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Portuguese Pages 316 Year 2018
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Alexandre Mendes
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os levantes de 2013 e a insistência de uma nova percepção
Rio de Janeiro, 2018
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Vertigens de junho: os levantes de 2013 e a insistência de uma nova percepção Mendes, Alexandre isbn: 978-85-518-XXXX-X 1ª edição, setembro de 2018. capa e editoração eletrônica: Talita Almeida Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda. Rua Buenos Aires, 168 – 4º andar, Centro rio de janeiro, rj – cep: 20070-022 www.autografia.com.br Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor e da Editora Autografia.
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SUMÁRIO Prefácio (de Alexandre Magalhães) . . ............................................ 7
Introdução.................................................................................... 13 2018
• Levantes: o caminho que é o deserto ..................................... 29 • Junho de 2013: das trincheiras ao trabalho das linhas......... 47
• O que podem as máscaras e as bandeiras? Uma leitura do livro The mask and the flag, de Paolo Gerbaudo . . ..................................................................... 115 • Pensar o Pós-Junho de 2013 com Eder Sader: a travessia de um pensamento ................................................... 141 2015
• O dia 16 de março no Morro dos Cabritos............................ 165 • A esquerda que venceu............................................................. 175 • Ocupações estudantis: novas assembleias constituintes diante da crise?............................................................................ 195 • O poder de Junho de 2013 e o direito à cidade ................... 227
• Vertigens de Junho.................................................................... 249 2013
• A atualidade de uma democracia das mobilizações e do comum.................................................................................. 259 • A ética do anonimato, a vida da filosofia e as máscaras do poder . . .............................................................. 275 • Vai ter Copa do Mundo no Brasil?.......................................... 283 Conclusão..................................................................................... 290
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Prefácio De início, gostaria de agradecer a oportunidade de prefaciar o livro de Alexandre Mendes por dois motivos: em primeiro lugar, pelo autor oferecer os percursos de uma reflexão crítica do cenário político carioca e brasileiro pós Junho de 2013, através do que chamarei aqui de modulações produtivas do pensamento, de uma forma de pensar as dinâmicas políticas e sociais concretas de maneiras que evitem o engessamento, o aprisionamento intelectual e uma postura tão comum nos dias atuais entre alguns “intelectuais”: os de cães de guarda do poder. Em segundo lugar, por me permitir, ao longo de todos esses anos que nos conhecemos – desde as lutas que travamos contra as remoções de favelas (uma das expressões do consenso autoritário que Junho de 2013 de alguma forma quebrou) –, reelaborar formas de pensamento e engajamento político. De alguma forma, o que venho aprendendo com Alexandre nesses anos todos se encontra condensado de maneira inteligente, refinada, densa e elegante, sem perder a potência crítica, ao longo desse livro. Como o leitor terá oportunidade de desfrutar, Junho de 2013 emerge como um ponto de inflexão fundamental em nossa história política recente e que alterou sobremaneira os modos de compreensão das disputas políticas e sociais que se desenrolam no país desde então. De alguma forma, para o autor, Junho de 2013 – em seus efeitos e consequências as mais diversas – se transformou na medida em que nos permite dar conta de um intenso processo de transformação política e social atualmente em curso no Brasil.
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É possível afirmar que Junho de 2013 foi uma explosão multitudinária, um conjunto de movimentos/movimentações cujos contornos eram – propositadamente – imprecisos; Um pequeno terremoto que, se não transformou por completo nosso sistema político e social, produziu importantes brechas que até hoje – e apesar do violento processo de restauração e dessubjetivação – ainda nos permitem vislumbrar saídas às diferentes crises forjadas que temos diante de nós. Aquele acontecimento, ou acontecimento de acontecimentos (para usar a arguta observação de Bruno Cava), forjou-se por um grande encontro de uma multiplicidade de experiências, demandas, exigências, histórias e trajetórias, o que Alexandre denomina de “mobilizações diagonais”. Uma combinação de forças contestatórias de origens muito distintas, de uma indignação que atravessava (e ainda atravessa) a sociedade como um todo e que explodia, principalmente, contra o sistema político e econômico sustentado por um grande arranjo de saque violento e corrupto das riquezas e das vidas de milhares de pessoas. Como Alexandre afirmará nos artigos que compõem a última unidade do livro, referentes às análises feitas ainda no calor dos acontecimentos, a quebra do consenso autoritário e tecnocrático – como ele denomina a configuração política que então vigorava – teve como palco principal, como terreno de luta fundamental a cidade, espaço-tempo no qual se permitiu visualizar a transmutação de uma composição social que não podia mais ser colocada meramente nos termos tradicionais de classe, da classe trabalhadora, mas de uma composição social heterogênea que envolvia (e envolve) subjetividades múltiplas. Junho de 2013 nos mostrou, como Alexandre afirma ao longo do livro, o quanto as formas de representação tradicionais, bem como o aparato administrativo-burocrático haviam se ossificado e se fechado. Nesse sentido, outros caminhos tiveram de ser construídos, em ato, no cotidiano, para que aquelas vozes, anseios e desejos fossem ouvidos e processados. Aquela multidão de vozes e corpos desejantes conseguiu abrir brechas, produzir fissuras na densa crosta que envolvia o sistema
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político nacional, obrigando seus operadores a dar alguma satisfação naquele momento. Muitas linhas e caminhos foram produzidos a partir daquele instante, alguns deles bloqueados ou simplesmente destruídos posteriormente. Contudo, alguns ainda insistem em nos mostrar todo um campo de possibilidades, todo um conjunto de experimentações de inovação democrática, de produção de novas formas de existir. Naquela ocasião, e mesmo posteriormente, nenhum esquema teórico e/ou arranjo político tradicional foi capaz de compreendê-lo e/ou controlá-lo, deliberadamente ou por pura incapacidade. Junho de 2013 foi um conjunto de experiências que transbordou por todos os lados, que produziu articulações e composições as mais variáveis que atravessaram e questionaram os modos até então hegemônicos de gestão da vida comum. Expressou uma brecha, uma fissura num suposto consenso produzido pelos condutores do consórcio Estado-Mercado (à esquerda e à direita) que pretendiam produzir o “Brasil Maior” (a fórceps). O grande desafio colocado pelo livro não é somente o de encontrar as ferramentas analítico-conceituais mais adequadas para compreender os acontecimentos políticos que vêm rompendo e reorganizando o gradiente a partir do qual se compreendia a política e a vida. Mas, sobretudo, como pensar a produção de linhas de fuga que nos permitam conceber outros caminhos, outras linhas de vida. As reflexões de Alexandre nos colocam diante de um conjunto de dilemas para os quais não só não temos respostas prontas e pré-constituídas, como estas apenas virão de um movimento de êxodo, de um lançar-se ao deserto, e se expor em um espaço (conceitual e existencial) completamente aberto e cujas ancoragens anteriormente seguras deixaram de existir e operar. Engana-se quem considerar tal assertiva a defesa intransigente de um modo de vida niilista. Pelo contrário, Alexandre nos convida a pensar formas de existência, modos de existir que se forjem no próprio movimento de habitar um caminho de vida. Já nos primeiros artigos, demonstrando o que denominei acima de modulações produtivas do pensamento, Alexandre aponta para uma trans-
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mutação das suas formas de compreensão do cenário político e seus inúmeros jogos de força, sem, contudo abandonar algumas linhas já atravessadas e alinhavadas anteriormente. Nesse momento, o autor buscará analisar a política através de uma “estética da política”, articulando autores como Deleuze, Blanchot e Rancière, para pensar como os modos próprios de organização da percepção se alteraram a partir de Junho de 2013. Seu objetivo – e talvez aí resida a grande contribuição deste livro – é pensar como as inúmeras lutas que se combinaram naquele momento causaram e continuam causando mudanças na própria forma de perceber o real. Junho de 2013, nesse sentido, atuaria como uma desorganização da percepção, de uma transformação de certo regime do sensível, que diz respeito diretamente a determinados modos de existência, com os modos através dos quais nós vivemos. Transversalmente, o caminho escolhido por Alexandre ao longo do livro pode ser compreendido como um esforço de uma tomada de fôlego diante das inúmeras formas – políticas, sociais, econômicas e teóricas – de sufocamento que insistem não somente em reduzir a experiência – de vida, política, conceitual – a esquemas pré-ordenados, a diagramas pré-estabelecidos, mas a impedir que outros modos e formas de vida possam emergir e se afirmar enquanto tais. Os textos que compõem este livro nos apontam como setores significativos da esquerda e do mundo acadêmico passaram a ignorar sistematicamente as nuances, contradições, paradoxos e ambiguidades que atravessam e constituem, necessariamente, os diferentes fenômenos sociais e políticos. Uma forma de comportamento político e conceitual que ignora, deliberadamente, os jogos de forças que posicionam, sempre contingencialmente, os diferentes sujeitos (coletivos e individuais) na cena pública. O empenho tem sido em forçar a realidade a caber em narrativas preelaboradas (“o golpe”, “a CIA” ou qualquer outra fantasmagoria) que servem apenas para intensificar e fortalecer, ao mesmo tempo, o autoisolamento e a própria impotência diante dos acontecimentos. O resul-
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tado prático disso não é só a autoalienação dos embates concretos que se realizam apesar dessas narrativas congeladas, mas principalmente o desengajamento de diferentes formas de lutas que insistem em fugir a qualquer forma de controle e codificação e que buscam contornar os formatos tradicionais de mobilização, das quais essas narrativas são expressão. Não apenas isso, mas talvez o efeito mais deletério desta forma de engajamento-desengajante seja o da “violência desrealizadora”, para usar os termos de Judith Butler, que consiste em tornar irreais, ao simplesmente ignorar que existam formas de ser e existir que de alguma maneira ofereçam algum risco às formas hegemônicas de produção e condução da vida coletiva. Alexandre também nos convida a enfrentar uma postura generalizada que combina medo e uma incapacidade de fazer qualquer coisa diante dos fatos a nossa frente. Mais do que isso, ele nos propõe a estarmos atentos a elaboração de uma nova imaginação política e da observação do esforço cotidiano de invenção de outros modos de fazer e viver que ultrapassem esse comportamento melancólico que apenas consegue lamentar-se pelos ídolos decaídos. E se, como afirma Alexandre, o projeto majoritário dos governos petistas e do lulismo venceu à custa de toda e qualquer alternativa que Junho de 2013 poderia ter esboçado, ouso dizer, apesar do autor não o afirmar tão categoricamente, que as forças vivas e as diferentes experiências que brotam aqui e ali ou que virtualmente se desenham a partir de iniciativas diversas, devem agora derrotá-lo se quisermos imaginar uma nova composição democrática capaz de enfrentar os dilemas que temos pela frente.
Rio de Janeiro, 05 de agosto de 2018 Alexandre Magalhães
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Introdução O mês de junho de 2012 iniciou-se com uma série de intensas atividades preparatórias para a realização, no Rio de Janeiro, da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e, também, do evento paralelo denominado Cúpula dos Povos, organizado por diversos movimentos sociais brasileiros e globais. De um lado, chefes de Estado prometiam avaliar os acordos realizados desde a ECO 92, sob o marco do desenvolvimento sustentável, da economia verde e da governança global; de outro, movimentos, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), afirmavam que o espaço paralelo seria um “marco para na trajetória das lutas globais por justiça social e ambiental” e que iria contribuir para acumular forças de resistência e apresentar novos paradigmas baseados na defesa da vida e dos bens comuns1. Participei dessas mobilizações através de encontros pontuais do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas que ocorriam na ocupação Manuel Congo (Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM), especialmente para organizar uma grande manifestação contra as remoções no Rio de Janeiro, que deveria ter como ponto de partida o local do caso mais emblemático de resistência daquele momento: a comunidade Vila Autódromo. Não é inútil comentar que, no ano de 2012, tentávamos acompanhar, através dos movimentos sociais e da prática de apoio voluntário, as comunidades removidas ou ameaçadas de
1. MST. Cúpula dos Povos na Rio+20. Boletim informativo do dia 16 de maio de 2012. Disponível em: http://www.mst.org.br/2012/05/16/cupula-dos-povos-na-rio-20.html Acesso em 25 de julho de 2018.
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remoção, depois da completa inviabilização do trabalho jurídico sediado no Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (NUTH). O desmonte do NUTH, que culminou com o pedido de afastamento das defensoras e defensores públicos e a demissão de todas as estagiárias, estagiários e secretárias daquele órgão público, tinha sido iniciado, justamente, a partir de uma contestação fervorosa do governador Sérgio Cabral à notificação internacional realizada ao Comitê Olímpico Internacional (COI) sobre o caso Vila Autódromo, denunciando violações ao direito à moradia e à cidade. Além disso, um forte questionamento político-jurídico já havia sido realizado no ano de 2010, na ocasião dos violentos despejos forçados realizados nas comunidades da Restinga, Vila Harmonia, Vila Recreio II, Metrô Mangueira, entre outras2. É nesse contexto de forte consenso político, econômico e cultural em torno da realização dos Megaeventos, do qual o caso do NUTH é apenas mais um episódio sintomático, que se davam as reuniões na Manoel Congo com o objetivo de realizar um grande ato na ocasião do encerramento da Cúpula dos Povos, cuja concentração, como mencionei antes, seria na Vila Autódromo e o ponto de chegada seria a primeira barreira policial encontrada para proteger o pavilhão do Riocentro, sede da Cúpula oficial. O “comando do ato” foi dividido entre o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, a ONG Justiça Global, o Movimento Mundial de Mulheres, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Associação de Moradores e Amigos da Vila Autódromo. 2. Para uma compreensão do ciclo de lutas contra as remoções que irrompe entre 2007 e 2011, e o caso do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, conferir: MENDES, A.F. COCCO, G. A resistência a remoção de favelas no Rio de Janeiro (2007-2011). Rio de Janeiro: Revan, 2016. Outra abordagem pode ser encontrada em: MAGALHÃES, Alexandre Almeida de. Transformações do problema favela e reatualização da remoção no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Estudos Sociais e Políticos – IESP/UERJ, 2013.
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Considerado independente, fiquei responsável por realizar o streaming do protesto, que na época foi viabilizado por uma verdadeira “geringonça” composta de bicicleta adaptada para entrega de jornal, bateria de carro, cabos e computador laptop com câmera, algo bem diferente dos celulares que veríamos com apenas um ano de diferença. Para viabilizar a passagem pelas várias barreiras de segurança, os moradores distribuíram comprovantes de residência para os participantes e organizaram uma vigília durante toda a madrugada. Foi com um desses comprovantes que perfurei os bloqueios e cheguei muito cedo à Vila Autódromo, um pouco depois do amanhecer. Encaminhei-me diretamente para a associação de moradores para tentar encontrar alguém conhecido e, foi aí, que começou a minha grande surpresa, na verdade, uma experiência decisiva que só depois consegui elaborar corretamente. Ao encontrar, bem na frente da associação, um senhor que parecia ter uns sessenta anos de idade, me apresentei e perguntei se ele estava na organização. Ele disse que sim, complementando que era assessor especial do ministro Gilberto Carvalho (braço importante do governo Dilma à época, então secretário da Presidência da República). Com a minha reação de total espanto, ele apressou-se em dizer que, apesar do cargo, era “de luta”, que tinha dedicado toda a sua vida ao movimento sindical etc. Quando perguntei se ele tinha alguma função específica, ele disse que estava organizando os ônibus que levariam os manifestantes à comunidade. Então, me afastei dali para colocar em atividade tudo o que tinha previsto (a bicicleta, a bateria, o computador, etc.) e iniciar os primeiros testes de transmissão. Já havia bastante gente no local e, para além dos habituais carros de som e militantes tradicionais, era impossível não notar centenas de índios que se espalhavam sentados na rua principal, apenas observando em total silêncio, ora o movimento das pessoas, as palavras de ordem, ora a fumaça negra que saía do caminhão.
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Foi quando uma nova surpresa aconteceu. Uma amiga que estava fazendo parte da Ocupa dos Povos, ocupação de praça de cunho autonomista embalada pelos ventos da Primavera Árabe, me disse por telefone que o ônibus que ela estava esperando não tinha chegado. Imediatamente, outras pessoas conhecidas começaram a me ligar relatando o mesmo problema, perguntando se eu sabia de algo. Foi quando decidi procurar o tal assessor para perguntar se ele teria saberia o que estava acontecendo, ouvindo como resposta que o motorista estava perdido. Depois, conseguimos organizar a informação e descobrir que dez ônibus não haviam chegado aos locais esperados. Será que dez motoristas se perderam, simultaneamente, no Rio de Janeiro? Mas essa complicação inicial se revelou como algo menor perto do que estava para acontecer. Seguindo o protesto com a geringonça que transmitia a movimentação ao vivo, foi possível perceber que estávamos andando em círculo, indo de uma rua a outra, sempre por dentro da comunidade. Algo no mínimo estranho, principalmente porque chovia intensamente, as pessoas caminhavam em forma de procissão e o caminhão fazia muito barulho, criando um ambiente verdadeiramente claustrofóbico. Parecia tudo sem propósito e, para piorar, boa parte dos moradores (que não faziam parte da comissão de organização) olhava para os manifestantes como se fossem totais estrangeiros recém-desembarcados no local. Uma grande discussão atrás do carro de som se instalou envolvendo os participantes do comando do ato. Quando me aproximei descobri que o impasse se dava entre realizar o protesto só no interior da comunidade ou sair na direção do pavilhão do Riocentro, sendo que a Marcha Mundial das Mulheres já estava se reunindo para abandonar o local. A sensação de estranheza se transformava em perplexidade, não só porque não havia qualquer propósito em ficar circulando com um caminhão enorme e barulhento pelas ruelas da Vila Autódromo, mas, principalmente, porque o itinerário havia sido discutido durante horas nas reuniões do Comitê da Copa, tendo sido acordado por absoluto consenso.
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E eis que mais um fato imprevisto aconteceu, agora dando verdadeiros contornos surrealistas à situação. Cansados de observar a cena do habitual “racha” entre os movimentos, todos os índios se levantaram de uma só vez, formando um bloco forte e coeso, embora ainda silencioso, se precipitando rapidamente na direção da rua e, mais adiante, da própria barreira policial, permanecendo imóveis a apenas dez centímetros de distância dos rostos dos primeiros agentes de segurança. Foi a senha para que todos saíssem em direção à rua e extravasassem sua vontade de protestar, coincidindo com o momento da chegada de vários ativistas de cunho anarco-autonomista, que driblaram a falta de ônibus e conseguiram um transporte para o local, sabe-se lá como. Mas a geringonça não me permitia um deslocamento rápido e, por isso, acabei preso entre uma ponte estreita (que levava até a rua por cima do arroio) e um agrupamento de militantes do MST, que ouvia as recomendações de sua principal liderança para saber o que fazer. Decidi, então, transmitir aquele encontro, para depois tentar acessar o grosso do protesto que já estava na barreira policial. Foi ali que a dimensão tragicômica de tudo o que se iniciou bem cedo ficou evidente. O líder do MST dizia que a decisão de permanecer na comunidade se justificava para proteger os próprios moradores e que o respeito ao local era fundamental. Só que, no mesmo instante que essas palavras eram pronunciadas, os próprios moradores apareciam no fundo, já no meio da rua, caminhando animadíssimos na direção da barreira policial. Diante do flagrante absurdo da situação, a liderança pediu que todos se concentrassem pacificamente num ponto de ônibus que se situava no início da rua, no extremo oposto do bloqueio policial, para apenas observar o que estava acontecendo. Com o caminho desimpedido, consegui chegar finalmente no aglomerado de gente que ocupava a entrada do Riocentro e logo uma confusão se instalou, com algumas pessoas correndo com medo da reação policial. Quando cheguei mais perto, ouvi outras gritando: “os índios sequestraram o Gilberto Carvalho, eles estão sequestrando o ministro!”.
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O alvoroço era enorme. De fato, era possível ver um senhor de terno no meio de uma roda compacta de índios, e, no meio do círculo, muito empurra-empurra. O ministro logo propôs que uma comissão indígena fosse formada e garantiu o acesso dela ao evento oficial, conseguindo sair ileso do centro do caldeirão. Como a chuva era forte e contínua, aos poucos os manifestantes foram deixando o local sem incidentes maiores. Uma reunião de avaliação foi marcada pelo comando do ato, mas preferi realizar esta reflexão por conta própria, considerando que cada episódio daquele Junho de 2012 da Vila Autódromo trazia uma nuvem de problemas. Uma nuvem que, é verdade, estava prestes a se transformar em tempestade com a irrupção de Junho de 2013. Como explicar que o próprio governo estava, mesmo que insidiosamente e sem o consentimento de todos, na organização do ato, protagonizando o misterioso sumiço dos ônibus? Como explicar o racha dos movimentos e a estranha decisão de não sair da comunidade em direção ao Riocentro? Quem, aliás, estava de fato decidindo como deveria ser o protesto? Como explicar o olhar desconfiado de alguns moradores ditos não organizados diante de uma enorme estrutura que apareceu, de um dia para o outro, na porta de suas casas? Como analisar o contágio entre índios coesos e silenciosos, ativistas dispersos e chamativos (os sem-ônibus), manifestantes e moradores, todos rompendo alegremente o impasse colocado pelas hierarquias organizativas? Como pensar essas conexões heterogêneas na atualidade? O fato é que no espaço-tempo de um ano tudo iria virar do avesso: o governo perderia o controle do processo de resistência, os protestos de rua ganhariam um formato radicalmente diferente do modelo tradicional e hierarquizado, o midiativismo iria encontrar um repertório infinito de possibilidades, mais ágeis e criativas, o espaço da rua e das redes seria aberto para não ativistas e pessoas “despolitizadas” e, principalmente, todos os governos iriam experimentar uma real sensação de medo com relação à mobilização que estava acontecendo. E, não por
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acaso, foi no espaço dessa brecha que todas as remoções de favelas, incluindo a da Vila Autódromo, foram suspensas no Rio de Janeiro, retornando somente quando o trabalho de pacificação foi reativado a partir de 2014-2015. Mesmo assim, estabeleceu-se uma fratura qualitativa, um desnível irredutível, que ainda hoje se faz ressoar. Este livro pode ser lido como o resultado, evidentemente incompleto e parcial, de um esforço de avaliação que coloca esses deslocamentos e perplexidades no centro da análise da experiência política dos últimos cinco anos. É Junho de 2013 que dá nome ao acontecimento que irá articular as micro-percepções individuais, os desvios imperceptíveis que vazavam pelas extremidades, os terrenos de luta que já explodiam em domínios diferentes (lutas contra as remoções, contra as grandes barragens, número inédito de greves, sublevações radicais em Jirau, Santo Antônio e Belo Monte, lutas indígenas etc.) à ruptura definitiva nos modos de percepção coletiva que redefiniram as formas de pensar, desejar, sentir, viver e fazer política de toda a sociedade brasileira. É o que chamamos de vertigens de Junho. Contudo, a profunda desorganização do anterior regime do sensível, e dos corpos que eram seus correlatos, não dá luz imediatamente a uma sociedade renovada e reorganizada em padrões tidos como “melhores” ou superiores aos anteriores. Longe das narrativas progressistas, de um lado, ou catastrofistas, de outro, sempre com os seus moldes definidos previamente, o problema ético que se coloca hoje é, justamente, encontrar as linhas de continuidade de Junho de 2013, em sua lógica aberrante, móvel e, por vezes, perigosas, sem tombar nos antigos signos que continuam nos espreitando. De certa forma, o que ganhamos é o direito a elevar o estatuto das nossas perplexidades. De incômodo quase solitário e absorvido pelas velhas estruturas, a uma pragmática que abre a oportunidade de afirmação de novos modos de existência e a produção de novos signos3. 3. Para uma relação entre signo, confiança e criação, sugiro o livro: LAPOUJADE, D. William James, a construção da experiência. São Paulo: N – 1, 2017a. Acreditamos que os desdobramentos de Junho poderm ser pensados também em termos pragmáticos, no sentido elaborado pelo autor em sua leitura de
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As vertigens que seguem Junho devem ser consideradas, assim, de acordo com a própria afirmação dos levantes como uma duração que continua a se impor, a despeito das tentativas de reordenação do tempo e normalização da rotina. Primeiro, ela aparece como a emergência difusa de uma pluralidade de vozes, gestos, novas figurações e práticas que surgem a partir da implosão do consenso que organizava objetiva e subjetivamente os modos de vida no Brasil. Segundo, como a insistência que busca continuar abrindo as possibilidades de contestação diante do fechamento organizado pelo poder, tanto à direita, como à esquerda. Terceiro, como conquista de uma percepção que estabelece uma defasagem absoluta entre as velhas formas de organização da vida e as novas exigências da atualidade, colocadas, agora, a partir da reiteração de um terreno flutuante e de difícil apreensão. Essa conquista é correlata a uma tentativa permanente de instauração e prolongamento das novas possibilidades de vida a partir de combinações políticas concretas que não necessariamente aparecem como arranjos prontos e de fácil visualização, embora seja razoável afirmar que, mesmo de maneira difusa, exista hoje uma mobilização permanente ainda ligada a Junho. Este livro percorre essas três camadas, cujos epônimos são 2013, 2015 e 2018, através da junção de uma série de textos publicados desde os primeiros protestos e textos inéditos escritos para esta ocasião. Se tivesse que definir o conjunto temático de cada momento, diria que, em 2013, prevaleceu uma análise das oportunidades abertas pela quebra do consenso anterior, o papel da metrópole como novo terreno de luta (a fábrica difusa) e dos novos sujeitos que emergem nesse terreno, equivocadamente chamados, por sociólogos e economistas, de “nova classe média”, ou “classe C”. Já nos primeiros protestos também busquei iden-
William James. Trata-se, tal como no contexto americano da segunda metade do século XIX, de retomar a relação entre experiência e criação para que novos signos sejam criados, evitando a crise e os efeitos dramáticos das velhas crenças. Neste livro, porém, uma pragmática de Junho será ensaiada, não pelo pragmatismo americano, mas a partir da chave do trabalho das linhas, desenvolvida como reposta à lógica das trincheiras.
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tificar o início dos esquemas de repressão que ganhavam forma, incentivados, inclusive, por figuras representativas da esquerda brasileira. Do ponto de vista formal, os textos foram escritos no calor do momento e tinham como objetivo uma intervenção na conjuntura daquele ano, tendo como ética de fundo a indagação clássica sobre o que fazer. Em 2015, o contexto já havia mudado completamente, principalmente com o enfraquecimento dos protestos (dentre os motivos, a repressão, o cansaço, as tentativas vazias e trágicas de radicalização, a incapacidade de criação etc.) e as eleições de 2014, que reorganizaram o campo político e subjetivo através de um corte binário do qual ainda estamos presos (a polarização e suas implicações na produção de subjetividade e na reprodução das oligarquias políticas). É também o annus horribilis dos chamados governos progressistas da América Latina, que, ou tombavam diante das oposições, ou se deterioravam terrivelmente, como nos casos da Venezuela e, mais recentemente, da Nicarágua. Seria impossível, assim, continuar analisando Junho de 2013 sem uma reflexão sobre a atuação central das forças de esquerda no processo de fechamento do horizonte político e em sua tentativa ignorar os efeitos dos catastróficos ensaios desenvolvimentistas na região. Por outro lado, diante do acirramento desse falso combate, ficava ainda mais difícil percorrer as linhas de Junho, principalmente porque, se, de um lado, elas passavam pela crítica veemente ao próprio campo de esquerda (bem longe do modelo da “crítica interna”, aceita até então), de outro, elas poderiam também recair em arcaísmos e conservadorismos tão deteriorados quanto os anteriores. Foi preciso, então, transformar os textos de intervenção, que marcaram o ano de 2013, em diagnósticos precários que buscavam apontar para deslizamentos possíveis diante do quadro que se apresentava. O exemplo de uma travessia, realizada na vida e no pensamento de Eder Sader, nos pareceu indicar um caminho que tentava encontrar os novos personagens que estavam em cena, as formas de fazer política que poderiam ser criadas, o aprofundamento da crítica à dicotomia estado-
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-mercado (a partir do desmoronamento desenvolvimentista) e, principalmente, a falência das velhas categorias sociológicas para dar conta das novas emergências. Sem esquecer que essas questões, em 2015, deveriam se colocadas também a partir das manifestações massivas pela saída da Dilma, dos panelaços, das correntes de WhatsApp, de um clima de agitação que retomava o enigma de Junho como um processo inscrito no real, com todas as suas ambivalências e possibilidades. Como prolongar as linhas e afirmar a força dos protestos, sem recair nos novos conservadorismos que se fortaleciam à esquerda e à direita? Diante de uma mobilização histórica, apoiada pela maioria da população e, até certo ponto, bem-sucedida, as forças de esquerda se ressentiam cada vez mais, passando a aprofundar as tendências ao entrincheiramento já existentes desde 2014. Não é exagero afirmar que, como resultado dessas tendências, estamos hoje diante da maior tentativa de homogeneização política, epistemológica, subjetiva e discursiva das últimas décadas, turbinada pelas incertezas globais e pela perda do monopólio do ativismo para diferentes grupos auto-organizados, desde ultraliberais até neofascistas. Apelos exasperados e emotivos à unidade e aos velhos símbolos parecem querer compensar a imensa incapacidade de, frente a uma crise de dimensões globais, se propor, não apenas algo novo, mas algo que possa ser objeto de confiança por parte da maioria da população4. O fato é que, neste mundo onde ganham as convocações mais barulhentas e identitárias, Junho de 2013 aparece como fenômeno ainda mais anômalo e inconjuntural. Nos últimos dois anos, tentou-se forçar uma passagem de página, apagar Junho, a partir de duas frentes aparentemente antagônicas: enquanto a esquerda dizia que tudo havia sido apropriado e não restava mais nada das verdadeiras intenções dos protestos, a fração da oligarquia encabeçada por Temer tentava construir, por cima dos escombros, uma “ponte para o futuro”, através da qual a 4. Retomo aqui a dimensão pragmática de Junho de acordo com a nota anterior.
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confiança seria retomada. Todos acreditando que 2018 seria o ano de chegada desses dois movimentos, quando o bolo seria novamente dividido através dos velhos acordos realizados sob a aparência de uma disputa performática. Mas a situação está longe de ser normalizada. Foram os caminhoneiros que, numa greve de escala nacional com apoio de 87% da população, quase toda auto-organizada por fora da estruturas sindicais e partidárias, pautada não só pelas questões da categoria, mas também pelo desejo de destituir o governo, atualizaram de uma forma avassaladora a potência dos levantes, encontrando novas combinações concretas que paralisaram o país. Eles demonstraram que a fratura ainda está ressoando na forma de uma insistência que resiste à normalização oligárquica. Do ponto de vista teórico, as análises referentes a 2018 neste livro demarcam também uma travessia que só começou a ser amadurecida recentemente. É preciso reconhecer que a caixa de ferramentas que animava os escritos anteriores deixou de ser útil para enfrentar a homogeneização do pensamento que se acirrou nos últimos anos. A perspectiva denominada pós-operaísta5, abordagem que utilizei por cerca de dez anos, demonstrou dois grandes limites: primeiro, evidenciou que a articulação entre análises de conjuntura, análise das tendências e afirmação da ação possível (práxis) não poderia dar conta de uma série de realidades menores que se colocavam contra a própria conjuntura, surpreendendo tendências causais e colocando não aquilo que, enfim, seria possível, mas o esgotamento desse próprio possível (a realidade normalizada) na direção de um ato de criação ou instauração – um possível em sentido puro. Como conseqüência, em segundo lugar, o pós-operaísmo acaba partindo de representações já estabelecidas (luzes já esculpidas) que permanecem presas ao desfile dos “novos movimentos globais” encarados
5. Para uma síntese dessa perspectiva: COCCO, G. “Introdução”. In: NEGRI, A; LAZZARATO, M. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP Editora, 2001.
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ainda como sujeitos-referência dos processos de antagonismo social. O resultado político desse duplo limite é, não só uma total incapacidade para pensar as lutas por fora de uma realidade e uma visibilidade já conformadas, como uma forte suscetibilidade com relação aos apelos por unidade que se fortalecem diante da crise global. Na América Latina, esta unidade político-epistemológica e a recusa em se investigar os desdobramentos de Junho de acordo com uma teoria em movimento, ganha contornos ainda mais dramáticos, dificultando uma renovação do pensamento que possa acompanhar os processos inscritos no real. Tendo em vista este bloqueio, os textos mais recentes são atraídos por uma virada estética que, longe da velha discussão benjaminiana sobre a estetização da política (algo que poderia aparecer só como superfície), busca investigar as próprias condições de possibilidade do ver, do falar, do sentir, do perceber, em suma, do viver. Essa virada tenta, por isso, compreender Junho como um fenômeno irreversível de mudança da percepção que altera todo o regime do sensível e forma um campo flutuante pelo qual essa percepção tenta adquirir forma e consistência, enfrentando os velhos signos e as formas de governar a vida. Isso, sem dúvida, não “resolve” a questão (tentar resolvê-la já seria um erro prévio e metodológico), mas aponta para novas possibilidades de reflexão que, neste livro, foram apenas esboçadas. Por fim, preciso reiterar a advertência de que os textos aqui apresentados refletem literalmente esse caminho, correspondendo aos trabalhos desenvolvidos em 2013, 2015 e 2018, como está explicitado no sumário. Embora algumas atualizações tenham sido feitas a partir de notas de rodapé (Notas do Autor – N.A), busquei interferir pouco nos textos para deixar evidente a marca de cada camada do tempo. Sabendo que, para o leitor, textos mais desatualizados podem parecer desagradáveis, optei por iniciar o livro com os textos mais atuais, referentes a 2018, até chegar às intervenções de 2013. Essa estratégia permite também uma melhor compreensão, no decorrer do livro, dos pontos de inflexão e dos problemas enfrentados em cada momento.
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Agradeço a todos os parceiros da Rede Universidade Nômade pela constituição, durante os últimos anos, de espaços abertos pelo revezamento entre prática e teoria e pela coragem de não sucumbir à sedução das velhas trincheiras. Registro também o meu agradecimento a Clarissa Naback e Bruno Cava pela co-autoria em em dois textos que constam neste livro; Giuseppe Cocco e Luiz Felipe Teves por tornar esta publicação possível; Alexandre Magalhães pela interlocução e inquietação permanentes, traduzidas aqui na forma de prefácio. A organização, revisão e escrita dos textos não seriam possíveis sem o apoio da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que me concedeu licença capacitação para a realização de um pós-doutorado na Université Paris Nanterre (França), sendo este livro um primeiro resultado do plano de trabalho estabelecido.
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Levantes: o caminho que é o deserto6 Introdução O ano de 2018 está marcado por uma coincidência cronológica que trouxe o tema dos levantes para o centro da discussão política e acadêmica. É nele que a memória dos cinquenta anos do grande ciclo de Maio de 1968, já inscrita numa duração alongada, encontra a lembrança viva e recente dos cinco anos de Junho de 2013, cujas repercussões são ainda incertas e enigmáticas. É aqui que uma dimensão que não se limita às etapas sucessivas de um calendário fica mais evidente, reclamando outra leitura sobre a relação entre enunciação, tempo, memória e imagem, escapando da organização tradicional estabelecida nas instituições de memória coletiva. Além disso, as várias dimensões e mundos contidos nos levantes reclamam uma relação entre estética e política que não pode ser limitada a mais uma visão sobre o ciclo de revoltas. Trata-se de compreender como os próprios pontos de vistas lançados por dentro do acontecimento7 arrastam a nossa percepção e reclamam, não apenas novas formas de 6. Este artigo é uma modificação da versão original apresentada no dia 06 de dezembro de 2017, durante o II Seminário Internacional Desobediências e democracias radicais: a potência do comum dos direitos que vêm, organizado pelo Grupo de Pesquisa O estado de exceção no Brasil contemporâneo (UFMG). Aproveito para registrar o meu agradecimento aos organizadores, em especial ao Prof. Andytias Soares. 7. Para uma utilização do conceito de acontecimento para analisar os desdobramentos de um levante, conferir: DELEUZE, G; GUATTARI. “Mai 68 n’a pas eu lieu”. In: LAPOUJADE, D. (Org.). Deux régimes de fous et autres textes. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. Versão em português In: DELEUZE, G. Dois regimes de loucos. Textos e entrevistas (1975-1995). Edição preparada por David Lapoujade. Rio de Janei-
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pensar, mas, principalmente, novos modos de existir. Por isso, sustentamos que o movimento anômalo produzido pelos levantes não pode ser simplesmente sobreposto diretamente por uma linha discursiva já formada (uma teoria política, por exemplo), ou uma prática política que nos convoca a tomar partido (uma frente partidária, neste segundo exemplo). É preciso, portanto, buscar outra relação entre visibilidade, enunciação e ação política. É que o acontecimento engendra uma abertura por fora de toda figuração ou representação prévias, alterando radicalmente os nossos modos de ver, de falar e de sentir, ou seja, provocando uma alteração de todos os parâmetros que resulta numa nova distribuição do sensível. Em uma primeira camada, a reviravolta estética é política porque é capaz de fazer-ver novas realidades que, mesmo existindo antes da inflexão, ainda não haviam sido instauradas com força suficiente para gerar uma transformação daquele atual “estado de coisas”. Em uma segunda, é política num sentido pouco usual, porque faz-arrastar o nosso olhar para as condições reais de existência, sem que isso se traduza em um movimento necessariamente voluntário. A conquista de uma nova percepção não é, portanto, mais uma vitória do sujeito diante das intempéries da vida, mas, paradoxalmente, o seu próprio enfraquecimento ou desaparecimento, na direção de uma impessoalidade que faz emergir existências mínimas antes esmagadas pela ordenação política e sensível da realidade.
ro: Editora 34, 2016. Retomaremos este texto no próximo artigo que compõe este livro. Para uma leitura sobre Junho de 2013 a partir do conceito de acontecimento, cf. CORREA, M.D.C. Introdução à filosofia Black bloc. Publicação do site da Universidade Nômade do dia 21 de fevereiro de 2018. Disponível em: www.uninomade.net/tenda/introducao-a-filosofia-black-bloc Acesso no dia 25 de julho de 2018.
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1. Levantes: a paixão da imagem Para iniciar o nosso roteiro, proponho a leitura de uma imagem, El Quijote de la Farola (foto de Alberto Korda), que faz parte da exposição Soulèvements (Levantes), organizada pelo filósofo da arte Didi-Huberman que, depois de passar por Barcelona, Montreal e Cidade do México, chegou em São Paulo no dia 17 de outubro de 2017 e terminou o seu percurso mundial em Buenos Aires, no dia 29 de janeiro de 2018. Integra a exposição um catálogo, contendo não só as imagens, mas uma série de ensaios escritos por conhecidos filósofos contemporâneos, como Judith Butler, Jacques Rancière, Antonio Negri, o próprio Didi-Huberman, entre outros. A escolha da imagem permite trazer algumas questões para a discussão que proponho. Primeiro, do ponto de vista geral, trata-se de pensar o contexto que envolve a iniciativa, realizada logo após os últimos suspiros do ciclo da Primavera Árabe e cerca de cinquenta anos depois das irrupções de 1968. O conjunto de imagens, e de reflexões suscitadas por elas, compõe um mosaico que invariavelmente põe sob questão o Day after dos levantes, seus efeitos, suas permanências e sua possível atualidade. Segundo, a partir de uma questão suscitada pelo próprio curador e por Jacques Rancière, trata-se de indagar se a exposição não reduziria potentes e dramáticos atos de revolta a um “objeto” a ser contemplado nos depurados corredores dos museus. Que relação que as imagens poderiam tecer, mesmo confinadas em um museu, com o material intensivo dos levantes? As duas questões globais nos levam para a escolha da imagem que separamos para iniciar a discussão (voltaremos aos pontos gerais no final da intervenção). Vemos, então, a estranha posição ocupada por um manifestante durante demonstrações massivas e populares de apoio à Revolução Cubana (1959), ocorridas logo após a queda do regime do ditador Fulgêncio Batista. O homem fotografado, como todos os ou-
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tros apoiadores, veste uma espécie de uniforme no qual se sobressai um grande chapéu com a bandeira de Cuba, símbolo que também aparece costurado em sua camisa. No entanto, ao contrário de todos os outros, ele se descola da multidão e se acomoda no alto de um poste de luz, apresentando um olhar inclinado e um gestual que indica reflexão. O que o manifestante estaria pensando? Por que não está seguindo a multidão? Ele se deslocou para contemplar o apoio massivo à revolução ou para lançar sobre ela um conjunto de interrogações? Ele é contra ou a favor de Fidel Castro? Se o caso é de desconfiança, por que ele se veste como todos os outros? Para Didi-Huberman, que comenta esta específica fotografia em uma entrevista sobre o catálogo, a foto tirada por Korda cria um espaço de ambivalência que é próprio da posição tomada pelas imagens, ao contrário do ato de tomar partido, que pressupõe clivagens claras e um espaço já recortado. Para ele, é esta irredutível ambiguidade que gera, desde Platão, tanto nos filósofos como nos militantes da política em geral, uma permanente desconfiança com relação à posição tomada pelas imagens. O problema é trabalhado no livro Quando as imagens tomam posição (2009/2017), a partir da tensão entre estética e política na obra de Brecht, sendo a distinção entre partido e posição descrita da seguinte forma: “Ali onde o partido impõe a condição preliminar de uma partida em detrimento das outras, a posição supõe uma copresença eficaz e conflituosa, uma dialética das multiplicidades” (HUBERMAN, 2017b, p. 113). Assim, enquanto uma tomada de partido estabelece uma geometria baseada em linhas retas e círculos fechados, um “avante!” que, ao mesmo tempo, se dá no ritmo da coesão de grupos de ação (o partido revolucionário, por exemplo), uma tomada de posição opera por desvios permanentes, e por círculos abertos e descentrados que se movem por fora de traçados já dados. É Maurice Blanchot, lembrado tantas vezes
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por Huberman8, que articula, justamente, os três termos: a errância do desvio, os círculos descentrados e o espaço ambíguo ou, em outros termos, o espaço do deserto ou da criação literária. No conhecido texto Falar não é ver, publicado no livro A conversa infinita (1969/1993), Blanchot compõe um diálogo para explicitar que a palavra encontrar não significa obter ou alcançar um resultado prático ou científico. Encontrar (trouver), ao contrário, estaria próximo do movimento de girar, rodear (tourner), dar a volta, andar ao redor. Encontrar um canto, por exemplo, seria bordejar um movimento melódico, fazê-lo rodar. A busca pressupõe constantes desvios, dobras, uma rotação sem retidão que assume como percurso as próprias linhas de inflexão (BLANCHOT, 1993, p. 74). Ela também pressupõe girar em torno de um centro, mas com a peculiaridade de que o centro nunca está ali, esse estranho movimento que opera por uma rotação liberta do jugo da centralidade. O diálogo avança a partir da conclusão que buscar é de fato errar: “dar voltas e mais voltas, abandonar-se à magia do desvio” (idem). É caminhar em regiões fronteiriças e na fronteira do próprio caminhar. Errar é fazer o movimento de retorno, mas deparar-se com o velho ponto de partida, agora turvo ou apagado: “é essa força árida que desloca a paisagem, devasta o deserto, abisma o lugar” (idem). A figura do deserto, por sua vez, aparece também em outro texto de Blanchot, que integra o livro O espaço literário (1955/2011), mais precisamente sobre a relação de Kafka com o seu êxodo para o outro deste mundo: “será que eu habito agora no outro mundo? Ousarei dizê-lo?”. O deserto aqui aparece como um espaço de migração, um local ainda menos seguro que o próprio mundo, um outro do próprio mundo, uma região que é a do erro sem fim, na qual subsiste uma tensão que sempre ameaça o caminho, que pode fechar o espaço do erro, transfor8. Por todos, cf. DIDI-HUBERMAN. G. “De ressemblance en resemblance”, In: BIDAN, C; VILAR, P. (Orgs). Maurice Blanchot, récits critiques. Paris: Farrago, 2003
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mando-o em limite: de um caminho sem objetivo à certeza de um objetivo sem caminho. Blanchot busca no Diário de Kafka, nas anotações realizadas em 1922, a percepção de que as forças áridas impunham aos homens duas opções: “ou buscar a Terra Prometida do lado de Canãa ou buscá-la do lado deste mundo que é o deserto”. Da primeira opção, a obediência ao comando de Deus, o deserto como simples passagem e a promessa de fartura e conforto no fim do caminho. Da segunda, a ausência de qualquer centro ordenador, o deserto como morada nômade e o mundo como um imenso lado de fora – uma viração do próprio mundo (BLANCHOT, M, 2011, p. 85). O deserto contém, ainda, outra força que é a de provocar uma desorientação na distância que existe entre a visão e o objeto visto. O intervalo mensurável que garante a visão de um conjunto se perde e é arrastado por aquilo que Blanchot denomina de fascinação (idem, p. 24). Aqui, o olhar não mantém uma distância necessária e retilínea dotada de uma medida com relação ao objeto, mas é capturado, arrancado, torcido e absorvido por aquilo que é visto. A percepção é desgarrada do seu pacto seguro e produz uma nova visão: “que não é mais possibilidade de ver, mas impossibilidade de não ver, a impossibilidade que se faz ver” (idem). Se o objeto à distância é a imagem, a fascinação é a paixão da imagem. Blanchot denomina esse duplo de “duas versões do imaginário”, que repousa, justamente, numa permanente ambiguidade (idem, p. 289). Esta deixa de ser apenas a confusão causada pelo duplo sentido (que em alguma hora se resolverá no entendimento), para configurar uma tensão de passagem entre aquilo que é feito como imagem do mundo (nosso olhar voltado para os objetos) e aquilo que é desfeito pela imagem, carregando-nos para o meio indeterminado da fascinação (uma visão sem medida). A ambiguidade se torna, portanto, a condição do próprio fascínio.
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Se a escrita pode estabelecer uma relação privilegiada com o espaço literário, é porque ela opera em dois níveis. Primeiro, cortando o uso empírico das palavras no cotidiano afastando-as do campo de visibilidade já posto, ou seja, retirando-as da subordinação existente entre o dizer e o ver (que sentido faria escrever sobre o que já se vê?). Segundo, articulando-se com um murmúrio infinito que emerge das ruínas das palavras e, através dele, ser arrastado pelo poder do indeterminado. E é aí que nos deparamos novamente com a ambiguidade que atravessa a fascinação: o escritor acredita ter posse de toda a fala, de uma espécie de fala original, mas só o faz tornando-se muito fraco: ele mesmo perde o seu Eu, e se põe diante de processos que são cada vez mais impessoais. É assim que Blanchot descreve o paradoxo de Kafka. A caminhada para o deserto significa estabelecer uma relação com forças cada vez mais intensas, mediante um enfraquecimento do sujeito e do cotidiano que o cerca. É o exemplo de escrita contido também no livro O processo, lido aqui por Deleuze e Guattari (DELEUZE; GUATTARI, 1975/2002): o apagamento da figura empírica da Justiça (suas instituições, códigos e procedimentos) torna possível uma visão do processo como relação de força, como fluxos de matéria intensiva e de tensores que circulam sem considerar as fronteiras visíveis do mundo organizado no cotidiano (o processo atravessa a família, os vizinhos, o trabalho, a casa etc.). E é Titorelli, aquele que “faz ver” a Justiça em seus quadros repetidos, que evidencia as duas funções abstratas do processo: viver diante de uma absolvição aparente (a quitação é sempre aparente e antecede uma nova dívida) e uma moratória ilimitada (a dívida se torna eterna). É no espaço ambíguo entre a imagem do mundo e o que desfaz essa própria imagem, que Kafka dá visão (fabrica uma percepção, uma visibilidade superior) às “forças diabólicas” que assombrariam todo o século XX (a burocracia soviética, o americanismo e fascismo) e, por isso, expõe uma engrenagem que será objeto de contínuas resistências. Daí uma segunda ambiguidade: a recusa de Kafka a aderir às narrativas po-
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líticas do início do começo do século XX9 (socialismo, anarquismo, social-democracia, fascismo, os nacionalismos etc.), ou seja, à convocação para integrar um “Povo”, uma grande trincheira, abre espaço a uma relação intempestiva com todas as singularidades que irão resistir aos dispositivos de poder da burocracia, do endividamento e do controle: a paixão da imagem é a própria invenção de um outro povo (minoritário), que não cabe nos recortes de visibilidade e nos dicionários organizados pelos poder. Portanto, se errância, descentramento, ambiguidade e deserto indicam uma recusa a escolher um ponto de partida em detrimento de outros (“tomar partido”), não é para sucumbir a qualquer niilismo ou passividade, mas, pelo contrário, para ascender a uma posição que faz ver e ouvir as resistências anônimas e impessoais que não encontram visibilidade ou enunciação nas representações empíricas do mundo cotidiano. A linearidade da partida, que pressupõe sair de um ponto para chegar a outro, é substituída por posições que são definidas a cada lance e que formam uma curvatura capaz de seguir permanentemente a emergência das singularidades ou, com Didi-Huberman, a coexistência de multiplicidades (no caso de Kafka, o procedimento envolve uma circularidade entre as cartas, as novelas e os romances, que se alternam a cada vez que surge um bloqueio criativo10). Podemos enfrentar agora as duas questões gerais definidas no início da intervenção, isto é, o exame da atualidade dos levantes e sua relação com o tipo de visibilidade produzida por imagens expostas nos museus. Saltaremos da foto de Alberto Korda, sobre o Quixote cubano, para o filme Hiroshima mon amour11, dirigido por Alain Resnais,
9. Sobre a recusa em Kafka, cf. BATAILLE, G.”É preciso queimar Kafka?” In: Literatura e o mal. Belo Horizonte, 2015. 10. É a argumentação de Deleuze e Guattari no capítulo quarto intitulado: “Os componentes da expressão” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 2012). 11. HIROSHIMA mon amour. Direção: Alain Resnais. Cenário e diálogos: Marguerite Duras. Produção: Samy Halfon e Anatole Dauman (Argo Films). França, 91 minutos, 1960.
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com argumento de Marguerite Duras, e que estreou no mesmo ano de 1959. Por que mencionar este filme? Como extrair a partir dele uma interrogação sobre a posição das imagens e a relação entre fascínio e visibilidade? O filme inicia, justamente, com um passeio, em estilo documentário, no museu que abriga as representações visíveis do horror de Hiroshima: fotos das vítimas, mostras de cabelo, ferros retorcidos, ruínas, pedras e reconstituições das cenas de morte e sofrimento. A sequência de imagens é reforçada por uma voz em off, a da própria protagonista, que afirma ter visto tudo em Hiroshima, ter acompanhado o terrível fato pelos jornais, “desde o primeiro dia”. A outra voz em off, do outro protagonista, rebate a afirmação dizendo, repetidas vezes: “você não viu nada em Hiroshima, nada”. Com o fim da sequência documental, é iniciada a outra parte do roteiro que mostra a relação entre uma atriz francesa, nascida na pequena cidade de Nevers, e um arquiteto japonês, nascido em Hiroshima. Uma segunda camada de imagens e representações do bombardeio surge em razão das gravações do próprio filme que motivou a viagem da protagonista, uma produção internacional cujo objetivo é defender “a paz mundial”. Mas agora essas imagens são cruzadas pelo forte caso de amor vivenciado pelo casal, em uma paixão que se intensifica e percorre cada instante da relação entre os dois. A irrupção dessa paixão e a iminente separação que se aproxima, ambos eram casados e afastados pela distância entre França e Japão, estabelece um estado de tensão que culmina na revelação, pela protagonista, do seu primeiro caso de amor em Nevers, um soldado alemão morto no momento da liberação. O trauma da morte do amante (que durou dois dias e foi acompanhada até o fim) e a forte reação da cidade contra o relacionamento, considerado uma colaboração com o inimigo, resultaram na decisão familiar de trancá-la em uma cela fria e úmida. Considera louca por muito tempo, com o final da guerra, sua mãe
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incentiva uma fuga para Paris, justamente no dia que precede o lançamento da bomba atômica. A cena da revelação é o ponto alto do filme. Durante uma conversa no bar, momentos antes da forçada separação, a protagonista acessa as camadas já disformes do passado e as atualiza no presente, chegando a confundir o amante japonês (ex-soldado na mesma guerra) com o jovem alemão. Aceitando a passagem para o impessoal, o próprio protagonista estimula o embaralhamento e vibra por ser o único a ter conhecido a estória, após quatorze anos de silêncio. A intensidade da experiência criaum âmbito de “coexistência de multiplicidades”, com a intromissão recíproca entre passado e presente, Hiroshima e Nevers, aliados e inimigos, memória singular e memória mundial, substituindo o ponto de partida da História (uma memória aprisionada) por diferentes posições ou perspectivas que se alternam em variação contínua. O casal é assim arrancado da experiência do cotidiano (Hiroshima e Nevers retomando a rotina no pós-guerra), e é lançado em um plano não figurado onde o próprio espaço-tempo perde a linearidade e desencadeia um movimento errante, compondo os círculos descentrados de Blanchot. Hiroshima está em Nevers (a liberação, a morte do soldado, a prisão, a loucura, o fim da guerra, a fuga para Paris) e Nevers está em Hiroshima (a derrota japonesa, o horror imposto pelos vitoriosos, a “vitória envenenada” nos termos de Brecht, a reintrodução do Japão no circuito americano e europeu). O passado posto em relação modifica a teia do próprio presente, Hiroshima se torna a possibilidade de reconciliação da protagonista com Nevers (a cura das feridas, a exigência de continuar vivendo, “uma cidade talhada pelo amor”), e Nevers, para o protagonista, se torna o presente de Hiroshima, a imagem da jovem amante quando era livre de suas atuais constrições (a marca da guerra, o casamento, os filhos, a vida adulta), ou a possibilidade de viver um novo amor,extraindo das ruínas da cidade japonesa um novo feixe de horizontes possíveis e novas potencialidades (uma renovada vida pós-horror).
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Assim, a frase que dá início ao filme, “você não viu nada sobre Hiroshima”, ganha uma nova expressão. Deixa de indicar a impossibilidade de experimentar a tragédia em razão de distâncias culturais, nacionais e pessoais – a falta de uma espécie de “experiência verdadeira” – e passa a expressar o próprio limite da visibilidade como mirada para um objeto. Antes da passagem para a fascinação (o plano informe constituído pelo segundo imaginário), era impossível ver Hiroshima, porque a sequência das imagens documentais, paradoxalmente, provocava o afastamento das intensidades que produzem o fascínio, retendo-as como simples ausência (estamos ainda em Blanchot). Para Deleuze, em comentário sobre o filme (DELEUZE, 1985/2013), essa memória é tecida, não por uma identidade coletiva que pode ser produzida em um povo, um país, um grupo, uma família, ou um personagem, mas por “lugares não comuns” que expressam uma multiplicidade de pontos de vista sobre o que aconteceu (DELEUZE, 2013, p. 114). Assim, Resnais inicia com uma memória e uma perspectiva construídas coletivamente (os acervos nacionais, a Biblioteca, o Museu, o filme-documentário de cunho pacifista) para acabar atingindo “o paradoxo de uma memória a dois, de uma memória de várias pessoas (...), que compõe uma memória mundial” (idem). Assim como no espaço literário, o lugar não comum é o espaço de encontro e conexão entre diferentes perspectivas, distintos pontos de vista, alguns ainda em potencial, que permitem, paradoxalmente, a constituição de uma memória comum. Foi preciso fender a superfície das imagens, quebrar o tipo de visibilidade organizado pelos museus (uma memória coletiva que se refere a países, geografias, tempos e pessoas determinadas), para fabricar outra visão, que percorre agora um plano de intensidades e de potencialidades. A própria técnica utilizada por Resnais permite que o salto seja dado: a sequência de fotos do horror é substituída, na última parte do filme, por travellings que percorrem a arquitetura das cidades (Hiroshima e Nevers) dotando-as de uma expressividade própria. Por sua
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vez, a linguagem se descola das imagens, se emancipando do papel subordinado de descrição e buscando o seu próprio limite: as relações entre a cidade, o amor, o corpo, a vida, as mutações imperceptíveis e definitivas produzidas pelo encontro e, por fim, uma pura relação subtraída da própria linguagem. Podemos, então, retornar à questão geral sobre a relação entre a sequência de imagens que anima a exposição e uma indagação sobre a atualidade dos levantes no atual contexto global. Como passar da constituição de uma memória coletiva dos levantes através de imagens que percorrem séculos – transformando-o em um mesmo objeto a ser olhado – para a constituição de múltiplas posições, ou pontos de vista, que podem ser suscitados pela paixão da imagem? Elas poderão arrastar os nossos olhares na direção de novos planos, modos de existência e conexão entre diferentes perspectivas, como no filme de Resnais e Duras? Elas poderão servir de intensificadores para novas formas de percepção que possam seguir os rastros, os traços e as potencialidades deixadas pelos levantes que sacudiram o mundo? Elas servirão como um ponto de partida que elimina esboços de novas possibilidades ou marcarão uma tomada de posição que garante a tensão e a ambiguidade de uma coexistência de multiplicidades? Utilizando essa problematização como um critério distintivo das contribuições deixadas pelos filósofos que participam do catálogo, mesmo que por aproximação, podemos identificar duas tendências gerais que apontam para o modo como a filosofia política e a filosofia da arte têm abordado a atualidade dos levantes. A primeira, busca inscrevê-los em longos fios históricos constituídos através dos últimos séculos, em densas camadas de memória coletiva, em um desfile de imagens que remete aos grandes processos insurrecionais, em um lógica de fins e valores definidos de um pontos de vista externo às próprias dinâmicas, servindo para determinar o que seria um levante democrático ou autoritário, ou o que seria uma ontologia negativa ou positiva. Os levantes
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aparecem como um mundo externo a ser analisado e avaliado e, portanto, a reflexão quase sempre toma a forma de um juízo. Parece ser o caso de Antonio Negri, que reconhece uma multiplicidade de situações de levante (conduzidos por imigrantes, endividados, jovens de periferia etc.) para inscrevê-los nos anos epônimos de 1848, 1871, 1917, chegando aos ciclos altermundialistas e à Primavera Árabe. Eles representariam o paradigma de um “movimento que cresce, continua, se aprofunda, mesmo que por meio de derrotas” (NEGRI, A. 2017. p. 43). Uma espécie de “sedimento secular que leva pessoas a sacudir os limites do poder com cada vez mais força” (idem). Uma “linha vermelha” que ligaria as tentativas de ruptura da ordem vigente a um “projeto de mundo futuro” (idem, p. 42). O campo da indignação, aqui, é reduzido a uma ontologia negativa que precisaria realizar uma passagem para a positividade de uma ontologia constituinte que “sopra da Comuna aos Sovietes, das insurreições metropolitanas às primaveras do novo proletariado” (idem, p. 44). Da mesma forma, parece que Judith Butler, em seu texto para o catálogo, também poderia ser alocada nessa linhagem. A filósofa inicia o texto perguntando quem e o quê se levanta quando há um levante, buscando sua principal motivação em um limite que foi alcançado, uma situação de sofrimento que atinge a marca do intolerável (BUTLER, J. 2017, p. 23). O levante democrático, para ela, teria sempre uma finalidade ou um objetivo que estão voltados para a liberdade, a justiça, a autodeterminação e a igualdade. Ele seria uma forma real e coletiva da convicção de que a sujeição foi longe demais, provocando situações de intolerável injustiça. Embora caracterizado como um acontecimento pontual, que sempre encontraria um fim e um fracasso, o levante se inscreveria na história e conquistaria uma narrativa que ilumina novos ideais (idem, p. 30). Por isso, em boa parte dos casos seria possível traçar uma relação entre os vários episódios, compondo um processo em curso, uma “história cumulati-
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va” na qual “um levante sempre cita o outro e é animado pelas imagens e narrativas do anterior” (idem, p. 31). O problema das duas maneiras de caracterizar os levantes é, justamente, tratá-los como uma sequência de imagens que torna visível uma aspiração por outro futuro que, paradoxalmente, é o que já concebemos do presente projeto para frente. Assim, cada levante funciona naquele mesmo registro do museu de Hiroshima: torna o fato visível, mas com o preço de inscrevê-lo em uma memória coletiva que aponta para grupos, classes, movimentos e um lugar comum. A história funciona como a fiel depositária dos sedimentos e imagens que permanecem a espera da irrupção do próximo acontecimento. A passagem da negatividade da indignação para a positividade do levante constituinte só é apreendida quando passa pelo crivo de imagens já disponíveis no grande corredor da história revolucionária (“da Comuna à Primavera Árabe”). Não são os levantes que lançam uma nova miríade de pontos de vista que arrastam o nosso olhar para o espaço árido das potências informes e de seus mundos possíveis, ainda que inacabados ou precariamente esboçados. Eles permanecem em uma espécie de mundo exterior, esperando que os juízos dos filósofos da política decidam sobre sua natureza, seu estatuto e o seu local no cintilante museu dos acontecimentos insurgentes. Em sentido contrário, a segunda tendência geral pode ser compreendia como a passagem do juízo a uma estética dos levantes. Para David Lapoujade, se a política começa pela estética não é porque ela deva ser estetizada ou vice-versa, mas porque “tudo começa com ver e falar – e porque é pela estética que podemos remontar as condições mesmas da experimentação” (LAPOUJADE, D. 2015, p. 280). É a mesma premissa adotada por Rancière em sua conhecida distinção entre polícia e política: enquanto a primeira ordena o nosso campo de percepção produzindo consenso, a segunda: “faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho” (RANCIERE, J.1996, p. 42).
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Mas como ver? Como tornar mais real aquilo que já existe, mas não possui força suficiente para fender a ordem das palavras e das coisas? Que gestos são necessários para que determinados modos de existência ganhem mais consistência, extensão e intensidade? É novamente David Lapoujade que propõe a discussão, a partir da recuperação de uma “arte da ontologia” no trabalho do filósofo Étienne Souriau. Através da qual, uma estética do Ser é pensada pela infinita variedade de seus modos e maneiras de existência. (LAPOUJADE, D. 2017, p. 13). A primeira afirmação desse pluralismo existencial é que “não há um único modo de existência para todos os seres que povoam o mundo, como também não existe um único mundo para todos os seres (...)” (idem, p. 14). Trata-se de perceber as diversas artes de existir que participam, não sem realizar inúmeras travessias, dos vários planos ou dos vários mundos compostos e decompostos pelas diferentes perspectivas lançadas. Além disso, o critério de distinção entre os modos de existência não é próprio de cada modo, mas se refere às condições pelas quais cada realidade se coloca (idem, p. 34). Assim, dentre os vários modos de existência, os fenômenos levantam estruturas fugidias e instantâneas (ex: uma nuvem rósea no céu) e graças ao seu poder de nuance recompõe toda a paisagem. As coisas, por sua vez, levantam uma permanência e um ímpeto de conservação, formando com outras coisas uma unidade estável e sistemática (ex: o próprio corpo humano). Os imaginários existem enquanto sustentado por crenças e afetos (ex: o monstro no quarto escuro da criança). Os virtuais são esboços, fragmentos, potencialidades que apontam para um leque de novas possibilidades de existência e, portanto, não podem ser confundidos com a simples inexistência (ex: uma pequena história sugestiva ouvida por um escritor). Contudo, dentro dos universos compostos pelos diversos modos de existência, para Souriau, os virtuais possuem um estatuto especial. Eles formam o universo mais rico e mais amplo, uma nuvem que está sempre à nossa volta, mas que é também o mais evanescente e mais próximo do nada (idem, p. 38). Eles não definem uma arte por si mesmos,
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mas exigem que uma arte seja criada, que gestos possam lhe dar uma existência mais real. No mesmo plano, é através dessa nuvem de potencialidades que novas realidades podem ser criadas, ou seja, os virtuais dependem de um gesto de criação, assim como toda a criação depende de uma percepção e de uma exploração dessa nuvem de potencialidades. Saímos, portanto, do domínio das existências estáticas e passamos para o campo de criação e transformação dos próprios modos de existência: da modalidade para a transmodalidade. Voltamos à questão: como perceber e como dar mais consistência aos virtuais? Lapoujade recupera o exemplo da mãe que desarruma os objetos cuidadosamente compostos por uma criança em cima da mesa, fazendo-a chorar. O que faltou a mãe? O que ela não viu? Decerto, criança e mãe enxergam a mesa e todos os objetos sobre elas dispostos. Mas faltou a mãe perceber o modo de existência próprio desses objetos, com suas arquiteturas e virtualidades, do ponto de vista da criança. É por trabalhar com outro conjunto de dados – a exigência de limpar a mesa, organizar a casa, garantir a ordem do mundo – que ela não vê e não é capaz de explorar outras possibilidades (idem, p. 44). Existem, assim, inúmeras aberturas e fendas desenhadas pelos virtuais na ordem das coisas, mas raros são aqueles que se deixam arrastar por essas brechas, tanto para percebê-las, como para traçar a partir delas um espaço de criação. Para uma estética da política o mais importante, portanto, não seria ter um ponto de vista prévio que se lança sobre os levantes, enquadrando-os em imagens e enunciados já formados na mesa dos filósofos da política ou nas reuniões de conjuntura dos ativistas e militantes políticos. Trata-se de mudar a própria arquitetura que sustenta uma perspectiva ordenadora do mundo e reconhecer que os levantes, eles mesmos, nos interpelam com seus pontos de vista e perspectivas, dando consistência e realidade a outros mundos e modos de existência a serem explorados ou seguidos.
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Na introdução que abre o catálogo da exposição Levantes, Didi-Huberman não caracteriza os chamados “tempos sombrios” como o momento que a humanidade precisa enfrentar a força e a aparição súbita de um grande Mal que aterroriza as boas almas do mundo. Para ele, “os tempos sombrios só são tão sombrios por baterem na nossa cara, comprimirem nossas pálpebras, ofuscarem o nosso olhar. Como fronteiras que se impõem em nosso próprio corpo e pensamento”. Eles são “cinza como os dias chuvosos” e como as capas de chumbo que pensam sobre nossas existências (HUBERMAN, D. 2017a, p. 15). Talvez seja o caso, então, de opor ao cinza e à gravidade dos dias chuvosos a luminosidade e a força árida do deserto. Reencontrar o fascínio, que desvia e arrasta o olhar para um espaço mais leve, onde luzes podem ser esculpidas e outros enunciados podem ser encontrados. Fender a ordem das palavras e das coisas, abri-las para novas potencialidades. Interromper os juízos e constituir um campo de experimentação: uma estética dos gestos, dos modos e das maneiras de ser. Seguir os traços e rastros deixados pelos levantes, mesmo que eles nos levem para uma lógica do desvio, da ambiguidade, da errância e de circularidades sempre aberrantes. Cruzar a fronteira, não tomar partido, arrancar a nossa percepção do cinza das guerras morais e de trincheiras que não são nossas. Reencontrar os mundos durante o caminho sem objetivo que é o deserto.
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Junho de 2013: das trincheiras ao trabalho das linhas
Introdução
Nos últimos dias no ano de 2013, um jornalista do programa Roda Viva indagou ao sociólogo Francisco de Oliveira o que teria marcado aquele turbulento ano: as manifestações de rua, a prisão de alguns acusados do Mensalão, ou algum outro assunto que ele achasse relevante. Oliveira respondeu que 2013 seria lembrado pela morte do líder político sul-africano Nelson Mandela, justificando: “é o que fica de uma vida exemplar, enquanto os outros assuntos tendem a ser comidos pelo tempo e, um pouco, pela banalidade do mal, como dizia Hannah Arendt”12. A resposta não só é inesperada, como revela duas características que podem servir como o nosso ponto de partida: a) de um lado, ela aponta para um ceticismo, uma desconfiança que acompanhou as análises de Junho de 2013, desde o início, e que tem a ver com a possibilidade de pensarmos um novo possível; b) de outro, mesmo no caso de reconhecimento da força de Junho, ela nos indica que o tempo exercerá o seu papel inexorável de restauração, condenando-o à irrelevância dos assuntos episódicos e sem maior importância. A escolha, por Oliveira, de eternizar um líder insurgente que, pelo fio longo de décadas, realizou uma consistente transição política, dei-
12. Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fF-hGyhr0-8&t=205s Acesso em 10 de julho de 2018
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xando uma marca “que fica”, parece indicar o desejo de se afirmar o estável diante do efêmero, o perene diante das distrações equívocas do processo histórico. O problema é que esta operação não acontece sem deixar um preço a ser pago. Podemos soldar as peças desgarradas pelos levantes com as melhores ferramentas disponíveis no mercado da conservação, mas as coisas simplesmente não voltam a ser como antes. Do grito ao murmúrio, é uma crise prolongada que continuará ressoando na atualidade. A questão é tratada no conhecido texto de Deleuze e Guattari Mai 68 n’a pas eu lieu (1984/2003), onde os autores ressaltam a dimensão trágica da crise deixada pela não assimilação das transformações de 1968 na sociedade francesa. Diante de uma mutação social que atravessou os poros de cada indivíduo e as espessuras da própria sociedade, não seria suficiente extrair apenas os eventuais efeitos e consequências dentro de uma análise de causalidade política ou econômica. É preciso que a sociedade seja capaz de fabricar agenciamentos coletivos – combinações concretas – que correspondam aos novos modos de existência (relações com o corpo, com a cultura, com o tempo, com a política, com as instituições, com o trabalho etc.) que se tornaram possíveis a partir do acontecimento 1968 (DELEUZE, G. GUATTARI, F. 2003; pp. 215-218). Desse ponto de vista, a sociedade francesa teria revelado toda a sua impotência ao não operar uma reconversão subjetiva em nível coletivo que estivesse à altura de Maio de 1968. Ela “não soube propor nada”, não tinha nada a dizer com relação aos diferentes domínios problematizados pelos levantes (escola, universidade, trabalho, sexualidade, cidade etc.). Não deveria causar espanto, diante de uma subjetividade coletiva esmagada “à esquerda e à direita”, que as reconversões econômicas, as pautas reformadoras propostas pelos agentes políticos (em especial aqueles do primeiro campo), não correspondessem a qualquer transformação efetiva (idem, p. 2016). Mesmo assim, o mal-estar continua lá. A sociedade já viu o que existe de intolerável e também a possibilidade viver de outra forma. Um
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campo de experiência foi aberto e ele resiste ao fechamento provocado pela aguardada normalização do dia seguinte. Ele continua desafiando o enorme desdém manifestado por aqueles primeiros adversários, e também vira as costas para a severa amargura dos novos renegados. Isso não significa, por certo, que uma intocável intenção original dos levantes está mantida, garantindo uma continuidade linear do processo. Quer dizer apenas que o campo ainda é instável, e que dele continua derivando um feixe de novos possíveis13. Um dos aspectos mais interessantes da análise de Deleuze e Guattari é, justamente, a recusa em oferecer um lado óbvio de disputa, aquela trincheira bem definida cuja adesão seria redentora e conclusiva. Não por acaso, o tema Maio de 68 aparece também em suas reflexões sobre as máquinas duais realizada em Mil Platôs, como veremos mais para frente. Em oposição aos recrutadores, que nos espreitam com seus panfletos e suas interpelações binárias, eles oferecem um mundo cheio de “flutuações amplificadas”, de “sucessão de instabilidades”, de “desvios irredutíveis” que desafiam as análises de conjuntura e seus raciocínios pautados pela relação causa-efeito. Em Maio de 68 não ocorreu, o ponto de vista não parte de uma esquerda ou de uma direita, mas de uma “sociedade francesa” que, a despeito da inevitável simplificação conceitual, aparece como o terreno que é atravessado por linhas que continuam fugindo (os modos de vida transformados) e aquela reação impotente que empurra todos para a mesma crise. É da mutação social operada nesse campo que podem sair os agenciamentos coletivos que lhes seriam correspondentes, e não de fórmulas mágicas e vazias apresentadas pelos reformadores de ocasião. Tampouco as reconversões subjetivas se resumem a transformações unívocas e purificadas. Os autores oferecem os diferentes exemplos do New Deal americano e da arrancada japonesa (após a Segunda Guerra Mundial), como reconversões que teriam apresentado iniciativas e cria13. Para uma leitura semelhante, cf. CORREA, Murilo. Introdução à filosofia Black bloc (2018).
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ções correlatas ao acontecimento, com “todas as espécies de ambiguidades e mesmo estruturas reacionárias”. Mas o contrário aconteceu na França, onde cada possível foi sendo fechado, marginalizado, tornado caricatura, produzindo uma situação “catastrófica” (idem, p. 2017). Diante da crise, longe de pertencerem a uma frente política determinada, ou terem uma carreira sólida pela frente, os filhos de 1968 também carregariam as marcas do mal-estar e daquele deslocamento que não encontra os seus agenciamentos coletivos. Como o personagem Rusty James, de Francis Ford Coppola14, eles são estranhamente indiferentes, mas muito bem informados e ativos. Sabem que nada pode corresponder às suas novas subjetividades e capacidades criativas, e que as reformas propostas lhes são contrárias. Abandonados, decidiram cuidar da própria vida e, fazendo isso, “preservam uma abertura, um possível” (idem). Seriam esses os desígnios de Junho de 2013 e de seus herdeiros? Pouco ou nada teria restado daquele outono que fraturou todos os consensos e exigiu mudanças em todos os campos da vida política e social brasileira? Depois de Junho a paz teria sido total, na feliz expressão do filósofo Paulo Arantes?15 Sem dúvida o mais difícil não é responder “não” a essas questões, afirmando que a cada nova ocupação de escola pública, a cada protesto mais acalorado, ou a cada nova frente de lutas, Junho está ali. O difícil é continuar pensando Junho a partir de sua dimensão flutuante e instável, de uma insistência da percepção que tenta encontrar as combinações concretas, busca fabricar as reconversões que poderiam favorecer e prolongar os novos modos de vida. Para isso, seria preciso percorrer as feridas ainda abertas nos estados sociais anteriores, por mais que elas estejam localizadas na organização da percepção e nos modos de fazer política do chamado progressismo brasileiro. Aqui é preciso retomar o enigma de Junho, desde a sua pri14. RUMBLE Fish. Diretor: Francis Ford Coppola. Produtor: Doug Clayborne. EUA, outubro de 1983. 15. Cf. ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. E outros estudos sobre a era da emergência. Coleção Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2014.
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meira irrupção: a despeito de todos os narizes torcidos, a sua voragem continua demolindo consensos e ignorando todas as tentativas de torná-lo um tema menor, uma arma antiga e inútil para as trincheiras que, hoje, realmente importam. O primeiro objetivo deste texto é, portanto, compreender como diferentes modos de encerrar Junho de 2013 aparecem em leituras que podem ser localizadas à esquerda do campo político-teórico. Em um segundo momento, lançaremos algumas indicações que separam uma lógica da trincheira, a partir dos quais um governo biopolítico acaba sendo restaurado, e um trabalho das linhas, que constitui uma forma de pensar os prolongamentos dos levantes a partir do campo móvel da fabricação de uma malha sempre crescente. Por isso, a menção ao termo trincheira não é apenas um dado secundário. Através dela, tentamos caracterizar uma forma de esvaziamento de Junho de 2013 que opera através da convocação para uma batalha heterogênea aos pontos de tensão estabelecidos pelos levantes, possuindo duas dimensões: a primeira, refere-se à imposição de uma forma pré-estabelecida ao material intensivo de Junho, recortando e conformando suas linhas aberrantes (um espécie de hilemorfismo político); a segunda, diz respeito às formas moleculares de gestão das subjetividades que reconhecem essas linhas, mas buscam governa-las a partir de seus próprios fluxos16. Do ponto de vista teórico, veremos que nas três leituras estudadas a potência de Junho de 2013 acaba esvaziada, ao ser apreendida, respectivamente: como fenômeno que fortalece uma coalizão centro-libe16. O termo trincheira poderia ser utilizado também para explicar o fenômeno de extrema homogeneização e simplificação do pensamento que acontece no interior do novo formato do lulismo (em especial a partir de 2016) e, atingindo também a identidade de direita, no campo das guerras culturais (tema que retomaremos mais a frente). Do ponto de vista político, ele se refere às pretensões de enfrentar a crise política a partir de uma ideia de unidade, que pode ser entendida nos moldes clássicos das frentes de esquerda, ou do neonacionalismo que surge no novo campo conservador. Seria o caso de pensar, então, como a continuidade da dimensão criativa de Junho enfrenta o desafio ético de escapar dessas duas formas de homogeneização.
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ral ou neoliberal, como mera força negativa de ruptura, como simples efeito de transformações no modo de acumulação, ou como força ainda não “compreendida” pelos setores progressistas. Portanto, para retomarmos os fios soltos deixados por Junho de 2013, é preciso ultrapassar esses blocos discursivos e encontrar aquilo que Nietzsche chamava de “traços do veneno”, um feixe intensivo que busca escapar nas novas restaurações e controles. Longe de representar apenas uma disputa de narrativa sobre os levantes, o esforço de encontrar essas pistas está profundamente relacionado à possibilidade de imaginação de alguns agenciamentos coletivos adequados ao acontecimento Junho de 2013. É que um dos efeitos produzidos pelas análises que esvaziam 2013 seria favorecer uma recondução, mesmo que pelo medo ou desencanto, para as narrativas de trincheira que polarizam a sociedade brasileira, tornando ainda mais difícil uma saída para a crise. Ao perdermos os pontos possíveis para operar as ditas reconversões subjetivas, reforçamos o hiato crescente entre as mutações sociais já realizadas e as transformações necessárias nos diversos domínios problematizados pelos levantes.
1. A primeira trincheira: a disputa de coalizões e o pacto desenvolvimentista As análises do sociólogo André Singer ganharam notoriedade nos últimos anos, principalmente a partir da caracterização do lulismo como um fenômeno novo e contraditório que encontraria sua principal sustentação no apoio eleitoral conferido pelos mais pobres a Lula nas eleições presidenciais de 2006. Em Os sentidos do lulismo (2012), Singer argumenta que, ao contrário da classe média e dos estratos mais escolarizados, a maior parte da “massa de miseráveis”, dos “subproletariados”, no conceito de Paul Singer, teria encontrado no governo Lula uma forma progressiva de enfrentar a pobreza sem a produção de grandes rup-
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turas ou desordens associadas às propostas dos setores mais radicais da esquerda brasileira (SINGER, A. 2012, pp. 20-21; pp.77-78). O realinhamento eleitoral que, não só garantiu o segundo mandato do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2006-2010, como conferiu um fôlego extra para a sigla diante corrupção conhecida como Mensalão, revelaria o aparecimento de uma nova base social que, diante da fuga dos estratos médios, não titubeou em garantir o projeto iniciado nos anos anteriores (idem, p. 16). Longe de traduzir apenas uma conquista tática e limitada ao jogo eleitoral, para Singer, a mudança de base social que dá origem ao lulismo determinará uma série de importantes consequências, não somente políticas, mas também econômicas e sociais. Primeiro, o realinhamento determinou uma nova e intensa polarização político-social, que não se expressa mais como conflito ideológico (esquerda e direita), mas como embate da massa de pobres em oposição às classes médias e os ricos, agora reorganizados em torno do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Portanto, ao contrário daqueles que, como veremos, identificam no lulismo um fenômeno de pacificação político-social, Singer defende ter ocorrido uma nova “repolarização da sociedade brasileira” e uma “repolitização da política partidária” (SINGER, 2012, pp. 34-36). Segundo, a emergência de uma nova base social trouxe implicações definitivas para o próprio PT e sua estratégia programática. De um lado, pelo crescimento geral das fileiras partidárias (chegando a 1.2 milhão de filiados) e por uma identificação dos pobres com a liderança de Lula; de outro, pelo fortalecimento de uma agenda reformista que não fazia parte das intenções originárias do partido, naquilo que Singer identifica como o conflito entre a alma fundadora de Sion e a alma pragmática e conciliatória de Anhembi (idem, pp.101-124). Terceiro, a entrada em cena de um novo campo de apoio, heterogêneo ao conhecido arquipélago formado pelo novo sindicalismo, pelas comunidades eclesiais de base, pelos movimentos sociais e pela intelectualidade oriunda dos estratos médios, deu corpo a uma acomoda-
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ção contraditória entre os dois espíritos (um socialista e radical, o outro mais neoliberal e ordeiro), na direção de um reformismo fraco que empurra as transformações sociais necessárias para o ritmo lento e conservador da perspectiva de longo prazo (idem). É a partir dessa nova força social e da acomodação instável de contradições produzidas pelo lulismo, e este é o quarto ponto, que Singer irá encontrar as condições de possibilidade para um progressivo giro desenvolvimentista que resgataria a ideia de um “sonho rooseveltiano”, isto é, um novo “marco regulatório da política brasileira por período extenso”, marcado pela eliminação da pobreza extrema (conquista do primeiro mandato do governo Lula), pela valorização constante do salário mínimo, pela redução histórica do desemprego, pelo fomento ao mercado interno, ao crédito e ao consumo, pela flexibilização das contas públicas possibilitadas pelo aumento de receita, pela desoneração fiscal dos setores produtivos, pela utilização dos bancos públicos para diminuição dos juros e estímulo ao investimento, pela internacionalização de grandes empresas nacionais, pela priorização de novos programas de infraestrutura e pela multiplicação de grandes projetos de moradia de popular (idem, pp. 125-168). Tudo a indicar que o Estado, finalmente, teria resolvido “tomar conta da economia”, estimulado por índices de aprovação que giravam em torno de 70%, por um PIB crescente (à exceção do ano posterior à crise global) e pela promessa de forjar, enfim, um país sem miséria onde a predominância recairia em uma nova classe média. A reação brasileira à crise de 2008 comprovaria que a virada continha “elementos autônomos” aos rumos definidos no cenário internacional, especialmente pela aposta do lulismo no mercado interno e na reconstituição de elementos estatais de intervenção na economia (idem, pp. 179-180). Levando em conta, portanto, esses quatro elementos do lulismo descritos por Singer, é possível analisar as consequências dessa análise a partir da relação vertical estabelecida pelo sociólogo entre as coalizões realizadas “por cima” e os conflitos e expectativas encontrados “em bai-
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xo”. A relevância do tema é indicada pelo próprio autor, que enxerga nesses embates não só a possibilidade de sucesso ou não do lulismo, como uma verdadeira luta de classes e a futura viabilidade do projeto da classe trabalhadora (idem, pp. 200-231). Na ponta mais acima da disputa, ocorria no interior do reformismo fraco um verdadeiro conflito entre a coalizão rentista (defensores da estabilização monetária, do controle rígido da inflação através de aumentos da taxa de juros e da liberdade de investimento estrangeiro) e a coalizão produtivista (defensores de uma maior protagonismo do estado na economia com flexibilização dos gastos públicos, de medidas industrializantes e de um certo grau de protecionismo econômico). A posição de Singer é clara e se desdobra em dois pontos que são interligados: a) somente a coalizão produtivista pode determinar o sucesso do lulismo, podendo romper com o simples papel de árbitro assumido por Lula em seu governo; b) é o governo Dilma que representará, como veremos, o ponto mais avançado do conflito entre produtivistas e rentistas, já que, a partir de 2010, houve uma tentativa mais sistemática de ruptura através daquilo que o autor denomina de ensaio desenvolvimentista. Por conseguinte, o sucesso da coalizão produtivista também dependeria de uma equação existente no campo das classes sociais brasileiras. O resultado não deixa de ser esquemático: a) o subproletariado não possui poder de organização e, por isso, necessita de uma solução “por cima” para resolver os graves problemas brasileiros ligados à miséria e à desigualdade; b) ele se coloca, paradoxalmente, como entrave ao sucesso do lulismo porque não possui interesse imediato em fortalecer o pacto produtivista e aceita conviver com juros altos, consumo por crédito e inflação baixa17; c) cabe à fração mais antiga da classe trabalhado17. Como o próprio autor admite, em suas análises ecoam as famosas considerações de Marx sobre o 18 de brumário na França, em especial no ponto em que o filósofo alemão explica o apoio dado pela massa de camponeses e pelo lumpemproletariado de Paris a Bonaparte III. Cf. MARX, K. O 18 de brumário de Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011. O livro, chave para uma interpretação materialista da história,
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ra e aos movimentos sociais o trabalho de “politização” do subproletariado, através de descoberta de interesses comuns (pleno emprego, por exemplo), e a construção de uma força que possa robustecer a coalizão produtivista (idem, p. 166). Não causa espanto, portanto, que o subproletariado, isto é, a grande massa de miseráveis do Brasil, cujas origens poderiam ser encontradas na escravidão, apareça literalmente como um obstáculo à onda democrática dos anos 1980, seja por seu viés capitalista e conservador (o desejo de prosperidade e de integração à ordem), seja pela sua total incapacidade de transformar a sociedade de baixo para cima, porque isso não estaria “ao seu alcance”. Caberia então, segundo Singer, às organizações clássicas, como Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), lidar com o dilema, atraindo o subproletariado para as suas fileiras organizativas. Mas isso significaria, também, uma ruptura com o tom conciliatório do lulismo e sua relação com pobres quase bonapartista: “destituída da possibilidade de agir por meios próprios, a massa se identifica com aquele que, pelo alto, aciona as alavancas do estado para beneficiá-la” (SINGER, A. 2012, p.37). Tendo estabelecido essas premissas, não é difícil imaginar a dificuldade de Singer para lidar com as dimensões não representativas, intempestivas e múltiplas de Junho de 2013. É que o acontecimento embaralha tanto as relações temporais de causa e efeito (sejam elas históricas, políticas ou econômicas), como a relação entre formas já instituídas que permitem o enquadramento sociológico. Daí o seu caráter de dupla sublevação: primeiro, da temporalidade longa do lulismo, será também retomado por Singer para diferenciar as jornadas francesas de 1848 das jornadas brasileiras. Para uma utilização do texto de Marx em direção oposta, escapando dos reducionismos sociológicos, e que guarda estreita ressonância com o nosso argumento, conferir: CAVA, Bruno. “O 18 de Brumario brasileiro”. In: PEREIRA, Márcio. et al. (Orgs). A terra treme: leituras do Brasil de 2013 a 2016. Rio de Janeiro: Annablume, 2016. Conferir também: SIBERTIN-BLANC, Guillaume. “Penser (dans) la conjoncture”. In Cahiers du Centre de Recherches Matérialistes, n.º 1, 2011. Disponível em: http://grm.revues.org/77 Acesso em 11 de julho de 2018.
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da estabilidade de seus pactos políticos e econômicos e de sua relação instrumental com os pobres; segundo, da premissa, sempre retomada em Singer, que é possível decifrar uma disputa de forças através da presença, em cada polo, de um projeto ou uma imagem acabada da sociedade18. Do ponto de vista da produção de subjetividade (da instauração de novos modos de existência), o esquematismo sociológico, operando com imagens achatadas das classes sociais, não é capaz de perceber os tremores moleculares e as linhas de fuga que desestabilizam constantemente o chamado “campo social”. Primeiro, produzindo relações e coalizões mútuas que passam por baixo e para além da análise comportamental das “frações de classe”; segundo, recusando a convocação para participar das coalizões “por cima” e suas representações clássicas, virando as costas para o embate binário entre produtivas e rentistas; terceiro, como veremos também em Eder Sader, forjando suas próprias formas de organização, seja nas lutas do cotidiano, seja nos momentos de irrupção dos levantes. Então, aquilo que do ponto de vista de uma forma pré-concebida que deve ser aplicada só poderia ser considerado como um obstáculo passa a se revelar como um novo campo de possibilidades. Uma nuvem de virtualidades clamando por instauração, como vimos em Souriau. Para oferecermos um exemplo da multiplicação desses gestos, no percurso que levou os moradores das favelas da Rocinha e do Vidigal para as calçadas do Ocupa Cabral, no rico bairro do Leblon, e, em seguida, todos para o palácio das Laranjeiras (sede do governo do Rio de Janeiro), toda uma cartografia dessas conexões poderia ser estabelecida: o enfrenta18. Em razão desse pressuposto, o subproletariado só pode aparecer como massa sem imagem suscetível a ser incorporada por algum modelo: “O ponto central a ser levado em conta é que o subproletariado tende a desaparecer conforme o programa que ele apoia se converte em realidade. Como o projeto do subproletariado é sumir ele não possui um modelo próprio de sociedade, desejando (inconscientemente) incorporar-se àquela que é moldada pelos interesses de outras camadas” (SINGER, A. 2012, p. 156). Retomaremos adiante a crítica sobre as tentativas de imposição de uma forma a Junho de 2013 (o que chamamos de hileformismo político), a partir da perspectiva do trabalho das linhas.
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mento da violência policial nas favelas (o caso Amarildo como referência) que se conecta com a violência sofrida (mesmo que em intensidade bem menor) pelos manifestantes, a luta contra as remoções forçadas que se articula com a crítica do urbanismo excludente dos megaeventos, a crítica da total ausência de serviços públicos essenciais, com as denúncias de corrupção e desvio de recursos que deveriam ser investidos em áreas prioritárias, enfim, muitos fios que constituem um mesmo tremor diante do intolerável. Na linha que estamos sustentando, essas conexões trazem à tona formas de existir – dão consistência e amplitude a modos de vida – que estavam, antes, sufocados e esmagados pela normalização do cotidiano. Eis o sentido do ato de nomeação chamado Amarildo. Para tentar apreender o contágio dessas alianças heterogêneas, especificamente no debate clássico entre classe e massa, Deleuze e Guattari já haviam notado os limites de uma visão atrelada ao funcionamento das máquinas duais típicas das sociedades estatais modernas. Estas organizariam não somente as divisões binárias (de classe, sexo, faixa etária, função ocupacional etc.), mas subordinariam em torno de si todos os fenômenos possíveis de tripartição. Disso decorre, por exemplo, que na sociologia marxista mobilizada por Singer, e em tantas outras que pretenderam analisar o lulismo, o subproletariado, como força sem modelo (ou seja, matéria que deve ganhar uma forma, na linha do hilemorfismo aristotélico), só pode ser concebido a partir de sua iminente subordinação, seja ao proletariado ou à fração da burguesia nacional, seja à burguesia internacional e ao poder dos rentistas (ambas oferecendo um projeto de sociedade). Em outra linha, para Deleuze e Guattari, se as classes tendem a ser talhadas ou a se cristalizarem a partir das massas, essas últimas “não param de vazar, de escoar das classes”. Para os autores, sendo uma noção molecular e irredutível ao tipo de segmentação molar da classe, as massas não têm o mesmo movimento, a mesma repartição, os mesmos objetivos e nem as mesmas maneiras de lutar. Em Maio de 68, invocado
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por eles também em Mil Platôs (1980), foi todo um fluxo molecular que começou a escapar, sendo “minúsculo no começo, depois aumentando sem deixar de ser assinável” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1996, p. 89). A irrupção intempestiva do acontecimento, no entanto, teria deixado “com raiva” muitos políticos, militantes partidários, sindicalistas e pessoas de esquerda em geral, que não se cansavam de afirmar que as condições ainda não estavam dadas, que ainda não era o momento. É que justamente Maio de 68 os destituiu de “toda a máquina dual que fazia deles interlocutores válidos” (idem). Por isso, não puderam compreender nem as mutações sociais ocorridas no campo das fugas e dos movimentos moleculares, nem, a partir deles, toda uma nova distribuição que foi efetuada no próprio campo molar, apontado para novas relações no sexo, no trabalho, nas classes, nos partidos etc. A partir dessa chave, podemos compreender a razão pela qual as proliferantes análises sobre o lulismo em Singer foram substituídas por titubeantes reflexões e conclusões sobre Junho de 2013. Destituído da máquina dual, do poder explicativo da contradição entre coalizões, classes, frações de classes e arbitragens “por cima”, coube ao sociólogo tentar enquadrar o acontecimento no interior das velhas categorias, percorrendo dados e informações em busca das causalidades perdidas. Aí reside, como vimos na introdução deste livro, a distância qualitativa entre o ano de 2012 (quando o tema central era os possíveis sentidos do lulismo) e o ano de 2013 (quando irrompeu o enigma de Junho, colocando novos possíveis que surpreenderam as análises anteriores). Em primeira tentativa de compreensão, em artigo intitulado Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas (201319), escrito ainda sob o calor e a pressão dos levantes, Singer afirmou que hesitava em usar o termo “jornadas”, pois, diferentemente do processo insurrecional francês de 1848, descrito por Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, os
19. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002013000300003 Acesso em 11 de julho de 2018.
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alicerces da ordem não haviam sido questionados (SINGER, A. 2013). Ainda assim, segundo ele, era preciso se debruçar sobre o tema, sendo bem provável que aconteceria com Junho aquilo que aconteceu com Maio de 1968, ou seja, os acontecimentos (Singer extrai do filósofo Paulo Arantes o conceito, mas como um termo genérico) continuariam suscitando perplexidades por muito tempo. É interessante perceber que, neste artigo, a inscrição da máquina dual ocorre em termos distintos da análise realizada em Os sentidos do Lulismo (2012), o que já atribuímos ao embaralhamento das cartas provocado por Junho. Em primeiro lugar, Singer faz menção a um novo proletariado presente nos levantes, termo que encontra repercussão direta nos trabalhos de Ruy Braga sobre o precariado, condensados também em 2012, e nas pesquisas de Jessé Souza sobre os batalhadores do Brasil, publicadas em 201020. O novo precariado corresponderia, em termos gerais, aos jovens ou jovens adultos, muitos com alta escolaridade, que encontraram emprego no período áureo do lulismo, mas que sofriam com baixa remuneração, rotatividade e precarização, permanecendo em estágio intermediário entre a pobreza e a classe média e tradicional. A outra figura presente em Junho seria a classe média e média tradicional, cujas características seriam alta escolarização com boa ou elevada renda. Em pesquisa empírica citada por Singer, o instituto Plus Marketing constatou que metade dos manifestantes teria renda superior a cinco salários mínimos, sendo que 20% teriam renda acima de dez salários, com exceção do Rio de Janeiro, onde as manifestações teriam conotação fortemente popular (88% dos participantes possuíam renda até cinco salários mínimos, sendo que 34% até um salário mínimo). Definidas as duas figuras presentes em peso nas manifestações de 2013 – o novo proletariado e a classe média – Singer realiza, mesmo re20. Poderíamos afirmar que Junho de 2013 forçou Singer a desenvolver um tema que só aparece rapidamente em O sentido do lulismo, especialmente no último capítulo do livro. Trataremos da pesquisa de Ruy Braga no tópico seguinte. Para o trabalho de Jessé Souza, cf. SOUZA, J. Os batalhadores brasileiros. Nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
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conhecendo a insuficiência dos dados disponíveis, duas operações analíticas. Primeiro, identifica um cruzamento dessas classes a partir do segundo momento das manifestações (após a repressão policial em São Paulo, com a explosão da participação nos atos); segundo, mantendo as premissas do livro de 2012, enxerga evidências de que o subproletariado pouco ou nada teria participado dos protestos. Além disso, destina à anacrônica categoria dos lumpemproletários a pecha de terem sido responsáveis pela saque ao centro velho de São Paulo, “lembrando cenas dignas das manobras fascistas do século XX” (idem). Com o afastamento das categorias que, para Singer, são desprovidas de qualquer agência política, a análise conduz aos dois polos das manifestações, o primeiro popular e voltado para a esquerda, o segundo, tradicional voltado para a direita. Mas Singer, nesse momento, não vê em Junho a predominância de um dos polos, e sim a emergência de um centro, que articula as críticas dos dois campos (gastos excessivos, desigualdade na vida urbana, serviços públicos, de um lado; corrupção, excesso de estado, do outro), para trazer uma inspiração “pós-materialista” (idem). O centro pós-materialista é marcado, portanto, pela articulação das duas bandeiras através da afirmação de uma sociedade unitária e moderna que enfrenta um estado atrasado e opressor. Referindo-se ao trabalho do cientista político Ronald Inglehart, a ascensão desse campo político estaria ligada às sociedades que caminharam para a resolução dos seus problemas materiais ligados à segurança física e econômica e poderiam se direcionar para as questões ligadas à autoexpressão e qualidade de vida. Revelaria ainda uma transição de gerações, onde aqueles que já estão socializados em um ambiente de classe média, “livres do fardo material das gerações anteriores, vão se tornando maioria, provocando mudança profunda na maneira de enxergar a política por parte dos cidadãos” (idem). Na conclusão do artigo, o novo proletariado volta à cena através do questionamento sobre qual posição ele teria tomado no contexto dos
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levantes e qual seria o caráter de sua intervenção no futuro. É que para Singer, os trabalhadores precarizados ainda trariam fortes e reais demandas materialistas e distributivistas, para as quais o centro não teria resposta, a não ser em fórmulas genéricas de participação social e diminuição do Estado. Não seria o caso, para ele, dos campos da esquerda e da direita, ambas com visões bem claras sobre o assunto, a primeira, defendendo uma maior intervenção do Estado no campo econômico e social; a segunda, apoiando uma agenda de privatização e diminuição do papel do poder público. A questão colocada em Junho seria, então, “para que lado pendeu o novo proletariado?” e, no futuro, para seria importante continuar indagando para onde ele estaria caminhando. A retomada do dualismo e da imposição dos modelos por Singer percorre, portanto, um caminho mais acidentado e ocorre de forma gradual. Primeiro, o autor parece recusar o predomínio da direita ou da esquerda para explicar Junho, apelando para a ideia de formação de um centro pós-materialista, composto por uma nova geração mais próxima da classe média; segundo, ele exclui da análise uma possível participação positiva dos miseráveis ou excluídos do campo do trabalho, chegando a reeditar o ranço histórico contra os supostos lupemproletários e sua tendência em colaborar em ações de extrema direita; terceiro, introduz a participação do novo proletariado como uma espécie de fiel da balança, implicitamente convocando-o a tomar partido no conflito entre a coalizão produtivista e a coalizão rentista. Com isso, o sociólogo reage à multiplicidade de Junho de 2013 através de uma arquitetura de argumentos que permite, não somente, uma visão causal e temporal ainda interior ao lulismo, como a retoma da manutenção da máquina dual e de suas formas sempre pré-concebidas. Isso porque tanto a hipótese do centro, como a do novo proletariado, são utilizadas para reforçar as conquistas do governo Lula e Dilma e a presença, mesmo que implícita, do sonho rooseveltiano narrado no livro anterior. A primeira comprovaria a formação de uma nova geração mais próxima da classe média; a segunda, confirmaria os efeitos positi-
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vos e contraditórios da alta taxa de emprego e do aumento da inserção universitária. E, de quebra, a questão da corrupção aparece como uma bandeira unicamente da direita, pela qual se tenta “convencer” os setores populares da relação entre os desvios de recursos e as carências sociais, argumento que Singer considera falacioso. Tendo inscrito Junho no quadro temporal-causal do lulismo, e esvaziando as figuras que poderiam surgir por fora do proletariado, Singer põe para funcionar a máquina dualista através, primeiro, da neutralização de qualquer dimensão materialista do que ele chama de centro político (reduzido a ingênuas plataformas de participação) e, por conseguinte, chegando à conclusão de que as disputas relevantes estariam limitadas às opções reduzidas à esquerda e à direita, ou seja, entre as grandes coalizões produtivistas ou rentistas. Além disso, uma vez que Junho de 2013 claramente rompeu com a possibilidade de sustentar a continuidade da dinâmica de arbitragem “bonapartista” operada por cima que sustentava o lulismo, a figura do mediador é, agora, preenchida pelo novo proletariado, possível termômetro do futuro sucesso entre as forças estatizantes e as liberalizantes. É interessante notar que, apesar de uma final convocação à trincheira do que seria o verdadeiro conflito, os levantes empurraram Singer, pelo menos por um instante, para uma leitura realizada desde baixo, rompendo com a apatia teórica presente no marco genérico da categoria do subproletariado. Em 2016, este hiato será fechado novamente. Em artigo intitulado A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista (2016), Singer retoma com todo fôlego a análise do lulismo a partir de grandes contradições entre classes e coalizões, afirmando: Partimos da hipótese de que, sob a condução de Dilma, o lulismo apostou em uma coalizão de forças entre industriais e trabalhadores que fracassou, afundando o navio que deveria levar o Brasil para fora da arrebentação gerada, em 2011, pelo segundo Tsunami de dificuldades mundiais, isto é a vol-
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ta da crise financeira internacional iniciada em 2008. (SINGER, A. 2016, p. 23).
Para entender esta afirmação é importante lembrar, como vimos acima, que em Os sentidos do lulismo (2012), Singer havia afirmado que o desenvolvimentismo foi a fórmula de articulação entre as duas almas do PT, pois ela não seria nem radicalmente neoliberal, nem radicalmente socialista. Além disso, a coalizão produtivista dependia de uma aliança entre a direção política do proletariado e dos movimentos sociais com o subproletariado, e destes com as forças industriais. O empecilho fundamental seria não só a postura passiva do subproletariado, mas a própria acomodação do lulismo na arbitragem conciliatória. Levando isso em consideração, não é difícil concluir que o governo Dilma, para Singer, foi bem mais radical e corajoso que o antecessor: “enquanto Lula foi conciliador, Dilma decide entrar em combate com frações de classe poderosas e resistentes” (idem, p. 33). Embora, os vetores desenvolvimentistas já teriam sido iniciados durante o governo Lula (especialmente, em 2006 com a ascensão de Mantega e, em 2007, como Plano de Aceleração do Crescimento – PAC), é Dilma que teria lançado uma ruptura política com a relação à situação anterior, através da decisão de “acelerar o lulismo”. Por isso, Singer acaba por adotar nova nomeclatura, marcando a passagem de uma política centrada no reformismo fraco, para uma aposta diversa que ele intitula de ensaio desenvolvimentista (idem). As consequências dramáticas dessa tentativa são basicamente descritas pelo sociólogo como o resultado de uma longa e acirrada disputa entre as coalizões que teria se aprofundado a partir da decisão de Dilma de cruzar a linha estabelecida pelos financistas, em especial o debate sobre as taxas de juros utilizadas para remunerar o capital. A batalha dos juros teria sido, no entanto, apenas a gota d’água de uma virada desenvolvimentista que contou com um novo conjunto de medidas: a redução forçada dos juros, o uso intensivo do Banco Nacional de Desenvol-
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vimento Econômico e Social (BNDES), a aposta na reindustrialização através do plano Brasil Maior, a política de desonerações do setor produtivo, o novo plano de logística para a construção de rodovias e ferrovias, a tentativa de reforma do setor elétrico, a desvalorização do real, o controle de capitais com mudança de alíquotas e o lançamento do programa de proteção do produto nacional através do aumento de impostos e exigências de conteúdo local (idem, pp. 28-32). No entanto, como demarca Singer, Dilma teria ido do céu ao inferno em apenas três anos, entre 2012 e 2015, vendo sua popularidade ser reduzida a 13% e o seu segundo mandato confiscado pelo impeachment. A explicação, como podemos antever, reside no ataque promovido pela coalizão financeira, pela perda de apoio dos empresários e industriais que não estariam interessados no pleno emprego e nas pressões salariais e sua respectiva “cooptação” pelas forças rentistas. Assim, resumidamente: “ao mesmo tempo que conduzia uma luta gigantesca contra o núcleo do capital, [Dilma] se indispôs com as franjas produtivas, sem atentar que o movimento pretendido precisaria de forte apoio social” (idem, p. 51). Para desapontamento de Singer, o povo não apareceu na trincheira, já que Dilma protagonizou uma “guerra oculta, à qual a classe trabalhadora permaneceu alheia” (idem, p. 54). Além disso, retomando o assunto que nos interessa, Junho de 2013, apesar de suas contradições, teria se revelado com uma força ligada aos interesses rentistas: “parte dos segmentos envolvidos, futuros votantes de Marina Silva e Aécio Neves, acabaram por engrossar a onda em favor de reformas liberalizantes” (idem, p. 41). Assim, pela forte composição social ligada à classe média e a “adesão de membros da nova classe trabalhadora” (idem, p. 42), a agenda liberalizante se tornou possível. A resposta aos protestos, segundo Singer, determinou uma nova agenda de contenção de gastos, constituindo a responsabilidade fiscal um dos cinco elementos contidos no pacto oferecido em 2013 para a sociedade brasileira. Ainda assim, a alta taxa de emprego e dos salários,
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além da promessa de enfrentar a coalizão rentista representada pelo PSDB, garantiu a reeleição para o segundo mandato. E eis que Dilma dá “um cavalo de pau que deixou a esquerda perplexa” (idem, p. 43), apontando para uma inflexão que significará o desmonte do ensaio desenvolvimentista. É evidente que para Singer o problema não reside no próprio ensaio e seus profundos impactos políticos, sociais, econômicos e ambientais, mas, entre outros motivos, no abandono da burguesia industrial às fileiras da coalizão produtivista, o que se explicaria pela sua posição na “luta de classes” (uma reação de classe à perda do controle sobre a política econômica com o pleno emprego e o incremento do número de greves e da pressão salarial). O dualismo está salvo e a pergunta contida no artigo anterior já encontrou reposta: os levantes turbinaram a coalizão rentista e liberal. Junho de 2013 não poderá, aos olhos de Singer, ser visto como um levante realizado contra os efeitos das próprias combinações tóxicas entre desenvolvimentismo e neoliberalismo, e os seus impactos difundidos por todas as franjas territoriais e sociais brasileiras, incluindo gestão autoritária e saque generalizado às riquezas comuns. Nem pela lógica de contágio molecular que fez tremer todos os segmentos de organização social, provocando mutações subjetivas e de percepção que ainda estão em curso. É que acontecimento, como flutuação permanente de uma experiência radical, se constitui justamente como recusa às máquinas binárias, suas linhas de corte e organização e seus modelos. Por isso, para Singer, se o povo falta, só pode ser por ausência de uma convocação adequada (no caso dos setores populares já organizados para a batalha), ou por uma incapacidade política que acompanha a história brasileira, marcada pela escravidão e extrema pobreza. Por outro lado, se ele aparece, mas sem pedir licença à coalizão produtivista e a seu estado maior, é visto como o impulsionador das fileiras adversárias estando do lado errado da luta de classes, ou seja, da trincheira que animaria o conflito político-social no Brasil.
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Mas é Junho de 2013, ele mesmo, que evidencia os equívocos da análise de Singer, uma vez que trouxe à tona tudo que escapava da lógica aglutinante do Brasil Maior e sua suposta disputa de coalizões. Tornou-se inevitável a percepção de que uma turbulência com potenciais devastadores ocorria no interior da ditas grandes disputas do lulismo, sendo radicalmente heterogênea à ideia de polarização determinada pelo realinhamento eleitoral; que o tempo intensivo das lutas e resistências realizou uma dobra no tempo longo e linear do sonho rooseveltiano, demonstrando os limites do progressismo brasileiro; que a aceleração desenvolvimentista de Dilma, tida como condição de sucesso da fórmula, foi alvo de uma chuva de enfrentamentos que criou um campo de possíveis para além do dualismo das coalizões. A fratura produziu efeitos que até hoje permanecem, possuindo consequências irreversíveis. Por um lado, a trincheira desenvolvimentista é objeto de tentativas permanentes de reedição, constituindo o único imaginário presente no lulismo, que deixou definitivamente de lado todo um repertório que, mesmo que de forma minoritária transversal, foi desenvolvido nos momentos mais ricos das lutas dos anos 19801990. De outro, espalham-se as flutuações e os campos instáveis relacionados a Junho de 2013, lançando partículas soltas e desgarradas para fora dos grandes blocos do período lulista, produzindo um campo de mobilização sem imagem prévia, que busca os seus gestos de instauração e maior consistência, para além da lógica das polarizações e das trincheiras. Assim, ao invés de um povo homogêneo incorporado e dirigido pelo conflito de coalizões, temos a própria emergência de povos minoritários e instáveis (as existências mínimas de Souriau), que insistem em recusar as convocações emitidas pelas frentes de batalha.
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2. Os riscos da indeterminação: o retorno à trincheira É preciso reconhecer que o lulismo foi objeto de críticas contundentes no momento de sua maior consolidação, formando um rico repertório com muitos pontos semelhantes e convergentes. Com objetivos opostos aos de Singer, elas poderiam ser agrupadas, não sob o signo de uma nova polarização (entre pobres e ricos, entre coalizões econômicas, entre PT e PSDB), mas sob a marca de uma anestesiante pacificação político-social. O lulismo, longe de provocar um acirramento de disputas até o débâcle final de Dilma, teria sido responsável, então, por uma ampla despolitização da sociedade e por um esvaziamento generalizado dos conflitos sociais. A partir desse registro, uma relevante crítica do lulismo foi realizada por Francisco de Oliveira, no interior do projeto mais amplo de análise do que seria a atual era da indeterminação, agenda teórica levada a cabo por diversos autores no início e em meados dos anos 200021. No caso de Oliveira, poderíamos estabelecer uma trajetória condensada em quatro artigos publicados nesse período: O ornitorrinco (2003a); Política numa era da indeterminação: opacidade e reencantamento (2003b); O momento Lênin (2006) e Hegemonia às avessas (2007). O quadro geral das análises de Oliveira são as mutações do capitalismo global nas últimas décadas e suas repercussões na periferia do capitalismo, em especial no Brasil. A Terceira Revolução Industrial, ou revolução “molecular-digital”, altera os parâmetros a partir dos quais se podia pensar a antiga relação entre subdesenvolvimento e desenvolvimento (diferença entre produtores de matéria-prima e produtores de bens industrializados) e lança a periferia nas teias da financeirização
21. Esta agenda foi definida pelas pesquisas do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CEDIC) e reunidas no livro OLIVEIRA, F; RISEK, C.S. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007.
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mundial, da indistinção entre tempo de trabalho e de não-trabalho e entre trabalho formal e informal. Além disso, uma outra indistinção, aquela entre ciência e tecnologia, passa a exercer um papel central na produção de hierarquias internas ao capitalismo contemporâneo (OLIVEIRA, F. 2003a). Constituindo-se como uma das sociedades mais desiguais do mundo, apesar dos nichos avançados (o ornitorrinco), o Brasil passa a combinar o estatuto rebaixado da força de trabalho, objeto da análise de Oliveira no famoso ensaio Crítica à razão dualista (1972), com formas de consumo predatórias, a partir da inserção generalizada dos bens de consumo dos estratos de baixa renda (expansão do mercado interno) sem qualquer política consistente de diminuição das desigualdades estruturantes. Além disso, as mobilizações que têm como base o mundo do trabalho (o ensaio do ABC paulista e dos movimentos sociais da década de 1980) perdem a força social e política, configurando-se como um salto abortado e sem vias de recuperação. Desse novo quadro, Francisco de Oliveira deriva importantes consequências, não só do ponto de vista geral da acumulação, mas, especificamente, do papel exercido pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e por Lula a partir de 2003, um fenômeno radicalmente distinto das propostas elaboradas no momento de inventividade social dos anos 1980. No bojo dessa análise, é importante reconhecer, o sociólogo foi um dos primeiros que enxergou, no vácuo da crise das tradicionais classes sociais, a formação de uma “nova classe no capitalismo globalizado de periferia”, constituída por sindicalistas e membros partidários que ascenderam ao controle de exuberantes fundos públicos, como aqueles de previdência, de poupança obrigatória ou de vinculação legal (OLIVEIRA, F. 2003a). A partir desses fundos, os próprios modelos de reestruturação produtiva (privatização, fusões, aquisições, venda de participações etc.) são financiados criando o paradoxo de uma desconstrução do mundo do trabalho arquitetada por um conselho dirigido por sindicalistas preo-
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cupados com taxas de rentabilidade e liquidez e, como ficou evidente após 15 anos da escrita do ensaio, também em fazer caixa para as campanhas eleitorais e para adoção de luxuosos estilos de vida22. Para Oliveira, se o PT executa o programa de PSDB não é por um simples equívoco ou má compreensão, mas pela proximidade real que se formou em termos de nova classe social: “de um lado, técnicos e intelectuais doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e, de outro, operários transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT” (OLIVEIRA, F. 2003a). A nova classe se situaria, portanto, no lugar específico das medições e novos consensos entre estado e mercado no capitalismo contemporâneo, constituindo-se por um movimento de apropriação permanente. Eis aí mais uma das características do ornitorrinco (e uma importante antecipação teórica do debate que vingaria anos seguintes): impossibilitado de se situar no antigo registro do subdesenvolvimento, e das brechas possibilitadas pela Segunda Revolução Industrial e, ao mesmo tempo, incapaz de avançar nas novas formas de acumulação molecular-digital, restam apenas as acumulações primitivas, caracterizadas por Marx como aquelas baseadas na rapina, no saque generalizado, na violência e da presença determinando do estado23. Em Política numa era da indeterminação (2003b), Oliveira se aprofunda nos efeitos políticos da dissolução do mundo do trabalho, afirman-
22. Esta análise será retomada por Ruy Braga em A rebeldia do precariado (2017), onde o autor identifica no Sindicato dos Bancários de São Paulo, a origem dos quadros que assumiram cargos relevantes nos principais fundos de pensão do Brasil (PREVI, PETROS, FUNCEF). Para uma análise do mesmo fenômeno na América Latina, conferir: MACHADO, D. ZIBECHI, R. Cambiar el mundo desde arriba: Los límites del progressismo. La Paz: CEDLA, 2016. 23. Cf. MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I, cap. XXIV (2009). Embora esta relação não seja sempre feita, Oliveira, em O ornitorrinco, realiza uma contribuição fundamental para o debate sobre o retorno da acumulação primitiva no capitalismo contemporâneo, adotando como ponto de partida a singular inserção brasileira na economia globalizada. Dediquei, com Bruno Cava, um capítulo ao debate sobre a atualidade de acumulação primitiva (a partir de autores como David Harvey, Massimo del Angelis, Antonio Negri, Michael Hardt e Jason Read, no livro: MENDES, A.F. CAVA, B. A constituição do comum: antagonismo, produção de subjetividade e crise no capitalismo. Rio de Janeiro: Revan, 2017.
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do que é própria política que não encontra mais as suas condições de viabilidade, ou seja, a possibilidade de operar um deslocamento qualitativo no terreno que define a disputa entre os adversários. A perda das coordenadas se dá justamente pela impossibilidade de se estabelecer, no capitalismo contemporâneo, a relação entre classe, interesse e representação, lançando todos para um campo nebuloso no qual prevalece a fragmentação da sociedade civil, a indistinção partidária, a substituição da mobilização política pelo marketing eleitoral e as falsas alternativas ligadas aos novos nacionalismos ou ao progressismo. No Brasil, isso significa a passagem de um período de invenção social (1970-1990), quando as forças sociais estavam alinhadas com os diferentes posicionamentos políticos, para um momento de indeterminação (1990 e seguintes) que, segundo Oliveira, é ainda mais sentido nos países da periferia. Apesar disso, como indica o seu próximo artigo (2006), o momento de indeterminação poderia ser tomado positivamente, como demonstrou o caso de Lênin, que assumiu a instabilidade da situação russa do início do século para buscar novas formas de fazer política. Mas o exato oposto foi realizado pela coalizão eleitoral de Lula: seguindo o rumo contrário, o líder do PT não buscou transformar o sistema político enfraquecido pela total falência de seus próprios pressupostos, mas tratou de recompô-lo integralmente, não só através dos acordos visando à estabilidade, mas por uma anulação total das posições anteriores ocupadas pelos movimentos sociais, subordinando-os à lógica do carisma, da vinculação econômica ao governo e da estatização e burocratização dos espaços de conflito24. Identificando o surgimento de uma espécie de “novo populismo”, Oliveira caracteriza-o pela superioridade da figura de Lula com relação ao próprio partido e movimentos sociais, pela dissolução completa do 24. A mesma crítica poderia ser realizada em relação à reação petista aos eventos de Junho de 2013, demonstrando, não só a permanência desse aspecto específico do lulismo, como o seu posterior aprofundamento.
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partido no interior dos aparelhos estatais e paraestatais, convertendo-se em num verdadeiro partido da ordem que dissolve toda a possibilidade de antagonismo. Assim, não teria ocorrido propriamente um aparelhamento do estado, mas uma verdadeira estatização dos espaços antes ligados às forças sociais e políticas, além de uma anestesia geral provocada pela mitificação da figura do Lula: “o carisma é da ordem do mito e este é o avesso da política” (idem). Oliveira chega, então, ao paradoxo do neoliberalismo na periferia brasileira: o repertório de privatizações e fragmentação do trabalho é realizado através da violência estatal da acumulação primitiva, incluindo novas formas de militarização da vida social. E, como vimos, no elo entre o público e o privado está a “nova classe” dos egressos das fileiras partidárias e sindicais, organizadores não só das mudanças produtivas, mas também dos saques e apropriações dos fundos públicos: “o PT realiza na periferia esse novo paradigma, ante o qual empalidecem todas as categorias da política” (idem). Por isso, no post-scriptum elaborado após o estouro da crise do Mensalão, o sociólogo afirma que a existência de um circuito de corrupção era algo extremamente previsível na nova conformação periférica entre o público e o privado e teria uma consequência catastrófica para a esquerda, principalmente com relação às possibilidades de exercício de uma direção moral, conceito que Gramsci utilizou pensar a hegemonia para além da simples dominação política25. Ademais, longe de apenas repetir um mesmo fenômeno oriundo das nossas matrizes coloniais, a corrupção exerce um papel específico, como vimos, ligado à difusão da violência pela realização estatal do neoliberalismo. O conceito de direção moral ocupa um lugar central no artigo Hegemonia às avessas (2007/2010), que parte do processo eleitoral de 2006 para extrair algumas consequências e perspectivas para o futuro. Dife-
25. Uma resenha do debate que, a partir de Gramsci, tenta analisar o lulismo é realizada pelo próprio Singer, em diversos momentos de O sentido do lulismo (2012).
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rentemente de Singer, que enxerga, no mesmo caso, o início ou a confirmação de uma nova polarização que opõe pobres e ricos (com repercussões setentrionais), Oliveira aponta para uma ampliação de alianças políticas indiscriminadas (uma “salada de coligações e coalizões”) e um governo desnorteado pelas negociações fisiológicas que garantiram a vitória. A análise dos dados eleitorais também é radicalmente diferente: Oliveira pergunta se os 40% do eleitorado de Alckmin seriam de eleitores ricos, fato totalmente incompatível com os dados sobre a renda no Brasil, e lembra que houve um recorde histórico de indiferença com relação ao pleito (31% de brancos, nulos e ausentes). Além disso, a vitória eleitoral não serviria para engrossar as fileiras do PT e colocar em cena uma nova base social que imporia mudanças na esquerda brasileira. Para Oliveira, a celebração representava um novo abafamento das críticas à esquerda ao PT, transformadas sempre em “algo de direita” ou então confundidas propositalmente com os ataques ferozes empreendidos pela mídia corporativa naquele momento. A esse silenciamento, poderia ser somado o verdadeiro “sequestro” dos movimentos sociais promovidos no primeiro mandato, cujo símbolo seria a dependência econômica e política do MST com relação ao governo federal (idem). Hegemonia às avessas seria, portanto, o exercício de uma direção moral e intelectual pelos grupos dominados, à qual se submetem consensualmente os grupos dominantes, com a condição de que os dominados não alterem os rumos das formas de acumulação e exploração do capitalismo periférico brasileiro. A imagem do ornitorrinco poderia ser fazer presente mais uma vez: a “hegemonia” lulista seria marcada por uma combinação radicalmente heterogênea entre uma concepção de mundo forjada pela inventividade social dos anos 1980 (o espírito de Sion de Singer), e uma dominação política marcada pelos grupos dirigidos que, paradoxalmente, estão ligados a uma lógica de acumulação predatória oposta ao conjunto cultural do petismo e da esquerda em geral (e, portanto, não há conciliação possível entre as duas almas).
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Após percorrer o roteiro de Oliveira, consideramos que sua reflexão levanta pontos fundamentais, não só pelo seu poder antecipatório, mas por trabalhar a especificidade do lulismo em relação às estratégias de pacificação social, ao novo consórcio entre público e privado e por inseri-lo em dinâmicas mais amplas ligadas à reestruturação do capitalismo global. No entanto, com relação à leitura de Junho de 2013, a chave da indeterminação limita a compreensão das turbulências geradas e as possíveis linhas deixadas na atualidade, como passamos a analisar. O problema aqui, diferentemente de Singer, não é a absorção do acontecimento no dualismo de coalizões, mas, curiosamente, sua própria diluição na inevitável opacidade (a “nevoa” ou “neblina”) que toma conta da esfera da política. Daí a impossibilidade de perceber, apesar da referência anterior ao conceito de desentendimento de Rancière26, que Junho de 2013 lança um novo feixe de luz que altera o próprio regime de visibilidade e de enunciabilidade inerentes a organização policial do discurso, provocando a irrupção de novas coordenadas para pensarmos a política e, também, os modos de organização da própria percepção. Assim, os comentários de Oliveira sobre Junho de 2013 oscilam entre o entusiasmo com relação à importância dos levantes como comprovação de que a pacificação não era total, e o ceticismo com relação a um verdadeiro impacto na política brasileira, ainda analisada sob o signo negativo de uma indeterminação que absorve todo o campo de possíveis. Daí considerações aparentemente contraditórias, nas quais afirma que “as manifestações não foram nada de mais”, ou que elas “não
26. Para Rancière (2006), já citado no texto anterior, a atividade política é aquela que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar, fazendo ver aquilo que não cabia ser visto, ou seja, o que estava previamente ordenado por uma polícia que organiza a percepção. Oliveira poderia ter explorado Junho de 2013 por esse caminho, como uma alteração radical dos parâmetros do dissenso político, mas não consegue sair da sua própria armadilha nostálgica, caindo novamente na opacidade da indeterminação. Cf. RANCIÈRE, J. O desentendimento. Política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.
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tem foco e, portanto, nada a reivindicar” 27 e, em outra oportunidade, celebrando “que a sociedade mostrou que é capaz de se revoltar (...), não precisa de resultados palpáveis”, e até o aparecimento dos black blocs: “se eles constituem um novo sujeito social, é para saudar”28. Apesar das falas discrepantes, essa oscilação pode ser compreendida a partir de uma linha de coerência que, de um lado, mantém intacto o diagnóstico geral da indeterminação na política e da ineficácia das formas tradicionais de luta social que ainda eram perceptíveis nos anos 1980 (fundo nostálgico), de outro, como resultado ainda da tentativa de aplicar um modelo, e apesar de saudar as manifestações como uma demonstração de rebeldia e inconformismo, acaba enquadrando-as como um simples “susto”, ou mesmo um “espasmo”, incapazes de deslocar qualitativamente o campo político. Daí que, paradoxalmente, a própria reflexão perde a especificidade, ela mesmo caindo na mais pura indeterminação. Duas são as consequências: primeiro, para Oliveira, o lulismo acaba sendo um processo bastante homogêneo, ou seja, não há qualquer “ensaio desenvolvimentista” que possa ter aprofundado os terríveis vetores tão bem descritos nos artigos citados (acumulação primitiva, saque dos fundos públicos, militarização, corrupção etc.) e, segundo, a política continua sendo vista dentro de um cenário tradicional com relação ao qual Junho de 2013 não teria qualquer poder de mudança: “o Congresso pode ser ruim, avacalhado, mas não tem outro jeito. Todo Congresso é ruim por definição. A primeira coisa seria organizar os grupos, mas quais são os grupos organizados? Nenhum” (idem). Se a trincheira desenvolvimentista empurra Junho de 2013 para as forças liberalizantes, a abordagem da era da indeterminação acaba lançando o dissenso de Junho (novas formas de percepção, nova organiza27. Entrevista disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2013-07-07/as-manifestacoes-nao-foram-nada-demais-diz-o-sociologo-francisco-de-oliveira.html Acesso em 11 de julho de 2018. 28. Entrevista disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/11/1368697-assustarem-os-donos-do-poder-e-isso-foi-otimo-diz-o-sociologo-chico-de-oliveira.shtml Acesso em 11 de julho de 2018.
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ção dos corpos) no cinza de um nevoeiro que se revela incontornável. Seria isso um estranho determinismo da indeterminação? O fato é que essa leitura acaba presente, em maior ou menor grau, naqueles autores que perceberam, e até anteciparam, o ruído da tragédia que viria, mas não são capazes de perceber a mutação social operada por Junho e seus efeitos prolongados na própria política institucional. Avançando em nosso itinerário, na tradição de Francisco de Oliveira, um dos esforços teóricos mais interessantes para conferir um suplemento de determinação à relação entre lulismo e Junho de 2013 pode ser encontrado no sociólogo paulista Ruy Braga, autodenominado “chiquista”29. O diagnóstico da pacificação é retomado, mas com um olhar que não se limita apenas à fusão entre governo e movimentos sociais, mas busca entender como o seu efeito analgésico funcionou nas franjas mais diversas do mundo do trabalho, especialmente a partir dos anos 2000 (BRAGA, R. 2012; 2017). Para isso, Braga constata que a pacificação parecia realmente funcionar, ao articular um consentimento passivo que englobava um amplo arco de trabalhadores e frações de classe: o subproletariado semirrural, contemplado com o Bolsa Família; o precariado urbano e o proletariado sindicalizado, ambos satisfeitos com a expansão do salário mínimo, da formalização e da criação de empregos (BRAGA, R. 2017, cf. capítulo 03). O consentimento passivo era complementado, de outro lado, por uma dimensão ativa que vinha da direção dos sindicatos (incorporados ao estado), movimentos sociais e setores médios e intelectualizados da sociedade brasileira, conformando, assim, os alicerces do consenso lulista. No entanto, em suas pesquisas empíricas, realizadas antes de Junho de 2013, na rica linhagem das enquetes operárias, Braga já assinalava que pulsava no interior dessa hegemonia uma inquietação social que
29. O autor se autodenomina “chiquista” em vídeo onde comenta o ensaio O ornitorrinco. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lWbKMLvSGbk Acesso em 11 de julho de 2018.
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fugia do radar governista, formando um turbilhão imperceptível de insatisfações, lutas e aspirações que desafiavam as duas dimensões do consenso lulista. De um lado, o estudo das relações e da composição do trabalho no setor de telemarketing demonstrou que este era movido por precarização, alta rotatividade, baixos salários, exaustão e grande ocorrência de danos à saúde, além de ser predominantemente exercido por jovens, mulheres, negros e negras, e universitários30. De outro, entre 2010 e 2013, testemunhou-se um recorde inédito de greves no país, que indicaram, não o simples fortalecimento da classe trabalhadora, como quer Singer, mas um permanente conflito entre o proletariado precarizado e a cúpula dos sindicatos tradicionais, como nos casos de Jirau, Santo Antônio, Belo Monte, o estádio do Maracanã e tantos outros exemplos (idem). Recuperando o fio desenvolvido por Oliveira na década de 1970, Braga analisa a passagem do fordismo periférico para o pós-fordismo financeirizado, a partir da centralidade adquirida pela oferta de um trabalho barato, precário, terceirizado e, cada vez mais, endividado. Assim, entre 1994 e 2008, o campo dos serviços passou a corresponder a 70% das novas contratações e taxa de rotatividade cresceu 42% na faixa que vai de 0.5 a 1.5 salários mínimos. O número de terceirizados saltou de 03 milhões para 12.7 milhões, entre 2002 e 2013. O número de famílias endividadas cresceu de 18% em 2005 para 45% em 2014 (chegando a 61.2% em 2018, se formos para além do período analisado por Braga). Por fim, à queda de participação do PIB da indústria de transformação (de 27.8% em 1988, para 14.5% em 2010), corresponde à concentração econômica nos setores estratégicos ligados à mineração, petróleo, agroindústria e construção civil (idem).
30. Cf. BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (2012), especialmente o capítulo 4, dedicado ao tema, e uma intervenção sobre Jirau publicada no final do livro. Em A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global (2017), a análise da precariedade é complementada com uma rica cartografia das lutas sociais de novo tipo, levando em consideração o ciclo de greves e as revoltas ligadas à Primavera Árabe.
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Diante desse quadro, Junho de 2013 provoca uma fratura no ponto que articula o lulismo como modo de regulação (normalização das relações capital-trabalho e produção de consentimento) e como regime de acumulação (o modo de apropriação do excedente no pós-fordismo financeirizado), significando o fim da pacificação social vigente por mais de uma década. Por outro lado, além de terem acontecido na sequência do esgotamento do modelo lulista de desenvolvimento baseado no consumo de mão de obra barata, os levantes já começaram a questionar, no bojo da crise global do capitalismo, as tentativas de passagem para um modo baseado na pura e simples espoliação social, esta, segundo ele, representando um tipo de acirramento do neoliberalismo que encontrou início no próprio governo Dilma (idem, cf. capítulo 9). Braga, então, realiza uma cartografia das lutas que ocorreram antes e depois de Junho de 2013 para mostrar que já havia um ciclo de insurgências que colocava em questão, tanto os efeitos territoriais, sociais, culturais e econômicos da pacificação lulista, como da nova virada neoliberal que começa a acontecer em 2012. Não por acaso, para o sociólogo, o grande protagonista social dos levantes é o precariado jovem e urbano que passa a sintetizar, não uma sociedade que estava em vias de resolver os seus problemas sociais, mas o resultado dos problemas que se acumularam devido à articulação dos diferentes modos de acumulação em crise. Portanto, ao se dedicar aos fluxos que já estavam deslizando do consenso lulista, na figura aberta de um precariado turbilhonar e da intensificação das fraturas que atingiam a hegemonia governista, Braga consegue escapar, tanto do entrincheiramento de coalizões operado por Singer “pelo alto”, como da genérica indeterminação e oscilação de Oliveira, estimulada pelo saudosismo com relação aos conflitos e formas do antigo mundo do trabalho. Pelo contrário, na análise que estamos descrevendo, trata-se de inscrever Junho de 2013 no centro do embate entre novas formas de expropriação da vida (nas cidades) e o repertório de novas lutas forjado a partir da nova composição do trabalho.
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Apesar dessa importante contribuição, Ruy Braga acaba não sustentando todos os efeitos de sua leitura, necessitando recorrer a novos dualismos. Em primeiro lugar, assim como Oliveira, ele parece não levar em consideração a existência efetiva de um “ensaio desenvolvimentista” como tentativa (trágica) de resposta à crise de 2008, momento de enfraquecimento e não fortalecimento da posição dos neoliberais no governo e na opinião pública. Com efeito, o acirramento da espoliação social parece decorrer apenas do aprofundamento interno do neoliberalismo, quando ele não teria sido possível sem as consequências desastrosas do “sucesso” da coalizão produtivista no interior da hegemonia lulista, naquilo que denominamos esquerda que venceu. Essa premissa equivocada ganha contornos ainda mais complicados quando Braga decide, fazendo coro às opiniões da esquerda em geral, estabelecer uma ruptura entre Junho de 2013 e o processo de impeachment, qualificado como um “golpe” que buscou operar definitivamente a passagem para o regime de espoliação, diante da crise do modo de regulação e do regime de acumulação pós-fordista. A ruptura é explicada em dois movimentos: primeiro, por uma suposta traição de Dilma Rousseff contra suas bases populares levada a cabo após a reeleição de 2014, com o incremento da agenda neoliberal; segundo, com uma transformação de composição e sentido nos protestos de rua a partir de 2015, com o predomínio de grupos ligados à classe média tradicional, focados unicamente no impeachment da presidente reeleita. Apesar de parcialmente correta, a análise de Ruy Braga possui omissões importantes, capazes de alterar completamente as conclusões estabelecidas. Com relação ao primeiro argumento, a alusão a uma abstrata traição de Dilma em 2014 acaba se revelando num expediente fraco utilizado para preencher o vazio deixado pela ausência de análise do próprio funcionamento recíproco da dicotomia neoliberalismo e desenvolvimentismo, sendo Junho de 2013 mais um questionamento desse
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dualismo, do que apenas do acirramento do neoliberalismo31. A campanha de 2014, portanto, não foi abortada por uma traição de alta cúpula, ela foi, simplesmente, falsa do início ao fim. Não só por esconder a existência real da crise, mas por prometer uma saída que estava completamente inviabilizada, seja pela quebra do consenso político operada por Junho, seja pela falta real de pressupostos econômicos para um novo “ensaio” desenvolvimentista. Com relação à passagem entre 2013 e 2015, vale lembrar um aspecto tão enfatizado por Oliveira sobre o lulismo, a saber, sua grande capacidade de anestesiar mobilizações e movimentos sociais, absorvendo para dentro de si toda a crítica possível. No caso de Junho de 2013, isso se deu, no primeiro momento, através da repressão pura e simples e, no segundo, pelas exigências de unidade em torno da candidatura do PT, tida como a única possibilidade de frear o chamado avanço da direita. Paradoxalmente, os movimentos de 2015, apesar da especificidade do perfil, foram aqueles que ainda se colocaram para fora da pacificação lulista e, neste aspecto, apesar do esforço de negação dos ativistas e demais puristas, estão ligados diretamente a Junho de 2013 (embora seja verdade que em parte já estivessem também presos em uma polari-
31. Voltaremos ao tema a partir do livro: COCCO, G. CAVA, B. New neoliberalism and the Other: biopower, anthropophagy and living Money. New York; London: Lexington books, 2018, onde os autores examinam a articulação recíproca entre neoliberalismo e neodesenvolvimentismo, a partir da chamada “fase 02” do lulismo. O livro também é importante por propor, na esteira de Foucault e Deleuze, um deslocamento com relação ao próprio conceito de neoliberalismo, buscando analisar o seu modo de funcionamento do ponto de vista molar e molecular (ou de uma arte de governar biopolítica), afastando-se das concepções críticas que retomam o neoliberalismo como um grande Outro a ser debelado. A contribuição possui relações diretas com o argumento que estamos propondo, uma vez que a ideia de um grande Outro é mobilizada, justamente, para reenviar a insurgência de Junho para as coordenadas das velhas trincheiras. Esse parece ser o caso de Ruy Braga que, além de não perceber articulações híbridas no modo de acumulação, não se interessa em descrever as continuidades existentes entre os governos Dilma e Temer. A noção de fundo de que os governos petistas poderiam representar um neoliberalismo menos acentuado e selvagem é uma das premissas mais compartilhadas, embora muitas vezes não assumida, entre aqueles que buscam ver no impeachment um momento de ruptura.
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zação que, posteriormente, irá empobrecer todo o arco de possibilidades do pós-Junho)32. Embora Ruy Braga tenha conseguido trazer especificidade aos fluxos de instabilidade que percorriam o solo tranquilo do latifúndio lulista, falta-lhe, sobretudo, uma insistência de método. Isso significaria dar continuidade ao trabalho para perceber que o impeachment não marca uma ruptura profunda de regulação ou acumulação, mas, pelo contrário, representa uma tentativa interna de reorganização do bloco político atingido pelos levantes, do qual participam as próprias forças do lulismo, acompanhada de uma busca de estabilização econômica a partir de vetores que já estavam presentes nos governos anteriores33 (reformas, ajuste fiscal, aumento das concessões públicas etc.). A reintrodução equivocada dessa segunda ruptura produz um efeito que reduz o alcance da análise realizada por Braga. Ela elimina a persistência e atualidade de uma dimensão flutuante de Junho de 2013 que não pode ser resolvida num novo dualismo entre uma coalizão de precários rebeldes, de um lado, e uma classe média já satisfeita com o impeachment, do outro. O efeito turbilhonar dos levantes não pode ser esvaziado pela restauração de novas máquinas duais (2013 e 2015) que acabam por determinar precocemente o fim do Junho rebelde, e a vigência apocalíptica de um pós-Junho asfixiado por espoliações, golpes parlamentares e “autoritarismo econômico e político” (idem). Vejam que, depois de percorrer o deslizamento que foge das grandes estruturas e dos modelos pré-concebidos, Braga acaba reencontrando os seus interlocutores da sociologia paulista. Com Singer, reintroduz uma lógica de coalizões agravada pela omissão com relação a uma 32. Voltaremos ao tema no artigo O 16 de março no morro dos Cabritos, presente neste livro. 33. Vale lembrar que, para as eleições de 2018, o PT se coligou com partidos que apoiaram o impeachment em 15 estados brasileiros. Para uma análise a partir da ideia de um bloco de poder, conferir: COCCO, Giuseppe. “O levante de junho atacou o hardpower brasileiro”. Entrevista concedida à IHU On-Line, em 27 de setembro de 2017. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/572064-o-levante-de-junho-de-2013-atacou-o-hard-power-brasileiro-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco Acesso em 11 de julho de 2018.
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possível crítica do ensaio desenvolvimentista (será que a saída seria a fidelidade de Dilma à coalizão produtivista?). Com Oliveira, perde a possibilidade de investigar as linhas e os possíveis feixes de luz lançados por Junho de 2013, encerrando-as na indeterminação de um novo regime de acumulação pós-2016 marcado pela espoliação social (retorno das causalidades e predomínio explicativo das formas já estabelecidas). O retorno da máquina dual não tem consequências apenas analíticas ou metodológicas, mas, principalmente, políticas. Ele reintroduz uma lógica de trincheira através da qual somos, rapidamente, convocados a lutar contra o “golpe de 2016” e contra o acirramento do neoliberalismo. Além disso, a afirmação de uma suposta ruptura com os processos vividos no interior do lulismo nos impede de entender como uma hegemonia (para compartilhar da gramática do autor) continua em plena conformação, apresentando-se ainda como um dos modos de restauração de Junho de 2013. E, assim, desaparece a atualidade dos levantes em prol das trincheiras que nos reconduzem fatalmente à velha pacificação lulista. Como veremos no último ponto, reivindicamos que as manifestações de 20152016, com os seus riscos, bloqueios e perigos, fazem também parte de Junho, por meio de uma repetição descentrada dos levantes que insiste em não ser encerrada. Trata-se, fundamentalmente, de não confundir a ruptura exercida pelas forças dos levantes, com os jogos de cena internos ao poder. Estes realizam uma repetição dos eventos como farsa ou como comédia; aquelas como fabricação permanente de diferença34. É uma análise das linhas que compõem essa fabricação que parece indicar, como veremos, alguns caminhos que evitam as armadilhas colocadas, seja pela indeterminação, seja pelo reducionismo causal do conflito entre regimes de acumulação.
34. Sobre a análise da repetição como tragédia e farsa em Marx e a inclusão, por Deleuze, de um terceiro termo (a dramatização das forças e a produção de diferença, a partir da inspiração de Nietzsche), remeto o leitor novamente ao texto de Bruno Cava sobre o 18 de brumário brasileiro (2016).
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3. A trincheira da subjetividade: uma omissão incômoda O filósofo Vladimir Safatle poderia ser indicado como um autor que compartilha da hipótese da pacificação lulista, incluindo-a no quadro geral de um esvaziamento da política, mas sem restringi-la à lógica das coalizões, de uma indeterminação nostálgica ou de relações causais entre regimes de acumulação e regulação. Seria preciso uma virada ontológica para fazer frente aos desafios atuais, reconhecendo a ruptura qualitativa realizada em todo o ciclo da Primavera Árabe e, especial, em Junho de 2013. No livro A esquerda que não teme dizer o seu nome (2012), Safatle, sustenta, dentre outras hipóteses, que, após os levantes de 1968, o terreno do conflito acabou esvaziado por um antagonismo social baseado em oposições identitárias ligadas a um suposto choque civilizatório, em meras diferenças culturais ou políticas de reconhecimento (SAFATLE, V. 2012, pp. 27-36). Seria preciso reencontrar o internacionalismo e o universalismo que estão na origem da esquerda, e opô-los ao falso universalismo nas democracias contemporâneas. Além disso, seria fundamental pensar novamente numa teoria do governo, e não somente uma teoria do poder, para que a esquerda não caia no excesso de decisionismo, de tecnicismo e uma indistinção geral com relação a outros projetos políticos que marcaram os seus governos nos últimos anos (idem, p. 76). Pode-se afirmar que é dentro desse contexto de crise de perspectivas, que o filósofo caracteriza o lulismo, em artigo intitulado Les limites du modèle brésilien: les nouveaux conflits sociaux et la fin de l’ere Lula (2014), como um fenômeno que esvaziou a oposição entre esquerda e direita e o próprio conflito social a partir de uma forte dinâmica de interiorização do antagonismo que teve como carro forte o próprio poder público. Do ponto de vista econômico, o fortalecimento de um “ca-
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pitalismo de estado” se tornou possível através da utilização abundante do poder diretivo do BNDES, das grandes companhias com participação pública (Petrobrás e Vale do Rio Doce), dos bancos públicos (Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil), de novos monopólios corporativos (as empresas JBS e Friboi), fomentando, ao mesmo tempo, o mercado interno através de uma ampliação da proteção social (SAFATLE, V. 2014, p.41). Do ponto de vista político, o lulismo transferiu para o estado uma série de disputas de interesse, convertendo-as em mero “conflito entre ministérios”, e reduziu a política à gestão de alianças heterodoxas e à manutenção de um pacto de estabilidade com o congresso. O resultado é uma grande indistinção que mistura governo, movimentos sociais e até a oposição, pela qual se produz uma totalização que repercutiria na própria direita, esta também atingida por um processo de empobrecimento intelectual e de acirramento da moralização (SAFATLE, 2014, idem). Para Safatle, os levantes de Junho de 2013 aparecem, precisamente, num contexto de esgotamento do lulismo, promovendo uma explosão de pautas e demandas que não encontravam eco no sistema político. Elas indicariam a necessidade de uma nova geração de serviços públicos, devendo representar outro capítulo da luta contra a desigualdade, no momento em que as taxas de endividamento da população já estavam em clara ascensão. Mas, para isso, uma ruptura deveria quebrar a “gestão liberal dos conflitos” (SAFATLE, V. 2014, p. 43) que marca, não só o lulismo, mas a crise geral das democracias modernas. É a partir da ideia de ruptura, ou como uma “força bruta de negação”, que Safatle vai buscar os desdobramentos de Junho de 2013, inscrevendo-o no amplo ciclo de protestos de rua que se iniciaram em 2008 (Túnis, São Paulo, Cairo, Istambul, Rio de Janeiro, Nova Iorque etc.). Em Quando as ruas queimam (2016), a figura do fogo marca as novas clivagens. Primeiro, é o próprio tempo que sofre uma ruptura, fugindo da métrica, das narrativas e das formas de habitação anteriores.
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É toda uma mudança qualitativa que, não só desloca o estado de coisas anterior, como abre uma nova brecha que será ocupada por novos habitantes, outras medidas e narrativas ainda desconhecidas (SAFATLE, V. 2016, p. 05). Segundo, o fogo queima também os antigos modos de controlar a visibilidade e a nomeação, e daí a astúcia da conhecida resposta de um ativista – “Anota aí eu sou ninguém” – eis que, através da negação, é toda uma força de enunciação e seu respectivo regime de visibilidade que é levado ao ponto colapso. Para existir, portanto, é preciso sempre colocar em circulação um vazio que destitui os nomes, afirmando uma qualidade antipredicativa para além de toda a representação, encontrar um não-lugar que é uma das mais poderosas armas políticas (idem, p. 07). É justamente para impedir a emergência desse tempo e desse espaço que o poder inventa uma série de urgências, medos, crises, violências que nos fazem aderir, quase sempre sem convicção, a uma realidade que se apresenta como única escolha possível. A lógica do poder é aquela do sufocamento, da imposição de uma situação miserável que se coloca como o nosso único campo de possíveis. E diante das aberturas operada pelo levantes, erguem-se também os “sentimentos reativos com seus golpes brancos, suas fronteiras, suas bandeiras nacionais, sua ressurreição de arcaísmos” (idem, p. 12). É a partir dessa radiografia, e sem abrir mão da possibilidade de vitória, que Safatle indaga a razão pela qual nos últimos anos as perdas foram tão frequentes, considerando especialmente o ciclo de revoltas da Primavera Árabe. Por que motivo, indaga ele, as ruas em chamas não produziram as transformações que deveriam produzir, prevalecendo as forças de reação. O filósofo resolve enfrentar uma das possíveis respostas que consiste em reconhecer que ainda não temos um corpo, e que não haveria política possível sem a formação de um corpo. Diferenciando uma insurreição – “uma explosão bruta da revolta” (idem, p. 14) – da emergência de um sujeito político, Safatle afirma que para realizar essa passagem, fazer ressoar os levantes, é preciso um esfor-
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ço a mais. É que a ruptura do tempo e a indeterminação das formas podem conduzir o antigo corpo a uma simples fragmentação paralisante de demandas, uma multiplicação de lugares de fala, que acabam por excluir da experiência política as falas sem lugar, as formas sem figura, “a beleza bruta de singularidades que não se localizam” (idem, p. 15). Construir um corpo político, portanto, é permitir que numa constelação haja movimento de todos os seus elementos, que possa haver circulação em uma zona de indeterminação onde as diferenças se implicam e se descentram, sem formar uma unidade. Para Safatle, o problema é que, a partir de 2013, só aprendemos a dizer “quero o que é meu”, isto é, a exigir a minha parte e o meu lugar na axiomática do Estado atual. O bloqueio da imaginação política começa quando usamos a gramática do poder, a linguagem da ordem, para fomentar as nossas lutas, transformando o não-lugar das singularidades no espaço esquadrinhado de apropriadores e possuidores. Não à toa, nas ruas e nos protestos, o correlato da crise na produção de um corpo, é a redução do repertório de ações em simples bloqueios, fechamentos à circulação, “trancaços” e paralisias (idem, p. 23). Safatle, então, enfatiza que fazer um corpo é sair do localismo e da mera indignação para atingir uma dimensão mais genérica, aberta à implicação de qualquer um. Contra as tentativas de encerramento do corpo no espaço delimitado e hierarquizado do indivíduo ou do coletivo, é preciso aceitar a existência de uma pulsão que destitui o sujeito da condição de próprio, uma destituição que inviabiliza o jogo de interesses individuais e dos nomes próprios. Um corpo animado pelas ressonâncias de uma continuidade pulsional é aquele que demonstra também todos os limites da representação política, “abrindo espaço para experiências políticas que trazem para todos os seus circuitos o processo de decisão (idem, p. 27). Assim, a destituição dos nomes próprios pode ser vista em sua correlação com a própria destituição dos lugares marcados da política. O espaço indeterminado que é aberto não é visto apenas sob o signo ne-
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gativo do fim da política, mas como terreno de criação e de experimentação e, por isso, na conclusão do manifesto, a exigência de Safatle por um “rigor de artista”, em detrimento de uma simples indignação repetitiva e reativa (idem). Com efeito, as reflexões do filósofo são relevantes para lançar luz à relação entre Junho de 2013 e a necessidade de traçarmos um corpo aberto às singularidades e resistente às gestões do poder baseadas no medo e na precariedade. Com isso, torna-se possível evidenciar, por exemplo, que a luta do precariado não teria como ponto de partida apenas as condições objetivas produtoras de insatisfação social, como nas análises causais, mas reclamam uma constituição subjetiva que possa, não só irromper no (e contra) o tempo, mas também se prolongar no horizonte aberto pela própria ruptura. Nesse sentido, as novas trincheiras abertas pela disputa em torno dos locais de fala aparecem em seu efeito restaurador, como a sobreposição de uma linguagem proprietária com relação à linguagem minoritária, sem nome próprio, dos levantes. Isso porque o campo aberto deixado pela ruptura pode desencadear, não só na superfície causal da política ou da economia, mas no terreno da própria subjetividade, o ressurgimento de arcaísmos e conservadorismos que reorganizam os estilhaços deixados pelo ciclo insurgente. Ou seja, não só a regulação dos desdobramentos dos levantes (a pacificação) passa pela subjetividade, como não há qualquer garantia de resultados favoráveis no momento subsequente e, por isso, a questão do prolongamento (dar corpo) se torna central35. Reconhecendo como adequados os parâmetros colocados por Safatle para analisar o problema, poderíamos acrescentar dois pontos de discussão sobre a relação entre produção de subjetividade (ou de um corpo) e Junho de 2013. Primeiro, é preciso refletir sobre o papel do lu35. Trataremos deste tema no próximo ponto a partir do conceito de malha, que pressupõe intervenções realizadas num lineamento composto, com Deleuze e Guattari, por linhas de segmentação dura, flexível e de fuga.
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lismo na passagem que vai dos levantes de 2013 aos efeitos restauradores de 2015, em especial na sua vocação de produzir pacificação e regulação; segundo é necessário indagar, mais uma vez, se a restauração foi total e completa, ou seja, se Junho de 2013 foi realmente abortado como terreno de constituição possível de novos modos de existir, restando-nos apenas o idealismo de imaginar ad hoc que nossas derrotas irão se converter em futuras vitórias. O primeiro ponto nos leva à constatação da total ausência, em Safatle e nas análises sobre Junho de 2013 realizadas pelos autores que estamos comentando, do funcionamento do lulismo como máquina de produção de subjetividades dóceis e controladas, e seu papel ativo durante e após os levantes. Visto sob esse aspecto, a pacificação lulista poderia ser entendida como uma permanente produção de figuras subjetivas de crise, através da difusão de táticas de medo, mediatização, endividamento e representação36. E, por isso, já estamos além dos efeitos pacificadores analisados a partir de uma dimensão meramente objetiva, isto é, como consentimento passivo ou ativo, ou como fenômeno de totalização interna ao estado37. Essas táticas funcionaram de modo difuso e contínuo entre 2013 e 2015 para esvaziar Junho de 2013, e continuam em atuação para recompor o lulismo, podendo ser resumidas da seguinte forma:
36. Utilizamos aqui, embora em contexto diverso do original, as figuras subjetivas da crise descritas por Antonio Negri e Michael Hardt em: NEGRI, A. HARDT, M. Declaração. Isto não é um manifesto. São Paulo: N – 1 edições, 2014. 37. A análise da pacificação lulista como produção de subjetividade nos leva, não só para além dos filósofos da subjetividade que não abordam a questão, como avança para um terreno não explorado pela sociologia marxista de Francisco de Oliveira e Ruy Braga, restritas a uma pacificação voltada genericamente para a sociedade civil, para os movimentos sociais, ou abarcada pelo conceito de modo de regulação. Por fim, permite ir além das análises, não tratadas neste livro, centradas apenas no funcionamento do sistema político e do pemedebismo, como em Marcos Nobre. Sobre o último, cf. NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da redemocratização ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013a
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a) A gestão pelo medo. Durante o ápice do movimento, como o discurso sobre a presença da direita, do “ovo da serpente do fascismo”, era inócuo para paralisar a mobilização, o lulismo organizou uma repressão que, indo além do simples confronto físico, agiu molecularmente em cada espaço de constituição de insurgência. Daí a combinação entre a organização por cima do aparelho repressivo, realizada diretamente pela chefia do estado, com a pulverização de emissários governistas que abordavam os ativistas, incutindo-lhes medo e paranoia (o papel das famosas e enigmáticas listas de futuros presos, nas quais, não por acaso, todos pareciam estar incluídos). Com a desmobilização dos setores mais diretamente insurgentes, os grupos oposicionistas ao governo (desde os moderados até os extremistas) encontraram um terreno livre para se fortalecer e se reorganizar. Durante a campanha eleitoral de 2014, a existência desses grupos foi utilizada, em conjunto com a tradicional busca de uma eleição plebiscitaria com o PSDB, para colocar mais uma dosagem de medo nas subjetividades de Junho, conduzindo-as à adesão, ainda que crítica, às fileiras dilmistas, onde, paradoxalmente, os próprios manifestantes eram chamados em público de “pessimildos”38. Em 2015, com o acirramento generalizado dos grupos defensores e opositores de Junho, a emergência de frentes para a suposta luta por democracia e contra a ascensão do fascismo concluiu a última camada reorganização da multiplicidade de Junho de 2013, fazendo-a girar na órbita do lulismo.
38. O “pessimildo” foi um personagem criado pela bilionária campanha eleitoral de Dilma para desqualificar as críticas ao seu governo que estavam sendo realizadas desde 2013, em especial com relação à deterioração política e econômica. Enquanto, um boneco de perfil sisudo afirmava que o Brasil estava em crise, o locutor respondia dizendo que o país estava protegido e no rumo certo. Para um exemplo, conferir: https://www.youtube.com/watch?v=-4eC_wP4s3k Acesso em 12 de julho de 2018.
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b) A mediatização dos levantes Os levantes de Junho de 2013 constituíram o ápice de uma grande profusão de mídias livres e insurgentes que já era objeto, nos anos anteriores, de discussões sobre cibercultura, midiativismo, cultura digital, blogosfera e os chamados commons digitais39. Ela foi responsável, como em outros levantes da Primavera Árabe, não só por uma importante mobilização da opinião pública, como pelo próprio controle das abusivas atividades policiais ligadas à repressão dos protestos, servindo, inclusive, como prova para a descaracterização de crimes na esfera policial e judicial. O lulismo, em sua versão pós-2013, tratou de investir fortemente na pacificação desse campo. Primeiro, no espaço que era denominado de mídia contra-hegemônica, mobilizou a blogosfera governista para realizar uma campanha massiva, declarada ou indireta, contra Junho de 2013 e todos os seus futuros desdobramentos. Segundo, no campo das mídias moleculares, utilizou o grupo Fora do Eixo, que já crescia na esteira dos editais, contratos públicos e na incorporação de pequenos coletivos, para ocupar todo o espaço do midiativismo, incluindo o coletivo Mídia Ninja, que acaba se transformando em posto avançado do lulismo nas redes40.
39. Para um aprofundamento dessas discussões no período que antecedeu Junho de 2013, conferir: TARIN, Bruno; BELISÁRIO, Adriano (Orgs.). Copyfight: pirataria e cultura livre. São Paulo: Azougue Editorial, 2012. 40. Para uma descrição dos processos que culminaram nesta captura, tendo como marco uma crise instaurada no 3o Forum Social de Mídia (2012), conferir: UNIVERSIDADE NOMADE. O comum e a exploração 2.0. Texto coletivo, 2012. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/o-comum-e-a-exploracao-2-0/ Acesso em 11 de julho de 2018. Sobre a relação entre a empresa Fora do Eixo e o Mídia Ninja, conferir: PASSA PALAVRA. Acabou a magia: uma intervenção sobre o Fora do Eixo e a Mídia Ninja, outubro de 2013 (em duas partes). Disponível em: http://passapalavra.info/2013/08/82548 Acesso em 11 de julho de 2018. Para uma análise recente da relação entre mídia, propaganda e universidade, inserindo a crítica ao Fora do Eixo numa crítica mais ampla, cf. TAVARES, S. L. Fake news à esquerda: do intelectual à Mídia Ninja, um ensaio sobre o falseamento narrativo da verdade política. Disponível em: https://medium. com/br%C3%A4sili%C3%A4na/fake-news-%C3%A0-esquerda-do-intelectual-%C3%A0-m%C3%ADdia-ninja-um-ensaio-sobre-o-falseamento-narrativo-da-be88352952bd Acesso em 29 de julho de 2018.
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c) A constituição de uma dívida infinita A lógica do endividamento objetivo, através do crédito e da política de fomento ao mercado interno, não é a única característica do lulismo. Este também pode ser avaliado pela difusão de um endividamento subjetivo. Trata-se da difusão de campanhas que buscam vincular as realizações mais bem-sucedidas do governo petista à figura direta de Lula. Com isso, duas questões restam esquecidas. Primeiro, que a crise provocada pelo ensaio desenvolvimentista demonstrou a fragilidade do repertório de políticas sociais, não só com relação ao aprofundamento e à expansão desejados por Junho, mas à própria sobrevivência das medidas em meio às prioridades estabelecidas pela coalizão produtivista41. Segundo, que essas medidas só foram possíveis através de uma ampla mobilização social que culminou, justamente, em Junho de 2013. Paradoxalmente, a ideia de uma dívida com o governo Lula passa a ser cada vez mais utilizada para preencher o próprio vazio deixado pela ruptura de qualquer relação entre uma nova geração de direitos e as novas mobilizações sociais, agora abortadas pelo lulismo. Por isso, o aprofundamento de dimensões populistas no interior do lulismo, já anteriormente identificadas por autores como Singer e Oliveira, encontra correspondência direta nas tentativas de esvaziamento de Junho de 2013. Mas, para entender a mistificação atual envolvendo a figura de Lula, não basta invocar o velho populismo, ou tão somente o trauma de sua prisão. É preciso compreender que ela foi sendo tecida paulatinamente, no terreno da subjetividade, como uma dívida a ser imposta aos “ingratos” de Junho de 201342, aqueles que ousaram se rebelar em plena gestão lenta e segura do sonho roosevelteano. 41. Por todos, conferir o debate sobre o possível retorno do Brasil ao mapa da fome In: IHU On-Line. Entidades e especialistas alertam: a fome pode voltar a ser um dos principais problemas do país. Publicado no dia 09 de janeiro de 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/575035-entidades-e-especialistas-alertam-a-fome-pode-voltar-a-ser-um-dos-principais-problemas-do-pais Acesso em 03 de julho de 2018. 42. Trata-se da sintomática afirmação do então secretário geral da Presidência do Governo Dilma, Gilberto Carvalho, sobre os manifestantes de Junho: “fizemos tanto por essa gente e agora eles se levantam
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d) O acirramento da lógica da representação Não seria uma grande novidade afirmar que Junho de 2013, e o ciclo da Primavera Árabe em geral, fez proliferar uma lógica não representativa de poder que produziu um terremoto nas autoridades constituídas. São bem menos analisadas, no entanto, as formas de reorganização que foram colocadas em prática para a retomada da representação no pós-Junho. Embora não seja o momento para um longo desenvolvimento, podemos indicar que a figura subjetiva do representado constitui, em primeiro lugar, o resultado das táticas de medo, meditiazação e endividamento lançadas pelo lulismo no pós-Junho. Mas, em segundo lugar, um outro campo deve ser analisado que corresponde às investidas semióticas relacionadas à produção vazia de ícones, imagens e palavras de ordem que tentam resgatar uma ideia de luta, associando-a ao lulismo. Trata-se da profusão de camisas vermelhas, rostos do Che Guevara, boinas revolucionárias, bandeiras partidárias e de coletivos, que se multiplicaram como simples representação do poder, e não mais como imagens vivas de uma luta ou transformação em curso. Essa representação vazia acaba alimentando as trincheiras das chamadas guerras culturais, através das quais grandes identidades fechadas e belicosas, à direita ou à esquerda, mobilizam signos e símbolos em função de um combate que se retroalimenta, na proporção de sua total desvinculação de processos políticos complexos e abertos43. Uma máquina dual se instala reorganizando subjetivamente tocontra nós”. Matéria disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governo-considerou-ingratidao-as-manifestacoes-de-junho-diz-carvalho,1122573 Acesso em 03 de julho de 2018. 43. Consideramos importante realizar um esclarecimento, mesmo que longo, sobre o conceito de cultural wars, já que o debate se apresenta de forma confusa. É preciso, antes de tudo, entender a importância de uma mobilização cultural quando ela irrompe como forma de ampliar a imaginação política (as condições de ver e de falar) e o regime de uso dos corpos, dos prazeres, do pensamento, enfim, dos modos de vida. Este seria o posicionamento, por exemplo, de Foucault, que utiliza o termo para explicar os seus interesses de pesquisa e de intervenção no ano de 1978. O artigo de Amador Fernandez-Savater, Michel Foucault: uma nova imaginação política (2016), é luminoso neste aspecto: “nas oficinas de 1978, desenrolaram-se discussões ‘profundamente políticas’ e, no entanto, Foucault preferiu falar em uma ‘mobilização cultural’. Por quê? Acredito que Foucault percebeu ali uma transformação nas formas de ver e
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das as partículas liberadas por Junho de 2013 e cobrando adesão em cada trincheira. Que isso possa resultar em lucros ou vantagens eleitorais que espelham os novos confrontos é apenas resultado da reintrodução da lógica da representação no terreno subjetivo, restaurando, em um plano ainda mais problemático, as dinâmicas representativas questionadas pelos levantes. Seria difícil, portanto, no interregno entre 2013 e 2015, compreender a dificuldade de constituição de um corpo aberto às singularidades sem levar em consideração as batalhas travadas pelo lulismo, e os seus correspondentes “à direita”, no terreno da subjetividade. Mas é curioso que logo os autores que se propõem a tal tarefa, tenham se desviado do assunto, preferindo realizar alusões genéricas ao neoliberalismo, a ascensão conservadora, ao suposto golpe de estado, ou outros mecanismos que lançam uma fumaça sobre os processos políticos que ocorreram sob o signo da restauração.
de pensar, ou seja, uma mudança cultural ou de paradigma. Notou alguns elementos da ‘nova imaginação política’ que ele reivindicava”. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/michel-foucault-uma-nova-imaginacao-politica/ Acesso em 11 de julho de 2018. Outro fenômeno é a constituição de movimento cultural que assume como finalidade a produção de grandes identidades políticas que, não por acaso, são suscetíveis aos jogos de poder do sistema representativo. No primeiro caso, como Foucault insistia, temos uma mobilização cultural que desafia a representação e, no segundo, um movimento contrário de reforço ou suplemento da lógica representativa, especialmente em momentos de crise de imaginação. Do ponto de vista teórico, é a confusão que permite a Andrew Hartman afirmar, contra a percepção dominante, que as guerras culturais nos EUA, iniciadas nos anos 1960, teriam chegado ao fim, sendo o momento de propor uma renovação do debate econômico, deixando, portanto, de considerar a nova dinâmica inaugurada nos últimos 15 anos (cf. HARTMAN, A. A war for the soul of America. A history of the cultural wars. Chicago: The university of Chicago press, 2015. Em caminho oposto, relacionando os recentes embates culturais nos EUA à formação de grandes identidades culturais opostas e subordinadas à lógica da lealdade e da representação, cf. MASON, L. Uncivil agreement: how politics became our identity. Chicago: The university of Chicago press, 2018. O livro foi inserido no debate brasileiro por Pablo Ortellado através de uma ótima resenha para jornal Folha de São Paulo. Cf. ORTELLADO, P. Polarização opõe identidades, não posições sobre políticas, diz estudo. Folha de São Paulo, edição de 08 de maio de 2018. Angela Nagle, por sua vez, oferece uma perspectiva mais molecular e subterrânea da formação dos novos conflitos culturais americanos, através de uma pesquisa que articula os ativismos em rede e sua repercussão no debate público e nos espaços públicos e universitários. Cf. NAGLE, Angela. Kill all normies. Online culture wars from 4chan and tumblr to Trump and the alt-right. Washington (USA)/Winchester (UK): Zero Books, 2016;
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É que, talvez, para esse grupo, todos os nomes próprios deveriam ter sido destituídos pelos levantes de Junho de 2013, menos um: o nome da esquerda. O problema reside, justamente, na difícil conciliação entre o “eu sou ninguém”, celebrado por Safatle, como condição para uma nova arte da política, e a exigência de uma esquerda que, paradoxalmente, não teme dizer o seu nome. Essa operação, que busca preservar uma identidade forte diante das armadilhas da indeterminação, só pode acontecer sob o preço de uma omissão incômoda: a de que, justamente, uma esquerda hegemonizada pelo lulismo trabalhou, no plano da subjetividade, para impedir que um corpo fosse formado, ou seja, que Junho de 2013 pudesse ter outros desdobramentos mais interessantes para além da crise atual44. É a mesma omissão incômoda que aparece em autores que, antes de 2013, já buscavam compreender as mutações políticas a partir do terreno da produção de subjetividade, mas que buscam compatibilizar, ao mesmo tempo, uma defesa do lulismo e uma celebração de Junho de 2013. No caso de Tatiana Roque e Maurizio Lazzarato45, por exemplo, o PT e a esquerda aparecem como instâncias que não conseguiram entender o movimento, como espaços que precisam de uma renovação. Existiria na esquerda uma dificuldade em “compreender a potência” de Junho de 2013 e, por isso, os levantes durante a Copa do Mundo teriam sido mal interpretados, levando à repressão e à restauração da dinâmica da representação (ROQUE, T. LAZZARATO, M. 2017). O problema é que, nessa análise, a questão da pacificação deixa de ser um fenômeno constitutivo do lulismo para ser um episódio isolado, que seria fruto de uma esquerda que não entendeu as novas formas 44. Esta questão foi discutida por Marcio Taschetto e Giuseppe Cocco no artigo: COCCO, G.; TASCHETO, M. I am (no)body: the subjectivity no name. Kalagatos, v. 14, n. 2, p. 37-57, 8 out. 2017. Uma versão mais curta, em português, foi publicada pela Rede Universidade Nômade. Cf. COCCO, G.; TASCHETO, M Eu (não) sou ninguém. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/eu-nao-sou-ninguem/ Acesso em 12 de julho de 2018. 45. Trata-se do artigo: ROQUE, Tatiana; LAZZARATO, M. “Ruptures subjectives et investissements politiques”: juin 2013 au Brésil. In: Rue Descartes, n. 92, 2017.
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de organização e de expressão que emergiram a partir de Maio de 1968, e que foram reinventadas e renovadas no ciclo da Primavera Árabe. No sentido contrário dessas leituras, afirmamos o oposto: o lulismo compreendeu perfeitamente que Junho de 2013 abalava os alicerces sobre o qual estava assentado e reagiu colocando a máquina de pacificação em atuação, expandindo-a para além da velha dicotomia PT vs PSDB. Em uma linha que deixa tudo mais explícito, para o filósofo Peter Pál Pelbart, no artigo Por que um golpe atrás do outro?46, Junho de 2013 teria sido “desprezado, apagado e esquecido, sobretudo pelo discurso governista da época”, em função da sua incompatibilidade com a dinâmica da representação petista e seu prenúncio de esgotamento do modelo. Ainda sim, os levantes 2013 se dariam na mesma esteira aberta pela “Era Lula”, mesmo que isso tenha acontecido involuntariamente. E, por isso, nos caminho deixado por uma mídia que teriam canalizado os protestos contra o PT, as movimentações do poder, desde 2016, teriam desencadeado a mais violenta reação contra Junho de 2013 e o próprio Lula. A trama midiático-palaciana visaria, não somente desmontar “o importante legado lulista”, como tentaria conter o “assombro” de 2013, uma espécie de espectro à espera de corpos coletivos capazes de o encarnarem. Mais uma vez, a questão é que esse espectro já possuiu um corpo, e ele não foi desprezado ou esquecido pela pacificação lulista. Pelo contrário, destruir esse corpo, e substituí-lo pelo corpo místico do próprio Lula, foi o objetivo de boa parte dos ataques realizados nos últimos cinco anos. Além disso, a trama palaciana, pelo que nos indica alguns áudios (“salvar Lula, salvar todo mundo”) e a intensa agenda do ex-presidente (incluindo o reconhecimento de que Temer foi corajoso diante do “golpe da Lava Jato” em recente entrevista47), parece estar voltada 46. Disponível em: https://www.peixe-eletrico.com/single-post/2018/02/06/Por-que-um-golpe-atr%C3%A1s-do-outro Acesso em 12 de julho de 2018. 47. Cf. https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/temer-sofreu-tentativa-de-golpe-da-globo-e-desmascarou-joesley-e-janot-diz-lula/ Acesso em 12 de julho de 2018.
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para a manutenção do sistema político como um todo, em detrimento das aspirações e das mobilizações de Junho de 2013. Portanto, em um balanço das análises que levam em conta o terreno da subjetividade, poderíamos dizer que elas optaram, justamente, por não investigar a relação entre o lulismo e um tipo de pacificação subjetiva que foi amplamente aprofundado a partir de 2013. Essa omissão possui um duplo efeito com relação ao lulismo e aos próprios levantes. No que tange ao primeiro, permite que a manifesta oposição à revolta seja diluída em angélicas incompreensões, esquecimentos, erros de interpretação, ou mesmo numa suposta ruptura realizada a partir de 2016 (essa sim, claramente oposicionista); com relação ao segundo, impede que as possibilidades abertas por Junho sejam analisadas na atualidade, condenando-o vagar na indeterminação de uma alma sem corpo. Uma “assombração” que, fora de qualquer determinação real, poderia voltar à atualidade, repetindo ex nihilo os levantes desencadeados em 2013.
4. Junho de 2013: o trabalho das linhas Duas conclusões podem ser retiradas do balanço efetuado nos pontos anteriores. A primeira é a de que o lulismo, como prática específica de poder, acaba sendo subdimensionado e visto, na maioria dos casos, como um arranjo fraco que teria falhado em alavancar um projeto de esquerda almejado desde as décadas anteriores. No caso de Singer, ele teria sucumbido às forças liberalizantes por não ter logrado organizar o subproletariado, sob a direção política dos sindicatos e movimentos sociais tradicionais. No caso de Braga, ele é rifado por um “golpe” político que decide acelerar e generalizar a lógica de expropriação, inaugurando um novo regime de acumulação. No caso de Safatle, Roque e Pelbart, ele sucumbe diante dos problemas de organização, da falta de compreensão, dos “erros” de uma esquerda que não entende as novas formas de organização e expressão trazidas pelos ventos de Junho
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de 2013, ou não possui uma proposta clara e radical para fazer frente às atuais mutações sociais e políticas. Usamos a figura das trincheiras para ressaltar que essas análises teóricas acabam nos levando para um mesmo e único campo de batalha: um retorno, envergonhado ou estridente, às fileiras do lulismo (e, por isso, a importância, que será tratada adiante neste livro, de refletir sobre o voto crítico como dispositivo político de agregação). E como lulismo e Junho de 2013 se tornaram termos incompatíveis entre si (desde o momento em que o primeiro tentou bloquear e se sobrepor ao último), a volta da trincheira ocorre necessariamente em detrimento de Junho, que passa a ser atingido por dois tipos de juízos teóricos: (i) aquele que afirma que os levantes foram cooptados ou utilizados pelas forças da coalizão financeira; (ii) aquele que afirma que eles chegaram ao fim, seja por um “golpe” parlamentar com sua correlata ruptura econômica, seja porque não constituiu um corpo que pudesse enfrentar a restauração do pacto entre as elites. Em direção totalmente oposta, defendemos que, não só Junho de 2013 continua ativo, no sentido que operou uma mudança definitiva no campo do sensível e da organização dos corpos (uma nova percepção que se enrosca com outros arranjos da própria matéria), como o próprio lulismo continua mantendo viva a sua força de restauração, descrita aqui de diversas formas (direção política e moral dos movimentos, papel anestesiante das forças sociais, adesão total aos pactos oligárquicos, reorganização da própria direita através de fenômenos de double bind, polarização binária que fulmina as multiplicidades, consenso neodesenvolvimentista etc.). Tudo a indicar que se há realmente uma trincheira, ela se dá entre as aspirações e pontos de vista colocados pelos levantes de Junho e as tentativas de reorganização do poder das quais o lulismo faz parte. A questão é que esta trincheira não deveria ser entendida no sentido usual, como linhas que esquadrinham e estratificam, mesmo sendo móveis, o campo de batalha em dois polos que se confrontam. Em uma
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conhecida cena do filme Lawrence da Arábia (1962)48, um membro das tribos beduínas insiste em recusar o apoio militar e financeiro britânico em função da exigência de ter que disciplinar os seus homens, inserindo-os na lógica industrial da primeira guerra mundial. Diante do inconformismo do comandante inglês com a recusa, o protagonista arrisca um ato de insubordinação para explicar que os beduínos não precisavam da racionalidade das trincheiras porque a efetividade de seus guerreiros estava ligada às forças do próprio deserto. Diferentemente da tomada de território, que dilacerava os corpos europeus e americanos em arames farpados e fileiras de tanques, no deserto são as coordenadas de todo o terreno que mudam constantemente, tornando inúteis as posições definidas a partir da guerra de trincheiras. Isso permitia que os beduínos surpreendessem os adversários através de um jogo de aparições e desaparições que lhes garantia uma vantagem com relação às tropas sedentárias. Além disso, eles dispensavam os pontos fixos da logística da guerra industrial para realizar travessias improváveis e desviantes a partir do deserto, alterando qualitativamente a própria racionalidade e previsibilidade do movimento no interior da guerra. Num diálogo que lembra as análises de Carl Schmitt49 sobre as investidas para a definição de um novo nomos da terra, os beduínos mostram que estavam apavorados mesmo, não com a infantaria e o combate terrestre, mas com a utilização dos novos aviões de guerra pelo Império Otomano, solicitando desesperadamente que os britânicos os neutralizassem. É que eles sabiam que a tomada da terra pelo ar (em uma velocidade até então desconhecida), implicava numa vitória sobre as estratégias de metamorfose das tribos nômades em sua aliança com os elementos desfigurais do deserto.
48. LAWRENCE da Arábia. Diretor: David Lean. Produção: Horizon Pictures, Reino Unido, 1963. 49. Cf. SCHMITT, C. Terra e Mar. Breve reflexão sobre a história universal. Lisboa: Esfera do Caos, 2008
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Algo parecido poderia ser dito do confronto entre o terreno flutuante aberto por Junho de 2013 e as formas de restauração que continuam sendo colocadas em prática. Só que o controle das forças do deserto não se dá apenas pela conquista de uma posição técnica privilegiada (embora isso tenha acontecido, principalmente, no campo da comunicação), mas pela compreensão de que era preciso dominar as linhas que se desgarravam das velhas fileiras. Num primeiro momento, linhas policiais móveis, e não mais o conflito entre choque e barricadas, fragmentaram os atos, até culminarem na disposição circular dos chamados envelopamentos ou Caldeirões de Hamburgo50; num segundo, são as próprias linhas de subjetivação que se transformam no campo de batalha da restauração, primeiro com o ataque do lulismo na campanha eleitoral de 2014, depois com a retroalimentação identitária entre esquerda e direita, produzindo subjetividades controladas pelo medo, pela mediatização, pela dívida e pela representação. Por outro lado, a persistência de Junho de 2013 parece passar também por um trabalho das linhas51. Barbara Szaniecki, retomando a pesquisa recente do antropólogo Tim Ingold para pensar a prática do design, em especial o livro Une brève histoire des lignes (2013), problematiza a usual concepção do “fazer” como um projeto (a imposição de uma forma pré-concebida a uma matéria exterior – o hilemorfismo), e pergunta se não seria o caso de uma inserção mais modesta: “simplesmen50. Envelopamento ou Caldeirão de Hamburgo é o nome dado à tática policial que consiste em cercar todos os manifestantes, ou apenas um núcleo deles, para não permitir o deslocamento do protesto, neutralizar um grupo de manifestantes, ou exercer um controle total sobre a manifestação. No Rio de Janeiro, o Caldeirão mais abrangente foi realizado no dia da final da Copa do Mundo de 2014, quando centenas de manifestantes ficaram presos até o término do jogo e foram alvos, durante horas, do armamento menos letal da Polícia Militar. Por todos, cf. EL PAIS. A violência policial de Junho de 2013, agora aprimorada. Seção Tribuna. Publicação do dia 21 de junho de 2016. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/21/opinion/1466530548_709223.html Acesso em 18 de junho de 2018. 51. Para uma visão contemporânea do debate, conferir o dossiê com vários autores denominado Lignes, publicado na revista na Multitudes. O conceito de trabalho das linhas corresponde ao título do artigo de Giuseppe Cocco e Bruno Cava na mesma edição, do qual recomendamos a leitura. Para os propósitos deste texto, utilizamos especificamente o artigo de Barbara Szaniecki: SZANIECKI, B. “Design au Multitudocène: suivre les lignes, suivre les luttes”. In: Multitudes, n. 70, Paris: Pulsio.net, Primavera de 2018.
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te intervir em processos já em curso que dão forma a tudo o que nos cerca: as plantas e os animais, as ondas d’água, a neve e a areia, as pedras e as nuvens” (SZANIECKI, B. 2018, p. 188). Trata-se de passar das relações entre forma e matéria às relações entre forças e materiais, lá onde a separação entre interior e exterior, entre sujeito e objeto, é substituída por um emaranhado de diferentes linhas que se envolvem num processo sempre crescente (idem). À arrogância prometeica dos grandes projetos e realizações, instaurar um trabalho meticuloso de busca dos detalhes, das possibilidades que são imanentes ao aos próprios processos, de uma reelaboração dos fios soltos e dos materiais disponíveis sem vinculá-los a uma fundação primeira. É toda uma ética dos gestos, uma estética, como vimos em Souriau, que substitui as pretensões totalizantes de conformação dos modos de vida às formatações concebidas de antemão. Além disso, a partir da diferença entre rede (network) e malha (meshwork), Tim Ingold se desloca da Teoria do Ator Rede de Bruno Latour, para afirmar que no primeiro caso, as relações se dão entre pontos já existentes, enquanto na malhagem, trata-se de percorrer as linhas no movimento de sua fabricação. Por isso, pensar o entrelaçamento da malha em seu próprio constituir-se, não seria equivalente a pensar as conexões existentes em uma rede (idem, p. 191). Articulando a crítica de Ingold com o pensamento de Artur Escobar, Szaniecki nos permite pensar que a questão não seria apenas opor ou fazer a apologia de um modelo de rede contra processos de homogeneização piramidais ou hierarquizados, mas pensar uma ética da fabricação-trama, ou seja, indagar como dar mais consistência a um conjunto de linhas que nos atravessa e que pode corresponder às possibilidades de uma fabricação do comum sempre aberta à diferenciação. A relação entre a imposição de grandes projetos, o trabalho dos detalhes e uma ética da malha, pode ser retomada a partir de Deleuze e Guattari que, sem dúvida, inspiraram o movimento teórico que está atravessando hoje a antropologia. Em Mil Platôs, os autores analisam a
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coexistência de linhas diversas52 (em natureza, função, tipo de conexão etc.) a partir de três novelas, dentre as quais nos interessa a História do abismo e da luneta (1976) de Pierrette Fleutiaux. Os segmentos são envolvidos por um abismo e em cada segmento, segundo eles, existiriam dois tipos de vigias: o de visão curta e o de visão ampliada. O que eles vigiam são movimentos, manifestações súbitas e todo o tipo de perturbação, desordem, infração que podem ocorrer no abismo (DELEUZE, G. GUATTARI, F. 1996, p. 68). Com uma luneta simples, o de visão curta só percebe grandes divisões binárias, o contorno e a forma de células gigantes, segmentos bem determinados, largas estruturas etc. Diante de qualquer contorno mais disforme, de bordas estremecidas, de uma figura mal feita, de uma falha na grande forma, o vigia busca a sua “terrível Luneta de raios”, cuja função não é mais ver, e sim cortar e recortar. Sua função é realizar o grande corte significante, restaurar a ordem molar ameaçada. É a geometria do Estado que está em operação, traçando uma linha de segmentariedade dura “em que todo mundo será julgado e retificado segundo seus contornos, indivíduos ou coletividade” (idem). Os vigias de telescópio são diferentes. Com sua visão ampla e seu instrumento refinado, enxergam os minúsculos movimentos, as micro-segmentariedades, um “tobogã de possibilidades”, as linhas ou vibrações que se esboçam bem antes dos contornos. São as segmentariedades moleculares que não se deixam sobrecodificar pelas máquinas de cortar, ou que lhes sejam atribuídas determinadas figuras, conjuntos ou elementos. Por isso, eles ficam presos na seguinte ambiguidade: 52. No platô Micropolítica e segmetariedade, Deleuze e Guattari diferenciam três linhas de acordo com um sentido geral: a) uma linha de segmentariedade dura e molar, que corresponde às sociedades com Estado e operam por binarização, sobrecodificação e círculos concêntricos que ressoam; b) uma linha relativamente flexível ou molecular, que correspondem às sociedades primitivas e operam por segmentações em ato, códigos polívocos e círculos que não ressoam juntos, formando territorialidades itinerantes fundadas em divisões locais emaranhadas; c) uma linha de fuga que opera por descodificação e desterritorialização, correspondendo a fluxos mutantes que possuem diferentes quantas (graus de desterritorialização). Embora para fins analíticos elas apareçam separadas, os autores insistem que há uma imanência entre as linhas que determina um regime de mútua afetação (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1996).
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são capazes de detectar no abismo as micro-infrações mais leves e sutis, mas também percebem o terrível dano causado pela justiça geométrica em sua imposição da forma diante de qualquer ameaça de desfiguração (idem, p. 69). Essa ambiguidade também se desdobra como um caso de percepção53: “vemos, pensamos e falamos, nesta ou naquela escala e segundo determinada linha que pode ou não se conjugar com a do outro (...)” (idem). Os vigias de visão ampliada sentem que são capazes de ver algo que não foi visto, uma espécie de antecipação que paradoxalmente enxerga o que já aconteceu, mas numa escala dos micro-movimentos não assinaláveis que passam ao largo da grandes figurações. Porém, suas previsões são inúteis diante de uma máquina de cortar que se impõe sem aviso prévio e sem necessidade de outra visão (idem). Daí o seu duplo estatuto ou sua inclinação em duas vertentes: com o telescópio refinado participam e são cúmplices do controle mais sofisticado e, ao mesmo tempo, nutrem uma profunda simpatia pelos movimentos aberrantes que agitam o abismo, desafiando os segmentos duros. Talvez, algum dia, afirmam Deleuze e Guattari, possam abandonar os segmentos e traçar uma ponte no abismo para encontrar, do outro lado, um duplo cego que dispensa os instrumentos de visão, encontrando a “luz crua” de uma realidade sem figuras imaginárias e sem funções simbólicas (idem, p. 70). A linha flexível ou molecular desviaria, então, dos grandes segmentos para se converter em uma linha abstrata (linha de fuga) que faz o mundo fugir por suas próprias extremidades, convertendo os antigos limites em limiares para uma nova experimentação. Temos, portanto, as linhas de segmentariedade dura ou molar, as linhas de segmentação flexível ou molecular e as linhas de fuga, todas inscritas no real, com suas particularidades, perigos, possíveis combinações, bloqueios mútuos, combates e alianças que atravessam os indiví-
53. Para os autores, percepção, semiótica, prática, política e ética caminham sempre juntos (DELEUZE, G. GUATTARI, F. 1996, p. 69).
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duos, grupos, coletivos e campos sociais. Por isso, os autores esclarecem que uma pragmática, ou uma esquizoanálise, deve analisar ou cartografar sempre os lineamentos (idem), e não as estruturas, os significantes e as linguagens que chegam depois, seja como endurecimento, seja como resultado de uma determinada composição. A própria prática não seria aquilo que acontece após o estabelecimento dos termos e suas relações, mas participa, ela mesma, da composição dos mapas que reúnem traçados que são prolongados, criados, interrompidos, bloqueados e seguidos, de acordo com um conjunto de diversas linhas. Por isso, relembrando as questões colocadas por Szaniecki sobre a prática do design, não basta fazer a passagem do macro (os grandes projetos) para o micro (o detalhe dos detalhes) ou vice-versa. É preciso saber como a malha vai se compor para que as linhas flexíveis, em seu deslocamento, não refaçam, em seu próprio nível, as concreções duras que acabaram de desfazer (micro-fascismos, micro-estados autoritários, micro-julgamentos intermináveis etc.), ou para que as linhas de fuga, em sua dupla implosão de segmentos, não tomem o caminho de uma regressão ainda pior. É toda uma pragmática ético-política que deve acompanhar, portanto, a passagem do mito prometeico dos grandes projetos para a intervenção imanente aos próprios processos e seus lineamentos. Podemos, agora, identificar, também, os problemas existentes nas análises de Junho de 2013 que acabamos de comentar. Em todos os casos, se trata ainda de tentar impor uma forma ao material intensivo dos levantes, de realizar uma leitura geométrica dos novos mapas políticos que se tornaram possíveis a partir desse próprio material. No caso de Singer, a forma-partido e a dos movimentos sociais tradicionais se articula com a substância do desenvolvimentismo para recusar a afirmação de novos modos de existência a partir dos levantes. No caso de Oliveira, a dissolução histórica das possibilidades de funcionamento da forma classe-partido-governo o lança para a impossibilidade de perceber novas instaurações possíveis e para uma indeterminação impossível de
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escapar (por isso, o permanente fundo nostálgico). No caso de Braga, a visão ampliada do telescópio entra em ação para perceber os movimentos moleculares do proletariado, mas esses são logo remetidos aos cortes segmentares entre regime de acumulação e de regulação. No caso de Safatle e Pelbart, com o mesmo instrumento de análise, os processos subjetivos de Junho de 2013 são percebidos para serem, tão logo, anulados (destituídos de corpo) em prol de uma forma-esquerda (e seu corpo místico como substância) que definiria o único nome próprio que resta intocável. Seria o momento, portanto, de perguntar se é possível uma teoria crítica que não se comporte como um vigia que olha para o abismo através do juízo das lunetas ou da cumplicidade dos telescópios. Se Junho de 2013 não seria somente um enigma para governos e partidos, mas também para o hilemorfismo e o iluminismo constitutivo do pensamento crítico. Talvez, nesse domínio, seja o momento de reivindicar uma espécie de cegueira, ou seja, a interrupção da projeção de luzes já esculpidas sobre o material de análise, na direção de uma percepção que possa seguir a composição aberrante entre forças e materiais e que salte para fora dos próprios olhos, como em Henry Miller: Eu não olho mais nos olhos da mulher que tenho em meus braços, mas os atravesso nadando, cabeça, braços e pernas por inteiro, e vejo que por detrás das órbitas desses olhos se estende um mundo inexplorado, mundo de coisas futuras, e desse mundo toda lógica está ausente. (...) Quebrei o muro (...), meus olhos não me servem para nada, pois só me remetem à imagem do conhecido. Meu corpo inteiro deve se tornar raio perpétuo de luz, movendo-se a uma velocidade sempre maior, sem descanso, sem volta, sem fraqueza. (...) Selo então meus ouvidos, meus olhos, meus lábios (MILLER, H. Apud DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1996, p. 34, grifo dos autores).
Pensar um Junho sem figuração prévia, aquele que quebra e atravessa o muro, arrancando os olhos das imagens já conhecidas, é reconhe-
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cer que os levantes funcionam como processos que arrastam as relações anteriores entre segmentos duros e flexíveis reorganizando o campo do próprio sensível e remetendo-o às condições da nossa própria existência. Não se trata de lançar as luzes para uma nova utopia, tentar ver nos levantes os sinais de um futuro que nos espreita54, mas simplesmente encontrar aquilo que tínhamos diante dos nossos próprios olhos: nossas condições de vida nas metrópoles e nas florestas, nossos modos de existência rebaixados por dinâmicas de controle, disciplina, mediatização, medo, dívida, culpa e representação. Um dos esforços atuais mais originais para caracterizar a combinação entre segmentos duros e flexíveis na conformação do lulismo foi realizado por Bruno Cava e Giuseppe Cocco no livro New Neoliberalism and the Other: biopower, anthropophagy, and living money (2018). Para os autores, o lulismo seria o resultado da conformação de dinâmicas, no início não homogêneas, mas encontrando um enrijecimento ao longo dos governos Lula e Dilma, que culminaram num arranjo específico entre um regime molecular, o neoliberalismo mobilizado por baixo (governo Lula), e outro molar, o neodesenvolvimentismo concebido por cima (governo Dilma). O primeiro tornou-se possível a partir da inserção pelo alto do Brasil nas dinâmicas de globalização referentes ao Consenso de Washing54. Trata-se da leitura realizada por Slavoj Zizek sobre os levantes da Primavera Árabe a partir da chave do “trabalho dos sonhos” ou dos sinais do futuro. O problema dessas análises é que elas projetam nesses sinais ou na dimensão do imaginário aquilo que já existe sob formas pré-concebidas, perdendo a relação entre acontecimento e criação. Paradoxalmente, o futuro desaparece em uma eterna projeção de um presente já concebido, ou seja, de um possível a ser realizado e não criado. Não por acaso, diante da frustração com relação a não realização dessas mesmas projeções, Zizek acaba defendendo uma “coragem da não esperança”, fundada na contraposição de um pessimismo sem expectativas a um otimismo esperançoso. Na verdade, o revezamento entre esperança e desesperança mostra como Zizek permanece preso na chave do imaginário, ao invés de se perguntar sobre a inscrição dos levantes nos próprios processos do real. Para entender estes dois momentos, cf. ZIZEK, S. O ano em que sonhamos perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012; ________. Courage of hopelessness: chronicles of a year of acting dangerously. London: Penguin, 2018. Para uma crítica, a partir de Deleuze, do acontecimento como expectativa (esperança) e possibilidade de realização de um futuro já concebido, cf. ZOURABICHVILI, F. “Deleuze e o possível: sobre o involuntário na política”. In: Gilles Deleuze. Uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000
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ton da década de 1990 e ao governo de Fernando Henrique Cardoso. Integrado previamente nos processos globais de liberação econômica, e mantendo o pacto das reformas anteriores (alteração na previdência, flexibilização trabalhista, expansão das parcerias público-privadas etc.) o lulismo promove o passo subsequente, através de uma integração “por baixo” que, no empuxo gerado por novas políticas de inclusão social, inseriu a população brasileira em circuitos de consumo, crédito, empreendedorismo e, mesmo que timidamente, em novos espaços antes destinados às oligarquias tradicionais (CAVA, B. COCCO,G. p. 69). O segundo refere-se ao acirramento das tendências desenvolvimentistas a partir do final do segundo mandato do governo Lula que culminaram na adoção da chamada “Nova Matriz Econômica” do governo Dilma, e a aceleração de grandes projetos, obras de infraestrutura, barragens, investimento massivo no agronegócio, transferência de grandes montantes de recursos públicos para os grandes players nacionais etc. Tal virada “por cima”, longe de representar um ato meramente personalista ou um projeto individual, obteve o apoio de uma considerável parte da esquerda que, como em André Singer, via no desvio com relação ao primeiro governo Lula, uma forma de derrotar ou enfraquecer o pacto neoliberal estabelecido desde a Carta aos Brasileiros. Além disso, a análise dos autores sustenta, de forma original, que as combinações no interior do lulismo, entre um regime molecular (neoliberal) e molar (neodesenvolvimentista), devem ser lidas de acordo com uma longue durée que se remete à própria empresa colonizadora e sua engenharia biopolítica, ou seja, às formas específicas de controle racial, territorial e social desenvolvidas no interior da colonização brasileira. Assim, os autores afirmam que o Brasil sempre foi biopolítico, combinado duas formas distintas de governo: uma que remete às primeiras missões jesuítas e que teriam como objetivo dar uma forma à matéria viva encontrada por eles, ou seja, conformar os índios, e também a natureza; a outra, que remete à segunda geração de missionários, já no momento de Padre Antônio Vieira, que, diante da resistência mó-
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vel operada pelos nativos, decide por realizar uma gestão em fluxos deixando que essa matéria se movimentasse para operar um controle no interior do próprio fluxo (idem, p. 197). Portanto, o conjunto de resistências que atravessa esse longo fio, se encarnando em Junho de 2013, possui um duplo desafio, a saber: desfazer permanentemente as imagens utópicas de um Brasil Maior (a matéria conformada à grande forma) e, ao mesmo tempo, operar desvios na gestão dos fluxos biopolíticos que, atualmente, se apresentam na figura de um neoliberalismo molecular55. Por isso, os autores enfatizam que o importante é a produção de subjetividade (idem, p.71), ou seja, a fabricação constante de uma malha tecida por resistências biopolíticas, que não podem ser subsumidas por uma imagem ligada ao Povo, ao Partido, ou à Classe Operária e, no mesmo movimento, a prática de atos de criação e de resistência que traçam linhas de fuga com relação à gestão neoliberal. A retomada da herança antropofágica por Cava e Cocco possui, justamente, este sentido: uma recusa das pretensões nacionalistas de constituir um Povo que é acompanhada da antevisão de um “bárbaro-tecnicizado”, que também extrapola os circuitos controlados da mundialização e da modernização capitalista. Aliás, a própria distinção entre uma cultura nacional e uma de importação perde o sentido já que a antropofagia muda o próprio conceito de cultura criando um fluxo de diferença através da conexão heterogênea de “imagens delirantes, intuições poéticas e fragmentos de reflexão filosófica” que captam as potências e as virtualidades de um Brasil sem imagem (idem, p. 25). E, da mesma forma, um Junho antropofágico, ou visto por um trabalho das linhas, seria aquele que produz uma constante diferenciação diante dos fluxos biopolíticos da globalização e da longa duração do projeto colonizador, seja em sua conformação da matéria a partir de
55. Este é o desafio que também colocaremos, a partir de uma atualização de Henri Lefebvre, para um conceito e uma prática de direito à cidade, como veremos em outro texto deste livro.
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um exterior, seja em sua gestão dos fluxos a partir de um interior. Uma diferenciação antropofágica não buscaria, portanto, nem um grande Outro oposto ao biopoder (um fora externo traduzido como um projeto prometeico e redentor, da pureza das sociedades autóctones ao “socialismo do séc. XXI), nem um governo dos detalhes e dos micro-movimentos (as formas diluídas de captura do capitalismo contemporâneo), mas tentaria prolongar um fora que não é, nem exterior, nem interior. O fora aqui devém imanente ao conjunto crescente das linhas operando dobras que, como vimos, desloca o paradigma da matéria conformada a uma forma, na direção de uma articulação entre força e material que se expande a partir de uma lógica aberrante. É a partir desse deslocamento que poderíamos compreender, tanto a força de demolição de Junho de 2013, ao desmontar a relação entre neoliberalismo “por baixo” e desenvolvimentismo “por cima”, como a insistência de uma lógica em mutação que recusa a reorganização dos segmentos e suas ressonâncias em focos de poder. Do ponto de vista de uma cartografia das linhas, é preciso compreender que, diante da dissolução dos segmentos, algumas linhas de fuga podem ter sido recuperadas em arcaísmos ainda mais conservadores (as militâncias de extrema direita – linhas micro-fascistas), em zonas de conforto identitárias e gregárias (as lutas que, a partir das diferenças, sem convertem em batalhas fraticidas entre minorias – linhas de individuação concorrente), em subjetivações narcísicas e emotivas (o retorno de um política a partir das descrições de um Eu fundador, “como eu me sinto, como eu vejo”), em subjetivações paranoicas e servis (o apelo às grandes conspirações e o amor ao soberano – as linhas presas circularmente em torno de um centro), formando um emaranhado sobre o qual ensaia-se a restauração, no nível molar, do dualismo biopolítico projeto/fluxo (novas pretensões desenvolvimentistas encarnadas ainda no lulismo; aceleração do neoliberalismo molecular através das reformas). Por outro lado, é possível afirmar que os novos arranjos entre segmentos duros e binários e segmentos flexíveis e processuais, continuam
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a ser arrastados para um campo de forte recusa e experimentação. Trata-se de um terreno móvel, flutuante, altamente mobilizado, com inteligência própria e conexões heterogêneas, que continua provocando vazamentos e estilhaçando as tentativas de restabelecer a correspondência entre segmentos duros e fluxos moleculares. Deleuze e Guattari descrevem essa zona de escape afirmando que, apesar das sobrecodificações e das linhas que totalizam, os “fluxos mutantes de quanta” continuam se precipitando, operando revezamentos, realizando saltos, passando por mutações, questionando as tentativas de sobrecodificação e totalização, fazendo passar em outro lugar as linhas de fuga (DELEUZE, G. GUATTARI, F. 1996, p. 93). Esse sistema de revezamento e de conexão móveis articula força e material para além das tradicionais categorias de classe social ou de adesão política. Por isso, Junho de 2013 parece mover-se de forma circular ao enfrentar os seus bloqueios e tentativas de restauração. Quando a dinâmica mais insurgente e popular presente em 2013 é bloqueada pelas estratégias que já descrevemos, os protestos em 2015 ganham um contorno que poderia ser associado às chamadas classes médias brancas e tradicionais, canalizando-se no Fora Dilma. Quando essas classes não prolongam o campo de recusa e experimentação, lançando as linhas para uma acomodação ou reconstituição dos segmentos, os protestos em 2018 seguem através de uma categoria extremamente popular, como a dos caminhoneiros, convergindo no Fora Temer. O mesmo raciocínio poderia ser utilizado para as composições sócio-técnicas relacionadas às mídias e à comunicação. Quando antigas plataformas digitais ativistas do ciclo alterglobalização se mostram limitadas para a amplificação dos fluxos que escapam no novo momento de insurgência, Facebook e Twitter são utilizados como ferramentas populares e de larga escala, operando um revezamento. Quando essas grandes plataformas são colonizadas por máquinas binárias, de propaganda política, controle policial ou interno, os grupos de WhatsApp passam a servir como uma zona de escape para os fluxos de quanta pro-
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duzidos anteriormente. Quando, finalmente, esses últimos parecem encontrar uma zona estacionária, caindo numa redundância fechada, os vídeos pessoais e lives dos caminhoneiros passam a deslocar as linhas de fuga para outro lugar. Esse suposto efeito circular ou de repetição poderia ser extraído da ideia de uma retomada permanente e reiterada da dimensão incontrolável de Junho de 2013, ou de uma rede permanente e horizontal que se formou recusando as hierarquizações piramidais. Mas essas noções continuam limitadas para compreender o fenômeno. Elas nos levariam de volta para a ação de um novo Sujeito (relações de causa-efeito) ou de um campo de conexões já conformado na figura de uma “sociedade conectada” (relações determinadas por um novo universal). Nem nova política, nem tecnopolítica. Se há um efeito de circularidade, ele é derivado dos círculos descentrados de Blanchot, caracterizando-se como repetição em permanente desvio56, ou então, de uma fabricação da trama, como em Szaniecki. Num caso ou no outro, trata-se da constituição de um malha que recusa, tanto os círculos ressonantes dos grandes projetos e seus soberanos, como as linhas retas de uma molecularização gerida em fluxos. Se os fluxos de quanta parecem se atualizar em protestos de rua ou meios técnicos diferentes (e poderíamos pensar em tantas outras atualizações), é que tanto sujeito como máquina técnica não estão na origem do processo, mas são resultados de determinadas passagens de quanta e dos agenciamentos correspondentes. Por isso, seria impossível tratar Junho de 2013 a partir das imagens já existentes relacionadas à esquerda, à direita, aos programas partidários, às coalizões econômicas e aos regimes de acumulação e de regulação. Por outro lado, não estamos no terreno de uma obscura indeterminação gerada por um material totalmente informe e inapreensível. A 56. Sobre Blanchot, remetemos o leitor para o texto Levantes: o caminho que é o deserto, neste livro. Para outra abordagem sobre a relação entre diferença e repetição já indicada neste texto (o método da dramatização, a partir da leitura delezeana sobre o 18 de brumário), conferir CAVA, B (2016).
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partir de uma lógica mutante que pode ser extraída dos próprios lineamentos (e que, portanto, não é formal ou derivada de uma atividade a priori, e nem aponta para um fora tido como um grande Outro), trata-se de pensar que formas de instauração (Souriau), podem corresponder aos novos modos de existência que ganharam consistência e extensão a partir dos levantes de Junho de 2013. Em outras palavras, que práticas, gestos, mapeamentos, novas conexões, alianças e composições poderiam se revelar das malhas que estão sendo fabricadas. Nesse caso, o que poderíamos fazer, retomando o comentário de Deleuze e Guattari sobre os desdobramentos de 1968, é apenas indicar alguns eixos para possíveis fugas e para as reconversões subjetivas que poderiam estar à altura dos levantes, tendo em vista os arranjos entre segmentos duros e flexíveis que estão montados para governar a nossa vida. Nessa linha, ao invés de querer aplicar uma forma à matéria, e assim construir mais um ponto de vista sobre o acontecimento, trata-se de indagar que pontos de vista foram lançados pelos próprios levantes, constituindo uma zona de expansão dos fluxos que não se acomodaram nas tentativas de reconfiguração dos segmentos duros e flexíveis do pós-Junho. Algumas desses eixos poderiam ser sintetizados nas seguintes direções: primeiro, que há um esgotamento definitivo do modelo que opõe desenvolvimentismo e neoliberalismo, tendo Junho atacado a dupla implicação, por baixo e por cima (molecular e molar), entre as chamadas coalizões produtivistas e rentistas; segundo, que não houve qualquer ruptura em 2016 no regime de acumulação, e sim uma tentativa fracassada de gerir a crise através do aprofundamento de vetores que já estavam estabelecidos anteriormente (reformas, ajustes, alianças políticas indiscriminadas etc.); terceiro, que do ponto de vista dos levantes, a corrupção não é um assunto secundário ou moralizante, mas expõe o modo de organização das novas relações entre público e privado (nos moldes analisados por Francisco de Oliveira desde O ornitorrinco) e os seus terríveis impactos nos espaços de decisão (daí a relação incontor-
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nável entre Junho de 2013 e a Lava Jato); quarto, que o consórcio oligárquico público-privado, reorganizado nos últimos anos, continua impondo à população a conta de um modo de governo baseado no saque generalizado e, por isso ressoa, de 2013 a 2018, o grito: “nós não pagaremos essa conta”; quinto, que a nova visão do que nos é intolerável se recusa a ser controlada pelas velhas polarizações forjadas no sistema político (PT vs PSDB), e também pelas novas, aquelas que se apresentam no pós-Junho ainda mais mistificadas, na forma de guerras culturais e de narrativas; sexto, que no ato de recusa das armadilhas dualistas e moleculares que desejam restaurar Junho, foi criado um terreno político difuso, heterogêneo e insistente que busca materializar a nova distribuição do sensível produzida por Junho de 2013. Cada eixo indicado (e outros poderiam ser mencionados de acordo com cada traçado) concentra uma série de riscos, possíveis impasses, bloqueios, mas também as condições para novos atos de criação e reconversões subjetivas que possam dar uma resposta à altura dos levantes. Para além do binômio neoliberalismo-neodesenvolvimentismo, linhas que apontam para novas formas de mobilização e proteção social baseadas em políticas do comum (renda universal garantida, acesso livre ao conhecimento, Passe Livre, serviços público-privados convertidos em serviços comuns, formas de auto-organização do território etc.); do binômio punitivismo-cumplicidade, linhas que buscam criar formas de controle político e democrático que não se limitam às esferas judiciais, democratizando as próprias investigações; do binômio esquerda-direita, novas confluências políticas não subordinadas às repartições de poder da República de 1988 e a recusa das novas polarizações que se retroalimentam das guerras culturais. Considerando as infinitas possibilidades de dissolução dos binarismos que uma trama comporta, trata-se, em todos os casos, de substituir o modelo trincheira-projeto, pela perspectiva linhas-fabricação, onde tudo dependeria de uma relação permanente entre criação e reconversão subjetiva em nível coletivo, linhas abstratas e combinações concre-
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tas (ainda no sentido estabelecido por Deleuze e Guattari no texto sobre Maio de 1968 e em Mil Platôs). Como inventar instituições a partir do desconhecido? Como encontrar uma nova distribuição das luzes, no momento que os olhos e suas velhas percepções não funcionam mais? Como continuar seguindo as linhas aberrantes de 2013 evitando cair da repetição do mesmo ou na introdução de terríveis arcaísmos? Sem dúvida não há espaço aqui para qualquer voluntarismo ou ação redentora. Tudo se refere, retomando Szaniecki, às condições de possibilidade de intervenção nos lineamentos que já são reais e que oscilam entre a “pureza” da criação e a concretude da reconversão. Uma malhagem que coloca em crise a lógica prometeica das grandes trincheiras, das contradições e dos nomes próprios, espalhando linhas que esperam um gesto adequado e reivindicam uma nova visão. É, talvez, esse esforço em afirmar uma nova percepção já conquistada (aquilo que já vimos e não queremos deixar de ver) que marca a insistência do agenciamento político instável, flutuante e sem coordenadas prévias que emergiu em Junho de 2013. É ele que, a cada nova investida, recusa as máquinas duais que tentam domar e se sobrepor ao acontecimento, buscando reconversões que conferem mais realidade ao que já existe. Seria o caso de pensar se não estaríamos diante da profecia de Francisco de Oliveira, às avessas: é Junho que parece comer incansavelmente o tempo, devorando com ele as velhas trincheiras que tornam a ação política impossível.
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O que podem as máscaras e as bandeiras? Uma leitura do livro The mask and the flag, d e P a o l o G e r b a u d o 57 Introdução Os levantes que sacudiram o mundo a partir da chamada Primavera Árabe, percorrendo uma trilha intensa que atravessou vários continentes, países e cidades permanecem um enigma para a percepção do horizonte político atual. As dispersas centelhas do grande incêndio continuam queimando, do violento tabuleiro geopolítico mundial às mesas de pesquisa de analistas políticos; das reuniões das cúpulas dos governos e instituições nacionais à circulação diária de mensagens, vídeos e memes pelas redes sociais. Passada a fase do grito, um insistente murmúrio continua a ressoar, assumindo múltiplas formas que só aparentemente estão desvinculadas das mutações provocadas pelos primeiros protestos e acampadas ocorridas no turbulento ano de 2011. O livro de Paolo Gerbaudo, intitulado The mask and the flag: Populism, Citizenism and Global Protest (2017), publicado pela Oxford University Press, constitui mais uma contribuição para o esforço de compreensão deste ciclo, sendo resultado de uma longa pesquisa teórica e 57. O debate em torno do livro The mask and the flag: Populism, Citizenism and Global Protest (2017), de Paolo Gerbaudo, foi sugerido por Bruno Cava, durante as atividades do colóquio Populismos, ocorrido no dia 26 de outubro de 2017, na Faculdade de Direito da UERJ. O evento foi organizado pela Rede Universidade Nômade em parceria com o grupo de pesquisa Assessorias Jurídicas do Comum.
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empírica que culmina em uma análise que consegue, ao mesmo tempo, acompanhar as linhas finas de movimento presente nas acampadas e captar uma ampla paisagem do levante através das suas mútuas implicações, do Egito aos EUA, da Turquia ao Brasil. Se existe um traço cinematográfico no livro, seria o de articular as técnicas do travelling e da panorâmica, oferecendo ao leitor um passeio no qual ele pode ser inserido nas discussões de uma assembleia popular em Barcelona para, logo após, ser lançado em grandes estruturas plasmadas por quadros comparativos. É através desse método que o livro constrói seu argumento principal: a grande inovação trazida pelo movimento das acampadas é a produção de uma prática e de uma concepção de cidadanismo que articula, tanto dimensões autonomistas e neo-anarquistas da geração pós-68, e elementos que poderiam ser caracterizados como “populistas democráticos”, hibridizando o repertório de duas tradições que durante todo o século 20 se repeliram de forma recíproca (representadas pela máscara de Guy Fawkes e as bandeiras nacionais). Assim, este populism turn, que passa a remexer os fios longos das formas de luta assentadas nas últimas décadas, conformaria o principal elemento de análise prático-teórica do novo ciclo e o próprio terreno que define as condições de ação política na atualidade (idem, p. 15). Por sua vez, o giro populista constitui também o ponto cego de uma série de teorias que tentaram explicar o movimento das acampadas de 2011-2016. A linha neo-anarquista (representada por autores como David Graeber, Mark Bray, Zibechi, Marina Sitrin, Dario Azzellini etc.) acerta em perceber o forte tom libertário e o apelo à auto-organização, mas não consegue compreender que esses movimentos compõem um mosaico mais amplo, no qual se inclui o populismo democrático (GERBAUDO, P. 2017, p. 13). A linha crítica marxista (representada por autores como Jodi Dean, Slavoj Zizek, Alain Badiou etc.) enxerga nos levantes um momento de ruptura com o pálido continuísmo histórico que predominou nas lei-
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turas conformistas sobre a vitória da globalização capitalista desde a década de 1990. Mas ao aproximar essa ruptura com uma “ideia de comunismo” revela um afastamento com a realidade das acampadas, que não poderia ser explicada por um novo clamor comunista, e sim pelo problema central da democracia e do funcionamento de suas instituições (idem, p.14). Por fim, a linha de interpretação “tecnopolítica” (incluindo trabalhos de W. Lance Bennett, Manuel Castells, Jeffrey Juris, Javier Toret, entre outros, e o livro anterior do próprio autor, intitulado Tweets and the Streets) é bem-sucedida em analisar a importância da cultura de rede nas novas formas de comunicação, deliberação e organização dos movimentos, mas falha em não englobar a totalidade da experiência social, incluindo os desejos e medos emergentes em uma época de crise sistêmica (idem, p.15). O propósito de Gerbaudo, portanto, é desenvolver uma compreensão dos movimentos das acampadas e do cidadanismo a partir da irrupção de uma “insurreição populista”, centrada em demandas por “soberania popular, igualdade econômica e a restauração de um verdadeiro espírito democrático” (idem, p. 15). A retomada de um zeitgeist populista aparece como uma tentativa de fender os impasses e bloqueios decorrentes de um mundo estilhaçado pela crise econômica e política provocada por décadas de governos neoliberais, por uma descrença cada vez maior na liderança de grandes empresários, de entidades da sociedade civil, de corporações de mídia, de entidades representativas de classe e de partidos políticos à esquerda ou à direita. Esta verdadeira oligarquia encrostada nos governos de países tão diversos é protagonista ou cúmplice de operações político-econômicas que se assemelham quando o assunto é corrupção, autoritarismo, saque generalizado e elitismo.
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1. Um movimento de cidadãos e não de ativistas É nas metrópoles e cidades acossadas pelo terrível atropelo provocado por megaeventos, grandes empreendimentos imobiliários, desvio e má utilização de fundos públicos, gigantescas obras públicas com finalidades duvidosas, propinas e consórcios mafiosos entre estado e mercado e enclausuramento autoritário do sistema político, que esse processo de (des)democracia se torna mais visível e ganha contorno dramáticos. No topo das operações, em casos como os do Egito, Tunísia, Grécia, Espanha, EUA, Turquia e Brasil, se aglutina uma rede de políticos, empresários, altos funcionários do estado, membros dos principais poderes constituídos, o próprio primeiro escalão dos governos e, nos casos das monarquias, membros da família real. As acampadas surgem como um ressoante microfone contra todas essas práticas, mas também como o espaço de uma poderosa aliança que articula novas figuras subjetivas advindas das situações de pobreza, precariedade e perda de expectativa com relação ao futuro. Além disso, diferentemente da configuração do movimento antiglobalização do final na década de 90 e do início dos anos 2000, ainda muito restritos aos círculos ativistas e “politizados”, o movimento das acampadas extravasa para todos os lados, sendo marcado por uma grande aprovação pública, uma participação direta inédita da população (quase 10% em alguns casos) e a forte presença de pessoas que se caracterizam como “cidadãos comuns”, ao invés de se identificarem por uma organização política ou uma rede de militância. Na feliz síntese de um dos entrevistados: “É um movimento de cidadãos e não um movimento de ativistas” (idem, p. 51). Uma das ferramentas analíticas utilizadas por Gerbaudo para lançar luz aos novos e originais aspectos do ciclo das acampadas é exatamente cotejá-lo com as iniciativas de luta que ele caracteriza sob o signo de
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“movimentos pós-68”, em especial o ciclo de lutas antiglobalização do final da década de 1990. Portanto, do ponto de vista da estratégia política, enquanto o movimento antiglobalização tem o seu foco na crítica às agências multilaterais e aos fóruns internacionais, o que muitas vezes lhe conferia um tom abstrato e distante, o ciclo das acampadas buscou atingir diretamente e concretamente figuras que encarnavam a oligarquia (políticos, empresários, ditadores etc.), adotando o espaço nacional como terreno de enfrentamento (sem recusar os intercâmbios internacionais). Ao invés de gritar contra o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC) ou a coalizão do G8, as acampadas e os protestos miravam em Mubarak, Kadafi, Ben Ali, o Goldman Sachs, Lehman Brothers, o “PPSOE” – e poderíamos acrescentar: Eike Batista, a família Barata, Cabral etc. (idem, pp. 113-135). Do ponto de vista da composição, enquanto o primeiro possuía como base social-territorial um amplo arquipélago de movimentos, comunidades autogeridas, organizações civis, centros sociais, espaços de contracultura e contrapoder minoritário, o segundo apela para a uma ideia de maioria e busca a formação de identidades populares sincréticas e inclusivas (ex: “somos os 99%”, “somos todos Amarildo”, “Nós, os cidadãos” etc.). Assim, se o movimento antiglobalização desenvolve uma gramática altamente voltada para o círculo de ativismo e uma prática cultural contrária ao mainstream, as acampadas tentam se dirigir ao simples cidadão, através de uma gramática do cotidiano, do senso comum e de práticas que apelam para o desejo de uma vida normal livre das oligarquias (idem, pp. 89-113). No que se refere à relação com o Estado, enquanto o ciclo antiglobalização condensa práticas de autogestão, de autonomia local e de estratégias de luta contra o estado; o segundo desenvolve uma estratégia de assalto às instituições, buscando através de uma abertura para a cidadania e a luta contra a oligarquia, a transformação das estruturas do estado na direção de uma democracia renovada. A lógica da multidão é
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substituída pela construção de um povo que desperta e se une para retomar o controle de instituições carcomidas pela perda completa de legitimidade derivada dos pactos mafiosos que sustentam a casta política e econômica. Essas distinções produzem efeitos na própria forma do movimento enxergar o papel da ocupação das praças e a construção tática das acampadas. Primeiro, enquanto o movimento antiglobalização montava os seus acampamentos em locais distantes, posicionados de acordo com a ação direta a ser organizada contra os fóruns internacionais, o movimento de 2011 situa o acampamento no local mais central possível, tornando o espaço mais acessível e inclusivo. Segundo, enquanto o movimento antiglobalização compartilhava através das ocupações uma subcultura ativista e claramente de esquerda, o movimento das acampadas utiliza a praça para fazer circular uma cultura cidadã, baseada na fala e na experiência do cidadão comum. Terceiro, enquanto a tendência neo-anarquista e autonomista enxerga nos acampamentos um laboratório de autogoverno, ou uma experiência de produção do comum, o populismo insurrecional trata as praças como um espaço de ressonância que envolve amplos setores da sociedade, evitando o enclausuramento da ocupação no interior de uma experiência unicamente ativista (idem, pp. 157-181). A última distinção pode ser feita com relação às práticas de comunicação e interação com os participantes do movimento e com a sociedade em geral. Enquanto os movimentos antiglobalização desenvolveram uma série de criações voltadas para o uso autônomo da tecnologia, através de plataformas de comunicação, servidores próprios, software livres e redes sociais (experiências como o Indymedia, o Riseup, o N-1 etc.), as acampadas e os protestos do ciclo de 2011 inundaram também as redes sociais majoritárias, utilizando predominantemente o Facebook e o Twitter. O objetivo seria atingir o público mais amplo possível, garantindo também uma ampla participação de cidadãos que utilizam essas ferramentas no cotidiano. Portanto, a cyber-cultura, ou a cultura digital
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livre, que se produziu nas décadas anteriores acaba se articulando com uma nova espécie de “cyber-populismo”, menos autônoma com relação à gestão, porém com mais capacidade de atingir simultaneamente milhões de pessoas (idem, pp. 135-157).
2. Um cidadanismo com lógicas distintas No entanto, apesar das distinções entre essas duas tendências, Gerbaudo percebe no ciclo de 2011 uma composição híbrida que articula práticas neo-anarquistas e práticas populistas democráticas. A nova concepção de cidadanismo forjada nas acampadas não pode ser explicada apenas pelo repertório populista tradicional (liderança carismática, partido anti-sistema e democracia plesbicitaria), mas pela articulação de duas lógicas distintas: a) ação participativa contra estruturas burocratizadas e hierarquizadas, valorizando processos mais horizontalizados e que respeitam a singularidade dos indivíduos; b) ação de massa, que pensa a construção de políticas populares pela união do povo e por processos mais verticalizados. Para o autor, a combinação das duas lógicas, resultou em uma ação em grande escala que não precisou fazer referência a qualquer instituição de massa, já que o tecido que fabricou o povo como sujeito de ação era composto de um amplo rizoma que remonta ao estilo de luta pós-68 (idem, p. 76). Assim, para Gerbaudo, no interior do populist turn que emergiu nos últimos anos, há também um “giro libertário” que indica a particularidade da atual reinvenção do cidadanismo no contexto das acampadas. Isso significa uma diferença qualitativa com relação ao coletivismo exacerbado, aos métodos verticalizados de tomada de decisão, à figura da liderança carismática e dos aparatos burocratizados. O novo cidadanismo social articularia uma ampla aliança contra a oligarquia, mas sem abrir mão do aprofundamento da participação social, da necessidade de reformas políticas democráticas, de garantias relacionadas à jus-
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tiça social e um ethos libertário relacionado à criatividade e à autorrealização. Na síntese do autor, este “anarco-populismo” seria: “populista no conteúdo, mas libertário ou neo-anarquista em sua forma” (idem, p. 17). Essa relação também esteve presente nas dinâmicas das assembleias populares, que inovaram ao apontar para a criação de um âmbito que reforça a ideia de unidade e de ampla inclusão nos processos de decisão das acampadas. Por isso, diferentemente das assembleias realizadas no circuito ativista dos movimentos anteriores, as novas acampadas tiveram que lidar com uma participação em massa que, em muitos casos, ficou conhecida como um verdadeiro “parlamento do povo” (idem, p. 184). Por outro lado, uma série de limitações foram evidenciadas através dos inúmeros conflitos envolvendo regras de participação, organização interna do acampamento, processos infindáveis de discussão, grau de centralização do espaço de decisão, falta de objetividade nos debates, levando também a momentos de paralisia, desânimo e esvaziamento das ocupações (idem, p. 203). Para Gerbaudo, a estratégia de “assalto das instituições” ganha força na mesma medida em que a dinâmica de ocupações e assembleias começa a evidenciar seus limites e impasses. Animados por um espírito coletivo e de solidariedade, ativistas começam a pensar em campanhas e organizações mais estruturadas, incluindo novos partidos políticos. É o momento de afirmação de uma “onda de renovação cívica” que, na esteira de uma política cidadã e participativa, utiliza as práticas e o léxico das acampadas para se direcionar às instituições em crise. Além da emergência de novas organizações, campanhas e movimentos o dia seguinte das acampadas também testemunha a renovação à esquerda que fomentou o surgimento de partidos como Podemos (Espanha), Syriza (Grécia), a campanha de Bernie Sanders (EUA) e Jeremy Corbyn (Reino Unido), o crescimento do Partido Democrático Popular (Turquia), além de formações municipalistas que carregam uma herança mais libertária e neo-anarquista (idem, pp. 223-231).
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Mesmo que todos os limites demonstrados por essas experiências sejam reconhecidos (a brevidade do ciclo das assembleias, as tensões com relação à questão da liderança, o fracasso de algumas propostas eleitorais como o Syriza, a ascensão de um populismo de direita que disputa o mesmo terreno deixado pelas acampadas, o desdobramento militar e autoritário no norte da África etc.), Gerbaudo afirma a positividade do movimento das acampadas como o “ano zero” para um novo progressismo do século XXI. E talvez o traço marcante desse novo horizonte seja a possibilidade de combinação de duas exigências que aparentemente são contraditórias: autonomia, auto-organização local, participação direta e a produção de novas instituições em grande escala a partir da estratégia de assalto ao estado e abertura de novos arranjos institucionais. Se as acampadas não realizaram imediatamente o desejo de uma democracia real, ancorada na ampla participação dos cidadãos e na expulsão da Oligarquia, elas espalharam pelo mundo “a profecia de uma democracia que vem” (idem, p. 246).
3. Um movimento híbrido e enigmático O percurso argumentativo conduzido por Gerbaudo, a partir de um vasto material empírico, valoriza um conjunto importante de questões relacionadas ao ciclo da Primavera Árabe que são indispensáveis para uma compreensão não enclausurada e reduzida do fenômeno. O texto é imediatamente político por oferecer ferramentas para um deslocamento que recusa formas de percepção centradas em práticas e leituras já assentadas na tradição de esquerda ou dos círculos ativistas que participaram das lutas das últimas décadas. Por outro lado, como será abordado neste texto, o autor parecer não levar esse descentramento às ultimas consequências, buscando uma solução de meio baseada ainda em categorias pré-estabelecidas, com consequências também políticas.
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Assim, sem dúvida, o traço mais importante do livro é reconhecer que o movimento das acampadas, sobre os escombros da crise de 2008 e da perda de legitimidade do sistema político em escala mundial, produziu atores que são verdadeiramente “monstruosos” (idem, p. 30). Para Gerbaudo, a metáfora por ser utilizada por ser “bem pertinente com relação à característica híbrida e enigmática do movimento das praças, e suas respostas contraditórias para o período de crise e instabilidade” (idem). O movimento oferece, portanto, uma grande dificuldade para aqueles que desejam recusar esse caráter híbrido e o complexo mosaico que se formou em todos os países atravessados pelos levantes. O ponto de partida atinge bons resultados. Através dele, o autor pode caracterizar o enfrentamento às bandeiras dos velhos partidos e movimentos sociais, não como prenúncio de fascismo e de ignorância, mas como um “um movimento iconoclasta” que força o “abandono de todas as identidades esquerdistas pré-existentes” e suas “exauridas iconografias” (idem, p. 109). Por sua vez, o fenômeno majoritário produzido pela inédita participação de milhões de pessoas é analisado como uma grande e heterogênea aliança de pessoas comuns em busca de mais democracia, e não pela premissa fechada de que toda maioria é conservadora e reacionária (idem, p. 94). A ampla participação da população constitui a base para uma nova concepção de cidadania social, e não um elemento heterogêneo que deve ser incorporado à gramática dos círculos ativistas. O slogan “nós estávamos dormindo, nós acordamos”, presente em uma placa da Puerta del Sol (Madri), é lido como o despertar de um novo terreno de luta por democracia, e não como a intrusão dos “despolitizados” no terreno tradicionalmente conduzido pela esquerda. A própria recusa da dicotomia esquerda e direita pelo movimento das acampadas traduziria uma tentativa de produzir uma aliança mais ampla, um novo sujeito revolucionário híbrido que confronta politicamente a oligarquia, e não um sinal de despolitização generalizada ou um sinal de que, mesmo de forma disfarçada, o movimento é “de direi-
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ta”. A denúncia com relação às práticas de corrupção, a referência aos políticos e instituições corruptas em cada país não são um signo de moralização conservadora ou de abstração do movimento, mas uma estratégia política concreta para enfrentar a expropriação da democracia através de uma percepção compartilhada por toda a população. A indignação não é uma forma ressentida ou irracional de fazer política, mas deve ser compreendida como uma exigência para que os cidadãos se tornem “membros ativos de sua comunidade política com uma voz igual em todas as decisões importantes” (idem, p. 07). Todos esses exemplos apontam para um conjunto de práticas que deslocou cultura ativista dos anos anteriores e produziu um estranhamento (em alguns casos uma verdadeira repulsa) que até hoje predomina nos espaço que se reconhecem como “de esquerda”, ponto que foi intensamente explorado pela reação governista brasileira (veremos no próximo tópico). Por outro lado, o que garantiu a força dos levantes foi exatamente o seu caráter híbrido e a sua escala inédita. A inovação reside exatamente na conexão improvável entre os “laboratórios do comum” que se forjaram nas praças e nos protestos de rua e a ampla participação social que ocorria de forma difusa e inesperada (o exemplo brasileiro sendo a famosa enquete promovida pelo apresentador José Luiz Datena, quando o telespectadores aprovavam os protestos mesmo “com baderna”). Assim, o livro enfrenta quatro tendências de análise que ainda predominam sobre o movimento das acampadas. Primeiro, uma linhagem que acaba exasperando a percepção e a experiência dos círculos ativistas, ignorando todo um conjunto complexo de participações, apoios e mobilizações sociais que ocorreram por fora de sua subcultura (as mobilizações dos “despolitizados”); segundo, uma linhagem que reconhece esse mosaico heterogêneo, mas o reduz ao campo conservador, reacionário e até fascista; terceiro, uma leitura que conclui que o sentido do movimento foi conservador em geral, qualificando os ativistas de ingênuos, irresponsáveis ou manipulados, tendo aberto a caixa de Pando-
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ra do conservadorismo; por fim, no próprio campo conservador, uma linha que, olhando para trás, enxerga nas acampadas o momento de união do povo contra uma fase histórica permissiva baseada no excesso de direitos, liberdades e conquistas democráticas. Essas quatro linhagens, cada uma com sua forma pré-estabelecida, operam como um regulador moral da experiência das acampadas e dos protestos, depositando sua capa de chumbo sobre a experimentação híbrida e enigmática do movimento. Trata-se de um juízo permanente que busca conformar o terreno flutuante que proliferou a partir do ciclo a categorias políticas, teóricas e morais pré-estabelecidas, tendo como efeito o próprio fechamento do movimento em formas deterioradas e impotentes (ex: as atuais guerras culturais e de narrativas que ocorrem no Brasil, comentadas anteriormente). Ao afirmar que o ciclo das acampadas continua sendo o terreno sobre o qual devemos pensar a democracia hoje, o livro de Gerbaudo repõem, contra essas tendências, a atualidade de sua dimensão ético-política e o desafio de uma ação política que continue seguindo a centelha do grande incêndio.
4. Uma leitura a partir da América Latina É preciso, no entanto, perguntar até que ponto o próprio autor consegue se manter à altura de sua metodologia e dos enigmas e monstruosidade das forças de transformação produzidas nas acampadas. Até que ponto seria possível incorporar essas forças a categorias do pensamento político (autonomismo x populismo democrático), sem perder algo que desliza do campo conceitual existente? O artifício de encontrar um tertium genus (o “anarco-populismo”: anarquismo na forma, populismo no conteúdo) é suficiente para enquadrar todas as partículas que escaparam e turbinaram o ciclo das acampadas? O problema começa no confronto analítico entre o movimento antiglobalização e o movimento das acampadas, recurso utilizado por
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Gerbaudo para evidenciar as especificidades deste último ciclo. Embora o mecanismo tenha sido bem-sucedido para descrever algumas características próprias do movimento de 2011, a análise do movimento antiglobalização parece ter sido mutilada de elementos importantes para que a dicotomia funcionasse perfeitamente. O Fórum Social Mundial (FSM), por exemplo, é caracterizado como um espaço em rede formado por organizações heterogêneas que são ciosas de sua autonomia e diversidade (idem, p. 188). O movimento antiglobalização é descrito, lembramos mais uma vez, como um arquipélago de pequenas unidades sociais, indivíduos, coletivos e comunidades locais sustentadas pelo princípio da autodeterminação e auto-organização. E, com efeito, o conceito que, para Gerbaudo, poderia melhor traduzir essa multiplicidade seria o de “multidão”, utilizado por Antonio Negri e Michael Hardt para dar conta de uma multiplicidade que é formada por singularidades irredutíveis (diferença)58. O livro parece, assim, caracterizar de forma bem homogênea um ciclo que, sem dúvida alguma, também foi objeto de importantes divergências com relação a diferentes plataformas políticas e formas de organização. Em artigo sobre o FSM de Porto Alegre, intitulado Today’s Bandung (2002), Michael Hardt comenta que o clima festivo, celebratório e até caótico poderia ter levado ao esvaziamento da “mais importante diferença política que atravessou o Fórum”: a questão da soberania nacional. Para o filósofo americano, em tese que já havia sido longamente desenvolvida com Antonio Negri no livro Empire (2000), existiam no FSM duas posições que buscavam responder às forças dominantes da globalização: a primeira, parte do fortalecimento da soberania nacional para reivindicar barreiras e mecanismos defensivos contra a ingerência do capital global; a segunda, assume o terreno da globalização 58. Sobre o conceito de multidão, cf. NEGRI, A. Cinco lições sobre Império. Tradução de Alba Olmi. Rio de Janeiro: DP&A, 2003; NEGRI, A; HARDT, M. Império. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2000. NEGRI, A; HARDT, M. Multidão. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.
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para, questionando o capital tout court (regulado ou não), construir resistências por dentro das relações de poder globais (HARDT, M. 2002, p. 115). Para Hardt, a tendência soberanista era capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que sediava o evento, pela ATTAC (Association pour La Taxation des Transactions pour l’Aide aux Citoyens) e pela direção do Le Monde Diplomatique, obtendo uma posição majoritária através da participação nas atividades e mesas centrais do FSM e atraindo a maioria das organizações centralizadas. A tendência alterglobalista, por sua vez, foi expressa por uma miríade de movimentos em rede que seguiam as práticas e a gramática testada nas lutas anteriores de Seattle, Gênova e Buenos Aires, logrando apenas uma posição minoritária no evento (idem). Outro capítulo dessa divergência foi a própria recepção do livro Empire por autores da esquerda soberanista, presentes também no FSM, que viram no livro uma ameaça à posição anti-imperialista de defesa da soberania nacional que buscava estabelecer uma frente contra as estratégias de dominação conduzidas pelos EUA. Na famosa crítica de Atílio Borón (2004), Negri e Hardt são rechaçados como “complacentes ao Império”, como cúmplices de uma visão do capitalismo “cultivada com esmero pelas principais escolas de negócio dos Estados Unidos e Europa” (BORON, 2004, p. 16), como autores de um livro, não por acaso, “aclamado como uma verdadeira revelação pelos meios de comunicação mais importantes do mundo e intimamente associados à estrutura imperialista” (idem, p. 156). Portanto, está longe de ser consensual a estratégia mais autonomista assumida no contexto dos movimentos antiglobalização na busca do espaço global como terreno de atuação. Pelo contrário, o debate sobre o papel da soberania nacional e das formas de resistências pensadas a partir do Estado-nação foi central durante todo o ciclo, colocando, de um lado, partidos de esquerda e organizações centralizadas e, de outro, movimentos em rede e defensores da auto-organização. O próprio con-
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ceito de multidão, fabricado para dar conta desse último mosaico, foi muitas vezes questionado por produzir uma “diluição das lutas revolucionárias” e o abandono de uma posição de classe ou de base popular (PETRAS, J. 2001, p. 28). Além disso, não só o ciclo antiglobalização adquiriu uma conformação nacional em vários países da região (o caracazo venezuelano, os piqueteiros argentinos, os protestos contra as privatizações no Brasil, a guerra do gás e da água na Bolívia, os movimento indígenas e urbanos no Equador etc.), como alimentou mudanças efetivas nos governos desses países. E, mais uma vez, o debate entre vertentes soberanistas, populistas ou herdeiras do nacional-popular e autonomistas, neo-anarquistas e movimentos em rede esteve presente, indo da discussão entre o conceito de Povo e a multiplicidade de novos sujeitos políticos nas constituintes da Bolívia e do Equador, ao papel da cultura livre e digital na conformação de novas políticas públicas nos governos recém-empossados, como no Brasil59. Ao suprimir a grande influência da tradição soberanista e nacional-popular latino-americana no contexto do ciclo anti-globalização, Gerbaudo acaba por menosprezar todo o histórico de reflexão sobre o recente ciclo populista no Continente e seus efeitos na terrível crise que ora emerge no interior dessa tradição. Reconhecendo o perfil neo-populista dos governos latino-americanos, a crise só merece um pequeno comentário en passant indicando que há atualmente um giro autoritário realizado por parte desses governos (GERBAUDO, 2017, p. 73). Depois dessa pequena advertência, que não encontra qualquer aprofundamento durante o livro ou relação com a estratégia populista em geral, os 59. Para esse propósito, cf. PRADA, R. Análise da nova constituição política do Estado. In: LABTec/ESS/ UFRJ. Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. Rio de Janeiro: UFRJ, n. 25-26, maio-dez., 2008, pp. 73-89; SCHAVELZON, S. La Assembleya Constituyente de Bolivia: Etnografia del Nacimiento de un Estado Plurinacional. Tese de doutorado apresentado ao Museu Nacional da UFRJ no programa de pós-graduação em Antropologia Social, 2010; Tarin; B; BELISÁRIO, A. et al (Orgs). Copyfight: pirataria e cultura livre. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2012. COCCO, G. NEGRI, A. Globa(AL): Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005
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governos são destacados por ter tido fortes “vínculos com movimentos populares” ou, no caso brasileiro, “uma forte relação com o movimento dos trabalhadores e várias mobilizações populares” (idem, p. 213). A pouca atenção dada pelo livro ao populismo latino-americano acaba produzindo efeitos transversais que afetam toda a análise, não se restringindo apenas à caracterização dos embates travados no FSM e no contexto das lutas antiglobalização. Com relação aos impactos da crise global de 2008, por exemplo, Gerbaudo centra sua análise, como já foi mencionado, nos efeitos causados pela “ideologia neoliberal de livre-mercado” (idem, p. 43), com a produção de um batalhão de novos pobres e pessoas precarizadas, em especial jovens, que depois compuseram a frente de batalha do ciclo das acampadas. Embora a premissa possa ser aceita de forma geral, do ponto de vista da América Latina a análise deve mudar consideravelmente. O impacto da crise global na região, incluindo a perda de legitimidade das fórmulas neoliberais presentes nos próprios governos, provocou um acirramento nas políticas neodesenvolvimentistas e neo-extrativistas, com o aprofundamento de novas formas de populismo econômico e político (o último ganhando contornos caricatos conforme a crise se acentuava). Ao contrário dos ajustes fiscais praticados pela oligarquia financeira na Europa no pós-2008, os “governos progressistas” responderam, não através do fortalecimento de suas prévias tendências neoliberais no campo da estabilidade econômica, mas encontrando na crise um meio de exercer uma virada “anti-neoliberal”, de cunho neonacionalista, satisfazendo, ao mesmo tempo, um grupo de grandes empresários privilegiados e todo o arco da esquerda soberanista que agitava seus manifestos no FSM e alhures. O Brasil, depois da Venezuela, talvez, seja o caso mais visível da deterioração produzida a partir da escolha de Dilma Rousseff, por Lula, para concorrer à presidência e a consequente adoção de uma “Nova Matriz Econômica”, que na verdade traduzia, em grande parte, uma velha aposta econômica a partir de acentos nacionais-populistas: a) política fiscal liberada das preocupações com relação à inflação; b) protagonis-
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mo dos bancos estatais através de repasses do Tesouro; c) protecionismo tarifário; d) estímulo à formação de grandes players nacionais (atualmente todos quebrados ou em fusão com grandes multinacionais); d) redução forçada dos juros; e) tentativa de estabelecer um populismo tarifário, em especial no fornecimento de energia elétrica; f) estímulo a grandes obras e empreendimentos com o resgate, inclusive, de projetos nacionalistas da ditadura militar; g) a promoção de megaeventos (Copa do Mundo, Olimpíadas), com a tentativa de exortação de um orgulho nacionalista, qualificando seus críticos de pessimistas ou ignorantes do protagonismo assumido pelo Brasil no contexto global; h) estímulo inédito ao agronegócio que passa a ser considerado um dos principais setores “produtivos” brasileiros; i) a ampla utilização dos fundos públicos para investimentos relacionados à “Nova Matriz”, produzindo uma nova casta de gestores, em parte oriundos da esquerda nacionalista e sindicalista, e, posteriormente, uma crise financeira nos ativos dos mesmos fundos; j) adoção de uma estratégia militar baseada da ideia de defesa nacional, com o desenvolvimento de submarinos atômicos e aquisição de caças de combate, entre outros exemplos. Esse conjunto de medidas, que produziram um consenso autoritário com reflexos imediatos nas poucas brechas democráticas produzidas nos anos anteriores, ainda sob o empuxo do ciclo alterglobalização, está na base da grande onda de indignação emerge no Brasil em Junho de 2013. Ao contrário das acampadas europeias e americanas que se insurgiram contra a tecnocracia financeira que geria a crise, em um contexto de uma profunda retração econômica, no Brasil, Junho de 2013 constituiu um fenômeno de vidência com relação aos efeitos da virada populista na economia e na política, encontrando eco em outras lutas que já estavam acontecendo na Bolívia, Equador, Argentina, Venezuela, contra as torções soberanistas realizadas pelos ditos governos progressistas60. 60. Sobre o tema, cf. MENDES, A.F. et al (Orgs.) O fim da narrativa progressista na América do Sul. Juiz de Fora: Editar, 2016; MACHADO, D. ZIBECHI, R. Cambiar el mundo desde arriba: Los limites del progressismo. La Paz: CEDLA, 2016. Há também um intenso debate realizado em revistas e jornais digitais.
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Se, por um lado, a ausência de uma análise qualitativa com relação ao ciclo latino-americano permite a Gerbaudo manter o funcionamento da dicotomia que anima o livro (neo-anarquismo e populismo democrático e a saída pelo tertium genus), por outro, parece ter consequências, não só, na compreensão da emergência de Junho no Brasil, mas nas próprias considerações sobre os desdobramentos dos levantes brasileiros. Ao contrário das claras considerações sobre a reação autoritária nos governos dos países árabes, Gerbaudo prefere não analisar o papel do governo Dilma na organização da repressão aos movimentos e o papel da esquerda dominante na destruição política e subjetiva da “aliança monstruosa” que articulou os círculos ativistas às circularidades mais amplas da sociedade em geral. Para preencher o vazio, o autor acaba apelando para clivagens simplistas entre “direita” e “esquerda” que já estavam sob um questionamento bem mais interessante na análise das características do novo cidadanismo. A simplificação se torna evidente quando o autor, embora reconhecendo a insatisfação generalizada contra o governo Dilma, afirma que no Brasil “os protestos foram em sua maioria explorados pela direita” (idem, p. 220), ou que houve a partir de março de 2015 uma “escalada da direita”61, sem deixar nenhum espaço para uma percepção da indignação dotada de mais nuances, por fora do esquema “tudo ou nada”. Em outro exemplo, o coletivo Fora do Eixo e o projeto Mídia Ninja aparecem como “a mais famosa mídia alternativa que emergiu dos protestos do Movimento de Junho” (idem, p. 221), sem qualquer referência à verdadeira trajetória político-cultural do segundo coleti-
Uma boa sistematização pode ser encontrada no artigo: CAVA, B. Podem os governos progressistas sobreviver ao seu próprio sucesso? In: IHU Online, janeiro de 2006b. Disponível em: http://www.ihu.unisinos. br/78-noticias/550495-podem-os-governos-progressistas-sobreviver-ao-proprio-sucesso Acesso em 01 de agosto de 2018. 61. Sobre as manifestações do dia 15 de março, cf. COCCO, G. As manifestações de março são o avesso de Junho de 2013. Entrevista concedida ao jornal IHU online, no dia 23 de março de 2015. http://www. ihuonline.unisinos.br/artigo/5824-giuseppe-cocco-8
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vo que, como vimos, passa de organização autônoma a braço cultural e mediático subordinado ao FdE, ao governo Dilma e ao Instituto Lula. Nos próprios marcos de análise estabelecidos por Gerbaudo, no percurso do livro, teria sido muito mais adequado buscar compreender, em primeiro lugar, como os governos progressistas acabam, principalmente a partir da crise de 2008, fortalecendo e reconfigurando relações oligárquicas tradicionais – do agronegócio, aos novos gestores de fundos públicos, de grandes empresários “nacionais” a agentes do sistema de justiça, de gestores do mercado financeiro a uma nova camada de burocratas. Segundo, como o cidadanismo poderia constituir um campo de antagonismo em tensão permanente que extrapola tanto os círculos ativistas da esquerda, como as tentativas de canalizar a indignação para plataformas neoconservadoras. Vale notar também que as análises europeias sobre o problema na permanência do extrativismo na região, que Gerbaudo parece seguir, não dão conta da reconfiguração oligárquica que ocorreu no contexto do populismo latino-americano, fenômeno intitulado por Raúl Zibechi e Decio Machado como “as novas elites sob o marco do progressismo”, a partir da análise do caso brasileiro e boliviano (ZIBECHI, R. MACHADO, D. 2017, pp. 89-127). Essa reconfiguração pressupõe uma mutação qualitativa radical no campo do velho desenvolvimentismo e do extrativismo, inserindo-os em um novo ideário de flexibilização produtiva, dotação e modernização em infraestrutura, formação de capital humano, proteção à propriedade industrial e aos patentes, acordos com transnacionais para suprimento tecnológico, pragmatismo do Estado no incentivo a determinados setores vistos como estratégicos e estímulo ao agronegócio como forma de aumento geral da rentabilidade e capitalização (idem). Portanto, por mais que no início dos levantes de 2013 o governo federal não fosse o alvo prioritário dos protestos, a necessidade de manter o pacto oligárquico de bases neodesenvolvimentistas resultou, primeiro, na inércia em atender aos desejos e aspirações dos manifestantes
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e dos cidadãos em geral, depois, na estratégia de repressão generalizada e difusão do medo e, por fim, em uma tentativa de retomar a legitimidade política em 2014 a partir de uma campanha eleitoral completamente falsa e financiada pelo mesmo pacto oligárquico. Se a estratégia fracassou drasticamente para manter a estabilidade política e a continuidade do “governo progressista”, ela foi bem-sucedida em reorganizar todo o campo ativista e militante, que abandona os vetores autônomos desencadeados em Junho de 2013 para orbitar novamente em volta da centralidade petista. Pode-se dizer que o resultado dessa operação, utilizado o léxico de Gerbaudo, foi a separação entre as máscaras e as bandeiras nacionais, produzindo uma cisão insuperável entre o ativismo e a militância que se identificam à esquerda e o cidadanismo difuso que se abrigou em símbolos nacionais e os apelos à unidade do povo contra a oligarquia. No campo do ativismo, isso foi realizado em dois momentos, primeiro, retirando o apoio público às dimensões mais insurgentes dos protestos através de um consenso midiático que mobilizou tanto a mídia corporativa como as plataformas geridas pela esquerda (a antiga blogosfera lulista); segundo ao retomar o controle dos círculos ativistas através de uma permanente chantagem cuja premissa é a ideia de que todo o campo cidadanista de Junho é conservador e até fascista (o germe da “onda conservadora”). Nessa linha, se assumirmos o ponto de vista de Gerbaudo sobre o ciclo populista na América Latina, é preciso reconhecer que, no Brasil, o populismo dos governos progressistas não só reconfigurou o pacto oligárquico em novos marcos como, a partir de 2013, passa a atacar a aliança heterodoxa e potente, presente em todo o ciclo das acampadas, entre a dimensão populista insurrecional e os círculos ativistas autonomistas ou neo-anarquistas. Por isso, como vimos anteriormente, é difícil dizer, como fazem as análises políticas condescendentes, que a esquerda “não compreendeu Junho 2013” ou que teria “se equivocado” naquele momento. Pelo contrário, não só compreendeu o fenômeno
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do ponto de vista político e subjetivo, como o atacou em seu ponto mais potente: a relação híbrida entre as máscaras e as bandeiras nacionais, a abertura de uma nova forma de fazer política que não estava dada nas tradições anteriores. O efeito é triplo: o campo do ativismo perde a autonomia e a capacidade de ação, se convertendo ou em militância tradicional de esquerda ou se espalhando em múltiplos fragmentos identitários que funcionam, muitas vezes, sob uma lógica hermética, exclusivista ou concorrencial (a disputa entre os “locais de fala”); o campo do cidadanismo perde sua dimensão de inovação, canalizando sua indignação para pautas ultraconservadoras ou deixando-se capitanear por grupos oportunistas e performáticos; por fim, forma-se um processo difícil de ser categorizado – extremamente móvel e difuso – que recusa a nova polarização entre militância e neoconservadorismo. Esse terreno flutuante em constante mutação parece buscar, através de articulações não organizadas e cotidianas, o retorno de uma circulação autônoma da indignação e das aspirações por uma democracia livre do poder oligárquico, inscrevendo no próprio processo desencadeado pelos levantes as possíveis combinações materiais ligadas a essa nova percepção.
5. O que pode uma aliança? É no campo disforme aberto por esse terceiro efeito que reside, atualmente, a possibilidade de perseguirmos os traços das acampadas e suas aspirações por transformações reais e novas instituições. Para isso, ao contrário da análise de Gerbaudo, é preciso reconhecer o fio longo de conformação dos governos progressistas estabelecido desde os debates do FSM, com o campo majoritário definido pela esquerda soberanista, nacionalista e populista. Em segundo lugar, é preciso analisar as consequências da crise de 2008, não como imediata expansão da gestão fiscal neoliberal, mas como um acirramento das tendências populistas na-
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cionalistas no campo político e econômico, que se alimentou de uma nostalgia da tradição do nacional-popular. E, portanto, perceber que foi justamente o pacto oligárquico reconfigurado nesses termos que sustentou as ações de desmantelamento dos levantes de Junho de 2013. Assim, do ponto de vista latino-americano, não teríamos em 2013 uma nova aliança populista democrática e autonomista contra o establishment neoliberal, mas uma aliança híbrida que reúne um conjunto heterogêneo e aberto de práticas políticas que se voltou contra o próprio acirramento populista produzido pelos ditos governos progressistas nos últimos anos (que, sem dúvida, dava ao neoliberalismo um caráter no mínimo híbrido e heterodoxo). Por outro lado, esse fenômeno não parece constituir apenas uma particularidade local dos efeitos das acampadas em solo latino-americano. A ausência de um histórico mais apurado sobre o debate soberanista e populista também impede que Gerbaudo perceba a relação de dupla via estabelecida entre o imaginário político latino-americano e europeu a partir do ciclo anti-globalização. O primeiro, se alimentando de um ideário de soberania popular que poderia ser conquistada através do fortalecimento do estado e de promessas de desenvolvimento que eliminem o nível de pobreza típico dos países de “terceiro mundo”. O segundo, enxergando no ciclo progressista latino-americano um horizonte de esperança para países “desenvolvidos” acossados pela ausência de alternativas, de futuro e pelo aumento da precarização: o “laboratório América Latina”62. Essa expectativa recíproca funciona hoje como um double bind63 que empurra as duas realidades para um mesmo campo teórico cada vez mais difícil de ser sustentado. Eis o roteiro: a esquerda latino-americana anuncia que o seu “progressismo” é abor62. Cf. CAVA, B. MENDES, A. O podemos e os enigmas que vêm do sul. In: Le Monde Diplomatique – Brasil. Edição de maio de 2015. Disponível em:http://diplomatique.org.br/o-podemos-e-os-enigmas-que-vem-do-sul/ 63. Tomamos o conceito de Deleuze e Guattari, Cf. DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia 2, vol. 1. São Paulo: Editora, 34, 2012.
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tado por forças conservadores que sabotam qualquer possibilidade de avanço e desenvolvimento; a esquerda europeia e americana compartilha da ideia, vendo no fenômeno o esfacelamento de seu laboratório político, deixando o mundo ainda mais carente de alternativas. Em comum, forma-se a ideia pouco complexa e maniqueísta de uma agenda progressista derrotada por uma homogênea direita que avança, de fora para dentro, em uma avalanche irresistível. A clivagem, baseada na exasperação do medo e no pânico moral, acaba provocando o entrincheiramento de organizações políticas, movimentos, círculos de ativismo, militância e de intelectuais críticos, selando a nova unidade através de critérios de pertencimento e eliminação de qualquer visão que reivindique a possibilidade de nuance. Com efeito, no livro do Gerbaudo, o declínio do Podemos em 2016, após uma fase de crescimento arrebatador, resta sem qualquer explicação, já que o autor opta por não analisar os efeitos negativos para o novo partido de suas conexões populistas com os governos latino-americanos, em especial o venezuelano (exaustivamente explorado pela campanha oposicionista). O mesmo se poderia dizer da inclinação identitária à esquerda que o partido foi fortalecendo a partir de 2015, incluindo a aliança com a Izquierda Unida. Outro exemplo poderia ser tomado da Grécia, com a recusa por parte dos indignados em aderir à deriva nacionalista e soberanista adotada pelos dissidentes do Syriza (Popular Unity), apesar da derrota de Tsipras diante da Troyka. Tudo a indicar uma recusa também das experimentações populistas dos últimos anos. Por outro lado, na literatura dita autonomista é possível perceber a mesma tendência que tem como ponto de partida o grande mal-estar provocado pelo fim da narrativa progressista na América Latina. É interessante pensar que algumas conclusões elaboradas pela crítica autonomista do populismo são muito parecidas às conclusões mencionadas por Gerbaudo. Em Assembly (2017), Antonio Negri e Michael Hardt propõem uma combinação entre autonomia dos movimentos na defi-
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nição de estratégias e novas formas de liderança concebidas como uma tática móvel e não definitiva, invertendo-se a fórmula leninista. Por sua vez, a América Latina continua sendo apresentada com um “laboratório extraordinário”, em crise por questões ligadas ao extrativismo e à apropriação pela direta das lutas desencadeadas pela esquerda, incluindo as Jornadas de Junho no Brasil. Uma clivagem purista é estabelecida entre o conjunto dos movimentos que podem ser identificados através do conceito de multidão e o outro conjunto difuso de indignados qualificados de conservadores. O efeito acaba sendo o próprio fechamento do ciclo, já que a potência híbrida do movimento acaba encerrada em uma disputa de narrativas ou em guerras culturais protagonizadas por dois grupos opostos entrincheirados simetricamente em suas identidades ameaçadas e reagindo, aí sim, de forma conservadora. Por isso, a dupla pinça (o double bind) acaba funcionando também politicamente, recolhendo as partículas livres de Junho de 2013, ou da Primavera Árabe em geral, reordenando-as em torno de palavras de ordem e de práticas de grupismo político que achatam as multiplicidades e a abertura produzida pelo acontecimento. Por outro lado, para não ser tragado pela verdadeira lei da gravidade da polarização conservadora, seria preciso pensar nos traços que ainda não foram capturados ou homogeneizados e que permanecem em uma tensão permanente. Talvez aí resulte a grande dificuldade encontrada por Gerbaudo para analisar as consequências das acampadas no Brasil, tidas como “ambíguas” e “complexas” (GERBAUDO, p. 229). Sem ter um desfecho militar ou armado, nem a produção de novos partidos ou confluências facilmente reconhecidos pela esquerda, a situação Brasil exige uma análise que não se limite a um decalque do material empírico através de categorias políticas que polarizaram o debate desde o ciclo antiglobalização, mas que seja um permanente mapeamento dessas tensões: do material intensivo e da produção de subjetividade que ainda não foram reagrupados.
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Assim, é preciso reconhecer que acontecimentos com os da Primavera Árabe, mas também do ciclo de 1968 e tantos outros, longe estarem submetidos a um campo de enunciados e visibilidades já codificados em extratos políticos e históricos, abrem um novo espaço-tempo, fora de qualquer conjuntura, que coloca tudo em variação, com incidências no passado, no futuro, na organização dos corpos, nos desejos, no pensamento, na imaginação, no desejo e na vida. Uma irrupção do intempestivo que arrasta as velhas formas para um espaço rarefeito e árido, onde as velhas categorias não funcionam, e as novas ainda não ganharam um contorno. É este cidadanismo intempestivo, com sua recusa a se fechar nas tradicionais linhagens políticas à esquerda ou à direita, irredutível às próprias categorias forjadas pela história, que renova e mantém o enigma do ciclo das acampadas. Trata-se de perceber como traços de autonomia, de contrapoder, de produção de cadeias majoritárias de ação, de luta contra a corrupção e a usurpação pela oligarquia, de exigência de cidadania, de expressão de novas aspirações e linguagens, passam a circular de acordo com uma lógica aberrante, sendo dificilmente mapeadas pela quadratura do tracking acadêmico e político. Relembrando o início desse texto, apesar do ótimo resultado alcançado pelo livro, talvez estejamos diante dos limites de uma análise baseada nas técnicas do travelling e da panorâmica. Duas formas de recortar as visibilidades ainda presas à ideia de que as linhas de ação estariam claras, que o seu contexto estaria definido, que basta invocar a virtude dos grandes personagens e seu poder de conclusão. O material empírico adquire até movimento e desenvoltura, mas ainda está restrito a uma montagem de efeitos conciliatórios e englobantes. Para lidarmos como a dimensão intempestiva e informe do cidadanismo que irrompe nas acampadas e protestos, seria preciso acrescentar aquilo que Deleuze chamava de “pura imagem ótico-sonora”: uma ação que flutua na situação, mais do que a arremata e a encerra, que tem como meio um “espaço qualquer” e não uma incidência determinada e
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circunscrita, que desencadeia um investimento de sentidos que aumenta a aptidão de ver e de ouvir, recusando as anteriores formas de organizar a percepção e ação (DELEUZE, 2013 p. 13). Ao invés de uma virada populista, ou de um laboratório autonomista (sempre avaliados ou formulados por categorias políticas desenvolvidas intramuros – o debate entre hegemonia e/ou autonomia na cultura de esquerda), a cidadania aparece como uma viração contínua ou como a construção de experiências autônomas que transbordam as visibilidades e os enunciados já codificados pelas formas de percepção à esquerda e à direita. Se o cidadanismo é o “ano zero” para pensarmos novas lutas democráticas, sua lógica aberrante, sua errância e capacidade de mutação, suas articulações híbridas e disformes, parecem ainda manter o vivo o enigma sobre o que poderiam as máscaras e as bandeiras.
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Pensar o Pós-Junho de 2013 com Eder Sader: a travessia de um pensamento Introdução O resgate, através deste texto, da trajetória teórico-política do sociólogo brasileiro Eder Sader possui um duplo significado: primeiro, é uma celebração dos 40 anos de publicação do livro Quando novos personagens entraram em cena (1988)64, no momento que as coordenadas do mesmo problema continuam ressoando; segundo, na linha de reflexão deste livro, é uma tentativa de trazer para a atualidade um tipo de abordagem – o êxodo do próprio olhar65 – que poderia nos auxiliar no enfrentamento do fim do ciclo político iniciado, também em 1988, na denominada Nova República. A vida de Eder Sader, como a de outros militantes políticos da sua geração, foi atravessada por perseguições, exílios, sofrimentos e dilemas intermináveis. Ele assistiu, no interior das agitações latino-americanas da década de 1960, ao progressivo desmoronamento das utopias e dos 64. Podemos citar, como exceção, o prêmio CLASCO Eder Sader instituído em 2014, que selecionou artigos acadêmicos, publicando-os em 2016. Cf. TAVARES, A. et al. Movimentos populares, democracia e participação social no Brasil [et al.]; prólogo de César Barreira. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2016. 65. Sobre o tema, remetemos o leitor aos comentários sobre a fascinação da imagem (Blanchot) que inaugura este livro. Deslocando-se de uma referência centrada no sujeito (e sua percepção do mundo), trata-se de pensar como o próprio olhar é arrastado pelos levantes, conduzindo o sujeito a um descentramento.
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imaginários que marcaram a sua época e ao seu posterior esfacelamento em uma miríade de fragmentos perdidos, dispersos e corroídos pela confusão e pela violência dos acontecimentos. E como foi possível resistir? Como ele caminhou pela tormenta? A travessia de Eder é marcada pela paulatina descoberta de que o tempo-longo de uma grande derrota pode ser formado também por uma série de temporalidades intensivas e de “pedaços” de experiências que permitem novas aberturas e possibilidades. Não nos referimos aqui a uma descoberta arquimediana, através da qual a verdade vem à tona na forma de uma solução redentora. Foi preciso realizar um gesto, fabricar, juntando retalhos, e no arrastar das múltiplas e descontínuas trajetórias de luta, as ferramentas que irão captar a emergência de novos personagens que resistiam nas conjunturas mais adversas. Da experiência de juventude no Brasil, ele herda a crítica ao projeto nacionalista e industrializante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, ao mesmo tempo, a vivência do impasse e das infinitas cisões entre as táticas de luta do pós-1964. Do Chile, carrega a análise dos movimentos sociais urbanos, agrários e sindicais, o embate entre reformismo e ação revolucionária, e a experiência de mais um golpe militar. Do novo exílio na França, traz a organização de uma rede de solidariedade aos perseguidos políticos do Cone Sul, o contato com as críticas europeias ao stalinismo, a herança das barricadas de 1968 e a proximidade com as lutas autônomas italianas66. De volta ao Brasil, com a anistia de 1979, realiza uma grande imersão na constelação de atividades e agitações que marcaram o momento de abertura política: a emergência do novo sindicalismo, os novos movimentos sociais, os debates nas universidades, as atividades de mobilização para a fundação de um novo partido etc. Eder Sader já havia re66. Uma parte de sua biografia, utilizada no presente artigo, foi resumida no obituário escrito por Marco Aurélio Garcia: Eder Sader – o futuro sem este homem, publicado em setembro de 1988. Disponível em: http://www.teoriaedebate.org.br/materias/nacional/eder-sader-o-futuro-sem-este-homem?page=0,0 Acesso em 04 de outubro de 2016.
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tirado dos ombros o pesado fardo das “grandes tarefas”, marca da sua prática política de juventude, e está leve o suficiente para se deixar levar pelas subjetividades emergentes que farão parte da fase final de sua jornada.
1. Do POLOP ao início da autocrítica Eder inicia a sua militância política em 1961 participando da formação da Organização Marxista Revolucionária Política Operária (POLOP67) que, segundo documento publicado na ocasião de um dos seus congressos, propunha “a formação de um partido revolucionário marxista (...) como premissa da revolução socialista no País”, colocando entre as suas tarefas prioritárias, “o problema prático da penetração orgânica na classe operária” 68. Coerente com as diretrizes da organização, Sader publica, em 1968, sob o pseudônimo de Raul Villa, um artigo69 defendendo a urgência de uma ruptura com as concepções reformistas da luta de classes e, diante da crise política brasileira, a necessidade de amadurecer uma “esquerda revolucionária” que, segundo o autor, avançava através da unidade entre a política do próprio POLOP e de uma significativa dissidência que se operava no interior do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Esse processo de “amadurecimento”, que deveria culminar na formação de um partido revolucionário leninista constituído como uma 67. Sobre a POLOP, conferir: CENTRO DE ESTUDOS VICTOR MAYER. POLOP: Uma trajetória de luta pela organização independente da classe operária no Brasil. Salvador: CVM, 2009. Disponível em: http://centrovictormeyer.org.br/wp-content/uploads/2010/04/Polop-Uma-trajetoria-de-lutas.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016. 68. Cf. MENDES, Eurico. O crescimento do movimento operário e as tarefas da vanguarda. In: Política Operária, n. 06, 1963, p. 51. 69. SADER, E. A crise do reformismo e a formação do partido revolucionário. In: Revista Marxismo Militante Nº 1, 1968, s/p. Utilizamos a versão disponibilizada em: http://centrovictormeyer.org.br/wp-content/ uploads/2011/03/A-crise-do-reformismo-e-a-forma%C3%A7%C3%A3o-do-Partido-Revolucion%C3%A1rio.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016.
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“vanguarda efetiva da classe e da revolução”, dependia de outras duas condições: “a presença revolucionária no meio da massa (...) com o fim de criar nas lutas diárias uma nova liderança nas fábricas” e “a deflagração e o desenvolvimento da guerrilha no campo” que teria a capacidade de colocar “toda a luta política num nível superior e acelerará a mobilização nas cidades” (idem). Durante a década de 1970, após duas experiências de exílio e derrota política (Brasil e Chile), e logo após o fim trágico dos focos de luta armada que polvilharam entre 1968-75, o sociólogo passa a publicar uma série de críticas à linha política da POLOP e inicia uma profunda reavaliação das concepções defendidas na década anterior. O primeiro conflito público70 ocorreu durante a elaboração da revista Brasil Socialista, que reunia militantes brasileiros exilados na Europa em decorrência do AI-5, girando em torno do papel da “luta por liberdades democráticas” nas táticas revolucionárias e a criação de uma plataforma política heterodoxa para a realização de um enfrentamento contras as ditaduras da América do Sul. Uma das principais lideranças da POLOP, Eric Sach, cujos pseudônimos eram Ernesto Martins, Eurico Mendes ou Eurico Linhares, combateu com veemência aquilo que denominou de “abandono prático de uma política para a classe operária” 71. Eder Sader respondeu a acusação com uma extensa avaliação da história da POLOP, afirmando uma crítica da guerrilha como típica ingenuidade voluntarista, questionando a inegável generalidade e superficialidade das análises realizadas sobre a formação social brasileira, o dogmatismo no debate sobre o caráter da revolução e das tarefas do
70. Para uma resenha do debate: CORREA, Lucas Andrade Sá. Esboço para a análise de um debate no exílio: O debate entre Érico Sachs e Eder Sader. In: Anais do VIII Colóquio Internacional Marx Engels, 2015. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2015/. Acesso em 04 de outubro de 2016. 71. MARTINS, E. Post – Scriptum a “Como aprender – com quem aprender”. In: Revista Marxismo Militante Exterior nº 1, 1975, p. 60.
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revolucionário e o que ele chamou de pedagogia ideológica proposta pela organização sobre as concepções marxistas que, nos dizeres de Ernesto Marins, deveriam: “ser levadas conscientemente para dentro da classe operária” 72. De um ponto de vista mais amplo, o esforço de Eder Sader está inserido num contexto de grande questionamento às formas de ação política imaginadas nos anos anteriores, realizadas durante o exílio político73. Essas críticas se direcionam, justamente, à luta armada, à desconsideração sumária das discussões sobre democracia, à ausência da luta feminista nas análises que eram realizadas e ao vanguardismo deslocado das lutas reais, que teria colaborado com a derrota política da esquerda brasileira. No entanto, em boa parte das discussões na linha comunista, ainda prevalece o desejo por um partido revolucionário que pudesse “orientar” as massas e a busca por um sujeito que permanecia ausente do horizonte de lutas. O autor também vive essas ambivalências e, embora crítico das abstrações do dogmatismo, defenderá a ideia de uma vanguarda propositiva (e não professoral) que deveria se juntar a uma organização unificada da classe que, no entanto, estava ausente no país. No documento de 1976, podemos ler: “Na verdade, não temos no Brasil a bem dizer, uma ‘organização majoritária da classe’ (...)”; “nós temos que ser os defensores consequentes da unidade proletária a partir dos interesses imediatos e das lutas que travamos” (SADER, E. 1976).
72. SADER, E. Para um balanço da P.O. In: Revista Brasil Socialista nº 7, outubro de 1976, s/p. Utilizamos a versão disponibilizada em: http://centrovictormeyer.org.br//wp-content/uploads/2011/03/Para-um-balanco-da-PO.pdf Acesso em 04 de outubro de 2016. 73. Para uma resenha do debate, conferir: ROLLEMBERG, Denise. “Debate no exílio: em busca de renovação”. In: RIDENTI, M; REIS FILHO, D. A. (Orgs.). História do marxismo no Brasil. Partidos e movimentos após os anos 1960. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, v. 6, pp. 291-339.
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2. Quebrando muros teóricos: ciclo de lutas e transição A transição de Eder é definitivamente operada quando irrompe a jornada de lutas dos operários de São Paulo, que evidenciou um ciclo que estava em andamento entre 1970-1980. Através dele, Eder Sader pôde não só analisar, com lentes totalmente renovadas, a constituição de novos sujeitos em luta, como reavaliar a própria experiência política da década de 1970. Ele se deparou com a multiplicação de lutas operárias que, a partir de práticas que se constituíam de forma autônoma, conseguiam se deslizar tanto da tutela dos sindicatos autoritários, como dos núcleos de militantes iluminados que pretendiam dirigir os trabalhadores. Deixando-se conduzir pelas forças do novo movimento, Eder abandona seu antigo dilema político – o problema de como estabelecer uma relação entre vanguardas formuladoras, mas sem capacidade de ação, e massas potencialmente ativas, mas sem capacidade de formulação – descortinando um caminho totalmente novo. Pela primeira vez, nos textos do sociólogo, verificamos que ele é capaz de desenvolver uma análise da luta dos trabalhadores colocando-se de forma imanente a todo processo. Assim, em artigo de 1980, escrito com Paulo Sandroni74, através de informações prestadas por militantes do ABC paulista, os autores afirmam que: “já entre 1974 e 1977, se desenrola uma grande variedade de ‘pequenas lutas difíceis’” (SADER, E; SANDRONI, P. 1980, p. 54). Essas pequenas lutas (operação tartaruga, exigência de melhor alimentação, transporte e limpeza nos banheiros, recusa de horas extras, pequenas interrupções da jornada de trabalho), conseguiam driblar o forte esquema repressivo estabelecido pela dita-
74. SADER, E; SANDRONI, P. Luchas obreras y táctica burguesa en Brasil. In: Cuadernos Políticos, n. 26, México D.F.: Era, outubro-dezembro, 1980, pp. 51-63.
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dura contra as greves e, ao mesmo tempo, teciam um fio de afirmação operária nas grandes fábricas paulistas. Os fios dessa organização invisível, expressão utilizada pelo operaísta Romano Alquati, em suas pesquisas sobre as lutas na FIAT dos anos 196075, só apareceram de forma explícita nas jornadas pela reposição salarial de 1977, quando os operários reivindicam a devolução de perdas geradas por erros no cálculo dos índices de inflação em 1973. Em São Bernardo, o Sindicato dos Metalúrgicos realiza uma assembleia de dez mil pessoas, e começa a organizar aquilo que os autores denominam de sindicalismo autêntico, excluindo qualquer referência que não expressasse “o próprio interesse dos trabalhadores”. Na conclusão do artigo, os autores defendem que um dos pontos de destaque do movimento operário e sindical, que se iniciou naquele ano, foi a presença de “traços de autonomia e independência tanto a respeito dos aparatos estatais quanto a dos partidos de oposição e esquerdas tradicionais” (SADER, E; SANDRONI, P. 1980, p. 62). Em 1986, Eder Sader realiza o esforço teórico de lançar as novas inquietações para dentro da tradição marxista e da história do movimento operário. No livro Marxismo e teoria da revolução operária76, o autor acerta as contas, no campo teórico, com todas as formas de positivismo, racionalismo, determinismo e evolucionismo presentes no pensamento marxista desde o séc. 19 e, no campo político, com as tendências e práticas estalinistas, burocratizantes e autoritárias arquitetadas a partir do séc. 20. Enfrentando os impasses de seu tempo, o autor afirma que o ponto central da crise da teoria revolucionária é que ela se propôs a definir uma tarefa a ser realizada pela classe operária. E “tão pesado foi o fardo dessa missão que o proletariado desapareceu nela” (SADER, E. 1975, p.55). Mas, enquanto o proletariado, em sua materialidade, desapare75. Cf. ALQUATI, R. Sulla FIAT e altri scritti. Milano: Feltrinelli, 1975. 76. SADER, E. Marxismo e teoria da revolução operária. 2a edição. São Paulo: Ática, 1991.
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cia nas “representações instituídas” da missão revolucionária, múltiplos pontos de resistências e de práticas coletivas se espalhavam e davam vida a novos sujeitos em luta. Para Eder, “mesmo a irrupção das greves de 1978, surgidas de fora das formas consagradas de organização e discurso da esquerda, expressou esse divórcio” (idem, p. 56). Os traços de autonomia identificados pelo autor, não só forjavam novas práticas e saberes coletivos, alheios às concepções totalizantes da ortodoxia, como se relacionavam com um amplo processo de politização do social que trouxe à tona a realidade de uma pluralidade de sujeitos que recusavam as mesmas pretensões ordenadoras (idem). Este divórcio, para Eder Sader, se traduzirá em duas formas distintas de perdurar o marxismo. Através da bela passagem que encerra o livro, as consequências definitivas dessa clivagem são explicadas: De um lado, enquanto ideologia, sistema totalizador, pelo qual intelectuais produzem a ‘ciência da História’ nas mais diferentes disciplinas e burocratas da política ordenam a realidade onde agem. De outro, enquanto fonte de elaboração que ajudam intelectuais a produzirem novos conhecimentos e militantes de diferentes movimentos sociais a formularem seus projetos e formas de ação. Só que, neste segundo modo, o marxismo não é mais a totalização capaz de nos explicar o sentido de nossas ações. Isso cabe a cada um de nós, em cada uma das aventuras em que nos engajamos. Essa é, talvez, uma das ‘lições’ que os movimentos sociais recentes nos deixaram. (SADER. E. 1975, p. 57).
E é através do marxismo visto como fonte de elaboração e de criação de pensamento e ação que Eder Sader analisará, em 1988, no seu último e mais relembrado livro, Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-
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198077, o ciclo de lutas daquela década. Ele será descrito, não através da tentação de uma grande totalização, mas através dos pedaços de experiência e da partitura comum escrita pelas aventuras, às vezes titubeantes e contraditórias, dos sujeitos reais que, no cotidiano ou em novas organizações, se engajaram em lutas concretas.
3. Um novo olhar sobre os personagens que entravam em cena Para dar consistência ao novo olhar, arrastado pelo fio das próprias lutas, Eder opera um importante deslize das análises verticalmente “estruturantes” que interpretavam as práticas sociais da época através de unidades causais-explicativas que privilegiavam as condições objetivas dadas (a coerção do Estado militar, o automatismo dos processos econômicos da acumulação capitalista, a alienação ideológica etc.). Para Eder Sader, era preciso estilhar essas unidades para que a relação entre as ações produzidas e a emergência de novos personagens irrompesse em sua singularidade (SADER, E. 2010, p. 40). Por outro lado, se afastar da explicação objetivante não quer dizer retomar a ideia de um sujeito absoluto, pleno de liberdade e senhor de todas as ações possíveis. Realizando um panorama sobre o debate filosófico em torno do conceito de sujeito, Eder tenta compreender como novos imaginários e práticas instituintes78 são possíveis de serem articulados, mesmo que imbricados nas condições e estruturas já dadas. Nessa linha, sujeito autônomo não é aquele que “seria livre de todas
77. SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980. 4a edição. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 78. Conferir a seguinte passagem: “Com essas referências procurei pensar as alterações nas práticas coletivas de trabalhadores, como reelaboração do imaginário constituído, através de novas experiências, onde se produzem alterações de falas e deslocamento de significados. Por aí surgem práticas instituintes” (SADER, E. 2010, p. 46).
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as determinações externas, mas aquele que é capaz de reelaborá-las em função daquilo que define como sua vontade” (idem, p. 56)79. Assim, o sociólogo reconhece que, se de um lado, os discursos – ou as “matrizes discursivas tradicionais” – produzem os sujeitos e seus campos de ação, de outro, os sujeitos produzidos são capazes de agenciar novas práticas e novos enunciados. Os enunciados cristalizados numa cultura podem, portanto, sofrer deslocamentos, reutilizações, torções, dispersões e serem atravessados por novos arranjos de distribuição: Constitui-se um novo sujeito político quando emerge uma matriz discursiva capaz de reordenar os enunciados, nomear aspirações difusas ou articulá-las de outro modo, logrando que indivíduos se reconheçam nesses novos significados (SADER, E. 2010, p. 62).
Nesse sentido, a mobilização dos diversos sujeitos e a construção de novas esferas de participação, através das comunidades eclesiais de base, do novo sindicalismo e dos novos movimentos sociais, são interpretadas por uma leitura que busca compreender as novas formas de expressão política a partir de um movimento coextensivo de produção dos próprios sujeitos. Desse ponto de partida, Eder Sader consegue descrever processos subjetivos de luta e organização social que estavam apagados
79. Vale comentar que o conceito de “vontade” não deixa de ser problemático por retomar concepções clássicas de sujeito que pressupõem sua separação com relação às práticas sociais. Uma das formas de contornar esse problema pode ser encontrada no conceito de “modos de subjetivação”, desenvolvido por Foucault na última fase de seu pensamento, à qual Eder Sader não teve acesso. Sobre o tema, conferir o preciso comentário de Judith Revel: “O termo ‘subjetivação’ designa, em Foucault, um processo pelo qual obtemos a constituição de um sujeito, ou mais exatamente de uma subjetividade. Os ‘modos de subjetivação’ ou ‘processos de subjetivação’ da existência humana correspondem a dois tipos de análise. De uma parte, os modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos – o que significa que há somente sujeitos objetivados, e que os modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas de objetivação; de outra, a maneira como a relação com si, estabelecida através de um certo número de práticas, permite que ele se constitua como sujeito de sua própria existência”. REVEL, J (Org). Dictionnaire Foucault. Paris: Ellipses, 2008, p. 128.
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pelo objetivismo e pela incapacidade de representar as mudanças em curso através da mecânica causal das análises tradicionais. Encontramos uma boa demonstração da perspectiva desenvolvida, no capítulo em que o autor descreve as lutas da Oposição Metalúrgica de São Paulo. Eder revela que o acontecimento mais relevante da nova luta sindical não residia necessariamente nas reivindicações, que eram até clássicas (melhorias salariais, pagamento atrasados, melhora nas condições de trabalho etc.), e sim na constituição de um “outro discurso” sobre a classe operária, aquele que retoma a dignidade dos trabalhadores. Uma profunda ressignificação dos espaços de encontro e de fala surgiu a partir de pequenas lutas, quase insignificantes, mas que eram fundamentais na produção de uma subjetividade que retomava o papel da autovalorização do trabalhador. Lutas pela utilização de ônibus da empresa, pequenos boicotes no refeitório pela qualidade da comida, a produção de um pequeno jornal que relatava as condições de trabalho, passam a constituir, pouco a pouco, o tecido que produzirá um novo sujeito político: “é nesse quadro que as lutas fabris são assumidas como momentos de autoafirmação de grupos operários, que vêem nelas o processo de sua constituição como sujeitos políticos” (idem, p. 250). Outro exemplo marcante do deslocamento de abordagem efetuado encontra-se na leitura realizada pelo sociólogo sobre a reconstituição dos espaços de encontro nas franjas do poder coercitivo militar. Se a ditadura investia para desconstruir todo e qualquer núcleo visível de participação social e atividade política, nas franjas da cidade emergiam novas formas de discutir os problemas vividos pelos trabalhadores e pobres da metrópole paulista: Em salões de sinuca, terreiros, feira livres, botequins, salões de baile, cabeleireiras, pontos de ônibus, fliperamas, foram se reconstituindo espaços de encontros, onde se trocavam informações sobre emprego, futebol, a novela da TV, assim como sobre as escolas dos filhos, a excursão a Santos, so-
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bre as conquistas amorosas, a meningite, o Esquadrão da Morte, o incêndio do Joelma, a construção do metrô, o quebra-quebra dos trens. Desse cruzamento de falas e experiências foi se reconstituindo um novo espaço público (idem, p. 61).
As feiras, botequins, salões de beleza, pontos de ônibus, terreiros e fliperamas formam, assim como no caso das pequenas lutas operárias, os espaços de encontro que ajudarão a constituir pedaços onde “fluem novos significados coletivos que expressam as interpretações formuladas sobre as condições de vida na metrópole” (idem). Ainda segundo Eder, nos espaços difusos da cidade, a retórica dominante, que condenava a política como palco de interesses escusos, passa a ser reinterpretada pelos explorados como possibilidade de cuidar dos assuntos referentes à vida na cidade a partir de seus próprios interesses e experiências. E é nesse ambiente de aparente conformismo e suposta alienação que “brotam os movimentos sociais a partir da metade da década de 1970” (idem). Portanto, longe de buscar explicações que derivam de uma única e totalizante lógica, apresentada como grande tarefa da crítica sociológica, Eder deseja compreender o movimento que entrelaça discursos consolidados, aberturas para novos possíveis, práticas sociais e processos de constituição de subjetividades políticas. Só assim torna-se possível dimensionar a centralidade de experiências que, mesmo parecendo sem importância, apontam para a formação de novos e potentes espaços de expansão do político.
4. Um novo estilo de ação política “Você trocou Lenin por Paulo Freire!”. É com essa acusação, presenciada pelo próprio autor e desferida contra um militante em 1980, que Eder Sader abre o capítulo sobre o balanço teórico do “marxismo de
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uma esquerda dispersa” (idem, p. 67). O sucesso dos métodos de educação popular, e sua predominância com relação aos clássicos da teoria revolucionária (Lenin, Mao e até o fugaz Debray80), é percebido como a possibilidade de abertura de “um lugar para a elaboração crítica e coletiva das experiências da vida individual e social” (idem, p. 68). Através de alguns depoimentos pessoais, o autor mostra o caminho realizado, um pouco de forma intuitiva, por vários militantes de esquerda oriundos dos grupos vanguardistas. Ele apontava na direção de um novo estilo de ação política, que tinha como centro, não mais uma determinação abstrata da vontade em torno da revolução, mas “vinculações políticas a partir de suas competências profissionais: advogados, arquitetos, assistentes sociais, professoras” (idem, p. 176). Os relatos mostram que os militantes, desgarrados de suas organizações, também encontrarão espaços de atuação nos novos movimentos de bairro, nas comissões de moradores, nos grupos de fábrica, nos movimentos sanitaristas, nas pastorais da Igreja Católica etc. O encontro dessas trajetórias, que Foucault descreveria igualmente através da figura do “intelectual específico”81, com o processo material de produção de subjetividade que se efetuava no interior do ciclo de lutas de 1970-1980, não apenas exemplifica o que seria aquele marxismo vivo, utilizado como fonte de elaboração de novos conhecimentos e práticas, mas também demonstra que as ações políticas desencadeiam vetores qualitativamente expansivos quando articuladas com as novas temporalidades políticas produzidas pelos novos sujeitos. Por isso, a constatação da centralidade das pequenas lutas no contexto das experiências coletivas da Grande São Paulo, a importância dos te-
80. O autor cita referências que eram leituras “obrigatórias” para os militantes da década de 1960-70: “Mas o fato é que, nessa ‘ida ao povo’, buscando ajudar num processo de fazer despertar a ‘consciência crítica’, o método Paulo Freire esteve mais presente que os escritos de Gramsci, ‘Que fazer?’, de Lenin, os livrinhos de Mao ou a ‘Revolução na revolução’ de, de Debray, de meteórica carreira” (idem, p. 167). 81. Cf. FOUCAULT, M. “Verdade e Poder”. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 10.
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mas relacionados ao cotidiano dos trabalhadores, as formas singulares de expressão carreadas pelos novos movimentos sociais, a valorização da “organização por elas mesmas” do Clube das Mães, as pequenas rupturas das mulheres com relação ao ambiente fechado da unidade doméstica, a capacidade do Movimento do Custo de Vida de levantar um problema comum à maioria da população, a dignidade comemorada em cada pequena vitória no interior da fábrica, os atos de solidariedade que rompiam com o vazio existencial do conformismo diário, aparecem como uma multiplicidade de lutas que formam um conjunto marcado por novos significados históricos: E no entanto há uma novidade no significado dessas lutas no correr dos anos 70. Movimentações que antes podiam ocorrer de modo quase silencioso, como se fossem a reiteração de um cotidiano onde ‘nada acontece’, passam a ser valorizadas enquanto sinais de resistência, vinculadas a outras, num conjunto que lhes dá a dignidade de um ‘acontecimento histórico’. Até mesmo acontecimentos que antes poderiam ser vividos como expressão de uma impotência sempre igual começam a ser vistos como lutas que se inserem num movimento social (idem, p. 243).
É este solo comum que garante uma proliferação de experiências organizativas e afirmativas que se colocam em contraposição “às estruturas impessoais, aos objetivos abstratos e às teorias preestabelecidas” (idem, p. 194). Segundo Eder, no campo dos trabalhadores da fábrica, isso significou a invenção de um novo modo de valorizar as suas próprias lutas, através da formação de grupos que, primando pela autonomia, não se recusavam a atuar por dentro das estruturas legais e sindicais existentes. Já no caso dos movimentos dos trabalhadores precários (donas de casa, favelados etc.), excluídos do poder econômico de barganha, de direitos (sociais) reconhecidos e de um trabalho estável, tratou-se de criar laços de solidariedade e comunidade que não tinham como referên-
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cia uma estrutura predefinida legalmente, e contava apenas, ou com as ações pastorais difundidas no território, ou com a sua própria capacidade de produzir auto-organização (idem). De qualquer forma, seja através da requalificação de institucionalidades já existentes, ou da invenção radical de novas práticas coletivas, essa contraposição também reaparece na conclusão do livro, através da relação estabelecida entre a força plural de expansão dos movimentos sociais e o poder instituído. Para o autor, os novos sujeitos “expressaram tendências profundas na sociedade que assinalavam a perda de sustentação do sistema político instituído” (idem, p. 313). Eles indicavam “a enorme distância existente entre os mecanismos políticos instituídos e as formas de vida social.” E não apenas de uma forma passiva. Os movimentos sociais se constituíram como os próprios “fatores que aceleraram essa crise e que apontaram um sentido para a transformação social” (idem). Dentro do marco das práticas instituintes que abrem um novo horizonte, as experiências desses movimentos passariam a indicar que, no campo da representação política, os partidos “já não cobrem todo o espaço da política e perdem sua substância na medida em que não dão conta dessa nova realidade” (idem). Para Eder, é a própria compreensão daquilo que entendemos como política que se transformou, abrangendo questões da vida cotidiana e novas formas de organização das práticas coletivas, “a partir da intervenção direta dos interessados”. No que tange à reivindicação por democracia, os novos sujeitos não se limitariam ao sistema político tradicional, mas conduziriam os seus desejos para “as esferas da vida social, em que a população trabalhadora está diretamente implicada: nas fábricas, nos sindicatos, nos serviços públicos e nas administrações de bairro” (idem).
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5. Derrota política, poder constituinte real e comum Eder Sader encerra o livro com um olhar já externo ao ciclo de lutas, avaliando as derrotas sofridas pelos novos movimentos sociais e afirmando, enigmaticamente, que as suas promessas (consideradas por alguns como ilusões, mistificações ou erros de avaliação) poderiam ser reatualizadas, já que estão “inscritas numa memória coletiva” (idem, p. 315). Para entender o que o autor chama de derrota, é preciso ter em mente os seus comentários num colóquio intitulado A constituinte em debate 82, realizado em maio de 1986, reunindo juristas e intelectuais de esquerda. O título sugerido pelo autor foi “Poder constituinte e democracia no Brasil hoje”, e a intervenção se deu num contexto geral de crítica do idealismo presente nas discussões sobre a elaboração de uma nova Constituição. Eder Sader concordou sobre a importância de se evitar a armadilha da abstração, mesmo reconhecendo que uma Constituinte, inevitavelmente, lança os participantes para um terreno propenso às idealizações. O ponto de partida que o autor utilizou para qualificar materialmente o processo consistiu na proposta de examiná-lo à luz de um “poder constituinte realmente existente” 83 que, segundo o autor, seria a expressão das lutas políticas em curso no Brasil e estaria efetuando transformações significativas no marco da transição para a Nova República. O problema seria que, apesar de fundamentais na derrota do Estado Militar, os novos movimentos sociais não tiveram, naquele momento, êxito em se constituir como uma força política apta a disputar as institucionalidades. Esse papel acabou sendo exercido pelo MDB que, a par82. FORTES, Luiz Roberto Salinas; NASCIMENTO, Milton Meira do. (Orgs.) A constituinte em debate: colóquio realizado de 12 a 16 de maio de 1986. São Paulo: Sofia, 1987. 83. SADER, E. “Poder constituinte e democracia no Brasil hoje”. In: FORTES, Luiz Roberto Salinas; NASCIMENTO, Milton Meira do. (Orgs.) A constituinte em debate (...).
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tir de sua atuação parlamentar contra a ditadura, apareceu como representante indireto das insatisfações e aspirações populares difusas. Ele acabaria por reelaborá-las, sempre através de suas expressões particulares, como pressupostos de uma vontade geral de democracia e de justiça social. A derrota residiu na impossibilidade dos novos movimentos sociais de darem a suas aspirações uma voz própria (SADER, E. 1987, p. 201). Por isso, o desafio da Constituinte seria, primeiro, impedir que o processo se transformasse na conclusão de uma transição política realizada “por cima” e, segundo, construir as condições de democratização do próprio exercício do poder constituinte. Assim, uma das batalhas mais importantes que se configurava seria “alargar as possibilidades de intervenção da população no sistema político” e “alargar vários direitos” que teriam vindo à tona nas lutas políticas dos anos anteriores (idem). Um dos principais temas, segundo Eder Sader, elaborados, mesmo que precariamente, pelos movimentos sociais, seria a relação entre público e privado. O autor comenta, que, naquele momento, estava se consolidando a ideia de que o combate ao Estado Militar demonstrava que a Nova República deveria apostar na ampliação do âmbito privado em detrimento do público, evitando o retorno de um estado intervencionista e autoritário. Escapando da dicotomia, Eder argumenta que a ditadura militar foi um exemplo de como estado e mercado se retroalimentam e que a saída era pensar uma democratização dos próprios recursos públicos, a partir do poder constituinte real que se afirmava. Por isso, a participação invocada por Eder Sader caminha lado a lado com uma democratização mais radical do público, uma apropriação democrática do público-privado que poderia reativar o papel dos novos movimentos sociais no contexto pós-constitucional. Ao direcionar sua análise para o terreno que hoje denominamos de comum, o autor tenta manter uma brecha aberta para que a produção de autonomia dos movimentos sociais não fosse enclausurada numa ideia institucional de representação política ou por um constitucionalismo de viés
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abstrato, através dos quais a perspectiva autônoma seria tratada como ilusão típica de um momento pré-jurídico ou de transição.
6. Pensar o Pós-Junho de 2013 com Eder Sader: seis notas sobre a atualidade Quase três décadas se passaram após as reflexões de Eder Sader sobre a emergência de novos sujeitos políticos e os dilemas apresentados na disputa pela representação política e por condições de permanência de um poder constituinte real que atuasse em prol da radicalização da democracia brasileira. A sensação é de desmoronamento e perplexidade, tornando-se comum a afirmação de que a Nova República, fundada pela Constituição de 1988, simplesmente acabou84. Mas como qualificar este “fim”? Por que temos a impressão de viver o esgotamento profundo de um ciclo? É aqui que a chave de leitura operada por Eder, e o exemplo dos próprios dilemas políticos enfrentados em sua trajetória, podem nos ajudar em muitas direções. No mínimo, precisaríamos realizar uma nova travessia, reunindo pedaços de experiências vividas nos últimos anos, recusando o imobilismo dos velhos personagens que não admitem sair de cena e buscando encontrar as novas subjetividades que emergem no contexto da crise. É do próprio léxico e dos problemas levantados por Eder Sader que alguns elementos para futuras reflexões podem ser pontuados: a) Autonomia: perceber a crise como o esgotamento da possibilidade de manter em aberto uma dimensão instituinte que permita que os novos sujeitos políticos possam continuar elaborando suas trajetórias e lutas através de uma voz própria, que na verdade se articula polifonica84. A expressão é do filósofo Vladimir Safatle. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/03/15/a-nova-republica-acabou-diz-filosofo-vladimir-safatle.htmAcesso em 14 de outubro de 2016.
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mente com muitas vozes produzidas desde baixo. Os últimos anos indicam que a realidade dos próprios movimentos sociais que surgiram na década de 1980 pode ser vista como sintoma dessa crise. Incapazes de reelaborem suas lutas através de novas práticas autônomas, acabam subordinados a governos, burocracias ou instâncias decisivas cada vez mais externas aos problemas reais enfrentados por seus integrantes; b) Comum: a relação entre estado e mercado, como pressentia Eder Sader, foi rearticulada através de novas formas de gestão que eliminaram qualquer forma de participação ou de questionamento das decisões sobre projetos e investimentos. A resposta brasileira à crise global de 2008 foi reforçar dinâmicas desenvolvimentistas híbridas que mesclaram uma imposição estatal de grandes projetos, com novas formas de privatização e empresariamento dos espaços comuns das cidades e das florestas. A aposta de resgatar a mobilização produtiva “por cima” não só lançou o Brasil para uma crise ainda mais profunda, como gerou um efeito de rolo compressor contra qualquer tentativa de questionamento das decisões tomadas. Perspectivas alternativas como o marco do bem viver ou de políticas do comum foram esquecidas ou atropeladas pela utopia modernista de um Brasil Maior; c) Novos personagens entram em cena: as novas mobilizações indicam que a heterogeneidade que marca os movimentos sociais dos anos 1980, não só é estendida por toda a dinâmica de funcionamento das metrópoles, como ganha contornos irreversíveis. Nas análises Eder Sader, a separação entre esfera da produção (sindicalismo) e esfera da reprodução (movimentos sociais) determinava características distintas no conjunto das lutas sociais, mas também ensaiava o seu canto do cisne. Atualmente, essa divisão perde o sentido, na medida em que a heterogeneidade do trabalho precário passa a atravessar a própria esfera da produção e esta última, por sua vez, se dilui cada vez mais na antiga esfera da reprodução, atingindo a vida como um todo. Um novo sindica-
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lismo social “autêntico”, que tenha a metrópole como base, só é possível com a articulação de uma multiplicidade de sujeitos singulares que definem um terreno comum de luta (ex: mareas na Espanha e luta contra a tarifa dos transportes no Brasil). Uma compreensão da figura dos indignados é importante, não só para dar carne a esta multiplicidade capaz de ações comuns, mas também para mostrar que as lutas contemporâneas dependem de um tipo de cooperação que está para além, na maioria dos casos, do que entendemos por esquerda e seus atores tradicionais (movimentos, sindicatos e partidos); d) Poder constituinte realmente existente: para além do idealismo e das promessas não correspondidas do constitucionalismo, exasperado às ultimas consequências na recente crise política brasileira, uma investigação das dinâmicas constituintes dos últimos anos deve reconhecer que há um desejo transversal de mudança que transborda e se volta contra todo o poder constituído existente. Este desejo se condensou em múltiplas formas, ambíguas e contraditórias, em Junho de 2013. Assim como na emergência dos movimentos sociais analisados por Eder, é preciso ter em conta que o poder constituinte também é exercido através do conformismo, de uma suposta atitude de “alienação política” e até por expressões aparentemente conservadoras. O contexto atual parece indicar que o desafio reside na criação de plataformas de ação onde estas manifestações possam encontrar ferramentas materiais de transformação que apontem para caminhos de mais democracia, participação e direitos; e) A constituição de uma força política: no Brasil, o poder constituinte de Junho de 2013, por enquanto, não foi capaz de organizar uma força política nova que possa atravessar as institucionalidades com ventos de renovação. Ele foi canalizado apenas em sua dimensão destituinte através de grandes operações policiais e judiciais que são incapazes de constituir um terreno de radicalização democrática. Um dos moti-
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vos desta mutilação foi a homogeneização das “aspirações difusas” que constituíram Junho através de sua subordinação às figuras mórbidas de uma representação política que não guarda mais qualquer relação efetiva com elas. A constituição de uma força política através das experiências do ciclo de Junho se constitui como um enigma que diz respeito à recuperação da autonomia das mobilizações sociais, à reinvenção da forma-partido através da premissa, também comentada por Eder, de que os movimentos transbordam e não são redutíveis aos partidos políticos (que deveriam assumir um código aberto e renunciar às pretensões de totalização) e à necessidade de uma reforma política que não seja forjada no interior de uma representação política em crise e que tenha como centro as multiplicidades emergentes. f) Autocrítica e dispersão da esquerda brasileira: se, no tempo de Eder, a dispersão forçada da esquerda brasileira permitiu, de um lado, um movimento de autocrítica (mesmo com toda a dramaticidade da situação) de seu vanguardismo anterior e, nos caminhos intuídos por essa dispersão, um posterior encontro com novas lutas e personagens, o momento atual exige, paradoxalmente, um deslocamento semelhante. Um exílio que, mesmo sem precisar atravessar fronteiras geográficas, não deixa de se configurar como um êxodo necessário. Um exílio, digamos, ontológico. Ele implica: a recusa de novas lógicas objetivantes que impedem um olhar adequado – uma nova percepção – sobre os novos movimentos (por exemplo, derivando o vazio deixado por uma ausência de alternativa da ascensão de uma “onda conservadora”); a recusa do falso conforto de uma unidade de esquerda que, em vez de se constituir como contrapoder por dentro da crise, opera, ao contrário, reforçando uma subordinação das mobilizações e das aspirações difusas à agenda e aos formatos pré-determinados de suas decadentes figuras representativas, em especial o Partido dos Trabalhadores (PT); um questionamento do imobilismo da tradição organizativa que funda esta unidade para imaginar novas experiências de ação comum e autônoma
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(movimentos em rede, sindicatos sociais, confluências eleitorais e partidos de novo tipo); por fim, a recusa, como afirmou Eder, de todas as representações instituídas que promovem o desaparecimento das subjetividades que lutam e nos impedem de perceber os fios das novas organizações invisíveis que já estão em atuação. Seis pontos que indicam o mesmo movimento: dispersar, fazer uma nova travessia, empreender um êxodo. E, quem sabe, durante a caminhada, nos pedaços de experiência, encontrar os novos personagens que já estão em cena.
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O dia 16 de março no Morro dos Cabritos Introdução
Concentrado em muitas atividades, e um pouco saturado pelas ditas análises de conjuntura, eu já tinha certeza que não faria qualquer comentário sobre as manifestações do dia 15 de março de 2015. Decisão tomada, tendo acabado de retornar do trabalho, no dia seguinte das dezenas de atos em todo Brasil, entrou pela minha janela um ruído poderoso de panelas, gritos, vaias e xingamentos. Moro em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro, mas o barulho não vinha dos prédios no “asfalto”: chegava exclusivamente de dezenas de pequenas janelas e espaçosas lajes do conhecido Morro dos Cabritos, favela cuja origem remonta à imigração nordestina que desbravou o bairro, em 1926. O ruído, que perdurou com sincronia o pronunciamento da presidenta Dilma no Jornal Nacional, não era poderoso apenas por sua sonoridade particular (nunca tinha, de fato, escutado um panelaço – o som cresce aos poucos, cheio de saltos e tropeços, e logo domina o ambiente), mas pelas interrogações e curtos-circuitos que gerava diante dos textos, análises, deboches e imagens com que tive contato ao longo do dia, através das redes sociais. E também, diga-se de passagem, pela própria leitura confortável e redentora que, aliás, eu mesmo vinha sustentando nos dias anteriores: “uma manifestação típica da corporati-
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va elite branca brasileira e sem nenhum contato com outras classes sociais”85. O desconfortável panelaço do Morro dos Cabritos demonstra que existe um tipo de análise que, dia após dia, se acumula numa verdadeira crosta – sem memória e sem fim – de equívocos e desacertos de abordagem ou, nos piores casos, em simples propaganda política do atual governo, custe o que custar. O princípio da acumulação, que Deleuze utilizou para explicar a atividade da imprensa e da mídia em um caso notório do final dos anos 197086, transformou-se no principal motor de uma parte considerável das leituras de conjuntura (de todos os tipos, incluindo posts e tweets que se espalham nas redes) que, não por acaso, são perfeitamente simétricas às realizadas pelos jornalistas das grandes empresas de comunicação. Em ambos os casos, é possível “realizar uma acumulação de tudo que é dito, de um dia para o outro, sem temer qualquer contradição” (DELEUZE, G. 2016). Muitas tentativas, felizmente, podem ser realizadas para recuperarmos a nossa capacidade de ação e reflexão, apesar dos entulhos vindos diariamente do depósito duplo-midiático. Neste texto, vou enumerar alguns passos que considero fundamentais para ultrapassarmos as análises da casta, isto é, aquelas afirmações que diariamente tentam nos deixar conformistas, amedrontados, inativos e espremidos entre duas manipulações internas às disputas de duas oligarquias político-econômicas que se formaram a partir do Regime de 1988 (PSDB e o último PT), com o cimento permanente do pemedebismo. O objetivo é não apenas compreender melhor o panelaço dos Cabritos, como também
85. Essa narrativa redentora, que opõe de forma genérica uma classe média tradicional e os pobres, adquiriu ares sociológicos através do trabalho recente de Jessé Souza. Por todos, cf. A elite do atraso. Da escravidão a Lava Jato. Rio de Janeiro: Saraiva, 2017. 86. DELEUZE, G. Carta aberta aos juízes de Negri. In: DELEUZE, G. Dois regimes de loucos (...). Para a versão original: DELEUZE, G. “Lettera aperta ai giudici di Negri” In: La Repubblica, edição de 10 de maio de 1979, pp. 1-4.
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explorar as possibilidades de construção de alternativas políticas que escapem à polarização. Vamos aos pontos: 1) Vencer o medo. Todos os dias nos dizem: “vocês não podem!” Não podemos nos indignar, não podemos criar alternativas, não podemos dizer que a polarização é falsa e que queremos pensar e protestar com autonomia. Sem mobilizar todas as nossas potencialidades corporais, afetivas e cognitivas, nos deixamos representar por uma força inteiramente externa à nossa e somos paralisados pelo medo. De um lado, pretendem disciplinar a nossa indignação submetendo-a a estéticas e fórmulas preconcebidas (aumentos de pena para a corrupção, diminuição da maioridade penal, estímulo à repressão, reforma política discutida intramuros, uso domesticado das ruas, retórica nacionalista etc.); de outro, querem nos empurrar para atos de apoio ao governo convocados para evitar um suposto golpe da direita ou uma intervenção militar orquestrada pela CIA (por coincidência, a defesa da democracia é simbolizada por centenas de bandeiras da Dilma, do PT e de outros partidos do governo). Queremos construir alternativas e pensar para além da dupla-manipulação que nos exclui do direito de fazer política. 2) Ter algo a dizer. Há algum tempo, alguns filósofos já constatavam que “as forças repressivas não impedem as pessoas de se exprimir, ao contrário, elas as forçam a se exprimir” (DELEUZE, 1992)87. O homem mediatizado não é apenas aquele que tem sua palavra sequestrada pelos conglomerados de mídia, mas aquele que é instado a falar o tempo todo. Desde o estelionato eleitoral de 2014, observamos as redes sociais inundadas por informações mortas e fabricadas, compartilhadas à exaustão pela má87. Trata-se do artigo: DELEUZE, Gilles. Os Intercessores. In: ______. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2004. p. 151-168. O mesmo tema é retomado em: NEGRI, A. HARDT, M. Isto não é um manifesto (...).
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quina de propaganda da casta, e que acabam por impedir que uma comunicação viva e potente se estabeleça. Por um lado, memes grotescos que ridicularizam qualquer pauta de ampliação dos direitos de cidadania, por outro, a mesma grosseria e soberba aplicada a qualquer um que se indigne contra o governo. Precisamos resgatar o poder do silêncio que, nesse caso, significa construir uma linha de fuga das máquinas de propaganda que dominam as redes. Não defender uma saída nostálgica das pessoas das redes de comunicação, mas “arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo a dizer” (idem). 3) Perceber o que desliza. Nenhuma estratégia política é capaz de agrupar e ordenar perfeitamente todos os sujeitos. Sempre há algo que desliza e escapa. Assim, como no dia 13 de março de 2015 é possível vislumbrar aqueles que ousaram deslizar de suas organizações disciplinares e pelegas, no dia 15 de março somos capazes de encontrar pessoas que desejam ampliar direitos através da indignação contra o governo88. Afinal, seria bastante 88. Trata-se das manifestações realizadas, no campo da esquerda, no dia 13 de março, tendo como motivação principal a defesa da permanência de Dilma da presidência, e das manifestações do dia 15 de março, realizada pelo campo oposicionista principalmente na Avenida Paulista, reunindo-se em torno do Fora Dilma. Os críticos da manifestação da Av. Paulista tentaram desqualificá-la como fascista ou ultraconservadora. É interessante citarmos uma pesquisa quantitativa realizada pela Fundação Perseu Abramo, ligada ao próprio PT, com o público de ambos os atos, abrangendo 305 entrevistas feitas no dia 13 de março e 534 entrevistas no dia 15 de março. Quanto à autodeclaração com relação ao espectro político: no 13M, 71% se declaram “esquerda ampliada” e 13% “centro”; no 15M, 42% de declaram “direita ampliada”, 36% “centro” e 10% “esquerda ampliada”. O segundo ponto diz respeito às repostas com relação à defesa do regime democrático: no 13M, 87% defendem a democracia como melhor forma de governo, no 15M, 81%. No 13M, 5% admitem que uma ditadura possa ser necessária, no 15M, 12% admitem essa possibilidade. Tais dados apontam que na dita “manifestação fascista” 42% se auto-identificam como de centro-esquerda, assim como há um razoável acordo na defesa da democracia como melhor forma de governo. Outra pesquisa que pode ser citada em complemento aos dados comentados foi realizada pelo doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) Jairo Pimentel Jr., que considerou apenas o dia 15 de março, tendo sido realizadas 506 entrevistas. Contra as críticas de que essas manifestações eram organizadas ou buscam fortalecer os partidos de oposição, ela demonstrou que 76% dos entrevistados não gostavam de nenhum dos atuais partidos políticos e que 74% não concordavam com a participação dos partidos na manifestação. Apontou também que 64% dos entrevistados comparece-
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improvável acreditar que um milhão de pessoas em São Paulo são extremistas de direita. O cartaz, em verde e amarelo, que pedia mais bolsa-família percorreu as redes para demonstrar que existe uma diagonal que foge à polarização da casta. Um recente vídeo gravado na Av. Paulista mostrava jovens que se assumiam proletários “de esquerda”. Pesquisas realizadas nos atos mostram que uma parte dos indignados é favorável ao aborto, reforma política e contrária a qualquer discriminação contra gays e lésbicas. Outros levantavam bandeiras por direitos sociais, como saúde e educação89. 4) Disputar a cidadania. Na direção contrária do desprezo governista, precisamos reconhecer que pelo menos uma parte dos movimentos que entrou em cena no dia 15 soube definir um terreno cada vez mais adequado de ação política: a disputa por cidadania. Apresentando-se como um movimento “cívico” organizado pela própria população, com o afastamento real de políticos tradicionais do carro de som e a condenação das pautas mais radicais e ultraconservadoras, parte do movimento ocupou um espaço cada vez mais abandonado pela esquerda brasileira: o desafio de construir uma plataforma cidadã e de fazer políticas diretamente com as pessoas. O caráter apartidário, por exemplo, foi ironizado nas redes pelo depuram para protestar contra a corrupção em todas as esferas e 29% contra a presidenta Dilma. Apenas 4% dos entrevistados do dia 15 de março afirmam defender o retorno do governo militar no Brasil. Links para as pesquisas: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/fpa-pesquisa manifestacoes.pdf;https://docs.google.com/ file/d/0B_X0JJgtT4-RTG9Ja2R1b1FpdXc/edit Acesso em 29 de julho de 2018. 89. Sobre a defesa de temas tidos como progressistas por manifestantes do dia 15 de março de 2015, a pesquisa empírica realizada por Pablo Ortellado e Esther Solano, publicada alguns meses após o protesto, encontrou bastante repercussão, tendo o primeiro afirmado que: “o conteúdo observado na pesquisa é extremamente progressista. Isso é um resquício de junho de 2013; O espírito de junho ficou órfão, porque não tinha nenhuma força de esquerda descolada de partidos políticos. Com isso, a direita se apropriou dessas reivindicações”. Cf. EL PAIS. Perfil de quem foi à Paulista destoa de lideranças e não poupa ninguém. Edição eletrônica do dia 19 de agosto de 2015. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/18/politica/1439928655_412897.html Acesso em
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tado Marcelo Freixo, potencial liderança política que tem preferido divulgar propaganda governista a apresentar-se como alternativa real e viável para os indignados. Erro grave, que demonstra como a tradição socialista ainda precisa compreender as novas formas de organização política que se articulam entre as redes e as ruas, como demonstrou Junho de 2013. Para que “o movimento cívico” não termine por representar uma redução das nossas potencialidades democráticas, é preciso que nós assumamos o terreno que está dado e compreendamos o que significa as novas experiências políticas baseadas nas plataformas cidadãs. As condenações sumárias lançam o campo de esquerda para fora dessa disputa, condenando-o à lógica dos aparelhos e das formas pré-fabricadas de (in)ação. 5) Construir comunicação. O homem e a mulher mediatizados são efeito de uma comunicação morta que não cria linguagem, mas apenas reproduz e alimenta o depósito de erros, ironias pedantes e grosserias advindas da polarização da casta. Ao vencer o medo, ao perceber tudo que pode deslizar, ao criar uma camada de silêncio que nos protege dos signos mortos (leia-se: não compartilhar memes fastfood de propaganda política), ao fazer política com as pessoas por meio de múltiplas redes de cidadania, um novo terreno de troca de pontos de vista pode ser estabelecido. Ele demanda para a esquerda um esforço verdadeiramente cultural: construir discursos que possam circular, comunicar e produzir novas relações. “Amarildo” não seria um desses signos vivos carregados de sentidos que produziu uma linguagem comum no contexto das Jornadas de Junho? Quais outros poderemos criar no contexto atual de extrema indignação? 6) Abraçar o que não é seu. Explorar o terreno político atual, por fora das polarizações pré-formatadas, significa abrir-se para novos e inesperados encontros. É preciso reconhecer que boa parte da cultura de esquerda é alimentada por
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um infinito “poder pastoral”, nos termos de Foucault, que regula, fiscaliza e determina qual é a melhor conduta a ser seguida em cada momento. A rebeldia é punida com sarcasmo, olhares desconfiados e ostracismo (“Fulano descambou para a direita”). Infelizmente, uma das consequências da repressão e do estelionato eleitoral de 2014 foi a fuga para zonas de conforto ativista (identidades) ou uma total adesão às redes de propaganda governista. Para que a agenda de ampliação de direitos não seja completamente varrida do mapa, como um sopro que afasta partículas minúsculas de algum lugar, é preciso sair do casulo dos grupos e disputar os sentidos da justa indignação que se alastra pelo país. Não há nada de novo na proposta: fizemos isso em 2013 e conseguimos compartilhar bons sentidos e desejos com relação ao aprofundamento da democracia. 7) Entender as ruas, construir os sentidos. Em 2015, o horizonte das ruas tornou-se bem mais dificultoso em razão da repressão orquestrada pelo governo e por grandes empresários contra as Jornadas de Junho, bem como com a chantagem simbólica e política alimentada pela falsa polarização. As ruas foram completamente depuradas dos elementos fortes que conferiam um sentido explicitamente voltado para a radicalização democrática. Poderíamos dizer que o governo federal esticou o tapete vermelho para que os elementos mais conservadores da indignação pudessem desfilar. Sobraram três alternativas: abandonar as ruas organizando eventos paralelos e de pequena escala, ir aos atos organizados por entidades totalmente vinculadas ao governo para defender o indefensável e ser varrido do mapa político (com toda a razão), ou buscar uma disputa de sentidos no terreno da indignação concentrada no “Fora Dilma”. Uma boa demonstração da terceira opção ocorreu com o ato pela memória de Claudia, assassinada pela polícia militar, e com as pessoas que foram aos atos com cartazes
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por ampliação de direitos, ambos no dia 15 de março90. Como lançar-se na indignação espalhando forças de ampliação dos direitos e da democracia? Uma coisa é certa: o horizonte está dado e o desafio é, a partir dele, superar o regime da falsa polarização de castas políticas com o aprofundamento da democracia e da cidadania, reconhecendo que a alternativa não está em nenhum dos lados dessas castas. 8) Compreender as tendências. Acabo de ler um texto de um professor de política da USP, que chega a conclusões tranquilizantes sobre o dia 15 de março a partir de uma análise “sociológica”, determinando que as manifestações possuem um perfil específico, reservado à classe média e alta brasileira. Qual o problema dessas análises? Elas esquecem um elemento, tão caro a uma certa filosofia política do século retrasado, que seria justamente o coração de uma boa leitura da conjuntura política: o problema de encontrar a tendência dos acontecimentos, aqueles “traços” deixados pelo teatro das forças da história, nos dizeres de Nietzsche. A questão, portanto, não é descrever uma fotografia, mas encontrar a imagem-tempo de um movimento. A manifestação do dia 15, além de contar com a participação, ainda que minoritária, de outras classes sociais, pode estar comunicando um movimento de forma difusa e ingovernável. Ela tem um potencial que não deve ser, de forma alguma, menosprezado: abraçar a crescente indignação que atravessa as pessoas, e que vai se aprofundar nos próximos anos. Seria ruim que os protestos se generalizassem no sentido de uma ampla participação da sociedade? Claro que não! Pelo contrário, a generalização da participação é a oportunidade mais rica para criarmos um amplo repertório de sentidos políticos para além do autoritarismo e da manipulação da casta (política e midiática).
90. Por todos, conferir: GARCIA, Rafael Tsavkko. Claudia Silvia Pereira. Morta em ação policial, tornada invisível pela mídia. Disponível em: http://folhadiferenciada.blogspot.com/2014/03/claudia-silva-ferreira-morta-em-acao.html
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9) Voltando ao panelaço inesperado dos Cabritos Dito tudo isso, posso voltar ao dia 16 de março no Morro dos Cabritos. Ele permitiu, mais uma vez, demonstrar a falsidade das análises que desejam restringir a indignação às elites brasileiras e à classe média. Pensando melhor, relembrando todo o trabalho que tenho feito desde 2007, no acompanhamento das políticas para as favelas, seria curioso se não houvesse qualquer tipo de indignação. Em vários textos e atividades públicas, já demonstramos que o PT comandou diretamente uma série de violações diretas ao direito de moradia nas favelas, organizou, através da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governo Federal, um programa de cobrança pelos serviços prestados (energia elétrica, por exemplo), que se transformou numa verdadeira extorsão empresarial, comprometendo a renda de milhares de trabalhadores. O mesmo governo está, nesse momento, insistindo na remoção do Horto Florestal e possibilitando, através do Programa Minha Casa Minha Vida, a remoção da Vila Autódromo, por exigência do mercado imobiliário91 Como a mesma determinação, sustenta uma ocupação militar no complexo da Maré, que transformou o território num campo de exclusão de todos os direitos da cidadania. Em sua participação na Prefeitura do Rio, além das remoções, promove uma repressão aos garis e foi responsável pelo vergonhoso programa de internação compulsória de usuários de drogas. No campo econômico defende um ajuste fiscal que prejudica pescadores e desempregados, um ano após ter gastado bilhões de reais em estádios de futebol superfaturados. A crise federal encontra um correlato no plano estadual, com o contingenciamento das verbas de todas as secretarias e o covarde calote aplicado nos trabalhadores terceirizados de várias instituições públicas.
91. [N.A] A remoção da Vila Autódromo foi concretizada em 2016 após 25 anos de resistência. Tanto o Governo Federal como o Municipal, ambos com participação direta do PT, se mobilizaram para realizar a expulsão dos moradores. Cf. MENDES. A.F; COCCO, G (Orgs.). A resistências às remoções de favela no Rio de Janeiro (2016).
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Com tudo isso, seria infame lamentarmos o vigoroso panelaço promovido no Morro dos Cabritos. Talvez seja melhor pensar no tipo de comunicação social que foi produzida a partir do dia 15 de março e imaginar que, ao contrário da lógica da casta, é melhor a participação de uma rede diversificada de indignados, com uma ampla possibilidade de sentidos políticos e novas reivindicações, que a manipulação oportunista da indignação através da propaganda polarizada. Nem exaurir a indignação no impeachment, nem cair no Fica Dilma. Que linguagens podem ser criadas? O que poderíamos aprender com o novo conflito no Morro dos Cabritos?
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A e s q u e r d a q u e v e n c e u 92 1. A necessária crítica ao voto crítico Em 2015, assistimos a mais uma reviravolta no campo que se convencionou chamar de esquerda brasileira: a passagem do regime discursivo do voto crítico para a narrativa de uma derrota incontornável em que estaríamos implicados. O regime do voto crítico atingiu o ápice nas eleições de 2014, naquele outubro em que quase todos os atores do campo de esquerda cerraram fileiras ao redor do menos pior para barrar a direita. A vitória eleitoral foi comemorada com bandeiras vermelhas numa atmosfera otimista de guinada à esquerda. Logo após as eleições, em meio a cortes de recursos a apoiadores e sucessivas reformas ministeriais que afastam quadros desse campo, o governo e o PT se contentaram em explicar e justificar a própria derrota. Pareciam deixar de lado, de maneira resignada, aquela euforia com que prenunciavam e prometiam uma calorosa disputa entre as forças progressistas e conservadoras por dentro do governo Dilma. Desse otimismo, nasceu inclusive uma inesperada aposta frentista, que reuniria movimentos sociais e mídias progressistas para fazer a primeira linha de defesa do governo nas ruas, em nome da ideia de esquerda. Quando Vladimir Safatle escreveu A esquerda que não teme dizer seu nome (2012), para tratar de algumas concepções e valores que seriam 92. Este artigo foi escrito em coautoria com Bruno Cava e publicado originalmente no site da Uninômade, no dia 02 de outubro de 2015. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/a-esquerda-que-venceu/ Acesso em 24 de julho de 2018.
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“inegociáveis” à esquerda, certamente não imaginava como uma ideia poderia ocupar um papel tão central na rearticulação do campo discursivo governista, construído, como indicava Francisco de Oliveira, sobre todo o tipo de negociação. Paradoxalmente, foi essa ideia, destituída de qualquer materialidade ou mesmo uma dimensão de ligada a valores, que fez com várias vozes críticas mais à esquerda do governo, que não cansavam de martelar que o governo, Lula e o PT são de direita, acabassem por ajudá-los pela via transversa, ao serem tragadas no rearranjo simbólico que, afirmando as próprias contradições, sustenta o voto crítico. Roberto Schwarz, o mestre dialético das Ideias fora do lugar, foi profícuo em escrever ensaios sobre como ideias aparentemente seguras, que nos definem a identidade e nos motivam a ação, amiúde contribuem mais para a conservação de um tempo histórico do que sua crítica93. Nessas situações, é preciso exacerbar o desconcerto. O ano de 2015 foi de protestos massivos e indignação pelo país inteiro contra o governo e o PT, responsabilizados pela população pela crise nas suas muitas dimensões: ética, política, econômica. Exatamente neste contexto, depois do ano da Copa, a reemergência social é processada como uma oportunidade de levantar uma frente de esquerda, cujo propósito declarado é resistir à onda de reacionários, coxinhas e golpistas que estariam “hegemonizando” as ruas e redes contra a esquerda, as conquistas dos últimos governos e o estado democrático de direito. A oportunidade de esquerda confina com a oportunidade do governo segundo o dispositivo do voto crítico. Esperando prolongar a boa colheita de outubro de 2014 até pelo menos as eleições de 2018, o frentismo de esquerda pós-eleitoral aproveita desde velhos dirigentes da esquerda do PT e ao PT, passando por novos que se credenciam como vozes da ideia de esquerda, como Guilherme Boulos94, do MTST, até certa 93. Cf. SCHWARZ, R. As ideias fora de lugar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014 94. [N.A] A escolha de Guilherme Boulos, figura dócil ao campo lulista, para candidato à presidência do PSOL nas eleições de 2018, confirma o sucesso dessa estratégia.
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incitação ao pânico moral nas redes pela blogosfera progressista e sua difusa facebukosfera de transmissão, ávida por consumir reaça exploitation ante a falta de melhor programa. É preciso também prolongar a promessa da guinada à esquerda, mantê-la no nível do crível, motivo pelo qual as eleições municipais de 2016 (sobretudo com Freixo, no Rio) e o retorno triunfal de Lula em 2018 passam a ocupar um lugar central na narrativa da refundação do PT, ainda que seja abrigando-se no PSOL95. Para analisar essa estratégia, vale a pena retomar considerações de que participamos quando, na incandescência daquele segundo turno de 2014, optamos por criticar o voto crítico. Longe de criticá-lo por dogmatismo a partir de uma posição abstrata, tratava-se de expor como, naquelas precisas coordenadas, o voto crítico operava como peça de um dispositivo. Uma peça de arremate. Tomando dispositivo na acepção foucaultiana, isto é, como agenciamento dinâmico entre práticas e produção de verdade, no voto crítico estavam presentes e ainda estão as três operações principais: 1.1) A consolidação de uma virada na memória das jornadas de junho a outubro de 2013. À multiplicidade de atores-processos, narrativas vivas fragmentárias e agendas em formação, se entroniza uma disputa macrológica entre partido de governo e partido de oposição. Se, em junho, éramos polarizados por pautas concretas e diretamente implicadas em nossa existência na cidade, o terreno do conflito é transposto à polarização “desde cima”, determinada pela estratégia superior de cúpulas político-partidárias. A premissa consiste na afirmação que PT e PSDB são as duas forças ideologicamente consistentes e que, portanto, as duas que disputam 95. [N.A] O resultado concreto dessa estratégia para a antes denominada oposição de esquerda foi a derrota de Freixo no Rio, em 2016, para um dos candidatos mais impopulares da cidade e, em 2018, a impossibilidade de construção de uma linha política autônoma diante aposta do PT na candidatura de Lula, a despeito das questões jurídicas ligadas à sua prisão.
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projetos distintos de país, em busca da hegemonia social. O primeiro seria pós-neoliberal, com ares keynesianos e assumidamente desenvolvimentista, enquanto o outro anularia o foco do social por um rentismo ao gosto do neoliberalismo à americana (escola de Chicago). Tal disputa no plano da autonomia do político, a seguir, sobredetermina a ação e a consciência dos atores-processos que, de um lado ou de outro, terminam por se perfilar com maior ou menor incidência. Decodificada pela blogosfera progressista, trata-se da disputa entre progressismo (esquerda) e reação (direita), entre quem faz o jogo da esquerda e defende o interesse popular, e quem faz o jogo da direita ressentindo-se das conquistas de direitos do lulismo. Talvez o grande campo cego dessa dicotomia, e por isso mesmo incansavelmente desqualificado, achatado e “esquecido”, é o longo arco de mobilizações diagonais cuja máxima emergência se deu em junho de 2013, tratado por ambas as posições como um caldo social confuso, espasmódico e sumamente ambíguo, irremediavelmente imprestável à estratégia do verdadeiro indutor do sujeito histórico. Em última análise, fez o jogo da direita. Daí dirigentes da esquerda do PT, — digamos, um Tarso Genro, — rapidamente terem indicado uma “hipnose fascista”. 1.2) O abraço conformista à gramática do menos pior, como se a política se limitasse a escolher entre as fatais condições oferecidas e não, como pensava Maquiavel, ousar recriá-las nas contingências de seu tempo, arriscar-se para além do fatalismo das opções dadas. Sobretudo porque a aparente ausência de alternativas se alimenta da ética sedentária com que conformados e conformistas mergulharam na acomodação de anos na burocracia. Em nome de salvaguardar um patrimônio de 30 anos, fica-se sentado em guarda contra os bárbaros, repercutindo a mídia governista. Mas não só isso. O menos pior também serviu de boa consciência a movimentos e ativismos numa conjuntura de repressão, refluxo e autofagia, preenchendo o vazio deixado pela desmobilização
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das lutas. Quando a tática se cristaliza num fetiche não pode evitar de ser tragada pelo status quo, em dialética implacável. 1.3) A feroz desqualificação dos esboços de alternativas que são apressadamente descartadas, nelas se centrando fogo com a blogosfera progressista e a esquerda no pelotão de fuzilamento. A única alternativa aceitável é a frente de esquerda que reúne movimentos como o MTST e elementos de partidos como o PSOL e o PCO, para reivindicar-se uma instância de tensionamento à esquerda. Tal tendência é estranhamente tolerada e até elogiada pelo campo governista, sobretudo pela esquerda do PT, — talvez pelo fato que seja uma frente não só domesticada e ultimamente inócua em termos de força social, mas, sobretudo, porque defende um dispositivo vital para a sobrevivência do governo petista. Só faltou combinar com os russos, pois até agora a maioria da população indignada não se deixou enganar. Gentil com a esquerda do PT e fiadora ideológica do dispositivo do voto crítico, essa oposição minestrina não deixa de ser feroz com quase todo o resto, cumprindo assim a segunda tarefa governista. A combinação articulada das três operações, em 2015, tem garantiu a desqualificação das manifestações de indignação contra o governo pela esquerda, nivelando-as como protestos reaças, coxinhas e golpistas, que em última instância faziam o jogo da direita. A condenação dos panelaços que irradiaram pelas metrópoles ganha contornos morais e é enquadrada em determinismos primários e positivismos sociológicos, como se Esquerda fosse um significante-mestre para o entendimento da realidade. Tudo para reforçar o discurso identitário de entrincheiramento da própria esquerda, cada vez mais impermeável à polifonia que se avoluma ao mesmo passo da tempestade econômica e política que a crise não para de semear. A esquerda menospreza as pessoas nas redes e ruas rotulando-as de analfabetas políticas ou ideologicamente tacanhas, ridicularizando diversos e polivalentes anseios que, além de
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democraticamente legítimos, exprimem uma luta social em estado de emergência. Reproduz-se não só a moral da velhinha de Taubaté, como a sempiterna condenação temerosa da multidão, o correlato afetivo do amor ao soberano. Com isso, a esquerda se afasta das tendências reais de transformação e se paralisa, a serviço dos poderes existentes. Sobre o tema, fazemos questão, dada a pervasividade do aludido regime discursivo, de aqui escrever “esquerda” sem mais, em vez de “certa esquerda” ou “uma esquerda”.
2. Do voto crítico à confissão de “derrota” Quais armadilhas estavam por trás, em 2015, da mais nova confissão de que teríamos sido derrotados, como já anunciado pelos avatares da comunicação governamental? O que significa a inflexão do regime discursivo do voto crítico para o regime discursivo do reconhecimento da derrota, “os tempos sombrios”, que ora se anuncia como tendência? Como interpretar a mudança de coordenadas de modo que a crítica efetiva possa prevalecer? Queremos levar às últimas consequências a análise dessa crise para tentar tocá-la em seu nervo profundo. O primeiro desafio está em escapar da imantação do dispositivo do voto crítico, no amplo rol de suas consequências éticas e políticas, o que tem comprometido análises à esquerda. Devemos assumir, como dado iniludível da conjuntura, que não existem dois polos em antagonismo real, os quais, desde cima, nos subsumiriam enquanto peças do jogo. Essa forma de encarar o tabuleiro está viciada de antemão. A falsa polarização não se resolverá pelo anúncio de uma suposta vitória — seja ela do regime do voto crítico, seja daqueles que, colocando-se na antípoda do posicionamento dos enunciadores, acabam compartilhan-
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do do mesmo regime produção de verdade. O “falso”, aí, é antes um falso problema que agora busca sobrevida noutros formatos. Admitir que o governo Dilma e o PT foram derrotados leva a isentá-los de dois fatos que contribuíram, pelo tipo de sucesso perseguido, para esgotar a capacidade de responder positivamente aos desafios colocados na década de 2010. Em primeiro lugar, a restauração realizada desde a cúpula do governo e do PT contra as jornadas de junho de 2013 e o que ela expressa em termos de remobilização e inovação democráticas. A ideia de esquerda foi mobilizada nessa restauração, ao julgar ideologicamente, no sentido ruim, isto é, à revelia das forças reais; por exemplo, ao preferir ater-se aos próprios símbolos, como se a luta social produzisse um tipo de esfera sagrada a ser homenageada, em vez de misturar-se à indignação sem imagem prévia em suas múltiplas tendências. O episódio das bandeiras, em 20 de junho de 2013, foi usado para instalar o pânico moral das esquerdas, como se tivesse qualquer valor por si, para quem quer transformar o real, levantar uma bandeira vermelha, dizer o nome “esquerda” ou reivindicar-se desta ou daquela ideologia. Já em junho de 2013 estava bastante presente, aliás como no mundo todo, a tendência antipolítica que antagoniza com os partidos e sindicatos. Uma antipolítica que, na realidade, se contrapõe à Política com maiúscula, essa que aparece no noticiário da Lava Jato, nas máfias e milícias que mandam nos negócios da cidade, nas megaobras que tratoram os cidadãos96. A positividade da crise da representação é algo para ser desenvolvido e construído e não desqualificado, sob pena de perder-se o bonde da história. Foi o que aconteceu no Brasil, uma vez que, quando os pro96. Trata-se de uma rejeição às bandeiras partidárias realizada por uma vaia em uníssono protagonizada pela multidão que ocupava as ruas no dia 20 de junho de 2013, em especial na Av. Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Em alguns casos mais exagerados, e lamentáveis, alguns militantes de esquerda que portavam bandeiras partidárias ou de movimento social foram perseguidos sob ameaça física. A partir daí, as opiniões se dividiram entre tentar entender politicamente o que significa essa rejeição em termos de crise da representação ou espalhar a tese de que os manifestantes de Junho eram fascistas.
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testos ganharam novamente as ruas em 2015, se dividiram basicamente num duplo: num dia protestos em números gigantes de verde e amarelo contra a crise, no outro dia, protestos bem menores da esquerda contra o avanço conservador e o golpismo, pela manutenção do menos pior. Quem sabe algum estrangeiro perspicaz, um que não estivesse tão saturado das simbologias e ideias fora do lugar, não erraria muito se dissesse que, no primeiro dia, é um protesto de indignados, no outro, das bandeiras. Em segundo lugar, o estelionato eleitoral concertado de maneira ostensiva, com a participação acrítica de quase toda a esquerda brasileira, em maior ou menor grau, um fato que dispensa longas explicações. Não é produto da ação da grande mídia a percepção geral que o governo adotou, para encobrir a falta de perspectiva e a crise que ele próprio provocou, a propaganda enganosa e a desqualificação pessoal como método, com destaque para o linchamento moral de uma candidata que veio de suas próprias tradições, militante histórica da esquerda e do ambientalismo.
3. Reavaliar o governo Lula Mas gostaríamos de ir um pouco mais além, para fazer uma retrospectiva do embate que se estabeleceu desde o primeiro Lula (2003-06). Naquele período, enquanto setores da esquerda do PT e ao PT atribuíam à “falta de projeto” a responsabilidade pela fraqueza do governo, a riqueza e a força que enxergávamos no processo (nós e a UniNômade em geral) consistiam na abertura de brechas, por onde fluxos de alta intensidade conseguiam passar e catalisar grandes e duradouras transformações97. Brechas que não eram, em momento algum, o eixo principal 97. Para um roteiro das diversas fases de avaliação de acordo com a chave das políticas do comum, recomendo a leitura do editorial escrito para quinquagésima edição da Revista Lugar Comum. EDITORIAL DA REVISTA LUGAR COMUM. Entremilênios além do progressismo. In: Revista Lugar Comum: estudos
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das ações institucionais e estratégias do governo, mas que mesmo assim possibilitaram experimentações em torno de políticas sociais de novo tipo. Estas não se traduziam em medidas intervencionistas ou desenvolvimentistas, a partir de um estado forte o suficiente para enfrentar o mercado e o capital. Tal reposicionamento típico de propostas estatistas nostálgicas da Guerra Fria de uma forma ou de outra estão atreladas à acumulação de capital, a fim de concentrar excedentes de manobra para um estado dirigista. Aquelas políticas de novo tipo, inclassificáveis dentro do esquematismo estado x mercado, traduziam-se, isso sim, no incentivo material a uma rede de políticas do comum que, no tecido conjuntivo de uma sociedade em movimento, potencializavam diretamente a vida e garantiam a criação de novos espaços e temporalidades de expressão, comunicação e mobilização. Estamos falando do lulismo selvagem, que não galgou expressão institucional à altura — pelo contrário, foi sistematicamente negado pela esquerda brasileira (inclusive pelo teórico mais famoso do lulismo, André Singer). O governo Lula foi o primeiro governo no Brasil a propiciar uma inversão positiva da biopolítica (triplamente qualificada: social, econômica e política), a mesma que marca as tecnologias de poder no Sul. Na década passada, a partir do governo federal, se conseguiram formular técnicas de investimento da vida para além da matriz de controle social e racial com que a biopolítica vem operando no subcontinente desde a colônia. Por meio da interdependência com outros países da América Latina, se configurou uma nova aliança ao redor do paradigma do bem viver e do comum, nas florestas e nas metrópoles. Trata-se da passagem, como se teoriza hoje na filosofia política, do workfare para o commonfa-
de mídia, cultura e democracia, n. 50. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e Comunicação – LABTeC/ESS/UFRJ, edição de setembro de 2017. Disponível em: http://uninomade.net/ tenda/entremilenios-alem-do-progressismo/ Acesso em 25 de julho de 2018.
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re98. Ali sim, enxergávamos um embate real, um embate que, mais do que opor forças contrastantes que se medem quantitativamente pelo capital político, opunha diferenças qualitativas e devires minoritários que se propagavam e mereciam ser promovidos. Dessa maneira, a análise traça uma diagonal, uma linha de fuga para escapar da dialética entre correlação de forças e vontade política, no persistente Double bind que prende esquerda do PT e esquerda ao PT (não por acaso, hoje agonizando abraçadas). O caso do bolsa-família99 é fundamental nessa reconfiguração selvagem propiciada pelas políticas sociais de novo tipo ou políticas do comum, indo além do marco representativo e participativo das décadas anteriores, campo por excelência das inovações petistas e dos movimentos sociais desde a década de 1970, como pesquisado à época por Eder Sader. Na década de 2000, de um lado, a esquerda via no programa não mais do que uma política acessória e conjuntural, que não poderia conduzir à idealizada mudança das estruturas de classe. A mudança dita estrutural dependeria antes de um projeto de país cujo desenvolvimento pleno pudesse combinar modernização e proletarização, pleno emprego e conscientização de classe, parque tecnológico avançado e poder de classe, tudo sob a direção estratégica, política e ideológica da esquerda. Nessa lógica, até hoje dominante nesse campo, o bolsa-família somente fez sentido como correção oportuna de desigualdades agudas e enquanto porta de saída para projetos mais estratégicos. Daí o imperativo de que ele esteja atrelado a condicionantes disciplinares e estímulos profissionalizantes, de maneira que a inclusão social não escape do necessário direcionamento das energias por um 98. Sobre o tema, conferir: FUMAGALLI, A. Bioeconomia y capitalismo cognitivo: hacia um nuevo paradigma de acumulación. Tradução de Antonio Antón Hernández, Joan Miquel Gual Vergas y Emmanuel Rodríguez López. Madrid, Traficantes de Sueños, 2010. 99. Por um resumo da avaliação que compartilhamos, publicada posteriormente à primeira publicação deste artigo, cf. PEDROSA, S. COCCO, G. A realidade da renda básica no Brasil pós-Lula. Universidade Nômade, publicação do dia 09 de setembro de 2016. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/a-realidade-da-renda-basica-no-brasil-pos-lula/ Acesso em 25 de julho de 2018.
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programa de cidadania e qualificação política. Noutras palavras, o bolsa-família serviria como catalisador para o emprego formal, eixo principal da reorganização do welfarenos moldes do padrão do segundo pós-guerra europeu, sob inspiração keynesiana. Por sua vez, em estranha proximidade, os assumidamente neoliberais amesquinhavam o bolsa-família como oportunista e eleitoreiro (em vez de “acessório” e “conjuntural”), servindo tão somente de mínimo existencial para deslocar as pessoas da miséria para o tabuleiro da concorrência e empreendedorismo. A segunda via à desqualificação forte ou fraca consistia em afirmar que o bolsa-família era o programa virtualmente revolucionário do governo Lula, o paradigma para, ao redor de seu aprofundamento, reconstruir-se todo o aparato de governança de um commonfare. Primeiramente, víamos o bolsa-família como o embrião para uma renda universal incondicionada, uma direta reapropriação dos circuitos de exploração social difusa provocados pela financeirização da vida. Embutindo uma tendência de democratização do salário real ou biopolítico, o bolsa-família é da ordem de políticas como o SUS, o tarifa zero nos transportes ou a transformação da cultura em dinâmica de valorização direta das dimensões da vida. Boa parte da esquerda, com a ideia fixa do estado na cabeça, não conseguia imaginar um terreno de autovalorização que pudesse dar conta do trabalho institucional. Isto se deve, antes, a um anacronismo que leva a pensar com categorias de um mundo que não existe mais, a saber, o capitalismo de matriz fordista do século 20, e depois, à incapacidade de entender as instituições como construções de potência social “desde baixo”. Somente a seguir, num segundo momento, poderiam ser integradas na dimensão simbólica do estado. É por isso, também, que avaliamos (com a UniNômade) que a bolsa-família entrou em ressonância com o aumento do salário mínimo, o crescimento do consumo e o acesso ao crédito, provocando o maior ciclo virtuoso de inclusão social, política e econômica da história brasileira. Daí não concordarmos com a avaliação da esquerda do PT, de um
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André Singer, que teria sido o Consenso das Commodities a principal razão da blindagem do mercado interno nacional diante do crack de 2009. Essa blindagem foi antes efeito de uma dinamização sem precedentes da produção biopolítica, que reinventou o Brasil. O bolsa-família e as políticas associadas, para usar um conceito deleuziano, favoreceram a mais potente atualização daquela virtualidade tanto invocada pelos pensadores do Brasil, de Euclides da Cunha a Glauber Rocha, quando falavam do positivo da pobreza e da estética do subdesenvolvido. Nada disso aparece, entretanto, nas discussões à esquerda sobre a mudança de coordenadas do embate. Enxergávamos embates de natureza similar, ainda que em menor escala, noutras experimentações democráticas ocorridas durante o governo Lula, tais como: pontos de cultura, de mídia livre, cultura digital, luz para todos, acesso à universidade, ações afirmativas (diretas e indiretas), uma nova relação entre governo e movimentos, uma recolocação no eixo continental e mundial de lutas e fóruns de governança daquele decênio. Um embate entre a segunda via oferecida pelas políticas do comum, e a via única marcada pela cumplicidade entre arranjos neodesenvolvimentistas e neoliberais, entre dirigismo estatal e dirigismo do mercado, ambas as faces voltadas à configuração de novas fronteiras de acumulação, diante da crise do capitalismo. O neoliberalismo somente deixaria de ser a primeira via, o pensamento único, quando as políticas do comum se entrosassem com a mobilização democrática de uma nova classe, a ponto dela fundar outra moeda e outras finanças. Jamais mediante atalhos ou canetadas desde a cúpula de governo e do partido, sem a correspondente força social ou, pior, desmoralizando e, no limite, criminalizando os momentos em que essa força social se exprime: nas ruas de junho, nos rolezinhos e fluxos, na emergência evangélica, no movimento anticorrupção de 2015, nos panelaços. O governo Dilma e o PT aplicaram, de fato, o seu projeto autoritário e dirigista na economia e na política. É preciso assumir que venceram e que estamos vivendo as consequências de seu sucesso.
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No primeiro governo Lula, tratava-se de lutar pelo aprofundamento das políticas do comum, para escapar do rearranjo entre estado e mercado que já vinha se desenhando no governo Lula com o entrelaçamento íntimo entre vários modelos de negócio, atravessando indistintamente o público e o privado. Tal tendência foi percebida por analistas mais agudos, como Marcos Nobre, que aponta a reconfiguração do pemedebismo desde meados da década passada, por dentro do lulismo. Mais do que “aliança com PMDB”, o crítico consiste no fato que o próprio PT se pemedebizou, adotando a mesma lógica de governabilidade, esquema no que participou à maneira dialética a esquerda do PT, — uma vez que os projetos de desenvolvimento são indissociáveis dos esquemas de governabilidade de onde sorvem a fonte de acumulação100. Daí que não podemos concordar com a classificação elaborada por Nobre, em Imobilismo em movimento, de um “social-desenvolvimentismo”: é necessário abandonar inteiramente qualquer perspectiva desenvolvimentista, ainda que a título do social, — já que afinal de contas é da socialização da produção que o desenvolvimentismo extrai seu mais-valor. Além disso, o lulismo não foi apenas passivamente tragado pelo pemedebismo, como exerceu uma função ativa de expansão, principalmente no campo da produção de uma subjetividade que se vê sempre como amedrontada e necessitando de representação. O resultado do embate, hoje, se tornou evidente. A primeira via, o que Singer denomina de coalizão produtivista (SINGER, A. 2012), se consolidou ao longo do segundo governo Lula, quando se firmou o arranjo de governabilidade entre os ditos campeões nacionais oligopolistas, bancos públicos/privados, operadores financeiros, burocracia de esquerda e velhas oligarquias da cidade e do campo. O Rio de Janeiro, nesse sentido, foi o laboratório perfeito para a nova tecnologia de governabilidade em que o lulismo afundaria como uma estratégia desen100. Cf. NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da redemocratização ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013a; ________. Choque de democracia. Razões da revolta, livro eletrônico. São Paulo: Companhia das Letras, 2013b
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volvimentista, turbinada por obras do PAC, megaeventos, favorecimento de grandes empreiteiras, pacificação militar de territórios e choque de ordem contra os não-enquadrados, associação mafiosa e miliciana de interesses, — tudo com margem mais do que suficiente seja para azeitar os negócios com os players, seja para refinanciar o sistema partidário/eleitoral e suas correias de transmissão de movimentos, blogosferas e militâncias. Como vimos em Francisco de Oliveira, existe um momento de verdade, enfim, no discurso contra a corrupção, relacionado à própria organização da acumulação nos anos 2000. Na contracorrente da crise mundial, o arranjo foi tão bem sucedido que, em 2010, com altos índices de crescimento, inclusão e popularidade, Lula poderia fazer o sucessor que bem entendesse. Escolheu Dilma, a mãe do PAC, operadora maior da linha cada vez mais majoritária do governo Lula, unilateral e unidimensional. O governo Dilma nasceu, assim, da vitória de um projeto estratégico político-econômico, da percepção de seu sucesso, de um otimismo coroado pela atração ao país da Copa e das Olimpíadas e que já previa para si um governo com duração de 20, 30, quiçá 50 anos. Comprazia-se também a esquerda, habemus projeto! Dilma estaria mais à esquerda do que Lula (SINGER, A. 2015). Eis a coerência brutal e autoritária da racionalidade técnica e objetiva investida na lógica da acumulação. Daí por diante teve-se a confirmação da tendência de resolução das ambivalências, num crescendo de fatos intoleráveis, o terminal fechamento das brechas e a postura esmagadora com que o novo governo passou a lidar com os descontentes, ocupações, mobilizações e povos indígenas, atropelando-os como se fossem florzinhas sob a marcha do progresso.
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4. A esquerda venceu Em 2015, chegou-se, enfim, ao epílogo de uma trajetória de 13 anos de “governo progressista” no Brasil. A peça pode ser reencenada à moda clássica, em cinco atos: 4.1) A persistência da tradição neodesenvolvimentista e estatista na esquerda da América Latina, com sua análise eminentemente reativa e anacrônica da globalização, do funcionamento do capitalismo contemporâneo, das métricas e valores para o desenvolvimento nacional e das políticas sociais de tipo novo (bem-viver e políticas do comum). Os “governos progressistas” passaram a derreter todos juntos por esgotamento político endógeno e não por ataques externos orquestrados por uma invencível direita ou pelo conveniente argumento do “imperialismo americano”, mas sim por terem se distanciado conscientemente da composição política de classe que esses próprios governos cevaram em primeiro lugar. A falta de imaginação é um problema democrático. Dessa maneira, alijaram-se daquela força social que, reunida em sua multiplicidade, lançava fundamentos novos e poderia permitir a reorganização da produção e da riqueza a partir de outros valores que não a acumulação (Tipnis, Yasuní, Belo Monte, Vila Autódromo). O Brasil e a Venezuela são os casos mais críticos desse exaurimento, em que também se incluem Argentina, Nicarágua, Equador e Bolívia. É aí que deveríamos sondar o golpe e as razões de esquerda desse golpe. 4.2) Com o fechamento das brechas à segunda via, misto de surdez institucional e anacronismo ideológico, sobrou apenas repetir a oposição entre políticas de intervenção na economia, articulando um mistificado setor produtivo “real” e o dirigismo de estado; versus políticas de desregulamentação liberalizante, de viés neoliberal, fundadas numa acumulação “virtual”. Hoje, no entanto, as políticas desenvolvimentistas: ou são ineficazes ao não encontrar incremento de produtividade
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aonde julgavam que deveria estar (ausência de retorno, quebra da fidúcia), ou só podem funcionar seguindo as regras do jogo definidas pelo próprio capitalismo contemporâneo: precarização, trabalho gratuito, saque fiscal, retirada de direitos, novas enclosures, segregação urbana, como demonstraram Giuseppe Cocco e Ruy Braga. Por isso, a guinada neoliberal se engendrou não em oposição ao PT, como uma reação conservadora, mas no próprio coração do projeto Brasil Maior, um projeto que alterna permanentemente entre desenvolvimentismo e neoliberalismo, entre Levy e a Agenda Brasil. 4.3) O fracasso da dupla aposta: a) que se poderia prolongar indefinidamente crescimento econômico, pleno emprego tendencial e formação de nova classe média nas metrópoles, com o pano de fundo da estabilização macroeconômica dosada pela ortodoxia financeira; b) que a governabilidade poderia ser conservada ainda por muito tempo mediante a repartição dos megainvestimentos entre parceiros eleitorais e políticos, desde a mitologia brasileira dos empresários comprometidos com o desenvolvimento nacional, passando pelas oligarquias urbanas e rurais, a mídia corporativa e progressista, até chegar na burocracia partidária para comandar o processo técnico e nos intelectuais das esquerdas para disputar a universidade. Como sabemos, o ajuste fiscal e a Lava Jato são filhos ingratos e imprevisíveis dessa dupla aposta. 4.4) O Brasil Maior acaba sustentado pelo duplo imobilismo dos movimentos sociais tradicionais: a) primeiro, em razão de uma subordinação à agenda desenvolvimentista e da incapacidade de criar novo sentido à antiga fórmula distributiva e setorial das reformas de base. Como pensar uma crítica da propriedade nos novos arranjos globais a partir não tanto das “bases” de um suposto desenvolvimento nacional, mas das redes vivas e transversais que compõem as metrópoles e as florestas, o comum?; b) segundo,
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o imobilismo em razão da subordinação desses movimentos ao governo e seus partidos mais ou menos simpáticos, fiando a falsa polarização das bandeiras vermelhas. Como reconstruir a autonomia dos movimentos não apenas com relação aos governos, mas com relação à dimensão organizativa e à relação aberta com outras mobilizações? Como usar a tática eleitoral e institucional, sem ser tragado pelo redemoinho aparelhista da razão instrumental dos partidos no sistema político existente? 4.5) A restauração sobre Junho de 2013 demarcou de maneira irreversível o sentido do governismo. Como sabemos, as jornadas não se constituíram por um evento único, mas por um acontecimento de acontecimentos. No terreno aberto por elas, encontramos vários pontos de contestação ao projeto majoritário do governo que, depois de um primeiro instante de indecisão, atuou como Partido da Ordem contrapondo-se às aparições de novos repertórios de ferramentas de lutas e construção de autonomia e participação, que inseria o Brasil num ciclo de lutas contra o capitalismo global. Mais uma vez, é preciso reconhecer: aquela esquerda que não tolerou a liberdade constitutiva de junho, ela venceu.
5. De novo o voto crítico Assim, faz-se necessário desativar o dispositivo do voto crítico, que paralisa e, por vias tortuosas ou inconfessas, sedentariza-nos em relação às mobilizações sociais em redes e ruas, e nos repõe a serviço de um projeto liquidado por seu próprio sucesso. Admitir que o governo Dilma e o PT tenham sido derrotados, e com eles de roldão a inteira esquerda brasileira, seria continuar com as operações do voto crítico mudando apenas o enfoque. Queremos reconhecer de uma vez por todas que o projeto majoritário dos governos Lula/Dilma e do PT venceu e é lamentável que tenha sido assim. E que para vencer teve de colmatar as
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brechas constituintes, reprimir junho de 2013, intensificar o poder punitivo nas cidades, não enfrentar à altura o racismo institucional (os autos de resistência…), desqualificar a indignação, — qualquer uma que não no tom e pelos meios “autorizados”, — desconstruir virulentamente as alternativas, chantagear os movimentos sociais e colocar para funcionar a seu serviço a esquerda, que prestou o seu papel e sua consultoria. Não houve derrota alguma no campo da comunicação ou do marketing, mas uma vitória política que (nos) tragou, — como consequência previsível e por vários prevista, — o partido, seus representantes e apoiadores de primeiro ou segundo turno. O neodesenvolvimentismo de esquerda mostrou toda a sua força nos treze anos consecutivos de governo do PT que usou para suprimir as alternativas. Que os vitoriosos não fiquem assim tão arrependidos por terem perdido o controle de uma situação que eles próprios precipitaram, direta e indiretamente. E agora a esquerda lamenta que o país esteja refém da tradicional e da nova direita, como se o seu projeto tivesse sido vencido por uma reação conservadora diante de conquistas sociais inovadoras que se iniciaram em 2003, — lamento, esse sim, feito numa chave reacionária que se recusa a enxergar as emergências e positividades biopolíticas do período lulista, para além do processo do PT (e mais recentemente, contra ele). E qual é o plano B imaginado para retomar a iniciativa? Continuar ocupando e destruindo todas as possíveis alternativas. É a “frente de esquerda”, o Álamo dos vitoriosos, mobilizando a crítica lírica ao governo. O objetivo é recompor as condições de vitória e vencer de novo quem ousou escapar pelos dedos, para repor a velha ordem desenvolvimentista. É claro que o efeito, se bem-sucedido, será apenas acabar com ainda novas alternativas democráticas que insistem em brotar apesar das virulências, pois tanto o anel quanto os dedos já foram transmitidos para outras mãos. Não está sobrando nada. Entre aqueles que continuam vencendo, mesmo manhosamente enunciando a derrota, e os que reconhecem a derrota, mesmo sem se-
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rem derrotados, ficamos entre os últimos. O nosso desafio continua na abertura de brechas que viabilizem espaços democráticos de mobilização do comum e conquista de novos direitos. Não há fórmula a repetir-se. A retomada da “primeira via”, a das mobilizações do comum, exige o fortalecimento da criatividade social, o que somente se dará por dentro da indignação, das emergências, a quente. E isto envolve, — a exemplo doutros países sob uma crise que se desdobra, — a construção de redes de solidariedade e plataformas cidadãs para enfrentar as dificuldades à altura das ferramentas que dispomos e dos quereres que nos impulsionam. É possível compreender a indignação em todo o seu potencial, tanto destituinte quanto constituinte, porque somente daí se pode fazer uma resposta forte para os impasses e dispositivos. Nesse propósito, não podemos prescindir nem da ação local e sustentada de laboratórios do comum, nem de táticas eleitorais que consigam adquirir impulso para escapar das falsas polarizações, dicotomias paralisantes e do clima de pânico moral que, incitado pelo governismo, tem prevalecido entre quem luta pela transformação do mundo e sua própria existência nele. Podemos derrotar efetivamente a esquerda que venceu, e construir novos caminhos.
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Ocupações estudantis: novas assembleias constituintes diante da crise? Introdução A ideia de escrever este texto surgiu do pedido de estudantes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) para eu publicasse um pequeno parágrafo em apoio à ocupação estudantil, iniciada no dia 01 de dezembro de 2015. Recebi o pedido como um desafio para problematizar as recentes experiências de ocupação estudantil no Brasil, a partir do caminho percorrido pelo ciclo global de ocupas nesses últimos cinco anos e, no contexto brasileiro, de crise das possibilidades e impasses enfrentados pelos atuais processos de luta e dissenso, em especial a partir das profundas transformações desencadeadas depois de Junho de 2013. Acabei escrevendo um texto longo e abrangente, talvez cansativo, mas que levanta pontos que, a meu ver, podem colaborar com os debates que estão acontecendo nas ocupações e, a partir delas, nas discussões sobre as alternativas possíveis ao momento político que estamos atravessando. Mas é apenas um mapa provisório, uma foto instantânea de pesquisas realizadas anteriormente e outras que estão em andamento. Considerei, no percurso do texto, mais vantajoso insistir nos pontos de emergência de possíveis processos instituintes – as ocupações como “assembleias constituintes contemporâneas” (distintas das assembleias representativas modernas) – a depositar minhas energias em falsas so-
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luções emanadas do poder instituído, principalmente do poder emanado das togas (incapaz e sem legitimidade, todos concordariam, de abrir processos políticos democráticos que promovam um movimento “de baixo para cima”). Mas a insistência é acompanhada de muitas dúvidas, da busca constante de algum ar para respirar, em meio a uma quantidade enorme de situações de bloqueio, paralisia e afetos negativos. Um bloco pesado e cinza que mortifica todas as experiências possíveis e que atinge e atravessa todas as gerações, reduzindo a atividade política a uma utopia negativa ou a um katechon101: a política de defesa do suposto “mal menor”, a vitória do medo sobre a esperança. O método da copesquisa102, neste sentido, serve não apenas para afirmar que a produção de conhecimento é sempre parcial, e que, portanto, o saber não se separa das relações estratégicas e das formas de governar as condutas, mas para inserir, no mesmo movimento, a pesquisa num conjunto móvel de linhas de ação possíveis e na composição de forças criativas que ousariam perfurar situações de impasse e bloqueio. Pelo mesmo motivo, a copesquisa não seria outra coisa que uma prática coletiva: um agenciamento entre sujeitos localizados que, em suas diferenças e conflitos, podem cooperar.
101. Sobre a crítica da política como katechon nos processos de resistência, cf. ROGGERO, G. Cinque tesi sul comune: comune, comunità, comunismo. Teorie e pratiche dentro e oltre la crisi. Verona: Ombre Corte, 2010. Sobre a crítica no contexto brasileiro de crise política e paralisia das esquerdas, cf. CAVA, Bruno. Voto crítico, esquerda e Spinoza. Disponível em: http://www.quadradodosloucos.com.br/5090/voto-critico-esquerda-e-spinoza/; NUNES, Rodrigo. A onda conservadora é menos fácil de entender do que se imagina. Artigo para o jornal Folha de São Paulo, edição de 28 de agosto de 2015. Disponível em: http://www1. folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/08/1674857-ascensao-conservadora-e-complexo-de-katechon.shtml. Acessos em 12 de dezembro de 2015. Sobre o conceito de katechon na genealogia do direito penal moderno (importante para entender a posição dos “juristas progressistas” no contexto de crise). BARBOSA, Milton Gonçalves Vasconselos. Katechon: o direito entre o sacrifício e o perdão. Arquivo Jurídico – ISSN 2317-918X – Teresina-PI – v. 1 – n. 6 – p. 58-80. 102. Sobre o método da copesquisa, conferir o dossiê especial publicado na Revista Lugar Comum: estudos de mídia, cultura e democracia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. LABTEC/ESS/UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, n. 39 – jan/abril de 2013. Disponível para download gratuito em: http://uninomade.net/ lugarcomum/39/. Acesso em 12 de dezembro de 2015.
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Dito isso, posso sintetizar a argumentação realizada no texto em quatro pontos: a) Uma reflexão sobre o ciclo de ocupações de 2010-2015, através do reconhecimento de inúmeros casos de restaurações e fechamentos que foram realizados, além do evidente esgotamento da dinâmica constituinte da América Latina iniciada na década de 2000; b) A forma específica assumida pela crise global de 2008 no Brasil e sua inserção no contexto mais amplo e duradouro das transformações da composição social do trabalho nas últimas décadas; c) A leitura das ocupações estudantis como uma possível ferramenta de luta praticada pelos estudantes contemporâneos, aqui caracterizados a partir da condensação de figuras subjetivas da crise (o sujeito endividado e precarizado) e da sua relação com as transformações do mundo do trabalho. Por outro lado, a análise das ocupações como espaço contraditório entre diferentes formas de organização, atravessado pela crise da representação, e os desafios colocados no campo da produção de subjetividade (a relação entre precariedade e diferença); d) O dilema do poder destituinte/constituinte como chave central para compreendermos a greve estudantil na sua relação como os modos de produção contemporâneos, e na sua inserção no contexto específico de crise. A incapacidade de liberar todo o potencial do poder destituinte/constituinte como possível bloqueio para a formação de uma mobilização social (a difusão das assembleias) que seja capaz de enfrentar a crise num terreno de reinvenção democrática. Como um trabalho em andamento, pretendo que esses quatro pontos sejam discutidos em novos encontros com estudantes e, se for o caso, reformulados de acordo com as trocas realizadas nos futuros debates e nas rodas de conversa. Com o esvaziamento de comunicação realizado nas redes sociais em razão das falsas polarizações agenciadas pelo atual sistema político, creio que este seja o melhor método para recuperamos a capacidade de articular um saber vivo produzido como prática de liberdade.
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1. O novo ciclo global de 2010-2015 Entre 2010 e 2015, um novo ciclo de lutas global se afirmou, construindo o cenário de um complexo jogo de contágios, proliferações, emergências, reviravoltas, restaurações e contínua renovação de ações criativas e constituintes. Ele colocou em questão as novas possibilidades de se reinventar a democracia em um século que consolida um infinito repertório de controle e gestão securitária da vida. Um longo roteiro103, cheio de traços singulares e comuns, pode ser traçado: na Tunísia, as lutas urbanas desencadeadas quando o “camelô” Mohamed Bouazizi se imolou ao ter sua barraca apreendida, resultou na queda do regime de Ben Ali e em novas possibilidades democráticas; no Egito, a derrocada da ditadura de Mubarak, através da ocupação permanente da Praça Tahrir deu visibilidade a um processo que iria tomar vários países; inspiradas pelos ventos árabes, a proliferação das acampadas espanholas104 no longo verão de 2011 (o movimento 15M) e na praça Syntagma na Grécia recolocou a questão da democracia em plena crise financeira. Na Islândia o calote plebiscitário digital, que inverteu a lógica de salvação dos bancos, inaugurou uma experiência constituinte em rede sem precedentes (um crowdsourcing constitucional). No outono de 2011, a ventania cruza o Atlântico e chega aos Estados Unidos, atingindo o coração do mercado financeiro representado por Wall Street. O
103. Devo esta sistematização a Bruno Cava. Para uma versão mais extensa, conferir: MENDES, A.F; CAVA, B. A constituição do comum: conflito e produção de subjetividade no capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Revan, 2017. Cf. também: CAVA, Bruno; COCCO, Giuseppe. (org). Amanhã vai ser maior: o levante da multidão no ano que não terminou. São Paulo: Annablume, 2014. CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Sobre as jornadas brasileiras: CAVA, Bruno. A multidão foi ao deserto. São Paulo: Annablume, 2013. 104. Conferir a série de pesquisas publicadas por Javier Toret em: https://datanalysis15m.wordpress. com/ Acesso em 10 de dezembro de 2015. SÁNCHEZ, Raúl. El 15M como insurrección Del cuerpo máquina. Rebelión. Edição do dia 28 de fevereiro de 2012. http://www.rebelion.org/noticia.php?id=145402.
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touro de bronze é cercado pelo movimento Occupy105, transformando-se no estopim para ocupas que florescem em centenas de cidades do mundo inteiro através da afirmação “nós somos os 99%” (um verdadeiro bull spread dos movimentos). No final de 2011 até 2013, é a vez da América Latina106 testemunhar a luta dos estudantes no Chile, o movimento mexicano #YoSoy132 e, no Brasil, Junho de 2013, com seu repertório de protestos de rua, assembleias horizontais, ocupações permanentes e a autoformação de uma rede ativista de suporte inédita na história recente do país. Por sua vez, os protestos iniciais contra o aumento das tarifas no Brasil foram inspirados na ocupação, um mês antes, do parque Gezi, situado na Praça Taksim de Istambul, onde a multidão turca derrotou o empreendimento urbano de construção de um Shopping Center que destruiria o livre usufruto do espaço público. Em outubro do mesmo ano, a ocupação da praça Maidan107, na Ucrânia, protagonizou um dos episódios mais sangrentos de todo o ciclo, sendo rapidamente tragado por interesses geopolíticos das grandes regiões e nações. Em 2014, em Hong Kong, as ocupas retornaram através de um contagiante e surpreendente movimento onde milhares de guarda-chuvas são abertos nas praças da Avenida TinMei para denunciar o controle político de Pequim sobre o processo eleitoral da ilha. Em 2015, uma articulação municipalista entre cidades espanholas108 de105. Cf. WRITERS FOR THE 99%. Occupying Wall Street: The InsideStoryofanActionthatChangedAmerica. Chicago: Haymarket, abril de 2012. 106. Conferir a série de textos publicada por Bernardo Gutierrez em: http://codigo-abierto.cc/. Acesso em 10 de dezembro de 2015. 107. Conferir: entrevista com o filósofo Costantin Sigov, por Giuseppe Cocco, à Universidade Nômade. Acesso em 10 de dezembro de 2015. http://uninomade.net/tenda/entrevista-com-constantin-sigov-filosofo-ucraniano/ Uma visada insider da Praça ocupada, conforme o filme “Maidan”, de Sergei Loznitsa (Ucrânia, 2014). Resenhado por Pedro Henrique Gomes em http://uninomade.net/tenda/maidan-va-veja-e-filme/ (com link para download). 108. Cf. BELTRAN, Sandra Arencón; CAVA, Bruno(Orgs). Podemos e Syriza: experimentações políticas e democracia no século 21. São Paulo: Annablume, 2015; OBSERVATÓRIO METROPOLITANO. La a puesta municipalista. La democracia impieza por lo cercano. Madrid: Traficantes Del suenos, 2014. Traba-
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monstrou que o ciclo de lutas podia articular confluências que produzam candidaturas cidadãs, pautando uma nova relação transformadora entre novas e velhas institucionalidades. Contudo, se podemos descrever um repertório vivo de práticas instituintes, os cinco anos de acampadas também reuniram uma série de restaurações operadas “por cima”: a multidão do norte da África é atropelada por contendas militares alimentadas por elites nacionalistas, grupos radicais religiosos, além de se tornar palco de grandes operações da OTAN, da Rússia e dos EUA. No resto do mundo, as praças foram desocupadas sem que uma alternativa que mantivesse a abertura democrática do processo fosse inventada (com exceção do caso espanhol). Na América Latina, o esgotamento político-econômico dos “governos progressistas”109 (sendo confirmado derrotas eleitorais e políticas de 2015) funciona como restauração de velhas forças conservadoras, mas, principalmente, como fonte de paralisia para novos movimentos e lutas constituintes. No Brasil, a liberdade e a criatividade de Junho foram solapadas por uma mistura de estruturas repressivas e táticas de chantagem eleitoral promovidas pela tradição de esquerda (no governo e para além), desqualificando e modificando totalmente o terreno de conflito e debate produzido nas jornadas. Na Europa, os atentados de Paris se transformaram em oportunidade para a proliferação, em ritmo exponencial, dos discursos nacionalistas, securitários e anti-movimento. Diante desse contexto, a onda das ocupas, que contagiou o resto do mundo, pode ser vista a partir das inovações irreversíveis que foram produzidas, mas também através de seus impasses e derrotas. Como avaliar o retorno das ocupações do ciclo 2010-2015 no Brasil, a partir lhei este tema em: O municipalismo do Barcelona em Comum: da transição a uma institucionalidade constituinte. Site UniNômade, 26 de maio de 2015. http://uninomade.net/tenda/o-municipalismo-do-barcelona-em-comum/ 109. Cf. MENDES, A.F; CAVA, B. Podemos e os enigmas que vêm do sul. Le Monde Diplomatique Brasil impresso, abril de 2015. CAVA, B; SCHAVELZON, S. Podemos y latinoamerica; historia de um desacuerdo. Lobo Suelto! (Argentina), 19 de agosto de 2015.http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2015/08/podemos-y-latinoamerica-historia-de-un.html
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das ocupações estudantis? Como se articula o terreno de composição social e política no qual se deu essa retomada? Quais foram as amarras existentes para que as ocupas pudessem significar a proliferação de múltiplas assembleias constituintes diante da profunda crise política, econômica e ambiental que ainda nos atravessa?
2. As três faces da mesma crise O ciclo de 2010-2015 não pode ser analisado sem comentarmos a dimensão global do impacto da crise financeira dos subprimes110 e seus impactos no contexto brasileiro. No caso europeu, a reação da Troika111 revelou que a unidade da Constituição Europeia não encontrava qualquer lastro, nem nas novas práticas participativas exortadas pelos teóricos da governance, nem na retórica de integralidade dos direitos humanos inspirada nos ideários da década de 1990. Diante da fraqueza do reformismo europeu, apareceu a face nua e crua de uma unidade financeira calcada na ortodoxia, na dureza das negociações, na socialização desigual dos prejuízos e na dificuldade, inclusive, de implementar um programa efetivo de refúgio humanitário. No Brasil, a crise global apareceu através de um duplo aspecto que só pode ser percebido se afastarmos a premissa de que a crise teria chegado somente em 2015, quando ficou evidente a deterioração dos indicadores econômicos. Ao contrário, é preciso compreender que a crise global realizou uma verdadeira inflexão (negativa) nas políticas brasileiras, desde 2008, operando o encerramento das tímidas, mas efetivas, brechas constituídas no governo Lula com relação a novos tipos de desenvolvimento e de políticas sociais. 110. Cf. FUMAGALLI, Andrea (Org.). A crise da economia global: mercados financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos. São Paulo: Civilização Brasileira, 2012. 111. A denominada “Troika” é formada pelo Banco Central Europeu (BCE), Comissão Europeia (CE) e Fundo Monetário Internacional (FMI).
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Primeira face da crise: na Casa Civil e depois na Presidência, Dilma Rousseff acelerou uma tendência, já presente desde 2003, de fortalecimento de uma visão neodesenvolvimentista da economia112, baseada em grandes players nacionais que, irrigados por dinheiro público, deveriam ampliar a presença brasileira na economia nacional. O Brasil Maior lança voo prometendo um novo protagonismo econômico alimentado pela energia das grandes barragens, pela exportação de soja, petróleo e minério de ferro (principalmente para a China) e a constituição de um mercado interno sempre aquecido pela denominada nova classe média. As políticas sociais e de consumo são deslocadas para uma pauta “anticíclica” voltadas para o aquecimento forçado do setor produtivo, através de subsídios e desonerações (em especial dos setores automotivos e de bens duráveis). A crítica da urbanista Raquel Rolnik, nesse tópico, não poderia ser mais adequada: “o ponto falho é que casa não é geladeira, não se produz em série”113. Aos grandes projetos, somam-se os grandes eventos: mais desonerações, mais comprometimento de recursos públicos e praticamente nenhum efeito redistributivo. A falência do Brasil Maior114, como resposta para a crise de 2008, pode ser ilustrada em alguns episódios conhecidos da crônica nacional: a quebra de Eike Batista, o fiasco da Copa do Mundo, a lama destruidora da Samarco/Vale, a prisão de Marcelo Odebrecht, as conversas 112. Para algumas referências de diversas matizes sobre o tema do neodesenvolvimentismo, cf.: COCCO, Giuseppe. KorpoBraz: por uma política dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad, 2013; GONÇALVES, Reinaldo. Novo desenvolvimentismo e Liberalismo Enraizado. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, n. 112, p. 637-671, out./dez., 2012. MOTA, Ana Elizabete (Org). Desenvolvimentismo e construção de hegemonia: crescimento econômico e reprodução da desigualdade. São Paulo: Cortez, 2012; SAMPAIO JUNIOR, Plínio Soares de Arruda. Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo: tragédia e farsa. Serviço Social & Sociedade, n.112, v. 1, p. 672, out./dez., 2012; FIORI, José Luiz. A miséria do novo desenvolvimentismo. Jornal Valor do dia 29 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/fioriii.pdf. 113. ROLNIK, Raquel. Entrevista para o site UOL. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/04/22/ult5772u3670.jhtm Acesso em 11 de dezembro de 2015. 114. Cf. COCCO. Giuseppe. Não existe amor no Brasil Maior. In: Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1413. Acesso em 11 de dezembro de 2015.
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de Delcídio do Amaral, a depressão econômica. O processo de redução da desigualdade não só está interrompido, como a reversão dos índices já é realidade. O atabalhoado programa de subsídios mostrou seu efeito reverso exigindo um aumento generalizado dos preços administrados, tendo impacto generalizado nos índices de inflação. O mesmo fenômeno se reproduz com relação à queda “na marra” das taxas de juros, que retornaram em taxas ainda mais elevadas que as anteriores, completando um cenário de recessão, inflação e juros altos. A segunda face da mesma crise foi revelada com o programa de ajuste fiscal e da chamada “Agenda Brasil”, cujo esforço de implementação foi o único alicerce que sobrou da fase final do Governo Dilma115. Nos moldes europeus, a crise foi socializada de forma desigual, através de cortes nos direitos sociais, redução de direitos previdenciários e das políticas sociais, aumento de tributos, suspensão de concursos públicos e das recomposições salariais e contingenciamento orçamentário. Nos estados e municípios, o impacto acaba sendo mais forte, com ameaça às despesas básicas, incluindo o pagamento de salários, aposentarias e pensões de servidores públicos. No campo da composição social do trabalho, a hibridização entre neodesenvolvimentismo e neoliberalismo acaba por reforçar e aprofundar de forma acelerada o fenômeno da precarização. Diferentemente da utopia desenvolvimentista clássica, a aposta em grandes projetos de desenvolvimento não produz um extenso chão de fábrica de trabalhadores empregados (com acesso aos direitos), mas um rápido crescimento de todas as formas de trabalho precarizado, incluindo o trabalho escravo. Para dar um exemplo, a revolta da usina de Jirau (Rondônia), em 2011, revela de maneira imediata como se conforma a figura do operário contemporâneo: um batalhão de trabalhadores terceirizados, quase escravizados, alocados em alojamentos sem qualquer higiene, receben-
115. [N.A] O aprofundamento do ajuste fiscal acabou sendo o principal alicerce do governo Temer, pós-impeachment, legitimado, justamente, pelo fracasso do ensaio desenvolvimentista.
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do alimentação estragada, distantes de qualquer sindicalismo efetivo e, quando se insurgem em razão dessas condições, são recebidos primeiramente pela Força Nacional (Cf. BRAGA, R. 2012; COCCO, G. 2013). A situação está longe de ser um problema restrito aos locais afastados dos grandes centros urbanos. O escândalo da descoberta de trabalho escravo na grife espanhola Zara116, em 2011, retorna em 2015, sendo novamente constatada a existência de servidão por dívida, trabalho infantil, trabalho degradante, aumento de acidentes e discriminação com relação ao trabalho imigrante (paradoxalmente a “solução” para a escravidão dos trabalhadores bolivianos não foi a sua regularização, mas sua exclusão total da cadeia produtiva). Desde a década de 1990, uma série de pesquisadores já apontava como as inflexões do capitalismo contemporâneo, em sua chamada fase neoliberal, poderiam ser explicadas através do desmonte da velha indústria têxtil na direção de uma cadeia difusa e flexível de fornecedores que se espalham do espaço urbano (especialmente nos bairros pobres), recrutando e precarizando os trabalhadores através de múltiplas formas de exploração. A Zara, portanto, não seria um caso isolado, mas a expressão visível de uma mutação realizada no próprio capitalismo e suas técnicas atuais de gestão e exploração de uma força de trabalho que é, agora, expropriada diretamente, sem a mediação da tradicional e estável carteira de trabalho 117. Esta mutação deve ser apresentada, não como uma contenda entre diferentes receituários econômicos, mas como uma transformação definitiva nas formas de governo da sociedade118, i.e, nas formas como 116. Para uma análise do caso, conferir: COCCO. Giuseppe. KorpoBraz (2013). 117. Por todos, conferir: LAZZARATO, Maurizio; NEGRI. Antonio. Trabalho imaterial. Tradução de Mônica Jesus. Introdução de Giuseppe Cocco. Rio de Janeiro: LP&A, 2001; LAZZARATO, M. et al. Des entreprises pas comme les autres: Benetton en Italie, le sentier à Paris. Paris: Publisud, 1993. 118. Utilizo aqui a inestimável leitura de Michel Foucault sobre o neoliberalismo. O neoliberalismo não como teoria econômica, mas como arte de governar, ou governamentalidade (governo das condutas). Cf. FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France (1978-79).Paris: Gallimard/Seuil, 2004.
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são produzidas e controladas as relações sociais e os próprios sujeitos. Portanto, trata-se de um terreno material que não vai ser transformado de fora para dentro através de uma tentativa de retorno à fórmula que garantia a união entre desenvolvimentismo e distribuição de direitos (o estado social e sua constituição dirigente). É a partir desse ponto que podemos compreender a razão, primeiro do impasse, e depois do verdadeiro desmoronamento das chamadas políticas progressistas, em toda a América Latina, que partiam da premissa de responder ao neoliberalismo através de uma “presença do Estado” (como vimos, o máximo que conseguiram foi hibridizar desenvolvimentismo e neoliberalismo). Do terreno material que altera profundamente a composição social do trabalho contemporâneo podemos encontrar ainda uma terceira face da crise. É a chamada crise da representação, já analisada e comentada por uma ampla e variada literatura119. Aqui vamos comentar apenas dois traços. Em primeiro lugar, não se trata de reconhecer apenas o caráter “terminável” dos partidos políticos modernos diante da atualidade, mas constatar que na crise da representação, eles acabam exercendo funções contraditórias. Assim, não por acaso, desde a década de 1960, abundam exemplos de partidos socialistas ou sociais-democratas que implementam a ortodoxia neoliberal e promovem os novos dispositivos de controle dos movimentos sociais. Não seria o caso de tratar o problema como uma simples e moralista “traição”, mas de perceber que tais partidos não são capazes, em regra, de exercer qualquer criatividade destinada a criar novos mecanismos de welfare e novos direitos diante da virada material promovida pela restruturação produtiva neoliberal. Por isso, parecem, ou perdidos diante da dicotomia entre neodesenvolvimentismo e neoliberalismo ou, en-
119. A argumentação aqui segue a seguinte referencia: REVELLI, Marco. Finale di partito. Turim: Einaudi, 2013.
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tão, aplicadores puro-sangue de uma gestão neoliberal e financeira da sociedade120. Essa afirmação nos conduz ao segundo ponto. Torna-se impossível, atualmente, buscar uma correlação de forças baseada nos grandes atores políticos (partido, sindicato e demais corporações) tendo em vista que o campo do trabalho se estilhaçou em uma miríade complexa de relações contratuais ou neoescravagistas, além de ter se difundido nas infinitas redes que compõem a sociedade contemporânea. Isso não significa que tenhamos que decretar o fim da política (ou o fim do trabalho), mas que para fazer política, hoje, é preciso lançar-se no campo de uma multiplicidade em constante mutação (a mutabilidade que devemos reconhecer na própria forma-partido). É nesse sentido que o esgotamento político brasileiro e, em geral, do ciclo da América Latina dos anos 2000 representa, não a inexistência de um campo vivo e fértil de experimentações baseadas na multiplicidade e nas tentativas de produzir um novo welfare (aqui lembrando de todo o debate a respeito do buen vivir e dos processos constituintes que alteraram as constituições nacionais121), mas a incapacidade (no sentido político) do sistema tradicional de partidos de promover uma abertura para essas novas experimentações. O sistema político foi tomado por verdadeiros jogos de cena, uma fabricação permanente de falácias que tentam produzir o efeito de uma disputa que ocorreria entre diversas representações de interesses. No mesmo passo que as mobilizações produtivas alternativas da América Latina (as alternativas para o tema do desenvolvimento) foram jogadas para escanteio pela hegemonia do neodesenvolvimentismo (e do neoextrativismo) de fundo neoliberal, assistimos os representantes 120. Aqui é pertinente lembrar o comentário de Foucault sobre a ausência de uma arte de governar própria do socialismo, que toma de empréstimo as práticas governamentais ligadas à planificação social ou ao neoliberalismo. (FOUCAULT, M. 2004). 121. Cf. CAMACHO, V.O. Errancias. Aperturas para el viver bien. La Paz: Muela Del Diablo, 2011 e SCHAVELZON, Salvador. Plurinacionalidad y vivir bien / buenvivir, Quito, Clacso, 2015.
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de esquerda nos alto cargos políticos parecerem cada vez mais caricatos e performáticos. O efeito não seria tão grave se estivéssemos apenas diante de um vazio. Mas os últimos episódios de perseguição das mobilizações sociais e das formas alternativas de vida, além de verdadeiras campanhas discursivas contra essas mesmas figuras, demonstraram que não há paralisia, senão uma prática ativa de eliminação de qualquer força político-social que pudesse deslizar do consenso “progressista”, ou lulista tout court.
3. Ocupações estudantis e novas assembleias constituintes É aqui que retomamos o tema do ciclo de lutas (e ocupas) de 20102015. A proliferação de novos espaços e experimentações políticas a partir desse ciclo poderia funcionar como o terreno de invenção de novas práticas democráticas e de ativação de políticas cidadãs de construção do bem viver nas metrópoles e florestas? Seria possível encarar as ocupas como um verdadeiro laboratório de práticas que podem deslizar da armadilha e da dicotomia entre desenvolvimentismo e neoliberalismo? No final de 2015, o ciclo das ocupações chegou a mais de uma centena de escolas de São Paulo e também nas universidades federais e estaduais. De que forma essas ocupações poderiam constituir um espaço de produção de alternativas? Como elas se inseriram no contexto brasileiro de crise política, econômica e ambiental? Aqui gostaria de levantar três pontos para reflexão, a partir do contexto mais amplo das ocupações: a) Ocupação e produção de novas formas de vida Quando o ciclo do Occupy de formou, alguns pesquisadores destacaram que havia uma inflexão interessante com relação às formas de
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luta anteriores, em especial aquelas altermundistas da década de 1990 e começo da década de 2000 (contra a OMC, o FMI e por outros mundos possíveis)122. Ao invés de seguir os calendários das grandes reuniões e summits, promovendo estratégias de shutting down com o objetivo de proteger os bens comuns ameaçados pelas decisões das agências, as ocupações decidem experimentar diretamente a construção de uma experiência em comum, desenvolvendo profundamente capacidades de gestão do espaço (limpeza, organização, cuidado com o patrimônio etc.), de produção de insumos e serviços vitais (alimentação, água, banheiros etc.), de criação de redes de solidariedade, (doações, estratégias de visibilidade, apoio profissional etc.) de programação cultural (música, teatro, saraus etc.) e de âmbitos de decisão democrática (assembleias, enquetes, novas formas de participação etc.)123. A passagem da defesa dos bens comuns (década de 1990) para a própria constituição direta do comum revela aspectos interessantes, em especial, a constatação de que essa forma de gestão é qualitativamente melhor e infinitamente mais democrática que a usual forma de conduzir os serviços públicos através da dicotomia público-privado, que alterna entre o Estado como provedor direto ou os vários modelos de descentralização para o mercado. As ocupações, ao contrário, se reapropriam dos serviços para torná-los, não estatais ou privados, mas comuns. Não poderíamos testar o modelo, também em serviços mais amplos e complexos (por exemplo, os serviços urbanos em geral)? Ele não seria uma das bases para pensarmos outras formas de desenvolvimento para além do híbrido neodenvolvimentismo e neoliberalismo?
122. Um rico conjunto de textos de diversas matizes, elaborados a partir dos movimentos globais, pode se encontrado em Justicia Global. Las alternativas de los movimientos del Foro de Porto Alegre (DÍAS-SALAZAR.R. [Ed.], 2003). Conferir também: COCCO.G&HOPSTEIN.S (orgs.) As multidões e o império: entre a globalização da guerra e a universalização dos direitos. Rio de Janeiro: DP&A, 2002 123. Esta ideia é desenvolvida por Naomi Klein em discurso proferido para os ocupantes do Occupy Wall Street. Disponível em: http://www.naomiklein.org/articles/2011/10/occupy-wall-street-most-important-thing-world-now Acesso em 11 de dezembro de 2015.
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No campo das instituições de ensino, as ocupações tem um potencial de romper com a pesada tradição disciplinar que transforma o aluno em uma figura passiva, apática e obediente, tolhendo a criatividade e o desejo de participar e colaborar com o processo de aprendizagem. “A minha filha nunca teve tanta vontade de ir para a escola”, disse a mãe de uma aluna em reportagem sobre as ocupações de São Paulo. Além disso, as ocupações tornam visíveis e mais densas práticas já existentes, principalmente nas universidades, de construção de redes de autoformação e autoaprendizagem nas franjas do currículo obrigatório e da relação professor-aluno. As ocupações permitem também experimentar um espaço alternativo (um entre) com relação ao duplo escola-família ou universidade-empresa, que aprisiona o cotidiano do estudante e impede que uma série de interações sociais aconteçam124. Vale notar que no horizonte de crise e de precariedade esses duplos se fortalecem, já que o estudante, pela impossibilidade de se sustentar, precisa se manter por mais tempo no interior da família ou então lançar-se em várias atividades remuneradas, tendo como efeito uma maior expropriação do tempo de vida. Por outro lado, a prática coletiva de ocupação também coloca uma série de desafios, digamos, ético-políticos, que foram objeto de uma extensa e compartilhada análise125 durante todo o ciclo occupy (é evidente 124. Remeto-me aqui ao texto do professor municipal Silvio Pedrosa: PEDROSA, Silvio. Por um compromisso bárbaro. http://uninomade.net/tenda/por-um-compromisso-barbaro/. Acesso em 11 de dezembro de 2015. 125. Para citar alguns exemplos, conferir o dicionário colaborativo realizado pelos ocupantes do 15M espanhol: http://johnpostill.com/research/15-m-dictionary/. Uma antecipação das discussões pode ser encontrada em: ZIZEK, S. Discurso aos manifestantes do Occupy Wall Street. http://blogdaboitempo.com. br/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-de-slavoj-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/ Cf. também o relato de Antonio Negri sobre o 15M: “Parece incrível, mas, de verdade, ocorreram formidáveis e inovadoras experiências, seja sobre o terreno da cooperação organizacional, seja sobre a elaboração teórica — experiências nunca repetitivas, burocráticas ou inúteis. Há uma maturidade geral que desenvolveu novas habilidades — porém, especialmente, que evitou contraposições dogmáticas e/ou sectárias. Aqueles que já estavam organizados em grupos não foram excluídos, mas implicados no ‘todos juntos’. Não houve necessidade de um ‘savoir faire’ político particular, mas somente de competência e capacidade de participar de um projeto comum”. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.
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que os comentários aqui realizados não constituem uma “expertise política” a ser aplicada como técnica, mas tão apenas uma troca de experiências a ser avaliada em cada prática), a saber: não substituir a prática de produção do comum por uma noção de Coletivo que se imponha pelo alto e esmague as diversas singularidades; não cair na tentação de buscar dirigir a ocupação (muito menos impondo razões políticas que são externas aos desafios da ocupação – a lógica partidária, por exemplo); não transformar as decisões em dogmas a serem impostos e seguidos cegamente; não cair em procedimentalismos infinitos e ineficazes, ou em disputas derivadas de pura mistificação ideológica; não esquecer que a força de uma ocupação depende também de um conjunto de relações que circulam fora do espaço físico ocupado; trabalhar o contágio afetivo da ocupação em detrimento da formação de um núcleo pequeno, rígido e autocentrado; manter-se no campo da autodefesa e da desobediência pacífica (que não se confunde com a passividade); não torna-se “proprietário” da ocupação, utilizando procedimentos de controle e segurança que são típicos das atividades securitárias (reinventar a ideia de segurança); saber a hora que o desgaste excessivo de manter o espaço e seu possível esvaziamento pode indicar a necessidade de mudar de experiência.
br/noticias/44050-15m-redes-e-assembleias-por-antonio-negri. Sobre a importância do contágio, conferir o comentário realizado por Eduardo Galeano durante visita às ocupações de Barcelona. Disponível em: http://www.esquerda.net/dossier/galeano-o-segredo-das-acampadas-%C3%A9-%E2%80%9Cvitamina-e%E2%80%9D. Análises da dinâmica do OcupaRio, ocorrido em 2011, na Cinelândia, podem ser encontradas em: SANTOS, Mariana Correa. Pensando o ocupario: encontros, encantamentos, rupturas e abandono. https://daslutas.wordpress.com/2013/06/07/pensando-o-ocupa-rio-encontros-encantamentos-rupturas-e-abandono/; CAVA, Bruno. Produzindo o dissenso na acampada. http://www.quadradodosloucos.com. br/2026/produzir-o-dissenso-na-acampada/. Todos os links foram acessados em 11 de dezembro de 2015. Do mesmo autor: CAVA, Bruno. OcupaRio: os corpos da cidade entre a utopia e a distopia. In SILVA, Gerardo; CORSINI, Leonora (org). Democracia x regimes de pacificação. São Paulo: AnnaBlume, 2015
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b) Ocupações, organização e partidos políticos Se o ciclo altermundista da década 1990 revelou a existência de novos movimentos sociais (ambientais, culturais, indígenas etc.) e formas de organização (articulação em rede, uso das novas tecnologias de informação, inovações estéticas etc.) para além dos partidos e sindicatos tradicionais, o ciclo 2010-2015 retomou a questão em outro patamar. No primeiro caso, em muitos momentos identificou-se que os movimentos e partidos funcionavam em lógicas distintas, o que poderia gerar alguns choques e divergências, especialmente na apresentação da mobilização no ambiente externo (por exemplo, o sindicato negociava a sua pauta específica e se retirava da luta). No caso das ocupações, o possível campo de divergência se desloca para dentro do espaço comum, havendo um forte de tendência de recusa, pelos participantes, de qualquer razão transcendente à própria ocupação. Isso significa que os partido precisam abandonar sua prática de aglutinação de forças para um projeto pré-definido e deixar-se levar pela imanência do processo decisivo construído na própria ocupação. Podemos destacar dois efeitos desse fenômeno: em primeiro lugar, observamos a tendência do partido se apresentar, não como unidade formal organizativa, mas através de diversos coletivos distintos que deixam de lado os programas mais amplos e atuam, muitas vezes, por segmentação. O quanto isso se revela como uma simples tática artificial ou uma verdadeira abertura para processos de produção de decisões comuns depende de cada prática efetiva e da capacidade dos dissensos produzidos nas acampadas estudantis atenuarem qualquer tentativa de impor uma lógica heterogênea ao comum. Em segundo, observamos através da experiência espanhola, por exemplo, que para disputar as institucionalidades os partidos precisam integrar confluências de forças que são múltiplas e que se apresentam como plataformas que se deixam atravessar pelas várias figuras daquela composição social do trabalho que já descrevemos (por isso, o caso seria de reinvenção da forma-partido e de sua finalidade para se adequa-
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rem às novas formas de trabalho e vida – o partido como uma tática de luta dentre tantas outras, como um deixar-se atravessar, uma plataforma aberta que não busca ser o aglutinador final e racional de uma força social homogênea)126. Contudo, além da questão da forma-partido ou do repertório organizativo uma questão mais grave pode ser colocada. Ela diz respeito aos casos nos quais essa transcendência carregada pelos partidos não se refere apenas a um programa político pré-definido e externo, mas às próprias decisões tomadas pelos partidos quando estes participam do governo. O grande risco aqui é que a ocupação seja controlada desde dentro através de organizações que carregam as posições do governo e buscam esvaziar ou sabotar o processo de produção do comum. Como veremos, talvez tenha sido essa uma das diferenças entre o movimento de São Paulo e do Rio de Janeiro. c) O estudante contemporâneo: condensação de figuras subjetivas da crise e de novas práticas de liberdade O que significa uma luta estudantil hoje? Quais figuras subjetivas são encontradas através dessas lutas? Há pelo menos quarenta anos, o capitalismo sofre uma grande transformação na direção da formação de uma força de trabalho cognitiva, apta a lidar com as exigências shumpeterianas de inovação e criatividade, traduzidas pela ideia de capital social127. No currículo, não basta demonstrar o cumprimento das etapas básicas e disciplinares de educação, mas comprovar competências relacionais, linguísticas e culturais (viagens, experiência de vida, habilidades com instrumentos musicais, domínio de línguas estrangeiras etc.). Nas provas de seleção, uma tropa de psicólogos é chamada para 126. Trabalhei esta ideia em: MENDES, A.F. Lista de desejos para um novo municipalismo. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/lista-de-desejos-para-um-novo-municipalismo/. Acesso em 11 de dezembro de 2015. 127. Cf. BOUTANG, Yann Moulier. Le capitalism cognitif: la nouvelle Grande Transformation, Paris: Editions Amsterdam, 2007; COCCO, Giuseppe. Trabalho e Cidadania. Rio de Janeiro: Cortez, 1999.
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avaliar a capacidade criativa dos candidatos e suas habilidades de rápida adaptação, de aprendizado, de criação de relação social e de inventividade para lidar com as situações sempre dinâmicas e flexíveis do mercado contemporâneo. O estudante, preso nas exigências de uma formação permanente e multifacetada, não ocupa mais aquela posição intermediária entre o mundo infanto-juvenil e o mundo do trabalho. Ele carrega em si a própria figura do trabalhador contemporâneo. Solicitando cada vez mais estágios, oportunidades, experiências, cursos, ele rapidamente se converte, também, na figura do endividado. Seja por razões realmente financeiras (penso aqui no estudante pobre das universidades privadas e mesmo das públicas), ou por carregar sobre os ombros pendências de todos os tipos (trabalhos, artigos, provas, tarefas do estágio, cursos de língua etc.), o estudante precisa dar conta de uma dívida infinita128. Se antes ele era preparado para ocupar um emprego estável, funcional e monótono (nas burocracias estatais ou empresas fordistas), agora trata-se de lançá-lo, o mais cedo possível, no campo de um trabalho frenético que absorve todo o seu tempo de vida. Num muro grafitado encontra-se a seguinte frase: “o estágio gratuito é a atualização da escravidão”. O problema aqui não é identificar um estágio específico, mas perceber que todo o trabalho contemporâneo envolve fortes níveis de trabalho gratuito, estilhaçando inclusive aquela clássica figura marxiana do trabalho excedente, inerente ao tempo de uma jornada de trabalho. Se não há mais jornada mensurável, se o trabalho ocupa todo o nosso tempo de vida, transformando-se em pura excedência, ele ago-
128. A relação entre o estudante e o trabalhador contemporâneo pode ser encontrada em: THE EDU-FACTORY COLLECTIVE. Toward a global autonomous university: cognitive labour, the production of knowledge and exodus from de Education Factory. New York: Autonomedia, 2009. Conferir também: ROGGERO, G. La produzione del sapere vivo: crisi dell’università e trasformazione del lavoro tra le due sponde dell’Atlantico. Verona: Ombre Corte, 2009. Sobre o contexto brasileiro, conferir as pesquisas de Alexandre do Nascimento, disponíveis em: http://www.sentimentanimalidades.net/estudos/. Acesso em 11 de dezembro de 2015.
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ra é expressado por uma desmedida que rompe com qualquer teoria do valor. O endividamento e a precariedade aparecem como dispositivos que substituem o velho gerente de fábrica. A arquitetura física do panóptico e seu efeito de vigilância se desmaterializa e é internalizada como culpa, como exigência sobre si cada vez mais severa, como infinita busca, através de vários “bicos” ou “trampos”, por uma renda que possa cobrir o custo de vida e por atividades que possam engordar o currículo. A produção do estudante endividado permite o gerenciamento (controle) de um trabalho que não se expõe mais aos agentes de disciplina, com seus relógios sempre afiados, mas que percorre e acompanha a vida como um todo, fazendo parte da própria subjetividade que se produz129. Os efeitos no campo da subjetividade estão sendo encarados por uma série de pesquisa sobre as denominadas “psicopatologias do capitalismo cognitivo” que são produzidas, desde a década de 1990, na também intitulada prozac-economy130. Depressões, crises e angústias acompanham o estudante e o trabalhador endividado, no momento em que sua precária alma adentra e é produzida, ela mesma, nos circuitos de produção. Aqui o gerente da fábrica se rematerializa na figura de fármacos cada vez mais potentes, uma inundação de tranquilizantes, antidepressivos, remédios para dormir e técnicas para produzir pequenas ilhas de tranquilidade em meio à desmedida do produtivismo infinito. Se a precariedade é eficiente para produzir todos esses efeitos subjetivos, ela permite também que as tradicionais estratificações da modernidade (raça, gênero e classe) se reconfigurem de forma difusa e mo129. Sobre a passagem de uma sociedade disciplinar para uma de controle, conferir: DELEUZE, Gilles. Post-scriptum. Sobre as sociedades de controle. In: Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004. Sobre a genealogia do homem endividado, conferir: LAZZARATO, Maurizio. La fabrique de l’homme endetté: essai sur condition néolibérale. Paris: Édition Amsterdan, 2011. 130. Esta análise encontra-se em: BERARDI. Franco “Bifo”. The soul at work. From alienation to autonomy. Los Angeles: Semiotext, 2007. Cf. De BOEVER, Arne; NEIDICH, Warren [Eds]. The psychopathogies of Cognitive Capitalism. Part One. Berlin: Arquive Books, 2013.
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dular. Não à toa, nas ocupações da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, os estudantes negros e negras deixaram claro que o corte de bolsas e da assistência estudantil atinge mais gravemente os alunos cotistas e os moradores de bairros pobres. Além disso, percebem uma relação racial e de gênero entre a precariedade dos estudantes e dos trabalhadores terceirizados atingidos pelos mesmos cortes e pelas medidas desiguais do ajuste fiscal. Numa visada mais ampla, os corpos precários da universidade (os primeiros a sofrer com o ajuste) são também os corpos precários da metrópole, aqueles que podem ser objeto de violência estatal sem provocar consideráveis indignações sociais. Por outro lado, é no mesmo campo que podemos encontrar as possibilidades de enfrentamento da precariedade através de finas e potentes articulações que são realizadas entre suas diversas figuras (estudante, terceirizado, servidor, camelô, garis, trabalhadores da cultura, dos serviços, morador de favela etc.). A precariedade se transforma não só no terreno da violência e da exploração infinita, mas também de uma recomposição que permite uma série de lutas por novos direitos e por um novo welfare. E para efetuar essa recomposição é fundamental perceber que, diante de uma fragmentação do trabalho que torna o cenário organizativo complexo e escorregadio, existe um comum entre todas essas figuras do trabalho contemporâneo. As ocupações estudantis possuem, portanto, o potencial de se transformar na base para um novo sindicalismo social dos trabalhadores precários que não encontram mais nas tradicionais instâncias de representação (partidos, sindicatos e movimentos sociais setorizados) uma ferramenta eficaz de luta. Mais uma vez, isso não significa decretar o fim dessas instâncias, mas afirmar que elas só serão efetivas se promoveram uma abertura organizativa radical para a multiplicidade que acompanha o trabalho precário. Nas universidades e escolas, não sabemos se isso está perto de acontecer, mas a forma-ocupação, sem dúvida, é um laboratório para pensar essas novas articulações.
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É a partir da construção da materialidade dessas novas alianças131 que podemos recuperar, ainda, o tema do “local de fala”, não como afirmação prévia e transcendente (superior) fundada no corpo biológico, no indivíduo abstrato ou em tipos sociais cristalizados, mas como o efeito móvel de articulações concretas, encontros e espaços discursivos singulares produzidos em comum, ou seja, um verdadeiro não lugar comum aberto à experimentação. Se as minorias podem, paradoxalmente, reunir mais força que as maiorias132, é porque elas são capazes de promover uma expansão intensiva e contagiante através de encontros entre os diferentes corpos e singularidades. Isso significa, portanto, evitar a competição entre minorias e possibilitar uma política de encontros não fundada em indivíduos e grupos proprietários de si mesmo. A ocupação do espaço, assim, é também ocupação afetiva e performativa: possibilidade de organizarmos práticas de liberdade que estilhacem os padrões majoritários redutores de nossas formas de vida.
4. Ocupações estudantis e poder destituinte/ constituinte É chegado o momento de enfrentarmos a interrogação contida no título do artigo. Poderão as ocupações estudantis funcionar como assembleias constituintes diante da crise política, econômica e ambiental brasileira? Para qualificar melhor a pergunta e traçar horizontes possíveis de ação, seria interessante precisar o que entendemos por poder cons131. Para a relação entre o ciclo das acampadas e uma política de alianças entre diferentes corpos precários que resistem juntos ao invés de competirem entre si, conferir: BUTLER, Judith. Bodies in alliance and the politics of the streets. Disponível em: http://www.eipcp.net/transversal/1011/butler/en. Acesso em 11 de dezembro de 2015. Esse texto foi integrado como capítulo ao livro: BUTLER, J. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge; London: Harvard University Press, 2015. 132. Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. Cf. também SAFATLE. V. (2016).
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tituinte. Digamos que a análise pode se organizar em torno de dois temas: a) a relação entre poder constituinte e trabalho vivo; b) a relação entre poder constituinte e destituinte. Através do primeiro, veremos como o ciclo de ocupações pode se expressar como constituinte num sentido bem diferente daquele divulgado pela tradição do constitucionalismo. Através do segundo, lançaremos o tema para o contexto brasileiro, no qual a liberação de um poder constituinte diante da crise depende, mais do que nunca, de uma coragem de dizer “Não” (aquilo que chamamos dimensão destituinte). Pode-se afirmar que as primeiras emergências do trabalho vivo direcionadas em contraposição às relações de poder da classe dos proprietários foram domesticadas através da representação política e da conformação da vinculação entre Estado e Nação: o nascimento do constitucionalismo133. Assim, o engenho de Abade Sieyès operou para ligar a incipiente divisão social do trabalho (os frutos da acumulação primitiva) à representação política, incluindo nela cortes censitários, culturais e patrimoniais. O Terceiro Estado é a “nação completa” na medida em que se dilui em uma ampla divisão do trabalho e, por essa razão, garante liberdades políticas no mesmo movimento que as limita por formas estabelecidas e delegadas. A democracia constitucional já nasce como corrupção da democracia, na medida em que impõe uma representação que acompanha a divisão de trabalho. O poder constituinte, ao contrário, não é a força de uma assembleia já determinada pela representação, ou um estágio prévio e metafísico que desaparece ou se amesquinha nas engrenagens do poder constituído. Ele é um procedimento aberto e vivo de questionamento das relações de poder e constituição de uma prática coletiva que não se encer-
133. Para a relação entre trabalho e constituição e para uma crítica ao constitucionalismo, cf.: NEGRI, Antonio. Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Trad. Adriano Pilatti. 1ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002; Para a mesma perspectiva, no ponto de vista da constituição social do trabalho, cf. NEGRI, Antonio. Il lavoro nella costituzione. E una conversazione con Adelino Zanini. Verona: Ombre corte, 2012.
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ra na racionalidade de um projeto, estado, instituição ou comunidade identitária. Ele é a continuidade dos espaços de resistência, o campo de atuação do trabalho vivo que rejeita sua exploração e de coagulação entre liberdade e igualdade. Pelo mesmo processo, as constituições welfaristas do século XX, que tentam solucionar o caráter excedente das lutas do trabalho vivo, ativadas desde o século anterior, também não resolvem o enigma da permanência do poder constituinte. Se na época de Sieyès, bastou diagramar a constituição como espelho formal da divisão de trabalho, no constitucionalismo social a carne e o corpo do trabalho entram na constituição representados por sujeitos coletivos negociadores dos direitos e regras inerentes à organização e à disciplina do mesmo trabalho. Mas o trabalho vivo recusa novamente a limitação e se insurge em lutas sociais que percorreram todas as nações welfaristas (pensemos na década de 1960-70). Sabemos que com a mutação da composição do trabalho contemporâneo e o enfraquecimento do Estado Social, que decorre do próprio caráter excedente do trabalho, é a governance134que passa a, cada vez mais, cumprir este papel. A constituição moderna em crise abre espaço para uma regulação flexível forjada por sujeitos jurídicos internacionais, protocolos de grandes empresas, arbitragens, termos de conduta, uma camada mil-folhas de atos normativos e decisões judiciais que correspondem à diluição do próprio trabalho em um sem-número de formas jurídicas. E que o ciclo de ocupações tem a ver com isso? Nossa hipótese é que ele ainda pode representar um laboratório para pensarmos novas formas políticas e novos direitos de cidadania (em sentido amplo) através do contato entre poder constituinte (a excedência do trabalho vivo) e a produção do comum experimentada nestes processos. É que o ciclo
134. Cf. MESSINA, Giovanni. Diritto liquido? La governance come nuovo paradigma della politica e deldiritto. Milano: Franco Angeli, 2012.
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de lutas de 2010-2015, amplia o terreno estabelecido pelo ciclo anterior altermundista e latino-americano, e conforma um quadro de ações e reflexões sobre como produzir uma agenda de direitos relacionados à proteção e ao compartilhamento autônomo de saberes, informações e linguagens; ao acesso e organização democrática dos serviços relacionados diretamente à vida (energia, água, tecnologia etc.); a uma renda garantida, à mobilidade urbana (livre acesso ao transporte público); à preservação dos espaços comuns da metrópole (parques, áreas de uso comum etc.) e, fundamentalmente, aos direitos clássicos (políticos e sociais) requalificados como direito à produção dos nossos próprios espaços de vida e de interação com o outro, marco que está para além da ideia cívico-republicana ou deliberativa de participação. No caso das ocupações estudantis, a ideia de uma gestão comum das instituições de ensino, superando a passividade do modelo disciplinar e o endividamento do modelo de controle, parece bastante evidente. Aqui, a tradicional luta por infraestrutura (contra o sucateamento) poderia caminhar em conexão com o desenvolvimento dessas próprias experiências de gestão comum. A luta por bolsas e verbas de assistência pode ganhar um caráter ativo e avançar para um verdadeiro direito à renda estudantil (que deveria caminhar de mãos dadas com uma renda universal). A luta contra a precariedade deve servir para imaginarmos novos direitos sociais (ou a requalificação dos anteriores) que articule os direitos dos trabalhadores das escolas e universidades com os dois estudantes em uma mesma teia de proteção. A forma-ocupação pode se transformar num dispositivo político permanente que supere a crise da representação e das formas de ação dos sujeitos tradicionais. Nesse sentido, pode-se afirmar que os espaços de deliberação (estudantes sentados em roda situados em lugares de grande trânsito) já superam enormemente as formas tradicionais de deliberação sindical (ainda no modelo mesa-plateia e representação por segmentos). Ainda há bastante dúvida com relação ao uso da tecnologia em rede para a deliberação, especialmente pela insegurança com re-
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lação aos fluxos improdutivos e sabotadores, mas isso pode ser enfrentado por um repertório heterogêneo de processos decisivos. As formas tradicionais, burocráticas e paralisantes do movimento estudantil ainda se fazem presente em grande escala, e com grande capacidade de capturar os desejos sinceros dos jovens estudantes, mas já são criticadas de forma aberta e através da construção de brechas alternativas. Vamos, então, para o segundo ponto na análise: a relação entre poder constituinte e poder destituinte135, e sua inserção no contexto brasileiro. Ele se subdivide em duas questões. A primeira, sobre a utilização do poder destituinte com relação à realidade universitária do estudante endividado; a segunda, insere o tema numa perspectiva mais ampla para tentar compreender a relação entre as dificuldades de proliferação dos movimentos pós-2014 e a incapacidade de dizer “Fora Todos”. Aqui, o poder destituinte seria o elemento de desbloqueio do impasse, pavimentando a abertura de um campo intensivo, um kairós, de múltiplas possibilidades. Com relação à primeira questão, a ocupação das escolas e universidades, com a consequente decretação da greve estudantil, parece expressar um poder destituinte com relação às tramas disciplinares e de controle que atravessam o estudante contemporâneo. A greve estudantil interrompe o funcionamento da máquina da educação, suspende a dívida infinita, paralisa o relógio do bedel, produzindo uma carnavalesca inversão de papéis e da lógica cotidiana de utilização regrada do espaço de ensino. A suspensão radical de todas as exigências diárias (provas, entrega de trabalhos, comparecimento das aulas etc.) torna-se fundamental, não apenas como importante denúncia pela falta de ver135. Não faz parte dos objetivos do texto enfrentar o debate filosófico que foi estabelecido entre Antonio Negri e Giorgio Agamben sobre o conceito de poder destituinte. Seguimos a posição de A. Negri que não concebe o poder constituinte dentro da tradição ou da ontologia originária da soberania. Para esse propósito, cf. AGAMBEN, G. Por uma teoria do poder destituinte. Disponível em: https://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben/; NEGRI, Antonio. Giorgio Agamben: a inoperosidade é soberana. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/giorgio-agamben-inoperosidade-e-soberana/. Acesso em 11 de dezembro de 2015.
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bas de assistência, mas por permitir outra temporalidade e outra experimentação do ambiente escolar/universitário. Eis o poder destituinte em sua capacidade de interromper as engrenagens que se naturalizam nos processos sociais do cotidiano e de inaugurar um dissenso que conduz todos os participantes para uma necessária reflexão. Se o direito de greve, na sociedade do trabalho disciplinar, representa a demonstração da participação dos trabalhadores da unidade produtiva e uma necessária repactuação da riqueza produzida, na sociedade contemporânea de sujeitos endividados ela equivale diretamente ao direito de insolvência: é a ligação entre o “nós não pagaremos pela crise” e o “nós não entregaremos os trabalhos e as provas”. Se a greve da sociedade do trabalho fabril produzia uma interrupção do processo produtivo, gerando prejuízos para o proprietário da fábrica, a greve dos endividados permite que uma outra subjetividade, por fora dos mecanismos de cobrança internos e externos, possa ser vivenciada. O desafio, então, é duplo: a luta pela suspensão do calendário acadêmico (a paralisação da máquina) precisa ser correlata à produção de formas de vida que escapem da precariedade e do endividamento. E aqui já não conseguimos distinguir entre poder destituinte e constituinte. O “Não” corresponde à possibilidade de um “Sim” múltiplo e constitutivo. Acreditamos que em ambas as greves estudantis de São Paulo e do Rio de Janeiro pode se verificar essa dupla dimensão destituinte/constituinte sendo exercida através das ocupações. Mas qual a diferença entre elas? Por que uma consegue expandir para fora dos muros das escolas e a outra, por ora, ainda se mantém no campo de uma luta setorizada? Por que ambas não desencadeiam processos mais amplos de discussão em meio à crise generalizada? É claro que aqui não se quer exigir que a lutas dos estudantes cumpram o papel do Movimento Passe Livre nas jornadas de junho de 2013, muito menos responsabilizá-los pelas limitações inerentes a qualquer processo de luta social. Mas não custa refletir se teríamos, hoje, mais oportunidades de expandir e ampliar
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esse processo identificando um dos pontos de bloqueio, aquele que, justamente, diz respeito ao poder destituinte e sua capacidade de gerar uma recusa social em grande escala (aquela que precisamos, justamente, para que a crise seja superada democraticamente). Há inúmeros exemplos do exercício desse tipo de poder destituinte: ele ocorreu quando, em 1955, a costureira Rosa Parks se recusou a ceder o seu lugar do ônibus a um homem branco, desencadeando o movimento dos direitos civis; quando, em maio de 1968, se afirmou “queremos tudo, todo o poder e nenhum trabalho”; quando em Seattle um enorme cartaz dizia “Shut Down WTO”; quando na Argentina, em 2001, os cacerolazos eram acompanhados do lema “que se vayan todos”; quando na Tunísia, mesmo depois da fuga de Ben Ali para a Arábia Saudita, continuou-se a gritar “Degage! Degage!” (Fora! Fora!)136; quando o 15M espanhol dizia “¡dimisónya, no nos representan!”; quando os 99% afirmaram “nós não pagaremos pela crise”, quando, em 2013, jovens usuários do transporte público decretaram “não pagaremos pelo aumento das passagens” etc. Pode-se dizer que, do ponto de vista dos processos ampliados de questionamento, o poder destituinte, no Brasil, restou parcialmente bloqueado pela incapacidade de se dizer com firmeza: “Fora todos”; “Fora Dilma, Temer, Cunha e Renan”; “Fora PT, PMDB e PSDB”; “Não nos representam!”. Qualquer passo na direção dessa dimensão do exercício do poder destituinte é rapidamente encarado como “golpista” e até “fascista”, pela atual cultura de esquerda. O resultado, como tem ficado evidente, é a paralisia política e a dificuldade de se encontrar uma saída para a crise que parta de uma mobilização por mais democracia137. Essa incapacidade de alavancar o poder da recusa, longe de representar um casuístico vacilo individual, é construída diariamente pela práti136. Esse relato é realizado por Manuel Castells em livro já citado (CASTELLS, M. 2012, p. 28). 137. [N.A] No entanto, mesmo ausente da esquerda (que produziu um Fora Temer domesticado), esta continuou sendo uma das marcas fundamentais dos desdobramentos de Junho de 2013 em 2015 (Fora Dilma) e, em 2018, na greve dos caminhoneiros (Fora Temer).
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ca dos movimentos sociais tradicionalmente ligados ao governo (CUT, MST, MTST, UNE, UBES etc.) que, principalmente desde 2014, adotaram uma estratégia de defender a presidente Dilma, apesar de uma sequência de medidas anti-movimento terem sido tomadas, retraindo-se na perspectiva de uma lírica pressão interna que já comprovou ser absolutamente ineficaz. Por outro lado, o componente majoritário da oposição de esquerda, que deveria estar mobilizada para oferecer uma alternativa democrática ao impasse, é o primeiro a esvaziar qualquer tipo ampliação da contestação na direção de um terreno radicalmente destituinte/constituinte138. Em São Paulo, os ocupantes puderam encher o pulmão e gritar “Fora Alckmin”, “Fora PSDB”, incentivados, e não boicotados, pelos movimentos governistas (e também no Paraná, no movimento “Fora Beto Richa”). Eis toda a diferença. E esse poder de recusa não diz respeito propriamente à discussão em detalhes sobre os mecanismos institucionais que, de alguma forma, poderiam retirar alguém do poder, mas à capacidade de atuar como um verdadeiro dispositivo de contágio, proliferação e autovalorização do movimento. É dele que poderão emergir todas as alternativas possíveis. Isso significa que no “Fora” proferido pelo poder destituinte, se constitui uma série de espaços positivos que engendram práticas constituintes fundamentais para a continuidade do processo de resistência. Esse é, mais uma vez, o elemento fundamental do sucesso das ocupações es138. Análises com tonalidades semelhantes podem ser encontradas em uma série de entrevistas para o IHU Online e na edição n. 461 da revista mesma online, cf. REVISTA IHU ONLINE. Brasil. Crises e desafios. n. 461, Ano XV, edição de 23 de março de 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=461.COCCO,G. O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/544222-o-capital-que-neutraliza-e-a-necessidade-de-uma-outra-esquerda-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco; CAVA, Bruno. O lastro da crise. O pemedebismo é a lógica que sustenta o PT. Disponível em: http://www. ihu.unisinos.br/entrevistas/539902-o-lastro-da-crise-pemedebismo-e-a-logica-que-sustenta-o-pt-entrevista-especial-com-bruno-cava; CASTANEDA, Marcelo. Crise política. Não há disputa. Há uma composição. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/545853-crise-politica-nao-ha-disputa-ha-uma-composicao-entrevista-especial-com-marcelo-castaneda. Acesso em 11 de dezembro de 2015.
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tudantis de São Paulo e, por outro lado, explica os impasses e bloqueios que foram enfrentados no Rio de Janeiro e aqueles enfrentados por ambos no nível nacional. Estamos proibidos de fazer proliferar, impedidos de lutar sem que freios internos exijam prudência e responsabilidade – sem que o movimento se enfraqueça e se perca em fragmentações paralisantes. Não estamos diante de um impasse menor. Se esse enigma não for resolvido na direção de um amplo movimento que, diante da crise, proponha uma agenda de radicalização da democracia brasileira, ficaremos reféns, primeiro, de um sistema político que opera hoje de forma completamente autoreferenciada, segundo, de uma disputa sobre quem irá implementar de forma mais eficaz o ajuste fiscal e, terceiro, de plataformas conservadores ou ultraliberais (MBL, Partido Novo, candidatura do Bolsonaro etc.) que absorvem a indignação transformando-a num terreno para a eliminação de políticas e práticas de liberdade e igualdade. Além da autovalorização dos movimentos através do poder de dizer “Fora”, o poder de recusa, quando afirmado sem medo, traz a capacidade de inserção das ocupações em dinâmicas políticas mais amplas, ou num sistema de forças mais alargado, que pode romper com o isolamento político dos ativistas e inseri-los em camadas legítimas de discussão pública sobre o “estado da arte” de nossa democracia. Isso porque a Primavera Árabe se caracteriza, especialmente, por não ser um movimento só de ativistas, mas que envolveu enormes parcelas da população nos protestos e debates políticos. A interrogação no título está agora plenamente justificada. No Brasil, o ciclo mais amplo das ocupas (no qual estão inseridas as ocupações estudantis) viveu um tremendo bloqueio. Poderão as futuras ocupações deslizar das armadilhas estabelecidas a partir das eleições de 2014, quando a força criativa do movimento foi absorvida para uma disputa vazia interna ao poder? Poderão exercer um poder destituinte, afirmando em alto e bom som: “Fora Todos”? Deixarão que as possi-
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bilidades constituintes do poder de recusa sejam ocupadas por grupos ultravanguardistas de esquerda, ou por plataformas ultraconservadoras que não apontam para saídas democráticas diante da crise? Poderemos, novamente, vivenciar as ocupações como verdadeiras assembleias constituintes, para além da dinâmica limitada da representação política (o pecado original de Sieyès)? Encontraremos um polifônico “Sim, nós podemos”, nascido de um amplo e contagiante poder de dizer “Não”? São perguntas que estão muito longe de alcançarem uma resposta adequada. Mas se a interrogação continua, devemos, por outro lado, agradecer às ocupações estudantis por terem nos apresentado o impasse de forma tão clara e urgente.
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O poder de Junho de 2013 e o direito à cidade Introdução As metrópoles globais viveram dias de agitação e de forte experimentação criativa durante o ciclo da Primavera Árabe. Os espaços públicos de centenas de cidades se transformaram num campo de batalha que articulou direitos ligados à vida urbana, com um desejo radical de ocupar as esferas de decisão política para além do marco local. Os mesmos desejos foram ressuscitados nas ocupações estudantis de 2015, fazendo ressoar a força de questionamento das ocupações sobre a forma como a vida é governada e normalizada. Era de se esperar, portanto, que o tema da autogestão urbana, ou de uma ação direta baseada nos interesses concretos da população, voltasse à atualidade. A questão não passou ao largo, por exemplo, das discussões que foram propostas pelo Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL-SP), vejamos: É assim, na ação direta da população sobre sua vida – e não a portas fechadas, nos conselhos municipais engenhosamente instituídos pelas prefeituras ou em qualquer uma das outras artimanhas institucionais –, que se dá a verdadeira gestão popular (...). A organização descentralizada da luta é um ensaio para uma outra organização do transporte, da cidade e de toda a sociedade. Vivenciou-se, nos mais variados cantos do país, a prática concreta da gestão popular (ROLNIK, R et al [Orgs]. 2013, p. 28-29)
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Mas como não incorrer novamente nas armadilhas, seja da burocratização, seja do gerenciamento da vida, contidas na própria ideia de uma gestão? É Paulo Arantes que coloca o problema (ARANTES, P. 2014, cap. 05), indagando se Junho de 2013 não coloca o enigma de um governo sem gestão, justo no momento que sofreríamos de excesso governo. Para o filósofo, os levantes mudaram o curso de uma exigência de mobilização que, antes, restava conformada às burocracias, agências governamentais, aos editais, chamadas públicas e projetos de engajamento conduzidos pelo setor privado, em suma: a uma democracia fundada na pacificação. Os protestos de Junho de 2013 teriam, então, colocado em circulação uma experimentação inédita correlata à efetuação de um poder ainda não identificado. A pergunta em si sobre as futuras formas de seu exercício, para Arantes, já trazia insidiosamente as tentativas de esterilizá-lo. Citando as críticas de Sonia Fleury sobre a crise das instâncias de participação, Arantes tenta compreender como a pacificação no período lulista se dava através da articulação permanente entre um estímulo à mobilização, porém controlada e gerida nas próprias instâncias, e uma centralização e empresariamento das decisões públicas, cujo ápice teria sido a preparação para os diversos megaeventos realizados a partir do início da década de 2010 (idem). Uma das contribuições marcantes de Arantes em sua luminosa reflexão sobre Junho de 2013 foi enfatizar que aquilo que normalmente é considerado uma contradição da gestão lulista, ou uma disputa interna ao governo, cujo confronto todos deveriam participar, nada mais é do que a difusão de “tecnologias sociais de desmobilizar mobilizando o corpo dos governados” (idem). Trata-se, assim, de uma governamentalidade, no sentido foucaultiano, ligada aos dispositivos de governo da vida e das próprias resistências. Não é coincidência, além disso, que tenha sido nos debates sobre a participação na cidade que o efeito aneste-
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siante desta configuração veio à tona, pela voz crítica dos seus próprios idealizadores139. A proposta deste texto é aprofundar um conceito de direito à cidade que possa ser correlato ao poder desencadeado por Junho de 2013 e, ao mesmo tempo, evitar as armadilhas apontadas por Arantes na relação entre velha burocracia e novo gerenciamento. O seu primeiro objetivo é perceber o ponto de articulação existente entre um tipo de poder que opera por centralização e ordenação geométrica e outra modalidade que opera a partir de múltiplos pontos de intervenção e por uma modulação permanente, desdobrando para o urbano aquilo que já analisamos no texto sobre o trabalho das linhas. Assim, todo projeto urbanístico concebido “por cima” apresenta, atualmente, um agenciamento que reúne elementos de ordenação burocrática e de governança flexível, adequando-se perfeitamente à combinação entre neodesenvolvimentismo molar e neoliberalismo molecular que analisamos a partir do governo Lula 02 (COCCO, G; CAVA, B, 2018). Trata-se de uma tecnologia que articula o estável e o efêmero, duas heterogeneidades que, em regime de permanente coabitação, alternam o polo dominante para evitar que resistências desatem o nó político que governa o urbano140. O segundo objetivo deste artigo, na mesma linha, é retomar o conceito de direito à cidade desenvolvido pelo filósofo Henri Lefebvre, valorizando-o como ponto de partida para o enfrentamento dos impasses contemporâneos relacionados ao duplo burocracia-controle e às práticas retomadas no ciclo da Primavera Árabe e em Junho de 2013. Há sempre uma dimensão que é irredutível às tecnologias de controle e que permite uma apropriação temporal e espacial que escapa dos rit-
139. Paulo Arantes, neste caso, realiza uma discussão sobre a crítica de Ermínia Maricato sobre o fato de que nunca teríamos sido tão participativos. Cf. MARICATO, E. O impasse da política urbana no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2014. 140. É evidente que esta reflexão possui um paralelo estreito com a análise sobre a relação entre molar e molecular em Deleuze e Guattari, como vimos no texto “Junho de 2013: das trincheiras ao trabalho das linhas”.
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mos ditados pelos processos de valorização capitalista que atravessam o urbano. Por isso, o espaço urbano é político por excelência, recusando qualquer pretensão de neutralidade ou objetividade. Um terceiro momento do texto é dedicado ao confronto entre a concepção lefebvriana de direito à cidade e o conceito de cidades sustentáveis desenvolvido nas últimas duas décadas em dezenas de fóruns, conferências internacionais e trabalhos acadêmicos. O objetivo desta fricção é fazer emergiras armadilhas do normativismo, do institucionalismo e da naturalização do binômio Estado-Mercado que percorrem o conceito de direito humano à cidade, tornando-o incapaz de lidar com a articulação burocracia-controle. Não por acaso, é, justamente, sobre este terreno que a tecnologia social de mobilizar desmobilizando ganhou espaço, produzindo um horizonte de pacificação cuja ruptura foi iniciada em 2013 (ARANTES, P. 2014). No sentido contrário, a insistência de Lefebvre por uma autogestão generalizada deve ser vista como uma tentativa de escapar desses três eixos gravitacionais, concebendo um direito à cidade que se afirma a partir de formas concretas de viver o urbano, de uma recusa à expropriação do poder de decidir por centros de decisão do Estado ou do Mercado e de um poder de renovação que restabelece o urbano como espaço de uso e de uma criação desmedida (LEFEBVRE, H. 2006, p. 105). Para além da nova lírica das “cidades humanas, justas e participativas”, uma cidade ameaçadora, nos dizeres de Lefebvre, aquela que fende o agenciamento burocracia-controle e suas tecnologias de pacificação, afirmando a força do irredutível. Por fim, é a partir desse marco que uma articulação entre direito e urbanismo, tomada sempre a contrapelo, pode ser capaz de conjurar e afastar as formas de ordenação flexível do urbano, sem cair, seja em uma nostalgia baseada na rigidez estatal, seja no humanismo vazio de uma proliferação normativa totalmente apartada das formas concretas de se viver o urbano.
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1. O estável e o efêmero: da disciplina ao controle Em uma conferência para a Associação Francesa de Ciência Política, em 1972, Henri Lefebvre, o célebre e já citado filósofo que cunhou o termo “Direito à cidade”, realizou algumas importantes demarcações histórico-políticas sobre a relação entre capitalismo e espaço urbano (LEFEBVRE, 2016). Em primeiro lugar, o capitalismo toma as cidades comerciais europeias e as submete às exigências produtivas e reprodutivas dos seus processos expansivos de valorização. A industrialização só desponta a partir de uma prévia vitória sobre os modos aristocráticos, corporativos ou comunitários de organização social. Inicialmente buscando ocupar espaços fora da cidade, a indústria rapidamente se volta para os centros urbanos já estabelecidos e faz proliferar outras inúmeras aglomerações pequenas, médias, periféricas e também a produção ex novo de grandes centralidades urbanas. Os caldeirões urbanos novecentistas se transformam em jazidas para as novas formas de acumulação capitalista, mas também produzem misturas indesejáveis e ameaçadoras. É Alexis de Tocqueville que, em 1848, descreve, com um misto de pavor aristocrático e estranha admiração, o momento em que trabalhadores pobres, em Paris, começam a fabricar armas, munição, barricadas e decidem tomar a Assembleia Nacional: “era extraordinário e terrível ver exclusivamente nas mãos dos que nada possuíam toda a imensa cidade cheia de tanta riqueza (...)” (TOCQUEVILLE, A. 2011, p. 154). No fio áspero que liga as experiências de revolução urbana durante todo o século XIX, torna-se possível ouvir o ruído silencioso das novas hordas revolucionárias e seu desejo de reapropriação da cidade. No caso específico de 1848, a restauração imperial comandada por Bonaparte III previa não apenas o fomento à indústria, a realização de grandes obras públicas, a criação e consolidação de novas formas de cir-
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culação econômica e transporte em grande distância, mas, principalmente, uma estratégia de intervenção urbana que evitasse os enclaves operários e, ao mesmo tempo, criasse um novo estilo de vida urbano longe das misturas tóxicas do período revolucionário. Como acentuou o geógrafo David Harvey, foi preciso atacar a cidade em uma escala inédita, tratou-se de redesenhar toda a capital francesa em um só golpe (HARVEY, D. 2014, p. 35). Para Lefebvre, o bonapartismo urbano marca a perda de inocência do espaço nas grandes cidades, no sentido que ele se torna visivelmente instrumental, ou seja, “lugar e meio onde se desenvolvem estratégias, onde elas se enfrentam”, deixando de ser neutro, geograficamente e geometricamente (LEFEBVRE, H. 2016, p. 156). O espaço instrumental irá aprofundar, salvo o hiato posterior da Comunidade de Paris (1871), uma repartição que visa ordenar e organizar os corpos sociais, desde a construção dos grandes pavilhões e conjuntos habitacionais periféricos, até a criação de roteiros para guiar uma despretensiosa perambulação nos centros comerciais e turísticos remodelados. O urbanismo, como ciência e técnica específicas, levanta o seu primeiro grande voo, apresentando-se como uma saber neutro, sistemático e organizador. Durante o século XX, nutrindo-se de uma finalidade humanizadora, buscará funcionalizar o espaço de acordo com supostas necessidades biológicas e sociais. Para Lefebvre, esse ambicioso programa sempre caminhou ao lado de uma perigosa utopia, aquela de um Estado planificador que toma o espaço como objeto homogêneo para a realização de determinados fins: “a pior das utopias é aquela que não diz o seu nome. A ilusão urbanística é atributo do Estado. É a utopia estatista (...)” (LEFEBVRE, H. 2008, p. 147). Não por acaso, buscando uma genealogia do urbanismo moderno em uma perspectiva de longa duração, Françoise Choay analisa a importância do livro Utopia de Thomas More, e do conjunto de textos que estão em sua órbita,para a formação de um saber urbanístico (CHOAY, F. 1985). Nele, vemos a emergência simultânea de um espaço físico es-
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pecífico relacionado a um modelo espacial utópico marcado pela universidade, imutabilidade, homogeneidade e com pretensões de ser aplicado ao campo inteiro das atividades humanas. A partir do século XIX, segundo Choay, o urbanismo irá radicalizar a dimensão espacial presente em Utopia abrindo a função universalizante do modelo para um nível de detalhamento que corresponde ao que Foucault denominou de “sociedades disciplinares” (FOUCAULT, M. 1987). Um progressivo desejo de esquadrinhamento do espaço urbano corresponde à proliferação das instituições de disciplina (escola, caserna, hospital, fábrica etc.) e ao objetivo de extrair o máximo de produtividade e de docilidade dos indivíduos e dos corpos sociais. A arquitetura se apresenta como a figura política e epistemológica do novo ideário. Ela aparece como instrumento de reforma social na direção de uma nova sociedade produtiva e, ao mesmo tempo, desenha a forma através da qual os diferentes indivíduos serão iluminados por novos saberes que estão em relação de pressuposição recíproca com a espacialização social (demografia, estatística, medicina moderna, psicologia, pedagogia, criminologia etc.). Além disso, ainda em Choay, para compreender o urbanismo moderno é necessário perceber que o registro dos modelos utópicos passa a caminhar de mãos dadas com o ideal terapêutico que os gregos denominavam pharmakon. É Cerdà, urbanista catalão, que aparece de jaleco branco para constituir a cidade como um objeto de intervenção científica médica. A “cidade-doente”, fruto da irrupção da urbanização industrial, apresenta-se como fonte do caos, da desordem, dos vícios morais, da corrupção e de doenças contagiosas. É preciso intervir no espaço urbano da mesma forma que um médico, de posse de seu bisturi cirúrgico, corta, remodela e extirpa os elementos indesejáveis, transformando o corpo doente. Assim, para Choay, o urbanismo resulta de dois gêneros de textos: o primeiro se refere aos textos utópicos que fabricam o espaço-modelo com suas características de universalidade e imutabilidade; o segundo
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se refere aos textos terapêuticos que se propõem a identificar e atacar as múltiplas fontes possíveis de desequilíbrio e de doença no tecido urbano, incluindo as próprias consequências negativas de uma urbanização desregrada.Da articulação entre a crítica utópica e o objetivismo científico surge a postura moderna de pensar as soluções urbanísticas estabelecendo um marco zero ou fazendo uma tábula rasa às soluções existentes ou intermediárias da cidade real. Para Foucault, as intervenções do tipo ex nihilo, as utopias urbanas de reconstrução total do ambiente construído, são típicas de um modelo disciplinar e geométrico de pensar a cidade: um sonho propriamente militar. As propostas de gestão médica do espaço urbano, no entanto, estariam mais ligadas a outros tipos de relação poder-saber, que o filósofo denominou de biopolítica (FOUCAULT, 2008). Uma compreensão biopolítica da cidade abandona as utopias de refundação e estabelece um objetivo mais “modesto” e insidioso: trata-se de controlar os fluxos de circulação do espaço urbano através de pequenas e constantes intervenções que dispensam uma organização geométrica e esquadrinhada do espaço; de reconhecer os elementos existentes no território, valorizando os positivos e neutralizando, se possível, os negativos, de definir, em relação a um conjunto de dados e ocorrências, curvas móveis de normalidade que não pretendem eliminar totalmente o que é considerado anormal; trata-se de exercer um controle em constante movimento, “a céu aberto”, em um “meio” específico, e não ordenar os fluxos através da lógica do confinamento e da fixação dos elementos (FOUCAULT, M. 2008. p. 28). Se o enfrentamento da peste oferece ao filósofo uma espécie de figuração do sonho disciplinar (a quarentena, o toque de recolher, a divisão do território em diferentes áreas, o esquadrinhamento do espaço etc.), o controle da varíola seria o modelo correlato à biopolítica (a formação de uma estatística, a definição de um padrão normal de ocorrência da doença, a intervenção permanente e pontual para diminuir os riscos de contágio etc.). O urbanismo, portanto, não sonhou apenas com os
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acampamentos militares e seus espaços geométricos. Para demonstrá-lo, Foucault invoca o curioso sonho de um arquiteto denominado Rousseau (homônimo do conhecido filósofo contratualista) que, no final do séc. XVIII, concebeu a cidade de Nantes como um grande coração, uma cidade-organismo que funcionava inteiramente para fazer circular, garantindo uma ordenação dos fluxos que se fazia sempre em movimento.Como escreveu Deleuze sobre a passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de controle, não se trata mais de estabelecer um molde a ser universalizado, mas de garantir uma modulação permanente que segue e controla tudo o que circula (DELEUZE, 1992). Essa longa digressão permite uma melhor compressão da segunda observação realizada por Lefebvre em sua conferência de 1972. Para o filósofo, estaríamos entrando em outro período com relação às grandes intervenções públicas destinadas a ordenar o espaço e organizar os corpos sociais. Segundo ele, “uma planificação espacial com objetivos muito mais amplos que o ‘urbanismo’ ganha forma” (LEFEBVRE, H. 2016, p. 157). O espaço urbano, que já se mostrava instrumental, se desloca para o coração de estratégias econômicas e políticas, para o centro da produção capitalista. As unidades de produção e a organização empresarial perdem a sua forma centralizada e se diluem nas múltiplas atividades, serviços e redes do urbano. A planificação espacial, que reorganiza todas as outras formas de planificação econômica desenvolvidas anteriormente, “se ocupa dos fluxos” (idem, grifo do autor). Os diferentes fluxos (pessoas, objetos, bens, dinheiro, informações, conhecimentos, signos etc.) são estudados, regulados e controlados para que o movimento tenha sempre um percurso previsível e conhecido. Essa gama de análises que tem como objeto os movimentos no espaço compõe diversos cenários possíveis e não mais uma compreensão linear do futuro. Lefebvre aqui intuiu,
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sem decerto aprofundar, a atualidade das sociedades de controle141: saímos do tempo disciplinar, no qual a vida era ordenada por etapas determinadas (da escola à aposentadoria), e a exploração seguia o relógio do gerente, para uma sociedade de controle na qual o próprio futuro se transforma em um fluxo e o tempo de trabalho equivale à intensidade de uma vida. A emergência da sociedade urbana deve ser vista, assim, como uma nova forma de tomar a cidade, distinta das estratégias do capitalismo industrial. A produção não é organizada apenas através de unidades centralizadas que monopolizam os meios de produção, mas se espalha pelas próprias redes do urbano e por todo o tempo de vida dos indivíduos. Por isso Lefebvre, em seu “pressentimento” das sociedades de controle, apresenta o urbano como um corte espaço-temporal com relação às formas agrárias e industriais (LEFEBVRE, 2008, p. 113). Em vez do espaço homogeneizado das sociedades industriais, um espaço diferencial que aproxima elementos diversos para extrair uma produtividade em fluxo permanente. Não há, contudo, um tipo de “pureza histórica” que faria com que o urbano apagasse as outras formações anteriores, elas são requalificadas no novo horizonte e estabelecem com ele relações ambivalentes. No final de sua conferência, Lefebvre irá afirmar que há uma permanente contradição, na sociedade urbana, entre o efêmero e o instável. De um lado, os fluxos, as intensidades, as mobilidades, de outro, as instituições, as burocracias, as antigas utopias centralizadoras. É neste terreno difícil que devemos pensar o conceito de direito à cidade. Como produzir direitos que se desloquem da dupla garra da burocracia e do controle? 141. Vale notar que em La production de l’espace, Lefevbre indica que a própria planificação espacial não dá conta dos desafios que estavam sendo colocados naquele momento, justamente porque a descodificação dos fluxos na crise do capitalismo a partir dos anos 1970, irá demandar uma modulação flexível que ainda não era plenamente possível através da ideia de uma planificação (Cf. LEFEBVRE, H. 2000). Lefebvre, portanto, compreende o limiar de passagem, mas não irá desenvolver com ênfase os tipos de governança baseados na dinâmica dos fluxos descodificados. Para tanto, conferir: DELEUZE, G; GUATTARI, F. (2012)
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Como recusar o velho planejamento burocrático sem cair em um governo permanente dos fluxos que reorganiza a dominação por outros meios (através de uma exploração intensiva e permanente)?
3. Direito à cidade: desmedida e criação No ponto anterior nos estabelecemos seis premissas: a) o capitalismo se afirma “tomando” as cidades e realizando movimentos de implosão-explosão que transforma completamente a realidades das antigas cidades históricas, medievais, comerciais, políticas etc.; b) as novas aglomerações urbanas são atravessadas por conflitos político-sociais e grandes intervenções urbanas são realizadas não só para organizar a produção, mas para ordenar e disciplinar os corpos sociais que serão explorados (ex: Paris do séc.XIX); c) o urbanismo, como técnica autônoma, pretensamente neutra e científica, emerge e nutre uma utopia de completa organização e disciplina do espaço, apontando para o Estado como o principal protagonista dessa ordenação; d) além do registro utópico, o urbanismo se alimenta de um ideário médico-terapêutico que, para Foucault, inventa novas formas de intervenção no espaço urbano (biopolítica) que são heterogêneas com relação às disciplinas, preocupando-se com os fluxos e as circulações em seu próprio movimento; e) na mesma direção de Foucault, Lefebvre aponta para uma passagem do planejamento estatal-burocrático, para um planejamento espacial que tem como objetivo o controle dos fluxos e das mobilidades; f) esse momento caracteriza a emergência de uma sociedade urbana que promove transformações espaço-temporais radicais, o espaço se desloca para o centro da produção capitalista mundial e o tempo sai da métrica da fábrica e devém fluxo e intensidade; g) a sociedade urbana não se compõe de relações unívocas, mas articula de forma contraditória o estável (a burocracia) e o efêmero (os fluxos).
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Consideramos que seria impossível buscar uma análise do conceito de direito à cidade sem esta caracterização anterior. Primeiro, porque é no contexto dessas transformações que Lefebvre imagina um direito à cidade como direito a não ser excluído das centralidades móveis do urbano e, principalmente, como um poder de reapropriação do espaço-tempo que retome o urbano como uma obra dos próprios indivíduos e coletividades (a retomada de lugares e tempos de encontros que não estejam subordinados à burocracia e ao controle). É nesse sentido que o direito à cidade é um poder de criação e de invenção que só pode ser explicado através de um conjunto de práticas que se desviam da dupla captura estável-efêmero. Segundo, porque Lefebvre ao definir a forma do urbano como “o ponto de encontro, o lugar de uma reunião, a simultaneidade” (idem, 2008. p, 110), não garante um conteúdo próprio e específico a essa forma. Sua principal característica é reunir e englobar diferenças múltiplas ligadas às propriedades e às qualidades do espaço. Por isso, a produção de centralidades está sempre sujeita a torções, movimentos inesperados, novos usos e disjunções criativas que escapam da lógica burocrática e de controle. Nessa teia sempre inconstante de relações, o espaço urbano é, por excelência, local de conflito e de afirmação da diferença: “lugar do desejo, desequilíbrio permanente, sede da dissolução das normalidades e coações, momento do lúdico e do imprevisível” (idem, 2006, p. 79). Esses dois pontos se articulam na afirmação de uma irredutibilidade que pode sempre deslizar das formas de planificação e de controle do cotidiano e da vida urbana. É por dentro de um aparente círculo fechado, que implica na redução do nosso espaço-tempo aos modos de existência homologados pelo duplo burocracia-controle, que surgem as possibilidades de criar e imaginar outras formas de vida. “Mudar a vida!”. Tal palavra de ordem, invocada pelo movimento surrealista no
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início do século XX142, só pode fazer sentido para Lefebvre se “há a produção de um espaço apropriado” (LEFEBVRE, H. 2000, p. 72, tradução livre), ou seja, a afirmação da irredutibilidade da obra em face de um cotidiano burocratizado ou controlado. Essa afirmação possui algumas consequências práticas e teóricas. Em primeiro lugar, o direito à cidade não se reduziria ao âmbito jurídico ou moral. As declarações de direitos transformam a irredutibilidade de uma afirmação de vida em mera pauta reivindicativa, que logo é seguida de todo um périplo conduzido pelo tempo-espaço da papelada, dos corredores infindáveis e das repartições do Estado. O direito à cidade está ligado a uma potência de criação, de afirmação da capacidade de apropriação de múltiplos espaços e tempos, que correspondem à riqueza de uma vida urbana não subordinada a uma cotidianidade programada. Em segundo lugar, como estamos analisando desde o início, o direito à cidade é uma exigência que se faz em oposição às capturas estatais do planejamento tecnocrático e, ao mesmo tempo, às capturas privadas do empresariamento urbano (privatização do espaço urbano e dos serviços essenciais), por isso sua atualidade com relação à Primavera Árabe e a Junho de 2013. Lefebvre considerava tanto os projetos de construção de moradias populares, concebidos pelo socialismo estatal, como os projetos de revitalização urbana, concebidos pelos empreendedores imobiliários ou por grandes arranjos políticos, como “duas mediocridades, uma na frente da outra” (LEFEBVRE, H. 2008, p.135). O direito à cidade, de forma semelhante ao “poder inominado” antevisto por Arantes, significa viver a cidade como obra de arte, isto é, uma permanente abertura de horizontes que estão para além da dupla miséria do Estado-Mercado (o resgate do imaginário, das atividades lúdicas, de experiências de fabulação, da riqueza comum que é produzida no urbano etc.). 142. Trata-se de uma famosa passagem do livro Position politique du Surréalisme (1935) na qual André Breton sugere uma combinação entre a exigência marxiana de “transformar o mundo” e a exortação estética de Rimbaud sobre “mudar a vida”.
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O terceiro ponto se refere aquilo que o filósofo denomina de autogestão generalizada, isto é, de um programa geral que crie as condições para que as práticas e decisões do urbano não sejam apropriadas pelo duplo Estado-mercado. Isso significa, no desafio lembrado pelo MPL-SP, ir além e até mesmo contra a mera participação em instâncias controladas pelo Estado, multiplicando as esferas de decisão comum, não só no território, mas em todos os serviços urbanos. Em segundo lugar, trata-se de combater o fechamento de espaços de decisão quando este ocorre como efeito de novos agenciamentos entre público e privado, com privilégio para os gabinetes privados e empresariais, tal como ocorreu em 2013 com relação às tecnologias de pacificação do lulismo. É o caso, também, de fazer emergir toda a gama de conhecimentos, técnicas compartilhadas, experiências, formas de vida que se encontram no urbano e dotá-las, imediatamente, de poder decisório e organizativo. É nesse sentido que a obra pode ser definida como: “a atividade de um grupo que toma em suas mãos e a seu cargo seu papel e seu destino social, ou seja, a autogestão” (LEFEBVRE, H. 1991, p. 215). O quarto ponto se refere à relação entre direito à cidade e a necessidade de uma reinvenção do saber urbanístico. Lefebvre defende que não cabe ao urbanismo pretender uma nova concepção de vida através da utopia tecnocrática do planejamento centralizado. São as relações diferenciais existentes no urbano que permitem a obra do arquiteto ou do jurista. Isso significa abandonar as pretensões de moldar ou ordenar as práticas sociais e pensar uma espécie de “urbanismo ambulante”143 que possa seguir e alimentar os espaços de criação que já existem no território. De outro lado, abandonar o sonho militar de uma tutela geométrica do plano não quer dizer homologar as formas de controle que funcio143. Lefebvre não utiliza, porém, este termo. Penso aqui na descrição das ciências nômades e ambulantes realizadas por Deleuze e Guattari em livro já citado, opondo um saber do tipo turbilhonar a uma saber do tipo geométrico (DELEUZE, G. GUATTARI, F. 2012, em especial os platôs 12 e 13). Para outra referência conferir o livro de Michel Serres: O nascimento da física no texto de Lucrécio (1997).
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nam a partir dos fluxos. É preciso pensar a produção de saberes urbanos que possam libertar os fluxos da tutela de um movimento sempre controlado. O desafio é criar mecanismos de apropriação comum dos fluxos de informação, de automação (disputar os algoritmos urbanos, por exemplo), de pessoas (reinventar a mobilidade) e desenvolver novos programas para enfrentar, no campo da subjetividade, a difusão de novas formas de controle baseadas na generalização da precariedade, do medo, da violência e da fragmentação das possibilidades de uma cooperação livre. O quinto ponto se refere aos sujeitos que poderiam desencadear as lutas que materializam o direito à cidade como modo concreto de existência e não apenas como abstração jurídica. Seria o caso de voltar à conferência que motivou a nossa argumentação e comentar o título até agora omitido: A classe operária e o espaço. “Onde se encontra a classe operária?” perguntava Lefebvre. Como uma toupeira, na famosa imagem de Marx, estaria ela cavando novos túneis e aguardando o momento da aparição brusca e assustadora? Ou estaria ela desaparecendo em razão das mutações do capitalismo que já entravam em ação? Lefebvre propõe um deslocamento que é correlato à passagem da cidade subordinada pela indústria às sociedades urbanas nas quais as forças produtivas encontram socializadas e diluídas no território. Trata-se de definir novas as localizações e as novas composições de uma força de trabalho que não se restringia mais aos muros das fábricas disciplinares. Por isso, Maio de 1968 nunca saiu do campo de análise do filósofo. Trata-se do momento de encontro, talvez ambíguo e até contraditório, entre os trabalhadores que vinham das linhas de produção fordista com os novos sujeitos que emergiam no urbano (estudantes, imigrantes, trabalhadores precários, mulheres etc.)144. O direito à cidade pode aparecer, então, como “direito superior” (idem, 2006, p. 135) pela sua capacidade de exprimir e articular lutas 144. Sobre o tema, conferir também: LEFEBVRE, 1998.
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transversais que podem entrar em ressonância atingindo escalas locais e globais. Essa transversalidade não se limita ao simples acesso a diferentes equipamentos e serviços públicos relacionados aos diversos direitos individuais ou coletivos (mobilidade, acesso à informação, saúde, educação, lazer, trabalho etc.). Ela diz respeito à possibilidade de recomposição material desses direitos através da afirmação de novas formas de viver e autogerir o urbano. Seríamos capazes de produzir, na esteira do poder de Junho de 2013 (e sua inevitável conexão com 1968), direitos de liberdade, igualdade e diferença através de uma intromissão, por fora do binômio Estado-Mercado, de problemas transversais ligados à vida urbana?
4. Direito à vida urbana renovada ou direito a cidades sustentáveis? É evidente que a exigência do direito à cidade está relacionada, como mencionamos, ao ciclo de lutas mundial de 1968 e às possibilidades de ruptura com o cotidiano burocratizado das sociedades urbanas. A abertura de novos possíveis através de grandes movimentos de contestação e, simultaneamente, das pequenas lutas difíceis do dia a dia, foi respondida pelo avanço rápido das técnicas pós-disciplinares de controle e novos arranjos público-privados de gestão da vida urbana. O aprofundamento da globalização pós-queda do muro de Berlim produziu outro ciclo de lutas e um novo terreno de ação política local e global. Durante a década de 1990, no mesmo contexto das reuniões de cúpula (summits) promovidas pelas agências multilaterais que redesenhavam a nova governança político-econômica global, uma série de encontros internacionais foi realizada para a elaboração de uma visão integrada e abrangente dos direitos humanos. Um novo quadro normativo passou a estabelecer a vedação a todas as formas de distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência,
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origem, etnia, gênero e opção sexual, além de proteções específicas destinadas às crianças e adolescentes, aos portadores de deficiência, aos refugiados, trabalhadores migrantes etc. Os debates em torno do direito à cidade, conduzidos por novos movimentos sociais, organizações não governamentais, plataformas de ação global etc., disputaram o terreno referente à expansão normativa dos direitos humanos para inserir o fenômeno urbano no campo de disputa das agendas e compromissos internacionais. Conferências da sociedade civil se juntaram com conferências oficiais da ONU dando início à formulação de um direito a “cidades, vilas e povoados justos, democráticos e sustentáveis”. O Fórum Social Mundial apresenta uma Carta Mundial do Direito à Cidade como resultado desses últimos anos de mobilização, estabelecendo como objetivo o reconhecimento desse direito por instâncias das Nações Unidas, governos nacionais e locais. A partir desse caminho, uma série de documentos foram elaborados nos últimos anos até culminarem em uma “Nova agenda urbana” (HABITAT III, 2016) no interior do sistema ONU145. No Brasil, a partir do Estatuto da cidade (Lei 10.257/2001), o direito à cidade passou ser expressamente entendido como o “direito a cidades sustentáveis”, um tipo de direito difuso e coletivo ligado à efetividade geral dos diversos direitos fundamentais previstos constitucionalmente e a princípios relacionados ao meio ambiente, à distribuição equitativa dos benefícios e ônus da urbanização, à justiça social, à gestão democrática das cidades, entre outros. Do ponto de vista do Fórum Nacional da Reforma Urbana, plataforma de organizações e movimentos criada em 1987 para impulsionar a Reforma Urbana no Brasil, o direito à cidade é entendido como o usufruto de um conjunto de direitos de liberdade e igualdade (moradia digna, sustentabilidade ambiental, mobilidade, trabalho, saúde etc.) e está relacionado ao princípio da função social da ci145. Para acessar este último documento, sugerimos o link: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7114/1/BRU_n15_Direito.pdf. Acesso em 22 de agosto de 2017. Para um histórico desse período, conferir: SAULE JR. N. 2016.
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dade e da propriedade, além do princípio da gestão democrática das cidades (SANTOS JUNIOR, O. A. 2009). Por que propomos confrontar o conceito de direito à cidade lefebvriano com o conceito de direito à cidade desenvolvido em razoável consonância com gramática das plataformas sociais dos últimos anos? Porque quando falamos em direito à cidade apelamos para um campo que não é o das “cidades sustentáveis, justas e inclusivas”? Em primeiro lugar porque, como vimos a partir de Paulo Arantes, cada vez mais, se compartilha o diagnóstico que a capacidade de transformação real dessa estratégia é baixíssima, quando existente. Segundo, porque ela foi incapaz de dar conta do verdadeiro nó político-econômico que forma um dispositivo de gestão do urbano: a relação entre burocracia estatal (o estável) e as novas formas de governança público-privado baseada no controle dos fluxos (o efêmero). E é a partir desse nó que foram produzidas as tecnologias sociais de gestão dos corpos também sob o lulismo (não por acaso é possível perceber uma proximidade política entre esses campos). E terceiro, porque o último ciclo de lutas da chamada Primavera Árabe, ao apontar para um novo repertório de desejos, léxicos, experimentações relacionadas às sociedades urbanas globais, aquilo que Arantes denomina de um “poder não identificado”, altera as próprias condições de qualquer ação política vis-à-vis o ciclo da globalização dos direitos humanos. Esse deslocamento pode começar a ser realizado se, através de um conceito de direito à cidade, se constitua um terreno que evite: (a) as armadilhas normativistas que esvaziam as lutas reais por outras formas de vida urbana em uma sequência infindável de correlações abstratas entre direitos (humanos), planos de ação idealizados para longo prazo e uma reduzida esfera de ação reivindicativa atrelada às instâncias globais, nacionais e locais que em profunda crise; (b) as limitações de um institucionalismo concebido, cada vez mais, de forma separada de uma análise dos movimentos reais e heterogêneos que atravessam o urbano, e que não podem ser resumidos nos
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movimentos sociais tradicionais dos anos 1980. A miragem institucionalista perde a capacidade de perceber as formas de organização e coprodução do urbano que acontecem desde baixo, facilmente caindo em uma atuação tecnocrática e burocratizada que compõe, na atualidade, as estratégias de pacificação do urbano; (c) as capturas realizadas pelo binômio Estado-Mercado que se apresenta como um falso dualismo: de um lado, a opção estatalista de ordenar o espaço urbano a partir de uma lógica centralizada, de outro, a governança flexível que concebe a cidade como uma empresa dotada de ativos estratégicos. É preciso reconhecer que esses dois modelos caminhos juntos, alterando a ênfase em cada polo de acordo com a resistência enfrentada.
Conclusão Para fins de conclusão, vale retomar o conceito de autogestão generalizada, que permite um duplo enfrentamento, tanto do nó político burocracia-controle, quanto das armadilhas do normativismo, ambos se encontrando nas novas tecnologias de pacificação social. Buscar a autogestão, generalizar o comum para além do Estado-Mercado146, significaria produzir perfurações no atual sistema rígido-flexível (disciplina-controle) e anunciar um “processo que passa pela brecha e que se estende pela sociedade inteira” (LEFEBVRE, 1998, p. 78). Um recusa tanto da centralização que usurpa o poder de decisão das suas fontes múltiplas, como dos mecanismos de controle que reorganizam as hierarquias no interior das formas descentralizadas. Aqui o direito à cida146. Sobre o conceito de comum, que não foi desenvolvido no presente artigo, mas que poderia entrar em ressonância com as postulações de Lefebvre, conferir: MENDES, A. CAVA, B. A constituição do comum: antagonismo, subjetividade e crise do capitalismo. Rio de Janeiro: REVAN, 2017. Sobre umarelação explícita do conceito de comum com o direito à cidade a partir de Lefebvre, conferir: TONUCCI, J. B. M. Comum urbano: a cidade além do público e do privado. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG: 2017.
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de pode demonstrar sua vocação real de abrir caminhos, não se esvaziando no lirismo humanizador das “cidades justas e sustentáveis”, nem nas formas de governar contemporâneas que oscilam permanentemente do estável ao efêmero. A ideia de uma autogestão generalizada conduz, de outro lado, a um deslocamento importante do conceito de direito à cidade nas suas versões normativistas, institucionalistas e subordinadas ao binômio público-privado: a) do paradigma do simples “acesso” aos serviços e das formas de promoção do direito humano à cidade, subordinando-os aos arranjos público-privados existentes, para um direito a coproduzir e a autogerir os caminhos de materialização de um direito à cidade que é resultado de múltiplos processos de luta, renovação e criação da própria vida urbana; b) de uma regulação pública da propriedade urbana operada pelo princípio da função social da propriedade para a cogestão de espaços, serviços e bens comuns. As propriedades deixam ser pensadas em termos de finalidade e função e abrem-se para um autogoverno de usos e recriações que restituem o predomínio do lúdico, do imaginário e da expressão heterogênea de formas de viver o urbano; c) de uma gestão democrática da cidade concebida através da participação em instâncias controladas pelo Estado-Mercado, e regulada pelos dispositivos de pacificação, para o reconhecimento de formas de organização e de decisão que já são produzidas no espaço urbano. Trata-se de um deslocamento do campo da representação (mesmo que pluralizada nas diversas instâncias participativas previstas legalmente) para o campo da expressão, que enfatiza o conjunto das condições através das quais os diversos pontos de vista do urbano podem ser criados, pensando-o, mesmo sob a forma de um enigma permanente, como base para um autogoverno democrático das cidades. Por isso, e levando em conta que tantos outros exemplos e deslocamentos poderiam ser citados, a ideia de uma generalização da autogestão só pode ser compreendida, não como mais um passo para a burocratização e o gerenciamento, mas como uma dobra permanente que é
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realizada como desvio do duplo burocracia-controle e do institucionalismo estéril do das “cidades justas e sustentáveis”. Concordamos com Paulo Arantes: não se trata de defender um novo projeto ou uma nova racionalidade, seja estável-geométrica, efêmera-em-fluxo, ou jurídico-humanizadora. Se a velha metáfora do urbano como um tecido encontrasse ainda uma utilidade, seria para dizer que o desafio não é estriá-lo, alisá-lo, ou reparti-lo. O direito à cidade pode ser encontrado lá onde se generaliza a dobra: o direito de amassar constantemente o tecido e produzir, em cada limiar, desnível ou relevo, novas formas de viver o urbano.
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Ve r t i g e n s d e J u n h o 1 4 7 “Um condenado põe em perigo sua vida para protestar contra punições injustas; um louco não pode mais suportar ser confinado e humilhado; uma pessoa recusa o regime que a oprime. Isso não faz do primeiro inocente, não cura o segundo e não assegura à terceira o amanhã prometido. Ademais, ninguém é obrigado a ajudá-los. Ninguém é obrigado a declarar que essas vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam a verdade. É suficiente que elas existam e que tenham contra si tudo que está determinado a silenciá-las até que haja um sentido em ouvi-las e em prestar atenção ao que querem dizer. Uma questão de ética? Talvez. Uma questão de realidade, sem dúvida.” (Michel Foucault – É inútil revoltar-se?)
Embora (propositalmente) esquecida, é impossível tentar compreender a situação de grande impasse político no Brasil sem a chave explicativa de junho de 2013. Em 2013, uma grande e surpreendente coalizão formada por alianças heterogêneas e pouco prováveis identificou um mesmo alvo: o pacto constituído por uma acumulação por hibridização (ora neodesenvolvimentista, ora neoliberal) que, de um lado, produzia uma falsa sensação de progresso econômico (o Brasil que “decolava”) e, de outro, garantia a permanência de um fluxo de dinheiro responsável pelo lastro político do projeto (o financiamento eleitoral e a irrigação de praticamente todos os partidos do cenário brasileiro). Aos dois aspectos, 147. Escrito com Clarissa Naback e publicado originalmente no site da Universidade Nômade Brasil, em 21 de março de 2016. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/vertigens-de-junho/. Acesso em 13 de outubro de 2016.
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acrescenta-se um único modus operandi: a figura do “rolo compressor”. A metáfora foi muito utilizada para ilustrar a maneira como os projetos (pré-fabricados) foram (e ainda são) implementados, “tratorando” qualquer discussão prévia, pública e democrática. Junho de 2013 atingiu o alvo a partir de um duplo e ambivalente ataque: (a) o primeiro, através de uma expansão imediatamente produtiva (aparentemente de maior duração), gerou uma inédita e democrática mistura de enfrentamentos de rua, proliferação de assembleias, autoconstituição de redes de comunicação, manifestações nas favelas e periferias, agenciamentos entre diferentes sujeitos em luta (bombeiros, professores, usuários de transporte público, moradores ameaçados de remoção, jovens estudantes, garis) e um longo etecetera; (b) o segundo, através de um tom unicamente reivindicatório (e de duração aparentemente limitada), depositou suas fichas nas instituições que seriam responsáveis pela organização de punição: Ministério Público, juízes, legisladores e demais agentes da ordem (ex: a campanha contra a PEC 37). De 2014 em diante, o governo federal e boa parte da esquerda brasileira trabalharam para aniquilar a primeira vertente de junho. Primeiro, organizaram uma máquina repressiva que inviabilizou a permanência dos manifestantes nas ruas e nas redes, através do uso da força e da disseminação do medo e da vigilância. Segundo, organizou uma máquina de marketing eleitoral que dessubjetivou e chantageou a insurgência, transformando-a no bastião de uma defesa do “menos pior”, de ataque aos “pessimildos” (a insurgência mesma!) e de uma guinada à esquerda que nunca viria a acontecer. Por adesão entusiasta, medo, inércia ou defesa de uma identidade de esquerda (comunitarismo/tradicionalismo), quase nada escapou ao buraco negro do governismo. O novo governo Dilma nunca começou… Aliás, começou sim, ao perder toda a legitimidade e o apoio fabricados já no primeiro dia, quando tornou-se evidente o tamanho da mentira contada nas eleições presidenciais e sua absoluta falta de imaginação política (além de não
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mudar nada, o governo escondeu a profunda crise já diagnosticada, a agenda do ajuste fiscal, o aumento dos preços administrados que acelerou a inflação, deu prioridade total ao agronegócio e à privatização como “agenda positiva” e enviou para votação em regime de urgência uma legislação altamente repressiva). Desponta a segunda vertente de junho, numa via de mão dupla: a operação Lava Jato não seria possível sem o consenso social anticorrupção de junho de 2013; as grandes manifestações não seriam tão bem-sucedidas sem a sequência de notícias bombásticas da operação Lava Jato. Após desaparecer durante o ciclo insurgente, o desejo destituinte da segunda vertente reaparece triunfante, apresentando-se como força social, política, judicante e punitiva: é o epônimo de 2015. A defesa governista, raspando o tacho das eleições de 2014, se organiza em duas frentes: (a) primeiro, na lógica chantagista de difusão do medo, anuncia a iminência de um novo golpe ou de uma ascensão extremista e conservadora da direita, negando qualquer legitimidade à indignação crescente. Praticamente todos que se consideram de “esquerda” abraçam a hipótese. A (viva) memória da resistência à ditadura se converte em (morta) celebração do medo, da paralisia e da paranoia; (b) Segundo, na falta de qualquer linha política a ser defendida, o governismo ocupa o espaço vazio com uma formal defesa da democracia e da “legalidade”. Entra em cena a tradição do garantismo e do abolicionismo penal que, há décadas, serve de ferramenta de luta e de análise da seletividade e do racismo das práticas punitivas brasileiras. Incapaz, no entanto, de qualquer análise política que não caia na teologia negativa do “menos pior”, e de levar a sério a própria seletividade da máquina repressiva governista (e do autoritarismo que a mantém), ela se transforma na figura esquálida do seu próprio avesso: direito sem política; forma sem conteúdo. Um “abolicionismo de Estado” que, não sem disfarçar algum constrangimento, infla quando o alvo é o governo, e encolhe quando o
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alvo é a multidão: da histórica defesa dos presos políticos à tentativa de blindagem sem cerimônia de qualquer político preso. Diante da contínua desfaçatez a indignação cresce, com suas ambigüidades e perigos. Na campanha do governo, uma aparente inteligência crítica acaba se revelando como autoritária estupidez (a miséria, portanto, é certa). E nas atuais manifestações não petistas? É possível que uma aparente estupidez (como quer o consenso na esquerda) se revele como portadora de uma materialidade crítica? Talvez não… A segunda vertente de junho, e falamos com aqueles de boa-fé, quer enfrentar a corrupção com a transferência completa de sua potência para as autoridades judiciais, acusatórias e policiais. A figura do juiz-herói é tão somente o reconhecimento da corrupção total de nossa capacidade de agir politicamente, de tomarmos as rédeas da situação. Por mais que todo o sistema político tenha trabalhado para a despossessão dessa capacidade (sendo corresponsável pela desesperada busca por uma redenção que caia dos céus), precisamos evitar as armadilhas e recusar qualquer saída deste tipo. Que o culto ao deus-juiz seja substituído pelo lento cultivo da terra; que a corrupção endêmica seja combatida com a distribuição democrática de poderes, formas de controle social e de ampliação de espaços de decisão, inclusive no sistema de justiça. Ora, se “cadeia” resolvesse, estaríamos no melhor país do mundo. Uma saída verdadeiramente abolicionista (ao invés de se entregar à defesa disfarçada de governo autoritário) seria pensar a substituição da medida penal por distribuição de responsabilidades políticas, administrativas e financeiras aos envolvidos (empresários e políticos) e, ao mesmo tempo, defender os direitos fundamentais na sua materialidade (o direito ao questionamento) como condição para a abertura de novos espaços políticos. Talvez sim… Apesar da participação de setores extremistas e antidemocráticos, e de episódios lamentáveis, as manifestações, desde 2015, continuam apresentando deslizes curiosos: uma recusa e até um des-
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conhecimento sobre os grupos organizadores (aqueles que fazem chamadas terríveis); uma recusa da falsa polarização e do oportunismo político de candidatos que querem “surfar” no movimento (as vaias contra Aécio e Alckmin); uma defesa moderada de direitos individuais de cunho progressista e, principalmente, uma conexão real com a crescente e justa indignação da população brasileira (que tende a se aprofundar) Explicando a epígrafe: A imagem de um manifestante (coxinha?) suportando um canhão d’água no rosto e resistindo ao avanço da tropa de choque paulista nos coloca uma questão: será que ele não tem algo a nos dizer? Não há um sentido em ouvi-lo? Não há vozes que precisam ser escutadas? O governo tentou dar o troco mobilizando, mais uma vez, uma manifestação que só consegue atrair pessoas se não colocar em pauta o que foi o próprio governo nos últimos anos (apela-se de forma abstrata para a “democracia”, esquecendo-se também o papel autoritário do governismo na eliminação de qualquer alternativa democrática – sendo ele, portanto, corresponsável pela ascensão de todo o tipo de salvacionismo e extremismo). Essas manifestações não apenas são menos impactantes, como se sustentam apenas pela mobilização do medo e da insegurança. Que tipo de democracia poderíamos construir a partir da vitória do medo sobre esperança? Por outro lado, as análises que, por fora da idolatria governista, reduzem as atuais manifestações à polaridade fabricada (“nem isso, nem aquilo, nem 13 de março, nem 15”), cometem o seguinte equívoco: enquanto a polarização foi forjada pelo próprio sistema político (e, por isso, o antes quase falido PSDB aceita e agradece com prazer o reciclado papel de opositor), as manifestações não governistas parecem querer prolongar e sustentar o profundo impasse que atinge a política brasileira, rejeitando, por sua cumplicidade, as fórmulas concebidas desde a redemocratização. A grande dúvida é como o impasse será resolvido.
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Com o terreno em aberto seria impossível prever, mas deixamos apenas duas impressões: Risco Bolsonaro. Ao contrário do que parece, a “solução” Bolsonaro não é alimentada por uma onda conservadora que emergiu para polarizar com a esquerda. Ela é resultado da própria vontade de implodir o falso sistema de polarização construído com participação da própria esquerda (o mesmo poderia se dizer de Moro). Há um forte desejo de sabotagem que encontra em Bolsonaro uma arma para implodir o sistema e todos aqueles são vistos como responsáveis por ele. Esse agenciamento do desejo não vai ser combatido com impotentes e abstratos cânticos de direitos humanos, ou pela afirmação ad hoc de uma superioridade moral. Precisamos criar saídas materiais para que a sabotagem represente um aprofundamento da democracia. A solução Bolsonaro precisa parecer menos atraente e menos desejante que outras soluções criadas politicamente. Risco Berlusconi. As análises que comparam as possíveis consequências políticas da operação Lava Jato com a situação italiana depois da operação Mãos Limpas, geralmente esquecem duas coisas: primeiro, que a operação judicial ocorreu na Itália depois que a esquerda institucionalizada, através do chamado compromisso histórico, resolveu aniquilar todo o tipo de crítica insurgente e autônoma realizada pela geração de 1968 (semelhanças com o PT pós 2013?); segundo, que ao tentar manter o governo Dilma intacto e garantir sua continuidade, a esquerda quer nos fazer esquecer de todas as relações mafiosas (e, portanto, a corrupção da democracia) estabelecidas com empreiteiras, bancos, empresas e gestores de fundos públicos nos últimos anos. Paradoxalmente, a esquerda quer que Lula se transforme no novo Berlusconi. Quer garantir que ele faça um acordão geral pós Lava Jato, para que o modelo de acumulação por hibridização se mantenha, com suas negociatas autoritárias, como se nada tivesse acontecido (exatamente o que fez Berlusconi).
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Como fugir de ambos os riscos? O problema é que sem um poder constituinte que possa criar um amplo e democrático repertório de alternativas a situação fica cada vez mais difícil. A chantagem e a repressão nos levou para a falta de alternativas. A falta de alternativas nos leva para mais chantagem e extremismo salvacionista. Como romper com o círculo vicioso? Pode ser interessante pensar em duas frentes possíveis: a) Novas eleições e reforma politica já. Do ponto de vista institucional, diante das consequências do estelionato eleitoral e da crise de legitimidade crescente, devemos insistir na convocação de novas eleições como forma de provocar uma mínima discussão política envolvendo a sociedade. Não vamos entrar nos detalhes de sua viabilidade (por dupla renúncia, cassação após apuração de responsabilidades ou tentativa de estabelecer uma PEC do recall com validade imediata). Como afirmação política, nos cabe defender que um novo momento eleitoral pode servir, tanto para aumentar a participação social nos rumos da crise palaciana, como evitar um possível “acordão” posterior ao impeachment148. b) Do ponto de vista instituinte, o desbloqueio da crise institucional deveria servir não para uma reativação do poder de aplicar a mesma receita, a mesma agenda (Brasil), mas abrir um processo de discussão e construção de novas agendas possíveis. Lutar contra a corrupção é lutar contra aquilo que nos impede de utilizar, de forma autônoma, ferramentas construídas em uma ampla cartografia de lutas: Tipnis (Bolívia), Vila Autódromo, Guarani-Kaiowá, Belo Monte, escolas ocupadas, 148. [N.A] Essa proposta não ganhou qualquer apoio no momento pré-impeachment. Mas, após a saída da Dilma, a esquerda iniciou uma campanha que capturava a ideia para transformá-la em um Fora Temer domesticado. A partir de 2017 nem isso foi possível. O PT sai em defesa do PMDB no processo de cassação da chapa Dilma-Temer e canaliza suas críticas às investigações da Lava Jato que, por sua vez, culminam em duas denúncias contra o próprio Temer. Antes de ser preso, Lula chega a afirmar que era Temer, agora, que estava ameaçado por um novo golpe promovido pela Lava Jato e pela Rede Globo, qualificando sua resistência de “corajosa”. Por todos, conferir: CONGRESSO EM FOCO. Temer sofreu tentativa de golpe da Globo e desmascarou Joesley e Janot, diz lula. Edição do dia 18 de março de 2018. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/temer-sofreu-tentativa-de-golpe-da-globo-e-desmascarou-joesley-e-janot-diz-lula/Acesso em 30 de julho de 2018.
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Amarildo, Aldeia Maracanã, Jirau, UERJ etc. Se houver refundação da república, que seja a partir das experimentações produzidas desde baixo, aquelas que souberam criar um partido de trabalhadores, e que sabem a hora de enterrá-lo. O enigma de junho continua ressoando: “decifra-me ou te devoro”.
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A atualidade de uma democracia das mobilizações e d o c o m u m 149 Introdução Escrever no momento em que tudo parece confuso e o campo de possibilidades de ação se mostra, no mínimo, turvo é um desafio. A tentação é ficar apenas observando, deixar os dias passarem, aguardar novas movimentações, a espera de um instante de clareza e calmaria no complexo campo de forças que se estabeleceu há duas semanas. Com certeza, seriam menores os erros e mais ágil o pensamento. A prudência manda ficar quieto e observar. Nas propostas de mobilização e atividades na rua, por um tempo, ganhou terreno o mesmo raciocínio. Seria tempo de deixar o mar revolto e amorfo passar, para depois voltar a remar na direção de um local certo e preciso. Devemos correr o risco de atuar no sentido contrário, escrevendo, tomando decisões e propondo novas ações, a partir, exatamente, do coração dessa mistura caótica? Creio que sim. E o retorno dos encontros para organizar novas ações caminha na mesma direção. O tempo está mais acelerado que nunca e não convém abandonar a nossa capacidade de conduzi-lo de forma virtuosa. Abandonemos o rigor disciplinar da “boa conduta e análise re149. Publicado originalmente no site da Universidade Nômade no dia 26 de junho de 2013. Disponível em: http://uninomade.net/tenda/a-atualidade-de-uma-democracia-das-mobilizacoes-e-do-comum/ Acesso em 30 de julho de 2018.
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volucionária” de lado em prol de uma abertura à experimentação e à tentativa de esboçar pequenos, instáveis, precários, mas permanentes mapas de luta e reflexão. Nada nos impede de, amanhã, amassarmos o papel e jogá-lo no lixo, de revertermos a frustração de uma ação mal-sucedida, por uma nova proposta de ação. Seríamos imprudentes? Ora, não seria a prudência, desde os gregos, o melhor antídoto para combater o medo e covardia ao possibilitar a realização de condutas em meio à surpresa, ao risco ou ao contingente? A questão, então, não seria “agir ou não agir”, mas como agir no interior do atual campo de disputas e acontecimentos. Este parece ser o tom das discussões que tomam novamente as assembleias, plenárias, encontros informais e eventos políticos. Nosso esforço está direcionado para esse mesmo desafio. Não pretendemos pontificar nenhuma derradeira “solução” ou esboçar uma manual de conduta. Nossa tarefa é apenas lançar alguns pontos de reflexão, linhas de um mapa, que, espero, colabore com as recentes mobilizações.
1. A situação está melhor que antes. Saímos do consenso unívoco e silencioso para o dissenso generalizado e polifônico. No momento em que ventos pessimistas se aproximam, é preciso declarar que, apesar de todos os riscos, a proliferação veloz das revoltas urbanas que tomaram o País nos coloca em uma situação melhor do que a anterior. O consenso que havia se formado a partir da dinâmica dos megaeventos, do neodesenvolvimentismo economicista, do projeto único de governo definido “de cima para baixo”, implodiu. O Brasil Maior se estilhaçou em inúmeros fragmentos lançados para todas as direções. No campo político, ele era formado por uma costura de alianças que paulatinamente foi cerrando todos os canais democráticos de dissenso e forçando as múltiplas visões e realidades a se reduzirem ao “Um”. Não
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por acaso, o Rio de Janeiro era o laboratório privilegiado desse fenômeno. O poder político, econômico e simbólico tentou nos fazer acreditar que éramos “Um Rio”, mas a cidade implodiu-explodiu recusando de forma selvagem a operação de redução. O somatório de forças, que foi apresentado como solução para a crise da ex-capital, se converteu rapidamente em um “rolo compressor” que atropelava tudo e todos. Por mais que, na fumaça dos escombros, o “Um” esteja tentando se reafirmar a partir do avesso – a unidade do “povo” – a multiplicidade recuperou a sua capacidade de se afirmar politicamente e de se constituir como horizonte do possível. Nossa tarefa é evitar que ela seja novamente esmagada por um trágico encontro entre o Brasil Maior (em crise) e o “gigante que acordou”. Urge proliferarmos instâncias que multipliquem continuamente as diferentes formas de vida e de expressão. Afirmar uma paleta de mil cores que recusa uma só bandeira, garantirmos o direito ao dissenso contra todas as tentativas de reconstruir, em bases ainda piores, o consenso que o atual ciclo de lutas desmanchou. Ao que tudo indica, e ao contrário das previsões mais pessimistas, esse caminho tem se mostrado mais aderente às mobilizações que as ameaças fascistas realizadas nos protestos anteriores (agora reduzidas aos patéticos manifestantes que ocuparam uma Av. Rio Branco vazia). Os riscos são novos, mas as oportunidades também. Saber aproveitá-las é um dos desafios mais complicados e instigantes do atual fazer-movimento. E deve começar agora.
2. O ciclo de lutas coloca em evidência a centralidade do direito à cidade. Estamos vivendo a primeira greve geral metropolitana. Que a insurgência generalizada tenha se iniciado a partir de uma luta pelo direito à mobilidade não é mera coincidência. Se antes a cidade
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era o “suporte” para unidades de produção que determinavam diferentes usos do território segundo uma lógica disciplinar-fabril, comercial ou administrativa, nas ultimas décadas o urbano tem se constituído como o próprio terreno da produção e daquilo que é produzido. Uma produção social, difusa e permanente que não pode mais ser separada da chamada esfera da “reprodução”, aquela que corresponde à própria vida. Produção do urbano e da vida urbana não só coincidem como se alimentam mutuamente. As lutas que tradicionalmente foram (e ainda são) realizadas sob o signo das “condições de trabalho”, no urbano significam batalhas a serem travadas no campo dos serviços urbanos e sociais. A ampla aceitação da população ao movimento de redução das passagens e de melhoras no transporte público (inclusive “com baderna”, assustando o populismo televisivo) não traduz nada mais que a constituição de um terreno comum de luta, que é a “fábrica difusa” da própria cidade e seus serviços. Está declarada a greve geral do trabalho metropolitano! As metrópoles pararam e mesmo aqueles que habitualmente são colocados pela mídia como “vítima dos transtornos” apoiavam enfaticamente a luta que se tornou incontrolável. O que já aprendemos dessa revolta é que, assim como os operários de diversas “categorias”, os habitantes das metrópoles podem se unir e se articular produzindo uma ação conjunta de efeitos impressionantes. Com as redes sociais (porque não a chamamos de o novo âmbito sindical, sem excluir aquele tradicional) isso pode ser feito em coordenação simultânea com centenas de cidades, no Brasil e no mundo. Foi o que nós fizemos e ainda soa inacreditável. Não esquecer que as novas lutas em torno da dignidade da vida urbana incluem o próprio direito de produzir o urbano, na clássica e antecipada visão de Henri Lefebvre. Possuímos instituições que democraticamente permitem essa produção? Sem dúvida esse desafio está colocado, mas uma questão já é determinada: a greve metropolitana funcionou como um verdadeiro processo “destituinte” de formas de governança das metrópoles que monopolizam a prerrogativa de produ-
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ção do urbano. A conquista dos vinte centavos representou uma vitória imensurável porque arrancou das mãos do governo e das empresas o poder de determinar, a partir de contratos suspeitos e gastos sigilosos, o preço da tarifa. A demora e a recusa dos governos em anunciar a medida, mesmo daqueles que deveriam ser progressistas, comprovou que o movimento adentrou na área do vespeiro. Uma fenda se abriu nas estruturas antes impenetráveis do público-privado. O desenrolar do processo de luta acusou outro movimento “destituinte”, agora referente à urbanização VIP estimulada pela dinâmica dos grandes eventos, mas também pela especulação imobiliária com suas arquiteturas falsamente exuberantes (que escondem na verdade uma terrível miséria). A aceleração do processo de expropriação dos bens comuns, a imposição de uma estética e de formas de vida elaboradas pelo marketing previsível das empresas, o cercamento e a mutilação de espaços de alegria, de convívio e de encontro dos habitantes da cidade, a segmentação baseada na propriedade e na renda dos locais de entretenimento despertaram paulatinamente uma recusa radical do modelo. O “padrão-FIFA”, com suas zonas exclusivas e mordomias seletivas, ostentadas ao lado de serviços sociais degradados (saúde e educação), está sendo severamente questionado a ponto de se falar que “não vai ter Copa”. E a rua, que, na propaganda, deveria ser a maior arquibancada do Brasil, justamente para abrigar todos aqueles que se tornaram subitamente “sem-estádio”, se transformou no local dos novos enfrentamentos por outra forma de produzir o urbano. Não se sabe, agora, se as grandes mobilizações de rua, com centenas de milhares de pessoas continuarão paralisando as cidades e mentalidades. Fato é que estamos vivendo uma desterritorialização do movimento, com pequenos protestos estourando em vários lugares ao mesmo tempo. As periferias e favelas, cuja participação muitos duvidavam, foi para a rua e escancarou a desigualdade do tratamento policial entre classe média branca e população negra e favelada. É ao mesmo tempo fabuloso e estarrecedor acompanhar a mobilização das favelas. Uma ju-
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ventude corajosa e virtuosa vai para a rua mas as balas não são de borracha. Possivelmente, no Rio, esses protestos servirão para desnudar a violência policial extrema, de uma polícia que estava vendendo ao mundo a ideia de “humanização”, “pacificação” e aproximação comunitária. Seja em locais “pacificados” ou não, a total incompatibilidade da polícia militar com a democracia resta evidente. A continuidade dos movimentos nos colocará, por certo, uma chance única de desativar essa máquina de matar. Não podemos perder essa oportunidade.
3. A greve geral tem classe. Sua nova composição não está domesticada pela noção de “Classe C” Diversos analistas tem, nos últimos anos, comentado a emergência veloz e significativa de uma “nova classe média”, representada pela camada da população que conquistou renda e novos espaços sociais no contexto do Governo Lula. Rapidamente, economistas, empresas e governos começaram a desenhar novos moldes para ajustar os novos consumidores em estratégias de venda e estímulo ao “empreendedorismo”. A periferia, e seus mediadores, adquirem uma nova centralidade, denominada por Marcelo Neri de “o lado brilhante dos pobres”. Como a metáfora indica, imaginou-se que a nova “Serra Pelada” poderia ser escavada pacificamente rendendo bons frutos a todos que tivessem lido o livro Mistérios do Capital de Hernando de Soto e o colocado na cabeceira. Mas não só o capital, também a “classe” tem os seus mistérios. Um deles é que a classe, longe de ser definida por traços sociológicos, é engendrada continuamente pelas lutas. A atual greve metropolitana, assim, funciona como um dispositivo que, ao mesmo tempo, é resultado dessa nova composição de classe e funciona produzindo essa classe. Essa produção é aquela correlata à própria produção do urbano e suas múltiplas centralidades. Não é por acaso que no início das mo-
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bilizações encontrávamos a expressão mais potente dos novos personagens que entraram em cena: os jovens que conquistaram novos espaços sociais (entre eles a universidade), novas condições de desejar e lutar, e que também atravessam e compõem diversas formas de organização política. O terreno de disputa deles é a cidade, seus usos e suas possibilidades. Uma fina e quase invisível articulação, com o tempo, foi sendo tecida até que a redução da tarifa se colocasse como ponto de encontro das muitas e variadas dimensões dessa nova composição. Os jovens gritavam palavras de ordem, os senhores de idade, os pais e as mães, aplaudiam. A classe C que era pra ser domesticada pelo consumo, pela polícia de pacificação e pela formalização autoritária, entrou num processo rápido, intenso e insurgente de fazer-multidão. A greve metropolitana, então, pode nos servir para uma ampla revisão e reflexão sobre as políticas destinadas à domesticação da classe que se institui no processo de luta. Nos processos de “integração” sonhados pelos ideólogos da Prefeitura do Rio, por exemplo, imaginou-se que a “nova classe média” iria adentrar no setor de serviços de maneira pacífica e ordeira, mesmo com sua prestação péssima e suas tarifas altíssimas. Pensou-se que os jovens (e antigos comerciantes) desejariam ser novos empreendedores da cidade-empresa. Que os moradores de favela deveriam ser removidos para empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida, para ter uma moradia digna. Que, para trabalhar, os ambulantes precisavam ser regularizados e disciplinados a partir de pontuações estúpidas e determinações servis. Que os jovens que produzem cultura, novas mídias, tecnologias e linguagens, deveriam ser controlados pelos recentes museus da Fundação Roberto Marinho e pelas baboseiras da “cidade criativa”. Mas eles não querem nada disso! Querem produzir o urbano a partir de formas de sociabilidade autônomas, horizontais e democráticas. E, para isso, é preciso conquistar mais direitos, serviços urbanos, espaços, liberdades e se apropriar de muito mais riqueza do que a promessa de crescimento gradual oferece.
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Muito mais que uma sociológica nova classe média o que estamos vendo é a constituição da classe como produção de subjetividade: uma construção política que resiste a todas as estatísticas. A intensidade dessa produção explica como pode haver um extraordinário levante insurrecional num ambiente que era visto como consensual politicamente e estável economicamente. Os determinantes objetivos se demonstram inócuos exatamente porque não perceberam a dimensão ontológica, radical e produtiva da nova subjetividade. Os tecnocratas neoliberais, cada vez mais bajulados pelos governos do PT, não só não compreendem esse fenômeno, como insistem em políticas que, se não são inúteis e ineficazes, são verdadeiramente antidemocráticas. Uma economista carioca, que ocupa lugar de destaque, chegou a imaginar que a combinação entre o mercado financeiro e o terceiro setor pudesse apresentar projetos ditos sustentáveis para a favela! Mas estão todos quietos e assustados agora. E é preciso aproveitar a onda de protestos para acertar as contas e substituir os teóricos da domesticação por novos quadros que compreendam em sua dimensão virtuosa e selvagem o trabalho e o desejo da multidão. O que parece claro é que neoliberais e neodesenvolvimentistas foram desafiados por uma dupla recusa: a do Brasil Maior que gradualmente transformaria a classe que luta em “classe média” através de um programa de estímulo ao crescimento e pleno emprego e com a homologação do crédito e do consumo; a da cidade-empresa que a integraria a partir da dinâmica dos serviços (ineficientes e caros), do empreendedorismo cultural, terciário e criativo. Os megaeventos deveriam pavimentar essa ponte e conectar os nós das metrópoles-empresas na grande rede do Brasil Grande. Mas tudo isso está ruindo… E o que aparece agora em contornos reais é tão somente a crueza da violência da polícia e dos governos.
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4. Evitar as identidades, fazer ranger a forma-partido Quem percorreu as reuniões do campo progressista, que ocorreram no ultimo final de semana (dia 22 de junho de 2013), percebeu que, em alguns militantes, havia uma vontade subliminar ou expressa, talvez justificada pelo medo e pela incerteza, de que tudo voltasse ao que era antes. “Pelo menos não tínhamos o risco do fascismo e nossas bandeiras não eram atacadas”. Algumas propostas eram bastante reativas, como a formação de uma “frente” para defender as cores, tradições, bandeiras e protocolos do movimento de esquerda. Se o fascismo aparece como situação tão problemática como minoritária (espero!), aquilo que, de fato, chama a atenção é a base social ampla que apoiou e veiculou as críticas aos mecanismos internos e externos dos partidos políticos150. A extrema-direita tentou surfar nessa onda, mas o fato é que, ainda quando os protestos eram pequenos, muitos militantes apresentavam a preocupação em se manter a autonomia do movimento e evitar uma prejudicial cooptação. E depois de terem sofrido uma injusta violência (nos atos maiores), que foi apoiada por uma intensa e sonora vaia, os partidos políticos ou ficaram reativos-identitários ou nunca mais serão os mesmos. A segunda opção parece ser a mais promissora, no sentido de alavancar novos agenciamentos coletivos que possam atravessar virtuosamente a chamada crise da representação, multiplicando âmbitos inovadores de organização e produção luta. O desafio parece ser, ao mesmo tempo, evitar o desgastado vanguardismo, que irrita tantas pessoas, e a cooptação oportunista dos fluxos de mobilização jovem, como bem registrou Giuseppe Cocco no artigo “Não existe amor no Brasil Maior” (Le Mon150. [N.A] Podemos concluir, portanto, que nesta reunião, realizada depois do grande ato do dia 20 de junho de 2018, já estavam dadas as linhas de restauração pela esquerda que iriam se fortalecer nos anos seguintes.
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de Brasil, 2013), que antecedeu, em dias, o poderoso levante democrático que estamos vivendo. Nem o partido-fábrica, com seus gerentes, cadernos de ordem e disciplina, nem o partido-finanças, com a cooptação móvel e flexível dos fluxos produzidos autonomamente pela luta. Será possível reinventar os partidos de esquerda na direção de uma espécie de teia rizomática, que permitiria a livre e potente expressão de vários pontos ou nós articulados e insurgentes? Eis uma questão que está, a meu ver, colocadas pelo atual ciclo de lutas.
5. Manter o poder constituinte da mobilização: produzir o comum Da mesma forma que, em quinze dias, saímos do consenso silencioso para o dissenso generalizado, também realizamos uma profunda mudança na pauta política oficial. Em um governo tecnocrata e frio, que nunca ou pouquíssimo escutava os movimentos, e que só entoava os termos modernização, enfrentamento dos gargalos, exportação, crescimento do PIB, grandes empreendimentos etc., conseguimos introduzir uma nova gramática e o retorno da palavra política, anunciada como objeto de reforma. A centralidade dos direitos sociais e a relação entre movimentos/mobilizações sociais e governo voltaram para agenda da Presidência, embora tudo ainda seja uma incógnita. A reforma política anunciada pela via da constituinte exclusiva, agora apenas por plebiscito, está longe de ensaiar qualquer solução para o impasse, mas também não deve ser descartada como abertura para novas reflexões e ações. O problema jurídico era esperado e o constitucionalismo revela o seu principal e cômico limite: a incapacidade de lidar com as transformações sociais e o poder constituinte das ruas, sempre relegados (e pessimamente estudados) ao momento pré-constitucional e institucional. Daí o vai-e-vem das opiniões jurídicas e os limites da técnica constitucional moderna. Se é fácil afirmar que o constitucio-
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nalismo é o trunfo contra as maiorias para que os direitos fundamentais não sejam violados, muito mais difícil é conceber uma constituição aberta às mobilizações radicalmente democráticas e que não se apresente como uma pedra no nosso caminho. Essa é outra tarefa colocadas pelas lutas, e que deve tirar os juristas do seu conforto repetitivo e solene. A questão central, por outro lado, não parece ser promover um arejamento institucional de viés democrático (embora isso seja recomendável e importante) que simplesmente responda à mobilização. Algo pensado como uma espécie de remédio para curar a nossa vontade de ir para a rua. Qualquer resposta colocada nesses termos pressupõe um desejo de fechar o processo, concluir as insurreições. Mas, pelo contrário, o tormentoso, empolgante e necessário desafio parece ser pensar a própria democracia como uma abertura permanente à mobilização e aos processos instituintes. Não operar respostas reativas, mas promover espaços políticos permanentes que possam manter a relação entre mobilização e governo como um processo de textura aberta. Nesse sentido, a melhor “solução” que o governo poderá ter diante dos protestos, é tomá-los como uma verdadeira arte de governar: forçar o aprendizado, deixá-los penetrar, deixar-se afetar constantemente, permitir o atravessamento, criar uma pedagogia da insurgência que possa aquecer a máquina que governa, friamente, os assuntos públicos. Sabe-se que militantes, intelectuais e políticos se dedicaram, desde os anos 1980, a pensar, em geral, uma democracia participativa e descentralizada, de bases locais ou não, que privilegiasse o acompanhamento da população interessada e afetada nas 9políticas implementadas pelo Poder Público. E assim foram imaginados alguns importantes capítulos da Constituição Federal e legislações que tratam da saúde (SUS), da cidade (Política Urbana, art. 182, e o Estatuto da Cidade), da cultura (a recente “PEC da cultura”) e da educação (LDB e FUNDEB). Essa partitura de âmbitos institucionais expressam, sem dúvida, o resul-
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tado das mobilizações que ajudaram a democratizar o Brasil e lutaram contra o estado centralizado e burocrático da ditadura militar. No entanto, os mesmos sujeitos citados acima são, hoje, aqueles que mais criticam e identificam uma crise ou um impasse na efetividade e na eficácia desses instrumentos de democracia participativa. De que forma as recentes mobilizações podem nos ajudar a romper essa crise? É possível pensarmos em uma democracia baseada, não apenas na participação, mas, principalmente, na mobilização? Uma democracia que animasse ou transformasse as instâncias participativas em verdadeiras mobilizações instituintes de caráter permanente? Seria, sem dúvida, presunçoso querer dar uma resposta a essa questão. Se é certo que a proliferação de instâncias sem o instituinte, ou seja, de âmbitos que se tornaram falsamente democráticos, faz parte das inúmeras razões das lutas atuais, a possibilidade de se manter uma transformação constituinte, que não se confunde com a reforma, só poderá ser dada pelo próprio movimento. Dentre as inúmeras arapucas montadas para esvaziá-lo, existe aquela da dicotomia entre público e privado. Se a crise do Estado Social leva consigo, progressivamente, a existência dos serviços estatais, que eram movidos por grandes blocos de representação política e por fortes investimentos e instrumentos fiscais, o rearranjo neoliberal que, no Brasil, a partir, principalmente, de 1995, colocou na agenda o chamado “Estado regulador”, baseado na expansão das concessões e permissões ao setor privado, jogou as políticas públicas num buraco negro de negociações fechadas, escusas e antidemocráticas. A regulação pública autônoma, a prometida eficiência e regularidade dos serviços, a modicidade das tarifas e a segurança do usuário não só se converteram em mitos, como começaram a gerar um sentimento justificado de revolta e indignação da população. Daí que a dupla-crise exige não só a aposta na participação, mas, a imaginação de serviços que, para além dos estatais ou privados, sejam serviços comuns. É a hora de rompermos as subordinações que os usos
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e os bens comuns possuem com relação ao Estado e ao Mercado e afirmar a nossa capacidade de gerir os serviços a partir de formas compartilhadas e radicalmente democráticas que caminham, passo a passo, com a produção social e comum do urbano. O que o movimento pela Tarifa Zero demonstra de interessante é que os custos para se viabilizar a cobrança pública ou privada das tarifas são altíssimos e acabam por bloquear a produção do comum urbano pela imobilidade. Não seria essa a discussão que se dá em diversos campos que colocam a expropriação do comum como um dos problemas centrais do capitalismo contemporâneo? O saque realizado nas redes da cibercultura, na produção de saberes, nas terras e florestas, nos recursos ambientais, na própria linguagem, nas formas contemporâneas de trabalho e nos nossos modos de vida. O padrão-FIFA são seria uma autêntica máquina de expropriação das paixões, do esporte, da cultura e dos comuns urbanos. Que tenhamos vivido um poderoso levante, um dos maiores do mundo, contra essas formas de apropriação é de fato incrível. Como realizar políticas do comum? Sabemos que para efetivar de forma justa a tarifa zero precisaríamos supor que todo o orçamento público e todo o faturamento privado, ou seja, toda a riqueza produzida de forma comum, possa se abrir para um amplo debate de opções, escolhas e decisões compartilhadas. “Queremos as planilhas e queremos decidir agora sobre elas”. Vejam que todas as instancias de decisão e todo o resultado da produção devem se abrir no mesmo movimento. O que se denomina caixa preta dos transportes é exatamente o ponto nevrálgico da relação público-privado que alimenta a expropriação da produção urbana. Poderíamos imaginar uma implosão de todas as caixas-pretas que estão plantadas e que funcionam como saqueadoras da produção do comum urbano (na saúde, na educação, nas obras públicas, na construção civil, nos empreendimentos imobiliários, nos serviços, nas empresas terceirizadas, das relações de trabalho, no lazer, no turismo etc.)? Poderíamos pensar sua substituição por caixas do comum, pelas quais
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a multidão retoma a capacidade de decidir sobre as políticas públicas e retoma a riqueza produzida em comum. Decerto, não estamos falando de um “grau zero” da política. O comum já está dado e já existe na produção de uma gama infinita de organizações urbanas, movimentos sociais, arranjos comunitários, informais, redes metropolitanas, âmbitos de discussão, proposição e reflexão, institucionalidades abertas, fóruns públicos e expressão singulares dos habitantes da metrópole. O comum não é só o resultado da produção do urbano, mas também sua própria produção. Adotar a pedagogia insurgente e a força das mobilizações como arte de governar é abrir a esfera de decisão para esse repertório-sem-fim de atividades e iniciativas difusas e entrelaçadas. Os projetos alternativos da Vila Autódromo, do Horto, da Providência, a contra-agenda que as favelas colocam às UPPs, as discussões sobre a linha 04 do metrô e o modelo de transportes, as formas democráticas existentes de prevenção do risco nas encostas, a ocupação cultural e criativa do espaço público, os usos e os sentidos que os habitantes cotidianamente conferem à cidade, o trabalho dos ambulantes e precários, as alternativas pedagógicas na educação, a produção de novas redes de cuidado e de controle democrático na saúde, os fóruns que buscam uma abertura no monárquico sistema de justiça, as redes de comunicação autônomas e de mídia livre, são algumas expressões coletivas e singulares dessa produção que busca incessantemente novas instituições democráticas. Nesse sentido, a mobilização de Junho de 2013 pode ser vista como uma mobilização do comum. Os reclamos por uma pauta única não fazem mais sentido aqui. E também perderam o sentido aquelas pautas específicas que pressupõem que a vida urbana seja separada em gavetas distintas e incomunicáveis. O que temos de especial é uma multiplicidade de pautas, de exigências e de possibilidades que afirmam a dimensão comum do urbano, aquela que não se reduz nem aos fragmentos das políticas setoriais, nem à unidade das políticas prioritárias. “Quere-
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mos tudo e agora”, afirmam os jovens que estão violentamente pacíficos nas ruas e que foram aplaudidos pela população. Conectar esse desejo de transformação a novas instituições do comum, encontrar uma democracia das mobilizações que inove radicalmente as estruturas políticas existentes, são desafios riquíssimos que, a meu ver, o movimento tem pela frente. E não estamos falando de uma utopia distante pela qual devemos sonhar e direcionar candidamente o olhar. Trata-se simplesmente de produzir novos âmbitos políticos adequados às formas de vida que já estamos vivendo. Por isso, a alternativa não está nem além, nem aquém, da atualidade. Romper os constrangimentos, irromper o que nós já somos e produzir a atualidade do real, eis uma agenda vibrante para os próximos dias.
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A ética do anonimato, a vida da filosofia e as máscaras do poder A crítica sentenciosa faz-me adormentar; gostaria de uma crítica feita com centelhas de imaginação. Não seria soberana, nem vestida de vermelho. Traria consigo os raios de possíveis tempestades (Michel Foucault).
No período em que atuei como defensor público no Rio de Janeiro, lembro-me de ter participado de uma primeira reunião com moradores da favela Metrô Mangueira, que ficava na Av. Radial Oeste, em frente ao Maracanã. Eles traziam, aflitos, dezenas de “laudos” de interdição de suas casas, afirmando que a Prefeitura queria removê-los por estarem em áreas de risco. Lembro que nos causou surpresa o fato da interdição ter sido fundamentada numa mesma descrição para todas as casas (um breve e genérico parágrafo) e a informação de que a defesa civil teria montado uma tenda na comunidade, alertando que quem não assinasse sua própria interdição sairia sem qualquer alternativa. Depois fomos informados que, por volta de 100 famílias, atemorizadas com todo o tipo de ameaças e receios, tinham acabado de mudar-se para o longínquo bairro de Cosmos, em apartamentos do Programa Minha Casa Minha Vida. Outras famílias, além de um grupo de comerciantes, resolveram resistir e lutar “até o final” por seus direitos. Se a memória não falha, foi justamente uma grande passeata, incorporada à manifestação do Grito dos Excluídos, no dia 7 de setembro de 2010, que marcou o começo de uma mudança importante para o caso.
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Com base em muita pressão, e no fechamento da própria Avenida Radial Oeste, os moradores e comerciantes conseguiram uma reunião com o então secretário municipal de habitação Jorge Bittar. A defensoria pública acompanhou os moradores e, naquele mesmo dia, todos ficaram sabendo, com muita surpresa, da razão pela qual estavam sendo removidos. Tratava-se, na verdade, do projeto de “requalificação” urbanística do Complexo do Maracanã, que ganharia novos e pomposos investimentos públicos e era objeto de interesses privados. As interdições foram desconsideradas e as negociações passaram a girar em torno de propostas de reassentamento em local mais próximo (Conjunto Mangueira II), o que acabou sendo aceito. Sobre os comerciantes, parece ainda haver controvérsia, tendo o prefeito ido ao local recentemente. Na iminência do próximo dia 07 de setembro, fui pego relembrando o fato e pensando nas famílias que se mudaram forçadamente para Cosmos (limite do município) e que, provavelmente, tiveram suas vidas profundamente abaladas ou destruídas pela ação da prefeitura do Rio. Não há dúvidas que foram atropeladas por um poder que ameaça, agride e que não mostra o rosto. Por que precisavam mascarar o projeto? Por que repetiram o mesmo padrão de atuação em locais como Prazeres, Estradinha (Tabajaras), Labouriaux (Rocinha) Vila Harmonia, Restinga, Vila Autódromo, Providência, ocupações urbanas do centro e, agora, no Horto, para dar apenas alguns exemplos? Alguns me dizem: “poderia ser pior, a polícia está aí para demonstrar”. Pois é, em 2010, somente em áreas com UPP, foram 119 desaparecidos segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP). Naquele mesmo ano, de acordo com o mesmo Instituto, tivemos 885 casos de morte por ação policial registrados como “auto de resistência”. Segundo Michel Misse, que agora participa da comissão criada pela OAB-RJ sobre desaparecidos da democracia, em dez anos (2001-2011) foi possível contar nada menos que dez mil mortes registradas sob esse título. Seriam os autos de resistência e os autos de interdição duas máscaras do mesmo poder que se exerce sobre os pobres?
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Em 2013, o Grito dos Excluídos começou antes de 07 de setembro e adquiriu proporções inéditas na história política brasileira. Entre junho e setembro, foram tantos protestos, acontecimentos, episódios e debates, que seria impossível esboçar aqui qualquer resumo de narrativa. Talvez em nenhum outro momento o tempo cronológico tenha se convertido tão vorazmente em intensidade efetiva. Perder um dia é abrir mão de compreender toda uma série de irrupções e reviravoltas tecidas pelo kairós produzido nas ruas e nas redes. O tempo ganhou textura e se tornou produtivo. E produz-se não apenas acontecimentos, mas, principalmente, o fio que liga o processo de luta e a constituição da verdade. Na dinâmica material de sua constituição, as mobilizações arrancaram do poder constrangidas e inesperadas confissões: o jornal O Globo acaba de reconhecer que apoiou a ditadura; o prefeito do Rio assumiu que foi “nazista” com as favelas removidas ou ameaçadas de remoção, e o governador Cabral lembrou que perdeu completamente a capacidade de diálogo, caindo no puro autoritarismo. E também lhes foram arrancadas decisões pouco agradáveis: as tarifas não aumentaram, as remoções começam a ser suspensas, o projeto do maracanã foi alterado, o museu voltou para os índios, os movimentos sociais e sindicais voltaram a ser recebidos etc. Como parar o tempo e recompor a velha ordem? Eis o dilema que o poder, desde junho, tenta resolver incessantemente. As idas e vindas no uso da força policial, as contradições nos editoriais, as desastradas infiltrações nos protestos e até a intervenção do Pelé, em julho, demonstram que inúmeras tentativas foram experimentadas ainda sem sucesso. Dentro do permanente lançamento de dados, acredito que estamos passando por um novo ensaio de captura, esvaziamento e repressão das mobilizações que tem enfrentado, diariamente, a violência e o sigilo do poder. A fórmula não é tão nova, trata-se da clássica inversão pela qual a ditadura foi exortada para salvar a “democracia”, no famoso editorial do
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jornal carioca. O poder, sempre mascarado e ultraviolento, transfere ao outro a sua infâmia e, no mesmo movimento, age para permanecer exatamente como tal. O final é previsível: as intimações policiais chegarão mais rápido nas caixas dos manifestantes do que o resultado da reconstituição da morte do Amarildo, tudo em nome de uma “democracia” que precisa ser restabelecida. Menos clássica, contudo, é a participação, nessa operação, de setores que colaboram e lutaram na redemocratização do país, desde a década de 1980. Digamos que, para eles, convenientemente, o tempo parou no dia 20 de junho de 2013. A aparição nas ruas do que já existia, uma direita ultranacionalista, fez com o que parte da esquerda, em especial daquela governista, jogasse para cima de todos a pecha de “fascistas”. Pouco importa se aqueles grupelhos definiram ou não a trajetória do movimento. O tempo simplesmente parou no dia 20. O problema é que essa desconfiança generalizante sobre o movimento agora adquire contornos verdadeiramente repressivos. Eles foram sendo desenhados, paulatinamente, por uma sintomática união entre a grande mídia e os blogues governistas, entre alguns filósofos de esquerda e colunistas de extrema direita, entre críticas oportunistas e atos concretos de governo. Todos a entoar um único e abstrato juízo: “os mascarados são violentos e atentam contra a democracia”. Nesse discurso, a memória da ditadura é usada e vilipendiada em nome da manutenção de uma ordem que, nem de longe, está sendo ameaçada por qualquer tipo de fascismo. Pelo contrário, a tática governista está, cada vez mais parecida, ela mesma, com a doutrina da razão do estado, na qual a auto-salvação do próprio estado constitui o único objetivo da política. Toda sedição é ameaça, todo resistente é inimigo. A última contribuição nesse campo, como se sabe, foi realizada pela filósofa Marilena Chauí. Em entrevista à revista Cult e, posteriormente, em palestras para nada menos que a Polícia Militar do Rio de Janeiro, a professora da USP abusou dos delírios punitivistas. Em primeiro lugar, indicou que em alguns grupos de esquerda haveria uma “violên-
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cia fascista” que visaria “destruir o outro”. E depois, respondendo a uma indagação policialesca, afirmou que “intelectuais de esquerda”, leitores de Foucault, Negri e Agamben, estariam incitando a violência nesses grupos. Coincidência ou não, a repugnante entrevista está absolutamente afinada com as táticas de repressão inauguradas nos últimos dias. Nas ruas, a repressão do dia 27 de agosto foi, nas palavras dos manifestantes, a mais violenta de todas. Os policiais concentraram o uso da armas nas mulheres e na mídia que cobria a manifestação. Uma jovem militante e estudante de direito, que por sinal lutou comigo contra as remoções forçadas, foi atingida na cabeça quando estava ainda na concentração. Outras foram espancadas por vários policiais com golpes também na cabeça. Cápsulas de armas de fogo foram encontradas no chão, segundo ocorrência registrada pelos advogados da OAB-RJ. Nas redes, começam a chegar intimações da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática para apurar o crime de incitação pública ao crime, demonstrando que muitos apoiadores das manifestações podem ser genericamente criminalizados. Aqui o termo “incitar a violência” não está na gramática punitiva da revista Cult por acaso: ele permite uma vaga e conveniente utilização do aparato punitivo a partir da expressão de opiniões e compartilhamento de imagens. Há sinais, portanto, de que os próximos passos podem consistir, exatamente, numa coreografia violenta entre cassetetes, bombas e criminalização da opinião. Não parece haver um recuo, no entanto, na disposição dos manifestantes, que parecem entender a estratégia de repressão. No último domingo, o Ocupa Cabral promoveu uma virada cultural na qual os participantes explicavam, sem perder o gracejo, a razão de usarem máscaras: “porque eu posso virar um Amarildo”; “porque se minha mãe souber estou frito”; “por causa da perseguição política”; “porque acho fashion”; “porque a constituição garante”; “porque é fundamental se ficcionalizar” etc.
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Parece evidente que o anonimato nas manifestações é, fundamentalmente, uma garantia efetiva e necessária contra abusivas criminalizações, sequestros relâmpagos, torturas, desaparecimentos forçados e mortes. É preciso admitir que o direito à expressão, à reunião e à manifestação está sendo exercido, nesse momento, em um lugar onde morrem, repito, dez mil cidadãos a cada dez anos por ação policial. O anonimato em um estado que tem na violência o seu lastro é, no mínimo, a brecha encontrada para que jovens da periferia possam se expressar politicamente, como parece ser o caso. Além disso, as máscaras são uma efetiva proteção contra as armas menos letais. Quem não colocou um pano no rosto quando atingido por pimenta ou lacrimogêneo? Não seria essa a principal característica da chamada revolta do vinagre? O que o poder busca é exatamente fragilizar os militantes para que fiquem ao sabor do uso excessivo dos instrumentos de repressão. Nesse sentido, a máscara é tanto autodefesa como constituição potente dos corpos que questionam os arcanos dos governos. Urge, portanto, não confundir as máscaras da resistência com as máscaras do poder. Essa importante distinção não passou ao largo de um dos pensadores mais importantes do século XX. Querendo se dirigir mais diretamente ao seu leitor, Michel Foucault publicou, em 1980, no Le Monde Diplomatique, uma entrevista intitulada O filósofo mascarado, que ficou anônima até a sua morte. Nela, Foucault traça, com seu belo e peculiar estilo, as relações entre o exercício da filosofia, a produção da verdade, a constituição ética dos sujeitos e o trabalho dos movimentos sociais. Ao contrário de Marilena Chaui, sempre afoita em lançar veredictos aos intelectuais, indagado sobre eles, Foucault respondeu: Intelectuais, nunca os encontrei. Encontrei pessoas que escrevem romances e pessoas que curam os doentes. Pessoas que estudam economia e pessoas que compõem música eletrônica. Encontrei pessoas que ensinam, pessoas que pintam e pessoas de quem não entendi se faziam alguma coisa.
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Mas nunca encontrei intelectuais. Pelo contrário, encontrei muitas pessoas que falam do intelectual. E, por escutá-los tanto, construí para mim uma ideia de que tipo de animal se trata. Não é difícil, é o culpado. Culpado um pouco de tudo: de falar, de silenciar, de não fazer nada, de meter-se em tudo
Em suma, o intelectual é a matéria-prima a julgar, a condenar, a excluir
Foucault estava preocupado, por certo, com todos os julgamentos violentos que estamos sujeitos quando mirados através do olho do poder na figura, justamente, do intelectual. “Diga-me, por acaso não ouviu falar de um certo Toni Negri? Por acaso não está na prisão exatamente enquanto intelectual?”, perguntava Foucault na mesma entrevista. A condenação efetiva de Negri por participação intelectual lhe pareceu o exemplo concreto de um uso ético do anonimato. A máscara aqui não significa fraude ou astúcia do saber, ao revés, ela é o dispositivo que permite que a produção da verdade e dos sujeitos possa ocorrer eticamente. A vida da filosofia, não está, para Foucault, na crítica sentenciosa – aquela que se presta ao ofício de julgar, definir culpados e encher as páginas dos processos criminais. Ela reside no vínculo complexo entre a constituição da verdade e de nós mesmos, entre as múltiplas possibilidades do pensamento e as várias formas de ação, entre a prática da pesquisa e a reflexão nos movimentos, entre a crítica formulada e a centelha da imaginação. A atividade filosófica não emana juízos, mas “emite sinais de vida”. Uma vida que insiste em resistir e, contra as máscaras do poder, tem a coragem de dizer a verdade. Eis a ética do filósofo mascarado.
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Va i t e r C o p a d o M u n d o n o Brasil? Introdução No Brasil, ninguém discordaria da afirmação de que a preparação para a Copa do Mundo de 2014 se desenvolve num contexto histórico relacionado a maior e mais intensa mobilização social e política desde os anos 1980. A última oportunidade em que o país assistiu a massivas mobilizações de rua refere-se ao período pós-ditadura militar, quando um ciclo de lutas em torno da redemocratização espalhou-se exigindo o retorno das liberdades públicas, a abertura de processos de participação política e a construção de um repertório de ações destinadas à redução das desigualdades sociais, raciais e culturais. No entanto, se naquele momento as manifestações ocorreram numa conjuntura que mistura direitos constitucionais explicitamente cerceados com uma grave crise econômica e social (hiperinflação e aprofundamento das desigualdades), os recentes protestos se desenrolam num aparente cenário de continuidade, tanto de um governo com considerável aprovação popular, como de comprovada redução dos desníveis sociais. Seriam, portanto, as manifestações um estrondoso raio que desaba de um céu azul? Como explicar os protestos e conflitos brasileiros sem a presença de um anterior e visível contexto de crise social e política?
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1. O urbano e a toupeira Um ano após os primeiros protestos com considerável número de pessoas, uma série de interpretações distintas sobre a gênese e os múltiplos fatores do fenômeno estão sendo ensaiadas. Boa parte dessas leituras considera como um terreno incontornável de análise a dimensão urbana presente, tanto nas demandas apresentadas, como também na forma e na composição dos movimentos que se difundiram nas populosas metrópoles brasileiras. Como uma toupeira que avança rapidamente sem ser vista, os conflitos em torno do urbano foram adquirindo centralidade e capacidade de articulação de uma partitura comum de pautas, reinvindicações, insatisfações, desejos e possíveis revoltas. A constatação de que a vida urbana se caracteriza, cada vez mais, como uma existência precária, cara, perigosa, cansativa, permeada por autoritarismos, imobilismos e constrangimentos cotidianos, impulsiona novos arranjos insurgentes dotados de ampla legitimidade e aceitação social. Não por acaso, a faísca que promove a combustão necessária para a irrupção das “jornadas de junho de 2013” foi gerada no chamado sistema de transporte urbano. Segundo o professor e ativista Pablo Ortellado, um duradouro ciclo de 10 anos de permanentes e quase imperceptíveis lutas sobre o transporte público (2003-2013), envolvendo jovens, estudantes e novas organizações, foi o responsável por ter preparado o terreno das recentes mobilizações151. Em 2013, a toupeira, rompendo a terra e expondo todos os túneis escavados, tornou-se visível na disputa em torno do passe livre universal e da situação insuportável da mobilidade urbana brasileira, adquirindo amplo apoio da população, especialmente após a repressão brutal realizada pelas polícias militares dos
151. Trata-se do livro: ORTELLADO, P. Et al. Vinte centavos: a luta contra o aumento. São Paulo: Veneta, 2013.
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estados brasileiros. O lema “Por uma vida sem catracas” passa a condensar as aspirações e desejos daqueles que assumem o urbano como terreno de luta. Sabe-se que em suas lições sobre o urbano, Henri Lefebvre recusava-se a reduzi-lo ao campo da “superestrutura”, argumentando que a sociedade urbana era o novo terreno de recomposição da produção (social), da mais valia e do “neocapitalismo”, constituindo, portanto, um campo atravessado por novas lutas de classe. Com análise semelhante, o filósofo Antônio Negri, complementa que essas lutas urbanas não dizem respeito apenas ao operário-massa da indústria, mas, principalmente, ao “operário social” que assume a metrópole como terreno de conflito e disputa: ela é a nova fábrica, campo de disputa entre o trabalho vivo e os mecanismos de expropriação. Mas qual é a classe que está em luta no Brasil?
2. Da classe C à classe que luta Durante o governo Lula e Dilma (2003-2010 e 2010-ss), frequentemente se interpretou o fenômeno de inclusão social de milhares de brasileiros como a formação de uma “classe C”152 que, segundo o economista Marcelo Neri, deseja ascender socialmente de forma segura e gradual. Neri, com seu prestígio, logrou definir uma série de estratégias econômicas para o governo, defendendo a tese de que a união de um “choque 152. A “Classe C”, ou a nova classe média, é uma categoria que foi utilizada, tanto em trabalhos acadêmicos como na mídia, para designar a faixa da população brasileira composta por famílias que têm uma renda mensal domiciliar total (somando todas as fontes) entre R$ 1.064,00 e R$ 4.561,00. Segundo dados da Secretaria de Assuntos Estratégicos do Governos Federal, entre 2004 e 2010, 32 milhões de pessoas ascenderam à categoria de classes médias. Para um debate sobre o tema, Cf. NERI, Marcelo Côrtes. A nova classe média. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, Instituto Brasileiro de Economia, Centro de Políticas Sociais, 2008. PAES DE BARROS, Ricardo & GROSNER, Diana. Vozes da Classe Média. Brasília: SAE, 2012. POCHMANN, Márcio. Nova classe média? São Paulo: Boitempo, 2012. SOUZA, Jessé, et al. Os batalhadores Brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora. Belo horizonte, Editora da UFMG., 2010
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de ordem” estatal com a abertura dos mercados para a “classe C” reservaria ao Brasil um lugar privilegiado de crescimento contínuo e virtuoso153. No entanto, as manifestações no Brasil demonstraram aos economistas que a definição de classe, como insistiu Thompson, deve ser encontrada, não por contornos sociológicos ou de renda, mas a partir da própria luta. Nesse sentido, os protestos revelaram um conjunto heterogêneo de singularidades urbanas que passam a cooperar na afirmação de um novo ciclo de direitos: estudantes universitários, moradores das favelas, ativistas da cultura, jovens da periferia, médicos, enfermeiros, advogados, midiativistas, trabalhadores precários, professores, empregados do campo dos serviços, funcionários públicos em greve etc. Para além de sua composição multitudinária, as jornadas de junho produziram também uma importante mutação política e antropológica: os pobres, imobilizados por um circuito infernal de violências perpetradas pelo estado, passaram a lutar pelos direitos políticos que lhes são historicamente negados, incluindo o próprio direito de lutar e de se expressar politicamente. A “classe C”, longe de ser uma “classe” ordeira e previsível, demonstra que possui voragem e capacidade de articulação com o tecido heterogêneo que compõe o urbano e seus conflitos. A multidão brasileira, na bela síntese de Bruno Cava e Giuseppe Cocco, aprendeu a dizer: “Queremos tudo!”154.
153. Cf. NERI, Marcelo (Coord.) UPP2 e a economia da Rocinha e do Alemão: do choque de ordem ao choque de progresso. Rio de Janeiro: FGV, CPS,2011. 154. Cf. CAVA, Bruno; COCCO; Giuseppe. Queremos tudo: as jornadas de junho e a constituição selvagem da multidão. In: CAVA, B. A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (jun-out). São Paulo: Annablume, 2013.
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3. Paz sem voz e vidas removidas No Rio de Janeiro, a realização de megaeventos, como a Copa do Mundo e Olimpíadas, tornou-se a base para a sustentação de um projeto de “pacificação” das favelas que consiste na presença permanente da Polícia Militar, acompanhada de uma política de formalização dos serviços urbanos por concessionárias privadas, que se traduziu em cobranças excessivas pelas atividades prestadas155. Além disso, constatou-se que os traficantes de drogas longe de serem expulsos, apenas redefiniram sua convivência com as forças policiais, agora representadas pelas Unidades de Polícia Pacificadoras156. Com relação à violência policial nas áreas “pacificadas”, uma forte campanha realizada no contexto das jornadas de junho tornou o “desaparecimento” de um morador da favela da Rocinha, Amarildo, em um fato incontornável. Depois de meses de investigação sob pressão das ruas, dezenas de policiais foram acusados por terem torturado e assassinado o ajudante de pedreiro. Em julho de 2013, um grande protesto é realizado, levando moradores da Rocinha até a casa do governador. Outro protesto, em razão de outra morte por violência policial, é realizado em março de 2014, demonstrando que o problema está longe de acabar157. 155. Segundos dados oficiais, o Rio de Janeiro possui, atualmente, trinta e oito unidades (UPPs), abrangendo 1,5 milhão de pessoas e cerca de 9.000 policiais militares. Apesar da construção de sua imagem como um novo tipo de policiamento, distinto da lógica de enfrentamento armado de alta letalidade, recentemente veio à tona o relevante número de pessoas desaparecidas em áreas de UPPs. Cf. http://www. upprj.com. Acesso em 05 de maio de 2014. 156. A relação entre a emergência de uma nova composição de classe e sua exploração por novas formas de capitalismo cognitivo no contexto da integração das favelas é comentada por Giuseppe Cocco em entrevista à Revista Online do IHU, edição de 10 de março de 2011. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/40363-o-complexo-do-alemao-e-as-mudancas-na-relacao-entre-capitalismo-mafioso-e-capitalismo-cognitivo-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco. Acesso em 05 de maio de 2014. 157. Cf. RIOONWATCH. Rocinha e Vidigal unem forças em protesto. Reportagem do dia 17 de julho de 2013. Disponível em: http://rioonwatch.org.br/?p=6795. Acesso em 05 de maio de 2014.
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O movimento trouxe à tona número estarrecedores: em 2010, somente em áreas de favelas com UPPs, foram 119 desaparecidos segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP). Naquele mesmo ano, de acordo com o mesmo Instituto, tivemos 885 casos de morte por ação policial registrados como “auto de resistência”, um registro unilateral no qual o policial admite que matou alguém em “legítima defesa”. Segundo o professor brasileiro Michel Misse, que agora participa de comissão criada pela Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro (OAB-RJ) sobre desaparecidos da democracia, em dez anos (2001-2011) foi possível contar nada menos que dez mil mortes registradas sob o mesmo título. Recentemente, mais jovens moradores de favelas foram mortos pela polícia. Ao contrário da realidade anterior às jornadas, quando dificilmente se via grandes mobilizações em torno dessas mortes, a “mutação antropológica” operou para tornar cada morte uma nova fonte de protestos, barricadas, objetos incendiados e bloqueios nas ruas. A resposta do governo, tão falaciosa quanto previsível, tem sido associar essas justas lutas aos interesses dos traficantes de drogas, criando uma suposta guerra entre a pacificação e a criminalidade. Por outro lado, o autoritarismo nas áreas pobres já estava, desde 2009, evidenciado na nova política de remoção de favelas que atingiu milhares de moradores no Rio de Janeiro e no Brasil, tendo, por diversas vezes, como justificativa a realização de obras para a Copa do Mundo e Olimpíadas. Segundo dados da Articulação Nacional de Comitês Populares da Copa, cerca de 170 mil pessoas podem ser atingidas por despejos forçados motivados por megaeventos no Brasil, 22 mil apenas na cidade do Rio de Janeiro158. Durante as fases mais intensas das jornadas de junho, o próprio Prefeito do Rio admitiu, perante a Anistia Internacional, que faltou diálo158. Cf. ARTICULAÇAO NACIONAL DE COMITES POPULARES DA COPA. Megaeventos e violação de direitos humanos. Dossiê. Junho de 2013.Disponível em: http://www.portalpopulardacopa. org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=198:dossi%C3%AA-nacional-de-viola%C3%A7%C3%B5es-de-direitos-humanos. Acesso em 05 de maio de 2014.
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go nos despejos das favelas, reconhecendo, inclusive, como apontavam os movimentos sociais, a utilização de “métodos nazistas” de marcação de casas159. Infelizmente, depois de um breve período de “suspensão” das políticas de remoção, impulsionado por uma relação estreita com o mercado imobiliário, o governo municipal do Rio de Janeiro retomou as ameaças de despejo, atingindo, em particular, a comunidade Vila Autódromo, situada ao lado do Parque Olímpico. O processo de violação de direitos que se torna visível nos processos de pacificação e remoção de favelas no Rio revela, na verdade, o lado mais dramático de uma conjuntura que, em nome de grandes projetos e empreendimentos, foi produzindo uma dinâmica de consenso articulada “de cima para baixo” pelos governos e pelo mercado. Boa parte dos urbanistas brasileiros concorda que, paulatinamente, todo o repertório de políticas urbanas participativas, desenhadas no ciclo de lutas dos anos 1980, foi sendo subtraído em prol dos novos arranjos público-privados160. No coração das disputas atuais, está, sem dúvida, o problema de como construir novas formas de democracia urbana e de direito à cidade. Isso significa que o tema da redemocratização continua no centro da agenda brasileira, agora com novos desafios.
4. O movimento #nãovaitercopa “Não vai ter Copa!”. O grito que se tornou o verdadeiro slogan das ruas, sintetiza a posição do movimento de junho com relação aos megaeventos. Longe de ser uma ameaça à realização efetiva dos Jogos, ele condensa o amplo repertório de demandas e revoltas que se desenvolveram no 159. JORNAL O DIA. Paes admite a anistia remoções realizadas com pouco diálogo. Reportagem do dia 19 de fevereiro de 2014. Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-02-19/paes-admite-a-anistia-remocoes-realizadas-com-pouco-dialogo.html. Acesso em 05 de maio de 2014. 160. Cf. MARICATO, Ermínia. Os impasses da Política Urbana no Brasil. São Paulo:Vozes, 2011
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atual ciclo de lutas e o articula a um movimento real. O slogan é uma afirmação ativa da recusa ao padrão-FIFA e de todos seus apoiadores e, ao mesmo tempo, a expressão das bases materiais do movimento de recusa e de busca de constituição de urbano constituído de forma radicalmente democrática. O #nãovaitercopa é um movimento tipicamente urbano porque compõe as diferentes singularidades insurgentes que passaram a cooperar e que transformam definitivamente o sentido da Copa do Mundo. Ele é a multiplicação de assembleias de rua, de comissões de moradores de favelas, de comitês populares, de comissões de atingidos, de grupos de advogados ativistas e de movimentos que questionam as condições de nossas vidas urbanas: a moradia, o transporte, a polícia, a proteção dos bens comuns, a luta contra a privatização e o novo ciclo de lutas por liberdade e igualdade. Se os acordos político-empresariais em torno da realização dos megaeventos aceleram o fechamento das pequenas brechas democráticas constituídas durante o Governo Lula, o movimento #nãovaitercopa é a base social e multitudinária para pensarmos uma nova mobilização em torno do aprofundamento democrático brasileiro. Nesse sentido, as jornadas de junho impuseram uma agenda imprescindível e bem mais desafiante que a simples realização da Copa do Mundo. Desse ponto de vista, já não houve Copa, mas ainda há muito o que fazer.
Conclusão Os dilemas do ciclo de 1968 não passaram despercebidos pelo cinema durante a virada para a década de 1980. Enquanto Martin Scorsese gravava o “último concerto de Rock”161, uma despedida do grupo The Band
161. SCORSESE Martin. The last waltz. Produção: MGM. Documentário. 117 min. EUA. Lançamento: 23 de julho de 1978.
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que significava, na verdade, o fim de toda uma era, Robert Bresson filmava Le Diable probablement (1977)162. O filme de Bresson pode ser visto como uma síntese dos desacertos que rondavam, ao mesmo tempo, a geração de 1968, que buscava uma nova militância e a renovação da crítica social, e a geração quase adolescente que emergia recusando todas as formas de vida existentes. É o protagonista Charles que, recém-chegado à juventude, encarna o desnível irredutível da época, cobrindo-o, ora com uma profunda e pesada irritação, ora com um ar desinteressado e frio. É no espaço desse desnível que ele recusa, sem muita reflexão, tanto a militância bem-intencionada dos novos ecologistas (representados pela busca da geração de 1968), como o niilismo dos ativistas que, sem qualquer grande missão, se ocupavam de pequenas provocações no cotidiano a partir do desejo genérico de destruir tudo. O desconforto do personagem passa também por todo um campo afetivo e pessoal, um desajuste que vai dos amigos aos possíveis relacionamentos com jovens mulheres devotas e acolhedoras. Desfrutando de alguns espaços de liberdade abertos pelo cotidiano da cidade de Paris, e de uma amizade sem afetos com um jovem habituado a viver na rua, Charles acaba sendo preso pela polícia e, através da recomendação dos amigos, se vê diante de uma inquirição conduzida por um psiquiatra crédulo no saber médico. Forçado a falar e dizer o que pensa, depois de uma quase muda participação durante o filme (o personagem cercado por aquele ar gélido e áspero, cuja criação era a especialidade de Bresson), o jovem revela que odeia mundo, odeia tanto a vida como a morte, odeia as pessoas e tudo que o cerca porque sabia exatamente que a sua existência estava para além das alternativas que o mundo oferecia.
162. BRESSON, Robert. Le diable probablement. Sunchild Productions. 95 min. França. Lançamento: 15 de junho de 1977.
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É essa mesma característica que, como vimos, Deleuze e Guattari encontram em Rusty James, de Francis Ford Coppola, agora não mais em Paris, mas na cidade desindustrializada de Tulsa, no “cinturão enferrujado” dos Estados Unidos. O Filme começa com o retorno do motocycle’s boy, irmão de James e último representante da era de ouro das gangues, um tipo de sociabilidade ligada à rotina de uma sociedade fordista e padronizada. O protagonista retorna à cidade depois de uma viagem para a Califórnia, onde encontrou sua mãe que havia fugido de casa, despertando alvoroço entre os jovens e a esperança de retorno dos tempos dourados. Contudo, cheio de menções a relógios que vão perdendo a capacidade de organizar e medir o tempo, o filme deixa claro que não há retorno possível. Paradoxalmente, é o pai alcoolizado e desempregado que possui a visão lúcida do que estava acontecendo, captando com perfeita clareza o desnível que separava aqueles jovens, inteligentes e capazes de tudo, das possibilidades que o mundo lhes oferecia. Espremido entre o eixo Califórnia, vetor de reorganização do capitalismo em moldes criativos e cognitivos, e os subúrbios decadentes e abandonados de Tulsa, coube ao antigo líder de gangue (que Coppola ilustra, não por acaso, pelo charme de um poeta beatnik, e não pelo clichê da juventude transviada), exortar o irmão a sair dali e ir em direção ao mar. Nem Califórnia, nem o cinturão da ferrugem, mas simplesmente o longo caminho até o mar (curiosamente Tulsa é uma das cidades americanas mais afastadas da costa, mas essa distância também é qualitativa). Coppola articula a tradição americana de salto para o oceano, tão bem representada pela literatura novecentista de Herman Melville, com o clássico on the road da geração dos anos 50, para indicar que uma nova transposição deveria ser efetuada. Motocicleta e mar, estrada e oceano, dois artifícios oferecidos aos “filhos de 1968” por antigos heróis na iminência de serem queimados durante o processo. É no prolongamento entre as linhas que se iniciam nas estradas (sem finalidade e direção prévia) e o espaço não figurado do oceano que re-
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side a possibilidade de escapar do fim trágico que, muitas vezes, os diretores de cinema destinaram aos personagens-limiares de um tempo que se desfaz. Como lembrou Deleuze em comentário direcionado a Antonio Negri163, quando uma nova percepção do que é intolerável em nossa sociedade encontra, de forma violenta, os nossos olhos, a questão que emerge não é apenas o que fazer (problema colocado diante de coordenadas já estabelecidas e visibilidades já formadas), mas como reinventar as condições da própria ação. Daí a profunda irritação, o niilismo ou o desejo de abolição que aparecem nos personagens que já possuem essa visão, mas não encontram novas condições de agir e de viver. Os herdeiros anômalos de Junho de 2013 enfrentam dilemas muito parecidos com os enfrentados por esses personagens. Eles não serão encontrados no campo do antigo ativismo, com sua oscilação entre uma radicalidade mordaz, mas impotente, e um humanismo crítico, mas religiosamente cúmplice dos velhos algozes. E também não serão encontrados no campo simétrico, o dos novos ativistas desejosos dos mais grosseiros arcaísmos, dos piores tradicionalismos e de todo o tipo de atalho que possa colocar o mundo em ordem novamente. O problema desses dois ativismos (alguns diriam, o primeiro de esquerda, o segundo de direita) é que eles preenchem o desnível existente entre a nova percepção conquistada e a necessária criação de combinações que lhe são corretadas, com a afirmação ainda mais forte de signos que deixaram de funcionar, encontrando-se juntos na mesma utopia de conservação. Respondem à urgência de criação com as velhas tábuas de salvação, revigoradas na forma de guerras culturais, cujo engajamento se dá através do mesmo objetivo de livrar o mundo de uma grande ameaça. A esse engajamento correspondem as trincheiras restauradas e adequadas aos modos de existência que pensam possuir tudo de antemão, bastando aplicar na realidade as suas fórmulas redentoras.
163. DELEUZE, G. “Gilles Deleuze entrevista a Toni Negri”. In: Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004.
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Lembrando o estudo de Lapoujade sobre Souriau, citado no início deste livro, a essas existências máximas, poderíamos contrapor existências mínimas, aquelas que, cercadas de uma nuvem de virtualidades, de esboços inacabados e de caminhos sem objetivo, insistem em ganhar consistência, adquirir concretude e capacidade de ação. Elas compõem o que chamamos de terreno flutuante de Junho de 2013, ora encontrando os meios para uma vibrante instauração (os ciclos de 2013, 2015 e 2018), ora difundindo-se em possibilidades abortadas ou modos de afirmação mais singelos e diluídos nas rotinas sociais, e que não deixam de produzir uma mobilização permanente (uma cartografia desses gestos seria um trabalho instigante para os próximos anos). Como nos personagens de Bresson e Coppola, essas existências são suficientemente inteligentes e plenamente capazes para saber que os velhos signos não correspondem à nova percepção que foi conquistada. Por isso, lutam, não para realizar um grande projeto cuja imagem já está dada, mas para fazer a própria imagem, efetuar o processo, afirmar uma nova sensibilidade, encontrar as combinações concretas e correlatas às novas formas de vida, não as deixando sucumbir em metas e figuras já conformadas previamente. Este seria o significado de pensar a realidade de um Junho de 2013 sem imagem: um processo múltiplo em busca de efetuação, e não a realização de um futuro já imaginado (o que nos conduziria, paradoxalmente, a decretar o fim de Junho ou a sua “cooptação”). A nossa proximidade com algumas ferramentas que precisarão ser desenvolvidas com mais calma nos futuros trabalhos – círculos descentrados, dobras ou gestos de instauração, malhagem, trabalho das linhas, dramatização da repetição etc. – busca dar conta dessa insistência de Junho de 2013, que parece não passar, nem pela irrupção de um ato ex nihilo, nem pela realização de um projeto já concebido anteriormente. Mesmo do ponto de vista teórico, tornaram-se claros os limites de uma análise centrada no conceito de “poder constituinte absoluto”, quando esta vem acompanhada de uma imagem moral do que seriam
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as lutas, os movimentos, os sujeitos e a produção de antagonismo. É todo um problema de sensibilidade: o que aparece como absoluto não é a potência de criação (o constituinte), mas as representações já moldadas no campo do sensível que se transformam num fundamento prévio para a avaliação do desdobramento do acontecimento. Daí que, para funcionar, o conceito de poder constituinte deveria ser remetido, não apenas a um procedimento ligado à práxis, mas a própria distribuição dos afetos, percepções e sensibilidades que, na política, definem as condições de qualquer ação possível. Nesse sentido, se existe um movimento, mesmo que implícito e não tão claramente esclarecido, que percorre este livro, é o do deslocamento para além de um pensamento que buscava encontrar, a partir dessas ferramentas teóricas e no seio de um conjunto de alternativas já dadas como possíveis, a questão clássica sobre o que fazer. Ou seja: ansiava a tão somente realizar o possível que já brilhava diante dos nossos olhos, com suas luzes já esculpidas. As intervenções deste período são carregadas de imperativos e urgências que, hoje, é preciso admitir, soam defasadas. Assim, Junho de 2013 acabou servindo para arrastar o nosso olhar na direção, não da conclusão de que há um possível a ser realizado, mas de que é necessário criar o próprio possível a partir das potencialidades existentes e inscritas no real. Poderíamos também nomear essa mudança como uma passagem do voluntário para o involuntário na política, seguindo uma indicação preciosa de François Zourabichvili164. Esse deslocamento está longe de ser somente teórico, ele corresponde à necessidade de abandonar, não apenas ferramentas teóricas que antes nos pareciam úteis, e que agora não funcionam mais, como uma perspectiva de ação política que já estava desenhada em contornos pré-fabricados. A crítica ao lulismo e à atuação das esquerdas no pós-Junho nos foi fundamental porque permitiu,
164. Cf. ZOURABICHVILI, F. “Deleuze e o possível: sobre o involuntário na política” (2000).
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justamente, uma reflexão que é acompanhada de um conjunto de gestos práticos, éticos, ligados à vida. A partir dos epônimos de 2013, 2015 e 2018, mesmo que apresentados de forma invertida para alívio do leitor, podemos pensar nas voltas e reviravoltas típicas de uma travessia em andamento. Longe de ser algo que concerne apenas a este autor, ela parece atravessar de formas diferentes, e em sentido muito diversos, toda uma coletividade que perdeu os antigos fundamentos de crença e de ação. A quebra do consenso político, social e cultural operada por Junho de 2013, um dos temas centrais dos textos daquele ano, desencadeou uma vertigem no pensamento e na ação cujos desdobramentos, àquela época, seriam impossíveis de serem previstos. Mas, mesmo diante dos novos perigos e paralisias da atualidade, e pensando na defasagem das nossas antigas certezas, ainda é possível encontrar o frescor do primeiro diagnóstico: “a situação está melhor do que antes”.
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Este livro foi composto em Sabon Std pela Editora Autografia e impresso em papel pólen soft 80 g/m².
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