Política e Metafísica [1, 1 ed.]

O que é a política? O que poderia ser a vida comum? Essas perguntas estão no início dessa pesquisa. Se às perguntas falt

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Política e Metafísica [1, 1 ed.]

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Miroslav Milovic

POLÍTICA E METAFÍSICA

POLÍTICA E METAFÍSICA Copyright: Miroslav Milovic Copyright da presente edição: Editora Max Limonad Revisão : Rochelle Cysne Frota d’Abreu e Renato Reis Caixeta

Para Níkola, Lia, Lolô e Roche

INTRODUÇÃO O que é a política? O que poderia ser a vida comum? Essas perguntas estão no início dessa pesquisa. Se às perguntas faltam uma sugestão, procuraremos entender como essas palavras aparecem na história. Este é o caminho da discussão. Vamos então iniciar a discussão no contexto grego, tradicional. Não é algo que já cria um olhar eurocêntrico da discussão. Este início grego simplesmente chega até nós. Por isso a escolha. Neste contexto grego, vamos entender a relação íntima entre a metafísica e a política, ou melhor dizendo, os pressupostos metafísicos da política. Para saber o que fazer, precisamos de uma orientação ampla, ligada aos fundamentos do mundo. Este é o primeiro passo da discussão. Vamos ver que as leituras posteriores, cristãs, ficam neste horizonte, que também podemos chamar de Tradição. Os pressupostos metafísicos da política articulam o mundo grego e cristão. Isso é a Tradição. Como e por que este mundo mudou? Como entender a política no mundo que estamos chamando de modernidade? Ou seja, como compreender estas articulações políticas no nosso mundo. Obviamente algo mudou. Não tem sentido usar a palavra diferente para o mesmo mundo. O que é, então, a Modernidade? No início da política ainda não fica clara a perspectiva política. Alguns falam sobre a separação política dos pressupostos tradicionais. Outros pensadores dessa época se dedicam a uma leitura diferente, científica do mundo, e por isso até falam que é uma perda de tempo procurar as verdades do nosso mundo social. Mas estamos já no contexto social e queremos entender isso. O que seria, então, a verdade da política? Para entender a resposta possível, temos que entender uma palavra específica da Modernidade. É a palavra subjetividade. A Modernidade é o mundo dos sujeitos. Pelo menos a partir do século XVIII temos essa leitura. Pensar o mundo, como veremos já com Kant, significa pensar os pressupostos da sua constituição. Kant, assim, inventou os sujeitos. Mas ele ainda não chega até à política. A questão dos sujeitos políticos é uma invenção de Hegel. Pensar os pressupostos, para Hegel, vai incluir a dinâmica social, vai revelar os pressupostos políticos do mundo. Assim estamos chegando até uma consequência impensável no mundo tradicional. Agora é a política que cria os

pressupostos da metafísica. É uma mudança estrutural. Política no fundo da metafísica e não a metafísica no fundo da política. Talvez a mais importante na relação entre a Tradição e a Modernidade. Este é o segundo passo da discussão. O mundo moderno, criado, constituído, nos afirma, pensa Hegel. A consequência é a realização política da nossa liberdade. Por isso tem sentido modernizar o mundo, mesmo repetindo o passado. Repetir, sim, porque chegamos até as últimas consequências da história do ser humano, até a verdade dele. Por isso, mesmo nessa ausência de futuro, Hegel vê a nossa afirmação. Hoje ainda somos testemunhas dessa repetição. Podemos ainda problematizar essa leitura feliz da Modernidade? As dúvidas aparecem logo. Onde Hegel procura a nossa realização política aparecem as leituras sobre a despolitização. Este é o próximo, terceiro passo da discussão. Schmitt, Arendt, Habermas... São algumas sugestões dessa leitura. Ou poderia ser o próprio Marx quem logo, mesmo aprendendo muito com Hegel, vai falar sobre o profundo conflito na Modernidade: no fundo da Modernidade, segundo Marx, está a crise e não a nossa afirmação. O último passo da discussão radicaliza as consequências dessa despolitização. Aqui aparece a palavra biopolítica. Os gregos separam a política da vida biológica. É o milagre deles. Por que a vida se aproximou da política no nosso mundo moderno? Por que um dos nossos projetos desde o início da Modernidade, que estamos sentindo no nosso cotidiano, é sobreviver, preservar a vida natural? O que significa essa presença da vida na política? Os gregos não pensavam assim. Parece que ficamos sem a expectativa de que a política seja algo mais, algo do divino, como eles esperavam. Parece que no final da modernidade ficamos sem a política. É a consequência da leitura sobre essa palavra biopolítica. É ainda possível reinventar a política e a vida comum? Queria agradecer aos meus alunos da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília pelas discussões. Por isso o livro poderia ter também o subtítulo: ensaios sobre a filosofia do Direito.

METAFÍSICA E POLÍTICA

METAFÍSICA E POLÍTICA 1. Nessa parte gostaria de mostrar a ligação entre metafísica e política no contexto tradicional no sentido de uma específica dependência política da metafísica. Num momento posterior, falando sobre a Modernidade, vamos encontrar algo, eu diria, completamente diferente. Parece-me que no contexto moderno é a própria política que cria um fundo metafísico. Isso será uma das mudanças estruturais entre a Tradição e a Modernidade. Como entender isto? Vamos primeiro seguir os passos da Tradição. Vou discutir alguns pontos falando sobre Platão e Aristóteles. Acho que eles determinam, talvez, o mundo grego. Falando sobre a Tradição, ligada com o pensamento grego, não quero criar nenhum olhar eurocêntrico. Mencionei isso já no início. São os gregos que articulam o início da nossa cultura e entre eles, Platão e Aristóteles, determinam as consequências chegando talvez até nós. São, na verdade, duas perguntas que nos interessam. Uma é a relação posta entre a metafísica e a política e outra a pergunta sobre a própria metafísica. Finalmente a pergunta sobre a relação entre a metafísica e a política tem que esclarecer o próprio início, quer dizer, a própria metafísica. Vou seguir uma leitura conhecida. Os gregos investigam o mundo, mas dizem algo que vai determinar a nossa cultura. Por um lado, eles, por exemplo, colocam as perguntas sobre a física. Por outro, eles acham que existe algo além das pesquisas sobre a física, o que determina o seu próprio fundamento. Além da física, existe a metafísica. Isso está no início. Platão e Aristóteles usam a palavra a “filosofia primeira”. A metafísica como palavra vai aparecer depois no contexto da sistematização da obra aristotélica. O mundo tem os fundamentos que a física ou, poderíamos dizer, a ciência não conhece. O mundo tem a estrutura metafísica. Isso, de novo, está no início da cultura europeia e chega até hoje, como queria mostrar. É algo que poderíamos entender como milagre grego: pensar o mundo não se identifica com o pensar as suas aparências e sim os seus fundamentos. O milagre aparece com a metafísica. Aqui também aparece o sentido da filosofia. Ela se identifica com a metafísica. Os amigos da sabedoria, como pensa Platão, que não se deixam seduzir pelo conhecimento das aparências estão no caminho da metafísica. Suponhamos uns homens, fala ele no início do sétimo livro da República, “numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Então lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado

permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe...”.[1] Sair da caverna, ver a luz, a transparência, a verdade do mundo: isso é o recado platônico. Um recado ainda para nós, talvez. Por um lado difícil, mas por outro lado talvez nem tanto. É só virar a cabeça... Περιαγωγή é a palavra grega. Só virando a cabeça mas não ainda, como pensarão os cristãos, questionando a própria razão. Pelo contrário, a razão para os gregos é o único caminho seguro. Já temos, então, uma ligação íntima entre a filosofia, a metafísica e a razão. Poderíamos colocar a palavra ontologia ao lado. A ontologia é a pergunta sobre o ser que se abre para um olhar metafísico. Teoria poderia ser outra palavra neste contexto. Vem deste olhar contemplativo. Com a teoria como filosofia e como metafísica, o ser humano pode se entender. Entender a própria origem divina, por um lado, e entender como agir, por outro. Ou como pensa Sócrates, para agir precisamos saber o que é o mundo, o logos dele. Precisamos entender o que é a própria natureza para poder nos entender. Por isso este olhar teórico, a vida contemplativa tem a primazia para os gregos. E vamos ter que esperar muito tempo, milhares de anos para entender o recado kantiano sobre a primazia do prático. A nossa discussão sobre a política obviamente tem que entender essas mudanças. O milagre grego, falei. Já na teoria, talvez, pensando sobre Hannah Arendt, que procurou, como vamos ver, o milagre grego só na política. Este milagre talvez ainda possa falar algo para nós, nos inspirar. Talvez só essa diferença entre a metafísica e física, entre a filosofia e a ciência pode ainda dizer muito para nossa cultura. Para uma cultura que abandonou as perguntas filosóficas e se entregou à ciência. No nosso tempo é a ciência que orienta a filosofia e não a filosofia que orienta a ciência. A filosofia guardou só um nome triste, chamado epistemologia que se pronuncia com muito respeito e significa uma desgraça espiritual. Como e por que aconteceu tudo isso? Como os gregos pensam a primazia da filosofia e nós da ciência? Temos, claro, que entender se isso é uma mudança justificada. Por que, finalmente, defender a filosofia? Melhor, talvez, abandonar essa sedução grega. O nosso mundo é outro. E, falando sobre a filosofia, qual é a filosofia que queremos defender? Ainda podemos falar sobre um olhar privilegiado, chamado filosofia? Deixo, pelo menos essa diferença entre a filosofia e a ciência, como um recado grego importante, penso. Ou melhor, como uma inspiração. Porque o que acompanha o recado são as leituras platônicas muito dramáticas. Falando sobre o mundo, Platão, por exemplo, já está fazendo uma hierarquia entre o mundo dos fundamentos e o das aparências, por um lado e uma hierarquia entre

vários tipos do conhecimento, como a filosofia e a ciência, por outro. E só a questão do momento em que essa hierarquia vai se articular como a hierarquia social. Vamos continuar por aqui indo para uma articulação do prático querendo mostrar a sua origem metafísica. Podemos aqui ouvir as palavras de um sofista: “As leis são criadas por convenção, não pela Natureza”, fala Antifo, no tratado Sobre a Verdade.[2] E um pouco depois: “Podemos observar as características de qualquer das faculdades que pela natureza são necessárias a todos os homens… Nenhum de nós, grego ou bárbaro, tem essas características de forma especial. Todos respiramos o mesmo ar, pelas narinas e pela boca”.[3] Pode ser que a nossa cultura seria melhor sem as hierarquias platônicas, com essa leitura dos sofistas sobre a contingência e a convenção. Mas, somos herdeiros de Platão e temos que entender isso. Ele combate sofistas com toda a força tentando mostrar a origem divina do ser humano, a metafísica e não as práticas particulares da cultura. Ele é explícito neste ponto. As leis não podem ser pensadas a partir das conveniências. A lei e a arte provém ambas da natureza.[4] Pode ser que essa origem nos relacione de outra maneira com o mundo e, neste caso, poderíamos ainda seguir a leitura platônica. Deus é a medida de todas as coisas e não o homem, fala ele nas Leis[5]. Um recado sábio para a nossa época dominada pela afirmação do homem do jeito que chegamos até as catástrofes ecológicas e a destruição nuclear. Não vamos entrar nessa estrutura metafísica do mundo platônico. Não é mais o argumento que podemos seguir. No contexto moderno vamos num momento voltar para uma específica confrontação hegeliana com a herança platônica. Hegel vai se confrontar com o idealismo platônico afirmando outro idealismo ligado à ideia da subjetividade. Será importante entender porque Hegel afirma a estrutura idealista do mundo na época da revolução francesa, na época de um forte desencantamento moderno e de uma explícita transparência moderna ligada ao avanço da ciência. Vamos deixar outras perguntas de lado também. Entre elas, as questões da relação entre as ideias, por exemplo, da ideia do Bem com o divino, as questões da criação do mundo, etc. Vamos seguir outro exemplo ilustrativo para a nossa discussão. É a pergunta platônica sobre a justiça. Discutindo essa pergunta fica muito explícito o vínculo entre a metafísica e o mundo prático, entre a metafísica e a política. A gente, neste momento, talvez ainda não tenha a sistemática aristotélica da relação entre o prático e o teórico, mas a inspiração metafísica da política fica bem visível. Falando, então, sobre a justiça, Platão dirá que cada um de nós “deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela para a qual a sua natureza é mais adequada”.[6] O que significa essa diferenciação das funções, onde Platão procura a justiça? Como saber que estamos agindo da maneira justa?

Para poder responder temos que saber como Platão relaciona o mundo metafísico e o nosso mundo prático. Aqui nos ajuda outra palavra importante – alma. Numa época, a nossa alma viveu no mundo metafísico, das ideias, e volta para ele depois de um tempo. Neste sentido, aprender, fala Platão no Fédon “não é outra coisa senão recordar... não há dúvida de que, numa época anterior, tenhamos aprendido aquilo de que no presente nos recordamos”.[7] O próximo passo é a questão sobre a estrutura da nossa alma. Talvez Platão, observando o nosso corpo, faça a diferença entre a nossa razão, o nosso espírito e o nosso apetite. Essas partes correspondem com as virtudes. Assim a virtude ligada a nossa razão é a sabedoria, a virtude ligada com o nosso espírito é a coragem e a virtude ligada com o nosso apetite é a temperança. E só um passo a mais para Platão determinar a estrutura ideal do estado. Essa estrutura tem que corresponder à estrutura da nossa alma. Platão acha que o estado é uma específica realização da nossa alma. Assim quem tem que governar são as pessoas ligadas à sabedoria, quer dizer, os filósofos. Depois chegam os militares ligados à coragem e finalmente os agricultores relacionados à temperança. Com essa estrutura se realiza a proporcionalidade que Platão vê na ideia da justiça. O estado é justo se está seguindo a nossa natureza e a nossa natureza tem a origem na própria natureza do mundo. Assim, fica ilustrativa a inspiração metafísica do prático, da política e do direito. De novo, para saber o que fazer, temos que ouvir o logos, entender a estrutura do próprio mundo. Neste ponto concordo com as interpretações da inspiração metafísica do prático em Platão. Ele se pergunta sobre os fundamentos, por exemplo, do direito, quer dizer, sobre os princípios “de ordem superior ao direito positivo”.[8] Neste contexto é possível falar sobre as origens gregas da teoria jus naturalista. Mas assim não fica clara a relação entre a metafísica e o jus naturalismo, quer dizer, a específica perspectiva jus naturalista da modernidade, por exemplo. O jus naturalismo moderno não se entende necessariamente no contexto metafísico. E é até uma confrontação com a metafísica. Por isso, precisamos nos dedicar mais com as perguntas sobre o jus naturalismo. Antes de continuar a discussão, gostaria de relembrar um ponto da discussão platônica. É o livro X da República e a discussão sobre a arte. Nos ajuda a entender melhor o seu projeto. Platão fará a diferença entre a arte e a filosofia. Por vários motivos, – gnosiológicos, pedagógicos e ontológicos – ele irá se confrontar com a produção artística. Arte só imita o mundo e “... imitador não tem nenhum conhecimento válido do que ele imita, sendo a imitação apenas uma espécie de jogo de criança, despido de seriedade…”.[9] A arte mexe apenas com as aparências e finalmente “produz apenas fantasmas”.[10] O belo não é o belo artístico, mas metafísico. Obviamente uma das questões é quando a arte vai se

confrontar com a dependência metafísica e afirmar a própria autonomia. Não é a pergunta para a nossa discussão, mas mesmo assim a gente vê aqui as consequências dramáticas do pensamento platônico. Como observa Deleuze, Platão não só quer afirmar a primazia do universal representado na filosofia, mas quer expulsar do estado ideal tudo o que não o representa. O sentido do particular não reside na sua diferença, mas na representação do universal. O pensamento também representa e a filosofia é a melhor representação. Hannah Arendt procurará neste contexto o início do mal, ou da banalidade do mal que determina a Europa moderna. No próximo passo, tentaremos reconstruir o argumento de Aristóteles. Ele é dedicado às pesquisas empíricas. Tem, por exemplo, o livro Física, que a gente não encontra nas leituras platônicas. Se dedicar mais às questões lógicas do que dialéticas. O que nos interessa é a pergunta se essas diferenças questionam a intuição fundamental dos gregos sobre a estrutura metafísica do mundo. Vamos nos dedicar mais a Aristóteles, porque a sistemática do pensamento dele chega até a modernidade tardia, até o próprio pensamento kantiano. E temos que entender a sistemática dele porque entender a Tradição, o mundo grego e cristão, por um lado e a Modernidade, por outro, significa entender as diferenças que aparecem dentro dessa sistemática. 2. No início do capítulo VII da Política, Aristóteles diz que “o bem em política é a justiça, ou seja, o interesse comum”.[11] A pergunta é como ele chega até o conceito do que seja o bem comum. Vamos ver se neste caminho ele se aproxima ao pensamento platônico ou se distancia dele. Como sabemos ele é o autor da Física, que Platão não tem. Aristóteles se dedica mais às leituras lógicas do que as questões dialéticas. Parece que assim o pensamento sobre o mundo se abre mais à ciência. Se é assim, fica complicado falar sobre o pensamento grego e a relação entre a metafísica e a política. Talvez a gente possa falar só sobre os autores particulares. Mas, seguindo a articulação do bem comum, ficará claro que Aristóteles, mesmo se dedicando às pesquisas empíricas, guarda a imagem metafísica do mundo. Para entender isso vamos pegar um trecho de Organon: “Substância na acepção mais fundamental, primeira e principal do termo, diz-se daquilo que nunca se predica de um sujeito, nem em um sujeito, por exemplo, este homem ou este cavalo. No entanto, podemos falar de substâncias segundas, espécies em que se incluem as substâncias primeiras, e nas quais, se são gêneros ficam contidas as mesmas espécies”.[12] A diferença entre a primeira e a segunda substância é fundamental. As

primeiras substâncias são as coisas singulares. A palavra no texto é sujeito, mas vale lembrar que os gregos não entendem essa palavra do mesmo jeito. Ou melhor dizer: eles nem têm essa palavra. A palavra Υπoκέιμενον no texto se refere ao substrato e não à subjetividade. A boa parte deste trabalho, pelo menos a diferença entre a Tradição e a Modernidade, vai se articular tendo essa palavra como critério. A experiência da subjetividade e a própria palavra são especificamente modernas. A Modernidade é a questão da constituição da subjetividade, onde temos que procurar outra elaboração da relação entre a metafísica e a política. A primeira substância no Organon não é o lugar do conhecimento. Sobre o particular não existem as definições, por exemplo. Para um pensador da lógica, como Aristóteles, o essencial se articula com as definições. E no caso das segundas substâncias é o que temos. O ser humano como tal, segunda substância, é o animal racionale, com genus proximum e a diferença específica. Sobre a segunda substância, sobre o geral, temos o conhecimento verdadeiro. Assim Aristóteles vai anunciar a primazia da segunda substância. A palavra é ousia, que os latinos vão traduzir como essência. Temos, no sentido explícito, a primazia do essencial. O particular das narrativas poéticas, como no décimo livro da República, tem que abrir espaço para os conhecimentos verdadeiros. Aqui, na reconstrução aristotélica, até aparece a palavra diferença, como diferença específica, mas ela encontra o próprio lugar só no conjunto lógico. A diferença, como tal, não é para os pensadores como Platão e Aristóteles, digna de ser pensada. Vamos esperar muito tempo para ver quando essa palavra, diferença, vai provocar e articular o pensamento filosófico. Aqui no mundo grego, a filosofia vai anunciar a primazia do idêntico, do eterno e não do particular. Realizando o bem comum na política a gente se aproxima, talvez, da nossa origem metafísica. Isso pode ficar mais claro no contexto da discussão sobre os últimos fundamentos do mundo. É o lugar onde Aristóteles fala sobre o divino. “... o que é movido o é necessariamente por alguma coisa; por outro lado, o primeiro motor deve ser imóvel em si mesmo…”.[13] O problema é que os gregos não conhecem a ideia cristã da criação do mundo. O Deus que Aristóteles coloca no fundo do mundo não é o Deus criador, não é a causa eficiente do mundo. Então, como entender a relação entre o divino e o mundo? Acho que a discussão mencionada sobre a substância possa ajudar. Afirmando o geral, parece que estamos superando a nossa contingência e nos aproximando ao divino. A relação entre o divino e o mundo fala sobre a causa final. O divino não precisa realizar algo, mudar, se desenvolver. É a identidade entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma, é o pensamento do próprio pensamento.

Assim, no contexto teórico da discussão, Aristóteles fará a diferença entre duas partes da metafísica, entre a teologia e a ontologia guardando, como Platão, a primazia do teórico, da vida contemplativa. Vamos tentar nos aproximar ao prático, para entender melhor a estrutura do prático e do bem comum. Em um ponto de sua Filosofia do Direito, Hegel declara o seguinte: “O direito da particularidade do sujeito, seu direito de ser satisfeito, ou em outras palavras o direito da liberdade subjetiva, é o ponto crítico e o centro da diferença entre a Antiguidade e os tempos modernos”.[14] Como deve ser interpretada essa diferença? Qual o fator que diferencia entre, por exemplo, a subjetividade moderna e a ideia de homem aristotélica? Esta questão deve ser tratada mais de perto tendo como guia a relação entre a teoria e a prática. Em primeiro lugar, qual é a importância do pensamento teórico no contexto aristotélico? Pois em seu tempo, investigar o nómos, isto é, a lei da comunidade humana, é também um objeto maior do esforço filosófico. Esta investigação é motivada por Sócrates; mas o ensinamento teórico de Aristóteles não significa um retorno à tradição dos físicos pré-socráticos. Ou melhor, Aristóteles, como vimos, acredita que a natureza seja apenas um gênero particular da realidade. Consequentemente, a física seria apenas uma parte da filosofia, mas não a filosofia primeira e nem a mais elevada. Os pensadores mais antigos foram, dessa forma, somente físicos, mas não filósofos. O que a filosofia investiga são as fundamentações da física mesma – aquela que se encontra por detrás da palavra “física”. A filosofia é, vimos, metafísica; e a esse respeito, a metafísica é a determinação do pensamento filosófico, desde seu início. Porém, é claro que as respostas que se referem à natureza das fundamentações de tudo o que existe não são sempre unívocas. No contexto grego, a metafísica se refere ao mundo do logos. É por essa razão que a ontologia é a resposta à questão metafísica sobre as fundamentações da existência. O elo que liga filosofia, metafísica e ontologia se mostra também relevante na determinação do status da teoria aristotélica. O mundo é uma ordem determinada que somente pode ser descoberta pela filosofa teórica, isto é, metafísica. Já aqui se discerne a diferença entre a Antiguidade e a era moderna. De acordo com Aristóteles, a reflexão teórica é primária. Ela investiga a ordem do logos que é pré-dada. A Modernidade, tendo Kant como sua primeira testemunha e em contraste com a tradição antiga, tenta investigar o papel constitutivo da razão para o pensamento teórico. O contexto aristotélico da discussão torna tal concepção de teoria impossível de ser imaginada. A teoria não pode criar nada. Ela tem a si mesma como referência[15]. E mais, não pode haver espaço para a aplicação da teoria. A teoria tem de permanecer como vita contemplativa, concentrando-se na ordem divina do mundo. Seu papel é o de determinar a verdade – ou seja, tornar atual,

de forma adequada, aquilo que existe. Isto inclui a duplicidade do logos – significa tanto a ordem do mundo como, através do conhecimento, a modalidade na qual essa ordem aparece[16]. O pensamento, assim como a filosofia teórica, é direcionado para a descoberta de fundamentos e causas de tudo o que existe. Isso significa também o alcance da maior beatitude possível por um teórico, tornando a filosofia especial entre as outras formas de conhecimento. Isso torna claro o primado da esfera teórica. Apenas a teoria aponta o caminho para a metafísica. A natureza não mais deve ser interpretada pelos meios da habilidade poética, mas pela filosofia. Obviamente vamos precisar entender como Kant e a Modernidade chegam até a primazia do prático. E também temos que entender como muda a articulação da teoria incluindo, na Modernidade, o conceito da subjetividade. Conhecer é um ato reflexivo, pensam os modernos. Inclui a própria subjetividade. Assim aparece a criatividade da teoria e não apenas o aspecto mimético dela. Foi um erro grego, pensa talvez Kant, não incluir a subjetividade. Mas não incluir a subjetividade na Modernidade simplesmente significa não entender o sentido dela. Para esclarecer a declaração de Hegel anteriormente mencionada, é preciso desdobrar a determinação de Aristóteles da prática. A filosofia prática, em contraste com a teoria, investiga aquilo que é transitório – a saber, o mundo humano. Fazendo isso, Aristóteles, junto com Platão, critica os sofistas por colocarem o homem como o objeto de interesse central, arrancando-lhe de suas raízes divinas. A prática é determinada pelo mundo em mudança. Isto é suficiente para considerar o mundo como imperfeito, sendo a perfeição alcançada apenas por meio do desenvolvimento de seu télos. Além disso, o homem e o universo carregam consigo o propósito de suas existências. Todavia, a majestade do universo, e, portanto, a filosofia teórica repousa sobre a imutabilidade desse mesmo universo. A mutabilidade do mundo humano – a qual a era moderna toma como um sinal de liberdade – incita Aristóteles a fazer dela um sinal de defeito maior. Tais considerações sobre a prática levam forçosamente à conclusão de que a filosofia prática não pode ser tida como a essência da filosofia. O mundo das ações práticas não é abençoado com a confiança do raciocínio silogístico, ao contrário do que acontece com a teoria. A introdução do silogismo prático por Aristóteles foi um sinal de alerta sobre a incerteza que obscurece a contemplação da natureza humana. Isso faz com que o pensamento teórico inquestionavelmente se coloque acima da ação prática. Além do mais, há interpretações que argumentam que somente com Aristóteles pode-se falar do embasamento da filosofia prática. Mais precisamente, Sócrates já “pode ser considerado como o fundador da filosofia

prática, pois ele foi o primeiro a trazer a filosofia para o mundo real, tornando-a comum nas cidades, permitindo-lhe até mesmo que entrasse nas casas das pessoas – e dando espaço para discussões sobre o bem e o mal”.[17] Aristóteles segue o caminho dessa tradição. Ademais, dentro da estrutura da filosofia prática, ele distingue economia, ética e política. Economia, como a palavra fala é o nomos, administração da casa. Está no âmbito do privado. Nunca chega para determinar o espaço público. Por que, então, o nosso mundo ficou tão econômico, determinando a globalização? Quando e como aconteceu isso? E ainda mais, por que a economia virou capitalista? São as perguntas implícitas nessa discussão. Escravidão fica ligada ao privado. Os escravos não têm polis, não chegam até a política, pensa Aristóteles: “... o escravo não possui de forma alguma a faculdade de deliberar…”.[18] Assim, a escravidão é justa por natureza.[19] Por natureza somos desiguais. Uma confrontação com essa constelação grega, aristotélica, fica um projeto óbvio. Mas a Modernidade, que coloca a igualdade e a liberdade no início, significa necessariamente um progresso? Até aonde chega a liberdade moderna e a realização política dela? São os próximos passos da discussão. Ética, para voltar à elaboração do público, representa o ensinamento das virtudes individuais; política implica a realização dessas virtudes no nível da comunidade – a polis. A ética tem de tornar conscientes estes fins[20] que a natureza pressupõe apenas como possibilidades. Consequentemente, a política pressupõe a ética. Somente a vida na polis representa a realização da natureza humana. Esta, por sua vez, é determinada pelo seu ser político. A política não pode existir sem a ética. Por outro lado, a polis, por assim dizer, torna possível a realização da vida moral. Ou seja, o homem desenvolve suas possibilidades apenas na polis, a qual estabelece as bases para o necessário processo de educação.[21] Aristóteles acha essa conexão entre ética e política bem evidente. Ritter até mesmo sugere que o conceito de práxis está sendo usado como um sinônimo para determinar o modo da vida humana[22], ressaltando que o problema em questão são as condições de mediação, as quais excluem o homem do mundo orgânico que o cerca. Ética é uma forma dessas formas de mediação. Tudo o que existe, de acordo com Aristóteles, realiza seu propósito interior. Neste contexto, Aristóteles fala sobre a escravidão. Assim, no quinto livro da Ética a Nicômaco, ele afirma que a escravidão é, por assim dizer, um fato evidente por si mesmo. Algo similar pode ser encontrado em sua Política. A respeito dessas suposições de Aristóteles, permanece em aberto se o reconhecimento do homem como homem – discutido por Hegel em sua Filosofia do Direito – é somente o resultado do movimento histórico, isto é, a conjectura de certas circunstâncias, ou se é também o resultado da expansão da

racionalidade filosófica. O homem constitui sua identidade e não é, como parece em Aristóteles, predeterminado pela natureza. Nas condutas moral e prática, de acordo com Aristóteles, recorre-se à sabedoria como guia. Isto quer dizer a sabedoria adequada – e não o conhecimento –, pois, como já vimos, o domínio da prática não oferece nenhuma certeza teórica. Olhemos agora mais de perto a definição aristotélica de sabedoria. Na Ética a Nicômaco encontra-se o seguinte: “... uma vez que o conhecimento científico envolve demonstração, enquanto coisas cujos princípios fundamentais são variáveis não são suscetíveis de demonstração, porque tudo em torno delas ‘é variável, e uma vez que não se pode deliberar sobre coisas que estão no âmbito da necessidade, conclui-se que a prudência (sabedoria prática) não ‘é o mesmo que conhecimento científico, como tampouco pode ser o mesmo que arte. Não é conhecimento científico porque assuntos relacionados à conduta admitem mutação; e não pode ser arte porque o criar e o fazer são genericamente diferentes, posto que o criar visa a um fim que é distinto do ato de criar, enquanto no fazer o fim não pode ser outro senão o próprio ato, ou seja, fazer bem é em si mesmo o fim”.[23] A conduta prática deve alcançar sua completude somente contendo seu próprio telos. O conhecimento a respeito de tal conduta pode ser alcançado somente por meio da phronesis. Esta determinação aristotélica torna-se particularmente relevante para a política. Ou seja, a política é essencialmente conduta prática – e não produção. Não há nenhum know-how técnico para criar a comunidade humana, onde a prática é determinada de acordo como o critério da racionalidade técnica. A distinção de Aristóteles entre conduta prática e produção já antecipa o esboço da problemática moderna de determinar o homem como homo faber. Esta distinção está virtualmente implícita em todas as distinções posteriores entre técnica-prática e moral-prática; conduta racional com-um-fim e conduta racional com-um-valor; mente instrumental e dialética; trabalho e interação; conduta instrumental e comunicativa; sistema e mundo-vivido. Parece que todas essas distinções emergem da distinção aristotélica entre conduta prática e produção. À parte do que já fora acima mencionado, há o problema de se relacionar conduta prática e felicidade. Pois, como se vê, a felicidade é o objetivo final da conduta humana. “A felicidade... parece ser absolutamente completa neste sentido, uma vez que sempre optamos por ela mesma e jamais como um meio para algo mais…”.[24] Geralmente Aristóteles vincula felicidade à contemplação filosófica como tal e não apenas à conduta prática. Consequentemente, apenas o homem pode ser feliz, pois ele é o único diferenciado pela contemplação filosófica. “A extensão da felicidade é, portanto, a mesma da especulação: quanto mais uma classe de seres detém a faculdade

especulativa, mais frui ela da felicidade, não como um concomitante acidental da especulação, mas como algo inerente a ela, uma vez que a especulação é valiosa em si mesma. A conclusão é que a felicidade é alguma forma de especulação”. [25] Ainda assim, os problemas permanecem. Será interessante, pois, ver por que Kant evita investigar a felicidade, não considerando aquele tipo de investigação importante para fundar a conduta prática. Pareceria que o ensinamento de Aristóteles está mais próximo da iluminação de uma vida feliz do que de uma vida moral.[26] Esta questão ganha importância por meio da ligação específica de Aristóteles, ou melhor, redução da ética ao ethos. É possível ver a ética como livre, no que diz respeito à Tradição? Como será possível investigar criticamente o ethos da tradição? Como se pode observar, a filosofia prática está fundamentalmente ligada à experiência – à ordem normativa existente. Schnädelbach considera isto como sendo simultaneamente o berço do mais recente conceito de hermenêutica como filosofia prática.[27] Mas, aqui se descobre também as falhas das determinações de Aristóteles da filosofia prática. Ou seja, a questão da fundamentação – seriamente tematizada pelo nível moderno de discussão, está aqui, por assim dizer, reduzida a introspecções hermenêuticas e argumentos que devem harmonizar a conduta individual com o ethos existente e suas instituições.[28] Pareceria que isto enfraquece a tese sobre mediar ética e política, isto é, as premissas éticas da política. Por esta razão, não é nenhuma surpresa que várias tentativas neoaristotélicas produzam uma desconfiança direta em relação à moralidade, bem como limitações na moralização na política. Mas como é possível separar ética do ethos? Kant tentará, por exemplo, demonstrar que a possibilidade da ética encontra-se dentro de sua diferença específica em relação à existência empírica. A ética dos costumes conduz-nos, na melhor das hipóteses, a imperativos hipotéticos, a saber, regras de sabedoria aplicáveis apenas à situações particulares.[29] Ainda, como é possível fazer um giro tão radical da perspectiva aristotélica? Tal ruptura é justificável e filosoficamente explicável? Além disso, em numerosas ocasiões de sua Enciclopédia, Hegel ressalta a importância insuperável da posição de Aristóteles no que se refere ao indivíduo como independente dessas determinações metafísicas. Apenas o conhecimento do indivíduo e do objetivo de sua conduta prática representa o contexto verdadeiro da vida ética. Pareceria que essas determinações aristotélicas pudessem servir como um meio confiável para uma defesa contra generalizações filosóficas e soluções abstratas ao problema da vida ética. Todavia, pode-se notar que o conceito acima mencionado de indivíduo não é mediado pela ética tanto quanto o é pelo ethos, ou seja, certas características tradicionais da polis.

Deve-se também ser capaz de apreender as bases sobre as quais Hegel estabelece sua crítica da determinação de Aristóteles da vida ética. É sabido que Hegel considerava os gregos como sendo morais e não livres, propriamente ditos. Veremos o modo pelo qual estas questões são resolvidas no contexto moderno, ou seja, o contexto que se refere ao pensamento mesmo e à possibilidade de sua tematização. Entretanto, essa possibilidade é tratada até mesmo por Aristóteles, já em sua Metafísica. No entanto, a percepção desse tipo de possibilidade pertence tão somente ao poder de uma divindade. De fato, a mente divina pensa a si mesma e o seu pensamento é o pensamento sobre o pensamento. A época moderna irá delegar essa possibilidade à própria filosofia. Aristóteles, por outro lado, nem ao menos considera a mínima possibilidade de filosoficamente discutir um caso como esse. Aristóteles, contudo, tematiza parcialmente este problema, mas a discussão permanece dentro dos limites da lógica formal. Ele não se envolve em uma análise mais ampla desta questão. Assim em sua obra Sobre o significado fala que todo discurso possui significado, mas através de convenções. É estranho o fato de Aristóteles abandonar a discussão em um ponto que é, no sentido filosófico, o mais interessante. Esta ocorrência pode ser traçada na Ética a Nicômaco e no Organon. Ética satisfaz-se em passar a questão da determinação da conduta prática aos hábitos. No segundo livro de sua Ética a Nicômaco, Aristóteles diz: “As virtudes, portanto, não são geradas em nós nem através da natureza nem contra a natureza. A natureza nos confere a capacidade de recebêlas, e essa capacidade é aprimorada e amadurecida pelo hábito”.[30] Evidentemente, a questão de se tematizar o pensamento não é a questão básica para Aristóteles. Apesar disso, em sua Retórica, ele realmente desenvolve certa teoria da argumentação, no sentido de buscar argumentos sólidos. No entanto, Aristóteles frequentemente nos relembra que a natureza da retórica não é científica, pois ela é tão-somente a propriedade do diálogo. Nos Tópicos, que são uma parte do Organon, Aristóteles também aponta a capacidade do pensamento que problematiza. Ou seja, os Tópicos devem demonstrar o caminho no qual as premissas operadas pela lógica são alcançadas.[31] Portanto, a questão seguinte torna-se mais transparente: “Os Tópicos, como um método específico no nível da dialética... possuem particular relevância para a disciplina da filosofia prática?”.[32] A resposta poderia ser afirmativa se se tivesse em mente a diferenciação de Aristóteles entre os domínios prático e teórico. As ciências práticas “operam no campo da contingência ... elas são ‘científicas’ em um grau menor que as disciplinas teóricas. As conclusões tiradas a partir das bases deste campo não se seguem de premissas necessárias mas ... somente de premissas plausíveis, prováveis, aceitáveis. Todas as ações trazem consigo um

caráter contingente, e dificilmente quaisquer delas são determinadas pela necessidade...”.[33] O objeto não fornece o conhecimento certo, sendo esta a principal razão pela qual a época moderna tende a cobri-lo com um véu de escuridão, o que deixa a reflexão prática sem um ponto de orientação.[34] Agora se pode apreender que, dentro da teoria aristotélica, a fundamentação metafísica das esferas prática e teórica, é deixada como tal sem tematização. Esta, por sua vez, tomada como a questão do próprio pensamento, torna-se presente apenas no início da era moderna. Tendo direcionado suas questões para o problema das fundamentações de toda existência, a época moderna apreende suas respostas por meio da teoria da reflexão, e não através da ontologia. A filosofia de Kant é uma expressão radical dessa perspectiva moderna. Essa perspectiva irá ressaltar a conclusão de que o problema da conduta prática não pode ser determinado como uma questão de phronesis. Phronesis, em certo sentido, inclui precisamente um enfraquecimento de toda fundamentação – e tenta beneficiar a já existente vida comum e sua compreensão imediata. Todavia, ainda resta ser visto se é e como é possível distinguir entre phronesis e mente, e consequentemente, determinar novas premissas do domínio prático. Isto certamente nos obrigaria a decidir quais elementos aristotélicos devem ser criticados e quais devem ser preservados de nossa discussão. Parece que o conceito moderno de homo faber deve ser colocado no esforço de Aristóteles de diferenciar a conduta prática da produção. A tecnologia se torna uma característica da era moderna e parece, dessa maneira, que se deve persistir na manutenção e renovação destas distinções aristotélicas. Esta é precisamente a base sobre a qual se deve inquirir se a filosofia prática de Aristóteles pode ser utilizada como um argumento voltado contra a Modernidade. Porém, é possível refletir sobre outra alternativa que aprofundaria criticamente o conceito de prática tanto aristotélico como moderno? Contudo, a falta de uma intenção mais radical de se ter uma fundamentação força a filosofia prática de Aristóteles a permanecer exatamente no nível de uma ciência da prática[35]. Pode-nos até atrair a leitura política no sentido do bem comum. Pode-nos atrair a dimensão ética da política também. Pode-nos atrair a leitura aristotélica de que a vida é ação e não produção[36]. Talvez sejam as mais bonitas palavras gregas. Mas, a elaboração grega, platônica e aristotélica, cria uma herança dramática. Hierarquia do mundo, hierarquia do conhecimento, exclusão social, exclusão da autenticidade... São alguns momentos dessa dramática. Mesmo chegando até a discussão sobre a liberdade e igualdade na Política, Aristóteles não vai problematizar a própria posição. Igualdade não para todos, mas somente para aqueles que são iguais entre si.[37] Para aqueles que deliberam e assim determinam o espaço público. A política grega parece, sim, um clube elitista

masculino. O resto da população fica silenciado. E Aristóteles concorda com Sófocles de que o silêncio da graça às mulheres[38]. Mas isto em nada se aplica ao homem, conclui.[39] Vamos ver quando este modelo mudou. Onde se questiona o projeto grego? Uma das primeiras referências é o cristianismo. Vamos ver até onde o pensamento grego chega para os cristãos e onde o cristianismo supera a tradição grega. E depois vamos ver onde aparece uma confrontação com o próprio cristianismo que abre a possibilidade para pensar o mundo diferente, a Modernidade. O interlocutor da primeira perspectiva é o Santo Agostinho e da segunda, Marsílio de Pádua. 3. Nenhuma das doutrinas se aproxima “da nossa mais do que a doutrina de Platão”, fala Agostinho[40], porque, com Platão, os cristãos aprendem que “o verdadeiro e soberano bem é Deus mesmo[41]”. Mas Agostinho vai colocar os limites do pensamento grego neste ponto. Respondendo a pergunta se existe algo mais nobre do que a mente dotada de razão e sabedoria, ele vai responder “A meu ver, nada existe, exceto Deus”.[42] Colocar os limites da razão vai ser um dos momentos relevantes da diferença entre os gregos e cristãos. Mas o ponto que nos interessa aqui é outro. É a questão sobre a política. Podemos tratar A Cidade de Deus como o livro sobre a política e dos limites dela. Agostinho está numa situação contingente muito dramática. Trata-se da queda do Império Romano. A pergunta pertinente é se o império caiu por causa do cristianismo, se o cristianismo corrompeu os fundamentos do Império. A resposta de Santo Agostinho paira acima de qualquer dúvida: o cristianismo não é a causa da queda do Império. Com o cristianismo o Império só poderia se fortalecer. Desde o início do exitus do ser humano do paraíso nós temos dois caminhos. O primeiro caminho é do amor próprio, levando ao desprezo de Deus. É o caminho, fala Agostinho, da pátria terrena. O segundo é o caminho do desprezo de si próprio, onde se afirma o amor a Deus. É o caminho da pátria celeste, onde, com Jesus, a gente supera pecado e morte e volta ao paraíso perdido. É o reditus cristão. O apelo de Agostinho, durante todo o percurso da Cidade de Deus é retornar à pátria celeste. E é também o Novo do mundo. Num momento Agostinho diz algo que encantou as leituras da Hannah Arendt. Antes do ser humano, o Novo jamais existiu. Para que existisse, foi criado o homem, diz Agostinho[43]. O Novo no mundo aparece com o ser humano. Talvez as mais bonitas palavras cristãs. Mas o Novo não é da política, mas de uma união com Jesus. Aqui a política não chega tão longe, como para os gregos. A paz que aparece se possui não pela

razão mas pela fé. Destarte, temos de novo uma inspiração metafísica da política. Mesmo questionando os limites da política, Agostinho não questiona a fonte dela. Neste sentido, ainda não saímos do modelo grego. Aqui Agostinho chega também até a ideia da justiça, que o mundo romano nunca conheceu. E onde “não há justiça não há república”.[44] O início da questão sobre a justiça está em Platão. Mas a resposta é cristã. A última justiça é a questão da relação com o divino. Devolver ao divino o amor dado na própria criação. Nessa ordem do amor, Agostinho vê a radicalização da ideia da justiça. É o caminho da verdadeira Cidade de Deus, quer dizer da Igreja[45]. Essa convicção chega longe. Vamos encontrá-la em Tomás de Aquino também quando fala sobre a cidade de Roma “prevista por Deus como havendo de ser a sede principal do sacerdócio cristão”.[46] Mas as perguntas sobre a separação entre a Igreja e o Estado aparecem cada vez mais explícitas. Assim, no final da Monarquia, Dante fala que a questão dessa relação entre a Igreja e Estado “não deve ser entendida da maneira estrita de que o príncipe romano em nada esteja submetido ao pontífice romano. A felicidade mortal ordena-se em certo modo à felicidade imortal”.[47] A confrontação entre a Igreja e o Estado fica muito mais explícita em Marsílio de Pádua. Ele é o primeiro que vai questionar a relação entre a metafísica e a política, quer dizer os fundamentos metafísicos da política. Neste sentido, ele é, com certeza, alguém que vai anunciar a aparição da Modernidade. Essa confrontação com a metafísica se encontra dentro de outra interpretação da Bíblia. É uma tentativa hermenêutica. Isso articula uma perspectiva pouco questionada até Marsílio. Platão é explícito ao marginalizar a hermenêutica nos poucos lugares onde ela aparece. Assim, fala ele, nada supera a alma ou a sabedoria. “Menos ainda a adivinhação ou a arte em geral de interpretar os oráculos; esta só sabe o que foi dito; porém, se é verdade ou não, isso jamais ela aprendeu”.[48] A questão da interpretação volta para os cristãos, mas “como o próprio artífice, o segredo de sua operação é incompreensível ao homem”.[49] Por isso, Agostinho vai rezar para poder interpretar[50] e como fala, vai andar muito mais seguro com ajuda da própria Bíblia[51], do que com as condições da própria interpretação. A aparição do sujeito da interpretação é algo que vai acontecer muito mais tarde, talvez com Dilthey. Marsílio de Pádua, neste sentido, não abre as alternativas com a hermenêutica, mesmo discutindo ela. O método hermenêutico dele quer questionar origem metafísica da política. Ele, talvez, não quer nem colocar as questões neste nível tão abstrato e acadêmico, como parece. Ele só quer mostrar outro aspecto da política. E ele está fazendo isso interpretando o Novo Testamento e investigando uma questão particular. A questão é se a Bíblia

justifica o papel específico da Igreja Católica que, como vimos, nem Agostinho nem Thomas de Aquino questionam. Na verdade, Marsílio não tem nenhuma dúvida e compara a Igreja com a atividade diabólica. “O Bispo de Roma incitou e ainda estimula todos esses infelizes habitantes da Itália, de onde quer que sejam, a fazer... maldades, dado que suas mentes cegas pelo ódio e pela discórdia mútua se inspiram no grande dragão, a antiga serpente, que apropriadamente deve ser designada por Satanás ou Demônio, pois com todas suas forças seduziu e tenta desvirtuar a terra inteira”.[52] Mas, Marsílio, não usa só essa retórica. Ele está reinterpretando o Novo Testamento, está fazendo um trabalho hermenêutico, falamos. Neste sentido poderíamos questionar algumas verdades bíblicas. Se, por exemplo, podemos articular uma linha que começa com Jesus, passa por Pedro e termina com o Papa? Papa, assim, recebeu do Cristo um poder específico? A resposta de Marsílio é clara e corajosa. (Estamos, para nos lembrar, no início do século XIV). “...essa assertiva não se encontra em nenhuma passagem da Escritura, aliás, é justamente o contrário”.[53] Podemos pensar as passagens da Bíblia onde, por exemplo, Deus fala para Pedro: “... eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.[54] São conhecidos vários momentos, também, onde a Bíblia fala sobre a Igreja no sentido do corpo de Jesus. “... vós sois corpo de Cristo”.[55] Isso não provoca as dúvidas de Marsílio. Quanto a São Pedro, fala Marsílio: “não é possível comprovar por meio da Sagrada Escritura que ele foi o Bispo de Roma, e mais ainda, que viveu naquela cidade”.[56] Quer dizer, o Bispo de Roma ou qualquer outro, pouco importa quem seja não possui um papel específico, comparado com outros sacerdotes[57]. A própria Bíblia, pensa Marcílio, deixa isso muito claro. Quando Jesus fala com apóstolos ele fala para todos: “O que, porém, vos digo, digo a todos, vigiai!”[58] ou, “Vos, porém, não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre, e vós todos sois irmãos”,[59] quer dizer iguais, como entendeu Marsílio. Não existe uma fonte, uma inspiração religiosa ou metafísica, poderíamos dizer, para articular as questões do poder social e da política. A política ficou sem a metafísica. Isso é a ruptura com a tradição, que acontece neste livro de Marsílio de 1324. Ele não vai falar sobre a autonomia da política, como Maquiavel vai entender no início do século XVI. Nem vai falar sobre o príncipe ou de uma pessoa como a condição da integração social. Talvez neste ponto Marsílio supere Maquiavel. A fonte da política não é uma pessoa. A fonte dela é o povo. O povo está no início da política. Grande recado que se perdeu na história, infelizmente: “... o legislador ou a causa eficiente primeira e específica

da lei é o povo ou o conjunto dos cidadãos…”.[60] A linguagem ainda é aristotélica, mas o recado supera a tradição. O povo é causa eficiente, o que faz a política e a paz social, que a igreja só perturba, é a causa final. O imperador pode só representar o povo e a religião pode ser só uma das atividades dessa representação. Acima dessa legislação não há nenhuma outra autoridade, conclui Marsílio.[61] Ou, “nenhum governante... tem a plenitude do poder... sem a autorização do legislador humano”.[62] Essa fonte humana da política, tão claramente exposta, em Marsílio de Pádua vai determinar a Modernidade. Talvez seja muito forte usar aqui o verbo “determinar” porque não está claro se a Modernidade chega até essa inspiração e até este fundamento. E mesmo se chegar, como entende Agamben, as consequências ficam muito dramáticas. Precisamos entender como os modernos vão entender o próprio fundamento humano. Poderíamos pensar, no sentido preliminar, a Modernidade como uma específica afirmação do ser humano. Pelo menos, é uma compreensão hegeliana que vai nos ajudar para ver o que é o próprio mundo moderno, o que poderia ser a transparência dele. Ainda estamos longe dessa possibilidade. Vou mencionar só algumas palavras de Thomas de Aquino, características neste sentido. Ele fala, perguntando se quem teria que nos governar: “Se, pois, o fim último do homem fosse algum bem existente nele mesmo, e se, igualmente, o fim último da multidão a ser governada fora adquirir ela tal bem e nele permanecer; e se, ainda, tal fim último, quer do indivíduo, quer da multidão, fora a vida corporal e a saúde do corpo, seria ofício do médico. Se o fim último fora a abundância das riquezas, um ecônomo seria rei da multidão. E, se conhecer a verdade fosse um bem tal que a multidão o pudesse atingir, o rei teria ofício de professor. Parece, no entanto, ser fim último da multidão congregada o viver segundo a virtude. Pois, para isso se congregam os homens: para um conjunto viverem bem, o que não pudera cada um, vivendo separadamente. Ora, boa é a vida segundo a virtude; portanto, a vida virtuosa é o fim da associação humana”.[63]. Ainda estamos numa época dominada pela espiritualidade cristã. Ainda não aparecem nem os corpos, nem os médicos, nem a economistas, nem os professores... Todos como sinais de outra perspectiva, chamada Modernidade. Vamos ver como entender a aparição deles. Ainda são os fantasmas cristãos, os monstros que perturbam a vida virtuosa. Os fantasmas? E como os fantasmas podem criar a realidade? Thomas de Aquino exclui, por exemplo, a economia da discussão. E a economia já avança, na época dele também, e já cria a visibilidade do mundo moderno, segundo as leituras que Jacob Burckhardt está fazendo, reconstruindo o nascimento da modernidade na Itália[64]. E num momento a economia, marginalizada ainda,

vai criar o real, vai ser a verdade do real. Isso não é só a leitura marxista. Essa globalização da economia e a dominação dela chega até nós. Como entender isso? Obviamente temos que entender o que é a própria Modernidade onde tudo isso acontece. Neste contexto vai voltar a pergunta sobre a relação entre a metafísica e política de novo. Ou melhor, dizer entre a política e a metafísica. Por que inverter a ordem entre essas duas palavras? A resposta é simples. Porque a política moderna cria a metafísica. Só temos que entender como isso acontece. [1] . Platão, República, 514a. [2] . Cf. Barker, E., Teoria política grega, Brasília, 1978. [3] . Ibid., p. 90. [4] . Platão, As Leis, 890 d. [5] . Platão, Leis, 716a. [6] . Platão, República, 433a. [7] . Platão, Fédon, 73a. [8] . Cf., Lacerda, B., A., Direito natural em Platão, Curitiba, 2009, p. 211. [9] . Platão, República, 602a. [10] . Platão, República, 605a. [11] . Aristóteles, Política, 1283a. [12] . Aristóteles, Organon, 2a. [13] . Aristóteles, Metafísica, 1073a. [14] . Hegel, G. W. F., Rechtphilosophie, #124. [15] . Comp., Ritter, J; Metaphysik und Politik, Frankfurt, 1969, p. 11. [16] . Comp., Höffe, O., Ethik und Politik, Frankfurt, 1979, p. 23. [17] . Bien, G., Die Grundlegung der politischen Philosophie bei Aristoteles, Freiburg – München, 1973, p. 23.

[18] . Aristóteles, Política, 1260a.

[19] . Aristóteles, Política, 1255a. [20] . Comp., Ritter, J; Metaphysik und Politik, Frankfurt, 1969, p. 71. [21] . Comp., Höffe, O., Ethik und Politik, Frankfurt, 1979, p. 22. [22] . Comp., Ritter, J; Metaphysik und Politik, Frankfurt, 1969, p. 59. [23] . Aristoteles, Ética, 1140b. [24] . Aristóteles, Ética, 1097b. [25] . Aristóteles, Ética, 1178b. [26] . Schnadelbach, H., “Was ist Neoarisstotelismus?”, in: Kuhlmann, W., (ed.): Moralität

und

Sittlichkeit, Frankfurt, 1986, p. 53.

[27] . Schnadelbach, H., “Was ist Neoarisstotelismus?”, in: Kuhlmann, W., (ed.): Moralität

und

Sittlichkeit, Frankfurt, 1986, p. 50.

[28] . Schnadelbach, H., “Was ist Neoarisstotelismus?”, in: Kuhlmann, W., (ed.): Moralität

und

Sittlichkeit, Frankfurt, 1986, p. 52.

[29] . Schnadelbach, H., “Was ist Neoarisstotelismus?”, in: Kuhlmann, W., (ed.): Moralität

und

Sittlichkeit, Frankfurt, 1986.

[30] . Aristóteles, Ética, 1103a. [31] . Tugendhat, E., Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, Frankfurt, 1979, p. 54.

[32] . Hennis, W. Politik und praktische Philosophie, Stuttgart, 1977, p. 89. [33] . Hennis, W. Politik und praktische Philosophie, Stuttgart, 1977, p. 94. [34] . Hennis, W. Politik und praktische Philosophie, Stuttgart, 1977. [35] . Vieweg, Th., Tópica e Jurisprudência, p. 9. [36] . Aristóteles, Política, 1254a. [37] . Aristóteles, Política, 1280a. [38] . Aristóteles, Política, 1260b. [39] . Aristóteles, Política.

[40] . Santo Agostinho, A cidade de Deus, vol. I, p. 393. [41] . Santo Agostinho, A cidade de Deus, vol. I, p. 399. [42] . Santo Agostinho, O livre-arbítrio, p. 51. [43] . Santo Agostinho, A cidade de Deus, vol. II, p. 186. [44] . Santo Agostinho, A cidade de Deus, vol. III, p. 181. [45] . Santo Agostinho, A cidade de Deus, vol. I, p. 425. [46] . Thomas de Aquino, Escritos políticos, p. 165. [47] . Dante, Monarquia, p. 234. [48] . Platão, Epínomis, 975c. [49] . Santo Agostinho, Cidade de Deus, 10, capitulo XII, p. 65. [50] . St. Augustine, On Christian Doctrine, III, 56, p. 117. [51] . St. Augustine, On Christian Doctrine, III, 39, p. 102. [52] . Marcilio de Pádua, Defensor da Paz, p. 600. [53] . Marcilio de Pádua, Defensor da Paz, p. 411. [54] . Mateus, 16, 18. [55] . I Corintios 12, 27. [56] . Marcilio de Pádua, Defensor da Paz, p. 435. [57] . Marcilio de Pádua, Defensor da Paz, p. 410. [58] . Marcos, 13,37. [59] . Mateus, 23.8. [60] . Marcilio de Pádua, Defensor da Paz, p. 130. [61] . Marcilio de Pádua, Defensor da Paz, p. 471. [62] . Marcilio de Pádua, Defensor da Paz, p. 693. [63] . Thomas de Aquino, Escritos políticos, p. 163.

[64] . Cf. Burckhardt, J., A cultura do Renascimento na Itália, São Paulo, 1991.

POLÍTICA E METAFÍSICA

JUS NATURALISMO E IDEALISMO O que é a Modernidade? Onde e como ela iniciou? Para responder a essas questões, podemos voltar para a estrutura do pensamento da vida tradicional, grega e cristã. Assim a Modernidade vai aparecer com mais visibilidade. O pensamento tradicional tem, por exemplo, uma específica primazia da vida contemplativa e da teoria. São os caminhos para entender os fundamentos metafísicos do mundo. A Modernidade vai se confrontar com essa metafísica. Assim, o pensamento cartesiano, que marca o início da filosofia moderna, se confronta com a metafísica do mundo objetivo. Descartes, mesmo falando sobre o eu que pensa, ainda não abre o caminho para outra metafísica, que vai marcar a Modernidade e que se chama a metafísica da subjetividade. Ele se confronta com a metafísica tradicional pensando uma reconstrução científica do mundo. O que nos fala sobre o mundo não é mais a especulação, mas a ciência natural. É um dos aspectos do específico desencantamento do mundo moderno. No fundo temos as leis científicas, a física e nenhuma metafísica. Obviamente as perguntas podem aparecer: como a metafísica vai voltar? Também a pergunta explícita é como a própria filosofia vai voltar. Acompanhando a ciência, a filosofia póscartesiana ficou ligada, como falei, a um nome, diria infeliz, da epistemologia – o nome que marca quase o desaparecimento da filosofia no início da Modernidade. O que será uma nova filosofia moderna? São as perguntas que podem iniciar a discussão sobre a Modernidade. Mas, parecem as perguntas demais específicas e acadêmicas. Neste sentido, não representam o caminho histórico da Modernidade. Com outras palavras, a confrontação com a teoria não está no início da Modernidade. Como o próprio Burckhardt fala, a Modernidade aparece na Itália e nas cidades italianas no século XIII. É a Modernidade ligada aos processos práticos que avançam. Talvez este avanço do prático possa explicar uma específica afirmação do pensamento aristotélico naquela época. Mas o prático que se afirma não é o prático do sistema aristotélico. Podemos nos lembrar deste outro momento da estrutura do pensamento tradicional. Depois da articulação da teoria chega à reconstrução do prático o qual os gregos entendem como certa aproximação aos fundos especulativos. Assim, a afirmação do bem geral no contexto político, vimos, pode ser entendida como a consequência política de um raciocínio filosófico sobre a primazia do geral. Essa explícita ligação com a metafísica e com a teoria

determina, como sabemos, a estrutura do prático. Assim, seguindo a teoria na prática e falando no sentido explícito sobre a primazia do geral, Aristóteles vai separar o mundo privado da economia e o mundo público da ética, política e direito. A mudança moderna começou por aí, ligada a essa relação entre o privado e o público, ou melhor dizendo, começou com a economia. É, talvez, o início histórico da Modernidade. Está cada vez mais explícita afirmação da economia. Ou antes, está cada vez mais explícita a saída da economia do privado e a afirmação dela no público. Hoje o nosso mundo público é econômico. Não era assim para os gregos. A economia era só dos escravos, da família e do privado. Como a mudança aconteceu? Como a economia saiu do privado e determinou o público? A economia se afirma já no início do século XIII, é a tese de Burckhardt. Ela apoia as cruzadas com as quais o mapa social da Europa vai mudar. Aparecem, por exemplo, muitas cidades novas. Criam-se as novas condições do mercado. Mas, talvez não é o catolicismo quem dê o início do avanço da economia e do capitalismo. A tese de Max Weber apoia o protestantismo. Com o protestantismo o desenvolvimento econômico vai ganhar uma justificação religiosa. A religião apoia a economia. Isso é o momento forte para a afirmação dela. Tem sentindo fazer a economia, ela não é mais só dos escravos. Assim se criam as condições para uma saída econômica do privado e do avanço dela no público. Cria-se um novo espaço entre o privado e o público que podemos chamar o espaço social. Ele não existe na vida tradicional. A questão é só como e quando este novo espaço social fica visível para o pensamento. A economia está se desenvolvendo, conquistando o mundo e a filosofia não fala nada sobre isso. Estranho este específico autismo filosófico sobre o social. Descartes vai nos dizer, por exemplo, que é praticamente uma perda de tempo mexer com o social e com a história. Quando o pensamento vai tratar essa aparição do social e de uma possível verdade dele? São as questões que nos dedicam o jus naturalismo e posteriormente o idealismo alemão. Então, a estrutura clássica prática mudou. A economia saiu do privado. E a estrutura pública mudou também. A ética não é mais, como ensina Maquiavel, o pressuposto da política. Ela não nos aproxima, como pensava Aristóteles, ao bem comum. Ela volta cada vez mais ao privado, as nossas convicções privadas. Isso fica visível, por exemplo, nas discussões de Hume sobre o conhecimento, onde não fica claro como falar sobre a objetividade moral. Ética vai para o privado. Ainda hoje temos dúvidas e expectativas sobre uma nova relação entre a ética e a política, sobre uma possível reaparição dela no público. A política fica sem uma orientação ética e se entrega talvez aos ditados da economia. O direito também. Habermas num momento fala que o direito não entendeu a própria

possibilidade no mundo moderno e, em lugar de afirmar, talvez os processos democráticos, fica ligado a uma específica colonização do mundo. Ficamos, parece, na gaiola da própria Modernidade, o que já Max Weber vê com muita clareza. Isso são as questões posteriores, mas importantes. Como se articula o social moderno e como se coloniza este mundo social? Mas são as perguntas com as quais podemos nos relacionar melhor com as tentativas de enfrentar o social – e isso é o caso do jus naturalismo e do idealismo alemão. Mudou, então a teoria e a prática. Onde e como isso acontece – são exatamente as possibilidades de entender as rupturas e a aparição da Modernidade. Modernidade é algo diferente, não só uma nova palavra, mas uma referência dessa ruptura. Aparecem a teoria moderna, o privado e o público diferente na Modernidade. Mesmo nos detalhes aparecem as diferenças. Neste sentido o “Tratado da pintura” do Leonardo da Vinci fica ilustrativo. Num momento ele fala que a pintura é a imitação do mundo[65]. Podemos pensar a mimesis grega, a imitação que está seguindo a metafísica. Mas Leonardo coloca: a pintura é a imitação verdadeira de todas as coisas[66]. Isso é a ruptura. A imitação não se refere ao profundo. Imita-se o superficial, aberto para os olhos. A verdade talvez esteja na superfície. Por isso a pintura e não mais a filosofia, o superficial e não mais o profundo. O sorriso da Mona Lisa é, talvez, outro início da Modernidade. Mas, não podemos entender a Modernidade como o abandono das perguntas profundas. O que é o ser humano? A pergunta reaparece. É o início do jus naturalismo moderno, inspirado não nos nossos deveres, mais na nossa natureza e na nossa individualidade. Fica aberta a pergunta se a afirmação do indivíduo, anunciada no início da Modernidade, se realizou. A Modernidade pode realizar as próprias promessas? Por muito tempo o jus naturalismo foi entendido como a filosofia do direito[67]. Inspirou as revoluções modernas. Vamos ver até onde chega essa filosofia e reconstruir as respostas de Hobbes, Locke e Rousseau. Talvez, neste caminho apareça a verdade sobre o social também. Descartes nos fala sobre a verdade do mundo objetivo, da natureza. E marginaliza, de certa maneira, o social. Qual é a verdade do social? A pergunta fica explícita na filosofia de Hegel. Vamos ver as respostas do jus naturalismo e tentar entender a confrontação possível entre o jus naturalismo e o idealismo alemão. No início da discussão está a palavra liberdade. Hegel, falando sobre a diferença entre a Tradição e a Modernidade, vai dizer que essa é a palavra que separa dois mundos. O mundo tradicional é moral e o mundo moderno livre. A palavra está no início do jus naturalismo de Hobbes. Somos livres pela natureza. Fica aberta a pergunta como o idealismo alemão, para poder explicar a nossa

liberdade, vai tentar separá-la da ordem natural. Isso ainda não se pode encontrar no jus naturalismo. Mas a ruptura fica visível. No início está o ser humano e a liberdade dele. Assim podemos entender o mundo moderno como a promessa da realização do ser humano. Por que isso não aconteceu, por que, como mencionei, a modernidade não cumpriu a própria promessa são as perguntas posteriores. Mas a ruptura fica visível. No início da discussão está o ser humano e não a metafísica da natureza. A natureza questionada é do próprio ser humano. E ela aponta a nossa liberdade e igualdade. Isso não encontramos, por exemplo, no mundo platônico e aristotélico. A liberdade se encontra só no final da discussão e a desigualdade é o conceito que não tem que ser problematizado. A pergunta para os modernos é se e como é possível realizar a nossa natureza. O Estado nos realiza, por exemplo. Discutindo a história do jus naturalismo dá para entender também as diferenças entre o estado absolutista, liberal e democrático. São exatamente as diferenças entre Hobbes, Locke e Rousseau. O próprio Hobbes tem as dúvidas por aí. Somos livres pela natureza, mas isso não significa que a liberdade se realiza automaticamente nas formas da vida social. A liberdade, inclusive, provoca os problemas, porque todos temos os mesmos direitos. Isso provoca conflitos e a guerra, sobre a qual fala o Leviatã. Então, o único jeito é desistir dos direitos que temos, ou melhor dizendo, transferir os nossos direitos para uma autoridade. Ou ainda melhor, renunciar aos nossos direitos naturais para poder sobreviver. É o início da conhecida teoria jus naturalista sobre o contrato. A razão do contrato é puro cálculo como sobreviver. O fim último, fala Hobbes, “causa final e desígnio dos homens... é o cuidado com sua própria conservação…”.[68] Temos que nos perguntar como ainda pensar uma outra teoria da razão, além do cálculo e a resposta nos espera com idealismo alemão. No estado da natureza temos apenas os argumentos morais que falam sobre o ser humano, mas também temos a situação da violência. Temos, então, que superar as condições da natureza, mesmo tendo nela as condições possíveis da legitimação do Estado. Só as leis, acha Hobbes, podem ser a garantia de uma convivência social. Temos quase dois tipos dos argumentos diferentes em Hobbes. Por um lado o jus naturalismo e por outro o positivismo[69]. Jus naturalismo é a inspiração, mas a justiça vem das leis positivas e da autoridade política. O contrato marca a ruptura entre o direito natural e a lei civil, entre a natureza e estado, entre a moral e a política. A multidão das pessoas no estado de natureza ainda não cria outra inspiração política que se inicia com Spinoza e chega hoje até os trabalhos de Negri. A multidão é a subjetividade que não pode alienar a própria potência assinando o contrato. Direitos naturais e civis não podem se confrontar. São alguns recados já de Spinoza. O povo, a multidão,

ainda não aparecem como constitutivos em Hobbes, mesmo fazendo os contratos. E Hobbes fala: “Pois se fosse lícito supor uma grande multidão capaz de consentir na observância na justiça e das outras leis de natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a humanidade inteira capaz do mesmo. Estado, pois haveria paz sem sujeição”. [70] Pensar aqui significa ainda pensar o poder e não a potência. A multidão tem que se superar e, transferindo os próprios direitos, se unir numa pessoa só que se chama o Estado. Aquele que é portador dessa pessoa, diz Hobbes, “se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano”.[71] A soberania é do Estado e vamos ver se aparecem mudanças neste conceito no contexto da discussão jus naturalista. É possível, por exemplo, imaginar a soberania do povo neste caminho moderno e onde encontrá-la: em Locke, talvez, ou em Rousseau? Nessa reconstrução vou seguir os próprios argumentos do jus naturalismo chegando assim até Hegel e até outra visibilidade da Modernidade. Acho que com Hegel fica transparente o que é finalmente a verdade do social moderno que estamos procurando. Hegel também vai mostrar que finalmente não precisamos escolher entre o jus naturalismo e o positivismo. Procurando outra teoria sobre o ser humano e a razão a gente pode superar os dois. O jus naturalismo e o positivismo não representam as únicas alternativas do pensamento político moderno[72]. Obviamente outra alternativa, a terceira, poderia ser o caminho de Spinoza. Deixo essa reconstrução e uma possível confrontação entre Hegel e Spinoza para outra oportunidade. Hobbes está consciente das consequências do próprio argumento. No início está a liberdade e no final a nossa segurança, ou melhor, dizer, as condições da nossa servidão. Onde se perdeu a liberdade do início da Modernidade? Como recuperar ela no próprio contexto social? Obviamente são ainda as perguntas para nós. Já mencionei uma vez que ainda hoje estamos no estado autoritário hobbesiano.[73] Só hoje, para sobreviver por causa do terrorismo, temos que aceitar outro estado autoritário chamado Estados Unidos que a Bíblia felizmente ainda não conhecia, como conhecia o Leviatã (Jô 41). Hoje a globalização é uma forma da colonização do mundo. O exemplo do meu país ex-Iugoslávia é explícito. Quem ganhou a última guerra lá não eram as repúblicas particulares, que se separaram da Iugoslávia. Elas todas, mais ou menos, perderam a própria autonomia e a identidade. Quem ganhou a guerra foram as empresas estadunidenses e europeias. Vamos voltar para o nosso assunto. Como preservar a nossa liberdade natural? São as perguntas já para Locke e Rousseau e para uma elaboração do estado liberal e democrático. A inspiração em Locke é a mesma. Somos livres pela natureza, com o

direito da própria preservação. O estado da natureza não é o estado da guerra. Neste contexto, Locke inclui algo mais que não encontramos em Hobbes. É a propriedade que já se encontra no estado de natureza. Assim Deus, fala Locke “concedeu autoridade para a apropriação; e a condição da vida humana, que exige trabalho e material com que trabalhar, necessariamente introduziu a propriedade privada”.[74] O Deus deu o mundo para nós e o que temos agora depende do nosso trabalho. Depois volto a essa medida da propriedade pela extensão do trabalho e as consequências políticas. Se o homem, no estado de natureza, é tão livre, por que abrira mão dessa liberdade, se pergunta Locke no início do capítulo X. E a resposta é simples: temos que preservar a liberdade. Assim Locke não quer só iniciar a discussão com os pressupostos jus naturalistas, mas quer ver estes pressupostos realizados. Ele é assim, poderíamos concordar com Bobbio “um jus naturalista do princípio até o fim”.[75] No estado de natureza faltam muitas condições para este objetivo.[76] Falta, por exemplo, uma lei estabelecida. Falta também um juiz, uma decisão objetiva, porque neste estado cada um “é juiz e executor da lei de natureza”.[77] Falta também “muitas vezes poder que apoie e sustente a sentença quando justa, dando lhe a devida execução”.[78] São estes os motivos para pensar a ideia do Estado, baseada de novo no contrato. Só Locke, neste processo, não vê nenhuma ruptura, como Hobbes. O Estado é a continuação da nossa natureza. A gente só tem que renunciar a nossa própria justiça. “... sendo os homens parciais para consigo, a paixão e a vingança podem levá-los a exceder-se nos casos que os interessam…”.[79] No Estado civil a gente encontra a mesma liberdade que tínhamos no estado de natureza. Não teria sentido sair do estado de natureza perdendo algo que temos nela. E errôneo, fala Locke obviamente contra Hobbes, “pensar que o poder legislativo ou supremo de qualquer comunidade pode fazer o que quer e dispor das propriedades dos súditos arbitrariamente, ou tirar-lhes qualquer parte delas a vontade”.[80] O contrato não estabelece nenhuma autoridade, como no caso de Hobbes. Isso é já a afirmação de outra soberania, não do Estado, mas do povo? O estado liberal é a afirmação da soberania do povo? Locke, no final das contas, fala sobre o bem do povo, no final do capítulo XI. Logo volto a essas perguntas. A liberdade no estado civil se liga às leis. Onde não há lei, fala Locke, não existe a liberdade[81]. Com as leis a gente só articula as garantias para os nossos direitos naturais e essas garantias não se encontram no estado de natureza. Aqui Locke chega até um conceito importante: é o da desobediência civil, ou o direito da resistência. Este direito aparece porque o próprio Estado, como o resultado do nosso consenso ou contrato, tem poderes limitados. Locke é inclusive

testemunha do processo histórico onde a Inglaterra se constitui como o primeiro Estado constitucional moderno, com os poderes separados. A defesa própria, pensa Locke, faz parte da lei da natureza[82]. Entramos na sociedade por motivos da preservação da sociedade. Se isso não acontece, não temos nenhuma obrigação de seguir este legislativo. O povo, Locke usa essa palavra de novo, ficará desobrigado de sujeição[83]. Aqui Bobbio elabora a ideia do Estado do Direito em Locke. “O estado no qual o direito de resistência não é mais um direito natural não protegido, mas um direito positivo protegido, chama-se geralmente ‘estado de direito’”.[84] Estado torna-se, assim, a natureza institucionalizada. Então, os direitos naturais da preservação da vida e da propriedade, o contrato, no sentido do consenso que funda o Estado, o poder não autoritário, mas limitado e o direito de resistência são os pontos principais do argumento de Locke. Ou, com outras palavras, são os pontos principais da elaboração do estado liberal. Muitos usam o Segundo tratado sobre o Governo como o início dessa elaboração[85]. Locke também aparece como a justificação, ou como teórico da Revolução de 1688[86]. Ficam abertas as perguntas sobre o trabalho e sobre os pressupostos liberais da democracia. Essa outra pergunta abre o caminho para em seguida entender a posição de Rousseau. Vimos que a economia por muito tempo ficou marginalizada pela filosofia. No mundo tradicional ela não chega até o público e as condições da realização do bem comum. Na Modernidade a perspectiva não mudou, mesmo tendo um avanço forte da economia. Mesmo determinando a esfera pública, a economia ainda não provocara uma reflexão filosófica. Locke mostra uma sensibilidade diferente. Deus, como ele fala no Capítulo V do Segundo Tratado sobre o Governo, concedeu aos homens autoridade para a apropriação e ordenou-lhes que trabalhassem[87]. Assim, como mencionamos, a medida da propriedade se fixou pela extensão do trabalho[88]. O trabalho ignorado, podemos dizer assim, até a mudança protestante, volta para o centro da discussão. Só Locke não entra na discussão sobre a própria estrutura do trabalho. O que está, por exemplo, no fundo da moderna manufatura e na organização moderna do trabalho? Essas perguntas voltam só com a discussão marxista. Nesta perspectiva, Marx entenderá o trabalho no sentido, poderíamos dizer assim, de uma certa ontologia social. O trabalho constitui o mundo social. Hegel já entendeu este papel constitutivo do trabalho, com o qual a natureza muda e vira o mundo histórico do ser humano. Este papel constitutivo fica sobe os pressupostos metafísicos ainda, visível, por exemplo, na Fenomenologia do Espírito. Este tipo da discussão ainda falta em Locke. Isso também, eu diria, têm as consequências para a segunda pergunta que mencionei, sobre os pressupostos liberais da política. O trabalho é a medida da

propriedade e a propriedade determina as condições da participação política. Obviamente os direitos políticos não são os direitos de todos. Locke ainda não chega até a ideia da igualdade política, ou até uma teoria da democracia. Ele tampouco fala sobre a escravidão dos negros, por exemplo. Parece-nos óbvio, como conclui o Bobbio, que “os direitos políticos deveriam ser concedidos a todos os cidadãos, e não somente aos possuidores de terras”.[89] É ponto em que Rousseau entendeu muito bem. Por isso, já podemos entender a teoria dele como a possibilidade de articular a ideia do estado democrático e não mais liberal. Locke, como vimos, fala várias vezes sobre o povo e até parece que o povo se entende no sentido de certa subjetividade política. O povo desobrigado de sujeição, o bem do povo, como vimos, são alguns exemplos disso. Até os comentários confirmam este equívoco. “Não em Hobbes, mas em Locke, é que se pode falar que o soberano é o povo e com isso há uma soberania popular”.[90] Uma conotação perigosa, diria, porque cria a impressão equivocada de que o liberalismo já articula as possibilidades da democracia. Hoje, inclusive, somos testemunhas da existência dos vários partidos liberal-democráticos. Parecem dois conceitos muito íntimos. Liberalismo não é a democracia. Isso fica visível já em Locke, onde, como mencionei, os direitos políticos não são os direitos de todos. Liberalismo é talvez só uma simulação da democracia. E temos que nos perguntar se o mundo moderno tem a possibilidade de realizar a democracia, a igualdade anunciada nas premissas do jus naturalismo. As leituras marxistas apontam uma contradição profunda do mundo moderno entre o trabalho e o capital que tem como a consequência uma polarização social profunda. Não podemos todos ganhar dinheiro, ficar ricos no capitalismo, é o recado simples. O capitalismo não está permitindo uma universalização, entendida também no sentido da teoria da democracia. No fundo, como Marx entende, e hoje ainda vale a diagnose dele, temos uma confrontação e não as condições de uma universalização. O que se pode universalizar no capitalismo? Locke tem uma visão harmônica do estado de natureza, que Deus determinou e das consequências liberais. Não analisando os pressupostos, o que fica visível na questão da ideia do trabalho, ele não chega longe na tentativa de pensar uma nova soberania, talvez do povo. O mundo dele é finalmente só dos indivíduos. Deus e os indivíduos, melhor dizendo. Obviamente não fica claro como neste contexto pensar a ideia do mundo comum. Na época da guerra no meu país – ex-Iugoslávia – me lembrei disso e me perguntaram várias vezes assim: “Tudo bem, você critica o comunismo”. Podemos entender isso, por causa da herança totalitária do comunismo. “Você critica o nacionalismo”. Podemos entender isso também, por causa da exclusão social que ele afirma. “Mas por que criticar o capitalismo?” A resposta fica

visível, mesmo neste contexto da discussão sobre Locke. O capitalismo elimina a possibilidade da convivência democrática. O capitalismo quer só funcionar e assim nos livrar de nós mesmos. O fundo não se problematiza, como indica a questão do trabalho. Onde, então, poderíamos encontrar outra inspiração para constituição do mundo comum? É possível ainda uma democracia? E ainda, dentro da Modernidade? Parece uma tentativa que fracassou já no início. Mas, vamos primeiro ouvir a resposta de Rousseau. A inspiração inicial que une Hobbes, Locke e Rousseau é a liberdade no estado natural. Mas a reconstrução do estado natural já cria diferenças. No estado da natureza não se encontram as condições da competição e guerra como pensa Hobbes. Na verdade “os homens neste estado de natureza, não havendo entre si qualquer espécie de relação moral ou de deveres comuns, não poderiam ser nem bons nem maus…”.[91] Rousseau por aqui não vê nenhuma inspiração moral para justificação das consequências políticas. Vimos que essa inspiração ainda fortalece a perspectiva de Hobbes contra o positivismo. O que caracteriza o estado natural é a tentativa da própria conservação e, poderíamos dizer, certa autossuficiência do homem. O selvagem vive em si mesmo, fala Rousseau[92]. É o que Rousseau também chama o amor de si mesmo. Neste estado se encontra a igualdade. Ela desaparece com a sociedade civil e com a introdução da propriedade. Então, Rousseau não acha, como Locke, que a propriedade é o direito natural. É algo posterior e parece a causa dos males na história. É o início da desigualdade. Essa confrontação entre a natureza e cultura e a diagnose do mal-estar na cultura vai determinar muitas discussões. Também é o início de outra relação do homem consigo mesmo, que Rousseau chama amor próprio e descreve assim: “Não se deve confundir o amor próprio com o amor de si mesmo; são duas paixões bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor próprio não passa de um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam…”.[93] Rousseau não seguiu a ideia dessa perda do outro na cultura, porque finalmente acha que pode procurar certa articulação da vida comum. Mas o recado é dramático: a perda de si mesmo e do outro. Ou com as belas palavras de Starobinski: “As ‘falsas luzes’ da civilização, longe de iluminar o mundo humano, velam a transparência natural, separam os homens uns dos outros, particularizam os interesses, destroem toda possibilidade de confiança recíproca e substituem a comunicação essencial das almas por um comércio factício e desprovido de sinceridade; assim

se constitui uma sociedade em que cada um se isola em seu amor próprio e se protege atrás de uma aparência mentirosa”.[94] Com certeza Starobinski se inspira nas palavras de Rousseau: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si.[95] Não é hoje, me pergunto, a Internet, o exemplo do vazio do amor-próprio? Então, Rousseau está seguindo a intuição jus naturalista sobre a nossa liberdade, mais ele não articulou uma elaboração individualista do jus naturalismo. Isso é uma importante diferença entre Rousseau por um lado e Hobbes e Locke, por outro. A ideia do contrato social também é diferente. Rousseau não elabora uma continuação entre o estado natural e estado civil, como Locke. A relação entre dois estados é uma ruptura, pensa Rousseau como Hobbes. Estamos renunciando aos direitos naturais em nome de uma nova possibilidade da liberdade social. Só, como vimos, o lugar do contrato social em Rousseau fica diferente. O contrato social não é a base da sociedade civil. Ele é necessário por causa dos males que essa sociedade provoca. O contrato é posterior e questiona a possibilidade de, quase, reencontrar as condições da nossa liberdade e da nossa natureza na sociedade civil. Aqui aparece a importância dos argumentos morais em Rousseau. Com eles se supera o egoísmo que está no início da sociedade civil e se cria a condição de um bem comum, que Rousseau entende como a formação da vontade geral. A igualdade natural se substitui por uma igualdade moral, é o recado do Contrato social. Rousseau diz, e é importante entender isso para poder avaliar as críticas de Hegel: “Há comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e não passa de uma soma das vontades particulares”[96]. Rousseau entende a liberdade civil como a obediência a essa vontade geral.[97] Estamos renunciando aos nossos direitos não em nome de uma autoridade, como em Hobbes, mas em nome dessa vontade geral, em nome de todos. Isso poderia ser entendido como a elaboração do estado democrático. Com Rousseau já podemos falar sobre a soberania do povo. Só que essa superação do privado não necessariamente vai para uma afirmação do pluralismo, como no caso da Hannah Arendt, mas à submissão a vontade geral. A soberania do povo em Rousseau temos que entender no contexto dessa possível aproximação ao totalitarismo. Bobbio entendeu a liberdade civil em Rousseau como uma liberdade mais plena e superior. No estado natural somos livres porque não há leis. No estado civil somos livres porque obedecemos às leis que nós mesmos estamos criamos[98]. As palavras de Rousseau indicam mais um equilíbrio do que entusiasmo: “O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural… O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que

possui”.[99] Menciono aqui duas críticas contra Rousseau e algumas sugestões da leitura do seu argumento. Uma crítica é de Hegel, outra de Nietzsche. Uma encerra a compreensão da Modernidade, outra abre o caminho para uma possível ruptura com a Modernidade. O pressuposto da crítica de Hegel é outra diferença entre a natureza e a liberdade que não coloca a liberdade no contexto natural. Kant dá início a essa leitura separando dois mundos cujos cidadãos somos: mundo da natureza e mundo da liberdade. A liberdade não é natural, pensa Kant. Radicalizando essa perspectiva kantiana, Hegel chega até a conclusão de que a liberdade pode ser só social. Na sua História da Filosofia, exatamente na parte sobre Rousseau, Hegel diz que a liberdade do ser humano não se abandona no Estado, pelo contrário, no Estado ela se constitui[100]. E para entender isso não podemos desenvolver a discussão falando sobre indivíduos. Hegel aqui talvez não pense sobre Rousseau, mas sobre Hobbes e Locke, mas o recado da Filosofia do Direito é explícito: não podemos deixar o Estado depender dos indivíduos e da vontade deles, articulada no contrato. Aqui, nessa parte da crítica, Rousseau já esta incluído. Hegel acha que a vontade geral não pode ser o resultado da vontade de todos. Vimos que Rousseau também fala sobre isso. Hegel não entendeu Rousseau? Eu acho que Hegel tem outra expectativa sobre a vontade geral. A vontade geral é o conceito e não a contingência. É o conceito que determina a filosofia hegeliana. Temos que entender, fala ele na Filosofia do Direito, que direito não pode ser entendido de outra maneira do que a ideia[101]. O espiritual é o fundo do direito – (Das Geistige ist der Boden dês Rechts).[102] É um recado forte, para ser repensado nessa época, nossa também, da profunda dominação do positivismo, onde se perdeu a inspiração jus naturalista. A profunda crise do direito é, como a palavra indica, não entender o próprio fundo. O fundo sem fundamentos do direito. Aqui não é o lugar para seguir essa leitura. Finalmente não necessariamente tem que aparecer Hegel como uma referência. A discussão pode ser articulada tendo outro foco: a própria revolução francesa. Hegel confrontando-se, assim com Rousseau, acha que abre a possibilidade para entender o caráter espiritual da Revolução[103]. Isso é o que Rousseau e jus naturalismo não entenderam. Na parte da História da Filosofia, onde fala sobre Rousseau, Hegel diz que quem rejeita o pensamento e fala sobre a liberdade não sabe do que está falando[104]. A unidade do pensamento, continua ele, consigo mesmo é a liberdade, a vontade livre.[105] A vontade[106] é livre só como pensante. Podemos tentar rapidamente simplificar o recado hegeliano. O pensamento que ele menciona aqui não é um ato isolado, distante do mundo. É uma mediação, histórica inclusive. Com essa mediação, o aspecto universal do pensamento se media com o particularismo do mundo chegando até uma

específica unidade entre o mundo e o pensamento. Isso é o que finalmente aconteceu com a revolução francesa onde cada homem particular se reconhece como tal, onde se unem o particular e o universal. Assim, com a revolução francesa, se realiza o fim da história. Assim só, pensa Hegel, a liberdade se realiza no contexto social. Social, que no contexto grego nem aparece, aqui na Modernidade nos afirma, nos constitui. Com o idealismo alemão ficou visível este papel constitutivo do social, onde o próprio Marx procura uma inspiração. Aqui a política constitui a metafísica. Neste sentido, pense Hegel talvez, possamos superar as dúvidas que ficam com Rousseau, se a vontade geral é a realização da liberdade ou talvez o sinal do totalitarismo. Acho que Starobinski tem isso como motivo quando fala: “... tendo perdido a igualdade na independência natural, o homem conhece agora a igualdade na servidão: Rousseau não nos diz como os homens poderiam conquistar a igualdade na liberdade civil”.[107] Hegel acha que tem resposta para essa dúvida. A revolução francesa fala, finalmente sobre a igualdade e a questão, acha Hegel, é só como entender essa igualdade. Hegel está longe ainda de uma diagnose que revela a profunda desigualdade no capitalismo moderno. É só uma sugestão da leitura, para finalmente poder se confrontar com a convicção hegeliana de que a Modernidade realizou a nossa liberdade. De novo, somos livres como seres modernos, pensa Hegel. A crítica de Nietzsche, exposta por exemplo no Crepúsculo dos Ídolos, refere-se não a uma apologia da Modernidade, mas uma de suas críticas mais fortes. Para onde quer ir Rousseau finalmente, se pergunta Nietzsche: “Rousseau, este primeiro homem moderno, idealista e canaille em uma única pessoa... para onde, uma vez mais indago, Rousseau queria retornar?”.[108] Não existe o fundo, a natureza humana, por isso não fica claro para onde Rousseau quer ir. Essa ausência do fundo na articulação do ser humano deixa as dúvidas até hoje.[109] “Odeio, continua Nietzsche, a moralidade rousseauniana. A doutrina da igualdade!... Mas não há nenhum veneno mais venenoso: pois ele parece estar sendo pregado pela própria justiça, enquanto é o fim da justiça…”. [110] Modernidade e o fim da justiça. Igualdade e o fim da justiça. Em lugar de afirmar a ideia do indivíduo, a Modernidade talvez chegue até o seu fracasso. Por que ainda queremos tanto ser modernos? Mas vamos voltar uma vez para a Modernidade e tentar entender os argumentos que falam em seu favor. É, como vimos, o caso da filosofia hegeliana. Hegel fica tão entusiasmado com a Modernidade que nem pode imaginar algo depois dela. Somos livres como os seres modernos é o recado dele bem conhecido. Vamos ver se ainda podemos seguir este entusiasmo hegeliano. Voltemos para o início da Modernidade teórica que, de certa maneira,

identificamos com jus naturalismo. Um trecho da Enciclopédia pode nos dar a orientação. Hegel diz: “A expressão ‘direito natural’, que foi corrente para a filosofia do direito, encerra a ambiguidade seguinte: se é o direito enquanto presente no modo natural imediato, ou se ele é visado tal como se determina pela natureza da Coisa, isto é, pelo conceito. O primeiro sentido era o visado ordinariamente outrora, de modo que se imaginou, ao mesmo tempo, um estado de natureza em que devia vigorar o direito natural, e oposto a ele, o estado da sociedade e do Estado que antes exigiria – e traria consigo – uma limitação da liberdade e um sacrifício dos direitos naturais. Mas, de fato, o direito e todas as suas determinações se fundam unicamente na personalidade livre, em uma autodeterminação que é antes o contrário da determinação-de-natureza. Por isso, o direito da natureza é o ser-aí da força, e o fazer-valer da violência e um estado-de-natureza é um ser aí da força-bruta e do não-direito, do qual nada melhor se pode dizer senão que é preciso sair dele. Ao contrário, a sociedade é antes o estado em que somente o direito tem sua efetividade: o que se tem de sacrificar é justamente o arbítrio e a força-bruta do estado de natureza”.[111] O estado da natureza, onde se afirma o novo sentido teórico da Modernidade, não é o estado de liberdade e dos direitos. Não existem os direitos naturais, pensa Hegel. A questão do direito é um contexto social. O sentido do direito é uma relação com os outros. Hegel acha que isso é assim pelo conceito. Então temos que entender duas perspectivas: uma histórica que Hegel entende como o caminho da saída de natureza e da afirmação da liberdade e o outro, o caminho do pensamento, do conceito, de uma articulação conceitual do pensamento. Caminho da liberdade e o caminho do pensamento. São duas perspectivas hegelianas inseparáveis. Ele volta para uma palavra quase abandonada na filosofia. É a palavra ontologia. E por outro lado, Hegel quer analisar a lógica do pensamento com a qual se chega até o conceito. Desde o início a filosofia hegeliana é uma relação íntima entre a ontologia e a lógica. Só que sua ontologia não será grega. Hegel, mesmo tendo muitas simpatias com o pensamento grego, não concorda com uma pressuposta primazia do geral e do coletivo, que no sentido explícito encontramos em Platão e Aristóteles. Mesmo querendo afirmar o coletivo novamente, Hegel quer fazer isso o justificando e não o postulando. A primazia do coletivo tem que ser a consequência do próprio conceito. Por outro lado, Hegel se confronta com a ilimitada afirmação do indivíduo da época moderna, ligada ao avanço do liberalismo. Ele pensa sobre outra síntese entre o coletivo e o individual, mas não no sentido de um novo ecumenismo. Essa relação tem que ser entendida como a consequência do próprio conceito. Então a ontologia que volta não é grega. Ela é a história do próprio conceito e não de uma estrutura estática da metafísica, já determinada. O raciocínio de Hegel é

fácil. O mundo pré-moderno é uma articulação da metafísica objetiva, onde temos de nos encaixar. É o contexto que ele, por causa disso, várias vezes chama da consciência infeliz e da humilhação do homem, da essência do homem que fica sempre fora dele. Talvez o povo judeu seja o melhor exemplo para isso do que o povo grego. São os gregos, finalmente, que encontram o brilho do coletivo. Mesmo assim, Hegel liga a liberdade só com a Modernidade. Talvez no início do jus naturalismo esteja a teoria dos direitos humanos. Mas este mundo – que Hobbes é testemunha – é o mundo da violência e temos que sair dele, como o próprio Hegel confirma no parágrafo mencionado. Aqui já temos um argumento a mais, ligado à mencionada relação entre a lógica e a ontologia. Temos que sair do estado de natureza, não só por causa da violência que lá se encontra, mas porque no direito natural e na natureza, conforme pensa Hegel, temos só a relação com as coisas e não com nós mesmos. Direitos naturais não criam o ambiente para uma específica autocompreensão do ser humano, que Hegel procura. Quem somos nós? E ainda mais, quem somos nós depois da revolução francesa? O direito natural não é a nossa autoconsciência. A nossa autoconsciência fica ligada não a natureza, mas ao caminho histórico, que chega até a revolução francesa. A natureza não é o lugar do ser humano. Por isso, como mencionamos, fica até contraditório de falar sobre os direitos naturais. Temos que sair da natureza. O passo importante neste caminho é Kant. Saindo do direito estamos entrando na moralidade e aqui aparece Kant. É o âmbito de uma relação não mais com as coisas, mas consigo mesmo, é a questão da subjetividade. Hegel afirma por aqui a posição kantiana, mas também fala sobre os limites dela. Ele menciona uma específica potência e, ao mesmo tempo, impotência da razão. A razão é constitutiva, transcendental, mas ao mesmo tempo isolada do mundo, impotente. A moralidade afirma a nossa interioridade e não a exterioridade, o mundo social, onde Hegel finalmente quer reconhecer a razão constitutiva. Por isso, a vida ética supera a moralidade. É o caminho para uma exterioridade da razão. Passa de novo pelo âmbito natural representado pala família e entra na sociedade civil, no âmbito liberal dos indivíduos. Hegel, mesmo criticando o indivíduo liberal isolado da razão, acha que este é o passo necessário para a realização da racionalidade social moderna. Ele é assim o primeiro que dá um passo importante na discussão sobre a economia. Ela não é mais o mundo do privado, ela é o contexto da realização das necessidades individuais. A economia é a sociedade civil, e isto não existe no pensamento grego. Hegel vai agora só confrontar a sociedade civil com o Estado, pensando uma possível reconciliação entre o individual e o geral. O estado supera os problemas econômicos, a miséria do mundo, acha Hegel. Finalmente estamos chegando até a revolução francesa e a decisão política do reconhecimento. Aqui

Hegel se confronta com Kant de novo. Vimos que Kant chega até a reciprocidade das vontades falando sobre o direito e as condições externas da nossa liberdade. Só Hegel acha que Kant não mostra de uma maneira argumentativa como se chega até essa reciprocidade. A solução de Hegel é: pelo reconhecimento mútuo dos indivíduos com o qual o indivíduo se afirma como a finalidade em si. Hegel assim chega até à ideia de que o reconhecimento é o direito de ter direitos[112]. Direito se confirma como a existência (Dasein) da vontade livre[113]. Só Hegel não diz se essa decisão de reconhecer é uma decisão contingente de cada um de nós. Isso seria a ideia do contrato. O reconhecimento é o exemplo da realização do espírito e não uma decisão contingente. Este é o momento para entender melhor a ligação entre a lógica e ontologia em Hegel e talvez pensar algumas críticas. Trata-se aqui da relação entre o particular e o geral. No início está o particular, qualquer indivíduo, por exemplo. Neste contexto ele ainda não desenvolveu todas as potencialidades. Vimos que só a história mostra o que é o ser humano e quais são as suas potencialidades. A verdade sobre o ser humano está só no final deste processo. O particular, como tal, ainda é abstrato. O desenvolvimento histórico é a concretização do abstrato individual. É o avanço da nossa vontade que supera o isolamento da razão. Hegel associa essa vontade livre com o pensamento criando assim a diferença entre os homens e os animais[114]. O desenvolvimento do conceito é o mesmo. Iniciando com as particularidades, pensando a mediação delas pela reflexão e chegando assim até o concreto da razão. Em natureza temos a identidade entre o particular e o geral. É o caso dos animais. Mas, é uma identidade dada. No caso do ser humano o particular ainda não é geral. Ele se realiza como geral. O contexto dessa realização é a história. A história é a cena do ser humano. Conceito é essa unidade histórica e reflexiva entre o particular e o geral. A nossa autoconsciência é a consciência sobre a liberdade, sobre a realização objetiva dela. E o caminho do pensamento e o caminho da liberdade são os caminhos que iniciam com o particular abstrato e terminam, com o concreto geral. O verdadeiro geral, fala Hegel, é o geral da liberdade[115] realizada na Modernidade. O sujeito hegeliano não é separado do mundo, como no sentido kantiano. A presença dele no mundo, quer dizer, o aspecto social dele, cria outra perspectiva histórica. O próprio social articula o âmbito metafísico, o fundo dos acontecimentos históricos. O social que nem aparece para os Gregos aqui está como a subjetividade constitutiva. Hegel critica a elaboração kantiana da subjetividade onde a subjetividade fica ainda abstrata. A subjetividade pode ser entendida só como a identidade entre o sujeito e o objeto[116].

Por isso, em lugar de dizer metafísica e política, no sentido da constituição metafísica da política, na Modernidade podemos dizer política e metafísica, quer dizer as condições sociais da possibilidade da metafísica. Isso é a mudança estrutural entre a Tradição e a Modernidade. No final deste processo a revolução francesa afirma o individual, como tal e não como algo ligado às particularidades naturais. Hegel representa a consciência deste processo. Podemos ser conscientes dessa história da realização da liberdade social só no final dela. E precisamos dessa consciência. O que finalmente seria ser livre e não saber disso? Os indivíduos têm como a própria finalidade a realização do geral[117]. As palavras semelhantes se encontram na Política de Aristóteles. Só lá faltou a elaboração histórica da subjetividade e assim a articulação ontológica da liberdade. Os gregos não entenderam o ser humano no seu aspecto geral completo (die ganze Allgemeinheit), fala Hegel[118]. Mas, Hegel não vê a possibilidade dessa identidade entre o particular e geral na economia. Pensando a economia, Hegel parece ter sido contaminado pela própria articulação liberal da economia. Ela é o espaço dos indivíduos atomizados onde falta o geral e a igualdade política. Hegel não vê a possibilidade de outra economia e de uma intersubjetividade econômica, talvez. A propriedade não pertence à liberdade da vontade. Só a relação entre as vontades cria o espaço da liberdade. Assim Hegel chega só até a intersubjetividade política. Na Filosofia do direito ele fala que Platão entendeu muito bem a vida ética dos gregos pensando que a propriedade privada ainda não é o princípio geral, porque dentro dela se encontram escravos[119]. É pouco dizer, continua Hegel, que a escravidão seja injusta em si. O ser humano não existe só em si, mas para si, consciente da sua liberdade. A vida ética, o reconhecimento e assim a intersubjetividade é um acontecimento político. Hegel acredita que isso se realiza na revolução francesa. São conhecidas as dúvidas de Marx sobre essa emancipação política. Habermas também está fundamentando toda a sua teoria nessa impossibilidade da realização da intersubjetividade na Modernidade. É um perigo político, como vamos ver ainda, pensar a Modernidade como a realização da democracia e da intersubjetividade. Para Habermas ainda é uma possibilidade, para muitos uma impossibilidade de ver a democracia na Modernidade. Ao lado da questão da intersubjetividade podemos mencionar também a questão da diferença. No seu livro sobre Hegel, Williams com as belas palavras descreve a Filosofia do Direito como a fenomenologia da intersubjetividade. [120] Mas, segundo o mesmo autor, chega-se até à conclusão de que o reconhecimento do outro é o reconhecimento da sua diferença[121]. Outro, em

Hegel se afirma, fala Williams, na própria singularidade, na sua diferença.[122] Williams também enfatiza o próprio processo do reconhecimento como a relação com o outro.[123] Acho que ainda não podemos procurar estes motivos em Hegel. O exemplo, que o próprio Williams está discutindo, é a diferença entre o reconhecimento e o contrato. Não podemos deixar o Estado e o conceito depender das contingências e das decisões individuais. A ideia do Estado é muito mais digna, acha Hegel. A natureza dele é diferente, é a realização da vontade espiritual.[124] Assim, acho, o outro nem pode aparecer como outro, mas dentro deste caminho glorioso do espírito. Parece-me que Hegel neste ponto não supera a filosofia kantiana. Em Kant não podemos pensar o encontro com o outro. Outro está dentro de um procedimento reflexivo da filosofia[125]. O Outro em Hegel também aparece só no caminho reflexivo do espírito. Essa dificuldade do encontro com outro chega talvez até o próprio Habermas. Ademais, como Hegel, Habermas também não procura uma intersubjetividade econômica, mas uma intersubjetividade política. Ele acha que Hegel ficou só com a filosofia da subjetividade[126], que agora se chama espírito, e que, por causa disso, o projeto da intersubjetividade ainda fica aberto. Mas, com todas as dificuldades da Modernidade que vamos discutir, outra pergunta aparece também, agora contra Habermas – qual é o sentido de procurar a intersubjetividade onde ela não pode acontecer? Modernidade não é o mundo da intersubjetividade como acha Hegel e como ainda acredita Habermas. A teleologia do espírito no final das contas apaga com as diferenças. Neste sentido, Hegel vai proclamar o fim da história e a impossibilidade das diferenças sociais. O exemplo das mulheres é ilustrativo. Na Filosofia do Direito, Hegel vai confirmar que elas não superam a natureza e o privado[127]. Elas não chegam até o público e até a perspectiva geral do conceito. Assim, podemos concluir de que a modernidade não chega nem até à ideia da intersubjetividade nem até à ideia da diferença. Talvez a sua imagem também não possa ser mais hegeliana. Vamos ver qual poderia ser outra diagnose da Modernidade. [65] . Leonardo da Vinci, Trattato della pittura, Milano, 1996, p. 14. [66] . Leonardo da Vinci, Trattato della pittura, Milano, 1996, p. 14. [67] . Cf. Bobbio, N., Locke e o Direito Natural, Brasília, 1997, p. 13. [68] . Hobbes, Th., Leviatã, São Paulo, 1979, XVII, p. 103. [69] . Vários trabalhos de Norberto Bobbio podem ser citados sobre este assunto. Acho que com ele a gente pode reconstruir a história do jus naturalismo. As dificuldades aparecem com as filosofias de Kant e

Hegel. Acho que Bobbio talvez não entendeu a ideia da subjetividade que marca a diferença entre o jus naturalismo e o idealismo. Isso explica uma certa incoerência nos livros de Bobbio onde se afirma, por exemplo, que Rousseau seja o último jus naturalista (cf. Bobbio, N., Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, São Paulo, 2000, p. 70) e depois no mesmo livro se diz que Kant seja um jus naturalista. (Hobbes, Th., Leviatã, São Paulo, 1979, XVII, p. 137).

[70] . Hobbes, Th., Leviatã, São Paulo, 1979, XVII, p. 104. [71] . Hobbes, Th., Leviatã, São Paulo, 1979, XVII, p. 106. [72] . Sobre essa alternativa indico também um belo livro de Roberto Lyra Filho, O que é Direito, São Paulo, 1984.

[73] . Milovic, M., Comunidade da diferença, Rio de Janeiro, 2004, pp. 64-65, como também a discussão sobre Hobbes em: Milovic, M., Filosofia da Comunicação, Brasília, 2002, pp. 34 – 42. [74] . Locke, J., Segundo tratado sobre o governo, Os Pensadores, São Paulo, 1991, p. 230. [75] . Bobbio, N., Locke e o Direito Natural, Ibid., p. 75. [76] . Locke, J., p. 264. [77] . Locke, J., p. 264. [78] . Locke, J., p. 264. [79] . Locke, J., p. 264. [80] . Locke, J., p. 271. [81] . Locke, J., p. 238. [82] . Locke, J., p. 308. [83] . Locke, J., p. 301. [84] . Bobbio, N., Direito e Estado ..., p. 36. [85] . Bobbio, N., Direito e Estado ..., p. 59. [86] . Bobbio, N., Locke e o Direito Natural, p. 161. [87] . Locke, J., p. 229. [88] . Locke, J., p. 230.

[89] . Bobbio, N., Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, São Paulo, 2000, p. 55. [90] . Mascarelli Salgado, G., Contrato como Transferência de Direitos em Thomas Hobbes, Curitiba, 2008, p. 144.

[91] . Rousseau, J. J., Discurso sobre a Desigualdade, Os Pensadores, São Paulo, 1983, p. 251. [92] . Rousseau, J. J., Discurso sobre a Desigualdade, Os Pensadores, São Paulo, 1983, p. 281. [93] . Rousseau, J. J., Discurso sobre a Desigualdade, Os Pensadores, São Paulo, 1983, p. 307. [94] . Starobinski, J., Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo, São Paulo, 2011, p. 38. [95] . Rousseau, J. J., Discurso sobre a Desigualdade, Os Pensadores, São Paulo, 1983, p. 281. [96] . Rousseau, J. J., Do contrato Social, Os Pensadores, São Paulo, 1983, p. 46-47. [97] . Bobbio, N., Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, São Paulo, 2000, p. 75. [98] . Bobbio, N., Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, São Paulo, 2000, p. 73-74. [99] . Rousseau, J. J., p. 36. [100] . Hegel, G. W. F., Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III, Frankfurt, 1986, p. 307. [101] . Hegel, G. W. F., Die Philosophie dês Rechts, Frankfurt, p. 39. [102] . Hegel, G. W. F., Die Philosophie dês Rechts, Frankfurt, p. 41. [103] . Cf., Milovic, M., Dominação e Ideologia: Hegel, em: Comunidade da diferença, Rio de Janeiro, 2004, PP. 11-24.

[104] . Hegel, G. W. F., Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III, Frankfurt, 1986, p. 308. [105] . Hegel, G. W. F., Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III, Frankfurt, 1986, p. 308. [106] . Hegel, G. W. F., Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III, Frankfurt, 1986, p. 308. [107] . Cf., Starobinski, J., Ibid., p. 47. [108] . Nietzsche, F., Crepúsculo dos Ídolos, Rio de Janeiro, 2000, p. 106. [109] . Por um lado, posso mencionar a leitura que Foucault está fazendo de Nietzsche pensando uma genealogia do humano sem fundo e por outro, as pesquisas de Lévi-Strauss. Até o título do artigo dele sobre Rousseau fica ilustrativo: Rousseau, fondateur dês sciences de l´homme, in: Antropologie structurale deux, Paris, 1973, PP. 45-56.

[110] . Nietzsche, F., Crepúsculo dos Ídolos, Rio de Janeiro, 2000, p. 107. [111] . Hegel, G. W. F., Enciclopédia das Ciências Filosóficas, III, São Paulo, 1995, p. 289. [112] . Cf. Williams, R., R., Hegel´s Ethics of Recognition, Berkeley, 1997, p. 101. [113] . Hegel, G. F. W., Die Philosophie des Rechts, Frankfurt, 2005, § 29. [114] . Hegel, G. F. W., Die Philosophie des Rechts, Frankfurt, 2005, § 18. [115] . Hegel, G. F. W., Die Philosophie des Rechts, Frankfurt, 2005, § 188. [116] . Hegel, G. F. W., Die Philosophie des Rechts, Frankfurt, 2005, § 123. [117] . Hegel, G. F. W., Die Philosophie des Rechts, Frankfurt, 2005, § 260. [118] . Hegel, G. F. W., Die Philosophie des Rechts, Frankfurt, 2005, § 209. [119] . Hegel, G. F. W., Die Philosophie des Rechts, Frankfurt, 2005, § 29. [120] . Williams, R., R., Hegel´s Ethics of Recognition, Berkeley, 1997, p. 229. [121] . Williams, R., R., Hegel´s Ethics of Recognition, Berkeley, 1997, p. 25. [122] . Williams, R., R., Hegel´s Ethics of Recognition, Berkeley, 1997, p. 69. [123] . Williams, R., R., Hegel´s Ethics of Recognition, Berkeley, 1997, p. 58. [124] . Hegel, G. F. W., Die Philosophie des Rechts, Frankfurt, 2005, § 75. [125] . Cf. Williams, R., R., Hegel´s Ethics of Recognition, Berkeley, 1997, p. 33. [126] . Cf. Habermas, J., Hegel´s Begriff der Moderne, em: Habermas, J., Der philosophische Diskurs der Moderne, Frankfurt, 1985, p. 34-59.

[127] . Hegel, G. F. W., Die Philosophie des Rechts, Frankfurt, 2005, § 172.

OUTONO DA MODERNIDADE[128] Mesmo depois de tantos anos, os livros de Zoran Djindjić continuam sendo estimulantes. Primeiro, tentarei apontar algumas das características da Modernidade, a fim de compreendermos o seu primeiro livro “A Subjetividade e a Violência”. Isso também irá nos ajudar a perceber se Marx permanece na Modernidade, o que Djindjić procura criticar, que é inclusive o tema de outro livro seu “O outono da Dialética”. Da mesma forma, nos servirá como modelo para entender o legado marxista na Iugoslávia, tema do seu livro “Iugoslávia como um Estado Inacabado”. O interesse de Djindjić em compreender a Modernidade sempre é político, mas seria aconselhável falar primeiramente da perspectiva da filosofia moderna. Afinal, a filosofia moderna prepara o modelo para a compreensão da política. Além disso, prepara um modelo para a tese sobre a teleologia política, isto é, a tese de que a política moderna concretiza nossa liberdade. A questão política nem sempre foi explícita para a filosofia moderna. Na obra de Descartes, por exemplo, ela sequer é mencionada. Por outro lado, com Descartes, como dirá Hegel, começa o pensamento moderno. Como entender esse momento cartesiano apolítico da Modernidade? A sugestão de Hegel é simples. Descartes representa o começo de uma era em que nosso pensamento é considerado autoridade. Não há certeza antes do próprio pensamento. Isto representa a ruptura com a tradição e prepara um projeto novo, moderno, em cujo início se encontra o homem[129]. Aliás, precocemente demais para muitos, Descartes passa a discutir a questão da existência do mundo. Com isso, de acordo com Husserl, ele demonstra uma falta significativa de entendimento da questão de pensamento e, portanto, da subjetividade. A compreensão desse aspecto é essencial, visto que Djindjić, afinal, tenta questionar a Modernidade usando a subjetividade e a violência. Estas, porém, são palavras que para Descartes não significam praticamente nada. A palavra subjetividade não aparece na obra dele e isso, diga-se de passagem, nos servirá como modelo para a avaliação da posterior tese de Djindjić sobre os modelos filosóficos do marxismo. Além disso, a palavra violência também não tem qualquer relevância filosófica para Descartes. Precisaremos interpretar uma série de argumentos ao longo do caminho, a fim de

vincular o pensamento moderno à violência, ou para mostrar que ele se identifica com a violência. O interesse de Descartes, mesmo sendo de importância histórica, basicamente é muito mais modesto. Ele quer mostrar que a questão do mundo é essencialmente uma questão de ciência. Trata-se de uma reviravolta histórica. A questão do mundo não é mais uma questão filosófica, como acreditavam os gregos. No próprio mundo não há categoria filosófica alguma. Com isso, nos envolvemos na perspectiva da transparência moderna. Ao que parece, não há mais segredos no mundo. Naturalmente, será muito mais necessário para desvendarmos os segredos modernos, que Marx uniria ao conceito de ideologia. Parece, de fato, que a Modernidade não é tão transparente, como pensava Descartes e que talvez a questão da transparência se encontre onde o pensamento de Descartes não chega, ou seja, na própria política e na estrutura do social. Mas como chegar até lá? Esse será o verdadeiro caminho para a compreensão da subjetividade moderna. Outro fato interessante é que Descartes, apesar de criticar os gregos, ainda se mantém, por assim dizer, no quadro espiritual deles. O interesse dos gregos, como também o de Descartes, é a questão do mundo. Heidegger se surpreenderia com isso mais tarde. De acordo com ele, a questão da filosofia não é a questão do mundo. Ela é muito mais profunda. Mas onde está a profundidade da filosofia? Para respondermos a essa pergunta, teremos também de entender o conceito de subjetividade. Afinal de contas, relembremos, Husserl disse que Descartes não havia entendido a ideia do pensamento e por isso tornou seu foco para a exploração do mundo. Uma Modernidade diferente poderia ter se iniciado com Descartes, a Modernidade que examina o próprio pensamento e nele procura a certeza sobre o próprio homem. Hoje nos vemos à sombra deste projeto moderno bem ensaiado. No entanto – alguém poderia reivindicar nesse ponto – a questão do pensamento em si aparece, de fato, um pouco mais tarde, porém ainda no âmbito da Modernidade. Isso é verdade. Tanto Kant quanto Hegel questionam o próprio pensamento, radicalizando com isso o projeto cartesiano. Kant diria que na própria ciência já se vê claramente a nova subjetividade se constituindo. Os laboratórios não são um exemplo de que no mundo podemos ter conhecimento universal sem experiências empíricas? O conceito da subjetividade já está se articulando na ciência. O pensamento sobre o mundo já inclui o sujeito. Kant vai mais longe nessa trajetória: em determinado momento ele pergunta até que ponto podemos seguir a ciência na filosofia. O que dizer, por exemplo, sobre a questão da liberdade? A ciência nada diz sobre isso. É aí que Kant vê um espaço novo para a filosofia, fora do domínio da teoria. Filosofia não é mais

teoria, e sim uma questão de prática, isto é, a questão da liberdade. Filosofia como pensamento de liberdade – aqui a concepção da inspiração de Marx tornase óbvia. Claro, Kant iria deixar muitas questões por resolver. Assim, por exemplo, a questão da liberdade ficará limitada apenas à relação com o individual e a nossa consciência moral. Como se com isso Kant apenas renovasse a herança de luteranismo na filosofia. E no mundo, por outro lado, já aconteceu muita coisa. Vamos citar, diria Hegel, apenas a Revolução Francesa. O que dizer sobre a Revolução Francesa, ou como entender o fato de que a liberdade já está no mundo? Primeiramente, Hegel tenta mostrar isso na “Fenomenologia do Espírito”, falando sobre a possibilidade da história. Podemos dizer que nesse ponto pela primeira vez a história torna-se interessante para a filosofia. Vamos relembrar que na Grécia Antiga existam historiadores e filósofos, mas não historiadores da filosofia, ou filósofos que lidam com a história. E no começo da Modernidade, Descartes praticamente sugere que lidar com a história é mera perda de tempo. Kant, como vemos, ainda não alcança a possibilidade de pensar sobre a história, ou a possibilidade da ordem racional fora da própria subjetividade. E esse é precisamente o projeto de Hegel: demonstrar o poder da mente, as possibilidades da mente no mundo; em outras palavras, mostrar que o mundo, e justamente o mundo moderno, tornou-se racional. Isso é possível, pensa Hegel, graças ao trabalho humano que questiona a identidade do mundo e cria algo novo. Não foi o mundo cristão que descobriu que o homem foi criado para o Novo se tornar possível? Hegel segue essa ideia cristã sobre a possibilidade do novo, ou seja, do espiritual no mundo, mas vai lhe dar um significado secular. O novo é possível se o trabalho humano acompanha a ideia, e não o desejo natural. E isso aconteceu com base na diferença, segundo Hegel, entre os senhores e os escravos. Conforme a vontade do senhor, os escravos abrem mão de sua própria vontade; em outras palavras, o trabalho deles não faz mais parte da ordem natural. Atendendo à vontade do senhor, os escravos trabalham de acordo com a ideia (de alguém). Um trabalho que segue uma ideia é, na verdade, um trabalho em verdadeiros termos humanos. Este tipo de trabalho ajuda a superar a natureza e a apontar para o potencial histórico, ou para a especificidade do mundo humano. A história é possível com base no trabalho humano. Justamente por isso, Marx realça a grandeza da filosofia de Hegel, que entendeu, pela primeira vez na filosofia, a importância do trabalho humano. O que Marx tenta fazer, em minha opinião, é liberar a discussão sobre o trabalho da metafísica de Hegel, ou sobre esse contexto espiritual em que ela surge. Aqui também desenvolvemos argumentos para posterior avaliação da tese de Djindjić, de que Marx de fato não supera Hegel.

Se a “Fenomenologia do Espírito” dá ênfase ao potencial histórico, a tarefa da “Filosofia do Direito” é mostrar o que, de fato, acontece na história, ou na história moderna em geral. A “Filosofia do Direito”, diga-se de passagem, tem sua origem quando se inicia a crítica ao idealismo alemão de Marx. O que nos interessa no momento é por que Hegel, reconstruindo a história na “Filosofia do Direito” se limita ao contexto moderno. Será que a história é apenas a história moderna? Hegel parte do pressuposto de que a liberdade pode ser realizada apenas na Modernidade. O mundo tradicional, por exemplo, o grego, é apenas consuetudinário, pelo fato de seguir a ordem normativa. A Modernidade, ao contrário, é a criação de um mundo humano novo, específico. Este projeto se completa com a Revolução Francesa. A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece o reconhecimento do homem em si, e consequentemente as circunstâncias sociais da liberdade se concretizam. Já não se trata mais da liberdade do indivíduo como, por exemplo, um faraó no antigo Egito, ou de determinada classe social, como na Grécia antiga, e sim do homem per se. Com isso, a Revolução Francesa elimina a diferença entre senhores e escravos, com a qual a história tem início. No entanto, a França desenvolve seu próprio conceito de soberania. Dizer, por exemplo, que França é um Estado, significa igualar o Estado, neste caso a França, ao próprio conceito de soberania. Porque o conceito em si se realiza na história, ou, o geral constitui o individual. A história é, portanto, o palco do domínio do geral sobre o individual. O conceito filosófico da subjetividade prepara, assim, a violência. Este é o ponto indicado pelo livro de Djindjić “Subjetividade e Violência”. Uma mensagem importante e atual. Djindjić a vê, obviamente, como consequência da identidade moderna, ou da metafísica moderna. Hannah Arendt, por sua vez, vê essa violência no futuro desenvolvimento da economia e na conquista econômica da esfera pública. Desta forma se estabelecem as circunstâncias para um tipo de despolitização segundo o qual somos praticamente excluídos de nosso próprio mundo como sujeitos políticos. Hoje em dia o capitalismo é a ordem global e portanto a violência é global. Contudo, se o projeto moderno termina praticamente na violência, será que é possível ainda defender a Modernidade, como pretende Djindjić em seu livro “Iugoslávia Como um Estado Inacabado”? Mais tarde abordaremos esta questão novamente. Outro problema também permanece em aberto. Em “Subjetividade e Violência” Djindjić contrapõe a essa tirania moderna da racionalidade, ou como ele costuma dizer, ao Esclarecimento Totalitário, o conceito de sensualidade, o conceito do individual, fora do alcance da colonização do geral. O terror jacobino sufocou a pluralidade da sensualidade[130]. Assim, “não só a Europa deixou de se tornar uma comunidade de sociedades civis, mas a própria França

experimentou um desenvolvimento diferente daquele que desejavam os atores do século da luta pela autonomia do indivíduo. A revolução não trouxe para a comunidade a solidariedade da razão, e sim o terror da razão instrumental, após o que a restauração da soberania representou um alívio geral”.[131] A autoridade da razão aqui mencionada segue, diga-se de passagem, a filosofia desde seu início. Platão cria uma hierarquia clara da estrutura do mundo e de nosso conhecimento. A essência do mundo é composta pela essência das ideias que podem ser conhecidas apenas pela filosofia. Esse essencialismo se estende a Hegel. Ele diria, por exemplo, que os africanos precisam ser colonizados pelos europeus para conhecerem o espírito da liberdade. Sua vida sensual e concreta deve ser superada pelo plano geral da história. Assim, a história vira palco da dominação do geral, essencial sobre o sensual e o individual. Seguindo esse raciocínio, justifica-se claramente o interesse de Djindjić por sensualidade e individualidade, conceitos essenciais ao domínio da metafísica. No entanto, a questão permanece, uma vez que a reabilitação da sensualidade de “Subjetividade e Violência” é motivo suficiente para o confronto com o fundamentalismo histórico. Afinal, a sensualidade faz parte dessa mesma metafísica, ou da mesma tradição em que predomina o geral. A posição metafísica inversa, como diria Heidegger, todavia não significa que tenhamos superado a metafísica. Entretanto, para que haja mudanças no mundo, e para que a sensualidade seja promovida nesse novo contexto, é necessária, muito provavelmente, uma mudança de paradigma. Em outras palavras, não é possível promover a sensualidade no âmbito da tradição existente da relação sujeito-objeto. Por isso me parece que a crítica da metafísica de Djindjić feita na “Subjetividade e Violência” ainda se mantém no contexto de pensamento da metafísica. A próxima questão é como fica, a partir da análise acima, a filosofia de Marx. Djindjić procura também interpretar essa questão como uma extensão da metafísica da subjetividade europeia. Seguindo, de fato, o idealismo alemão, Marx não consegue superá-lo. Ou, nas palavras de Hannah Arendt, com quem Djindjić compactua implícita e parcialmente, Marx não consegue abandonar a perspectiva do mundo civil que critica. Vamos analisar com mais detalhes a crítica mencionada do livro “O Outono da Dialética”. Já na primeira tese sobre Feuerbach, Marx presta sua homenagem ao idealismo alemão, que aponta para a perspectiva do sujeito constituinte. A questão do mundo, de fato, inclui o sujeito, como diria Kant, mas também o social, como diria Hegel. Estas duas perspectivas não se revelam ao pensamento tradicional. Nessa medida, penso, não é possível chamar a filosofia grega de ideologia. A ideologia surge quando a questão do mundo não é apenas a questão

sobre o objeto, e sim uma questão em que o sujeito também se inclui. Não ver a subjetividade constitutiva significa, em outras palavras, interpretar o mundo existente apenas como é. Segundo Marx, isso é o fetichismo da consciência, que claramente começa com Platão. Interpretar o mundo apenas como ele é, sem os pressupostos constitutivos do próprio sujeito, é um exemplo deste fetichismo da consciência, ou seja, da ideologia. Seguindo essa trajetória, Marx dá um passo adiante, interpretando o sujeito constituinte como sujeito histórico concreto, ou seja, a classe operária. Com isso, ao mesmo tempo, a questão da emancipação se move na direção da economia. A Revolução Francesa e a tese sobre a emancipação política provavelmente são para Marx apenas parte do espetáculo moderno sobre a existência de liberdade, onde ela não se concretizou e onde ela não pode se concretizar. Na “Questão Judaica” Marx cita claramente que emancipação política não é emancipação. A França pode ser livre, mas os franceses não são. É necessário, portanto, se aproximar de uma perspectiva na qual, segundo Marx, se articula a alienação: isso é economia. Portanto a mudança da economia seria a base de uma possível emancipação. Nessa reconstrução de Marx, Djindjić vê apenas a continuação da metafísica moderna da subjetividade. Segundo o filósofo, é Marx que deve ser criticado e não a Modernidade. Marx está saindo de cena, e essa é a razão do título “Outono da Dialética”, mas a Modernidade permanece. Parece que a situação é justamente o contrário. É a Modernidade que está saindo de cena muito mais nitidamente, eu diria, do que o pensamento marxista. É claro que com isso eu não quero dizer que a crítica da Modernidade é apenas e exclusivamente marxista, como também que a crítica da Modernidade deva nos guiar em direção a alternativas pré-modernas. Afinal de contas, na ex-Iugoslávia vimos o que significou abandonar a Modernidade e dar ênfase à tradição. Aqui, é claro, eu concordaria com Djindjić que diz: “o beco sem saída da civilização, onde termina qualquer orientação para as formas pré-modernas de integração social, não se precisa necessariamente manifestar como desastre político para ainda assim ser um desastre”.[132] A crítica da tradição não deve, no entanto, significar a afirmação da Modernidade. “O Outono da Dialética” não dá continuidade à crítica da Modernidade que teve início em “A Subjetividade e Violência”, mas tenta demonstrar que Marx não foi capaz de superar a Modernidade. Além do mais, nesse contexto os argumentos modernos sobre a emancipação política poderiam ser usados contra a tese de Marx sobre a emancipação econômica. Defender a Modernidade de Marx – este é o tema do “Outono da Dialética”. Mas, se a Modernidade termina em violência, ainda é necessário defendê-la?

Primeiro, vamos ver como é a reconstrução do ponto de vista marxista que Djindjić propõe. Vou me concentrar em alguns motivos característicos. Djindjić acredita primeiramente que Marx “guia a discussão sobre a essência de gênero... sem antes tematizar o processo cognitivo que foi usado para se chegar a esse conceito, sem questionar sua base epistemológica”.[133] Penso que a argumentação de Marx se enfraquece significativamente por se relacionar à citada base epistemológica. Meu intuito justamente foi mostrar acima que tudo o que Kant e Hegel fazem, e Marx segue exatamente esse caminho, é pôr em questão essa inspiração epistemológica da filosofia, criticando Descartes. Vimos que a questão não mais se relaciona à reconstrução epistemológica do argumento sobre o mundo, e sim à questão da autorreflexão do homem. Essa questão foi negligenciada por Descartes justamente em decorrência de sua orientação epistemológica. A resposta de Kant é clara: em determinado momento, exatamente na questão da liberdade, a filosofia supera a epistemologia. Com isso, como já mencionado, ela torna-se o pensamento da liberdade. Hegel apenas radicaliza esse caminho definindo as condições sociais da liberdade. Seguindo esse princípio, Marx desenvolve a tese da alienação moderna na própria estrutura do social, como também a tese sobre as condições de sua superação. Com isso, a filosofia se torna o pensamento da revolução na obra do Marx. Trata-se de uma virada histórica na filosofia, que já foi claramente indicada na tese sobre o primado da razão prática de Kant. Depois da tradição milenar da contemplação e de sua redução moderna ao que se conhece por epistemologia, a filosofia se virou na direção do prático e, assim, à possível constituição de um novo mundo humano. Djindjić diz que “independentemente do tipo de pressupostos em que se baseia a reflexão cognitiva e teórica de Descartes, o mero fato de ter se iniciado... estabelece novos critérios para determinar a credibilidade de um conhecimento. Não levar em consideração esses critérios... mostraria uma ingenuidade filosófica ordinária”.[134] Seguindo a mesma linha, o filósofo diz ainda que quando estuda a metodologia de fundamentação filosófica de Marx, ele “leva em conta esses critérios mínimos derivados da reflexão cognitiva e teórica da filosofia do novo século”.[135] Djindjić considera que o próprio desenvolvimento do pensamento civil prova suas palavras. “A filosofia idealista foi suprimida da base ideológica da sociedade civil porque o modelo da racionalidade construído no âmbito dessa filosofia tornou-se amplo demais; podemos até dizer não econômico; o mundo civil poderia encontrar sua legitimidade em uma base muito mais limitada, ou seja, na base providenciada pelas ciências exatas”.[136]. O mundo civil pode se legitimar na base da ciência exata que nem questiona a legitimidade? Por outro

lado, é bem verdade que o idealismo alemão tornou-se muito amplo, talvez até perigoso para a consciência cívica, uma vez que gera confusão no positivismo social. Isso porque o idealismo tornou-se amplo demais para a consciência cívica. No entanto, talvez este mais seja um argumento contra essa consciência e sua ideologia do que contra o próprio idealismo. Em outras palavras, parece-me que em vez de falar sobre o reducionismo de Marx, é mais plausível falar de reducionismo de Descartes. É claro que a perspectiva cognitiva e teórica não é suficiente para a argumentação de Marx. Ela não é suficiente nem para Kant e Hegel para explicarem o que é homem, o que é autorreflexão e o que está contido no “eu penso” cartesiano com o qual começa a era moderna. Afinal, se nós queremos a revolução e entendemos a necessidade da mudança social, talvez ainda não sejamos capazes de mostrar o seu potencial. Apenas o tema sobre o sujeito constituinte, que Marx irá concretizar falando sobre a classe operária, ajuda a articular esta possibilidade. Será que por isso Marx acha “muito desconfortável admitir suas próprias origens na metafísica da subjetividade”?[137] Marx não se sente nem um pouco desconfortável em admitir isso explicitamente em “Teses Sobre Feuerbach” e nos “Manuscritos”. Sem o idealismo alemão, o materialismo permaneceria apenas uma forma de fetichismo. Certamente, Marx também dirá, no prefácio da “Sagrada Família”, que o idealismo também é um dos maiores inimigos do humanismo na Alemanha. E por que Marx diz isso? Porque, afinal – repitamos aqui também –, a questão crucial é mudar o mundo, e não interpretá-lo. Criticando o fetichismo da consciência e do positivismo social, Marx não pretende criar um novo fetichismo na filosofia. Filosofia, incluindo o idealismo alemão, também pode ser apenas uma forma de ideologia social. Marx vê claramente as fronteiras da filosofia. E nesse caso, são fronteiras perigosas. Na “Filosofia do Direito” Hegel, de fato, critica a impotência da razão na filosofia de Kant. O novo poder da razão se concretiza no mundo social. A razão se concretiza no mundo, e Hegel claramente estabelece, no mesmo contexto, a identidade da razão e do mundo, do sujeito e do objeto. O mundo é dominado pela razão, porém a razão de uma cultura: a europeia. A globalização, que apenas segue esse projeto europeu, pode portanto ser compreendida como uma forma de colonização global. Marx também vê claramente as fronteiras da metafísica da subjetividade. O tema sobre a “essência de gênero” apenas radicaliza a tese sobre a liberdade de Kant. O homem é livre, mas esta liberdade jamais se concretizou. A essência de gênero então é apenas uma possibilidade, e não um fundamento metafísico. Contudo, a relação da classe operária com esse projeto é uma questão à parte. Apesar do fracasso da revolução de 1848 e da Comuna de Paris, para Marx a

classe operária permanece como referência. Esta é a única classe que não estabelece novas condições de dominação no mundo. Portanto a realização de seu projeto particular é universal. Lukács, na sequência, fala da classe operária como o novo sujeito-objeto da história. Parece, de fato, que o discurso marxista mais uma vez se torna hegeliano. Portanto eu concordaria com Djindjić de que Marx praticamente critica a sociedade civil a partir do ponto de vista dessa mesma sociedade. A categoria fundamental da sociedade civil – “economia” – permanece também como a orientação de Marx. A história, porém, mostra que a mudança na estrutura de trabalho não proporcionou as condições necessárias para a emancipação. O comunismo não levou à novas formas de aprisionamento? Por isso as posteriores análises marxistas tendiam à articulação de novos paradigmas relacionados não tanto ao trabalho, mas à interação. Esta mudança de paradigma tornou-se ainda mais atual pelo fato de que a classe operária praticamente desapareceu do palco da história. O poder do capitalismo pode ser claramente visto na assimilação das alternativas, tanto que hoje a classe operária passou a fazer parte da ordem conservadora do mundo. Por isso a questão ainda está em aberto: é possível ser, e como ser marxista hoje?; é possível a teoria crítica da sociedade, e qual seria seu teor nos dias de hoje? Com essa crítica de Marx, Djindjić vai entrar na perspectiva do livro “Iugoslávia Como um Estado Inacabado”. Vimos que, na opinião dele, o marxismo não reflete suas próprias suposições[138]. Um pouco adiante ele vincula essa suposição à política, argumentando que Marx não tematiza o sistema político da civilização civil[139]. O problema do comunismo, inclusive o iugoslavo, foi a ausência da emancipação política, ou seja, do pluralismo político. “A ordem socialista sempre se renova como uma abolição permanente do pluralismo político”.[140] Assim, a Iugoslávia comunista, dando continuidade ao projeto de Marx, manteve-se parte do esclarecimento totalitário. Muitas questões são abertas nessa análise inspiradora de Zoran Djindjić. Vou tentar tratar de algumas delas resumidamente. Em primeiro lugar, a ausência de emancipação política é problema de Marx e da herança marxista? Vimos que, com Hegel e Marx, pode-se formular algo que eu chamaria de aporia da política moderna. De um lado está o argumento de Hegel sobre a política moderna que nos concretiza, que concretiza nossa liberdade. Política é teleologia. Esta posição poderia ser até grega, mas na Grécia antiga, lembremos, política era inatingível para muitos. No entanto, a posição de Hegel, de que política é teleologia, é moderna, pois a Revolução Francesa, ou seja, a Declaração dos Direitos Humanos, aponta para a liberdade de todos. A questão de Marx, como vimos, é a questão dos limites da emancipação política moderna que não alcança suas suposições econômicas. Ao contrário da tese de que

política é emancipação, Marx desenvolve a tese de que política é ideologia. O que poderia ser dito, também, sobre a relação do comunismo com o marxismo? Será que o problema do comunismo é basicamente o problema do marxismo? A inspiração de Marx com o idealismo alemão é importante para a resposta a esta questão. Nele Marx descobre as condições da constituição do mundo e articula a possibilidade da crítica da ideologia. Isto porque para falar da ideologia de uma ordem é necessário ter alguma referência. Baseado em quê, especificamente, o mundo é visto como uma ideologia? Ou como positivismo social? Vimos que a ideia da crítica de Marx é concebida no idealismo alemão. O comunismo não seguiu a perspectiva de constituição de Marx. A base dessa constituição se limita ao partido, ao comitê e na maioria das vezes a uma única pessoa. Com isso, as condições de constituição comunista se separaram profundamente das marxistas. O problema de comunismo, portanto, não é o marxismo, muito pelo contrário, é o afastamento do marxismo. Em toda parte, o comunismo se tornou, logo depois da revolução, uma nova estática e nova paralisação do mundo. O comunismo, portanto, sustentou apenas parte da metafísica. Afinal, Lênin diria, após a revolução, na Rússia a classe operária praticamente desapareceu. A revolução foi, na verdade, a ação do partido, e não da classe operária. Por isso a concretização da autogestão econômica e política não progrediu. A autogestão tornou-se, infelizmente, apenas um espetáculo, desta vez um espetáculo comunista. Permanece aberta pelo menos mais uma questão, que vou apenas citar: embora Marx indicasse os limites do político, talvez a política ainda seja o quadro da emancipação. Penso que essa ainda seja uma posição muito atual de Djindjić, na qual, apesar de não fazer isso explicitamente, ele se aproxima da Hannah Arendt. A neutralização do dissenso no comunismo pode ser interpretada como a neutralização da pluralidade da individualidade[141]. A base da crítica de Hannah Arendt a Marx é justamente que o projeto marxista, sendo basicamente econômico, é incapaz de concretizar o projeto da liberdade. Economia, afinal, lida apenas com necessidades naturais, e a política nos eleva do estado natural à liberdade. Esta, afinal, já era a percepção de Aristóteles. Neste ponto, deixarei de lado a crítica de Hannah Arendt a qual, aliás, também inspirou muito os marxistas como, por exemplo, Habermas. Foi por meio de Hannah Arendt que Habermas compreendeu a importância do conceito da interação. Se a emancipação já não foi alcançada na perspectiva de trabalho e economia, como o comunismo mostrou, é necessário mudar o paradigma no qual se baseia nossa interpretação do mundo. A mudança do capitalismo também é a mudança do paradigma na qual se baseia nossa relação com o mundo social. Justamente aqui Habermas adota o conceito da interação de Hannah Arendt,

guiando-o em direção ao conceito da racionalidade comunicativa. Fazendo uma ligação, desde o início, com o indivíduo e o dissenso e questionando assim a metafísica da violência, Djindjić também se aproxima da Hannah Arendt por outro ângulo. Resta, finalmente, o conceito da política no marxismo, e neste ponto Djindjić e Arendt concordariam um com o outro. Se, por outro lado, a Modernidade ainda é uma inspiração política, talvez seja este o contexto de suas diferenças. Entretanto, uma coisa posso afirmar: tenho certeza de que Hannah Arendt teria um profundo respeito pelo pensamento de Djindjić; por este pensamento sem fundamento – como ela provavelmente diria – por sua ousadia em questionar a Modernidade; e, em particular, ao rever a tradição iugoslava. Afinal, o conceito de cidadão moderno não é apenas econômico. Esse princípio também está ligado à questão da imaginação crítica que Djindjić associou ao conceito de indivíduo e de seus direitos políticos. Essa é a peculiaridade de sua posição dirigida contra a metafísica da razão e contra a metafísica do partidarismo. Lembro-me de que, quando nos vimos aqui no Brasil pela última vez, ele me explicou minuciosamente que, afinal, não importa o que um Estado faz para o indivíduo, ou o que o indivíduo faz para o Estado, mas sim o que o indivíduo faz por si mesmo. Na obra de Zoran floresceu a vida desse indivíduo que nem a Tradição nem a Modernidade conseguiram sufocar. [128] . Este artigo foi escrito como o prefácio da segunda edição do livro Subjetividade e violência (Belgrado, 2012) do meu amigo, filósofo e primeiro ministro da Sérvia Zoran Djindjić, assassinado em 2003. Tradução do sérvio para português foi feita por Jovan Tatic.

[129] . Nas próximas páginas vou também sintetizar alguns argumentos dos meus livros “Filosofia da comunicação” e “A sociedade da diferença”, publicados no Brasil.

[130] . Djindjić, Z., Subjektivnost i nasilje, Belgrado, 1982, p. 36. [131] . Djindjić, Z., Subjektivnost i nasilje, Belgrado, 1982, p. 91. [132] . Djindjić, Z., Jugoslavija kao nedovršena država, Novi Sad, 1988, p. 209. [133] . Djindjić, Z., Jesen dijalektike, Belgrado, 1987, p. 60. [134] . Djindjić, Z., Jesen dijalektike, Belgrado, 1987, p. 60. [135] . Djindjić, Z., Jesen dijalektike, Belgrado, 1987, p. 60. [136] . Djindjić, Z., Jesen dijalektike, Belgrado, 1987, p. 93.

[137] . Djindjić, Z., Jesen dijalektike, Belgrado, 1987, p. 39. [138] . Djindjić, Z., Jesen dijalektike, Belgrado, 1987, p. 139. [139] . Djindjić, Z., Jesen dijalektike, Belgrado, 1987, p. 183. [140] . Djindjić, Z., Jugoslavija kao nedovršena država, Novi Sad, 1988, p. 69. [141] . Djindjić, Z., Jesen dijalektike, Belgrado, 1987, p. 32.

DESPOLITIZAÇÃO POR OUTRA DIAGNOSE POLÍTICA DA MODERNIDADE 1. A Modernidade, seguindo o raciocínio hegeliano, realiza a nossa liberdade. O indivíduo é reconhecido como tal, como geral, no âmbito social. Somos livres não só na nossa interioridade, mas no mundo também. E ainda mais. Todos somos livres. Por isso a Modernidade representa o fim da história. A razão se realizou e só temos que entendê-la e segui-la. A nossa vida é a repetição do passado. Pouco depois, Marx vê no fundo da Modernidade não a realização da liberdade, mas o conflito profundo entre o capital e o trabalho. É o conflito que a própria Modernidade não pode resolver. Por isso Marx fala sobre a revolução, sobre a mudança ontológica na produção do social. Carl Schmitt entendeu este recado marxista sobre o profundo conflito na Modernidade. Só ele acha que Marx, de certa maneira, ainda ficou neste horizonte liberal enfatizando as questões da economia. E as questões não são só econômicas, são ainda as políticas. Só Schmitt vê um específico esquecimento da política na Modernidade. Assim, onde Hegel vê o projeto da realização política da liberdade, Schmitt vê as condições da profunda despolitização moderna. É o início de outra leitura, agora política, sobre a Modernidade. Talvez a pergunta mais importante para Schmitt seja a pergunta sobre a origem da política. O título do livro dele “Legalidade e legitimidade” indica isso. Estamos no contexto fechado político e jurídico, dominado pela legalidade. A pergunta que nos interessa é só o funcionamento do sistema. A política se transformou praticamente numa técnica da manutenção do sistema. O sentido da política se transformou no puro funcionalismo[142]. Mas o sistema funciona, e funciona bem alguém poderia dizer. Sim, funciona, mas exatamente este é o problema, poderia responder Heidegger, porque atrás deste funcionamento se esquecem de muitas coisas sobre nós mesmos, sobre a nossa autenticidade, por exemplo. Schmitt poderia concordar, mas a dúvida dele não é filosófica, ou talvez não seja só filosófica. Schmitt vê não as questões do esquecimento do ser, mas a profunda crise da República de Weimar e do sistema parlamentar dela. A constituição de Weimar, com motivos liberais e individualistas, proclamou o Estado legiferante parlamentar, ou Estado burguês do Direito, como Schmitt fala, fechando-se assim num específico contexto do positivismo jurídico. O

parlamento não é simplesmente o centro da política, pensa Schmitt. Talvez não seja a palavra positivismo que irrite tanto Schmitt, mas o caos político como a consequência. Neste sentido, sim, temos que nos confrontar com o positivismo também. Não é alguma norma, como pensa Kelsen, que vai nos ajudar a sair dessa situação. A questão é repensar essa ordem jurídica e se abrir para as alternativas, para dinâmica, para novas subjetividades. Nada disso se encontra em Kelsen. É um jurista, Carl Schmitt, que fala assim e não um filósofo invadindo de uma maneira inadequada o espaço do direito. Temos que nos confrontar com o positivismo jurídico para pensar as alternativas. Neste ponto Schmitt até concorda com Hegel. O positivismo é, no final das contas, uma falsa teoria sobre o social. Num dos primeiros trabalhos sobre o Estado e o valor dos indivíduos, Schmitt vai apontar a importância do Estado. Ela será enfatizada no “Conceito do Político”: “...o Estado... esta obra-prima da forma europeia e do racionalismo ocidental, é destronado”.[143] Mas a leitura dele é muito diferente da leitura hegeliana. Enquanto em Hegel, de certa maneira, o Estado determina a política, dentro de uma visão teleológica do mundo, Schmitt fala sobre a política que determina o Estado e uma nova relação entre a legitimidade e a legalidade. Que política poderia ser essa? E o que seria a origem dela? Todo o trabalho de Schmitt, como vê Carlo Galli, poderia ser entendido como a questão de uma nova genealogia da política.[144] Hobbes está no início deste caminho moderno que inaugura o positivismo. O Estado é quase um produto da nova civilização técnica, dessa capacidade humana de construir. Essa mecanização da imagem do Estado está finalizando a mecanização da própria imagem antropológica do ser humano, fala Schmitt[145]. É o início da política como arte técnica, que finalmente chega até o caos da República de Weimar. O Estado se transforma no sistema positivista da legalidade. A maioria parlamentaria é só o jogo estratégico dos partidos. O estado moderno e a legalidade estão essencialmente relacionados, pensa Schmitt[146]. A legitimidade, tendo Hobbes por inspiração, se transforma em legalidade. Hobbes é o teórico do estado positivista do direito[147]. Assim se apaga com a dinâmica da inspiração e dos pressupostos da constituição do Estado. Schmitt fala sobre uma específica neutralização técnica, jurídica poderíamos dizer também, na mesma época das revoluções modernas. O direito neutraliza a dinâmica social. Isso é o que temos que repensar, acredita Schmitt. Hobbes vai aparecer de novo, com a visão genial da política. A neutralização é a palavra que Schmitt coloca ao lado da palavra despolitização[148]. Para onde ir além do positivismo e da reificação jurídica da política? A República de Weimar nem resolveu os problemas econômicos, diria Marx, nem

se abriu para a política, diria Schmitt. E onde, além do positivismo, procurar a possibilidade de outra legitimação do social? Aqui talvez apareça o Schmitt filósofo, confrontando-se não só com a contingência política, mas com a filosofia moderna também. Ela afirma a razão e assim apaga com os conflitos. As soluções modernas criam uma teleologia que supera os conflitos. Hegel, assim, mesmo sendo consciente dos problemas no capitalismo chega até uma consequência moderna que nos afirma. Justificando a Modernidade, Hegel justifica o potencial emancipatório dela e não o capitalismo. Mesmo assim ele chega até a uma, poderíamos dizer, ideologia moderna que ainda não vê os próprios pressupostos[149]. Marx é talvez mais radical, mas fica preso, pensa Schmitt dentro dessa teleologia da história, dentro de um certo a priori da história, como já o anarquismo criticava em Marx. Schmitt não só critica essas mediações teóricas da Modernidade, mas o individualismo dela também. O início disso temos no protestantismo. Por isso, Schmitt se abre para as leituras católicas no sentido de uma confrontação com o niilismo moderno.[150] As perguntas teológicas finalmente ficam ainda atuais, só tem uma elaboração secularizada. Como entender essa nova teologia política ou, poderíamos dizer neste contexto moderno secularizado, essa nova subjetividade política? A resposta está também no livro com o qual iniciamos a reconstrução, “Legalidade e Legitimidade”. Com a situação de Weimar, fala Schmitt, “alçou o povo... ao patamar de legislador extraordinário, permitindo-lhe ocupar uma posição ao lado do Parlamento, que exerce a função de legislador ordinário…”.[151] A perspectiva da reinvenção da política é a perspectiva dessa articulação do povo. Ele é a subjetividade política que o sistema esqueceu. Ele é a subjetividade da constituição, fala Schmitt várias vezes[152]. Ele é a possibilidade da democracia direta e assim a possibilidade da própria democracia. Todo o trabalho de Schmitt, tentando repensar a origem da política, é o trabalho que confronta o liberalismo e a democracia. O liberalismo não é a democracia, não porque não possa superar o próprio conflito entre o trabalho e capital, como diria Marx, mas porque se separa das próprias condições da legitimação. A legitimação desaparece no liberalismo, ou se reduz aos critérios técnicos do próprio sistema. A democracia só fica visível além disso. “O liberalismo e a democracia devem ser separados…”.[153] O espaço público e a democracia Schmitt veem como homogeneidade e não como pluralismo. Isso é o que Rousseau já percebeu. “A volonté général, como Rousseau a concebeu, é na verdade a homogeneidade...”[154] e, um pouco depois fala com Rousseau de novo:” a vontade geral corresponde à verdadeira liberdade…”.[155] Aqui Schmitt volta até o conceito quase esquecido, da soberania. Soberania é o conceito quase supérfluo, que temos que abandonar, pensa Kelsen

concluindo o livro sobre a soberania[156]. E para Schmitt soberania é a última palavra dessa genealogia da política. Soberano é quem decide sobre o estado de exceção, fala ele no início da Teologia política[157]. A exceção está no direito. Ou melhor dizer, constitui-o. É o caminho que depois Agamben vai seguir. A exceção é a ruptura neste caminho hegeliano e teleológico da modernidade. Por isso, concordo com Galli de que na subjetividade soberana de Schmitt se manifesta o fim da subjetividade política moderna[158]. A ordem realizada pelo poder soberano exclui, cria os inimigos. “O inimigo é o outro”,[159] são as palavras de Schmitt para aqueles que querem se abrir para as questões da diferença. O espaço público não estabelece o espaço do pluralismo, como, por exemplo, quer Arendt. O pluralismo é, para Schmitt, só sinônimo do individualismo burguês. Este poder supremo, pensa Schmitt, atualiza de certa maneira as questões da teologia política. É o poder que finalmente decide sobre a ordem. Schmitt acha que o olhar genial de Hobbes vê o decisionismo no início da política e não alguma referência teórica da razão. Autoritas, non veritas – essa é a leitura hobbesiana da Modernidade. Se Schmitt compartilha com Hegel a crítica do positivismo, os caminhos deles se separam por aqui. A confrontação com o positivismo não é uma teoria da razão, mas a vontade. O soberano é a “última fonte de legalidade e última base de legitimidade”[160]. Essa decisão do soberano representa o povo, acha Schmitt, pensando por aí até a proximidade entre a ditadura e a democracia. A ditadura soberana, pensa Schmitt, é do povo e do poder constituinte dele[161]. A ideia e a possibilidade do Estado dependem, em última instância, dessa homogeneidade do povo. Essa política e essa soberania articulam a ideia do Estado e dos seus inimigos, pensa Schmitt contra Hegel, chegando assim até uma nova relação entre a legitimidade e legalidade. A legalidade não pode ser pensada de uma maneira positivista, separada dos próprios pressupostos da legitimidade. Existe, então, a luta entre dois tipos daquilo que é direito fala Schmitt: “o sistema de legalidade do Estado legiferante parlamentar e a legitimidade da democracia plebiscitária”.[162] Em lugar de pensar a identidade entre o estado e direito que chega até uma juridicização da política, estamos no caminho de uma politização da justiça[163]. A pergunta, visível hoje nas ruas do Brasil e do mundo, é como entender essas novas subjetividades. Além da esquerda e além da direita. E além da soberania talvez, poderíamos dizer contra Schmitt. Porque, parece que Schmitt mesmo se confrontando com o positivismo da legalidade, instaura o positivismo no outro nível do decisionismo soberano. Obviamente a crítica do positivismo não pode voltar para o positivismo. Uma situação semelhante tínhamos no contexto grego. Abrindo-se para metafísica, os Gregos a reificaram. Uma estática do mundo reaparece.

Assim, discutindo Schmitt, chegamos até o fundo da política. O fundo ligado aos conflitos, vontade, ao concreto e contingente. Ou melhor dizendo, chegamos até a ausência dos fundamentos. No fundo da política, pensada como a condição da legitimidade do social e da ordem jurídica, está a ausência dos fundamentos. A origem da política é talvez a política da origem e do acontecimento possível. Só, como mencionamos, parece que Schmitt apaga este acontecimento elaborando uma nova identidade, agora não do liberalismo, mas da democracia. Ainda podemos reinventar a política além da despolitização e da universalização. As universalidades teóricas e liberais só finalizam a despolitização. Reinventando a política aparece a democracia, como explícito conceito político, além da economia. Por isso, exigir a abolição da despolitização é o projeto colocado já no início do “Conceito do Político”[164]. No fundo da política está o poder constituinte, o sinal de uma potência divina. Assim a Teologia política de Schmitt é a resposta dele à crise da legitimidade política na Modernidade. 2. Vamos ver como Habermas, querendo se confrontar também com a despolitização moderna, volta para os novos fundamentos da razão. O que seria a diagnose da despolitização para ele? Vou elaborar este ponto usando uma colocação de Habermas sobre o direito moderno. No livro Comentários a Ética do Discurso Habermas fala: “O problema da razoabilidade das obrigações morais motiva a transição da moral para o direito. E com a implementação de objetivos e de programas colocam se finalmente as questões da transferência e do exercício neutro do poder político. O direito moderno da razão respondeu a estas problematizações. Na verdade, não contemplou a natureza intersubjetiva da formação da vontade coletiva... Do ponto de vista da teoria do discurso, o problema do entendimento entre partes de vontades e interesses divergentes desloca-se para o plano dos processos institucionalizados e dos pressupostos comunicativos necessários à argumentação e a negociação que devem, de fato, ser levados a cabo”.[165] O Direito Moderno tinha uma oportunidade histórica de articular as novas possibilidades da integração social. Só, neste caminho direito, não se entendeu e seguiu os processos da institucionalização e, de certa maneira, o empobrecimento da reflexão. O direito moderno não entendeu a própria razão. Vimos que já Hegel fala sobre o fundo espiritual do direito. Alguém hoje entende ou presta atenção a este aspecto espiritual? Alguém hoje vê, por exemplo, nos departamentos do direito algo espiritual? Claro, Habermas, mesmo tendo os motivos hegelianos sobre uma razão

social, elabora a razão de uma maneira diferente, via uma teoria do discurso e da comunicação. Assim, a razão chega a si mesma só dentro dos processos comunicativos. Lá ela se sente bem fundada, sem as possibilidades de ultrapassá-la. A comunicação é o último fundamento. Podemos criticá-la só com outros argumentos comunicativos. A filosofia pode mostrar os últimos fundamentos sem o apoio da religião[166]. A comunicação é intersubjetiva. Assim Habermas chega até o conceito que nunca aparece nem pode aparecer dentro da Modernidade. Modernidade é a afirmação da subjetividade e não da intersubjetividade. Vimos que Marx indica a impossibilidade profunda, estrutural da modernidade de chegar até a intersubjetividade. Modernidade é uma polarização social onde a intersubjetividade pode ser talvez só alcançada no caminho de uma classe universal, que não cria as novas condições da alienação. É a classe operária. Só ela se integrou, reificou. Os processos emancipatórios que revelam as possibilidades intersubjetivas, relevantes também para uma nova autocompreensão do direito, precisam procurar outros caminhos. A Modernidade para Habermas é a possibilidade da intersubjetividade. Isso chega ate as últimas leituras dele sobre as possibilidades de outra integração europeia[167]. Modernidade e a intersubjetividade. Um assunto que Marx e Carl Schmitt enfrentam com outra sensibilidade. Mas, é neste contexto de uma reafirmação da razão, onde Habermas vê a importância da psicanálise freudiana. “Freud pode expor uma conexão conceitual, a qual Marx não chegou a flagrar em sua intimidade”, fala ele no livro “Conhecimento e Interesse”[168]. Com a psicanálise e com Hannah Arendt, Habermas vai entender que a condição humana tem que ser pensada não só ligada ao trabalho, mas também às condições da interação. Por isso, segundo ele, “Marx não pode flagrar dominação e ideologia como uma comunicação distorcida porque pressupôs que os homens se distinguiam dos animais no dia em que começaram a produzir seus meios de subsistência”[169]. Aqui não posso entrar na discussão se Habermas está reduzindo o conceito marxista de práxis ao conceito de trabalho e, assim, reduzindo o projeto marxista a um agir instrumental. É uma questão, eu me lembro, que provocou muitas discussões nos países comunistas da Europa Oriental. O que importa aqui é a tese de Habermas de que com a psicanálise fica explícita a questão da interação para pensar a constituição do social. “O olhar de Freud, pelo contrário, não estava voltado para o sistema do trabalho social mas para a família”, fala ele no mesmo contexto[170]. Para Freud, a questão da alienação não é mais ligada à organização do trabalho, mas ao desenvolvimento de instituições que podem resolver “de forma estável e duradoura, o conflito entre o excedente pulsional e a coerção da realidade”[171]. Em outras palavras, alguém pode ser alienado sem

trabalhar. As condições da alienação podem ser relacionadas com as condições da constituição do sentido da nossa vida e não só com o trabalho. A questão da autorreflexão chega, com psicanálise, até a questão da interação. Isso é, eu acho, o ponto mais importante onde Habermas concorda com Freud. No seu brilhante livro sobre a teoria crítica e psicanálise, Rouanet vai dizer: “O que está em jogo não é mais o destino do proletariado, mas o da espécie humana como tal, que a ideologia tecnocrática tenta amputar de uma das suas características antropológicas fundamentais, que é a reprodução da existência sob condições, não somente do controle técnico e do comportamento adaptativo, mas de preservação e ampliação da intersubjetividade simbolicamente mediatizada, num contexto de comunicação livre de violência”.[172] Só que na interpretação de Rouanet, eu acho, Freud chega muito longe na constituição da ideia da razão comunicativa. Ele diz: “A teoria freudiana não só permite, para Habermas, fundar a partir da comunicação sistematicamente deformada, uma teoria da comunicação pura, e a partir do discurso terapêutico, uma análise das condições, em geral, da comunicação discursiva, como, dar conta, ao nível ontogenético, da formação de uma competência discursiva”.[173] No entanto, a discussão de Habermas com Freud e Marx não termina por aqui. Mesmo afirmando a articulação da interação em psicanálise, Habermas vai criticar Freud. Ele diz: “Mas, paradoxalmente, este mesmo ponto de vista pode, igualmente, levar a uma construção objetivista da história, a qual conduz Freud a um estágio de reflexão anterior àquele que Marx atingira, e o impede de elaborar a intelecção básica da psicanálise em termos de uma teoria da sociedade”[174]. Habermas fala quase no sentido implícito sobre um positivismo escondido na psicanálise, sobre uma visão objetivista da história que não pensa as condições da própria constituição[175]. Habermas recorda-se aqui de Kant e Hegel onde a pergunta sobre o mundo vai incluir, com Kant, a pergunta sobre o sujeito e, com Hegel, a pergunta sobre o social. A Modernidade significa essa inclusão da subjetividade, essa afirmação da metafísica da subjetividade, poderíamos dizer com Kant. A Modernidade significa essa articulação da subjetividade social e do capitalismo, poderíamos dizer com Hegel. Pensar o mundo significa incluir o sujeito e incluir o social para assim chegar até uma teoria da sociedade. Isso é o que Marx aprendeu da filosofia alemã e o que ele confirma na primeira tese sobre Feuerbach: “A falha capital de todo materialismo até agora (incluso o de Feuerbach) é captar o objeto, a efetividade, a sensibilidade apenas sob a forma de objeto ou de intuição, e não como atividade humana sensível, práxis; só de um ponto de vista subjetivo. Daí, em oposição ao materialismo, o lado ativo tenha de ser desenvolvido, de um modo abstrato, pelo idealismo, que naturalmente não conhece a atividade efetiva e sensível como tal”[176]. Por isso

Habermas, falando agora contra Freud, vai afirmar a posição de Marx. Marx é o “herdeiro da tradição idealista”[177]. Assim, em Marx, articula-se um estágio superior da reflexão onde Freud não chega. E este é o caminho que Habermas seguirá mesmo criticando Marx. O desejo aqui não entra na teoria. A herança freudiana do desejo, libido, conflito, não se inclui na teoria habermasiana, mas se supera dentro do caminho glorioso, poderíamos dizer, da razão. E Habermas, no último momento, esquecerá Freud. Habermas, deste modo, está castrando a psicanálise. Podemos aqui só lembrar-nos das palavras de Marcuse: “... a pretensão de uma sensualidade livre do domínio da razão não encontra o lugar na Filosofia”[178]. Concordo de que o pensamento freudiano é emancipatório. Concordo com Rouanet quando fala: “A reflexão freudiana é intrinsecamente emancipatória, na medida em que deixa claro que toda a história humana é regida pela lógica da deformação sistemática do processo comunicativo…”[179]. Mas não é o mesmo sentido que Habermas vai atribuir a emancipação. Para ele, a emancipação é uma possibilidade da racionalidade. Habermas concorda com a opinião de que uma completa e concreta teoria da emancipação não pode ser encontrada na Tradição. Já a Modernidade como um todo gira em torno do paradigma do trabalho: Marx inclusive analisa o homem de acordo com o modo de produção, mas peca ao não discutir a estrutura a partir da qual a razão humana é originariamente determinada – a estrutura da linguagem – isto é, a aptidão dos homens para se comunicar. Por esta razão, Habermas entende que a psicanálise freudiana é muito mais bem-sucedida ao levar a cabo o tema da emancipação. O desenvolvimento das forças produtivas não garante, então, independência do cerne da repressão; a psicanálise, por sua vez, tenta relacionar a estrutura da autorreflexão com aquela da interação mediada pela linguagem. O problema agora passa a ser como atingir a dimensão da verdadeira interação e comunicação humanas, ou ainda, como é possível haver uma teoria social crítica? Vou dizer algumas coisas sobre isso comparando os argumentos de Habermas, Hannah Arendt e Chantal Mouffe. 3. Pensar a política, junto com a fenomenologia, significa pensá-la sem a identidade. Como acontecimento. Legitimidade como acontecimento, poderíamos dizer. Pensando só no contexto da legalidade, não chegamos até este ponto. Por isso, pensar a política significa, sim, aprender como pensar. Com a fenomenologia talvez. No projeto arendtiano, onde não existe uma identidade originária da política, nós não somos os seres políticos por natureza. A política pode ou não acontecer entre nós. Contrária às dificuldades husserlianas e

heideggerianas sobre os outros, a ação política em Arendt é sempre uma interação. Os outros são pressupostos e não só consequências de uma reflexão solitária. Já em livro sobre Sto. Agostinho, Arendt vai se liberar da ontologia heideggeriana ligada à morte e procurar uma afirmação dos outros, dos próximos[180]. Claro, Arendt sabe que Sto. Agostinho não vai ligar a liberdade à política. A liberdade para ele não é tanto um projeto político. Assim a Modernidade vai herdar essa dimensão não política da liberdade advinda do cristianismo. Dentro dessa reconstrução histórica, Arendt chega até a filosofia kantiana. Vimos que ela antes disso afirma o pensamento grego. Fala sobre o milagre grego no pensamento político. Mas, obviamente isso chega até certo limite. A metafísica grega não deixa espaço para a autenticidade política. Deste modo, Arendt chega até Kant. Acontecimento como a tarefa da razão e da reflexão, poderíamos dizer. Isso parece mais uma leitura habermasiana. Então, o que significa Kant para Hannah Arendt? Kant não é tanto um pensador político. Melhor dizendo, quando a política aparece na filosofia kantiana é sempre relacionada à doutrina do direito. Não existe a política, pensa Kant, que articula a nossa liberdade. A liberdade é uma experiência interior, luterana, poderíamos dizer. É por isso que Arendt precisa procurar a inspiração em outro lugar dentro da filosofia kantiana. E ela encontra essa inspiração dentro da terceira crítica[181]. Aqui temos dois motivos importantes para Arendt. Por um lado, temos uma implícita intersubjetividade do juízo, ligada aos conceitos e, por outro, essa intersubjetividade não é fundamentada neles. Temos, assim, a possibilidade do prático, ou político que não depende da racionalidade. Isso é a possibilidade do novo na política. Habermas depois irá criticar essa separação entre o teórico e o prático, porque ela cria as condições de uma forte estetização da política. Estetização da política pode significar a política desligada das pessoas, o que Arendt coloca, falando sobre a modernidade, mas pode ser a política desligada da teoria e dos argumentos[182]. Parece que essa articulação da intersubjetividade significa uma tentativa de Arendt de localizar, articular os lugares privilegiados na política e, de uma certa maneira, reificar a política. Arendt procura as soluções e não uma abertura para o caráter aberto e conflitivo da política que Chantal Mouffe quer defender[183]. Mas aqui parece que Arendt e Habermas não ficam tão distantes como a crítica de Habermas tenta mostrar[184]. Aqui me interessa que os dois se relacionam ao conceito da intersubjetividade ou da comunicação, que Nancy, por exemplo, vai entender como um dos últimos pontos da metafísica na filosofia[185]. A separação entre o mundo vital e o sistema em Habermas guarda

ainda certa semelhança com a diferença entre o político e o econômico em Arendt. E Habermas e Arendt se confrontam e com o liberalismo e com o comunitarismo. É outra aproximação. Por outro lado, parecem distintos. Arendt afirma a contingência e Habermas o racionalismo. O performativo da Arendt é o acontecimento e do Habermas o discurso a as decisões que se podem universalizar. A liberdade para Arendt fica na frente da igualdade. Republicanismo na frente da democracia. Confrontando-se com Arendt e com Habermas, Chantal Mouffe quer elaborar uma concepção antifundamentalista da política. A inspiração é por um lado derridiana, pensando o conceito da diferença, e por outro psicanalítica, pensando o caráter conflitivo da natureza humana. Neste sentido, Mouffe inclusive fala sobre os perigos de uma teoria que procura as soluções consensuais e assim marginaliza os verdadeiros conflitos. Ela quer continuar com os impulsos críticos da psicanálise, sem pensá-la dentro de um conformismo social, como sugere Adorno defendendo Freud do revisionismo[186]. Adorno vê a grandeza de Freud no fato de deixar os conflitos sem a solução. Pensei, neste contexto, no meu país, ex-Iugoslávia, cujo conflito também pode melhor ser entendido dentro dessa reconstrução de Chantal Mouffe. O comunismo postulou certo consenso, a solidariedade ou irmandade dos povos dentro do universal projeto da sua realização. Assim, os verdadeiros conflitos entre os povos nunca chegaram à articulação política. Depois da morte de Tito o conflito aberto apareceu. O governo dele não conseguiu, nas palavras de Mouffe, transformar o antagonismo no agonismo, transformar o conflito numa competição política. O conflito Iugoslavo mostra o perigo das soluções consensuais que excluem a política. Consenso esconde conflitos. Na exIugoslávia se mostrou que crer em consenso pode ser uma grande ilusão. Claro, Hannah Arendt não é pensadora do consenso e também poderia criticar a experiência titoísta dentro da crítica geral ao marxismo. Mesmo assim, penso que a busca de uma implícita ou explícita intersubjetividade, onde o caso iugoslavo também pudesse, de certa maneira, ser colocado, cria os problemas para a política. A Iugoslávia podia, eventualmente, sobreviver baseada nos conflitos e não no consenso ou na intersubjetividade comunista. Aqui a gente chega até o ponto neurálgico da discussão: por um lado, pensar a intersubjetividade na política pode criar as condições da reificação. Por outro lado, sem a intersubjetividade, sem a possibilidade do julgar junto aos outros, facilmente se chega até a banalidade do mal. Mas, uma coisa me parece clara. Perdendo a perspectiva freudiana dos conflitos, pegando o caminho da superação reflexiva, Habermas perdeu, poderíamos dizer, a possibilidade de pensar a política. Em lugar da política

aparecem só os procedimentos da racionalidade. O caminho do consenso que esconde os conflitos cria uma ilusão perigosa[187]. Do mundo quase desaparecem os antagonismos, entre a esquerda e a direita, por exemplo. É de interesse vital abandonar a referência à possibilidade de consenso e deixar o espaço democrático aberto[188]. A realização da democracia seria a sua destruição[189]. Assim, poderíamos dizer, que a democracia é só um projeto. Um projeto que talvez chegue. Freud e Carl Schmitt poderiam nos ajudar a entender isso e, no caso de Schmitt, nos confrontar com os limites da democracia identitária. Com eles poderíamos aprender que a crítica das identidades não pode estabelecer identidades novas. [142] . Cf. Schmitt, C., Verfassungslehre, Bonn, 2003, p. 8. [143] . Schmiott, C., O conceito do Político, Petrópolis, 1992, p. 32. [144] . Galli, C., Genealogia della política. Carl Schmitt e La crise del pensiero político moderno, Bologna, 2010.

[145] . Schmitt, C., Der Leviathan, Stuttgart, 2012. [146] . Schmitt, C., Der Leviathan, Stuttgart, 2012, p. 101. [147] . Schmitt, C., Der Leviathan, Stuttgart, 2012, p. 111. [148] . Schmitt, C., O Conceito…, p 106. [149] . Este é o ponto que J. F. Kervegen analisa muito bem comparando Hegel e Schmitt e chegando até uma das conclusões onde o estado total contemporâneo, fechado para os poderes constituintes, não pode ser pensado mais com os pressupostos éticos ou da razão. (Cf. Kervegen, J. F., Hegel, Carl Schmitt. O político entre a especulação e a positividade, Barueri, 2006, p. 135) A história, que Hegel inventou, como o assunto filosófico, ultrapassou assim o próprio autor.

[150] . Galli, C., Genealogia della política. Carl Schmitt e La crise del pensiero político moderno, Bologna, 2010, p. 185.

[151] . Schmitt, C., Legalidade e Legitimidade, Belo Horizonte, 2007, p. 68. [152] . Cf. Schmitt, C., Verfassungslehre, Bonn, 2003, p. 238. [153] . Schmitt, C., A crise da democracia parlamentar, São Paulo, 1996, p. 10. [154] . Schmitt, C., A crise da democracia parlamentar, São Paulo, 1996, p. 15. [155] . Schmitt, C., A crise da democracia parlamentar, São Paulo, 1996, p. 26.

[156] . Cf. Kelsen, H., Das Problem der Souveränität und die Theorie des Völkerrechts, Tübingen, 1960, p. 320.

[157] . Schmitt, C., Teologia política, Belo Horizonte, 2006, p. 7. [158] . Galli, C., Genealogia della política. Carl Schmitt e La crise del pensiero político moderno, Bologna, 2010, p. 185. p. 340. [159] . Cf. Schmitt, C., Ex Captivitate Salus, Berlim, 2002, p. 90. [160] . Schmitt, C., Legalidade..., p. 4. [161] . Galli, C., Genealogia della política. Carl Schmitt e La crise del pensiero político moderno, Bologna, 2010, p. 185, p. 576. [162] . Galli, C., Genealogia della política. Carl Schmitt e La crise del pensiero político moderno, Bologna, 2010, p. 185. p. 69. [163] . Cf. Schmitt, C., Der Hüter der Verfassung, Berlin, 1996, p. 22. [164] . Schmitt, C., O Conceito..., p. 50. [165] . Habermas, J., Comentários à Ética do Discurso, Lisboa, 1999, p. 116. [166] . Cf. Habermas, J., Vorpolitische Grundlagen dês demokratischen Rechtsstates? In: Habermas, J., Ratzinger, J., Dialektik der Säkularisierung, Freiburg, 2005, pp 15-3. [167] . Cf. Habermas, J., Zur Verfassung Europas, Frankfurt, 2011. [168] . Habermas, J., Conhecimento e Interesse, Rio de Janeiro, p. 295. [169] . Habermas, J., Conhecimento e Interesse, Rio de Janeiro, p. 295. [170] . Habermas, J., Conhecimento e Interesse, Rio de Janeiro, p. 295. [171] . Habermas, J., Conhecimento e Interesse, Rio de Janeiro, p. 295. [172] . Rouanet, S. P., Teoria crítica e psicanálise, Rio de Janeiro, 1989, p. 283-284. [173] . Rouanet, S. P., Teoria crítica e psicanálise, Rio de Janeiro, 1989, p. 347. [174] . Rouanet, S. P., Teoria crítica e psicanálise, Rio de Janeiro, 1989, p. 298. [175] . É o implícito positivismo que Heidegger também vai tocar falando sobre a “fatal diferença entre consciente e inconsciente” (cf., Heidegger, M., Seminários de Zollikon, Petrópolis, 2001, p. 266.)

[176] . Heidegger, M., Seminários de Zollikon, Petrópolis, 2001, p. 266, p. 51. [177] . Habermas, J., Conhecimento e Interesse, Rio de Janeiro, p. 295, p. 299. [178] . Marcuse, H., Eros e civilização, Rio de Janeiro, 1968, p. 164. [179] . Rouanet, S. P., Teoria crítica e psicanálise, Rio de Janeiro, 1989, p. 335. [180] . Cf. Scott, J. V., Stark, J. C., Rediscovering Hannah Arendt, em: Arendt, H., Love and Saint Augustine, Chicago, 1996, p. 124.

[181] . Cf. Milovic, M., Filosofia da comunicação, Brasília, 2002, pp. 105-121. [182] . Cf. Habermas, J., O conceito de poder de Hannah Arendt, em: Freitag, B., Rouanet, S., (org.) Habermas, Rio de Janeiro, 1993.

[183] . Por que não pensar o Novo e no privado e na economia? O corpo é algo privado ou já tem uma inscrição política, como pensa o feminismo contra Arendt? Parece que a determinação da política em Arendt tem uma forte reificação.

[184] . Cf. Forbath, W., W., Short-Circuit, em: Arato, A., Rosenfeld, M., (org.) Habermas on Law and Democracy, Berkeley, 1998, p. 266.

[185] . Cf. Nancy, J. L., Lê partage dês voix, Paris, 1982, p. 89. [186] . Cf., Adorno. T. W., Die revidierte Psychanalyse, em: Gessamelte Schriften 8, Soziologische Schriften I, Frankfurt am Main, 1997, pp. 20-42.

[187] . Mouffe, Ch., On the Political, London, 2005, p. 107. [188] . Mouffe, Ch., Deconstruction, Pragmatism and the Politics of Democracy, in: Mouffe, Ch., (org.): Deconstruction and Pragmatism, London, 1996, p. 11.

[189] . Mouffe, Ch., Deconstruction, Pragmatism and the Politics of Democracy, in: Mouffe, Ch., (org.): Deconstruction and Pragmatism, London, 1996, p. 11.

BIOPOLÍTICA GENEALOGIA DA VERDADE E DO PODER REFLEXÕES SOBRE NIETZSCHE E FOUCAULT 1. Falando num momento sobre a “razão” na filosofia, no livro Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche disse: “Eu temo que não venhamos a nos ver livres de Deus porque ainda acreditamos na gramática…”.[190] O que isso pode significar? Relacionar Deus e gramática, por quê? Por que a gramática ainda cria um âmbito religioso que impede de nos livrar de Deus? Talvez nessa relação a gente possa entender a filosofia nietzschiana. Podemos primeiro colocar a pergunta do porquê Nietzsche estar discutindo a linguagem.[191] No livro Humano, demasiado humano encontramos uma resposta importante. Está no parágrafo 11. “A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme e bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar o seu senhor”.[192] A discussão sobre a linguagem é a discussão sobre a diferença entre dois mundos. Qual é o sentido dessa diferença? Nela, penso, podemos encontrar o início do projeto heideggeriano sobre a diferença ontológica. É o início, talvez, do projeto da destruição da metafísica. E ainda mais. Talvez essa discussão e o projeto nietzschiano dela superem a relevância da pergunta posterior heideggeriana. Nietzsche continua: “O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras o supremo saber sobre as coisas…”.[193] A linguagem estabelece a verdade. É a crença, as forças, fala ele no mesmo parágrafo, ligadas a essa verdade. Ou, com outras palavras, a linguagem articula uma específica vontade de verdade, uma específica constituição do mundo. Nessa constituição desaparece a vida e aparecem os signos, a linguagem e a gramática. E, mesmo assim, essa constituição do próprio mundo fica importante, talvez o evento mais importante no desenvolvimento da cultura. Ou, melhor dizendo, fica o evento mais dramático neste desenvolvimento. Nietzsche vai dizer que nessa crença na linguagem os homens “propagaram um erro monstruoso”.[194] Por que isso aconteceu? Vimos que Nietzsche fala sobre os dois mundos neste contexto. Qual seria este outro mundo, talvez o nosso mundo fora da cultura e da história? A discussão sobre a diferença ontológica poderia indicar o caminho da resposta. É um conceito heideggeriano, mas ilustrativo também neste contexto

nietzschiano. A diferença significa que além dos entes existe o ser. Os gregos faziam essa diferença ligando o conceito do ser à metafísica. Heidegger, pelo contrário, quer livrar a pergunta sobre o ser da metafísica. Só assim, pensa ele, podemos pensar a nossa autenticidade. A ontologia está nessa diferença, nessa autenticidade além do mundo identitário dos entes. Pensar, para Heidegger, significa pensar essa diferença. E pensar a diferença nos parece um projeto urgente. O sistema elimina a diferença. Não existe algo fora do sistema, do capitalismo. Globalização é o exemplo disso. Nietzsche já entendeu essa diferença. Falando ainda sobre a linguagem e o pensamento ligado à linguagem, ele vai dizer na Gaia Ciência: “o pensar que se torna consciente é apenas a parte menor, a mais superficial, a pior, digamos – pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou seja, em signos de comunicação…”.[195] Nietzsche fala, então, sobre uma redução do pensamento ligada a nossa linguagem. É só a parte menor e superficial, diz. Talvez é algo que Heidegger poderia chamar de ôntico. Linguagem não articula a autenticidade do nosso pensamento. Ela cria o nosso mundo comum e as identidades necessárias para a comunicação. Por necessidade e tédio, fala ele em Sobre a verdade e mentira... nós queremos existir socialmente e em rebanho[196]. E por isso precisamos da linguagem e dos conceitos. Mas, continua ele no mesmo lugar, “toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única…”.[197] A constituição da linguagem esquece sua origem. Poderia ser o contexto onde Heidegger entendeu a questão do esquecimento do ser. A filosofia, pensa ele, sempre pergunta sobre o ser e sempre o esquece. Por quê? Porque em lugar da autenticidade pensa as formas identitárias da metafísica. A destruição da metafísica assim volta para o ser esquecido. O esquecimento acontece, para Nietzsche, já dentro da constituição da linguagem. Em lugar das vivências primitivas, fluxos, das imagens, temos a linguagem, as significações determinadas e as verdades. O ser humano, fala ele, esquece “as metáforas intuitivas de origem, como metáforas, e as toma pelas coisas mesmas”.[198] Isso cria uma mitologia filosófica quando se fala sobre a linguagem[199] ou um “grosseiro fetichismo”.[200] Somos guiados pelo esquecimento, poderia ser a diagnose já de Nietzsche. E o que se esquece é a vida além das significações determinadas. Poderiam ser os fluxos e não as verdades. Poderia ser a potência e não a verdade. Por isso Nietzsche confronta a vontade de verdade e a vontade de potência. Finalmente o que seria uma única interpretação que quer parar com os fluxos interpretativos e as metáforas? Uma ingenuidade ou talvez o idiotismo.[201] Mas a cultura pegou este caminho da

criação das identidades, despotencializando as origens da vida do ser humano. Por isso a cultura e a história estão negando a vida. É o caminho do niilismo. Até hoje. O pensamento está só participando neste niilismo. Logo vamos entender as consequências políticas deste pensamento. Acho que até certo ponto podemos comparar os caminhos de Nietzsche e Heidegger. Esquecimento é a palavra que pode unir os dois. Mas o esquecimento é o esquecimento do ser? Com essa pergunta fica visível, espero, a diferença entre os dois que, talvez, fale mais em favor de Nietzsche do que de Heidegger. Por quê? No mesmo lugar do Crepúsculo... onde iniciamos a discussão, Nietzsche vai dizer que “nada teve até aqui um poder de convencimento mais ingênuo do que o erro do Ser…”.[202] Erro do Ser, ou poderíamos dizer a crença que o Ser existe. No início, vimos, não está o ser, mas o devir, não uma referência, mas, vivências, fluxos... Nietzsche poderia, talvez, iniciar a discussão sobre a diferença ontológica. Sobre o pensamento menor, como ele fala, superficial, ôntico, reificador, por um lado, e o pensamento das vivências, ontológico talvez, por outro. Só a ontologia, no caso dele, não seria a abertura para o ser esquecido, mas para o devir. O esquecimento não é do ser, mas do devir, poderia dizer Nietzsche contra Heidegger.[203] Pensar talvez a diferença ontológica sem o Ser? Parece um projeto impossível, mas urgente. Vamos ver como Heidegger entendeu o recado nietzschiano? Ele ainda coloca Nietzsche no contexto da metafísica da subjetividade. Mesmo confrontando-se com a metafísica, Nietzsche, segundo Heidegger, renova essa metafísica ligada agora à vontade do sujeito. Assim Nietzsche está só invertendo o platonismo pensando o ser agora como vontade.[204] “... o sensível, o mundo sensível, encontra-se acima de tudo, enquanto o suprassensível, o mundo verdadeiro, encontra-se embaixo... Mas, na medida em que esse acima e esse embaixo determinam a estrutura do edifício do platonismo, ele continua subsistindo em sua essência”.[205] E já no início no segundo volume do livro sobre Nietzsche, ele fala que mesmo confrontando se com a metafísica o pensamento nietzschiano “ainda contém”[206] uma interpretação metafísica. A vontade de potência é uma metafísica? O problema dessa interpretação heideggeriana é procurar o ser, ou a reificação do ser onde Nietzsche pensa o devir. Nietzsche não é mais o pensador do ser. Agora, o próprio devir fica, para Heidegger, o termo desgastado e vazio[207]. Pensando assim, Heidegger não vai encontrar os caminhos para escapar da reificação do ser na própria filosofia. O ser-aí vai ainda guardar algo da metafísica da subjetividade. Nessa discussão ficam claros outros equívocos da interpretação heideggeriana. Aqui posso só mencionar alguns pontos. Heidegger reconhece, por exemplo, “o essencial da concepção da obra de

arte integral: a dissolução de tudo o que é fixo em uma flexibilidade fluida…”. [208] Podemos concordar com isso. Mas, algumas vezes, Heidegger fala sobre a dimensão estética da pergunta nietzschiana. sobre arte. Temos que ver o que significa arte no contexto nietzschiano e por que não podemos falar sobre uma elaboração estética, como pensa Heidegger. Arte, afirmando a vida, tenta libertar-se da metafísica cuja forma moderna se chama estética também. Também a diagnose nietzschiana. sobre o niilismo fica exposta à crítica de Heidegger. “... Nietzsche experimenta o niilismo como a história dos valores supremos…”.[209] Pelo contrário, Nietzsche não articula os valores supremos discutindo a potência do ser humano. O niilismo é o esquecimento do devir indo para as perspectivas do ser que muitas vezes também inclui os valores. O niilismo, para Nietzsche, não é a desvalorização dos valores supremos, mas a instauração deles. Parece-me que o projeto da diferença ontológica, se ainda podemos chamá-lo assim, poderia ser só radicalizado com os argumentos nietzschianos. Infelizmente, Heidegger não entendeu a diferença que o próprio devir articula. A diferença é do devir e não do ser, poderíamos entender assim o recado nietzschiano. A vontade de verdade se afirma na cultura judaica, grega e cristã. São poucos os exemplos aristocráticos, diria Nietzsche, de uma afirmação dos indivíduos. Pelo contrário, temos a nivelação das pessoas. O deserto cresce, vai dizer Nietzsche num dos Ditirambos de Dionísio. Atrás dessa verdade que se procura, Nietzsche vê um interesse prático, ético. São os sacerdotes que determinam o que é o verdadeiro, fala Nietzsche no Anticristo.[210] Examinar essa moralidade ligada à verdade é a obra dele, anunciada no § 345 da Gaia ciência. E a crítica deste “leito de Procusto”,[211] dessa degeneração da vida, são as consequências. A Modernidade não muda essa perspectiva. A normatividade, ligada à religião e à moral, só se afirma de outra maneira. A morte de Deus ligada à transparência científica não vai mudar essa perspectiva. Em lugar dos valores tradicionais aparecem novos valores, novas formas do niilismo e da negação da vida. Ateísmo moderno fica assim uma postura religiosa. Ou, como fala Roberto Machado “o ateísmo é o aperfeiçoamento, o refinamento da vontade de verdade criada pelo platonismo e pelo cristianismo”.[212] O cristianismo continua e chega até a revolução francesa. A democracia moderna é a continuação do projeto cristão da igualdade. E a filosofia a continuação da postura dos sacerdotes. Assim fica claro que a Modernidade não sai da sombra da tradição. Não temos motivos de fazer a diferença entre a Modernidade e Tradição. Os dois mundos ficam determinados pela metafísica, pelo niilismo e a negação da vida. A Modernidade é o novo nivelamento do homem europeu, fala Nietzsche nos

Fragmentos.[213] É o mundo dos medíocres, dos últimos homens. Precisamos nos confrontar com isso. Chega o tempo, fala Nietzsche “em que se aprendera sobre política de maneira diferente”.[214] E o início disso Nietzsche encontra na própria filosofia. “Somente a partir de mim haverá a grande política na Terra”.[215] É o contexto em que Nietzsche vai também falar sobre a transformação dos valores e sobre arte. Precisamos entender isso para saber o que poderia ser uma nova, grande política. Uma política dos espíritos livres que não acreditam mais na verdade. Uma sugestão da leitura poderiam ser as palavras da Gaia Ciência, do § 294 onde Nietzsche fala: “São para mim desagradáveis as pessoas nas quais todo pendor natural se transforma em doença, em algo deformante e ignominioso – elas nos induziram a crer que os pendores e impulsos do ser humano são maus; elas são a causa de nossa grande injustiça para com nossa natureza”.[216] E como entender a nossa natureza e fazer a justiça a ela? Mudar o quê? Aqui chega o conceito nietzschiano da transvaloração dos valores. Indica-nos a necessidade de voltar para vontade de potência. Voltar para o mundo desaparecido? Nietzsche acha que arte e a política podem reinventar o que se perdeu na história da cultura. “A arte e nada mais que arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida”, fala Nietzsche em O nascimento da tragédia.[217] Arte se confronta com o tempo linear da história onde o sentido da nossa vida vem sempre de fora. Assim se pensa o tempo na tradição e na modernidade. Arte é a afirmação, a possibilidade de dizer sim à vida, de aceitar a vida do jeito como ela é, sem procurar o apoio transcendental dela. Por isso a arte articula a possibilidade não do tempo linear, mas do eterno retorno. O que volta é a vida mesma e a criação imanente dela. O que volta não é a identidade, certo conceito de natureza, por exemplo, mas uma elevação dela, uma afirmação da potência dela. Comparando seu projeto com Rousseau, Nietzsche fala: “Eu também falo de um retorno à natureza: se bem que isso não seja tanto um retorno, mas antes uma elevação”.[218] Uma elevação que se confronta com a nivelação democrática afirmada por Sócrates, Jesus Cristo, Lutero e Rousseau.[219] Isso não acontece na Modernidade. Ela é um projeto da degeneração global do homem.[220] Nietzsche fala que definiu a modernidade “como uma contradição psicológica interna”.[221] Uma contradição porque afirma a nivelação, a degenerescência dos instintos.[222] Por isso, a justiça nietzschiana. afirma a desigualdade. As tendências modernas, o liberalismo e o socialismo, são exemplos dessa mediocrização do ser humano. O espirito mercantil e a democracia nivelam os indivíduos. É a época dos últimos homens. Então a

resposta pode chegar só dos indivíduos, dos fortes, de uma aristocracia do futuro. Uma aristocracia do espírito. Uma aristocracia que afirma a diferença, a soberania dos indivíduos. Uma alternativa que talvez apareça só na solidão. Por isso precisamos curtir a solidão, como pensava o Tarkowski. A política que vem, pode ser só essa política da imanência da vida. Sem Deuses, ou talvez com deuses que saibam dançar.[223] Nietzsche entendeu as consequências do próprio projeto? Falando sobre a nova aristocracia ele dirá: “Que os homens mais fortes devem governar, isto está na ordem das coisas”[224]. Existe a ordem das coisas mesmo no mundo do devir? Outro detalhe. Criticando a igualdade, ele fica preocupado. “Toda hierarquia desapareceu”.[225] O que isso quer dizer? O mundo do devir cria as condições da hierarquia e assim as condições da própria reificação? A pergunta sobre a política além da metafísica parece ainda aberta. Vamos ver agora como Foucault entendeu o projeto da genealogia. É o início também da pergunta sobre a biopolítica. 2. Falando sobre o conhecimento, Foucault está seguindo o projeto de Nietzsche. Nietzsche, fala Foucault, quer dizer “que não há uma natureza do conhecimento, uma essência do conhecimento, condições universais para o conhecimento, mas que o conhecimento é, cada vez, o resultado histórico…”. [226] Não existe a origem do conhecimento. Não existe, em outras palavras, um lugar a priori do sujeito, mas das condições históricas da constituição do conhecimento. Mesmo o sujeito fica articulado dentro deste contexto histórico e político. Não existe o sujeito, mas as formas históricas da constituição, ou melhor dizer: não existe o sujeito mas as formas da sujeição. O sujeito aparece como o efeito do poder. Não existe o sujeito constitutivo, poderia ser o recado dessa leitura. Aqui temos o projeto que Foucault também elabora com o título arqueologia. Pensar as condições históricas da constituição do sujeito e as condições do poder que articulam a sujeição. Mas tomar o poder “onde ele se torna capilar; ou seja: tomar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais…”.[227] Essa ligação entre as estruturas contingentes do saber e do poder é o projeto que Foucault vai chamar a genealogia. Ou melhor, falar sobre as genealogias dispersas que pesquisam os saberes locais e descontínuos. Por isso não se trata de um empirismo ou positivismo. “As genealogias são, muito exatamente, anticiências”, fala ele no mesmo contexto. [228] Não existe um livro de Foucault sobre o poder porque, como ele fala na História da sexualidade, não existe um lugar do poder como “alma da revolta,

foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário”.[229] Algumas vezes ele também fala que o poder não tem materialidade.[230] Habermas vai criticar este ponto dizendo que para denunciar e criticar as estruturas do poder precisamos dos critérios, motivos, quer dizer, de uma ampla teoria da razão. Foucault quer evitar este universalismo. É possível falar sobre o ser humano sem o implícito universalismo que nos acompanha e que talvez, diria Nietzsche, articula a perspectiva do niilismo. O universalismo cria inclusive certo obstáculo para pensar o próprio conceito da verdade. O Ocidente, fala Foucault, “vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade nunca pertence ao poder político, que o poder político é cego, de que o verdadeiro saber é o que se possui quando se está em contato com deuses…”.[231] O erro está, então, nessa explícita ligação entre a filosofia e verdade. Filosofia não é necessariamente o lugar da verdade, mas as práticas contingentes. A verdade é produzida, inclusive pelas contingências políticas. “Com Platão, se inicia um grande mito ocidental: o de que há antinomia entre saber e poder”.[232] Pensar a interligação entre o saber e poder vai ser o contexto onde Foucault vai investigar as perspectivas da Modernidade e da biopolítica. A diagnose sobre os gregos vai ficar diferente da diagnose que encontramos em Nietzsche. No livro Segurança, território, população Foucault está fazendo uma diferença entre os gregos e os judeus, voltando para um diálogo de Platão, O político. “... nunca o deus grego conduz os homens da cidade como um pastor conduzia suas ovelhas”.[233] A verdade neste contexto não vai aparecer mais ligada aos sacerdotes e ao poder pastoral. Platão mesmo fala: “A primeira divisão nos levará a distinguir o pastor divino, do administrador humano”.[234] E para entender essa administração humana Platão vai usar o conceito da tecedura,[235] uma prática talvez contingente. A política não é a arte do pastor. Aparece sem o apoio transcendental, sem a metafísica. Talvez podemos não concordar com Foucault. Mas, nos ajuda entender uma confrontação possível entre os gregos e os cristãos. Tudo aqui, fala Foucault no outro contexto, é “a questão de ajustamento, de circunstância, de posição pessoal”.[236] É o exemplo para dizer que o indivíduo se constitui como sujeito não pelos procedimentos da universalização, mais pela contingencia da própria ação. Por isso aqui aparece, fala Foucault, o “brilho singular”,[237] a pergunta como estilizar uma liberdade e não a determiná-la. Através das aparências do objeto, fala Foucault, se estabelece “a relação com a verdade”.[238] Este brilho da cultura grega une sexo e os prazeres. É o início de uma longa reconstrução da genealogia do poder que na modernidade chega até o nome biopolítica. No contexto grego estamos ainda longe “de uma forma de

austeridade que tenda a sujeitar todos os indivíduos da mesma forma, os mais orgulhosos como os mais humildes, sob uma lei universal…”.[239] Estamos ouvindo quase as palavras de Nietzsche. Com o cristianismo estamos saindo do mundo grego dos prazeres entrando numa perspectiva da purificação dos desejos. Agora o sexo pode ser perigoso. Em lugar da estética dos prazeres aparece a hermenêutica cristã da purificação do desejo. Estamos, assim, entrando no mundo cristão da renúncia de si, das confissões, do sexo desligado do prazer. Até onde chega este modelo? Como e por que mudou? Como, por exemplo, pensar a modernidade relacionada com a questão da sexualidade? Como em lugar do sexo ligado ao prazer e o sexo desligado do prazer, temos agora o sexo ligado com os saberes? E por que, finalmente, a Modernidade quer saber tanto sobre a sexualidade? Até o século XVIII, fala Foucault, o corpo dos indivíduos fica exposto às estruturas do poder soberano para ser suplicado e castigado.[240] A partir do século XIX o corpo “deve ser formado, reformado, corrigido”.[241] Estamos entrando no mundo do controle dos indivíduos. Ele agora deve ser considerado pela sociedade pensando as possibilidades dele e não só os atos.[242] Estamos entrando numa sociedade onde domina a vigilância, o panoptismo. Foucault fala sobre o caráter panóptico do poder disciplinar.[243] Estamos, diz ele, com “os novos procedimentos de poder que funcionam, não pelo direito, mas pela técnica, não pela lei, mas pela normalização, não pelo castigo mas pelo controle…”.[244] O direito não é mais o modelo para reconstruir essa perspectiva. Este ponto, inclusive, será o ponto de uma confrontação feita por Agamben, que se pergunta se o direito cria ou não as formas modernas da despolitização. Na alta Idade Média, fala Foucault, ainda não temos poder judiciário,[245] mas já aparece a pergunta sobre quem finalmente tem razão. A partir do século XII temos os procedimentos de estabelecimento da verdade. Os indivíduos devem se submeter a um poder exterior, ao Estado ou ao soberano. Soberania subjuga. Se exerce dentro de um território e não sobre os corpos. Intervém com a violência. A partir do século XVIII estamos entrando numa outra perspectiva da sociedade disciplinar. Em lugar do poder pastoral sobre as almas e do poder soberano sobre o território, estamos falando agora do poder disciplinar sobre os corpos e a população. É o caminho da genealogia do poder. Este tipo da sociedade não existe no mundo feudal. Assim, o crime no contexto do poder disciplinar não é mais ligado com o pecado, mas “é algo que danifica a sociedade; é um dano social, uma perturbação, um incômodo para toda sociedade”.[246] Por isso aparece o interesse ligado às virtualidades e o controle dos indivíduos. A genealogia de Foucault quer investigar exatamente a relação

entre os saberes e poderes dessa sociedade. Aparecem obviamente várias perguntas: neste contexto ainda podemos falar sobre a nossa liberdade? E ainda mais: o nosso discurso pode superar as condições de uma microfísica do poder ou não? É possível, a partir do século XIX falar sobre certa verdade da modernidade que supera a contingencia histórica ou não? “A revolução burguesa do século XVIII e início do século XIX foi uma nova tecnologia do poder, cujas peças essenciais são as disciplinas”,[247] fala Foucault. Assim a sexualidade aparece no campo dos saberes, no campo da medicina. A verdade é médica. O médico, o psiquiatra, por exemplo, aparecem no lugar dos padres e o organismo como a referência e não mais a “carne”. É a grande reviravolta do histórico para o biológico.[248] para biopolítica. O novo poder sobre os corpos é o poder dos médicos que supera o poder judiciário da época clássica. O que ele fala é o que também determina a decisão jurídica. “A instituição médica, em caso de loucura, deve tomar o lugar da instituição judiciária. A justiça não pode ter competência sobre o louco…”.[249] A família burguesa vai ser a continuação deste olhar que vigia e normaliza. Vigiar crianças desde o berço é a tarefa.[250] E neste contexto aparece o fenômeno da masturbação, porque ela se torna a causa universal de todas as doenças.[251] Talvez todas as guerras acabem, só a guerra contra a masturbação, o imaginário, o individual, continue. Na base da família moderna fica o corpo da criança,[252] o “espaço da vigilância continua”.[253] É o contexto do nascimento da psicanálise. Por isso, fica complicado esperar dela, pensa Foucault, a nossa liberação. Mas é também o contexto da confrontação entre Foucault e Marx. As análises marxistas falam que com o desenvolvimento da sociedade capitalista, o corpo, tratado anteriormente como o órgão do prazer que se transforma no instrumento da produção.[254] Neste contexto Foucault se pergunta por que nessa discussão marxista não aparece o mencionado problema da masturbação. Como explicar que no mundo burguês apareça a repressão da sexualidade infantil. Vimos que a masturbação articula o núcleo da família burguesa. Ela articula as condições da disciplinação do corpo. E Foucault acha que isso falta nas discussões marxistas. Explicar por que finalmente o sistema se tornou capitalista. No final do livro sobre A verdade e as formas jurídicas Foucault volta a essa confrontação. Marx fala sobre a essência do homem ligada ao trabalho. O ponto que Foucault coloca contra Marx é a operação que liga os homens ao trabalho. “É preciso a operação ou a síntese operada por um poder político para que a essência do homem possa aparecer como sendo o do trabalho”.[255] São as práticas microscópicas, capilares, fala ele, que se precisam para nos ligar ao trabalho e a uma produção capitalista. Talvez nós não

queiramos trabalhar, mas, mesmo assim, estamos todos os dias reproduzindo o sistema capitalista. E uma vez mais: “A ligação do homem ao trabalho é sintética, política; é uma ligação operada pelo poder”.[256] Só assim, só com este poder, com este panoptismo a nossa vida aparece como a força produtiva. No mesmo contexto, Foucault vai repetir que não fala sobre o estado ou a classe, mas sobre as pequenas instituições do poder. Acho que fica ainda aberta a pergunta se existe também uma macrofísica do poder, ou só as práticas contingentes. A burguesia, fala Foucault, “não se interessa pela sexualidade da criança, mas pelo sistema do poder que controla a sexualidade da criança”.[257] Mas por que este interesse da burguesia, poderia ser a pergunta de Marx contra Foucault. Foucault usa o termo macrofísica falando sobre o poder soberano que articula a Idade Clássica. Parece que a estrutura fragmentária da modernidade não cria a possibilidade de falar ainda sobre a macrofísica. Podemos falar sobre uma relação particular entre os médicos e os pacientes, por exemplo. Mas, pode ser que as perspectivas dispersas da Modernidade escondam um fundamento, uma certa metafísica que Marx chama o capitalismo. Finalmente, Foucault fala sobre a sociedade disciplinar, quer dizer, sobre algo que supera este tipo da prática. E no Nascimento da biopolítica fica explícita a relação entre o liberalismo, neoliberalismo e a biopolítica. Inclusive é o contexto onde Foucault fala sobre a liberdade produzida dentro do sistema capitalista.[258] É o sistema do espetáculo, onde a liberdade também não supera o espetáculo. Somos livres até certo ponto, até o ponto em que não se questiona o próprio sistema. O sistema não pode permitir que a liberdade dos trabalhadores vire “o perigo para empresa e para produção”.[259] A liberdade se articula só dentro do sistema. Mostra-se uma vez mais que não existe algo fora do capitalismo, algo não integrado. Foucault também pensa certa transformação do mundo, outra forma da produção da verdade. É talvez uma abertura para o cotidiano e para as perspectivas que não se encontram em Marx. É algo chamado segunda esquerda. Foucault fala sobre a possibilidade de outra produção dos indivíduos, sobre o autogoverno deles. É uma revolução molecular talvez. É também o contexto onde Foucault fala sobre o cuidado de sim, onde o projeto nietzschiano se radicaliza tendo não só arte, mas a própria vida como referência. A epimelia heautou, cura sui, são as referências que vêm do mundo grego e romano. Criarse, superar as identidades, aparece agora como a alternativa. É o ponto onde Foucault pensa um novo iluminismo como uma alternativa que se confronta com as formas identitárias modernas, baseadas no modelo de homo oeconomicus e das práticas disciplinares. O indivíduo moderno, poderia dizer Foucault com Nietzsche, é o mundo dos últimos homens disciplinados para satisfazer as

demandas do mercado. “Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo”, são as palavras dele sempre citadas para ilustrar isso. Lembrando-se das leituras dele da História da sexualidade podemos imaginar que o cuidado de si articula e a possibilidade do social também: “... o mestre de si e dos outros se forma ao mesmo tempo”.[260] [190] . Nietzsche, F., Crepúsculo dos Ídolos, Rio de Janeiro, 2000, p. 29. [191] . Cf. a brilhante reconstrução dessa questão em: Mosé, V., Nietzsche e a grande política da linguagem, Rio de Janeiro, 2005.

[192] . Nietzsche, F., Humano, demasiado humano, São Paulo, 2005, p. 20. [193] . Nietzsche, F., Humano, demasiado humano, São Paulo, 2005, p. 20. [194] . Nietzsche, F., Humano, demasiado humano, São Paulo, 2005, p. 20. [195] . Nietzsche, F., A gaia ciência, São Paulo, 2001, p. 249. [196] . Nietzsche, F., Sobre verdade e mentira…, Os pensadores, São Paulo, 1983, p. 46. [197] . Nietzsche, F., Sobre verdade e mentira…, Os pensadores, São Paulo, 1983, p. 48. [198] . Nietzsche, F., Sobre verdade e mentira…, Os pensadores, São Paulo, 1983, p. 50. [199] . Nietzsche, F., Humano, II, São Paulo, 2008, p. 170. [200] . Nietzsche, F., Crepúsculo dos Ídolos, Rio de Janeiro, 2000, p. 28-29. [201] . Nietzsche, F., A gaia ciência, São Paulo, 2001, p. 277 (§ 373). [202] . Nietzsche, F., Crepúsculo dos Ídolos, Rio de Janeiro, 2000, p. 29. [203] . Eu acho que Derrida entendeu este recado nietzschiano falando sobre uma certa reificação do próprio pensamento heideggeriano.

[204] . Cf. Heidegger, M., Nietzsche, I, Rio de Janeiro, 2007, p. 178. [205] . Cf. Heidegger, M., Nietzsche, I, Rio de Janeiro, 2007, p. 179. [206] . Heidegger, M., Nietzsche, II, Rio de Janeiro, 2007, p. 1. [207] . Heidegger, M., Nietzsche, II, Rio de Janeiro, 2007, p. 75. [208] . Heidegger, M., Nietzsche, I, Rio de Janeiro, 2007, p. 80.

[209] . Heidegger, M., Nietzsche, I, Rio de Janeiro, 2007, p. 257. [210] . Nietzsche, F., O Anticristo, Rio de Janeiro, 2007, § 12, p. 18. [211] . Nietzsche, F., Crepúsculo dos Ídolos, Rio de Janeiro, 2000, p. 100. [212] . Machado, R., Zaratustra, Tragédia Nietzscheana, Rio de Janeiro, 1997, p. 64. [213] . Cf. Nietzsche, F., A Grande Política, Fragmentos, Campinas, 2005, p. 36. [214] . Cf. Nietzsche, F., A Grande Política, Fragmentos, Campinas, 2005, p. 33. [215] . Nietzsche, F., Ecce homo, São Paulo, 1995, p. 110. [216] . Nietzsche, F., A gaia ciência, São Paulo, 2001, p. 199. [217] . Nietzsche, O nascimento da tragédia…, Os pensadores, Ibid., p. 28. [218] . Nietzsche, F., Escritos sobre Política, São Paulo, 2007, Vol. I, p. 170. [219] . Nietzsche, F., Escritos sobre Política, São Paulo, 2007, Vol. I, p. 219. [220] . Nietzsche, F., Escritos sobre Política, São Paulo, 2007, Vol. I, p. 204. [221] . Nietzsche, F., Escritos sobre Política, São Paulo, 2007, Vol. I, p. 155. [222] . Nietzsche, F., Escritos sobre Política, São Paulo, 2007, Vol. I, p. 155. [223] . Cf. Nietzsche, F., E eterno retorno, em: Os pensadores, Ibid., p. 392. [224] . Nietzsche, F., Escritos…, I, p. 327. [225] . Nietzsche, F., Escritos…, I, p. 328. [226] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 24. [227] . Foucault, m., Em defesa da sociedade, São Paulo, 2000, p. 32. [228] . Foucault, m., Em defesa da sociedade, São Paulo, 2000, p. 14. [229] . Foucault, História da sexualidade I, Rio de Janeiro, 1988, p. 106. [230] . Foucault, M., O poder psiquiátrico, São Paulo, 2006, p. 96. [231] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 51. [232] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 51.

[233] . Foucault, M., Segurança, Território, População, São Paulo, 2008, p. 168. [234] . Platão, Político, 276 d. [235] . Platão, Político, 279 a. [236] . Foucault, M., História da sexualidade 2, Rio de Janeiro, 2006, p. 58. [237] . Foucault, M., História da sexualidade 2, Rio de Janeiro, 2006, p. 59. [238] . Foucault, M., História da sexualidade 2, Rio de Janeiro, 2006, p. 209. [239] . Foucault, M., História da sexualidade 2, Rio de Janeiro, 2006, p. 58. [240] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 119. [241] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 119. [242] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 85. [243] . Foucault, M., O poder..., p. 65. [244] . Foucault, M., História da sexualidade 1, Rio de Janeiro, 2006, p. 100. [245] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 65. [246] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 65. [247] . Foucault, M., Os Anormais, São Paulo, 2001, p. 109. [248] . Foucault, M., Em defesa da sociedade, São Paulo, 2000, p. 258. [249] . Foucault, M., Os anormais, São Paulo, 2001, p. 40. [250] . Foucault, M., Os anormais, São Paulo, 2001, p. 308. [251] . Foucault, M., Os anormais, São Paulo, 2001, p. 305. [252] . Foucault, M., Os anormais, São Paulo, 2001, p. 315. [253] . Foucault, M., Os anormais, São Paulo, 2001, p. 311. [254] . Cf. Foucault, M., Os anormais, São Paulo, 2001, p. 299. [255] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 124. [256] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 125.

[257] . Foucault, M., Em defesa da sociedade, São Paulo, 2000, p. 39. [258] . Foucault, M., Naissance de la biopolitique, Paris, 2004, p. 65 [259] . Foucault, M., Naissance de la biopolitique, Paris, 2004, p. 67. [260] . Foucault, M., História da sexualidade 1, Rio de Janeiro, 2006, p. 72.

POLÍTICA DO MESSIANISMO REFLEXÕES SOBRE AGAMBEN E DERRIDA 1. No primeiro volume da “História da sexualidade”, intitulado “A vontade de saber” Foucault diz: “O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”. [261]. Foucault se refere ao início da “Política” de Aristóteles e a discussão sobre a natureza. Natureza de uma coisa é o seu estágio final, pensa Aristóteles. [262] Assim se articula a diferença entre o fato de ser vivo e as condições da deliberação política, entre zôê e bios, entre biologia e política. O que importa para Aristóteles não é o fato de ser vivo, mas as condições da superação deste particularismo e da realização do bem comum. O geral tem “precedência por natureza sobre o indivíduo”.[263] O geral tem a precedência ontológica “sobre cada um de nós individualmente”.[264] Como isso mudou durante a época moderna será uma das principais perguntas de Foucault. Como a diferença entre a biologia e política se supera indo para uma perspectiva da biopolítica, é um dos sinais mais destacados da Modernidade. Agamben vai continuar este projeto de Foucault tentando mostrar como, mesmo assim, a “tese de Foucault devera ser... corrigida ou, pelo menos, completada…”.[265] O primeiro ponto que nos interessa aqui são os motivos dessa crítica de Agamben sobre o projeto da biopolítica de Foucault. Assim vai ficar claro como ele vê as condições da biopolítica dentro da Modernidade. Outro ponto é a questão sobre direito. Um dia, fala ele, a humanidade vai brincar com direito, como as crianças que brincam com objetos, não para restituir o uso canônico, mas para se definitivamente livrar dele.[266] Por que brincar com direito um dia? Por que ele não satisfaz as nossas expectativas filosóficas? Poderia ser uma das respostas que inclusive Agamben articula no sentido explícito no livro sobre Auschwitz. O direito, fala ele, não tem nada a ver com a justiça, nem com a verdade. O que interessa o direito é o procedimento e a conclusão jurídica que não necessariamente inclui as questões sobre justiça e sobre verdade.[267] Isso nos lembra a herança aristotélica sobre o direito. Aqui a referência é a própria palavra phronesis, que na tradição latina vai ser traduzida como prudência, incluindo jurisprudência. Phronesis é o nosso raciocínio prático cujo interesse é aplicar as premissas gerais numa situação particular, sem questionar as próprias premissas. Aristóteles não questiona as premissas nem na discussão sobre a ética. São costumes, vimos, que articulam a

ética e não o questionamento deles. Obviamente essa herança determina um forte aspecto conservador do direito. Ficar dentro de um procedimento coerente e não questionar as premissas, chegando assim até a justiça e a verdade, é o que caracteriza o direito. Por isso, uma abertura filosófica poderia talvez superar os limites do direito. É isso que Agamben quer? Qual é o ponto da dúvida sobre o direito? E por que, finalmente, Agamben quer renovar a discussão sobre direito, mesmo apontando aos limites dele, quando o próprio Foucault deixa as discussões sobre o direito no passado? O direito, podemos nos lembrar de Foucault, fica ligado a um específico poder soberano tradicional e não chega até as novas estruturas do poder articuladas no contexto da discussão sobre a biopolítica. A dúvida que Agamben tem sobre Foucault parece simples. Por que Foucault, mesmo falando sobre a biopolítica, não chega até as consequências dramáticas da Modernidade, até a experiência dos campos de concentração, por exemplo? Por que Foucault não vê as consequências totalitárias da biopolítica e fala, inclusive, sobre os aspectos quase positivos do poder, que ajudam na criação da subjetividade?[268] Como entender a biopolítica que chega até uma tanatopolítica, até uma política que reproduz a vida exposta a morte? Isso é a pergunta inicial do Agamben. Mas o que é primeiro a própria biopolítica? Mencionamos a diferença aristotélica entre zôê e bios, entre o natural ou privado e público ou político. É a diferença que Aristóteles concretiza falando sobre a desigualdade dos homens. O “escravo não possui de forma alguma a faculdade de deliberar”, fala ele na Política.[269] Assim ele chega até a justificação da escravidão.[270] A Modernidade mudou essa perspectiva. Nós somos iguais pela natureza. Quer dizer, zôê e bios não ficam contrapostos. A experiência moderna é uma específica inclusão da zôê no bios. Aqui podemos pensar em Hobbes também e na questão da nossa autopreservação. Sobreviver, quer dizer preservar a vida natural parece o projeto político no início da Modernidade. Aqui a liberdade é o fato natural. Somos livres como os seres naturais. Só depois, no contexto do idealismo alemão, será feita uma específica separação entre a natureza e a liberdade e uma específica ligação entre a liberdade e a política. Não somos livres como seres naturais, mas dentro de uma específica afirmação espiritual sobre a natureza. Isso são as discussões posteriores. O que Agamben quer entender é essa mudança moderna da relação entre zôê e bios. Se nós somos iguais e livres pela natureza, como então podemos entender essa inclusão do zôê em bios? É o contexto onde Agamben se confronta com Foucault avisando as consequências catastróficas dessa ligação moderna entre a natureza e a política. Para esclarecer essa inclusão moderna do zôê, Agamben

vai voltar para o conceito que Foucault utiliza, mas indica os limites históricos dele. É o conceito da soberania. Em lugar do poder soberano da normação, pensa Foucault, a partir do século XVIII e XIX, temos o poder disciplinar da normalização. Em lugar do poder judiciário ligado ao poder soberano temos a perspectiva cuja função não é “de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades”.[271] É o novo tipo de poder que Foucault classifica como sociedade disciplinar “por oposição às sociedades propriamente penais que conhecíamos anteriormente. É a idade de controle social”.[272] É, com outras palavras, o novo tempo do panoptismo e do olhar vigilante do poder, controlando os indivíduos, os corpos e a população. A dúvida que Agamben neste contexto tem sobre Foucault é que assim não ficam claros os perigos do novo poder. Articulando a diferença entre o poder soberano e o poder disciplinar, Foucault, por exemplo, diz: “O direito de soberania é, portanto, ou de fazer morrer ou deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer”.[273] O que Agamben vê nessa perspectiva é o poder que nos deixa expostos à morte, que nos deixa nos campos da concentração. A pergunta é: como isso aconteceu? E aqui Agamben quer repensar o conceito da soberania tendo em vista este conceito na obra de Carl Schmitt. O motivo de Schmitt é, vimos, investigar as possibilidades políticas da modernidade. O mundo pacificado do liberalismo ficou sem política. Hoje, fala ele, “nada é mais moderno que a luta contra o âmbito político”.[274] Por isso, Schmitt poderia também ser uma das testemunhas sobre a especifica despolitização moderna. E na época perturbada da República de Weimar ele encontra a necessidade de repensar a política. Precisamos a decisão e não as normas. A norma não resolve o caos político. Precisamos a decisão soberana para estabelecer a ordem e para que a própria ordem jurídica tivesse o sentido. [275] Soberania é assim a competência para decidir sobre a vida e a morte, fala ele, nas páginas do “Conceito do político”. Ou, com as famosas palavras da “Teologia política” “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”.[276] No fundo da ordem jurídica temos um específico sentido político e uma das nossas perguntas sobre Agamben fica ainda aberta. Por que voltar para uma crítica do direito se talvez temos que nos confrontar com o fundo político dele? O novo critério para política não é nenhuma visão humanista. Pacificando os conflitos o humanismo parece mais uma negação da política do que o conceito dela.[277] No “Conceito do Político” ele diz: “... um globo terrestre finalmente pacificado, seria um mundo sem distinção entre amigo e inimigo e, consequentemente, um mundo sem política”.[278] A palavra despolitização do mundo moderno aparece no sentido explícito e Schmitt fala sobre as

consequências liberais do idílico estado final da despolitização.[279] Criar, então, a ordem articulando a diferença entre amigos e inimigos são algumas consequências dessa perspectiva. Schmitt obviamente não vê que assim está pacificando o espaço político de novo. Os conflitos não aparecem no contexto interior do estado e dos amigos, mas só no nível internacional. Agamben não vai seguir essa diferença entre o amigo e inimigo. O que importa para ele, dentro dessa nova visão da soberania, é exatamente essa competência do poder de decidir sobre a vida ou morte. Assim a inclusão da zôê fica mais visível como a exclusão, como a vida exposta à morte, como a vida nua que perdeu a possibilidade da própria autonomia. É a vida do homo sacer, da dupla exclusão dele. O “homo sacer pertence ao Deus na forma de insacrificabilidade e é incluído na comunidade sob a forma da possibilidade de ser morto sem crime”.[280] Homo sacer ilustra, assim, uma perspectiva política “mais original” do que a relação entre amigo e inimigo de Carl Schmitt. Na origem da política temos a relação entre homo sacer e soberano, quer dizer as condições da produção da vida nua. “O elemento político originário não é a simples vida nua, mas a vida exposta a morte…”.[281] A zôê incluída, como pensa a biopolítica, fica agora incluída como excluída pelas estruturas políticas e jurídicas. Assim a biopolítica da modernidade vai na direção de uma tanatopolítica. É o ponto onde Agamben tenta de superar o projeto de Foucault. A despolitização moderna, segundo Agamben, fica ligada ao direito e as novas condições da soberania. Para Foucault o direito não chega tão longe. A despolitização é mais ligada com as práticas disciplinares do que com as estruturas jurídicas. Em Defesa da Sociedade ele fala: “O discurso da disciplina é alheio da lei... Portanto, as disciplinas... definirão um código que será aquele, não da lei, mas da normalização, e elas se referirão necessariamente a um horizonte teórico que não será o edifício do direito, mas o campo das ciências humanas”.[282] Um pouco depois vamos ver os motivos de Agamben para se confrontar com direito não só no contexto da Modernidade, mas discutindo também a herança cristã. A mencionada exclusão da zôê fica visível nos campos de concentração. A gente pensa que somos da cidade, mas no último momento o campo é o espaço político. Os homens do campo, Agamben fala aqui dos Muçulmanos, são os novos exemplos do homo sacer. Abalados da fome, ajoelhados na terra parecem aos Muçulmanos rezando. Parecem aos vivos mortos. É a vida exposta à morte. Aqui fica mais claro o sentido da palavra biopolítica. É uma política sem a política. É uma consequência da despolitização moderna e da perda da liberdade. Estamos longe do otimismo hegeliano falando sobre a realização política da nossa liberdade. Auschwitz, Gulag, Guantánamo... Ou os povos do Terceiro

Mundo? Também incluídos como excluídos. Estamos, parece, longe da superação da natureza onde aparece o espiritual. A diferença entre a natureza e a liberdade, entre o animal e o humano, tão importante para nossa cultura, existe ainda?[283] E ainda mais. Fica impossível testemunhar sobre isso. A verdade está dentro do campo e não fora. E quem está dentro morre e não pode testemunhar. O fato de poder falar, ou o a priori da comunicação, não significa nada nessa situação. A possibilidade da comunicação ainda não significa que podemos falar.[284] É um argumento que Agamben articula contra os pensadores de certo a priori da comunicação que podemos encontrar em Apel e Habermas. Quem fala é quem sobreviveu. Mas quem sabe o que aconteceu não pode falar. Quem é a verdadeira e única testemunha não pode testemunhar. Isso também é o exemplo de que existem as experiências além da linguagem, ou melhor, dizendo, as experiências de uma outra linguagem. A nossa natureza é linguística. Só nela aparecem as significações. A própria natureza se sente traída do significado.[285] Aqui Agamben volta para a infância, para subjetividade de outra linguagem talvez. O ser humano não é sempre falante, idêntico com a própria linguagem, como os animais. Ele é um infante, um sem-identidade, o que constitui a possibilidade da autenticidade dele. A infância fica assim como o lugar transcendental da história, do mundo humano.[286] Existe para Agamben outra política e outra linguagem? Buscar outra polis fica “a tarefa infantil da humanidade que vem”.[287] Até onde chega este projeto? Vimos as consequências dramáticas dessa inclusão da zôê dentro da política moderna. A dúvida que pode aparecer é se, neste sentido, a alternativa poderia ser afirmar bios de novo, voltar para a herança grega. É uma das perguntas de um dos últimos livros de Agamben “O reino e a glória”. E é a continuação dos motivos presentes no livro “O tempo que resta”. O que resta, finalmente, como a possibilidade política? Vou dizer algo sobre isso e sobre as diferenças possíveis que neste contexto aparecem entre Agamben e Derrida. “O Reino e a glória” é uma discussão sobre o cristianismo onde aparecem as questões sobre a economia. Parece uma ruptura com a herança grega. Paulo é o primeiro que articula uma significação teológica da economia[288]. Vocabulário paulino, fala Agamben, é econômico e não político. A vida eterna aparece ligada a oikos, o que é impensável para os gregos, e não mais ligada a polis.[289] Mas, qual é o sentido das questões sobre a economia? A teologia cristã, fala Agamben, transforma, no sentido dinâmico, o monoteísmo bíblico opondo o pluralismo das pessoas e das práticas a unidade da substância.[290] A economia indica a mudança nas questões da ontologia clássica. Com os cristãos temos a

específica cisão entre o ser e as práticas. Por isso, a economia é a questão da possibilidade da conciliação entre estes dois mundos. Ela é dispositio dessa conciliação. Assim foi traduzida a palavra economia no mundo latino. Na Modernidade, Agamben vai seguir as novas ontologias, agora chamadas as ontologias da efetuabilidade, desligadas dos pressupostos da ontologia clássica grega e da ontologia cristã. Eu diria que a obra de Agamben é uma específica reconstrução do esquecimento do ser, não no nível das teorias, mas das práticas. Por isso, o futuro, como indicam as últimas palavras de Opus Dei, pode ser só uma ontologia desligada das teleologias operativas.[291] E aqui aparece a pergunta sobre a inoperatividade. Assim, da economia, o caminho vai para as questões da glória. A glória aponta a perfeição divina. É algo que a gente aprende já com Aristóteles. O divino é a unidade entre potência e ato, ele não tem que realizar algo. Ele reina, mas não precisa governar e se mediar com o mundo.[292] A glória do divino é a inoperatividade (inoperosita) dele. Por isso, o lugar dele fica vazio, sem as condições para ser realizadas. Neste sentido, Agamben fala sobre o trono vazio do divino.[293] O vazio é a ilustração da glória. Assim estamos chegando até a política da glória. Se entregar ao divino significa celebrar, afirmar essa inoperatividade da essência humana. Viver em Deus, Agamben fala aqui em Messias, significa fazer inoperativa a vida que estamos vivendo.[294] Essa vida Paulo chama a vida em Jesus, zôê de Jesus, utilizando então a palavra zôê e não bios. “Porque nós, que vivemos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus (zôê tou Jesou) se manifeste em nossa carne mortal” (2 Cor., 4.11). É um ponto muito importante da discussão. A confrontação com a inclusão da zôê na política, que se afirma como a exclusão dela, não vai na direção de uma nova afirmação do bios político ou de uma específica reviravolta da tradição grega. O bios aristotélico é a ilustração de uma teleologia que se realiza na política e de uma finalidade com a qual se realiza a nossa natureza. Podemos nos lembrar de novo das palavras dele na Política onde a questão da natureza fica ligada a seu estágio final. Bios, podemos dizer assim, é uma operação indo para a realização dessa teleologia. E com essa operatividade do bios Agamben quer confrontar a inoperatividade da zôê, a glória do divino. É a imanência da vida desligada das estruturas estaduais e jurídicas. No contexto moderno o que se afirma é exatamente só a soberania do Estado, concretizada pelas formas jurídicas. A modernidade, fala Agamben, não conseguiu pensar uma alternativa política além das estruturas estaduais. Por isso pensar uma vida humana e uma política não estadual e não jurídica é ainda um projeto para ser pensado.[295] Vimos que Agamben usa a palavra Messias neste contexto. A vida

inoperativa não é repouso mas uma operação messiânica.[296] Uma operação que talvez se realize, que não sofre a pressão de uma necessidade teleológica. Agamben daqui tira um específico messianismo da política. O sentido da política pode ser só o messianismo, algo que talvez se realize. O sentido da política não pode ser a reificação da ação dentro de um mundo dominado pela teleologia. Assim, ele se confronta com as ações políticas representativas. Representar significa representar essa teleologia. O sentido da zôê está na inoperatividade, na imanência e não na representação. A imanência da vida aparece assim como a alternativa da vida nua. Pensar a política no plano dessa imanência é o projeto de Agamben. Aqui talvez reaparece uma nova política sem política, porque se trata de uma política que não representa ou realiza uma certa teleologia. Alguns falam sobre o pensamento impolítico de Agamben ou sobre uma comunidade política sem ações, sem nome, que não está fazendo ou representando algo e assim não articula as novas formas identitárias.[297] O sentido da política está no messianismo, na possibilidade da chegada que nunca se reifica. O messianismo não é de uma metafísica, de uma narrativa do passado. Talvez a igreja finalmente abandona o messianismo. Jesus inclusive fala que não chegou para inventar a lei, mas para cumpri-la. Já no Antigo Testamento o Senhor disse a Josué: “Não deixe de falar as palavras deste Livro da Lei e de meditar nelas... para que você cumpra fielmente tudo o que nele está escrito...” (Josué 1:8). E agora o Jesus fala: “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir”, (Mateus 5:17). Assim, pensa Agamben, a igreja congela o messianismo com este compromisso com direito. [298] Por isso, aqui fica talvez mais clara a confrontação com direito. O direito se confronta com messianismo, afirmando a continuidade de uma tradição normativa e não as rupturas. O messianismo não é do direito. O messianismo também não é um projeto revolucionário, como ainda acreditava Benjamin. Quem são, então, os novos protagonistas, ou sujeitos de uma política que nem representa nem cria as novas identidades?[299] Talvez Agamben esvazia a política dos sujeitos concretos aqui e agora. O que acontece é o esquecimento do ôntico, seguindo uma leitura heideggeriana sobre a diferença entre o ôntico e o ontológico. Por isso Moisés também e não só Messias, a liberação e não só a salvação, a parte ôntica e não só a parte ontológica da política.[300] Vamos voltar para essa inspiração heideggeriana tentando incluir alguns argumentos críticos de Jacques Derrida. Como pensar, finalmente, essa diferença entre o ôntico e ontológico? Mas antes disso, algumas palavras sobre o livro Necropole de Boris Pahor. A exclusão, discutida por Agamben, Pahor entendeu muito cedo. Como a exclusão da minoria eslovena, da língua eslovena... Como a exclusão do outro.

Espaço público não inclui os outros, a língua eslovena não chega até lá. O caminho da história é o caminho das identidades e não das diferenças. Isso chega até os campos da concentração. As cidades crematórias, fala Pahor, “são construídas para o extermínio; por isso não faz diferença em que setor você está trabalhando. Um barbeiro escanhoava a morte, um almoxarife a vestia, um enfermeiro a despia, um escriturário anotava datas e números depois que, para cada um deles, a alta chaminé soltara com fartura a sua fumaça”.[301] É uma traição, fala Pahor, ter sobrevivido e viver. E para voltar a ser digno da amizade dos companheiros mortos “deveria livrar-me de todo conforto e calçar de novo os tamancos da nossa miséria”.[302] É o sentimento da culpa. “... a certeza da minha impotência fazia nascer em mim um estéril sentimento da culpa…”.[303] Lá, onde sinais da vida chegam como meras migalhas.[304] Lá onde a humanidade deixa de existir.[305] E de novo, “somos culpados, nós que voltamos, porque não reagimos”.[306] Sim, precisamos resistir. Se não, o mundo vai cada vez mais virar um campo de concentração. Neste ponto, como também no ponto sobre a importância de testemunhar, Pahor, me parece, supera as leituras de Agamben. Talvez a gente ainda não saiba muito sobre essa resistência. Quem sabe, fala Pahor, “talvez somente uma nova ordem monástica leiga fosse capaz de despertar o homem padronizado, uma ordem que vestisse os trajes listrados dos prisioneiros e invadisse as capitais dos nossos Estados, que incomodasse com o barulho dos seus tamancos o recolhimento das lojas de luxo e dos aprazíveis passeios”.[307] Mesmo revelando a tragédia, mesmo sentindo culpa profunda, mesmo falando sobre a própria impotência, Pahor tem esperança. E ele volta para uma outra testemunha: Anne Frank. Anne Frank diz, cita ele, “que apesar de tudo, nunca deixou de acreditar que o homem é fundamentalmente bom”.[308] Talvez os livros de Pahor nos possam ajudar a procurar essa bondade possível em nós mesmos. E uma possível abertura possível para os Outros. Porque o esquecimento dos Outros prepara também os campos de concentração. 2. No final do livro IX da “República” Platão vai colocar em dúvida o fato de que “a cidade que edificamos... na nossa exposição, está fundada só em palavras”, como um “modelo no céu”, que não se encontra em parte alguma da terra. Como hoje podemos entender este aspecto utópico da política e do direito? No artigo “Crítica da violência: crítica do poder”, Walter Benjamin vai dizer que “a institucionalização do direito é institucionalização do poder e neste sentido, um ato de manifestação imediata da violência”.[309] Contra este poder, que ele vai chamar mítico, Benjamin vai confrontar o poder divino, o único

capaz de se confrontar com as violências seculares. Contra a violência, que instaura o direito secular, ou o direito mítico, Benjamin vai confrontar a violência divina que o destruí. Assim, este ato divino articula a justiça contra o poder. Derrida vai repensar este conceito do poder no direito e essa relação entre o poder e a justiça.[310] A resposta dele não vai voltar para a justiça divina, mas para o mencionado conceito da diferença ou, poderíamos dizer, do vazio. Na perspectiva da desconstrução não existe mais o fundamento puro, mais a iterabilidade,[311] a diferença que se reinventa. A institucionalização do poder não articula essa iterabilidade, o que fica explícito analisando os próprios atos de fala. Assim, a parte performativa não revela essa visibilidade da diferença que aparece só na parte constantiva. Só a parte constantiva fala, aparentemente, em nome do povo e da democracia por exemplo. Este equívoco Derrida encontra na Declaração da Independência norteamericana. Assim, quem assina a declaração, assina não só para si mesmo, mas também para os outros.[312] Só a referência constantiva não aparece no ato performativo. O que Derrida quer enfatizar é este momento da exclusão na articulação da política e na institucionalização do direito. O poder do direito é o poder contra o outro. O sujeito do ato performativo, no caso da Declaração da Independência, não é o sujeito do ato constantivo.[313] Aparecem dois “nós” diferentes, um no ato performativo e outro no ato constantivo. Assim os “nós” do performativo não inclui, por exemplo, os negros e os índios. Os “nós” do performativo exclui os Outros e aqui Derrida vê o paradoxo principal da constituição da democracia moderna. Mas é possível a abertura para os Outros além da tolerância? Porque, no final das contas, a tolerância é a forma da abertura onde ainda domina certo paternalismo. A gente aceita os Outros só se eles seguirem as regras, a Identidade da nossa própria cultura. É possível a abertura para os Outros além da tolerância? É possível a abertura incondicional, que Derrida vai chamar a hospitalidade? É possível abrir-se para “alguém que entra em nossas vidas sem ter sido convidado?”[314] Abertura para o Outro parece um projeto complicado, quase impossível. E assim, também, a democracia. Assim, no último momento, a democracia “não significa uma democracia futura que um dia será ‘presente’”.[315] A democracia não está na presença. A presença, aprendemos da história, é só outra palavra para a metafísica da nossa vida. É a metafísica da presença. Assim no processo moderno do desencantamento, aparecem os novos fetichismos e as novas identidades também. O capitalismo, a economia e a política não são as novas formas da metafísica, ocupando o lugar vazio da diferença e criando as novas identidades fortes? Por isso, o projeto da destruição da metafísica permanece ainda atual.

Portanto, a desconstrução derridiana talvez articule uma nova política da diferença. “A hospitalidade incondicional, que não é nem jurídica nem política, ainda assim é a condição do político e jurídico”.[316] Trata-se, assim, de uma crítica incansável do capitalismo e de sua metafísica da presença. A filosofia de Heidegger ainda afirma os lugares privilegiados para pensar a autenticidade do ser. Assim, ela ainda não é a diferença verdadeira, a diferença que produz a diferença. A diferença de Heidegger parece mais uma diferença reificada, determinando – poderíamos dizer assim – os lugares para a aparição do autêntico. Heidegger ainda ficou preso no horizonte da moderna metafísica da subjetividade. Por isso o projeto da destruição da metafísica tem de ser superado pelo projeto de sua desconstrução. O recado é forte. Criticar a Identidade, afirmando a diferença, quer dizer também que o lugar da política e do direito tem que ficar vazio, para não criar as novas formas da ideologia. Ou, com as palavras de Claude Lefort “a soberania popular junta-se a imagem de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender apropriar se dela”.[317] O vazio não é a falta que a cultura sempre articulou como algo que teria que ser superado, superando assim o próprio indivíduo. O vazio é a dinâmica do social que nunca se entrega ao fetichismo e a própria reificação. Uma colocação semelhante encontramos em Agamben também. Qual é a diferença entre os dois? Agamben acha que a posição de Derrida não supera a tradição já existente. Dentro do dado a gente articula a diferença. Desconstrução está blocando, suspendendo o messianismo.[318] Por isso a saída messiânica fica a proposta de Agamben. Mas Derrida também é o autor do messiânico. O messiânico dele é a ruptura com as formas da identidade que, assim, inclui os Outros. É a hospitalidade no sentido da abertura para os Outros. Neste ato da hospitalidade talvez possamos falar sobre o nascimento latente de uma outra subjetividade. [319] E os Outros nem aparecem na proposta de Agamben. Mesmo criticando o direito, abrindo-se para as questões da justiça, Derrida vai apontar para a necessidade do direito. Precisamos das novas formas do direito ligadas ao projeto da desconstrução da metafísica. Porque sem direito o Outro nem pode aparecer. “Sem este direito, ele não pode introduzir-se em minha casa, na casa do hospedeiro, senão como parasita, como hóspede abusivo, ilegítimo, clandestino, passível da expulsão ou da prisão”.[320] Justiça pelo direito. Agamben não chega até essa leitura derridiana. Assim, o messiânico para Derrida é uma confrontação permanente, uma crítica incansável das formas presentes da identidade. O messiânico fica assim ligado a ação e não as formas passivas da política.[321] É a radicalização do

projeto heideggeriano sobre a destruição da metafísica, que assim supera o contexto do dado e das formas identitárias. Em lugar do messiânico da política de Agamben, Derrida fala sobre o messianismo sem messianismo. Neste contexto ele não precisa da ideia da soberania para concretizar este projeto. Vimos as dúvidas dele sobre as condições da soberania na época da revolução americana que exclui os outros. A soberania reifica, ela transforma “o ato performativo em ato constantivo”.[322] Assim Derrida chega até outra visão da discussão sobre a zôê. Porque parece que não é só o soberano fora da lei, mas o animal também. E a filosofia quase não fala sobre os animais. E quando fala, eles aparecem dentro de uma forte visão antropológica. Mesmo Heidegger fica um cartesiano neste contexto. “... o animal, que é alogon, se encontra, segundo Heidegger, privado de acesso, em sua abertura mesma, ao ser do ente enquanto tal…”.[323] Mesmo apontando a uma máquina antropológica em Heidegger, Agamben, acho, junto com Heidegger compartilha uma identidade antropocêntrica. O homem é o animal que possui linguagem.[324] A elaboração dessa tese fica heideggeriana. Heidegger não fala sobre o ser vivo, mas sobre o Da-sein e o da deste ser aí “significa: estar no lugar da linguagem”.[325] Significa não se identifica com a voz identitária dos animais, mas articular a própria autenticidade. E essa autenticidade desapareceu. Nós somos reduzidos à vida nua, à vida dos animais. A diferença entre o animal e o humano, fala Agamben, se cancela.[326] Mas quando ele volta para a afirmação da imanência da vida, confrontada com a vida nua, os animais não aparecem mais. Finalmente, Agamben quer pensar a linguagem e não a voz dos animais. Assim ele fala: “... eu não quis pensar... se não uma única coisa: o que significa ‘existe linguagem’…”.[327] E mesmo quando ele fala, como vimos, que a linguagem não se identifica com o humano ele só quer investigar a infância como a “pátria transcendental da história”, quer dizer como o lugar da autenticidade do humano. No mesmo lugar ele vai repetir que “os animais não entram na língua: já estão sempre nela”.[328] Quando fala sobre a linguagem Agamben quer mostrar a possibilidade do mundo que só o homem tem. E quando fala sobre a infância, ele quer apontar a este lugar vazio, não-substancial do homem. Zôê, nessa reconstrução, exclui os animais. Assim, a responsabilidade para o Outro, que não é só homem, mas o animal também aparece como outro ponto da diferença fundamental entre Derrida e Agamben.[329] Uma metafísica que Agamben tenta detectar na filosofia de Derrida aparece dentro do próprio sistema dele. Mas não é só a dúvida sobre ele. Mesmo na filosofia onde aparece a possibilidade de pensar os Outros, como no caso da filosofia de Levinas,

aparecem as dúvidas. Levinas fala do homem, do próximo, do Outro, poderíamos dizer, enquanto homem. E isso para nós, fala Derrida é “o lugar de uma grave inquietação”.[330] Desconstruir a identidade, devir outro, devir animal é o contexto que inclui nossa compaixão fundamental. Pensar, fala Derrida, começa talvez diante do animal.[331] É o “sim” dessa abertura para o Outro. É o “sim” do performativo? Talvez. Talvez o performativo não seja a palavra adequada porque volta para a linguagem, para uma herança metafísica. Onde existem os performativos não tem o acontecimento. Os performativos acontecem só no horizonte do possível. [332] Confrontando se com isso a desconstrução também fica ao lado do messiânico. Só o impossível pode acontecer.[333] E exemplo disso, vimos, é a abertura para uma hospitalidade incondicional. Neste contexto não aparecem mais bios ou zôê como os novos tópicos do pensamento e como a forma de uma nova política identitária. A vida é talvez uma “experiência na qual se abalam os limites à passagem de fronteiras entre bios e zôê…”.[334] Nessa ausência da identidade, neste vazio aparece, talvez, a possibilidade e da política e do direito. [261] . Foucault, M., História da sexualidade 1, Rio de Janeiro, 2006, p. 156. [262] . Aristóteles, Política, 1253a. [263] . Aristóteles, Política, 1253a. [264] . Aristóteles, Política, 1253a. [265] . Agamben, Gi., O poder soberano e a vida nua. Homo sacer, Lisboa, 1998, p. 18. [266] . Agamben, Gi., Stato di eccezione, Torino, 2004, p. 83. [267] . Agamben, Gi., Was von Auschwitz bleibt, Frankfurt, 2003, p. 16. [268] . Hannah Arendt vê as consequências totalitárias da Modernidade mas, pensa Agamben não liga essas consequências com a biopolítica. Essas dúvidas sobre Foucault e Arendt aparecem já no início do livro Homo sacer.

[269] . Aristóteles, Política, 1260a. [270] . Aristóteles, Política, 1255a. [271] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 86. [272] . Foucault, M., A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, 2005, p. 86.

[273] . Foucault, M., Em Defesa da Sociedade, São Paulo, 2000, p. 287. [274] . Schmitt, C., Teologia política, Belo Horizonte, 2006, p. 58. [275] . Schmitt, C., Teologia política, Belo Horizonte, 2006, p. 13. [276] . Schmitt, C., Teologia política, Belo Horizonte, 2006, p. 13, p. 7. [277] . Schmitt, C., O conceito do político, Petrópolis, 1992, p. 82. [278] . Schmitt, C., O conceito do político, Petrópolis, 1992, p. 61. [279] . Schmitt, C., O conceito do político, Petrópolis, 1992, p. 81. [280] . Agamben, Gi., Was von Auschwitz bleibt, Frankfurt, 2003, p. 83. [281] . Agamben, Gi., Was von Auschwitz bleibt, Frankfurt, 2003, p. 83, p. 88. [282] . Foucault, M., Em Defesa da Sociedade, São Paulo, 2000, p. 45. [283] . Agamben, L´aperto, Torino, 2003, p. 28. [284] . Agamben, Gi., Was vom Auschwitz bleibt, p. 56. [285] . Agamben, Gi., La Comunita che viene, Torino, 2001, p. 49. Por aquí talvez temos o início de um específico antropocentrismo que Derrida vai enfrentar.

[286] . Agamben, Gi., Infância e história, Belo Horizonte, 2005, p. 65 [287] . Agamben, Gi., Infância e história, Belo Horizonte, 2005, p. 17. [288] . Agamben, Gi., Il regno e la gloria, Torino, 2007, p. 35. [289] . Agamben, Gi., Il regno e la gloria, Torino, 2007, p. 15. [290] . Agamben, Gi., Il regno e la gloria, Torino, 2007, p. 223. [291] . Agamben, Gi., Opus Dei, Torino, 2012, p. 147. [292] . Cf. Il regno e la gloria, Torino, 2007, p. 99. [293] . Cf. Il regno e la gloria, Torino, 2007, 266. [294] . Cf. Il regno e la gloria, Torino, 2007, 271. [295] . Cf. Agamben, Gi., Mezzi senza fine, Note sulla politica, Torino, 1996, p. 89.

[296] . Agamben. Gi., Il regno..., p. 272. [297] . Cf., Hervás, A. G., Política y Mesianismo, Madrid, 2005, p. 67 e 79. [298] . Agamben, Gi., Mezzi senza fine, Torino, 1996, p. 105. [299] . Cf., Marchart, O., Zwischen Moses und Messias. Zur politischen Differenz bei Agamben in: Böckelman, J., Meier, F., (Org.) Die gouvernamentale Maschine. Zur politischen Philosophie Giorgo Agambens, Münster, 2007, p. 20.

[300] . Cf., Marchart, O., Zwischen Moses und Messias. Zur politischen Differenz bei Agamben in: Böckelman, J., Meier, F., (Org.) Die gouvernamentale Maschine. Zur politischen Philosophie Giorgo Agambens, Münster, 2007, p. 26. [301] . Pahor, B., Necrópole, Rio de Janeiro, 2013, p. 212. [302] . Pahor, B., Necrópole, Rio de Janeiro, 2013, p. 77. [303] . Pahor, B., Necrópole, Rio de Janeiro, 2013, p. 133. [304] . Pahor, B., Necrópole, Rio de Janeiro, 2013, p. 133. [305] . Pahor, B., Necrópole, Rio de Janeiro, 2013, p. 167. [306] . Pahor, B., Necrópole, Rio de Janeiro, 2013, p. 245. [307] . Pahor, B., Necrópole, Rio de Janeiro, 2013, p. 137. [308] . Pahor, B., Necrópole, Rio de Janeiro, 2013, p. 237. [309]

. Benjamin, W., com.br/021/21tc_benjamin.htm, p. 4.

Crítica

da

Violência,

http://www.espacoacademico.

[310] . Cf. Derrida, J., Force de loi, Paris, 1994. [311] . Cf. Derrida, J., Force de loi, Paris, 1994, p. 94. [312] . Derrida, J., Declarations of Independence, Negotiations, Stanford University Press, 2002, p. 48. [313] . Cf. tumbem Benhabib, S., Demokratie und Differenz, em: Brumlik, M., Brunkhorst, H., Gemeinschaft und Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1993, p. 105. Aqui não vou seguir a crítica que Benhabib, com motivos habermasianos, articula contra Derrida. O primeiro argumento é de que Derrida não oferece uma resposta como corrigir ou melhorar os argumentos normativos (Ibid., p. 108) e o segundo é que as complexas sociedades modernas não podem ser baseadas na ideia derridiana da amizade.

[314] . Borradori, G., Filosofia em tempo de terror. Diálogos com Habermas e Derrida, Rio de Janeiro,

2004, p. 139.

[315] . Borradori, G., Filosofia em tempo de terror. Diálogos com Habermas e Derrida, Rio de Janeiro, 2004, p. 130.

[316] . Borradori, G., Filosofia em tempo de terror. Diálogos com Habermas e Derrida, Rio de Janeiro, 2004, p. 139.

[317] . Lefort, C., A invenção democrática, São Paulo, 1987, p. 76. [318] . Agamben, Gi., Il tempo que resta, Torino, 2008, p. 98. [319] . Cf., Bernardo, F., Mal de hospitalidade, em: Nascimento, E., Jacques Derrida: pensar a desconstrução, São Paulo, 2005, p. 203.

[320] . Derrida, J., Dufourmantelle, A., Da hospitalidade, 2003, p. 55. [321] . Cf., Derrida, J., Marx e hijos, em Sprinker, M., (org.) Demarcaciones espectrales. Em torno a Espectros de Marx, de Jacques Derrida, Madrid, 2002, p. 289.

[322] . Cf. Rajagopalan, K., Jacques Derrida e a corda bamba como o caminho da ética, em: Nascimento, E., Jacques Derrida: pensar a desconstrução, São Paulo, 2005, p. 123.

[323] . Derrida, J., O animal que logo sou, São Paulo, 2002, p. 41. [324] . Agamben, Gi., A linguagem e a morte, Belo Horizonte, 2006, p. 141. [325] . Agamben, Gi., A linguagem e a morte, Belo Horizonte, 2006, p. 78. [326] . Agamben, Gi., L ´aperto. L´uomo e l ´animale, Torino 2002, p. 28. [327] . Agamben, Gi., Infancia …, Ibid., p. 12 Neste contexto, inclusive, fica mais clara a crítica que Agamben articula contra Derrida. Devemos certamente render homenagens a Derrida, fala ele no livro Linguagem e a morte, p. 60, “como o filósofo que identificou com mais rigor o estado original do grama e do significante na nossa cultura”. Obviamente Agamben se refere ao projeto derridiano da gramatologia. Mas Derrida havia assim só trazido a luz o problema da metafísica a não as condições da superação dela. (Ibid. loc. cit.) “A metafísica já é sempre gramatologia”, conclui Agamben (Ibid., p. 61) A explicação dessa última tese fica talvez mais transparente na discussão sobre a linguagem, no livro Infância e história. A pergunta, inspirada por Heidegger, é: “Que coisa existe na voz humana, que articula a passagem da voz animal ao logos, da natureza a polis? É conhecida a resposta de Aristóteles: o que articula a voz são os gramata, as letras. “...os gramáticos antigos opunham assim a voz confusa dos animais à voz humana, que é articulada”. (Agamben, Gi., Infância e história, Belo Horizonte, 2005, p. 15). O elemento constitutivo da voz, o grama, aqui ainda não pode ser, eu acho, o argumento contra Derrida. São conhecidas, por exemplo, as críticas dele a voz, já no livro Voz e fenômeno. Derrida, finalmente, quer ligar o grama não a voz mas a escrita.

[328] . Agamben, Gi., Infância e história, Belo Horizonte, 2005, p. 64.

[329] . Cf. Thurschwell, A., Spectres of Nietzsche: Potential Futures for the Concept of Political in Agamben and Derrida, online: www.law.csuohio. edu/faculty/athurschwell/nietzsche.pdf. [330] . Agamben, Gi., Infância e história, Belo Horizonte, 2005, p. 30. [331] . Agamben, Gi., Infância e história, Belo Horizonte, 2005, p. 57. [332] . Derrida, J., Die unbedingte Universität, Frankfurt, 2001, p. 73. [333] . Agamben, Gi., Infância e história, Belo Horizonte, 2005, p. 57. [334] . Derrida, J., O animal que logo sou, São Paulo, 2002, p. 49.

ONTOLOGIA DOS MONSTROS NEGRI E AS QUESTÕES SOBRE A POLÍTICA E IMANÊNCIA Na segunda epístola aos tessalonicenses, Paulo fala sobre a vinda do adversário de Deus, a vinda “daquele que se levanta contra tudo o que é divino e sagrado, a ponto de tomar lugar no templo de Deus, e apresentar-se como se fosse Deus”.[335] Mas, continua ele, “sabeis perfeitamente que algo o detém, de modo que ele só se manifestará a seu tempo. Porque o mistério da iniquidade já está em ação, apenas esperando o desaparecimento daquele que o detém”.[336] A palavra é grega katechon, aquele que detém, aquele que se confronta com a vinda de Anticristo. Quem poderia ser o katechon hoje, neste novo tempo apocalíptico, talvez do capitalismo? A filosofia, o direito? Ou uma nova forma da soberania, como pensava Carl Schmitt, falando inclusive sobre o katechon no início do seu livro Nomos da terra. É possível pensar o katechon no sentido de uma nova subjetividade? E qual seria hoje a subjetividade capaz de se confrontar com tal dramática, com a própria herança metafísica? Muitas vezes ficamos sem resposta. Não existem os sujeitos, existam talvez só as condições de sua criação. Existe talvez só a vida nua exposta à morte, como a última referência da política. Como pensar a política além da vida nua? Existe outra referência, outra orientação para nós, testemunhas da Apocalipse? Pode ser que o próprio discurso sobre a vida exposta à morte seja só uma das últimas tentativas do capitalismo de nos marginalizar e criar novas formas de soberania. Pode ser que a vida nua seja apenas uma fantasia ideológica que mistifica o social contemporâneo. Assim, pensa Negri, falando obviamente sobre o projeto de Agamben.[337] Eram, por exemplo, nus os operários e os estudantes dos anos 70, do século passado?[338] Não, eram vestidos, tinham algo mais além da vida nua. Eram mulheres e homens antes de ser a vida nua. Somos, talvez, também homens e mulheres antes da vida nua. Antes da vida nua ainda exista algo, talvez outra possibilidade da subjetividade, uma reinvenção da vida. A vida é mais potente que a nudez. A vida nua é talvez o contrário dessa potência[339] é a parte de um fetichismo que esconde as próprias possibilidades. Não era inatividade uma das últimas palavras de Agamben? O que poderia ser, então, este resíduo da esperança, algo além da vida nua, o novo katechon? O que poderia ser, de novo, uma nova subjetividade? No mesmo lugar onde indica que

somos homens antes de sermos nus, Negri fala que somos monstros, antes de sermos impotentes, reduzidos à vida nua. Quem são os monstros e os novos monstros de hoje? E o que poderia ser a potência deles ou a nossa hoje? A tradição metafísica clássica, fala Negri, excluía os monstros da ontologia do conceito.[340] Por aqui poderíamos iniciar. Outra leitura sobre o mesmo assunto pode ajudar. Falando sobre Platão, Deleuze disse que a intenção de Platão não era somente a articulação ontológica e cognitiva do mundo, onde conhecer significa classificar e representar a ontologia. A intenção platônica era também excluir do mundo o que não representa, o que é puro simulacro, o monstro, o que não se encaixa, diria Negri, nessa ontologia do conceito. Fazer a filosofia hoje seria salvar o simulacro, ou mostrar a possibilidade de outra ontologia, talvez dos monstros. Seria outra filosofia. Porque a filosofia, com a própria metafísica e com o finalismo no sentido da realização dessa metafísica, estava legitimando assim a ordem existente, a ordem do poder. A filosofia estava basicamente ao lado do poder, a teoria e a justificação dele. Excluía os monstros. Criava ordem e o medo dele. Como se livrar deste medo hoje? Como sentir a nossa vida na filosofia? É por aí onde reaparece a questão sobre outra subjetividade. Capaz de se confrontar com a metafísica herdada, mas capaz também de não recriar uma nova forma da colonização da vida. Neste mesmo artigo, Negri fala sobre os monstros comunistas e sobre os monstros biopolíticos. A reconstrução de outra política e de outra subjetividade poderia começar por aí. O que é o monstro comunista? E por que ele se transforma no mostro biopolítico produzindo outra forma da vida e aparecendo assim como uma possível subjetividade? Aqui está o início do projeto de Negri, que termina na articulação política da multidão. Em lugar de se superar e se elevar até o Uno, a multidão sai da sombra dele. Um platonismo invertido novamente? Ou simplesmente uma possibilidade de pensar além dos poderes instaurados e representados? Marx beyond Marx. Marx além de Marx. É o livro do Negri dos anos 70 onde poderíamos começar a discussão. A inspiração para Negri volta talvez ainda mais para o passado, chegando até Maquiavel e Spinoza. É outra perspectiva para, finalmente, chegar até Marx. E o subtítulo do livro é Lições sobre Grundrisse, quer dizer, sobre os fundamentos da crítica da economia política em Marx. Quem é o Marx além das leituras marxistas, partidárias ou além dos próprios escritos dele? Quem é o verdadeiro Marx? Marx do Capital, dos Manuscritos econômico-filosóficos, ou Marx do Grundrisse? Lembro-me que no meu país, ex-Iugoslávia, a gente tinha muitas discussões neste sentido, antes dessa leitura do Negri, tentando confrontar o verdadeiro Marx com marxismo e com os fracassos históricos ligados a este projeto. Por que o

socialismo não deu certo? Existe ainda alguma possibilidade do socialismo ou temos talvez de repensar os paradigmas para uma ontologia do social? Por isso, a gente precisa voltar a Marx de novo. Mas quem é o Marx além dessas leituras do passado? Na ex-Iugoslávia, quer dizer, nos novos estados construídos, Marx desapareceu. Na Europa Oriental desapareceu. Mesmo assim ele volta. Como monstro. Como convite para outra política. Para outra política? Mas Marx não é o pensador da mudança econômica, criticando a emancipação política limitada que ele encontra em Hegel? Marx do Capital e dos Manuscritos. E Marx político? Marx do Grundrisse? Por aí está o início de uma leitura que questiona a economia e pensa outra possibilidade da subjetividade política. É importante neste contexto entender a diferença que Marx está fazendo entre o labor e o trabalho. Aqui não coloco o conceito da “práxis” que os marxistas tentam resgatar contra uma reificação estalinista, porque ainda não fica claro se e como ainda podemos pensar este conceito. O labor cria os produtos de que precisamos. Assim podemos entendê-lo como labor necessário que cria os valores de uso. No processo histórico, incluindo, por exemplo, a acumulação capitalista, essa característica do labor desaparece. Ele se inclui na reprodução capitalista interessada na produção do mais-valia. Assim o labor se transforma no trabalho. Dinheiro no capital. É o início do capitalismo. O trabalho agora está criando o valor, a mais-valia. Estamos ainda nessa época dominada pela imposição do trabalho e da mais-valia. O labor mencionado fica integrado nessa reprodução capitalista, fica uma categoria burguesa. Com outras palavras, o labor está sendo roubado do trabalhador, do criador dos valores de uso e se transforma no capital[341]. Assim ele se reifica, sendo dominado pela organização capitalista da produção da vida. O labor não é mais a característica de algo constitutivo, de uma subjetividade implícita. Subjetividade se transforma na objetividade. A atividade não é mais uma produção criativa, mais uma reprodução. O trabalho abstrato e não mais o trabalho vivo determina a reprodução do social. O mundo se transformou no mundo das mercadorias. A subjetividade, fala Marx em Grundrisse, é o próprio valor. O trabalho virou uma forma da reprodução capitalista, é uma categoria capitalista.[342] Este trabalho abstrato ficou visível para Marx. O fato que o trabalho abstrato determina a reprodução social indica claramente que o capitalismo fica dominado por uma especifica metafísica. Mas essa metafísica se esconde. O capitalismo, pelo contrário, se afirma como a sociedade emancipatória. A metafísica desapareceu da pesquisa e, por conseguinte, a metafísica capitalista. Nas universidades, por exemplo, que têm por função criar uma consciência social, a palavra metafísica quase desapareceu completamente. Mesmo as universidades criam, assim, um olhar fetichista.

Neste ponto da discussão, inclusive, se separam muitas perspectivas. Confrontar-se com o trabalho capitalista indo para uma perspectiva de ação, no sentido de Habermas, voltando para uma inspiração revolucionária, no sentido dos marxistas de grupo Práxis, ou voltar para o próprio Marx e as questões do trabalho vivo. Isso, de certa maneira vai renovar a perspectiva do social, que Hannah Arendt ainda vê com muita frustração. Encima do trabalho vivo, para voltar à nossa discussão, está o trabalho morto do capitalismo. Encima da vida estão os parasitas. Capitalismo não pode mudar essa situação, depende do trabalho que o reproduz. As implicações disso vão ficar cada vez mais dramáticas no pensamento marxista. Essa presença do trabalho constitutivo, mesmo sendo reificado, abra talvez os sinais da esperança. Capital precisa do trabalho, mas os trabalhadores não precisam do capitalismo. [343] Essa presença dos trabalhadores obviamente cria a crise que o capitalismo não pode resolver. Ela é a própria condição dele. Por isso, no Grundrisse Marx fala sobre o capitalismo no sentido de uma contradição viva. Por outro lado, o trabalho vivo cria um contexto social livre da dominação. É a possibilidade que Marx vê em relação apenas à classe operária. Talvez, por aqui, apareça a possibilidade de outra produção da vida e do social. Apareça a imanência do trabalho além do lugar transcendental do capitalismo. Essa imanência que Marx no Grundrisse liga à política. Uma possível política da imanência.[344] O trabalho de Negri é uma continuação. Nos últimos trabalhos, incluindo Multidão, por exemplo, se encontra: “...o conceito de multidão pretende repropor o projeto político de luta de classes lançado por Marx”.[345] O que quero aqui é entender este caminho e ver se podemos justificar uma possível ruptura com essas leituras de Marx. Apenas agora se vê que o trabalho vivo, produtor dos valores de uso, desaparece e se encaixa numa estrutura da produção dominada pelos valores de troca, do mercado, do abstrato. O abstrato domina o concreto. Essa é a verdade do capitalismo. Uma imagem hegeliana da dominação final do concreto. Isso não quer dizer que Marx, no final das contas, ficou hegeliano. É só a diagnose da Modernidade que Marx ainda pode aceitar até certo ponto. A modernidade, percebe-se uma vez mais, não chega até à própria verdade. O pensamento hegeliano é finalmente a ideologia moderna. E o próprio título do livro A ideologia alemã significa que atrás dessa imagem moderna, hegeliana, ainda está pulsando a potência, a possibilidade, a vida. Para as leituras marxistas, Spinoza aparece por aqui, como vamos ver, como uma possibilidade muito mais inspirativa do que a herança hegeliana. Uma possibilidade mais próxima à imanência da relação entre a produção e a política. A ideologia burguesa esconde, então, essa dominação capitalista sobre a

produção. Romper com a ideologia, chegar até a verdade da imanência é o projeto marxista. Ainda é? Até onde podemos seguir Marx? E como pensar a revitalização do concreto, do imanente em nosso caso? O socialismo não deu certo. Já Trotsky falava que para a classe operária ficou igual trabalhar para o capitalista ou para burocracia e o Estado. A classe operária e a autogestão nunca se afirmaram nos projetos socialistas. O socialismo, neste sentido, ainda não saiu deste fetichismo da produção. Lembro-me quando se falava em favor da União Soviética e da competitividade dela no mercado mundial, neste sentido. O público brasileiro pode testemunhar uma experiência semelhante. O governo anterior falava com todo orgulho que o Brasil vai ser logo a quinta economia do mundo. E daí? Poderíamos nos perguntar. A Suécia não é, por exemplo, a quinta economia no mundo, mas posso imaginar que muitos brasileiros gostariam de viver lá. A esquerda que ainda fica fascinada pela economia e ainda mais pela economia do capitalismo fica longe de articular as alternativas. Marx talvez não seja o pensador da economia. Ou melhor, não é só pensador da economia. É o que Negri quer mostrar. Por isso Marx além de Marx, as leituras do Grundrisse além das leituras do Capital. As interpretações econômicas do Marx criam uma forte reificação e podem ser chamadas estalinistas. Marx do Capital oferece uma interpretação econômica e por isso articule só a classe operária como a subjetividade. Uma perspectiva que Negri quer seguir está por ai. Ficar com Marx e com essa ideia do trabalho, com essa ontologia do social e não seguir as perspectivas onde em lugar do trabalho aparece ação, por exemplo, e as leituras de Habermas. Isso talvez mistifique o social.[346] Então, Marx ainda está desenvolvendo uma perspectiva ontológica do trabalho vivo e não uma articulação economicista do trabalho. Por isso falei que talvez, por aqui, poderíamos repensar o conceito emancipatório de práxis das discussões marxistas ligando-o com o conceito do trabalho vivo. No entanto, o que seria a subjetividade possível por aí? Aqui aparece a questão da política. Quem é, então, o Marx da política do Grundrisse e até onde, de novo, podemos seguir as leituras políticas de Marx? Finalmente, por aqui aparecem os argumentos para entender por que, para Negri, a subjetividade possível hoje não é mais a classe operária ou povo,[347] mas a multidão. Multidão é a nova potência, a nova manifestação do poder constituinte. Não podemos esquecer a reconstrução econômica que ele está fazendo em Marx beyond Marx, para poder avaliar melhor as possibilidades da multidão. Finalmente, o recado marxista vai ser uma unidade irredutível entre a economia e a política. A teoria sobre a mais-valia aponta a uma relação social, a uma relação da exploração. Assim o terreno da análise já fica político,[348] se refere a uma relação inseparável entre a economia e a política em Marx. Assim fica

claro porque o estalinismo prefere uma interpretação econômica de Marx. Essa interpretação deixa o espaço político vazio, preenchido sempre pelos novos poderes comunistas. De novo, no comunismo nunca se realizou a subjetividade constitutiva da classe operária. O poder político sempre ficou com partido ou com uma nova elite comunista. Procurar uma nova relação entre a produção e a política é o projeto para Negri que vai aproximar as pesquisas dele com Spinoza. Mas a pergunta vai ser se neste processo ainda podemos afirmar a subjetividade da classe operária. Ela é ainda a referência no livro Marx beyond Marx. Ela tem que inverter a hegemonia da burguesia articulada com o trabalho imposto e a produção ligada à mais-valia. A nova hegemonia da classe operária é a confrontação com o trabalho em nome de não-trabalho. Em nome de uma produção ligada aos desejos que não recria a dominação. Em nome de uma economia libidinal, diria Lyotard. Seria uma expansão ontológica, fala Negri, dos valores de uso feita pela “intensificação e elevação do valor do labor necessário”.[349] Seria uma afirmação dos múltiplos projetos do trabalho vivo, uma autovalorização dele. O projeto do comunismo é isso. O início de uma sociedade multidimensional. Seria o caminho entre as leis do valor rumo às leis da autovalorização.[350] Assim, além do Marx econômico do Capital e dos Manuscritos a gente encontra o Marx político do Grundrisse. Uma necessidade urgente, pensa Negri. E se é assim, por que o projeto mudou? Por que a discussão sobre o trabalho vivo e a imanência vai para uma articulação da multidão? E o que resta de Marx neste sentido? Seríamos loucos, fala Negri,[351] se hoje nos referíssemos a autogestão, porque ela não significa nada agora. O mundo mudou. Em lugar de uma sociedade industrial temos uma sociedade pós-industrial. A gente não vê mais as fábricas, “não porque a fábrica desapareceu, mas se socializou, e neste sentido tornou-se imaterial…”.[352] A fábrica não é mais o lugar paradigmático da produção. As fábricas eram relacionadas com a revolução industrial. Hoje somos testemunhas da revolução informacional. A fonte do trabalho, pensa Negri, não é mais o capital fixo, máquinas, fábricas e uma quantidade de trabalho. Estamos hoje nos fluxos do trabalho que se organiza, que se mostra criativo, comunicativo, global. Estamos assim no contexto do trabalho imaterial. Por aqui aparecem os motivos para uma releitura crítica do marxismo. O que resta do Marx é talvez só a inspiração, o esforço formidável de propor a ideia de uma subjetividade constitutiva, ou nas palavras de Negri, o esforço de propor o poder constituinte.[353] Nessa nova articulação da produção aparece uma nova possibilidade de pensar a biopolítica. Enquanto Agamben e Foucault percebem a política como o perigo moderno, Negri, com Hardt, vê nela um sentido emancipatório. Em lugar

da sociedade do trabalho da reprodução e do poder estamos na época da bioprodução, da biopolítica. A biopolítica vai ser pensada como a portadora de uma nova subjetividade emancipatória que se chama multidão. A presença de Negri no Fórum Social Mundial significa obviamente a esperança de que se trata de um projeto que pode ser realizado. Cabe a nós somente “acelerar essa potência”.[354] É importante entender aqui a diferença entre o biopoder e a biopolítica. A palavra bios está implícita nos dois conceitos. “Ambos investem a vida social em sua totalidade – donde o prefixo bio em comum –, mas o fazem de formas diferentes. O biopoder situa-se acima da sociedade, transcendente, como uma autoridade soberana, e impõe a sua ordem. A produção biopolítica, em contraste, é imanente à sociedade, criando relações e formas sociais através de formas colaborativas de trabalho”.[355] O biopoder é uma imagem do capitalismo industrial e a biopolítica uma imagem do capitalismo pós-industrial. Enquanto o biopoder articula uma reificação do social, a biopolítica, segundo Hardt e Negri, significa uma abertura para criatividade. É quase uma abertura ontológica. O capitalismo não conhece nenhuma ontologia. É o sistema que assimila a subjetividade constitutiva, o que aconteceu com o movimento operário. Destarte, o sistema acaba por dominar a vida. Podemos ouvir várias diagnoses, neste sentido, sobre a colonização da vida pelo sistema, no capitalismo. A biopolítica, afirma outra possibilidade. Vimos que Negri no livro Marx beyond Marx fala sobre uma expansão ontológica do valor de uso, seguindo as leituras políticas do Marx de Grundrisse. A produção múltipla, que não afirma uma possível subjetividade, traz outra referência ontológica. A multidão deve transformar a resistência “numa forma do poder constituinte, criando as relações e as instituições sociais de uma nova sociedade” dizem Hardt e Negri no Multidão. [356] E colocam: “Ao longo deste livro, temos estudado as bases ontológicas, sociais e políticas do poder constituinte da multidão”.[357] Mas fica aberta a pergunta: o capitalismo, mesmo sendo capitalismo pós-industrial, tem um plano ontológico? Neste ponto, aparecem as dúvidas. A tese, que a gente encontra em Spinoza e Deleuze, de que a política seja possível no plano da imanência, Hardt e Negri erroneamente interpretam, acho, pensando que o capitalismo fosse este plano da imanência. Veja-se que no Império se encontra a tese de que as análises “apontam para uma possibilidade de uma política global de diferença, uma política de fluxo desterritorializado num mundo liso, livre do rígido estriamento de fronteiras estatais”.[358] E pouco depois continuam: “O mercado mundial estabiliza uma verdadeira política da diferença”.[359] Alguém viu este mundo global da diferença? O capital opera no plano da imanência[360] e mesmo o Bill Gates aparece como herói pós-moderno falando de que todos somos iguais no

mundo virtual.[361] Neste contexto muda o próprio conceito da revolução. “Não é que perca as suas características de ruptura radical, mas esta ruptura radical é subordinada, na sua eficácia, às novas regras de constituição ontológica dos sujeitos, à sua potência, que se organizou no processo histórico, à sua organização, que não requer nada além da própria força para ser real”.[362] A pergunta é se essa organização – que poderíamos entender como a hegemonia do trabalho vivo e assim articular a conexão com o trabalho anterior de Negri – se realizou ou não. Os marxistas poderiam dizer que o Negri do Império está traindo o Negri dos escritos sobre Grundrisse. Não se trata, no entanto, da questão da fidelidade. Porque o próprio Negri fala que volta para Grundrisse não por causa da fidelidade, mas por causa do poder deste livro,[363] ou poderíamos dizer por causa da potência que se revela. A sociedade pós-industrial, a revolução informática abrem as possibilidades para criação dos valores sem a mediação do capital. Hoje não é mais o caso de dizer que o capital organiza o trabalho, pois é o trabalho quem se organiza.[364] Assim, o trabalho e o capital não são “os dois polos da mesma relação de apropriação privada, antes representam ontologicamente o cheio e o vazio, a vida e o vampirismo”.[365] É possível pensar o trabalho vivo dentro do capitalismo, fora da mediação feita pelo trabalho abstrato? Finalmente, capitalismo é o primeiro sistema dominado exatamente pelo trabalho abstrato. O império pós-industrial articula as potências da libertação? Porque parece que entrando neste mundo da informática muitas vezes estamos nos sentindo, como Tocqueville, entrando na democracia norte-americana, sentindo a mediocridade e a pouca independência do espírito. Uma linha marxista da discussão poderia questionar a possibilidade dessa independência do trabalho vivo da explícita metafísica do capitalismo. Mas, criticando Negri, estamos talvez caindo num erro marxista que “não permite desenvolver o conceito do trabalho senão dentro do ponto de vista do capital”. [366] Marx do Grundrisse, mesmo sendo ainda a inspiração, finalmente ficou dentro de uma articulação economicista do trabalho. Por isso a única subjetividade que aparece no contexto das discussões de Marx é a classe operária. Marx “não desenvolveu suficientemente o conceito do ‘trabalho vivo’ como força ontológica”.[367] O poder constituinte se manifesta como o trabalho vivo, como a reinvenção da vida e da ontologia. Qual seria, então, uma abertura ontológica, uma “discussão produtiva” com Marx? São as palavras de Heidegger, na “Carta sobre o humanismo”.[368] Podemos nos lembrar disso, mesmo sabendo que Heidegger neste contexto quer articular uma crítica contra Sartre. Para Heidegger, pensar com Marx, significa pensar fora da metafísica, e segundo ele, isso ainda não aconteceu em Sartre.

Sartre só mudou o ponto de partida falando sobre a relação entre a existência e essência, mas ficou dentro dessa relação. A virada (Umkehrung) de uma proposição metafísica ainda fica dentro dela.[369] Por isso, o existencialismo sartriano ainda está dentro da metafísica e não pode articular as possibilidades do humanismo. O existencialismo não é humanismo. E Heidegger tem razão, eu acho. Porque, o que significa a afirmação existencialista “de que estamos no plano onde tem só homens” (ou il y a seulement hommes)? Os homens podem criar também os campos de concentração. O comunismo ainda não rompeu com a rigidez, com a identidade, com a metafísica. Então, temos de se colocar no plano onde principalmente, vai falar Heidegger em francês, existe o ser (ou il y a principalement l´Ètre).[370] A pergunta é se essa virada ontológica pode aparecer dentro do capitalismo. O próprio Heidegger tinha muitas dúvidas sobre isso. Marx, mesmo falando sobre a revolução, articula a necessidade do capitalismo. Assim no contexto do conflito entre os Estados Unidos e o México, Marx vai dizer: “Bakunin censura os americanos por fazerem uma guerra de conquista que é seguramente um golpe duro na teoria fundada na justiça e na humanidade, mas que é conduzida unicamente no interesse da humanidade... A independência de alguns californianos ou texanos espanhóis pode sofrer com isso, a justiça e outros princípios morais podem ser feridos: isso conta diante de tais realidades que são domínio da história universal?”.[371] Essa justificação do imperialismo será objeto das críticas anarquistas. Marx vê a teleologia histórica que o capitalismo está afirmando. Assim reaparece o hegelianismo e o sentido a priori da história.[372] O capitalismo cria as condições para um mundo novo, pensa Marx. O capitalismo prepara um mundo novo, confirmam Negri e Hardt, que só tem que se liberar das formas sociais anteriores.[373] Assim, o capitalismo digital já cria as condições do comunismo. O capitalismo já é comunismo? O próprio Marx não chega até este paradoxo. Eu acho que Negri está consciente dessa impossibilidade. “O capitalismo se define... como a capacidade de transformar a ação do mundo vital em função do sistema”.[374] Quer dizer, o capitalismo nega a potência da vida e a subjetividade. Assim, a subjetividade, quer dizer uma nova forma da produção, ainda é um projeto aberto. Não entendo por que Negri, neste contexto, rejeita o conceito da autogestão[375] que tanto inspirou os marxistas ligados a Grundrisse. Finalmente, a nova autovalorização do trabalho não é a outra palavra para autogestão econômica e política? Finalmente, várias vezes aparecem as ligações entre a multidão e o autogoverno autônomo.[376] O capitalismo só prepara uma transparência da história e as condições da revolução. Mas a revolução é ainda o projeto. O próprio capitalismo não é

revolucionário. Cria os fetichismos e uma forte reificação do social. Isso é Marx. Não acredito que o capitalismo pós-industrial seja outro capitalismo no qual não caiba mais pensarmos com Marx. Com o Marx do Grundrisse, como o próprio Negri pensava no passado. O Marx que também vê que as questões da economia política colocam as perguntas sobre a nossa vida e não só sobre o trabalho. O Marx que também vê o comunismo como uma produção autopoiética. Voltar para Marx e a ideia do trabalho, mas também voltar para a ideia do trabalho vivo anunciado em Grundrisse. O argumento crítico contra Marx seria ainda essa herança hegeliana e o fato de uma forte inclusão da classe operária no sistema. A confrontação com as formas identitárias da cultura obviamente tem que acontecer não só na economia. A questão da imanência não se identifica com a economia, com as formas identitárias da cultura. A economia, pensada como economia capitalista é só a articulação moderna da metafísica. Uma linha diversa também poderia questionar a possibilidade da imanência no capitalismo. Aqui aparece Spinoza para Negri, Spinoza talvez muito mais político do que o próprio Deleuze. Assim no Império se lê que em Deleuze e Guattari “os elementos criativos e a ontologia radical da produção social permanecem insubstanciais e impotentes”,[377] poderíamos dizer, apolíticos. Quando falo de que estamos vivendo num ambiente biopolítico, coloca Negri, quero dizer que a vida é completamente interligada com a política.[378] A interligação entre a produção e a política é um recado de Spinoza. Spinoza afirma a variedade do potencial material sem a necessidade de uma mediação dialética, hegeliana, que pretende restabelecer a identidade. Neste sentido poderia ser muito mais inspirativo para as leituras marxistas e poderia ajudar contra a criação das novas identidades no mundo comunista. A metafísica de Spinoza, pensa Negri, “é a declaração explícita, em todas as dimensões, da irredutibilidade do desenvolvimento das forças produtivas a qualquer ordenamento. Ainda mais ao ordenamento da burguesia”.[379] E um pouco depois: “O pensamento spinozista é apologia da força produtiva”.[380] O divino está por aqui, nessa imanência, nessa constituição do mundo. E o povo dele é a própria multidão.[381] Até hoje a esquerda não entendeu este recado spinozista de que a política não é mais partido, mas a parte do movimento, uma atividade rizomática. A esquerda se fechou, muitas vezes somos testemunhas do medo que ela mostra contra a dinâmica do sistema e a chegada dos imigrantes, por exemplo. Hoje a esquerda fica prisioneira do sistema e das corporações e não representa mais o mundo do trabalho.[382] É obvio que, por exemplo, hoje os sindicatos não articulam outra produção da subjetividade, mas lutam para preservar o trabalho dentro do sistema. A esquerda só fortalece o capitalismo. E teria que articular a

própria hegemonia, que não pensa só a classe operária, mas todos os aspectos da sociedade. Num momento falando sobre o maoísmo, por exemplo, Hardt e Negri disseram que a luta deles, também, teria que superar uma relação conservadora. “Em vez disso, devem transformar-se em lutas biopolíticas voltadas para a transformação da vida social em sua totalidade”.[383] Seria uma democracia radical, porque é a democracia da potência que se confronta com vários tipos da soberania das estruturas do poder no passado. Então, poderíamos fazer um rápido resumo, indicando o monstro comunista, no início. E agora os monstros da biopolítica. Da multidão. Não excluídos. Presentes, mas não criando uma nova metafísica da presença. Os sujeitos de uma nova ontologia dos movimentos que escapam aos conceitos. Os novos monstros. Os sujeitos possíveis de uma ontologia da diferença que o próprio Heidegger não aceitou. Um projeto impossível. Mas, talvez nessa impossibilidade se revele o próprio sentido da possibilidade. Da possibilidade do comunismo, talvez. [335] . II Tessalonicences, 2.4. [336] . II Tessalonicences, 2.6-7. [337] . Cf. Negri, A., Il mostro político. Nuda vita e potenza, in: Fadini, U., Negri, A., Wolfe, Ch., Desiderio del Mostro, Roma, 2001, p. 197.

[338] . Cf. Negri, A., Il mostro político. Nuda vita e potenza, in: Fadini, U., Negri, A., Wolfe, Ch., Desiderio del Mostro, Roma, 2001, 193. [339] . Cf. Negri, A., Il mostro político. Nuda vita e potenza, in: Fadini, U., Negri, A., Wolfe, Ch., Desiderio del Mostro, Roma, 2001, 195. [340] . Cf. Negri, A., Il mostro político. Nuda vita e potenza, in: Fadini, U., Negri, A., Wolfe, Ch., Desiderio del Mostro, Roma, 2001, 184. [341] . Cf. Negri, A., Marx beyond Marx, New York, 1991, p. 80. [342] . Cf. Jappe, A., As aventuras da mercadoria, Lisboa, 2006, p. 110. [343] . Cf. Ryan, M., Epilogue, in Negri, A., Marx beyond Marx, p. 193. [344] . A questão dessa nova hegemonia tem muitos níveis. Para o direito, por exemplo, a questão se coloca também. Sair do poder constituído, onde o direito esta integrado, para instauração de outra perspectiva jurídica. Do poder constituído para o poder constituinte. Alguns motivos de repensar a reflexão jurídica são, por exemplo, muito bem visíveis na obra do Roberto Lyra Filho.

[345] . Hardt, M., Negri, A., Multidão, Rio de Janeiro, 2005, p. 146.

[346] . Cf. Negri, A., Il mostro político. Nuda vita e potenza, p. 208. [347] . Cf. as discussões do Negri sobre Maquiavel, onde o povo aparece ligado ao poder constituinte (Poder constituinte, Rio de Janeiro, 2002, p. 100), com as discussões posteriores sobre a unidade do povo, em Multidão.

[348] . Cf. Negri, A., Marx beyond Marx, p. 61. [349] . Cf. Negri, A., Marx beyond Marx, p. 72. [350] . Cf. Negri, A., Marx beyond Marx, p. 181. [351] . Cf. Negri, A., Goodbye Mr. Socialism, London, 2008. [352] . Lazzarato, M., Negri, A., Trabalho imaterial, Rio de Janeiro, 2001, p. 60. [353] . Negri, A., O poder constituinte, Rio de Janeiro, p. 54. [354] . Negri, A., O poder constituinte, Rio de Janeiro, p. 54, p. 461. [355] . Hardt, M., Negri, A., Multidão, p. 135. [356] . Hardt, M., Negri, A., Multidão, p. 435. [357] . Hardt, M., Negri, A., Multidão, p. 435. [358] . Hardt, M., Negri, A., Império, Rio de Janeiro, 2006, p. 160. [359] . Hardt, M., Negri, A., Império, Rio de Janeiro, 2006, p. 169. [360] . Hardt, M., Negri, A., Império, Rio de Janeiro, 2006, p. 348. [361] . Hardt, M., Negri, A., Império, Rio de Janeiro, 2006, p. 325. [362] . Lazzarato, M., Negri, A., Trabalho imaterial, p. 37-38. [363] . Cf. Negri, A., Marx beyond Marx, p. 17. [364] . Cf. Negri, A., Goodbye Mr. Socialism, p. 213. [365] . Jappe, A., As aventuras da mercadoria, p. 260. [366] . Lazzarato, M., Negri, A., Trabalho imaterial, p. 88. [367] . Lazzarato, M., Negri, A., Trabalho imaterial, p. 88.

[368] . Heidegger, M., Über den Humanismus, Frankfurt, 2000, p. 32. [369] . Heidegger, M., Über den Humanismus, Frankfurt, 2000, p. 20. [370] . Heidegger, M., Über den Humanismus, Frankfurt, 2000, p. 26. [371] . Marx, K., O paneslavismo democrático, citado em Os anarquistas julgam Marx, São Paulo, 2001, p. 71-72.

[372] . Marx, K., O paneslavismo democrático, citado em Os anarquistas julgam Marx, São Paulo, 2001, p. 76.

[373] . Cf. Zizek, S., In Defense of Lost Causes, London, 2008, p. 352. [374] . Cf., Lazzarato, M., Negri, A., Trabalho imaterial, p. 76. [375] . Negri, Goodbye…, p. 139. [376] . Cf., Império, p. 371. [377] . Cf., Império, p. 47. [378] . Cf. Negri, A., Goodbye…, p. 207. [379] . Negri, A., A anomalia selvagem, Rio de Janeiro, 1993, p. 189. [380] . Negri, A., A anomalia selvagem, Rio de Janeiro, 1993, p. 193. [381] . Cf. Negri, A., O poder constituinte… p. 189. [382] . Cf., Negri, A., Goodbuy..., p. 110-113. [383] . Hardt, M., Negri, A., Multidão, p. 169.

EM LUGAR DA CONCLUSÃO Colocamos as dúvidas sobre a possibilidade da ontologia no capitalismo. Capitalismo não é e nem deixa a possibilidade para a ontologia. Assim ficam visíveis as dúvidas sobre a questão da subjetividade. Capitalismo apaga os sujeitos. Por isso, vários autores questionam certa idealização do conceito da multidão em Negri ou da subjetividade pensada como multidão. Parece um conceito idealizado[384] e não um “Outro” realmente confrontado com o sistema, um “Outro” verdadeiro. Temos a multidão e não mais o povo, os trabalhadores, ou proletariado.[385] E podemos encontrar os problemas dentro do Sistema que talvez ainda articulem a possibilidade da classe operária. Ou podemos encontrar os problemas do terceiro mundo, por exemplo, que ainda articulam a possibilidade dos povos... Então voltar, sim, para a subjetividade. Porque o sistema os exclui. O sistema não aceita as condições constitutivas, além do próprio funcionalismo. Apaga com os pressupostos do mundo vital. Assim também podemos entender a questão da colonização do mundo vital no contexto moderno. Procurando ou afirmando essa vida que ainda esta pulsando além do sistema, temos que voltar para todos os aspectos onde ela se manifesta, para não criar as novas culturas identitárias. Dessa maneira, por exemplo, “o sujeito feminino (o gênero) de Rigoberta Menchú é também o sujeito indígena (a etnia), de cor morena (a raça), em terras devastadas (a questão ecológica), sem direitos (exclusão jurídica), sem participação na sociedade civil dominada (o político), pobre (o econômico) camponesa (a classe), analfabeta (a cultura formal), guatemalteca (o país periférico), etc.[386] Voltar para a subjetividade significa voltar para o concreto. Um trabalho urgente nessa época dominada pelo abstrato. Assim, voltar para subjetividade inclui também a afirmação da diferença, as diferenças do concreto, quer dizer inclui a confrontação com a cultura identitária e colonizadora. Por isso o discurso sobre o sujeito, sobre o feminino como fala Dussel, inclui o sujeito indígena, camponesa, analfabeta, pobre… Cada um destes aspectos revela uma das perspectivas da colonização histórica e cultural. O novo mundo comum pode aparecer só nessa resistência, nessa reinvenção possível dos novos poderes constituintes. Neste contexto, Negri fala sobre o poder constituinte no sentido do poder último.[387] Poderíamos até repensar alguns recados platônicos neste mundo fragmentado, ideológico e procurar outra possibilidade da verdade social. Uma verdade além do espetáculo social. Além

dos fragmentos. Só neste poder último, nessa abertura ontológica, nessa nova visibilidade das subjetividades não podem reaparecer novas identidades rígidas. O princípio constituinte vê “do vazio e constitui tudo”.[388] É a dinâmica que reinventa as diferenças e não vive o passado do recado hegeliano. É o grito de que a história ainda não acabou. É o recado da revolução permanente. Não existe a revolução que acabou. Poder constituinte como revolução permanente.[389] O mundo é feito e podemos mudá-lo. É o simples recado deste caminho ontológico. Mas se trata de uma ontologia sem os fundamentos metafísicos e sem os fundamentalismos. O mundo comum, o mundo político poderia ser a reinvenção dessa potência, além do capitalismo. [384] . Boron, A., Imperio & Imperialismo, Buenos Aires, 2004, p. 129. [385] . Boron, A., Imperio & Imperialismo, Buenos Aires, 2004, p. 151. [386] . Dussel, E., Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, 2002, p. 520. [387] . Negri, A., O poder constituinte... p. 20. [388] . Negri, A., O poder constituinte... p. 28. [389] . Negri, A., O poder constituinte... p. 306.

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