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Portuguese Pages [360] Year 2015
REFLEXÕES SOBRE A REVOLUÇÃO EM FRANÇA
EDMUND BURKE
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REFLEXOES SOBRE A REVOLUÇÃO EM FRANÇA
Tradução e Introdução de
Ivone Moreira
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Traduzido do texto inglês de: Edmund Burke ( 1865), Rejlections on the Revolution in France and on the Proceedings in Certain Societies in London Relative to that Event: in a Letter lntended to H ave Been Sent to a Gentleman in Paris, The Works of the Right Honorable Edmund Burke, Vols. III, Revised Edition, Boston:
Lirde, Brown, and Company.
Reservados rodos os direitos de acordo com a lei Edição d a
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN Av. de Berna I Lisboa 2015
Depósito Legal N. 0 40 1257/ 15 ISBN: 978-972-3 1-1575-8
NOTA DE TRADUTOR
A versão utilizada para esta tradução corresponde à última revista por Burke, que foi publicada pelos seus testamentários, em Londres, com os editores Francis and Charles Rivington em 1801. A republicação de toda a obra de Burke com a casa Rivington, em 16 volumes, estender-se-ia até 1827. A edição que se usou é uma reimpressão da edição Rivington, por Litde, Brown & Company, publicada em Boston em 1865 1• As notas que se encontram ao longo desta tradução têm duas origens: algumas são notas do próprio autor, assinaladas por um asterisco que antecede o número da nota e devidamente advertidas como tal no rodapé; outras são notas da tradutora (N.T.), com o objectivo de esclarecer algumas referências feitas pelo autor, ou as opções feitas na tradução de alguns termos e o significado de alguns conceitos. Foram respeitados os itálicos do texto original e o uso de maiúsculas e minúsculas, sempre que esse uso não se possa atribuir a uma opção da língua. ~er no corpo do texto quer nas notas, usaram-se entre parêntesis rectos [.. .] expressões da autoria da tradutora, acrescentadas para inteligibilidade do texto. Foi critério fundamental que presidiu a esta edição que todo o corpo do texto das Rejlections on the R evolution in France estivesse em português. São excepções a esta regra as expressões breves franEdm und Burke ( 1865 ), Reflections on the Revolution in France and on the Proceedings in Certain Societies in London Rela tive to that Event: in a L etter l ntended to H ave Been Sent to a Gentleman in Paris, The Works of the Right H onorable Edmund Burke, Vols. III, Revised Edition, Boston: Litde, Brown, and Company.
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cesas que aparecem no texto de Burke e as expressões latinas. Em nota de rodapé aparecem as traduções das citações em língua latina ou grega. ~ando estas citações se encontram em notas de rodapé, para o latim e o grego, foi mantido o texto original seguido da tradução; para citações do autor em línguas vivas foi feita a tradução com a referência ao texto original, ou à língua original, quando não foi possível localizar o texto. As citações de Burke dos autores latinos e gregos são muitas vezes alteradas e apropriadas por Burke e nem sempre é respeitado o seu sentido original. Na realização desta tradução consultaram-se também a tradução francesa de Pierre Gaeton Dupont 2 - que tinha sido revista por Burke- e a tradução espanhola de Henrique Tierno Galván 3, com o objectivo de comparar as opções de tradução de outras línguas latinas e, assim, conseguir uma tradução tão fiel quanto possível em língua portuguesa. Uma boa tradução brasileira por Eduardo Alves foi entretanto publicada pela Topbooks. Duas razões fizeram que ela não fosse tão significativa para a presente tradução: a primeira, é que esta estava já na sua fase de revisão quando a tradução brasileira foi publicada ; a segunda, é que se pretendia que o português fosse o utilizado em Portugal e se considerou prudente evitar a influência próxima. Por fim, uma palavra de agradecimento é devida à Prof.• Doutora Alexandra Alves de Sousa, que é a responsável pela tradução das citações latinas e gregas presentes neste texto. As páginas que se seguem têm por missão apresentar o autor ao leitor e contribuir assim para um mais completo entendimento da que é considerada a obra fundamental do seu pensamento político. Pierre Duponr ( 1790). T rad. (révisée, annotée et présenrée par) Michel Derouard, Réflexions sur la Révolution de France, et sur les Procédés de Certaines Sociétés a L ondres, Relatifi a cet Événement, Saint Lambert des Bois: Authenrica, 1988. 3
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Henrique Tierno Galván ( 1978), (Traducción y Prólogo), Reflex iones sobre L a
R evolución Franma, Madrid: Centro de Escudios C onstitucionales.
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INTRODUÇÃO
EDMUND BURKE- UM PERCURSO BIOGRÁFICO-LITERÁRIO
Edmund Burke nasce em Dublin\ filho de Richard Burke, um conceituado advogado anglicano, e de Mary Nagle, católica, originária de uma família tradicional com raízes em Cork. A sua saúde frágil é razão para que viva no campo, durante uma boa parte da sua infância com a família católica da mãe. Embora, segundo a tradição dos casamentos mistos entre católicos e anglicanos, os filhos devessem ser educados na religião do pai e as filhas na religião da mãe - o que aconteceu na família Burke - segundo investigação recente 5, a sua formação na primeira infância passou por uma escola, possivelmente clandestina, para católicos irlandeses, onde se ensinava em Gaélico. Estuda depois num colégio privado em Ballitore, uma academia protestante, dirigida por Abraham Shackleton, um ~aker, que Burke admirará toda a vida, saindo daí em 17446, para o Trinity College em Dublin 7 •
Em relação à data de nascimento de Burke há alguma incerteza. Os principais biógrafos divergem e oscilam entre as datas de 12 de Janeiro de 172 9 e a mesma data de 1730, ambas as escolhas apoiadas por boas justificações. Morre em Julho de 1797. Cf. Katherine O 'Donnell (2007), "Burke and the Aisling: 'Homage of a Nation '", British journalfor Eighteenth- Century Studies, 30, pp. 405-7. Também aqui os biógrafos divergem: o seu nome consta nos registos de T riniCollege desde Abril de 1743. James Prior considera que só no ano seguinte Burke teria de facto entrado em T. C.; Thomas Macknight considera que Burke teria entrado no ano de 1743. ty
Cf. Ivone Moreira (20 12), A Filosofia Política de Edmund Burke, Lisboa: Aster, p. I. (De agora em diante: Ivone Moreira, Op. Cit. seg. da pág.)
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Pela sua correspondência deste período de juventude, percebemos que é um apaixonado da literatura clássica e que tenta ele próprio aventurar-se na poesia, gosto que o acompanhará toda a vida, embora tenha desistido de escrever poesia porque considerava faltar-lhe o talento para tal8 . A sua incursão pública em actividades literárias e editoriais começa justamente enquanto frequenta o Trinity College, em Janeiro de 1748, quando, fruto de obra colectiva, edita o The Reformer, do qual virão a lume 13 números, publicados semanalmente até Abril de 1748. Trata-se de uma miscelânea que inclui temas diversos como poesia, crítica teatral e peças de teatro. Neste período, Burke mantém ainda um Note Book com o seu amigo de juventude William Burke. Alguns dos textos nele contidos enunciam já aspectos que o seu pensamento político há-de aprofundar e ilustrar mais tarde. O caderno é publicado apenas no século xx.
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Obtém o seu diploma de Bachelor Arts em 1748. Há registo da sua matrícula em Middle Temple, o mais famoso colégio que formava na altura advogados e solicitadores. Frustrando as expectativas do seu pai, e pagando por isso o preço alto de uma relação difícil com ele e a falta do seu apoio para a carreira que escolhe, Burke constata que a advocacia não tem para si grandes atractivos e decide enveredar pela carreira literária, nunca tendo exercido como advogado. Em Maio de 1756 publica A Vindication of Natural Society ( Vindication ), uma obra irónica sobre os "malefícios" da sociedade política. A publicação da Vindication aparece por ocasião de uma edição das obras de Henry St. John , Visconde de Bolingbroke, mas também por ocasião da publicação do Discours sur !'origine et les Jondements de l'inégalité parmi les hommes de Jean-Jacques RousDeve dizer-se a seu favor que, no q ue respeita à esc rita em prosa, chega a se r mencionado, juntamente com Shakespeare e Milton , como um dos melhores escritO res de língua inglesa.
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seau, na sua versão inglesa. Usando a ironia e imitando o estilo de Bolingbroke, Burke aplica os princípios que serviram a este autor para atacar a religião revelada para tecer uma crítica à sociedade estabelecida, elogiando a sociedade "natural" com o objectivo de mostrar o carácter subversivo de tais princípios. A crítica foi tão bem conseguida que o público imaginou tratar-se de uma obra de Bolingbroke, publicada postumamente. Uma segunda edição da Vindication, publicada um ano depois, esclarece no seu prefácio o propósito satírico do texto 9 . Neste prefácio aparece já expressa, com extraordinária clareza e coerência, a sua defesa da sociedade política, numa posição idêntica à que há-de sustentar mais de três décadas depois, nas Rejlections on the R evolution in France, que é considerada a obra que melhor sintetiza o seu pensamento político e que pertence à última década da sua vida. Ainda em meados de 1756 colabora com William Burke 10 na redacção de An Account the European Settlements in America, importante para o historial do que pensa sobre a escravatura. A primeira edição aparece sem o seu nome, mencionando apenas a autoria de William Burke, embora hoje haja a convicção de que a maioria do texto seja de sua autoria 11 •
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Em 17 57 publica A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful (A Philosophical Inquiry), no qual tinha trabalhado desde os seus tempos de estudante em Trinity College 12• Burke cedo encontrou na psicologia um tema de Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., pp. 1-2. 10
Um parente afasrado, a quem chama "cousin ", mas que, em boa verdade, é mais um amigo que um parente, rem mesmo sido impossível esrabelecer alguma ligação entre as suas famílias. Burke só o conhece quando vem para Londres esrudar em Midd.le T emple. Cf. Idem , p. 2. 11
Esra é, por exemplo, a opinião de F rederick Perer Lock, auror da mais complera biografia de Burke, expressa numa rroca de correspondência com a rradurora. 12
Cf. Frederick Perer Lock ( 1998 ), Edmund Burke 1730-1 784. vol. I, Oxford: Oxford Clarendon Press, p. 91. (De agora em diante Lock (clara), Op. Cit., n. 0 do vol., seg. da pág. ).
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interesse filosófico. Num certo sentido, a psicologia é objecto de um estudo sistemático único na obra do autor. Em A Philosophical Inquiry, pretende encontrar um padrão para as ideias do sublime e do belo, bem como para as várias percepções do gosto. Estas primeiras investigações contribuíram decisivamente para estruturar a sua compreensão da natureza humana, que se revelará um instrumento muito útil - mesmo fundamental - para a sua filosofia política. O seu conhecimento da natureza humana acompanhará sempre as suas considerações políticas sobre os sistemas e as sociedades e há-de servir de base à sua interpretação da Revolução Francesa. Nesse mesmo ano assina com Dodsley13 , o seu primeiro editor, um contrato para escrever uma história de Inglaterra, que nunca chega a ser publicada e da qual subsiste apenas o Abridgment on English History. Conta-se que desistiu de publicar a sua investigação histórica porque, entretanto, David Hume tinha publicado a sua própria História de Inglaterra. Frederick Lock chama a atenção para o facto de Burke precisar de prover ao sustento da sua família, o que o terá impelido para a prática do jornalismo durante alguns anos e o terá afastado da escrita de um volume mais exigente como seria uma História de Inglaterra 14•
É assim que em 1758 Burke assume com o mesmo editor o compromisso de manter uma extensa revista anual dos acontecimentos de interesse cultural, no mais amplo sentido, destinada ao leitor de cultura média interessado em manter-se informado, a ser publicada na Primavera e contendo o relato do que tinha acontecido no ano anterior e que intitula Annual Register 15• O próprio autor define o objectivo desta publicação como um esforço para combinar a Magazine com a Revista, com uma primeira parte considerada o Historical Artide, um suplemento intitulado Chronide, 13
Trata-se da Casa Editora de Robe rt andJames Dodsley com sede em Pall Mali.
". Cf. Lock ( 1998), Op. Cir., vol. I, p. 165. 11
Cf. Ivone Moreira, Op. Cir. , p. 2.
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seguido de documentos num Appendix. O seu envolvimento com esta publicação foi sempre mantido privado e a publicação editada anonimamente. Os estudiosos divergem a propósito da extensão desta colaboração, contudo, a investigação de Frederick Lock situa Burke como principal responsável pela publicação entre os anos de 1758 e 1764, embora possa, eventualmente, ter tido assistentes, ainda que não registados 16.
UM PERCURSO POLÍTICO-PARTIDÁRIO A sua actividade literária e jornalística, embora abundante, não chega para tornar a sua família autónoma em relação ao seu sogro Dr. Nugent, médico conceituado, com quem viviam Edmund Burke e a mulher, Jane 17. Embora a data precisa não seja conhecida, é provável que em 1759 tenha começado o seu envolvimento como assistente de William Gerard Hamilton o qual, em 1765, propõe uma pensão vitalícia para Burke pelo lrish Establishment e, na sequência da sua atribuição, viria a exigir que este não publicasse nem tivesse qualquer outro tipo de actividade para além de ser seu secretário1 8. Apesar de a sua situação económica ser difícil, Burke recusa a pensão e rompe relações com Hamilton acusando-o de absorver rodo o seu tempo e de ver nele um escravo. 16
Cf. Lock (1998), Op. Cit., vol.I, p. 166.
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Não se sabe ao cerro a data nem o local do seu casamento. Alguns biógrafos põem a hipótese de Burke se ter casado em França sob o rito católico, já que a sua mulher, Jane Nugent de solteira, era católica e converte-se ao anglicanismo na altura do seu casamento. Conversão que é sempre vista como um acto formal sem qualquer fundamento espiritual. 18 H amilton tinha conseguido da coroa um a pensão anual vitalícia para Burke através do lrish Establishment. A condição que Burke propun ha para aceitar a pensão e continuar a colaborar com H amilton era poder reservar para a sua actividade literária algum tempo, sempre q ue isso não prejudicasse as suas funções junto de Hamilton, coisa que este último não aceitou exigindo que Burke assin asse um documento onde assumisse o compromisso de trabalhar para ele toda a vida e em exclusividade.
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Em Julho de 1765 Burke assume o cargo de secretário privado de Lord Rockingham, líder do partido Whig e, na altura, First Lord of Treasury . Apesar de, no futuro, Burke vir a ser imprescindível como porta-voz do partido na Câmara dos Comuns, cargo que virá a exercer fielmente durante 28 anos, muito para além da liderança de Lord Rockingham, Burke não lhe deve a primeira oportunidade para entrar no parlamento. De facto, o lugar que vai ocupar tinha sido oferecido ao seu amigo William Burke, para ser deputado por Wendover, pelo círculo eleitoral de Lord Verney, e é o amigo que lho cede. Burke inicia assim a sua carreira política, tendo pronunciado o seu primeiro discurso no Parlamento como Whig em Janeiro de 1766 19 • ~ando
começa um novo mandato, em 1774, Burke continua no Parlamento. Desta vez eleito por mérito próprio, concorrendo a convite da Associação dos Comerciantes de Bristol como representante por aquela cidade. À altura, de facto, já tinha sido eleito pelo círculo eleitoral de Lord Rockingham como deputado por Malton, mas, quando surge a hipótese de ser deputado por Bristol, Burke, zeloso da sua independência em termos políticos, opta pela cidade portuária. É no seu primeiro discurso como deputado por aquela cidade, logo no momento da eleição, que Burke se pronuncia a favor da independência dos parlamentares em relação às instruções directas dos eleitores. O que pensa da representação política: que o deputado deve ao eleitor fidelidade e defesa dos seus interesses, mas não subserviência, e que o servirá melhor se mantiver a sua independência, vem brilhantemente expresso neste discurso e é frequentemente evocado como doutrina Whig sobre a matéria mas é, em boa verdade, uma ideia relativamente recente à época que surge como resultado da resposta aos movimentos radicais das décadas de 70 e 80 do século XVIII e que Burke reformula. No século XVI era muito comum o deputado ser um delegado do eleitor, como o mos19
Cf Lock (1 998), Op. Cir. , vol. I, p. 214.
15 tram estudos sobre as práticas eleitorais desse período 20 • Em 17 80, é de novo eleito deputado, desta vez por Malton. Em 19 de Março 17 82, Lord Rockingham sucede a Lord North como primeiro-ministro e, cinco dias depois, Burke toma posse como Paymaster- General of the Forces, um cargo modesto. Lock julga que o próprio Burke não fazia campanha a seu favor nunca se tendo candidatado a nenhum posto destacado, como era próprio dos que se moviam nos círculos próximos de figuras de destaque como Lord Rockingham. Em 1 de Julho morre Rockingham e é sucedido por Lord Shelburne. Burke resigna do seu cargo em 10 de Julho desse mesmo ano, para o voltar a ocupar de novo em 8 Abril de 1783. Em 24 de Abril desse mesmo ano o governo de Shelburne cai para ser substituído pela coligação Fox-North 21 , com o Duque de Portland como primeiro-ministro e com a saída definitiva de Burke. Durante a sua passagem meteórica pela administração, Burke apresenta um projecto de lei de reforma das despesas da casa real, nomeadamente extinguindo cargos vazios de conteúdo que representavam apenas uma espécie de pensão atribuída aos nomeados. Além disso, tornou também os cargos de responsáveis por dinheiros, como o cargo de Paymaster-General, obrigados a apresentarem contas mensais e a estarem de certo modo dependentes do Banco de Inglaterra. A lei será aprovada e posta em prática na vigência de governos posteriores. 10 "Este conceiro de rep resentação política, que defende a independência do par· lamentar, e que ve m sendo atribuído desde então aos velhos Whigs, surge como reacção aos movimentos radicais das décadas de 70 e 80 do séc. XV III , mas não corresponde à posição Whig mais amiga. De fac to, no século XVI , os parlamentares eram delegados dos eleirores e aceitavam o papel de 'agente liberalmente pago para cuidar dos seus interesses no Parlamento'". Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., pp. 282-283. Sobre as doutrinas eleitorais deste período Cf. Samuel Beer (Sep., 1957), "The Represe nration ofl nreresrs in British Governmenr: H isrorical Background", The American Politica! Science Review, Vol. 5 1, n.o 3, pp. 613-650 .. p. 6 15.
"
Charles James Fox e Frederick Norrh.
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UM PERCURSO IDEOLÓGICO ~em lê as Reflections on the Revolution in France, e todos os textos de crítica à Revolução Francesa, pode ver em Burke apenas um conservador, um contra-revolucionário. Se esta imagem capta em parte o pensamento do autor, será certamente redutora e talvez mesmo desajustada se não se tiver em conta todo o percurso intelectual de Burke. É redutora porque Burke foi um empenhado reformador: toda a sua vida parlamentar e mesmo o cargo político que desempenhou se caracterizou pela reforma. E é desajustada, porque os motivos que o levam a opor-se à Revolução Francesa são distintos dos que inspiram outros críticos da mesma altura.
Burke é o próprio a admitir que o Ancien Régime carecia de reforma. A sua crítica feroz e lúcida à Revolução Francesa é uma crítica ao método revolucionário, à índole demolidora do processo, à arrogância intelectual jacobina que entende que pode fazer tabula rasa de todo o património anterior, e é também, e fundamentalmente, uma crítica à teoria do contrato social de Rousseau, que Burke julga inspirar os políticos franceses. Um contrato que pressupõe que uma sociedade emerge do acordo entre homens na posse de todos os seus direitos naturais, cuja soberania reside no corpo da nação assim formada, enquanto pessoa moral e colectiva, que estabelece um governo para a preservação destes direitos no qual todo e qualquer um pode participar em condições de igualdade e enquanto executor da vontade geral, derivando daí a sua legitimidade. Mais adiante se verá onde é que o contrato orgânico proposto por Burke diverge desta concepção. Burke é um reformador e gosta de sublinhar a diferença entre dois processos: a mudança súbita, que caracteriza habitualmente uma revolução, e a reforma:
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Há uma grande diferença entre mudança e reforma. A primeira altera a substância dos alvos da mudança ( ... ) desembaraça-se do que neles é bom assim como do mal acidental que lhes está anexo ( ... ) a reforma não é uma mudança na substância( ... ) mas uma aplicação directa de um remédio às queixas( ... ) inovar não é reformar 22 •
A reforma caracteriza-se sobretudo pela capacidade em defender o que de bom existe. Em qualquer instituição, que serviu bem uma sociedade, há algo que vale a pena preservar e melhorar. Nenhuma realização humana é totalmente perfeita, e a melhor maneira de a ir aperfeiçoando é corrigi-la ao longo do tempo ajustando-a aos novos desafios. Com isto obtém-se algo que é obra de várias gerações e que acumula a sabedoria de todos os que sobre ela reflectiram e para ela contribuíram. As páginas que se seguem têm por objectivo dar ao leitor informação sobre o autor e o seu percurso intelectual enquanto reformador e assim fornecer-lhe instrumentos para uma adequada interpretação da diatribe que constitui as Rejlections on the Revolution in France. Burke foi um parlamentar Whig que na história da sua longa carreira, com início em 1765 e terminando oficialmente em Junho de 1794, participou e, muitas vezes, tomou a dianteira, em debates parlamentares que testemunharam a sua defesa da liberdade.
22 Cf. "( ... ) that is a marked distinction between change and reformation. The former alters the substance of the objects themselves ( ...) gets rid of ali their essemial good as well as of the accidemal evil annexed to them (...) Reform is not a change in the substance (...) but a direct application of a remedy to the grievance complained of (... ). 'to innovate is not to refonn'". Edmund Burke ( !866 ),Letter to a Noble Lord on theAttacks Upon H is Pension, The Works ofthe Right Honorable Edmund Burke, Vol V, Revised Edi· tion, Boston: Little, Brown, and Company, pp. 186-7. (De agora em diante: Burke (data da ed. ), Título, Works, n. 0 do vol. e pág. ).
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A oposição à política de gabinete de Jorge III
Logo em Abril de 1770, Burke publica Thoughts on the Cause of the Present Discontents. Este texto, cuidadosamente negociado entre Burke e as várias figuras proeminentes do partido Whig - como o confirma a correspondência de Burke na altura 23 - ,é objecto de algumas cedências em relação ao que primariamente havia sido concebido e, sendo um texto que veicula inequivocamente a sua posição, atenta a algumas sugestões do partido. Aqui, Burke visa expor as manobras de manipulação do governo por parte da corte, através da clique a que Burke chama os "amigos do Rei". Neste texto, Burke despersonaliza este tipo de manobras, antes associadas a Lorde Bute e, ao fazer isso, mostra como esquema político pernicioso, digno de ser analisado e combatido, o que era antes atribuído a manobras individuais. A Corte acabaria por destruir a substância da Constituição Inglesa mantendo a sua form a, ao exercer influência através de favoritismo. Contra isto Burke defende o respeito pelo espírito da Constituição e a formação de um grupo de homens de talento, interessados na vida pública e representantes da propriedade. Trata-se da afirmação da importância de partidos políticos, cuja actuação pudesse ser transparente e conhecida, como a melhor forma de oferecer resistência à manipulação pela Corte através da nomeação ou da protecção dos seus favoritos . 2 -' Veja-se a co rrespondência trocada desde 6 de Novembro de 1769 a este pro· pósito nomead amente entre Si r George Savi le, Lord Rocki ngham e o próp rio Burke. Lucy Surherland , edito ra do volume II da C01nspondence, refere em nota que, além dos elementos cuj as ca n as se podem analisar, teria havido ainda uma reunião para "examinar" o panfleto com o Marquês de Rockingham, Dowdeswell , o Duque de Pordand e Sir George Savile, antes da abertura do Parlamento a 9 de Janeiro de 1770. Cf. Lucy Su therland ( 1960), Thomas Copelan d, (Gen. Ed.), The Con·espondence ofEdmund Burke, Vol. II , Cambridge: Cambridge Universiry Press, pp. 108-10, cana de Burke a Rockingham; pp. 11 4-6, cana de Burke a Rockingham ; pp. 11 8-2 1, cana de Sir George Savile aRockingham: esta cana é extraordinariamente sugestiva refe rindo-se Savile às correcções que teria introduzido no texto e à ren itência de Burke a que se alterassem as suas ideias tendo mesmo afi rmado ter a expectat iva do apoio dos restantes membros (p. 118); e pp. 12 1-2, carta de Burke a Rockingham e nota de Sutherland. (D e agora em diante a refe rência se rá Burke (data ed. ), Co1nspondence, n.0 do ,-ol., pág.).
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Nesta mesma peça, Burke invoca duas situações onde este tipo de influência se fez sentir e perverteu o disposto pela Constituição: a maneira como o governo lidou com o caso Wilkes, um deputado eleito por Middlesex, rejeitado pelo parlamento pela sua imoralidade e substituído pelo número dois da eleição, que tinha perdido para Wilkes por um número elevadíssimo de votos; e o pagamento de despesas da Civil List, sem qualquer espécie de inquérito às mesmas.
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O s Thoughts on the Cause the Present Discontents devem também ser vistos como um testemunho da inclinação de Burke para as pequenas reformas já que atribuiu o descontentamento que se experimentava na altura a aspectos menos radicais do que alguma oposição, que defendia a criação de "parlamentos" mais curtos - ideia a que Burke se opõe - ou a eliminação dos pocket boroughs 2\ que viriam a ser objecto de reforma apenas por acto de 1832, e sobre os quais Burke não se pronuncia.
A liberdade religiosa na Irlanda A luta pela liberdade religiosa na sua Irlanda natal e pelos direitos dos católicos irlandeses 25 é mais um exemplo do seu empe24 Extensões de terra ou propriedades que tinham direiro a representantes no Parlamento independentemente do número de habitantes. Cf. Lock ( 1998 ), Op. Cit. , Vol. I, p. 277.
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"A sua relação familiar com a Irlanda, mesmo o facto de, na sua infância, ter contactado de perto com as dificuldades que afligiam os católicos irlandeses, fez que roda a sua vida mantivesse um vivo interesse pelos direiros dos católicos da terra natal. Pronunciou-se inúmeras vezes no Parlamento em sua defesa, manteve correspondência com membros do Parlamento irlandês e esforçou-se por passar ao seu filho o legado de continuar a lutar pela moderação na governação e pelo respeito dos direitos dos irlandeses, nomeadamente o respeito da sua liberdade religiosa. O constante interesse que manteve pelos assuntos da Irlanda valeu-lhe alguns dissabores: foi injustamente acusado pela imprensa de "papista" e "jesuíta secrero"; foi acusado de defender o comércio da Irlanda em detrimento dos comerciantes de Bristol, cidade que representava no parlamento, um factor que muito contribuiu para que viesse a perder um segundo mandara por aquela cidade." Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., p. 4.
20 nho pela causa da liberdade. Embora Burke fosse anglicano, era um defensor da liberdade religiosa a que não era, por certo, alheio o facto de ter convivido com o catolicismo desde cedo e ter sido ensinado por um dissidente anglicano. Empenhou-se muito pela causa católica tendo mesmo sido várias vezes acusado de ser um cripto-católico26. Desde cedo a situação dos católicos irlandeses foi objecto da sua reflexão. Julga-se que desde 1766 Burke se empenha na redacção do Tract Relative to the Laws Against Popery in Ireland, conhecido como Tract on the Popery Laws, um texto de análise crítica às leis severas aplicadas aos católicos irlandeses, texto inacabado que, embora tenha sido usado no seu contacto com dirigentes irlandeses, apenas vem a público após a sua morte. O Tract on the Popery Laws apresenta uma síntese das leis contra os católicos, com Burke a propor uma análise desapaixonada sobre se um tal sistema poderia corresponder a princípios sólidos de legislação ou a alguma definição aceitável de lei concluindo que, se os princípios que enformam estas leis e as práticas a que conduzem são tão distintos do sentido geral para o qual apontam os princípios e as leis próprias da humanidade civilizada, é conveniente e moderado admitir que estas leis são, no mínimo, suspeitas. O texto é marcado mais uma vez pelo seu modo prudente de actuar, Burke argumenta que todas as leis, num momento ou noutro, são ou podem vir a ser, em certa medida, objecto de censura, mas nem por isso são objecto de anulação. Para que tal seja legítimo, é preciso que se prove que não são apenas imperfeitas mas que são perversas e que a sua aplicação contradiz a própria natureza da lei, que é a defesa do bem comum, o que se provaria na análise das leis contra os católicos. ~ando as transgressões contra o direito e contra os fins perseguidos pelo governo justo são graves e os seus efeitos se repercutem em toda a sociedade, ou pelo menos 26
Julgá-lo católico apenas pod e porvir de não católicos, porque o seu pensamen-
to polít ico, no que respeita à relação entre Igreja e Est ado, é claramente anglican o.
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em grande parte dela, estamos perante uma objecção que atinge a raiz e os princípios da própria lei a qual, ao reger-se por um princípio pervertido, não é boa pela sua eficácia mas são os seus defeitos que resultam em benefício 27 • Esta inversão nos princípios de uma lei permite que se manifeste o seu carácter antinómico. No caso das leis contra os católicos, ninguém pensa que manter um grande número de pessoas afastadas não apenas de privilégios mas das comuns vantagens para as quais se constituiu a sociedade possa fazer-se para o bem dessas pessoas ou possa alguma vez, ainda que tacitamente, ser ratificado por elas. As leis que se aplicavam à Irlanda careceriam desse sancionamento e não poderiam ser reconhecidas propriamente como leis 28 • Burke tentou passar ao filho, Richard Burke - embora sem grande sucesso - a missão de lutar pelos direitos dos católicos irlandeses. Este, não tão experiente e certamente com menos tacto, ganhou mais opositores que aliados durante a sua permanência na Irlanda. A sua tentativa de influência está também documentada no texto escrito para influenciar/ aconselhar o governo da Irlanda por ocasião de conflitos graves em Julho 1780, Some Thoughts on the Approaching Executions, Humbly Ojfered to Consideration, onde preconiza um procedimento a um tempo justo e clemente caracteCf. Ivone Moreira, Op. Cit. , p. 320. 28
"They have no right tO make a law prejudicial tO the whole community, ( ... ) because it would be made against the principie of a superior law, which it is not in the power of any communiry, o r of the whole race of mantO alter, - I mean the will of Him who gave usou r nature, and in giving impressed ·a invariable law upon it. It would be hard tO point out any error mo re truly subversive of ali the order and beauty of ali the peace and happiness ofhuman society than the position that any body of men have a right to make what laws they please, - o r that laws can drive any authority from their instirution merely, and independent of the quality of the subject mane r. No arguments of policy, reason of state, o r preservation of the constitution can be pleaded in favour of such a practice". Burke ( 1866), Fragments ofa Tract Relative to the Laws Against Popery in lreland, Works VI, p. 322.
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rizado pela prudência, pretendendo moderar, embora sem grande êxito, as decisões do governo. Durante roda a sua vida o papel de Burke a favor da Irlanda foi notável. A sua correspondência com Sir Hercules Langrishe, um depurado do Parlamento irlandês com quem Burke discute a situação dos católicos e a quem dirige petições, e através de quem se pode dizer que Burke influencia os destinos da Irlanda, mantém-se até ao final da vida de Burke e é disso um exemplo.
Burke abolicionista A abolição da escravatura também teve nele um defensor. Burke reconhece que a situação de escravatura não é compatível com a dignidade humana em nenhuma das suas formas , mas reconhece também que a abolição imediata da mesma era impossíveF9 : 19
Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., p . 205, nota 705: A sua baralha pela abolição da escravatu ra teve vários modos de envolvimento, como muito bem se mostra na extraordinária investigação de F. P. Lock: "Abour 1780, when (as he !are r said) aboli rion appeared a chimerical projecr, Burke drew up a 'Skerch of a Negro Code' an elaborare sysrem of regularions imended to improve rhe r rearmem of slaves" que, como aqui se refere, prepara a libertação futura dos escravos e rem uma função provisória, não se destina apenas à melhoria das condições de vida dos escravos. Lock reporta outra fase do seu envolvimento na questão : "Burke 's decision to resrricr himself to 'grear consriturional quesrions' meam rhar he did no r comribure to rhe debate of2 Apri l 1792 on rhe abolirion of rhe slave rrade. On rhis occasion, perhaps because public op inio n was overwhelmingly againsr rhe rrade (hundreds of peririons had been received againsr ir), many of irs suppo rrers chose nor to oppose abolirion outrigh r, bur to endorse an amendmem proposed by Henri Dundas, inserring rhe wo rd 'gradually' imo rhe resolurion rhar rhe rrade ough r to be abolished. Burke would cerrainly supporred rhe amended morion, which, approved by 193 to 125, marked rhe apogee of rhe anri-slavery movemem in h is liferime. Bur whar precisely was his arritude to rhe amendme m ? ln earlier debates he had spoken in favour ofimmediare abolirion. H is silence on rhis occasion could be imerp rered as a weakening of his opposirion, may h ave conrribured to rhe equivocai nature of h is legacy on rhe subjecr. Afi:er his dearh, advocares and opponems of abolirion borh claimed his appro barion ". Lock (2006), Op. Cit., Vol. II, p. 4 13. Em An Account ojthe European Settlements in America (An Account) , já é aflorado o problema da escravatura. A obra é publicada anonimamente em 17 56-7, o editor de 1808.julga ter evidência da autoria de Edmund Burke. No tempo de Burke, Boswell e agora o autor da sua melhor biografia, Lock, são da opin ião que muito do texto veicu la
23 [considera ser] vantajoso, e conformável com os princípios da verdadeira religião e moralidade, e com as regras de uma política correcta, pôr fim a todo o tráfico na pessoa dos homens, e à manutenção das ditas pessoas no estado de escravatura, tão cedo quanto isto possa fazer-se sem produzir grandes inconvenientes na súbita mudança de práticas com tão longa permanência e, durante o tempo da continuação das ditas práticas, considera ser desejável e vantajoso, através de regulações apropriadas, aliviar os inconvenientes e os males que acompanham o referido tráfico e estado de servidão, até [que] ambos venham a ser gradualmente extintos (.. .)3°.
as ideias de Edmund Burke. Baseando-se em An Account, Lock refere que os Burke aceitavam a escravatura como uma necessidade económica e o tratamento mais humano dos escravos pelas mesmas razões: "Indeed they make a purely economic case for the more human treatmem of slaves: less brurally". Lock ( 1998), Op. Cit., vol. I, p. 133. A leitura atenta que se fez de An Account mostrou também outros aspectos. De facto, já tão cedo quanto 1756/7 período em que a obra foi esc rita, os au tores defendem qualquer coisa de muito se melh ante ao que vai aparecer, mais elaborado e assumido, em Sketch a Negro Code. Ao comentarem a colonização fra ncesa elogiam o Code Noir que permitia, ao contrário do que acontecia com os escravos das colónias inglesas, um tratamento com uma sensata mistura de humanidade e firmeza (An Account ...Vol. II , p. 47). Os dois jovens autores, embora antecipando alguma discordância da parte dos principais envolvidos no negócio da escravatura, e mantendo um certo compromisso com os preconceitos em vigor, falam a favor de uma humanização no tratamento dos escravos e mesmo a favor de uma sociedade, que afirmam ser a mais segura e de riqueza mais sólida, cuja estrutu ra assentaria "in the number of low and middling men of a free condition, and that beautiful gradation from the highest to the lowest where the transitions ali the way are almost imperceptible" e acrescentam "to produce this ough t to be the aim and mark of every well regulated commonwealth and none as ever Aourished upon other principies" (An Account ... ,Voi. II , p. 118).
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_;o "Whereas it is expedient, and comformable (sic ) to the principies of true religion and moraliry, and to the rules of sound policy, to pur an end to ali traflic in the persons of men, and to the detention of thei r said persons in a state of slavery, as soon as the sarne may be effected without producing great inconveniences in the sudden change of practices of such long standing. and during the time of the continuance of the said practices it is desi rable and expedient by proper regulations to lessen the inconveniences and evils attendant on the said traflic and state of servitude, until both shall be gradually clone away( ...)". Burke ( 1866), Sketch ofa Negro Code, Wo1·ks VI, p. 262.
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Assim, à semelhança do Code Noir que já existia em França, Burke empenhou-se, em 1780, na redacção de um Sketch a Negro Code que se destinava a preparar a transição de uma sociedade esclavagista para uma sociedade livre, manifestando deste modo o que pensa da situação:
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Se o tráfico africano pudesse ser olhado acendendo apenas a ele mesmo, como um objecto isolado, eu julgo que a completa abolição seria, no conjunto, mais aconselhável do que qualquer esquema de regulação e reforma. Em vez de tolerar a sua continuação cal qual está, eu desejava sinceramente que ele acabasse 31 .
O que caracteriza sempre a sua actuação política é uma preocupação genuína por atender às circunstâncias - o que não deve ser precipitadamente encarado como uma preocupação meramente utilitarista, ignorando quaisquer princípios, mas antes como um exercício prudencial - eis porque julga importante atender ao facto de que muito da sociedade colonial está articulada e alicerçada na escravatura e julga também que a Coroa de Inglaterra não tem capacidade para impedir à distância, de um modo efectivo, o tráfico, pelo que seria sensato reformar primeiro para depois poder extinguir32.
3 ' "If rhe African rrade could be considered wirh regard ro irself only, and as a single objecr, I should rhink rhe mrer abolirion ro be on rhe whole more advisable rhan any scheme of regularion and reform. Rarher rhan suffe r ir ro cominue as ir is, I hearrily wish ir ar an end". Burke ( 1866), "A Lerrer ro rhe Righr Hon. Henry Dundas ...", Easrer-Monday nighr, 1792, Works VI, 257. 32
"I could nor rrusr a cessarion of rhe demand for rhis supply ro rhe mere operarion of any absrracr principie ( ... ) I am very apprehensive, rhar, so longas rhe slavery cominues, some means for irs supply will be found. If so, I am persuaded rhar ir is bener ro allow rhe evil, in order ro correcr ir, rhan by endeavoring ro forbid whar we cannor be able wholly ro prevem, ro leave ir under an illegal, and rherefore an unreformed exisrence". Burke (1866), "Lener ro rhe Righr Hon. Henry Dundas .. .", Easrer-Monday nighr. 1792, Works VI, 259.
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O Skech a Negro Code pretende que sejam introduzidas leis que protejam a dignidade humana do escravo dos abusos dos seus senhores, e a educação e responsabilização progressiva dos escravos, que passa pela introdução de trabalho remunerado e pela posse de pequenas parcelas de terra, de molde a conduzir à libertação os escravos que vão demonstrando estar preparados para a liberdade. Burke não duvida que o respeito pela dignidade humana só será atingido com a libertação do escravo. Nenhuma destas medidas realiza esse propósito, tal como ele próprio afirma: "nada (... ) faz um escravo feliz, mas [faz] um homem degradado" 33 .
A defosa dos indianos contra a administração tirânica por parte da Companhia das Índias Ocidentais A sua luta contra a opressão teve talvez um dos seus episódios mais expressivos na investigação aturada que desenvolveu acerca da administração inglesa na Índia, a qual era levada a cabo através da Companhia das Índias Ocidentais34, e que haveria de culminar no lmpeachment de Warren Hastings, o primeiro governador-geral de Bengala, acusado de administração tirânica e ruinosa da Índia. Burke presidia ao Secret Commitee que estava responsável pelo inquérito35. 33 "Nothing (... ) made a happy slave, but a degraded man". Burke ( 1816), Speech Abolition ofthe Slave Trade, The Speeches ojthe Right Honourable Edmund Burke, in the
H ouse ofCommons and Westminster Hall, in four volumes, London: Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, Vol. III, p. 438. 34
Cf. Ivone Morei ra, Op. Cit. , p. 4: "A administração das feiro rias britânicas nas Índias Orienrais considerava-se, de início, não ser tarefa do governo britân ico, mas am es da East India Company. Com o tempo, esta companhia comercial recebeu dos monarcas britân icos aurorização para adquirir possessões, administrar o território, constituir exército e cunhar moeda." " Warren H astings, que foi o primeiro Governador Geral de Bengala, foi acusado de vários crimes de má administração e alvo de impugnação, tendo sido condenado na Câmara dos C omuns e absolvido na Câmara dos Lordes. Edmund Burke foi o líder do comité parlamenrar, o Secret Committee, encarregado de investigar as irregularidades da administração da East lndia Company e de levar por diante a impugnação.
26 É durante rodo o Impeachment que se estabelece de forma mais estruturada a ligação de Burke ao direito natural. São constantes os seus apelos à lei natural a cuja subordinação estava obrigada roda e qualquer lei para poder ser válida. A administração das Índias actuava no desrespeito pela justiça fundamental usando o poder de forma discricionária, sustentando o argumento de que o que era tirania no ocidente poderia não o ser na Índia, o que Burke contesta: Afirma em sua defesa que as acções não têm, na Ásia, a mesma qualidade moral que estas mesmas acções teriam na Europa.( ... ) Negamos positivamente este princípio. Tenho autoridade para o negar e sou chamado a fazê-lo. (... ) Estes Senhores formaram um plano de
moralidade geográfica, pela qual os deveres dos homens em situações públicas e privadas não são para serem governados pela sua relação com o Grande Governador do Universo, ou pela sua relação com a humanidade, mas por climas, graus de longitude, paralelos, não de vida mas de latitudes.( ... ) Nós contestamos esta moralidade geográ-
fica36.
~ando se percorrem os milhares de páginas que constituem o processo de Warren Hastings assistimos a uma defesa renhida da justiça que precisa seguir princípios universais de respeito pela dignidade humana independentemente do contexto cultural em que se exerce. O governo inglês na Índia precisava respeitar a cultura do povo e actuar segundo verdadeiros princípios britânicos de liberdade, em defesa e protecção dos povos governados.
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"H e as rold ( ... ) in h is defence rhar acrions in Asia do nor bear rhe sarne moral qualiries which rhe sarne acrions would bear in Europe ( ...) we posirively deny rhar princi· pie. Iam aurhorized and called upon ro deny ir. ( ...) rhese genrlemen have formed a plan of geographical moraliry, by which rhe duries of men , in public and privare siruarions, are nor to be governed by rheir relarion to rhe Grear Governor of rhe Unive rse, or by rheir relarion ro mankind, bur by climares, degrees oflongirude, parallels, nor oflife, bur oflarirudes ( ... ) This geographical moralirv we do proresr agai nsr". Burke ( 1867), lmpeachment of Wan·en Hastings, February 16, 1788, Works IX, pp. 447-8.
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Em 1785 Burke manifesta pela primeira vez a intenção de processar Hastings. O processo propriamente dito é votado no Parlamento em Maio de 1787 e começa efectivamente em Fevereiro de 1788. Haveria de durar até 1794 tendo sido muito penoso para todos os envolvidos. Hastings era um homem poderoso e com muitos amigos, todo o processo viria a representar para Burke um período de perseguição pública que ele enfrenta galhardamente. Hastings é julgado culpado das acusações na Câmara dos Comuns e acaba por ser absolvido na Câmara dos Lordes em 23 de Abril de 1795. O autor tinha a intenção de abandonar o Parlamento a seguir à conclusão do processo de Hastings, e fá-lo de facto quando os trabalhos terminam em 1794, e antes que a Câmara dos Lordes se pronuncie em 1795, afirmando no entanto que a luta travada para moralizar o poder exercido na Índia em defesa daquele povo era o que considerava de mais importante na sua carreira, tudo o mais que ele tivesse feito poderia ser esquecido.
A defesa dos Colonos americanos
Outro aspecto bem conhecido da sua vida parlamentar, posto frequentemente em paralelo com a sua crítica à Revolução Francesa, é a defesa dos direitos dos colonos americanos. De facto, sem que se possa dizer que apoia a Revolução Americana, Burke apoia a luta dos colonos americanos, porque entende que o espírito que preside às suas reivindicações é o mesmo que enforma as aspirações dos ingleses porque respira os mesmos princípios de liberdade. Combater ou desacreditar as exigências dos Colonos era impossível sem pôr em causa as próprias liberdades do povo inglês e aquilo por que tinham lutado os seus antepassados: Com o objectivo de provar que os americanos não têm direitO
às suas liberdades, estamos constantemente a tentar subverter as
máximas que preservam todo o espírita das nossas liberdades. Para
28 provar que os americanos não devem ser livres, somos obrigados a denegrir o valor da própria liberdade, e nunca ganhamos a mínima vantagem sobre eles no debate sem atacarmos alguns daqueles princípios ou sem ridicularizarmos alguns daqueles sentimentos pelos quais os nossos antepassados derramaram o seu sangue 3i .
Dito assim: Burke apoia a luta dos colonos americanos, luta essa que se agudiza e que culmina na Revolução Americana e na independência da Colónia, poderia pensar-se que Burke, afinal, sempre apoia algumas revoluções. É verdade que vai salvaguardar o direito à revolta em determinadas circunstâncias mas, neste caso específico, quando apoia os colonos, o que Burke preconiza é que o governo inglês volte à sua forma anterior de relacionamento com a Colónia: que suspenda o Stamp Act- que lançava o imposto sobre o chá - que levou ao justo protesto que na altura se desencadeou. O governo de Inglaterra reivindica o seu direito em abstracto a taxar a Colónia, uma vez que é a sua legítima potência administradora, e é a isso que Burke se opõe, obedecendo a um antigo preceito: de tallagio non concedendo, que supõe ser necessário o consentimento para o lançamento do imposto: não taxar quem não está representado no Parlamento e não pode, por isso, ter dado o seu consentimento. Os seus discursos no Parlamento apontam todos para a suspensão do imposto sobre o chá, este sim inovador e "revolucionário" no que respeita às relações antes mantidas entre a Inglaterra e a sua Colónia. Relações que se tinham desenvolvido ao longo do r " ( ... ) in arder to prove rhar rhe Americans have no righr to rheir liberries, we are every day endeavoring to subverr rhe maxims which preserve rhe whole spirit of our own. To prove rhar rhe Americans oughr nor to be free, we are obliged to depreciare rhe value of freedom irself; and we never seem to gain a palrry advanrage over rhem in debate, wirhour arracking some of rhose principies, or deriding some of rhose feelings, for which our ancesrors have shed rheir blood". Burke ( 1865), Speech on Conciliation With the CoÚmies, Works li, p. 130.
29 tempo num respeito mútuo, que tinham sido objecto de reformas e de cedências de parte a parte, e que estavam agora a ser prejudicialmente afectadas pela reivindicação abstracta de um direito a lançar imposto, reivindicação que era a um tempo injusta e insensata. Injusta porque, ao arrepio do respeito que se devia às liberdades e direitos dos ingleses - fossem estes do continente ou das colónias - se estava a tentar instituir um imposto votado num parlamento sem a correspondente representatividade; e insensata, porque, pela afirmação prepotente de um direito abstracto de domínio, que materialmente representava muito pouco, se punha em causa, como de facto se pôs, todo o proveito de uma associação de longa data com a América 38 • Burke não era favorável à independência da América. Apreciador da Constituição inglesa, achava que era uma grande vantagem para qualquer colónia viver sob administração britânica, achava isso para a América, como achava para a Índia e já tinha achado isso para a sua Irlanda natal. Mas Burke era um grande defensor da liberdade e o que se estava a fazer era uma grande ofensa à liberdade. Era também um grande defensor da prudência política - não uma cautela mesquinha a que Burke chamou expressivamente reptile prudence - mas uma prudência com respeito pelos princípios e, como não podia deixar de ser, com atenção às circunstâncias. O que estava a acontecer no procedimento de Inglaterra com a sua colónia era que, em nome de um direito em abstracto ao domínio - em abstracto porque não se estava a atender nem às circunstâncias nem às consequências como mandaria uma deliberação política prudente- , se estava a atropelar direitos que eram respeitados na terra-mãe e que se deveriam respeitar na colónia porque os colonos eram também cidadãos britânicos. f questionável a ideia de Burke de que bastaria à Inglaterra desistir do Stamp Act para que as relações com a C olónia voltassem ao que eram am es. f mesmo provável que o movimento independentista tivesse eclodido mesmo sem o Stamp Act, ou após a sua revogação. 38
30
De facto, o que há a reter da posição de Burke nesta contenda é que ele defende que a Inglaterra volte à relação que anteriormente mantinha com a Colónia, que respeite os direitos consignados na sua própria Constituição aplicando-os também aos colonos, que pondere prudentemente quais são os seus direitos em relação à Colónia e quais os seus deveres e que não decida por um direito que, apesar de válido em teoria, é verdade, porá em causa toda a relação construída até ali. O que Burke propõe é que a Inglaterra não inove na sua relação com a Colónia, que respeite a liberdade dos seus súbditos, porque isso fortalecerá os laços existentes, com o que o próprio Império tem tudo a ganhar. ~e não faça política baseada em direitos abstractos mas atendendo à herança recebida, à tradição, ao preconceito dos colonos e à prudência. Não sendo um crítico do Império Britânico, bem ao contrário, prezava os princípios de liberdade presentes nas instituições e nos princípios de governação britânicos e ser súbdito do rei de Inglaterra era, em seu entender, um privilégio, na condição de que o rei não se esquecesse de que deveria governar o Império segundo os princípios ingleses mas no respeito pelas liberdades e idiossincrasias dos povos que administrava39 • Estes são alguns exemplos da luta persistente que Burke julgava ser o papel de um verdadeiro amante da liberdade. Como ele próprio afirma nas Rejlections, os radicais mais apaixonados esgotam o seu entusiasmo, com mais ruído que efeito, numa qualquer causa espectacular do momento, mas depois deixam o trabalho mais contínuo, e de efeitos mais profundos, para os que amam a liberdade mais do que o palco. Uma carreira longa e brilhante de deputado Whig, que sempre teve um papel preponderante nas lutas pela liberdade que acima enunciámos, fez que fosse grande a surpresa em muitos meios, quando Burke se pronunciou contra a Revolução Francesa. Thomas 19 ·
Cf. Ivone Moreira, Op. Cit., p. 3.
31
Jefferson chega mesmo a afirmar que o surpreende mais a revolução em Burke do que a Revolução Francesa40 • Acusações de contradição e incoerência com os seus anteriores princípios levantaram-se na altura e persistem mesmo na história dos seus comentadores. Burke esclarece a coerência das suas posições numa obra publicada em 1791 e intitulada Appeal ftom the New to the Old Whigs. De facto, quem se preocupar com uma leitura atenta da sua obra, e dos princípios políticos que defende, verifica que estes permanecem inalterados desde muito cedo, mais precisamente desde 17 57, data do prefácio à segunda edição da Vindication ofa Natural Society.
As Rejlections on the Revolution in France Em 1 de Novembro de 1790 é publicada em Londres, por Dodsley, o Editor de Burke, a obra com o título: Rejlections on the Revolution in France and on the Proceedings in Certain Societies in London Relative to That Event in a Letter Intended to Ha ve Been Sent to a Gentleman in Paris. A forma adoptada para a publicação é a de uma suposta carta a um correspondente francês. O correspondente existiu, e como o próprio Burke esclarece, motivou o seu primeiro levantamento de problemas relativos ao evento, o que constituiria o conteúdo de uma primeira carta que não chegou a ser enviada por receio de o prejudicar. Mas, de facto, era também verdade que este estilo permitia um desenvolvimento mais informal da argumentação com um tom mais cativante para o leitor, e permitia abordar questões morais e políticas de uma forma mais directa. O panfleto político, por vezes longo e sob a forma de carta, era usual na altura. Pela sua extensão e pela estrutura que acaba por assumir, só esporadicamente este texto nos lembra uma carta. Não sendo um texto sistemático ou um tratado teórico, é mais estruturado do que 40 "( ..• ) che Revolucion in France does not astonish me so much as che revolucion in Mr. Burke", lhe Papers oflhomasj ejferson , 20, p. 304. Citado por Yuval Levin (2014) lhe Great D ebate, New York: Basic Books, p. 35.
32 uma carta seria e o seu tom é, logo desde o início, pedagógico, o que se compreende, já que o correspondente, Charles Jean François Depont, era um jovem amigo de seu filho que tinha passado algum tempo, em anos anteriores, na propriedade de Burke em Beaconsfield. De Janeiro a Março de 1773, Burke tinha viajado até ao Continente com o filho , que aí iria passar algum tempo com o intuito de aprender a língua. Esta passagem por França permitiu-lhe fazer algumas amizades. Entre elas se conta a família do jovem Charles Jean François Depont, que Burke recebe em Beaconsfield. ~ando a Revolução eclode, este último apressa-se a escrever a Burke solicitando a sua opinião sobre os acontecimentos. Charles Jean François Depont tinha ouvido Burke falar entusiasticamente sobre a liberdade, o que lhe teria causado uma viva impressão. Na sua breve, e não muito interessante, resposta ao autor das Rejlections, publicada em 1791 , Depont refere-se a essas conversas como ocasião de uma descoberta que o tinha empolgado, julga então que a revolução em França tem o apoio do velho e experiente parlamentar inglês 41• O jovem Depont não é o único a pensar que Burke há-de ser favorável à Revolução Francesa. Outros, que o deveriam conhecer melhor, pensam o mesmo. ~ando a Revolução eclodiu, figuras como Thomas Paine que tinha sido um activista a favor da Revolução Americana, e que, nessa qualidade, tinha tido em Burke um interlocutor favorável, pelo menos em certa medida- de facto, não nos mesmos princípios, já que Paine era um republicano e Burke, como antes se mostrou, apenas queria defender os direitos dos colonos, não implantar uma república -, ou Jean-Baptiste Cloots, barão francês, diletante e ateu, com grande fervor pela Revolução Francesa, guilhotinado em 1794, que tinha sido visita de Burke em Beaconsfield dez anos antes, escreveram-lhe longas cartas contando 41 Charles Jean François Deponr ( 1791 ),An Answer to the Rejlections ofthe Right H onourable Edmund Burke, London.
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pormenorizadamente os sucessos da Revolução Francesa em tom de quem os partilhava com um correligionário. ~ando
Burke anuncia que vai publicar um panfleto contra-revolucionário, a notícia é inesperada e muito mal recebida: que um confessado apoiante das reivindicações dos colonos americanos fosse agora um inimigo da Revolução Francesa, que alguns julgavam baseada nos mesmos princípios, era algo incompreensível, mesmo para os amigos mais próximos de Burke. E, a partir de 1790, Burke enfrentou oposição vinda de todo o lado: o seu amigo de sempre, Charles James Fox, líder parlamentar dos Whigs, que dirigia a facção que apoiava a Revolução Francesa, opôs-se às posições de Burke; os Tory, que viriam a dar origem ao actual partido conservador, que admiraram profundamente o texto das Rejlections, não estavam abertamente ao lado do seu autor, pelo menos de início. Afinal, Burke tinha sido o orador brilhante que durante décadas criticara as posições Tory na bancada Whil 2• A primeira questão que se pode imediatamente colocar quando analisamos o título é: porquê referir-se à Revolução Francesa como revolução na ou em França? Burke acreditava que a Revolução não era uma insurreição de todo o povo de França, acreditava antes que o povo francês estava a ser manipulado por grupos intelectuais, com uma agenda definida, jacobina, que se reuniam há algum tempo nos salões de Paris. Estes grupos, de constituição variada, de que tomavam parte os enciclopedistas, eram cliques que teriam mobilizado os cabecilhas que depois levaram os parisienses às ruas da capital, mas o resto do povo de França tinha sido forçado a aderir muito contra a sua vontade. Reconhecendo que o Ancien R egime requeria reforma, julga também que esta reforma já tinha começado e que o rei Luís XVI era um monarca disposto a atender às reivindicações do povo, como o demonstrava a convocatória dos Estados Gerais. ''
Cf. l"one Mo reira, Op. Cit., p. 6.
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Ao contrário da ideia de que os sujeitos transportam os direitos naturais para o interior da sociedade civil, Burke julga que a constituição da sociedade supõe, precisamente, que os sujeitos que se dispõem a entrar nela abdicaram de parte dos seus direitos naturais para adquirir outros apenas possíveis em sociedade. E, embora não tenham deixado de possuir direitos naturais, no interior da sociedade política, estes sofreram os ajustamentos necessários à sua satisfação, e já não se apresentam com a clareza lógica dos direitos naturais mas, contudo, são mais reais e efectivos 43 . Os benefícios da Sociedade Civil resguardam e dão forma à satisfação dos direitos naturais e essa forma é tanto mais eficaz quanto a sua resposta às necessidades humanas foi ajustada ao longo de gerações. No contrato social burkeano efectiva-se um compromisso entre várias gerações, entre os que estão monos, os que estão vivos e os que hão-de nascer, porque se trata de uma parceria em bens cuja conquista demora várias gerações a conseguir e que não é para ser destruída por uma atitude egoísta e imprudente. Este contrato é um compromisso entre várias gerações e destas com a ordem eterna, um compromisso moral de realização do humano, de que cada geração não se pode eximir e onde se reconhece que apenas uma longa cadeia de gerações pode apurar a sociedade de molde a que esta permita a plena realização do homem. Este contrato não pode ser quebrado como um acordo comercial porque é uma parceria, cultural, moral e espiritual. A sociedade existe para o aperfeiçoamento humano e os indivíduos devem ver nela um bem superior que não podem malbaratar. Nesta sociedade todos têm qualitativamente iguais direitos e alguns destes direitos 43 "These meraphysic righrs emering imo com mon life, like rays of lighr which pierce imo adense medi um, are, by rhe laws ofNarure, refracred from rheir srraighr line. Indeed, in rhe gross and complicared mass of human passions and concerns, rhe primirive righrs of men undergo such a variery of refractions and reAections rhar ir becomes absurd to ralk of rhem as if they cominued in rhe simpliciry of rheir original direcrion ". Burke ( 1865), Rejlections on the Revolution in France, Works III, p. 312.
35 são incomensuráveis e por isso iguais para todos- como o direito à vida e à liberdade; mas outros, embora qualitativamente iguais são quantitativamente diferentes e variam de sociedade para sociedade e cada um tem direito à proporção que ele, e a sua família antes dele, investiu na comunidade política. Se é possível pôr em causa a sociedade política quando em circunstâncias de tirania extrema, é preciso que não haja qualquer expectativa de melhora, o que não era o caso da França em 1789. Uma revolução no governo serve para remover um mal cruel e premente e deve ver-se com grande clareza o bem inequívoco a obter daí, antes de pôr em causa o inestimável preço da moral e do bem-estar de multidões pela revolução 44 • ~ando estudamos a sua correspondência deste período com franceses 45, vemos que mantinha contacto com pessoas que conheciam bem a França profunda e lhe reportavam outras sensibilidades do povo francês e o profundo desagrado com que este tinha de corresponder às exigências dos enviados de Paris.
Burke caracteriza a Revolução em França como a primeira revolução intelectual, concebida e desenhada teoricamente e levada a cabo com a arrogância e a presunção de quem não nutre qual44 Cf "( ... ) the case of a revolution in government, this, I think, may be safely affirm ed, - th at a so re and pressing evil is to be removed, and that a good, great in its amount and unequ ivocal in its nature, must be probable alm ost to certainry, before the inestimable price of ou r own morais and the well-being of a number of ou r fellow citizens is paid for a revolutio n". Burke ( 1866 ),Appealfrom the New to the Old Wh igs, Works IV,
P· 81. 45 Eis algu ns dos corresponde ntes franceses deste período: Jean-Batiste- François-Pierre Parisot, fa mília do Bispo de Auxerre. A família Pari sor escreve a Burke contand o as perturbações do período revolucionário em Auxerre. Ourros seus co rrespondentes são figuras de relevo, algumas de futuros exilados: Agathon Marie René de la Bintinaye, C harles-Alexandre de Calonn e, anrigo controlado r geral das fin anças, Pierre-Gaeton Dupo nt, que vi rá a traduzi r as Rejiections para fra ncês, Abbé H onoré-Charles- Ignace Foulon, François de Menonville, C laude François de Rivarol e Lally de T ollendal, C f. Correspondence, Vol. VI, ao longo de rodo o volume, que é expressamente dedicado à correspondênc ia deste período.
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quer tipo de apreço pelo que as gerações anteriores construíram. A mentalidade que subjaz a esta atitude é analisada em contraste com a cultura inglesa que ele julga respeitadora da tradição e do preconceito - termo que Burke usa com um sentido particular : em Burke, o preco nceito não tem , habitualmente, um sentido pejorativo: trata-se do preconceito associado à sua razão de se r, que o autor designa por justo preconceito - não se trata de um costume absurdo, mas de uma preferência justificada- ajuda o homem a decidir mais rapidamente e a comprometer-se numa linha de actuação condizente com a sabedoria sedimentada na sociedade em que se vive ..6 . Burke considerava que o preconceito reflecti a uma espécie de sentim ento moral que ocultava uma sabedoria profund a e que, enquanto os franceses se empenhavam em destruir os preconceitos sem se aplicarem a perceber se estes tinham ou não razão de ser, e se valia ou não a pena preservá-los, os ingleses, sobretudo os mais cultos, aplicavam-se a procurar a sua sabedoria escondida, o que se provava valer a pena. O que, internamente, desencadeia a escrita das Rejlections on the R evolution in France é um Sermão pronunciado por um clérigo diss idente muito erudito e considerado, Dr. Richard Price, numa igreja na Antiga Judiaria ( Old j ewry ). O grupo qu e ass istiu ao sermão dirigiu-se depo is para a London Tavern onde fez aprovar um voto congratulatório que enviou à Assembleia ac ional Francesa. Esta atitude preocupa Burke, preocupa-o que a sociedade inglesa possa ser vista como apoiante da Revolução Francesa, preocupa-o que este grupo, que ele não julgava importante nem representativo no momento, pudesse ganhar popularidade, preocupa-o que os tumultos de França pudessem comunicar-se a Inglaterra, sobretudo,
* Co mo afirma Louis H um: "The com mon prejudices of a nari on are superio r to the reason of rhe ind ividual, not o nly because they are the repo irory of rhe practical wisdo m of preYious generati ons, bu t because uch p rejud ices engage the mind more effec · rivek rhan do rational precepts alo ne". Louis Hunt (2002 ), "Prin cipie and Prejudice: Burke, Kant & H abe rmas on Prac t ical Rea on", H istory oJPolitical Thought, Vol. XXlll , n. 0 1, Sp ring, p. 132.
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estando convencido, como está, de que se trata de uma revolução de costumes, maneiras, convicções e que a permeabilidade da intelectualidade inglesa pode acontecer, uma vez que estas ideologias tinham começado a penetrar em alguns clubes ingleses e estavam a fazer um caminho similar ao que tinham feito em França. O líder da altura do partido Whig, a que Burke continuava a pertencerr , Charles James Fox, defendia que a Revolução Francesa se inspirava na Revolução Inglesa de 1688, posição não exclusiva de Fox, outros o entendiam assim também. É também essa a interpretação do autor do Dr. Price, o Teólogo Dissidente que Burke vai criticar e a quem vai responder em grande parte do panfleto. Mas esta posição de Fox foi motivo de profunda divergência de Burke com o seu velho amigo e companheiro de partido. Burke aplica-se nas Reflections on the Revolution in France a demonstrar a grande diferença de princípios entre as duas revoluções, embora a sua interpretação da Revolução de 1688 tenha um certo cunho original: Burke escolhe apresentar a Revolução de 1688 como um acto de unanimidade nacional, o que não é consensual entre os historiado res da Gloriosa Revolução. Com esta resposta, a intenção de Burke é caracteristicamente política. Afinal, Burke tinha estado na Câmara dos Comuns há décadas a combater pelos ideais em que acreditava e que, eles sim, se opunham radicalmente aos ideais que presidiam à Revolução Francesa, não nas suas aspirações de justiça social, que também animavam Burke, mas no modo como essa justiça se haveria de conseguir. O objectivo do livro é alertar a sociedade inglesa para a riqueza da sua própria Constituição e para o carácter demolidor da ideologia ,- Po r divergências q ue começaram com a Revolução Francesa, Burke abandona o partido em 21 de Junho de 1794. Burke tinha há algum tempo afirmado que quando terminasse o processo de impugnação de \Varren H astings deixari a o Parlamento. O processo termina em Maio, no que respeita aos trabalhos da H ouse of Commons, e Burke apresenta a sua demissão em Junho . Burke pensava deixar o seu lugar no Parlamento para se r ocupado pelo seu filh o Richard Burke mas o seu filh o adoece gravemente e morre a 4 de Agosto desse mesmo ano deixando Burke devastado .
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jacobina, que subjaz à Revolução que grassa em França, destrutiva dos valores em que se funda a sociedade britânica, e cujas consequências desastrosas estavam à vista no país vizinho. As Rejlections on the Revolution in France são escritas antes do período do terror, antes da condenação e morte do rei, antes da expropriação das famílias nobres, antes de um general tomar conta dos seus destinos, antes das invasões francesas. Burke prevê tudo isto com perfeita clarividência. O seu conhecimento da natureza humana permite-lhe ver distintamente, mais distintamente ainda porque à distância, a deriva que estes líderes políticos sem qualquer experiência e com aversão a ela- a quem anima apenas um espírito de engenharia social e que julgam poder construir de raiz uma sociedade, sem atender ao testemunho transmitido pelas gerações precedentes e ao seu património cultural -podem imprimir na sociedade de que, desgraçadamente, tomaram conta, bem como naquelas a que futuramente se impuserem. O livro constitui uma extensa resposta às expectativas dos seus opositores. Nele, Burke preocupa-se em distinguir os valores pelos quais lutou toda a sua vida e que enformam a sociedade inglesa, dos valores que subjazem aos acontecimentos em França. Logo nos primeiros comentários que aparecem na correspondência sobre a Revolução Francesa, numa carta a Lord Charlemont, escrita a 9 de Agosto de 1789 - cerca de 3 semanas após da tomada da Bastilha- Burke afirma: (... ) quanto a nós aqui, todas as reflexões sobre assuntos internos estão suspensas pelo nosso espanto em relação ao fantástico espectáculo exibido no país nosso vizinho e nosso rival (... ) a Inglaterra está atónita de espanto pela luta de França pela liberdade, sem saber se há-de aplaudir ou reprovar! (... ) o espírito é impossível não admirar; mas a velha ferocidade parisiense rebentou de um modo
39 chocante. (... ) se isro é carácter e não acidente, então este povo não está preparado para a liberdade (... ) Entretanto, o andamento de rodo este assunto é um dos mais curiosos materiais para especulação que alguma vez se viu 48 •
Embora, publicamente, Burke viesse a revelar qual era a sua posição face à revolução só seis meses depois, em 9 de Fevereiro de 1790, anunciando no Parlamento que iria publicar um panfleto criticando a revolução, no comentário precoce da sua correspondência já estava implícita a posição que Burke viria a tomar sobre o assunto, da qual a defesa da liberdade civil e ordeira era um importante aspecto. Para protecção desta liberdade, era indispensável a preservação do património, intelectual e cultural, de costumes, maneiras e instituições, que tinham crescido como organismos vivos, adaptando-se, desenvolvendo-se e reformando-se, corrigindo o que importava corrigir e preservando o que era digno disso, que tinham mostrado saber proteger a herança de séculos e saber usar a sabedoria acumulada pelas civilizações, que nenhum homem ou grupo de homens isolado, poderia ultrapassar. Em 1791, um ano após a publicação das Rejlections on the Revolution in France, Burke admite que talvez uma grande mudança ou revolução de mentalidade esteja para ocorrer e seja inelutável : Se é para ser feita uma grande mudança nos assuntos humanos, as suas mentes estarão preparadas para ela, as opiniões e sentimen48 Cf. "As to us here ou r rhoughrs of every rhing ar home are suspended, by our asronishmenr ar rhe wonderful Specracle which is exhibired in a Neighbouring and rival Counrry ( ... ) England gazingwirh asronishmenr ar a French srruggle for Liberry and nor knowing wherher to blame or to applaud! ( ... ) rhe spirir ir is impossible nor to admire; bur rhe old Parisian ferociry has broken ou r in a shocking manner. (... ) if ir should be characrer rarher rhan accidenr, rhen rhar people are nor fir for Liberry ( ... ) ln the mean rime rhe progress of rhis whole affair is one of rhe mosr curious marrers of Specularion rhar ever was exhibired ", Burke ( 1967), "Burke to rhe Earl ofCharlemont", 9 Aug. 1789, Correspondente, Vol. VI, p. 10.
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tos gerais irão nesse sentido. Todos os receios e rodas as esperanças a seguirão e, então, aqueles que persistem em opor-se a esta poderosa corrente parecerão resistir não tanto aos meros desígnios dos homens, quanto aos próprios decretos da Providência. Não serão resolutos e firmes, mas perversos e obstinados·•9.
Charles Vaughan 50 , um importante comentador, julga que estas afirmações ilustram a humildade do autor capaz de aceitar a Revolução Francesa como um desígnio da Providência e portanto disposto a aceitar estas mudanças morais. Como outro comentador, Rodney Kilcup 51 , bem observa, esta aceitação passaria por considerar os valores como essencialmente históricos. Há, todavia, uma interpretação mais consentânea com toda a prática de Burke. O autor considera a Revolução Francesa como uma revolução intelectual, cujos princípios estão aguerridamente presentes nas convicções dos seus líderes, tomando conta da cultura 49 "If a great change is to be made in hum an afFairs, rh e minds of man will be firted to ir, rhe gene ral opinions and feelings will draw that way. Every fear , every hope, will forward ir; and rh en they who persist in opposing this mighry current in human afFairs will appea r rather to resist the decrees of Provide nce itself th an the mere designs of men. They will not be resolute and firm , but perver e and obstin are". Burke ( 1866), 7houghts on French A.lfoirs, Works IV, p. 377.
50 "But, in sp ite of al i his in consistencies and ali h is fears, h is fait h in human reason was so great, h is belief in the durv of following nature was so rrong. rh at !ater enquirers might well be proud to reckon him among their rank ( ... ) Burke was prepared to sacrifice the apparenr work of a lifetime in th e cause of rrurh. And h is humility had its rewa rd. H e saw furrher rh an anv of h is conrempo raries. ( ... ) he had so mething of the temper, he had so me earnest of the ideas, whi ch when once the smoke and roa r of rhe barde were spe nt, would go to blend the unreasonable srubborn ness of the past, and the no less unreasonable desrrucriveness of the presem , in a wider, a more reaso nable, and perhaps more enduring whole" . Charles Vaugh an ( 1939), Studies in the History• ofPolitica! Philosophy Before and After Rousseau II, Litde, A. G . Ed., M anchester: M anchester U niversity Press, p. 63. 1 ; "There are no genui nely perm anenr moral principies for the guidance of polirics except in the absrract sense th at whatever God will fo r men is mo rally obligarory" . Kilcup (Sep., 1977 ), "Burke's H istoricis m", 7hejournal ofModern History, Vol. 49, n. 0 3. pp. 394-4 1O, p. 395.
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e da mentalidade dos parisienses. Julga que, no presente estado de coisas em França, a Revolução ainda não tinha o acordo de todos os franceses. Estas observações expressam o seu receio de que, como afirma nas Rejlections on the Revolution in France, esta mudança venha a ser aceite, de que "o tempo da cavalaria" tenha, de facto, acabado e que a era dos sofistas, dos economistas e dos contabilistas se lhe suceda52. É verdade que Burke é humilde e vê na marcha da história a intervenção da Providência divina. Também é verdade que já desde a sua redacção do A bridgement on aEnglish History, várias décadas antes, reconhece que Deus pode permitir revoluções no mundo moral do mesmo modo que permite milagres no mundo físico . Todavia, Burke não julga que os resultados imediatos de uma revolução instaurem uma nova ordem de bem, como preconiza Kilcup ao julgar que as afirmações de Burke em 1houghts on French Ajfàirs supõem a historicidade dos valores. Para o irlandês os caminhos da providência são misteriosos e Deus pode retirar o bem do mal que permite53 e a história é preceptora de prudência, mas não de princípios 54. As observações de Vaughan não parecem ter em conta que a sua estrénua luta contra a Revolução Francesa continua até à sua morte, em Beaconsfield em 9 Julho de 1797. Burke estará disposto a considerar que existe uma revolução moral e que ela é um desígnio da Providência quando puder certificar-se de que as mudanças são em geral aceites por toda a sociedade, mas a sua prática não indicia que tivesse chegado a essa conclusão. 51 "But the age of chivalry is gone. That of sophisters, eco nomists, and calculators h as succeeded; and eh e glory of Europe is extingu ished fo rever". Burke ( 1865), Rejlecrions on rhe Revolution in France, Works III, p. 33 1. 53
Para um dese nvolvimento mais aprofund ado desta problemática: C f. Ivone Moreira, Op. Cit. pp. 373-379. 5 '
"Historv is a preceptor of Prudence, no t of principies. The principies of crue politicks are those of moraliry enlarged; and I neicher now do o r ever will admit of any ocher". Burke (1960 ), "Letterto Dr. Will iam Markham ", pose 9 November 177 1, Corres-
pondence 11, p. 282.
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Depois da escrita das Reflections on the R evolution in France, Burke publica várias obras de fôlego a analisar o andamento da Revolução, defende que a Inglaterra deve declarar guerra à França, corresponde-se com os franceses no exílio chegando a interceder por eles incitando outros países a coligarem-se contra a França, chega mesmo a escrever a Catarina da Rússia a pedir-lhe que interfira. Abre uma escola francesa em Inglaterra, com donativos que angaria, para ser frequentada pelos filhos dos refugiados franceses no exílio, a escola mantém-se em funcionamento até 1814 e, após oretorno da monarquia, com financiamento do governo francês. Toda esta combatividade não se pode atribuir a alguém que reconhece os valores que chegam com a Revolução Francesa. Burke poderá achar que é preciso não combater contra moinhos como o "Cavaleiro da Triste Figura" e que, por isso, se a sociedade parecer toda ela inclinada à mudança, é preciso assistir a essa mudança e não tentar intervir, mas com a resignação de quem suporta um castigo divino. Ao comentar a Revolução Francesa, numa longa carta a Lord Fitzwilliam, Burke afirma: Meu Senhor, nada se pode aprender destes exemplos, excepto o perigo de se ser rei ou rainha, nobre, clérigo, e filho e se ser morto por causa do que se herda. Estas são as coisas às quais não o vício, não o crime, não a loucura, mas a sabedoria, a bondade, o conhecimento, a justiça, a probidade e a benevolência se opõem. Por estes exemplos a nossa razão e o nosso sentido moral não são esclarecidos mas confundidos, e não há refúgio para a virtude pasmada e amedrontada, senão aniquilar-se em humildade e submissão, mergulhando em profunda adoração das imperscrutáveis dádivas da Providência e, voando com asas trémulas deste mundo, com crimes tão escanda- losos e uma justiça fraca e pusilânime, buscar asilo noutra ordem de coisas numa forma desconhecida mas numa vida melhor" . ;s "My Lord, norhing can be learned from such examples, excepr rhe danger of being kings, queens, nobles, priesrs, and children, to be burchered on accounr of rheir inherirance. These are rhings ar which nor vice, not crime, nor folly, bur wisdom, good-
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Burke poderá estar disposto a reconhecer que a marcha dos acontecimentos é inelutável - a sua prática até à sua morte não indica isso - mas não para adm itir que daí venha algum ganho para a sociedade. Muito mais haveria a dizer acerca de um autor muito rico e pouco conhecido entre nós, com uma obra vasta - constituída, fundamentalmente, por discursos e correspondência- que marcou muito significativamente o século em que viveu e que, por atender ao que no homem é essencial e se encontra enraizado na sua natureza, escreveu páginas intemporais onde ainda hoje se pode colher sabedoria política. Fica ao leitor saborear as magníficas páginas das Reflexões sobre a Revolução em França e, acredite, muitas outras de igual sagacidade e beleza se encontram em outros escritos seus que vale absolutamente a pena visitar.
Ivone Moreira
ness, learning. justice, probity, beneficence, stand aghast. By these examples our reason and ou r moral se nse are not enlightened, but confounded; and there is no refuge for as· toni shed and affrighted virtue, but being annihilated in humility and submission, sinking into a silent ado ratio n of the in scrutable dispensations of Providence, and flying with trembling wi ngs from this world of daring crimes, and fee ble, pu sillanimous, half-bred, bastard justice, to the asylum of another order of things, in an unknown form, but in a better life". Burke ( 1866), Letter on Regicide Peace IV, Works VI, p. 42.
REFLEXÕES SOBRE A REVOLUÇÃO EM FRANÇA E ACERCA DOS PROCEDIMENTOS EM CERTAS SOCIEDADES EM LONDRES RELATIVOS A ESTE EVENTO: NUMA CARTA SUPOSTAMENTE ENVIADA A UM CAVALHEIRO EM PARIS 1790
Pode ser necessário informar o leitor que as Reflexões que se seguem tiveram a sua origem numa correspondência entre o autor e um cavalheiro muito jovem de Paris, que lhe deu a honra de desejar a sua opinião acerca das transacções importantes que na altura - e desde então - tanto têm ocupado toda a gente. Uma resposta foi escrita em tempos no mês de Outubro de 1789; mas ficou retida por considerações prudenciais. Alude-se a essa carta no início das folhas seguintes. Foi entretanto enviada ao destinatário. As razões do atraso em enviá-la foram mencionadas numa carta breve para o mesmo cavalheiro. Isso produziu nele uma nova e premente solicitação acerca dos sentimentos do autor. O autor começou uma segunda discussão mais completa sobre o assunto. Esta com o intuito de a publicar no início da Primavera passada. Mas, cativado pelo assunto, descobriu que o empreendimento não só tinha excedido em muito as dimensões de uma carta, mas também que a sua importância requeria uma consideração mais detalhada do que o tempo de que o autor dispunha na altura para lhe dedicar. Contudo, tendo posto as suas primeiras reflexões sob a forma de carta- e, de facto, quando se sentou a escrever tencionava que fosse uma carta privada - teve dificuldade em mudar a forma de endereçar-se quando os seus sentimentos ganharam maior amplidão e outra direcção. O autor tem consciência de que um plano diferente podia ser mais favorável a uma mais ampla divisão e distribuição da matéria.
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C aro Senhor56 , Tem a bondade de voltar a solicitar, co m alguma urgência, o meu parecer sobre os últimos acontecimentos em França. ão lhe darei motivos para pensar que julgo os meus sentimentos de tal valo r a ponto de desejar que me supliquem por eles. São de pouca importância, quer para serem comunicados quer escondidos com grande ansiedade. Fo i por atenção a si, e apenas a si, que hesitei, em tempos, quando primeiro os quis conhecer. Na primeira carta que tive a honra de lhe escrever 57 e que, por fim , lhe enviei, não escrevi nem para nem a pedido de nenhum grupo em particular, também não o farei nesta. O s meus erros, se os há, são só meus e apenas a m inha reputação responde por eles. O Senhor pode ve r pela longa carta que lhe escrevi que, embora eu de todo o coração deseje que a França possa estar animada po r um espírito de liberdade racional e que pense qu e deveis estar obrigados em toda a verdadeira política a criar um co rpo permas6 Nota de traduto r (N .T. ) Carta a C harles Jean Franço is D epont (n. 1767· · 1796·7 '? ), jovem que iniciou a sua carreira política em 1784 como membro do Parl a· menro de M etz, sob os auspícios do seu pai J ean-Samuel D epont, Intendente em Metz. Em 1787 torna-se co nsultor do Parl amento de Pa ris. A atitude do jovem D epo nt perante a Revolução era de moderado optimismo . Resolve esc reve r a Bu rke em 4 de ove mbro de 1789 a ped ir-lhe a sua opinião sobre os recentes desenvolvimentos em França. Escreveu depois um panflero respost a às Refl exões t raduzido para inglês e publica· do em Londres em Fevereiro de 179 1, no qu al D epont mantém o seu mod erad o oprimi s· mo, argu menta a favo r da necessidade d a Revolução, conden ando embora os exage ros e os "crimes" de O utub ro, manife tando ao mes mo tempo a esperança de que a Revolução entrasse no caminho de uma maior mode ração. Cf. Cha rles Jea n Franço is Depo nt ( 179 1) An Answer to the Reflections ofthe Right H onourable Edmund Burke, Lo ndo n, pp. 5-6, 11 -14. s· N .T. A sua prim ei ra carta, uma longa carta escrita 4 meses após a qued a d a Bastilh a, é a pri meira análise ex tensa que Burke faz da ReYolução Francesa. Não é imediatamente enviada, em seu lugar Burke envia u ma ou tra carta ma is cu rta, a q ual não há notÍcia de ter subsistido, pensa-se que a primei ra é enviada apenas no iníci o de 1790, aparentemente porqu e Burke recea,·a que a carta pudesse se r interceptada e remia pela segurança do eu jowm correspondente. Esta carta enco ntra-se publicada em Tho mas Copeland, Jo hn A. Wood Eds. ( 1967), The Correspondence ofEdmund Burke, Cambrid ge e Ch icago: Cambridge UniYersirY Press, YOI. V I, pp. 39-50 . (D e agora em d iante Cor· respondence, n. 0 do ,·o!. e pág. ).
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nente no qual esse espírito de liberdade resida e um órgão através do qual possa actuar eficazmente, é com muita pena que tenho grandes dúvidas a respeito de alguns aspectos concretos das vossas últimas conquistas. A partir da aprovação pública solene que receberam de dois clubes de cavalheiros em Londres: a Sociedade Constitucional' 8 e a Sociedade da Revolução 59 , o Senhor imaginava, na sua última carta, que eu pudesse talvez se r contado entre os que apoiam certos procedimentos em França. Certamente que renho a honra de pertencer a mais do que um clube onde a Constituição deste reino e os princípios da gloriosa Revolução são tratados com grande reverência, considero-me eu próprio entre os mais ousados no meu zelo por manter a Constituição e estes princípios na sua maior pureza e vigor, e é porque faço isso, que penso ser necessário que não haja acerca de mim qualquer equívoco. Aqueles que cultivam a memória da nossa Revolução, e aqueles que estão ligados à Constituição deste reino, hão-de tomar muito cuidado no modo como se envolvem com pessoas que, sob o pretexto de zelo acerca da Revolução e da Constituição, muito frequentemente se desviam dos seus verdadeiros princípios e estão sempre prontos a afastar-se do espírito firme, mas cauteloso e prudente, que produziu uma e que preside à outra. Antes de responder aos aspectos mais pertinentes da sua carta, peço-lhe que me deixe dar-lhe a informação que obtive acerca dos dois clubes que, enquanto tais, acharam por bem interferir nos assuntos da França - assegurando-lhe, antes de mais, que não sou, nem nunca fui , membro de qualquer destas sociedades. A primeira, chamando-se a si própria Sociedade Constitucional, ou Sociedade de Informação Constitucional, ou outro nome ;s .T. A Society fo r Constitutional Information fora fundada em 1780 e os seus membros estan m empenhados na reforma constitucional. Acabariam po r se r dissolvidos pelo governo em 1794. 19 A Revolution Society tinha sido fu ndada em 1788 aquando do centenário da Glorious Revolution e para sua co memo ração.
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semelhante, existe, creio, há sete ou o iro anos. A instituição desta socied ade parece ter sido de natureza caritativa e, enquanto tal, louvável: visava a circulação, a expensas dos seus membros, de muitos livros, que outros, po ucos, tinham o encargo de co mprar, e que po deriam ter p erm anec ido nas mãos dos livre iros, [o que seria] uma grande perda p ara esta efic iente sociedade. Se os livros, q ue tão caridosam ente circularam , fo ram algum a vez lidos co m igual caridade é mais do que eu sei. Poss ivelmente algum as des tas obras fo ram expo rtadas para França e, não tendo procura aqui , talvez tenham encontrad o mercado entre vós. Ouvi falar bastante acerca das luzes qu e se p odem colh er em livros enviados daqu i. D e como se to rnaram melho res na viagem (co mo se diz de certas bebidas alcoólicas que mel ho ram ao atravessar o mar) não sei dize r, mas nunca o uvi ninguém de bom senso, o u medi anam ente instru ído, dizer uma p alavra em lo uvor d a grande maio ria das publicações fe itas circular por esta sociedade. Ne m as activid ades desta socied ade são tidas com o impo rtantes, salvo po r alguns dos seus sóc ios. A vossa Assembl eia Nac io nal p arece manter a m esma opinião que eu acerca deste p o bre clube de caridade. Como nação, reservaram rod o o vosso acervo de agradec imentos eloquentes p ara a Sociedade da Revolução, quando os seus co ngéneres da Constitucio nal também tinham, em justiça, direito a uma parte deles. U m a vez que escolheram a Sociedade d a Revolução como o grande objecto dos vossos agradecimentos nac io nais e dos vossos louvo res, o Senho r desculpar- me-á se eu fi zer da recente conduta desta Sociedade o objecto das m inhas observações. A Assembleia Nacio nal de França concedeu impo rtância a estes cavalheiros adoptando-os e eles retri buíram o favor actuando -como co m ité p ara a prop agação dos p rincípios da Assembleia Nacio nal em Inglaterra. De agora em diante devemos co nsiderá-los como um tipo de pessoas privilegiadas, como distintos memb ros do co rpo diplomático. Esta é uma d as revoluções que conferiu esplendo r à obscuridade e d istinção a méritos até então desp ercebidos.
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Até muito recentemente, não me recordo de ter ouvido falar deste clube. Estou mesmo seguro de que ele nunca ocupou o meu pensamento, nem por um momento, nem, creio, o de quem quer que fosse fora dos da sua própria súcia. Inquirindo, fiquei a saber que, no aniversário da Revolução de 1688, um clube de Dissidentes60, não sei de que denominação, tinham há muito tempo o hábito de ouvir um sermão numa das suas igrejas e a seguir passavam o dia alegremente, como outros clubes fazem, na taverna. Mas nunca ouvira dizer que alguma medida pública ou sistema político, muito menos os méritos de uma constituição de uma nação estrangeira, tivessem sido o alvo de um procedimento formal nos seus festejos, até que, para minha indizível surpresa, os descubro numa espécie de mandato público dando a sua aprovação aos procedimentos da Assembleia Nacional france sa através de uma saudação congratulatória. Nos antigos princípios e conduta do clube, pelo menos tanto quanto eram manifestos, não vi nada que se possa censurar. Penso que, muito provavelmente, novos membros se infiltraram com algum propósito - e que alguns políticos verdadeiramente cristãos, que gostam de conceder benefícios, mas que são cautelosos em ocultar a mão que distribui a esmola, podem tê-los feito instrumento dos seus desígnios piedosos. Ainda que eu tenha razão para suspeitar de um controlo privado, falarei apenas do que tenho a certeza e do que é público. Teria pena que me julgassem directa ou indirectamente envolvido nas suas actividades. Certamente que tomo parte, juntamente com o resto do mundo, privadamente e enquanto indivíduo, na es60 N .T. Dissidentes da Igreja Anglicana eram aqueles que recusavam subscrever os 39 artigos de fé impostos pela Rainha Isabel, filh a de H enrique VIII. O s grupos de dissidentes proliferavam e ganhavam denominações dive rsas de acordo com os princípios da sua própria contestação. Para mais informação sobre o tema cf. William Waterworth ( 1854), Origin and Developments ofAnglicanism. OrA H ist01y ofthe Liturgies, H omilies, Articles, Bibles, Principies and Governmental System of the Church ofEngland, London: Burns & Lambert.
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peculação acerca do que tem sido feito , ou que está a ser feito, na cena pública, em qualquer lugar, amigo ou moderno- na república de Roma ou na república de Paris, mas, não tendo nenhuma missão apostólica universal, sendo um cidadão de um Estado particular, e estando consideravelmente sujeito à sua vontade pública, teria julgado no mínimo impróprio e irregular encetar uma correspondência pública formal com o actual governo de uma nação estrangeira, sem a expressa autorização do governo sob o qual vivo. Menos ainda quereria entabular essa correspondência sob a categoria equívoca que, para muitos, não familiarizados com os nossos costumes, poderia produzir um discurso ao qual eu me juntasse, que se parecesse com um acto de pessoas investidas de dignidade pública, reconhecidas pelas leis deste país e autorizadas a falar em nome de uma parte dele. Por causa da ambiguidade e da incerteza de grupos de carácter genérico não autorizados e do logro que pode ser praticado sob a sua alçada, e não por mero formalismo, a Câmara dos Comuns rejeitaria a mais secreta petição com o mais insignificante propósito assinada por estas entidades. Vós escancarastes as portas da vossa sala de audiências e fizestes entrar na vossa Assembleia Nacional um tal documento, com tão grande cerimónia e aparato e com tal salva de aplausos, como se tivésseis sido visitados pela majestade que representa roda a nação Inglesa. Se o que esta sociedade tivesse achado próprio enviar-vos fosse um discurso, teria significado pouco, fosse qual fosse o argumento. Não teria sido nem mais nem menos convincente, atendendo ao partido de que provinha. Mas isto é apenas um voto e uma resolução. Baseia-se apenas na autoridade. Neste caso é apenas a mera autoridade de indivíduos e poucos aparecem. As suas assinaturas deveriam, em minha opinião, ter sido anexadas ao seu documento. O mundo teria tido então meios de saber quantos são eles, quem são eles e qual pode ser o valor das suas convicções, a partir das suas capacidades pessoais, do seu conhecimento, da sua experiência, ou da sua liderança e autoridade neste Estado. Para mim, que sou
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apenas um homem comum, este procedimento parece um pouco refinado e engenhoso demais, tem demasiado ar de estratagema político, adoptado com o objectivo de dar uma importância às declarações públicas deste clube, sob um nome sonante, importância que, quando o assunto é observado mais de perto, estas declarações, no seu conjunto, não merecem. É uma política que tem muito o aspecto de fraude. Orgulho-me de amar uma liberdade viril, moral e regrada, tanto quanto qualquer um dos cavalheiros desta sociedade, seja ele quem for. Talvez tenha também dado boas provas do meu apego a esta causa no decurso de roda a minha vida pública. Penso que, tal como eles, também eu não invejo a liberdade de outra nação. Mas não posso apoiar, louvar, ou condenar, seja o que for que se relacione com acções ou preocupações humanas, numa visão simples do objecto, enquanto isolado, em toda a nudez e solidão da abstracção metafísica. As circunstâncias (que alguns cavalheiros menosprezam) dão, na realidade, a rodo o princípio político a cor que o distingue e o efeito que o discrimina. As circunstâncias tornam cada esquema, civil ou político, benéfico ou nocivo para a humanidade. Falando abstractamente, o governo, bem como a liberdade, são bons, contudo poderia eu, com sensatez, há dez anos ter felicitado a França por gozar de um governo (porque ela tinha, então, um governo) sem inquirir qual era a natureza desse governo, ou como era administrado? Posso eu agora congratular a mesma nação pela sua liberdade? Será por causa da liberdade em abstracto poder ser classificada entre as bênçãos da humanidade que eu posso, com seriedade, felicitar um louco que se escapou do retiro protector e da obscuridade benéfica da sua cela, porque ele voltou a gozar da luz e da liberdade? Devo felicitar um salteador de estrada, assassino, que se evadiu da prisão pela recuperação dos seus direitos naturais? Isto seria representar de novo a cena dos criminosos condenados às galeras e do seu libertador heróico, o metafísico Cavaleiro da Triste Figura.
54 ~ando
vejo o espírito de liberdade em acção, vejo um vigoroso princípio a trabalhar, e isso, por enquanto, é tudo o que posso saber acerca deste assunto. O gás em turbulência, o dióxido de carbono 61, está em franca libertação : devemos suspender o nosso juízo até que a primeira efervescência amaine um pouco, até que o líquido se aclare e até que vejamos um pouco mais fundo que a agitação da superfície inquieta e espumosa. Antes de me aventurar a felicitar publicamente os homens por terem recebido uma bênção preciso estar minimamente seguro que eles, de facto, a receberam. A lisonja corrompe quem a recebe e quem a dá, a adulação tem a mesma serventia para o povo que para os reis. Por conseguinte, eu teria suspendido as minhas congratulações acerca da nova liberdade de França, até que estivesse informado sobre como ela se articulava com o governo, com a força pública, com a disciplina e a obediência do exército, com a cobrança de um imposto efectivo e bem distribuído, com a moralidade e a religião, com a solidez e a propriedade, com a paz e a ordem, com os costumes civis e sociais. Tudo isto (à sua maneira) são também coisas boas e, sem elas, nem a liberdade é um benefício, nem é de crer que dure muito. O efeito da liberdade nos indivíduos é que eles podem fazer o que lhes agrada: temos de ver o que lhes agrada fazer antes de arriscar congratulações que poderão talvez em breve transformar-se em queixas, a prudência recomendaria isto tratando-se de homens isolados e em privado, mas a liberdade quando os homens agem corporativamente é poder. As pessoas prudentes, antes de se pronunciarem, devem observar o uso que é feito do poder - particularmente de uma coisa tão complicada quanto um novo poder em novas pessoas, acerca de cujos princípios, carácter e temperamento se conhece pouco ou nada, e em situações onde aqueles que mais aparecem em cena podem não ser os verdadeiros motores da acção. 61 A expressão usada é "the fixed air" designação utilizada para o dióxid o de car· bono. Este gás teria sido descoberto po r Jan Baptiste van Helmom e designado como tal por Joseph Black ( 1728-99 ).
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Contudo a Sociedade da Revolução considerou a sua dignidade transcendental acima de todas estas considerações. Enquanto eu estive no campo, de onde tive a honra de lhe escrever, não tinha uma ideia clara dos seus negócios. Indo eu para a cidade, mandei procurar uma relação do que tinham publicado que incluía o sermão do Dr. Price, a carta do Duque de La Rochefoucault e do Arcebispo de Aix 62 e vários outros documentos anexos. Todas estas publicações, com o propósito claro de vincular os assuntos de França aos de Inglaterra e o desígnio de nos levar a uma imitação da conduta da Assembleia Nacional, deixaram-me bastante inquieto. O efeito da conduta da Assembleia sobre o poder, o crédito, a prosperidade e a tranquilidade da França torna-se cada dia mais evidente. A nova constituição, a estabelecer para a sua futura política, torna-se mais clara. Estamos agora em condição de discernir com uma precisão razoável a verdadeira natureza do modelo que nos é apresentado para que o imitemos. Se a prudência da reserva e do decoro ditam o silêncio em algumas circunstâncias, em outras circunstâncias uma prudência de ordem mais elevada pode justificar que se diga o que se pensa. Sem dúvida que a confusão em Inglaterra é ainda muito pouca, mas convosco vimo-la ainda mais fraca no início e cresceu até ser uma força capaz de empilhar montanhas sobre montanhas e declarar guerra ao próprio Céu. ~ando a casa do vizinho está a arder, não é despropositado accionar as bombas de água na nossa. É preferível ser ridicularizado por se preocupar com muita ansiedade do que arruinar-se por estar demasiado confiante. Ainda que a situação no vosso país me preocupe, estou sobretudo preocupado com a paz do meu próprio país, por isso quero difundir mais amplamente o que primeiro foi pensado ser apenas para a sua própria satisfação. Continuarei, contudo, a visar os vossos assuntos e continuarei a dirigir-me a si, permitindo a mim pró62 O Arcebi spo de Aix era o pres idente da Asse m bleia Nacional no fi nal de 178 9 e é em se u no me que segue a resposta aos ,·oros e m-iados pela Sociedade da Revolução .
56 prio a liberdade da relação epistolar. Peço-lhe que me deixe deitar cá para fora o que penso e expressar o que sinto tal como me chega à mente, com muito pouca atenção ao aspecto formal 63 . Comecei pelos procedimentos da Sociedade da Revolução, mas não me limitarei a eles. E seria possível limitar-me? Vejo-me como se estivesse no meio de uma grande crise, não apenas dos assumos de França, mas dos de toda a Europa e talvez de mais que da Europa. Tendo em coma todas as circunstâncias, a Revolução Francesa é a mais espantosa que até agora aconteceu no mundo. As coisas mais extraordinárias são provocadas em várias instâncias pelos meios mais absurdos e caricatos, da maneira mais ridícula e, aparentemente, pelos instrumentos mais vis. Tudo parece comranarura neste estranho caos, de leviandade e ferocidade, de toda a espécie de crimes misturados com toda a espécie de loucuras. Ao ver esta cena monstruosa tragicómica, as paixões mais contraditórias sucedem-se necessariamente e, por vezes, misturam-se umas com as outras na alma: alternando o desprezo e a indignação, alternando o riso e as lágrimas, alternando o escárnio e o horror. Contudo, não pode negar-se que, para alguns, este espectáculo estranho aparece sob um outro ponto de vista, a esses inspira apenas sentimentos de exaltação e entusiasmo. Em tudo o que está a ser feito em França, não vêem mais do que um exercício de liberdade firme e comedido - no seu todo, tão compatível com a moral e a piedade que o faz merecer não apenas o aplauso secular de políticos arrojados e maquiavélicos, mas também tornar-se um tema apropriado para todas as efusões devotas da eloquência sacra. 63 A propósiro do estilo epistolar aqui utilizado F. P. Loc k afirm a que há muito que a "carta a um amigo" era a forma favorita p ara os panAerários polít icos porque oferecia as vantagens de se r um texto directo que rornava mais acei táve is e mais credíveis os apelos à ética e às emoções. Cf. Frederick Peter Lock ( 1985), Burke's Rejlections on the Revolution in France, London: George Allen & U nwin, p. 11 4. De facto , o estilo ep isrolar estava em voga e a ideia de que o autor escreverá livremente, como sugere, é também ela um artifício literário. já que é visível que Burke presta muita atenção ao estilo durante rodo o texto.
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Na tarde do último 4 de Novembro, o Dr. Richard Price, um eminente sacerdote não conformista pregou na assembleia de Dissidentes de Old Jewry, para o seu clube ou sociedade, uma extraordinária miscelânea, sob a forma de sermão, onde há alguns bons sentimentos religiosos e morais, nada mal expressos, misturados com uma espécie de caldo de várias opiniões políticas e reflexões, mas a Revolução Francesa é o principal ingrediente do caldeirão. Considero que a resolução transmitida pela Sociedade da Revolução à Assembleia Nacional, através do Conde de Stanhope, teve origem nos princípios deste Sermão e que é o seu corolário. Foi desencadeada pelo pregador deste discurso. Foi aprovada por aqueles que vinham empestados com os efeitos do sermão, sem nenhuma censura ou restrição, implícita ou explícita. Se, porventura, algum dos cavalheiros envolvidos quiser separar o sermão da resolução, sabem como reconhecer um e repudiar a outra. Eles podem fazer isso, eu não. Pelo meu lado, olho para este sermão como a declaração pública de um homem estreitamente ligado à cabala literária e a filósofos intriguistas, a políticos teológicos e teólogos políticos, de Inglaterra e do estrangeiro, que o constituíram como uma espécie de oráculo, porque, com as melhores intenções do mundo, ele naturalmente Jilipiza64 e canta a sua canção profética em uníssono com os seus desígnios. Creio que o estilo deste sermão não se ouvia neste reino, em nenhum dos púlpitos que aqui são tolerados ou apoiados, desde o ano de 1648, quando um antecessor do Dr. Price, o Reverendo Hugh Peters, fez a abóbada da própria capela do Rei em St. James ressoar com a honra e o privilégio dos Santos que, com "um grande louvor a Deus na sua boca e uma espada de dois gumes nas suas 64 1.T. A expressão é philippizes. Fil ipiza era a acusação fe ita por Dem óstenes ao Oráculo de Delfos querendo com isso dizer que as profecias emitidas pelo oráculo serviam os interesses de Filipe da M acedó nia.
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mãos, devem executar o juízo sobre os gentios e castigos sobre os
povos, prender os seus reis com cadeias e os seus nobres com grilhões de ferro"• 65 . Poucas arengas de púlpito, exceptuando nos dias da vossa Liga em França, ou nos dias da nossa Solene Liga e Pacto em Inglaterra, exalaram menos espírito de moderação que este sermão em Old Jewry. Suponhamos, contudo, que qualquer coisa de parecido com moderação fosse visível neste sermão político, mesmo assim a política e o púlpito são termos que combinam pouco. Nenhuma voz se deve ouvir na Igreja senão a voz apaziguadora da caridade cristã. Nem a causa da liberdade e do governo civis nem a da religião ganham com esta confusão de deveres. Os que desistem do que é próprio ao seu carácter para assumir o que não lhes pertence, são, em grande medida, ignorantes quer do papel que abandonam quer daquele que assumem. Completamente desconhecedores do mundo no qual gostam tanto de imiscuir-se, e inexperientes de todos os seus assuntos, sobre os quais se pronunciam com tanta confiança, não têm nada de político a não ser as paixões que suscitam. A Igreja é justamente o local onde devia ser permitido um dia de tréguas às dissensões e animosidades da humanidade. Este estilo de púlpito, ressurgido após tão longo abandono, teve para mim um ar de novidade, e de uma novidade não completamente isenta de perigo. Não imputo este perigo igualmente a todas as partes do discurso. A sugestão que dá o nobre e reverendo pastor-laico, que supostamente tem um posto elevado em uma das nossas universidades 66 , a outros pastores-laicos "literatos de posição;' pode ser própria e adequada, embora de algum modo inovadora. Se os ilustres Seekers 6- não encontrarem nada que satisfaça as 65
•
ota do autor: Sal mo 149.
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"No ta do auto r: Discourse on The L ove ofour Country, Nov. 4, 1789, pelo Dr. Rich ard Price, 3.' Edição pp. 17, 18. 6-
N .T. Independentes pu ritanos dos séculos XV I e XVII, que constitu íam mais um a sociedade rel igiosa que uma sei ta, e que vieram, mais tarde, a juntar-se aos ~ake rs.
59 suas fantasias piedosas nem no velho empório da Igreja nacional, nem em toda a rica variedade que se pode encontrar nos armazéns bem fornecidos das várias congregações de Dissidentes, o Dr. Price aconselha-os a melhorarem a sua Dissidência68 e a estabelecer cada um deles uma igreja69 separada, segundo os seus princípios parriculares70*.
É de algum modo notável que este reverendo teólogo seja tão fervoroso no que respeita ao estabelecimento de novas igrejas, e tão perfeitamente indiferente sobre qual a doutrina que possa ser ensinada nelas. O seu zelo é de um tipo curioso. Não é para a propagação das suas próprias convicções mas de todas as convicções. Não é para a difusão da verdade, mas para disseminar a contradição. Deixemos que os nobres professores divirjam, não interessa de quem ou de quê. Uma vez assegurado este ponto fundamental, está garantido que a sua religião será racional e viril. Eu duvido que areligião colha os benefícios que o pastor calculista conta retirar desta "grande companhia de grandes pregadores". Haverá certamente um grande incremento de não-conformistas, à ampla colecção de classes, géneros e espécies já conhecidas, que presentemente alindam o Hortus sicus dos Dissidentes. O sermão de um nobre duque, ou de um nobre marquês, ou de um nobre conde, ou de um barão ousado, cerram ente que aumenta e diversifica os divertimentos desta cidade, que começa a estar farra da ronda uniforme pelas suas distracções
Como o nome indica, procu ravam a verdadei ra Igreja, sem se vincularem a nenhuma facção. 68
N .T. "No n-Conformity".
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N.T. O termo utilizado é "meeting-house".
-o • N ota do auto r (fo ram respeitados os itál icos) "Aqueles que não gostarem daquele modo de culto presc rito pelas autoridades públicas devem, se não puderem encontrar nenhum culto que aprovem fora da Igreja, estabelecer um culto separado para eles próprios; e fazendo isto, dando um exemplo de um modo de culto racional e viril, homens de peso pelo seu estatuto e pela sua cultu ra podem prestar o maior serviço à sociedade e ao mundo."- p. 18, Sermão do Dr. Price.
60 insípidas. Apenas estipularia que estes novos Messjohns 71 de toga ou diadema mantivessem alguma espécie de limites nos princípios democráticos e niveladores que se esperam dos seus púlpitos coroados. Atrevo-me a dizer que os novos evangelistas desapontarão as esperanças concebidas acerca deles. Não se tornarão, nem literal nem figuradam ente, pastores polém icos - nem estarão dispostos a instruir as suas congregações, de tal modo que possam, como em outros benditos tempos, pregar as suas doutrinas a regimentos de cavalaria e unidades de infantaria e artilharia. Tais disposições, embora favoráveis à causa da liberdade compulsiva, civil e religiosa, podem não ser igualmente propícias à tranquilidade nacional. Espero que estas poucas restrições não sejam um exagero de intolerância, nem um exercício de despotismo muito violento. Mas posso dizer do nosso pregador, "Utinam nugis tota illa dedisset tempora soevitio'r 2• Nesta bula fulminante dele nem todas as coisas são de tendência tão inócua. As suas doutrinas atingem a nossa Constituição nas suas partes vitais. Neste sermão político, ele diz à Sociedade da Revolução, que Sua Majestade "é quase o único rei legítimo no mundo, porque é o único que deve a sua coroa escolha do seu povo". ~anto aos reis do mundo, a todos eles (excepto um), este arquipontífice dos direitos do homem, com um poder semelhante em plenitude e superior em audácia ao poder de depor papal, no seu fervor meridiano do século XII, submete-os à cláusula arrasadora de excomunhão e anátema e proclama-os usurpadores em vários círculos de latitude e longitude por esse mundo fora. Cumpre-lhes considerar como estes hão-de admitir nos seus territórios aos missionários apostólicos que ali vão para dizer aos seus súbditos que eles não são reis legí timos. Isto é problema deles. O nosso, como interesse doméstico da mais alta importância, é considerar
a
.,
T ermo jocoso com que se designavam os pasrores presbiterianos escoceses.
~, "' Q::em dera que tive se dedicado a frivolidades rodo aquele tempo que dedicou à crueldade ", Juv. 4. 150-151.
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seriamente a solidez do único princípio segundo o qual estes cavalheiros reconhecem ao rei da Grã-Bretanha o direito à sua lealdade. Esta doutrina, aplicada ao príncipe agora no trono britânico, ou é um absurdo, e nessa altura não é verdadeira nem falsa , ou então sustenta uma posição profundamente infundada, perigosa, ilegal e inconstitucional. De acordo com este médico espiritual da política, se Sua Majestade não deve a sua coroa à escolha do seu povo, não é um rei legítimo. Ora nada é mais falso do que a coroa deste reino p ertencer a Sua Majestade nessas condições. Então, se seguirdes a sua regra, o rei da Grã-Bretanha, o qual, muito certamente, n ão deve o seu cargo elevado a nenhuma forma de eleição popular, não é sob nenhum aspecto melhor do que o resto do bando de usurpadores, que reinam , ou antes pilham, em toda a face deste nosso miserável mundo, sem nenhuma espécie de direito ou tÍtulo ao preito do seu povo. A política desta doutrina geral, assim caracterizada, é bastante evidente. O s propagadores deste evangelho político têm a esperança de que o seu princípio abstracto (o princípio de que é necessária a escolha popular para a existência legal da magistratura soberana) será tolerado enquanto o rei da Grã-Bretanha não for afectado por ele. Entretanto, os ouvidos das suas congregações habituar-se-ão gradualmente a ele, como se fosse um primeiro princípio admitido sem discussão. No presente operará apenas como uma teoria, conservad a73 nos sucos preservadores da eloquência de púlpito, e posta de lado para futuro uso. Condo et compono quae mox depromere possim -4• Através desta política, enquanto se lisonjeia o nosso governo, com uma reserva em seu favor à qual ele não tem direito, é-lhe retirada a segurança que ele tem em comum com todos os governos, até onde a opinião-; é uma segurança. -;
N .T. O termo que Burke usa é pickled.
-,
N.T. "Reúno e componho aquilo que mais tarde eu posso usar", H or. Ep. , l. l. 12.
-s N.T. O termo usado é opinion e rem habitualmente o sentido de concepção acei te e difundida e é neste sentido que será usado aqui.
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Assim avançam estes políticos, enquanto pouca atenção se dá às suas doutrinas. Mas quando começamos a examinar o significado evidente das suas palavras e a tendência directa das suas doutrinas, então, equívocos e explicações evasivas entram em cena. ~ando afirmam que o rei deve a sua coroa à escolha do seu povo, e é assim o único soberano legítimo no mundo, dir-nos-ão talvez que com isso não querem dizer mais do que o facto de que alguns dos soberanos que o precederam foram chamados ao trono por uma espécie de escolha e, por isso, ele deve a sua coroa à escolha do seu povo. E assim, com este subterfúgio mise rável , esperam tornar segura a sua teoria pelo facto de a terem tornado nula. Encerremo-los no manicómio já que escolheram refugiar-se na sua loucura. Porque, se se admitir esta interpretação, em que é que a sua ideia de eleição difere da nossa de hereditariedade? E como é que o estabelecimento da coroa na linha de Brunswick, derivada de Jaime Primeiro, vem legalizar a nossa monarquia mais do que qualquer outra dos países vizinhos? Num momento ou noutro, sem dúvida, rodos os que começaram dinastias foram escolhidos por aqueles que os chamaram a governar. Há bases suficientes para sustentar a opinião de que rodas as monarquias da Europa foram num tempo remoto electivas, com maiores ou menores limitações no objecto da eleição. Mas o que quer que possam ter sido os reis, aqui ou noutro lugar há mil anos, ou seja qual for o modo como as dinastias reinantes de Inglaterra ou França possam ter começado, o rei da Grã-Bretanha é rei neste momento por uma regra fixa de sucessão, de acordo com as leis do seu país. E, enquanto ele cumprir as condições legais do pacto de soberania (como cumpre) mantém a sua coroa adespeito da Sociedade da Revolução, que não tem nenhum direito a eleger o seu rei, nem singular nem colectivamente, embora eu não tenha dúvida que eles depressa se constituiriam em colégio eleitoral, se as coisas estivessem maduras a ponto de dar cumprimento às suas reivindicações. O s herdeiros e sucessores de Sua Majestade, cada um a seu tempo e na sua ordem, chegarão à coroa com o mes-
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mo desdém pela sua escolha com que Sua Majestade herdou aquela coroa que traz. ~alquer que seja o resultado da sua fuga à explicação do grosseiro erro dejàcto, que supõe que Sua Majestade, embora mantenha a coroa de acordo com os seus desejos, a deve à escolha do seu povo, não se pode, todavia, contornar a sua proclamação directa e explícita do princípio do direito do povo a escolher - direito esse que sustenta directamente e a que tenazmente adere. Todas as insinuações indirectas à eleição assentam neste princípio e têm-no como referência. Temendo que a fundamentação do título exclusivamente legal do rei passasse por mero palavreado de uma liberdade aduladora, o pastor político prossegue dogmaticamente para defender*76, que, pelos princípios da Revolução, o povo inglês adquiriu três direitos fundamentais , todos eles, segundo ele, compõem um sistema e assentam todos num breve veredicto, nomeadamente que adquirimos o direito a:
1. "Escolher os nossos governantes" 2. "Expulsá-los por má conduta" 3. "Constituir um governo para nós próprios".
Esta nova carta de direitosT, de que até agora não se tinha ouvido falar, embora elaborada em nome de todo o povo, pertence a estes cavalheiros e apenas à sua facção. O conjunto do povo inglês não partilha dela e recusa-a totalmente. Resistirá à tentativa para a pôr em prática com a sua vida e a sua fortuna . Está obrigado a isso pelas leis do seu país, feitas no tempo da própria Revolução a que apela esta sociedade para apoiar os direitos fictícios que reivindica, insultando o seu nome. -6
"Nota do autor: p. 34, Discourseon the L oveofour Country, pelo Dr. Price
N.T. O termo usado é bill of rights nome originariamente dado ao acordo co nstitucional inglê de 1689.
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Estes cavalheiros de Old Jewry, em tudo o que pensam sobre a Revolução de 1688, têm uma Revolução que aconteceu em Inglaterra, cerca de 40 anos antes, e a recente Revolução Francesa tão presentes a seus olhos e nos seus corações, que estão constantemente a confundir todas três entre si. É necessário que separemos o que eles confundem. É preciso compararmos as suas fantasias erráticas com os actos da Revolução que tanto respeitamos para que se descubram os seus verdadeiros princípios. Se os princípios da Revolução de 1688 se podem encontrar em algum lado, é na chamada Declaração de Direito. Nesta declaração muito sábia, moderada e prudente, planeada por grandes juristas e grandes estadistas, e não por entusiastas acesos e inexperientes, nem uma palavra é dita, nem é feita nenhuma sugestão, acerca de um direito geral "a escolher os nossos próprios governantes, a expulsá-los por má conduta, ou a formar o governo por nós próprios". Esta Declaração de Direito (Acto do 1.0 de Guilherme e Maria, sess. 2, Cap. 2) é a pedra angular da nossa Constituição, reforçada, explicada, melhorada e estabelecida para sempre nos seus princípios fundamentais. Chama-se: "Um acto para declarar os direitos e as liberdades dos súbditos e para estabelecer a sucessão da coroa." Como o Senhor poderá ver, os direitos e a sucessão estão declarados num mesmo todo e ligados indissoluvelmente. Alguns anos depois destes acontecimentos, apresentou-se uma segunda ocasião para reivindicar o direito de eleger a coroa. A perspectiva de não haver descendência do Rei Guilherme e da princesa, depois Rainha Ana, levou de novo ao Parlamento a questão da decisão sobre a coroa e de uma garantia maior das liberdades do povo. Nesta segunda vez tomou o Parlamento alguma medida para legalizar a coroa segundo os princípios revolucionários bastardos de Old Jewry ? Não, seguiram os princípios que prevaleceram na Declaração de Direito, indicando com maior precisão as pessoas que a deviam herdar dentro da linha Protestante. Seguindo o critério antes
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adoptado incorporaram num mesmo acto político as nossas liberdades e a sucessão hereditária. Em lugar do direito a eleger os nossos próprios governantes o Parlamento declarou que o estabelecimento da sucessão nesta linha (a linha Protestante traçada a partir de Jaime Primeiro) era "absolutamente necessário para a paz, tranquilidade e segurança do reino", e que, nestes actos, era igualmente imperativo "manter uma regra fixa na sucessão da coroa, à qual os súbditos pudessem recorrer com segurança para sua protecção". Em ambas as actas, em vez de se aprovarem as profecias ciganas enganadoras de um "direito a escolher os nossos governantes", ouvem-se os infalíveis e inequívocos oráculos da política da Revolução demonstrarem até que ponto a sabedoria da nação era totalmente adversa à conversão de um caso de necessidade numa regra de direito. Inquestionavelmente, havia na Revolução, na pessoa do Rei Guilherme, um pequeno desvio temporário da estrita ordem da sucessão regular hereditária, mas é contra todos os verdadeiros princípios de jurisprudência estabelecer um precedente a partir de uma lei feita para um caso especial e tendo em vista uma pessoa particular. Privilegium non transit in exemplum78• Se alguma vez houve uma época favorável ao estabelecimento do princípio que um rei escolhido pelo povo era o único rei legítimo, sem dúvida nenhuma que foi na Revolução. ~e não se tivesse estabelecido então, é a prova de que a nação era da opinião de que isso não deveria fazer-se em tempo algum. Não há ninguém que ignore a nossa história a ponto de não saber que a maioria no Parlamento, de ambos os partidos, estava tão pouco inclinada ao que quer que fosse que se parecesse com esse princípio, que primeiro estava na disposição de pôr a coroa, não na cabeça do Príncipe D 'Orange, mas na da sua mulher, Maria, filha do Rei Jaime, a primogénita dos filhos que se sabiam ser -s Princípio da jurisprudência romana: "U ma concessão particular não passa a ser uma regra geral".
66 legítimos sem dúvida alguma. Seria repetir uma história banalíssima, relembrar todas aquelas circunstâncias que demonstram que a aceitação do rei Guilherme pelo Parlamento não foi propriamente uma escolha. Mas para todos aqueles que efectivamente não queriam voltar a chamar o Rei Jaime, nem mergulhar o seu país em sangue, e voltar a pôr a sua religião, as suas leis e a suas liberdades, num perigo do qual acabavam de escapar, foi um acto de necessidade, no sentido moral mais estrito em que esta palavra se pode entender79• No mesmo acto em que, por um período restrito, e num caso singular, o Parlamento se afastou da estrita ordem hereditária, a favor de um príncipe que, ainda que não fosse o sucessor, estava, contudo, muito perto na linha de sucessão, é curioso observar como se comportou Lord Sommers, que redigiu o projecto de lei chamado Declaração de Direito, nesta ocasião delicada. É curioso observar a habilidade com que se dissimulou esta solução de continuidade temporária. Tanto este grande homem quanto o Parlamento que o secundou esforçaram-se por trazer à luz, sublinhar e valorizar tudo o que pode encontrar-se neste acto de necessidade que expresse a ideia de uma sucessão hereditária. Abandonando o estilo seco e imperativo de um acto parlamentar, Lord Somers levou Lords e Comuns a caírem num piedoso discurso legislativo e a declarar que consideravam "como uma extraordinária providência e bondade misericordiosa de Deus para com esta nação, ter preservado Suas Majestades Reais para, felizmente, reinarem sobre nós no trono dos seus antepassados, pelo que apresentam os seus humildes agradecimentos e louvores, do fundo dos seus corações". 9
Os críticos de Burke, especialmente Joseph Priesrley, Catharine Macauley e James Mackintosh, insistiram em que este estratagema de desvio da linha hereditária fu ndamental correspondia inequivocamente a urna escolha e que, urna vez feiro o desvio da linha hereditária, o princípio estava comprometido. Burke é um ho mem lúcido e não duvida de que há um elemento de escolha, o que Burke sublinha é que a escolha foi imposta pela necessidade e que esta se mostrou co ndicionada pela vontade de fazer prevalecer a linh a hereditária. -
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O Parlamento, manifestamente, teve em mente a Acta de Reconhecimento, a primeira da Rainha Isabel, Cap. 3. 0 e de Jaime Primeiro, Cap. 1. 0 , ambas as actas fortemente afirmativas da natureza hereditária da coroa, e em mais de uma ocasião seguem, com uma precisão quase literal, as palavras e mesmo a forma da acção de graças encontrada nestes antigos estatutos declaratórios. As duas Câmaras (Lordes e Comuns), na acta do Rei Guilherme, não agradeceram ter uma boa oportunidade para reivindicar o direito a escolher os seus próprios governantes e muito menos a fazer da eleição o único título legítimo de acesso à coroa. E consideraram uma saída providencial terem as condições para evitar, tanto quanto possível, toda a aparência disso. Estenderam um espesso véu político sobre todas as circunstâncias que poderiam debilitar os direitos que eles queriam perpetuar, melhorada a ordem de sucessão, ou que poderiam constituir um precedente para um afastamento futuro do que eles estabeleceram então para sempre. Com o fim de não enfraquecer a monarquia e de preservarem uma estrita conformidade com a prática dos seus antepassados, tal como aparece nas declarações estatutárias da Rainha Maria80* e da Rainha Isabel, reconheceram na cláusula seguinte a suas Majestades todas as prerrogativas da coroa, declarando "que, nelas, estas prerrogativas eram o mais perjêita, legítima e completamente investidas, incorporadas, [a elas] associadas [e delas] empossadas". Na cláusula que se segue, para evitar dificuldades que pudessem surgir por causa de algum pretenso título à coroa, o Parlamento declarou (observando também nisto a linguagem tradicional, conjuntamente com a política tradicional da nação e repetindo, como se fosse um refrão, a linguagem dos Actos precedentes de Isabel e Jaime) que se preservasse "uma regra fixa na SUCESSÃO da qual dependiam completamente a unidade, a paz e a tranquilidade da nação, Deus a proteja".
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"Nota do autor: !.• Maria, sess. 3, Cap. I.
68 Sabiam que um título duvidoso de sucessão se pareceria demasiado com uma eleição e que uma eleição seria completamente destrutiva da "unidade, paz e tranquilidade desta nação;' o que consideraram da maior importância. Para garantir estes objectivos e, por conseguinte, excluir para sempre a doutrina de Old Jewry do "direito a escolher os nossos próprios governantes", a cláusula seguinte contém um penhor muito solene, retirado do precedente Acto da Rainha Isabel - o penhor mais solene que alguma vez foi ou pode ser dado a favor de uma sucessão hereditária, e uma renúncia tão solene quanto pode ser feita dos princípios que lhes são imputados por esta sociedade : "Os Lordes Espirituais e Temporais e os Comuns, em nome de todo o povo acima referido, muito humilde e fielmente submetem-se a eles próprios, aos seus herdeiros e posteridade para sempre, e fazem fielmente a promessa que defenderão Suas Majestades, e também a regulação da Coroa aqui especificada e contida, até ao limite das suas forças" etc. etc. Está tão longe de ser verdade que adquirimos pela Revolução o direito a eleger os nossos reis que, se nós o tivéssemos tido antes, a nação inglesa tinha renunciado e abdicado solenemente dele nessa altura, para eles próprios e para toda a sua posteridade, para sempre. Estes cavalheiros podem orgulhar-se dos seus princípios Whigs tanto quanto quiserem, mas eu nunca quererei ser um melhor Whig que Lord Sommers, ou compreender melhor os princípios da Revolução que aqueles que a fizeram , ou ler na Declaração de Direito mistérios desconhecidos para aqueles cujo estilo penetrante gravou nos nossos decretos, e nos nossos corações, as palavras e o espírito desta lei imortal.
É verdade que a nação estava na altura investida de poderes que lhe vinham da força e das circunstâncias e, num certo sentido, era livre para pôr no trono quem melhor lhe parecesse - mas livre para fazer isso apenas pela mesma razão que teria podido abolir completamente a sua monarquia ou qualquer outra parte da sua Cons-
69 tituição. Contudo, os seus representantes não pensaram que estas mudanças importantes fizessem parte das suas atribuições. É, efectivamente, difícil, talvez impossível, impor limites à competência meramente abstracta do poder supremo, tal como este era exercido pelo Parlamento nesse tempo, mas os limites de uma competência moral, mesmo em poderes mais indiscutivelmente soberanos, sujeitando a vontade ocasional à razão permanente e às máximas constantes de fé, justiça e de uma política fundamental estabelecida, são perfeitamente inteligíveis e perfeitamente obrigatórios para aqueles que exercem qualquer autoridade, sob qualquer nome ou a qualquer título, no Estado. A Câmara dos Lordes, por exemplo, não é moralmente competente para dissolver a Câmara dos Comuns não, nem mesmo para se dissolver a si própria, nem para abdicar, se o desejasse, do poder legislativo que possui. Embora um rei possa abdicar pela sua pessoa, não pode abdicar pela monarquia. Por uma igual razão, ou ainda mais forte, a Câmara dos Comuns não pode renunciar à sua parte de autoridade. O compromisso e pacto social, que geralmente dá pelo nome de Constituição, proíbe tais abusos e demissões. As partes constituintes de um Estado estão obrigadas a manter a confiança pública umas nas outras, e perante rodos aqueles que, do seu compromisso, derivam algum interesse importante, do mesmo modo que o rodo, Estado, está obrigado a manter os seus compromissos com as comunidades autónomas: de outro modo, jurisdição e poder cedo se confundiriam e a única lei que subsistiria seria a vontade do mais forte. Sob este princípio, a sucessão da coroa foi sempre o que hoje é: uma sucessão hereditária prevista por lei. Na linha antiga, era uma sucessão pelo direito consuetudinário, na nova linha, pela lei criada pelo poder legislativo 8 1, operando sobre os princípios do direito consuetudinário, não mudando a substância mas regulando o modo e nomeando as pessoas. Estes tipos de lei têm ambos a mesma força, e derivam de uma autoridade idêntica, emanando do acordo 81
Os termos que Burke usa são Common Law e Statute L aw.
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comum e pacto original do Estado, communi sponsione reipublicae, e obrigam igualmente o rei e o povo, enquanto os termos forem cumpridos e se continue sob o mesmo corpo político. Está longe de ser impossível reconciliar - se não estivermos emaranhados nos labirintos da metafísica sofística- o uso simultâneo de uma regra fixa e de um desvio ocasional: a sacralidade de um princípio hereditário de sucessão no nosso governo com o poder de mudar a sua aplicação em casos de extrema necessidade. Mesmo nestes casos - se medirmos os nossos direitos pelo exercício que fizemos deles na Revolução -, a mudança é para estar confinada apenas à parte que prevarica, à parte que produz a necessidade do desvio e, mesmo aí, é para ser realizada sem a desagregação de todo o corpo civil e político sob o pretexto de querer criar uma nova ordem civil a partir dos elementos primitivos da sociedade. Um Estado em que não se pode mudar nada carece de meios para a sua própria conservação. Sem estes meios pode chegar mesmo a arriscar perder aquela parte da Constituição que mais religiosamente queria preservar. Estes dois princípios -de conservação e de correcção - operaram fortemente nos dois períodos críticos da Restauração e da Revolução, quando a Inglaterra se viu sem rei. Em ambos os períodos a nação perdeu os laços de união do seu antigo edifício: contudo, não se desmoronou por completo a construção. Ao contrário, em ambos os casos se regenerou a parte defeituosa da antiga Constituição por intermédio das que não estavam danificadas. Mantiveram as partes antigas sãs tal como estavam, de modo a que a parte reconstituída pudesse adaptar-se a elas. Actuaram à maneira dos antigos estados constituídos segundo o modelo da sua organização antiga, e não pelas moleculae orgânicas de um povo em debandada. O momento da Revolução talvez fosse aquele momento em que a legislatura soberana manifestou maior consideração pelo princípio fundamental da política constitucional britânica, quando este princípio foi desviado da linha directa de sucessão hereditária.
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A coroa foi transferida um pouco para fora da linha que seguia antes, mas a nova linha provinha da mesma fonte. Manteve-se uma linha de sucessão hereditária descendente, do mesmo sangue, mas uma descendência hereditária qualificada com o Protestantismo. ~ando a legislatura alterou a direcção mas manteve o princípio, mostrou com isso que o considerava inviolável. Antigamente, muito antes da era da Revolução, a lei da sucessão admitiu algumas emendas neste princípio. Algum tempo depois da Conquista, surgiram grandes questões acerca dos princípios legais da descendência hereditária. Tornou-se matéria de dúvida se seria o herdeiro per capita ou o herdeiro per stirpes que haveria de suceder82. Mas, quer fosse o herdeiro per capita que desse lugar ao direito de sucessão per stirpes, ou o herdeiro católico, quando o protestante era preferido, o princípio de hereditariedade sobreviveu com uma espécie de imortalidade através de todas as transmigrações: Multosque per annos Statfortuna domus, et avi numerantur avorum 83•
Este é o espírito da nossa Constituição, não apenas no seu curso estabelecido, mas também em todas as suas revoluções. ~em quer que entre, ou como quer que entre, quer tenha obtido a coroa pela lei ou pela força, a sucessão hereditária foi, ou continuada, ou adoptada. 82 .T. Na lei da sucessão os dois rermos, per capita e per stirpes, fixam a parre que os descendentes ou ourros beneficiários hão-de receber: se per capita rodos pertencentes a essa mesma classe recebem igualmente, se per stirpes recebem de acordo com o que esrá destinado ao ramo da sua fam ília. Cf. L. G. MircheU (Ed. ) Paul Langford (Gen. Ed.) ( 1989), Rejlections on the Revolution in France, The Writings and Speeches ofEdmund Burke, Gen., Vol. VII, Oxford: Clarendon Press, p. 73, nora. (De agora em diante: Rejlections on rhe Revolution in France, The Writings and Speeches ofEdmund Burke, seguido da pág.). 83 1.T . "E a forruna da casa manrém-se por muiros anos, e conta-se geração sobre geração", Verg. G. 4. 208-209.
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Os cavalheiros da Sociedade em prol das Revoluções, nesta de 1688, não vêem nada a não ser o desvio em relação à Constituição e tomam o desvio do princípio pelo princípio. Têm em pouca atenção as consequências óbvias da sua doutrina, embora possam ver que ela reconhece verdadeira autoridade a muito poucas instituições deste país. ~ando esta máxima insustentável for de vez estabelecida, que nenhum trono é legítimo senão o electivo, nenhum acto dos príncipes que precederam esta era de eleição fictícia pode ser válido. ~erem estes teóricos imitar alguns dos seus antecessores que arrancaram à paz dos seus túmulos os corpos dos nossos antigos reis? ~erem proscrever e incapacitar retrospectivamente todos os reis que reinaram antes da Revolução e, consequentemente, manchar o trono de Inglaterra com o estigma de uma usurpação contínua? ~erem invalidar, anular ou pôr em questão, juntamente com os títulos de toda a linhagem dos nossos reis, o grande corpo das nossas leis constitucionais estabelecidas no reinado daqueles que eles tratam por usurpadores? Anular leis de inestimável valor para as nossas liberdades -pelo menos de tão grande valor como as votadas na altura da Revolução e depois dela? Se os reis que não devem as suas coroas à escolha do seu povo não têm direito a fazer leis, o que é que vai acontecer à lei De tallagio non concedendo? 84 à Petition of Right? 85 ao acto de Habeas Corpus? 86 Será que estes doutores dos direitos do homem se atrevem a afirmar que o Rei Jaime Segundo que chegou ao trono como o mais próximo de sangue, de acordo com as regras de uma sucessão, na altura não qualificada, não era, para 8
N.T. Princípio não vinculativo estabelecido aquando da "Confi rmation of the ' Charters" - convertido mais tarde em estatuto pela "Petition ofRight" em 1628- segundo o qual o tallagio (primeiro uma forma particular de imposto e depois estendido o seu sentido a qualquer tipo de imposto) não poderia ser cobrado sem o consentimento dos visados. 85
N.T. A Petition ofRight data de 1628 e ob rigava Carlos I a não aumentar os impostos se m o acordo do Parlamento, a prender apenas no cumprimento da lei e a não estabelecer o tribunal marcial. 86 N .T . O H abeas Corpus Act foi votado pelos Whigs em 1679, proibia ter alguém detido mais de 24 horas sem conhecer a acusação e sem dispor de um defensor.
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todos os efeitos, um rei legítimo de Inglaterra, ames de ter cometido todos aqueles actos que levaram, com justiça, à sua abdicação da coroa? Se ele não fosse legítimo, ter-se-iam evitado muitos problemas no Parlamento no período que estes cavalheiros comemoram. Mas o Rei Jaime era um mau rei investido de um título justo, e não um usurpador. Os príncipes que se sucederam, de acordo com o acto do Parlamento que estabeleceu a coroa no ramo da Eleitora Sofia e nos seus descendentes, sendo Protestantes, chegam ao tro no por título hereditário, tanto quanto o Rei Jaime tinha chegado. Este reinou de acordo com a lei que vigorava no momento da sua ascensão ao trono, e os príncipes da Casa de Brunswick acabam por herdar a coroa não por eleição, mas pela lei que fixava a sucessão na descendência Protestante, tal como ela existia no momento da sua respectiva coroação, como espero ter mostrado suficientemente. A lei, pela qual esta família real está especificamente destinada à sucessão, está na acta do 12.0 e 13. 0 anos do reinado do Rei Guilherme. O s termos desta acta ligam-nos "a nós e aos nossos herdeiros, e a nossa posteridade, a eles, aos seus herdeiros e à sua posteridade", sendo Protestantes, até aos fins dos tempos, nos mesmos termos que a Declaração dos Direitos nos ligava aos herdeiros do Rei Guilherme e da Rainha Maria. Esta acta assegura, então, uma coroa e uma fidelidade hereditárias. Em que é que se baseou a rejeição desdenhosa do Parlamento das possibilidades boas e abundantes de sucessão que se apresentavam no nosso próprio país, para procurar em terras estranhas uma princesa estrangeira, de cujo seio deveria derivar a linhagem dos nossos futuros governantes e o seu título a governar milhões de homens ao longo dos séculos a não ser na política constitucional para a formação de uma instituição que fixasse este tipo de sucessão e que tinha por fim excluir p ara sempre a escolha popular? A Princesa Sofia foi nomeada, na acta do 12.0 e 13.0 anos do reinado do Rei Guilherme, como cepa e raiz do direito de sucessão
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dos nossos reis, não pelos seus méritos como administradora do poder, que ela poderia não vir a exercer e, de facto, nunca o exerceu. Ela foi adoptada apenas por uma e uma só razão, porque rezam os actos "a mui Excelsa Princesa Sofia Eleitora e Duquesa Viúva de Hanôver, éfilha da mui Excelsa Princesa Isabel, falecida rainha da Boémia, filha do nosso falecido Soberano e Senhor Rei Jaime Primeiro, de boa memória, e é por esta acta declarado ser ela a próxima na sucessão na linha Protestante", etc. etc., "e a coroa continuará nos seus herdeiros conquanto sejam Protestantes". Esta limitação foi feita pelo Parlamento para que através da Princesa Sofia se garantisse, não apenas uma linha hereditária que continuaria no futuro, mas (o que eles julgaram muito importante) que, através dela, essa linha estivesse ligada à velha linha hereditária do Rei Jaime Primeiro, para permitir que a Monarquia pudesse preservar uma inquebrantável unidade ao longo dos tempos e se pudesse conservar (com segurança para a nossa religião) no modo amigo já aprovado por descendência, que, se ameaçou uma vez as nossas liberdades, também as defendeu muitas vezes, através de todas as tempestades e lutas de prerrogativas e privilégios. O Parlamento fez bem. Não temos experiência de outro processo, ou método, senão uma coroa hereditária, em que as nossas liberdades possam ser regularmente perpetuadas e mantidas sagradas como nosso direito hereditário. Um movimento irregular e convulsivo pode ser necessário para nos livrar de uma doença irregular e convulsiva. Mas o decurso da sucessão é o hábito saudável da Constituição Britânica. Será que o Parlamento, que aliou a Coroa à linha de Hanôver, traçada a partir da descendência feminina de Jaime Primeiro, desconhecia os perigos para a coroa inglesa de terem dois ou três, ou possivelmente mais, estrangeiros na sucessão ao trono britânico? Não! -o Parlamento tinha a devida consciência, e mais que a devida consciência, dos males que poderiam advir desta regra estranha. Ao continuar a adoptar um plano de sucessão hereditária
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Protestante segundo a velha linha, com todos os perigos e todos os inconvenientes de esta ser uma linha estrangeira perfeitamente à vista e operando fortemente no seu espírito, dá a prova mais decisiva que pode ser dada, da total convicção da nação britânica de que os princípios da Revolução não a autorizavam a eleger reis a seu belo prazer, sem ter em coma os fundamentos amigos do nosso sistema de governo. Há alguns anos eu ter-me-ia envergonhado de insistir na explicação de algo evidente por si mesmo, que, por isso, não carecia de nenhum argumento. Mas esta doutrina sediciosa e inconstitucional é agora publicamente ensinada, confessada e impressa. O desagrado que sinto pelas revoluções, cujos sinais tanta vez nos vêm a partir dos púlpitos - o total desrespeito de todas as amigas instituições que prevalece entre vós, e que pode vir a prevalecer connosco, como contraposto a um sentido real da conveniência -, todas estas considerações fazem-me julgar aconselhável, chamar a atenção para os verdadeiros princípios das nossas leis internas, que o Senhor, meu amigo francês, deve começar a conhecer, e que nós devemos continuar a estimar. Nós, os de ambas as margens do canal, não devíamos tolerar que nos impingissem mercadoria falsificada que algumas pessoas, por uma dupla fraude vos exportam em porões clandestinos, como matéria-prima de origem britânica, embora ela seja estranha ao nosso solo, com o objectivo de mais tarde a contrabandear de novo para este país, manufacturada segundo a mais recente moda parisiense de uma liberdade melhorada. O povo inglês não imita as modas que nunca experimentou, nem torna àquelas que achou más por experiência, olha para a sucessão hereditária da sua coroa como um dos seus direitos, não como algo ilegítimo - como um benefício, não como uma injustiça, como uma garantia das suas liberdades, não como um símbolo da sua servidão. Olha para a estrutura do seu Estado, tal como está,
76 como sendo de valor inestimável, e concebe a sucessão pacífica da coroa como uma garantia da estabilidade e perpetuidade de todas as outras partes da nossa Constituição. Antes de prosseguir, peço licença para me ocupar de alguns estratagemas mesquinhos que os criminosos que consideram a eleição como único título legítimo à coroa estão prontos a empregar com vista a tornarem difícil a defesa dos princípios justos da nossa Constituição. Sempre que defenderdes a natureza hereditária da Coroa, estes sofistas substituem a vossa causa por uma fictícia com supostos personagens, que julgam que estais empenhados em apoiar. É comum neles discutirem como se estivessem em conflito com um desses fanáticos da escravatura que antes sustentavam, o que eu acredito que nenhuma pessoa hoje mantém, "que a coroa é ocupada por direito divino, hereditário e irrevogável". Estes velhos fanáticos de um poder arbitrário único, doutrinavam como se a realeza hereditária fosse o único governo legítimo no mundo - tal como os nossos novos fanáticos do poder arbitrário popular sustentam que a eleição popular é a única fonte legal de autoridade. É verdade que os entusiastas da velha prerrogativa especulavam disparatadamente, e talvez também impiamente, como se a monarquia tivesse o privilégio da aprovação divina mais do que os outros modos de governo - como se o direito a governar por herança fosse rigorosamente irrevogável em todas as pessoas que se encontrassem na sucessão a um trono, e em todas as circunstâncias, o que nenhum direito civil ou político o pode ser. Mas uma opinião absurda sobre o direito hereditário do rei à coroa não prejudica uma outra opinião [sobre o assunto] que é racional, e fundada em sólidos princípios do direito e da política. Se todas as teorias absurdas de juristas e de· clérigos fossem viciar os objectos sobre os quais versam, já não teríamos leis nem religião no mundo. Mas uma teoria absurda de um lado da questão não constitui justificação para a outra facção afirmar um facto falso ou promulgar máximas prejudiciais.
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A segunda reivindicação da Sociedade da Revolução é "o direito a expulsar os seus governantes por má conduta". Os receios que os nossos antepassados tiveram em constituir um precedente como o de "expulsar por má conduta" foram talvez a causa de que a declaração do acto que implicou a abdicação do Rei Jaime, a ter algum defeito, fosse o de ser excessivamente cautelosa e circunstancial*87• Mas todo este cuidado e todo este conjunto de circunstâncias serve para mostrar o espírito prudente que predominou nos conselhos nacionais, na situação em que homens, irritados pela opressão e exaltados por um triunfo sobre ela, estão aptos a abandonar-se a excessos, isto mostra a preocupação desses homens notáveis, que influenciaram a condução dos assuntos nesse grande evento, em fazerem da Revolução uma fonte de acordo e não um gérmen de novas revoluções. Nenhum governo se aguentaria se pudesse ser derrubado por algo tão vago e indefinido como a opinião sobre a "má conduta". ~em conduziu a Revolução não fundamentou a abdicação virtual do Rei Jaime à luz de um princípio tão incerto. Acusaram-no de nada menos que a intenção, confirmada por uma multidão de actos evidentemente ilegais, de subverter a Igreja Protestante e o Estado, as suas leis e Liberdades fundamentais: acusaram-no de ter quebrado o pacto original entre o rei e o povo. Isto é muito mais que má conduta. Uma necessidade grave e imperiosa obrigara-os a dar o passo que deram, e deram-no com infinita relutância, como se estivessem sob a mais rigorosa das leis. A sua confiança na preservação futura da Constituição não estava nas revoluções que estavam por vir. A grande política de todas as suas disposições foi tornar quase impraticável para qualquer futuro soberano levar o Parlamento a recorrer de novo a estas soluções violentas. Deixaram a coroa tal s- "Nota do autor [fora m respeitados os itálicos): "~e o Rei J aime Segundo, rendo forçado a subversão da Constituição do reino, rompendo o contr-ato original entre o rei e o povo e, por conselho dos J esuíras e de outras pessoas perversas, rendo violado as leisfundamentais, e tendo-se retirado do reino, abdicou do governo, e o trono ficou, assim, vacante. "
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como ela sempre tinha sido aos olhos da lei e na sua avaliação, totalmente isenta de responsabilidade. Com o objectivo de aliviar ainda mais a Coroa, agravaram a responsabilidade dos ministros de Estado. Pelo 1.0 estatuto do Rei Guilherme, secção 2.•, chamada "o acto para declarar os direitos dos súbditos e para estabelecer a sucessão da coroa", decretaram, que os ministros deveriam servir a coroa nos termos dessa declaração. E garantiram pouco depois as reuniões frequentes do Parlamento, através das quais todo o governo estaria sob a constante inspecção e controlo activo dos representantes do povo e dos grandes do reino. No grande acto constitucional que se lhe seguiu, o do 12. 0 e 13. 0 anos do reinado do Rei Guilherme, para uma maior limitação da coroa, e para melhores garantias dos direitos e liberdades dos súbditos, assegurou-se que, "nenhum perdão selado com o grande selo de Inglaterra poderia opor-se a uma impugnação votada pelos comuns no Parlamento". Os nossos antepassados julgaram que as regras do governo na Declaração de Direitos, a constante inspecção do Parlamento e o uso da prática da impugnação, eram infinitamente melhores como segurança, quer para a sua liberdade constitucional quer contra os vícios da administração, do que a reserva de um direito a "expulsar os seus governantes", tão difícil na prática, tão incerto na conclusão e frequentemente tão pernicioso nas suas consequências. O Dr. Price, no seu sermão* 88 condena, muito acertadamente, a prática grosseira de discursos adulatórios aos reis. Em vez deste estilo bajulador, ele propõe que seja dito a Sua Majestade em ocasiões festivas que "o rei deve considerar-se a si mesmo mais propriamente o servo do que o soberano do seu povo". Como cumprimento, esta nova forma de saudação não parece ser muito gentil. Aqueles que são servos de nome, bem como de facto, não gostam que se lhes fale da sua situação, do seu dever e das suas obrigações. O escravo, na antiga peça, diz ao seu senhor, "Haec commemoratio est quasi 88
"Nora do auror: Price, 22, 23 e 24
79 exprobatio" 89• Não é agradável como cumprimento, não é salutar como lição. Ao fim e ao cabo, se o rei fosse fazer eco deste novo tipo de discurso, e o adoptasse nestes termos, mesmo até ao ponto de aceitar o cognome de Servo do Povo, como a sua divisa real, não consigo imaginar como ele ou nós poderíamos tornar-nos melhores com isso. Já vi cartas muito arrogantes assinadas: "o seu muito obediente e humilde servo". O domínio mais altivo que alguma vez se sofreu na terra tomou um título de uma maior humildade que aquele que agora nos é proposto para os soberanos pelo Apóstolo da Liberdade. Reis e nações foram calcados aos pés por alguém que se chama a si próprio "O Servo dos Servos", e mandatos para depor soberanos foram selados com o sinete "O Pescador" 90 • Teria considerado isto tudo como não mais que um discurso irreverente e vão, desagradável fumaça em que alguns gostariam de ver evaporar-se o espírito da liberdade, se isto não fosse claramente um suporte da ideia, e uma parte do esquema de "expulsar reis por má conduta". Nesta perspectiva, o assunto merece algumas observações. Os reis, num certo sentido, são indubitavelmente os servos do povo, porque o seu poder não tem outro fim racional que o do bem comum, mas não é verdade que eles sejam, num sentido vulgar, (pela nossa Constituição, pelo menos) algo parecido com servos, cuja essência da sua situação é obedecer às ordens de outrem e poderem ser dispensados a gosto. O Rei da Grã-Bretanha não obedece a ninguém. Todas as outras pessoas lhe estão, individual e colectivamente, subordinadas e devem-lhe obediência legal. A lei, que não sabe nem adular nem ofender, chama a este alto magistrado, não nosso servo, como este humilde pastor lhe chama, mas "nosso soberano Senhor o Rei", e nós, pela nossa parte, aprendemos a falar 89 90
N .T . "Esta recordação é como que um a exprobação", Ter. An. 43.
N .T. O Papa usa o tÍtulo "Servus servorum Dei " e usa também a designação de "O Pescado r", em alusão à profissão e missão do Apóstolo Pedro.
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apenas a linguagem primitiva da lei, e não a gíria confusa dos púlpitos babilónicos deles. Como ele não nos deve obediência, mas antes somos nós que temos de obedecer à lei que ele representa, a Constituição não tomou nenhuma providência para o tornar responsável, seja em que grau for, como o faz a um servo. A nossa Constituição não conhece magistratura semelhante à dajusticia de Aragão 9 1, nem a nenhum tribunal legalmente estabelecido que possa exigir ao Rei a responsabilidade própria dos servos. Nisto não se distingue Sua Majestade dos Comuns, nem dos Lordes que, nas suas competências legais públicas, nunca podem ser chamados a prestar contas da sua conduta. Embora a Sociedade da Revolução escolha afirmar, em franca oposição a uma das partes mais sábias e mais belas da nossa Constituição, que "um rei não é mais que o primeiro servo do povo, criado por ele e que a ele responde". Os nossos antepassados, autores da Revolução, não teriam merecido fama de sábios se não tivessem encontrado outra segurança para a sua liberdade senão a debilidade do governo, tornando-o fraco nos actos e precário no título - se não tivessem encontrado melhor remédio contra o poder arbitrário que a confusão civil. Deixemos que estes cavalheiros nos apresentem este povo representativo perante quem o Rei é responsável como servo. Nessa altura, será o tempo oportuno de eu lhes citar os preceitos da lei escrita que afirmam que ele não o é. A cerimónia de destituição dos reis, da qual estes cavalheiros falam tão à vontade, muito raramente pode ser levada a cabo, se é que pode, sem o uso da força. Nessa altura, torna-se mais um caso de guerra do que um direito constitucional. As armas obrigam as leis a calarem-se, e os tribunais são derrubados juntamente com a paz que já não são capazes de manter. 91 N.T. O Rei no de Aragão, na Idade Méd ia, tinh a aj usticia, um trib unal que resolvia os diferendos entre o rei e os nobres.
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A Revolução de 1688 foi levada a cabo por uma guerra justa, no único caso em que uma guerra pode ser justa, ainda para mais uma guerra civil: "justa bella quibus NECESSARIA" 92 • A questão de destronar ou, se estes cavalheiros gostam mais da frase, "demitir" reis será, como sempre foi, uma questão extraordinária de Estado, e completamente à margem da lei: uma questão (como todas as outras questões de Estado) de carácter, de meios, de consequências prováveis, mais do que de direitos positivos. Assim, como não se depõe o rei por abusos comuns, tão -pouco a questão deve ser agitada por inteligências comuns. A linha teórica de demarcação, onde a obediência deve acabar e a resistência deve começar, é ténue e obscura e não é definível facilmente. Não é um acto isolado ou um único acontecimento que a determina. É preciso que haja grande desrespeito e perturbação num governo, e que a perspectiva do futuro seja tão má quanto a experiência passada, antes que se possa pensar em derrubá-lo. ~ando as coisas se encontram nesta lamentável situação, a natureza do distúrbio indica o remédio, àqueles a quem a Natureza qualificou para administrar, nestas situações extremas, críticas e ambíguas, a poção amarga ao Estado doente. Os tempos, as ocasiões e as provocações ensinam as suas próprias lições. O s sensatos decidem a partir da gravidade do caso, os irritados a partir da sua sensibilidade à opressão, os espíritos superiores, a partir do desdém e da indignação diante do poder abusivo em mãos indignas, os valentes e audazes, a partir do amor ao perigo em favor de uma causa nobre: mas, com ou sem razão, a revolução será o último recurso dos prudentes e dos bons. O terceiro princípio de direito reivindicado pelo púlpito de Old Jewry, nomeadamente: "o direito a formar governo por nós mesmos", teve tão pouco a ver com o que se fez na Revolução, quer como precedente quer como princípio, quanto o tiveram as duas primeiras reivindicações. A Revolução foi feita para preservar as nossas leis e liberdades antigas e indiscutíveis, e a antiga constitui92
N.T. "A guerra é justa para quem é necessária." Liv. 9.1.10.
82 ção, que é a nossa única segurança para a lei e a liberdade. Se desejar conhecer o espírito da nossa Constituição, e a política que predominou neste grande período e que a preservou até este momento, peço-lhe que veja ambos na nossa história, nos nossos registos, nos nossos actos do Parlamento e nos nossos diários Parlamentares, não nos sermões de Old Jewry, nem nos brindes após o jantar da Sociedade da Revolução. Neles encontrará outras ideias e outra linguagem. Uma reivindicação destas é tão pouco adequada ao nosso temperamento e aos nossos desejos quanto não é corroborada por nenhum tipo de autoridade. Só a própria ideia de constituir um novo governo é o bastante para nos encher de desgosto e de horror. ~i semos neste período da Revolução, e queremos agora, derivar tudo o que possuímos da herança dos nossos antepassados. Tivemos o cuidado de não enxertar, neste corpo e acervo da herança, nenhum rebento alheio à natureza da planta original. Todas as reformas que fizemos até hoje fundaram-se na relação com a antiguidade, e espero, mais, estou convencido, que todas aquelas que possam ser feitas daqui para a frente serão concebidas cuidadosamente a partir de idênticos precedentes, de semelhante autoridade e exemplo. A nossa última reforma é a que consta da Magna Carta. Poderá ver que Sir Edward Coke, o grande oráculo da nossa lei, e de facto todos os grandes homens que o seguiram, até Blackstone 93, se aplicaram a provar a genealogia das nossas liberdades. Conseguiram provar que a antiga carta, a Magna Carta do rei João, estava ligada a uma outra carta promulgada por Henrique I, e que, quer uma quer outra, não eram mais que o reafirmar da ainda mais antiga lei do ~eino. Para dizer a verdade, em grande parte, estes autores parecem estar certos, talvez nem sempre, mas se os juristas se enganaram em alguns aspectos particulares, isso prova ainda mais fortemente a minha posição: porque isso demonstra a forte simpatia pela anti9
;
"Nora do auto r: Ver a Magna Carta, de Blackstone, impressa em Oxford, 17 59.
83 guidade que sempre povoou as mentes de todos os nossos juristas e legisladores, e de todo o povo que eles queriam influenciar, e a política estável deste reino ao considerar os seus direitos e garantias mais sagrados como uma herança. Na famosa lei do 3. 0 ano do reinado de Carlos I, chamada a Petição de Direito, o Parlamento disse ao Rei," Os vossos súbditos herdaram esta liberdade": reclamando os seus direitos, não na base de princípios abstractos, "como os direitos do homem", mas como os direitos dos ingleses, e como um património proveniente dos seus antepassados. Selden 94, e outros profundos conhecedores que redigiram esta Petição de Direito, estavam igualmente familiarizados, com todas as teorias gerais respeitantes aos "direitos do homem" pelo menos tanto quanto os oradores dos nossos púlpitos ou das vossas tribunas: tanto quanto o Dr. Price ou o Abade de Sieyes 95 . Mas, por razões dignas da sabedoria prática, que suplantou o seu saber teórico, eles preferiram este título positivo, registado e hereditário a tudo o que pode ser caro ao homem e ao cidadão, àquele direito vago e especulativo, que expunha a sua herança segura a ser dissipada e feita em pedaços por qualquer espírito litigioso e rebelde. A mesma política perpassa por todas as leis que desde aí foram feitas para a preservação das nossas liberdades. No 1. 0 ano de Guilherme e Maria, no famoso estatuto chamado a Declaração de Direito, as duas Câmaras não pronunciaram nem uma sílaba a propósito do "direito a eleger um governo para si mesmos". Verá o Senhor que a sua única preocupação foi assegurar a religião, as leis e as liberdades que há muito se possuíam e que ultimamente tinham estado em perigo. "Tomando 96 na mais alta consideração os 94 N .T. John Selden, 1584-1 654. jurista que de fe ndeu o rebelde J ohn H ampden , que se revoltou contra Carlos I. 95 N .T. Abade Emmanuel-Joseph de Sieyi:s ( 1748- 1816), um dos teóricos legisladores da Constituição Francesa de 179 1.
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Nota do autor: I Gu ilherme e Maria.
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melhores meios de constituir um tal estado de coisas no qual a sua religião, as suas leis e as suas liberdades pudessem não estar em risco de ser de novo desrespeitadas", começaram os seus procedimentos estabelecendo como alguns destes melhores meios: "em primeiro lugar", fazer "como os seus antepassados fiz eram habitualmente em casos semelhantes para reivindicarem os seus direitos e liberdades antigos, declarar"- e a seguir pedem ao rei e à rainha- "que possa ser proclamado e decretado que todos e cada um dos direitos e liberdades reivindicados e declarados são os antigos direitos e liberdades do povo deste reino".
O Senhor há-de reparar que, desde a Magna Carta à Declaração de Direito, foi política invariável da nossa Constituição reivindicar e afirmar as nossas liberdades como uma herança que nos vem dos nossos antepassados, para ser transmitida à nossa descendência, - como uma propriedade que especialmente pertencesse ao povo deste reino, sem qualquer referência a outro direito mais geral ou mais antigo. Por este meio, a nossa Constituição preserva a unidade na grande diversidade de todas as suas partes. Temos uma coroa hereditária, uns pares hereditários, e uma Câmara dos Comuns e um povo que herda privilégios, direitos e liberdades desde há uma longa linhagem de antepassados. Esta política parece-me ser o resultado de uma profunda reflexão - ou antes, o feliz efeito de seguir a Natureza, que é sabedoria sem reflexão e acima dela. Um espírito de inovação é geralmente o resultado de um temperamento egoísta e de vistas curtas. Não cuidará da posteridade quem não olhou nunca para os seus antepassados. Além disso, o povo de Inglaterra sabe bem que a ideia de hereditariedade proporciona um princípio seguro de conservação, e um princípio seguro de transmissão, sem de modo algum excluir um princípio de aperfeiçoamento. Deixa a aquisição livre, mas assegura o que adquire. ~aisquer vantagens obtidas por um Estado, actuando segundo estas máximas, depressa se vêem envolvidas
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numa espécie de contrato familiar, seguras numa espécie de bens de mão-morta para sempre. Através de uma política constitucional que opera segundo o modelo da Natureza, recebemos, mantemos e transmitimos o nosso governo e os nossos privilégios, do mesmo modo que usufruímos da nossa propriedade e das nossas vidas. Recebemos e legamos a outros do mesmo modo e pela mesma ordem as instituições políticas, as riquezas e as dádivas da Providência. O nosso sistema político está colocado numa justa correspondência e simetria com a ordem do mundo e com o modo de existência destinado a um corpo permanente composto de partes transitórias: pela disposição de uma sabedoria extraordinária, que preside ao grande mistério da unidade da raça humana, o todo, num dado momento, nunca é velho ou de meia idade ou novo mas, numa condição de imutável constância, move-se segundo o curso diverso da decadência, da queda , da renovação e do progresso perpétuos. Assim, preservando os métodos da Natureza na condução do Estado, naquilo que modernizamos nunca seremos completamente novos e naquilo que conservamos nunca seremos completamente obsoletos. Ao aderir desta maneira e segundo estes princípios aos nossos antepassados, somos guiados, não pela superstição saudosista, mas pelo espírito da analogia filosófica. Nesta escolha do que é herdado, demos ao contexto político a figura de uma relação de família: ligando a Constituição do nosso país com os laços domésticos mais queridos, seguindo as nossas leis fundamentais no seio dos nossos afectos familiares , mantendo inseparáveis e alimentados com o calor da sua benevolência mútua e conjunta, o nosso Estado, os nossos lares, os nossos sepulcros e os nossos altares. Através do mesmo plano que nos fez conformar as nossas instituições artificiais à Natureza e, recorrendo à ajuda dos seus instintos certeiros e poderosos para fortalecer as capacidades da nossa razão, de si fracas e erróneas, retirámos vários outros benefícios - e não pequenos - do facto de considerarmos as nossas liberdades à luz do património herdado. Actuando sempre como se estivésse-
86 mos em presença de santos antepassados, o espírito de liberdade, que, por si mesmo, leva ao desregramento e ao excesso, é temperado por uma gravidade solene. Esta ideia de uma ascendência liberal inspira-nos com o sentido de uma dignidade habitual e inata, a qual previne a insolência arrivista que quase inevitavelmente afecta e desonra aqueles que primeiro atingem uma distinção qualquer. Através destes meios a nossa liberdade torna-se uma independência nobre. Tem um aspecto imponente e majestoso. Tem uma genealogia e ilustres antepassados. Tem o seu porte e o seu insigne brasão de armas. Tem a sua galeria de retratos, as suas inscrições monumentais, os seus registos, os seus testemunhos e os seus títulos. Tributamos reverência às nossas instituições civis segundo o princípio pelo qual a Natureza nos ensina a reverenciar os indivíduos: tendo em conta a sua idade e a sua ascendência. Todos os vossos sofistas não podem produzir nada mais adaptado a preservar a liberdade racional e viril que este percurso que seguimos, que escolhe a nossa natureza de preferência às nossas especulações e o nosso coração de preferência às nossas invenções, para salvaguarda e depósito dos nossos direitos e privilégios. Teriam podido, se quisessem, aproveitar do nosso exemplo, e dar à vossa liberdade recuperada a correspondente dignidade. Os vossos privilégios, se bem que interrompidos, não estavam esquecidos. É verdade que a vossa Constituição, enquanto estivestes fora do poder, sofreu perdas e deteriorou-se, mas vós possuíeis em algumas partes as paredes e, na sua totalidade, as fundações, de um castelo nobre e venerável. Os senhores poderiam ter reparado essas paredes, poderiam ter construído sobre essas fundações. A vossa Constituição foi suspensa antes de ter sido aperfeiçoada, mas tínheis os elementos de uma Constituição quase tão boa quanto se poderia desejar. As vossas antigas instituições possuíam aquela multiplicidade de partes correspondentes aos vários tipos de que a vossa comunidade, felizmente, era composta. Os senhores tinham todas as combinações e todos os conflitos de interesses, tinham a
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acção e a oposição que, tanto no mundo natural como no político, da luta recíproca entre poderes que se opõem, faz derivar a harmonia do universo. Estes interesses opostos e em conflito, que vós considerais uma coisa tão condenável, quer na amiga quer na actual Constituição, interpõem um obstáculo salutar a todas as resoluções precipitadas. Tornam a deliberação um assumo não de escolha mas de necessidade. Fazem que todas as mudanças sejam objecto de um compromisso, o que, naturalmente, gera moderação e produz temperança, prevenindo o mal doloroso das reformas rígidas, grosseiras e inábeis e tornam os exercícios precipitados de poder arbitrário, de poucos ou de muitos, para sempre impraticáveis. Graças a esta diversidade de membros e de interesses, a liberdade geral teria tantas garantias quantas as várias perspectivas nas várias ordens, ao mesmo tempo que, submetendo o todo ao peso de uma real monarquia, se impedia que as várias partes empenassem e saíssem dos lugares que lhes estavam destinadas. Os senhores tinham todas estas vantagens nas vossas amigas instituições, mas escolheram agir como se nunca tivessem sido moldados pela sociedade civil e tivessem de começar tudo de novo. Começaram mal, porque começaram por desprezar tudo o que vos pertencia. Começaram o vosso negócio sem capital. Se as últimas gerações do vosso país pareciam ter pouco brilho aos vossos olhos, podíeis tê-las deixado de lado e ter feito derivar as vossas reivindicações de uma raça mais amiga de antepassados. Sob um apreço reverente por estes antepassados, a vossa imaginação teria percebido neles um nível de virtude e sabedoria muito para além da prática vulgar do momento, e os Senhores ter-se-iam elevado em virtude do exemplo que aspiravam imitar. Respeitando os vossos antepassados teríeis aprendido a respeitar-vos a vós mesmos. Não teríeis optado por considerar os franceses como um povo sem história, como uma nação de malnascidos, escravos desgraçados até ao ano da emancipação, 1789. Com vista a vos desculpardes das vossas múltiplas enormidades aos vossos adeptos daqui, não vos impor-
88 tastes de serdes representados, a expensas da vossa honra, como um bando de escravos Maroon 97 , subitamente fugidos do cativeiro, e por isso desculpáveis pelo vosso abuso da liberdade à qual não estáveis acostumados e estáveis mal adaptados. Não teria sido mais sensato, meu caro amigo, os senhores terem de vós o conceito, que eu sempre tive: uma nação magnânima e valorosa, há muito tempo desencaminhada, por desgraça sua, por causa dos seus sentimentos elevados e românticos de fidelidade, de honra e de lealdade? ~e os acontecimentos vos tinham sido desfavoráveis, mas que os senhores não eram escravos de nenhuma inclinação baixa ou servil, que, na vossa submissão mais devotada, os senhores tinham actuado por um princípio de espírito público, que era o vosso país que veneravam na pessoa do vosso rei? Se os senhores tivessem feito para que se entendesse que, na ilusão daquele amável erro, tinham ido mais longe do que os vossos sábios antepassados e que estavam decididos a reatar os vossos privilégios antigos, enquanto preservavam o espírito da fidelidade e da honra antiga e recente, ou se, desconfiados de vós mesmos, e não discernindo claramente a Constituição dos vossos antepassados quase suprimida, tivessem olhado para os vossos vizinhos nesta terra, que mantiveram vivos os princípios e modelos antigos do velho direito consuetudinário europeu, melhorado e adaptado ao presente estado da Europa - seguindo modelos sensatos teríeis dado novos exemplos de sabedoria ao mundo. Os senhores teriam tornado a causa da liberdade venerável aos olhos dos sábios de todas as nações. Teriam desprestigiado o despotismo no mundo inteiro ao mostrar que a liberdade não é apenas reconciliável com a lei, mas é, quando bem disciplinada, um auxiliar desta. Teriam tido impostos produtivos sem serem opressivos. Teriam tido um comércio florescente para os alimentar. Teriam tido uma Constituição livre, uma monarquia forte , um exército disciplinado, um clero reformado e venerado - uma nobreza branda, mas intrépida, N.T. Descendente de escravos fugitivos da Guiana H olandesa e Índias Ocidentais.
89 para dar o exemplo da virtude e não para a sufocar, teriam tido uma burguesia liberal, para competir e estimular a nobreza, teriam tido um povo protegido, satisfeito, laborioso e obediente, ensinado a esforçar-se e a reconhecer a felicidade que é basear-se na virtude em todas as condições - no que consiste a verdadeira igualdade moral da humanidade, não naquela ficção monstruosa que, por inspirar falsas ideias e expectativas vãs em homens destinados a percorrer o caminho obscuro de uma vida de trabalho, serve apenas para agravar e tornar mais amarga a desigualdade real que nunca pode desaparecer e que a ordem da vida civil estabelece tanto para benefício daqueles a quem precisa de deixar numa condição humilde como para aqueles a quem pode elevar a uma condição mais sumptuosa, mas não mais feliz. Tinham um caminho tranquilo e fácil de felicidade e glória aberto para vós, para além de tudo o que há memória na história do mundo, mas mostraram que a dificuldade convém aos homens. Contem o que ganharam, vejam o que conseguiram com todas essas especulações extravagantes que ensinaram os vossos líderes a desprezar os seus predecessores e todos os seus contemporâneos, e mesmo a desprezarem-se a si próprios, até ao momento em que se tornaram verdadeiramente desprezíveis. Por seguir estas falsas luzes, a França comprou calamidades inegáveis, a um preço mais elevado do que o que alguma outra nação pagou pelas bênçãos mais inequívocas. França comprou a pobreza com o crime! França não sacrificou a sua virtude ao seu interesse, mas abandonou o seu interesse, para poder prostituir a sua virtude! Todas as outras nações começaram a constituir um novo governo, ou a reforma de um antigo, estabelecendo originalmente, ou impondo mais meticulosamente algum rito religioso. Todos os outros povos basearam os fundamentos da liberdade civil em costumes mais severos e num sistema moral mais austero e viril. A França, quando deixou perderem-se as rédeas da autoridade real, duplicou a licenciosidade de uma devassidão feroz nos costumes e duma irreligiosidade insolente nas opi-
90 niões e nas práticas - e espalhou, por todas as dimensões da vida, como se estivesse a distribuir algum privilégio, ou a facilitar o acesso a algum benefício antes privado, todas as desventuradas corrupções que antes costumavam ser a doença da riqueza e do poder. Este é um dos novos princípios de igualdade em França. A França, pela perfídia dos seus líderes, desacreditou por completo o tom conciliador nos gabinetes dos príncipes e arredou deles os seus mais importantes tópicos. Tornou sagradas as máximas sinistras e suspeitas da desconfiança tirânica, e ensinou os reis a tremer perante (o que doravante se chamará) as probabilidades enganadoras dos políticos moralistas. Os soberanos considerarão como conspiradores contra o seu trono aqueles que os aconselharem a depositar uma confiança ilimitada no seu povo - como traidores que visam a sua destruição, ao levarem a sua natureza boa e despreocupada, sob falsos pretextos, a admitir que associações de homens desleais e atrevidos participem do seu poder. Só isto, ainda que não houvesse mais nada, já era uma calamidade irreparável, para vós e para a humanidade. Lembrem-se que o vosso Parlamento em Paris disse ao rei que, mandando reunir os Estados, não tinha nada a recear a não ser o pródigo excesso do seu zelo em apoiar o trono. É certo que estes homens deveriam esconder as suas cabeças98. É verdade que eles deveriam ter o seu quinhão na ruína que o seu conselho trouxe ao seu soberano e ao seu país. Tais declarações confiantes tendem a adormecer a autoridade, a encorajá-la a comprometer-se em aventuras perigosas de políticas não testadas, a descuidar as medidas, preparativos e precauções, que distinguem a benevolência da imbecilidade, e sem as quais nenhum homem pode responder pelo efeito salutar de nenhum plano abstracto de governo ou de liberdade. Por falta destas medidas, viram o remédio do Estado corromper-se em veneno. Viram os franceses revoltar-se contra um monarca brando e legítimo, com mais fúria, ultrajes e 95 .T. A expressão é "hide t hei r heads", que rem sido interpretado como o temer a guilhoti na.
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insultos, do que alguma vez se teve conhecimento que um povo se levantasse contra o mais ilegal dos usurpadores ou o mais sanguinário dos tiranos. A sua resistência foi contra as concessões, a sua revolta contra a proteção, o seu golpe foi contra a mão pródiga em graças, favores e imunidades. Isto foi contranatura. O resto está em ordem: encontraram o seu castigo no seu próprio sucesso. Leis viradas do avesso, tribunais subvertidos, indústria sem vigor, comércio moribundo, os impostos não são pagos e o povo empobrece, uma Igreja roubada e o Estado não aliviado, a anarquia civil e militar fazem a constituição do reino , tudo quanto é humano e divino é sacrificado ao ídolo do crédito público e a consequência é a bancarrota nacional e, para coroar o conjunto, o papel-moeda de um novo poder, precário e vacilante, é desacreditado por uma fraude empobrecedora e uma rapina de mendigos. É o papel-moeda que é mantido como suporte de um império, em lugar dos dois grandes valores reconhecidos que representam o crédito convencional duradouro da humanidade, que desapareceram e se ocultaram na terra de onde vieram, quando o princípio de propriedade, do qual são os representantes e de que são as criaturas, foi sistematicamente subvertido. Eram necessárias rodas estas coisas horríveis? Eram o resultado inevitável da luta desesperada de determinados patriotas, impelidos a atravessar com dificuldade, através de sangue e tumulto, para a praia calma de uma liberdade tranquila e próspera? Não, nada disso. As recentes ruínas de França, que nos horrorizam para onde quer que voltemos os olhos, não são a devastação de uma guerra civil: são os monumentos tristes, mas instrutivos, do conselho precipitado e ignorante em tempo de profunda paz. São a exibição de uma autoridade irrefletida e presunçosa, porque sem [encontrar] resistência e irresistível. As pessoas que deste modo desperdiçaram o tesouro precioso dos seus crimes, as pessoas que fizeram esta devastação pródiga e selvagem de calamidades públicas (o último
92 recurso, reservado para o derradeiro resgate do Estado) depararam no seu avanço com pouca, ou mesmo nenhuma, oposição. A sua progressão foi mais uma marcha triunfal que o avanço de uma guerra. Os seus pioneiros vieram à frente e demoliram tudo raso a seus pés. Não derramaram nem uma gota do seu sangue pela causa do país que arruinaram. Não sacrificaram aos seus projectos nada que fosse além das fivelas dos sapatos99 , enquanto prenderam o seu rei, assassinaram os seus compatriotas, banharam em lágrimas e mergulharam em pobreza e angústia milhares de homens admiráveis e de valorosas famílias. A sua crueldade nem sequer foi o resultado vil do medo. Foi antes consequência de se sentirem em completa segurança, ao autorizarem traições, roubos, violações, assassínios, massacres e queimadas através da sua terra devastada. Mas a causa de tudo isto era evidente desde o início. Esta escolha voluntária, esta predilecção pelo mal, pareceria perfeitamente inexplicável se não conhecêssemos a composição da Assembleia Nacional. Não me refiro à sua constituição formal que, tal como agora está, é bastante censurável, mas aos materiais de que é composta na sua maior parte, os quais são dez mil vezes mais importantes do que todas as formalidades do mundo. Se nada mais soubéssemos desta Assembleia a não ser o seu título e a sua função, não haveria cores que pintassem nada mais venerável à nossa imaginação, o espírito de quem indaga, subjugado por imagem tão reverente como a da virtude e sabedoria de todo um povo reunida num só lugar, teria parado e hesitado em condenar mesmo ante os piores indícios. Em vez de condenáveis, os acontecimentos teriam aparecido apenas como enigmáticos. Mas nenhum nome, nenhum poder, nenhuma função, nenhuma instituição artificial seja ela qual for, pode fazer dos homens, dos quais se compõe qualquer sistema de autoridade, algo diferente daquilo que Deus, a Natureza, a edu99 l.T. Burke refere-se aqui ao gesto dos Deputados à Assembleia Constituinte quando deixaram sobre a mesa da presidência as fivelas de prata dos sapatas, como homenagem patriótica e contribuição para a revolução.
93 cação e os seus hábitos de vida fizeram deles. Capacidades para além destas o povo não tem para dar. A virtude e a sabedoria podem ser objectos da sua escolha, mas a eleição não confere nem uma nem a outra àqueles sobre os quais eles impuseram as mãos. Não têm este poder, nem por natureza, nem por nenhuma garantia revelada. Após eu ter lido a lista de pessoas e os círculos dos eleitos para o Tiers État, nada do que depois fizeram me pareceu surpreendente. No meio deles, de facto, vi alguns de categoria reconhecida e alguns talemos brilhantes, mas com experiência prática de Estado nem um se podia encontrar. Os melhores eram apenas teóricos. Mas quem quer que tenham sido os poucos que se distinguiram, é a substância e a totalidade de uma organização que constitui o seu carácter e, forçosamente, acaba por determinar a sua direcção. Em todas as organizações, em grande medida, aqueles que lideram têm também de seguir. Têm de adequar as suas propostas ao gosto, ao talento e à disposição daqueles a quem querem conduzir: daí que uma assembleia que seja, em grande parte, viciosa ou fracamente composta, nada a não ser um supremo grau de virtude como raramente aparece no mundo, e que por essa razão não pode ser tomado em conta, pode impedir que os homens de talento disseminados se tornem hábeis instrumentos de projectos absurdos. Se, o que é o mais provável acontecer, em vez desse raro grau de virtude, eles forem comandados por uma ambição sinistra e o desejo de uma glória infame, então a parte mais fraca da assembleia, a quem no início obedecem, torna-se, por sua vez, subordinada e instrumento dos seus desígnios. Nesta transição política, os líderes serão obrigados a inclinar-se perante a ignorância dos seus seguidores e os seguidores tornar-se-ão subservientes aos piores desígnios dos seus líderes. Para assegurar algum grau de sobriedade nas propostas feitas pelos líderes numa assembleia pública, estes devem respeitar, e em certa medida mesmo recear, aqueles que conduzem. Os seguidores, para serem conduzidos de outro modo que não cegamente, preci-
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sam de ter qualidades, se não para protagonistas, pelo menos para juízes, precisam também de ser juízes com poder natural e autoridade. O único modo de assegurar uma conduta firme e moderada nestas assembleias é que o seu corpo seja respeitável: pela sua condição na vida, pelo seu património, pela sua educação e por hábiros que alarguem e liberalizem o entendimento. Nos chamados Estados Gerais de França, a primeira coisa que me impressionou foi o seu grande afastamento do rumo antigo. Vi que a representação do Terceiro Estado era composta por seiscentas pessoas. Eram em número igual ao conjunto dos representantes das outras duas ordens. Se as ordens fossem para actuar separadamente, o número não teria sido de grande importância, para além da questão da despesa. Mas quando ficou claro que as três ordens eram para ser misturadas numa só, a política e o inevitável efeitO desta numerosa representação tOrnaram-se óbvios: uma pequena deserção de qualquer uma das outras duas ordens poria o poder de ambas nas mãos da terceira. Com efeitO, rodo o poder do Estado em breve lhes estava entregue. A sua adequada composição rornou-se então infinitamente mais importante. Julgue pois o Senhor, qual não foi a minha surpresa quando descobri que a grande maioria da Assembleia (creio que a maioria dos membros que participam) era composta por praticantes do direitO. Não era composta de magistrados distintos que tivessem prometido ao seu país a sua ciência, prudência e integridade - nem de advogados líderes da glória dos tribunais - nem de professores universitários de renome - mas, na sua maior parte, como tem de ser num número destes, de membros da profissão inferiores, ignorantes, mecânicos e meramente instrumentais. Havia excepções distintas, mas a composição geral era de obscuros advogados de província, de comissários de insignificantes jurisdições locais, de procuradores rústicos, de notários, e roda a comitiva de ministros do contencioso municipal, os fomentadores e líderes das guerras
95 mesquinhas de vexames da aldeia. A partir do momento em que li a lista vi claramente, quase tal como ocorreu, tudo o que iria suceder. O grau de consideração em que cada profissão é tida em conta torna-se o padrão da estima em que os profissionais se têm a si próprios. ~alquer que tenha sido o mérito pessoal de muitos advogados, individualmente (e em muitos casos foi sem dúvida muito considerável), no vosso reino militar ninguém desta profissão é particularmente considerado, excepto a categoria mais elevada de todas, que frequentemente unia aos seus escritórios profissionais o seu grande prestígio familiar e eram investidos de grande poder e autoridade. A estes tinha-se grande respeito mesmo misturado com muito temor. O nível seguinte não era muito considerado, a sua parte mecânica tinha uma reputação de muito baixo nível. Sempre que se investe da autoridade suprema um corpo assim composto, evidentemente que se produzem as consequências da autoridade suprema estar nas mãos de homens que habitualmente não foram educados a respeitarem-se a si próprios - que não arriscam nenhuma reputação - que não se poderia esperar que se comportassem com moderação ou que conduzissem com descrição um poder que eles próprios, mais do que quaisquer outros, se deviam surpreender de encontrar nas suas mãos. ~em poderia gabar-se de que estes homens, arrebatados repentinamente, e como por encantamento, ao nível mais humilde de subordinação, não se embriagariam com a sua inesperada grandeza? ~em poderia conceber que homens que habitualmente se imiscuem, são atrevidos, subtis, activos, de disposição conflituosa e de espírito inquieto, retornariam facilmente à sua antiga condição de obscura contenção e laboriosa, baixa e inútil charlatanice? ~em duvidaria senão esses, que a qualquer preço para o Estado, do qual nada entendiam, tinham de perseguir os seus interesses privados, dos quais entendiam muito bem? Nada disto dependia da sorte ou da contingência. Era inevitável, era necessário, estava inscrito na natureza das coisas. Devem
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apoiar (se a sua capacidade não lhes permite liderar) qualquer projecto que lhes proporcione uma Constituição litigiosa - que pode abrir-lhes os postos inumeráveis e lucrativos que se seguem a todas as grandes convulsões e revoluções no Estado, e particularmente a todas as transferências violentas de propriedade. Seria de esperar que se preocupassem com a estabilidade da propriedade, aqueles cuja existência tinha dependido sempre de tudo o que torna a propriedade questionável, ambígua e precária? Os seus objectivos haveriam de alargar-se com a sua promoção, mas a sua disposição, os seus hábitos e o modo de cumprirem os seus desígnios haveriam de permanecer os mesmos.
Bem! Mas estes homens eram para ser moderados e restringidos por outros grupos, de espíritos mais sóbrios e com maior discernimento. Deveriam eles então ter reverência pela autoridade supereminente e dignidade venerável de uma mão cheia de palhaços rústicos, que têm assento nesta Assembleia, de quem se diz que alguns não sabem ler nem escrever, e por um número não muito grande de comerciantes, os quais, embora um pouco mais instruídos e mais notáveis na hierarquia social, nunca conheceram nada para além do seu escritório de contabilidade? Não! Ambos estes círculos estavam mais talhados para serem dominados pelas intrigas e artifícios dos advogados do que para se tornarem o seu contrapeso. Com esta desproporção tão perigosa, o todo tem, obrigatoriamente, de ser governado por eles.
À classe de direito juntou-se uma muito considerável proporção da classe dos médicos. Tal como a classe de direito, esta não . tem sido tida em justa estima em França. Por isso, os seus profissionais têm de ter as qualidades de homens que não estão habituados a sentimentos de dignidade. Mas suponhamos que subiram na hierarquia como têm de subir, e como entre nós subiram de facto, as cabeceiras dos doentes não são academias para formarem estadistas e legisladores. A seguir vêm os negociantes de capitais e especula-
97 dores da bolsa, que têm de ser ávidos, a rodo o custo, em trocar a sua riqueza abstracta em papel pela substância mais sólida da terra. A isso se juntaram homens de outros círculos, de quem se esperava pouco conhecimento de ou pouca atenção aos interesses de um grande Estado, bem como pouca atenção à estabilidade de qualquer instituição- homens formados para serem instrumentos, não cabecilhas. - Tal era, em geral, a composição do Tiers État na Assembleia Nacional, na qual escassamente se percebia o mais leve traço daquilo a que chamamos os naturais interesses fundiários do país. Sabemos que a Câmara dos Comuns inglesa, sem fechar as portas ao mérito seja de que classe for, pela actuação segura das causas adequadas, está cheia de tudo o que o país pode dar do que é ilustre em categoria, em ascendência, em opulência hereditária e adquirida, em talentos cultivados, em distinções militares, civis, navais e políticas. Mas suponhamos, o que dificilmente se pode supor, que a Câmara dos Comuns deveria ser composta da mesma maneira que o Tiers État em França - seria este domínio da chicana suportado com paciência, ou sequer concebido sem horror? Deus me defenda de insinuar o que quer que seja de depreciativo acerca da profissão da administração da sagrada justiça, que é outro sacerdócio! Mas, enquanto eu reverencio os homens nas funções que lhes pertencem, e farei o que for possível para impedir a sua exclusão de qualquer delas, não posso, para elogiá-los, mentir à Natureza. São bons e úteis integrados no conjunto. Serão certamente prejudiciais se predominarem e também se virtualmente se tornarem o rodo. A sua excelência em funções particulares está longe de ser qualificação para as outras. Não podemos deixar de observar, que quando os homens estão muito confinados a hábitos profissionais e de classe e, como aconteceu, arraigados ao trabalho costumeiro deste estreito círculo, estão mais incapacitados do que qualificados para tudo aquilo que dependa do conhecimento da humanidade, da experiência em múltiplos assuntos, de uma visão englobante e conexa dos
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vários e complexos interesses, internos e externos, que formam esta coisa multifacetada chamada Estado. E, finalmente, se a Câmara dos Comuns fosse para ter uma composição completamente profissional ou de classe, qual é o poder da Câmara dos Comuns, circunscrito e encerrado nos inamovíveis limites das leis, dos usos, das regras positivas de doutrina e prática, contrapesados pela Câmara dos Lordes e, a cada momento da sua existência, à disposição da coroa para a sua continuação, prorrogação ou dissolução? O poder da Câmara dos Comuns, directo ou indirecto, é de facto grande: e oxalá por muito tempo possa preservar a sua grandeza, e o espírito, que pertence à verdadeira grandeza por inteiro! -e fará isso, enquanto conseguir impedir os que violam a lei na Índia de se tornarem legisladores em Inglaterra 100 • O poder da Câmara dos Comuns, todavia, sem o diminuir em nada, é como uma gota de água no oceano quando comparado com aquele que reside numa maioria estabelecida da vossa Assembleia Nacional. Esta Assembleia, desde a destruição das ordens, não tem nenhuma lei fundamental , nenhuma convenção estrita, nenhum costume respeitável que a refreie. Em vez de se encontrarem obrigados a conformarem-se a uma Constituição estabelecida, têm o poder para fazer uma Constituição que se conformará aos seus desígnios. Não há nada no céu nem na terra que lhes possa servir de controlo. ~ais teriam de ser as cabeças, os corações e as disposições para serem qualificados, ou para se atreverem, não apenas a fazer leis sob uma Constituição estabelecida mas, numa mesma jogada, traçar uma nova Constituição para um grande reino e cada uma das suas
100 N.T. N esta alrura deco rria, ainda, o julgamento de W arren H astings, primeiro governado r geral de Bengala, começado o fi cial mente em 1788, cujo comité de acusação, Secret Committee, constitu ído na C âmara dos Co mun s, era liderado por Burke. A impugn ação teria o seu epílogo em Abril de 1795, co m a absolvição de H astings na Câmara dos Lordes, previamente condenado na Câmara dos Comuns. Entre a investigação e a impugnação Burke dedicou perto de uma década da sua vida a esta causa.
99 partes, desde o monarca no trono até à sacristia da paróquia? Mas "os loucos precipitam-se onde os anjos temem pôr o pé" 10 1• Num tal estado de poder descontrolado, ao serviço de propósitos não definidos e indefiníveis, uma inaptidão moral e quase física do homem para as funções, deve ser o mal maior que se pode imaginar que aconteça na condução dos negócios humanos. Tendo considerado a composição do Terceiro Estado, tal como ele se apresentou no seu quadro original, olhei para os representantes do clero. Também aí, parecia que se tinha prestado muito pouca atenção à segurança geral da propriedade, ou à aptidão dos deputados para o seu cargo público, nos princípios eleitorais. Esta eleição foi tão artificial a ponto de enviar uma grande proporção de simples curas de aldeia para o trabalho grandioso e árduo de remodelar o Estado: homens que nunca tinham visto o Estado nem sequer em ilustração, homens que nada sabiam do mundo para além dos muros da obscura aldeia que, afundados numa pobreza irremediável, não podiam olhar a propriedade, quer secular quer eclesiástica, com outros olhos que não os da cobiça. Entre eles deve haver muitos que, à mais pequena esperança de retirar o mínimo dividendo da pilhagem, prontamente se juntariam a qualquer atentado contra um conjunto de riquezas no qual dificilmente podiam esperar ter parte, excepto na confusão geral. Em vez de contrabalançarem o poder dos charlatães activos na outra assembleia, estes curas devem necessariamente tornar-se os seus coadjutores activos ou, no melhor dos casos, os instrumentos passivos daqueles por quem foram habitualmente guiados nos seus interesses mesquinhos de aldeia. Também estes dificilmente podiam ser os mais conscienciosos da sua classe, eles que, arrogantes no seu fraco entendimento, urdem intrigas para obter um cargo de confiança que os conduzirá para fora das relações naturais com o seu rebanho e das suas próprias esferas de acção, para levarem a cabo a regeneração de reinos. Este 101
N.T. Provérb io inglês: "fools rush in where angels fea r ro u ead".
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peso dominante, acrescentado à força do corpo de charlatães do Tiers État 102, completam aquele ímpeto de ignorância, temeridade, presunção e pilhagem cobiçosa a que coisa alguma tem conseguido resistir. Para homens observadores, deve ter parecido desde o início que a maioria do Terceiro Estado, em conjugação com esta representação do clero tal como a descrevi, ao mesmo tempo que tentava destruir a nobreza, iria inevitavelmente tornar-se subserviente dos piores desígnios de indivíduos desta classe. No saque e na humilhação da sua própria classe, estes indivíduos granjeiam um fundo seguro para pagamento dos seus novos sequazes. Desbaratar os bens que fizeram a felicidade dos seus pares não seria para eles nenhum sacrifício. Homens bem-nascidos, truculentos e descontentes, à medida que se empolam com o seu orgulho pessoal e a sua arrogância, geralmente desprezam os da sua própria classe. Um dos primeiros sintomas que revela neles uma ambição egoísta e mesquinha é um desprezo dissoluto da dignidade que partilham com os outros. Estar ligado à subdivisão, amar o pequeno pelotão ao qual pertencemos na sociedade, é o primeiro princípio (como se fosse o germe) dos nossos afectos sociais. É o primeiro elo da cadeia de amor que nos une à nossa pátria e à humanidade inteira. O interesse nesta parcela deste arranjo social é um capital depositado nas mãos daqueles que o compõem, e, do mesmo modo que apenas homens vis poderiam justificar um mau uso desse capital, assim também apenas os traidores poderiam trocá-lo em seu próprio proveito. Houve, no tempo dos conflitos civis em Inglaterra (não sei se têm alguns idênticos na vossa Assembleia em França), vários indi. víduos, como o Conde de Holanda 103 de então, que, por eles pró102 N.T . H á variações na design ação do T erceiro Estado, escriro ora com minús· cuJas, ora com maiúsculas, ora em francês sem itálico, que foram respeitadas. ~and o no texto aparece em francês, essa caracrerísrica foi mantida aqui sem rradução. 103 NT. Sir H enry Ri ch I" Earl of H olland ( 1590-1 649 ), que repartiu a sua fide lid ade ora pelo Rei o ra pelo Parl amento e que foi decapitado em 1649, no mesmo ano em que o fo i Carlos L
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prios ou através das suas famílias, atraíram o ódio sobre o trono pela prodigalidade das mercês que lhes foram feitas, e que, depois, se juntaram às rebeliões que tiveram origem nos descontentamentos de que eles eram a causa: homens que ajudaram a derrubar o trono ao qual deviam, alguns deles, a sua existência, outros, todo aquele poder que usaram para arruinar o seu benfeitor. Se se estabelecem alguns limites às exigências rapaces deste tipo de gente, ou se se permite a outros partilharem os bens que eles absorveriam, a vingança e a inveja depressa enchem o vazio insaciado deixado na sua avareza. Confundidos pelo embaraço de paixões desmedidas, a sua razão está perturbada, os seus pontos de vista tornam-se amplos e confusos - para os outros inexplicáveis, para eles próprios incertos. Encontram, por todos os lados, limites à sua ambição sem escrúpulos em toda a ordem estabelecida das coisas, mas na névoa e na neblina da confusão tudo se agiganta e parece sem qualquer limite. ~ando homens de posição social sacrificam todas as ideias de dignidade a uma ambição sem um objectivo distinto, e trabalham com instrumentos baixos para fins pouco elevados, a composição do todo torna-se baixa e vil. Não acontecerá algo semelhante agora em França? Não se produz algo de ignóbil e inglório: uma espécie de mediocridade em toda a política reinante, uma tendência em tudo o que é feito para rebaixar, juntamente com os indivíduos, toda a dignidade e importância do Estado? Outras revoluções foram conduzidas por pessoas que, ao mesmo tempo que tentavam ou realizavam mudanças na éomunidade política, santificavam a sua ambição por melhorarem a dignidade do povo a quem perturbavam a paz. Tinham vistas largas. Tinham por objectivo governar, não destruir o seu país. Eram homens de grandes talentos civis e militares e, se eram o terror, eram também as glórias do seu tempo. Não eram como agiotas judeus altercando entre si sobre quem consegue remediar melhor, com a circulação fraudulenta de papel-moeda desvalorizado, a miséria e ruína trazida ao seu país pelos seus maus conselhos. O cumprimento feito a um dos grandes homens maus
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de marca antiga (Cromwell) pelo seu parente, um poeta favorito desse tempo, mostra o que ele propunha e o quão verdadeiramente ele, em grande medida, cumpriu através do triunfo da sua ambição:
Enquanto vós subis também se eleva o Estado Sem que nada se destempere do que vós haveis mudado Mudado como muda o cenário do mundo, quando sem ruído o sol que se levanta destrói, da noite, os comuns luzeiros 104 •
Estes revolucionários não eram tanto homens a querer usurpar o poder como a reivindicar o seu lugar natural na sociedade. A sua ascensão iluminava e embelezava o mundo. A sua vitória sobre os que com eles competiam era por ofuscar o seu brilho. A mão que, como a de um anjo exterminador, castigou o país, comunicou-lhe a força e a energia sob a qual sofreu. Não direi (Deus me defenda! ) não direi que as virtudes destes homens são para ser tidas em conta para compensar os seus crimes, mas eram, de algum modo, um correctivo aos seus efeitos. Assim era, como disse, o nosso Cromwell. Assim eram toda a vossa raça de Guises, Condés e Colignys. Assim eram os Richelieus 10', que em tempos de paz actuaram ao espírito de guerra civil. Assim eram o vosso Henrique ~arto e o vosso Sully, homens melhores e em causas menos dúbias, embora alimentados por confusões civis e não completamente isentos da sua mancha. É uma coisa admirável de ver quão depressa a França, logo que 104
.T. Versos de Edmund Waller que era parente próximo de Cromwell, em A Pangyric to my Lord Protector, v. 36. Cf. Rejlections on the Revolution in Fran ce, The Writings and Speeches ofEdmund Burke, p. 99, n. I. 10 N.T. Durante as guerras religiosas do final do séc. XV I , o Duque Henrique de ; Guise e o Cardeal de Lorraine- também da famüia De Guise - foram os líderes da facção cató lica, enquanto o Almirante Gaspard de Colign~· pertencia aos líderes Huguenotes. No início do séc. XVII , coube a Arm and-Jean du Plessis, Cardeal de Richelieu , ministro de Luís XIII, a perseguição dos pro testantes franceses.
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pôde respirar, recobrou e emergiu da guerra civil mais longa e mais horrível de que alguma vez houve conhecimento em qualquer país. Porquê? Porque no meio de rodos os seus massacres, eles não mataram o espírito no seu país. Uma dignidade consciente, um orgulho nobre, um sentido generoso de glória e sacrifício, não estavam extintos. Ao contrário, estavam acesos e inflamados. Os órgãos do Estado, se bem que abalados, existiam. Todos os prémios de honra e virtude, todas as recompensas, rodas as distinções, perduravam. Mas a vossa actual confusão atacou, como uma paralisia, a própria fonte da vida. No vosso país rodas as pessoas em situação de serem animadas por um princípio de honra, estão desonradas e degradadas e não alimentam outra sensação na vida senão uma indignação mortificante e humilhante. Mas esta geração passará depressa. A próxima geração da nobreza assemelhar-se-á aos artífices e palhaços, financeiros, usurários e judeus, que serão sempre seus companheiros e, por vezes, os seus amos. Acredite-me o Senhor, aqueles que tentam nivelar nunca igualam. Em rodas as sociedades constituídas por diferentes classes de cidadãos, algumas destas classes precisam de se destacar. Visto isso, os niveladores apenas pervertem a ordem natural das coisas: sobrecarregam o edifício da sociedade colocando em cima o que a solidez da estrutura pedia que estivesse na base. As associações de alfaiates e carpinteiros, das quais a república (de Paris, por exemplo) é composta, não podem estar à altura das situações a que vós, fundados na pior das usurpações a usurpação das prerrogativas da natureza, tentais obrigá-los. O Chanceler de França, na abertura dos Estados, disse, num tom de retórica florida, que rodas as profissões eram honrosas. Se ele quis dizer simplesmente que nenhum emprego honesto é vergonhoso, não disse nada além da verdade. Mas ao afirmar que qualquer coisa é honrosa, está nisso implícito alguma distinção em seu favor. A ocupação de um cabeleireiro, ou de um fabricante de velas de sebo, não pode ser para ninguém um motivo de honra, para não falar de muitas outras ocupações ainda mais servis. Estas classes não
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devem ser oprimidas pelo Estado, mas serão elas a oprimir o Estado se aos da sua laia, quer individual quer colectivamente, lhes for permitido governar. Nisto, os senhores pensam estar a combater o preconceito mas estão em guerra com a Natureza* 106 • Eu não julgo que o meu caro Senhor tenha aquele espírito sofista e insidioso ou aquela ignorância maliciosa que requer, para qualquer observação ou opinião geral, as correcções e as excepções explícitas em pormenor, que a razão já presume estarem incluídas em todas as proposições gerais enunciadas por um homem razoável. Não imagine que eu quero limitar o poder, a autoridade e a distinção ao sangue, aos nomes e aos títulos. Não senhor. Não há qualificação para a governação senão a virtude e a sabedoria, efectivas ou presumíveis. Onde quer que de facto se encontrem, em qualquer estado, condição, profissão ou negócio, receberam do Céu o passaporte para uma posição de honra entre os homens. Ai do país que louca e impiamente rejeita o serviço dos talentos e das virtudes, civis, militares ou religiosas que lhe são dadas para o honrar e servir e que condena à obscuridade aquilo que tem por função dar brilho e glória ao Estado! Também desgraçado país que, passando para o extremo oposto, considera uma educação inferior, uma visão mesquinha e estreita das coisas, uma profissão sórdida e mercenária, como a melhor qualificação para o comando! Todos os postos têm de ser abertos a todos - mas não indiferentemente a qualquer ho106 ·Nota do autor: Eclesi ástico, cap. xx.xviii, Vers. 24, 25: "O letrado adquire a sabedoria no tempo em que está livre de negóc ios, e aquele que tem poucas ocupações pode chegar a ser sábio. Como pode ser sábio o que rem de manejar a charru a, que a sua glória é aguilhoar os bois, que se ocupa constantemente dos seus trabalhos, e só sabe falar · das crias dos tOuros?" Vers. 27: "Assim acontece com todo o carpinteiro e arqui tectO, que passa no trabalho os dias e as noites," &c. Vers. 33: "Porém, eles mesmos não tOmarão parte nas assembleias, não se se ntarão nas cadeiras dos juízes, não entenderão as leis da justiça, não ensinarão as regras da justiça e do direito, nem serão encontrados a estudar parábolas" Vers. 34 "Entretanto, sustentam as coisas deste mundo ". Não opino sobre se este livro é canónico, a Igreja Anglican a (até recentemente) considerou-o tal, ou apócrifo, como aqui se considera. Estou ce rro de que contém bastante bom senso e ve rdade. [Burke segue a numeração da Bíblia de King James. ]
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mem. Em geral, nenhuma alternância, nenhuma nomeação à sorte, nenhum modo de eleição actuando segundo o espírito de sorteio ou rotatividade, pode ser bom num governo que se ocupe de grandes realizações, porque estes métodos não têm tendência, nem directa nem indirectamente, para seleccionar o homem com visão para a tarefa a realizar, ou para atribuir aos homens o seu devido posto. Eu não hesito em dizer que o caminho para a distinção e o poder, partindo de uma condição obscura, não se deveria tornar fácil demais, nem certamente, uma coisa excessiva. Se um raro mérito é a mais rara dentre rodas as coisas raras deve passar por uma certa provação. O templo da honra deve estar assente na eminência. Se ele é aberto pela virtude, deve também recordar-se que a virtude é sempre experimentada por uma certa dificuldade e uma certa luta. Não há representação do Estado que seja devida e adequada se não estão representados os seus talentos bem como a sua propriedade. Mas como o talento é um princípio vigoroso e activo, e a propriedade é lenta, inerte e tímida, nunca pode estar a salvo das invasões perpetradas pelo talento se não tiver uma representação predominante, para além de qualquer proporção. Precisa também de estar representada por grandes latifúndios ou não estará devidamente protegida. A característica essencial da propriedade é ser desigual, resultado da combinação dos princípios da aquisição e da conservação. Portanto, os grandes latifúndios, que excitam a inveja e tentam a cobiça, precisam de ser colocados fora de qualquer perigo. Formam, assim, uma muralha natural em defesa de rodas as propriedades menores em rodos os níveis. A mesma quantidade de propriedade, que, pelo natural curso das coisas, se encontrar dividida por muitos, não desempenha a mesma função. O seu poder de defesa enfraquece à medida que se difunde. Na sua dispersão a porção que cabe a cada homem é menor do que, na avidez dos seus desejos, ele se pode gabar de obter gastando a propriedade que outros acumularam. A pilhagem dos bens de apenas alguns, em verdade, daria uma parte infinitamente pequena na repartição por muitos.
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Mas a multidão não é capaz de fazer estes cálculos, e aqueles que a levam à rapina nunca tencionaram fazer tal distribuição. O poder de perpetuar a nossa propriedade nas nossas famílias é uma das circunstâncias mais valiosas e interessantes que elas têm, e a que mais tende a perpetuar a própria sociedade. Faz que as nossas fraquezas sirvam a nossa virtude, até a benevolência se pode fundar na avareza. O s que possuem riquezas de família e a distinção que acompanha a posse de uma herança são (como mais empenhados nela) a segurança natural para a sua transmissão. Entre nós, a Câmara dos Lordes baseia-se neste princípio. É totalmente composta pela propriedade e distinção hereditárias e constitui, portanto, um terço da legislatura e, em última instância, é o único juiz de toda a propriedade em todas as suas divisões. A Câmara dos Comuns é também assim composta igualmente, embora não necessariamente, contudo, é-o de facto na sua maior parte. Deixemos estes grandes proprietários serem o que eles quiserem (têm a sua oportunidade de estar entre os melhores), serão sempre, no pior dos casos, o lastro no barco da nação. Pois embora a riqueza hereditária e a distinção que a acompanha sejam muito idolatradas por sicofantas furtivos e por admiradores cegos e abjetos do poder, são também depressa insultadas por especulações vis de diletantes, petulantes e pretensiosos, de vistas curtas na filo sofia. Alguma proeminência decente e comedida, alguma preferência (não exclusiva) dada ao nascimento, não é antinatural, nem injusta, nem impolítica. Tem sido dito que vinte e quatro milhões deviam prevalecer sobre duzentos mil. Verdade, se a constituição de um reino for um problema de aritmética. Esta espécie de discurso funciona quando secundado pela ameaça 10-: para homens que podem raciocinar calmamente, é ridículo. A vontade de muitos e os seus interesses 10 N.T. A expressão usada é: "This sort of discourse does well enough with the lamp-post fo r its second " e alude à ameaça dos enforcamentos nos candeeiros de ru a, que tinham aco ntecido, efectivamente.
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diferem entre si com frequência e as divergências serão grandes quando fizerem uma má escolha. Um governo de quinhentos advogados de província e de vigários humildes não é bom para vinte e quatro milhões de homens, ainda que tivesse sido escolhido por quarenta e oito milhões, nem é melhor ser-se guiado por uma dúzia de pessoas de qualidade que traíram a confiança da sua classe em ordem a obter o poder. Presentemente parece que em todas as coisas vos extraviastes do caminho natural. A propriedade de França não a governa. Claro que a propriedade está destruída e a liberdade racional não existe. Tudo o que conseguiram até ao momento foi a circulação de papel-moeda e uma constituição de agiotagem e, quanto ao futuro, os senhores pensam seriamente que o território de França sob o sistema republicano de oitenta e três municipalidades independentes, (para nada dizer das partes que as compõem), pode alguma vez ser governado como uma unidade? Ou pode alguma vez movimentar-se sob o impulso de um mesmo espírito? ~ando a Assembleia Nacional tiver terminado o seu trabalho terá consumado a sua própria ruína. Estas comunidades não suportarão por muito mais tempo a sua sujeição à república de Paris. Não tolerarão que este corpo singular monopolize o cativeiro do rei e o domínio sobre a assembleia que se chama a si própria Nacional. Cada uma guardará para si própria uma porção do espólio da Igreja e não suportará que esse espólio ou, os mais justos frutos do seu trabalho, ou a produção natural do seu solo, sejam enviados para inchar a insolência ou mimar o luxo dos mecânicos de Paris. Não verão nisto nada da igualdade sob cujo pretexto foram tentados a pôr de lado a sua fidelidade ao seu soberano e também a antiga constituição do seu país. Não pode haver nenhuma cidade capital numa constituição como a que se acaba de fazer. Esqueceram-se que, quando conceberam os governos democráticos, virtualmente desmembraram o seu país. À pessoa, a quem continuam a chamar rei, não lhe deixaram nem a centésima parte do poder que seria necessário para manter coesa esta colecção de repúblicas. A república de Paris conseguirá,
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de facto, completar o deboche do exército e perpetuar ilegalmente a Assembleia, sem recorrer aos seus constituintes, como meio de continuar o seu despotismo. Fará esforços para reconduzir tudo a si, tornando-se o coração da circulação ilimitada do papel-moeda, mas em vão. Toda esta política se mostrará, no final, tão fraca quanto agora é violenta. Se esta é a vossa situação actual, comparada com a situação à qual fostes chamados, por assim dizer, pela voz de Deus e dos Homens, não posso de coração congratular-vos pela escolha que fizestes, nem pelo êxito que alcançaram os vossos esforços. Tão-pouco posso recomendar a qualquer outra nação uma conduta baseada em tais princípios e que produza tais efeitos. Isso deixo para aqueles que possam perscrutar melhor os vossos assuntos do que eu sou capaz, e que sabem melhor quanto as vossas acções são favoráveis aos seus desígnios. Os cavalheiros da Sociedade da Revolução, que foram tão precoces nas suas congratulações, parecem ser fortemente da opinião de que existe algum plano político relativo ao meu país para o qual os vossos procedimentos podem, em certa medida, ser úteis. Porque o vosso Dr. Price, que parece ter especulado ele próprio com grande fervor acerca deste assunto, dirigiu-se ao seu auditório nestes termos extraordinários: "Não posso concluir sem lembrar particularmente para vossa reflexão uma ideia à qual aludi mais que uma vez, e que, provavelmente, o vosso pensamento tem vindo a antecipar, uma reflexão com a qual a minha alma se impressiona mais do que posso exprimir: quero eu dizer a consideração do quãofavoráveis são os tempos presentes a todos os esforços pela causa da liberdade. 108 "
É claro que a mente deste pregador político estava na altura cheia de um desígnio notável, e é muito provável que os pensamentos da sua audiência, que o entendia bem melhor que eu, se tenham N .T. Richard Price ( 1790), A D iscourse on rhe L ove ofour Cou ntry, Lo ndo n: T. Cadell, p. 49. (Para rod as a noras de tradutor esta é a ed ição usada e, de agora em diante, se rá ei rada com título e página apenas. )
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todo o tempo antecipado a ele nesta sua reflexão e em todo o conjunto de consequências a que ela conduz. Antes de eu ler este sermão, pensava verdadeiramente ter vivido num país livre. Foi um erro que acarinhei porque me fez ter um maior amor pelo país em que tenho vivido. Sabia, sem dúvida, que a nossa maior sabedoria e o nosso primeiro dever era mantermos uma vigilância ciosa e sempre alerta para guardar o tesouro da nossa liberdade, não apenas da invasão, mas da decadência e da corrupção. Contudo, considerava-a mais um tesouro a preservar que um prémio a conquistar. Não consigo disce rnir em que medida o tempo presente se dá como tão favorável a todos os esforços em favor da causa da liberdade. O tempo presente difere de todos os outros apenas pela circunstância do que está a ser feito em França. Se o exemplo desta nação é para ter alguma influência nisto, posso facilmente conceber porque é que alguns dos seus procedimentos que têm um aspecto tão desagradável, e que não são muito reconciliáveis com a humanidade, generosidade, boa-fé e justiça, são paliados com uma tão branda atitude em relação aos protagonistas e tolerados com uma fortaleza de espírito heróica em relação às vítimas. Não é certamente muito prudente desacreditar a autoridade de um exemplo que pretendemos seguir. Mas, consentindo nisto, somos levados a colocar uma questão muito natural:- que causa da liberdade é esta e quais são os esforços em seu favor para os quais o exemplo de França é tão particularmente auspicioso? É a de aniquilar toda a nossa monarquia com todas as leis, todos os tribunais e todas as antigas corporações do reino? É a de deitar fora todos os marcos divisórios do território a favor de uma organização geométrica e aritmética? É a Câmara dos Lordes para ser considerada inútil por votação? É o Episcopado para ser abolido? São as terras da Igreja para serem vendidas a judeus e a especuladores, ou dadas como suborno às recém-inventadas repúblicas municipais pela sua participação no sacrilégio? Serão todos os impostos para serem considerados injustiças e as receitas fiscais reduzidas a contribuições patrióticas ou presentes
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patrióticos? Servirão as fivelas de prata dos sapatos para substituir o imposto sobre as terras e o imposto sobre o malte para sustentar a força naval deste reino? Serão todas as ordens, hierarquias e distinções para serem confundidas, será que da universal anarquia, junta à bancarrota nacional, devam sair três ou quatro mil democracias que se devam formar em oitenta e três, e que elas possam todas, por um qualquer tipo de poder de atracção desconhecido, organizar-se numa? É para este grande fim que o exército é para ser desviado da sua disciplina e da sua fidelidade , primeiro por toda a espécie de deboches e depois pelo terrível precedente de um donativo em aumento de salário? São os vigários para serem afastados dos seus bispos, por lhes acenarem com a esperança ilusória de uma oferta retirada dos despojos da sua própria ordem? Serão os cidadãos de Londres para serem afastados da sua lealdade alimentando-os às expensas dos seus compatriotas? Será o papel-moeda compulsivo para substituir o lugar da moeda legal deste reino? É o que resta da pilhagem do rendimento público para ser empregue no projecto bárbaro de manter dois exércitos para se vigiarem e guerrearem um com o outro? Se estes são os fins e os meios da Sociedade da Revolução, eu admito que estão de acordo uns com os outros e a França pode fornecer precedentes adequados para ambos. Vejo que o vosso exemplo nos é mostrado para nos envergonhar. Sei que nós somos considerados uma raça embotada e mole, tornada passiva por achar a sua situação tolerável, impedida, por uma liberdade medíocre, de alguma vez atingir a total perfeição desta. Os vossos líderes em França começaram por fingir que admiravam, que quase adoravam, a Constituição Britânica, mas, à medi. da que avançavam, acabaram por olhá-la com desprezo soberano. Os amigos da vossa Assembleia Nacional, entre nós, têm igualmente má opinião do que antes era considerada a glória do seu país. A Sociedade da Revolução descobriu que a nação inglesa não é livre. Estão convencidos de que a desigualdade na nossa representação é um "defeito na nossa Constituição tão grosseiro e palpável que
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faz que ela seja excelente sobretudo na forma e em teoria"* 109 - que uma representação na legislatura do reino não só é a base de toda a liberdade constitucional do reino, mas também de "todo o governo legítimo , que, sem isso, um governo não é mais que uma usurpação", que "quando a representação é parcial, o reino possui liberdade apenas parcialmente, e se for extremamente parcial, dá apenas uma aparência de liberdade, e se não for extremamente parcial, mas for corruptamente escolhida, torna-se um problema" 11 0• O Dr. Price considera esta inadequação da representação como a nossa injustiça fundamental e, embora tenha esperança que a corrupção desta aparência de representação não tenha chegado ainda à sua depravação perfeita, ele teme que "nada seja feito com vista a ganhar para nós esta vantagem essencial, até que um grande abuso de poder provoque o nosso ressentimento, ou alguma grande calamidade acorde de novo os nossos medos ou, talvez até que a aquisição de uma representação pura e igualitária por parte de outros países, enquanto nós estamos a ser iludidos com uma sombra, acenda a nossa vergonha". A isto ele junta uma nota nestes termos: - "Uma representação escolhida principalmente pelo Tesouro, e por alguns milhares de escória do povo, que geralmente são pagos pelos seus votos." O Senhor não deixará aqui de se rir da consistência destes democratas que, quando não estão à sua frente, tratam a parte mais humilde da comunidade com o maior desprezo, enquanto, ao mesmo tempo, pretendem fazer deles os depositários de todo o poder. Seria necessário um longo discurso para lhe apontar as muitas falácias que nos espreitam na natureza geral e equívoca dos termos "representação inadequada". Direi apenas aqui, em justiça para com aquela Constituição antiquada sob a qual há muito tempo temos prosperado, que a nossa representação se achou perfeitamente ade109
•
ora do auto r: D iscourse on the L ove ofour Country•, 3.' edição, p. 39, obra do
Dr. Price. 11 0
N .T. Richard Price, A D iscourseon rhe L ove ofour Coun try, p. 40.
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quada a todo o propósito para o que a representação popular pode ser desejada ou concebida. Desafio os inimigos da nossa Constituição a demonstrar o contrário. Pormenorizar os aspectos particulares em que esta logra alcançar os seus fins exigiria um tratado sobre a nossa Constituição na prática. Apresento aqui a doutrina dos revolucionários apenas para que o Senhor, e outros, possam ver que opinião têm estes cavalheiros da Constituição do seu país, e porque é que eles parecem julgar que, para os seus sentimentos, seria muito desculpável um grande abuso de poder, ou alguma grande calamidade, que fossem propiciadores da bênção de uma Constituição de acordo com os seus ideais. Podeis ver porque é que eles estão tão enamorados da vossa representação justa e igual da qual, uma vez obtida, deverão decorrer idênticos efeitos. Veja o Senhor que consideram a nossa Câmara dos Comuns como apenas "uma imitação", "uma forma", "uma teoria", "uma sombra", "um arremedo", talvez "um problema". Estes cavalheiros têm-se na conta de serem sistemáticos, e não sem razão. Devem portanto olhar para este defeito de representação grosseiro e palpável, esta afronta fundamental (assim eles lhe chamam) como uma coisa, não só viciosa em si mesma, mas a ponto de tornar o nosso governo absolutamente ilegítimo e em nada melhor que uma verdadeira usurpação. Outra revolução, para nos vermos livres deste governo usurpado e ilegítimo seria, com certeza, perfeitamente justificável, senão mesmo absolutamente necessária. De facto, os seus princípios, se os observardes com atenção, vão muito mais longe que uma alteração da eleição da Câmara dos Comuns, porque se a representação popular ou escolha é necessária para a legitimação de todos os governos, a Câmara dos Lordes é, de um golpe, ilegitimada, e corrompida na sua essência. Esta Câmara não é representativa do povo de modo algum, nem na "aparência" nem na "forma". O caso da coroa é igualmente mau. Em vão a coroa se pode esforçar por proteger-se contra estes cavalheiros recorrendo
113 à autoridade da Instituição estabelecida pela Revolução 111 • A Revolução, à qual recorre para a sua legitimação, no sistema deles, carece ela própria de legitimidade. A Revolução alicerça-se, de acordo com a sua teoria, numa base que não é mais sólida que as nossas formalidades presentes, porque foi feita por uma Câmara dos Lordes que apenas se representava a si própria, e por uma Câmara dos Comuns exactamente como a presente, isto é, como eles lhe chamam, por uma mera "sombra e arremedo" de representação. Alguma coisa têm de destruir ou, a seus olhos, parecerá que não têm um propósito na vida. Alguns são pela destruição do poder civil através do poder eclesiástico, outros, pela demolição do eclesiástico através do civil. Sabem que esta dupla ruína da Igreja e do Estado pode ter para o povo as piores consequências, mas estão tão entusiasmados com as suas teorias, que dão a entender que esta ruína seria aceitável e nem sequer estaria muito afastada dos seus desejos, com todas as desordens que podem conduzir a ela e que daí podem resultar, e que a eles lhes parecem mais que certas. Um homem dos deles, de grande autoridade e, certamente, de grande talento, ao falar de uma suposta aliança entre a Igreja e o Estado, diz: "Talvez tenhamos de esperar pela queda do poder civil, antes que esta aliança, tão contrária à natureza, seja quebrada. Esse tempo será, sem dúvida, calamitoso. Mas que convulsão no mundo político poderá ser objecto de lamentações se for acompanhada por um efeito tão desejável?" Podeis ver o olhar impassível com que estes cavalheiros se preparam para assistir às maiores calamidades que podem acontecer ao seu país! Não é, por isso, de espantar que, com a ideia de que tudo na sua Constituição e no governo do seu país, quer na Igreja quer no Estado, é ilegítimo e usurpado ou, no melhor dos casos, um vão arremedo, eles olhem para o estrangeiro com um entusiasmo ardente e apaixonado. Enquanto estão possuídos por estas ideias, é inútil III
.T. Está a referir-se à revolução inglesa de 1688.
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falar com eles da prática dos seus antepassados, das leis fundamentais do seu país, da forma invariável de uma Constituição cujos méritos estão confirmados pelo teste sólido de uma longa experiência, de uma crescente força do povo, e da prosperidade nacional. Desprezam a experiência como sendo a sabedoria dos analfabetos e, de resto, colocaram no subsolo uma mina que há-de explodir, com grande estrondo, todos os exemplos de antiguidade, todos os precedentes, todas as leis e actos do Parlamento. Têm "os direitos do homem". Contra estes a prescrição aquisitiva nada pode, contra estes nenhum argumento vincula: não admitem nem o génio nem o compromisso: tudo o que não corresponder às suas exigências é fraude e injustiça. Os seus direitos do homem não deixam nenhum governo procurar a segurança na continuidade da sua permanência, ou na justiça e clemência da sua administração. As objecções destes especuladores, se as formas de governo não quadram com as suas teorias, são tão válidas contra um governo antigo e benevolente como contra a tirania mais violenta ou a usurpação mais recente. Eles estão sempre em guerra com os governos, não em guerra contra o abuso, mas em guerra pela competência e pela legitimidade. Não tenho nada a dizer acerca da subtileza desastrada da sua metafísica política. Deixá-los ter o seu divertimento nas escolas.
"illa se jactet in aula Aeolus, et clauso ventorum carcere regnet'" 12•
Mas não os deixemos evadir da prisão e irromper como o vento de leste para varrer a terra como um furacão, fazer brotar as nascentes das profundezas e submergir-nos! Estou tão longe de negar em teoria, como está longe o meu coração de os recusar na prática (se eu tivesse o poder de os dar ou 1 "Janctancie-se Eolo naquele pal ácio e rein e nos limites do cárcere dos ventos", " V erg. A. l. 140-1 4 1.
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de os reter) os efectivos direitos do homem. Ao negar as suas falsas reivindicações de direito, não quero cometer nenhuma injúria contra as que são reais, e são tais que os seus pretensos direitos destrui-las-iam totalmente. Se a sociedade civil foi instituída para a vantagem dos homens, todas as vantagens para as quais ela foi instituída tornaram-se direitos seus. A sociedade é uma instituição benevolente e a própria lei é tão-só benevolência actuando por meio de regras. Os homens têm o direito de viver segundo essas regras, têm o direito à justiça entre os seus pares, quer os seus pares estejam em funções políticas, quer estejam em ocupações comuns. Têm o direito aos frutos do seu trabalho e aos meios pelos quais podem tornar o seu trabalho frutífero . Têm o direito ao património dos seus pais, a alimentar e a criar a sua prole, à instrução em vida e à consolação na morte. Cada homem tem o direito de fazer tudo aquilo que possa fazer individualmente, sem violar direitos alheios, tem ainda direito a uma razoável porção de tudo aquilo que a sociedade, com todas as suas combinações de capacidade e força, pode fazer em seu favor. Nesta parceria todos os homens têm iguais direitos, mas não a coisas iguais. Aquele que apenas tem cinco shillings na sociedade tem tanto direito a isso como aquele que tem quinhentas libras tem à sua proporção maior, mas não tem o direito a receber um igual dividendo sobre os benefícios da sociedade. No que diz respeito à partilha de poder, de autoridade, e de direcção que cada indivíduo deve ter na administração do Estado, isso eu tenho de negar que esteja entre os direitos fundamentais do homem na sociedade civil, porque tenho em vista apenas o sujeito pertencente à sociedade civil e nenhum outro. É uma coisa a ser estabelecida por convenção. Se a sociedade civil é o fruto de uma convenção, esta convenção deve ser a sua lei. Essa convenção deve limitar e modificar todos os tipos de constituição formada sob a sua alçada. Todo o tipo de poder - legislativo, judicial ou executivo - é criatura sua. Nenhum deles pode ter existência em qualquer outro estado de coisas. Como é que um homem pode reclamar, sob a convenção da sociedade
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civil, direitos que nem sequer supõem a sua existência e que são absolutamente incompatíveis com ela? Um dos primeiros motivos para a existência da sociedade civil, e que se torna uma das suas principais regras, é: nenhum homem deverá serjuiz em causa própria. Por causa disto cada pessoa se despojou a si própria do primeiro direito fundamental dos que não são membros de nenhuma sociedade o qual é: julgar por si próprio e defender a sua própria causa. Abdica de todo o direito de se governar a si próprio, e inclusivamente, em grande medida, abandona o direito à autodefesa, a primeira lei da natureza. Os homens não podem usufruir ao mesmo tempo dos direitos próprios de quem vive em sociedade e dos direitos de um estado não civil. Para que possa obter justiça, ele abdica do seu direito de determinar o que é a este propósito mais essencial para ele. Com o fim de assegurar alguma liberdade, ele entrega à guarda da Sociedade a totalidade dela. O governo não foi criado em virtude dos direitos naturais, os quais podem e devem existir em total independência dele, e existem na maior clareza, e num maior grau de perfeição abstracta: mas a sua perfeição abstracta é o seu defeito prático. Por terem direito a tudo, eles querem tudo. O governo é uma invenção da sabedoria humana para prover às necessidades humanas. Os homens têm direito a que estas necessidades sejam satisfeitas por esta sabedoria. Entre estas necessidades conta-se a necessidade, que nasce da sociedade civil, de uma suficiente restrição das paixões. A sociedade requer não só que as paixões dos indivíduos sejam refreadas, mas também no conjunto da sociedade, assim bem como nos indivíduos, que as inclinações dos homens devam ser frequentemente contrariadas, a sua vontade controlada e as suas paixões domadas. Isto apenas pode ser feito por um poder fora deles mesmos e que não esteja, no exercício desta função, sujeito à vontade e às paixões que é sua função refrear e submeter. Neste sentido, devem contar-se entre os direitos do homem não só as suas liberdades, mas também as suas restrições. Mas como as liberdades e as restrições variam com o tempo e com
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as circunstâncias, e admitem infinitas modificações, não podem ser estabelecidas por nenhuma regra abstracta e nada é tão insensato como discuti-las partindo desse princípio. No momento em que suprimis algo aos plenos direitos de cada um a governar-se a si mesmo, e suportais algumas limitações artificiais efectivas a estes direitos, a partir desse momento, roda a organização do governo se torna matéria de conveniência. Isto é aquilo que torna a constituição de um Estado, e a devida distribuição dos seus poderes, uma matéria da mais delicada e complicada habilidade. Requer um profundo conhecimento da natureza humana e das necessidades humanas, das coisas que facilitam ou obstruem os vários fins que devem ser obtidos pelos mecanismos das instituições civis. O Estado deve ter homens que garantam a sua força e remédio para as suas enfermidades. Mas qual é a vantagem de discutir o direito abstracto do homem a alimentos ou a medicamentos? A questão é acerca do método de os conseguir e de os administrar. Nesta deliberação aconselho sempre pedir ajuda ao lavrador e ao médico, em vez de a pedir ao professor de metafísica. A ciência de construir uma nação, de a renovar, ou de a reformar, não é susceptível, como acontece com muitas outras ciências experimentais, de ser ensinada a priori. Nem é uma experiência curta que pode instruir-nos nesta ciência prática, porque os verdadeiros efeitos das causas morais nem sempre são imediatos, aqueles que em primeira instância são prejudiciais podem ser excelentes nos seus efeitos remotos, e a sua excelência pode mesmo surgir a partir dos maus efeitos produzidos no início. O inverso também acontece: sistemas muito plausíveis, com começos muito auspiciosos, frequentemente têm conclusões vergonhosas e lamentáveis. Há com frequência nos Estados algumas causas obscuras e quase latentes, coisas que, à primeira vista, parecem de pouca importância, das quais depende, muito essencialmente, uma grande parte da sua prosperidade ou adversidade. Portanto, sendo a ciência de
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governar tão prática em si mesma, e pensada para propósitos práticos, uma matéria que requer experiência, mesmo mais experiência do que qualquer pessoa pode ganhar em toda a sua vida, por muito sagaz e observador que seja, é com um cuidado infinito que qualquer homem se deve aventurar a deitar abaixo um edifício que há muito tempo responde satisfatoriamente aos fins comuns da sociedade, ou aventurar-se a construí-lo de novo, sem ter ante os seus olhos modelos e padrões de utilidade comprovada. Esçes direiços metafísicas ao entrar na vida comum, como raios de luz que penetram num rneio denso, são refractados do seu percurso linear, pelas leis da natureza. De facto, na massa grosseira e complicada de paixões humanas e de interesses, os direitos primitivos do homem sofrem tal variedade de refracções e reflexões que se torna absurdo falar deles como se eles continuassem na simplicidade da sua direcção original. A natureza humana é intrincada, os fins da sociedade são da maior complexidade e, por isso, nenhuma simples disposição ou orientação do poder pode ser adequada quer à natureza do homem quer às características dos seus assuntos. ~ando eu oiço a simplicidade dos esquemas que se propõem e que se louvam, em qualquer nova constituição política, não tenho dificuldade em decidir que os seus artífices ou são grandemente ignorantes do seu ofício, ou totalmente negligentes do seu dever. Os governos simples são fundamentalmente defeituosos, para não dizer nada de pior. Se se quiser observar a sociedade apenas sob um ponto de vista, todos estes modos simples de fazer política são infinitamente cativantes. Com efeito, cada um deles responderá pelo seu fim particular muito mais perfeitamente do que o modo mais complexo é capaz de atingir todos os seus objectivos complexos. Mas é preferível que o todo seja enquadrado, ainda que imperfeita e anomalamente, do que se atenda com grande exactidão a algumas partes enquanto outras possam ser completamente negligenciadas, ou talvez prejudicadas materialmente, pelo excesso de cuidados em relação a uma parte favorita.
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Os pretensos direitos destes teóricos são todos extremos e, na proporção em que são metafisicamente verdadeiros, são moral e politicamente falsos. Os direitos do homem estão numa espécie de posição intermédia, incapaz de se definir, mas não impossível de se discernir. Os direitos do homem nos governos são as suas vantagens, e estas são frequentemente um balanço entre diferentes bens - em compromissos por vezes entre bem e mal e, às vezes, entre um mal e outro mal. A razão política é um princípio aritmético: somando, subtraindo multiplicando e dividindo, moralmente e não metafisicamente ou matematicamente, verdadeiros denominadores morais. Para estes teóricos o direito do povo é, quase sempre, sofisticamente confundido com o seu poder. A comunidade como um todo, sempre que entra em acção, não se confronta com nenhuma resistência efectiva. Mas até que poder e direito sejam o mesmo, a comunidade toda não tem direitos incompatíveis com a virtude, nem com a primeira de todas as virtudes, a prudência. Os homens não têm direito ao que não é razoável e ao que não é para seu benefício, pois apesar de um grande escritor dizer "Liceat perire poetis" 11 3, quando de um deles se conta que, a sangue frio, se atirou às chamas de uma revolução vulcânica, "ardentem frigidus AEtnam insiluit" 114, eu considero tal brincadeira mais como uma liberdade poética injustificável que uma das benesses de Parnasus. E quer fosse poeta, ou clérigo, ou político, que escolhesse exercer este tipo de direito, creio que reflexões mais sensatas, porque mais caridosas, levar-me-iam antes a salvar o homem do que a guardar as suas sandálias queimadas como um monumento à sua loucura. O tipo de sermões de aniversário, ao qual se refere grande parte do que eu escrevi, se os homens não se envergonharem do seu actual caminho, ao comemorarem o facto, enganarão a muitos 10
N.T. "Seja líciro aos poeras morrer", H or. Ars. 466.
11 '
N .T. "Lançou-se, frio , ao Erna ardenre", H or. A rs. 465 e 466 (fala de Empé-
docles).
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desviando-os dos princípios e privando-os dos benefícios da Revolução que comemoram. Confesso-lhe Senhor, que nunca gostei desta conversa recorrente acerca da resistência e da revolução, ou da prática de fazer de um tratamento extremo da Constituição o seu pão de cada dia. Isso torna os hábitos da sociedade perigosamente doentios: é como se tomássemos doses periódicas de mercúrio sublimado e engolido repetidamente irritantes cantáridas 115 , para estimular o nosso amor à liberdade. Este destempero de medicação, tornado habitual, relaxa e esgota, por um uso vulgar e degradado, a energia daquele espírito que deve actuar em grandes ocasiões. Foi no período mais paciente da servidão romana que os temas do tiranicídio constituíram os exercícios quotidianos dos rapazes na escola - cum perimit soevos classis numerosa tyrannos 116• Numa situação normal, isto produz, num país como o nosso, os piores efeitos, mesmo para a causa da tal liberdade, de que se abusa com a depravação da especulação extravagante. ~ase todos os republicanos extremistas do meu tempo se tornaram , em curto espaço, os cortesãos mais decididos e convictos. Depressa deixaram o ofício de uma resistência entediante, moderada, mas prática, para aqueles dentre nós que eles - orgulhosos e embriagados pelas suas teorias - tinham menosprezado como não muito melhores que Tories. À hipocrisia, seguramente, agradam-lhe as especulações mais sublimes, porque, não pretendendo nunca ir além das especulações, não custa nada tê-las grandiosas. Mas, mesmo nos casos em que era de suspeitar mais de leviandade do que de fraude nestas especulações empoladas, o resultado foi praticamente o mesmo. Estes professores, achando os seus princípios extremes não aplicáveis a casos que pedem apenas uma qualificada ou, posso dizer, uma resistência cívica e legal, nestes casos não empregam nenhuma resistência. Com eles, ou é uma guerra, ou uma 1.T.
Bebida irriranre e róxica preparada à base de insecros (canrárides) secas, usado como afrodisíaco. "'
116
N.T. · ~ando um numeroso grupo mara os riranos cruéis", Juv. 7. 151.
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revolução, ou então não é nada. Achando que os seus planos políticos nunca se adaptam ao estado do mundo em que vivem, frequentemente pensam com leviandade acerca de todos os princípios públicos e, pela sua parte, estão prontos a abandonar por um interesse muito banal, o que eles acham ser de um valor muito banal. Alguns, de facto, são de uma natureza mais estável e perseverante, mas estes são políticos entusiastas, de fora do Parlamento, que têm pouco o que os tente a abandonarem os seus projectos favoritos. Têm sempre alguma mudança em vista, ou na Igreja, ou no Estado, ou em ambos. ~ando é esse o caso, são sempre maus cidadãos e ligações pouco fiáveis. Pois, considerando os seus desígnios especulativos de infinito valor, e tendo a ordem efectiva do Estado em pouca estima, o melhor que pode acontecer é esta ser-lhes indiferente. Não vêem mérito na boa, nem falta na viciosa gestão dos assuntos públicos, ficam mesmo mais satisfeitos com esta última, porque é mais propícia à revolução. Não vêem mérito ou demérito em nenhum homem, em nenhuma acção, em nenhum princípio político, a não ser o de poder apressar ou retardar o seus planos de mudança. Por isso, num dia defendem os privilégios mais exagerados e abusivos e, noutro momento, as mais rebeldes ideias democráticas de liberdade, e passam de uns para as outras sem nenhuma espécie de atenção à causa, à pessoa ou ao partido. Em França os senhores estão na crise de uma revolução, e em trânsito de uma forma de governo para outra, não podeis ver este carácter dos homens exactamente na mesma situação em que nós o vimos neste país. Connosco é militante, convosco é triunfante, e vós sabeis como eles podem agir quando o seu poder é proporcional à sua vontade. Não me agradaria que se pensasse que eu confino estas observações a um tipo específico de homens, ou que englobo todos os homens de todos os tipos nesta descrição- não, longe disso! Sou tão incapaz dessa injustiça como sou incapaz de me relacionar com aqueles que professam princípios extremistas, e que, sob o nome de religião, não ensinam outra coisa senão políticas insensa-
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tas e perigosas. O pior destas políticas revolucionárias é que temperam e endurecem o coração com vista a prepará-lo para os golpes desesperados que são por vezes utilizados em situações extremas. Mas, como estas situações podem nunca acontecer, a alma recebe uma mancha inutilmente e os sentimentos morais sofrem bastante com isso, ao mesmo tempo que não se serve nenhum fim político com a depravação. Esta espécie de gente está tão exaltada com as suas teorias acerca dos direitos do homem, que esqueceu totalmente a sua natureza. Sem abrir à inteligência nenhum caminho novo, conseguiram cortar aqueles caminhos que conduziam ao coração. Perverteram, neles próprios e naqueles que os ouvem, todos os bons sentimentos do coração humano. Na sua parte política, este famoso sermão de Old Jewry não respira senão este espírito. Para alguns, intrigas, massacres e assassinatos parecem um preço banal para se conseguir a revolução. Uma reforma vulgar sem sangue, uma liberdade sem culpa, parecem monótonas e sem-sabor para o seu gosto. Precisa de haver uma grande mudança de cena, precisa de haver um efeito de palco magnífico, precisa de haver um grande espectáculo para estimular a imaginação, que se tornou entorpecida com o gozo preguiçoso de sessenta anos de segurança e com o repouso tranquilo da prosperidade pública. O pregador encontra tudo isso na Revolução Francesa. Isto inspira um calor jovial a todo o seu sermão, o seu entusiasmo inflama-se à medida que ele avança e quando ele chega ao fim do seu sermão está completamente em chamas. Então considerando do alto do seu púlpito, o livre, moral, feliz, florescente e glorioso estado de França, parece-lhe ver de cima a paisagem de uma terra prometida e · irrompe no êxtase que se segue: u ~e
período memorável este! Eu estou grato por ter vivido nele, quase que posso dizer, Senhor, agora podes deixar partir em paz o teu servo, porque os meus olhos viram a Tua salvação. - Vivi para ver a difusão de conhecimentos que en-
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fraqueceu a superstição e o erro. - Vivi para ver os direitos do homem mais bem compreendidos do que nunca e nações anelando pela liberdade, quando pareciam ter perdido até a ideia dela. - Vivi para ver trinta milhões de pessoas, indignadas e resolutas, repelindo a escravatura, exigindo a liberdade com uma voz irresistível, o seu rei conduzido em triunfo, e um monarca arbitrário render-se aos seus súbditos. "* 11 7
Antes de prosseguir, devo fazer notar que o Dr. Prke parece sobrevalorizar as grandes aquisições das luzes que ele obteve e difundiu nesta época. O último século parece-me ter sido igualmente iluminado. Teve, se bem que noutro lugar, um triunfo tão memorável quanto este do Dr. Price, e alguns dos grandes pregadores deste período partilharam dele com tanta avidez quanto ele partilhou do triunfo de França. No julgamento por alta traição do Reverendo Hugh Peters, foi testemunhado que quando o Rei Carlos foi levado a Londres para o seu julgamento, o Apóstolo da Liberdade, conduziu nesse dia o triunfo. "Eu vi", diz a testemunha, "Sua Majestade num coche com seis cavalos e Peters, triunjànte, cavalgando à frente do rei." O Dr. Price quando fala como se tivesse feito uma descoberta, apenas segue um precedente, porque, após o início do julgamento do rei, este precursor, o mesmo Dr. Peters, concluindo uma longa oração na Capela real em Whitehall (muito triunfalmente tinha escolhido este lugar), disse: "Rezei e preguei estes vinte anos e agora posso dizer com o velho Simeão, Senhor agora podes deixar partir em paz o teu servo, porque os meus olhos viram a Tua salvação.'~ 18 Peters não colheu os frutos da sua oração, porque nem partiu tão w "Nota do autor: Outro destes ve neráveis cavalheiros, que testemunhou alguns dos espectáculos que Paris tem ultimamente exibido, expressou-se assim: "Um Rei arrastado em submisso triunfo pelos seus súbditos conquistadores é uma daquelas manifestações de grandeza que raramente surgem no panorama dos assuntos humanos, e que, durante o resto da minha vida, eu recordarei maravilhado e gratificado." Estes cavalheiros coincidem maravilhosamente nos seus sentimentos. 118
"Nota do autor: State Trials, Vol. II, p. 360, 363.
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cedo quanto desejava, nem partiu em paz. Tornou-se ele própr~o (o que eu espero de todo o coração que nenhum dos seus seguidores o seja neste país) uma vítima do triunfo que ele pontificou. Na Restauração talvez tenham tratado com demasiada dureza este pobre bom homem. Devemos isto à sua memória e aos seus sofrimentos: que ele teve tanta erudição e tanto zelo que, de facto, derrubou toda a superstição e erro que pudesse impedir o grande negócio em que ele estava metido, como nenhum dos que o seguiram e imitaram nos dias de hoje e que pretendem ter o conhecimento exclusivo dos direitos do homem e todas as consequências gloriosas de tal conhecimento. Após esta saída do pregador de OldJewry, que apenas difere no lugar e no tempo, mas que concorda perfeitamente com o espírito e a letra do empolgamento de 1648, a Sociedade da Revolução, os fabricantes de governos, o heróico bando de demissores de monarcas, eleitores de soberanos e condutores de reis em triunfo, empertigados com uma orgulhosa consciência da difusão do conhecimento, do qual, cada membro, tinha obtido tão grande quinhão na dádiva, tinham pressa de fazer uma divulgação generosa do conhecimento que tão graciosamente tinham recebido. Para fazerem esta magnânima comunicação, depois da igreja em Old Jewry dirigiram-se à London Tavern 11 9 onde, o mesmo Dr. Price, em quem as emanações do tripé oracular não se tinham evaporado totalmente, tomou a iniciativa e fez votar a resolução, ou discurso de felicitações, transmitido pelo Lord Stanhope à Assembleia Nacional de França.
É assim que um pregador do Evangelho, profanando a jacula. tória bela e profética comummente chamada "Nunc dimittis", feita na primeira apresentação do nosso Salvador no templo, a aplicou, com um arrebatamento desumano e contranatura, ao espetáculo mais horrível, atroz e aflitivo que talvez alguma vez foi ofere11 9 Local onde era frequeme reunirem-se clubes pol íticos e de cuj as reuniões eram, por vezes, publicad as as conclusões sob a forma de panfletos.
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cido à piedade e indignação da humanidade. Este "conduzido em triunfo" 120 , uma coisa indigna e ímpia, no melhor dos casos, que enche o nosso pregador com tal enlevo profano, deve chocar, creio, os sentimentos morais de qualquer alma bem-nascida. Alguns ingleses foram espectadores indignados e estupefactos deste triunfo. Era (a não ser que tenhamos sido estranhamente enganados) um espectáculo que mais parecia uma procissão de selvagens americanos entrando em Onondaga após algum dos seus morticínios a que chamaram vitórias, conduzindo para as suas cabanas, com escalpes dependurados à volta, os seus cativos, humilhados pelo escárnio e pelas pauladas de mulheres tão ferozes quanto eles mesmos, parecia muito mais isso do que a pompa triunfal de uma nação civilizada e guerreira - isto se uma nação civilizada, ou alguém com o sentido da generosidade, fosse capaz de um triunfo pessoal sobre os desgraçados e atormentados. Isto, meu caro Senhor, não foi o triunfo de França. Preciso acreditar que, enquanto nação, isto vos esmagou de vergonha e horror. Preciso acreditar que a própria Assembleia Nacional se encontra num estado de grande humilhação por não ser capaz de punir os aurores deste triunfo, ou os que nele intervieram, e que está numa situação em que qualquer inquérito que ela pudesse fazer acerca do assunto seria destituído até da própria aparência de liberdade ou imparcialidade. A desculpa desta assembleia está na sua situação, mas quando nós aprovamos o que eles têm de suportar, isso é, em nós, a escolha degenerada de uma mente corrupta. Com uma aparência forçada de deliberação, a vossa Assembleia vota sob o domínio de uma dura necessidade. Reúne-se como se se encontrasse no seio de uma república estrangeira, reside numa cidade cuja constituição não emanou nem de um decreto régio nem do seu poder legislativo. A Assembleia está cercada por um 120 N .T. Refere-se ao 6 de Outubro de 178 9, quando toda a família real é conduzida de Versalhes a Paris, após assalro violento ao palácio com tentativa de assassinara da rai nha e execução de alguns membros da guarda do rei.
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exército que não foi mobilizado nem pela autoridade da coroa nem pela sua autoridade, e o qual, se ela ordenasse a sua dissolução, no mesmo instante a dissolveria. Assim se reúne, após um bando de assassinos ter forçado à saída algumas centenas de membros 12 1, enquanto aqueles que sustentam os mesmos princípios moderados, com mais paciência ou com melhor esperança, continuam todos os dias expostos a insultos ultrajosos e ameaças de morte. Aí, uma maioria, às vezes real, às vezes simulada, ela própria cativa, força um rei cativo a promulgar como éditos reais, em terceira mão, os disparates corruptos dos seus cafés mais desregrados e levianos. É notório que todas as suas medidas são decididas antes de serem debatidas. Não há dúvida de que, sob a ameaça das baionetas, dos postes da luz e das tochas a incendiarem as suas casas, eles são obrigados a adoptar as medidas cruas e desesperadas sugeridas por clubes compostos de uma monstruosa amálgama de gente de todas as condições, línguas e nações. Entre estes encontram-se pessoas que Catilina, comparado com elas, seria julgado escrupuloso e Cathegus 122 um homem sóbrio e moderado. Não é apenas nesses clubes que as medidas públicas são deformadas e tornadas monstruosas. Elas são primeiro distorcidas nas academias, que estão destinadas a ser outros tantos seminários para estes clubes, e que ficam situadas sempre em lugar onde há afluência de público. Nestas reuniões de todos os tipos, cada conselho, quanto mais atrevido, violento e pérfido for, mais é tido como um sinal de um génio superior. A humanidade e a compaixão são ridicularizadas como frutos da superstição e da ignorância. A solicitude para com os indivíduos é considerada traição pública. A liberdade é sempre considerada perfeita quando a · propriedade se torna insegura. No meio de assassínios, massacres, confiscações, perpetradas ou projectadas, estão a formar os planos 121 Em meados de O utubro de 1789 várias centenas de memb ros da Asse mbleia Nacio nal a abandonam alegando os mais va ri ados motivos. Th omas Arthur, Co mte de Lal!Y de T ollendal, correspondente de Burke e refu giado em Inglaterra, fo i um dos que abandonou a Assembleia nesta altu ra e comenta o facro numa carta mais adi ante citada.
m
N .T. Gaius Cornélius Cath egus que se associou a Catilin a na conspiração.
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para a boa ordem da sociedade futura. Abraçando os cadáveres dos criminosos mais vis, e promovendo as suas famílias à conta dos seus crimes, eles levam centenas de pessoas virtuosas ao mesmo fim, forçando-os a subsistirem pela mendicidade ou pelo crime. A Assembleia, órgão destas academias, representa perante elas a farsa da deliberação com tão pouca decência quanto liberdade. Actua como os comediantes numa feira, perante uma audiência alvoroçada, actua no meio de gritos tumultuosos de uma turba confusa de homens furiosos e de mulheres sem vergonha que, de acordo com os seus caprichos insolentes, dirigem, controlam, aplaudem, enfurecem-se e por vezes misturam-se e tomam assento no meio dos seus membros - dominam sobre eles com uma estranha mistura de petulância servil e autoridade orgulhosa e presunçosa. Como inverteram a ordem de todas as coisas, as galerias estão no lugar da plateia. Esta assembleia que derruba reis e reinos, nem sequer tem a fisionomia e o aspecto grave de um corpo legislativo - "nec color imperii, necJrons erat ulla senatús" 123• Têm um poder que lhes foi dado, como aquele do princípio do mal, para subverter e destruir - mas nenhum para construir, excepto os instrumentos que possam servir para futuras subversões e mais destruições. ~em é que admira, e está afeiçoado de coração às assembleias nacionais representativas, e que precisa, não obstante, de se afastar com horror e desgosto de uma tal perversão desta sagrada instituição, profana, burlesca e abominável? ~e r os que amam a monarquia, quer os que amam a república devem abominá-la igualmente. Os membros desta Assembleia devem eles próprios gemer sob a tirania em que vivem e da qual se envergonham, de que não recebem orientação e da qual recebem poucos proveitos. Estou certo de que muitos dos membros que compõem mesmo a maioria desta Assembleia sentem o mesmo que eu, apesar dos aplausos da Sociedade da Revolução. Infeliz rei! Infeliz Assembleia! ~amo não se escandalizará em n;
9.207.
1
.T . "Não tinha o aspecto de um governo nem rraços de um senado", Luc.
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silêncio esta Assembleia com aqueles seus membros que conseguem chamar "un beau jour"* 124 a um dia que parecia apagar o sol do céu! ~anto não devem eles estar indignados no íntimo ao ouvirem outros que acharam por bem dizer-lhes que "a nave do Estado navegaria em frente no seu caminho para a regeneração com mais velocidade que nunca", com o impulso do duro vendaval de traição e homicídio que precedeu o triunfo de que fala o nosso pregador! O que não devem eles ter sentido enquanto, com aparente paciência e Íntima indignação, ouviam acerca da matança de inocentes cavalheiros em suas próprias casas que "o sangue derramado não era do mais puro" 125 ! O que é que eles não devem ter sentido quando, rodeados de queixas acerca das deso rdens que sacudiam o país até aos alicerces, foram obrigados a dizer aos queixosos, friamente , que eles estavam sob a protecção da lei, e que iriam dirigir-se ao rei (o rei cativo) para que obrigasse a cumprir as leis para sua protecção, quando os ministros escravizados deste rei cativo tinham formalmente notificado a Assembleia de que não restavam nem lei, nem autoridade, nem poder, para sua protecção! O que é que eles não devem ter sentido ao serem obrigados, como saudação neste ano novo, a pedir ao seu rei cativo para esquecer o período conturbado do ano passado, em nome dos grandes benefícios que ele agora podia conceder ao seu povo - para a perfeita concretização desse benefício eles adiavam as demonstrações práticas da sua lealdade, assegurando-lhe a sua obediência quando ele já não possuísse qualquer autoridade para mandar! Certamente que este discurso foi feito com muito bons sentimentos e afeição. Mas entre as revoluções que ocorrem em França deve contar-se uma considerável revolução na sua concepção de educação. Em Inglaterra dizem-nos que aprendemos as boas manei12
'
121
•
Nora do auror: 6 de Outubro, 1789.
N .T. C omentário atribu ído a Anto ine-Pierre-J oseph-M arie Barnave a propósitO da morte de Foullon e Berrhier: "Senhores, querem fazer-vos enternecer pelo sangue Yertido o ntem em Paris. Era este angue tão puro que não ousássemos derramá-lo'"
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ras em segunda mão, daí dessa margem, e que adornamos o nosso comportamento com os enfeites de França. Se assim é, nós continuamos com a moda antiga e, por enquanto, não nos conformámos à nova moda parisiense de boa educação a ponto de pensar que o estilo mais refinado de cumprimentar (quer em condolências quer em congratulações) é dizer à criatura mais humilhada que rasteja ao cimo da terra, que grandes benefícios derivam do assassinato dos seus servos, da tentativa de assassinato dele mesmo e da sua mulher e da mortificação, desgraça e degradação que ele próprio sofreu. É um tópico para consolação que o nosso eclesiástico de Newgate1 26 seria demasiado humano para usar com um criminoso ao pé da forca. Eu estou em crer que [mesmo] o carrasco de Paris, agora que se tornou liberal pelo voto da Assembleia Nacional e lhe foram reconhecidos a sua categoria e brasão de armas pelo Herald's College dos direitos do homem, seria um homem tão generoso e tão galante, tão cheio do sentido da sua nova dignidade, que não empregaria esta consolação dilacerante a qualquer pessoa que a leze nation colocasse sob a administração dos seus poderes executivos. Um homem está deveras decaído para ser assim lisonjeado. Um trago anódino de esquecimento, assim administrado, foi bem calculado de modo a preservar uma insónia humilhante, a alimentar a chaga viva de uma lembrança corrosiva. Assim, administrar a poção opiácea da amnistia, pulverizada com todos os ingredientes de desdém e desprezo, é levar aos seus lábios, em vez "do bálsamo das almas feridas", a taça da miséria humana cheia a transbordar e obrigá-lo a bebê-la até às borras. Cedendo a razões pelo menos tão convincentes como aquelas que lhe foram tão delicadamente aconselhadas nos cumprimentos de Ano Novo, o rei de França, provavelmente, esforçar-se-á poresquecer estes eventos e aquele cumprimento. Mas a História, que guarda um registo duradouro de todos os nossos actos e exerce a 126
1
.T. Eclesiástico que consolava os condenados à morre na prisão de Newgare.
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sua censura terrível sobre a conduta de todos os tipos de soberano, não esquecerá, quer estes eventos, quer a era deste requinte liberal nas relações humanas. A História registará, que, na manhã de seis de Outubro de 1789, o rei e a rainha de França, após um dia de confusão, alarme, medo e carnificina, deitados, sob a promessa de segurança feita pelo povo, concederam à natureza algumas horas de descanso e de repouso perturbado e melancólico. Deste sono a rainha foi a que foi primeiro acordada pela voz da sentinela à sua porta, que lhe gritava que se salvasse fugindo - que esta foi a última prova de fidelidade que pode dar-, já que eles lhe caíram em cima e ele foi morto. Instantaneamente foi passado à espada. Um bando de rufias cruéis e assassinos, tresandando ao seu sangue, precipitou-se para o quarto da rainha e perfuraram o leito com uma centena de golpes de baioneta e punhal, de onde esta mulher perseguida tinha tido apenas o tempo de fugir, quase nua e, por caminhos desconhecidos dos assassinos, se tinha escapado a procurar refúgio aos pés de um rei e marido que de modo algum estava seguro, nem sequer da própria vida. Este rei - para não dizer mais acerca dele - e esta rainha e os seus filhos (que em tempos tinham sido o orgulho e a esperança de um povo generoso) foram então forçados a abandonar o santuário do palácio mais esplêndido do mundo, que deixaram banhado em sangue, profanado pelo massacre e juncado de membros e de cadáveres mutilados. Daí foram conduzidos à capital do seu país. Foram selecionados dois dos gentis-homens que compunham a guarda pessoal do rei, na promíscua chacina que não foi provocada e à qual não se ofereceu resistência, estes dois cavalheiros foram cruel e publicamente arrastados para o cepo e decapitados no grande tribunal do palácio, com a parada de uma execução de justiça. As suas cabeças foram então cravadas na ponta de lanças e levadas em procissão, enquanto isso, os reis cativos que seguiam na comitiva foram lentamente levados para a frente, no meio de gritos horríveis e berros estridentes, danças frenéticas e insultos detestáveis e todas
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as abominações indescridveis das fúrias do inferno, na adulterada forma das mulheres mais vis. Após terem sido obrigados a provar, gota a gota, mais que a amargura da morte, na lenta tortura de uma caminhada de doze milhas 127 , que se prolongou por seis horas, sob a guarda dos mesmos soldados que os tinham conduzido ao longo deste celebrado triunfo, foram alojados num velho palácio de Paris, agora convertido numa Bastilha para reis. Será este um triunfo para ser consagrado em altares, para ser comemorado com acção de graças, para ser oferecido à Divina Humanidade com preces fervorosas e entusiásticas jaculatórias ? - Estas orgias dignas de Tebas e de Trácio, representadas em França, e aplaudidas apenas em Old Jewry, acendem entusiasmos proféticos na mente de muito pouca gente neste reino : apesar de um santo apóstolo, que sufocou completamente as superstições mesquinhas do seu coração, ter revelações tão particulares que o fazem inclinar-se a achar pio e decoroso comparar este triunfo com a apresentação ao mundo do Príncipe da Paz, proclamada num templo santo por um venerável sábio e, não muito tempo antes, anunciada pela voz dos anjos à inocência tranquila dos pastores. Primeiro eu estava perplexo sobre como explicar este êxtase exaltado. Sabia, certamente, que o sofrimento de reis é um repasto delicioso para certo tipo de paladares. Há reflexões que talvez sirvam para manter este apetite dentro dos limites da temperança. Mas quando eu tomei em consideração uma circunstância, fui obrigado a confessar que muito desconto tem que ser dado à sociedade, e que a tentação era muito forte para o comum discernimento: quero dizer, a circunstância do lo Paean 128 do triunfo, o animado grito que clamava por "todos os BISPOS enforcados nos postes da
" - N .T. Cerca de 19 km. 8
N.T. Palavras do coro no hino grego a Apolo cujo sentido é "canto de rriunfo". Cf. Réfl.exions sur la Révolution de France, The Writings and Speeches ofEdmund Burke, p. 95. "
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luz"* 129 pode bem ter trazido ao cimo uma explosão de entusiasmo pelas consequências previsíveis desse dia feliz . Concedo que tanto entusiasmo é um pequeno desvio em relação à prudência. Concedo a este profeta que irrompa em hinos de alegria e acção de graças num evento que aparece como precursor do Milénio, e do projectado ~into Império, na destruição de todas as instituições da Igreja. Havia, contudo (como há em todos os assuntos humanos), no meio desta alegria, algo para exercitar a paciência destes dignos cavalheiros e pôr à prova a grande capacidade de sofrer da sua fé. O assassinato efectivo do rei e da rainha, e do seu filho, estava a faltar a todas as outras circunstâncias auspiciosas deste "belo dia". O assassinato efectivo dos bispos, embora reclamado por tantas jaculatórias pias, também estava em falta. Um grupo de matanças regicidas e sacrílegas estava já planeado audaciosamente, mas estava apenas planeado. Isso, infelizmente, tinha sido deixado inacabado, nesta grande peça histórica do massacre dos inocentes. ~al o lápis ousado de grande mestre da escola dos direitos do homem o acabará, está para se ver daqui para a frente. Esta época não tem ainda o benefício total desta difusão de saber que enfraqueceu a superstição e o erro, e o rei de França carece ainda de um ou dois acontecimentos que votará ao esquecimento, tendo em consideração todo o bem que advirá dos seus próprios sofrimentos e dos crimes patrióticos deste século das luzes 130 *. 129
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"Nota do autor: "Tous les fvêques à la lanterne!".
"Nota do autor: f apropriado referir aqui uma carta escrita acerca deste assunto por uma testemunha ocular. Esta testemunha ocular foi um dos mais honestos, inteligentes e eloquentes membros da Assembleia Nacional, um dos mais activos e zelosos reformadores do Estado. Foi obrigado a afastar-se da Assembleia e tornou-se depois um exilado voluntário - à conta dos horrores deste pio triunfo e das disposições de homens que, aproveitando-se dos crimes, senão mesmo causando-os, to maram a liderança dos assuntos públicos. Extracto da segunda carta do Senhor. Lally de T olendal para um amigo: "Falemos do partido que eu tomei, que está bem justificado na minha consciência. -Nem esta cidade culpável, nem esta Assembleia mais culpável ainda, merecem que eu me justifique, mas tenho no coração que o Senhor e as pessoas que pensam como o Senhor, não me condenam. -A minha saúde, juro-lhe, tornou impossíveis as minhas funções, mas
133 Embora este trabalho da nossa nova iluminação e conhecimento não tivesse ido tão longe como, com toda a probabilidade, se pretendia levar, contudo devo pensar que um tal tratamento de qualquer criatura humana deve ser chocante para todos excepto para os que são feitos para levar a cabo revoluções. Mas não posso parar aqui. Influenciado pelos sentimentos inatos à minha natureza, e não sendo iluminado por um único raio desta recém-surgida luz moderna, confesso-lhe, Senhor, que o estatuto elevado das mesmo pondo-as de lado foi superior às minhas forças suportar por mais tempo o horror que me causava este sangue - estas cabeças - , esta rainha quase decapitada -, este rei, levado escravo, entrando em Paris no meio destes assassinos, e precedido das cabeças dos seus infelizes guardas -, estes pérfidos janízaros, estes assassinos, estas mulheres canibais, este grito TODOS OS BISPOS P'RÀ LANTERNA, no momento em que o rei entrava na sua capital com dois bispos do seu conselho, no seu carro - um golpe de fuzil, que eu vi atirar para dentro de uma das carruagens da rainha-, o Senhor Bailly chamando a isto um belo dia-, a assembleia tendo declarado friamente de manhã, que não correspondia à sua dignidade ir roda ela rodear o rei- , o Senhor Mirabeau dizendo impunemente nesta Assembleia, que o barco do Estado, longe de ter sido parado na sua corrida, se lançava agora com mais velocidade que nunca para a sua regeneração - o Senhor Barnave, rindo com ele, quando rios de sangue corriam à nossa volta - , o virtuoso Senhor Mounier• escapando por milagre a vinte assassinos, que tinham querido fazer da sua cabeça mais um troféu: Eis o que me fez jurar jamais pôr o pé nesta caverna de antropófagos, onde eu já não tinha força para elevar a vós, onde desde há seis semanas eu a elevava em vão. Eu, Mounier, e toda a gente honesta, pensámos que o último esforço a fazer pelo bem era sair. Nenhuma ideia de medo se acercou de mim. Envergonhar-me-ia de me defender. Tinha ainda recebido, na rua, da parte deste povo, menos culpável que aqueles que o embriagaram de furor, aclamações e aplausos, que a outros teriam lisonjeado e que a mim me fizeram estremecer. Foi à indignação, foi ao horror, foi às convulsões físicas que só o aspecto do sangue me fazia experimentar, que eu cedi. Afrontamos apenas uma morte, afrontamo-la várias vezes, quando ela pode ser útil. Mas nenhum poder deste mundo, nenhuma opinião pública ou privada têm o direito de me condenar a sofrer inutilmente mil suplícios por minuto e a morrer de desespero, de raiva, no meio dos triunfos do crime que eu não pude suster. Eles vão proscrever-me, vão confiscar os meus bens. Trabalharei a terra e não os verei mais. Eis a minha justificação. Vós podeis lê-la, mostrá-la, deixá-la copiar, tanto pior para aqueles que não a compreendem, nessa altura, não serei eu que errei em dar-vo-la." [Em francês no original. ) Este militar não tinha tão bons nervos quanto o pacato cavalheiro de Old Jewry. - Veja-se a narrativa do Senhor Mounier acerca destas transacções: um homem também de honra, virtude e talentos, e por isso mesmo um fugitivo. • NB: M. Mounier era à altura porta-voz da Assembleia Nacional. Foi obrigado desde então a viver no exílio, embora fosse um dos mais firmes adeptos da liberdade.
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pessoas que estão a sofrer e, particularmente, o sexo, a beleza, e as amáveis qualidades dos descendentes de tantos reis e imperadores, junto com a tenra idade dos infantes reais, que apenas pela sua infância e inocência não sentiram os ultrajes cruéis aos quais os seus pais foram expostos, em vez de ser um objecto de exultação, afecta grandemente a minha sensibilidade nesta ocasião tão triste. Ouvi que a augusta pessoa, que foi o principal objecto do triunfo do nosso pregador, ainda que se tenha contido, sofreu muito nesta ocasião vergonhosa. Como homem, coube-lhe sentir pela sua mulher e pelos seus filhos, e pelos guardas pessoais fiéis que foram massacrados a sangue frio à sua frente, como príncipe coube-lhe lamentar a transformação estranha e assustadora dos seus súbditos civilizados e estar mais aflito por eles do que preocupado consigo mesmo. Isto em pouco diminui a sua fortaleza, enquanto aumenta infinitamente a honra da sua humanidade. Lamento muito dizê-lo, lamento mesmo muito, que tais personalidades estejam numa situação em que não nos fica mal louvar as virtudes dos grandes. Ouvi, e fiquei satisfeito por isso (interessa-me que os seres feitos para o sofrimento o suportem com fortaleza), que a grande senhora, o outro objecto do triunfo, aguentou esse dia, e que suportou todos os dias que se seguiram, como suporta o aprisionamento do seu marido, o seu próprio cativeiro, o exílio dos seus amigos, a adulação insultuosa dos discursos e todo o peso dos seus erros acumulados, com uma paciência serena, de um modo que se adequa ao seu estatuto e à sua raça e que convém à descendente de uma soberana que se distinguiu pela sua piedade e pela sua coragem; que, tal como ela, tem sentimentos elevados, que sofre com a dignidade de üma matrona romana, que no último momento se salvará da derradeira desgraça, e que, se ela tiver de tombar, não tombará às mãos de ignóbeis. Faz agora dezasseis ou dezassete anos que eu vi a rainha de França, então Delfina, em Versalhes. Visão mais encantadora segu-
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rameme que nunca brilhou neste mundo, que ela apenas ao de leve parecia tocar. Vi-a quando despontava no horizonte, decorando e animando a elevada esfera para a qual tinha acabo de entrar- brilhando como a estrela da manhã, cheia de vida, de esplendor e de alegria. Oh! que mudança! E que coração precisaria eu de ter, para contemplar sem emoção tal elevação e tal queda! Mal sonhava eu, quando ela acumulava protestos de veneração e de amor entusiástico, distante e respeitoso, que alguma vez ela seria obrigada a esconder no seu peito o antídoto pronto contra a desgraça! Mal eu sonhava que haveria de viver para ver tais desastres caírem sobre ela numa nação de homens galantes, de homens de honra e de cavaleiros! Eu pensava que dez mil espadas deveriam ter saltado da bainha para vingar até um olhar que a ameaçasse de insulto. Mas a idade da cavalaria já se foi . Sucedeu-lhe a dos sofistas, dos economistas, dos calculadores e a glória da Europa extinguiu-se para sempre. Nunca, nunca mais nós veremos aquela lealdade generosa à posição social e ao sexo, aquela submissão orgulhosa, aquela obediência dignificada, aquela subordinação do coração, que mantém vivo, mesmo na própria servidão, o espírito de uma liberdade exaltada! A graça da vida, que se não pode comprar, a defesa desinteressada das nações, o berço do sentimento viril e do empreendimento heróico, desapareceu! Foi-se aquela sensibilidade de princípio, aquela castidade da honra que sente o desdouro como uma ferida, que inspira coragem enquanto mitiga a ferocidade, que enobrece tudo aquilo em que toca e, sob a qual, o próprio vício perde metade do seu mal ao perder toda a sua grosseria! Este sistema misto de maneira de pensar e sentimento teve a sua origem na amiga cavalaria. O seu princípio, ainda que variado na sua aparência, pelo estado diverso dos assuntos humanos, subsistiu e influenciou durante uma longa sucessão de gerações, mesmo até ao tempo em que vivemos. Se alguma vez ele se extinguir completamente, a perda, receio, será enorme. Foi isto que deu carácter próprio à Europa moderna. Foi isto que a distinguiu, sob todas as
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suas formas de governo, e que a distinguiu, com vantagem sua, dos Estados da Ásia e, possivelmente, daqueles Estados que floresceram nos períodos mais brilhantes do mundo antigo. Foi este princípio que, sem confundir as classes, produziu uma nobre igualdade e a fez descer através de todos os níveis da vida social. Foi esta maneira de pensar que moderou os reis, fez deles companheiros e elevou os particulares à sua camaradagem. Sem força nem oposição subjugou a brutalidade do orgulho e do poder, obrigou os soberanos a submeterem-se à canga suave da estima social, levou a autoridade mais feroz a submeter-se à elegância, a abdicar do comando conquistador das leis, para se render às maneiras. Mas agora tudo vai mudar. Todas as ilusões agradáveis que tornaram o poder gentil e a obediência liberal, que harmonizaram os diferentes cambiantes da vida, e que, por uma assimilação branda, incorporaram na política os sentimentos que embelezam e suavizam as relações privadas, serão desfeitas por este novo império vitorioso das luzes e da razão. Toda a roupagem decente da vida é para ser rudemente arrancada. Todas as ideias supervenientes que nos foram fornecidas pelo guarda-roupa da imaginação moral, que o coração reconhece e o entendimento ratifica como necessárias para cobrir os defeitos da nossa natureza nua e trémula e para a elevar em dignidade aos nossos olhos, são para serem desacreditadas, como uma moda ridícula, absurda e antiquada. Neste esquema de coisas, um rei não é senão um homem, uma rainha não é senão uma mulher, uma mulher não é senão um animal -e um animal que não é da ordem mais elevada. Toda a homenagem prestada a este sexo em geral e enquanto tal, só porque são mulheres, é para ser vista como romantismo e loucura. Regicídio, parricídio e sacrilégio, são apenas ficções da superstição, que corrompem a jurisprudência destruindo a sua simplicidade. O assassinato de um rei ou de uma rainha, ou de um bispo, ou de um pai é apenas um homicídio comum- e se o povo por acaso e de algum modo, ganha
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com isso, um tipo de homicídio muito mais perdoável, em relação ao qual não se deve instaurar um inquérito muito severo. Segundo o sistema desta filosofia bárbara, que é o fruto de corações frios e espíritos vis, que estão tão vazios de uma sabedoria sólida quanto destituídos de qualquer bom gosto ou elegância, as leis são para serem sustentadas apenas pelo medo que inspiram, e pela importância que cada indivíduo pode achar nelas a partir das suas próprias especulações, ou dispensar-lhes a partir do que privadamente lhe interessa. Nos bosques da academia deles, até onde a vista alcança, não se verão senão patíbulos. Nada resta para captar a afeição por parte da sociedade. Segundo os princípios desta filosofia mecânica, as nossas instituições nunca podem incarnar, se posso usar a expressão, nas pessoas - de molde a criar em nós amor, veneração, admiração ou laços. Mas esta espécie de razão que baniu as afeições é incapaz de preencher o seu lugar. Estes afectos públicos, combinados com as maneiras, requerem-se às vezes como suplementos, outras vezes como correctivos, e sempre como auxiliares da lei. O preceito dado por um homem sábio, e grande crítico, para a construção de poemas, é também verdadeiro para a construção de Estados : - "Non satis est pulchra esse poemata, dulcia sunto. " 131 Deveria haver em cada nação um sistema de bons costumes que um espírito bem formado estivesse inclinado a admirar. Para que nos façam amar o nosso país, este deve ser amável. Mas o poder, de um tipo ou de outro, sobreviverá ao choque no qual as maneiras e as convicções pereceram e encontrará outros meios para se sustentar, ainda que piores. Os usurpadores que, com vista a subverter as antigas instituições destruíram os princípios antigos, sustentarão o poder por artes semelhantes àquelas pelas quais o adquiriram. ~ando o antigo espírito de menagem, feudal e cavalheiresco, for extinto na alma dos homens, que por libertar os reis 131 N.T. "Não basta que os poemas sejam belos, fo rça é que sejam agradáveis", H or. Ars. 99.
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do medo, libertava ambos, reis e súbditos, da prevenção da tirania, as conspirações e assassinatos serão acautelados por assassinato preventivo e confiscação preventiva, e por aquele longo rol de máximas cruéis e sangrentas que formam o código político de rodo o poder que não se funda na sua própria honra e na honra daqueles que lhe devem obedecer. Os reis serão tiranos por política, quando os súbditos forem rebeldes por princípio. ~ando antigas convicções e regras de vida são retiradas, a perda é talvez incalculável. A partir desse momento não temos compasso que nos governe, nem podemos saber distintamente para que porto navegar. A Europa, tomada no seu conjunto, estava, indubitavelmente, numa condição florescente no dia em que a vossa Revolução se deu. ~anto desse estado próspero se devia ao espírito dos nossos costumes antigos e das nossas convicções não é fácil dizer, mas, como o operar destas causas não pode ser indiferente, devemos presumir que, no rodo, a sua actuação era benéfica.
Estamos sempre prontos a considerar as coisas no estado em que as encontramos, sem advertir o bastante acerca das causas pelas quais elas foram produzidas, e sobre as quais, possivelmente, se sustentam. Neste nosso mundo europeu, nada é mais certo do que terem os nossos bons costumes, a nossa civilização e rodas as coisas boas com eles relacionadas, dependido há séculos de dois princípios, e foram, de facto, o resultado de uma combinação de ambos: refiro-me ao espírito do cavalheirismo e ao espírito da religião. A nobreza e o clero, um por profissão, e a outra pelo patrocínio, perpetuaram o saber, mesmo no meio das armas e das confusões, enquanto os governos estavam mais em germe que propriamente formados. O saber retribuiu à nobreza e ao clero o que deles tinha recebido, e pagou-o com juros, alargando as suas ideias e adornando os seus espíritos. ~e felicidade se rodos tivessem sabido manter a sua união e conhecido o seu próprio lugar! ~e felicidade se o saber, sem se debochar pela ambição, se tivesse contentado em continuar a ser
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o instrutor e não tivesse aspirado a governar! Juntamente com os seus naturais guardiães e protectores, o saber será lançado na lama e calcado pelos cascos 132 de uma multidão*133 imunda 134 • Se, como suspeito, a literatura actual deve mais do que usualmente se quer admitir aos antigos costumes, o mesmo acontece com outras vantagens que estimamos muito porque muito valem. Mesmo o comércio, o negócio e as manufacturas, os deuses dos nossos políticos economistas, são eles mesmos talvez apenas criaturas, são eles próprios apenas os efeitos, que nós resolvemos venerar como se fossem causas primeiras. Certamente todos eles cresceram à sombra sob a qual floresceu o conhecimento. Também eles poderão cair juntamente com os princípios que os protegeram. Entre vós, pelo menos por agora, todos eles ameaçam desaparecer em conjunto. ~ando o negócio e as manufacturas faltam a um povo, e o espírito de nobreza e religião se mantém, o sentimento supre a sua falta, e nem sempre supre mal, mas se o comércio e as artes se perderem na experiência que testava quão bem um Estado se pode manter sem aqueles velhos princípios fundamentais, que espécie de coisa será uma nação de grosseiros, estúpidos, ferozes e ao mesmo tempo pobres e sórdidos bárbaros, destituídos de religião, honra ou orgulho viril, nada possuindo no presente e nada esperando daqui para frente? O que desejo é que não estejam a ir depressa, e pelo caminho mais curto, para esta situação horrível e chocante. A pobreza de concepção, a grosseria e a vulgaridade já são manifestas em todos os procedimentos da Assembleia e nos de todos os seus mentores.
132 N .T. A expressão usada é "under the hoofs", espezinhado seria "trampled ou underfoot", por isso se manteve a exp ressão brutal. 133
·Nota do autor: Veja·se a sorte de Bailly e Condorcet, que é suposto ser aqui, também, particularmente referido. Compare·se as circunstâncias do julgamento e execu· ção do primeiro com este vaticínio. ,,.. N.T. A expressão usada, que foi muito criticada na altura, é swinish multitude.
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A sua liberdade não é liberal. A sua ciência é ignorância presunçosa. A sua humanidade é selvagem e brutal. Não está claro se foi a Inglaterra que aprendeu de vós os princípios distintos de decoro e os bons costumes, de que ainda restam consideráveis traços, ou se foram os senhores a aprendê-los de nós. Mas penso que provieram de vós. Parece-me que sois "gentis incunabula nostrae" 135 • A França exerceu sempre maior ou menor influência sobre os costumes em Inglaterra, e quando a vossa nascente é obstruída e se polui, a torrente não correrá por muito tempo, nem muito límpida do nosso lado, talvez até em nenhuma nação. Em minha opinião, isto causa em toda a Europa um interesse e preocupação muito próximos pelo que se está a passar em França. Perdoe-me, portanto, se tratei tão longamente o espectáculo atroz do seis de Outubro de 1789, ou se levei longe demais as reflexões que me vieram à mente por ocasião da mais importante de todas as revoluções, a qual pode ser datada desse mesmo dia: refiro-me à revolução nos sentimentos, nos costumes e nas convicções morais. No actual estado de coisas, com tudo quanto é respeitável à nossa volta destruído, e com a tentativa de destruir dentro de nós todo e qualquer princípio de respeito, quase somos obrigados a desculparmo-nos por acalentar sentimentos humanos comuns. Porque sinto eu de maneira tão diferente do Reverendo Dr. Price e daqueles seus paroquianos que escolherem adoptar os sentimentos do seu discurso? - Por esta simples razão: porque é natural que eu sinta de modo diferente, porque fomos feitos para, perante estes espectáculos, sermos afectados de sentimentos melancólicos acerca da condição instável da prosperidade dos mortais e da tremenda incerteza da grandeza humana, porque com estes sentimentos naturais aprendemos grandes lições, porque em acontecimentos destes as nossas paixões instruem a nossa razão, porque quando reis são arrancados dos seus tronos pelo Supremo Director deste grande IJS
N .T. "O berço da nossa nação".
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drama, e se tornam objectos de ultrajo para os vis e de piedade para os bons, devemos encarar estes desastres na moral como olharíamos para um milagre na ordem mecânica das coisas. Somos despertados para a reflexão, as nossas almas (como há muito tempo tem vindo a ser observado) são purificadas pelo terror e pela piedade, o nosso orgulho doentio e insensato é tornado humilde pela prodigalidade de uma misteriosa sabedoria. Eu teria vertido algumas lágrimas se este espectáculo fosse representado num palco. Ficaria muito envergonhado se descobrisse em mim essa sensibilidade superficial e teatral ao sofrimento representado, enquanto exultava com ele na vida real. Com uma alma assim pervertida, nunca poderia aparecer numa tragédia. As pessoas pensariam que as lágrimas que outrora Garrick e recentemente Siddons 136 , me arrancaram, eram lágrimas de hipocrisia, e eu saberia que eram as lágrimas da loucura. De facto, o teatro é melhor escola para os sentimentos morais do que as igrejas onde os sentimentos de benevolência são assim ultrajados. Os poetas, que têm de lidar com uma audiência ainda não formada na escola dos direitos do homem, e que têm de adereçar-se à constituição moral do coração, não se atreveriam a apresentar um tal triunfo como motivo de júbilo. Aí, onde os homens seguem os seus impulsos naturais, não seriam suportadas as máximas odiosas de uma política maquiavélica, quer aplicadas na concretização de uma tirania monárquica quer na de uma tirania democrática. Rejeitá-las-iam nos palcos de hoje como as rejeitaram nos palcos antigos, onde nem mesmo a proposta hipotética de uma maldade assim na boca de um personagem tirano puderam suportar, ainda que adequada ao papel que ele representava. Nenhuma plateia tea' 36 N.T. Refere-se a David Garrick e Sara Siddons, dois actores famosos da altura. David Garrick é amigo de Burke. H á notícia de correspondência trocada entre ambos pelo menos desde 1765, Burke tem nessa altura 35 (ou 36 anos, recorde-se que a sua data de nascimento pode ter sido 1729 ou 1730} e Garrick tem 48. Garrick é convidado a visi tar Burke em Beaconsfield em Junho de 1768. A amizade entre ambos perdura até ao final da vida do actor em 1779. Burke escreve-lhe um sentido epitáfio. Cf. Correspondence, Vols. I. II , III e IX.
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tral em Atenas suportaria o que foi suportado nesta tragédia real deste dia triunfal: um actor principal pesando na balança, como numa loja de horrores, tantos crimes de hoje contra vantagens tão contingentes e - após pôr dentro e fora pesos - declara que o balanço está do lado das vantagens. Não suportariam ver os crimes da nova democracia postos no rol ao lado dos crimes do despotismo, e os guarda-livros políticos a julgarem que a democracia ainda continuava em débito, mas de modo algum incapazes ou relutantes em pagar o seu débito. No teatro, um primeiro relance intuitivo, sem nenhum processo elaborado de raciocínio, mostraria que este método de contabilidade política justificaria todos os crimes. Teriam visto que, segundo estes princípios, mesmo quando não se desse o pior, isso dever-se-ia mais à sorte dos conspiradores do que à sua parcimónia no uso da traição e do sangue. Depressa veriam que os meios criminosos, uma vez tolerados, em breve são os preferidos. Representam um atalho para o objectivo, menos longo do que percorrer a estrada das virtudes morais. Justificando a perfídia e o crime com o benefício público, o benefício público cedo será o pretexto, e a perfídia e o crime o fim - até que a voracidade, a malícia, a vingança e o medo, mais horrível que a vingança, possam saciar os seus apetites insaciáveis. Estas serão as consequências de se perder, no esplendor destes triunfos dos direitos do homem, todo o sentido natural do certo e do errado. Mas o reverendo pastor exulta neste "conduzido em triunfo", porque, verdadeiramente, Luís XVI era "um monarca arbitrário": isto é, dito noutros termos, nada mais nem nada menos que porque ele era Luís XVI, e porque ele teve a infelicidade de ter nascido rei de França, com as prerrogativas com que uma longa linha de ancestrais, e um longo consentimento do povo, sem nenhum acto de sua parte, o puseram na posse do trono. De facto, foi para ele uma infelicidade que tivesse nascido rei de França. Mas infelicidade não é crime e nem sempre a imprudência é a maior das faltas. Um príncipe, cujos actos de todo o seu reinado foram concessões sucessivas
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aos seus súbditos, que estava disposto a abrandar a sua autoridade, reduzir as suas prerrogativas e a fazer o seu povo participar de uma liberdade desconhecida, e talvez não desejada, pelos seus antepassados - um tal príncipe, embora sujeito às fraquezas próprias dos homens e dos príncipes, embora ele há muito devesse ter julgado necessário recrutar forças contra os planos terríveis que manifestamente se arquitectavam contra a sua pessoa e contra o resto da sua autoridade - embora tudo isto deva ser tido em consideração, vejo com grande dificuldade que ele mereça o triunfo cruel e ultrajante de Paris, ou do Dr. Price. Tremo pela causa da liberdade à vista de um exemplo destes dado aos reis. Tremo pela causa da humanidade, pelos ultrajes impunes infligidos pelos homens mais perversos. Mas há algumas pessoas com uma forma de pensar vil e degradada que olham para cima numa espécie de veneração complacente e admiração para reis que sabem manter-se seguros no seu trono, ter mão firme nos seus súbditos, fazer valer as suas prerrogativas, e, pela vigilância atenta de um severo despotismo, acautelar-se em relação aos primeiros sinais de abordagem da liberdade. Contra príncipes como estes nunca levantam a sua voz. Desertores em relação a princípios, mercenários da fortuna, nunca vêem nada de bom numa virtude sofrida, nem vêem nenhum crime na usurpação próspera. Se me demonstrassem claramente que o rei e a rainha de França (refiro-me àqueles que o eram antes do triunfo) tinham sido tiranos cruéis e inexoráveis, que tinham concebido deliberadamente planos para massacrar a Assembleia Nacional (julgo ter visto algo parecido insinuado em certas publicações), eu julgaria justo o seu cativeiro. Se isso fosse verdade, muito mais deveria ter sido feito , mas feito, julgo eu, de outro modo. A punição de reis tiranos é um acto de justiça nobre e terrível e com verdade se tem dito que é apaziguador da alma humana. Mas se eu tivesse de punir um rei perverso, teria em conta a dignidade ao vingar o crime. A justiça é grave
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e decorosa e ao castigar parece mais agir por necessidade que por escolha. Se Nero, ou Agripina, ou Luís XI, ou Carlos IX tivessem sido os alvos - se Carlos XII da Suécia, após o assassinato de Patk:ul, ou a sua antecessora, Cristina, após o assassinato de Monaldeschi, tivessem caído nas suas mãos, Senhor, ou nas minhas, estou certo que a nossa conduta teria sido diferente. Se o rei de França, ou o rei dos franceses (ou por qualquer outro nome que ele seja conhecido no novo vocabulário da vossa Constituição) tivesse, na sua pessoa ou na da sua rainha, merecido estes inconfessos e não vingados atentados às suas vidas, e aqueles ultrajes constantes, mais cruéis que a morte, uma tal pessoa dificilmente mereceria a responsabilidade executiva, mesmo a subordinada, que julgo estar-lhe confiada, nem seria próprio chamar-lhe chefe numa nação a quem ele tivesse ultrajado e oprimido. Para exercer tais funções numa nova comunidade, não poderia escolher-se pior do que um tirano deposto. Mas aviltar e insultar um homem como o pior dos criminosos e a seguir confiar nele para a guarda dos vossos interesses mais elevados, como um funcionário leal, honesto e zeloso, é inconsistente como raciocínio, não é prudente como política e não é seguro na prática. Tal eleição seria, por parte daqueles que a fizeram uma traição maior de que outra qualquer já cometida contra o povo. Como este é o único crime em que os vossos líderes políticos podem ter agido inconsistentemente, eu concluo que não há nenhuma espécie de fundamento nestas insinuações horríveis. Não penso melhor de todas as outras calúnias. Em Inglaterra, não lhes damos crédito. Somos inimigos generosos, somos fiéis aliados. Afastamos de nós com desgosto e indignação os caluniadores, aqueles que nos trazem as suas anedotas atestadas pela flor-de-lis ao ombro. Temos Lord George Gordon bem fechado em Newgate, e nem o facto de ele ser um proselitista público do Judaísmo, nem o de ele, no seu zelo contra os padres católicos e todo o tipo de eclesiásticos, ter sublevado uma gentalha (desculpai-me o termo, ainda está em uso por aqui) que deitou
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abaixo rodas as nossas prisões, lhe preservou a liberdade da qual ele não se tinha mostrado digno sabendo fazer bom uso dela. Reconstruímos Newgate e arrendámos o solar. Temos prisões quase tão fortes quanto a Bastilha, para aqueles que se atreverem a insultar as rainhas de França. Deixemos estar este nobre caluniador neste retiro espiritual. Deixemo-lo aí a meditar no seu Talmud, até que ele aprenda uma conduta mais adequada ao seu nascimento e aos seus dotes, e não tão insultuosa para a antiga religião de que se tornou prosélito- ou até que algumas pessoas daí dessa margem, para agradarem ao vosso novo irmão hebreu, o venham resgatar. Poderá então comprar, com os antigos tesouros da sinagoga, e uma muito pequena comissão nos juros acumulados das trinta moedas de prata (o Dr. Price mostrou-nos os milagres que estes juros realizaram em 1790 anos), as terras que ultimamente se descobriu terem sido usurpadas pela Igreja galicana. Mandem-nos o vosso Arcebispo Católico de Paris, que nós enviar-vos-emos o nosso Rabino Protestante. Trataremos a pessoa que nos enviarem em troca como um cavalheiro e um homem honesto, que ele o é: mas por favor deixem-no trazer consigo a riqueza da sua hospitalidade, bondade e caridade e podeis estar seguros que nunca confiscaremos um cêntimo desse capital honrado e piedoso, nem pensaremos em enriquecer o nosso tesouro com o espólio da caixa das esmolas dos pobres. Para lhe dizer a verdade, meu caro Senhor, eu penso que no desmentir das conclusões da sociedade de Old Jewry a da London Tavern está implicada, de algum modo, a honra da nossa Nação. Não tenho mandato de ninguém. Falo apenas por mim mesmo, quando repudio, como eu o faço com a maior sinceridade, qualquer comunhão com os participantes neste triunfo, ou com os seus admiradores. ~ando afirfno outra coisa diferente, a respeito do povo inglês, falo por ter observado, não por autoridade, mas falo a partir da vasta experiência que tive ao comunicar de vários modos com os habitantes deste reino, de rodos os tipos e classes, e após uma observação atenta, que começou cedo na minha vida e que continua
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há perto de quarenta anos. Frequentemente me tenho espantado ao considerar que o que nos separa é apenas um estreito canal de vinte e quatro milhas 137 e que o mútuo intercâmbio entre os nossos dois países tem sido muito grande ultimamente, para que nos conheçais tão pouco. Suspeito que isso se deva a que os senhores formaram um juízo de nós a partir de certas publicações, que representam muito mal, se é que, de todo, representam, as opiniões e disposições prevalecentes em Inglaterra. A vaidade, o desassossego, a p etulância e espírito de intriga de várias cabalas mesquinhas, que tentam esconder a sua total falta de importância pela azáfama, pelo barulho e pelo empolamento e citação mútua uns dos outros, fez-vos imaginar que o desprezo com que negligenciamos as suas h abilidades é um sinal de concordância geral com as suas opiniões. Não é ass im, asseguro-vos. Lá porque meia dúzia de gafanhotos debaixo de um feto fazem o campo tinir com o seu barulho incómodo, enquanto milhares de cabeças de gado repousam à sombra do carvalho inglês e ruminam silenciosos, por favor não imagine que os que fazem barulho são os únicos habitantes do campo - que, de certeza, são em grande número -, ou que, no fim de contas, eles diferem dos pequenos, amarfanhados, magros, saltitantes, embora barulhentos e incómodos, insectos do momento. ~ase me atrevo a afirmar que nem um por cento de nós participa do "triunfo" d a Sociedade d a Revolução. Se o rei e a rainha de França e os seus filho s viessem a cair nas nossas mãos por uma guerra, na mais acesa das hostilidades (abomino tal evento e tais hostilidades) seriam recebidos com um outro tipo de entrada triunfal em Londres. Em tempos tivemos um rei de França nessas condições 138 : u- N.T. Cerca de 44 km . 138
.T. Refere-se a Jean le Bo n, que é aprisionado na Baralh a de Poi riers em 1356.
O rei é primeiro alojado em Bordéus com honras reais onde lhe permitem co nstituir a sua corte. Em defesa dos in teresses da França e dos interesses do seu herdeiro contra o rei de Navarra, Jean le Bon decide precipitar as negociações com Ricardo III e é transportado para Lo ndres para se encontrar com o rei inglês onde é, ele mesmo, tratado com roda a dignidade real sendo-lhe permitido mante r uma corte de cerca de uma centen a de pessoas.
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lestes como ele foi tratado pelo vencedor no campo e de que maneira foi recebido depois em Inglaterra. ~atrocentos anos passaram sobre nós, mas eu acredito que não mudámos substancialmente depois desse período. Graças à nossa resistência obstinada à inovação, graças à fria indolência no nosso carácter nacional, continuamos a ostentar a marca dos nossos antepassados. Não perdemos, julgo eu, a generosidade e dignidade de pensar do século catorze, nem nos transformámos ainda, subtilmente, em selvagens. Não somos cooversos de Rousseau, não somos discípulos de Voltaire, Helvetius não fez progressos entre nós. Os ateus não são nossos pregadores nem os loucos são nossos legisladores. Sabemos que nós não fizemos nenhumas descobertas na moralidade, e pensamos que nesse campo não há descobertas a fazer, nem há também muitas descobertas sobre os grandes princípios de governo, ou sobre as ideias de liberdade, os quais foram compreendidos muito antes de nós nascermos, tão bem quanto o serão depois da terra se ter amontoado sobre as nossas presunções e o silêncio do túmulo ter imposto a sua lei sobre a nossa petulante loquacidade. Em Inglaterra ainda não fomos completamente estripados das nossas entranhas naturais: continuamos a sentir dentro de nós, acarinhamos e cultivamos aqueles sentimentos inatos que são os fiéis guardiães e os que activamente controlam o nosso dever, os verdadeiros sustentáculos da nossa moral liberal e viril. Nós não fomos esvaziados e costurados, com vista a sermos enchidos, como os pássaros empalhados nos museus, com palha, farrapos, e reles indistintos pedaços de jornal acerca dos direitos do homem. Preservámos todos os nossos sentimentos naturais e inteiros, não sofisticados pela pedantice e infidelidade. Temos, a bater no nosso peito, corações autênticos de carne e sangue. Tememos a Deus, elevamos o olhar para os Reis com temor, com emoção para os Parlamentos, com respeito para os magistrados, com reverência para os sacerdotes e com deferência para a nobreza*139 • 139 • Nora do autor: Os ingleses são, segundo julgo, derurpadamenre descriros numa carra publicada num dos jornais, por um cavalheiro que penso ser um pasror Dis-
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Porquê? Porque, quando estas ideias nos vêm à mente é natural sermos afectados deste modo, porque todos os outros sentimentos são falsos e espúrios e tendem a corromper o nosso espírito, a viciarem a nossa moral original, a tornar-nos inaptos para a liberdade racional e, por nos ensinarem uma insolência servil, licenciosa e depravada - para ser o nosso desporto vil de alguns dias de folga - tornam-nos perfeitamente aptos para a escravatura, e com justiça merecedores dela, durante o resto das nossas vidas. Saiba o Senhor que nesta era iluminada sou suficientemente corajoso para confessar que nós somos geralmente homens de sentimentos espontâneos: que, em vez de deitarmos fora os nossos antigos preconceitos os acarinhamos ao mais alto grau e, para nossa maior vergonha, acarinhamo-los porque são preconceitos e, quanto mais tempo tiverem durado e quanto mais generalizadamente prevaleceram, mais os acarinhamos. Temos receio de pôr os homens a viver e a negociar com a sua reserva privada de razão, porque suspeitamos que esse capital em cada homem é pequeno e que os indivíduos fariam melhor em abastecer-se no capital e no banco geral das nações e dos séculos. Muitos dos nossos intelectuais, em vez de destruírem os preconceitos gerais, empregam a sua sagacidade em descobrir a sabedoria latente que prevalece neles. Se encontram o que procuram (e raramente falham ), julgam mais acertado continuar com o preconceito 140 , com a razão à mistura, do que deitar sidente. ~a ndo escreve para o Dr. Price a propósito do espírito que prevalece em Paris, diz: "O espírito popular neste lugar aboliu todas as distinções presunçosas que o rei e os nobres usu rparam, em seu entender, quer falem do rei, do nobre ou do sacerdote, roda a sua linguagem é a mais iluminada e liberal entre os ingleses." Se este cavalheiro quer con· finar os termos iluminado e liberal a um ripo de homens em Inglaterra, pode ser que seja verdade. Geralmente, não é assim. 140
N.T. Burke não é indiscriminadamente favorável ao preconceito, por isso lhe acrescenta habitualmente o adjectivo de justo e define o justo preconceito como o preconceito associado à sua razão de ser. estas circunstâncias, o preconceito transforma a virtude do homem num hábito. Burke combateu preconceitos absurdos, que se iden tificam mais com o sentido pejorativo que damos à palavra preconceito, quer na crítica à governação inglesa da Índia, quer na crítica à perseguição aos católicos irlandeses. Para mais info rmação sobre o assunto ver: Ivone Moreira, Op. Cir., pp. 57-60.
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fora a capa do preconceito e deixar apenas a razão despida, porque o preconceito, com a sua razão, tem um motivo para levar essa razão a agir e um afecto que lhe dará constância. O preconceito é de aplicação imediata numa emergência: compromete previamente a mente num percurso firme de sabedoria e virtude e não deixa o homem hesitante no momento da decisão, céptico, perplexo e irresoluto. O preconceito torna a virtude do homem o seu hábito e não uma série de actos isolados. Através do preconceito justo, o seu dever passa a fazer parte da sua natureza. Os vossos literatos e os vossos políticos - acontece o mesmo a rodo o nosso clã de iluminados - diferem de modo essencial nestes pontos. Não têm respeito pela sabedoria dos outros, mas compen·· sam isso com uma grande confiança na sua própria sabedoria. Com eles há motivo suficiente para destruir a velha ordem das coisas, apenas por ser velha. ~anto ao que é novo, não têm nenhum tipo de receio no que respeita à duração de uma construção erguida à pressa, porque a duração não é importante para aqueles que pensam que pouco ou nada se fez antes do seu tempo e que põem toda a sua esperança na descoberta. Pensam, muito sistematicamente, que rodas as coisas que dão perpetuidade são prejudiciais e, por isso, estão em guerra implacável com rodos os sistemas. Pensam que os governos podem variar como as modas de vestir e que essa mudança é igualmente inofensiva, que não é necessário nenhum princípio de ligação a nenhuma constituição do Estado, excepto o sentido da conveniência presente. Falam sempre como se tivessem a convicção de que há um tipo de pacto singular entre eles e os seus magistrados, que compromete o magistrado, mas que esse comprometimento não é recíproco, e que a soberania do povo tem o direito de dissolver esse pacto sem precisar de outra razão senão a sua vontade. Mesmo a ligação ao seu próprio país só vai até onde ela se ajusta a alguns dos seus projectos transitórios: ela começa e acaba com o esquema político que se enquadra nas suas opiniões do momento.
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Estas doutrinas, ou melhor, estes sentimentos, parecem prevalecer nos vossos novos homens de Estado. Mas são completamente diferentes daqueles sob os quais sempre temos actuado neste país. Ouvi que, às vezes, em França se considera que o que está a acontecer entre vós é feito seguindo o exemplo de Inglaterra. Peço licença para afirmar que dificilmente alguma das coisas levadas a cabo entre vós se inspirou na prática ou nas opiniões prevalecentes entre nós, quer na sua concretização, quer no seu espírito. Deixe-me acrescentar, que não queremos aprender estas lições de vós, do mesmo modo que estamos seguros de não vo-las termos ensinado. As cabalas que aqui de algum modo tomam parte nas vossas transacções, por enquanto, não passam de um punhado de homens. Se, infelizmente, pelas suas intrigas, os seus sermões, as suas publicações e por causa de uma confiança que lhes vem do facto de esperarem unir-se aos conselhos e às forças da nação francesa, conseguirem atrair muita geme para as suas fileiras e, em virtude disso, tentarem aqui alguma coisa parecido com o que se tem passado entre vós, o que acontecerá, atrevo-me a vaticinar, é que, com alguma inquietação para o país, depressa conseguirão a sua própria destruição. Este povo, em tempos remotos, recusou-se a mudar as suas leis aceitando a infalibilidade dos Papas e não as há-de alterar agora por causa de uma fé implícita e fervorosa no dogmatismo dos filósofos- embora o primeiro estivesse armado com o anátema e as cruzadas e os últimos possam actuar usando a difamação e os postes da luz. Antigamente os vossos assuntos apenas a vós diziam respeito. Sentíamos por vós enquanto homens, mas mantínhamo-nos afastados deles, porque não éramos cidadãos franceses. Mas quando vimos o que vos acontece ser-nos apresentado como modelo, precisamos sentir como ingleses e, sentindo, precisamos prepararmo-nos como ingleses. Os vossos assuntos, mau grado nosso, são em parte do nosso interesse - pelo menos para mantermos à distância quer a vossa panaceia quer a vossa peste. Se for a vossa panaceia, não a
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queremos: conhecemos as consequências de um remédio desnecessário. Se for a peste, é uma peste tal que, para a prevenir, deverá ser estabelecida a mais severa das quarentenas. Ouço dizer por rodo o lado que uma seita, que se chama a si própria de filosófica, recolhe os louros de muitos dos últimos acontecimentos e que as suas convicções e os seus sistemas são o verdadeiro espírito que actua em rodos eles. Não ouvi falar de nenhum partido em Inglaterra, literário ou político, que fosse conhecido por essa denominação. Não é esse grupo, por acaso, composto entre vós por aquele tipo de homens a que o vulgo, no seu estilo franco e simples, comummente chama ateus e infiéis? É que se é, eu admito que também nós já tivemos escritores dessa espécie, que fizeram algum barulho no seu tempo. Neste momento, repousam num esquecimento que perdura. ~em é que, nascido nos últimos quarenta anos, leu uma palavra de Collins, de Toland e de Tindal, de Chubb e de Morgan, e de roda a raça dos chamados livres-pensadores? ~em é que agora lê Bolingbroke ?14 1 ~em é que alguma vez o leu de fio a pavio? Perguntem aos livreiros de Londres o que é que aconteceu a rodos estes luminares do mundo? Em idênticos escassos anos os seus poucos seguidores irão para o jazigo de família de "rodos os Capuletos". Mas o que quer que eles tenham sido ou sejam, entre nós, foram e são indivíduos isolados. Connosco, mantiveram a natureza que é comum à sua espécie: não foram gregários. Nunca actuaram corporativamente, nem sequer eram conhecidos como uma facção do Estado, nem se presume que tenham influenciado, em seu nome ou servindo os propósitos de tal facção, algum dos nossos interesses públicos. Mesmo admitindo que devem existir, que lhes seja permitido agir é outra questão. Como estas cabalas '"
N .T . Burke é um crítico antigo de Bolingbroke. U m a das suas primeiras obras
A Vindication oja Natural Society, publicad a em 17 56, é uma obra irónica e imita o estilo de Boli ngbroke para demo nstrar que as ideias deste últim o ace rca da religião eram ide ias pe rigosas e, quando aplicadas à socied ade política, se riam destruido ras desta. Burke, contudo, co nhecia bem este auror, já q ue a sua sát ira ch ega a passar por obra póstuma de Bolingbroke.
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não existiam em Inglaterra, assim também o seu espírito não teve nenhuma influência no estabelecimento e enquadramento original da nossa Constituição, ou em alguma das correcções e dos melhoramentos que ela sofreu. O todo da Constituição foi concebido sob os auspícios, e confirmado pelas sanções, da religião e da piedade. O todo emanou da simplicidade do nosso carácter nacional e duma espécie de elementaridade nativa e rectidão de entendimento que, por muito tempo, caracterizou os homens a quem fomos, sucessivamente, entregando a autoridade. Esta disposição mantém-se, pelo menos na grande maioria do povo. Sabemos, e o que é melhor, sentimos intimamente, que a religião é a base da sociedade, a fonte de todo o bem e de todo o consolo• 142 • Em Inglaterra estamos tão convencidos disto que, noventa e nove por cento de nós, preferiríamos toda a ferrugem de superstição, que a mente humana absurdamente tivesse acumulado ao longo do tempo, à impiedade. Nunca seremos tão tolos que convidemos um inimigo estrutural de um sistema a remover as suas corrupções, a suprir os seus defeitos, ou a aperfeiçoar a sua construção. Se os nossos princípios religiosos alguma vez precisarem de ser mais elucidados, não recorreremos ao ateísmo para no-los explicar. Não iluminaremos o nosso templo com esse fogo profano. Será iluminado com outras luzes. Será perfumado com outro incenso que não o material infecto importado pelos contrabandistas de uma '" ·Nota do autor: Sit igitur hoc ab initio persuasum civibus, dominos esse omnium rerum ac moderatores deos, eaque, quae gerantur, eorum geri vi, ditione, a c numine, eosdemque oprime degenere hominum mereri, et qualis quisque sit, quid agat, quid in se adm ittat, qua mente, qua pietatecolat refigiones intueri: piorum et impiorum habere rationem . H is enim rebus imbutae mentes haud sane abhorrebunt ab utili et a vera sententia. - [ ~e os cidadãos sejam, desde logo, persuadidos de q ue os deuses são senhores e gove rnantes de rodas as coisas; de que tudo o que acontece, acontece pelo seu poder, pela sua autoridade e pela sua vo ntade; de que são notáveis benfeitores da human idade; e de que vigiam como cada um é, o que faz, o que permite para si, com que pensamentos e com qu e piedade observa os ritos religiosos: fazem o cálculo exacto da piedade e da impiedade. Assim, as mentes instruídas nestes princípios não se afastarão de uma fo rm a de pensar útil e verdadei ra. Cic. L eg. 2. 15-16. )
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metafísica adulterada. Se as nossas instituições eclesiásticas carecerem de uma revisão, não será a avareza ou a rapacidade públicas ou privadas que empregaremos para fazer a auditoria, o recebimento ou a aplicação, dos rendimentos consagrados. Não condenando violentamente nem o grego, nem o arménio nem, desde que o seu ardor abrandou, o sistema da religião romana, nós preferimos o protestante: não porque pensemos que existe nele menos religião cristã, mas porque entendemos que existe mais. Somos protestantes não por indiferença mas por zelo. Sabemos, e temos orgulho em saber, que o homem é pela sua constituição um animal religioso, que o ateísmo é contrário não apenas à nossa razão mas aos nossos instintos e que não pode sustentar-se por muito tempo. Mas se, no meio de um motim e num ébrio delírio de bebidas infernais destiladas no alambique do inferno - que em França ferve agora tão furiosamente - viermos a descobrir a nossa nudez despindo-nos da religião cristã, que tem sido até aqui o nosso orgulho e o nosso conforto e grande fonte de civilização entre nós e entre muitas outras nações, preocupa-nos, (estando muito conscientes que a alma humana não suporta o vazio), que alguma superstição grosseira, perniciosa e degradante venha tomar o seu lugar. Por essa razão, antes de retirarmos ao nosso sistema motivos de estima naturais e humanos e o abandonarmos ao desprezo, como o senhores fizeram e, fazendo isso, incorreram nos castigos que bem merecem sofrer, desejamos que outro nos possa ser oferecido em seu lugar. Nessa altura faremos o nosso juízo. A propósito destas ideias, em vez de estarmos em conflito com as instituições, como alguns que fizeram da sua hostilidade a tais instituições uma filosofia e uma religião, nós cedo cortámos com eles. Estamos resolvidos a manter a Igreja instituída, a monarquia estabelecida, a aristocracia estabelecida, e a democracia estabelecida
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cada uma no grau em que existe e não em grau maior. Vou mostrar-lhe agora quanto temos de cada uma.
É um infortúnio deste nosso tempo (não, como estes cavalheiros pensam, uma glória), que tudo seja objecto de discussão: como se a Constituição do nosso país fosse para ser matéria de constante altercação em vez de regozijo. Por esta razão, e também para satisfação daqueles que de entre vós (se é que há alguns desses entre vós) possam querer aprender com os exemplos, aventuro-me a incomodá-lo com algumas reflexões sobre cada uma destas instituições. Na Roma antiga, julgo que não eram destituídos de bom senso aqueles que, quando queriam remodelar as suas leis, mandavam comissários para examinarem as repúblicas mais bem constituídas que estivessem ao seu alcance. Primeiro peço-lhe que me deixe falar-lhe da nossa Igreja instituída, que é o mais importante dos nossos preconceitos - não um preconceito destituído de razão, mas envolvido na sua sabedoria extensa e profunda. Falarei dela primeiro. Porque, no nosso espírito, ela é a primeira, a última e a que ocupa o centro. Porque, baseados no sistema religioso que temos agora, continuaremos a agir segundo o bom senso originalmente recebido pela humanidade e transmitido até nós de um modo uniforme e contínuo. Esse bom senso, como um sábio arquitecto, não apenas pôs de pé a estrutura augusta dos Estados, como, actuando como um proprietário prudente, para preservar a construção da profanação e da ruína, como a um templo sagrado, limpou-a de todas as impurezas: da fraude, da violência, da injustiça e da tirania, consagrou solenemente a comunidade e todos os que nela desempenham cargos. Essa consagração é de tal modo que todos aqueles que administram o governo, função onde representam o próprio Deus, devem ter, do seu destino e do seu papel, um conceito elevado e digno, que a sua esperança esteja cheia de imortalidade, que não olhem para o lucro mesquinho de ocasião, nem para os louvores passageiros do vulgo, mas para uma exis-
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tência sólida e permanente na parte imutável da sua natureza, para uma fama e glória permanentes, no exemplo que deixam ao mundo como uma rica herança. Estes princípios sublimes precisam de ser infundidos em pessoas de condição elevada, e as instituições religiosas providenciam para que eles se possam reavivar e reforçar constantemente. É necessário todo o tipo de instituição, moral, civil e política, na ajuda aos laços racionais e naturais que ligam o entendimento e as afecções humanas às divinas, tendo em vista a construção daquela espantosa estrutura que é o Homem, cuja prerrogativa é a de ser, em grande medida, uma criatura que se faz a si mesma, e que, quando feita como deve ser, está destinada a ocupar um lugar importante na criação. Mas sempre que o homem é posto a comandar homens, como a natureza melhor deve sempre presidir, nesse caso, mais particularmente, ele deve aproximar-se o mais possível da sua perfeição. A consagração do Estado, por uma instituição religiosa estatal, é necessária também para inspirar um saudável temor nos cidadãos livres, porque com o objectivo de assegurar a sua liberdade, eles precisam desfrutar de uma determinada porção de poder. Portanto, para eles, uma religião ligada ao Estado e ligada aos seus deveres para com ele, torna-se ainda mais necessária que em sociedades onde o povo, pelos termos em que se deu a sua sujeição, está confinado aos seus sentimentos privados e à gestão dos seus assuntos familiares. Todas as pessoas possuidoras de alguma parcela do poder deve ser-lhes muito fortemente inculcada a ideia de que actuam por delegação, e de que, a esse título, devem prestar comas da sua conduta ao grande Mestre, Autor e Fundador da sociedade. Este princípio deve estar ainda mais fortemente inculcado no espírito daqueles que compõem uma soberania colectiva do que no espírito de príncipes que governam sós. Sem instrumentos, estes príncipes nada podem fazer. ~em quer que use instrumentos, se neles encontra ajuda encontra também impedimentos. O seu
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poder nunca é total, nem tão-pouco estão a salvo de injúria extreme. Tais pessoas, embora exaltadas pela lisonja, pela arrogância e pelo seu autoconceito, devem ser sensíveis a que, quer estejam ou não protegidas pelo direito positivo, de uma maneira ou de outra, têm que prestar contas, mesmo nesse caso, pelo abuso do poder que lhes tinha sido confiado. Se não forem degolados por uma rebelião do seu povo, podem ser estrangulados pelos próprios soldados mantidos para sua segurança contra qualquer outra rebelião. Assim nós vimos o Rei de França ser vendido pelos seus soldados em troca de um aumento do pré. Mas onde a autoridade popular é absoluta e em nada refreada, o povo tem uma confiança infinitamente maior no seu poder, porque muito melhor fundada. São eles próprios, em grande medida, os instrumentos desse poder. Estão mais próximos dos seus objectivos. Alem disso, não estão tanto sob a alçada de um dos poderes mais controladores no mundo : atender ao bom nome e à consideração. A parcela de infâmia que é provável que caiba a cada indivíduo por participar em actos públicos é deveras pequena: a actuação da censura processa-se na razão inversa do número daqueles que abusam do poder. A própria aprovação dos seus actos tem para eles a aparência de um juízo público a seu favor. Uma perfeita democracia é, por isso, a coisa mais desavergonhada do mundo. E como é a mais desavergonhada é também a mais destemida. Ninguém se convence que pode ser sujeito a um castigo. Certamente, o povo inteiro nunca o deve ser: porque, como todos os castigos são dados como exemplo e para a conservação de todo o povo, a totalidade do povo nunca pode ser objecto de punição por nenhuma mão humana*143 • É por isso de uma importância infinita que eles não se permitam imaginar que seja a sua vontade, mais do que a dos reis, o padrão do certo e do errado. Devem ser persuadidos de que estão muito menos no direito, e que são muito menos habilitados a fazê-lo em segurança, a usar de um poder arbitrário seja ele 3 '• ·Nota do autor: Quicquid multis peccawr inultum. [U ma fal ta cometida por muitos, qualquer que seja, fica impune. Luc. 5.260.)
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qual for, que, por conseguinte, não devem, sob uma falsa aparência de liberdade, estar de facto a exercer um poder contranatura, inversivo, exigindo tiranicamente dos seus mandatários que exercem funções no Estado, não uma inteira devoção ao seu interesse, o que seria seu direito, mas uma abjecta submissão à sua vontade arbitrária: extinguindo desse modo, em rodos aqueles que os servem, rodo e qualquer princípio moral, rodo o sentido de dignidade, rodo o poder de ajuizar e roda a consistência de carácter, enquanto, exactamente pelo mesmo processo, eles próprios constituem uma presa adequada e conveniente, mas muito lamentável, da ambição servil dos sicofantas populares ou dos bajuladores da corre. ~ando
o povo se tiver esvaziado de toda a ambição da sua vontade egoísta, o que sem a religião é absolutamente impossível que alguma vez o faça - quando estiver consciente de que exerce o poder, e talvez num elo mais elevado na ordem da delegação, que, para ser legítimo, precisa estar de acordo com aquela lei eterna e imutável na qual vontade e razão são uma só - será mais cuidadoso no que respeita a colocar o poder em mãos incapazes e vis. Na nomeação para gabinetes, não apontará para o exercício da autoridade como um trabalho deplorável, mas como para uma função sagrada, não de acordo com o seu interesse egoísta e sórdido, nem de acordo com o seu capricho arbitrário, mas conferirá esse poder (ante o qual qualquer homem pode com razão tremer ao dar ou ao receber) apenas àqueles em quem possa discernir uma proporção predominante de virtude e sabedoria activas, tomadas no seu conjunto e adequadas ao cargo, pelo menos tanto quanto se pode encontrar na imensidão da inevitável mistura de imperfeições humanas e de enfermidades. ~ando estiverem habitualmente convencidos de que, para Aquele cuja essência é o bem, nenhum mal pode ser aceitável, quer por acção, quer por omissão, estarão mais aptos a extirpar da mente de todos os magistrados, civis, eclesiásticos ou militares, tudo o que tiver a mínima semelhança com um poderio arrogante e sem lei.
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Mas um dos primeiros princípios, dos mais fundamentais, ao qual a comunidade e as leis estão consagradas é que não aconteça que, os proprietários temporários e arrendatários vitalícios na comunidade, esquecidos do que receberam dos seus antepassados, ou do que devem à sua posteridade, ajam como se fossem os donos absolutos, que não se contem entre os seus direitos cortar o vínculo ou desperdiçar a herança, destruindo a seu bel-prazer a tecitura original da sua sociedade: arriscando-se a deixar aos que vêm depois uma ruína em vez de uma casa- ensinando os seus sucessores a respeitarem as suas criações tão-pouco quanto eles próprios respeitaram as instituições dos seus antepassados. Pela facilidade sem escrúpulos de mudar tanto e tão frequentemente o Estado e de formas tão variadas, como as há nas flutuações do gosto ou das modas, a longa cadeia e a continuidade da comunidade serão quebradas, nenhuma geração poderá ligar-se à outra e os homens tornar-se-ão pouco melhores que as moscas de um verão. Em primeiro lugar, a ciência da jurisprudência, orgulho do intelecto humano que- com todos os seus defeitos, redundâncias e erros- é o acervo de razão compilado em muitas gerações, combinando os princípios da justiça primordial com a variedade infinita das preocupações humanas, jamais seria estudada, tal como uma pilha vergonhosa de velhos erros eliminados. A auto-suficiência pessoal e a arrogância (companheiras inseparáveis de quem nunca experimentou mais que a sua própria sabedoria) usurpariam os tribunais. Certamente, não iriam existir leis que, estabelecendo patamares invariáveis de esperança e temor, mantivessem os homens num certo curso, ou os dirigissem para um determinado fim. A instabilidade no modo de conservar a propriedade ou de exercer os cargos não poderia fornecer um terreno sólido para qualquer pai especular sobre a educação dos filhos, ou sobre a escolha do seu futuro estabelecimento no mundo. Não haveria princípios que fossem desde cedo inculcados nos hábitos. Assim que o mais hábil preceptor tivesse terminado a trabalhosa tarefa da formação, em vez de poder lançar
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para a frente o seu pupilo, educado através de uma disciplina virtuosa adequada a obter para ele a atenção e o respeito ajustado ao lugar que ele ocupa na sociedade, encontraria tudo mudado, e dar-se-ia conta de que ele se tornara numa pobre criatura para desprezo e escárnio do mundo, ignorante dos verdadeiros fundamentos do respeito. ~em poderia garantir um sentido terno e delicado da honra que pulsasse em uníssono com as primeiras batidas do coração, quando ninguém soubesse qual era a prova de honra numa nação que constantemente mudasse o valor desta moeda? Nenhum aspecto da vida manteria o que já adquiriu. Seguir-se-ia infalivelmente a barbárie no que dissesse respeito à ciência e à literatura, inexperiência no que respeitasse às artes e manufacturas, na falta de uma educação firme e princípios estáveis, assim, a própria comunidade em algumas gerações desagregar-se-ia, seria desfeita em pó, na poeira da individualidade, e por fim dispersa aos sete ventos. Portanto, para evitar os males da inconstância e da versatilidade, dez mil vezes piores que os da obstinação e do mais cego preconceito, nós consagramos o Estado, que nenhum homem se aproxime para observar os seus defeitos ou corrupções senão com o devido cuidado, que nunca ninguém pense começar a sua reforma subvertendo-o, que se aproximem das faltas do Estado como das feridas de um pai, com piedosa reverência e trémula solicitude. Através deste preconceito sábio somos ensinados a olhar com horror para aqueles filhos do vosso país que estão prontos para, precipitadamente, cortar o pai idoso em pedaços e pô-lo na caldeira dos mágicos, com esperanças que pelos seus sucos venenosos e encantamentos bárbaros possam regenerar a constituição paterna e renovar a vida do pai. A Sociedade é de facto um contrato. Os contratos subordinados que dizem respeito a meros interesses ocasionais podem ser dissolvidos à vontade, mas o Estado 144 não pode ser visto como um ,..., N.T. Burke faz aqui uma identificação entre Sociedade e Estado, neste ponto, como em muiws outros aspecws da sua doutrina sobre o ContratO Social, ele está pró· ximo de Francisco Suárez- amor que conhece e que cita- para quem a distinção entre
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acordo de comércio de pimenta e café, chita ou tabaco, ou outro qualquer interesse menor, instaurado para satisfazer uma necessidade do momento e dissolvido a gosto pelas partes. O Estado é para ser olhado com outra reverência, porque não é uma parceria em coisas que servem apenas a existência animal grosseira, de uma natureza temporária e precária. O Estado é uma parceria em toda a ciência, em toda a arte, uma parceria em toda a virtude e em toda a perfeição. Como os fins de uma tal parceria não podem ser obtidos em muitas gerações, torna-se uma parceria não apenas entre aqueles que estão vivos, mas entre os que estão vivos, os que estão mortos e os que estão para nascer. Cada contrato de cada Estado particular é apenas uma cláusula do grande contrato primevo da sociedade eterna, ligando as naturezas inferiores às superiores, fazendo comunicar o mundo visível com o invisível, de acordo com um pacto firmado sancionado pelo inviolável juramento que mantém todas as naturezas físicas e morais no seu devido lugar. Esta lei não está sujeita à vontade daqueles que, por um dever que os sobrepuja, infinitamente superior, estão sujeitos a submeter a sua vontade a essa lei. As corporações municipais desse reino universal não são moralmente livres de, segundo o seu prazer, nas suas especulações sobre um melhoramento contingente, afastar completamente e romper os laços que unem as comunidades que lhes estão subordinadas, e de as dissolver num caos de princípios elementares anti-social, não-cívico, desagregado. É apenas a primeira e a suprema necessidade, uma necessidade que não é escolhida, mas que escolhe, uma necessidade superior à deliberação, que não admite discussão e que não requer provas, a única que pode justificar o recurso à anarquia. Esta necessidade não é uma excepção à regra, porque esta mesma necessociedade organizada e Esrado é, num cerro sentido do rermo Esrado, uma disrinção fe ira absrracramente, para comodidade de rraramento do rema, m as que na realidade não aconrece, um a vez que a caracre rização da sociedade como corpo polírico é impossível sem o Esrado. E só um corpo polírico organ izado pode derer o poder. Ourra coisa será quando se fala de Esrado como os ó rgãos de poder supremo, onde já não faz sentido a identificação. Cf. De Legibus Ill,Ill, §§ 5-6.
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sidade é também ela parte daquele arranjo moral e físico das coisas ao qual o homem deve ser obediente, ou por consentimento ou à força: mas, se aquilo que é apenas a submissão à necessidade for feito objecto de escolha, a lei está quebrada, a Natureza foi desobedecida e os rebeldes são banidos, expulsos e exilados, deste mundo de razão, e ordem, e paz, e virtude, e frutuoso sacrifício, para o mundo antagonista da loucura, da discórdia, do vício e da confusão e de vão pesar. Estes, meu caro Senhor, são, eram, e penso que serão por muito tempo, os sentimentos da grande parte da geme mais instruída e mais sensata deste país. O s que se incluem nesta categoria formam as suas convicções segundo os princípios que os devem guiar. Os menos curiosos recebem estes princípios da sua autoridade, o que não envergonha aqueles a quem a Providência destinou a viver sob tutela. Estes dois tipos de homens movem-se na mesma direcção, embora em lugares diferences. Ambos se movem no sentido da ordem do universo. Todos eles ou sabem ou sentem esta grande verdade amiga: - "Quod i/li principi et proepotenti Deo quiomnem h une mundum regit nihil eorum quoe quidemjiant in terris acceptius quam concilia et coetus hominum jure sociati quae civitates appellantur.'~ 45 Recebem esta regra da cabeça e do coração, não do grande conceito que ela imediatamente evoca, nem do conceito maior de quem este deriva, mas apenas por aquilo que por si só pode dar verdadeiro peso e sancionar qualquer opinião esclarecida: a natureza comum dos homens e a sua relação comum. Convencidos de que todas as coisas devem ser feitas com referência a, e remetendo para, o ponto de referência para onde tudo deveria estar dirigido, eles julgam-se comprometidos, não apenas como indivíduos no santuário do coração, ou como congregados nesta capacidade pessoal, a renovar " 1 N. T. "Porque nada daquilo que aconteça na terra é mais agradável àquele pri· meiro e poderosíssimo Deus, que governa rodo este mundo, do que os conselhos e as assembleias dos homen s reu nidos pelo direiro, aos qu ais chamamos cidades". Cic. Rep.
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a memória da sua origem excelsa e casta, mas também enquanto corporação a prestar homenagem ao Fundador, Autor e Protector da sociedade civil, sem a qual o homem não poderia chegar à perfeição de que a sua natureza é capaz, nem mesmo fazer uma pálida e remota aproximação a essa perfeição. Emendem que Ele, que nos deu a nossa natureza para ser aperfeiçoada pela nossa virtude, determinou também os meios necessários para a sua perfeição: Ele concebeu, por conseguinte, o Estado e quis a sua conexão com a fonte e o arquétipo original de toda a perfeição. Aqueles que estão convencidos de que esta é a Sua vontade, que é lei das leis e soberana dos soberanos, não podem julgar repreensível que esta nossa fidelidade e homenagem corporativa, que este nosso reconhecimento de um elevado senhorio, quase diria esta oblação do próprio Estado como uma oferta digna no altar excelso do louvor universal, deva ser desempenhado, como todos os actos solenes e públicos são desempenhados, em edifícios, em música, em decoração, em discurso, na dignidade das pessoas, de acordo com os costumes dos homens, ensinados pela sua natureza - quer dizer, com modesto esplendor, com discreto status, com leve majestosidade e sóbria pompa. Para estes fins o povo pensa que uma parte da riqueza do país é tão bem empregue quanto o é ao fomentar o luxo de personalidades. É um ornamento público. Uma consolação pública. Alimenta as esperanças do povo: os mais pobres encontram nisso a sua própria importância e dignidade, enquanto a riqueza e o orgulho dos indivíduos, fazem sentir constantemente aos de mais humilde condição, a sua inferioridade e degradam e aviltam a sua condição. É para o homem de vida humilde, e para elevar a sua natureza- para pôr na sua mente a ideia de um Estado no qual os privilégios da opulência hão-de acabar, quando ele for igual por natureza e pode, por virtude, ser mais que igual - que esta porção da riqueza geral do seu país é empregue e consagrada. Asseguro-lhe que não pretendo ser único. Transmito-lhe convicções que têm sido aceites entre nós - desde os primórdios até
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ao presente - com uma concordância geral e permanente, e de que a minha mente está tão deveras imbuída que sou incapaz de distinguir o que aprendi de outros do que resultou da minha própria reflexão.
É com base em alguns princípios idênticos que a maioria do povo inglês, em vez de pensar a religião nacional como ilegítima, dificilmente concebem ser legítimo não ter tal instituição. Em França, estais completamente enganados se pensais que não estamos sobremaneira ligados a ela e muito mais que todas as outras nações, e quando este povo actuou injustificada e imprudentemente a seu favor (como, certamente, o fizeram em algumas ocasiões) nos seus próprios erros descobrireis, pelo menos, o seu zelo. Este princípio percorre todo o sistema da sua política. O nosso povo não considera a sua Igreja apenas conveniente, mas considera-a essencial para o seu Estado: não como uma coisa heterogénea e separável- algo adicionado para acomodação - que se pode manter ou dei.xar de lado, de acordo com as conveniências. Considera-a os alicerces de toda a sua Constituição, com a qual, e com cada uma das suas partes, a Igreja mantém uma indissolúvel união. Igreja e Estado são ideias inseparáveis na sua mente, e dificilmente uma é mencionada sem se mencionar o outro. A nossa educação está formada de molde a confirmar e a gravar esta impressão. um certo sentido, ela está completamente na mão dos eclesiásticos, isto em todas as etapas, da infância à idade adulta. Mesmo quando a nossa juventude, deixando as escolas e as universidades, entra nesse tão importante período da vida que começa por ligar a experiência ao estudo, e quando, com vista a isso, visita outros países, em vez de levar consigo um velho criado, que já se têm visto como tutores de homens importantes de outros lugares, três quartos dos que vão para o estrangeiro acompanhando a nossa jovem nobreza e os nossos cavalheiros são eclesiásticos: não como senhores austeros, não como meros acompanhantes, mas
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como amigos e companheiros mais responsáveis e, não raramente, pessoas tão bem nascidas quanto eles. Muitos ficam a relacionar-se com eles ao longo da vida, como se fossem família. Através destas ligações pretende-se afeiçoar os nossos Pares à Igreja, e tornamos a Igreja liberal, por manter um relacionamento com as personalidades que lideram o nosso país. Somos tão obstinados em que se mantenha nos velhos moldes esta instituição que muito pouca alteração foi feita neles desde o século XIV ou XV: aderindo, neste aspecto particular, como em tudo o resto, à nossa velha máxima: nunca nos separarmos completamente nem de repente do que é antigo. Julgámos que estas antigas instituições são, no seu todo, favoráveis à moralidade e à disciplina, e pensámos que elas eram susceptíveis de serem melhoradas, sem se alterarem os seus fundamentos. Pensámos que elas eram capazes de acolher e melhorar, e acima de tudo preservar, as realizações da ciência e da literatura, à medida que a ordem da Providência as fosse produzindo. Ao fim e ao cabo, com esta educação gótica e monástica, (porque ela é assim no seu fundamento), pudemos reivindicar uma partilha tão ampla quanto precoce em rodos os progressos da ciência, das artes e da literatura, que iluminaram e adornaram o mundo moderno, tanto quanto qualquer outra nação da Europa: pensamos que uma das causas principais deste progresso foi o não termos desprezado o património de conhecimento que nos foi legado pelos nossos antepassados.
É por causa da nossa ligação a uma instituição eclesiástica que a nação Inglesa não julga prudente confiar esse grande interesse fundamental do rodo a quem não confia nem uma parte do seu serviço público, civil ou militar - isto é, à instável e precária contribuição dos indivíduos. E vai mais longe. A nação inglesa certamente nunca suportou , nem nunca suportará, ver convertida a propriedade permanente da Igreja numa pensão, dependente do Tesouro, a ser adiada, retida, ou talvez extinta por dificuldades fiscai s: dificuldades
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que podem por vezes ser fictícias, para atingir fins políticos, e são de facto frequentemente provocadas pela extravagância, a negligência e a ganância dos políticos. O povo inglês pensa que tem motivos constitucionais, bem como religiosos, contra qualquer projecto de converter o seu clero independente em pensionistas eclesiásticos do Estado. Tremem pela sua liberdade, sob a influência de um clero dependente da coroa, tremem pela tranquilidade pública, pela desordem de ter um clero faccioso, se ele tivesse de depender de outrem sem ser a coroa. Por essa razão o povo inglês tornou a sua Igreja- tal como o seu rei e a sua nobreza - independente. Da consideração conjunta da religião e da política constitucional, da sua convicção do dever de garantir uma provisão certa para consolo dos fracos e instrução dos ignorantes, o povo inglês incorporou e identificou a propriedade da Igreja com a massa da propriedade privada, da qual o Estado não é o proprietário, nem para o uso, nem para domínio, mas apenas o guardião e o regulador. O povo inglês ordenou que a provisão desta instituição fosse tão estável quanto o solo sobre o qual assenta, e que não devesse flutuar com o Eu ripus dos fundos e das acções. O s homens de Inglaterra - quero eu dizer os homens que são líderes esclarecidos de Inglaterra- cuja sabedoria (se têm alguma) é aberta e directa, ficariam envergonhados, como de uma fraude idiota, de professar de nome uma religião, que pelos seus actos parecessem condenar. Se pela sua conduta (a única linguagem que raramente mente) parecerem considerar o grande princípio regulador do mundo moral e do mundo natural como uma mera invenção para manter o vulgo em obediência, temem que, com essa conduta, destruam o propósito político que têm em vista. Acham difícil fazer outros acreditar num sistema ao qual, eles próprios, manifestamente, não dão crédito. O estadista cristão desta terra teria de facto, ames de mais, provido à multidão, porque é a multidão, e é, portantO, nessa qualidade, o primeiro objectivo da instituição eclesiástica,
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e de todas as instituições. Foram ensinados que a circunstância de o Evangelho ser pregado aos pobres era um dos grandes testes da sua verdadeira missão. Pensam, portanto, que não acreditam nele, aqueles que não cuidam de que ele seja pregado aos pobres. Mas como sabem que a caridade não está confinada a nenhum grupo particular, mas que deve aplicar-se a todos os homens que têm necessidades, não estão desprovidos da devida sensação de comiseração preocupada com as infelicidades dos grandes. Não se coíbem, por uma delicadeza enfastiada ao -.:heiro da sua arrogância e presunção, de prestarem cuidados médicos aos seus furúnculos espirituais e às suas feridas supuradas. São sensíveis a que a instrução religiosa é mais importante para estes do que para quaisquer outros: por causa da enorme tentação a que estão expostos, por causa das consequências importantes que têm as suas faltas, por causa do contágio do seu mau exemplo, por causa da necessidade de dobrarem o pescoço altivo do seu orgulho e ambição ao jugo da moderação e da virtude, por causa de terem em conta a grande estupidez e a ignorância grosseira no que concerne ao que mais importa aos homens saber, aquilo que prevalece nos tribunais, à frente dos exércitos, nos senados, bem como ao tear ou no campo. O povo inglês está satisfeito que para os grandes as consolações da religião sejam tão necessárias quanto as suas instruções. Também eles estão entre os infelizes. Sentem dores pessoais e sofrimento particular. Nisto não têm privilégios e estão igualmente sujeitos a pagar por inteiro os impostos da sua condição mortal. Estando menos familiarizados com as necessidades limitadas da vida animal, precisam deste excelso bálsamo sobre os cuidados e ansiedades que os corroem, que proliferam, diversificadas por combinações infinitas oriundas das regiões selvagens de uma imaginação descontrolada. Falta alguma dádiva caridosa para os nossos, frequentemente muito infelizes, irmãos, para preencher o vazio de breu que reina em almas que não têm na terra nada a esperar ou a temer, alguma coisa para aliviar no meio da languidez mortífera e lassidão muito elaborada
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daqueles que nada têm para fazer, algo que excite o apetite de existir na enfastiada saciedade que os espera nos prazeres que podem comprar-se, onde não se deixa agir a Natureza, onde mesmo o desejo é antecipado e, por isso mesmo, o seu gozo é frustrado por esquemas meditados e prazeres inventados, e nenhum intervalo, nenhum obstáculo, se interpõe entre o desejo e a sua realização. O povo de Inglaterra sabe quão pouca influência os professores de religião provavelmente têm nos ricos e nos poderosos que há muito o são e, muito menos ainda, com os novos-ricos, sobretudo se aparecem de uma maneira que não combina com aqueles com quem eles precisam associar-se, e sobre os quais precisam mesmo de exercer, em alguns casos, algo parecido com autoridade. O que devem eles pensar de este corpo de professores, se não os olham como mais do que criados? Se a sua pobreza fosse voluntária, poderia haver uma diferença. Pessoas com forte capacidade de auto-renúncia actuam poderosamente sobre o nosso espírito, um homem que não rem necessidades alcançou uma grande liberdade e firmeza , e mesmo dignidade. Mas como um qualquer conjunto de homens são apenas homens e a sua pobreza não pode ser voluntária, o desrespeito que atinge roda a pobreza laica não será diferente do que atinge a pobreza eclesiástica. A nossa constituição, providente, tomou por isso conta daqueles que devem ensinar a ignorâncias presunçosas. Aqueles que devem ser os críticos do vício insolente, nunca devem ser desprezados pelos viciosos ou viver das suas esmolas, nem a sua pobreza remará os ricos a pomo de negligenciarem a verdadeira cura das suas almas. Por estas razões, cuidando antes de tudo dos pobres com uma solicitude de pais, não relegámos a religião (como algo que tivéssemos vergonha de mostrar) para vilas obscuras ou aldeias rústicas. Não! Temo-la, para exaltar a fronte com mitra na corte e nos parlamentos. Temo-la misturada na maioria dos assuntos da nossa vida, e combinada com rodas as classes sociais. O povo inglês mostrará aos grandes potentados do mundo, e aos seus sofistas retóricos, que uma nação livre, generosa e informada honra os
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altos magistrados da sua Igreja, que ela não tolera que a insolência da riqueza e dos títulos, ou qualquer outra espécie de pretensão orgulhosa, olhe de cima com desprezo para quem deveria olhar com reverência, nem presuma que pode maltratar aquela nobreza pessoal adquirida que sempre se julga ser, e que frequentemente é, o fruto, não a recompensa (porque o que é que pode ser a recompensa? ) do conhecimento, da piedade e da vi rtude. O povo inglês pode ver, sem qualquer pena ou protesto um arcebispo preceder um duque. Pode ver o Bispo de Durham O'J o Bispo de Winchester na posse de dez mil libras anuais, e não consegue conceber porque have-riam de estar em piores mãos do que propriedades de igual valor nas mãos de um Conde ou de um fidalgo, embora possa ser verdade que os bispos não mantêm tantos cavalos e tantos cães alimentados com as vitualhas que serviriam para alimentar os filhos do povo. É verdade que a totalidade do rendimento da Igreja nem sempre é empregue, até ao cêntimo, em caridade, nem talvez devesse ser, mas uma parte é, geralmente, empregue assim. É bem melhor partilhar a virtude e a humanidade, deixando muito à livre iniciativa, mesmo que seja com alguma perda de eficácia, que tentar fazer dos homens meras máquinas e instrumentos de benevolência política. O mundo no seu todo ganhará com a liberdade sem a qual, a própria virtude, não poderá existir. ~ando em tempos a comunidade inglesa estabeleceu os bens da Igreja como sua propriedade, deixou, em coerência, de poder falar acerca do demais ou de menos. Demasiado ou demasiado pouco são traições em relação à propriedade. ~e mal pode advir de demasiada propriedade na mão seja de quem for, enquanto a autoridade suprema tem a total superintendência sobre esta, como sobre qualquer outra propriedade, para prevenir toda a espécie de abuso e, sempre que claramente se desvie, dar-lhe a direcção adequada aos propósitos da sua instituição?
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Em Inglaterra muitos de nós pensam que é inveja e maldade em relação àqueles que são muitas vezes os próprios a começar a constituir a sua fortuna, e não um amor da renúncia e da mortificação da Igreja primitiva, que faz que alguns olhem de soslaio para as distinções, honras e rendimentos que, sem terem sido retirados a ninguém, são postos de lado para a virtude. O ouvido do povo inglês sabe distinguir. Ele ouve estes homens falarem abertamente e a sua língua trai-os. A sua linguagem é o patois da fraude, a lenga-lenga da hipocrisia. O povo inglês deve pensar isso mesmo, quando estes tagarelas fingem estar a reconduzir o clero à sua primitiva e angélica pobreza, pobreza que, em espírito, deve sempre existir neles, (e em nós também, mesmo que não nos agrade), mas que na realidade deve variar, quando se mudou a relação entre a Igreja e o Estado - quando as maneiras, os modos de vida e, em verdade, toda a ordem de interação entre os homens sofreu uma revolução total. Acreditaremos que estes reformadores são honestos entusiastas da pobreza, não como agora, que os julgamos vigaristas e trapaceiros, quando os virmos a eles porem os seus próprios bens em comum e a submeterem-se a si mesmos à disciplina austera da Igreja primitiva. Com estas ideias enraizadas no seu espírito, os Comuns da Grã-Bretanha, nas emergências nacionais, nunca procurarão recursos na confiscação dos bens da Igreja e dos pobres. O sacrilégio e a proscrição não se encontram entre as soluções e os meios da Comissão de Abastecimento. Os judeus em Change Alley ainda não se atreveram a aludir às suas esperanças de hipotecar os rendimentos que pertencem à diocese de Canterbury. Não temo vir a ser desmentido quando lhe asseguro que não há um só homem com cargos públicos neste país, a quem o Senhor queira citar, não, nem um, seja de que partido ou de que grupo for, que não reprove a confiscação desonesta, pérfida e cruel que a Assembleia Nacional foi forçada a fazer da propriedade que era o seu primeiro dever proteger.
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É com a exultação de um orgulhozinho nacional que lhe digo que aqueles de entre nós que quiseram brindar às sociedades de Paris com a taça das suas abominações, ficaram desapontados. O roubo à vossa Igreja tornou-se uma segurança para os bens da nossa. Levantou o povo. Ele vê com horror, alarmado, este acto enorme e desavergonhado de proscrição. Isto abriu e abrirá cada vez mais os seus olhos para o agravamento do espírito egoísta e a estreita liberalidade de sentimentos de homens insidiosos que, começando com hipocrisia e fraude, às escondidas, acabaram abertamente em violência e rapina. Entre nós observámos idênticos começos. Estamos vigilantes contra idênticas conclusões. Espero que nós nunca percamos completamente o sentido do dever que nos impõe a lei da união da sociedade a ponto de, sob o pretexto de serviço público, confiscar os bens de um só cidadão inofensivo. ~em senão um tirano (um nome que expressa tudo quanto pode viciar e degradar a natureza humana) pode pensar em confiscar a propriedade de homens, que não foram acusados, não foram ouvidos, não foram julgados, em todas as classes, às centenas e aos milhares por junto? ~em , senão quem perdeu todo o traço de humanidade, poderia pensar em rebaixar homens de classe elevada e com funções sagradas, alguns deles de uma idade capaz de suscitar ao mesmo tempo reverência e compaixão, em os derrubar da sua elevada posição na sociedade, na qual se mantinham graças ao facto de possuírem terras, para um estado de indigência, desânimo e desprezo? O s confiscadores em verdade fizeram algumas concessões às suas vítimas dos restos e das migalhas da sua própria mesa- da qual foram tão cruelmente arrancados -que têm sido tão generosamente espalhados para o festim das harpias da usura. Mas levar homens independentes a viver de esmolas é, por si só, uma grande crueldade. Aquilo que pode ser uma condição tolerável para homens numa determinada situação na vida, e que nunca foram habituados a
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outras coisas, pode, quando as circunstâncias são diferentes, ser uma horrível revolução, a cuja condição qualquer alma virtuosa sentiria pena de condenar alguém por qualquer crime, excepto crime que requeresse a vida do criminoso. Para muitas almas este castigo de degradação e infomia é pior que a morte. É, indubitavelmente, um enorme agravamento deste sofrimento cruel, que as pessoas que foram ensinadas a ter redobrada reverência em relação à religião, por educação e pelo lugar que ocupavam na administração das suas funções, tenham de receber as sobras das suas propriedades como esmolas, das mãos profanas e ímpias daqueles que os roubaram de tudo o resto - receber (se é que vão chegar a receber) não das caridosas contribuições dos fiéis, mas da delicadeza insolente de um ateísmo reconhecido e confessado, a manutenção da religião, medida pelo padrão de desprezo em que esta é tida, e com o propósito de tornarem aqueles que recebem a pensão vis e desprezíveis aos olhos da humanidade. Mas este acto de arresto de propriedade parece ser uma sentença legal e não uma confiscação. Parece que eles descobriram nas academias do Palais Royal e dos jacobinos, que alguns homens não tinham direito aos bens que possuíam legalmente, que usavam, que foram objecto de decisão dos tribunais e de prescrição aquisitiva cumulativa de mil anos. Dizem que os eclesiásticos são pessoas fictícias, criaturas do Estado, que eles podem destruir como lhes apraz e, certamente, limitar e modificar em todos os aspectos, que os bens que eles possuem não são propriamente seus, mas pertencem ao Estado que criou a ficção, e nós, portanto, não devemos preocupar-nos com o que eles possam sofrer, nos seus sentimentos e nas suas pessoas naturais, por causa daquilo que lhes é feito nesta sua pessoa fictícia. ~e importância tem a que título se injuriam os homens, e se privam da justa retribuição de uma profissão na qual eles não são apenas autorizados mas são encorajados pelo Estado a envolver-se, que planearam as suas vidas contando com a certeza dessa retribui-
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ção, contraíram dívidas e levaram multidões a uma total dependência dela? Não imagine o Senhor que eu vou prestar tributo a esta miserável discriminação de pessoas com uma longa discussão. Os argumentos da tirania são tão censuráveis quanto a sua força é terrível. Não obtiveram os vossos confiscadores com os seus crimes iniciais um poder que lhes assegura a imunidade de todos os crimes de que , desde então, têm sido culpados ou que poderão vir a cometer? Não era o silogismo do lógico, mas o chicote do carrasco, que teria refutado a sofística que se tornou cúmplice do roubo e do assassínio. Os tiranos sofistas de Paris clamam bem alto contra os falecidos tiranos reais que em tempos passados oprimiram o mundo. Atrevem-se assim, porque estão a salvo das masmorras e das gaiolas de ferro dos seus antigos senhores. Seremos nós mais brandos com os tiranos do nosso tempo, quando os vemos desempenhar as piores tragédias ante os nossos olhos? Não usaremos nós da mesma liberdade que eles usam, quando a podemos usar com a mesma segurança, quando falar verdade apenas nos custa que desprezemos as opiniões daqueles cujas acções abominamos? Este ultraje a todos os direitos de propriedade estava primeiro encoberto com o que, no sistema da sua conduta, era o pretexto mais espantoso de todos- uma preocupação com a lealdade à nação. Os inimigos da propriedade primeiro fingiram a ansiedade mais terna, delicada e escrupulosa em manter os compromissos do rei com o credor público. Estes professores dos direitos do homem estão tão ocupados em ensinar os outros, que não têm tido vagar para aprender eles próprios, de outro modo teriam sabido que é em relação à propriedade do cidadão, e não às exigências do credor do Estado, que é penhorada a lealdade primária e original da sociedade civil. A propriedade dos cidadãos é prioritária no tempo, primordial por direito, e superior em equidade. As fortunas dos indivíduos, quer tenham sido adquiridas, quer tenham sido herdadas, ou obtidas em virtude da participação nos bens de uma determinada comunidade,
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não eram parte da segurança do credor, nem explícita nem implicitamente. Nem ele as tinha em mente quando fez a transação. Sabia muito bem que o público, quer representado por um monarca quer por um senado, não pode penhorar nada a não ser os bens públicos, e não pode ter bens públicos, excepto naquilo que deriva de um imposto justo e proporcional sobre os cidadãos em geral. Apenas isto estava empenhado ao credor público e nada mais. Nenhum homem pode hipotecar a sua injustiça como penhor da sua fidelidade.
É impossível evitar algumas observações às contradições que influenciaram este contrato, causadas pelo extremo rigor e o extremo laxismo desta nova garantia pública, e que influenciaram não de acordo com a natureza da obrigação mas em função do grupo de pessoas com quem se relacionava. Nenhuns actos do antigo governo dos reis de França foram considerados válidos pela Assembleia Nacional, excepto os seus compromissos pecuniários: actos que, entre todos os outros, eram os de legalidade mais ambígua. O resto dos actos desse governo real foram vistos sob uma luz tão odiosa que ter direitos ao abrigo da sua autoridade é olhado como uma espécie de crime. Uma pensão, dada a título de recompensa por serviços ao Estado é, seguramente, um fundamento tão bom de propriedade como qualquer título por dinheiro emprestado ao Estado. É ainda melhor, porque é pago, e bem pago, para se obterem estes serviços. Vimos, contudo, multidões em França a quem isto se aplica, que nunca tinham sido privados das suas pensões pelos ministros mais arbitrários nos períodos mais arbitrários, que por esta assembleia dos direitos do homem foram roubados sem piedade. Tem-lhes sido dito, em resposta ao seu pedido do pão ganho com o seu sangue, que os seus serviços não foram prestados à nação que agora existe. Esta negligência em relação à confiança do povo não está confinada a estas infelizes pessoas. A Assembleia, com perfeita consistência, deve dizer-se, está empenhada numa respeitável deliberação para saber até onde está obrigada a cumprir tratados com outras
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nações celebrados no anterior governo e este comité deve reportar quais deles devem ser ratificados e quais não. Por este processo puseram a fidelidade externa do seu Estado virgem a par com a interna. Não é fácil conceber sob que princípio racional o governo real não deveria, dos dois, possuir antes o poder de recompensar serviços e fazer tratados, em virtude da sua prerrogativa, do que o poder de penhorar a credores o rendimento do Estado, o efectivo e o provável. O tesouro da nação foi, de todas as coisas, aquela que menos se permitiu que fosse prerrogativa do rei de França ou prerrogativa de qualquer rei da Europa. Hipotecar o rendimento público implica o domínio soberano, em sentido pleno, sobre a bolsa do povo. Vai muito além da ousadia de lançar um imposto mesmo temporário e ocasional. Contudo, os actos deste poder perigoso (a marca distintiva de um despotismo sem limites) foram os únicos considerados sagrados. De onde surgiu esta preferência dada por uma assembleia democrática a um conjunto de propriedades derivando o seu direito do mais crítico e detestável de todos os exercícios da autoridade monárquica? A razão não pode dar argumentos que conciliem a inconsistência, nem pode um favorecimento faccioso ser tido em conta sob a tutela de princípios justos. Mas a contradição e a parcialidade que não admite justificação não deixa de ter uma causa justificada, e essa causa não me parece difícil de descobrir. Por causa da grande dívida da França um enorme interesse monetário foi crescendo insensivelmente, e com ele um grande poder. Por causa dos costumes antigos que prevalecem naquele reino, a circulação geral da propriedade, e em particular a convertibilidade mútua de terra em dinheiro e de dinheiro em terra, foi sempre um assunto difícil. O s domínios familiares, bastante mais generalizados e mais fechados do que são em Inglaterra, o jus retractusw', a grande
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1 .T. O j us retraaus é o princípio jurídico pelo qual alguém poderia, compulsoriamente. readquirir bens alienados que anterio rmente tinham pertencido aos seus domínios. '
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massa da propriedade da terra é posse da coroa e, por uma máxima da lei francesa, é posse inalienável, as vastas propriedades das corporações eclesiásticas, tudo isto manteve os interesses da terra e do capital mais separados em França, menos misturáveis, e os donos das duas diferentes espécies de propriedade não tão cordatos uns com os outros como o são neste país. A propriedade do capital foi, durante muito tempo, vista com maus olhos pelo povo. Este via-a relacionada com as suas dificuldades, e como agravante delas. Não era menos invejada pelos antigos interesses do latifúndio - em parte pelas mesmas razões que a tornavam odiosa para o povo- mas mais ainda porque ela eclipsava, pelo esplendor ostensivo do luxo, as linhagens de não dotados e os títulos destituídos de alguma nobreza. Mesmo quando a nobreza, que representa de modo mais permanente o interesse fundiário, se uniu pelo casamento (o que era muitas vezes o caso) com a outra classe, a riqueza, que salvava a família da ruína, supostamente contaminava-a e degradava-a. Assim, a inimizade e a mágoa entre estas duas classes aumentava mesmo à custa dos meios pelos quais habitualmente cessa a discórdia e as querelas se convertem em amizade. Entretanto, por isso mesmo, o orgulho dos ricos, não nobres ou de nobreza recente, aumentava. Ressentiam-se de uma inferioridade cujo fundamento não reconheciam. Não havia medida que não se dispusessem a adoptar para se vingarem dos ultrajes deste outro orgulho rival e para exaltarem a sua riqueza ao que eles consideravam ser o seu próprio nível. Combatiam a nobreza através da coroa e da Igreja. Atacavam-na particularmente pelo lado em que a julgavam mais vulnerável - isto é, os bens da Igreja que, através da protecção da coroa, eram entregues à nobreza. Os episcopados e as grandes abadias comendatórias eram, com poucas excepções, ocupadas por esta classe. este ~stado de verdadeira guerra, embora nem sempre visível, entre os interesses da nobreza antiga com terras e os novos inte-
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resses do capital, a maior força, porque a mais aplicável, estava nas mãos destes últimos. O capital está, pela sua natureza, mais apto para qualquer aventura, e os que o detêm mais dispostos a novos empreendimentos seja de que tipo for. Sendo de recente aquisição, cede mais facilmente às novidades. É por isso o tipo de riqueza a que recorrerão aqueles que aspiram à mudança. Juntamente com o capital, cresceu também um novo tipo de homens, com os quais o capital cedo formou uma união estreita e marcante: refiro-me aos políticos letrados. O s homens de letras, a quem agradam as distinções, raramente são adversos à inovação. Desde o declínio da vida e do fausto de Luís XIV, que não se tinha muito o seu culto, quer por ele, quer pelo Regente 147 , quer pelos sucessores da coroa, nem eram tão sistematicamente empregues na corte por meio de favores e emolumentos como durante o esplêndido período daquele reinado faustoso e político. O que perderam da protecção da antiga corte esforçaram-se por conseguir juntando-se numa espécie de corporação constituída apenas por eles, para a qual contribuíram bastante as duas academias de França e depois o grande empreendimento da Enciclopédia, levada a cabo por uma sociedade destes senhores. A cabala literária há alguns anos que concebeu algo semelhante a um plano regular para a destruição da religião cristã. Perseguiram este objectivo com um grau de zelo que até aqui apenas se tinha encontrado nos que propagavam algum sistema de piedade. Estavam possuídos por um espírito de proselitismo no seu grau mais fanático e, desde aí, progredindo facilmente, com um espírito de perseguição de acordo com os seus meios 148 • O que não se pudesse
"- N .T. Philippe II d'Orléans, que fo i Prínci pe Rege nte desde 17 15 até à sua mo rte em 1723. 148
• Nota do auto r: Isto (até ao fim da primeira frase do próx imo parágrafo) e algumas outras partes, aqu i e ali, fora m inseridas pelo meu fal ecido filh o aquando da sua leitura do man uscri to .
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fazer, tendo em vista o seu grande objectivo, directa ou imediatamente, podia ser trabalhado através de um longo processo por meio da opinião. Para manipular a opinião, o primeiro passo é estabelecer o domínio sobre aqueles que a controlam. Esforçaram-se por se apoderarem de todos os caminhos para a fama literária. Muitos deles, de facto, chegaram aos mais altos níveis da literatura e da ciência. O mundo fez-lhes justiça, e à conta do seu talento em geral, perdoou-lhes a tendência perversa dos seus princípios peculiares. Isto foi verdadeira liberalidade, que eles retribuíram esforçando-se por confinar a reputação de bom-senso, cultura e gosto a si mesmos e àqueles que os seguiram. Atrevo-me a dizer que este espírito limitado e exclusivo não foi menos prejudicial à literatura e ao gosto do que o foi à moral e à verdadeira filosofia. Estes pais do ateísmo têm um fanatismo que lhes é próprio, e aprenderam a falar contra os monges com o espírito de um monge. Mas em algumas coisas são homens do mundo. O recurso à intriga é chamado para suprir os defeitos de argumentação e de talento. A este sistema de monopólio literário juntou-se um constante empenho em denegrir e desacreditar, em todos os aspectos e por todos os meios, todos aqueles que não apoiam a sua facção. Para aqueles que têm observado o espírito da sua conduta há muito que ficou claro que não queriam outra coisa senão poder passar da intolerância da língua e da pena à perseguição que atacasse a propriedade, a liberdade e a vida. A perseguição desconexa e fraca movida contra eles - mais por condescendência com a forma e com a decência do que por ressentimento sério- nem enfraqueceu a sua força nem abrandou os seus esforços. O problema disto tudo foi que com oposição e com sucesso, um zelo violento e pérfido, de um tipo até agora desconhecido no mundo, tomou completamente conta das suas mentes e tornou toda a sua conversa, que de outro modo teria sido agradável e instrutiva, absolutamente repugnante. Um espírito faccioso de intriga e proselitismo impregnava todos os seus pensamentos, palavras e acções. E como o zelo controverso em breve converteu os seus pen-
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samentos em força, começaram a insinuar-se numa correspondência com príncipes estrangeiros, com esperanças de que através da sua autoridade, a qual de início eles elogiavam, conseguissem levar a cabo as mudanças que tinham em vista. Para eles era indiferente se estas mudanças se concretizavam através do relâmpago do despotismo ou do terremoto do motim popular. A correspondência entre esta cabala e o falecido rei da Prússia 149 lança bastante luz sobre o espírito do seu procedimento*150 • Com o mesmo propósito com que teceram intrigas com príncipes, cultivaram de modo especial as relações com o capital de França, e em parte através dos meios fornecidos por aqueles cujo trabalho específico lhes dava o meio de comunicação mais vasto e mais certeiro, ocuparam cuidadosamente todas as vias para o domínio da opinião. Escritores, especialmente quando actuam corporativamente e num mesmo sentido, têm grande influência na mente das pessoas, de resto, a aliança destes escritores com o capital* 151 teve um efeito considerável no remover do ódio e inveja populares que atingiam esta espécie de riqueza. Estes escritores, como os propagadores de todas as novidades, fingem ter um grande zelo pelos pobres e pelas classes mais baixas, enquanto que nas suas sátiras tornam odiosas, pelo seu exagero, as faltas dos tribunais, da nobreza e do clero. Tornaram-se uma espécie de demagogos. Tendo em vista um objectivo, servem de elo de união que une a riqueza odiosa à pobreza desesperada e agitada.
149 N .T. Refere-se a Frederico II d a Prúss ia, conhecido como Frederico o Grande ( 17 12-1 786 ), que era um monarca amante d a cultura e das artes e que mantinha correspondência com alguma da intelectualidade francesa, nomeadamente com Voltaire. ISO "Nota do autor: Prefiro não chocar os sentimentos do leitor decente com alguma citação da sua linguagem vulgar, baixa e blasfe ma. ISI
finança.
•
ora do autor: A sua conexão com T urgor e co m quase rodas as pessoas da
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Porque estes dois tipos de homens parecem ser os principais líderes nos últimos acontecimentos, a sua união e as suas políticas servem de justificação, não a partir de princípios da lei ou de política, mas como uma causa, para a fúria geral com que tem sido atacada roda a propriedade fundiária das ordens religiosas, e o grande cuidado que se tem tomado, contrariamente aos seus alegados princípios, com o capital originado a partir da autoridade da coroa. Toda a inveja contra a riqueza e o poder foi artificialmente dirigida contra outra espécie de ricos. Por que outro princípio, sem ser o que mencionei, poderíamos justificar o fenómeno tão extraordinário e tão pouco natural da aplicação dos bens eclesiásticos - que se mantiveram por tantas gerações e através de choques de violência civil e que foram protegidos, simultaneamente, pela justiça e pelos preconceitos - no pagamento de dívidas, que eram comparativamente recentes e odiosas, contraídas por um governo desacreditado e corrupto? Seriam os bens públicos garantia suficiente para as dívidas públicas? Assumamos que não eram e que uma perda deveria ocorrer em algum lugar. ~ando a única propriedade possuída legalmente, cujas partes contratantes tinham em consideração na altura em que este negócio se fez, falha, quem, de acordo com os princípios da equidade legal e natural, teria de sofrer com isso? Certamente teria de ser ou a parte fiadora ou a parte que os persuadiu a afiançar, ou ambas, e não terceiros que nada tinham a ver com a transacção. Ocorrendo alguma insolvência, deveria sofrer quem tivesse sido tão fraco que tivesse emprestado com tão más garantias, ou aqueles que, por fraude, avançaram com uma garantia que não era válida. As leis não conhecem outras regras de decisão. Mas através desta nova instituição dos direitos do homem, as únicas pessoas que em equidade devem sofrer são as únicas pessoas que deveriam ter sido preservadas do prejuízo: os que devem responder pela dívida, são os que nem emprestaram nem pediram emprestado, não hipotecaram nem aceitaram a hipoteca.
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O que tinha o clero a ver com estas transacções? ~e tinham eles a ver com algum compromisso público para além da sua própria dívida? Por essa dívida, seguramente, responderiam as suas propriedades até ao último acre. Nada nos guia melhor até ao verdadeiro espírito da Assembleia, que se reúne para a confiscação pública, com a sua nova equidade e a sua nova moralidade, do que atender ao seu procedimento em relação a esta dívida do clero. O grupo dos confiscadores, fiéis aos interesses do capital, razão pela qual eram infiéis em relação a todos os outros, acharam que o clero estava qualificado para ser legalmente devedor. Claro que declararam que o clero, legalmente, tinha direito à propriedade, o que a possibilidade de incorrer em dívida e de hipotecar ao Estado implicava, reconhecendo os direitos daqueles cidadãos perseguidos no próprio acto em que esses direitos eram rudemente violados. Se, como disse, alguém devesse compensar o défice aos credores públicos, deveriam ser aqueles que negociaram o acordo. Porquê então, não são confiscadas as propriedades de todos os controladores-gerais ?* 152 Porque não o são as da longa sucessão de ministros, financeiros e banqueiros, que enriqueceram enquanto a nação empobrecia por causa dos seus negócios e dos seus conselhos? Porque é que não é a propriedade do Senhor Laborde que é declarada confiscada em vez da do Arcebispo de Paris, que não teve nada a ver com a criação ou com a especulação dos fundos públicos? Ou, se é preciso confiscar propriedades antigas em favor dos especuladores financeiros , porque é que a penalidade está adstrita a uma só classe? Não sei se com as despesas do Duque de ChoiseuP 53 restou alguma coisa das imensas somas que ele retirou da liberalidade do seu senhor, durante as transações de um reinado que contribuiu largamente - com vários tipos de prodigalidade, na guerra e na paz para a presente dívida de França. Se algo sobrou, porque é que isso 112 113
"Nora do au tor: T odas acabaram por se r confiscadas.
1 .T. Refere-se a Étienn e- François Duque de C hoiseul ( 17 19-1 785), que foi ministro de Luís À'V.
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não foi confiscado? Lembro-me de ter estado em Paris no tempo do antigo governo. Estive aí justamente a seguir ao Duque de Aiguillon1 54 ter sido (era a convicção geral) arrancado do cepo pela mão de um despotismo protector. Era ministro e teve algo a ver com os negócios desse período pródigo. Porque é que eu não vejo a sua propriedade entregue aos municípios onde se situa? Os membros da família nobre de Noailles 155 são há muito tempo servidores (servidores de mérito, admito) da coroa de França e, certamente, beneficiaram em parte das suas mercês, porque é que não ouço nada acerca da aplicação dos seus bens na dívida pública? Porque é que a propriedade do Duque de Rochefoucault é mais sagrada que a do Cardeal de Rochefoucault? 156 Não duvido que o primeiro seja uma pessoa digna, e (se não fosse uma espécie de profanação falar do uso como afectando o direito à propriedade) faz bom uso dos seus rendimentos, mas não é nenhum desrespeito em relação a ele dizer, o que informações fidedignas me autorizam a dizer, que o uso da propriedade de valor idêntico que faz o seu irmão*157, o Cardeal Arcebispo de Rouen, foi muito mais louvável e muito mais animado pelo interesse público. Pode-se ouvir falar que tais pessoas foram proscritas e foram confiscados os seus bens, sem indignação e horror? 's4 N .T. Refere-se a Emm anuel-Armand de Vigno ret du Plessis· Richelieu, Duque d'Aiguillo n ( 1720· 1788), ministro dos negócios estrangeiros de Luís XV, que foi acusado de abuso de pode r em 1770. O caso terá abo n ado pela intervenção do rei Lu ís XV. ISS N.T. Louis-M arie, Visconde de oailles ( 1756- 1804) se rviu sob as ordens do Marquês de Lafayene na Guerra da Independênci a nos Estados U nidos. Fez pane da Assembleia Nacional e propôs, juntamente com Armand-Dés iré de Vignoret du Plessis· Richelieu, novo Duque de Aiguillo n ( 176 1-1 800), a lei votada na noite de 4 de Agosto de 1789, que abuli a os privilégios de certas co munidades, as imunidades mun icipais e os dire itos feudais. Noailles acabou po r fugi r de França e viria a morrer em H avana. 1 6
s N.T. Dominique de la Rochefoucauld ( 17 13-1800 ), C ardeal Arcebispo de Rouen, que viria a exilar-se em Inglaterra. ~amo ao D uque de la Rochefo ucauld, Burke é pouco preciso e não se pode saber a quem se referia já que havia pelo menos dois duques co m o apeli do Rochefoucauld: De la Rochefoucauld d'Anville e De la Rochefoucauld-Liancoun. w ' Nota do autor: Não é seu irm ão ne m nenhum parente próxi mo, mas este erro não afec ta o argu mento.
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Não é homem quem não sente tais emoções em ocasiões como estas. Não merece o nome de homem livre quem não as expressa. Poucos conquistadores bárbaros fizeram uma revolução tão horrível na propriedade. Nenhum dos líderes das facções romanas, quando instituíram crude/em illam hastam 158 em todos os leilões das suas rapinas, jamais pôs à venda bens dos cidadãos conquistados em tão grande quantidade. Deve conceder-se a favor destes tiranos da antiguidade, que o que foi feito por eles dificilmente se pode dizer que tenha sido feito a sangue frio. As suas paixões estavam acesas, os seus temperamentos azedados e o seu entendimento turvado pelo espírito de vingança, com inúmeros e recentes castigos mútuos e retaliações de sangue e de rapina. Eram compelidos a ir além de todos os limites da moderação pelo medo que retornassem ao poder, com o respectivo retorno à propriedade, as famílias daqueles a quem eles tinham prejudicado para lá de qualquer esperança de perdão. Estes confiscadores Romanos, que estavam ainda nos primórdios da tirania e 'não estavam instruídos nos direitos do homem para infligir todo o tipo de crueldades uns aos outros sem provocação, julgaram necessário espalhar um certo colorido sobre a sua injustiça. Consideravam a parte vencida composta de traidores, que tinham empunhado armas, ou que de outro modo qualquer tivessem agido de forma hostil contra a nação. Olhavam-nos como tendo sido privados das suas propriedades por causa dos seus crimes. Convosco, no vosso estado de mentalidade superior não houve tal formalidade. Apoderastes-vos de cinco milhões de libras de renda anual, e arrancastes quarenta ou cinquenta mil seres humanos de suas casas, porque "assim vos aprouve". O tirano Henrique Oitavo de Inglaterra, como não era mais iluminado que os romanos
•ss N.T. Bu rke refere-se ao costume romano de cravar uma espada no chão durante os leilões públicos, o riginalmente significando saque ganho em batalha.
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Mário 159 e Sila 160 , e não tinha estudado nas vossas novas escolas, não sabia que um instrumento eficaz de despotismo se haveria de encontrar nesse grande depósito de armas ofensivas que são os direitos do homem. ~ando resolveu roubar as abadias, como o clube dos jacobinos roubou os eclesiásticos, começou por nomear uma comissão para investigar os crimes e abusos que reinavam nestas comunidades. Como se poderia esperar, a comissão reportou verdades, exageros e mentiras. Mas, com verdade ou sem ela, reportou abusos e ofensas. Contudo, como os abusos se podem corrigir, como nem de todos os crimes das pessoas resulta uma penalização contra as comunidades, e como a propriedade, naquela idade das trevas, não estava identificada como uma criação do preconceito, todos estes abusos (e havia bastantes) dificilmente podiam julgar-se fundamento suficiente para uma tal confiscação, como era seu propósito levar a cabo. Ele então obteve a entrega formal destes bens. Todos estes procedimentos trabalhosos foram adoptados por um dos mais decididos tiranos dos anais da história, como preâmbulos necessários antes que ele se aventurasse, através do suborno dos membros das suas duas Câmaras servis com um quinhão nos despojos, acenando -lhes ainda com uma imunidade nos impostos para sempre, pedir a confirmação deste procedimento iníquo através de uma lei parlamentar. Se o destino o tivesse reservado para os nossos dias, quatro termos técnicos teriam feito o serviço e ter-lhe-iam poupado todo o trabalho, não precisava mais do que uma breve fórmula mágica:
"Filosofia, Iluminismo, Liberalidade e Direitos do Homem ". Não posso dizer nada em louvor destes actos de tirania, que ninguém elogiou ainda sob nenhuma das suas falsas cores, contudo, nestas falsas cores, o despotismo prestava uma homenagem à justiça. O poder, que estava acima de todo o medo e de todo o remorso, não estava acima de toda a vergonha. Enquanto a vergonha se man-
I 59
N.T. Gaius Marius ( 155·86 a. C.).
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N .T. Lucius Cornelius Sila ( 138-78 a. C).
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tém vigilante, a virtude não se extingue por completo no coração, nem a moderação é totalmente banida da mente dos tiranos. ~ero
crer que todos os homens honestos simpatizam nestas reflexões com o nosso poeta político daquele tempo, e pedirão para que se afaste o augúrio sempre que estes actos de despotismo rapace se apresentem aos seus olhos ou à sua imaginação: " ~e
tal tempestade Não caia sobre o nosso tempo, onde a ruína precisa emendar-se Diz-me, minha Musa, que monstruosa, terrível ofensa ~e crimes podem exasperar um rei cristão A uma tal raiva? Foi o luxo, foi o desejo? Era ele tão temperado, tão casto, tão justo? Eram estes os seus crimes? Foram estes e muito mais: ~e riqueza é crime bastante para aquele que é pobre."*16 1 161 "Nota do Auto r: "O resto da passage m é: quem, tendo despendido os tesouros da sua co roa Condena o luxo de outros para alimentar o seu ' E contudo, este acto para dar verniz à ve rgonha do sacrilégio, deve levar nome de Devoção Nenhum crime é tão atrevido, mas se ria compreensível U m bem real, ou pelo menos aparente ~em não teme faze r mal, mas que teme qu ando isso se lhe chama E livre de consciênc ia é um escravo da fama Então ele, ao mesmo tempo, protege a Igreja e a saqueia E dos príncipes, mais do que o estilo, é afi ada a espada E assim aos tempos passados faz justiça, Destrói-lhes a caridade e defende-lhes a devoção Então a religião numa cela ociosa vivia Entretida em contemplação aérea e vazia, E, como um cepo, imóvel ficava: mas a nossa, Activa demais, co mo a cegonha devora. Não há para conhecer uma zona temperada Entre a nossa zona tó rrida e a deles gelada? ão podemos aco rdar deste letárgico sono, Se não para se rmos agi tados n um extremo pior? E para a letargia não havia outra cura Senão ser lançado em tal quentura? Não pode o conh ecimento ter lim ites,
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Esta mesma riqueza, que é sempre traição e crime de leze nation para um despotismo indigente e voraz, sob qualquer tipo de política, foi a vossa tentação para violar a propriedade, a lei e a religião reunidas num mesmo objecto. Mas estaria o Estado francês tão miserável e tão desfeito, que não lhe restasse outro recurso senão a rapina para preservar a sua existência? Sobre este ponto gostava de receber algumas informações. ~ando os Estados [Gerais] se reuniram, as Finanças estavam em tais condições que após economizar em princípios de justiça e de misericórdia em todos os sectores, uma repartição justa dos encargos por todas as ordens não pudesse restaurá-las? Se a imposição equitativa fosse suficiente, o Senhor sabe bem que facilmente se poderia ter feito isto. O Senhor Necker 162 , no orçamento que apresentou às ordens reunidas em Versalhes, fez uma exposição pormenorizada da situação da nação francesa.* 163
e rem de avançar a pom o de nos faze r desej ar a ignorância? Am es na escu ridão ratear o nosso cam inho Do que por um falso guia extraviar-se de di a? ~e m , ve ndo esta grande desgraça Não pe rgum aria que invasor bárbaro saqueou esta terra? Mas quando ouvir que o autor, não foi godo, nem turco mas rei cristão, que trouxe esta desolação ~and o nada se não o nome do zelo Aparece emre as nossas melho res acções e as p iores deles, O que é que acha que o nosso sacrilégio pouparia ~a n do um tal efeito a nossa devoção teri a?"
Cooper 's Hill de Sir John Denham 16
' N .T. J acques Necker foi um banqueiro su íço estabelecido em Paris que foi chamado para Director-Ge ral das Fin anças de 1777 a 178 1, altura em que é demit ido pelo rei por criticar as excessivas despesas da corte. É chamado de novo em 25 de Agosto de 1788, numa tem ativa do rei para evitar a banca rota. ecker impõe ao monarca a convocação dos Estados Gerais. Descom em e com o resultado da convocação, o soberan o dispensa Necker em 11 de J ulho de 1789 o que provoca a insurreição em Paris. ecker volta a ser chamado em 29 de Julho do mesmo ano e fica à cabeça do governo da França até 8 de Setembro de 1790, altu ra em que apresem a a sua demissão e volta para a Suíça. 163
·Nora do Autor: Relatório do Senhor D irector-Ge ral das Finanças, feito por ordem do rei em Versalhes. M aio 5, 1789. [T exto em francês no original.)
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Se lhe dermos crédito, não era necessano ter recorrido a nenhuma nova imposição, fosse qual fosse, para pôr as receitas da França equilibradas com as suas despesas. Ele declarou que os encargos permanentes de todos os departamentos, incluindo os juros de um novo empréstimo de quatrocentos milhões, eram 531,444,000 livres. Os proveitos fixos em 475,294,000: fazendo o défice 56,150,000, ou menos de 2,200,000 libras esterlinas. Mas para equilibrar isto, avançou com poupanças e aumentos de proveitos (considerados como inteiramente certos) em muito mais do que o que soma o défice , e conclui nestes termos enfáticos (p. 39): " ~al é o país, senhores, onde, sem impostos, e com objectivos simples e imperceptíveis, se pode fazer desaparecer um défice que tanto alarido causou na Europa!" 164 ~amo ao reembolso, à amortização da dívida e a outros grandes objectivos do crédito público e dos arranjos políticos referidos no discurso do Senhor Necker sem dúvida que podem ser considerados, mas uma tributação muito moderada e proporcional sobre todos os cidadãos sem distinções teria sustentado todos eles plenamente na medida das suas necessidades. Se este quadro do Senhor Necker era falso então a Assembleia é culpada no mais alto grau por ter forçado o rei a aceitá-lo como ministro e, desde que o rei foi deposto, por tê-lo empregado enquanto seu ministro, um homem que tinha sido capaz de abusar tão notoriamente da confiança do seu Senhor e da deles mesmos, numa matéria que era da mais alta importância e que pertencia directamente ao seu pelouro. Mas, se o quadro estava certo (tendo eu tido sempre, tal como vós, um grande respeito pelo Senhor Necker, não tenho dúvida de que estava), então o que é que pode ser dito em abono daqueles que, em vez de uma contribuição geral, moderada e razoável, a sangue frio e sem necessidade, recorreram a uma confiscação facciosa e cruel?
1 6;
N.T. Texro em francês no original.
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Seria esta contribuição recusada sob o pretexto de privilégio por parte do clero ou por parte da nobreza? Certamente que não. ~amo ao clero, eles até se anteciparam na satisfação dos desejos da terceira ordem. Antes da reunião dos Estados, tinham dado ordens expressas em todas as instruções aos seus representantes para renunciarem a toda a imunidade que os colocasse em pé de desigualdade em relação à condição dos seus concidadãos. Nesta renúncia o clero foi ainda mais explícito que a nobreza. Mas suponhamos que o défice se manteve nos cinquenta e seis milhões (ou 2,200,000 libras esterlinas), como primeiro foi declarado pelo Senhor Necker. Admitamos que todos os recursos que ele contrapôs ao défice eram ficções sem fundamento e imprudentes e que a Assembleia (ou os seus Lords ofArticles* 165 nos Jacobinos) estavam, assim, justificados por terem lançado todo o fardo do défice sobre o clero - ainda admitindo tudo isso, a necessidade de 2,200,000 libras esterlinas não justifica a confiscação de um montante de cinco milhões. A imposição de 2,200,000 libras sobre o clero, sendo facciosa, teria sido tirânica e injusta, mas não teria sido completamente ruinosa para aqueles a quem era imposta, e assim não teria cumprido as verdadeiras intenções dos seus gerentes. Talvez quem não esteja inteirado do estado da França, ao ouvir que o clero e a nobreza eram privilegiados no que diz respeito aos impostos, podem ser levados a imaginar que, antes da revolução, estas classes não tinham contribuído nada para o Estado. Isso é um grande equívoco. Certamente não contribuíram ambos por igual, nem cada um deles em paridade com o povo. Contudo, ambos contribuíram largamente. Nem a nobreza nem o clero gozaram de isenções no que diz respeito ao imposto sobre bens consumíveis, às taxas alfandegárias, ou de muitos outros impostos indirectos, que em França, bem como em Inglaterra, constituem uma larga fatia 165 • 1ota do Autor: Na Constituição escocesa, durante o reinado dos Stuart estabeleceu-se um comité para preparar os projectos de lei e nenhum projecto lei passava sem ser primeiro aprovado por eles. Este Comité era chamado de Lords Articles.
oJ
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da contribuição pública. A nobreza pagava a capitação. Pagavam também um imposto sobre terras chamado o Vigésimo penny até à taxa de 3 ou mesmo 4 shillings 166 numa libra: ambos impostos directos, que não eram leves e cujo rendimento não era pouco. O clero das províncias anexadas à França pelas conquistas (que em extensão perfazem uma oitava parte do todo, mas em riqueza representam uma proporção muito maior) pagava igualmente a capitação e o Vigésimo penny à mesma taxa que era paga pela nobreza. O clero das velhas províncias não pagava a capitação, mas tinha-se isentado ao custo de vinte e quatro milhões, mais ou menos um milhão de esterlinas. Estavam isentos do Vigésimo mas faziam doações livremente, endividavam-se pelo Estado e estavam sujeitos a muitas outras taxas, que ascendiam a 13% do seu rendimento líquido. Deveriam ter pago anualmente cerca de 40,000 libras a mais para ficarem a par da contribuição da nobreza. ~ando
os horrores desta tremenda proscrição pendiam sobre o clero, este ofereceu uma contribuição, através do Arcebispo de Aix, a qual não deve ter sido aceite pela sua extravagância. Mas era óbvia e evidentemente mais vantajosa para o credor público do que qualquer outra coisa que pudesse racionalmente prometer-se obter através da confiscação. Porque é que não foi aceite? A razão é simples: não havia qualquer vontade que a Igreja fosse levada a servir o Estado. O serviço do Estado constituiu-se num pretexto para destruir a Igreja. No seu método para a destruição da Igreja eles não tinham escrúpulos em destruir o seu país, e destruíram-no. Um dos grandes objectivos do projecto teria fracassado se o plano de extorsão tivesse sido adoptado em vez do esquema de confiscações. Os novos interesses fundiários ligados à nova república, e ligados a ela para existirem, não se poderiam ter criado. Esta foi uma das razões porque aquele resgate extravagante não foi aceite.
166
N .T. No século X V III um a libra valia 20 shillings ou 240 penny.
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A loucura do projecto de expropriação, no plano inicialmente previsto, depressa se tornou evidente. Levar aquela massa imensa de propriedades, alargada pela confiscação de vastos domínios de terras da coroa, ao mesmo tempo para o mercado era, obviamente, frustrar os proveitos planeados com a expropriação, pela desvalorização destas terras e, em bom rigor, pela desvalorização de todas as propriedades por toda a França. Este súbito desvio do dinheiro em circulação, do comércio para as terras, deve ser um prejuízo adicional. ~e medida foi tomada? A Assembleia ao tomar consciência dos maus efeitos que teria esta venda planeada recuou aceitando as ofertas do clero? Nenhuma aflição poderia forçá-los a tomar um caminho errado mesmo que aparentasse ser justo. Abandonando todas as esperanças de uma venda geral imediata, outro projecto vingou. Propuseram-se comprar acções em troca das terras da Igreja. Neste projecto surgiram grandes dificuldades ao tentar encontrar uma equivalência entre os objectos a trocar. Surgiram outros obstáculos que fizeram com que eles recuassem e pensassem outra vez em algum projecto de venda. Os municípios alarmaram-se. Não queriam ouvir falar na transferência de todo o saque do reino para os accionistas de Paris. Muitos destes municípios foram (por sistema) reduzidos à indigência mais deplorável. Não se via dinheiro em lado nenhum. Tinham-nos conduzido assim ao ponto tão ardentemente desejado. Ansiavam por uma moeda qualquer que pudesse fazer reviver a sua indústria moribunda. Os municípios foram então admitidos a participarem na partilha dos despojos, o que, evidentemente, tornou o primeiro plano (se é que ele alguma vez foi verdadeiramente considerado) completamente impraticável. As exigências municipais pressionavam por todos os lados. O Ministro das Finanças reiterou o seu pedido de provisão com o tom mais urgente e ansioso de mau presságio. Assim, pressionados por todos os lados, em vez do plano inicial de converter os seus bispos e abades em banqueiros, em vez de pagarem a dívida antiga, contraíram uma nova dívida, a três por cento, criando um novo papel-moeda, fun-
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dado numa eventual venda das propriedades da Igreja. Emitiram este papel-moeda para satisfazer, em primeiro lugar, sobretudo, as exigências que lhes foram feitas pelo bank of discount 167 , a grande máquina ou fábrica de papel da sua riqueza fictícia. O espólio da Igreja tornara-se agora o único recurso de todas as suas operações financeiras, o princípio vital de todas as suas políticas, a única segurança para a existência do seu poder. Era necessário, por todos os meios, mesmo os mais violentos, pôr todos num mesmo pé, comprometer a nação com este lucro criminoso ratificando este acto e a autoridade daqueles que o cometeram. Com o objectivo de forçar os mais relutantes a uma participação na sua pilhagem, tornaram a circulação do papel-moeda compulsória em todos os pagamentos. Todos aqueles que consideram que a tendência geral dos seus planos tem como centro este objectivo, e um centro a partir do qual todas as suas medidas irradiam, não acharão que me demorei demasiado a considerar esta parte das acções da Assembleia Nacional. Para acabar com qualquer aparência de conexão entre a coroa e a justiça públicas e para levar o todo a uma obediência implícita aos ditadores de Paris, a antiga magistratura independente dos Parlamentos, com todos os seus méritos e todos os seus defeitos, foi completamente abolida. Enquanto os Parlamentos existiram era evidente que o povo poderia, num momento ou noutro, recorrer a eles e unir-se sob a divisa das leis antigas. Tornou-se, todavia, um assunto a reflectir o facto de que os magistrados e os oficiais dos tribunais agora abolidos tinham comprado os seus lugares por um valor muito alto, por eles e pelo papel que desempenhavam, receberam um rendimento de valor muito baixo. A confiscação simples é uma mercê feita apenas ao clero: para os advogados há que observar alguma aparência de equidade e eles estão para receber indemnizaw N .T. Trata-se da Caisse d 'escompte que foi o único banco autorizado a emitir notas até 1793, al tura em que foi extinto.
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ções de elevado montante. As suas indemnizações tornaram-se parte da dívida nacional, para cuja liquidação apenas existe um mesmo fundo inesgotável. Os advogados vão obter a sua compensação com o novo papel moeda da Igreja, o que há-de avançar com os novos princípios judiciais e legislativos. Os magistrados dispensados ou recebem a sua quota parte de martírio com os eclesiásticos, ou recebem a sua propriedade deste fundo e desta maneira, e hão -de olhar para isto com horror, como todos aqueles que foram habituados aos antigos princípios de jurisprudência e juraram ser guardiães da propriedade. Mesmo o clero deve receber a sua pensão nesse papel moeda desvalorizado, impresso com o indelével carácter de sacrilégio e com os símbolos da sua própria ruína, ou então morrer de fome. Em qualquer que seja o período e qualquer que seja a nação, raramente se viu uma ofensa tão grave contra o crédito, apropriedade e a liberdade, como este papel moeda obrigatório, proveniente da aliança entre a bancarrota e a tirania. No decurso de todas estas operações revela-se por fim o grande arcanum: que, na realidade, e justamente, as terras da Igreja (até onde algo de certo se pode concluir do seu procedimento) não são para vender. Pelas últimas resoluções da Assembleia Nacional, elas são de facto para ser entregues à melhor oferta. Mas deve observar-se que apenas uma certa porção do dinheiro da compra é para ser depositado. Um período de doze anos será dado para o pagamento do resto. Os compradores filosóficos são, contudo, postos de imediato na posse da propriedade, mediante o pagamento de uma espécie de caução. Em certos aspectos isto torna-se uma espécie de mercê que lhes é feita, para ser tida, como a posse feudal, pelo seu zelo pelo novo regime. Este projecto é evidentemente para um grupo de compradores sem dinheiro. A consequência será que estes compradores, ou antes, concessionários, pagarão, não apenas com as rendas à medida que elas aumentam, que poderiam também ser recebidas pelo Estado, mas com o espólio de materiais de edifícios, com a devastação das florestas , e com quaisquer dinheiros que, mãos habi-
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tuadas à usura, hão-de espremer do pobre agricultor. O qual é para ser entregue aos mercenários e à descrição arbitrária de homens que serão estimulados a roda a espécie de extorsão pelas crescentes exigências feitas a lucros crescentes de uma propriedade mantida sob o acordo precário de um novo sistema político. Ao mesmo tempo que rodas as fraudes, imposturas, violências, rapinas, incêndios, assassinatos, expropriações, circulação compulsiva do papel-moeda e rodo o tipo de tirania e crueldade empregue para levar a cabo e para sustentar esta Revolução exercem o seu efeito natural, isto é, chocar os sentimentos morais de rodas as almas virtuosas e sóbrias, os cúmplices deste sistema filosófico logo enrouquecem a clamar contra o velho governo monárquico de França. ~ando eles tiverem denegrido bastante a imagem deste poder deposto, prosseguirão então com o argumento, como se rodos aqueles que desaprovam os recentes abusos tenham que ser forçosamente partidários dos antigos, como se aqueles que reprovam os seus projectos crus e violentos de liberdade tivessem de ser tratados como defensores da servidão. Admito que as suas necessidades os obriguem a esta fraude baixa e deplorável. Nada reconcilia melhor as pessoas com os seus procedimentos e os seus projectos do que a suposição de que não há uma terceira opção entre eles e uma tirania tão odiosa quanto a que pode ser fornecida pelos registos da história ou pela invenção dos poetas. Esta sua tagarelice dificilmente merece o nome de sofística. É simplesmente falta de vergonha. Será que estes cavalheiros nunca ouviram falar, em todo o círculo dos mundos da teoria e da prática, de nada existente entre o despotismo do monarca e o despotismo da multidão? Nunca terão ouvido falar de uma monarquia dirigida por leis, controlada e balanceada pela grande riqueza hereditária e pela dignidade hereditária de uma nação, e ambas mais uma vez verificadas por um judicioso controlo da razão e do sentimento do povo em geral, actuando através de órgão adequado e permanente? É então impossível que se encontre um homem que, sem intenção criminosa, ou sem ser lamentavel-
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mente absurdo, prefira um governo misto e moderado a qualquer dos extremos, e que possa acusar esta nação de ser completamente destituída de sabedoria e de virtude, de tal modo que, tendo possibilidade de escolher obter um tal governo facilmente, ou melhor, ratificá-lo quando dejàcto o possuíam, achou melhor cometer milhares de crimes e sujeitar o seu país a males infindáveis, a fim de evitá-lo? Será então uma verdade tão universalmente reconhecida que uma democracia pura é a única forma tolerável na qual a sociedade humana tenha que se precipitar, que não se permite a um homem hesitar acerca dos seus méritos sem a suspeita de ser um amigo da tirania, isto é, de ser um inimigo da humanidade? Não sei em que categoria classificar a autoridade que neste momento dirige a França. ~er aparentar ser uma pura democracia, embora eu a julgue a caminhar em linha recta para se tornar em breve uma oligarquia pérfida e ignóbil. Para já admito que seja um capricho da natureza e um efeito daquilo que pretende ser. Não reprovo nenhuma forma de governo baseado apenas em princípios abstractos. Pode haver situações em que a democracia pura se torne necessária. Pode haver alguns casos (muito poucos e em circunstâncias muito particulares) onde possa ser claramente desejável. Não creio ser esse o caso de França, ou o de nenhum outro grande país. Até agora, não vimos exemplos consideráveis de democracias. O s antigos estavam mais familiarizados com elas. Não sendo completamente iletrado acerca dos autores que viram a maior parte dessas constituições, e que melhor as entenderam, não posso deixar de concordar com a sua opinião de que uma democracia absoluta, bem como a monarquia absoluta, não são para ser contadas entre as formas legítimas de governo. Pensam que ela é mais a corrupção e degeneração do que a constituição sólida de uma república. Se bem me lembro, Aristóteles observa que uma democracia tem muitos pontos de uma semelhança impressionante com a tirania*168 . 168 • 1ota do autor: ~ando escrevi isto ci tei de memória depois de vários anos terem passado sobre a minha leitura da passagem. U m amigo entendido encontrou-a e
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Disto eu tenho a certeza, que numa democracia a maioria dos cidadãos é capaz de exercer as opressões mais cruéis sobre a minoria, sempre que prevalecem fortes dissensões neste tipo de política, como devem acontecer frequentemente , e esta opressão da minoria estender-se-á a números muito maiores, e será levada a cabo com muito mais fúria do que aquela que se pode temer sob o domínio de um único ceptro. Nesta perseguição popular as vítimas estão numa condição muito mais deplorável do que em qualquer outra. Sob o domínio de um príncipe cruel têm o bálsamo da compaixão da humanidade para suavizar as suas feridas, têm o aplauso das pessoas para animar a sua generosa constância no sofrimento: mas aqueles que estão sujeitos à injustiça por parte das multidões estão privados de toda a consolação externa, parecem ter sido abandonados pela humanidade, subjugados por uma conspiração da espécie inteira. Mas admitindo que a Democracia não tem esta tendência inevitável para a tirania de partido, a qual eu suponho que tem, e admitindo que ela possui tanto de bom quando pura quanto estou certo que terá quando composta com outras formas , será que a monarquia não tem nada que a torne recomendável? Eu não cito muitas vezes Bolingbroke, nem as suas obras, em geral, deixaram impressão indelével em mim. É um escritor superficial e presunçoso. Mas tem uma observação que, na minha opinião, tem profundidade e solidez. Afirma que prefere a monarquia a outros governos,
é corno se segue: To 118oÇ TO auTo, Kat a~$ w o~:cr rro nKa T(!)V ~ t: À n ovov , Kat Ta '1'11$1cr~ a T a wcrrrt: p l:Kl: l Ta ~:rr nay ~ aTa , Kat o 0 11~aywy o cr Kat o KoÀaÇ 0 1 U\.JTO I KUI ava Àoyov Kat ~U À IOTU l:KUT!:p0 1 1!Up l:KU T!:pO IÇ IOK\.J O\.JOI V,OI ~ ~: v KOÀaKt:cr rrapa wpavvo 1Ç, 0 1 01: 0 11~ aywyo 1 rrapa TO lO 0 11~ 0 10 1:01Ç 1:010\.JTO IÇ. (Tradução proposta por Burke:) "O carácter ét ico é o mesmo: ambos exe rci tam o despot ismo sobre a melho r cl asse dos cidadãos, e os decretos são para um, o que o rdenan· ças e juízos são para o outro: também o dem agogo e o favo rito d a corte são frequenrernen· te os mesmos homens, e têm sempre urna analogia próxi ma; e estes têm o poder maior, cada um nas suas respectivas fo rmas de gove rno, favo ritos co m o mo narca absoluto, e os de magogos co m o povo, tal co rno desc revi" Arist. Pol. Li v. IV, cap. 4.
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porque se pode mais facilmente inscrever qualquer tipo de república numa monarquia do que qualquer coisa de monárquico em formas republicanas. Penso que ele está perfeitamente cerro. Esse é o facto, historicamente, e é compatível com a teoria. Eu sei que é um assunto muito apetecido falar das faltas dos grandes após a sua queda. Por uma revolução no Estado o adulador sicofanta de ontem converte-se no austero crítico de hoje. Mas os espíritos firmes e isentos, quando têm um assunto tão importante para a humanidade como o governo para analisar, recusam assumir o papel de cínicos ou de pregadores. Julgarão as instituições humanas como julgam o carácter humano. Separarão o bom do mau, que sempre aparece misturado nas instituições humanas do mesmo modo que aparece misturado nos homens morrais. O vosso governo em França, embora usualmente, e penso que justamente, reputado como a melhor das inqualificáveis, ou mal qualificadas, monarquias, estava cheio de abusos. Estes abusos acumularam-se durante um certo tempo, como acaba por acontecer em toda a monarquia que não está sob a inspecção constante de um representante do povo. Não sou alheio às faltas e defeitos do governo francês deposto, e penso que não sou inclinado, por natureza nem por política, a fazer o panegírico sobre o que quer que seja que mereça justa censura. Mas a questão agora não são os vícios dessa monarquia, mas a sua existência. É então verdade que o governo de França estava de tal modo que fosse incapaz de reforma nem a merecesse, que fosse absolutamente necessário que roda a estrutura tivesse de ser deitada abaixo e o terreno limpo para permitir levantar uma construção teórica e experimental no seu lugar? A França toda era de opinião diferente no início do ano 1789. As instruções para os representantes aos Estados Gerais, de rodos os distritos desse reino, estavam cheias de projectos para a reforma do governo, sem a mais remota sugestão de qualquer intenção de o derrubar. Se essa intenção tivesse sido, nessa altura, insinuada sequer, acredito que só haveria uma voz e essa voz seria para rejeitar o propósito com
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desprezo e horror. Os homens às vezes são conduzidos gradualmente outras empurrados para coisas, que se tivessem podido ver todo o conjunto, nunca se teriam permitido a mais remota aproximação. ~ando estas instruções foram dadas, não se punha em questão de que teriam havido abusos e que esses abusos requeriam uma reforma, como agora também não se põe. No intervalo entre as instruções e a Revolução as coisas mudaram de forma e, em consequência desta mudança, a verdadeira questão agora é se são os que teriam reformado ou os que destruíram tudo que estão certos. Ouvir alguns homens falar da extinta monarquia de França, pensa-se que estão a falar da Pérsia sangrando sob a espada feroz de Thamas Kouli Khan 169 , ou no mínimo a descrever o despotismo anárquico e bárbaro da Turquia, onde os melhores campos no mais fantástico dos climas são devastados pela paz mais do que quaisquer outros países foram perturbados pela guerra, onde as artes são desconhecidas, as manufacturas agonizam, a ciência está extinta, a agricultura decadente, onde a própria raça humana se dissipa e perece diante dos olhos do observador. Era este o caso de França? Não tenho maneira de resolver a questão senão por referência a factos. Os factos não apoiam esta comparação. Juntamente com muita coisa má, há algo de bom na própria monarquia. A monarquia de França deve ter recebido algum remédio para os seus males da religião, dos costumes, das convicções, o que a tornou um despotismo mais na aparência que na realidade, se bem que não a tenha tornado livre, e logo não a tenha tornado numa boa constituição. Entre os padrões pelos quais se devem medir os efeitos de um governo num país qualquer considero o estado da sua população como um dos mais seguros. Nenhum país no qual a população está florescente e está a prosperar progressivamente pode estar sob um governo muito mau. Há cerca de sessenta anos os Intendentes das
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-1747.
N.T. T ambém conhecido por
ãder Shãh Afs hãr, rei da Pérsia entre 1736-
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Généralités 170 de França fizeram, juntamente com outros assuntos,
um relatório sobre a população dos seus vários distritos. Não tenho os livros comigo que são muito volumosos, nem sei onde os encontrar (sou obrigado a falar de memória e a estar, por isso, menos seguro), mas eu penso que a população de França, mesmo naquele período, estimava-se em 22 milhões de almas. No final do século passado foi geralmente calculada em 18 milhões. Em qualquer destas estimativas a França não estava mal povoada. O Senhor Necker, que é uma autoridade para o seu tempo, pelo menos tão importante quanto os intendentes no tempo deles, regista, e aparentemente baseado em princípios seguros, a população de França, no ano de 1780, em vinte e quatro milhões seiscentos e setenta mil pessoas. Mas seriam essas as últimas estimativas da população sob o antigo regime? O Dr. Price é de opinião que o crescimento da população em França de modo algum esteve no seu auge nesse ano. Eu, certamente, concedo mais crédito à autoridade do Dr. Price nestas especulações do que concedo à sua política em geral. Este Senhor, baseando -se nos dados do Senhor Necker, está muito confiante de que, desde o período dos cálculos deste ministro, a população de França aumentou muito rapidamente, tão rapidamente, que no ano de 1789 ele pensa que ela não era inferior a trinta milhões. Depois de um grande desconto (e penso que temos de dar um grande desconto) ao cálculo optimista do Dr. Price, não tenho dúvidas que a população de França aumentou consideravelmente neste último período: mas, supondo que ela aumentou não mais que o suficiente para passar dos vinte e quatro milhões seiscentos e setenta mil para os vinte e cinco milhões, mesmo assim, uma população de vinte e cinco milhões e em franco progresso num espaço de vinte e sete mil léguas quadradas, é imenso. É, por exemplo, muito maior em proporção do que a população desta ilha, ou mesmo de Inglaterra, que é a parte mais povoada do Reino Unido.
n
N .T. U nidade administrativa do Ancien Régime.
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Não é verdade universal que a França seja um país fértil. Consideráveis extensões de França são estéreis e trabalhadas sob outras desvantagens naturais. Em partes deste território onde as coisas são mais favoráveis, até onde consigo descortinar, os números da população correspondem à benevolência da natureza* 17 1• A Comarca de Lisle, (admito que este seja o exemplo mais significativo), numa extensão de quatrocentas e quatro léguas e meia, dez anos atrás tinha setecentos e trinta e quatro mil e seiscentas pessoas, o que significa mil setecentos e setenta e dois habitantes por légua quadrada 172 • A média para o resto de França é de cerca de novecentos habitantes para o mesmo espaço. Não atribuo esta população ao governo deposto, porque não gosto de felicitar os homens por feitos que em grande parte se devem à bondade da Providência. Mas aquele governo desacreditado não pode ter obstruído, e o mais provável é que tenha favorecido, a acção das causas (quaisquer que elas fossem) , quer de natureza do solo, quer de hábitos de trabalho das populações, que produziram um tão grande número de membros da espécie em todo aquele reino e que exibe, em lugares particulares, tais prodígios de povoamento. Nunca hei-de julgar aquela estrutura de Estado como a pior de todas as instituições políticas, a qual, por experiência se verifica, contém um princípio favorável (por muito latente que seja) ao aumento da humanidade. A riqueza de um país é outro indicador a não menosprezar pelo qual podemos julgar se, no todo, o governo é protector ou destruidor. A França excede em muito Inglaterra no grande número de população, mas temo que a sua riqueza comparativa seja muito inferior à nossa, que não é tão equitativa na distribuição, nem tão expedita na circulação. Acredito que a diferença de forma entre os n • 1ota do au tor: De L 'Administration des Finances de France, par M. Necker. Vol. !, p. 288. ,-,
N.T. Por cada 25 km' .
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dois governos esteja entre as causas da vantagem de estar do lado da Inglaterra: falo da Inglaterra, não da totalidade dos domínios britânicos - cujos dados, se comparados com os de França, em certa medida enfraqueceriam o valor comparativo da riqueza a nosso favor. Mas essa riqueza, que não resistirá a uma comparação com as riquezas de Inglaterra, pode constituir um grau de opulência muito respeitável. O livro do Senhor Necker, publicado em 17 85, contém uma acurada e interessante colecção de factos relativos à economia pública e à aritmética política, e as suas especulações sobre o assunto são em geral sensatas e liberais. Nesta obra, ele dá uma ideia do estado da França, muito longe do retrato de um país cujo governo fosse absolutamente injusto, um mal absoluto, que não admitisse cura senão através do remédio violento e incerto de uma revolução total. Ele afirma que desde o ano de 1726 até ao ano de 1784 foi cunhada moeda na Casa da Moeda de França, em espécies de ouro e prata, até ao montante aproximado de cerca de cem milhões de libras esterlinas*173 •
É impossível que o Senhor Necker estivesse errado acerca da quantidade de metal precioso cunhado na Casa da Moeda. Isso é objecto de registo oficial. Os raciocínios deste financeiro hábil que dizem respeito à quantidade de ouro ou prata que restavam para circulação, quando ele escreveu em 1785, isto é, quatro anos antes da deposição e detenção do rei francês, não são de igual precisão, mas estão baseados em fundamentos aparentemente tão sólidos que é difícil não concordar bastante com os seus cálculos. Ele calcula o numéraire, ou o que nós chamamos espécie, efectivamente existente em França na altura, em aproximadamente oitenta e oito milhões do mesmo dinheiro inglês. É uma grande acumulação de riqueza para um país, por muito vasto que ele seja! O Senhor Necker, quando escreveu em 1785, estava tão longe de considerar que este fluxo de riqueza estava prestes a acabar, que prevê um aumento anual de n
"Nota do autor: Vol. III, Caps. 8 e 9. [Refere-se à obra: M. Necker, De
L 'Administration des Finances de France. ]
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dois por cento no fururo sobre o dinheiro trazido para França durante os períodos que servem de base ao seu cálculo. Alguma causa adequada deve ter introduzido originariamente rodo o dinheiro cunhado na sua Casa da Moeda naquele reino, alguma ourra causa igualmente eficaz pode tê-lo mantido na pátria, ou ter feito voltar ao seu seio um tão vasto fluxo do tesouro como o Senhor Necker calcula que resta para a circulação doméstica. Supondo que se fazem algumas deduções aos cálculos do Senhor Necker o que resta deve ser ainda uma soma imensa. Causas assim poderosas para adquirir e poupar não se podem encontrar com uma indústria desmoralizada, uma propriedade insegura, e um governo positivamente desrrurivo. De facto , quando eu considero o Reino de França tal como ele me aparece, o sem-número e a opulência das suas cidades, a útil magnificência das suas estradas espaçosas e das suas pontes, quão oportunos são os seus canais artificiais e navegações abrindo a facilidades de comunicação marítima através de um continente maciço de uma extensão imensa, quando volto os meus olhos para o estupendo trabalho dos seus portos e abrigos, e para rodo o seu aparato naval, quer de guerra quer de comércio, quando me deparo com o número das suas fortalezas, construídas com audácia e perícia de mestre, feitas e mantidas a tão grande custo, apresentando uma fronte armada e uma barreira impenetrável para os seus inimigos de rodos os lados, quando me lembro que apenas uma pequena parte dessa extensa região está sem cultivo, e a perfeição total com que foi feita a cultura de muitas das melho res produções da terra que foram introduzidas em França, quando reflicto na excelência das suas manufacturas e dos seus tecidos, a nenhuns, excepto aos nossos, inferiores e, em alguns aspectos, nem aos nossos são inferiores, quando vejo as grandes instituições de caridade, públicas e privadas, quando examino o seu estado nas artes que aperfeiçoam e refinam a vida, quando me lembro dos homens que ela gerou que levaram longe a sua fama na guerra, os seus homens de Estado hábeis, a multidão dos seus profundos legisladores
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e teólogos, os seus filósofos, os seus críticos, os seus historiadores e arqueólogos, os seus poetas e os seus oradores, sacros e profanos, eu vejo em tudo isto algo que inspira temor e domina a imaginação, que acautela a mente à beira da censura precipitada e indiscriminada e que requer que examinemos seriamente quais e quão grandes são os vícios latentes que nos poderiam autorizar a deitar por terra de imediato uma tão vasta estrutura. Não reconheço nesta visão das coisas o despotismo da Turquia. Nem detecto aí o carácter de um governo que tivesse sido no seu rodo tão opressivo, ou tão corrupto, ou tão negligente de tal modo que fosse totalmente impróprio para qualquer reforma. Devo pensar que um tal governo bem merecia ver valorizados os seus bons aspectos, as suas faltas corrigidas e as suas capacidades melhoradas ao nível da Constituição Britânica. ~em quer que tenha examinado as medidas do governo deposto durante os últimos anos não pode deixar de ter observado, no meio da inconstância e da flutuação natural nas corres, um sincero esforço visando a prosperidade e o melhoramento do país e tem de admitir que este esforço há muito que é empregue, em algumas instâncias para eliminar completamente, em muitas para corrigir consideravelmente, as práticas e costumes abusivas que tinham predominado no Estado, e que mesmo o poder ilimitado do soberano sobre as pessoas dos seus súbditos, inconsistente, como sem dúvida o era, com a lei e a liberdade, todavia, a cada dia se tornava mais brando no seu exercício. Longe de recusar reformar-se, este governo estava aberro, com um grau de facilidade repreensível, a rodo o tipo de projectos de reforma e de reformadores. Talvez tivesse sido dada demasiada expressão ao espírito de inovação, que cedo se voltou contra os que o tinham adoptado e acabou por ser a sua ruína. É apenas uma justiça fria , e não muito lisonjeira, feita aquela monarquia derrubada, dizer que durante muitos anos, em muitos dos seus planos, prevaricou mais por leviandade e falta de discernimento do que por falta de diligência ou de espírito público. Não seria justo comparar o governo de França dos últimos quinze ou
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dezasseis anos com instituições sábias e bem constituídas, nesse ou noutro período. Mas se no que diz respeito à prodigalidade no gasto de dinheiro ou no que respeita ao rigor no exercício do poder é comparável com qualquer um dos reinados anteriores, acredito que juízes imparciais darão pouco crédito às boas intenções daqueles que perpetuamente insistem nas doações aos favoritos, nas despesas da coroa e nos horrores da bastilha do reinado de Luís Dezasseis. 174 • Se o sistema, se é que merece esse nome, agora construído sobre as ruínas dessa antiga monarquia, será capaz de dar melhor conta da população e da riqueza do país que tem a seu cuidado é matéria muito duvidosa. Em vez de melhorar com a mudança, eu penso que uma longa série de anos precisam contar-se antes que a França possa recobrar, em certa medida, dos efeitos desta Revolução filosófica e antes que a nação possa estar de novo no pé em que estava anteriormente. Se o Dr. Price achar por bem fornecer-nos, daqui a alguns anos, uma estimativa da população de França, dificilmente conseguirá recompor a sua fábula dos trinta milhões de almas, segundo o cômputo de 1789, ou a contagem da Assembleia de 26 milhões nesse ano, ou mesmo os vinte e cinco milhões do Senhor Necker em 1780. Ouvi que há considerável emigração em França, e que muitos dos que emigram, deixando aquele voluptuoso clima e aquela sedutora liberdade circeana 175, procuraram refúgio nas regiões geladas do Canadá sob o despotismo britânico. No presente desaparecimento da moeda, ninguém poderia pensar que era o mesmo país onde o actual ministro das finanças foi capaz de descobrir oitenta milhões de esterlinas em espécie. A partir do aspecto geral poderíamos concluir que ele teria estado desde há algum tempo sob a especial direcção de sábios académicos de n • 1ota do Autor: O mundo está grato ao Senho r de C alonne pelo trabalho que de teve a refutar os exageros escandalosos relativos aos montantes das despesas reais e no detectar as contas falsas dadas sobre as pensões, com os propósitos perversos de provo· car a populaça e fazê-los co meter roda a espécie de crimes.
n
em porcos.
N.T. Liberdade de Ci rce a feiticeira da Odisseia que transfo rm ava os homens
203
Laputa e Balnibarbi 176 • A população de Paris já decresceu tanto que o Senhor Necker apresentou à Assembleia Nacional a provisão a ser feita para a sua subsistência diminuída de um quinto em relação à que anteriormente tinha sido julgada necessária* 177 • Tem sido dito (e nunca ouvi ser desmentido) que cem mil pessoas estão desempregadas em Paris, embora se tenha tornado a sede da Corre aprisionada e da Assembleia Nacional. Nada, estou bem informado, excede o espectáculo chocante e repulsivo da mendicidade nessa capital. De facto, os votos da Assembleia Nacional não deixam dúvidas desse facto 178 • Ultimamente nomearam uma comissão permanente para a mendicância. Estão a planear um vigoroso policiamento neste domínio e, pela primeira vez, a imposição de uma taxa para manter os pobres, para cujo alívio aparecem grandes somas nas comas públicas do ano*179 • Enquanto isso, os líderes dos clubes legislatin · Nora do Auro r: Vejam-se as Viagens de G ulive r para se ter um a ideia de países governados po r fil ósofos. 1 • N ora d o autor: O Senhor de C alo nne apresenta a queda da população de Paris como muito mais apreciável, e pode ser que seja, desde o período em que o Senho r Necker fez os cálculos.
n N.T. Burke mantinha-se info rmado lendo os registos dos trabalhos da Assembleia Nacional. O Senhor de C alonne, mencionado acim a, estava exilado em Inglaterra, manteve com Burke uma relação próxima e era seu ass íduo correspondente já que Burke teve um impo rtante papel no apoio aos refugiados franceses. n
"Nora d o auto r: Livres
Libras esterlinas
s.
d.
Trabalhos de caridade para faze r face ao dese mprego em Paris e nas províncias
3,866,920
161,121
13
4
Eli minação da vagabundagem e da mendicidade
1,67 1,4 17
69.642
7
6
Prémios para a importação de cereais
5,67 1,907
236,329
9
2
Despesas relativas à subsistênc ia, dedução feira das colectas que tiveram lugar
39,87 1,790
1,661 ,324
11
8
51 ,082,034
2,128,4 18
Tora!
8
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vos e dos cafés estão deslumbrados com a sua própria sabedoria e habilidade. Falam com o desprezo mais altivo do resto do mundo. Dizem ao povo, para o confortar dos farrapos com que o vestiram, que são uma nação de filósofos e, por vezes com todas as artes de um desfile burlesco, com espectáculo, tumulto e azáfama, por vezes através de alarme de conspirações e invasões, tentam afogar os gritos de indigência e desviar o olhar do observador da ruína e da miséria do Estado. Um povo corajoso certamente preferirá a liberdade acompanhada de uma pobreza virtuosa a uma servidão rica e depravada. Mas ames que o preço do conforto e da opulência seja pago, é preciso estar seguro de que é a verdadeira liberdade que se está a comprar e que ela não pode ser adquirida senão a este preço. No entanto, eu sempre considerarei a liberdade como muito equívoca na sua aparência, quando não tem por companhia a sabedoria e a justiça e quando não traz consigo prosperidade e abundância. Os defensores desta Revolução, não satisfeitos com o terem exagerado nos defeitos do seu antigo governo, atacam a própria boa fama do seu país descrevendo como horríveis quase tudo o que podia atrair a atenção dos estrangeiros, isto é, a sua nobreza e o seu clero. Se isto fosse apenas difamação não era grande coisa. Mas tem consequências práticas. Se a vossa nobreza e fidalguia, que formavam a grande maioria dos senhores das terras e a totalidade dos vossos oficiais militares, se parecessem aos da Alemanha no período em ~ando enviei este livro para a imprensa mantinha algu mas dúvidas no respeitan· te à natureza e extensão do último artigo nas contas acima expostas, que está ape nas sob um tÍtulo ge nérico e sem qualquer pormenor. Depois disso vi o trabalho do Senhor de Calonne. Penso que é uma grande pena que eu não tivesse tido essa oportunidade antes. O Senhor de Calonne pensa que esse artigo corresponde à subsistência geral, mas não é capaz de explicar como um decréscimo tão grande, que ascende 1,661,000 libras es· terlinas, pode basear-se na diferença entre o preço de custo e de venda dos cereais, parece atribuir este valor tão elevado de gastos a despesas sec retas da Revolução. 1ão posso dizer nada de concreto sob re este assu nto. O leitor é capaz de ajuizar pelas contas agregadas destas despesas imensas, acerca do estado e da condição de França e ace rca do sistem a de economia pública adoptado nesta nação. Esta prestação de contas não produziu nenhum inquérito ou discussão por parte da Assembleia Nacional.
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que as cidades da Hansa precisaram de se confederar contra os nobres em defesa da sua propriedade, tivessem elas sido como os Orsini e os Vitelli 180 em Itália, que costumavam sair do bastião dos seus esconderijos em investidas para roubar o negociante e o viajante, tivessem elas sido como os Mamelucos 18 1 do Egipto, ou os Nair 182 da Costa de Malabar, reconheço que não seria aconselhável inquirir de modo tão crítico sobre os meios de libertar o mundo de tal incómodo. Os bustos da Equidade e da Misericórdia poderiam estar velados por algum tempo. As mentes mais brandas, confundidas com a horrível exigência na qual a moralidade se submete à suspensão das suas próprias regras a favor dos seus princípios, poderiam olhar para outro lado, enquanto a fraude e a violência levavam a cabo a destruição de uma falsa nobreza, que desonrava a natureza humana ao mesmo tempo que a perseguia. As pessoas que mais abominam o sangue, a traição e o confisco arbitrário, poderiam permanecerespectadores silenciosos desta guerra civil entre vícios. Mas a nobreza privilegiada que se reuniu sob os auspícios do rei em Versalhes em 1789, ou os seus constituintes, merecem ser olhados como os Nair ou os Mamelucos desta era, ou como os Orsini e Vitelli dos tempos antigos? Se, na altura, eu tivesse perguntado isso, teria passado por louco. O que fizeram eles desde então, para serem conduzidos ao exílio, as suas pessoas serem caçadas, mutiladas, torturadas, as suas famílias dispersadas, as suas casas reduzidas a cinzas, a sua classe abolida, e a memória dela, se poss ível, extinta, impondo-lhes que 80
.T. A fa mília Orsini é uma poderosa fa mília da alta nobreza italiana que viu elege r no seu seio três papas: C elestino III, N icolau III e Bento XIII, bem como vários cardeais. A sua pos ição favo rável ao papado fê-la opo r-se à família Colonna que era contra o poder papal. A luta sangrenta entre estas duas fa mílias assolou as ruas de Ro ma. Era natu· ral que Burke, como anglicano, nutrisse maio r simpatia pela fa mília Colonna. O s Vitelli eram uma família de ricos mercadores de Cità di Castello que se to rnaram senhores da cidade e mant inham um poderio desproporcionado, q uer político quer militar. T ambém eram apoiantes do Papa. '
'
81
182
N .T . Casta militar.
N .T. U ma catego ria de castas ind ianas com um histo rial de envolvi mento em confli tos armados.
206 mudem os próprios nomes pelos quais eram, habitualmente, conhecidos? Leiam as instruções deles aos seus representantes. Eles respiram o espírito de liberdade tão acaloradamente e recomendam reformas com tanto vigor, quanto qualquer outra classe. Os seus privilégios em relação ao imposto foram voluntariamente cedidos, como o rei abdicou desde o início de qualquer pretensão ao direito de taxar. Acerca da constituição livre a opinião era unânime em França. A monarquia absoluta estava no fim. Tinha dado o último suspiro sem um gemido, sem luta, sem convulsão. Toda a luta e toda adiscórdia levantou-se a seguir, quando se preferiu uma democracia despótica a um governo com controlo recíproco. O triunfo do partido vitorioso foi sobre os princípios de uma Constituição Britânica. Observei o hábito que durante muitos anos predominou em Paris de idolatrar, num grau perfeitamente infantil, a memória de Henrique IV. Se alguma coisa poderia pôr alguém indisposto com esta descrição do carácter real, era este estilo exagerado de panegírico insidioso. As pessoas que mais empenhadamente fizeram trabalhar esta máquina foram aqueles que terminaram os seus elogios destronando o seu sucessor e descendente: um homem, no mínimo, de tão boa índole quanto Henrique IV 183 , totalmente dedicado ao seu povo e que fez mais para corrigir os antigos vícios do Estado do que fez aquele grande monarca, ou que alguma vez ele tencionou fazer, estamos seguros. Ainda bem para os autores destes panegíricos que não é com ele que têm de lidar! Porque Henrique de Navarra era um príncipe, resoluto, activo e político. Possuía de facto grande humanidade e brandura, mas uma humanidade e uma brandura que nunca interferiu no curso dos seus interesses. Nunca procurou ser amado sem se colocar primeiro na condição de ser temido. Usava 183 H enrique III de Navarra e IV de França. Sucede ao cunhado Henrique III de França. Pertencia antes aos H uguenores e abjura a fé calvinista quando ascende ao trono de França. O seu rein ado é marcado por grande tolerância religiosa que consagra com a pro mulgação do Éd ito de Nantes em 1598.
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linguagem branda com conduta firme. Afirmava e mantinha a sua autoridade no todo, distribuía as suas concessões apenas nos pormenores. Despendia com nobreza o lucro dos seus privilégios, mas cuidava de não delapidar o capital, não abandonando nem por um momento nenhuma das exigências que fez ao abrigo das leis fundamentais, nem se coibindo de derramar o sangue daqueles que se lhe opunham, muitas vezes no campo de batalha, outras vezes no cadafalso. Porque ele sabia fazer os ingratos respeitar as suas virtudes, mereceu os elogios daqueles que, se ele vivesse neste nosso tempo, teria trancado na Bastilha e teria castigado, juntamente com os regicidas que ele enforcou, após ter forçado Paris à rendição pela fome. Se estes apologistas são sinceros na sua admiração de Henrique ~arto, devem lembrar-se de que eles não têm um conceito mais elevado do monarca do que ele teve da nobreza de França, cuja virtude, honra, coragem patriotismo e lealdade eram o seu tema constante. Mas a nobreza de França degenerou desde os tempos de Henrique ~arto. É possível. Mas [o que dizem dela] é mais do que eu posso acreditar ser verdade ainda que tivesse degenerado muito. Não pretendo conhecer a França tão bem quanto outros, mas tentei durante toda a minha vida conhecer a natureza humana, de outro modo, não teria préstimo nem mesmo para desempenhar o meu humilde papel ao serviço da humanidade. Neste estudo não pude passar ao lado de grande parte da nossa natureza, tal como ela aparece modificada num país que fica apenas a vinte e quatro milhas da costa desta ilha. Na minha observação cuidada, comparada com a minha melhor investigação, achei a Vossa nobreza, em grande parte, composta por homens de espírito elevado e de um delicado sentido da honra, quer em relação a eles próprios, individualmente, quer em relação a toda a sua classe, sobre a qual têm um olhar censório mais do que é comum em outros países. São razoavelmente bem educados, muito prestáveis, humanos e hospitaleiros. Na sua
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conversação são francos e abertos, com um bom tom militar, com um certo verniz literário, particularmente sobre os autores da sua própria língua. Muitos tinham pretensões muito acima desta descrição. Falo daqueles que geralmente se encontravam. ~anto
ao seu comportamento em relação às classes inferiores, pareceu-me que se comportavam bem em relação a elas, e com algo que se aproximava da familiaridade mais do que é geralmente praticado entre nós na relação entre as camadas mais altas e as mais baixas. Bater em alguém, mesmo da mais abjecta condição, era uma coisa de certa forma desconhecida e seria altamente vergonhoso. Exemplos de outros tipos de maus tratos à parte mais humilde da sociedade eram raros e, quanto a ataques feitos à propriedade ou à liberdade do povo, nunca ouvi de nenhum caso de sua autoria, nem quando as leis do antigo regime estavam em vigor seria permitida uma tal tirania sobre os súbditos. Como proprietários de terras, não encontro faltas para apontar na sua conduta, embora encontre muito a censurar-lhes e muita coisa que gostaria de ver mudada nos antigos domínios. ~ando arrendavam as suas terras, não vi que os seus acordos com os rendeiros fossem opressivos, nem quando eram em parceria com o rendeiro, como era muitas vezes o caso, ouvi dizer que ficassem com a parte do leão. As proporções não pareciam injustas. Talvez existissem excepções. Mas, certamente, eram apenas excepções. Não tenho razões para acreditar que, a este respeito, a nobreza francesa com propriedades fosse pior que os fidalgos proprietários de terras deste país, certamente, em nenhum aspecto seriam mais opressores do que os proprietários de terras, não nobres, do seu próprio país. Nas cidades a nobreza não tem hábitos de poder, no campo, muito poucos. Saiba o Senhor, que muito do governo civil e do controlo, na sua parte mais essencial, não estava nas mãos daquela nobreza que primeiro apreciámos. Os rendimentos, cujo sistema e a cobrança eram os aspectos mais gravosos do governo de França, não eram administrados pelos homens de espada,
209 nem eles eram responsáveis pelos vícios dos princípios do sistema ou pela opressão, se é que ela existia, da sua administração. Negando, como eu estou autorizado a fazer, que a nobreza tivesse parte na opressão do povo, em casos em que uma opressão realmente existiu, estou pronto a admitir que eles não estavam isentos de faltas consideráveis e de erros. Uma imitação imprudente da pior parte dos costumes de Inglaterra, que prejudicaram o seu carácter natural, sem colocar no seu lugar aquilo que eles talvez quisessem copiar, de certeza que os tornou piores do que eles originalmente eram. Uma dissolução habitual de costumes, que continuava para além daquele período da vida em que é desculpável, era mais comum entre eles que entre nós e reinava sem a mais pequena esperança de remédio, embora talvez com um pouco menos de dano, por ser encoberta por um certo decoro exterior. Encorajaram por demais aquela filosofia licenciosa que ajudou a levá-los à ruína. Houve outro erro entre eles mais fatal. Aqueles, dentre a plebe, que se aproximaram ou que excederam muita da nobreza em riqueza não foram plenamente admitidos no nível social e com a consideração que a riqueza, com razão e por boa política, deve outorgar em qualquer país, se bem que, penso, não em pé de igualdade com a outra nobreza. Os dois tipos de aristocracia eram muito escrupulosamente separadas, contudo, talvez menos que na Alemanha e em algumas outras nações. Esta separação, como já tomei a liberdade de lhe sugerir, penso ser uma das principais causas da destruição da antiga nobreza. A classe militar, particularmente, estava reservada aos homens de família. Mas, ao fim e ao cabo, este era um erro de opinião, que outra opinião contrária poderia ter rectificado. Uma Assembleia permanente na qual o povo tivesse a sua parte de poder, teria rapidamente abolido o que quer que fosse de demasiado ofensivo e insultuoso nestas distinções, e mesmo as faltas morais da nobreza teriam pro-
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vavelmente sido corrigidas pela maior multiplicidade de ocupações e interesses a que uma constituição por classes teria dado origem. Este grito violento contra a nobreza penso que é apenas uma simples obra de astúcia. Ser honrado e mesmo privilegiado pelas leis, pela opinião e por imemoriais costumes do país, que surgiram a partir de preconceitos com séculos, não tem nada que provoque horror e indignação seja em quem for. Mesmo ser muito tenaz em relação a estes privilégios não tem nada de criminoso. A luta enérgica de cada indivíduo para preservar o que ele acha que lhe pertence e lhe confere distinção é uma das defesas contra a injustiça e o despotismo implantadas na nossa natureza. Opera como um instinto que protege a propriedade e que preserva a estabilidade da comunidade. O que é que há de chocante nisto? A Nobreza é um ornamento gracioso da ordem civil. É o capitel Coríntio de uma sociedade refinada. "Omnes boni nobilitati semper jàvemus" 18\ era o dito de um homem sábio e bom. É, de facto, um sinal de uma alma liberal e benevolente ser tendenciosamente propenso a inclinar-se para isso. Não tem um princípio enobrecedor no coração quem quer nivelar todas as instituições artificiais que foram adoptadas para dar corpo a convicções e constância a uma estima fugaz. Um carácter azedo, maldoso e perverso, sem gosto pela realidade ou por qualquer imagem ou representação da virtude, é que vê com alegria a queda imerecida do que tinha florescido em esplendor e honra durante tanto tempo. Não gosto de ver nada destruído, nenhum vazio produzido na sociedade, nenhuma ruína à face da terra. Foi, por isso, sem decepção nem descontentamento, que as minhas investigações e as minhas observações não me mostraram vícios incorrigíveis na nobreza francesa ou algum abuso que não pudesse ser removido por uma reforma que não chegasse à abolição. A vossa nobreza não merecia castigo, mas degradar é punir.
IS