, portanto, irredutivelmente novo; ele não copia nada que preexista, apesar de estar de acordo com aquilo que preexiste, que o amplifique, que o descreva e o conecte com uma "Ursa', que o construa.'> Estamos aptos, agora, para responder à segunda objeção dirigida a [ames, segundo a qual não poderíamos fazer a verdade depender de consequências práticas na medida em que elas não pertencem intrinsecamente à ideia. Como a palavra verdade não tem um verbo que descreva seu processo, [ames reserva para ela o verbo verificar. A ideia ou o conceito se tornam verdadeiros quando eles são verificados. O termo verificação não deve nos confundir. Não se trata de um processo retroativo de confirmação; a verificação é o ato de criação da ideia. A verdade é um processo. Por que as ideias são inseparáveis de um processo de verificação? Exatamente porque elas são ao mesmo tempo crenças e criações. Como crenças, elas não têm certeza daquilo que colocam; como criações, elas não sabem antecipadamente aquilo que vão produzir. Por isso, não podemos saber se uma ideia é verdadeira antes de termos experimentado sua validade: "A verdade acontece a uma ideia [... ]. Sua veracidade [verity] é, de fato, um evento, um processo: o processo, a saber, de verificar-se, sua veri-ficação. Sua validade [validity] é o processo da sua vali-dação."13 Verificar consiste em explorar o contexto vizinho à orientação dada pela ideia para individualizar, concretizar esta última. Nossas ideias novas são igualmente hipóteses que devem ser testadas em suas consequências. As consequências são, portanto, efetivamente indissociáveis do processo de verificação. Desse modo, verificar não consiste em expor a verdade contida inicialmente na ideia, mas sim em criar essa mesma verdade. A semelhança não permite, evidentemente, determinar a verdade de uma ideia nova, pois, por definição, ela não se parece com nada. Dizíamos que a ideia faz agir, faz pensar, mas numa determinada direção. Ela nos orienta para a sua verificação prática, para aquilo que [ames chama de "consequêncías práticas': Quanto a isso, é importante 12. Cf The Meaning ofTruth, 13· Pragmatism,
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pp. 222-223. conferência VI, p. 97 [p. 72, T.M.].
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dissipar aqui um equívoco ainda frequente. Como [arries diz que as ideias verdadeiras "pagam': que elas têm um "rendimento", podemos supor que uma ideia é verdadeira desde que ela sirva à ação (entendida como atividade técnica ou utilitária) ou desde que ela permita lucros financeiros, comerciais etc. Em síntese, prático se identifica com "conveniente" ou "eficaz': como se uma teoria não pudesse ser, também ela, prática. Não que uma teoria deva se tornar prática; mas ela é uma prática de invenção e de criação. A regra pragmatista vale igualmente para o pensamento, considerado distinto da ação.> "Prático", aqui, não se opõe portanto a "teórico", mas sim a vago ou abstrato. "Quando falávamos do significado das ideias consistir em suas consequências 'práticas' [... ] pensaram quase unanimemente que queríamos com isso dizer opostas ao que é genuinamente teórico ou cognitivo [... ]. Mais uma vez, com frequência prático significa, para as pessoas, aquilo que é concretamente determinado, o individual, o particular, o eficaz, aquilo que se opõe ao abstrato, ao geral e ao inerte. Da minha parte, sempre que enfatizei a natureza prática da verdade era principalmente isto o que eu tinha em mente."! O que é que permite ao racionalismo dizer que a ideia é verdadeira em si mesma? É o fato dele só examinar a verdade a partir de ideias já constituídas, de crenças já verificadas, isto é, a partir, na maior parte das vezes, de hábitos. De fato, só quando a ideia retorna em um hábito é que podemos dizer que ela já era verdadeira em si mesma. O racionalismo vem depois disso. E, como sempre, ele não tem outra escolha a não ser fazer um julgamento retroativo e dizer que a ideia já era intrinsecamente verdadeira e que descobrimos sua preexistência através de suas consequências. O mundo já estava lá antes de descobrimos a sua existência. O que é verdadeiro sempre foi verdadeiro. A objeção de Russell só tem sentido por conta dessa confusão. A ordem racionalista não é boa justamente porque o racionalismo não distingue as ideias novas das ideias- hábitos, ou a verificação da verificabilidade. 14. Cf. Some Problems of Philosophy, capo IV, p. 37: "Ora, pode-se naturalmente
sustentar que não importa o quão belo, ou, então, digno de contemplação estética possa ser a parte substantiva de um conceito, a parte mais importante de sua significação são as consequências às quais ele leva. Essas consequências podem estar ou no jeito de nos fazer pensar ou no jeito de nos fazer agir:' Grifo nosso. 15. The Meaning ofTruth, pp. 277-279.
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No primeiro caso, antecipo;" no segundo, prevejo. Uma previsão não é mais do que uma antecipação que se tornou hábito, ela não marca uma diferença de natureza entre as verdades de essência e as verdades de existência, ou entre a conjectura e a ciência. O erro do racionalismo foi inverter a ordem real, colocando a verificabilidade antes da verificação. Em ]ames, o termo verificabilidade tem dois sentidos distintos. De acordo com o primeiro sentido, a verificabilidade é o conhecimento a crédito em oposição ao conhecimento em dinheiro vivo [cash-value] da verificação. Ela se define como uma verificação possível: dispensamos a verificação porque, como os efeitos das ideias já são conhecidos, a verificação se torna inútil - o que permite que os racionalistas digam que a verdade é inerente à ideia e que ela precede sua verificação. Quando se trata de ideias-hábitos ou derivadas de hábitos, é claro que sabemos que a ideia é verdadeira antes de aplicá-Ia, pois já experimentamos seus efeitos. Um conceito é, então, a ideia da coisa somada àquilo que podemos esperar dela. De acordo com o segundo sentido, porém, a verificabilidade é uma verificação potencial ou virtual. "Processos indireta ou apenas poten-
cialmente verificativos podem, assim, ser verdadeiros tanto quanto processos de verificação completal'? Para cada ideia temos um sentimento obscuro, às margens da consciência, que verifica a ideia por rápidas visões antecipatórias, a tal ponto que virtual e atual mal se distinguem." Acontece uma espécie de condensado de verificação, embora não se trate, em momento algum, de uma verificação efetiva ou determinada. É um sobrevoo do indeterminado. Sinto uma vaga forma no fundo do bolso do meu paletó; devem ser minhas chaves. Sentimos as afinidades, a "concordância" entre a nossa ideia e a realidade, numa
16. Cf. Essays in Radical Empiricism, p. 67= "A presença permanente do sentido de futuro na mente foi estranhamente ignorada pela maioria dos escritores, mas o fato é que nossa
consciência, em dado instante, nunca está livre do ingrediente da expectativa:' 17· Pragmatism, conferência VI, p. 100 [p. 75, T.M.]. 18. Cf. The Varieties ofReligious Experience, capox, pp. 189-190: "Conforme nossos campos mentais se sucedem uns aos outros, cada um tem seu próprio centro de interesse, em torno do qual os objetos de que temos cada vez menos consciência atenta gradualmente desaparecem para uma margem tão esmaecida que seus limites passam a ser indetermínáveís"
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Wdllam
James.
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da expenência
rápida olhada, através de um exame intuitivo do contexto. "Ora, a imensa parte de todo nosso conhecimento nunca ultrapassa esse estágio virtual [... ]. Vivemos, por assim dizer, na extremidade da crista de uma onda que avança, e a impressão de que vamos tombar ao avançar em determinada direção é tudo o que abarcamos [cover] do futuro de nosso caminho.t-? Deixamos de verificar porque, obscuramente, o peso do contexto próximo ou longínquo é 'um signo suficiente para provocar nossa crença. A verificabilidade se confunde aqui com um sentimento de confiança. Não completamos nossas verificações, assim como nossas percepções não detalham todo o campo que elas percebem, ou como o pensamento não atualiza imediatamente aquilo que faz pressão nas bordas de seu núcleo central. Os signos bastam. Eles agem, na maior parte do tempo, como condensados de verificação ou, segundo expressões de ]ames, como curtos-circuitos, como resumos. A crença não se opõe ao saber, ela o evita. Ao pé da letra, o pragmatismo não propõe uma nova definição da verdade, mas um método de experimentação, de construção para novas verdades. Experimentar é considerar a teoria como uma prática criadora. Não se trata mais de saber o que é verdadeiro, mas como se faz o verdadeiro. E esse questionamento é inseparável de um outro: "o que faz o verdadeiro?" Uma ideia verdadeira, no sentido pragmatista, é uma ideia que muda alguma coisa de modo satisfatório na mente daquele que a pensa. A ideia verdadeira não é apenas aquilo em que acreditamos, que fazemos ou pensamos; é aquilo que faz acreditar, que faz agir ou que faz pensar. O pragmatismo, portanto, é ao mesmo tempo um método de avaliação da verdade. Não julgamos mais uma ideia, uma doutrina, um enunciado em função de sua verdade; pelo contrário, é a verdade de uma ideia, de uma doutrina, de um enunciado que é avaliada em função das suas consequências para o pensamento, para a ação, para a crença. Nesse sentido, o pragmatismo é um instrumentalismo. Poderíamos dizer, como os detratores do pragmatismo, que se trata de liquidar a noção de verdade como tal. De fato, a partir de agora, a verdade é avaliada em função de um valor que a ultrapassa: o Interessante - como valor epistemológico. O que vale uma verdade que não faz agir, acreditar ou pensar, uma verdade, 19· The Meaning Df Truth, pp. 233-234.
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enfim, sem interesse? Essa é a principal razão pela qual a noção de semelhança deixa progressivamente de constituir um critério decisivo. "Por que a missão do pensamento não poderia ser aumentar e elevar, ao invés de simplesmente imitar e duplicar, a existênciai"?" Quanto a isso, podemos perguntar de maneira legítima qual seria o interesse de examinar o valor de verdade de orações do tipo "César morreu" ou "o gato está sobre o tapete". Em que elas fazem pensar ou agir? De um modo geral, quando o momento chegar, será necessário julgar as filosofias segundo aquilo em que elas nos fazem acreditar, pensar ou agir (que são uma única e mesma coisa). Não criamos, não agimos para a verdade. Acontece apenas que nossas ideias são verdadeiras. Agimos e pensamos para aumentar e elevar aquilo que existe. Portanto, se a verdade é ação, transição, criação (ao invés de representação, conclusão, imitação), só o é na medida em que "a verdade completa [é] a verdade que dá energia e empreende batalhas">' Temos que conseguir nos extirpar do fundo ancestral dos hábitos que contraímos (que carrega todo o peso do passado) - o qual [ames chama de senso comum - e que nos determina a ponto de corrermos o risco de sucumbir àquilo que Iames denomina fossilismo antigo [old jogyism], uma espécie de solidificação prematura do pensamento. É isso que torna a criação tão difícil. É preciso desfazer a trama desses hábitos sólidos para introduzir nela novas conexões, costurar novas peças que vão estendê-Ia e que trazem novas ramificações. É isso que precisamos examinar agora; pois ainda não dispomos da lógica que permite pensar o novo. Linhas e pedaços O que [ames descobre através da experiência pura, o que ele pode elevar ao nível de condição primeira, são as relações. Pois, finalmente, o empirismo radical se apresenta como uma teoria das relações livre de qualquer substância, de qualquer inerência, de qualquer atribuição essencial; é necessário liberar o material daquelas formas de que ele foi feito dependente. De acordo com a tradição empirista, as
20. Ibid., p. 216. 21. Ibid., p. 276.
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relações são exteriores a seus termos.v É a única imanência possível: se fizermos com que as relações dependam de um sujeito ou de uma substância, então essa imanência está perdida e igualmente a própria natureza da relação - ela se torna estática, e o modelo das verdades eternas vem novamente constituir o horizonte a partir do qual elas serão pensadas. O perigo é interromper o movimento ou incluí-lo nos conceitos." É necessário um tipo de conhecimento que não aprisione nem o movimento das relações em formas preexistentes, nem os termos em relações preexistentes. Devemos seguir a continuidade, o grande plano contínuo da experiência pura, e percorrer o entrecruzamento das relações. Mas como fazer isso quando não há mais nem sujeito nem objeto, quando o conhecimento não passa mais por essas coordenadas, quando ele depende do movimento da função do conhecimento? Esse é o problema colocado pelo próprio pluralismo à experiência pura. De fato, ser pluralista significa deixar que as relações se estabeleçam em todos os sentidos. O múltiplo está, por assim dizer, ao ar livre. Mas através de que conceitos podemos pensar esse campo pluralista sem reabsorvê-lo em uma unidade? Isso parece ainda mais problemático se não pudermos pensar a pluralidade em estado puro.> Um mundo como esse seria um verdadeiro caos, submisso a uma dispersão radical de todas as suas partes. Consequentemente, são necessárias unidades (ou totalidades). Através da questão da continuidade e da pluralidade surge a seguinte pergunta: como o conhecimento efetivamente procede, uma vez que nossos conceitos operam através de recortes descontínuos e unificantes? O que temos é uma distribuição de acontecimentos. O Todo forma uma coleção, nada mais do que uma pluralidade de termos, de singularidades anárquicas e disjuntas. É daí que parte a maioria das 22. Cf. A Pluralistic Universe, capo VIII, p. 145: "Interpretado pragmaticamente, o pluralis-
mo, ou a doutrina de que o universo é muitos, significa que as várias partes da realidade podem estar externamente relacionadas." 23. Cf. The Meaning ofTruth, p. 302: "A abstração [... ] torna-se um meio de parar o pensamento muito mais do que de fazê-Io avançar:' 24· Cf. Pragmatism, conferência IV, p. 76 [p. 55, T.M.]: "Com seu critério das diferenças práticas que as teorias fazem, vemos que ela [a doutrina pragmatista] deve abjurar igualmente o monismo absoluto e o pluralismo absoluto:'
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filosofias, do empirismo clássico ao monismo absolutista. Todas acentuam as deformidades, seja sob a forma de uma dispersão ato mista, seja sob a forma de aparências fenomênicas. Pode-se ver claramente qual é o objetivo dos absolutistas. Como afirma um discípulo do hegeliano Green, mesmo que os termos, de acordo com o empirismo, sejam sensitivos na origem, isso não impede que as relações sejam puros atos do intelecto, de uma natureza superior, e que elas se apliquem às sensações a partir de um lugar mais elevado." Porém, essa descrição do dado já está por demais construída: como não ver que as relações são percebidas ao mesmo tempo que os termos que elas interligam? Perceber um conjunto de termos como disjuntos quer dizer apenas que percebemos relações disjuntivas. Não percebemos dois termos separadamente para, em seguida, ligá-Ios um ao outro. Contra o absolutismo, é preciso dizer que nós os percebemos diretamente como sendo diferentes. Existe um choque, uma sensação da diferença, o choque do trovão que quebra o silêncio. Não percebo n e depois m, para inferir em seguida sua diferença. A série dada é n, depois m diferente de n.26 O princípio do empirismo radical consiste em rejeitar qualquer elemento que não experenciamos diretamente; mas também não devemos excluir as realidades a partir das quais a experiência é feita." fazemos a experiência das dísjunções mas, desta vez, contrariamente 28 ao empirismo, fazemos igualmente a experiência das conjunções. Poderemos objetar que as conjunções só podem ser feitas se os termos forem primeiramente percebidos como disjuntos. De fato, de que
25. Cf. The Meaning ofTruth, p. 245· 26. Cf. Aron Gurwitsch, Théorie du champ de Ia conscience. Paris: Desclée de Brouwer, 1957, pp. 50, 52 e 109. Essa obra de inspiração fenomenol6gica constitui um dos estudos
mais profundos da psicologia de [ames. p. 22 [p. 188, T.M.): "Para ser radical, um empirista não deve sequer admitir em suas construções qualquer elemento que não seja diretamente experienciado. Para esta filosofia, as relações que ligam experiências devem ser elas mesmas relações experienciadas, e qualquer espécie de relação experienciada deve ser considerada como tão 'real' quanto qualquer outra coisa no sistema." 28. Ibid., p. 22-23 [p. 188, T.M.): "o empirismo comum, a despeito do fato de que as relações conjuntivas e disjuntivas se apresentam como partes totalmente coordenadas da experiência, sempre mostrou uma tendência a abandonar as conexões das coisas e a insistir principalmente nas disjunções,"
27. Cf. Essays in Radical Empiricism,
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outra maneira haveria conjunção? Mas existe um choque da semelhança como existe um choque da diferença. Retomando o exemplo precedente, podemos dizer que o segundo trovão é diretamente percebido como semelhante ao primeiro. Mais uma vez, não percebemos n, depois m, e depois n semelhante a m. A semelhança é percebida ao mesmo tempo que o segundo termo. Estamos, pois, em presença de um conjunto de multiplicidades percorridas por relações, ora disjuntivas ora conjuntivas, de acordo com as séries de choques cuja experiência estamos fazendo. Compreenderemos melhor a natureza da crítica aos empiristas se, por trás do termo conjunção, compreendermos o termo continuidade. Quando Iames diz que há uma experiência das conjunções, ele quer dizer que sentimos continuidades, que as continuidades são dadas. Ou melhor, ali onde o empirismo só vê justaposições de átomos psíquicos, [ames vê copenetrações, fluxos contínuos. A corrente de consciência constitui precisamente um continuum no interior do qual as disjunções, se levarmos essa análise ao extremo, aparecem descontínuas. Ora, a relação de diferença não poderia ser o signo de uma descontinuidade qualquer, pois está incorporada aos próprios termos que ela separa. A "sensação de diferença" não é apenas dada "no breve instante de transição"; é como se ela estivesse no segundo termo, que sentimos ser "diferente do primeiro" durante todo o tempo em que ele dura. A relação de diferença é uma mistura de continuidade e descontinuidade. Como diz [ean WaW, "aquilo que é mais contrário à análise é menos o contínuo em si mesmo do que essa mistura aparente de contínuo e descontínuo que é um ritmo, um volume ou uma pessoa'P" Nesse sentido, Iames distingue três grandes continuums: a consciência, o tempo e o espaço. Já tivemos a ocasião de ver que o tempo não é uma realidade descontínua, constituída de instantes, mas um fluxo contínuo ao qual se misturam passado, presente e futuro. O presente não constitui uma unidade separável, mas sim um "bloco" relativo de duração, o "presente especioso" [specious present]. Da mesma forma, o espaço assegura a continuidade entre os diversos fluxos de consciência individuais que, de outro modo, seriam radicalmente separados. De 29. Jean A. Wahl, Vers le concret: Études d'histoire de Ia philosophie contemporaine. Vrin, 1936, p. 5.
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Paris:
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fato, embora saibamos que é um mesmo objeto que percebemos, isso não me permite apreender a perspectiva pela qual o outro o percebe.30 As correntes de consciência são absolutamente separadas, como mônadas. "Posso definir 'contínuo' apenas como aquilo que não tem brecha, ruptura ou divisão. Já disse que a brecha entre uma mente e outra talvez seja a maior brecha da natureza."!' Existe um fundo inalienável e irredutivelmente privado ao qual ninguém pode ter acesso, a não ser aquele que o experimenta díretamente.P Se apesar disso estamos no mesmo mundo, é em parte porque existe uma continuidade espacial. Ocupamos o mesmo espaço." Posso ligar meu espaço ao de alguém por intermédio de objetos semelhantes. Diremos então que existe uma coterminidade [conterminousness1 das mentes ou que elas são coterminadas, uma vez que as percepções terminam num mesmo objeto. Por exemplo, o outro deve sentir seu corpo no lugar em que eu o percebo. Entre o outro e eu existe comunidade de espaço, e não simples justaposição, pois nossos espaços se copenetram através dos objetos que servem de pontos de interseção ou permitem coberturas parciais. Nesse sentido, o espaço se constrói através de conexões. A distância é construída, unindo borda a borda, pedaço a pedaço, como numa operação de remendo. Não procedemos mais por associação de átomos, mas por junção ou encadeamento. Ele age no meu espaço, eu ajo no espaço dele. Não mais do que a consciência ou o tempo, o espaço também não poderia ser definido como uma forma geral que, em seguida, uma sensibilidade
30. Cf. Essays in Radical Empiricism, p. 40 [p. 202, T.M.): "Não é, portanto, uma questão formal, mas unicamente uma questão de fato empírico, se, quando você e eu afirmamos conhecer o 'mesmo' Memorial Hall, nossas mentes terminam em um percepto ou dentro de um percepto
numericamente
idêntico".
31. The Principies of Psychology, capo IX, p. 231. 32. Cf. Essays in Radical Empiricism, p. 33 [p. 196, T.M.): "em volta de todos os núcleos de 'realidade' distribuída [ ... ), flutua a vasta nuvem de experiências que são totalmente subjetivas, que não são substituíveis, que não encontram nem mesmo um final eventual para si mesmas no mundo perceptivo - as meras divagações, júbilos, sofrimentos e desejos das mentes individuais. Com efeito, elas existem umas com as outras e com os núcleos objetivos, mas fora destes é provável que, para toda a eternidade, nenhum sistema inter-relacionado de qualquer tipo seja jamais obtido:' 33. Cf. Essays in Radical Empiricism, p. 41 [p. 203, T.M.): "Nossas mentes não têm, absolutamente, nenhum objeto em comum? Sim, elas certamente têm o Espaço em comum."
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empírica viria preencher; pelo contrário, ele se apresenta como uma multiplicidade contínua de múltiplas junções. Mais uma vez, essas três grandes continuidades apresentam igualmente aparências de descontinuidade, com seus ritmos específicos. A consciência é um fluxo, mas cada pulsação que a atravessa, cada campo que passa está "fechado em si mesmo, sem janelas, sem o menor conhecimento do que são os outros sentimentos e do que eles significam.">' Da mesma forma, fluxo do tempo se apresenta como um agente de separação cuja marca é a irreversibilidade. Enfim, se o espaço é aquilo que pode reunir consciências, é também aquilo que as separa. Continuidade e descontinuidade seguem, respectivamente, o fio das conjunções e das disjunções. Não existe realidade no interior da qual não possamos encontrar os dois tipos de relações. É por isso que Iarnes pode dizer que o mundo é Um e não é Um ao mesmo tempo, já que as relações são ora conjuntivas, ora disjuntivas, de acordo com os choques recebidos e as séries percorridas. Não podemos saber isso com antecedência porque as relações não são interiores a seus termos. É uma afirmação frequente em [arries: existe continuidade em toda a parte, mas nem tudo é contínuo, justamente por causa das disjunções. As linhas são constituídas de séries intermediárias que ora são condutoras, ora não condutoras. "Sem ser um em toda a sua extensão, o universo compreendido dessa maneira é contínuo. Do mesmo modo que os dedos da mão se cruzam, assim também os diversos membros do universo estão unidos a seu vizinho mais próximo, em múltiplas direções, e em lugar algum existe um corte radical.">" A descontinuidade aparece sempre num fundo de continuidade. As séries compostas pelas unidades se prolongam umas nas outras e, desse modo, mantêm a coesão do mundo. Nesse sentido, não podemos dizer que se trata de um universo (unidade absoluta), nem de um multiverso (multiplicidade absoluta); trata-se então de um pluriverso. 36
°
34· Psychology: A briefe coutse, capo XIII, p. 177. 35· A Pluralistic Universe, capo VI, p. 115. 36. Cf. Pragmatism, conferência IV, p. 73 [p. 72, T.M.): "Não é nem um universo simples, nem é um multiverso puro e simples."
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puro e
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Aliás, é por isso que [ames nunca parou de lutar contra o monismo do Uno-e- Todo [One and AlI] dos absolutistas e dos hegelianos. É possível até que não exista filosofia mais constantemente nem mais explicitamente voltada contra a ideia de Todo ou de Um, uma incessante máquina de guerra que atua em todos os níveis: psicológico, metafísico, lógico, ético ... 37 É verdade que os monistas partem efetivamente da pluralidade das relações; e eles não as pensam mais como sendo interiores às substâncias, de acordo com o movimento clássico da inclusão que integra o modo no atributo e o atributo na substância; os hegelianos introduzem um movimento propriamente dialético no conceito, mas, definitivamente, é para melhor incluir a pluralidade na interioridade infinita de um Espírito absoluto. Desse modo, a unidade do mundo forma um amplo sistema fechado: "O verdadeiro deve ser essencialmente o recorrente autor reflexivo e autocontido, aquilo que se auto garante incluindo e negando o outro de si mesmo; isso perfaz um sistema esférico, sem pontas soltas suspensas do lado de fora para que a externalidade se prenda a elas; isto é, para sempre ensimesmado e fechado, sem linhas retas que se estendem indefinidamente nem aberturas nas extremidades ... "38 Partimos de um pluralismo, mas esse último deve necessariamente ceder a um monismo por implicação. O que observamos é que o mundo se sustenta; apesar das suas mudanças incessantes, ele possui uma relativa estabilidade, diz [arries. No entanto, ele não forma um sistema fechado. Ele deve sua coesão a um conjunto de linhas que o amarram de um lado ao outro. "Linhas de influência podem ser traçadas de modo a penderem juntas. Seguindo-se qualquer uma dessas linhas, passa-se de uma coisa para outra, até que se possa ter coberto uma boa parte da extensão do universo. A gravidade e a condução de calor são essas influências gerais de união, na medida do alcance do mundo físico. As influências químicas, luminosas e elétricas seguem linhas de influência semelhantes. Os corpos inertes e opacos, porém, interrompem a continuidade, de modo que se deve contorná-los ou alterar a maneira de prosseguir, caso se queira 37. Sobre o recenseamento de todos os tipos de unidade e sua crítica, cf. ibid., conferência IV. 38. A Pluralistic Universe, capo I1I, p.
ir mais adiante naquele dia. Praticamente, a unidade do seu universo está perdida, na medida em que foi constituída por aquelas primeiras linhas de influência:'39 De acordo com uma primeira dimensão, a realidade é formada por linhas entrecruzadas. Existe um número incalculável de redes que se superpõem umas às outras e formam um vasto conjunto reticulado.w O mundo é uma gigantesca network. Segundo um exemplo de [ames, a natureza funciona exatamente como uma rede postal à qual superpomos uma rede telefônica que a recobre em parte, ao mesmo tempo em que estabelece, entretanto, conexões específicas que incluem novas unidades. Da mesma forma, superpomos naturalmente a linha das nossas percepções auditivas e a das nossas percepções visuais e, sobre essas duas linhas, superpomos a linha dos nossos conceitos etc. Ainda da mesma forma, podemos constituir redes de conhecimentos. "Há inúmeras espécies de conexão que as coisas específicas têm com outras coisas específicas; e o conjunto de qualquer uma dessas conexões forma um tipo de sistema pelo qual as coisas são agregadas. Assim, os homens são agregados numa vasta rede de conhecimento [acquaintanceship). Fulano conhece Sicrano, Sicrano conhece Beltrano etc.; e, escolhendo-se os intermediários mais distantes corretamente, pode-se levar uma mensagem de Fulano à Imperadora da China, ao Chefe dos Pigmeus africanos ou a qualquer outra pessoa no mundo habitado. Cedo, porém, pode-se ser interrompido, como se um não condutor impedisse a corrente, caso se escolha o homem errado nesse experimento.t" Ao invés de uma coerência do mundo estabelecida através da fusão de relações no interior de um Absoluto, [ames invoca uma coesão obtida por uma pluralidade de conexões lineares. É ao perguntar como essas linhas se formam que surge uma segunda dimensão - uma vez que essas linhas constituem o mesmo número de unidades ou de sistemas. Só que, ao invés de um grande sistema unificado como o da dialética hegeliana, temos sistemas em toda a parte. São "pequenos
39· Pragmatism, conferência IV, pp. 66-67 [p. 48, T.M.]. 40. Ibid., p. 68 [pp. 48-49, T.M.]. 41. Ibid., p. 67 [p. 48, T.M.].
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mundos.V Cada um deles representa um grau de unidade em função das suas conexões. "Assim, o grau mais baixo de universo seria um mundo de mera continuidade [withness], cujas partes estivessem apenas alinhavadas pela conjunção 'e'.Um universo assim é, mesmo agora, a coleção de nossas diversas vidas internas ... Somem-se, porém, nossas sensações e ações corporais, e a união monta a um grau muito mais alto. Nosso audita et visa e nossos atos caem nos receptáculos de tempo e do espaço em que cada evento encontra sua data e lugar":" Existem todos e unidades, mas eles são estritamente imanentes às multiplicidades. São unidades de consistência que asseguram a coesão e a aderência das partes entre elas. A consistência é de fato aquilo através do qual as coisas ficam juntas." Diremos, por exemplo, que a luz se mantem através dos olhos e da fotossíntese dos vegetais; inversamente, os vegetais se mantêm através da luz. Há, portanto, uma unidade nesse sentido, mas só isso. Qualquer transcendência será assim recusada, pois as partes não são mais unificadas por uma racionalidade superior - um ponto de vista completamente exterior -, elas apenas se mantêm juntas. Cada coisa que tentarmos retirar virá com seu halo de conexões, sua região. "Se você arrancar uma parte, suas raízes trarão outras; [... ] tudo o que é real é amplificado e difuso em outros reais":" Segundo um exemplo de Gabriel Tarde, a invenção do vagão (já complexa em si mesma), a invenção do ferro, a invenção da força motriz do vapor, a invenção do pistão, a invenção do trilho são invenções que, embora pareçam estranhas umas às outras, se solidarizaram na invenção da locomotiva, que faz com que se componham juntas." Não diremos que essas invenções se implicam umas nas outras - como Leibniz diria que o estupro está incluído "na" noção são inúmeros pequenos cachos [hangings-together] das partes do dos cachos maiores, pequenos mundos, não somente de discurso, mas de
42. Ibid.: "O resultado
mundo operação,
dentro
dentro
do universo
maior:'
Grifo nosso.
43. Ibid., pp. 76-77 [p. 55, T.M.]. 44. Cf.lbid., p. 66 [p. 48, T.M.]: "as partes de nosso universo pendem juntas, em vez de serem como grãos de areia soltos"; e mais adiante, p. 76 [p. 55, T.M.]: "O mundo é Um somente na medida em que suas partes se entrelacem por intermédio de uma conexão definida:'
45. A Pluralistic Universe, capo VI, p. 12l. 46. Cf. "As leis sociais: um esboço de sociologia", trad. bras. de Mauro Guilherme Pinheiro Koury, parte III in Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, V. 4, n" 11. João Pessoa: UFPB, 2005,
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p.
individual de Lucrécia -, mas que elas estão umas com as outras numa relação de coalescência." Da mesma maneira, não diremos que as relações estão na consciência, elas estão com a consciência e dão a ela sua consistência (graças à intensidade emocional do corpo). Já observamos, aliás, que a consistência será tanto maior quanto mais numerosas forem as conexões estabeleci das pela consciência. As partes não reabsorvem mais sua individualidade no interior de totalidades coletivas; não existe mais fusão, mas sim um conjunto de conjunções parciais e relativas. Podemos objetar que se trata de unidades incompletas, inacabadas, mas isso só é verdade se concebermos a unidade como sendo por direito superior à multiplicidade." Podemos invocar, de acordo com um comentador de James, uma construção em arquipélago: "Poderíamos, sem desrespeito, comparar a unidade final do pensamento filosófico de [ames com a unidade geológica desses atóis oceânicos compostos primeiramente de corais madréporas isolados.':" Essas unidades são pontes que ligam as unidades como se fossem ilhas. Mas são também pedaços, pontas sem borda nem limite, sem unidade final, indefinidamente construtíveis e prolongáveis, nas quais cada unidade está ligada a uma outra pela linha dos seus contornos, no sentido em que falamos de um pedaço ou de um retalho de pano. De modo que, mais uma vez, o mundo surge como um vasto patchwork. É nesse sentido que Iames fala de mosaic philosophy [filosofia de mosaicos]." O fluxo do mundo é um desfile de pedaços heterogêneos por seus temas, homogêneos pelo seu tecido. 47· Cf. A Pluralistic Universe, capo VIII, p. 147: "Uma vez reconhecido o fato de que, na experiência concreta, a coalescência é feita pouco a pouco, somos levados a reconhecer esse outro fato de que os cortes claramente efetuados que praticamos ali são produtos artificiais da nossa faculdade conceitual" 48. Cf. Pragmatism, conferência IV, p. 73 [p. 53, T.M.]: "A unidade das coisas, superior à sua pluralidade, pensamos ser também como mais profundamente verdadeira, como o aspecto mais real do mundo. A concepção pragmatista, estamos certos, dá-nos um universo imperfeitamente racional. O universo real deve formar uma unidade de ser incondicional, algo consolidado, com suas partes co-implicadas de cabo a rabo:' 49· Gilbert Maire, William lames et le Pragmatisme religieux. Paris: Denoél & Steele, 1933, p. 159·Sobre o conhecimento em arquipélago e o mundo como patchwork, cf. igualmente as páginas de Deleuze sobre os prolongamentos de Melville através do pragmatismo de Iames e Royce, em Crítica e clínica, trad. bras. de Peter Pelbart. São Paulo: Editora 34,1997, PP.80-103. 50. Essays in Radical Empiricism, p. 22 [p. 188, T.M.]:"É essencialmente uma filosofia de mosaicos, uma filosofia de fatos plurais, como a de Hume e seus descendentes, que não
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Linha e pedaço, network e patchwork, são os dois grandes eixos de construção do mundo. O mundo é percorrido por um novelo de linhas entrelaçadas de tal maneira que elas "não deixam escapar nenhuma parte individual do universo';" mas sem com isso fechar o universo sobre si mesmo. Ele é constituído de vastas redes, ora condutoras, ora não condutoras, que se recobrem parcialmente, se prolongam em todos os sentidos, como se fossem meios de transporte. As unidades são incessantemente desunidas por processos disjuntivos que seguem os pontos de crescimento ou de bifurcação do universo. É por isso que elas nunca podem ser globais nem totalizantes. O universo é um sistema de relançamento perpétuo: as linhas conjuntivas integram certos processos disjuntivos, não sem recriar outras disjunções que lhes escapam, e assim por diante, de modo ilimitado, como se as conjunções estivessem perseguindo as disjunções. O mundo surge, então, sob uma forma essencialmente descontínua, apesar de ser sustentado por continuidades. De fato, a cada nova situação o conjunto das relações é redistribuído sem que haja um modo de totalizá-las ou unificá-Ias. O pensamento de [ames é uma espécie de romance de [ohn Dos Passos que descreve as superposições de conexões, as redes ferroviárias, marítimas, aéreas, misturando-as com biografias humanas e pedaços da atualidade, o grande romance sincrônico dos itinerários simultâneos e que podem ser superpostos. Como diz [ames: "Nós mesmos acrescentamos constantemente novas conexões às existentes entre as coisas, organizando sindicatos de trabalhadores, estabelecendo sistemas postais, consulares, comerciais, redes de vias férreas, telégrafos, sistemas coloniais e outros, os quais nos vinculam e nos unem às coisas em esquemas reticulares cada vez mais amplos. [... ] Do ponto de vista desses sistemas parciais, o mundo pende junto de parte a parte de diferentes maneíras.?» Trata-se de considerar o mundo ao mesmo tempo como um amplo tecido que progride por retalhos e como um sistema de redes: patchwork e network.
o conhecimento
deambulatório Dizíamos que pensar é ser conduzido por nossas ideias. Somos conduzidos, seguimos. O conhecimento é um conjunto de percursos, de conduções' de prolongamentos, de junções, mais do que um ato de ultrapassagem. Embora prolongar e antecipar constituam efetivamente atos de ultrapassagem, Iames raramente utiliza esse termo pois, para o filósofo, isso significa um salto transcendente. É assim que procedem as filosofias que partem do sujeito ou da consciência: um salto deve ser realizado para atingir o objeto. E esse salto consiste sempre em colocar uma condição superior (e exterior) à relação para torná-Ia possível: um sujeito transcendental, um Espírito absoluto. Aos olhos do empirismo radical, não há diferença evidente entre metafísica clássica, filosofia transcendental ou absolutista: "Durante toda a história da filosofia, o sujeito e seu objeto foram tratados como entidades absolutamente descontínuas; e, como consequência, a presença do conhecido ao conhecedor, ou a 'apreensão' do conhecido pelo conhecedor, assumiu um caráter paradoxal de tal modo que toda uma série de teorias teve que ser inventada para superá-lo. Teorias representativas colocam uma 'representação', 'imagem' ou 'conteúdo' mental no intervalo, como uma espécie de intermediário [... ]. Teorias transcendentalistas tornaram impossível o intervalo ser ultrapassado por conhecedores finitos e introduziram um Absoluto para realizar o ato de passagern.?» Digamos que a condição não é mais exterior à relação de conhecimento. Não passamos mais por um Deus para garantir ou preestabelecer nossa relação com os objetos. Fazemos com que as condições desçam até o sujeito. Reconquistamos com isso uma certa imanência; mas essa passagem pelo transcendental permanece. O problema não é resolvido pelos sucessores de Kant, já que, desta vez, o salto se realiza no Absoluto: as relações são interiores a um Espírito infinitamente compreensivo. Partimos de um dualismo que nos esforçamos imediatamente para ultrapassar, para superar. E é nessa operação que o salto se realiza. De acordo com uma bela distinção, Iarnes chama esse tipo de conhecimento de conhecimento "saltatório" [saltatory]. Ele se baseia no princípio segundo o qual os dois termos são absolutamente independentes e, para ligá-los, é preciso dar um salto que os vincule
referem estes fatos nem a Substâncias às quais eles seriam inerentes, nem a uma Mente Absoluta que os criaria como objetos seus:' 51. Cf. Pragmatism, conferência IV, p. 67 [p. 48, T.M.]: "[as redes definidas] superpõem-se umas às outras; e entre elas todas, não permitem que nenhuma parte elementar individual do universo escape:' 52. Some Problems of Philosophy, capo V, p. 69.
53· Essays in Radical Empiricism, p.
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[p.
192, T.M.].
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um ao outro numa forma comum superior. O salto consiste em preencher uma distância que nós mesmos criamos. Mas acaso o ato de acreditar também não é saltatório em James? Acreditar não é justamente fazer o salto da transcendência? Na medida em que interpreta os choques, a crença não é um salto, mas uma construção. Ela constrói uma passarela para passar para o outro lado. Utilizamos termos intermediários para ir de um ponto a outro. Mas os termos da série permanecem homogêneos, da mesma forma que juntamos trechos de espaço para percorrer uma distância. O fato de que as relações sejam contínuas não significa que elas são interiores aos termos, mas que são homogêneas a eles. As séries assim construídas formam pontes: "no entanto, a ideia não pula de uma só vez por sobre o abismo, ela só funciona passo a passo para atravessá-lo [to bridge it], completa ou parcialmente.v' Não afirmamos a existência de um objeto sem passar pelo contexto que o acompanha. Do mesmo modo que não existe unidade substancial ou formal do sujeito, também não poderia haver uma forma-objeto, a não ser por convenção. O objeto não se define apenas como um grupo de qualidades heterogêneas, à maneira do empirismo clássico; ele extravasa muito essa unidade relativa. O objeto também é um complexo de relações prolongáveis. Ele é inseparável das suas relações, embora não as implique. Como diz [ames, não podemos arrancar um objeto sem trazer com ele suas raízes. É portanto o contexto, mesmo em estado virtual, que nos serve de intermediário, não apenas para ser conduzido ao objeto, mas para postular sua realidade. 55Ainda uma vez, interpretar ou acreditar não é dar um salto, mas sim percorrer séries. É por isso que [ames invoca um novo tipo de conhecimento, não mais saltatório, mas "deambulatório" [ambulatory]. Literalmente, deambulamos pelas séries intermediárias que nos conduzem a termos provisórios. "Minha tese é que o saber [knowing] em questão é constituído pela deambulação por meio das experiências que intervêm ... essas intermediárias determinam qual função cognitiva particular ele
exerce. O final para o qual elas nos guiam nos diz qual objeto ele 'signífica, os resultados com que elas nos enriquecem vão 'verificá-lo' ou 'refutá-lo' As experiências que intervêm são, assim, fundações tão indispensáveis para uma relação concreta de conhecimento quanto o espaço intermediário o é para uma relação de distância. O conhecimento, todas as vezes que o consideramos concretamente, significa 'deambulação' determinada através dos intermediários, desde um terminus a quo até um terminus ad quem, ou na direção deste último:'56 Trata-se literalmente de construir uma ponte de intermediários atuais ou possíveis. Preencher os intervalos não significa que seja necessário preencher uma forma preexistente com uma matéria empírica, mas que é preciso organizar um material em séries funcionais. O conhecimento também deve construir suas linhas. É o construtivismo próprio ao empirismo radical, inseparável da hipótese continuísta da experiência pura. 57"No caso do abismo epistemológico, o primeiro passo razoável é lembrar que o abismo foi preenchido com algum material empírico, seja de natureza ideal ou sensorial, que desempenhou alguma função de ponte e nos salvou do salto mortal'?" De tanto abstrair os intermediários, acabamos encontrando apenas dois termos que se defrontam e somos obrigados a dar o salto. Ou melhor, ao invés de construir uma ponte com os materiais empíricos ou ideais, damos um salto ao mesmo tempo imóvel e formal acima de um intervalo vazio. "Pois, primeiramente, esvaziamos a ideia, o objeto e os intermediários de todas as suas particularidades para reter apenas um esquema geral, e, então, consideramos este último apenas na sua função de dar um resultado, e não na sua natureza processual ... Em outras palavras, os intermediários que, na sua particularidade concreta, formam uma ponte, evaporam-se idealmente de modo a se tornarem apenas um intervalo vazio a ser transposto, e, então, tendo a relação entre os termos extremos se tornado saltatória, começam todos os passes de mágica da Erkenntnistheorie."59 Ao mesmo tempo, essas formas podem ser 56. Ibid., pp. 246-24757· Cf. Essays in Radical Empiricism, p. 36 [p. 199, T.M.]: "Portanto, a noção de um conhe-
54· 1he Meaning of Truth, p. 264. 55. Cf. ibid., p. 201: "Conhecer um objeto é, aqui, levá-Ia através de um contexto que o mundo fornece."
cimento ainda in transitu e a caminho associa-se aqui àquela noção de uma 'experiência pura' que tentei explicar:' 58. 1he Meaning of Truth, p. 248. 59· Ibid., p. 247. Grifo nosso.
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colocadas no fundamento de qualquer relação. Como para a noção de verdade, nós as colocamos como anteriores e essenciais, já que elas agem como princípios. O salto é dado de uma vez por todas: no seu movimento, ele apreendeu o princípio através do qual vincula os dois termos que ultrapassa. Por outro lado, o empirista é obrigado a construir incessantemente suas pontes, em todas as direções. As noções de intermediário e de fim não devem induzir ao erro. Todo fim é ao mesmo tempo relativo e provisório; ele pode evidentemente entrar como intermediário em outra série. Chamaremos convencionalmente de sujeito o ponto de partida de uma série, e de objeto o seu ponto de chegada. E também suas circunstâncias. A sequência inteira (ou aquilo que [ames chama de "confluência parcial") que os liga é um ato de conhecimento. Compreendemos melhor, assim, por que o conhecimento é ele próprio um processo contínuo, sem fim: ele é literalmente um fluxo, do mesmo modo que existe um fluxo de consciência. "[A] experiência em si mesma, tomada em sentido geral, pode crescer a partir de suas bordas. Que um momento dela prolifera no próximo por transições que, conjuntivas ou disjuntivas, continuam o tecido experiencial, não pode, sustento, ser negado. A vida está nas transições assim como nos termos conectados'v" O que pode sugerir que seja necessário dar um salto, do sujeito para o objeto, é que os intermediários se contraem, se resumem no hábito para formar apenas uma borda virtual, percorrida por um rápido olhar. O conceito é de fato um conglomerado de percepções virtuais. Parece que saltamos de um objeto para um outro que existe em outro lugar; parece que associamos de modo descontínuo. Mas o sobrevoo de um rápido olhar não é da mesma natureza do salto. Intermediários "virtualizados" se distinguem radicalmente de intervalos escamoteados. Os conceitos são curtos-circuitos, abreviações, substitutos das séries intermediárias." É sempre o mesmo problema: edificamos as gêneses ime60. Essays in Radical Empiricism, p. 42 [p. 204, T.M.]. 61. Cf. 1he Meaning ofTruth, p. 232: "De fato, e de uma maneira geral, os caminhos que perpassam as experiências conceituais [... ] são caminhos altamente vantajosos para seguir. Eles não só rendem transições incrivelmente rápidas, mas também, devido à natureza 'universal' que frequentemente possuem, bem como à sua capacidade de associação uns com os outros em grandes sistemas, eles deixam para trás as morosas sucessões das próprias coisas, arrebatando-nos na direção de nossos fins últimos de uma maneira que
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diatamente, quando tudo já está constituído, e vemos apenas esses saltos aparentes, sem levar em conta os intermediários que eles resumem.sOs conceitos são pedaços de experiência condensada. Eles consolidam as percepções, incorporando-as à massa das aquisições anteriores, e formam, assim, unidades de consistência. Como em Bergson, as percepções e os conceitos são preensõesr" eles mantêm juntos os termos de uma multiplicidade qualquer; é isso, aliás, que lhes permite serem mapas.s- A consistência inicial é reforçada por uma consolidação bem mais extensa, semelhante à maneira pela qual Crisipo descreve o conhecimento como a mão que se fecha em um punho apertado à medida que os conhecimentos se tornam mais consistentes, solidificados pelo sistema da Natureza." Essa definição do conceito está relacionada com uma física do espírito, com o ato (a função) de segurar, apreender. Compreendemos por que [ames pode usar indiferentemente os verbos consolidar, consistir ou "coerir" sinônimos em inglês. Ser coerente e ser consistente são uma única e mesma coisa: são atos de consolidação. É que a coerência é efetivamente aquilo através do qual a consistência é feita: a incorporação das nossas percepções no conjunto de hábitos conceituais consolida o conjunto e forma sistemas." Somos um "mistério de condensação'I'"
economiza muito mais esforço do que jamais conseguiríamos se seguíssemos os cursos da percepção sensível. São maravilhosos os novos cortes e os curtos-circuitos que os caminhos de pensamento fazem:' 62. Cf. ibid., p. 233: ''A chave dessa dificuldade está na distinção verificado e acabado e o mesmo saber transitório e em curso:'
a ser feita entre o saber
63. Da mesma forma, encontramos uma bela teoria da consolidação como intervalo em Eugêne Dupréel, Essais pluralistes. Paris: PUF, 1946, pp. 264 ss. Ao mesmo tempo, Dupréel desenvolve uma teoria da consolidação como convenção. 64. Cf. 1he Meaning of Truth, p. 134: "Lançamos nossos conceitos adiante, garantimos o dominio das consequências, prendemos ali a nossa linha e extraímos disso nosso percepto, viajando assim por saltos na superfície da vida numa velocidade bem maior do que se nos limitássemos a perfurar a espessura das particularidades à medida em que elas nos caíssem acidentalmente sobre a cabeça como chuva:' 65. Cf. Cícero, Acadêmicas, trad. bras. de José R. Seabra. São Paulo: Nova Acrópole, 2012. 66. Cf. 1he Meaning of Truth, p. 219: "O conjunto das percepções ou reais ou possíveis forma um sistema que para nós é vantajoso estável e coerente:' 67. [ames usa essa frase numa Cf. Letters, v. 2, p. 154.
Verdade e conhecrrnento
carta a Nathaniel
Southgate
assim concebidas como conduzir até uma forma
Shaler, de 6 de Julho, 1901.
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Portanto, para [arries, o conhecimento é feito paulatinamente, pedaço por pedaço, sem que esses pedaços convirjam para uma unidade final; ele cria suas linhas, juntando seus diferentes pedaços de experiências entre si. Ele também cria suas networks e seus patchworks. Podemos pensar que o pragmatismo exalta o capitalismo americano, mas desta vez não mais através da promoção dos valores comerciais e financeiros, e sim através da descrição das grandes networks, esses conjuntos indefinidamente construtíveis de múltiplas junções que antecipam os grandes desenvolvimentos das redes de comunicação do século xx. Mas se o filósofo é aquele que deambula incessantemente por entre essas vastas redes, ele nos parece mais próximo de um trabalhador itinerante do que de um homem de negócios. A filosofia de [ames parece de fato voltada para uma ordem social menos triunfante que o meio dos negócios, a dos hobos/" Os hobos formam o imenso fluxo disperso dos trabalhadores migrantes que atravessaram os Estados Unidos, de Chicago até a Costa Oeste, em função dos canteiros de obras e dos empregos sazonais, organizando-se em sociedades provisórias e locais, a "Hoboêmia'i'" Eles se distinguem radicalmente dos Pioneiros no sentido de que são inseparáveis dos movimentos da economia capitalista americana, nos quais se alternam expansões e crise agudas, nos quais a utilização das demissões em massa se combina com a rápida rotatividade da mão de obra. Esses ritmos rápidos contribuem para a instabilidade dos empregos e para a mobilidade forçada, para o "nomadismo operário'l?'' 68. Sobre este assunto, podemos consultar o belo livro de Nels Anderson, Le Hobo: sociologie du sans abri. Paris: Nathan, 1994. Lembremos que o livro foi escrito em 1923, a pedido da Escola de Sociologia Urbana de Chicago, por um antigo hobo. Sobre a Escola de Chicago, podemos consultar a importante tese de Ulf Hannerz, Explorer Ia vil/e: Éléments âanthropologie urbane. Paris: Minuit, 1983. 69. N. Anderson, op. cít., p. 42, descreve a Hoboêmia da seguinte maneira: "O veterano da estrada sempre encontra ali outros veteranos, seu alter ego. o incurável mal humorado, o radical, o otimista, o trapaceiro, o alcoólatra, todos encontram alguém com quem se entendem. O andarilho faz amigos ou inimigos por um dia. Eles se encontram e continuam seu caminho:' 70. Como lembra O. Schwartz na apresentação de N. Anderson, Le Hobo, op. cit., pp. 8-10, trata-se de uma verdadeira "dromomania" Cf. igualmente p. 106: "Essa necessidade toma conta de nós sem avisar. .. Temos o automóvel, o vagão de trem, o barco a vapor, o avião - cuja função essencial, na verdade, é gratificar nossas tendências andarilhas"
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wílham
James, a construção da experiência
Eles não são, portanto, operários sedentários, e não aceitam o controle à distância do sindicato. Estão, por assim dizer, em cima do muro, entre as duas "fronteiras': entre a fronteira das primeiras comunidades de pioneiros (que atingiu o Pacífico por volta de 1850) e a fronteira da industrialização (que terminou sua expansão por volta de 1920). "O verdadeiro hobo representava o papel de trabalhador intermediário; ele queria ir a qualquer lugar para encontrar um trabalho, e ao mesmo tempo estava preparado para voltar à estrada algum tempo depois. Seu papel de intermediário estava ligado às duas fronteiras. Ele entrava em cena quando as pistas eram traça das e desaparecia quando a segunda 'fronteira' se fechava,"?' São eles, de fato, que percorrem o país de maneira deambulatória e seguem, em todos os sentidos, a grande rede de conexões, da maneira pela qual James descreve o processo do conhecimento. Eles percorrem um trecho de estrada, vão de transições a paradas provisórias, e seguem o percurso dos materiais. Como é possível acreditar, ainda, que o pragmatismo de James é uma filosofia para homens de negócios? É evidente que a filosofia de [ames não poderia ser essencialmente uma filosofia do conhecimento. Como vimos, a ideia não é uma representação, mas sim aquilo que faz agir num determinado sentido. A epistemologia é, portanto, evidentemente inseparável da prática para a qual ela nos leva. Conhecer é saber como agir sobre uma realidade a partir de uma ideia. O erro dos filósofos racionalistas ou absolutistas é exatamente o de fechar o conhecimento sobre si mesmo, sem prolongá-lo numa prática. É assim que chegamos às ideias apenas pensadas, às representações abstratas, e terminamos na teoria. É assim que fechamos as relações nas totalidades teóricas para uma reflexão, uma contemplação, uma especulação infinita. Ora, o pragmatismo é um método para aquilo que está sendo feito, não para aquilo que já foi feito ou para aquilo que deve ser feito; nesse sentido, ele é absolutamente antiteórico. O ponto de vista teórico supõe, na verdade, que o conhecimento possui um fim em si mesmo, numa ciência legalmente já constituída, num objeto de contemplação ou de detenção de sabedoria. O ponto de vista pragmatista supõe que o conhecimento é 71. N. Anderson, Le Hobo, op. cit., p. 34. Lembremos que os termos "fronteira" e "espí-
rito de fronteira" (frontier spirit] designam a conquista progressiva do Oeste americano.
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tanto inacabado por direito quanto determinado por fins exteriores. É isso que [ames não cessou de fazer: nos liberar dessa clausura teóri-
ca - liberar o material de suas formas, liberar as relações da inerência, liberar os acontecimentos da atribuição, liberar a verdade da semelhança, liberar o movimento da imutabilidade, liberar a deambulação da fundação, liberar as multiplicidades da unidade, liberar a ideia da representação; enfim, o empirismo radical e o pragmatismo liberam a filosofia de uma finalidade teórica para torná-Ia copresente à sua prática criadora. Mais uma vez, teoria e prática não designam duas atividades distintas, como se uma se exercesse no domínio especulativo, científico, enquanto a outra se exercesse no domínio técnico, utilitário. Elas designam dois pontos de vista: um, teórico, sempre posterior (retrospectivo), depois da ação, para pensá-Ia; o outro, prático, que vem com ou ao mesmo tempo que a ação (prospectivo), para a ação a ser feita. Ora, para o pragmatismo, o conhecimento, ou, de maneira mais ampla, a teoria, tem como função apenas conduzir ou orientar nossa atividade sem constitui-Ia. O problema consiste, assim, em determinar as condições da atividade prática, pondendo ser formulado da seguinte maneira: "o que é que faz agir? O que é preciso para que uma ideia faça agir?" Essa é a questão derradeira do pragmatismo. Ela interroga ao mesmo tempo o problema da crença (perspectiva psicológica), da ideia (perspectiva epistemológica) e da finalidade (perspectiva prática). Dizemos que a ideia faz agir. Só que não pensamos, não agimos, não conhecemos apenas porque podemos. Não pensamos um pensamento só por pensá-lo, pensamos para, a partir dele, pensar um outro. Pensamos, então, para agir. Há sempre um momento, indefinidamente prolongável, no qual temos que nos arriscar no indeterminado, sem saber ao certo aonde as conexões vão nos levar. Como é possível que o conhecimento se construa por séries, que a ação leve a outras ações, numa cadeia ininterrupta? O que nos faz passar da ideia à ação ou de uma ideia à outra? A racionalidade ou a coerência (quando a encontramos) não são suficientes para explicar essa passagem. É preciso outra coisa. O que acontece entre os dois momentos para que possamos constituir tais séries? Fazemos uma pergunta ao mesmo tempo simples e estranha. Não dizemos "por que agimos?" (o que equivaleria
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Wllllam James. a construção da experiência
a procurar a razão geral de uma primeira ação), mas sim "por que as ações se relançam?" (procuramos então a razão de um encadeamento de ações, de uma série). Procuramos, portanto, a razão das séries.
Verdade e conhecrmanro 81
CONFIANÇA
E COMUNIDADE
PRAGMATISTA
Confiar Ao definir a crença, [ames segue de perto a definição de Alexander Bain, que poderíamos considerar como uma das fontes essenciais do pragmatísmo:' a crença é uma "disposição para agir". Essa definição, porém, pode ser entendida em dois sentidos diferentes. Primeiramente, ela pode se referir a crenças fundadas no hábito, como no caso da verificabilidade possível. "Tomemos, por exemplo, aquele objeto na parede. Eu e você consideramos que se trata de um relógio, embora nenhum de nós dois tenha visto o mecanismo escondido que faz com que ele seja um relógio. Deixamos que essa nossa ideia passe por verdadeira sem tentar verificá-Ia [... ]. Nós usamos esse objeto como um relógio, controlando a duração desta aula com ele,"? Não se trata de saber se é ou não um relógio; basta que tudo se passe como se fosse um relógio, e que essa crença nos disponha a agir. A partir desse ponto de vista, podemos afirmar que a maior parte de nossa vida corrente se desenrola exclusivamente em função da crença, não apenas porque a crença prevê, mas porque ela progride sem verificação. Que algo seja verificável é como se tivesse sido verificado, de acordo com a definição da primeira espécie de verificabilidade. Conhecemos esse primeiro sentido da palavra crença; ele designa as crenças sólidas, já estabelecidas, fundadas no hábito. No segundo caso, aquele que interessa mais particularmente a [ames, a crença se define sempre como uma "disposição para agir"; Cf. Max H. Fisch, "Alexander Bain and the Genealogy of Pragmatism" in Peirce, Semiotic and pragmatism. Bloomington: Indiana University Press, pp. 70-109. 2. Pragmatism, conferência VI, p. 99. 1.
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só que não é mais o hábito que provoca a ação - nada mais garante o resultado. O que é que nos leva, portanto, a agir? A confiança, ou aquilo que [ames chama de fé. Acreditamos quando podemos esperar por um resultado com segurança. Acreditar num resultado que não garante nada exige, porém, uma confiança prévia.' De fato, não temos outra escolha a não ser confiar. Melhor dizendo, a confiança é a condição necessária da crença quando esta se arrisca no indeterminado, quando ela cria, de ácordo com a segunda espécie de verificabilidade (virtual). Isso não significa que a confiança seja uma espécie da qual a crença é o gênero. Pelo contrário, só podemos acreditar se confiarmos primeiro. As novas ideias precedem os hábitos derivados delas. A confiança é a condição - ou melhor, o germe - de toda crença. Agimos quando temos confiança nos nossos motivos, nas nossas capacidades e no devir do mundo que vai realizá-los." Acreditar é prever e aguardar. Confiar é antecipar e ter esperança. Como saber, por exemplo, se somos ou não capazes de atravessar um córrego com um pulo? Não se trata de prever, mas sim de antecipar, isto é, de avaliar, através de cálculos obscuros, a potência do nosso corpo, sua força para saltar, enquanto observamos a outra margem, cuja firmeza avaliamos do mesmo modo. Podemos confiar em nosso corpo, no equilíbrio da rocha, na margemi" Diferente do hábito, que é exercido em um mundo determinado, a confiança se exerce paradoxalmente em um mundo de indeterminação, o que [ames chama de "zona de processos formativos, a correia de transmissão de incerteza
3. Cf. The Will to Believe, p. 76: "como o teste da crença é a disposição, pode-se dizer que a fé é a prontidão para agir por uma causa cujo sucesso não está determinado de antemão para nós:' 4. Cf. The Varieties of Religious Experience, capoxx, p. 398, nota 6: "Essa prontidão para coisas grandes e esse senso de que o mundo, pela sua importãncia, seu caráter maravilhoso etc., é apto para a produção delas, parece ser o germe indiferenciado de todas as fés mais elevadas." 5. Cf. The Will to Believe, p. 80: "Suponha-se, por exemplo, que eu esteja escalando os Alpes e que, por má sorte, tenha conseguido me pôr numa posição da qual o único escape é por meio de um salto terrível. Sem experiência parecida, não possuo evidências da minha habilidade de realizá-Io com sucesso; mas a esperança e a minha autoconfiança asseguram-me de que não errarei meu alvo e firmam meus pés para executar o que talvez seria impossível sem essas emoções subjetivas." Grifo nosso.
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WiI\iam
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trêmula, a linha em que passado e futuro se encontram';" É a indeterminação que faz com que precisemos de confiança, mas é igualmente porque temos confiança que nos arriscamos no indeterminado.? A confiança não consiste em realizar uma ação cujo sucesso está assegurado (previsão), mas sim em tentar uma ação cujo desfecho é incerto (antecipação). Ela vai buscar sua energia na região obscura onde nossa potência de agir ultrapassa aquilo que sabemos dela." O sentimento de confiança faz da experiência um campo de experimentação. Ele é, portanto, a condição de todo ato de criação. Precisamos de indeterminação para ter confiança, assim como a indeterminação cria nossa necessidade de confiança. O indeterminado ou o virtual é, pois, o centro da nossa prática. Não temos apenas necessidade de confiar em nós mesmos, temos também necessidade de acreditar no mundo que se apresenta para nós. Precisamos acreditar neste mundo que, no entanto, é dado. Não basta que o mundo esteja ali e que eu esteja incluído nele. Isso é apenas o dado reconhecido pelos nossos sentidos. Falta a fé. É preciso, ainda, que esse dado contenha algo possível, e que esse possível, como diz [ames, ultrapasse o real; de modo que não se trata mais de estar "no" mundo, mas de agir "com" ele para novamente fazer parte dele. Ou, melhor dizendo, a ultrapassagem tem duas orientações distintas: uma ultrapassagem efetiva, de inferir alguma coisa que não é dada a partir de algo dado (amanhã o sol nascerá), e a outra, de atribuir sentido àquilo que é dado (alguém tem dor de dente, o relógio marca a hora certa), de interpretar signos. Podemos, contudo, duvidar do próprio dado, ou melhor, do sentido desta realidade constituída de signos. Por essa razão, o problema é ao mesmo tempo menos de crença do que de confiança. Pode acontecer, às vezes, do dado não ter mais sentido para aquele que o percebe. Não se trata, aqui, de uma dúvida metódica, nem mesmo radical. A dúvida diz bem o que ela é: uma suspensão da crença 6. Cf. ibid., p. 193; capoVIII, p. 254. Encontramos um equivalente dessa noção no conceito
bergsoniano de "centro de indeterminação". 7.Cf. ibid., p. 53: "E é muito frequente que a nossa fé de antemão num resultado incerto seja a única coisa que faz com que o resultado venha a se verificar:' 8. Cf. Letters, V. lI, carta a Wincenty Lutoslawski, 6 de maio de 1906, pp. 253-254: "As grandes emergências e as crises nos mostram o quanto nossos recursos vitais são superiores àquilo que supuséramos:'
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(mas que mantém a confiança), enquanto que a crise de confiança é uma destruição da crença. A crença não se fixa mais; o mundo deixa de significar. Esse é o primeiro sintoma da crise de confiança. Não estam os «no" mundo pelo simples fato de que temos percepções. Estamos ligados a ele pelas nossas significações, por nossos pontos de vista. Se a confiança faltar, as percepções não serão mais suficientes para nos fazer acreditar neste mundo, para fazê-lo significar. A ligação que temos com o mundo é, portanto, extremamente frágil. «Mas destrua essa segurança íntima, por mais vaga que ela seja, e toda a luz e o brilho da existência se extingue imediatamente para essas pessoas. E então, com bastante frequência, elas a enxergarão com um olhar sombrio e desesperado - a têmpera suicida." Todas as conexões que nos ligam ao mundo se rompem. A perda das conexões, como no desespero ou na melancolia mórbida, constitui um segundo sintoma.'? Tudo se desfaz. Ficamos «sentados ali como se fôssemos uma escultura felina egípcia ou uma múmia peruana"!' Qualquer ação torna-se impossível. A confiança não é a condição do «sucesso"; ela é, antes de mais nada, vital. Impossibilidade de significar, impossibilidade de produzir conexões, impossibilidade de agir. Evidentemente, esses três sintomas são inseparáveis. Como não consigo mais dar um sentido àquilo que percebo, não estou mais conectado com o mundo, logo não consigo mais agir. Podemos medir até que ponto o pragmatismo prolonga a psicologia nesse aspecto. A ação não é um simples mecanismo reflexo. Vimos que ela se produz quando um certo patamar emocional é ultrapassado. De maneira precisa, as variações do sentimento de confiança correspondem às variações de intensidade que atravessam o fluxo da consciência. Já vimos que as elevações e as quedas de intensidade correspondiam, respectivamente, a um aumento ou a uma retração do campo de consciência (no cansaço, na melancolia). Essas variações 9· The Will to Believe, p. 52. 10. Cf The PrincipIes of Psychology, capo
XXI, p. 927: "Em certas formas de perversão melancólica das sensibilidades e das forças reativas, nada mais nos toca intimamente, nada nos excita ou nos desperta o sentimento natural. A consequência é a reclamação tão frequentemente ouvida dos pacientes melancólicos, a de que eles não creem em mais nada como antes e todo sentido de realidade já abandonou a vida:' Grifo nosso. 11.
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The Varieties of Religious Experience, caps.
VI-VII, p. 135.
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são ora bruscas [crisis) ora lentas [lysis). Em termos psicológicos, a crise de confiança envolve tanto uma profunda queda do fluxo intensivo quanto uma retração do campo de consciência ou de suas conexões. Em Variedades da experiência religiosa, [ames se esforça para distinguir diversos graus do sentimento de confiança através de diversas espécies de pessimismo e de otimismo. Desse modo, o filósofo estabelece um tipo de escala em função dos patamares ultrapassados, do cansaço ao terror e ao pânico da existência em um caso, da esperança à alegria criadora em outro. Será que podemos pensar que Iames vê a solução que permite superar essas crises na religião? Com frequência, [ames foi definido como um teólogo, como um "pragmatista religioso': Seu pragmatismo seria, no fundo, uma apologia da crença religiosa, como testemunham certos textos. De fato, Iames não nega que a ideia de Deus possa agir com eficácia sobre certas almas.'> Desse ponto de vista, a ideia de Deus pode ser julgada pela crítica pragmatista do mesmo modo que a ideia de substância ou a ideia de justiça. É apenas nesse sentido que [ames é teólogo. Ele se limita a examinar os efeitos da ideia religiosa de um ponto de vista ao mesmo tempo psicológico e pragmatista. Mais do que isso, o termo religião, em [ames, é um termo genérico para designar qualquer crença em uma realidade invisível (como dizemos, por exemplo, de alguém cuja religião é a justiça). Existe, porém, uma razão mais determinante que faz com que Iames não seja um teólogo ou, se preferirmos, não só ou essencialmente teólogo. Aquilo que interessa a ele é exatamente a confiança neste mundo, e não a crença em um outro mundo. Antes de ser religiosa, a crença é ateia. O religioso não pode mais invocar a exclusividade da crença, já que a religião é apenas uma de suas formas. Somos primeiramente crentes deste mundo, inclusive o religioso. Pode-se perguntar: «por que, então, dedicar uma obra à experiência religiosa? Não seria justamente para afirmar que, apesar da pluralidade dos dogmas, a crença permanece estritamente religiosa?" Existe aí um paralogismo
Pragmatism, conferência 11, p. 44: "Em suma, [o pragmatismo] amplia o campo da busca por Deus. [... ] Se as ideias teológicas conseguissem fazer isso [servir de guia para a vida], se a ideia de Deus, particularmente, conseguisse mostrar-se capaz disso, como poderia o pragmatismo negar a existência de Deus?"
12.
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corrente: como Deus só é acessível através da crença, supomos que a crença tem como objeto exclusivo Deus. Ora, não apenas ]ames dá ao longo da obra inúmeros exemplos de crenças ateias (no amor, na arte)!" equivalentes à fé religiosa, como mostra também que o fundo da crença religiosa é ateu. Isso fica claro quando o filósofo examina o caso exemplar da conversão. Não entendemos a conversão quando fazemos dela a passagem do ateísmo para uma doutrina religiosa qualquer ou como uma simples mudança de dogma. A conversão se opõe menos ao ateísmo do que ao niilismo, esse momento em que não acreditamos em mais nada, quando Tolstói lamenta, como no Eclesiastes, "tudo é vaidade .. :: A conversão supõe a passagem por um grau zero da sensibilidade e da afecção que destrói o sentimento de confiança.!" Se a crença deve enfrentar o ceticismo, a confiança, por sua vez, deve enfrentar o niilismo. A conversão, assim, não é especificamente religiosa. Ou, melhor, a religião é sempre ateia em suas consequências." Em momento algum, trata-se de saber se o objeto da crença religiosa possui nele mesmo 13. Por exemplo, 1he Varieties of Religious Experience, caps. XI-XII-XIII, p. 225: "Assim como o amor ou o medo, o estado de fé é um complexo psíquico natural e traz consigo a caridade como consequência orgânica. O júbilo é uma afeição expansiva e todas as afeições expansivas, enquanto duram, possuem as características do auto-esquecimento e da afabilidade:' Grifo nosso. 14. Cf. a exposição de um caso que os biógrafos apresentam como uma narrativa pessoal de Iarnes (lembremos que ele próprio passou por crise semelhante). Cf. 1he Varieties of Religious Experience, caps. VI-VII, pp. 134-135: "Certa noite, ao crepúsculo, enquanto estava naquele estado de pessimismo filosófico e depressão geral do ânimo quanto ao meu futuro, fui ao meu quarto procurar uma coisa que estava lá. Nesse momento, de repente, caiu sobre mim, sem mais nem menos, [... ] um medo horroroso da minha própria existência. Ao mesmo tempo, veio à minha mente a imagem de um paciente epilético que vira no asilo, um jovem de cabelos pretos com pele esverdeada, totalmente idiótico, que costumava ficar sentado o dia todo num dos bancos, isto é, numas tábuas que ficavam rentes ao muro, com os joelhos bem próximos do queixo [... ]. Ele causava tamanho horror, e eu percebi o quanto eu discrepava dele apenas momentaneamente, que foi como se algo até então sólido dentro do meu peito desaparecesse completamente, e eu me tornei uma massa trêmula de medo. Depois disso, o universo ficou totalmente diferente para mim [... ]. Lembro de me admirar de como as outras pessoas podiam viver, como eu mesmo sempre vivera tão inconsciente daquele poço de insegurança sob a superfície da vida:' Mais adiante, [ames acrescenta: "se não tivesse me agarrado à Escritura [... ] acho que realmente teria enlouquecido:' 15· Acreditamos que a definição da religião dada por [ames, em sua correspondência, seja uma definição ateia ou laica. Cf. Letters pp. 64-65, carta para Godkin de 17 de agosto
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uma realidade ou não. "Toda defesa da fé religiosa depende da ação"!" Não se trata de acreditar em um mundo melhor, mas de tornar melhor este mundo, mesmo que através da crença em um outro mundo.!? Consequentemente, existe um fundo laico na religião. A religião é um meio, entre outros, de restaurar o sentido do mundo, de superar o nonsense provocado pelas crises morais. A dificuldade consiste precisamente em desdobrar novas significações, em arriscar novas ações e novas conexões. Logo, é preciso que o mundo nos seja dado uma segunda vez para que possamos estabelecer nele novas significações, como mostra a importante distinção de ]ames entre as almas nascidas uma vez [once born type] e as almas nascidas duas vezes [twice born type]. A alma conhece um segundo nascimento quando ela supera a crise da confiança que a abalou: "Esse processo não é um simples retorno à saúde natural, é uma redenção; e a pessoa que sofre é salva, é salva por aquilo que lhe parece ser um segundo nascimento, uma espécie mais profunda de ser consciente do que ela desfrutara anteriorrnente.t'" Não acreditamos mais da mesma maneira. Perdemos um certo tipo de confiança, mistura de ingenuidade, de credulidade e de inocência. Entretanto, ao perder o otimismo inicial, a confiança ganhou uma nova consistência. A partir daí, ela se apoia em outros signos, ou melhor, ela instaura uma nova relação com os signos. É preciso determinar, assim, qual é a operação específica que nos permite aumentar nossa potência de ação ou nosso horizonte de pensamento.
de 1897: "Entendo por religião para um homem qualquer coisa que para ele seja uma hipótese viva nessa linha, mesmo que possa estar morta para qualquer outra pessoa:' 16. 1he Will to Believe, p. 32. 17. Cf. 1he Principies ofPsychology, capoXII, p. 945: "Aquilo que está além das experiências brutas não é uma alternativa a elas, mas algo que as Significa para mim, aqui e agora:' 18. Cf. 1he Varieties of Religious Experience, palestras VI-VII. OS termos que marcam o renascimento da alma são numerosos. Por exemplo, ibid., palestras IV-V, p. 111: "A explicação teísta é por meio da graça divina, a qual cria uma nova natureza em alguém no momento em que a antiga natureza é sinceramente abandonada. A explicação panteísta [... ] é por meio da fusão do nosso self privado mais estreito num outro self mais amplo ou maior, o espírito do universo (que é nosso próprio eu 'subconsciente'), no momento em que as barreiras isolantes da desconfiança e da inquietude são removidas:' Grifo nosso.
Confiança
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pragmatlsta
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As convenções ou como escolher uma filosofia? Consideremos um determinado risco (atravessar um córrego, fazer uma declaração de amor, compor uma sonata etc.), isto é, uma tentativa de estabelecer novas conexões. Existe um primeiro momento de estimativa durante o qual avaliamos, obscuramente, a situação. As diversas observações começam a "coerír" em uma determinada direção. O possível concebido só será uma "hipótese viva" se ele estiver ligado a virtualidades sentidas. Uma primeira interpretação se consolida e determina a direção a ser seguida, sem, entretanto, nos assegurar qualquer resultado. Depois vem um segundo momento, no qual nos lançamos efetivamente na ação. A ação consolida novamente a ideia e a faz pender para uma nova situação. O que aconteceu para que aceitássemos agir segundo a ideia? Tudo se passa como se, durante esse segundo momento, fizéssemos um acordo com a ideia para agir em sua conformidade. É o ato de confiança propriamente dito. Confiar é fazer um acordo tácito. Tácito porque, de certo modo, a ideia não promete nada: não sabemos com antecedência o que resultará do acordo. Por isso, é preciso chamar as ideias, ou os motivos de ação, de convenções, não apenas porque são signos, como vimos, mas também porque confiamos nelas. Como chamar de outro modo a realização de um acordo (mesmo informal, mesmo tácito, mesmo despercebido) com um termo que aumenta nossa potência de agir ou de pensar, com aquilo, enfim, que nos permite produzir novas conexões ou consolidar um sistema existente? A confiança é sempre confiança numa convenção que está sendo feita. Nossa potência aumenta muito com isso, visto que passamos de uma ordem indeterrninada, dispersa, relaxada, a uma ordem determinada, organizada e consolidada." Não seria essa exatamente a definição da convenção? Um acordo sem promessa que aumenta a potência de agir daqueles que o fazem, como ilustra o célebre exemplo dos remadores de Humet-? Existe um
aspecto convencional da ideia que considera que ela serve tanto para ampliar o campo da consciência quanto para aumentar nosso poder de ação. Fazemos acordos, ora provisórios, ora definitivos, com os conceitos - ou melhor, experimentamos para saber quais deles convêm, ou não, àquilo que fazemos. Desse modo, será que não admitimos que se tratava de um relógio por convenção, já que ele nos permitia regular a duração da aula? Chamamos de convenção esse momento particular em que confiamos em uma série de signos incertos; ela se auto define como um acordo tácito com uma ideia indeterminada (pelo menos em relação às suas consequências), a partir da qual nos arriscamos a agir com um sentimento de confiança. Vejamos o caso da religião. A fé religiosa recorre não a uma faculdade determinada, mas, pelo contrário, à indeterminação de nossa potência de agir. Ela apela a novas regiões, a forças subconscientes da consciência - o que [ames chama de experiência "invasiva" Os campos de consciência se alteram para deixar penetrar visões, delírios, mudanças violentas de personalidade que o exame atento da consciência deixaria sem explicação. Acreditamos numa potência exterior que nos ultrapassa: "o homem religioso é mobilizado por um poder externo, pois uma das peculiaridades das invasões provenientes da região subconsciente é que elas assumem aparências objetivas e sugerem um controle externo ao Sujeito. Na vida religiosa, o controle é sentido como 'superior'; mas, uma vez que, segundo nossa hipótese, são principalmente as faculdades mais elevadas de nossa mente escondida que estão no controle, a sensação de união com o poder além de nós é a sensação de algo, não que apenas parece, mas que é literalmente verdadeiro."?' Se quisermos, diz [arries, podemos chamar essas forças inconscientes de Deus.P Não saímos da imanência da corrente de consciên-
1he Varieties of Religious Experience, palestra xx, p. 403. Por isso, não poderíamos fazer de [ames um teólogo, já que Deus é apenas essa potência inconsciente em nós. A suposta transcendência é apenas a interpretação de forças imanentes à consciência. Paramos de interpretar o que acontece como sendo nosso na medida em que não percebemos mais o elo de continuidade entre a consciência clara e "nosso próprio espírito oculto".
21.
19· Encontramos nos Essais pluralistes de Dupréel uma profunda reflexão sobre a relação entre consistência, convenção e multíplícídade, não apenas do ponto de vista do acordo entre indivíduos, mas também através do exame da formação dos conceitos.
Tratado da natureza humana, trad. bras. de Déborah Danowski. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 530. "Dois homens que estão a remar um mesmo barco fazem-no por um acordo ou convenção, embora nunca tenham prometido nada um ao outro:'
22. Cf. ibid., pós-escrito, p. 524: "Nesses lugares ao menos, afirmo que parece que energias transmundanas, Deus, se quisermos dizer assim, produziram efeitos imediatos dentro dos limites do mundo natural ao qual o restante de nossa experiência pertence:' Grifo nosso.
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20. Cf. D. Hume,
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cia; pelo contrário, nós a exploramos e ampliamos. A religião libera possibilidades inéditas em nós, as quais a fé atualiza. O valor da religião, nesse aspecto, é exatamente o fato de que ela amplia nosso horizonte mental e nosso poder de agir. [ames está sempre dizendo que o que caracteriza a conversão é a passagem da contração à expansão do campo de consciência. As conexões com o mundo são novamente possíveis; o mundo é dado outra vez, ampliado e renovado, recarregado de possibilidades. Nesse sentido, nossa relação com a religião é também uma relação de convenção porque serve para aumentar nossa potência de agir. Podemos chamar as potências que atualizamos de Deus, se quisermos, mas isso continua sendo convencional." Pode-se afirmar que tudo é convencional: a formação dos conceitos, seus usos, até mesmo as próprias percepções. Perceber é natural, mas nossas percepções são convencionais, pois elas interpretam os choques da experiência. Fazemos acordos até mesmo com as percepções, porque sempre fazemos mais do que perceber: antecipamos, avaliamos, interpretamos. Uma convenção é um signo que nos leva a urna prática suscetível de dar sentido, de aumentar nosso poder de ação, de desenvolver as conexões, de acordo com uma tendência ou uma determinada finalidade, da mesma forma que a percepção. Que tudo seja convencional não significa que não exista mais natureza. Significa apenas que as funções naturais se distribuem em múltiplas convenções. Aqui, reencontramos a fórmula de Bergson: ter hábitos é natural, mas os hábitos que contraímos não são naturais.>' Ou ainda Hume: construir é natural, mas nossas construções não são naturais." Da mesma maneira, [ames pode dizer: somos curiosos por natureza, mas 23. É a única maneira de poder compreender as afirmações aparentemente contraditórias que encontramos principalmente na correspondência de [ames, Cf. Letters, p. 214, em resposta ao questionário de [ames B. Pratt, 1904: Deus é "como um aliado poderoso do meu ideal"; e, além disso, numa carta para [ames H. Leuba, de 17 de abril de 1904: "Minha posição pessoal é simples. Não tenho nenhuma sensação viva de ter contato com Deus:' 24. Cf. H. Bergson, As duas fontes da moral e da religião, trad. port. de Miguel Serras Pereira. Coimbra: Almedina, 2005. 25. Cf. Hume, Uma investigação sobre os princípios da moral, trad. bras. de José Oscar de Almeida Marques. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, p. 47. "Todas as aves da mesma espécie, em todas as épocas e países, constroem seus ninhos da mesma maneira: nisto vemos a força do instinto. Os homens, em tempos e lugares diferentes, moldam suas casas de maneiras diferentes: percebemos aqui a influência da razão e do costume:'
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é por convenção que nos tornamos pesquisadores. Se ele atribui um lugar importante à educação - duas obras lhe foram consagradas é justamente porque ela mostra como os instintos naturais entram nas convenções. O fluxo da corrente de consciência é orientado para novas significações que aumentam a extensão de seus campos e de seu poder de pensamento. A educação forma, através do hábito, novos esquemas senso-motores de tal maneira que instintos e tendências são deslocados, complicados, amplificados." Em outras palavras, a arte pedagógica consiste em produzir uma reação mais complexa ou uma reação substitutiva que convém a um contexto mais amplo, graças a uma série de montagens intermediárias (como a punição) que, em seguida, desaparecem, entram em curto, se resumem. Por definição, o convencionalismo é inseparável de uma filosofia pluralista. Como afirma Dupréel: quando todos os indivíduos se curvam sob urna mesma força, não faz sentido algum falar em convenção. Por outro lado, quando uma ordem única é contestada pela aparição de uma outra, ambas surgem assim como convençôes.>? Ou ainda, segundo a observação de Poincaré, o espaço euclidiano surge porque há novos espaços geométricos, mas não mais como espaço natural, e sim como convencional." Quando dizemos que o espaço tridimensional de Euclides ou que o relógio acima da porta são convenções, o que queremos dizer? Não estaríamos entregues a uma certa arbitrariedade? Se nossa relação com os conceitos é convencional, se os próprios conceitos são convenções, isso evidentemente supõe que fazemos um acordo com este ou com aquele conceito, mas que poderia ter sido de outra maneira. O limite do convencionalismo é a sua negação pela necessidade. Como afirmar que somos livres para fazer acordos com conceitos ou para aplicar decretos, quando é evidente que não temos escolha? Não seguimos regras, e sim nos submetemos a leis. Como é que aquilo que tem força de lei pode ser urna simples regra? A não ser que, justamente, não reconhecemos a especificidade da necessidade.
26. Cf. Talks to teachers, palestra VI, p. 33: "Toda reação adquirida é, como uma regra, ou
uma complicação nascida de um enxerto de uma reação nativa ou um substituto de uma reação nativa, a qual o mesmo objeto originalmente tendeu a produzir:' 27. Cf. Dupréel, op. cit., capo 1, p. 12. 28. Cf. A ciência e a hipótese, trad. bras. de M.A. Kneipp. Brasília: Ed. UnB, 1988, p. 8.
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30. 7he Varieties of Religious Experience, palestra x, p. 195.
por isso é conduzido para uma vida religiosa. O acordo é momentâneo e não sobrevive à resolução da crise. Do mesmo modo, podemos passar por convenções que não têm nada de glorioso nem de funcional, e que até mesmo, às vezes, nos destroem ao invés de nos garantir um "sucesso" à americana. Em outras palavras, o pragmatismo é um método de avaliação prática das convenções. A questão própria ao método pragmatista pode, de agora em diante, ser assim formulada: "com que ideias devemos fazer convenções para aumentar, consolidar nosso sentimento de confiança, para ampliar nosso campo de ação ou de pensamento?" Esse método se aplica particularmente à filosofia, não em virtude de sua suposta dignidade ou de uma superioridade qualquer especulativa, mas porque sempre agimos segundo uma "filosofia" no sentido mais comum que esse termo possa ter. Nesse sentido vago, uma filosofia é simplesmente um sistema de crenças que determina pensamentos e ações. Toda filosofia se torna assim uma filosofia prática. Podermos objetar que é preciso distinguir claramente entre atividade teórica e atividade prática. De um lado, existe aquilo que um homem pode conhecer; do outro, aquilo que um homem deve fazer. É justamente essa clivagem que o pragmatismo recusa. Todos os conceitos devem ser interpretados em função de sua finalidade prática. E isso vale até mesmo para os conceitos cujo uso parece puramente teórico, como o conceito de substância - mas também os de totalidade, necessidade, consciência. Qualquer conceito, mesmo o mais técnico, o mais científico, tem um interesse prático porque está ligado a possibilidades de ações e de pensamentos diferentes. Minha conduta não é a mesma se eu me imagino como um ego ou se me vejo como um fluxo de pensamento, porque as possíveis consequências que decorrem disso não são as mesmas em termos práticos. Ou, melhor dizendo, afirmar ou negar a existência de um ego já constitui uma decisão prática ou moral, mais do que uma abordagem puramente teórica ou epistemológica. Isso é ainda mais válido quando se trata de conceber mundos. Como pensar que podemos debater teoricamente a questão da natureza do mundo sem arcar ao mesmo tempo com as consequências práticas provenientes de cada hipótese? A questão de saber se uma ideia é teoricamente verdadeira não tem muita importância em relação à questão de saber se, na prática, ela produzirá possiblidades para nossa ação futura.
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Quais são as razões que nos fazem "escolher" o espaço euclidiano? Como [ames, Poincaré também afirma: escolhemos o espaço euclidiano por sua comodidade. Nossa escolha, entre todas as convenções possíveis, é guiada por fatos experimentais; uma geometria não pode ser mais verdadeira do que outra; ele pode apenas ser mais cômoda. Ora, a geometria euclidiana é e continuará sendo a mais cômoda: 1) porque é a mais simples; 2) porque está de acordo com as propriedades dos sólidos naturais." Podemos afirmar que é a semelhança ou a concordância que fazem a verdade de uma hipótese, mas o essencial está em outro lugar, visto que é a utilidade que nos faz buscar a semelhança. A necessidade não é negada; é apenas deslocada. Ela não é mais uma propriedade intrínseca da ideia ou do raciocínio, mas está enraizada nos motivos que os produzem: utilidade, funcionalidade, interesse prático ou estético. Como [ames é pragmatista, diremos que a razão da escolha será igualmente a utilidade - escolheremos uma filosofia, uma teoria, uma hipótese que funcione, que tenha "sucesso", segundo uma definição simplista de pragmatismo. Só que [ames pensa que as soluções ou as regras são imanentes a cada caso e não dependem de valores que transcendem as existências. Não podemos instituir nenhuma regra universal. "Para cada pessoa na vida, existem limites superiores e inferiores. Se uma inundação ultrapassa a altura de alguém, sua elevação absoluta se torna uma questão de pouca importância; e quando atingimos o nosso próprio limite superior e vivemos na nossa mais elevada concentração de energia, podemos dizer que estamos salvos, independente do quão maior possa ser a concentração de outra pessoa. A salvação de um homem pequeno sempre será uma grande salvação, e o mais grandioso de todos os fatos para ele:'30 Não podemos determinar com antecedência que tipo de convenção pode ser satisfatória para determinado indivíduo em determinado momento. Sim, temos que escolher, mas cada um por sua conta, de acordo com o momento. Não existe nada de arbitrário nisso, mas sim uma necessidade móvel e cambiante. Assim, por exemplo, [ames se apega aos versículos da Escritura quando atravessa sua crise de "terror ontológico" mas nem 29. Ibid.
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31. Cf. Pragmatism,
fechado. Consequentemente, tanto faz escolher uma ou outra hipótese - o mundo permanece o mesmo. Pouco importa, então, saber quem produziu um mundo acabado. O futuro já está esgotado, já deu o que tinha que dar. Então, se a escolha é indiferente, a disputa é em vão. De um ponto de vista pragmatista, teísmo e materialismo têm rigorosamente o mesmo significado: "Que se peça ao pragmatista, então, para escolher entre as suas teorias [... ]. Ambas já mostraram todas as suas consequências e, pela hipótese que ora adotamos, elas são idênticas. O pragmatista tem consequentemente de dizer que as duas teorias, a despeito de seus nomes soarem distintos, significam exatamente a mesma coisa e que a disputa é puramente verbal."! Mais uma vez, o valor de um conceito ou de uma teoria não é medido pela sua verdade; pelo contrário, sua verdade é medida pelas possibilidades que ela cria em vista de uma ação futura." [ames propõe inverter o primado do passado sobre o futuro, fazer da teoria um momento de prática, e não o contrário. "O que é que o mundo vai ser? Que sentido a vida vai tomar afinal de contas? O centro de gravidade da filosofia, portanto, deve ser deslocado."> Não estamos procurando uma filosofia na qual acreditar, mas uma filosofia que faça acreditar, que libere novas possiblidades. Essa é a ambição do método de Iames, Ele não para de dizer isso, assim como Kierkegaard diz: é preciso de um de possível para respirar. A faculdade de acreditar não nos foi dada "para criar ortodoxias e heresias, mas para nos permitir viver': 38 De certo modo, a filosofia deve ter um papel análogo ao da religião: fornecer razões para acreditarmos neste mundo. O que, exatamente, assegura a superioridade do empirismo radical sobre as outras filosofias? A resposta não está garantida porque, no final das contas, pode ser mais favorável acreditar na existência de um eu substancial do que na existência de um fluxo de pensamentos
34. A Pluralistic Universe, capo III, p. 6.
35. Pragmatism, conferência 1Il, pp. 50-SI. 36. Ibid., p. 52: "O teísmo e o materialismo, por mais que sejam indiferentes quando considerados retrospectivamente, apontam para perspectivas da experiência completamente diferentes quando os consideramos prospectívamente" 37. Ibid., p. 62. 38. 7he Will to Believe, pp. 51-52; e mais adiante p. 53: "Na medida em que o homem representa alguma coisa, em que é, afinal, produtivo ou originador, podemos dizer que toda sua função vital tem de lidar com 'talvezes' [maybes]:'
A questão se refere ao sentido da ideia, da teoria em questão. De um ponto de vista pragmatista, aquilo que faz o sentido de um enunciado não é a sua correspondência com determinado estado de coisas, mas sim se ele nos faz esperar por algo ou se nos dá esperança, se conduz a uma a ação ou a um pensamento. Seu sentido consiste, portanto, nas suas consequências práticas, de acordo com a definição pragmatista da verdade. Tomemos a controvérsia clássica sobre o conceito de substância." Podemos postular a existência de uma substância através de seus atributos ou, ao contrário, negar sua existência e reter apenas a coesão de atributos isoladamente cognoscíveis. Uma dessas teses chegará ao espiritualismo (que [ames assimila aqui ao teísmo), a outra, radicalmente opostas, chegará ao materialismo. Poderemos acreditar, indistintamente, então, que o mundo é ou o resultado de um agenciamento material ou a obra de um espírito divino. De onde vem essa possibilidade de escolher, de forma indiferente, uma ou outra tese, de um ponto de vista teórico? Qualquer que seja a tese adotada, o que faz a sua verdade é que ela vale tanto para o estado passado do universo quanto para seu estado presente e futuro. Dizer, porém, que a verdade preexiste ao conjunto das circunstâncias vindouras significa que o futuro já pertence ao passado." Do futuro, poderemos dizer apenas, depois de ter sido, que ele foi verdadeiro.P Nesse sentido, os enunciados dessas duas doutrinas são exclusivamente retrospectivos. "Quaisquer que sejam as particularidades da experiência, o absoluto as adotará posteriormente. É uma hipótese que só funciona retrospectivamente, e não prospectivamente.t'" Teísmo e materialismo dizem respeito ao passado do universo. O mundo já está acabado e o sistema que o contém está definitivamente conferência III, pp. 45-46. 32. Sobre isso, as críticas de [arries estão muito próximas das de Bergson, embora não sejam conduzidas pelos mesmos motivos. Como, por exemplo, nos primeiros parágrafos de "A consciência e a vida" i:nA energia espiritual, trad. bras. de Rosemary Costhek Abilio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 3: "Como [o método dedutivo] o conduz a alguma teoria muito geral, a uma ideia quase vazia, ele sempre poderá, mais tarde, colocar retrospectivamente na ideia tudo o que a experiência terá ensinado sobre a coisa:' 33. Pragmatism, conferência VI, p. 107: "Quando novas experiências conduzem a juízos retrospectivos, expressos no tempo verbal passado, o que esses juízos exprimem era verdadeiro, embora nenhum pensador do passado tenha sido levado a essa conclusão:'
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transitórios. Não há nenhum critério que permita escolher absolutamente o empirismo ao racionalismo ou ao intelectualismo, o teísmo ao materialismo. É até mesmo provável que o absolutismo ofereça um refúgio mais seguro. Como já dissemos, o pluralismo do empirismo radical suscita com mais frequência o ceticismo e a dúvida do que um sentimento de confiança e o gosto pelo risco. Não é o pluralismo o primeiro a engendrar a desconfiança e a dúvida? [ames admite isso sem discussão: "Do ponto de vista pragmatista, essa é uma inferioridade permanente do pluralismo. Ele não tem uma mensagem salvadora para as almas incuravelmente doentes. O absolutismo, dentre suas outras mensagens, possui essa, e é o único sistema que necessariamente a possui. É isso que constitui sua principal superioridade e a fonte da sua força religiosa ... As necessidades das almas doentes são certamente as mais urgentes; e aqueles que acreditam no absoluto deveriam ter como um dos grandes méritos da sua filosofia o fato de que ela saiba responder tão bem a isso. O pragmatismo ou pluralismo que eu defendo deve se limitar a uma certa intrepidez definitiva, um certo consentimento para viver sem seguranças nem garantias ... Quem poderá dizer qual dos dois lados tem razão?"39 A pergunta não é mais "o que é que faz a superioridade do empirismo radical ou do pluralismoi", mas sim "a quem ele interessa?': Quem pode precisar do empirismo? Para quem ele pode servir? Nesse sentido, James esboça uma tipologia essencialmente dualista entre as almas doentes e as almas sadias; Em A experiência religiosa, entretanto, ele mostra que a alma é suscetível a toda uma série de graus intermediários. O primeiro tipo precisa se apoiar em dogmas firmes e estabelecidos. A necessidade de segurança substitui, assim, o sentimento de confiança. O segundo tipo, pelo contrário, arrisca-se no indeterminado, sem garantia nem caução. Isso não basta para concluirmos que o pluralismo e o absolutismo se equivalem. O que esse texto sublinha expressamente é que o absolutismo não consegue aumentar nosso sentimento de confiança. Ele é capaz apenas de solidificá-Io em uma exigência mais paralisante - a segurança -, engendrando ao cabo, talvez, a desconfiança. É verdade que ele nos faz acreditar, mas não permite a instauração de novas conexões com o mundo ou a criação de novas significações.
Afirmamos que o empirismo radical exigia que o pragmatismo fosse um método que lhe permitisse dar conta apenas das funções; mas, nesse caso, é o empirismo radical que é exigido pelo pragmatismo para que os indivíduos concebam suas vidas como um processo de criação. Esse é o seu destino prático como filosofia. Talvez possamos compreender melhor por que ele se apresenta essencialmente como um empreendimento de liberação: ele nos dá as matérias brutas para um mundo a ser feito. É por isso que [ames, assim como Bergson, exige um mundo aberto, "com portas e janelas desde sempre abertas para possibilidades imprevisíveis" 40 Precisamos de um mundo instável, indeterminado. Acreditamos nos possíveis que imaginamos em um mundo onde existe o virtual. O ponto de vista teórico é por essência incapaz de nos dar confiança, pois ele só pensa um mundo fechado. Precisamos de exterioridade. A exterioridade das relações é uma das condições essenciais da confiança, na medida em que ela usa nossa potência de criação. É apenas neste mundo que podemos nos deslocar, produzir ações e conexões. ''Ao contrário, na forma do único, uma coisa pode estar ligada por coisas intermediárias, com uma coisa com a qual ela não tem ligação imediata ou essencial. Assim, muitas ligações são sempre possíveis sem que necessariamente estejam realizadas no rnomento.' Imensas correntes de crenças múltiplas atravessam, assim, as comunidades de indivíduos. Não acredito nos signos sem acreditar que os outros também acreditam neles. Creio em uma crença. Acreditamos e fazemos com que acreditem. A epistemologia se estabelece sobre um fundo social, condição de nossas convenções semióticas. "Em última análise, então, acreditamos que todos conhecemos e pensamos sobre o mesmo mundo, e que também falamos dele, porque acreditamos que nossosperceptos são possuídos em comum ... O que eu sou para você é, primeiramente, um percepto seu. Mas, de repente, abro um livro e o mostro a você, ao mesmo tempo que articulo alguns sons. Esses atos também são perceptos seus, mas se parecem tanto com aqueles atos que você poderia fazer, se inspirado por certos sentimentos, que você não pode duvidar que eu também tenha esses sentimentos, ou seja, que o livro é um livro sentido nos nossos dois mundoa'v- O mundo só tem sentido se ele se produzir entre duas mônadas que interpretam. Não se trata de uma submissão mútua a uma lei geral, pois nada preexiste à relação. Trata-se de um acordo implícito. Uma convenção é uma regra de interpretação elaborada enquanto os signos vão fazendo trocas entre si. O real é essencialmente uma convenção social, não simplesmente porque as duas mônadas o determinam de maneira conjunta como real, mas também porque elas agiriam sobre ele de modo semelhante. Dessa maneira, a realidade (mesmo tomada no sentido epistemológico) é essencialmente um conjunto de objetos e de relações de ordem social." Acaso [ames não supõe constantemente uma grande comunidade de interpretação semelhante àquela descrita por Iosiah Royce em The Problem of Christianity? "Em que sentido a interpretação pode 61. Letters, pp. 88-90, carta a Sarah Wyman Whitman, de 7 de junho de 1899. 62. The Meaning ofTruth, p. 195-196. 63. Cf. igualmente Peirce, "Algumas consequências de quatro incapacidades" in Antologia filosófica, trad. port. de António Machuco Rosa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 55: "Portanto, a própria origem do conceito de realidade mostra que ele envolve essencialmente o de uma comunidade sem limites definida e capaz de um aumento definido de conhecimento:'
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servir à confiança dos indivíduos uns nos outros?': pergunta Royce, em termos próximos aos de Iames. Cada interpretação necessita de um signo e, inversamente, cada signo pede uma interpretação. Como em Peirce, o processo de interpretação é ilimitado; mas, diferente de Peirce, ele é concebido antes de tudo como social, já que dirigido a outras consciências. "Em si mesmo, o processo de interpretação exige idealmente uma sequência infinita de interpretações, pois cada interpretação, sendo dirigi da a alguém, deve ser interpretada pela pessoa a quem é dirigida.v" O signo a ser interpretado, o intérprete e a mente à qual a interpretação é dirigida, eis a trindade de Royce. Se o objetivo da interpretação é atingido, o signo se torna inteligível para a pessoa para quem o interpretamos. Todo enunciado apela para uma comunidade. "Aquele que diz 'descobri um fato físico' não relata apenas a atividade de suas próprias ideias individuais [... ]. Ele apela para a comunidade de interpretação.v" Dessa compreensão mútua pode nascer uma "comunidade de interpretação" voltada para um ideal, a unidade espiritual da comunídade.ss Na medida em que nossas conexões são interpretações, e na medida que as interpretações não cessam de aumentar nossas conexões e, proporcionalmente, nosso sentimento de confiança, acaso não podemos ver no conjunto da filosofia de [arries a presença implícita de comunidades de interpretação, já que [ames fala constantemente de um mundo a ser feito? Devemos estabelecer suas significações novas, seus atos novos, suas conexões novas. Temos que acreditar nas crenças; daí a necessidade de uma confiança e de interpretações por direito ilimitadas. Em Royce, os indivíduos que estão sob uma certa relação podem servir a uma causa que lhes seja superior, que se realiza socialmente mesmo permanecendo suprassocial. Eles podem se unir em uma causa comum. Em James, pelo contrário, os signos não estão acima de nós como causas ideais que abolem a distância entre aqueles que a servem; eles estão entre nós, numa relação de imanência. Como diz Henry Iames, o irmão romancista, a uma de suas amigas:
J. Royce, The Problem oj Christianity, op. cit., v. 11, p. 150. Observemos que, embora [ames critique o hegelianismo de Royce, ele admira os textos que escapam a essa influência. 65. Ibid., p. 247. 66. Cf. Moses 1.Aronson, La philosophie morale de losiah Royce. Paris: Alcan, 1927, p. 144. 64.
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"Lembre-se de que cada existência comporta uma história particular que não nos pertence, e sim a um outro, e contente-se com a difícil álgebra que governa a sua. Não se ligue muito ao universo, mas seja tão invulnerável, densa, inquebrantável quanto possível, .. Cada um, através de seus próprios esforços, alivia os dos outros, contribui para o sucesso geral e torna possível que as outras pessoas vivam:'67 A relação social permanece, por definição, uma ação à distância, convencional, e não uma relação de participação interativa. Encontramos aqui o "meliorismo" de Eliot que William [ames reivindica como seu. A uni-
dade do acordo não absorve a multiplicidade dos modos de se relacionar com ele e nem, consequentemente, a distância entre os indivíduos. Por isso, podemos dizer também que as comunidades são múltiplas, de acordo com os signos com os quais elas concordam, e conforme elas se fecham em desconfiança (segurança) ou se abrem para a confiança. Reatamos, aqui, com a ideia de uma filosofia em mosaico cujo tema iria inspirar a Escola de sociologia de Chicago."
67. Carta a Grace Norton, de 28 de julho de 1883,in Lettres à sa [amille, trad. fr. de Diane de Margerie e Anne Rolland. Paris: Gallimard, 1995,p. 2l. 68. Como diz Robert E. Park: "Os processos de segregação instauram distâncias morais que fazem da cidade um mosaico de pequenos mundos que se tocam sem se interpenetrar. Isso dá aos indivíduos a possibilidade de passar facilmente de um meio moral para outro e encoraja essa experiência fascinante, mas perigosa, que consiste em viver em vários mundos diferentes, contíguos, é verdade, mas apesar de tudo distintos:' Human Communities apud Hannerz, Explorer Ia vil/e, op. cit., pp. 43-45. Foi também um tema constante da obra de Henry [ames mostrar como se formam ou se dispersam as comunidades fundadas por um interesse ou pela simpatia. Cf. H. [ames, "lhe awkward age" in Novels, 1896-899. Nova York: Library of America, p. 733:"Nem uma associação formal nem uma sociedade secreta - menos ainda uma 'gangue perigosa' ou uma organização com qualquer fim definido. Somos simplesmente uma coleção de 'afinidades naturais' [... ] que se reúne principalmente no gabinete de desenho de Mrs. Brook,"
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ACREDITAR NESTE MUNDO
Parece difícil dissociar [ames de um movimento mais geral, que diz respeito aos Estados Unidos por inteiro e ao modelo político, social, que inspira todos os pensadores contemporâneos. É provável que o pragmatismo efetue uma ruptura com o transcendentalismo. É verdade que [ames conserva dele certos aspectos quando invoca uma confiança necessária na relação consigo mesmo, com o mundo ou com os outros; no entanto, as coordenadas se modificaram. A confiança se exerce, a partir de agora, em um mundo pluralista cujos pedaços não podem se unir em um Todo harmonioso (daí a reserva de [ames em relação ao hegelianismo de Royce e, principalmente, o de Bradley). No transcendentalismo, a confiança se difunde, através do Todo formado pela Natureza-Deus e a sociedade dos homens, em um panteísmo glorioso. Trata-se de uma confiança a priori no Todo do universo. O que o pragmatismo mostra, pelo contrário, é que as relações são irredutivelmente exteriores e, logo, não podem se unir. O que o pragmatismo em geral exige são comunidades semiológicas múltiplas cujas regras de interpretação se elaboram pouco a pouco de maneira imanente - o lealismo de Royce, a comunidade científica dos pesquisadores de Peirce, a democracia liberal de Dewey,' os quais, cada um a seu modo, romperam definitivamente com o transcendentalismo. Nesse aspecto, existe uma especificidade do pensamento político americano. Não se trata mais de uma comunidade de crentes, de uma nova Igreja (como nas comunidades religiosas dos primeiros colonos, como para os transcendentalistas ou como nos falanstérios 1. Cf. Feodor F. Cruz, Iohn Deweys 7heory ofCommunity. pp. 47 e 53.
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de Fourier), mas sim de uma comunidade fundada na confiança. A caridade foi substituída pela simpatia, assim como a crença foi substituída pela confiança. Que a comunidade regule as relações de interpretação e os enunciados que delas são inseparáveis é o que uma forma renovada do pragmatismo propõe. Desse modo, Rorty pode invocar [ames, Dewey ou até mesmo Peirce para propor um "neopragmatismo" na medida em que o desejo de verdade se define não como um processo racional, mas como o desejo de um consenso intersubjetivo. "Para o pragmatista, o desejo de objetividade não é o desejo de evitar a finitude de uma comunidade, é apenas o desejo de um consenso intersubjetivo tão completo quanto possível, o desejo de estender a referência do 'nós' tão amplamente quanto possível'? Isso parece ainda mais justificado porque os três autores invocam o consenso como um dos aspectos essenciais da comunidade. O consenso, segundo Peirce, é a comunidade de opinião da qual pode participar qualquer agente racional.' ou, segundo a expressão de [ames, "um grande estágio de equilíbrio no desenvolvimento da mente humana, o estágio do senso comum'» Mas esse estágio do consenso, que em [ames descreve simplesmente a memória social, não poderia constituir uma finalidade em si, como é o caso em Rorty. Este último vê no consenso um elemento de autoctonia: nós representamos uns aos outros. Ele propõe um novo modelo da Conversação cujo único mérito é revelar claramente as ambições inquietantes do consenso. Como aceitar que a noção de comunidade seja reduzida à "nossa comunidade, à comunidade dos intelectuais liberais do Ocidente laico moderno"? Como aceitar que ele diga, em nome de um neopragmatismo, que "Nós, intelectuais ocidentais liberais, deveríamos aceitar o fato de que temos que começar de onde estamos e de que isto significa que há muitas visões que nós simplesmente não tomamos seriamente'T' Nós, homens coerentes e responsáveis, 2. Iohn Rachjman e Cornel West, La pensée américaine contemporaine. Paris: PUF, 1991. Ver o artigo de Rorty, "Solidarité ou objetívité!" p. 64 [Ed. bras.: "Solidariedade ou objetividade?" in Novos Estudos, n" 36. São Paulo: Cebrap, 1993, pp. 109-121], e o comentário de C. West no posfácio, pp. 391-398. 3· Cf. Tiercelin, La pensée-signe, op. cit., p. 359. 4· Pragmatism, conferência v, p. 83 [p. 61, T. M.]. 5·Rorty, "Solidarité ou objetívité" op. cit., p. 74 [p. uê].
nós que temos o sentido dos valores liberais e democráticos, nós continuaremos a grande Conversa inaugurada por Sócrates que se perpetuou até nós. Haverá alguém que não esteja de acordo conosco, com nossos valores de Justiça, de Igualdade, de Equidade, de Verdade? Um dos maiores equívocos sobre a convenção consiste, portanto, em imaginá-Ia como consenso: como, por exemplo, o modelo da conversação proposto por Rorty. O que é o consenso na verdade? É a produção de enunciados tais que não seja possível contradizê-los, ou então que relançam uma discussão cujas expectativas estão preestabelecidas. É a produção de enunciados num quadro final predefinido. Podemos discordar, mas pelo menos estaremos de acordo em comunicar racionalmente. A prova da contradição incidirá não mais sobre as particularidades do conceito e suas ligações lógicas ou práticas, mas sim sobre um acordo intersubjetivo ou comunicacional. Diremos que se trata de convenção. Mas não encontraremos ali nenhum traço de convenção, pois não há nenhum aumento do poder da nossa atividade teórica ou prática - no máximo, há produções de generalidades (e a única artimanha que encontramos para justificar essas generalidades consensuais é enfrentar adversários extremistas que as contestem). Confundimos, aqui, o aumento preênsil do conceito ou da ação com a extensão da generalidade. Quanto mais o acordo é geral, mais ele é consensual, enquanto que quanto mais consolidado, mais ele é convencional (o que não exclui que ele seja geral, como é o caso das convenções sociais ou políticas que repousam sobre interesses comuns). Em síntese, trata-se de definir a conversação como uma extensão da autoctonia, uma espécie de imperialismo da opinião ocidental como única fonte de valores. O etnocentrismo - reivindicado por Rorty - está em profunda contradição com o pluralismo inerente ao pragmatismo, assim como a busca pelo consenso com relação ao processo criativo do qual o pragmatismo quer ser o método. Nos textos de Rorty, às vezes encontramos traços inquietantes do ethnos, desse reconhecimento mútuo dos representantes de uma mesma comunidade de pensamento. Por mais que tenhamos a nobreza de dizer que a comunidade não repousa sobre traços nacionais ou raciais, por mais que digamos que se trata de uma comunidade racional, nada mudou se transportamos esses traços nacionais ou raciais para a razão.
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Mais uma vez, gostaríamos de dizer que é impossível fazer do pragmatismo a filosofia do oportunismo econômico ou político, ou de reduzi-lo a definições tão vagas quanto "sentido da ação" ou "gosto pelo concreto", como em última análise faz Rorty sob a forma renovada de uma exportação dos valores liberais pela comunicação. A alternativa do pragmatismo não está entre Sucesso ou Fracasso, como querem nos fazer crer, mas sim entre Salvação ou Perda. A confiança é algo vital. "Recuse-se a acreditar e você certamente terá razão, pois perecerá irremediavelmente. Acredite, porém, e você ainda terá razão, pois estará salvo. Através da sua confiança ou da sua desconfiança, você tornará verdadeiro um ou outro dos dois universos possíveis'" Não é a filosofia do homem de negócios ou do liberalismo, mesmo sob a forma de "transações comunicacionais", mas sim a do homem comum que tem que acreditar neste mundo, que também é o mundo dos negócios. A crise de confiança é o signo daqueles que desistiram de acreditar neste mundo. Nada mais vai conseguir fazê-los agir ou ter esperança. Uma nova filosofia é, portanto, necessária. O funcionalismo também é feito para aquilo que cessa de funcionar.
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p. 54.
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Jernes
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