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5 SEM DÚVIDA SEM DÍVIDA SÓ DÁDIVA Zhao TINGYANG: TIANXIÁ (Tudo Sob o Céu) MD: TUDO QUE HÁ EXERGO Os grandes espíritos constituem verdadeiras famílias; escolha aquela onde você quer ser admitido; essa adoção lhe dará não somente seu nome, mas os seus próprios bens. EPICTETO (Les Stoïciens. Paris: Gallimard, 1962. p. 713)
Trato agora de algumas resultantes da Teoria das Formações e da Teoria do Conhecimento (esta, chama-se: Teoria da Transa). Lembrando que, na Bíblia, a transa se chama conhecer: Adão ‘conheceu’ Eva – isso, para a NM, se chama ciência (paradigma Escher). Lembrando também que, segundo o paradigma NM, toda e qualquer formação é sintomática. Sintoma é genérico (?). Formação é sintoma. Só o Haver não é sintomático, o resto é sintoma. O que uma análise faz é esclarecer para o analisando o 1
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concerto de suas formações, o resto é problema dele. O que direi a seguir é contra a paranoia do Terceiro Império e do cristianismo. Como vou encarecer um conceito, mostrarei primeiro as diferenças. A noção de Ipseidade, em filosofia, é ‘aquilo que faz com que um ser seja ele próprio e não outro’. São as formações componentes, ou hecceidade. Outro conceito usado em filosofia é Solipsismo: só existem Eu e suas sensações, outros entes são meras impressões sem existência própria – isso se chama idealismo radical. O que é a noção de Egoísmo? Vou para a psicanálise, é referência ao Ego (conceito freudiano). Para a NM, Ego é formação ideológica e defensiva como representante de si mesmo em claro recalcamento das formações em exercício na Pessoa. Lacan dizia “mito individual do neurótico”. Falei desses conceitos porque não estou falando disso. Falarei, sim, de um conceito que não é isso. O conceito que interessa à NM é Ipsismo. Em medicina, é: a prática da masturbação – é a coisa mais séria, pois não existe outra coisa. Tomei o conceito para levá-lo a outra região. Para a NM, Ipsismo é o exercício de suas próprias formações. É o mesmo que masturbação pessoal. Quando alguém está – e sempre está – no exercício de suas formações, chama-se: Ipsismo. Portanto, trata-se de autorrealização independente das demandas de outrem. Estas são falsas, pois, se alguém as acolheu, são dele. Lacan fala em
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Outro, em pequeno outro, etc. A NM só tem o Mesmo. O Ipsis tem o mesmo sentido do Idios, ambos são parentes. O que é Altruísmo? É a inclusão do Estranho por sua sagração mediada pelo próprio. Ou seja, não existe o altruísmo: se tomamos o Estranho e incluímos, é nosso. Não há que culpar outros ou achar que somos maravilhosos por sermos “altruístas”. Observem a ação dos ditos “Santos” benfeitores e das pessoas “dadivosas”. Eles fazem tudo pelos outros – os quais têm que ficar lhes devendo: MENTIRA. Eles realizaram seus tesões e seus gozos – que não podem, honestamente, ser postos na conta dos receptores. O que somos é Ipsistas, todos o são. Considerar assim faz uma diferença enorme de Metanoia para Paranoia. Portanto, dito isso, as moções de qualquer serviço para alguém ou para algo são motivadas pelas próprias formações (sintomas, fantasias). Ninguém DEVE NADA a ninguém. Não há MÉRITO ou DEMÉRITO em realização alguma. Se estou gozando com minhas formações, por que mereceria? Cada um goza por onde pode, e isso é Ipsismo, é próprio – e não elimina as transas. Eis aí um entendimento fundamental para o Quarto Império funcionar. Dívida pessoal é coisa de Terceiro Império cristão. ORIGEM DO ENGANO (de supor altruísmo, mérito, etc.): Intenções de dominação do Segundo e do Terceiro Impérios. No Segundo Império são dívidas para com o Pai, o Dono, o “Provedor”, o que é mentira, pois tudo que ele tem é tirado do esforço de outros. No
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Terceiro Império, foi inventada uma dívida radical de todos para com o Salvador (que morreu na cruz para “nos” salvar). O que são AGRADECIMENTO e GRATIDÃO? A quem efetivamente se agradece? Ou a quê? Fica-se agradecido (grato) ao encontro de formações e se atribui por prosopopeia (‘atribuir-se a algo ou alguém o que é da ordem de meras formações’) do suposto gratificador. A pessoa lá está exercendo certas formações e ficamos agradecidos a ter acontecido isso. Que bom que aconteceu! Mas nada estamos devendo à tal pessoa (e esta nada nos deve). MD, por exemplo, faz a obra que faz para ninguém, faz para ele. Ninguém lhe deve nada: o tesão e o gozo de fazê-la é todo seu. Se tiver serventia para outros, bom proveito! Essa área precisa ser limpa pelo Quarto Império. Aí fica honesto. O Terceiro Império é desonesto. Além disso tudo, ainda há A LOROTA DO OUTRO (grande ou pequeno). A definição possível para a NM é: só há alteridade na estranheza do não-incluído. É a única alteridade que existe, pura estranheza. Dada a Transa (no sentido de Escher), haverá alguma sagração do estranho. Donde: inclusão e apropriação. Quando há inclusão e apropriação em consequência da transa das formações, acabou a estranheza, acabou o outro, é o mesmo. Então, o outro é inatingível porque é estranho. Não há o Outro a quem recorrer. O Grande Outro de Lacan, aqui entre nós, é o Deus dos cristãos. Ele o abstraiu como Grande Outro. E o pequeno outro é o tal objeto – que deve ser eliminado. Não há objeto algum, o que há é transa de 4
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formações: formações de lá e formações de cá. Não há nada posto diante (ob-jetado) de mim, só formações em transa. O que é o conceito de VERACIDADE (e não de verdade)? É: inclusão das formações resultantes da transa, sempre provisória e provisional. Isso é que é veraz. Pode-se pensar que, uma vez que não há o outro, tampouco há paranoia. Há, sim, é entender que não é assim e ficar criando ideologemas de fechamento. A paranoia depende de, de maneira recalcante, recalcar do veraz e atribuir a transas que não existem. Por exemplo, a paranoia do Salvador, etc. Paranoia é da ordem da neura. Se não neurotizar a transa, ela fica aberta, pois ela é sempre metanoica. Ao fazer algum recalque, cria-se um círculo de Euler e fecha-se – é isso a paranoia. Mesmo que se pense que a paranoia precisa do outro, o outro é o quê? O Estranho, é aonde não vou, é o limite. O sentido de haver paranoia é o de limitar o processo. Se fechou, circunscreveu, não tem abertura, é paranoia, a qual é a crença absoluta numa formação. Isso vale também para o conhecimento, não há como escapar dela. Mesmo eu aqui falando contra a paranoia, qual é o limite da paranoia de meu pensamento? Daqui a algum tempo, alguém poderá dizer que sou parana. Não se escapa porque há recalque e, se há recalque, fechou. Há também aí um mecanismo projetivo. Quando defino o outro como estranho, o que faço? Projeção, estou delimitando. Ninguém, em abertura, consegue pensar. Seu sintoma falará mais alto, ele sempre limita por mais que se abra, que se esgarce o processo. Há um negócio chamado 5
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Primário. E se abrisse radicalmente, perder-se-ia o pensamento. É preciso um mínimo de base sintomática para organizar algo. O Haver não tem limite. Para entender isso, basta olhar para os físicos e ver o quão estão perdidos. O telescópio espacial James Webb a cada dia traz alguma informação que desconcerta o que se achava antes. Esta é que é, aliás, a possibilidade de pensar, de trazer outras concepções. O que é RECONHECIMENTO? Como de Firma, não implica obrigação alguma, é puro e simples registro. Alguém diz algo importante, registra-se, está reconhecido. Um autor, em qualquer área, pode ser Reconhecido por sua performance, e nada mais. Podemos admirá-lo e mesmo ser agradecidos ao Haver que aquilo tenha acontecido, mas não devemos nada ao gozo dele. O não entendimento disto cria monstros históricos que, por fanatismo acadêmico, emperram o famigerado e boicotado dito “progresso da ciência”. O que é RESPEITO? É o que se diz “a respeito de”, é mera com-sideração. Trata-se de lidar com o outro no regime de estar tratando a respeito de. A definição de respeito é exemplar no Terceiro Império, ele é hierárquico e paranoico, diz respeito à obediência. Pensar em termos de “a respeito de” é da ordem da metanoia. E o que é AMOR? O Terceiro é o Império do amor. Em termos da Teoria das Formações, amor é: encontro em algo ou em alguém de formações análogas às da própria requisição. Quando alguém as encontra, ele gruda, estabelece uma vinculação 6
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imediata. Amor é apego às tais formações análogas. (Por isso, pode haver suspensão do amor quando o estranho comparece. Alguém que ama demais uma pessoa, ao ver que não era o que ele estava pensando, aquilo se arrebenta). É claro que, na transa amorosa, novas formações antes estranhas podem vir a ser incluídas, fazendo parte então do acervo sintomático. Por isso, não é solipsismo, e sim Ipsismo: há inclusão (ou rejeição) na transa. Já o ÓDIO é: exacerbação
excludente
de
formações
consideradas
definitivamente estranhas. É preciso limpar de uma vez por todas a ideia de sujeito e consequentemente a de objeto, mesmo no tratamento da LINGUAGEM e da língua. Substitua-se, então, sujeito por Agente, e objeto (direto e indireto) por implicado direto e implicado indireto. É, aliás, um vício escolar, não há objeto algum. Basta ver que a língua sempre extrapola esse modelo oriundo basicamente da gramática aristotélica, que traz o substantivo e as chamadas classes gramaticais. Há um problemão aí, pois o substantivo tem que ser eliminado. Como diz MD, tudo que há é adjetivo, são formações em transa umas ao lado (ad-jetadas) das outras. A noção de substantivo é praticamente uma hipóstase ontológica: a garrafa é, João é... Estamos, desde a base, viciados no entendimento da língua. O verbo Ser é uma especiação do Haver. Ao falar que algo é, sintomatizamos, e aí acabou, fechou o sintoma. É claro que se pode falar disso que estou falando das formações, portanto é
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sintomático. Qualquer nomeação em nosso meio linguístico implica isso. Por fim, a POLÍTICA DA PSICANÁLISE é semelhante à política TIANXIÁ: inclusão de tudo que há. Ou seja, o Mundo do ponto de vista de Deus (=Haver). Outra coisa é a Administração das Diferenças. Daí que a tal Igualdade, hoje politicamente brandida,
é
pura
denegação.
Melhor
pensarmos
em
equacionamento e administração das diferenças na lembrança de um Vínculo Absoluto – no sentido da instalação do Quarto Império. Posso dizer isso porque minha leitura dos fenômenos é Sintomal e minha referência é Psicanalítica. Assim, tenho sempre a reiterada impressão de que o caminho dos autores ao falarem em igualdade como base da política não vai a lugar algum, apesar de toda a boa vontade intelectual (coisa, aliás, várias vezes apontada por MD). Vejam como o Terceiro Império, sobretudo cristão, sujou tudo, colocou tudo na neura. É preciso radicalizar as definições para não se deixar fagocitar pelos Segundo e Terceiro Impérios. Ʃ Ʃ Ʃ
Como disse, Ipsis tem o mesmo sentido do Idios, ambos são parentes. Estou chamando o Idios para o núcleo da teoria. Por isso, MD chamou de IdioFormação, é o Ipsismo da IdioFormação. Faço uma breve consideração linguística: Idio ou Idios (em grego) e Ipse (em latim) são morfemas que estão na composição dos vocábulos IdioFormação e Ipsismo. Idios significa o mesmo, 8
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próprio, particular e constitui morfologicamente vocábulos tais como idioma, idiossincrasia e idiota. Por exemplo, inicialmente o termo idiota não tinha sentido pejorativo como no português contemporâneo, mas mesmo no grego antigo começou a ter quando se referia à condição de homem privado, leigo em questões do Estado, um estigma de classe na sociedade grega. O participante da polis era aquele que deliberava sobre a vida coletiva e aqueles sem interesse pelo Estado eram chamados de idiótes, de onde deriva o termo idiota, e é nessa tensão que circula até nossos dias. Quando chegou ao latim, idiota já tinha, ao lado da acepção primitiva de pessoa simples, sem instrução, iletrada, a de pateta, parvo, tolo. No século XIX, o vocabulário psiquiátrico se encarregou de transformar idiotia em sinônimo de retardo mental grave. No entanto, a significação relativamente branda de idiota – hoje em desuso – persistiu nas línguas que herdaram a palavra, ao lado do sentido moderno. Em meados do século XV, podia se referir aos apóstolos de Cristo como doze idiotas sem temer a Inquisição (cf. The Merriam-Webster New Book of Word Histories) e, de modo análogo, em Curiosidades Verbais, João Ribeiro, filólogo e historiador, comenta que nas aldeias portuguesas no século XVI havia juízes idiotas, simples juízes de paz e de quem não se exigia mais que os bons costumes, a experiência, a probidade. Como se pode ver, é um termo marcado por forte expressividade.
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Alguns vocábulos bem conhecidos que têm idios como parte integrante de sua composição morfológica: 1. Idiossincrasia: refere-se a características peculiares e distintivas de um indivíduo, comportamentos, gostos ou preferências que o tornam único. 2. Idioma: o termo idios é a radical da palavra em grego. Essa relação conecta a ideia de uma língua particular, específica de uma comunidade ou grupo, com suas próprias regras gramaticais e vocabulário. 3. Identidade: Idios também está associado ao conceito de identidade. Destaca a noção de individualidade e singularidade de uma pessoa, abrangendo características culturais, sociais e pessoais que a distinguem das outras. 4. Idiotés: como vimos, no contexto da antiga Grécia se referia a um indivíduo que não estava envolvido com a vida pública ou política. 5. Outros vocábulos que também se compõem com o radical idios são: idioscopia, idiolatria, idiopatia, etc. IdioFormação é termo criado por MD mediante a composição de idio+formação, para nomear a formação do Haver que tem a competência de Revirão e a possibilidade de ser afetada por HiperDeterminação, uma réplica do Haver em sua ARTiculação máxima. Trata-se de um uso do termo Idios na acepção forte do grego clássico: o Mesmo.
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Já no Latim clássico, o termo Ipse (a, um) significa o mesmo, o próprio, a própria, em pessoa, por si mesmo. Há o superlativo de Ipse, Ipsissimus (ele próprio em pessoa; ele próprio em carne e osso). Ipsus = ipse. Pode ser usado como pronome reflexivo ou como adjetivo demonstrativo enfatizando algo específico. Por exemplo: “Ipsis loquuntur” (Eles falam por si mesmos), “Ipsum vidimus” (Nós o vimos com nossos próprios olhos). Na linguagem cotidiana, ipse não é frequentemente utilizado, mas em contextos formais, encontramos expressões como per se, em vez de ipse, em si mesmo ou intrinsecamente. Essa expressão é usada para enfatizar que algo tem uma importância ou significado próprios e não depende de outras coisas. Esse termo latino também é muito conhecido na formação verbal solipsismo (do latim solus, só, e ipse, ele mesmo), termo às vezes pejorativo, designando o isolamento da consciência individual em si mesma, tanto em relação ao mundo externo, quanto a outras consciências. Ou seja, o eu é o que existe. Há também o termo Ipseidade (do latim, ipseitas) empregado por Duns Scot para indicar a singularidade de uma coisa individual, a Hecceidade. O termo Ipsismo está aqui sendo empregado para destacar uma ideia radical e decisiva para a NM, o exercício das próprias formações de uma IdioFormação (Pessoa), sua masturbação pessoal, pois, quando se está no exercício de suas próprias formações, trata-se de autorrealização independente de quem ou do 11
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que quer que seja. MD já havia chamado o Haver de O grande masturbador, que também é título de um quadro de Salvador Dalí. Na transa das formações, segundo o modelo Escher, a mão que desenha a mão que a desenha, só há o Mesmo e a possibilidade de constante incorporação de qualquer formação que se apresente como estranha. Assim, repetindo, para NM só há alteridade na estranheza do não-incluído. Então, a única alteridade que existe é pura estranheza. Dada a transa das formações segundo o modelo da Teoria das Formações, o processo disponível para uma Pessoa é de inclusão e apropriação permanentes no exercício perene de inclusão de qualquer formação. MD já disse que “o trabalho analítico de anamnese do Cais Absoluto conduz a Pessoa a tornarse (não egoísta, pois desfaz o ego a cada momento, mas) ipseísta (...): afirmação absoluta do Haver como Eu” (A Rebelião dos Anjos, p. 136). Aí já está a indicação para o que hoje precisei com o termo Ipsista. Do ponto de vista do Haver, sou sempre Idêntico, sempre o Mesmo (idios, ipsis): Eu = Haver. IdioFormação idiota. Essa é a identidade da Pessoa. Ʃ Ʃ Ʃ
Nessa sequência de considerações sobre a lorota do outro, é o caso de retomar o que MD trouxe sobre a Razão Egípcia, sobretudo a partir de 2000. É a razão que dá base aos três monoteísmos abraâmicos e que, por sua vez, esteia-se na Revelação. Esta 12
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depende da relação entre a criatura (mormente, os humanos, suposto ápice da criação naquelas mitologias e, dentre eles, o Profeta) e seu Criador. Isto é, entre cada um e o suposto Outro paranoicamente projetado como um “alguém” transcendente que rege as ocorrências do Mundo com sua Lei. Atribui-se a esse Outro, de maneira personificante, a responsabilidade sobre os dons gratuitos do Haver – bens e males –, a começar pela própria havência de cada um. Daí toda a deliração sobre castigos e recompensas conforme méritos e deméritos aos olhos desse Outrão. Cada um estaria em eterna dívida, em falta, para com Ele. A princípio, esse Outrão é, tipicamente de Segundo Império. Por exemplo: Javé, o Deus-Pai dos hebreus. Com os cristãos, surge a figura de Jesus, o Filho Amado, ligado ao Pai (que, regressivamente, permanece no Terceiro Império, ainda que agora abstraído e universalizado) por via do Espírito Santo (“o amor entre Pai e Filho”), segundo o circuito da Trindade. Filho que passa a ser a ponte entre as pessoas (aquelas que o aceitam e são por ele aceitas) e o Outrão (“Ninguém chega ao Pai a não ser através de mim”, João 14:6-7). A condição para isso é também ela paranoica. Trata-se do “novo mandamento” (João 13:34): “que vos ameis uns aos outros, tal como eu vos amei, para que também vós vos ameis uns aos outros”. A dívida para com o Outrão, o Dominus transcendente remanescente do Segundo Império, estende-se para o Salvador (que teria, ‘altruisticamente’, “morrido por nós”) e, dele, para todos os demais outros – os irmãos. 13
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Em resumo: o amor mútuo entre os outrinhos os conecta entre si (configurando a eklesia), e todos eles ao outro-intermediário, o qual, por sua vez, está diretamente conectado ao Outrão. Esse é o design do Amor (agape) como princípio conectivo paranoico do Terceiro Império cristão, dependente, em todos os níveis, da alteridade, do amor e da dívida. Posteriormente, a teologia e a montagem institucional da Igreja adicionarão alguns tantos níveis hierárquicos a esse modelo (vide o Areopagita), povoando com mais tantas mediações a distância de cada um em relação ao Outrão. Distância que a mística radical, por outro lado, se esforçará por anular, mesmando esse suposto Outro (daí a equação eckartiana: DEUS=EU). Do lado de fora, estão aqueles que não fazem parte da confraternidade ou koinonia cristã, não são “em Cristo”. Sabemos que não há universalidade – esta é sempre artificiosa – sem o expediente da exclusão, produção de fronteira entre internalidade e externalidade (∃x~ɸx.∀xɸx). A esses estranhos restam duas possibilidades: a incorporação à comunidade, aberta a qualquer um que se converta mediante adesão à Palavra (“Não há judeu nem 14
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grego, não há escravo nem pessoa livre, não há macho e fêmea: todos vós sois um em Cristo Jesus”, Gálatas 3:28), à sua lei; ou a rejeição, caso em que aquele mesmo amor aparece revirado em ódio, e a esse excluído da comunidade fica reservado o sadismo cristão figurado mormente na mitologia do inferno (“Aos covardes e descrentes e abomináveis e assassinos e fornicadores e feiticeiros e idólatras e todos os mentirosos: a parte deles [está] no lago ardendo de fogo e enxofre, que é a segunda morte”, Apocalipse 21:8) e executado como política de mundo pelas Cruzadas, Santos Ofícios e afins. A despeito do que se propôs posteriormente, na progressão do Terceiro Império como secularização dessa base religiosa judaicocristã, a base paranoica da alteridade, do amor e da dívida permanece. Daí os ideologemas e filosofemas como o altruísmo, o reconhecimento do e pelo outro, a exclusão ou inclusão do outro, o sujeito e seu objeto, a intersubjetividade, a justificação perante o outro, a razão discursiva, a democracia, a rivalização e dominação do outro, a responsabilidade em relação ao outro, a solidariedade, os outros como inferno, a compreensão do outro, o outro como amigo / inimigo, o outro como opressor, o eu como um outro, etc. A psicanálise não ficou de fora, tendo herdado dessa mania de alteridade a teorização de Jacques Lacan. Para ele, “o Inconsciente é o discurso do Outro”. Mas isso era canja, como já tratei no primeiro capítulo. Outra paranoia central do Terceiro Império no Ocidente é a 15
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suposição de ter a posse da Verdade. A intenção de produzir, com o Secundário, um saber definitivo e totalizante sobre o Haver. Suposição da possibilidade de resolver a estada na havência, de uma vez por todas, pela via das discursividades da ordem do Ser. Elaborações, para a NM, invariavelmente precárias. Isso não é uma novidade cristã. Também os gregos tiveram a pretensão de estabelecer verdades, mas de maneira antropocêntrica: é o filósofo que, com seu esforço intelectual, é capaz de desvelar a ordem do kosmos, esteja ela situada neste ou noutro plano de realidade. Já para os judeus e os cristãos, a Verdade é sobretudo aquela revelada pelo Outrão, que é sua sede. Aos humanos restaria receber, obedecer e disseminar. No cristianismo, há ainda a Encarnação do Logos divino, que reafirma e repactua aquela Verdade no que traz seu evangelion, sua “boa nova”. Além de “caminho”, como dito antes, Cristo se diz, ainda, “a verdade e a vida”. São religiões da lei gravada em pedra e religiões do Livro: meios em que a relativa permanência material do que é gravado ilude uma fixidez de sua verdade, como, mcluhanianamente, lembra Sloterdijk numa entrevista. Situação que muda radicalmente na era dos monitores digitais. A paranoia da Verdade proliferou uma variedade de construções fake, mas úteis para propósitos de dominação. Com esse tipo de coisa, constrói-se igreja, com sua ortodoxia e a exclusão das formações e informações indesejadas, classificadas como heréticas. No momento suposto secular e cientificista, é essa 16
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mesma paranoia que se expressa mediante o estabelecimento das epistemologias com que se busca dominar as possibilidades do conhecimento e da Verdade, ou melhor, de seu avatar positivista: a cientificidade. Mas a cobra da ideologia da Razão come o próprio rabo: prometendo o controle total dos humanos sobre sua existência e do planeta, são as ciências que nos aprofundam progressivamente no desamparo. Não há algum Geist hegeliano ou deus Logos olhando por nós. Quanto mais na ponta de um processo de conhecimento, mais profundo o estranhamento com a realidade, o sem chão (vide Benjamin Labatut). E também mais ricas as possibilidades de artifício. É típico do Terceiro Império o investimento na estabilização das transas, na univocidade dos sentidos e em expedientes secundários de fixação. A configuração cristã, que foi vitoriosa em seu estabelecimento, fez isso segundo um modelo particularmente denegatório. A manutenção da referência a um Outrão – religioso, científico ou qualquer outro – é resposta denegatória à derrelição inarredável para cada Ipsista. Denegação, em última instância, da ausência de qualquer garantia para a IdioFormação em seu percurso de havente. Só há o Mesmo. Tudo Que Há (TIANXIÁ) está na mesma canoa sem fundo rumo ao Impossível. A Paranoia, a projeção de alteridade, é uma maneira de fingir que há alguma coisa que não isso. Assumir que só há o Mesmo é, portanto, assumir o sem garantias de Haver. Em última instância, essa exigência é expressão decaída da requisição de não-Haver – única Alteridade 17
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Radical para a NM, que como o nome já diz, não há. Do Haver, não há Saber algum – desses que fingem responder de uma vez por todas o que é e por quê –, mas há, sim, Conhecimento Absoluto. Toda suposição de saber é projeção sintomática da vontade de controle das formações egóicas, defesa contra a desorientação de cada havente. Por outro lado, há a faina permanente das possibilidades de conhecimento, isto é, das transações, de seus registros informacionais e de suas elaborações – ou seja, Gnômica. Esta se refere, em última instância, ao tal Conhecimento Absoluto, que não é senão o reconhecimento imediato para cada Um (gnosis) de sua situação solitária e dissimétrica de havente em abismo e em radical ignorância, isto é, de seu Sexo (Resistente). A governança das transas no Quarto Império requer isto como referência. Assunção de que o Secundário não configura nenhum Saber e nenhuma Verdade – num tempo em que ele funciona de maneira progressivamente acelerada e no vigor da Bifididade, não permitindo estabilização alguma de sentidos e verdade alguma unívoca. O Secundário é só jogo articulatório impulsionado pelo Originário e a produção de recursos e provisões para a estada em abismo da IdioFormação. Como dito antes, para a NM não há Outro, outrinho ou Outrão – são lorotas, cascatas e caôs do Terceiro Império. Alteridade é deliração paranoica sobre o fato eventual da estranheza entre formações. A Diferocracia, conceito proposto para orientar a produção de uma governança das diferenças para o Quarto Império, 18
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só pode funcionar abandonando essa mania de suposição de alteridade. Daí que a produção de aparelhos de consideração e navegação no Quarto Império exige o abandono do funcionamento paranoico e a aceleração de uma postura Metanoica. Uma capaz de considerar, com alguma Indiferenciação, as ocorrências do Mundo em termos de processo articulatório genérico de formações, pulando fora da interferência recalcante das projeções de alteridade e verdade, comprovadamente sem serventia alguma. Não será instalado o Quarto Império sem esta assunção – e sem o reconhecimento definitivo de que, consequentemente, SEM DÚVIDA, NÃO HÁ DÍVIDA: a Simbólica, de que Lacan fala, está comprometida com o paradigma de Terceiro Império. Não encontra esteio no Quarto. Manter de pé a figura do Outro é manter de pé o funcionamento paranoico que reifica a estranheza entre as formações, com suas consequências xenófobas (em sentido genérico de aversão ao estranho). Busca-se aqui um concerto entre quaisquer diferenças, o que só se torna possível mediante o exercício radical de sua inclusão. Daí que posso falar numa sagração do Estranho – no que se o inclui, desaparece alteridade. Isso não significa eliminar a estranheza, mas instalar a possibilidade de coexistência e negociação em regime mesmo de estranhamento – algo como o que MD chamou de Solitariedade, referida ao Vínculo Absoluto. Eventualmente, ameniza-se o estranhamento. Aprende-se a gozar daquilo, ou, pelo menos, que gozar daquilo é uma das 19
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possibilidades do Haver, de saída tão legítima quanto qualquer outra. Uma política cuja ordem vincular esteja referida ao Respeito em regime de Unheimliche e que, a partir daí, opere a gestão, as eventuais intervenções e contenções. Ʃ Ʃ Ʃ
No capítulo 3, eu comentava o brilhantismo dos antropófagos modernistas por terem sacado que, quando se quer saber de que se trata o Brasil, a via é fágica – é a tal Vontade de Comer ou de Phoder. E a introdução do conceito de Ipsismo traz uma boa oportunidade de reconsiderar a contribuição de MD ao entendimento da devoração, quando propõe a Heterofagia. “Antropofagia” foi o nome que aquele pequeno grupo de modernistas dissidentes achou para isso, tomando como metáfora a prática de comer pessoas dos Tupinambás que viviam na costa brasileira quando da chegada dos portugueses, no século XVI. Por meio desse link antropológico, facilmente caindo no mitológico, o que estava sendo destacado era um modo de funcionamento. Acontece que a ideia de Antropofagia ficou historicamente pespegada a uma série filosofemas e ideologemas que atrapalham um entendimento mais preciso da operação que pretende descrever. Algumas formulações, tanto dos próprios antropófagos quanto de outros que de lá para cá trabalharam e releram a ideia, comprometem a antropofagia com elementos que mais emperram 20
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a devoração do que a explicam. Emperramentos típicos do Terceiro Império. No Ocidente, com sua configuração cristã, este foi um Império exacerbadamente paranoico. Falei antes sobre sua mania de alteridade, que, a partir da base religiosa, persiste mesmo em suas formações de pensamento supostamente secularizadas. A Antropofagia, ainda que apontando para além dele, não saiu ilesa de sua sintomática. Mesmo leituras bem recentes tentam ainda enquadrá-la como algum tipo de pensamento da alteridade, e situála em algum programa político retardatário, que pensa o porvir tendo ainda como referência o finado Império d’Ofilho. A Heterofagia entra aí, forçando um salto de depuração abstraente. Os tempos são outros, e é possível, além de proveitoso, extrair outros resultados com outras ferramentas. Essa retomada é uma maneira de sustentar a eficácia, para a nova situação de mundo que vem se montando (isto é, o Quarto Império), daquilo que os antropófagos destacaram. Em suma: Heterofagia é a Antropofagia quando devidamente despojada dos resquícios de Terceiro Império. A Paranoia deste só faz proliferar contratempos e embaraços, produzindo obstáculos para o que importa: comer. É hora de tomar essa começão a partir da Metanoia, como um simples processamento articulatório. A intervenção dos antropófagos se deu, num primeiro nível, no sentido de investir na dissolução do complexo paranoico colonial brasileiro. O Brasil (aqui tomado como aglomerado sintomático, e não como país ou nação) é uma produção sui 21
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generis. De um lado, surgiu como foco privilegiado de um momento sem precedentes na história da coexistência das Pessoas, em regime de transação acelerada, múltipla e porosa. De outro, emergiu sob a força recalcante de formações poderosas da configuração colonial, como, por exemplo, o estar constantemente referido aos olhos de algum suposto “grande Outro”, ao qual deveria prestar contas, fosse a Coroa, a Societas Iesu ou o “Ocidente” (Inglaterra, França e, mais recentemente, os Estados Unidos). Seja como for, essa configuração resultou num sintoma Estacionário, quando não Regressivo, de denegação de sua situação efetiva em favor de um mau funcionamento referido a um outro hipervalorizado, ao qual supostamente tem-se contas a prestar. Resta recalcada, assim, a fatura com o exercício próprio de suas formações, tornado envergonhado e/ou culpado. Em seu lugar, o fake de ficções e instituições incompatíveis com o caso, tentando, com elas, sustentar uma imagem que não encontra ressonância no jogo efetivo. É o chamado Mazombismo, expresso em diversos modos, e que opera como impedimento da assunção da própria singularidade e de seu gozo porque supostamente inferior ao outro tomado como modelo. Os antropófagos respondem a isso dando uma banana1. A
1
Gesto ecoado por MD no chamado Congresso da Banana (1985), como intervenção
sobre o (ainda hoje persistente) mazombismo dos meios psicanalíticos brasileiros, sob colonização da intelectualidade francesa. 22
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tomada da fagia é a exposição desabusada de sua singularidade, com dois movimentos numa só tacada: 1. Derroga a inibição paranoica ao assumir o exercício do seu próprio. 2. Esse próprio consiste, por sua vez, em um movimento de apropriação, de inclusão, de começão. É preciso sacar bem esse gesto metanoico para que não acabe redundando, como é frequente nos mal entendimentos correntes, em paranoia de outro tipo. Para isso, a NM dá a clave. Segundo MD, “interessa é o que de fora se possa comer de contrabando. É isso que Oswald situa em seus textos. O brasileiro é contrabandista, no sentido da contrabanda” (Psicanálise & Polética, Seminário 1981). Isto é, topologicamente falando, o contrabando, o atravessamento, de formações de um para o outro Mesmo lado do Haver. Não há o “Outro Lado”. Isto é: não há o Outro. Querer colocar como esquema básico das transas o jogo paranoico entre euzinhos e outrinhos é o primeiro passo para moralizar o troca-troca e buscar determinar, paranoica e aprioristicamente, quais formações podem ou não podem se apropriar de quais outras, a quais delas pertence o quê, quais estão em dívida, etc. O movimento que se mostra, pelo contrário, é a sacanagem permanente do consumo e da apropriação, sem qualquer consideração de ordem moral ou jurídica. É o contrabandismo do Tesão. Daí que ela seja melhor pensada como Heterofagia: vontade de comer as diferenças, dispensando qualquer alteridade, junto 23
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com seus circuitos paranoicos. Essa começão das diferenças é Ipsista. Ou seja, dá-se como o exercício do próprio apetite de cada formação, e não como altruísmo ou alterismo de um eu/sujeito cujo desejo estaria subdito ou direcionado a um outro/objeto. É pura esfregação entre formações adjetas. Portanto, não há nenhuma Alterofagia de facto, ainda que, em última instância, seja o que se coloca como requisição: Haver, que é Um, quer passar a não-Haver, seu outro radical alucinado. Haveria Alterofagia caso esse outro fosse uma possibilidade, mas ele não é comível, simplesmente porque não há, é Impossível. Daí para baixo, só há o Mesmo, no seio do qual as diferenças proliferam e se distribuem como modulações de um mesmo plano homogêneo. E se comem. É a autofagia Ipsista do Haver, i.e., do Inconsciente, em todos os seus níveis. Nesse nível modal, alteridade, como disse antes, é apenas a resultante de projeções paranoicas sobre as situações de estranhamento entre formações. No que há possibilidade de inclusão, está dissolvida. Portanto, quando Oswald diz “Só me interessa o que não é meu”, isso não quer dizer que só interessa o que seja de um outro. Afinal, se não há outro, tampouco há sua propriedade. Formação não tem dono, é pegar e usar. As formações são os haveres de quaisquer outras formações. São ready-mades. Para o Inconsciente, trata-se de comer metanoicamente, sem as travas paranoicas dos direitos de propriedade. As eventuais indisponibilidades aqui e agora são apenas resultantes de recalques, também eventualmente 24
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transponíveis. Podemos dizer, ao mesmo tempo, que toda formação pertence somente ao Haver, e a nada outro. O “que não é meu”, para cada um, é só o que ainda não se comeu. As transas de poder e as arrumações políticas que organizam Mundo, necessárias para a coexistência respeitosa entre IdioFormações, são já outra coisa, a qual, para ser eficaz, deve lidar com o fato de que o Tesão é assim, e não denegá-lo2. Os antropófagos mais espertos também sacaram, muito acertadamente, que esse modo de funcionar não era idiossincrasia de um grupo específico ou um “particularismo” local, diferentemente de certa abordagem que dele se quis e quer fazer. Tampouco é coisa do anthropos, um “universal antropológico”, digamos. A devoração só é brasileira e antrópica porque é, antes, plerômica. A começão aqui é entre formações, isto é, entre as diferenças, sem nenhum antropocentrismo ou antropomorfismo, muito menos humanismo. Daí também o porquê de entendermos não ser o mais preciso falar em uma antropofagia. Embora seja uma constante do Haver, é apenas nas IdioFormações, porque portam o Originário, que a Heterofagia alcança o ápice. Isso porque não se limita às transações sobredeterminadas entre as diferenças modais, mas porque, no trato 2
Para o Quarto Império, quiçá em algum momento se chegará a produzir efetivamente
uma Diferocracia, tal como propõe MD, com expedientes de organização das transas das IdioFormações a partir do fato mesmo da Heterofagia. Será o Sistema Tianxia de Tingyang um caminho fértil? Talvez tenha a melhorar com o toque brasileiro e psicanalítico de que Tudo Que Há é uma sacanagem danada. 25
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imediato destas com a Diferença Radical 3, eventualmente têm hiperdeterminadas suas possibilidades de transa. A IdioFormação não tem dieta predeterminada e a todo momento, se funciona conforme seu ídios, insiste em forçar os limites do possível. Mas também não foi por acaso que o destacamento disso ocorreu no Brasil. Ter surgido como laboratório de cruzamento acelerado de diferenças marcou sua feição sintomática com uma reconhecida vocação para a Transa (e sabemos que “transa”, em bom brasileiro, é um sinônimo de “comer”). Na sintomática brasileira, há uma exacerbação dos procedimentos heterofágicos, o que é explícito em suas mestiçagens e maneirismos. Este é um caso que, dadas as condições de sua configuração, expressa de maneira privilegiada
a
Heterofagia,
esta
função
genérica
das
IdioFormações. Embora seja, geralmente, algo que se dê de maneira mais ou menos selvagem e desorganizada, é uma vocação também apropriada em certos movimentos de excelência e sofisticação. Essa função, até o Terceiro Império, acabou ficando, o mais frequentemente, soterrada e denegada, posto que o Secundário permaneceu até então, conforme a forma hegemônica de regência de transas, mais ou menos submetido ao investimento nas formas Estacionárias dos assentamentos, filiações e pertencimentos. Também os antropófagos sacaram que essa função é não apenas compatível, mas torna-se crucial naquilo que se mostra como forma 3
Checar a nota “Teofagia, Heterofagia”, no capítulo 3. 26
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de existência por vir. Já naquele momento, a aceleração tecnológica planetária e seus efeitos deixavam claro, para as antenas alertas, que aquele mundo de relativo assentamento de até então não duraria por mais muito tempo. Daí a intuição de que talvez a bagunça brasileira tivesse algo a contribuir com esse porvir. Os antropófagos não foram os únicos, no Brasil e fora dele, a ver nessa algazarra a antecipação de um possível rumo civilizacional. Hoje, podemos entender isso como certa vocação para o Quarto Império, nascida do jogo entre a inadimplência na instalação dos assentamentos e constrangimentos secundários necessários para a produção de uma civilização aos moldes do Terceiro Império e sua condição excepcional de laboratório transformático. Vocação muitas vezes vendida, de maneira errônea, na forma de utopias e sebastianismos. Vontade de comer as diferenças nada tem a ver com isso, não é alguma panaceia, não é igualdade, fraternidade, liberdade, pax aeterna, etc. Tampouco é alguma filosofia da diferença, com sua militância pelo minoritário e seu bom-mocismo rebelde, que não deixa de ser matriz da atual paranoia Woke e das chamadas guerras culturais. Isso tudo é ainda manter a Heterofagia aprisionada no horizonte de expectativas do Terceiro Império, que expirou. A cabeça aqui é metanoica: sua utilidade é estritamente operativa. O funcionamento heterofágico da IdioFormação implica a metamorfose que os próprios movimentos da espécie impõem 27
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como exigência neste novo momento de sua existência. O Quarto Império não é a resolução dos problemas do Terceiro, é uma transição de fase que abre para outras condições de jogo, com suas próprias possibilidades. Está longe de ser trivial para esta espécie, considerada toda a bagagem de sua estupidez sintomática e estacionamentos mentais, disponibilizar-se para um Império de transação dispersiva e sem balizas definitivas. Império de aceleração heterofágica por via informacional. Levemos a sério e radicalizemos a reversão proposta pelos modernistas: dado o exposto acima, o heterofágico não é “o outro” do Ocidente, o exótico, o que vem de fora. O modo ocidental é que é uma modalização, em muitos aspectos reativa, dessa base devorativa da espécie, à medida que busca estabilizá-la com xenofobias e codificações secundárias fechadas. Não precisamos comprar o susto dos europeus com o que lhes compareceu e comparece como estranho (susto esse tão grande que, depois de Staden e Montaigne, acabaram até inventando a antropologia). Mas tampouco há que ver na postura da NM algum antiocidentalismo, à maneira dos decoloniais e outros programas afins. Se quisermos jogar com prefixos, nossa preferência não é “contra-”, nem “de-” ou “des-”, nem “pós-”, mas Trans. Isto porque a Heterofagia funciona para além do circuito paranoico dos colonialismos e força sua dissolução. Essas demais posturas não interessam, não porque não haja colonialismos e colonização, e sim por buscarem lidar com essas 28
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dinâmicas de modo ainda aprisionado no mesmo circuito paranoico. Esse tipo de esquema enquadra essa dinâmica como jogo infinito de requisição de restituições, o que limita as possibilidades
de
transa
mediante
estruturas
rivalitárias
hipostasiadas. Toda situação de dissimetria é referida a um outro mais poderoso que seria por ela responsável, numa espécie de paternalismo às avessas que serve, ainda que por via negativa, para tamponar o desamparo de cada um. Desamparo cuja assunção e cujo cultivo são condição para a soltura dos movimentos da Pessoa para fora das configurações colonizantes. Sustentam, assim, uma situação estacionária cuja referência oscila entre a miragem de uma resolução final, quando seria recobrada uma suposta situação original antes da dissimetria, e a melancolia distópica e destrutiva do ressentimento. Em suma, um tipo de movimento que não aponta saída para o buraco do Terceiro Império, apenas radicaliza algumas de suas tendências entrópicas e resulta numa fragmentação tribal das diferenças, com seu investimento pesado em múltiplos micro-colonialismos de enxame. Aqui, parto do seguinte fato: no Haver, em toda parte e em todos os níveis, formações colonizam formações, das formas mais brutais às mais sutis. No que falo de IdioFormações, há a possibilidade de reconfigurar o jogo e dissolver os coágulos colonizadores mais intensos, de maneira a disponibilizar maior margem de gozo, progressão e respeito às singularidades. Mas isso 29
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não é alguma restituição, alguma liquidação de dívida, nem tampouco extinção das dinâmicas de colonização entre formações. A possibilidade de produzir um aparelho de inclusão radical das diferenças e sua gestão pragmática depende do investimento produtivo no Porvir, e não no Estacionário enxugar gelo das tentativas de resolver para trás. O circuito paranoico da dívida, isto é, do Terceiro Império, não oferece sua saída. Daí o Quarto Império exigir o investimento na Metanoia. Além disso, a sintomática ocidental não é mais e nem menos colonizante do que qualquer outra candidata a ocupar seu lugar, não importando sua proveniência e sua posição atual na correlação dos poderes. Apenas ela foi a vencedora nos últimos séculos, e está hoje em franco esgotamento e decadência, de modo que outras formações, antes recalcadas sob sua hegemonia, podem emergir e aumentar o acervo disponível. Afora isso, são todas formações que, como quaisquer outras, podem servir para algumas coisas e não para outras. Por exemplo, o Ocidente não oferece hoje boas ferramentas para situar um Quarto Império – mas tampouco seus rivais ressentidos. Entronizar qualquer uma dela é trocar pragmatismo por crença religiosa, o que não interessa. É preferível, pois, sondar o que é comível e útil em cada caso. Ʃ Ʃ Ʃ
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Retomando alguns pontos tratados acima, lembro que Lacan dizia que a cura Psicanalítica levaria o Sujeito lá dele a não abrir mão de seu Desejo. O que digo é que, segundo a NM, NINGUÉM abre mão de seu Desejo, mesmo que o apresente compromissado de algum modo com suas Formações Estacionárias. Mediante as quais, aliás, o Analista pode entender e pontuar esse Desejo. É uma INVENÇÃO do Terceiro Império a reversão da Dádiva em Dívida, escravizando o Excitador do tesão de alguém como se o Gozo deste fosse uma dádiva ao Outro. Assim: uma Pessoa se masturba porque algo ou alguém lhe deu um grande tesão, ela goza – e imbecilmente quer botar esse gozo na conta do seu estimulante, quando de fato e de direito, o tesão e o gozo são todos dela. Esse troca-troca imbecil e safado é o substrato da dominação (cristã, p. ex.). É o truque da imposição de uma falsa Dívida Simbólica que não passa de Falcatrua no Secundário. Daí que o Ipsismo traz mais uma perspectiva para a consideração da questão da Soberania, que MD aborda em 1996. Diz ele: “cura psicanalítica = produção de soberania (ainda que perene)” (p. 86). Pode-se, portanto, considerar essa produção como resultante do entendimento do concerto das formações – como funcionam, como engatam. Justamente o que se encaminha numa análise. Trata-se aí de uma soberania perene, ou seja, sempre em produção. Ela não é transmissível diretamente para ninguém, uma vez que implica o exercício pessoal intransferível de cada um que, assumindo o movimento pulsional – i.e., sabendo que a morte não 31
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há –, frequentemente se dispõe a visitar o lugar da Indiferenciação que, este sim, (não transmite, mas) empresta-lhe, marca-o com a soberania. Aí é o “lugar daquele que não quer nem saber, daquele que não está nem aí, pois reduz todos os saberes a pó de nada” (p. 95). A frequente visita a esse lugar é, para o Ipsista, o exercício máximo de suas formações: o exercício no sentido de uma autorrealização perenemente referida à experiência a partir da qual pode “descer indiferentemente à lida do mundo” (p. 99). Sempre que se fala em soberania, é preciso ter claro que ela é da ordem do sintoma. Cada um tem o sagrado direito a seus sintomas – isto, quando não se trata de intervir no outro. Não há soberania do Haver. O Haver é impositivo, ponto! Falar em soberania do Brasil, por exemplo, é sintoma cultural. E mais, se fosse respeitada, a soberania não implicaria imputação alguma. Alguém tem o sagrado direito de ser um escroto, mas não o direito de sê-lo dentro do circuito. Este constitui um sintoma que coloca limite em seu “ser um escroto”. Entender isso faz parte da cura das pessoas. Elas vivem em sentimento de culpa e aceitando imputabilidades que não lhe cabem. O tesão de alguém é sagrado, mas é preciso ver se é permitido no lugar onde ele vive. Ou seja, é preciso ver qual é a transa. E tampouco permitir que se confunda soberania com autarcia, quando se ultrapassa o limite e se exerce a soberania sobre as formações em jogo. Por outro lado, é possível lutar para transformar o sintoma social para que aquele tesão seja melhor aceito. É, aliás, o que sempre aconteceu na história – e a 32
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neura acusava essa luta de perversão. Só quem fica fora – porque fica fora da situação humana – é o psicopata. Para este, não há salvação já que não tem troca, não tem empatia. Psicopata não transa, ele forja e força. Vê-se isso frequentemente na presidência de um país. Então, se Ipsismo é o exercício das formações próprias – “o que faz com que alguém seja ele próprio e não outro” –, fará inarredável comparecimento naquilo que cada qual jacula em masturbação pessoal e intransferível. Masturbação aqui entendida não na instância primária da carne 4, mas ART-ficializada, ARTculada – aquilo que se cospe, que jacula-se, que esporra-se singularmente rumo às estrelas. E, por um átimo, nesse gozo aquilo se neutraliza, esvazia-se lá onde Haver se esborracha na sarração mortal com seu Impossível. Claro que, melada da porra própria, mas com a marca da experiência de “zeração”, a IdioFormação é cuspida de volta – o outro lado nunca houve mesmo – para retomar sua punheta, novamente e para sempre como lhe condena ALEI: destino inexorável do Gozador, o retorno como Gozado. O que significa dizer que a IdioFormação, se há percurso de Cais Absoluto, exercitará a gradativa “monstra-ação” de seu tesão 4
Vale precisar, contudo, que nada impede que um reviramento de tipo místico ou estético
– portanto, secreções secundárias por pressão originária – possa subproduzir concomitantes gozos primários como reza a lenda de São João da Cruz, que teria dado prova viscosa deste tipo, ou ainda o caso recente (maio de 2023) do orgasmo filarmônico de certa californiana por comoção à Quinta Sinfonia de Tchaikovsky – casos de orgasmos multiplânicos. 33
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singular nas suas transas no seio de Haver. Aliás, o tema do Ipsismo atravessou a obra de Marcel Duchamp. Ele era um punheteiro de coturno. Haja vista à parte de baixo da Mariée, onde os celibatários fazem o quê olhando para cima? Além disso, como a cópula absoluta, a consubstanciação em extinção, não é disponível, e o tesão não desiste, o pedido de engate só pode reverter para dentro do Haver que é tudo que há. Mas se deu-se experiência de defastamento radical, aquilo vai se desemaranhando e depurando um estilo – um jeitinho ipsista de cantar o Haver, de lhe propor engate: a modalização ipsista da mesma coisa que Haver faz com não-Haver. A análise seria o exercício por meio do qual depuramos nosso pedido único para transar com o Haver, por onde refinamos a cantada para ver o que Haver tem para nos contar. Ter tesão é querer saber lá em cima, mas – com a morte incluída e a cara quebrada – engajar-se gnomicamente no que Há para gozar do jeito que dá. MD faz a mostração de que tudo é transa de formação – acervos cutucando aspectos querendo engate, em movimento de desrecalque, de conhecimento, de inclusão de porrinhas novas dentro do Haver. Toda a movimentação gnômica são mãos de Escher punhetando o Haver para ver se aquilo goza, o que dá para gozar dali. No limite, coisa impossível, a cantada ipsista de cada singular coincidiria com a cantada masô que Haver passa no inconquistável não-Haver – ou seja, assintoticamente a fantasia singular se encaminharia para coincidir com a Fantasia Originária. 34
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Na hipotética absoluta indiferença – esvaziada de qualquer sintoma –, a Pessoa engataria em qualquer troço ou joça, por qualquer buraco, ponta, aresta, curva, umbigo ou dobra. O que ainda é muita anatomia – aquilo soprogozaria. Mas de volta: MD explicita o destacamento da Obra de Arte como o “lugar do Reviramento, da Indiferença, da Soberania” lá desde 1976. É por aí que, dentre outros rendimentos, o Ipsismo se mostra via ótima para reacessar a questão da Soberania e também a da descrição do lugar onde a Fantasia Soberana da IdioFormação – na qual se flagra em operação o algoritmo mínimo, destacável em análise, do teresiano “morrer de não-morrer” de cada Pessoa – vai desaguar junto com a Fantasia Originária do Haver. Ʃ Ʃ Ʃ
Não só, mas notadamente em 1996, são elencados testemunhos de mártires com percurso endereçado ao Cais Absoluto pela via do erotismo místico como Santa Teresa e Georges Bataille. Já que, anteriormente (capítulo 3), falei de Hilda Hilst como a “Santa Teresa de Campinas”, tomo agora o Ipsismo para promover mais um anjo à galeria: “São Genet” – o Soberano da Masturbação – exuberantemente jaculado em sua Nossa Senhora das Flores (1943). Certamente não se ignora, que em Jean-Paul Sartre já “baixara” a sacação de Genet como “santo, mártir e ator” (1957). Como há, porém, bastante o que desdobrar desta sacação, 35
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referenciados à ferramenta que aqui NovaMente se emprega, avanço. É entre porra, peido e piolho que São Genet funda seu Imundo – mundo fora do mundo invocado de dentro da masmorra. É desde a mais abjeta clausura que um “espírito livre” afirma sua soberania com mão no pau, olho nos bandidos, mas mira no abismo. Narra ele: “Com as mesmas pérolas com que os presos do lado fazem coroas mortuárias, fabriquei para os mais puramente criminosos dentre os detentos molduras em forma de estrela. À noite, enquanto vocês abrem suas janelas para a rua, eu viro para mim as costas do regulamento. Sorrisos e esgares, uns e outros inexoráveis, me adentram por todos os meus buracos oferecidos, seu vigor penetra em mim e me enleva. Vivo no meio destes abismos” (p. 68). Colando as fotos, que recorta de jornais descartados pelos carcereiros,
de
seus
personagens-fetiche
no
avesso
dos
regramentos do mundo prisional, Genet se abisma de pau apontado na sua ART-ficiosa produção de soberania: “Com a ajuda dos meus amantes desconhecidos vou escrever uma história. Meus heróis são eles, colados na parede, eles e eu que estou aqui trancafiado. (...) A morte deles (...) será para todos a morte daquele que, ao ouvir do juiz a sentença, se contentou em murmurar com seu sotaque da Renânia [ironicamente, o assassino homenageado partilha da proveniência de Mestre Eckhart]: ‘Eu já estou um pouco além disto’” (p. 70). Refere-se Genet aqui a um certo Weidman – 36
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“assassino encantador” que, aos vinte anos, teve o pescoço cortado pela polícia – e cuja foto é o troféu que os jornais estampam em primeira página. Faz questão de lembrar Genet que o tal “Anjo Sol”, no momento de sua execução, fez “fiau com o dedo na ponta do nariz para o carrasco enraivecido” (p. 65) Na conversa de MD com Georges Bataille em torno de Soberania, diz ele que Bataille, lendo o Albert Camus d’O Homem Revoltado (1951), “qualifica esse lugar da revolta como lugar de assunção e exposição do movimento de soberania, onde não se admite ser indignado, tornado in-digno pela definição de seu modo próprio de haver – que é extremo, não é mera modalidade, mas sim que é, enquanto IdioFormação, igual à ‘modalidade’ singularíssima do Haver –, lá onde se exige ser devidamente considerado como um modo de Haver tão reconhecível como outro qualquer. Ou seja, de não se ser submetido a designações em conformidade só com a sobredeterminação” (p. 97-98). Não seria outra coisa o que assintoticamente se aproximaria da cura psicanalítica – o perene remetimento à experiência de Indiferenciação como via de destacamento da singularidade. Nesse sentido, o tesão de cada um é sempre i-mundo e sagrado posto que destacado e validado pela requisição da HiperDeterminação que desautoriza mundo como regrador dos tesões. Continuando: “O mundo soberano é o mundo onde o limite da morte é suprimido. Não há morte humana capaz de atingir o soberano”, talqualmente expresso pelo “Anjo Sol” de Genet em seu 37
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deboche derradeiro. Claro que, para melhor situar a questão, será preciso alargar a consideração de Bataille de “não há morte humana” para o postulado axiomático de que “a morte não-Há”. E é esperado que, na esteira dessa conversa, outras diferenças se imponham, sendo talvez a mais importante o deslocamento entre o que seja “viver soberanamente” (Bataille) e o que é posto como coisa bem outra: “viver referenciado à Soberania”, ou seja, em postura de perene produção de Indiferença Radical. Dentre os Revirões que suponho ver rodar em Genet, destaco o Místico / Libertino. Dentro daquela cela uma formação se exaspera. Segundo que modalidade? Sabe-se que a via mística opera por “renúncia”, por defastamento de mundo, por abandono do erotismo do Haver e de suas oposições internas, em encaminhamento de uma experiência direta com o Divino, de supressão da distância entre Eu e Deus; ao passo que a via libertina faz a operação justo oposta de busca de indiferenciação por “redução”, por insistência do erotismo no Haver, por esgotamento sexual do Eu como forma de obter alguma “a-pathia sexualis”. Por caminhos que se modalizam opostos, místicos e libertinos pedem a mesma cópula mortal. O Genet de “Nossa Senhora” parece juntar as duas vias – ou seja, percorrer um Revirão de alelos místico e erótico. Se sua prática é erótica – de exasperação carnal –, ela é também renunciante, posto que absolutamente solitária e i-munda – fora do mundo. Genet se retira de corpo e alma, aprofunda a clausura que 38
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as regras do mundo lhe impuseram – dobra a aposta e se coloca em lugar absolutamente inatingível. (Diverte-se mesmo pensando que nem a guerra que se trava do lado de fora dos muros da prisão pode tocá-lo.) Nem guerra, nem morte, pois como seu personagem Weidman, “ele já está um pouco além disso”, ali até a morte está para jogo. Nesse sentido, Genet cerra fileiras com a longa tradição do que foi nomeado sob o amplo guarda-chuva do “Espírito Livre”. Diversos movimentos, manifestações e expressões ditos hereges – pela igreja, óbvio – que se multiplicam na Idade Média Tardia europeia e que de alguma forma colocam a lei do Espírito acima da lei dos homens. Lembramos que a grega “hairesis” significa “opção, escolha” – outras que não a da ortodoxia eclesiástica, no caso. Entre os séculos XIII e XV, a Europa verá uma proliferação de irmandades, ordens terceiras, andarilhos, mendicantes, penitentes, bergardos e beguinas, dentre outros, caminhando por estradas desviantes da ortodoxia. Acontece no seio dessas emergências que algumas vertentes borram as fronteiras da lei. Se a via mística genericamente é aquela que busca o conhecimento, o contato direto – experiencial – com Deus, algumas de suas vertentes podem reivindicar um nível de liberdade que lhe seja mais condizente. E algumas dessas expressões de fato incluíram a prática do sexo livre, do assalto e mesmo do assassinato. O que está em exercício é a radicalização do mesmíssimo pedido de conjunção Eu / Deus pela via do aniquilamento pessoal, do apagamento de si 39
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em nome da fusão com Deus. E, nesse empuxo, as leis vão embora junto com o mundo, com a carne, com a própria morte. Genet justamente ama os bandidos, os ladrões, os falsários, os cafetões, os assassinos – são a sua turma. Uma legião que extrai sua soberania do desprezo às leis dos homens. Retomo o Ipsismo na consideração da santa fantasia genetiana. Se a fantasia enquanto ipsista – pessoal, única e intransferível – é a “impressão digital” da IdioFormação (MD, 2019): qual seria a fantasia do São Genet? O que faz a Nossa Senhora das Flores se masturbando com seus bandidos-fetiche? Qual é o pedido ali? Quer gozar de quê? Como se monta sua fantasia e como aquela Pessoa se monta como fantasia? Quais as formações componentes? Como se engatam e como funcionam naquele caso? Como aquele único, assumindo o tesão, e no concerto das suas formações, dispara seu jato para as estrelas? O que ele pede ao pau? Onde aquilo quer enfiar-se ou como quer enfiar-se Naquilo? O que se masturba aí? Que algoritmo ali roda? E que Revirões descreve? Uma primeira pista subtrai-se da leitura sartriana (Gallimard, 1957). Saca-se ali no “santo, mártir e ator”, que Genet abre o “armário de um fetichista” para dispor sua “coleção de talismãs eróticos. O Nossa Senhora das Flores – o Épico da Masturbação para Sartre – seria o exercício de sua desintoxicação, de sua cura, de seu voltar-se para fora, de sua artificialização, de sua indiferenciação. Sobre os personagens-fetiche de Genet: em 40
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primeiro lugar, não têm existência própria, nem coerência, nem integralidade, nem temporalidade determinada, são convocados e só existem – completos ou em partes – para seu gozo. Em segundo lugar, misturam-se entre eles. Bem à moda da Teoria das Formações, formações de formações de formações destacam, se rearranjam e desarranjam ad hoc, ao gosto do freguês. E mais: misturam-se entre si e com o próprio Jean. Masturbador e fetiche se fundem e se subtrocam ao gosto e no ritmo masturbatório. E, nesse expediente, Genet modaliza o Revirão sado / masô que é próprio da transa entre Haver e não-Haver. Na transa ali acontece de tudo: Genet encarna Nossa Senhora das Flores. É comido por Mignon que come Divina, vira Divina. E por aí afora. Gozador e Gozado se indiferenciam em reviramento de transação perene. Ali, todo um cortejo de bichinhas, bofes, veados, pederastas, mariconas, bichonas, soldados, ladrões, cafetões, marinheiros, açougueiros, falsos moedeiros, padres se liquefarão com o próprio Genet em jorro com mira em um além mundo. Diz o texto: “Aconteceu comigo numa aurora colocar meus lábios amorosamente, embora sem nenhuma razão aparente, sobre o corrimão gelado da Rua Berthe, outra vez beijar minha mão, e depois ainda, não aguentando mais de emoção, de desejar me engolir eu mesmo voltando minha boca desmesuradamente aberta por cima de minha cabeça, fazendo passar todo meu corpo, depois o Universo, até então não ser mais senão uma bola de coisa mastigada que pouco a pouco desaparece: esse é o modo pelo qual 41
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encaro o fim do mundo. Divina se oferecia à noite a fim de ser devorada de ternura por ela mesma e jamais ser vomitada” (1951: 90). Se Santa Teresa quer fundir-se / foder-se com Deus, a cópula de Genet é com ele, quer engolir-se e engolindo-se, engolir o mundo. Fodendo consigo, ele quer foder com o Haver. Sumir-se ele e Haver num impossível não-Haver. Como qualquer fantasia, a de Genet é sua resposta ipsista diante do requerimento de Haver fundir-se / foder-se com ou esvaziar-se / sumir-se em não-Haver que não há. Atravessar, destacar a fantasia na análise seria como que sacar como cada qual faz seu requerimento de não-Haver, seu jeito próprio, e não de outro, de convocar a morte que não-Há. Que feição sintomática querer não-Haver singularizou-se ali naquela Pessoa? Deriva disso que afirmar uma soberania é incluir aquela fantasia – aquela forma sagrada de gozo, aquele jeito único de pedir a morte. Trata-se de desalienar o modo soberano de morrer de nãomorrer. E o que acontece desde certa cela da Maison Centrale Clairvaux é alg’HUM, já sem rosto, que ali jacula para faturar nãoHaver. Que não-Há. A condenação sendo esta e não a do cárcere. O cárcere é Haver. A condenação é à punheta eterna. Que seja a mais ipsista possível. É o que se tem para hoje e para sempre. Amém. Ʃ Ʃ Ʃ
NOTA MD me acha desbocado, mas não me censura. 42
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FRAGMENTOS [...] Roger Penrose diz que falta à física um pedaço para ser capaz de gerar um cérebro como o nosso. Falta-lhe entender que o Inconsciente faz parte da cosmologia. O Haver é o Inconsciente. Este não tem limite. É a consciência que põe limite. Basta lembrar que dormimos, sonhamos uma loucura e pensamos estar malucos – e estamos sim. [...] Pode-se fazer uma lista em raciocínios curtos do que decorre da tese do Inconsciente como Haver (que incluem cosmologia): (a) justifica-se o conceito de IdioFormação para situar a repetição em homologia do funcionamento em Revirão em qualquer lugar do Inconsciente como Haver (b) emergiu no regime terráqueo e biótico conhecido como a história do planeta e o surgimento de vida com a caracterização que sintomatiza a IdioFormação com certo Primário que produz Secundário por pressão de Revirão, que não tem como não se sintomatizar na transa com esse Primário, tendo o Revirão como pressão de ascese, de transcendentação. Por isso mesmo, essa presença aqui, desfigurando o Primário como vem fazendo, pode mesmo produzir um salto de transcendentação, que é uma replicação maquínica com outro suporte da mesma articulação em Revirão. (c) Entender sexualidade, dado que está colocado o conceito de IdioFormação com essa estatura, tudo que 43
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se situa como sexualidade é expressão erótica, estética e lógica no aglomerado de formações do Ipsismo da IdioFormação. (d) Conhecimento, trata-se de acompanhar em com-sideração a transa das formações em jogo a cada caso e a cada vez. (e) A política como Diferocracia. (f) Tecnologia. (g) Arte, sobretudo. Entendimento do genérico [trecho transcrito sem edição – corrijam] [...] Música, essencialmente, é qualquer. Ela será sintomatizada por aquele que a compõe, mas é qualquer. Basta ouvir os sons ao nosso redor, para ouvir a música. Hermeto Pascoal é alguém que faz música com qualquer coisa e faz música qualquer, sem pé nem cabeça. Villa-Lobos foi à Amazônia, escutou os sons de lá, colocou numa partitura e transformou em sinfonia. No final dos anos 1960, MD conta que estava numa piroga no Rio Negro próximo a uma cachoeira, e o que ouviu – o som da selva junto com o da cachoeira – fez com que lembrasse de uma sinfonia do Villa. Erik Satie jogou seu piano de cauda pela janela só para ouvir o som dele caindo. Ele é quase um Duchamp da música. [...] Uma IdioFormação de nosso caso, uma pessoa, é cópia, réplica, análogo, homólogo do Haver? O termo réplica serve, é uma replicação do Haver. MD já disse que o Haver tem que produzir IdioFormações de algum modo porque são sua consciência. O Haver é inconsciente, mas produz consciência. Produz as mais 44
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estropiadas consciências como podemos ver na péssima qualidade da consciência de macacos em que habitamos. O que é preciso entender é que essa produção é rara, dado que o Haver é perdulário e capitalista. O bom exemplo disso são os espermatozoides diariamente assassinados aos trilhões. De vez em quando, um dá uma reproduzida. Ou seja, a humanidade é um monte de merda para, raramente, alguns se destacarem como criadores – ou seja, somos os espermatozoides do Haver. Notem que o operário de Marx é um robô como todos nós (atualmente, um robô desempregado, aliás). Se há Revirão, por maior analogia que haja, é computável. [...] É impressionante como o cristianismo é inferior. O simples fato de a China não ter compromisso cristão a coloca em vantagem para entender a produção do Quarto Império. O Ocidente jamais produziu um pensamento como o Zen. O que tem são alguns poetas com cabeça zen. Entretanto, é preciso considerar que tudo que acontece tem uma função paradoxal, digamos. Por isso, a NM não permite limitações. Ela se desenvolve metanoicamente, mas a vontade de ciência, de saber, [é devedora do cristianismo] [conferir], é paranoica. Então, não se trata de matemizar, como quis Lacan, porque o pensamento paranoide é também necessário. O que não cabe é contar só com ele. Ou seja, é também preciso circunscrever, se não, o pensamento se perde. O chato é criar-se uma cultura paranoica, sem o outro lado. A China tinha Confúcio, 45
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mas também tinha Lao-Tzé, e isso no povo. O povo conhecia os dois. O autor citado no título do capítulo de hoje, Zhao Tingyang, explica que a tradição chinesa é o Haver, a paranoia vem historicamente depois. Não é que lá não tenha havido a paranoia, mas ela não é o fundamental da China. Xi Jinping, que lá está no comando, é do povo, de baixo para cima. Como ele é rigorosamente obediente à vertente chinesa, pensam que é ditador.
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