Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador [2 ed.]

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Retrato do Colonizado Precedido Pelo Retrato do Colonizador

Coleção O MUNDO, HOJE volume 20

Ficha catalográfica (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)

M487r

Memmi, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do coloni­ zador; tradução de Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. 127 p. (O Mundo, hoje, v.20) Do original em francês: Portrait du colonisé précédé du portrait du colonisateur 1. Colônias 2. Imperialismo I. Título II. Série

77-0050

CDD - 325.3 CDU - 325.46

ALBERT MEMMI

Retrato do Colonizado Precedido Pelo Retrato do Colonizador

Paz e Terra

© Copyright by Editions Bucket/Chastel, Corrêa 1957

Título do original em francês: Portrait du Colonise précedê du Portrait du Colonisateur

Capa: Mário Roberto Corrêa da Silva

Direitos desta tradução adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA Rua André Cavalcanti, 86 Fátima, Rio de Janeiro, RJ

1977

Impresso no Brasil Printed in Brazil

Índice I*l 1-fâcio — 1 I

R etrato

do

C olonizador

1 — Existe o Colonial? — 21

2 -- O Colonizador que se recusa — 33 3 — O Colonizador que se Aceita — 51 II

R etrato

do

C olonizado

1 • Retrato Mítico do Colonizado — 77 2 — Situações do Colonizado — 85 3 As Duas Respostas do Colonizado — 105 | um lusão — 121

Prefácio

O

P ortrait du Colonisé, Précédé du Portrait du Colonisateur, cuja tradução brasileira ora entregamos ao nosso pú­ blico, não é um livro recente. Editado há alguns anos, não nos parece, no entanto, ter perdido a atualidade. Tornou-se ao contrário, um livro clássico sobre o colonialismo, tendo sido objeto, segundo estamos informados, de seminários e debates em universidades européias e norte-americanas. A esse livro de Albert Memmi, Jean-Paul Sartre dedi­ cou um artigo, posteriormente incluído no volume VII de Situations, no qual se acham reunidos vários trabalhos sobre colonialismo e neocolonialismo. No comentário intitulado Une Victoire, escrito a propósito do livro de Henri Alleg, La Question, Sartre se refere ainda uma vez a Memmi, cujo pensamento, de certo modo, procura resumir. Acreditamos que tal patrocínio seja suficiente para nos dar a medida da

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importância deste livro “sóbrio e claro” que, segundo o au­ tor de L Ê tre et le Néant, se inclui entre as "geometrias apaixonadas” e "cuja calma objetividade não passa da có­ lera e do sofrimento superados”.1 Ao reler, recentemente, o livro de Memmi, com o pro­ pósito de sugerir sua tradução para a nossa língua, o que nos surpreendeu foi precisamente sua atualidade, embora estejamos vivendo a fase histórica de liquidação, de "atroz agonia" do colonialismo, ao menos em sua forma tradicional, tal como se configurou após a guerra de 1870, e o partage ' du monde entre as grandes potências européias. Sim, por­ que o fim desse colonialismo, segredo da prosperidade e da euforia metropolitana, pano de fundo da joie de vivre no velho continente durante a belle époque, tão bem evocada por Arnold Toynbee em Civilization on Trial, e cuja essên­ cia, feita de leveza, de graça, de elegância, mas de incons­ ciência também, se acha expressa exemplarmente na pintura de Toulouse Lautrec e na música de Offenbach, o fim desse colonialismo, não significa, necessariamente, o fim do colo­ nialismo. Um lider negro, uma das figuras mais representativas dessa nova geração de africanos, forjados nas lutas pela independência das antigas colônias, Kwame N'Krumah, aca­ ba de publicar um livro cujo título, inspirado na obra clás­ sica de Lênin, é precisamente O Neocolonialismo — Último Estágio do Imperialismo. Há, pois, um novo colonialismo que, embora seja novo, nem por isso deixa de ser substan­ tivamente o mesmo. Ora, se o colonialismo perdura, embora "novo”, quer dizer, assumindo novas formas, novas moda­ lidades, como poderia perder a atualidade e, portanto, o in­ teresse, um livro que nos fala do colonialismo, isto é, de uma realidade, de uma situação humana, de um fenômeno histórico que, longe ter desaparecido, permanece, sofrendo apenas superficiais metamorfoses? Apesar de conquistada a independência política, retira­ das as tropas estrangeiras de ocupação, nacionalizado o apa­ relho político e administrativo, os serviços públicos, os ban­ cos, as empresas agrícolas e as poucas indústrias eventual­ mente existentes, terá a antiga colônia conquistado realmente 1 Jean-Paul Sartre, Situations, vol. V, pág. 50.

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a independência e expulso realmente a potência dominante? Não, porque na luta contra o colonizador, ao recuperar-se e ao afirmar-se a si mesmo, o colonizado, como escreve Memmi, "continua a definir-se em relação a ele. Em plena revolta, o colonizado continua a pensar, sentir e viver con­ tra o colonizador e a colonização e, portanto, em relação a ambos”.- A descolonização é um processo lento, difícil e doloroso, comparável à convalescença de uma longa e grave enfermidade. Não nos devemos iludir, aliás, com a imagem conven­ cional e tradicional do colonialismo. Consistindo essencial­ mente, como veremos, na dominação e na exploração de grupos .humanos, de classes sociais, ou de povos uns pelos outros, o colonialismo não só perdura, como acabamos de salientar, nas antigas colônias, hoje convertidas em nações politicamente soberanas, mas permanece também, na forma de segregação racial, em países considerados democráticos, como os Estados Unidos da América do Norte (para não falar da África do Sul), ou recrudesce, pela marginalização do povo do processo eleitoral e pela proscrição das lideran­ ças populares, nos paises da América Latina em que se ins­ tauraram ditaduras militares, por exemplo. A situação dos negros nos Estados Unidos e a dos líderes de esquerda, ba­ nidos pelas ditaduras latino-americanas, não será, em mui­ tos aspectos, comparável à situação dos colonizados, nas antigas colônias? A insurreição, a revolta dos povos submetidos — pro­ tetorados, domínios, colônias, propriamente ditas, e povos hoje chamados subdesenvolvidos, característica do tempo em que vivemos — provoca o surgimento de novas formas de imperialismo, menos ostensivas, menos visíveis, mas nem por isso, menos eficazes. O controle da economia, dos meios de comunicação, da publicidade, do dispositivo militar inter­ no, pode fazer-se sem lesão aparente da soberania nacional. A criação dos mitos, dos esteriótipos, das neuroses e obses­ sões coletivas, como o anticomunismo nas áreas dominadas pelos Estados Unidos, por exemplo, completa o processo de ocupação, convertendo o país suposta ou aparentemente Albert Memmi, Portrait dit Colonisé, Précédé du Portrait dn Colonisateur, pág. 180.'

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independente em satélite econômico e ideológico do centro dominante. Mereceria, aliás, um estudo especial o que poderíamos chamar de colonialismo tecnológico, quer dizer, a dependên­ cia, do ponto de vista do know how e da formação de espe­ cialistas, em que se encontram os países atrasados em rela­ ção às nações altamente desenvolvidas. Já se assinalou que o desenvolvimento se processa em progressão geométrica, tanto mais se desenvolvendo um país quanto mais desenvol­ vido fôr. E também já se chamou a atenção para o fato de que o desequilíbrio ou o contraste entre a riqueza dos paí­ ses ricos e desenvolvidos e a pobreza dos países atrasados, longe de reduzir-se com o tempo, tem sido, ao contrário, agravado, em virtude da rapidez com que se verifica o pro­ gresso tecnológico. Se desenvolvimento é industrialização, o país que não dispuser de uma tecnologia própria ficará na completa dependência dos países tecnicamente adiantados. Não é, porém, dessa nova forma ou modalidade de co­ lonialismo que se ocupa o livro de Albert Memmi. Trata-se de um ensaio sobre o colonialismo clássico, digamos assim, em sua forma extrema, quase caricatural. Não é, no entan­ to, o trabalho de um turista curioso, de um economista ou sociólogo remunerado pelas Nações Unidas, que houvesse perambulado pela colônia carregando sua '‘objetividade" de encomenda, e, em seguida, redigido um informe ou relató­ rio, enriquecendo assim seu curriculum vitae. O livro de Albert Memmi, apesar de sua clareza, de sua simplicidade, é também um testemunho humano, pois o dra­ ma do colonialismo ele não o viveu de fora, na qualidade de mero espectador, mas o viveu na própria carne, na con­ tradição e no conflito que dilaceram a consciência do colo­ nizado que recusa a colonização. A experiência biográfica, interpretada e iluminada por uma ideologia revolucionária, converte a peripécia individual em instrumento de pesquisa e de conhecimento sociológico, pois, se “as dilacerações da alma” são “puras interiorizações dos conflitos sociais” — como diz Sartre — “ é possível esclarecer os outros falando de si mesmo”.'1 *

Jean-Paul Sartre, Ob. c it., pág. 50.

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Não há citações de autores, ou de "autoridades”, no livro de Memmi, nem tampouco números ou estatísticas. Deixará, por isso, de refletir a realidade, de nos revelar o que há de essencial nesse mecanismo, nessa engrenagem inumana, impiedosa, implacável, que, depois de desfigurar e aviltar o colonizado e corromper p colonizador, desemboca, inevitavelmente, no terrorismo e na tortura? Mas, não nos antecipemos; procuremos reconstituir, -mbora em suas linhas gerais, a estrutura e a lógica, ou me­ lhor, a dialética do processo colonial. Para apreender e interpretar adequadamente o colonia­ lismo, que categorias, que instrumentos mentais deveremos utilizar? A nosso ver, a apreensão do que há de essencial nesse fenômeno, nesse processo histórico, requer o emprego das categorias de totalidade, contradição, alienação e dialética. O primeiro pressuposto, portanto, que devemos admitir, é o de que a situação colonial é um fenômeno social global. Que é uma colônia, a Tunísia ou a Argélia, por exemplo, até a vitória dos movimentos nacionais de libertação? Um território, com determinada estrutura de recursos naturais, certa flora e certa fauna, um equilíbrio ecológico, e uma po­ pulação com crenças religiosas, tradições, usos e costumes peculiares, instituições politicas e sociais, formas próprias de trabalho, etc. Nesse contexto, que é uma totalidade orgâni­ ca, o conquistador irrompe subitamente, ou ao cabo de uma luta em que sai vitorioso. Pode ocorrer, como se verificou nos Estados Unidos da América do Norte, o massacre, o ex­ termínio total das populações autóctones, que se rebelam contra a captura e a domesticação. Em outros casos, como o das colônias européias do Norte da África, ou do Continen­ te, de modo geral, a desproporção entre o número de colo­ nizadores e o de colonizados é de tal ordem que impede o extermínio dos segundos pelos primeiros. E não só o núme­ ro, mas o estágio de desenvolvimento cultural a que chega­ ram esses povos. Invadido o território, a ocupação se estabelece em ter­ mos militares, com a presença efetiva de forças armadas que representam o poderio incontrastavel da metrópole. O dispo­ sitivo militar sustenta a máquina de domínio e de exploração, a estrutura política e administrativa que coloca os recursos 5

naturais e a mão-de-obra colonial a serviço da nação colonizadora. Embora representem insignificante minoria em re­ lação à população do país conquistado, os colonizadores trazem com eles a superioridade científica e tecnológica, eco­ nômica e cultural, que lhes proporciona as condições de do­ mínio e controle do país submetido. Montada a máquina, ou o "sistema” colonial, delineiamse as figuras que serão os principais protagonistas dessa peripécia histórica, o colonizador e o colonizado. Em fun­ ção desses dois pólos, passa então a estruturar-se a vida do país colonizado. Ora, que têm em comum uns e outros? Uns são católicos, outros muçulmanos; uns são árabes, outros franceses; uns são portadores de uma cultura mágica, ainda no estágio feudal, outros de uma civilização científica, indus­ trial tecnológica, no estágio do capitalismo expansionista. No que se refere ao estilo arquitetónico das casas, monumentos públicos e templos religiosos, ao mobiliário, à indumentária, à alimentação, aos usos e costumes, e pormenores da vida quotidiana, nada há em comum. São dois mundos inteira­ mente diversos, totalmente heterogêneos e irredutíveis ao outro. Deverão, no entanto, esses dois mundos, embora hete­ rogêneos e irredutíveis, conviver um com o outro, "coabi­ tar” -— como diz Memmi. Desfeita a imagem convencional do colonialista «— pioneiro generoso, humanista e filantro­ po, missionário da cultura e do progresso, evangelizador dos incrédulos, etc. — e desmascarado o sentido econômico e predatório da empresa colonial, em que fêrmos se poderá estabelecer essa convivência? Ao tornar-se colônia, digamos desde logo, o país se converte em uma nova totalidade que, como vimos, passa a articular-se em função dos dois pólos que se implicam e, ao mesmo tempo, se opõem e excluem reciprocamente, o colo­ nizador e o colonizado. Por que se opõem e se excluem? Apenas porque representam religiões, raças, línguas, cultu­ ras e civilizações diferentes, em distintos estágios de desen­ volvimento? Não, opõem-se e excluem-se reciprocamente porque representam interesses antagônicos e irredutíveis. Quais são os interesses do colonizador? Explorar os recursos naturais do país e a mão-de-obra nativa pelo mais baixo preço. Manter a colônia na situação de área produ6

tora de matérias-primas e generos tropicais e importadora de manufaturas, isto é, dos produtos fabricados na metró­ pole. Quais são os interesses do colonizado? Converter a colônia em um país independente, desenvolvê-lo economica­ mente, incorporar a ciência e a tecnologia modernas, elevar a capacidade aquisitiva e o nível de vida de suas popula­ ções, e preservar, tanto quanto possível, a sua fisionomia nacional. Ora, esses interesses são totalmente incompatíveis uns com os outros. Na primeira fase da colonização, as popu­ lações autóctones, sem condições de revolta, submetem-se ao colonizador, acumpliciam-se e colaboram com a empresa de domínio e exploração. Para assegurar o funcionamento da máquina, porém, não basta ao colonizador a superiorida­ de militar e tecnológica, deve, além disso, legitimar ou ten­ tar legitimar o empreendimento, aos olhos do colonizado e aos seus próprios olhos. Deve, pois, fabricar a ideologia do colonialismo, tentativa de justificação, a posteriori, em ter­ mos racionais, do dominio e da espoliação a que submete o povo conquistado. E, qual poderá ser o conteúdo dessa ideo­ logia? Só poderá ser uma superioridade do colonizador, que implica obviamente, como contrapartida, a inferioridade do colonizado. "Admitindo essa ideologia — escreve Memmi — as classes dominadas (ou os povos) confirmam, de certo modo, o papel que lhes foi atribuído. O que explica, tam­ bém, a relativa estabilidade das sociedades, nas quais a opressão é, bem ou mal, tolerada pelos próprios oprimidos”.4 Completa-se ou arremata-se, assim, com a fabricação da ideologia, a nova totalidade em que se converte o país colonial. Nada mais poderá escapar à engrenagem que se monta, articulando e configurando a vida econômica, social, política e cultural da colônia. O que não se insere no esque­ ma dessas relações, permanece na qualidade de resíduo, cos­ tume ou objeto exótico, curiosidade local, tolerada por ser irrelevante ou desprezível. As redes do dispositivo de domi­ nação se estendem por todo o país, englobando em suas ma­ lhas todas as manifestações e formas da vida colonial. Com isso queremos dizer que tudo é colonial na colônia, que tudo se estrutura e define em função da empresa colonizadora. 4 Albert Memmi, Ob. cit., pág. 116.

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Inútil exemplificar. Trabalho, «dministração, burocracia, serviços públicos, educação, vida cultural, etc., tudo está afetado pelos interesses da metrópole e disposto de acordo com esses interesses. A situação colonial é, pois, como dissemos, um fenôme­ no social global, uma totalidade. Essa totalidade, no entan­ to, é constituída por interesses antagônicos e inconciliáveis, contraditórios, portanto. Em um primeiro momento, essa contradição permanece latente, mascarada pela aparente e provisória acomodação do colonizado. Convencido da supe­ rioridade do colonizador e por ele fascinado, o colonizado, além de submeter-se, faz do colonizador seu modelo, pro­ cura imitá-lo, coincidir, identificar-se com ele, deixar-se por ele assimilar. É o momento que poderíamos chamar da alie­ nação. Ocupado, invadido, dominado, sem condições para reagir, nem ideológicas nem materiais, não pode evitar que o colonizador o mistifique, impondo-lhe a imagem de si mesmo que corresponde aos interesses da colonização e a justifica. O colonizado se perde no “outro”, se aliena. Ten­ tará, pois, de acordo com a lógica desse movimento, levar a alienação às últimas conseqüências, tornando-se ele pró­ prio um colonialista, casando-se entre os representantes da metrópole, por exemplo. Acontece que essa 'tentativa malogra, por ser contradi­ tória com a própria estrutura da situação colonial. Se todos os colonizados se tornassem colonizadores, quem coloniza­ riam? Se o colonizador implica necessariamente, como termo correlato, o colonizado, o projeto que acabamos de conside­ rar é contraditório e, portanto, absurdo. Mas, admitamos que alguns colonizados conseguissem deixar-se assimilar pe­ los colonizadores. Em que o êxito aparente de algumas ten­ tativas de assimilação alteraria a situação como totalidade? Ora, mesmo essas tentativas individuais nunca são plena­ mente bem sucedidas, pela simples razão de que o coloniza­ dor é francês e o colonizado árabe, e o árabe jamais poderá deixar de ser o que é, quer dizer árabe, para tornar-se o que não é, quer dizer, francês. Os "convertidos" ou “assimila­ dos” sofrem um processo que se poderia chamar de pseudomorfose, isto é, de aquisição de uma falsa nova forma que não exprime nem representa adequadamente o antigo con­ teúdo. 8

Além disso, ao fabricar a ideologia do colonialismo, ao tentar estabelecer a tese da sua superioridade, que é pura­ mente circunstancial e histórica, o colonizador desemboca inevitavelmente no racismo. Ora, em que consiste o racis­ mo? Em converter em “natureza” o que é apenas "cultu­ ral”, ou, com outras palavras, em converter o fato social em objeto metafísico, em "essência” intemporal. Para justificar, para legitimar o domínio e a espoliação, o colonizador pre­ cisa estabelecer que o colonizado é por “natureza”, ou por “essência”, incapaz, preguiçoso, indolente, ingrato, desleal, desonesto, em suma, inferior. Incapaz, por exemplo, de educar-se, de assimilar a ciência e a tecnologia modernas, bem como de exercer a democracia, de governar-se a si mesmo. “Não é uma coincidência — escreve Memmi —, o racismo resume e simboliza a relação fundamental que une colonia­ lista e colonizado”.5 Ora, o racismo representa um obstáculo intransponível à assimilação. Como podem os negros norte-americanos ser assimilados pelos brancos, ou os judeus pelos alemães dolicocéfalos e nazistas, se os norte-americanos brancos são racistas e consideram os negros uma raça inferior, sub-humana, e os alemães nazistas julgam os judeus uma raça tam­ bém inferior e, portanto, indigna de com êles misturar-se? Estabelecida essa insanável discriminação, em termos de “natureza” ou de “essência”, o colonialismo passa a ter um fundamento metafísico que o situa além do tempo, fora da história, tornando-o imutável e definitivo. Apesar do clima e da repugnância que lhe inspiram os costumes dos colonizados, o colonizador projeta sua exis­ tência na colônia em um tempo sem fim, pois nem por hipó­ tese admite que um dia o colonizado possa sacudir o jugo a que se acha submetido. O colonizador, enquanto tal, é, pois, necessariamente conservador, quer dizer, não pode deixar de querer a conservação do estatuto colonial de que é único beneficiário. Além de ser conservador, e até mesmo reacionário, o colonizador, que pode ter sido democrata ou socialista na metrópole, está sempre exposto à tentação fas­ cista, pois -— como observa Memmi — para que "possa 6 Idem, pág. 94.

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subsistir como colonizador, é necessário que a metrópole permaneça eternamente uma metrópole”.6 A conservação ou a indefinida manutenção da colônia, porém, supõe que suas contradições sejam mantidas em es­ tado latente ou virtual, com a aceitação do colonialismo, e de tudo o que implica, por parte dos colonizados. Acontece que essa totalidade parcial, esse “mundo”, que é a colônia, além de incluir as contradições internas que a caracterizam, situa-se ou insere-se em uma totalidade maior, que é o mun­ do, por sua vez também contraditório. A observação é im­ portante, embora nada nos revele de novo, porque essas contradições mundiais, como veremos, afetando a colônia, poderão criar as condições que permitam a eclosão das suas contradições internas. Com isso, queremos dizer que a totalidade, em qUe a situação colonial consiste, além de contraditória, é um todo em movimento, cujo processo, por isso mesmo que é contra­ ditório, só pode ser apreendido e compreendido dialeticamente. Se a assimilação é impossível, tanto pela incorporação dos colonizados ao grupo dos colonizadores, quanto pela diluição destes na população autóctone, o estatuto colonial, no que se refere à discriminação de raças, se manterá into­ cado, o mesmo desde que a colonização se estabeléceu. O colonizador, por sua vez, também não pode assumir na colônia uma posição de esquerda, mesmo que tenha sido ou seja de esquerda na metrópole. Ao adotar semelhante posição, deixa sem dúvida dé coincidir com a de seus com­ patriotas, rompe com o grupo colonialista. Passará, por isso, a coincidir com a massa dos colonizados? "É impossível — escreve Memmi .— que faça coincidir seu destino com o do colonizado. Que é, politicamente? De quem é a expressão, senão de si mesmo, isto é, de uma força desprezível no con­ fronto?”7 Instalado em insanável ambigüidade, perde a confiança dos colonizadores e deixa de representá-los, sem com isso adquirir condições que lhe permitam conquistar a confiança do colonizado. Será, para os colonizadores, um trânsfuga, e, para os colonizados, na melhor das hipóteses, 6 Idem, pág. 85. 7 Idem, pág. 58.

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um suspeito, que, por isso mesmo, jamais poderá ser um dos seus líderes. Que pretende, afinal? Ser colonizador e negar, ao mesmo tempo, a colonização? Como se vê, a posição é contraditória e insustentável. Perguntamos, em parágrafo anterior, em que termos se poderia estabelecer a convivência de colonizadores e de colonizados no complexo colonial. Já temos agora algumas respostas a essa pergunta. A princípio, o conformismo, a aceitação passiva, a tentativa de coincidência com o grupo colonizador, a alienação. Em seguida, a tomada de cons­ ciência da impossibilidade, do malogro da assimilação. Sób a pressão das contradições externas, a emergência das con­ tradições internas, tanto objetivas quanto subjetivas, e a rup­ tura com a fase anterior, de inconsciência e submissão. Qual a ideologia da metrópole? Não é o cristianismo e a democracia, o desenvolvimento econômico, o bem-estar e o progresso social? Mas, não haverá contradição entre essa ideologia, que o colonizador professa na metrópole, e o seu comportamento na colônia, o domínio e a espoliação do colonizado, a sua segregação em nome do racismo? Na colônia, porém, há jornais, revistas, aparelhos de rádio e televisão, cinemas. Mal ou bem a situação do mundo, a luta das classes oprimidas, dos povos oprimidos, acaba penetrando a consciência das populações colonizadas. E não só isso, mas também as razões pelas quais essa luta é tra­ vada, o desequilíbrio, o contraste, entre a riqueza das clas­ ses e dos paises ricos e a pobreza, a miséria dos países pro­ letários . Por que aceitar eternamenté esse desequilíbrio, essa contradição, por que admitir como natural e justo que o bem-estar e a felicidade de alguns tenha como contrapar­ tida o mal-estar e a desgraça da imensa maioria? Não lhes dizem, em nome do cristianismo e da democracia, que todos são iguais diante de Deus e diante da Lei e que, por isso, devem ter as mesmas oportunidades de acesso à saúde, à educação, à cultura, ao conforto, à humanização, em suma? Ou essa ideologia é válida apenas nos limites da metrópole, perdendo significação e eficácia a partir do momento em que, transpondo o mare nostrum, pepetramos as fronteiras do continente africano? Ora, como justificar, então, o esta­ tuto colonial, a não ser em nome de outra ideologia, o racis11

mo, por exemplo, ideologia que põe o colonizador em con­ tradição com êle mesmo? Sim, porque como conciliar sua posição de cristão e democrata na metrópole com a posição de racista na. colônia? O "efeito de demonstração”, quer dizer, o confronto, o paralelo entre as condições de vida das populações colo­ nizadas e as do colonizador e das populações metropoli­ tanas (que o colonizado fica conhecendo por meio da im­ prensa, do cinema etc.) interpretado à luz do cristianismo e da democracia, não pode deixar de fecundar a consciência do colonizado, abrindo-lhe os olhos para a espoliação de que tem sido vítima. As contradições objetivas existiam, sem dú­ vida, e há muito tempo, pois são a própria condição de exis­ tência do fato colonial, e, no entanto, permaneciam latentes, em equilíbrio, sem funcionar, sem operar como fator de transformação da estrutura social. Que é que as traz à tona da consciência, que é que as converte em mola propulsora da revolta e até mesmo da revolução? Todos os caminhos foram fechados. O colonizador não permite nem a assimilação, nem a transformação pacífica da colônia, mediante a participação dos colonizados na gestão do próprio destino. O colonizador representa a negação do colonizado e vice-versa, o colonizado representa a negação do colonizador. Os termos da antítese, ou da contradição, não podem ser absorvidos e superados em uma síntese su­ perior pela simples razão de que, ao mesmo tempo, se impli­ cam e excluem reciprocamente, quer dizer, a negação de um acarretando necessariamente a negação do outro. A rigor — como observa Memmi — "o esmagamento do colonizado está incluído entre os valores do colonialis­ mo”8 e o colonizador, no segredo de seu coração', sonha muitas vezes com o extermínio total dos colonizados. Ora, esse desejo é contraditório, pois o extermínio dos coloniza­ dos acarretaria inevitavelmente o desaparecimento da colô­ nia e, portanto, do próprio colonizador. Destruindo sua antí­ tese, pólo oposto dessa relação dialética em que o processo colonial consiste, o colonizador destruiria, ao mesmo tempo, o pólo “tético”, digamos assim, da relação, quer dizer, sua Idem, pág. 159.

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posição de domínio e de espoliação, pois teria negado e feito desaparecer o objeto desse domínio e dessa espoliação. A partir do momento em que, por força das contradi­ ções internas e externas, tanto no plano objetivo, real, quan­ to no plano subjetivo, da consciência, as populações coloni­ zadas despertam, do longo torpor, do sono em que estavam há tanto tempo mergulhadas, a partir desse momento, a to­ talidade contraditória, que é o mundo colonial, é arrancada da estagnação e posta em movimento. A partir de então, o colonizado, cuja negação implica­ va a afirmação (negação como ser humano) do coloniza­ dor, isto é, sua antítese na relação dialética, vai empreender a negação da negação, quer dizer a afirmação de si mesmo, pólo tético na relação. Ora, assim como no momento ante­ rior, aceitava globalmente o colonizador, recusando-se total­ mente a si mesmo, agora passa a recusar globalmente o co­ lonizador e a aceitar e afirmar-se totalmente a si mesmo. Tudo aquilo de que se envergonhava, tudo aquilo que era para ele sinal de sua diferença e motivo de humilhação, as crenças, os valores, os usos e costumes que constituíam a tradição, a fisionomia nacional, tudo o que, contraposto ao mundo do colonizador, alimentava seu complexo de infe­ rioridade, e era por ele subitamente assumido, em atitude polêmica, de desafio, como forma e expressão de sua per­ sonalidade própria, nacional. “A mesma paixão que o fazia admirar e absorver a Europa — escreve Memmi — o fará afirmar suas diferenças; uma vez que essas diferenças o constituem, constituem propriamente sua essência”.9 Será nacionalista e não racista, propriamente, mas xe­ nófobo, pois “o racismo do colonizado