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Portuguese Pages 368 [371] Year 2019
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Poder político e classes sociais de Nicos Poulantzas é uma análise marxista sistemática da estrutura jurídico-política típica das modernas sociedades capitalistas, das instituições políticas aí presentes — a começar pela principal delas, que é o Estado
capitalista — e dos processos políticos que se desenvolvem no âmbito dessa estrutura e dessas
2.
instituições ou em contraposição
S O ci ais
a elas. Lançado em 1968, ano das
revoltas estudantil e operária, a originalidade deste livro, o seu
rigor teórico e a importância de
seus conceitos e suas teses para O
pensamento e a prática política da esquerda europeia fizeram com que ele obtivesse grande impacto no mundo intelectual europeu e latino-americano. Na década de 1990, Poder político e classes sociais passou por um eclipse. Atualmente, ele vem sendo reeditado, rediscutido e utilizado como instrumento teórico para a
análise da política contemporânea, reafirmando a fecundidade desse grande tratado de teoria política.
o
umicame UniVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor MarceLo KxoBEL
Coordenadora Geral da Universidade Taresa Dig ZAMBON ATVARS
CISEA CRE Conselho Editorial Presidente MÁRCIA ABREU ANA CAROLINA DE MOURA DeLrIM MACIEL - EUCLIDES DE MESQUITA NETO Márcio BARRETO - MARCOS STEFANI Maria INÊS PertRUCCI ROSA - OsvALDO NovaIS pg OLIVEIRA JR.
RopriGo LANNA FRANCO DA SILVEIRA — VERA NisAKA SOLPERIN!
COLEÇÃO MARX 21 Comissão Editorial ARMANDO
Borro Juntor (coordenador)
ALFREDO SAAD FILHO - EUCLIDES DE MESQUITA NETO João Cantos
Krouri
QUARTIM
DE MORAES
Conselho Consultivo
- MARCO
VANZULL!
ALVARO BIANCHI - ANDRÉIA GALVÃO - ANITA HANDFAS IsaBEL LOUREIRO — LUCIANO CAviNI MARTORANO Luiz EbuaRDO MOTTA = REINALDO CARCANHOLO - Ruy BRAGA
- NICOS
POULANTZAS
PODER POLÍTICO E CLASSES SOCIAIS
TRADUÇÃO Maria Leonor F. R. Loureiro
REVISÃO TÉCNICA
Danilo
E
Di
Enrico Martuscelli
TO
RARAS:
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO SISTEMA
DE BIBLIOTECAS
DA
UNICAMP
DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
Bibliotecária: Maria Lúcia Nery Dutra de Castro — CRB-8º/ 1724
P863p
Poulantzas, Nicos
Poder politico e classes sociais / Nicos Poulantzas; tradução Maria Leonor F.
R. Loureiro. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019.
1, Poder (Ciência política). 2. Classes sociais e política. 3. Burocracia, 4. Elites (Ciências sociais). 1. Loureiro, Maria Leonor F. R. Il. Titulo. coo - 320.1 -323.3 - 302.35 -305.52
ISBN 978-85-268-1488-2
Título original: Pouvoir Politique et Classes Sociales Copyright O Editions François Maspero/ La Découverte, Paris, France, 1972.
Copyright O 2019 by Editora da Unicamp
Direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos.
Printed in Brazil.
Foi feito o depósito legat.
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SUMÁRIO
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA...
7
INTRODUÇÃO...
15
PARTE 1 — QUESTÕES
GERAIS
1— SOBRE O CONCEITO DE POLÍTICO.
39
H — POLÍTICA E CLASSES SOCIAIS...
59
Hi — SOBRE O CONCEITO DE PODER...
101
PARTE 1] — O ESTADO CAPITALISTA
1— O PROBLEMA... H — TIPOLOGIA E TIPO DE ESTADO CAPITALISTA...
123 .
143
RI — O ESTADO ABSOLUTISTA, ESTADO DE TRANSIÇÃO...
159
IV — SOBRE OS MODELOS DA REVOLUÇÃO BURGUESA..
173
PARTE II! — TRAÇOS
FUNDAMENTAIS
DO ESTADO CAPITALISTA
NOTA PRÉVIA
189
1— O ESTADO CAPITALISTA E OS INTERESSES DAS CLASSES DOMINADAS
193
11 — O ESTADO CAPITALISTA E AS IDEOLOGIAS 1H
. 199
O ESTADO CAPITALISTA E A FORÇA.
IV — O ESTADO
CAPITALISTA
PARTE
231
E AS CLASSES
IV — À UNIDADE RELATIVA
DO
235
DOMINANTES
DO PODER
ESTADO
E A AUTONOMIA
CAPITALISTA
1 O PROBLEMA E SUA ENUNCIAÇÃO TEÓRICA PELOS CLÁSSICOS DO MARXISMO...
261
1 — ALGUMAS INTERPRETAÇÕES ERRÔNEAS E SUAS CONSEQUÊNCIAS...
«2H
1 — O ESTADO CAPITALISTA E O CAMPO DA LUTA DE CLASSES
. 283
1Y — O ESTADO CAPITALISTA E AS CLASSES DOMINANTES...
. 305
V — O PROBLEMA NAS FORMAS DE ESTADO E NAS FORMAS DE REGIME: O EXECUTIVO E O LEGISLATIVO ..
PARTE
V — SOBRE
A BUROCRACIA
. 37
E AS
1— O PROBLEMA E AS TEORIAS DAS ELITES
ELITES
. 331
1 À POSIÇÃO MARXISTA E A QUESTÃO DE PERTENCIMENTO DE CLASSE DO APARELHO DE ESTADO. HH — ESTADO CAPITALISTA, TV — A BUROCRACIA
BUROCRATISMO,
E A LUTA DE CLASSES...
. 337 BUROCRACIA.
. 347
PREFÁCIO
À EDIÇÃO
BRASILEIRA Armando Boito Jr.
Poder político e classes sociais de Nicos Poulantzas é um rigoroso e sofisticado tratado de teoria política marxista. A originalidade deste livro está presente já na construção do seu objeto de investigação: o nível jurídico-político do modo de produção capitalista e, particularmente, o tipo capitalista de Estado. O conceito ampliado de modo de produção, concebido não como sinônimo de economia, mas sim como conceito que contempla o todo complexo e articulado de distintas instâncias ou níveis da vida social, esse conceito ampliado é a referência de fundo que permitiu a Poulantzas construir o seu objeto. Foi por estar
de posse de tal inovação conceitual, que ele pôde designar como objeto de investigação a instância ou o nível político do modo de produção capitalista. Até então, a produção da teoria política marxista tinha diante de si o obstáculo epistemológico representado pelo economicismo. É certo que esse obstáculo foi ultrapassado, na prática, pelas análises, contidas principalmente nas obras históricas, de Marx, Engels, Lenin, Gramsci e outros
clássicos. Ocorre que tal obstáculo seguia presente ainda, e produzindo efeitos teóricos negativos, na teoria dos modos de produção. A ampliação desse conceito para além da economia, proposta pela escola althusseriana nos textos fundadores Por Marx e Para ler O Capital, permitiu a Poulantzas desalojar esse obstáculo de seu último reduto e descortinar um campo novo para a reflexão científica do marxismo. Tornaram-se assim possíveis
as perguntas deste livro: Como o nível político apresenta-se no modo de
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
produção capitalista, parte constitutiva e necessária que é desse modo de produção? Como o Estado capitalista permite a reprodução da economia capitalista? Como ele se distingue dos tipos de Estado característicos dos modos de produção pré-capitalistas? Essas são as perguntas fundamentais de Poder político e classes sociais.
1 As contribuições de Poulantzas neste livro são muitas, de tal modo que é difícil distinguir apenas algumas delas. Arriscaríamos, contudo, destacar
duas que nos parecem fundamentais: a análise da instituição do Estado de tipo capitalista e a elaboração do conceito de bloco no poder. O livro mostra que o Estado de tipo capitalista, diferentemente do Estado escravista ou feudal, apresenta-se não como uma instituição de classe responsável pela organização da dominação de classe, mas, sim, como um Estado de “todo o povo”, O Estado capitalista não aparece como aquilo que é,
mas sim como algo que parece ser. Ele é o Estado de “todo o povo”, entidade imaginária, mas muito real no nível da ideologia, criada por esse próprio Estado. As normas e os valores característicos dessa instituição, do seu
direito e da organização do pessoal de Estado produzem efeitos ideológicos imprescindíveis para a reprodução das relações de produção capitalistas. Ou seja, na teoria política marxista, tal qual a desenvolve Nicos Poulantzas, as instituições são importantes e o são inclusive porque estão indissoluvelmente
vinculadas à organização da economia e da sociedade. As normas e os valores do Estado capitalista permitem a reprodução incessante da inserção relativamente pacífica dos trabalhadores no processo de produção/exploração capitalista, ao gerar a ilusão de um contrato entre
partes livres e iguais. Produzem efeitos devastadores sobre a organização ea luta da classe operária, ao dissolvê-la num agregado de indivíduos singulares e ao contrapor, à sua potencial organização coletiva, a realidade do
ilusório coletivo nacional, supostamente homogêneo e dotado de interesse geral comum. O segredo desses complexos efeitos ideológicos funcionais para a reprodução da economia capitalista reside no direito formalmente igualitário, como é o direito capitalista, e no burocratismo, também típico
desse tipo de Estado e organizador da burocracia profissional de Estado. Esse direito e essa burocracia, formalmente aberta à participação de indivíduos egressos de toda e qualquer classe social, fazem a instituição
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Estado capitalista aparecer como se fosse uma instituição pública, e são a condição para a reprodução das relações de produção capitalistas. Essa novidade do livro, além de permitir uma análise mais profunda e rigorosa do funcionamento do Estado e das sociedades onde domina o modo de produção capitalista, tem consequências políticas de longo alcance no que respeita à teoria e à estratégia da transição socialista. Ela significa que não se pode transitar ao socialismo sem se suprimir o direito formalmente igualitário ea abertura formal dos postos de Estado a indivíduos provenientes de qualquer classe social. Na verdade, trata-se de uma fundamentação teórica da tese leninista segundo a qual a transição ao socialismo exige a
destruição do aparelho de Estado burguês. O conceito de bloco no poder trata, por sua vez, não da estrutura jurídi-
co-política ou da instituição Estado capitalista, mas da prática das classes sociais na sociedade e junto ao Estado capitalista. Na análise daquela instituição, Poulantzas partiu, acima de tudo, de conceitos e teses contidos em
O Capital de Marx e no livro Teoria geral do direito e marxismo do jurista soviético Evguiéni Pachukanis, embora tenha modificado substancialmente
pontos importantes dessa última obra. Já na análise do bloco no poder, o material principal são as análises históricas de Marx, Engels, Lenin e Gramsci. Ponto alto nessa elaboração é a leitura detalhada, crítica e criativa que Poulantzas realiza do clássico O 18 Brumário de Louis Bonaparte de
Marx. Poulantzas sistematiza e desenvolve muito daquilo que se encontrava em estado prático em textos como esse e, ao fazê-lo, desenvolve e também retifica os textos clássicos. Os conceitos de fração burguesa, bloco
no poder, hegemonia de fração e força social são alguns dos conceitos fundamentais que extrai, retifica, desenvolve ou produz nessa espécie de garimpo teórico. Analisando a presença política das classes populares, o
autor desenvolve também conceitos inovadores como o de classe-apoio, imprescindível para a compreensão de fenômenos como o populismo e o bonapartismo, tão debatidos no Brasil. A classe capitalista não é concebida, ao contrário do que ocorre em alguns autores marxistas, como um bloco homogêneo sem fissuras. Ela é analisada, regra geral, como um coletivo de classe, dotado de interesse
político geral comum, mas subdividido em frações no que concerne a interesses econômicos de médio prazo. Atraídos por esses dois polos, o interesse de classe e o interesse de fração, os diferentes segmentos da
classe capitalista podem realizar movimentos surpreendentes e até con-
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
traditórios. O bloco no poder é concebido, por sua vez, como a unidade,
às vezes instável, dessas frações em conflito pelo controle da política econômica, social e externa do Estado. A fração que logra firmar-se na posição de controle estabelece a sua hegemonia no interior do bloco no poder. A complexidade oriunda do entrecruzamento dos diversos siste-
mas de fracionamento da burguesia — porte do capital, origem do capital, inserção nas diferentes fases do processo de acumulação etc. -, a com-
posição e a correlação de forças entre as frações que integram o bloco, as relações variadas de tais frações com diferentes classes populares,
todo esse conjunto de vetores cria um jogo político muito complexo que o dispositivo conceitual de Poulantzas permite deslindar. Estamos longe
da oposição simples e simplificada entre a classe capitalista e a classe operária e é do que precisamos para a análise das conjunturas políticas. A obra de Poulantzas deixa entrever que a complexidade é ainda maior na medida em que as frações burguesas e demais forças sociais em presença
não agem por si sós no processo político nem se encontram imunes à pressão popular. A burocracia de Estado tem um papel ativo na organização da hegemonia de fração, podendo, inclusive, impor sacrifícios à fração hegemônica na busca da manutenção da unidade e da estabilidade do bloco no poder. Poulantzas insiste muito, e essa é uma constante de suas reflexões
teóricas, na crítica à concepção do Estado como instrumento passivo da classe capitalista ou de uma de suas frações. O Estado é, simultaneamente,
arena e ator no conflito de classes. Dentro da correlação de forças dada, é papel da burocracia de Estado e dos políticos profissionais da burguesia definirem uma estratégia viável de desenvolvimento capitalista. Está aberta a possibilidade de conflitos entre o Estado e as frações presentes no bloco no poder, inclusive a fração hegemônica. Até porque, embora excluídas do bloco no poder, as classes populares, no modo de produção capitalista, se fazem, diferentemente do que ocorria nos modos de produção pré-capitalistas, constantemente presentes no processo político, obrigando o Estado
a procurar, por intermédio de concessões, aquilo que Poulantzas denomina “um equilíbrio instável de compromisso” entre as forças em presença. Destoando ainda de importantes autores marxistas, Poulantzas toma em consideração a estrutura dos regimes políticos e dos sistemas partidários como componentes fundamentais do processo político. Aqui temos, também, outra de suas contribuições específicas para o desenvolvimento da teoria política marxista: 19
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
2 Característicos do método de trabalho teórico de Poulantzas são o estudo e à consideração das obras de teoria política produzidas fora do campo da teoria marxista. Poder político e classes sociais é um tratado cosmopolita, contempla as obras e contribuições publicadas nas principais línguas europeias
e produzidas a partir de problemáticas as mais variadas: weberiana, elitista, funcionalista, estruturalista, institucionalista e outras. Assim procedendo, longe de introduzir uma novidade, tem, na verdade, o mérito de reatar com
a prática teórica dos clássicos do marxismo que não deixavam de analisar e reaproveitar, quando necessário e possível, obras inovadoras pertencentes a outros campos teóricos — recorde-se a apropriação/retificação de Morgan por Engeis ou de Hobson por Lenin. Assim, nas notas de rodapé de Poder político e classes sociais, é oferecido ao leitor um retrato do estado da arte da ciência política acadêmica das décadas de 1940, 1950 e 1960. A leitura crítica
da politologia em línguas inglesa, alemã, francesa e italiana efetuada por Poulantzas é um exemplo de trabalho escrupuloso, como deve ser o trabalho científico, seja para rejeitar conceitos e teses ou para reaproveitá-los, com sofisticadas retificações, na problemática marxista e na sua teoria política.
3 O trabalho de Nicos Poulantzas teve grande repercussão na Europa, nos
Estados Unidos e na América Latina. Após um período de eclipse parcial, essa obra volta a ser debatida e utilizada nessas regiões. No Brasil, um local destacado de estudo, debate e aplicação do dispositivo conceitual desenvolvido por Poulantzas tem sido a Unicamp. Diversos pesquisadores que trabalham ou trabalharam nessa universidade ou que nela foram formados têm utilizado os conceitos desenvolvidos por Nicos Poulantzas na obra que ora apresentamos para analisar o Estado brasileiro e o processo político nacional em diferentes períodos da nossa história. Outros pesquisadores em outras instituições e regiões do país também têm recorrido, e crescentemente, à obra Poder político e classes sociais. O resultado é que temos, hoje, pesquisas e livros, inspirados nos referidos conceitos de Poulantzas, analisando períodos
e questões cruciais da história brasileira: o modo de produção escravista no período imperial, a revolução burguesa e a formação do Estado capitalista, as
!
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
classes dominantes e a hegemonia na República Velha, a Revolução de 1930, as classes dominantes no período de 1930-1964, as crises políticas desse período, a ideologia nacional-desenvolvimentista, os movimentos sociais, o bloco no poder e o regime de ditadura militar, bem como os conflitos de classe e as crises políticas na presente quadra da história brasileira onde
tem vigência o modelo capitalista neoliberal. Também inspiradas na obra de Poulantzas, já surgem análises das relações internacionais e da política
externa do Estado brasileiro. Nesses trabalhos, os conceitos poulantzianos têm se revelado de grande valor para elucidar os processos políticos con-
cretos e para esclarecer questões polêmicas da história política do Brasil. A originalidade conceitual da obra de Poulantzas tem ensejado, como era de esperar, teses originais sobre a política brasileira.
4 Poder político e classes sociais ocupa um lugar especial na história intelectual de Nicos Poulantzas. O livro, publicado em 1968, teve ampla repercussão e sucessivas edições num curto espaço de tempo. Nos anos
subsequentes, Poulantzas publicou Fascismo e ditadura (1970), As classes sociais no capitalismo de hoje (1974), 4 crise das ditaduras — Portugal, Grécia e Espanha, e, dez anos após o livro que estamos apresentando, Poulantzas publicou, em 1978, Estado, poder e socialismo. Nesse último livro, ele abandonou o conceito de Estado da sua obra anterior, particularmente a
tese segundo a qual o Estado capitalista é uma instituição dotada de normas e valores característicos que correspondem, objetiva e necessariamente, às exigências da reprodução das relações de produção capitalistas. O conceito de Estado desenvolvido em Poder político e classes sociais é, portanto, um dos conceitos de Estado presentes no conjunto da obra de Poulantzas, não o único. No plano teórico, a mudança indicada acima significou também
o abandono da tese segundo a qual o Estado capitalista é uma instituição material que impõe limites à atuação dos agentes que a ocupam. Em Es-
tado, poder e socialismo, Poulantzas lançou a ideia de que o Estado seria a condensação da relação de forças entre as classes sociais em presença, dissolvendo assim a ideia de instituição limitadora, e colocando no seu lugar uma instituição dotada, agora, de maleabilidade ilimitada e cuja natureza de classe alterar-se-ia — é o que se deve deduzir — em conformidade com as alterações ocorridas na referida relação. 12
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Do ponto de vista político, e no que respeita particularmente à questão da transição socialista, Poulantzas se deslocou de uma posição teórica e política próxima do leninismo para uma posição próxima à do eurocomu-
nismo. Poulantzas, embora de origem grega, era radicado na França, Na conjuntura de final da década de 1970, a esquerda francesa organizava e debatia a aliança do Partido Socialista com o Partido Comunista Francês
em torno do Programa Comum e da candidatura de François Mitterrand à Presidência da República. Socialistas e comunistas sugeriam a viabilidade de um caminho constitucional, parlamentar e pacífico ao socialismo. Com o seu novo conceito de Estado, Poulantzas dava suporte a essa concepção
de transição. Passou então a ser visto como um intelectual da ala esquerda do eurocomunismo — ala esquerda porque Poulantzas seguia insistindo na
necessidade da mobilização operária e popular contra aqueles que sugeriam o confinamento da luta socialista na instituição parlamentar. Essa mudança
de posição teórica e política teve, inclusive, repercussão negativa junto ao seu círculo de colaboradores e auxiliares no trabalho acadêmico, posto que alguns desses colaboradores converteram-se em críticos do antigo mestre.
A mudança teórica e política empreendida por Nicos Poulantzas significou, nanossa avaliação, uma perda do rigor e da riqueza de sua contribuição para a teoria política marxista, mas este não é o lugar para aprofundarmos essa discussão, sem dúvida muito complexa. O que eu quis fazer foi indicar tal mudança ao leitor com o objetivo de informá-lo. Observação: A tradução publicada no Brasil pela fora de catálogo. Aliás, inclusive a supressão de
que ora publicamos é nova. Difere muito daquela Editora Martins Fontes em 1971 e que se encontra na tradução de 1971 notamos vários problemas, algumas páginas do texto original.
13
INTRODUÇÃO
1) O marxismo é constituído por duas disciplinas unidas, mas distintas, distinção que se fundamenta na diferença de seu objeto: o materialismo
dialético e o materialismo histórico.! O materialismo histórico — ou ciência da história — tem por objeto o conceito de história, mediante o estudo dos diversos modos de produção e formações sociais, de sua estrutura, de sua constituição e de seu funcionamento, bem como das formas de transição de uma formação social para outra.
O materialismo dialético - ou filosofia marxista — tem por objeto próprio a produção dos conhecimentos, ou seja, a estrutura e o funcionamento do processo de pensamento. A rigor, o materialismo dialético tem por objeto a teoria da história da produção científica. Com efeito, se o materialismo histórico fundou, num mesmo movimento teórico, o materialismo
dialético como disciplina distinta, é porque a constituição de uma ciência da história, ou seja, de uma ciência que define seu objeto como constituição. do conceito de história — materialismo histórico —, conduziu à definição de uma teoria da ciência, que compreende a história como parte constituinte
de seu próprio objeto. Essas duas disciplinas são distintas; existem, com efeito, interpretações do marxismo que reduzem uma disciplina à outra. Quer o materialismo dialético ao materialismo histórico — é o caso típico das interpretações historicistas, tais como as do jovem Lukács, de Korsch etc.,
para as quais o marxismo é uma antropologia histórica, sendo a história 15
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
uma categoria originária e fundadora e não um conceito a construir. A reflexão das estruturas, à “tomada de consciência de seu sentido”, é
função, por uma interiorização mediadora, dessas mesmas estruturas —, quer o materialismo histórico ao materialismo dialético -- trata-se, nesse caso, das interpretações positivistas-empiricistas, que diluem o objeto próprio do materialismo histórico subsumindo todo objeto histórico na mesma lei “abstrata”, universalmente válida, “modelo” que regula toda “concretização” histórica. O materialismo histórico, como Marx mostrou na Introdução de 57,
no Prefácio à contribuição à crítica da economia política e em O capital, possui uma teoria geral definindo conceitos que comandam todo o seu
campo de investigação (conceitos de modo de produção, de formação social, de apropriação real e de propriedade, de combinação, de ideologia, de política, de conjuntura, de transição). Esses conceitos permitem-lhe definir o conceito de seu objeto: o conceito de história. O objeto do materialismo histórico é o estudo das diversas estruturas e práticas ligadas e distintas (economia, política, ideologia), cuja combinação constitui um modo de produção e uma formação social: podem-se caracterizar essas teorias como teorias regionais. O materialismo histórico compreende igualmente teorias particulares (teorias dos modos de produção escravista, feudal,
capitalista etc.), cuja legitimidade está fundamentada na diversidade das combinações das estruturas e práticas, que definem modos de produção e formações sociais distintas. Essa ordem que ainda é apenas a de uma enumeração será modificada e fundamentada a seguir. Sabe-se que as duas proposições fundamentais do materialismo (dialético e histórico) são as seguintes: a) A distinção dos processos reais e dos processos de pensamento, do ser e do conhecimento. b)
O primado do ser sobre o pensamento, do real sobre o seu conheci-
mento. Se a segunda proposição é bem conhecida, é preciso insistir na primeira: aunidade dos dois processos — do processo real e do processo de pensamento — está fundada na sua distinção. Assim, o trabalho teórico, seja qual for seu grau de abstração, é sempre
um trabalho referente aos processos reais. No entanto, esse trabalho que produz conhecimentos situa-se inteiramente no processo de pensamento: 16
INTRODUÇÃO
não existem conceitos mais reais do que outros. O trabalho teórico parte de uma matéria-prima composta não pelo real-concreto, mas por informações, ou noções etc., sobre esse real, e trata-a usando certos instrumentos conceituais, trabalho cujo resultado é o conhecimento de um objeto.
Pode-se dizer que existem somente, no sentido rigoroso do termo, os objetos reais, concretos e singulares. O processo de pensamento tem por fim último o conhecimento desses objetos: a França ou a Inglaterra num
dado momento do seu desenvolvimento. O conhecimento desses objetos não os supõe assim, no ponto de partida, na matéria-prima, visto ser ele precisamente, como conhecimento concreto de um objeto concreto,
o resultado de um processo que Marx designa pelos termos “síntese de múltiplas determinações”. Por outro lado, o processo de pensamento, se tem por objetivo final e como razão de ser o conhecimento dos objetos reais-concretos, nem sempre se refere a esses objetos: pode referir-se igualmente a objetos que se podem designar como abstratos-formais, que não existem no sentido rigoroso do termo, mas que são a condição do conhecimento dos objetos reais-concretos: é o caso, por exemplo, do modo de produção. De acordo com seu lugar rigoroso no processo de pensamento e o objeto
de pensamento ao qual se referem,? podem-se distinguir os diversos conceitos segundo seu grau de abstração, dos mais pobres aos mais elaborados e mais ricos em determinações teóricas. Os coriceitos mais concretos, aqueles que conduzem
ao conhecimento de uma formação social num
momento determinado do seu desenvolvimento, não são, como tampouco
o são os objetos reais-concretos, a matéria-prima do processo de pensamento; eles também não são deduzidos dos conceitos mais abstratos, ou subsumidos nestes últimos, acrescentando à sua generalidade uma simples particularidade. Eles são o resultado de um trabalho de elaboração teórica que, operando sobre informações, noções etc., por meio dos conceitos mais abstratos, tem como efeito a produção dos conceitos mais concretos . conduzindo ao conhecimento dos objetos reais, concretos e singulares. Tomemos como exemplo dois conceitos fundamentais do materialismo
histórico que ilustram bem a distinção entre objetos formais-abstratos e objetos reais-concretos, os conceitos de modo de produção e de formação social. Por modo de produção designar-se-á não o que geralmente se indica
como o econômico, as relações de produção em sentido estrito, mas uma combinação
específica de diversas estruturas e práticas que aparecem
como outras tantas instâncias ou níveis, em suma, como outras tantas es17
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
truturas regionais daquele modo. Um modo de produção, como diz Engeis de maneira esquemática, compreende diversos níveis ou instâncias, o eco-
nômico, o político, o ideológico e o teórico, entendendo-se que se trata de um esquema indicativo e que se pode operar uma divisão mais completa. O tipo de unidade que caracteriza um modo de produção é o de um todo complexo com dominância, em última instância, do econômico; dominância
para a qual se reservará o termo determinação. Esse tipo de relações entre as instâncias distingue-se daquele apresentado por determinadas interpretações do marxismo. Por exemplo, não se trata de uma totalidade circular
e expressiva, baseada numa instância central-sujeito, categoria fundadora das origens e-do princípio de gênese, da qual as outras instâncias, partes totais, não constituiriam senão a expressão fenomênica. Também não se trata de relações de simples analogia ou correlação de instâncias externas uma em relação à outra. Em suma, não se trata nem de uma causalidade linear, nem de uma mediação expressiva, tampouco de uma correlação
analógica. Trata-se de um tipo de relação, no interior da qual a estrutura com determinação do todo comanda a constituição mesma — a natureza
— das estruturas regionais, designando-lhes seu lugar e distribuindo-lhes funções: as relações que constituem assim cada nível jamais são simples, mas sobredeterminadas pelas relações dos outros níveis. Ainda mais: a determinação em última instância da estrutura do todo pelo econômico não significa que o econômico aí detenha sempre o papel
dominante. Se todo modo de econômico só qual instância
a unidade que é a estrutura com dominância implica que produção possui um nível ou uma instância dominante, o é de fato determinante na medida em que atribui a tal ou o papel dominante, ou seja, na medida em que regula o
deslocamento de dominância devido à descentralização das instâncias. Assim, Marx nos indica como, no modo de produção feudal, é a ideo-
logia — na sua forma religiosa — que detém o papel dominante, o que é rigorosamente determinado pelo funcionamento do econômico nesse modo. O que distingue então um modo de produção de outro, e que, por
conseguinte, especifica um modo de produção, é essa forma particular de articulação que seus níveis mantêm entre si: é o que designaremos doravante pelo termo matriz de um modo
de produção. Dito de outro
modo, definir rigorosamente um modo de produção consiste em descobrir de que maneira particular se refiete, no interior deste, a determinação em última instância pelo econômico, reflexão que delimita o índice de dominância e de sobredeterminação desse modo de produção. 18
H
INTRODUÇÃO
O modo de produção constitui um objeto abstrato-formal que não existe, no sentido rigoroso do termo, na realidade. Os modos de produ-
ção capitalista, feudal, escravista constituem igualmente objetos abstratos-formais, pois também não possuem essa existência. De fato, existe
somente uma formação social historicamente determinada, ou seja, um todo social - no sentido mais amplo — num momento
de sua existência
histórica: a França de Louis Bonaparte, a Inglaterra da revolução industrial. Mas uma formação social, objeto real-concreto, sempre original
porque singular, apresenta, como Lenin mostrou no Desenvolvimento do capitalismo na Rússia, uma combinação particular, uma sobreposição
específica de vários modos de produção “puros”. É assim que a Alemanha de Bismarck se caracteriza por uma combinação específica dos modos de produção capitalista, feudal e patriarcal, da qual só a combinação existe no sentido rigoroso do termo; existe só uma formação social historicamente determinada como objeto singular.
A formação social constitui ela própria uma unidade complexa com dominância de um certo modo de produção sobre os outros que a compõem. Trata-se de uma formação social historicamente determinada por um modo de produção dado: a Alemanha de Bismarck é uma formação social capitalista, ou seja, dominada pelo modo de produção capitalista.
A dominância de um modo de produção sobre os outros numa formação social faz com que a matriz desse modo de produção, a saber, a reflexão particular da determinação (em última instância, pelo econômico) que
a especifica, delimite o conjunto dessa formação. Nesse sentido, uma formação social historicamente determinada é especificada por uma articulação particular — por um índice de dominância e de sobredeterminação — dos seus diversos níveis ou instâncias (econômico, político, ideológico e teórico), que é, regra geral, levando em conta as defasagens que se encontrarão, a do modo de produção dominante. Por exemplo, numa formação social dominada pelo modo
de produção capitalista, o”
papel dominante é desempenhado, regra geral, pelo econômico, o que é apenas o efeito da dominância, nessa formação social, desse modo de
produção, ele mesmo caracterizado, em sua “pureza”, pelo papel dominante que o econômico desempenha. 2) Estes dados são essenciais para compreender, por um lado, a operação de
constituição de uma estrutura regional como objeto de ciência; por outro lado, a ordem lógica da elaboração científica, a saber, a ordem necessária 19
PODER POLÍTICO E CLASSES SOCIAIS
que vincula legitimamente os diversos conceitos, de acordo com o lugar que ocupam no processo de pensamento. Com efeito, este ensaio tem por objeto o político, mais particularmente a superestrutura política do Estado no modo de produção capitalista, ou seja, a produção do conceito dessa região nesse modo, e a produção de conceitos mais concretos referentes
ao político nas formações sociais capitalistas. O método que será seguido fundamenta-se na teoria exposta. A teoria geral do materialismo histórico? define um tipo geral de relações entre instâncias distintas e unidas — o econômico, o político, o
ideológico; define assim, no seu próprio nível, e em relação necessária com seus conceitos de modo de produção, de formação social, de estrutura com dominante etc., conceitos relativamente abstratos dessas instâncias.
A rigor, trata-se, nesse caso, de conceitos circunscrevendo lugares formais atribuídos a toda estrutura social possível. Trata-se, por exemplo, do conceito mais abstrato de político, funcionando em todo o campo de investigação da teoria geral do materialismo histórico, a saber, nos modos
de produção e formações sociais em geral, e mais particularmente divididos em classes. É aqui que encontra seu justo lugar teórico o problema da relação do político e da história, conceito cuja construção é o objeto
próprio do materialismo histórico. No entanto, a teoria regional do político não pode passar aos conceitos mais ricos em determinações teóricas a não ser localizando seu objeto num dado modo de produção, Segundo os princípios que nos conduziram
à construção do conceito de modo de produção, uma instância regional — neste caso, o político — pode constituir um objeto de teoria regional, na medida em que ela é “recortada” num modo de produção dado. Sua constituição em objeto de ciência, ou seja, a construção de seu próprio conceito, depende não da sua natureza, mas do seu lugar e da sua função
na combinação particular que especifica esse modo de produção. Pode-se dizer que essa instância, assim localizada, ocupa o lugar designado formalmente ao político pelo seu conceito abstrato, que depende da teoria geral.
Mais particularmente, é a articulação das instâncias, própria desse modo de produção, que define a extensão e os limites dessa instância regional, designando à teoria regional correspondente o seu domínio. O econômico,
o político, o ideológico não constituem essências prévias, que se inserem posteriormente como relações externas, de acordo com o esquema ambíguo
— se for tomado ao pé da letra — da base e da superesirutura. A articulação própria à estrutura do todo de um modo de produção comanda a consti20
INTRODUÇÃO
tuição das instâncias regionais. Em suma, construir o conceito do objeto da ciência política, passando das determinações teóricas mais pobres às determinações teóricas mais ricas, supõe a definição rigorosa do político como nível, instância ou região de um modo de produção dado. É aqui que se opera a junção, no materialismo histórico, entre o que se definiu como teorias regionais, das quais faz parte a teoria do político, e teorias particulares, ou seja, as teorias dos diversos modos de produção. Essa junção não é um efeito do acaso, ela se opera segundo uma ordem legítima
que é a do processo de pensamento: a teoria regional do político no modo de produção capitalista pressupõe a teoria particular desse modo de produção.
O lugar designado ao político no modo de produção capitalista depende da teoria particular desse modo — de seu tipo específico de articulação, de seu índice de dominância e de sobredeterminação —, tal como exposto por Marx em O capital. A teoria particular do modo de produção capitalista possui seus conceitos próprios, que funcionam no conjunto do campo de sua investigação, e comandam assim a produção dos conceitos próprios da teoria regional do político desse modo de produção. . No entanto, ao mesmo tempo o modo de produção capitalista e o político nesse modo, por exemplo, o Estado capitalista ou as formas políticas de luta de classe nesse modo, constituem objetos abstratos-formais, visto que existem somente, no sentido rigoroso do termo, os Estados de formações
capitalistas historicamente determinadas. O processo de pensamento tem finalmente como razão de ser a produção dos conceitos mais concretos, ou seja, os mais ricos em determinações teóricas, os quais permitem o conhecimento dos objetos reais, concretos e singulares, constitutivos de cada
formação social sempre original. Essa ordem lógica, que dos conceitos mais abstratos conduz aos conceitos mais concretos, vai dos conceitos da teoria
geral do materialismo histórico âqueles que permitem proceder à análise concreta de uma situação concreta, segundo a expressão de Lenin.
3) Convém igualmente levar em consideração os problemas relativos às informações, noções etc., que constituem a matéria-prima das diversas etapas do processo teórico seguido neste texto, por um lado, e relativos ao estatuto
dos textos dos clássicos do marxismo referentes ao político, por outro lado. No que se refere à matéria-prima, foi-se procurá-la onde ela se encontra: nos textos dos clássicos do marxismo, nos textos políticos do movimento operário, e nas obras contemporâneas de ciência política. Foi feita, neste último caso, uma primeira escolha, segundo o grau de seriedade dessas 21
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obras; é preciso dizer que o caráter marxista ou não marxista dessas obras de modo algum constitui — no estado atual dos estudos que tomam o político como objeto, e no que se refere ao seu exame como matéria-prima de minha pesquisa — um critério pertinente de sua seriedade ou não seriedade. Obras de ciência política, relacionadas mais particularmente ao Estado capitalista, de língua francesa inicialmente: estando esta ciência relativamente pouco desenvolvida na França, recorreu-se com frequência a obras
de língua inglesa - inglesas ou americanas -- e de lingua alemã, Obras relativamente desconhecidas na França: é conhecido o provincianismo característico da vida intelectual francesa, do qual uma das consequências, e
não a menor, consiste em muitas vezes arrombar portas abertas, ou seja, em crer serenamente na originalidade de uma produção teórica, quando esta se encontra já muito mais elaborada em autores estrangeiros. No entanto, essas obras foram levadas em consideração mediante um trabalho crítico acerca de seu método e de sua teoria, frequentemente implicita, que as sustenta. Além disso, essas obras contêm às vezes, no estado de elementos científicos num discurso ideológico, conceitos teóricos autênticos que esse
trabalho crítico nos permitiu depurar. Quanto aos textos dos clássicos do marxismo, do ponto de vista de
seu tratamento como informações relacionadas mais particularmente ao Estado capitalista, foi também necessário completá-los e submetê-los a
um trabalho crítico particular. Considerando o caráter não sistemático desses textos, as informações que eles contêm revelam-se por vezes parciais, ou mesmo
inexatas, à luz das informações — históricas, políticas
— de que se dispõe atualmente. A segunda série de problemas refere-se aos textos dos clássicos do marxismo, vide os textos de Marx, Engels, Lenin ou Gramsci relativos ao
tratamento propriamente teórico do político. Com efeito, é preciso primeiro constatar, e esta é uma observação de ordem geral, que estes não trataram especificamente, no nível da sistematicidade teórica, a região do político. Em outras palavras, absorvidos no exercício direto de sua própria prática
política, não fizeram explicitamente a sua teoria, no sentido rigoroso do termo. O que finalmente se encontra em suas obras é, quer um corpo ordenado de conceitos no “estado prático”, a saber, presentes no discurso e
destinados, por sua função, a dirigir diretamente a prática política numa conjuntura concreta, mas não teoricamente elaborados; quer elementos de
conhecimento teórico da prática política e da superestrutura do Estado, ou seja, conceitos elaborados, mas não inseridos num discurso teórico 22
INTRODUÇÃO
sistemático; quer, enfim, uma concepção implícita do político em geral na problemática marxista, concepção que sustenta, com grande rigor, a produção desses conceitos, mas com os riscos inevitáveis que contém todo pensamento não contemporâneo de si mesmo — isto é, que não é sistema-
ticamente explícito em seus princípios. Esse estado de coisas, que aqui se trata apenas de constatar, se refere à
ordem real do desenvolvimento — de fato — do materialismo histórico, que não se deve confundir com a ordem lógica— de direito — do processo teórico que acabamos de expor; ele acarreta grandes dificuldades, relativas ao estatuto
dos textos que serão levados em consideração.
a) A primeira dificuldade diz respeito à localização da problemática
original do marxismo nas obras de Marx e Engels. Essa proble-
mática, que é um corte em relação à problemática das obras de juventude de Marx, desenha-se a partir d'Á ideologia alemã, texto de corte que contém ainda inúmeras ambiguidades. Esse corte significa que Marx se tornou então marxista. Por conseguinte, não se levará absolutamente em consideração o que se convencionou chamar obras de juventude de Marx, exceto a título de comparação
crítica, ou seja, sobretudo como ponto de referência para seguir a pista das “sobrevivências” ideológicas da problemática de juventude nas obras de maturidade. Isso é particularmente importante para
a ciência política marxista, pois sabe-se que as obras de juventude têm como eixo principal a teoria política. “Sobrevivências”, dissemos nós, mas o termo é falacioso: de fato, as noções das obras de juventude que se encontram nas obras de maturidade tomam, neste novo contexto, um sentido diferente, quer como pontos de referência de problemas novos; quer como simples palavras encobrindo abusivamente uma maneira nova de colocar as questões; quer como obstáculos à produção de conceitos novos: funcionamento este que. trataremos de elucidar. Além disso, a localização da problemática
assume importância também para outros autores, especialmente Gramsci, cujas obras, apesar dos cortes que nelas se encontram, ma-
b)
nifestam uma permanência particular da problemática historicista. Consideremos agora a obra teórica principal do marxismo, que é O capital. O que se pode tirar dela, no que se refere, mais particular mente, ao estudo do político, principalmente do Estado capitalista?
De fato, O capital contém — entre outros, mas limito-me ao que 23
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nos interessa principalmente aqui —, por um lado, um tratamento científico do modo de produção capitalista, da articulação e da combinação — da matriz — das instâncias que o especificam e, por outro lado, um tratamento teórico sistemático da região econômica
desse modo de produção. E isso não porque, como se acreditou por muito tempo, nada de importante ocorresse nas outras regiões e seu exame fosse secundário, mas porque, como se verá em breve, esse
modo de produção é especificado por uma autonomia característica de suas instâncias, passíveis de um tratamento científico particular,
e porque o econômico detém nesse modo, além da determinação em última instância; o papel dominante. Assim, as outras instâncias — o
político, o ideológico — estão mesmo presentes em O capital — que não é, nesse sentido, uma obra “exclusivamente” econômica —, mas
indiretamente, ou seja, por seus efeitos na região econômica. Como não se encontra em O capital uma teoria sistemática da ideologia no modo de produção capitalista - não podendo as observações sobre
o fetichismo capitalista pretenderem esse título —, também não se encontra uma teoria do político. Essa presença indireta do político em O capital nos será muito útil, mas não poderá nos levar muito
longe. Ela se encontra simultaneamente nos desenvolvimentos teóricos propriamente ditos dºO capital, e nos exemplos concretos que
Marx traz a título de ilustração desses desenvolvimentos: ver as passagens referentes ao papel do Estado na acumulação primitiva do capital ou na legislação de fábricas na Inglaterra. Essas observações
constituem ilustrações da presença indireta do político no econômico — ou seja, da teoria particular do modo de produção capitalista (que se designará doravante pelas iniciais M.P.C.) —, e não estão destinadas a produzir conceitos mais concretos para conhecimentos das formações sociais — como é o caso n'O 18 Brumário. Dispõe-se, em seguida, de uma série de textos que abordam, parcial ou inteiramente, o objeto da ciência política na sua forma abstrata-
-formal -- quer o Estado em geral, quer a luta de classes em geral, quer o Estado capitalista em geral —, tais como a Crítica do programa de Gotha ou À guerra civil na França de Marx, o Anti-Dilhring de
Engels, O Estado e a Revolução de Lenin, as Notas sobre Maquiavel de Gramsci. No entanto, esses textos são, principalmente, textos de
luta ideológica. Foram concebidos como respostas urgentes a ataques ou a deformações da teoria marxista: seus autores foram, por isso,
24
INTRODUÇÃO
forçados muitas vezes a se colocar no terreno ideológico dos textos a refutar. Esses textos contêm frequentemente conceitos autênticos,
embora obliterados por sua inserção na ideologia, e que só podem ser descobertos mediante todo um trabalho crítico. d)
Vejamos enfim os textos políticos propriamente ditos. Como se evi-
dencia do que foi dito anteriormente, seu estatuto é muito complexo. Eles abordam, em princípio, objetos reais-concretos, ou seja, formações sociais historicamente determinadas, por exemplo, a França, a Alemanha e a Inglaterra para Marx e Engels, a Rússia para Lenin, a Itália para Gramsci, num momento determinado do seu desenvolvimento. Mais particularmente, esses textos contêm uma “análise concreta de uma situação concreta”, principalmente da conjuntura
dessas formações. Nesse sentido, contêm efetivamente toda uma série de conceitos muito concretos referentes ao conhecimento dessa conjuntura. Não obstante, isso não é tudo: devido à ausência de obras
teóricas sistemáticas nessa área, eles abordam ao mesmo tempo, numa mesma exposição discursiva não explicitada e analisada, objetos abstratos-formais, e dependem de uma concepção do político na teoria geral, e de uma teoria regional do político no modo de produção capitalista. Esse fato indiscutível é muito importante: essas obras políticas contêm, com efeito, até os conceitos mais abstratos, mas
quer no “estado prático”, ou seja, numa forma que não é teoricamente elaborada, quer numa forma mais ou menos elaborada, mas no estado de elementos, isto é, inseridos numa ordem discursiva de exposição
que não é a sua, na ordem lógica da pesquisa. Damo-nos então conta dos problemas difíceis colocados por esses textos devido ao seu estatuto. Portanto, é preciso lê-los colocando as questões pertinentes na ordem teórica do processo de pensamento definido anterior mente. Dito de outro modo, trata-se de recolocar, por uma elaboração — e não por uma simples extração —, os diversos conceitos contidos nesses textos
no lugar que lhes cabe de direito no processo de pensamento, processo que pode definir rigorosamente seu grau de abstração, ou seja, sua extensão €
seus limites precisos: ver-se-á assim às vezes que seu campo não é aquele que seus autores acreditavam designar-lhes. Aliás, é evidente que, por esse trabalho, esses conceitos sofrerão transformações necessárias. Em suma, para dar alguns exemplos, trataremos de descobrir em que medida certos
conceitos, surgidos no estudo do político de uma formação social capi25
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talista concreta, funcionam de fato — devidamente transformados ou não
— no campo do político no modo de produção capitalista, e valem assim para as formações sociais capitalistas em geral — de fato, para todas as formações capitalistas possíveis (tal como o conceito de “bonapartismo” produzido a propósito da França de Louis Bonaparte e cujo campo é o tipo capitalista de Estado); ou em que medida conceitos, expostos em textos referentes a formações sociais diferentes, se aplicam ao modo de produção capitalista e às formações sociais capitalistas (tal como o problema colocado pelos textos de Lenin sobre a frente única ou o burocratismo na URSS durante o período de transição para o socialismo); ou ainda em
que medida alguns desses conceitos têm por campo o político em geral; ou mesmo, enfim, em que medida certos conceitos, aos quais seus autores
destinaram o campo do político em geral, não têm de fato como campo senão o político no modo de produção capitalista (tal como o conceito de hegemonia de Gramsci etc.). É, aliás, desnecessário insistir que, neste estado de coisas, nos defron-
tamos muitas vezes, quer com conceitos contraditórios, quer com simples palavras tomadas por conceitos pelos seus autores, mas que só podem de fato servir como indicadores de problemas, quer também — e forçosamente — com noções ideológicas. 4) Algumas breves observações referentes à ordem de exposição. Com efeito, como Marx sublinhou, a ordem de exposição dos conceitos é parte integrante de todo discurso científico. A ciência é um discurso demonstrativo, no qual a ordem de exposição e de apresentação dos conceitos provém de suas relações necessárias que convém fazer aparecer; é essa
ordem que liga os conceitos e atribui à discursividade científica seu caráter sistemático. Essa ordem de exposição distingue-se, por um lado, da ordem de investigação e de pesquisa, mas também, por outro lado, e é o que importa, da ordem lógica — de direito — do processo de pensamento. Em
outros termos, se a sistemática da ordem de exposição se refere à ligação e às relações dos conceitos no processo de pensamento, essa primeira ordem não é nem o percurso, nem a simples repetição da segunda o que é, aliás, nítido no plano de exposição de Marx para O capital. A defasagem entre as duas deve-se, no nosso caso, sobretudo ao fato de que o sistema do pro-
cesso de pensamento, que é o objeto próprio do materialismo dialético, não pode estar explicitamente presente na exposição de um texto que aborda o materialismo histórico, em virtude da distinção das duas disciplinas. 26
INTRODUÇÃO
Se é possível assim descobrir em nosso texto uma ordem geral de exposição, a concepção do político em geral, a teoria particular do modo de produção capitalista, a teoria regional do político nesse modo de produção, o exame de formações sociais capitalistas concretas, então sua sistematicidade deverá ser considerada segundo a sua própria necessidade, e
não segundo seu grau de reprodução do processo de pensamento. Vão-se manifestar aí defasagens entre as duas: notadamente no que se refere à teoria geral do materialismo histórico, cujos conceitos serão introduzidos conforme a necessidade da ordem de exposição de um texto que trata da
teoria regional do político no modo de produção capitalista. Vão-se manifestar igualmente defasagens na apresentação da teoria particular desse modo de produção, a qual, considerando o objeto deste texto, deverá estar
presente já no exame da concepção geral do político. Aliás, não se deve ignorar o fato de que essas defasagens decorrem igualmente do estado atual das pesquisas, ou seja, da conjuntura teórica do materialismo histórico, o qual, pelo menos no tocante à teoria geral e às teorias particulares, ainda está longe de uma elaboração sistemática satisfatória. 5) Essas dificuldades conduziram-me a tomar, neste texto, precauções
indispensáveis. Mais particularmente, as análises que tratam do político na teoria geral não almejam mais do que uma sistematicidade relativa, e não poderiam, de todo modo, ser consideradas exaustivas. Faço questão
de assinalar minhas reservas para com uma tendência, demasiado generalizada atualmente, da qual se pode dizer que põe o carro à frente dos bois, quando confunde a ordem da pesquisa e da investigação com a ordem
lógica do processo de pensamento, e que sistematiza - no vazio — a teoria geral antes de proceder a suficientes pesquisas concretas, aquilo contra
o que Marx justamente nos advertiu. Nesta circunstância, pareceu-me particularmente ilusório e perigoso — teoricamente, entenda-se -- avançar
mais na sistematização do político na teoria geral, na medida em que. faltam atualmente suficientes teorias sistemáticas regionais do político nos diversos modos de produção, ou ainda suficientes teorias sistemáticas particulares dos diversos modos de produção.
Se nos concentramos aqui na teoria regional do político no modo de produção capitalista, tomamos igualmente em consideração, não simples-
mente na pesquisa, mas também na exposição, as formações sociais capitalistas concretas. Essa “consideração” na exposição foi operada por duas razões distintas: quer a título de ilustração da teoria regional, quer a título 27
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de produção de conceitos concretos, que conduzem a conhecimentos da conjuntura política dessas formações: se é de um ou de outro que se trata, isso ressaltará nitidamente do contexto. Deixamos igualmente, e com conhecimento de causa, problemas em aberto: tendo fixado ou estabelecido os conceitos que funcionam
no
campo do político do modo de produção capitalista, e, por conseguinte, das formações sociais capitalistas, ou, ainda, do político de formações
capitalistas concretas, não quisemos entrar no exame da possibilidade do deslocamento, ou das torções e transformações desses conceitos em
outros modos de produção e outras formações sociais, notadamente uma formação em transição para o socialismo ou no modo de produção e em uma formação socialistas. Dito de outro modo, se tentamos situar exatamente os conceitos na ordem do processo de pensamento, isso sempre foi feito em função dos limites do objeto deste texto. Mas deixar o problema
em aberto não é somente uma precaução devido ao estado das pesquisas; decorre também da tomada de posição teórica, que consiste em assinalar uma dificuldade — teórica — que se tende frequentemente a escamotear: a
da especificidade da região do político segundo os modos de produção e as formações sociais consideradas. 6) Precisamos, por fim, definir certos conceitos suplementares da teoria geral do materialismo histórico, e situar o quadro da teoria particular do M.P.C. Essas definições e observações serão justificadas em seguida no próprio corpo do texto.
Assinalou-se anteriormente que a matriz de um modo de produção, a articulação das instâncias que o especifica, é determinada, em última instância, pelo econômico. Como essa determinação funciona em geral, e no M.PC. em particular?
Assim como para toda instância, o econômico em geral é constituído por certos elementos — invariantes — que só existem de fato em sua combinação — variável. Marx assinala-o nitidamente quando diz: Quaisquer que sejam as formas sociais da produção, os trabalhadores e os meios de produção [Marx acrescenta em seguida o não trabalhador] permanecem sempre como seus fatores. Mas tanto uns como outros apenas o são em estado virtual, enquanto permanecerem separados. Para qualquer produção, é preciso sua combinação. É a maneira especial de operar essa combinação que distingue as diferentes épocas
econômicas pelas quais passou a estrutura social.
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Se, então, se trata de uma combinação e não de uma combinatória, é porque as relações dos elementos determinam sua própria natureza, modi-
ficada segundo a combinação.” Esses elementos invariantes do econômico em geral são os seguintes:
a) o trabalhador — o “produtor direto” —, ou seja, a força de trabalho; b) os meios de produção, ou seja, o objeto e os meios de trabalho; c) onão trabalhador que se apropria do sobretrabalho, ou seja, do produto. Esses elementos existem numa combinação específica que constitui o econômico num modo de produção dado, combinação esta que é por sua
vez composta por uma dupla relação desses elementos. i) Uma reiação de apropriação real (por vezes designada por Marx pelo termo “posse”): ela se aplica à relação do trabalhador e dos meios de
produção, ou seja, ao processo de trabalho, ou ainda ao sistema das forças produtivas. . ii) Uma relação de propriedade: relação distinta da primeira, pois faz intervir o não trabalhador como proprietário, quer dos meios de produção, quer da força de trabalho, quer de ambos, e por conseguinte do produto. Trata-se aqui da relação que define as relações de produção
propriamente ditas. Essas duas relações são distintas: elas podem assumir, em decorrência da sua combinação, formas diferentes. No tocante à relação de propriedade, notemos que ela pertence estritamente à região do econômico, e que é preciso
distingui-la nitidamente das formas jurídicas de que ela se reveste — ou seja, da propriedade jurídica. Nas sociedades divididas em classes, essa relação
de propriedade instaura sempre uma “separação” do trabalhador e dos meios de trabalho, propriedade do não trabalhador, o qual, como proprietário, se.
apropria do sobretrabalho. Em contrapartida, no que se refere à relação de apropriação real, ela pode instaurar, nas sociedades divididas em classes, quer uma união do
trabalhador e dos meios de produção — é o caso-dos modos de produção “pré-capitalistas” -, quer uma separação do trabalhador e desses meios: é o caso do M.PC.,, separação que intervém no estágio da grande indústria e que Marx designa pela expressão “separação do produtor direto e das suas
condições naturais de trabalho”. 29
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Essas duas relações pertencem, portanto, a uma combinação única — variável — que constitui o econômico num modo de produção — a combinação
do sistema das forças produtivas e do sistema das relações de produção. A combinação característica do M.P.C. consiste numa homologia das duas relações — a separação na relação de propriedade coincide com a separação
na relação de apropriação real; a dos modos “pré-capitalistas” de produção consiste numa não homologia das duas relações - separação na relação de propriedade, união na relação de apropriação real.* A determinação em última instância pelo econômico de um modo de
produção, da articulação e do índice de dominância de suas instâncias depende precisamente das formas de que a combinação assinalada se reveste. Marx a indica de uma forma geral nos dois textos seguintes de O capital: A forma econômica específica, na qual o sobretrabalho não pago é extorquido
dos produtores diretos, determina a relação de dependência (política), tal como decorre diretamente da própria produção, e reage, por sua vez, de maneira determinante sobre esta. É a base de toda forma de comunidade econômica, saída diretamente das relações de produção e, ao mesmo tempo, a base de sua forma política específica. É sempre na relação imediata entre o proprietário dos meios de produção e o produtor direto que se deve procurar o segredo mais profundo, o
fundamento oculto do edifício social, e, por conseguinte, da forma política que assume a relação de soberania e de dependência, em suma, a base da forma espe-
cífica de que o Estado se reveste num dado período.”
Essa combinação — o econômico -- determina igualmente a instância que, num modo de produção, assume o papel dominante. Vejamos Marx responder às objeções que lhe foram feitas: Segundo essas objeções, minha opinião de que o modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política, intelectual é justa para o mundo moderno, dominado pelos interesses materiais, mas não para a Idade Média onde reinava o catolicismo, nem para Atenas ou Roma onde reinava a política. O que é claro é que nem a primeira poderia viver do catolicismo, nem a segunda da política. As condições econômicas de então explicam, ao contrário, por que numa o catolicismo, e noutra a política desempenhavam o papel principal.!º Ora, se Marx faz em suas obras uma análise específica dos efeitos da
combinação que caracteriza o econômico do M.P.€. — homologia das duas
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INTRODUÇÃO
relações, pois há separação em ambas — sobre a matriz desse modo, se ele constitui assim uma teoria particular do M.P.C., não faz, no entanto,
a teoria do que ele designa como modos de produção “pré-capitalistas” ou “formas que precedem a produção capitalista”. Em outras palavras, ele não constitui teorias particulares desses outros modos de produção, especificados segundo ele por formas diferenciais de uma combinação de não homologia entre as duas relações — separação na relação de pro-
priedade, mas união na relação de apropriação real. Ele examina esses outros modos de produção por duas óticas precisas: por um lado, enquanto
simples ilustrações da sua tese geral, segundo a qual todo o edifício social repousa sobre as formas diferenciais dessa combinação — deste ponto de vista, suas análises contêm somente indicações teóricas; por outro lado,
enquanto pontos de comparação descritivos com o M.PC,, ou seja, a fim de mostrar as analogias formais dos modos de produção — “pré-capitalistas” — repousando sobre uma combinação de não homologia e situados em relação a um modo - capitalista — que repousa sobre uma combinação radicalmente diferente — de homologia; voltaremos a abordar esta impor-
tante questão. No entanto, observemos desde já que esse tratamento por Marx dos outros modos de produção, embora contribua para destacar nitidamente os traços particulares do M.P.C., contém graves ambiguidades: não só porque esse tratamento foi muitas vezes considerado pelo que ele não é — ou seja, como um exame sistemático das teorias particulares dos
outros modos de produção —, mas porque, por esse tratamento analógico não explicitado, Marx chega por vezes a fazer ideias propriamente “mí ticas” sobre esses modos de produção. 7) Vejamos o problema mais de perto, tomando apenas esquematicamente em consideração as instâncias econômica e política — mais particularmente,
a do Estado —, e deixando provisoriamente de lado a instância do ideológico. Marx estabelece ao mesmo tempo nos Elementos fundamentais para. a crítica da economia política — os Grundrisse zur Kritik der politischen Oekonomie, mais particularmente na parte intitulada “Formas que precedem a produção capitalista” —- e em O capital, as características seguintes da matriz do M.P.C.: 1. A articulação do econômico e do político neste modo de produção é caracterizada por uma autonomia — relativa — específica dessas
duas instâncias. 31
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2. O econômico detém neste modo não só a determinação em última instância, mas igualmente.o papel dominante.
Marx evidencia a primeira característica pela oposição do M.P.€. aos modos “pré-capitalistas”: estes apresentariam, em relação ao M.P.€,, o que
ele designa como “amálgama” ou relações “orgânicas” e “naturais”, expressas às vezes pelo termo “simultâneas”, do econômico e do político. Repetindo mais uma vez, essas observações não devem ser tomadas ao pé
outros modos, essas instâncias não possuam uma autonomia relativa, mas que esta se reveste de formas diferentes. Essa autonomia tem consequências teóricas sobre o objeto do nosso
trabalho: ela torna possível uma teoria regional — em sentido muito rigoroso — de uma instância desse modo, por exemplo, do Estado capitalista;
ela permite a constituição do político em objeto de ciência autônomo e específico: Marx o mostrou, como se sabe, em O capital, a propósito do econômico e da ciência econômica. 4 rigor, essa autonomia legitima a ausência, na exposição discursiva referente a uma instância do M.P.C.,
das teorias relativas às suas outras instâncias. Consideremos brevemente os textos de Marx, levando em conta essas
observações. O que ocorre nos modos de produção — “pré-capitalistas” — em que a relação de apropriação real é caracterizada pela união do produtor direto e dos meios de produção? Em todas as formas em que o trabalhador imediato permanece o “possuidor” dos meios de produção e dos meios de trabalho, a relação de propriedade deve fa-
talmente se manifestar simultaneamente como uma relação (política) entre senhor e servo; o produtor imediato não é portanto livre; mas essa servidão pode se reduzir, desde a servidão com obrigação de corveia até o pagamento de um simples tributo. Nessas condições, é preciso razões extraeconômicas, seja qual for sua natureza,
para obrigá-los a efetuar trabalho para o proprietário fundiário. Portanto, é preciso necessariamente relações pessoais de dependência, uma privação de liberdade pessoal, em suma, é preciso a servidão em toda a acepção da palavra.”
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nn
da letra, o que foi feito frequentemente, conduzindo a toda uma mitologia marxista referente, por exemplo, ao modo de produção feudal. Pode-se em contrapartida estabelecer, no plano científico, que o M.P.C. é especificado por uma autonomia característica do econômico e do político: isso funda uma diferença radical de suas relações em comparação com as que mantêm nos outros modos de produção - o que, de fato, não quer dizer que nesses
INTRODUÇÃO
Marx chegará mesmo a dizer que, nesses casos, “a relação (política) entre
senhor e servo é uma parte essencial da relação de apropriação” — relação que pertence à combinação econômica.'? Nos Elementos fundamentais para a crítica da economia política (Grundrisse) — e em O capital, no que diz respeito ao modo de produção feudal —, Marx vai ainda mais longe, dando-nos indicações sobre o político nos diversos modos de produção “pré-capitalistas”. Suas análises são interessantes por duas razões:
a) Marx relaciona as diferentes formas políticas desses modos com a combinação que especifica o econômico em cada modo. No entanto, esses modos têm em comum o fato de que a relação de apropriação
real tem essencialmente uma forma invariante - união do produtor direto e dos meios de produção. As formas específicas de que o processo de trabalho se reveste nesses modos, e que determinam as formas específicas de propriedade — econômica —, são apreendidas como variações nos limites desse invariante.
,
b) Marx atribui a analogia das relações do econômico e do político nesses modos a essa característica comum
de suas combinações
econômicas. Essa analogia é mais particularmente apreendida da seguinte maneira: ao contrário do M.PC., o pertencimento do trabalhador e do não trabalhador a uma comunidade — entendida aqui, no caso das sociedades divididas em classes, no sentido de comunidade
política, de forma de relações políticas — é um pressuposto de sua inserção nas relações de apropriação real - ou de “posse” — e de propriedade. O pretenso “amáigama” do econômico e do político é catalogado enquanto “político pressuposto” do econômico”. Assim, nos casos dos modos “pré-capitalistas”: A atitude para com a terra como propriedade do indivíduo significa que um homem aparece desde o início como algo mais do que a abstração do “indivíduo trabalhador”, que ele tem um modo objetivo de existência na sua propriedade da terra que é o pressuposto da sua atividade e não aparece como sua simples con-
sequência: é um pressuposto de sua atividade tanto quanto sua pele, seus sentidos. O que é a mediação dessa atitude é a existência do indivíduo como membro de uma comunidade.
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No caso do modo de produção asiático, em que se trata de fato de uma propriedade da terra por pequenás comunidades — relação de propriedade —, mas que toma a forma de posse hereditária da terra por essas comunidades — relação de apropriação real: A unidade que compreende as outras [as pequenas comunidades), que se encontra
acima de todos esses pequenos organismos comunais, pode aparecer como o proprietário superior ou único, as comunidades reais como seus possuidores hereditários.
Assim, é perfeitamente possível que essa unidade apareça como algo de superior e de separado das inúmeras comunidades particulares. Uma parte do sobretrabalho pertence à comunidade superior que aparece em última análise como uma pessoa. O déspota aparece aqui como o pai de todas as inúmeras comunidades particulares,
como realizando a unidade comum de todas.”
No modo de produção antigo, trata-se de uma coexistência de propriedade de Estado e de propriedade privada: Ser um membro da comunidade permanece um pressuposto para a apropriação da terra, mas na sua capacidade como membro da comunidade, o indivíduo é um
proprietário privado. O fato de as condições naturais do seu trabalho lhe pertencerem é mediado pela sua existência como um membro do Estado, pela existência do Estado como um pressuposto considerado divino.”
Naquilo que Marx designa como forma germânica de produção e de propriedade, trata-se de uma coexistência de propriedade comunal e de propriedade privada: Entre os germanos, onde famílias isoladas se instalam nas florestas, separadas por longas distâncias, de um ponto de vista externo a comunidade existe simplesmente em virtude de cada ato de união dos seus membros, embora sua unidade exista em
si, instaurada pela hereditariedade. A comunidade aparece assim como uma associação, e não como união, como um acordo cujos sujeitos independentes são os proprietários da terra, e não como unidade. De fato, por essa razão, a comunidade não tem diretamente uma existência como Estado, como entidade política, tal como acontecia entre os antigos. Para que as comunidades adquiram uma existência real,
os proprietários da terra devem realizar uma assembleia, ao passo que aquela existente em Roma é independente dessas assembleias!
34
INTRODUÇÃO
Finalmente, no que diz respeito ao modo de produção feudal: Em vez do homem independente, encontramos aqui todo o mundo dependente, servos e senhores, vassalos e suseranos, laicos e clérigos. Essa dependência caracteriza tanto as relações de produção materiais quanto todas as outras esferas da vida
às quais serve de fundamento.” No M.P.C,, assiste-se, em contrapartida, a uma combinação de homologia entre a relação de propriedade e a relação de apropriação real: essa homologia se instaura graças à separação de produtor direto e meios de pro-
dução na segunda relação, o que Marx designa como separação do produtor direto e de suas condições naturais de trabalho, que intervém no estágio da grande indústria. É principalmente dessa separação, que faz do próprio trabalhador um elemento do capital, e do trabalho uma mercadoria, que decorre o caráter do econômico desse modo como processo de produção da mais-valia, Essa combinação determina uma autonomia específica do político e do econômico. Marx apreende-a nas suas duas manifestações: por um lado, nos seus efeitos sobre o econômico: por exemplo, o processo de
produção no M.P.€. funciona de maneira relativamente autônoma, não precisando da intervenção, característica para os outros modos de produção,
de “razões extraeconômicas”; o processo de reprodução ampliada — Rosa Luxemburgo fazia-o justamente notar — é principalmente determinado pela “razão econômica” de produção da mais-valia; aparecem as crises
puramente econômicas etc. E ele apreende, por outro lado, essa autonomia nos seus efeitos sobre o Estado capitalista. Essa combinação específica do econômico do M.P.€., como determinação em última instância, atribui igualmente ao econômico, nesse modo de
produção, o papel dominante. Como se sabe, isso foi estabelecido ao mesmo tempo pelas análises de Marx em O capital referentes a esse modo, e por suas observações comparativas referentes a outros modos de produção em que o papel dominante incumbe ao político ou ao ideológico. Esta introdução permitiu-nos definir o objeto e o método deste ensaio,
assim como a feoria que sustenta a pesquisa e a exposição; ela permitiu-nos igualmente definir certos conceitos fundamentais e estabelecer assim o quadro teórico do texto que se segue. Estas observações introdutórias
encontrarão aí sua justificação.
35
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCMIS
Notas 1
Sobre estes temas, ver Althusser, Pour Marx (Por Marx, trad. de Maria Leonor F. R. Loureiro, Campinas, Editora da Unicamp, 2015); Lire le Capital, t. Il; “Matérialisme historique et matérialisme dialectique”, Cahiers Marxistes-Léninistes, n. 11; e “Sur le travail théorique. Difficultés et ressources”, La Pensée, abril de 1967.
2 3 4
Precisemo-lo a fim de não caír no velho equivoco da “abstração-concretização” positivista, Teoria geral que não se deve confundir com o materialismo dialético, pois este último não é a simples epistemologia do materialismo histórico. Adotando a terminologia de Althusser (em Por Marx) e designando por g.1 (generalidades Da matéria-prima do processo de pensamento; por g.2 (generalidades 11) os instrumentos ou meios de trabalho teórico; e por g.3 (generalidade II) os conhecimentos, pode-se esquematizar a ordem lógica do processo que vai dos conceitos mais abstratos — referentes a objetos formais-abstratos — aos conceitos mais concretos — referentes a objetos reais-concretos e singulares —, em suma, as diversas etapas necessárias do discurso teórico, da maneira seguinte: Seja nosso objeto, a teoria do político no modo de produção capitalista. (Análise concreta de uma conjuntura politica concreta) g3 (Conhecimentos já adquiridos pelo processo de pensamento sobre o materialismo histórico: teoria geral da qual faz parte o conceito mais abstrato do polftico como instância de toda estrutura)
5
E (Informações, noções etc., sobre o modo de produção capitalista)
g2
83 (Conhecimento da teoria particular do modo de produção capitalista)
gl (Informações, noções ete., sobre o Estado capitalista, sobre a luta de classes no modo de produção capitalista etc.)
22
g3 (Conhecimento da teoria regional do político no modo capitalista de produção)
gi (Informações sobre uma formação social capitalista e seu nível político em particular)
22
83 (Conhecimento do político nessa formação social)
Vertambém, neste sentido, A. Badiou, “Le recommencement du matérialisme dialectique”, Critique, maio de 1967. Le capital (Éditions sociales). L. 1, t.1, p.38.
7
A este respeito, ver Balibar, Lire le Capital, t. H; e Ch. Bettelheim, Le transition vers Péconomie socialiste, 1968. Assinalo, porém, que exponho aqui as relações econômicas, e sua combinação, na sua forma mais simples. Bettelheim, em seu curso “Le caicul écono-
mique social”, 1967, redigido, mas ainda inédito, que ele teve a gentileza de me comunicar
e que é de uma importância decisiva, mostra de maneira pertinente a complexidade (o
duplo aspecto) de que se revestem essas relações e sua combinação.
36
INTRODUÇÃO 8
9
Homologialnão homologia: não confundir com correspondência/não correspondência (que se encontrará no caso da transição), podendo uma combinação de não homologia consistir numa correspondência das duas relações. Sobre o que o termo metafórico de homologia recobre (que emprego na falta de melhor e que tomo emprestado de Balibar), cf. Bettelheim, op. cit. Lecapital, L.3,t. Mp. 171.
10 Idem, L. 1,t.1,p. 93 (nota). H
Idem, L.3,t. UL pp. 171-172.
12 Fondements..., p. 154, Cito este texto segundo a edição alemã, Rowohilt: Karl Marx, Texte zur Methode und Praxis, t. II. [Trata-se dos Grundrisse (N. da TJ] 13 Fondements..., op. cit., p. 138. 14 Idem, p. 132. 15 Idem, p. 133. 16 Idem, p. 130.
17 Le capital, L. 1, t. 1, p. 85. Se for assim levado em conta que: a) o modo de produção é um conceito que implica a presença de todas as instâncias sociais; b) o modo de produção feudal não apresenta a mesma autonomia de instâncias que o M.P.C.; e c) o político reveste com frequência no modo de produção feudal o papel dominante, pode-se fundar a legitimidade da designação por Marx desse modo como feudal: com efeito, como se fez muitas vezes observar, essa designação se refere, sobretudo, às relações políticas desse modo “feudal”. (Sobre esse assunto, cf. J. Maquet: “Une hypothêse pour Petude des sociétés africaines”, Cahiers d'Études Africains, 6, 1961; e M. Rodinson, Islam et capitalisme,
1966, p. 66 ss.) O que, em contrapartida, causa problema é a “representação” que Marx fazia dessas relações políticas feudais: tomada ao pé da letra, eta levaria a excluir do modo de produção feudal formações sociais com base na servidão, mas cujas relações políticas não correspondem a essa representação.
37
PARTE
QUESTÕES
1
GERAIS
I
SOBRE
O
CONCEITO
DE
POLÍTICO
Política e história — O político e a política
.
Tá dispomos de um número suficiente de elementos para tentar descrever o conceito de político em Marx, Engels e Lenin, e suas relações com a problemática do Estado. No entanto, é preciso fazer duas observações preliminares. 1. Tentaremos, neste capítulo, enunciar os problemas da teoria mar-
xista geral acerca do Estado e da luta política de classes. Este capítulo, que aborda sobretudo o problema geral do Estado, precede, na
ordem de exposição, o capítulo sobre as classes sociais e a luta de classes. E não fazemos isso por acaso: não é, evidentemente, porque se possa empreender, na ordem lógica, um exame do Estado sem referência direta e conjunta à luta de classes, ou porque essa ordem
de apresentação corresponda a uma ordem histórica de existência do. Estado antes da divisão da sociedade em classes; é porque as classes sociais constituem o efeito, veremos em que sentido, exatamente, de certos níveis de estruturas, de que o Estado faz parte.
2. Introduziremos já a distinção entre a superestrutura jurídico-política do Estado, o que se pode designar como o político, e as prá-
ticas políticas de classe — luta política de classe —, o que se pode designar como a política. No entanto, devemos ter em vista que
tal distinção será esclarecida no capítulo seguinte, sobre as classes 39
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
sociais, no qual serão fundamentadas a distinção e a relação entre as estruturas, por um lado, € as práticas de classe, ou mesmo
o
campo da luta de classes, por outro. O problema do político e da política vincula-se, em Marx, Engeis e Le-
nin, ao problema da história. Com efeito, a posição marxista a esse respeito provém das duas proposições fundamentais de Marx e Engeis no Manifesto comunista, segundo as quais: a) “Toda luta de classes é uma luta política”, e
b) “4 luta de classes é o motor da história”. É muito claro que se pode fazer uma primeira leitura, de tipo Aistoricista, da relação entre essas duas proposições. Essa leitura pressupõe finalmente o tipo hegeliano de “totalidade” e de “história”: trata-se, em primeiro lugar, de um tipo de totalidade simples e circular, composta de elementos equivalentes, que se distingue radicalmente da estrutura complexa com dominante que especifica o tipo de unidade marxista. Trata-se, em segundo lugar, de um tipo linear de historicidade, cuja evolução já está contida na origem do conceito, sendo o processo histórico identificado com o devir do autodesenvolvimento da Ideia. Nessa totalidade;
a especificidade dos diversos elementos em causa é reduzida a esse princípio de unidade simples que é o Conceito cuja objetivação eles constituem; a história é reduzida a um devir simples, cujo princípio de desenvolvimento é a passagem “dialética” da essência à existência do conceito.
Ora, pode-se fazer efetivamente uma leitura historicista das proposições marxistas que acabamos de citar. Qual seria seu resultado? Não estariam, então, compreendidos no domínio do político um nível estrutural particular e uma prótica específica, mas em geral o aspecto “dinâmico-diacrônico” de todo elemento, pertencente a qualquer nível de estruturas ou de práticas de uma formação social. Sendo o marxismo para o historicismo uma ciência “genética” do devir em geral, e sendo a política o motor da história, ele seria, em última análise, uma ciência da política — até mesmo uma “ciência
da revolução”— identificada com esse devir unilinear simples. Decorrem daí várias consequências: a) Uma identificação da política e da história, b) O que se pode designar como sobrepolitização dos diversos níveis das estruturas e das práticas sociais cuja especificidade, autonomia relativa e eficácia própria seriam reduzidas a seu aspecto dinâmico-histórico-político. O político constituiria aqui o centro, ou o denominador comum e simples, ao mesmo tempo de sua unidade (totalidade) e de seu desenvolvimento: um exemplo particularmente impressionante desse resultado é a famosa sobrepolitização
donível teórico, que conduz ao esquema “ciência burguesa-ciência proletá40
SOBRE
O CONCEITO
DE POLÍTICO
ria”. co) Uma abolição da própria especificidade do político, sua decomposição em todo elemento indistinto que viesse romper o equilíbrio da relação de forças de uma formação. Essas consequências têm como resultado tornar supérfluo o estudo teórico das estruturas do político e da prática política, o que conduz à invariante ideológica voluntarismo-economicismo, às diversas formas de revisionismo, reformismo, espontaneismo etc. Em suma, o político, numa concepção historicista do marxismo, desempenha exatamente o papel que o Conceito assume finalmente em Hegel. Não
me ocuparei aqui das formas concretas de que essa problemática se reveste. Farei apenas duas citações, a fim de situar o problema. Uma vem de Gramsci, cujas análises políticas, sempre preciosas, são com
frequência embotadas pelo historicismo de Croce e de Labriola. Ela ilustra as conseguências assinaladas: A primeira questão a colocar e resolver numa exposição sobre Maquiavel é a questão do político como ciência autônoma, ou seja, do lugar que a ciência política ocupa ou deve ocupar numa concepção do mundo sistemática, numa filosofia da práxis. O progresso a que Croce levou, a este respeito, os estudos sobre Maquiavel e sobre-a ciência política, consiste, sobretudo, no fato de ter dissipado uma série de falsos problemas, inexistentes ou mal colocados. Croce apoiou-se na distinção dos
momentos do espírito e na afirmação de um momento da prática, de um espírito prático, autônomo e independente, embora vinculado circularmente à realidade inteira
pela dialética dos distintos. Numa filosofia da práxis, a distinção não será certamente entre os momentos do Espírito absoluto, mas entre os graus da superestrutura e tratar-se-á, portanto, de estabelecer a posição dialética da atividade política (e da ciência correspondente) como grau determinado da superestrutura: poder-se-á dizer, a título de primeira indicação e de aproximação, que a atividade política é precisamente o primeiro momento ou primeiro grau, o momento em que a superestrutura
ainda está na fase imediata de simples afirmação voluntária, indistinta e elementar. Em que sentido se pode estabelecer uma identidade entre a política e a história, e, por conseguinte, entre o conjunto da vida e a política? Como, neste caso, todo O
sistema das superestruturas poderá conceber-se como distinções da política e como se justificará então a introdução do conceito de distinção numa filosofia da práxis? Conceito de “bloco histórico”, ou seja, unidade entre estrutura e superestrutura, unidade dos contrários e dos distintos...
Veem-se já aparecer, nessa citação de Gramsci, as consequências assinaladas do historicismo que conduzem aqui, como foi, aliás, o caso do
41
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
esquerdismo teórico dos anos 1920 — Lukács, Korsch etc. —, a uma sobrepolitização de caráter voluntarista: cla corresponde ao economicismo na
mesma problemática.” Tiro minha segunda citação de T. Parsons, mestre da tendência “funcionalista” da sociologia atual, tendência à qual se voltará longamente, pois, influenciada pelo historicismo de M. Weber, rege as análises da ciência política moderna: é surpreendente constatar que ela conduz, devido preci-
samente a seus princípios teóricos comuns com o historicismo marxista, a resultados análogos a respeito do político e da política: não se poderia abordar.o estudo da política apoiando-se numa concepção teórica restrita a este problema, pela simples razão de que a política constitui um centro de integração de todos os elementos analíticos do sistema social, e não poderia ela
própria ser reconhecida como um desses elementos particulares.”
Veremos na sequência que o funcionalismo constitui, de fato, no plano epistemológico, a continuidade direta da concepção historicista geral: vê-se nitidamente a redução do político que daí decorre, tornando-se este, aliás,
como princípio simples da totalidade social, o princípio de seu desenvolvimento, na perspectiva sincronia-diacronia que caracteriza o funcionalismo. Na concepção anti-historicista da problemática original do marxismo, deve-se situar o político na estrutura de uma formação social, por um lado, como nível específico, e, por outro lado, contudo, como nível crucial em
que se refletem e se condensam as contradições de uma formação, a fim de compreender exatamente o caráter anti-historicista da proposição segundo a qual é a luta política de classes que constitui o motor da história, Comecemos por este último ponto, posto em evidência por Althusser. Akthusser demonstrou, como recordamos, que para o marxismo não é um tipo universal e ontológico de história, um princípio de gênese, referido a um sujeito, que constitui o princípio de inteligibilidade do processo de transformação das sociedades, mas o conceito teoricamente construído de
um modo de produção dado enquanto todo-complexo-com-dominante. É a partir desse conceito, que nos é dado pelo materialismo histórico, que se pode construir o conceito de história que não tem mais nada a ver com um devir linear simples. Os níveis de estruturas e de práticas, exatamente
da mesma forma que apresentam, no interior da unidade de um modo de produção e de uma formação social historicamente determinada, uma especificidade própria, uma autonomia relativa e uma eficácia particular, 42
SOBRE
O CONCEITO
DE POLÍTICO
apresentam também temporalidades de ritmos e escansões diferenciais.” Os diversos níveis de uma formação social são caracterizados por um desenvolvimento desigual, traço essencial da relação dessas temporalidades diferenciais na estrutura, por defasagens que são o fundamento da inteligibilidade de uma formação e de seu desenvolvimento. Nessa medida, as transformações de uma formação e a transição são apreendidas pelo
conceito de uma história de temporalidades diferenciais. Tentemos ver o lugar que cabe, neste contexto, ao político, e mais parti-
cularmente à prática política. O conceito de prática reveste aqui o sentido de um trabalho de transformação sobre um objeto (matéria-prima) determinado,
cujo resultado é a produção de algo novo (o produto) que constitui muitas vezes, ou pelo menos pode constituir, um corte com os elementos já dados do
objeto. Ora, qual é a este respeito a especificidade da prática política? Essa prática tem por objeto específico o “momento atual”,º como dizia Lenin, ou seja, o lugar nodal onde se condensam as contradições dos diversos níveis de uma formação nas relações complexas regidas pela sobredeterminação, por sua defasagem e por seu desenvolvimento desigual. Este momento atual
é assim uma conjuntura, o ponto estratégico em que se fundem as diversas contradições enquanto refletem a articulação que especifica uma estrutura
como dominante. O objeto da prática política, tal como aparece no desenvolvimento do marxismo por Lenin, é o lugar onde finalmente se fundem
as relações das diversas contradições, relações que especificam a unidade da estrutura; o lugar a partir do qual se pode, numa situação concreta, decifrar a unidade da estrutura e agir sobre ela em vista de sua transformação. Quer-se dizer com isso que o objeto a que se refere a prática política depende dos diversos níveis sociais — a prática política versa ao mesmo tempo sobre o econômico, O ideológico, O teórico e “o” político em sentido estrito —, na sua relação que constitui uma conjuntura. Segue-se uma segunda consequência no tocante à política nas suas re-
lações com a história. A prática política é o “motor da história” na medida em que seu produto constitui finalmente a transformação da unidade de uma formação social, nos seus diversos estágios e fases. Isso, contudo,
não num sentido historicista: é a prática política que transforma a unidade, na medida em que seu objeto constitui o ponto nodal de condensação das contradições dos diversos níveis, com historicidades próprias e com desenvolvimento desigual. Essas análises são importantes para situar o conceito do político, e mais
particularmente da prática política, na problemática original do marxismo:
43
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
é preciso, contudo, completá-las num ponto. Com efeito, essas análises, referentes ao objeto e ao produto da prática política, não bastam para situar exatamente a especificidade do político: devem ser completadas por uma concepção adequada da superestrutura política. Pois, de fato, contentando-nos em definir o político simplesmente como prática com objeto e produto definidos, corremos sempre o risco de diluir a sua especificidade, de identificar finalmente como político tudo o que “transforma” uma unidade dada. Ao negligenciar o exame teórico das estruturas políticas, corre-se também o risco de deixar escapar o momento atual da conjuntura e cair nesse “mo-
mento” de que falava Gramsci, colocando nitidamente o problema. Em suma, se se quiser superar definitivamente um historicismo do político, não basta se limitar à análise teórica do objeto da prática política; é preciso também situar, no interior de uma formação social, o lugar e a função específicos do nível das estruturas políticas que são seu objetivo: somente nessa medida a sobredeterminação pelo político poderá aparecer em suas relações com uma história diferencial. Entremos no âmago da questão: as estruturas políticas -- o que é desig-
nado como superestrutura política — de um modo de produção e de uma formação social consistem no poder institucionalizado do Estado. Com
efeito, todas as vezes em que Marx, Engels, Lenin ou Gramsci falam de luta (prática) política distinguindo-a da luta econômica, eles consideram expressamente sua especificidade em relação ao seu objetivo particular que
é o Estado, enquanto nível específico de estruturas de uma formação social. Nesse sentido, encontra-se, com efeito, nos clássicos do marxismo, uma
definição geral da política. Trata-se, muito precisamente, da concepção indicada da prática política: esta tem por objeto o momento atual, ela produz as transformações — ou, aliás, a manutenção — da unidade de uma formação,
porém somente na medida exata em que tem como ponto de impacto, como “objetivo” estratégico específico, as estruturas políticas do Estado.* Assim, Marx nos diz: “O political movement da classe operária tem como objetivo final — Endzweck — a tomada do political power”?
É também precisamente nesse sentido que se deve entender a frase de Lenin: Não basta dizer que a luta de classes não se torna uma luta verdadeira, consequente, aberta, senão no dia em que ela abarca o domínio da política. Para o mar-
xismo, a luta de classes apenas se torna uma luta inteiramente aberta do conjunto da nação quando não só abrange a política, mas também se vincula nesse domínio
ao essencial: à estrutura do poder de Estado?
4a
SOBRE
O CONCEITO
DE
POLÍTICO
O que de fato se destaca, nessa citação, é que esse objetivo do poder de Estado é a condição da especificidade da prática política. Assinalemos ainda, a esse respeito, a posição de Lenin em seus textos de 1917 referentes ao
problema do “duplo poder”, do Estado e dos Sovietes. De fato, Lenin insiste em considerar, aqui também, o objetivo da prática política como vinculado à superestrutura do Estado. Com efeito, a palavra de ordem “todo o poder aos Sovietes” está vinculada, no pensamento de Lenin, ao fato de que ele considera os Sovietes como um “segundo Estado”, Veremos a distinção entre poder de Estado e aparelho de Estado; o que nos interessa aqui é que essa palavra de ordem não vem do fato de que os Sovietes estão sob o controle dos bolcheviques — na realidade, os Sovietes, na época dessa palavra de ordem, estavam sob o controle dos mencheviques —, mas do fato de que os Sovietes constituem um aparelho de Estado que assume funções do Estado oficial, que eles constituem o Estado real. Donde a conclusão: é preciso fortalecer este segundo Estado e ter por objetivo tomá-lo enquanto Estado: “A essência
verdadeira da Comuna não está onde a procuram em geral os burgueses, mas na criação de um tipo de Estado particular. Ora, um Estado desse gênero já nasceu na Rússia: são os Sovietes...”.! Essas análises de Lenin decorrem,
aliás, de sua posição teórica a respeito da distinção — e da relação — entre a luta econômica e a luta política, tal como já a havia essencialmente definido
em Que fazer?: “A social-democracia dirige a luta da classe operária em suas relações não só com um grupo de patrões, mas também com o Estado como força política organizada. Donde se segue que os social-democratas não
podem se limitar à luta econômica... .”; ou ainda: “As revelações políticas são uma declaração de guerra ao governo da mesma maneira que as revelações
econômicas são uma declaração de guerra aos industriais”?
A função geral do Estado Essa tese coloca, no entanto, tantos problemas quantos os que resolve: com efeito, por que uma prática que tem por objeto o “momento atual” e produz transformações da unidade apresenta de específico o fato de que seu resultado só pode ser produzido quando ela tem por objetivo o poder do Estado?
Essa pergunta não parece de maneira nenhuma evidente, como mostra, por um lado, a tendência economicista — trade-unionista — (esse objetivo seria o econômico) e, por outro lado, a tendência utópico-idealista (esse objetivo
seria o ideológico). Para formular de outra maneira o mesmo problema, por 45
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
que a concepção fundamental de Marx, Engels, Lenin e Gramsci relativa
à passagem ao socialismo se distingue de uma concepção reformista, na medida em que exige que o Estado seja radicalmente mudado e o antigo
aparelho de Estado destruído, ou seja, pela teoria da ditadura do proletariado? Em suma, por que, segundo os termos exatos de Lenin, o problema fundamental de toda revolução é o do poder de Estado? Para resolver o problema é preciso voltar à concepção marxista científica da superestrutura do Estado e mostrar que, no interior da estrutura de vários níveis defasados de desenvolvimento desigual, o Estado possui a função particular de constituir o fator de coesão dos níveis de uma formação social.
É precisamente o que 6 marxismo exprimiu ao conceber o Estado como fator de “ordem”, como “princípio de organização” de uma formação, não no sentido corrente de ordem política, mas no sentido da coesão do conjunto
dos níveis de uma unidade complexa, e como fator de regulação de seu equilíbrio global, enquanto sistema. Pode-se ver assim por que a prática política, que tem por objetivo o Estado, produz as transformações da unidade e é assim o “motor da história”: é precisamente mediante a análise desse papel do Estado que se pode estabelecer o sentido anti-historicista dessa proposição. De fato, ou a prática política tem como resultado a manutenção da unidade de uma formação, de um dos seus estágios ou fases, quer dizer,
sua não transformação, pois, no equilíbrio instável de correspondência/ não correspondência de níveis defasados com temporalidades próprias, esse equilíbrio jamais é dado enquanto tal pelo econômico, mas é mantido pelo Estado (nesse caso, a prática política tem como objetivo o Estado enquanto
fator de manutenção da coesão dessa unidade); ou a prática política produz transformações que têm por objetivo o Estado como estrutura nodal de
ruptura dessa unidade, na medida em que ele é o seu fator de coesão: nesse contexto, o Estado poderá, além disso, ser visto como fator de produção de uma nova unidade, de novas relações de produção. Com efeito, pode-se já descobrir um indício dessa função do Estado no fato de que, fator de coesão da unidade de uma formação, ele é também a estrutura na qual se condensam as contradições dos diversos níveis de uma
formação. Ele é assim o lugar no qual se reflete o índice de dominância e de sobredeterminação que caracteriza uma formação, um de seus estágios
ou fases. Então, o Estado aparece como o lugar que permite a decifração da unidade e da articulação das estruturas de uma formação. Isso será
esclarecido quando se analisar a relação das estruturas com o campo das práticas de classe, e se situar a relação particular do Estado e da conjun46
SOBRE
O CONCEITO
DE
POLÍTICO
tura, constituindo esta o lugar de decifração da relação das estruturas com o campo das práticas. É a partir da relação entre o Estado, fator de coesão da unidade de uma formação, e o Estado, lugar de condensação
das diversas contradições das instâncias, que se pode, assim, decifrar o problema política-história. Essa relação designa a estrutura do político ao mesmo tempo como. nível específico de uma formação e como lugar de suas transformações, e a luta política como o “motor da história” tendo por objetivo o Estado, lugar de condensação das contradições de instâncias defasadas com temporalidades próprias. É É necessário, no entanto, precisar certos pontos. Essa colocação do pro-
blema do Estado permite resolver uma questão capital da teoria marxista do político. De acordo com toda uma tradição marxista, fundamentar dessa maneira, em teoria, a relação entre a luta política e o Estado seria cair numa
concepção “maquiaveliana”. do político. Não condenou Marx, nas obras de juventude, a concepção do “exclusivamente político”, a concepção que reduz a política à sua relação com o Estado? Não deveria a prática política ter por objetivo não o Estado, mas a mudança da “sociedade civil”, as relações, digamos, de produção?” A resposta errônea a esse problema mal colocado chamacse “economicismo”, o qual atribui à luta política as relações sociais econômicas como objetivo específico. É nesse esquema que se situa muito exatamente a concepção reformista. Ora, interrogando-se a problemática original do Estado do Marx da maturidade, apreende-se a relação da luta política e do Estado, por um lado, e a relação entre estes e o conjunto dos níveis da formação social, por outro. Vamos um pouco mais longe. Essa definição do político como relação
entre a prática política e o é válida para as formações evidente que essa relação modo de produção dado e
Estado é ainda muito genérica. Se, em geral, ela sociais divididas em classes, é em contrapartida pode ser especificada apenas no âmbito de um de uma formação social historicamente determi-
nada. Mais particularmente no que diz respeito à função do Estado, fatorde coesão da unidade de uma formação, é nítido que ela reveste formas
diferentes segundo o modo de produção e a formação social considerados. O lugar do Estado na unidade, por mais que atribua à sua estrutura regional Os limites que a especificam ao mesmo tempo em que a constituem, depende
precisamente das formas que reveste essa função do Estado: a natureza precisa desses limites — o que é o Estado? —, assim como sua ampliação ou contração — que estruturas e instituições fazem parte do Estado? —, está em
estreita relação com as formas diferenciais dessa função segundo o modo 47
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
de produção e a formação social considerados. Essa função do Estado torna-se uma função específica, e que o especifica enquanto tal, nas formações dominadas pelo modo de produção capitalista (M.P.C)), caracterizado pela autonomia específica das instâncias e pelo lugar particular que ali corresponde à região do Estado. Essa autonomia característica funda precisamente a especificidade do político, determinando a função particular do Estado como fator de coesão dos níveis autonomizados. . A função do Estado, fator de coesão da unidade de uma formação, que faz dele o lugar onde se condensam as contradições das instâncias, é, aliás,
ainda mais nítida se observarmos que uma formação social historicamente determinada é caracterizada por uma sobreposição de vários modos de produção. Trata-se de reter aqui que, mesmo quando um desses modos de produção consegue estabelecer sua dominância, marcando assim o início da
fase de reprodução ampliada de uma formação e o fim da fase propriamente transitória, assiste-se a uma verdadeira relação de forças entre os diversos modos de produção presentes, a defasagens permanentes das instâncias de uma formação. O papel do Estado, fator de coesão dessa sobreposição complexa dos diversos modos de produção, revela-se aqui decisivo. Ele é particularmente nítido, é verdade, durante o período de transição, caracterizado por uma não correspondência particular entre propriedade e apropriação real dos meios de produção. Como diz justamente, nesse caso, Bettelheim: “Tal defasagem acarreta importantes consequências do ponto de vista da articulação dos diferentes níveis da estrutura social. Essa não correspon-
dência implica, com efeito, uma eficácia especifica do nível político”.É No entanto, essa eficácia específica do Estado, se for entendida precisamente como função geral de coesão da unidade de uma formação, existe perma-
nentemente em toda formação em que se sobrepõem diversos modos de produção. Ela é particularmente importante na formação capitalista em que o M.P.C. dominante imprime aos diversos modos de produção à dominação da sua estrutura e, em particular, a autonomia relativa das instâncias, con-
siderando as defasagens que daí resultam. Sobre essas questões, encontram-se inúmeras indicações nas obras dos
clássicos do marxismo. Sabe-se que a teoria marxista estabeleceu a relação entre o Estado e a luta de classes, e até mesmo a dominação política de classe. O que se deve assinalar, antes de tentar localizar a relação do campo da luta de classes, e mais particularmente da luta política de classe, com as estruturas de uma formação, é que, para a teoria marxista, essa relação do
Estado e da luta política de classe implica a relação do Estado com o con48
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O CONCEITO
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junto dos níveis de estruturas: mais precisamente, a relação do Estado com a articulação das instâncias que caracteriza uma formação. Isso se deduz das análises de Engels, o qual estabelece, em termos por vezes bastante paradoxais, as relações do Estado e do “conjunto da sociedade”. Engels nos diz que: lo Estado! é antes um produto da sociedade num estágio determinando de seu desenvolvimento: ele é o testemunho de que essa sociedade se envolve numa insolúvel contradição consigo mesma, tendo-se cindido em oposições inconciliáveis que é impotente para conjurar. Mas para que os antagonistas, as classes com interesses
econômicos opostos, não aniquilem uns aos outros e a sociedade, impõe-se a necessidade de um poder que, colocado aparentemente acima da sociedade, deve amortecer o conflito, mantê-lo nos limites da “ordem”; esse poder, oriundo da sociedade, mas
que se coloca acima dela e se torna cada vez mais alheio a ela, é o Estado.”
Contentemo-nos com esse texto para não multiplicar as citações. O que Engels “diz” é, por um lado, a relação do Estado e da dominação política de classe, da luta política das classes. Ele põe em evidência, no entanto,
por outro lado, que a relação do Estado e da dominação política de classe reflete — e até mesmo
condensa, no sentido que demos a esse termo — o
conjunto das contradições da sociedade. O que significa aqui o termo “sociedade”? Pois, se esses termos não estiverem situados no contexto da problemática original do marxismo, corre-se o risco de cair numa perspectiva humanista, que coloque em relação a instituição do Estado com a “totalidade” das “necessidades vitais” de uma sociedade. De fato, esse
termo parece se referir aqui — pois, em outros lugares, pode revestir-se de sentidos diferentes — ao conceito rigoroso de formação social, enquanto
unidade complexa das instâncias. O Estado está em relação com as contradições próprias dos diversos níveis de uma formação, mas, na medida em que representa o lugar onde se reflete a articulação desses níveis, e o lugar,
de condensação de suas contradições, ele é o testemunho da “contradição da sociedade consigo mesma”. O Estado é, diz-nos ainda Engels, o “resumo oficial” da sociedade. Essa concepção do Estado-“resumo”
das contradições, no sentido de
condensação ou de fusão, era expressa por Marx, evidentemente numa perspectiva hegeliana, numa carta a Ruge de setembro de 1843. Se me
refiro aqui a esse texto, é porque Lenin o cita integralmente em Quem são os amigos do povo.” É preciso ver a atenção que Lenin presta a essa
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concepção do Estado como condensação das contradições. Marx nos diz (cita Lenin): “O Estado é o sumário dos combates práticos da humanidade.
Assim o Estado político exprime nos limites de sua forma sub specie rei publicae (sob o ângulo político) todos os combates, necessidades e interesses sociais”. Lenin nos dirá em outro lugar, de maneira lapidar, que o político — compreendendo aqui o Estado e a luta política de classe —- é o “econômico condensado”2º Nesse sentido, o Estado apresenta-se, para Lenin, também como lugar de decifração da unidade das estruturas, como lugar onde se pode extrair o conhecimento da unidade: “O único lugar onde se poderia extrair esse conhecimento é o da relação de todas as classes e camadas da população com o Estado e o governo, o domínio da relação de todas as classes entre si”2 Isso fora, aliás, assinalado por Engels, na sua expressão do Estado como “representante oficial” da sociedade, representante aqui no sentido de lugar onde se decifra a unidade de uma formação. Por fim, sempre nesse sentido, o Estado é igualmente o lugar onde se decifra a situação de
ruptura dessa unidade: trata-se da característica de duplo poder das es: truturas estatais, a qual constitui, como Lenin mostrou, um dos elementos essenciais da situação revolucionária.
Ora, essa relação do Estado e da articulação que especifica uma formação vem precisamente do fato de que o Estado detém aí uma função de “ordem”, de ordem política, evidentemente — nos conflitos políticos de classe -, mas
também de ordem global — de organização em sentido amplo — enquanto fator de coesão da unidade. O Estado impede, digamos assim, a deflagração do conflito político de classe na medida em que esse conflito reflete - e não numa relação entre fenômeno e essência - a unidade de uma formação. O Estado impede que se aniquilem as classes e a “sociedade”, o que é uma forma de dizer que ele impede a destruição de uma formação social. Se é verdade que os clássicos do marxismo não elaboraram teoricamente essa concepção do Estado, não é menos verdade que se encontram em suas obras
inúmeras indicações a esse respeito. Assim, Engels nos precisa essa função de “ordem” do Estado como “organização de que se dota a sociedade burguesa para manter as condições externas da produção...” Não se deve perder tempo aqui com o termo “externas”, que parece implicar uma concep-
ção mecanicista das relações entre a “base” e a “superestrutura”, mas reter o interesse da formulação do Estado como organização para a manutenção das condições da produção, e assim das condições da existência e do funcionamento da unidade de um modo de produção e de uma formação. Encontra-se 50
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igualmente uma formulação admirável nesse teórico marxista espantoso que é Bukharin: em sua Teoria do materialismo histórico, ele formula a concepção de uma formação social como “sistema de equilíbrio instável” no interior do qual o Estado desempenha um papel de “regulador”? Por fim, essa concepção está na base da noção de organização mediante a qual Gramsci apreende a função do Estado.
Modalidades da função do Estado Essa função de ordem ou de organização do Estado apresenta diversas modalidades. Estas se referem aos níveis sobre os quais ela se exerce em particular: função técnico-econômica — nível econômico; função propria-
mente política — nível da luta política de classes; função ideológica — nível ideológico. No entanto, a função técnico-econômica e a função ideológica do Estado são sobredeterminadas pela sua função propriamente política — aquela referente à luta política de classes —, na medida em que constituem modalidades do papel global do Estado, fator de coesão da unidade de uma formação: esse papel global do Estado é um papel político. O Estado está em relação com uma “sociedade dividida em classes”, e com a dominação política de classe, na medida precisamente em que ele tem tal lugar — e tal pape! - num conjunto de estruturas que têm como efeito, em sua unidade, a divisão de uma formação em classes e a dominação política de classe. Não há, propriamente falando, uma função técnico-econômica, uma função ideológica e uma função “política” do Estado: há uma função global de coesão que lhe é atribuída pelo seu lugar, e modalidades dessa função sobredeterminadas pela modalidade especificamente política. Nesse sentido, Engels nos diz: “O que importa aqui é somente constatar que, em
toda a parte, uma função social está na base da dominação política; e que a dominação política só subsistiu no tempo enquanto preencheu essa função
social que lhe era confiada” Essa tese foi igualmente desenvolvida pelos clássicos do marxismo em inúmeros textos. No entanto, quando falam de uma modalidade particular
que não se refere diretamente à luta politica de classe, viram-se com frequência teóricos interpretarem essa tese como uma pretensa relação do Estado com a “sociedade”, independentemente da luta de classes. Trata-se de uma tese bem antiga, cara à social-democracia e já presente em H. Cunow? eK.
Renner,% que opõe as “funções sociais” do Estado à sua função política, 51
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que seria a única ligada à luta e à opressão de classe: tese que se encontra, aliás, na maior parte das análises-da corrente social-democrata atual sobre
o Weifare State. Ela está igualmente implícita em certas análises sobre o Estado despótico do modo asiático de produção, Estado cuja existência estaria relacionada com diversas funções técnico-econômicas — hidráulicas
e outras —- num modo de produção em que as classes sociais, no sentido marxista, estariam ausentes. Vejamos mais de perto o problema dessas diversas funções do Estado: não avançarei ainda no seu exame sistemático, contentando-me em indicar simplesmente sua relação com a função política, a fim de elucidar o problema que nos ocupa. A descrição das formas de que esse papel global do Estado se reveste nos é dada, às vezes, é verdade, pelos clássicos do marxismo, de um modo
histórico-genético, sendo as relações do Estado nos diversos níveis expostas como outros tantos fatores de engendramento e de nascimento histórico do Estado — e, além disso, das classes sociais. Ora, é preciso ver bem que esse problema, importante, do nascimento histórico do Estado é um problema à
parte. Dispomos de esboços de respostas em Marx e Engels, mas deve-se levar em conta o caráter necessariamente limitado das informações históricas
que possuíam.” Pode-se, no entanto, reter essas análises, na medida em que elas destacam as funções do Estado que acompanham o seu lugar no todo complexo de uma formação dada dividida em classes. A função do Estado
diz respeito, em primeiro lugar, ao nível econômico, e mais particularmente ao processo de trabalho, à produtividade do trabalho. Podemos nos referir,
sobre isso, às análises de Marx acerca do Estado despótico do modo de produção asiático, à necessidade de um poder centralizado para os fins de execução de trabalhos hidráulicos necessários ao aumento da produtividade do trabalho. Nesse contexto, Engels nos diz, a propósito da relação da classe dominante e da divisão social do trabalho: A coisa é clara: enquanto o trabalho humano era ainda tão pouco produtivo que fornecia apenas pouco excedente além dos meios de subsistência necessários, o crescimento das forças produtivas, a expansão do tráfico, o desenvolvimento do Estado e do direito, a fundação da arte e da ciência só eram possíveis graças a uma divisão
reforçada do trabalho, que devia forçosamente ter por fundamento a grande divisão do trabalho entre as massas encarregadas do trabalho manual simples e os poucos privilegiados dedicados à direção do trabalho; ao comércio, aos negócios do Estado, e, mais tarde, às ocupações artísticas e científicas.
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Retenhamos aqui a relação entre o Estado, por intermédio da classe dominante, e a direção geral do processo do trabalho, mais particularmente no que diz respeito à produtividade do trabalho. Encontra-se esse problema
a propósito da divisão do trabalho nas formações capitalistas, correspondendo, por outro lado, esse papel do Estado ao duplo papel do capitalista, papel de exploração e papel de organização-vigilância do processo de trabalho. Conhece-se, também, a importância atribuída por Lenin à função
técnico-econômica do Estado — incluindo sua função de contabilidade — em seus textos de 1917-1920, Essa função do Estado, organizador do processo de trabalho, não é, aliás, senão um aspecto da sua função relativamente ao econômico. Men-
cionemos ainda simplesmente aqui a função do sistema jurídico, do conjunto das regras que organizam as trocas capitalistas, verdadeiro quadro de coesão das relações de troca. A função do Estado a respeito do ideológico consiste, digamo-lo de forma ainda meramente indicativa, em seu papel na educação, no ensino etc. No nível propriamente político, o da luta política de classe, essa função do Estado consiste na manutenção da ordem política no conflito político de classe. Essas observações nos conduzem, então, a dois resultados:
1. O papel global do Estado como fator de coesão de uma formação social pode, enquanto tal, distinguir-se em modalidades particulares referentes aos diversos níveis de uma formação, ou seja, em funções
econômica, ideológica, política no sentido estrito do termo — papel no conflito político de classe, 2.
Essas diversas funções particulares do Estado, mesmo aquelas que
não se referem diretamente ao nível político no sentido estrito do termo — o conflito político de classes —, não podem ser teoricamente apreendidas a não ser em sua relação, ou seja, inseridas no papel politico global do Estado. Com efeito, esse papel reveste-se de um caráter.
político, no sentido de que mantém a unidade de uma formação no interior da qual as contradições dos diversos níveis se condensam em uma dominação política de classe. Não se pode de fato estabele-
cer nitidamente o caráter político da função técnico-econômica do Estado, ou de sua função de atribuição da justiça, relacionando-as diretamente à sua função política no sentido estrito do termo, ou seja,
à sua função particular no conflito político de classe. Essas funções constituem funções políticas, na medida em que visam, em primeiro 53
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lugar, à manutenção da unidade de uma formação social, baseada em última análise na dominação política de classe. É nesse contexto preciso que se pode estabelecer a sobredeterminação
das funções econômicas e ideológicas pela função política, no sentido estrito, do Estado no conflito político de classe: por exemplo, as funções econômica ou ideológica do Estado correspondem aos interesses políticos da classe dominante, constituem funções políticas, não simplesmente nos casos em que a relação entre a organização do trabalho e o ensino, por um lado, e a dominação política de uma classe, por outro lado, é direta e evidente, mas também quando essas funções têm como objetivo a manutenção da unidade de uma formação, no interior da qual essa classe é
a classe politicamente dominante. Ou melhor: é na medida em que essas funções têm como objetivo primordial a manutenção dessa unidade, que elas correspondem aos interesses políticos da classe dominante, e
é precisamente esse o sentido da passagem citada de Engels, para quem uma “função social” está sempre na base de uma “função política”. Esse
conceito de sobredeterminação aplicado aqui às funções do Estado indica, portanto, duas coisas: que as diversas funções do Estado constituem
funções políticas pelo papel global do Estado, fator de coesão de uma formação dividida em classes, e que essas funções correspondem assim
aos interesses políticos da classe dominante. Ora, o deslocamento do índice de dominância nas estruturas de uma formação, da qual o Estado, lugar de condensação das contradições, cons-
titui o lugar de decifração, se reflete, regra geral, na articulação concreta das diversas funções do Estado no interior de seu papel político global. Modelo de análise cujos princípios Lenin nos dá em seus textos de 1917
sobre o aparelho de Estado: ele distingue ali a função política no sentido estrito e a função “técnica” da administração estatal — da qual faz parte a função de contabilidade —, mostrando a subordinação, relacionada à articulação específica dos diversos níveis da formação social russa, dessa
função técnico-econômica à função política no sentido estrito.” No entanto, poder ler corretamente a articulação de uma formação na
articulação das funções do Estado supõe previamente um princípio de leitura; esse consiste precisamente no papel do Estado, fator de coesão da unidade de uima formação. Neste sentido, a dominância, no papel global
do Estado, de sua função econômica indica, regra geral, que o papel dominante, na articulação das instâncias de uma formação, cabe ao político;
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e isso não simplesmente no sentido estrito da função direta do Estado na luta propriamente política de classe, mas no sentido indicado. Nesse caso, a dominância da função econômica do Estado sobre as suas outras funções é conjugada com o papel dominante do Estado, na medida em que a função de fator de coesão necessita de sua intervenção específica na instância que detém precisamente o papel determinante de uma formação — o econômico. Esse caso é nítido, por exemplo, no Estado despótico do modo asiático de produção — dominância do político refletida em uma dominância da função econômica do Estado; ou ainda, nas formações capitalistas, no caso do ca-
pitalismo monopolista de Estado e da forma “intervencionista” do Estado capitalista. Em contrapartida, no caso da forma de Estado capitalista que é o “Estado liberal” do capitalismo privado, o papel dominante exercido pelo econômico se reflete pela dominância da função propriamente política do Estado — “Estado policial” —, e por uma não intervenção específica do Estado no econômico. Isso não quer absolutamente dizer, nesse caso, que
o Estado não tem função econômica — que o próprio Marx nos indica em O capital a propósito da legislação das fábricas —, mas simplesmente que esta não tem o papel dominante. Ver-se-á, com efeito, mais adiante, que é errado considerar, como se faz às vezes, que a forma de Estado liberal não possuiu funções econômicas importantes. De fato, o que permite considerar essas funções do Estado liberal como não intervenção específica
no econômico é precisamente, por um lado, a não dominância da função econômica do Estado liberal sobre as suas outras funções, em relação às
outras formas de Estado, mais particularmente a que corresponde ao capitalismo monopolista de Estado; por outro lado, o que é aqui correlativo, a não dominância da instância do Estado, fator de coesão, no conjunto das
instâncias de uma formação social do capitalismo privado. Também seria necessário fazer aqui duas observações suplementares. Em primeiro lugar, o papel do Estado como fator de coesão não se reduz a uma “intervenção”, a rigor, do Estado nos diversos níveis, mais particularmente no nível econômico. Por exemplo, a não intervenção do
Estado no caso do capitalismo privado não significa absolutamente que o Estado não possua essa função de coesão; esta se manifesta, nesse caso, por uma não intervenção específica no econômico, Não me resta senão
mencionar aqui o caso do sistema do direito que é, como demonstraram Marx e Engels, uma condição de funcionamento do econômico na medida em que, simultaneamente, fixa as relações de produção como relações
de propriedade formal, e constitui um quadro de coesão das relações de 55
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troca, inclusive da compra e venda da força de trabalho. Em segundo lugar, é preciso ver que a função global do Estado, fator de coesão da unidade, não significa absolutamente que ele conserve, sempre, o papel dominante em uma formação nem, aliás, que quando esse papel dominante é desempenhado pelo econômico, o Estado não tenha mais essa função de fator de coesão.
Notas 1
Esse texto é citado segundo as Giuvres choisies das Éd. Sociales (p. 197 ss). Sobre a identificação, em Gramsci, da “ciência” e da “filosofia da práxis” com a política, ver: 1! materialismo storico e la filosofia di B. Croce, Einaudi, p. 117 ss., e Note sul Machiavelli,
sulla politica e sullo Stato moderno, Einaudi, p. 79 8s., p. 142 ss. 2
Sobre este assunto, remeto às análises de Althusser em Lire le Capital, 1965, t. II.
3
The social system, Glencoe, 1951, p. 126 ss.
4
Com
efeito, não só essa corrente se filia diretamente ao historicismo, mas também
se
apresenta, pela importância de que se reveste, como a “alternativa” ao marxismo. Assim
como assinala W. Runciman, no excelente livro: Social science and political theory, 1965
5 6 7
(p. 109): “Em ciência política, não existe de fato, salvo o marxismo, senão um único candidato sério para uma teoria geral da sociedade... Seus defensores declaram que existe uma série alternativa de propostas gerais que fornecem uma explicação melhor do comportamento político do que o marxismo... Trata-se do funcionalismo...” Ou ainda (p. 122): “Permanece o fato de que algum tipo de funcionalismo é a única alternativa atual ao marxismo, como base de uma teoria geral em ciência política”. Para a distinção entre modo de produção e formação social, essencial para o problema do conceito de história, veja-se a Introdução, “A dialética materialista”, Por Marx. É preciso, no entanto, assinalar que este conceito de prática é ainda, no estado atual das pesquisas, apenas um conceito prático (técnico). Trata-se do que se pode designar como superestrutura jurídico-política do Estado, com a condição de assinalar isto: esse termo engloba muito esquematicamente duas realidades distintas, dois níveis relativamente autônomos, a saber, as estruturas jurídicas
— 0 direito - e as estruturas políticas — o Estado. Seu emprego é legítimo na medida em que os clássicos do marxismo estabeleceram efetivamente a relação estreita desses dois níveis; esse emprego não nos deve fazer esquecer, entretanto, que esse termo recobre dois níveis relativamente distintos, cuja combinação concreta depende do modo de produção e da formação social considerados. Dever-se-á levar em conta esta observação quando se empregar esse termo.
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9
Pode-se assim subscrever perfeitamente a definição que M. Verret dá da política: “A prática política é a prática de direção da luta de classes no Estado e por ele” (Théorie et politique, Éd, Sociales, 1967, p. 1.944). Abordaremos a seguir a questão da relação entre a política eo Estado, tal como ela é colocada pela antropologia política atual. Carta a Bolte de 29 de novembro de 1871.
10 Lenin, CEuvres complêtes, ÉS. Sociales, t. XIX. 11 Thêses d'Ávril, “Lettre sur la tactique”, i2 Mais particularmente sobre a relação luta econômica-luta política, ver, adiante, pp. 81 e 88-89.
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13 Assim, por exemplo, Max Adler, Die Staatsauffassung des Marxismus, Darmstadt, 1964, p. 49 ss. É, entretanto, lamentável que a obra de M. Adler tenha permanecido tão pouco conhecida, pois ele é, indiscutivelmente, um dos espíritos mais vivos e aguçados da história do pensamento marxista. 14 Deixo por enquanto de lado os problemas da relação entre o Estado, objetivo da prática política, e o “momento atual”, objeto da prática política. 15 Bettelheim, “Problématique de la période de transition”, Études de planification socialiste, n.3,p. 147, 16 Antes de entrar nos textos dos clássicos do marxismo relativos a este problema, indico
que obras importantes da ciência política atual começam a acentuar esse papel do político como fator da manutenção da unidade de uma formação — e isso, numa tentativa de “definição”.do político e, de alguma forma, em reação contra M. Weber, que definia o Estado exclusivamente pelo fato de deter o “monopólio da força legitima”. Assim, por exemplo, Apter define o político como uma estrutura que “detém responsabilidades determinadas para a manutenção do sistema de que faz parte” (CA comparative method for the study of politics”, Political Behaviour, ed. por Eulau, p. 82 ss.). Almond insiste no fato de que as estruturas regionais de um sistema são constituídas por seus limites, tendo o político precisamente a “função crucial da manutenção dos limites no interior do sistema” (Almond & Coleman, The politics of developing areas, 1960, p. 12 ss.; ver, igualmente, G. Balandíer,
Anthropologie politique, 1967, p. 43). É, aliás, também o caso de vários pesquisadores que seguem, em suas análises, o modelo cibernético, como, por exemplo, D. Easton (4 framework for political analysis, 1965) e K., Deutsch (The nerves of government, 1966) etc. Não posso entrar aqui na discussão desse modelo cibernético, que não se deveria, aliás, confundir de maneira alguma com o modelo funcionalista. Contento-me com indicar que esse critério de estrutura que tem o papel de fator de coesão do sistema, combinado, como veremos, com o do monopólio da força legitima, parece efetivamente pertinente a fim de delimitar a estrutura do Estado, mas no modo de produção capitalista, ou mesmo no caso do Estado capitalista. Por outro lado, a respeito do problema das relações, nesses autores, entre o político e o Estado, ver abaixo, nota 27.
17 Origine de la famille..., Éd. Sociales, p. 156 ss.
18 Anti-Dihring, Êd. Sociales, p. 157 ss. 19 CEuvres, t. 1, p. 178.
20 21 22 23 24 25
À nouveau les syndicats: La situation actuelle ei les erreurs de T rotsky et de Boukharine. Que faire? Anti-Dilhring, pp. 318-319. Theorie des Historischen Materialismus, Hamburg, 1922, t. Il, p. 162 ss. Anti-Dilhring, p. 212. Cunow, Die Marxische Geschichts, Geselischafts, und Staats theorie, 1920-1921, t. II, p. 309 ss. 26 K. Renner, Marxismus, Krieg und Internationale, 1917, p. 28 ss. 27 Não é inútil mencionar aqui alguns problemas de definição colocados pela antropologia política que ainda está em seu início. Certos autores — entre os quais Apter, Easton, Nadel, G. Balandier (Anthropologie politique, 1967), J. Pouillon etc. - questionaram as relações estabelecidas pelo marxismo entre o político e o Estado, e isso, pondo ao mesmo tempo em causa uma distinção radical entre sociedades segmentárias — sem Estados — e sociedades com Estado, e insistindo sobre a possibilidade de existência do político independentemente da existência do Estado no sentido estrito. Entretanto, trata-se de esclarecer as definições. As críticas desses autores são justas se se admitir, como eles fazem, uma
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concepção estreita — juridicista —, muito tempo preponderante, do Estado. Com efeito, esses autores, em sua maioria, como assinalei anteriormente — nota 16 —, admitem uma definição do político análoga à que acabe-de expor, mas enfatizam que o político pode existir independentemente do Estado ao qual reservam uma definição juridicista-formal (admitindo, por exemplo, o critério weberiano do “monopólio da força legítima” ou o do “centralismo”): o Estado identifica-se, assim, de algum modo com o Estado moderno (ver Easton: The political system, 165, e também Balandier). Porém, o problema se dilui se se
sublinhar, na tinha de Marx e de Engels, que o político coincide com a emergência de um aparelho autonomizado de governo em relação com um grupo especializado e privilegiado que monopoliza a gestão estatal. Nesse sentido, pode-se estabelecer que: a) À distinção radical sociedades segmentárias/sociedades com Estado, baseada numa concepção juridicista do Estado, torna-se efetivamente caduca. b) O político, como “região particular”, coincide com a emergência mínima de certas
formas estatais, mesmo embrionárias — Engels; é o caso, por exemplo, dos Estados seg-
mentários. c) O político e o Estado correspondem à formação das classes sociais — é aí que se esconde a lebre —, revestindo-se, aliás, o processo histórico de formas extragrdinariamente complexas, que as análises de Marx acerca do modo asiático de produção não bastam de maneira alguma para inventariar. Mais particularmente, a oposição marxista tradicional “laços de parentesco/relações de classe”, que, além disso, decalcava a de “sociedade segmentária/sociedade com Estado”, deve ser revista (ver R. Bastide, Formes élémentaires
de la stratification sociale, 1965). 28 Anti-Dihring, p. 213. 29 Mais particularmente “Une des questions fondamentales de La Revolution”, Euvres, t. XXV, p. 298. É preciso, no entanto, assinalar que Lenin distingue etapas e momentos decisivos da transição, marcados precisamente por permutações de dominância das funções política e econômica do Estado.
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Possuímos já elementos suficientes para examinar o conceito marxista de classe social e de luta de classe e suas incidências sobre o domínio do político: consideraremos aqui, sobretudo, as obras políticas de Marx, de Engels e de Lenin. A referência específica, a respeito desse problema, a essas obras decorre ao mesmo tempo de um princípio de leitura referente a seu estatuto teórico, e da posição que adoto relativamente ao conceito de classe social.
Com efeito, é preciso recordar aqui que o modo capitalista de produção “puro”, que se distinguiu, aliás, de uma formação social capitalista, e que é composto, em sua pureza, por diversas instâncias — econômica, política, ideológica —, é caracterizado, segundo Marx, por uma autonomia
específica de suas instâncias e pelo papel dominante aí assumido pelo econômico. Isso tem incidências importantes do ponto de vista teórico.
Essas diversas instâncias, como objetos de pesquisa teórica, são passíveis de um tratamento científico específico. Elas são nítidas no que se refere
ao estatuto teórico de O capital, obra que comporta um tratamento do modo de produção capitalista (M.P.C.). No entanto, pela autonomização das
instâncias que caracteriza o econômico, e pelo lugar dominante que ele aí ocupa, esse tratamento está centrado na instância regional do econômico
desse modo. O que não quer dizer que as outras instâncias estejam ausentes: elas estão presentes, mas, de certa forma, indiretamente, por seus efeitos na região do econômico. Por sua vez, esse elemento tem sua importância 59
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no que concerne ao problema das classes sociais: se encontramos, em O capital, elementos necessários para a construção do conceito de classe, não devemos perder de vista que esse problema está ele próprio centrado na determinação econômica das classes sociais. Não se deveria absolutamente concluir daí que essa determinação econômica é suficiente para a
construção do conceito marxista de classe social, assim como o tratamento específico do econômico do M.P.C. em O capital não reduz a importância das outras instâncias para o exame científico desse modo. Daí a importância de que se revestem, a esse respeito, as obras políticas de Marx e de Engels. Uma observação a propósito do seu estatuto teórico: a maioria tem por objeto o estudo de formações sociais capitalistas historicamente determinadas, mais particularmente de sua conjuntura política. A problemática das classes sociais relaciona-se aí principalmente com sua presença nessas formações. No entanto, conjuntamente, esses textos contêm, em estado prático, a enunciação do problema teórico das classes sociais num modo de produção, neste caso, o M.P.C., na medida em que destacam a importância da determinação política e ideológica
na construção do conceito de classe. Isso é, aliás, muito nítido nas obras políticas de Lenin. É importante reter as datas desses textos: admitindo o corte na obra de Marx, levarei em consideração apenas aqueles que, da Miséria da filosofia, texto de 1847, se estendem até 4 guerra civil na França. Não há dúvida
de que a enunciação do problema das classes ainda sofre aqui flutuações, à medida que a problemática original de Marx se consolida, Entretanto, pode-se decifrar, mediante esses textos, a permanência de uma questão,
referente precisamente à importância da determinação política e ideológica para a construção do conceito de classe, Não é então surpreendente que esses textos, contendo fórmulas que nem sempre são transparentes, se tenham prestado a inúmeros erros de interpretação. Abordemos, pois, o problema das classes nas obras políticas de Marx, e tentemos compreender suas relações com o problema das classes em O capital.
O problema do estatuto teórico das classes Partamos de alguns textos de Marx referentes à distinção entre a luta econômica e a luta política, entre os “interesses econômicos” de classe e os “interesses políticos” de classe. Constata-se, em primeiro lugar, que 60
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Marx parece distinguir, nas suas análises sobre esse aspecto da relação do político e do econômico, três níveis ou três momentos. Os dois primeiros níveis referem-se à “luta econômica” e aos “interesses econômicos”. No primeiro desses dois níveis do econômico, trata-se de uma luta econômica
entre o capitalista e o operário, em suma, entre “indivíduos-agentes da produção”, luta que não manifesta, porém, seguindo à letra essas citações, relações de classe. No Manifesto comunista, Marx nos diz: O proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento. Sua luta com a burguesia começa com sua própria existência. No início, a luta é empreendida
por operários isolados; depois são os operários de uma fábrica, por fim os operários de um ramo de indústria num mesmo centro que combatem contra tal burguês que os explora diretamente. Neste estágio, os trabalhadores formam uma massa disseminada...
Progressivamente, esses “choques individuais” entre os operários e os burgueses assumem cada vez mais o caráter de colisões entre “duas classes”. No entanto, pode-se distinguir em Marx o que aparece como um segundo nível de luta econômica, de interesses econômicos, que não se
coloca mais, por um lado, no nível dos indivíduos-agentes de produção, mas que, por outro lado, também não exprime, a rigor, relações de classe,
embora Marx nos diga às vezes que se trata aqui de uma classe em si” distinta da classe para si. É o caso dos seus textos referentes à luta sindical,
à organização sindical da classe operária, ao contrário de sua organização propriamente política: Na juta contra o poder coletivo das classes possuidoras, o proletariado não pode
agir como classe a não ser constituindo-se ele mesmo em partido político distinto... A coalizão das forças operárias, já obtida pela luta econômica, deve também servir de alavanca nas mãos dessa classe na sua luta contra o poder político."
Ê, aliás, desnecessário multiplicar as citações bem conhecidas de Marx,
segundo as quais o proletariado só existe como classe por sua organização em partido distinto.? Esses níveis de luta — os dois níveis de luta econômica e o nível da luta política de classe — são nítidos no texto seguinte de Marx em Miséria
da filosofia:
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As condições econômicas transformaram inicialmente a massa do país em trabalhadores. A dominação do capita! triou para essa massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, essa massa é já uma classe diante do capital, mas não ainda
para si mesma. Na luta, da qual assinalamos apenas algumas fases, essa massa se reúne, cia se constitui em classe para si. Os interesses que defende se tornam inte-
resses de classe. Mas a luta de classe contra classe é uma luta política.
Conhece-se a importância desses textos de Marx na elaboração da teoria marxista das classes sociais. O que se deve de fato assinalar é que essas análises foram, frequentemente, interpretadas de maneira errônea,
sem levar em conta as exigências de uma enunciação científica do problema das classes sociais. Com efeito, há uma leitura desses textos que se deve abandonar desde o
início, pois ela se vincula finalmente à problemática do “grupo social” que não existe em Marx: é a leitura Aistórico-genética. Tomando os textos de Marx ao pé da letra, tal como eles se apresentam diretamente, essa leitura
veria neles uma historiografia do processo de “gênese” da classe social. Esses diversos níveis teóricos de análise de Marx constituiriam etapas históricas da formação de uma classe: massa indiferenciada de indivíduos no início, que se organizaria depois em uma “classe em si”, para chegar enfim à “classe para si”. Tal leitura dessas análises de Marx relaciona-se, aliás,
ela mesma, a uma problemática historicista: seria necessário assinalar aqui que é precisamente na teoria das classes que se manifesta mais claramente
seu caráter inadequado. Podem-se distinguir aí duas correntes, embora tenham pressupostos comuns. Trata-se, em ambas, de uma importação para o interior do marxismo do esquema ontológico-genético da história, no sentido hegeliano do termo, e que se desenvolve sobre o tema “são os homens que fazem a sua própria história”. a) Na primeira corrente da problemática historicista, reatando diretamente com a problemática hegeliana, concebe-se a classe como
sujeito da história, como fator de geração genética das estruturas de uma
formação social e como
fator de suas transformações;
Lukács é o representante típico dessa interpretação historicista da classe e da consciência de classe. Nessa perspectiva, o problema teórico das estruturas de uma formação social se reduz à problemática de sua origem, ela própria relacionada ao autodesenvolvimento da classe-sujeito da história. O processo de organização da 62
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classe-sujeito em classe política, para si, corresponde aqui muito exatamente ao tipo hegeliano de historicidade do Conceito. Essa mesma concepção das classes se encontra em autores como L. Goldmann e H. Mareuse.* b) A segunda corrente historicista encontra-se em certas interpretações “funcionalistas” de Marx,
como as de Th. Geiger, de R.
Dahrendorf e, ultimamente, na França, a de Bourdieu.” Essa inter-
pretação tem, sobre a primeira, a vantagem de destacar o problema de uma formação social enquanto sistema de estruturas, problema que não é imediatamente aqui relacionado à gênese das estruturas. No entanto, o próprio dualismo sincronia-diacronia adotado pela corrente funcionalista decorre, em última análise, da problemática
historicista. A interpretação funcionalista define a formação social enquanto sistema de estruturas apenas como quadro referencial, objeto de um exame estático, sendo o elemento dinâmico-diacrônico desse sistema representado pela “luta de classes”. O estatuto próprio do “grupo” em Marx seria constituir o elemento dinâmico das estruturas; o grupo teria a função de ser o princípio e a condição de sua transformação. Estruturas sociais e classes sociais seriam aqui apreendidas numa relação de estrutura e função, de sincro-
nia e diacronia: exprimindo essa diacronia somente a concepção historicista dos “homens que fazem sua própria história”, de uma história fundada nos atores sociais, “as forças capazes de mudar os elementos da estrutura”, representadas pelas classes-funções. Não causará espanto ver assim as relações profundas entre a concepção
da história em-Lukács e a concepção da diacronia nas teorias funcionalistas, manifestando ambas a influência expressa do historicismo de Max Weber, Essa concepção conduz assim à cisão teórica de um duplo estatuto da classe social: a situação de classe — classe em si
determinada pelo seu lugar na estrutura econômica — e a função de . classe — classes para si, luta de classes — como fator diacrônico de transformação da estrutura.”
O que se pode já reter aqui é que a concepção historicista, implícita nas análises dessa corrente, conduz finalmente ao estabelecimento de uma relação ideológica entre os indivíduos-agentes da produção, os “homens”
e as classes sociais: essa relação é fundada teoricamente pelo estatuto do sujeito. Os agentes da produção são vistos como os atores-produtores, como 63
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os sujeitos criadores das estruturas, e as classes sociais como os sujeitos da
história. A distribuição dos agentes em classes sociais é ela mesma relacionada ao processo, de extração historicista, de criação-transformação das estruturas sociais pelos “homens”, Ora, essa concepção ignora dois fatos essenciais: em primeiro lugar, que os agentes da produção, por exemplo, o operário assalariado e o capitalista, enquanto “personificações” do trabalho assalariado e do capital, são considerados por Marx como os suportes ou os
portadores de um conjunto de estruturas. Em segundo lugar, que as classes sociais jamais são concebidas teoricamente por Marx como a origem genética das estruturas, porquanto o problema se refere à definição do conceito de classe. Veremos por quê. No entanto, existe outra deformação da teoria marxista das classes
sociais: a interpretação “economicista” que constitui de fato o equivalente invariável da corrente representada pelo “voluntarismo” do jovem Lukács. A classe social estaria localizada unicamente no nível das relações
de produção, concebidas de maneira economicista, ou seja, reduzida ao lugar dos agentes no processo de trabalho e às suas relações com os meios
de produção. Ora, se é verdade que os próprios conceitos de relações de produção e de modo de produção foram interpretados por essa corrente de uma maneira economicista, ou mesmo mediante conceitos emprestados da teoria econômica pré-marxista, não é menos verdade, porém, que o
problema da exclusividade ou não da determinação econômica das classes persiste integralmente, mesmo numa concepção autêntica das relações de produção e do modo de produção.
Com efeito, o modo de produção “puro” — que se distinguiu de uma formação social — define o econômico por seu lugar e sua função no todo complexo das instâncias que o conceito de modo de produção abrange. No entanto, isso não reduz o problema da especificidade do econômico no interior desse modo. No caso do modo de produção “puro”, trata-se sempre de
uma coexistência de níveis específicos, muito esquematicamente o econômico — relações de produção —, o político, o ideológico, que aparecem como
outras tantas estruturas regionais do modo de produção “puro”. Na medida então em que o conceito de modo de produção não só não reduz a especificidade das instâncias, mas também permite localizá-las enquanto regiões em sua relação com a região do econômico, o problema assinalado das classes sociais não pode ser escamoteado e permanece intacto: estas são definidas unicamente por sua relação com o econômico? A resposta a essa pergunta indicará a solução a dar ao problema das classes numa formação social.
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De fato, pode-se constatar que as análises de Marx, no tocante às classes sociais, se referem sempre não simplesmente à estrutura econômica — rela-
ções de produção —, mas ao conjunto das estruturas de um modo de produção e de uma formação social, e às relações que aí mantêm os diversos níveis.
Digamos, para antecipar, que tudo acontece como se as classes sociais fossem o efeito de um conjunto de estruturas e de suas reloções, no caso: 1º) do nível econômico; 2º) do nível político; e 3º) do nível ideológico.” Uma
classe social pode muito bem ser identificada quer no nível econômico, quer no nível político, quer no nível ideológico, podendo, então, ser localizada
em relação a uma instância particular. No entanto, a definição de uma classe enguanto tal e sua apreensão em seu conceito se relacionam com o conjunto dos níveis cujo efeito ela constitui. Estas considerações ainda permanecem
vagas, pois se de fato uma
classe social se apresenta como efeito de um conjunto de estruturas, ainda
é preciso delimitar exatamente o domínio particular sobre o qual desse conjunto se refletem ao tomar a forma da classe social, ses sociais não se apresentam, digamos logo, como o efeito de estrutural particular — por exemplo, a estrutura econômica —
os efeitos As clasum nível sobre um
outro nível estrutural — a estrutura política ou a estrutura ideológica, no
interior portanto da estrutura, mas como o efeito global das estruturas no domínio das relações sociais, que conotam elas próprias, nas sociedades
de classe, a distribuição dos agentes-suportes em classes sociais — e isso na medida em que as classes sociais determinam o lugar dos agentes-suportes relativamente às estruturas de um modo de produção e de uma formação
social. Confundir esses domínios tem um nome na história do pensamento marxista: é O antropologismo do sujeito. Trata-se então, em primeiro lugar, de situar exatamente o que são as “relações sociais” em sua correspondência com as estruturas de um
modo de produção e de uma formação social. Mais particularmente, foi a confusão entre as estruturas e as relações sociais, operada aqui no nível econômico, que conduziu o economicismo à redução das classes sociais
unicamente ao econômico. É também por esse viés que se pode decifrar o impacto do antropologismo na tendência economicista. Com efeito, essa
redução deve-se à sua confusão, operada aqui pelo uso indiferenciado dos termos “relações de produção” e “relações sociais de produção”, quando de fato esses dois termos recobrem realidades diferentes. As classes so- ciais, enquanto relação social de produção, eram reduzidas unicamente às
relações de produção, conotando o termo “relações sociais de produção” 65
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a emergência do social na própria estrutura, e no ponto privilegiado que
seriam as “relações de produção-relações sociais de produção”. É verdade, aliás, que o próprio Marx emprega de maneira indiferenciada os termos relações de produção e relações sociais de produção, e somente por uma
leitura atenta de seus textos se pode descobrir a diferença das realidades recobertas por esses conceitos.
Vejamos mais de perto. A concepção marxista científica das relações sociais de produção traz em si a crítica radical de toda antropologia econômica, a qual relaciona o econômico em geral às “necessidades” dos “sujeitos” humanos, e, por conseguinte, a crítica radical da concepção das relações
sociais como relações intersubjetivas. E isso em dois sentidos: por um lado, a instância do econômico consiste na unidade do processo de trabalho (no tocante às condições materiais e técnicas do trabalho e, mais particularmente,
aos meios de produção, em suma, em geral às relações “homem-natureza”) e das relações de produção (no tocante às relações dos agentes de produção e dos meios de trabalho). Resulta daí que as relações de produção conotam não simplesmente relações dos agentes da produção entre si, mas também essas relações em combinações específicas desses agentes e das condições materiais e técnicas do trabalho. Por outro lado, as relações sociais de produção são relações de agentes de produção distribuídos em classes sociais, relações de classe. Dito de outro modo, as relações “sociais” de produção, as relações de classe, apresentam-se, no nível econômico, como um efeito
dessa combinação específica agentes de produção-condições materiais e técnicas do trabalho que são as relações de produção. Parece, portanto, que não se pode fazer a crítica radical de todo “antropologismo”, na sua forma historicista ou na sua forma humanista, a
não ser distinguindo nitidamente as estruturas e as relações sociais — gesellschafiliche Verhiiltnisse —, designando estas últimas a distribuição dos suportes em classes sociais. Esses dois domínios são respectivamente recobertos, no nível econômico, pelo conceito de relações de produção — Produktions-verháiltnisse — e pelo conceito de relações sociais de produção — Geselischafiliche Produktions-verhiltnisse. Com efeito, ao contrário de uma concepção economicista das classes sociais, que confunde esses dois domínios e reduz um conceito ao outro, o econômico, recoberto na
estrutura pelo conceito de relações de produção, não constitui de maneira alguma um ponto privilegiado de emergência do social. As relações de produção correspondem, nas relações sociais, às relações sociais de produção: mas pode-se falar também a rigor de relações “sociais” políticas e de 66
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relações “sociais” ideológicas.” Essas relações sociais, enquanto relações
de classes, isoladas aqui em relação à instância do político e do ideológico, apresentam-se elas mesmas como o efeito das estruturas políticas e ideológicas sobre as relações sociais. As diversas instâncias assinalam, portanto, níveis e etapas sucessivas simultaneamente nas estruturas e nas relações sociais. No tocante ao econômico, tomemos, nas estruturas, o caso
das relações de produção: elas consistem em formas específicas de combinação dos agentes de produção e dos meios de produção. Essa estrutura das relações de produção “determina lugares e funções que são ocupados e assumidos pelos agentes da produção, que nunca são senão os ocupantes desses lugares na medida em que são os portadores (Tráger) dessas funções”.'º As relações de produção têm como efeito, sobre as relações sociais, e no tocante ao econômico, uma distribuição dos agentes de produção em classes sociais que são, nesse nível, as relações sociais de produção. A rigor, as relações de produção enquanto estrutura não são, portanto,
classes sociais: e não me refiro aqui à realidade empírica do “grupo”, e sim ao conceito de classe, querendo dizer com isso que o conceito de classe não pode recobrir a estrutura das relações de produção. Estas consistem
em formas de combinação, sendo a relação das categorias do capital e do trabalho assalariado expressa por um conceito particular, o de mais-valia. Nessa perspectiva, o capital e o trabalho assalariado não são evidentemente
as realidades empíricas dos “capitalistas” e dos “operários”, mas também não podem ser designados por um conceito — as classes sociais — que recobre de fato relações sociais. Essas observações valem, aliás, igualmente para as
outras instâncias: as estruturas do político, nomeadamente a superestrutura jurídico-política do Estado, não são classes sociais, nem tampouco as estruturas do ideológico. No entanto, elas têm por efeito, nas relações sociais, e no nível delas — relações sociais jurídico-políticas e relações sociais ideológicas — à distribuição dos agentes que são seus portadores em classes sociais. Mais - particularmente, no caso do direito, sabe-se que esse efeito depende da pro-. priedade jurídica formal dos meios de produção. Perceberemos a importância
dessas observações se considerarmos as confusões a que esses problemas não resolvidos conduziram, ultimamente, M. Godelier.! Pode-se, assim, tentar exprimir as relações entre as estruturas de um modo de produção ou de uma formação social e as relações sociais, as clas-
ses sociais, ou seja, definir o estatuto teórico da classe social. Em primeiro lugar, não se trata de relações entre estática e dinâmica — apreendidas às vezes como relações de estrutura sincrônica e de função diacrônica, segundo 67
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um erro corrente que consiste em apreender as estruturas de acordo com seu grau de permanência — ou, dito de outro modo, de relações historicistas de origem entre o sujeito-produtor e seu produto. Também não se trata de uma relação epistemológica simples entre o “grupo” (a classe), o “concreto
empírico” — no sentido em que Lévi-Strauss nos diz que as “relações sociais” são a “matéria-prima” das estruturas! — e seu “modelo teórico”, neste caso, as estruturas -- decorrendo a teoria do modelo que identifica estrutura e
conceito de uma teoria empirista do conhecimento. As classes sociais não são, de fato, uma “coisa empírica” cujas estruturas seriam o conceito: elas conotam relações sociais, conjuntos sociais, mas são seu conceito, da mesma
maneira que os conceitos de capital, de trabalho assalariado, de mais-valia constituem conceitos de estruturas, de relações da produção." Mais exatamente, a classe social é um conceito que indica os efeitos do
conjunto das estruturas, da matriz de um modo de produção ou de uma formação social sobre os agentes que constituem seus suportes: esse conceito
indica, portanto, os efeitos da estrutura global no domínio das relações sociais. Nesse sentido, se a classe é um conceito, esse conceito não designa
uma realidade que possa ser situada nas estruturas; designa o efeito de um conjunto de estruturas dadas, conjunto que determina as relações sociais
como relações de classe.” O que quer dizer que a classe social não pode ser teoricamente apreendida como uma estrutura regional ou parcial da estrutura
global, da maneira pela qual, por exemplo, as relações de produção, o Estado ou a ideologia constituem efetivamente suas estruturas regionais. E isso não porque o efeito das estruturas — a classe -- não pode ele próprio constituir uma estrutura, ou porque a classe é o “concreto empírico” -- o grupo — ao
passo que as estruturas são seu conceito: é porque entre o conceito de classe, conotando relações sociais, e os conceitos conotando estruturas, não há
homogeneidade teórica No entanto, se é verdade que as classes sociais não podem ser consideradas como uma estrutura no primeiro domínio designado, elas constituem, enquanto efeito estrutural, uma estrutura no quadro referencial particular das relações sociais. Esse quadro é ele mesmo estruturado enquanto circunscrito pelos limites colocados pelas estruturas, limites que se refletem como efeitos
do conjunto de um domínio sobre o outro. Isso se tornará mais claro quando se examinar a imbricação da diferenciação estruturas-relações sociais com
a de estruturas-práticas, e ou mesmo práticas de classe.' Essa diferença de domínios é indicada, aliás, em Marx e Engels, pelo emprego, habitual em suas obras, e a fim de designar um “todo” social 68
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historicamente determinado, de dois termos, o de formação social — mais exatamente, “formação econômico-social” — e o de sociedade, mais particularmente na expressão “sociedade dividida em classes”. Neste sentido, o
termo, no Marx da maturidade, Birgerliche Geselischaft, significa quase sempre não “sociedade civil” e sim “sociedade burguesa”, a fim de especificar a sociedade capitalista. O emprego por Marx do termo “sociedade” no lugar de “formação social” não constitui um simples deslize teórico ou uma mera flutuação de terminologia, mas indica o problema de uma diferenciação entre as estruturas e as relações sociais. O termo “formação
social” refere-se rigorosamente aos níveis estruturais; o de sociedade indica frequentemente, de maneira descritiva, o domínio das relações sociais. Que consequências concretas podem decorrer dessas observações no
tocante à constituição das classes sociais? Em primeiro lugar, a constituição das classes não se relaciona unicamente ao nível econômico, mas
consiste num efeito do conjunto dos níveis de um modo de produção ou de uma formação social, A organização das instâncias em níveis econômico, político, ideológico reflete-se, nas relações sociais, em prática econômica, política e ideológica de classe e em “luta” das práticas das diversas classes. Sendo as relações sociais um domínio-efeito estruturado do sistema das'estruturas, as etapas sucessivas de luta de classe mantêm o mesmo
tipo de relações que as instâncias da matriz. A determinação em última instância da luta econômica de classes — correspondência com as relações de produção — no domínio das relações sociais pode refletir-se por um deslocamento do papel dominante para um outro nível de luta de classes
— luta política, luta ideológica. O papel determinante, na constituição das classes sociais, de sua correspondência com as relações de produção, com a estrutura econômica, indica de fato, muito exatamente, a constante “determinação-em-última-instância” do econômico nas estruturas, refletida
sobre as relações sociais.!? Melhor dizendo, a articulação das estruturas que especifica um modo: de produção dado ou uma formação social é, regra geral, a das relações
sociais, dos níveis de luta de classes. Tomemos por exemplo o caso do modo de produção feudal: ele é especificado por uma articulação particular do econômico, do político e do ideológico, refletindo-se a determinação em última instância do econômico, quase sempre, pelo papel dominante do político, definido de acordo com seu lugar e sua função dentro desse modo, e às vezes mesmo do ideológico. Tomemos agora o caso das relações sociais: as classes sociais desse modo de produção, essas classes determinadas por 69
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seu estatuto “público-político”, mostram que a determinação em última instância da organização econômica de classe se traduz aqui pelo papel dominante da sua organização política. Essas classes são, em primeiro lugar, determinadas pelo estatuto público dos agentes da produção, pela sua organização jurídico-política definida de acordo com o lugar e a função do político nas relações sociais feudais, que são apenas o reflexo do lugar e da função do político nas estruturas. Marx, em inúmeros textos, mais particularmente nos Grundrisse, assinalará, mas de uma maneira descritiva, como vimos, essa especificidade das “castas” e dos “estados”
a respeito das classes sociais modernas.
As classes em um modo de produção e em uma formação social Por fim, uma última observação a propósito das classes sociais em relação a um modo de produção dado e em relação a uma formação social
historicamente determinada: trata-se do problema do “número” das classes sociais nas análises de Marx e de Engels referentes a uma formação social. Sabe-se que as variações na enumeração das classes foram muitas vezes imputadas — por R. Aron, por exemplo! — ao fato de que Marx e
Engels teriam implicitamente admitido uma pluralidade de critérios de distinção das classes, além dos que se referem rigorosamente às estruturas das instâncias.!º Está claro que tal interpretação é errônea no tocante à distinção entre modo de produção e formação social. No exame teórico de
um modo de produção “puro”, do M.P.C. “puro”, por exemplo, tal como se apresenta em O capital, pode-se ver que o seu efeito sobre os suportes se reflete em uma distinção de duas classes, a dos capitalistas e a dos operários assalariados. No entanto, uma formação social consiste numa
sobreposição de vários modos de produção, dos quais um detém o papel dominante: está-se, então, na presença de mais classes do que no modo
de produção “puro”. Essa extensão do número das classes não é devida a qualquer variação na utilização de seus critérios de distinção, mas se refere
rigorosamente: a) aos modos de produção em presença nessa formação, e b) às formas concretas de que se reveste sua combinação. Convém, no entanto, observar que não se deve concluir daí que a análise das classes no exame de um modo de produção
“puro” contenta-se com sua inserção
unicamente no nível econômico das relações de produção, não se levando 70
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em conta sua relação com os outros níveis de estruturas a não ser no exame de uma formação social. Tanto assim que um modo de produção “puro” consiste em uma articulação das diversas instâncias, apresentando-se as classes sociais, no exame desse modo “puro”, como o efeito de sua matriz
sobre seus suportes: por exemplo, no exame teórico do modo de produção feudal “puro”, as classes desse modo apresentam-se já como “castas” eco-
nômico-políticas particulares. Isso vale também para o M.P.C. “puro” tal como é estudado em O capital, Vamos agora relembrar as observações já feitas sobre esse assunto. Devido à autonomia específica das instâncias característica do M.P.C., as instâncias jurídico-política e ideológica não são analisadas da mesma maneira que a instância econômica, que está aqui no centro da pesquisa. A presença imanente dessas instâncias nas relações de produção capita-
listas é, entretanto, assinalada: o efeito da estrutura jurídico-política ou ideológica sobre os suportes na sua distribuição em capitalistas e operários assalariados é desenhado, de certa forma, indiretamente. Porém, essa
presença existe: basta mencionar o exemplo mais patente, o das relações jurídicas formais de propriedade, condições de compra e venda da força de trabalho, Essa transação depende estritamente da instância regional do modo de produção “puro” que o sistema jurídico constitui, o qual por sua vez supõe o Estado. Vários textos de Marx e de Engels são formais a esse respeito.?º Está claro, além disso, que em O capital, encontramos inúmeras referências — fetichismo mercantil, fetichismo capitalista -- à
presença indireta do ideológico nas relações de produção (o econômico) e ao seu efeito sobre as classes desse modo. É então errôneo pretender que no M.P.€. — ou em qualquer outro —
bastam as relações de produção para definir as classes sociais, e isso não simplesmente no sentido de que seria preciso se referir também às relações de repartição, aos rendimentos -- o que é exato, mas que diz sempre respeito
ao econômico --, e sim na medida em que o modo de produção capitalista, “puro” localiza as relações de produção como estrutura regional (econômica), situando-as na sua relação com as outras estruturas regionais, sendo as classes desse modo o efeito dessa matriz. A autonomia específica das
instâncias própria do M.P.C. não tem então, de modo algum, o efeito de as classes poderem ser aí definidas unicamente pelas relações de produção. A diferença entre as classes feudais e as classes capitalistas - quanto a seus respectivos modos de produção “puros” - não consiste em que estas últimas, ao contrário das classes do modo feudal, decorreriam apenas de 71
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uma definição exclusivamente econômica, mas em que os efeitos das outras instâncias sobre os suportes capitalistas se manifestam em sua relação específica com as relações de produção no interior desse modo.” Vê-se então que, tanto na análise do modo de produção quanto na de uma formação social, as classes sociais se apresentam como um efeito da articulação das estruturas, quer do modo de pródução, quer da formação social. Resta, porém, que, no exame das classes sociais no interior de uma formação social, descobre-se toda uma série de efeitos secundários que são os efeitos, sobre os suportes dessa formação, da combinação concreta
e sempre original dos diversos modos de produção que constituem essa formação. Tome-se uma formação social composta de um certo número de classes: isso não quer dizer que essas classes vão encontrar-se tais quais na individualidade histórica dessa formação. Os efeitos da combinação concreta das instâncias respectivas dos modos de produção, efeitos de combinação que estão presentes nos efeitos das estruturas de uma formação social sobre os seus suportes — nas classes sociais de uma formação —, dão origem a toda uma série de fenômenos de fracionamento de classes, de dissolução de classes, de fusão de classes, em suma, de sobredeterminação ou de subdeterminação de classes, de surgi-
mento de categorias específicas etc. — estes nem sempre podem ser localizados pelo exame dos modos de produção puros que entram na combinação. Mencionemos já que é dessas considerações que depende, por exemplo, a solução do problema capital dos grandes proprietários fundiários, que o próprio Marx considerou às vezes, abusivamente, como classe pertencente
ao M.P.C. “puro”.?? Voltaremos num instante a este ponto, que se revelará decisivo na problemática política das classes sociais, a da sua existência ou não enquanto classes distintas ou frações autônomas de outras classes, em
suma, enquanto forças sociais de uma formação. A enunciação do problema era necessária como introdução a uma leitura apropriada dos textos políticos de Marx, que já citamos, sobre as classes sociais.
O papel da luta política de classes na sua definição Com efeito, esses textos de Marx contêm, à primeira leitura, ambiguidades decorrentes de seu duplo estatuto teórico: referem-se, por um lado, a formações sociais; por outro lado, no entanto, parece claro que constituem 72
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paralelamente um esforço de enunciar a problemática das classes sociais em relação ao modo de produção “puro”.
Consideremos, em primeiro lugar, esses textos já citados do ponto de vista da enunciação do problema das classes no âmbito do exame de um modo de produção “puro”: de qualquer maneira, a interpretação historicista desses textos como gênese de uma classe deve ser excluída. Entretanto, resta um ponto que espanta: Marx, e isto é claro, distingue a luta
econômica — parecendo ela própria cindida em dois níveis — da luta política de classe, e só parece admitir a existência das classes plenamente constituídas no nível da luta política. No tocante à luta econômica dos agentes
da produção, entre capitalistas e operários, Marx diz-nos que não se trata nesse caso de luta de classes, a respeito da luta econômica sindical ele
falará de “classe em si”; parece reservar o estatuto de “classe para si”, de classe “enquanto tal”, unicamente à luta política. O primeiro ponto a respeito da luta econômica dos “indivíduos” agentes da produção pode ser facilmente explicado. É em obras políticas muito anteriores a O capital - especialmente a Miséria da filosofiaé o Manifesto — que Marx apreende sua luta como não decorrendo de rela-
ções de classe. Trata-se, portanto, de um período em que Marx ainda não tinha elaborado inteiramente sua problemática original, e as sequelas da antropologia econômica de sua juventude ainda se faziam sentir. Ora, sabemos bem por O capital, mais particularmente pelo Terceiro livro, que as relações dos indivíduos-agentes da produção, as relações capitalista-operário assalariado tais como aparecem no primeiro livro, ou
nas obras políticas em questão, são já relações de classe: os agentes da produção são suportes de estruturas. No entanto, o problema é mais difícil no tocante à distinção entre a
luta econômica sindical e a luta política. A distinção que Marx estabelecia, numa terminologia hegeliana e na Miséria da filosofia de 1847, entre a “classe em si” e a “classe para si” permanece um problema constante nas
suas obras políticas. Por que ele parece constantemente só admitir a existência de uma classe “enquanto tal” no plano político, o que é nítido nas suas análises políticas ulteriores sobre o proletariado, que só existe como classe se estiver organizado em partido distinto,” e em suas análises sobre os camponeses parcelares? É o que seria preciso explicar agora.
Se não se perder de vista que esses textos políticos, que se estendem até 1881, constituem também uma reflexão sobre as classes num modo de pro-
dução “puro”, vê-se que os diversos níveis de análise das relações sociais, 73
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dados por Marx como momentos de gênese histórica, devem ser considerados aqui como um processo teórico de construção do conceito de classe. Isso quer dizer que se trata de delimitar a unidade teórica do domínio que será recoberto pelo conceito de classe: esse domínio é o dos efeitos da unidade da estrutura sobre as relações sociais ou ainda, voltaremos a isso, sobre as
práticas sociais — lutas de classe. Assim, quando Marx parece dizer-nos que a existência de uma classe no nível da luta econômica é problemática, o que se deve ler é que o conceito de classe não pode ser constituído a partir unicamente da correspondência entre as relações sociais e as estruturas econômicas: o conceito de classe recobre a unidade das práticas de classe — “luta” de classe —, das relações sociais como efeitos da unidade dos níveis
de estruturas. Em suma, o que é dado em Marx como uma problematicidade de existência histórica não é senão uma impossibilidade teórica. Mas aqui intervém uma segunda operação: Marx “isola” ao mesmo tempo os níveis de luta de classe a fim de examiná-los em sua especificidade, na medida em que se trata do M.P.C., caracterizado por uma autonomização dos níveis de estruturas e dos níveis de práticas de classe. O que é não só lícito como necessário, com uma condição: que se tenha
delimitado previamente a unidade do domínio no qual se fará tal recorte. Nas estruturas, por exemplo, toda análise teórica “isolada” da instância
regional do econômico ou do político supõe o conceito de modo de produção, que lhes designa um lugar. Nesse sentido, o exame isolado da prática econômica, política, ideológica de classe supõe o conceito de classe como abrangendo a unidade dessas práticas — “luta” de classes —, em suma, do
domínio das relações sociais. Ora, Marx faz aqui esse recorte aplicando-o diretamente, de certa forma, ao processo de construção teórica do conceito de classe. Resultado: o que em Marx é a expressão de uma impossibilidade de construção do conceito de classe no nível unicamente das relações com as relações de produção, parece ao mesmo tempo um recorte no vazio, uma luta econômica que não seria uma luta de classe.” É nesse contexto que se deve situar a importância particular atribuída por Marx à luta política de classe como nível particular das relações sociais, consistindo em luta econômica, política e ideológica de classe. Segundo uma tendência “sobrepolitizante” do marxismo, vinculada à pro-
biemática historicista aqui apresentada como o oposto do economicismo, a classe social, enquanto “ator-sujeito” da história, só existiria efetivamente
no nível político onde ela teria adquirido uma consciência de classe própria etc.: Lukécs, Korsch e o esquerdismo teórico da Il Internacional 74
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E CLASSES SOCIAIS
constituem sua corrente representativa. O esquema típico dessa tendência
é o seguinte: o nível econômico em geral consiste em estruturas. Estando ausentes as classes sociais, atores-sujeitos, a análise teórica deste nível
não requer, por conseguinte, o conceito de classe — tratar-se-ia das famosas “leis inconscientes” da economia. Em contrapartida, a emergência efetiva
das classes sociais ocorreria nos níveis político e ideológico, não podendo esses níveis serem analisados em termos de estruturas, mas unicamente
em termos de luta de classes. O processo histórico consistiria, de certa forma, em estruturas econômicas “postas em ação” por uma luta políti-
co-ideológica das classes. Trata-se precisamente da concepção que Lenin atacou, indicando que ela atribui à política o papei de “sacudir de cima” o econômico.” Essa confusão das estruturas e das relações sociais, ou seja, da luta de classes, teve consequências que ainda se fazem sentir. De fato, existem tanto uma luta econômica ou uma ação econômica de classe —
relações sociais econômicas —, quanto estruturas políticas e ideológicas. Embora Marx tenha insistido sobre a luta política de classe, isso não indica de maneira nenhuma que as classes emergem historicamente no nível político, num processo de essência à existência, e para “pôr em ação” as estruturas econômicas; a esse respeito, suas fórmulas de “classe em si” e de “classe para si” de 1847 não são mais que uma reminiscência hegeliana. Elas não somente não explicam estritamente nada, como induziram a erro, durante anos, os teóricos marxistas das classes sociais.
Mais particularmente, elas desempenharam o papel de parapeito do esquema historicista, permitindo a concepção de uma estrutura econô-
mica “posta em ação” pela luta político-ideológica das classes, estrutura no interior da qual as classes estariam apesar de tudo inseridas segundo o modo misterioso da “classe em si”. De fato, o papel que Marx atribui à luta política de classe nas relações sociais é análogo ao papel atribuído ao Estado nas estruturas, e refere-se ao próprio estatuto do “político”. Na medida em que a superestrutura política é o nível sobredeterminante dos. níveis da estrutura, concentrando suas contradições e refletindo sua relação, a luta política de classe é o nível sobredeterminante do domínio das lutas de classe — das relações sociais —, concentrando suas contradições e refletindo as relações dos outros níveis de luta de classe. E isso na medida
em que a superestrutura política do Estado tem por função ser o fator de coesão de uma formação e em que a luta política de classe tem como objetivo esse Estado. É nesse contexto que se pode situar exatamente o sentido
da fórmula “a luta política de classe é o motor da história”. Portanto, as 75
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fórmulas de Marx que parecem só admitir a existência efetiva das classes no nível da luta política se referem, além das razões assinaladas, ao cará-
ter particular desse nível nas suas relações com a superestrutura política, A luta política de classes é o ponto nodal do processo de transformação, processo que não tem nada a ver com um processo historicista — diacrônico — “desencadeado” por um autor, a classe-sujeito.
As classes distintas e as frações autônomas de classe Ora, o problema importante que aqui se coloca é determinar o modo de presença das classes no interior de uma formação social. Como determinar as classes numa formação social, ou, dito de outro modo, como decifrar os
efeitos da combinação concreta dos modos de produção, constituindo uma formação, sobre os suportes dessa formação? Pois a complexidade desses efeitos não permite concluir imediatamente quanto à presença das classes
no exame “puro”, quanto à sua existência concreta enquanto classes distintas numa conjuntura determinada. O fenômeno capital, a esse respeito, é que certas classes distintas, concebíveis na análise dos modos de produção “puros” que compõem uma formação, se apresentam muitas vezes na formação social como dissolvidas e fundidas com outras classes, como frações — autônomas ou não — de outras classes, ou mesmo como categorias sociais específicas.” A dominância de um modo de produção sobre os outros no interior de uma formação social tem muitas vezes como efeito uma subdeterminação das classes dos modos não dominantes. Conhece-se a enunciação desse problema segundo a perspectiva historicista a qual, aliás, e com todo o rigor, não pode operar com a distinção teórica entre modo de produção e formação social: uma classe só existe enquanto tal, enquanto classe distinta
e autônoma, a partir do momento em que possui uma “consciência de classe” própria, em que ela está organizada em partido distinto etc. Aliás, os textos
de Marx, se considerados aqui como textos a respeito de formações sociais determinadas, apresentam com frequência a existência de uma classe, en-
quanto classe distinta em uma formação, como vinculada à sua organização política “própria”.” De fato, o problema específico que os textos de Marx enunciam, a respeito de uma formação social, é exatamente o da existência, nessa formação, de uma classe distinta. Porém, a resposta recebida por esse problema, às vezes, ressente-se das ambiguidades assinaladas anteriormente, 76
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as quais se referem à construção teórica do conceito de classe. Aparecendo aí a classe como existindo efetivamente só no nível político, uma classe numa
formação social parece existir, como classe distinta, quando está organizada politicamente em partido “distinto” ete. De fato, o problema real que Marx enuncia, desta vez, a respeito de uma formação social é que uma classe só pode ser considerada como classe distinta e autônoma — como força social? - no interior de uma formação social, quando sua relação com as relações de produção, sua existência econômica, se reflete sobre os outros níveis por uma presença específica. Isso é, aliás, a consequência do fato de que uma classe social indica, já no modo de produção “puro”, o efeito do conjunto das estruturas sobre os suportes, Com efeito,
a rigor, não se poderia concluir pela necessidade de se referir, a respeito das classes em uma formação social, ao político e ao ideológico, se tal não fosse já o caso no modo de produção “puro”. É essa preseriça que Marx apreende aqui como organização política de uma classe em partido distinto. Ora, como delimitar essa presença, nos níveis político e ideológico, que constitui a distinção das classes — e também o caráter de uma fração autônoma de uma classe — em uma formação? Como definir um critério que nos possa conduzir a decifrar a existência de uma classe, ou de uma fração, enquanto força social em uma formação determinada, critério que não pode, em caso algum — isso é aqui patente —, ser fornecido exclusivamente pelo nível econômico? Pode-se dizer que essa presença existe quando a relação com as relações de produção, o lugar no processo de produção, se reflete
sobre os outros níveis por efeitos pertinentes. Esses “efeitos pertinentes” podem ser, aliás, identificados tanto nas estruturas políticas e ideológicas quanto nas relações sociais políticas e ideológicas de classe. Designaremos
por “efeitos pertinentes” o fato de que a reflexão do lugar no processo de produção sobre os outros níveis constitui um elemento novo, que não pode ser inserido no quadro típico que esses níveis apresentariam sem esse elemento. Esse elemento transforma assim os limites dos níveis (de estruturas. ou de luta de classe) nos quais ele se reflete por “efeitos pertinentes”, e não
pode ser inserido numa simples variação desses limites. Tomo um exemplo, e dos mais complexos, o dos camponeses parcelares
dO 18 Brumário. Na conjuntura concreta examinada por Marx, eles constituem ou não uma classe social distinta? Vejamos o que Marx diz sobre isso: Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econô-
micas que as separam umas das outras e opõem seu gênero de vida, seus interesses
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e sua cultura aos das outras classes da sociedade, elas constituem uma classe. Mas
não constituem uma classe na medida em que a semelhança dos interesses dos camponeses parcelares não cria entre eles nenhuma organização política.
No entanto, basta referir-se ao conjunto d'O 18 Brumário e de Lutas de classes na França para ver que Marx admite expressamente, e por
várias vezes, na conjuntura concreta do bonapartismo, a existência dos camponeses parcelares enquanto classe distinta, embora eles não possuam, no Segundo Império, nem organização política “própria” nem ideologia “própria”. Eles constituem precisamente uma classe distinta na medida em que seu lugar no processo de produção se reflete, nessa conjuntura concreta, e no nível das estruturas políticas, pelo fenômeno histórico do bonapartismo, que não teria existido sem os camponeses parcelares. Louis
Bonaparte apresenta-se como o representante dos camponeses parcelares, embora seja, na realidade, o “representante” dos interesses da burguesia. É, de fato, verdade que a existência econômica dos camponeses parcelares se reflete, no nível político, por “efeitos pertinentes” que são a forma par-
ticular de Estado do bonapartismo como fenômeno histórico. Trata-se aqui de um fenômeno novo, facilmente identificável, que é a forma particular
de Estado do Segundo Império, e que não se pode inserir no quadro do Estado parlamentar que a precedia. Nesse sentido, é muito paradoxalmente o bonapartismo que constitui os camponeses parcelares enquanto classe distinta, enquanto força social nessa formação. Tomemos agora o caso hipotético em que a existência econômica dos
camponeses parcelares não se tivesse refletido pelo bonapartismo: seu lugar particular no processo de produção ter-se-ia evidentemente manifestado, de todo modo, por uma certa presença no nível político, ainda que pelo simples fato de que a organização política das outras classes, assim como as instituições do Estado, deveria ter levado em conta a exis-
tência dos camponeses parcelares — por exemplo, no caso do sufrágio.” No entanto, neste caso, essa presença não teria constituído um elemento
novo, não teria tido “efeitos pertinentes”, mas só se teria inserido, como variação, dentro de limites circunscritos pelos efeitos pertinentes de outros elementos, por exemplo, no âmbito da democracia constitucional. É nítido que, neste caso, os camponeses parcelares não constituiriam uma classe distinta. Com efeito, só no nível econômico, por causa da subde-
terminação específica na formação social francesa do modo de produção patriarcal, o processo de proletarização dos camponeses parcelares já es78
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tava muito avançado, e Marx insiste sobre esse ponto;” o que, no entanto, os fez se comportarem concretamente como classe distinta, como força social, foi o fenômeno histórico do bonapartismo. Em contrapartida, os
pequenos camponeses da Alemanha — os camponeses parcelares libertados da corveia, os arrendatários feudais e os operários agrícolas — não se comportaram como força social, como classe distinta, precisamente
por causa da superestrutura do Estado e do bismarckismo. O problema é visível em Engels, que tende a explicar o bonapartismo na França pelo “equilíbrio” não entre a nobreza fundiária e a burguesia -- Estado absolutista —, mas entre essas duas classes, por um lado, e a classe operária,
por outro. Voltarei à insuficiência dessa noção de equilíbrio para situar o bonapartismo nas relações burguesia-proletariado, mas pode-se notar que, além disso, Engels tende, ao contrário de Marx, a subestimar o papel dos camponeses. Nesse sentido, ele nos fala do fenômeno bonapartista prussiano (Bismarck), tentando distingui-lo do Segundo Império. O que nos interessa aqui é que os pequenos camponeses da Alemanha, subsistindo no nível econômico à dominação na Alemanha do M.P.C. sobre o
modo patriarcal e feudal, não se comportam no bismarckismo enquanto força social — ao contrário do bonapartismo —, por causa das estruturas feudais do Estado, defasadas em relação ao econômico. Aliás, o caso dos camponeses parcelares é só um exemplo entre os muitos que Marx nos apresenta. Menciono aqui apenas suas análises a respeito
do período de transição do feudalismo ao capitalismo na Grã-Bretanha. O objeto central das análises de Marx sobre esse período é determinar a partir de quando, tendo em vista as particularidades dessa transição na Grã-Bretanha, a classe burguesa se constitui primeiramente em fração autônoma e em seguida em classe distinta da nobreza feudal, ainda que lhe faltem simultaneamente organização política e ideologia “próprias”: suas análises são conduzidas segundo a perspectiva que acabo de expor.”
Esse processo se realiza mediante sua “representação” pelos Whigs, que são de fato o partido de uma fração dos proprietários de terras. É claro que a caracterização dos “efeitos pertinentes” e da sua novidade em relação à tipicidade dos níveis depende sempre da conjuntura concreta de uma situação histórica concreta. Somente pelo seu estudo se podem circunscrever as relações dos limites e das variações, e assim caracterizar os “efeitos pertinentes”. Essa pertinência pode refletir-se tanto em modificações importantes das estruturas políticas e ideológicas quanto em modificações do campo da luta política e ideológica de classe. Ela pode 79
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manifestar-se por uma modificação importante das relações de “representação” de classe, refletindo-sea existência de uma classe por mudanças importantes de estrutura ou de estratégia do partido de uma outra classe, de tal maneira que ele possa apresentar-se também como representante da
primeira, no caso em que esse partido tem um papel importante na luta política de classes — o caso mencionado dos Whigs —, ou, ainda, por um
deslocamento da contradição no âmbito da luta política das outras classes etc. É importante ver bem que a existência de umia classe numa formação supõe a sua presença no nível político por “efeitos pertinentes”, que não
precisam, no entanto, se estender até a organização política “própria”, estritamente falando, ou a constituição de uma ideologia “própria” dessa classe. Com efeito, a dominação, numa formação social, das classes do modo de produção dominante, por um lado, e a relação entre as estruturas políticas e ideológicas de uma formação e a(s) classe(s) dominante(s) do
modo de produção dominante, por outro lado, explicam a subdeterminação frequente das outras classes.” Essas estruturas, que têm efeitos sobre o
conjunto do campo da luta de classes, impedem muitas vezes a organização política e ideológica independente das classes dos modos de produção não dominantes, e têm precisamente como consequência sua polarização
em torno das classes do modo de produção dominante. Os “efeitos pertinentes” permitem, no entanto, localizar precisamente o limiar a partir
do qual uma classe subdeterminada existe, ou mesmo se comporta, numa formação como classe distinta, como força social — sendo o caso análogo
para as frações autônomas de uma classe. São conhecidas as grandes linhas desse processo de sobredeterminação, pelas classes do modo de produção dominante, das classes dos modos de produção dominados numa formação social. Esse processo depende das formas concretas dessa dominância: transformação da nobreza feudal em
fração da burguesia — capitalização da renda fundiária —, dos pequeno-burgueses — camponeses, artesãos — em frações, quer da burguesia — pequenos capitalistas - quer da classe operária, dos camponeses parcelares em ope-
rários assalariados, em suma, de todo o tipo de decomposição das classes subdeterminadas e da resistência a essa decomposição, que comanda precisamente a existência ou não de uma classe ou fração enquanto força social,
enquanto classe distinta ou fração autônoma.” Essas observações têm sua importância no plano político. Com efeito, o caráter de um grupo social como classe distinta ou fração autônoma tem consequências muito importantes no que se refere, por um lado, ao papel 80
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dessa classe enquanto força social na conjuntura e, por outro lado, a seu papel na ação declarada das forças sociais, e que não se identifica com a prática política das classes. Dito de outro modo, a presença de uma classe por “efeitos pertinentes” no nível da luta política tem consequências sobre
o modo da sua representação na “cena política”, sobre as modalidades de sua “ação declarada”, sobre a constituição das alianças etc. Além disso, deveremos, dentro em pouco, aprofundar a distinção entre
luta econômica e luta política de classe, entre os níveis econômico e político na organização de uma classe. Ora, quando se falar de uma dominância do nível de organização econômico de uma classe, distinguindo-o do nível de sua organização propriamente política, isso não quer dizer que essa classe está ausente, enquanto “efeitos pertinentes”, do nível da luta política. Isso poderá significar simplesmente que, na organização complexa de uma
classe, é nesse caso o econômico que detém, além da determinação em última instância, o papel dominante. Assim, por exemplo, Lenin, em Que fazer, quando distingue nitida-
mente a luta econômica e a luta política, descrevendo — e fazendo sua crítica — o estágio trade-unionista da classe operária distinto do estágio político— partido distinto etc. —, não entende isso como ausência da classe operária da luta política e sua limitação unicamente à luta econômica: entende claramente que, nesse caso, é a luta econômica que tem, no campo dos níveis de luta e de organização de classe, o papel dominante. Essa dominância da luta econômica se reflete aqui não por uma ausência de “efeitos pertinentes” no nível da luta política, mas numa certa forma de luta política, que Lenin critica ao considerá-la ineficaz. A importância do problema é assinalada numa nota: O trade-unionismo não exclui de maneira alguma toda “política” como se pensa às vezes. As trade-unions sempre realizaram uma certa agitação e uma certa luta política (mas não social-democrata). No capítulo seguinte, exporemos a diferença
entre a política trade-unionista e a política social-democrata. Isso vale aliás, mutatis mutandis, para a luta ideológica de classe. Vê-se já surgir aqui a distinção entre a orgaOnização de uma classe como condição
de sua presença por efeitos pertinentes no nível político, como condição, portanto, de sua existência enquanto classe distinta, e sua organização específica como condição de seu poder político de classe, distinção que funda a teoria leninista da organização. 81
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Frações, categorias, camadas Considero finalmente, depois desta análise, uma questão de terminologia que pode ser agora esclarecida. Ela diz respeito aos termos categoria, fração e camada, que designam partes de classe.
a) Por categorias sociais podemos entender, mais particularmente, conjuntos sociais com “efeitos pertinentes” — que se podem tornar, como mostrou Lenin, forças sociais — cujo traço distintivo repousa sobre sua relação específica e sobredeterminante com estruturas distintas das econômicas: é especialmente o caso da burocracia, em suas relações com o Estado, e dos “intelectuais”, em suas relações com o
ideológico. Teremos de voltar às relações dessas categorias com as classes ou frações de classes às quais elas pertencem. b)
Designamos por frações autônomas de classe aquelas que constituem
o substrato de forças sociais eventuais, por frações, conjuntos sociais susceptíveis de se tornarem frações autônomas, e isso segundo o
critério dos “efeitos pertinentes”. c) Podemos reservar o termo camadas sociais a fim de indicar os efeitos secundários da combinação dos modos de produção em uma forma-
ção social sobre as classes — é o caso da “aristocracia operária” de Lenin —, as categorias — por exemplo, as “cúpulas” da burocracia e da administração de que fala Lenin - e as frações.
Consideremos que a teoria marxista tem, em geral, empregado os termos “categoria”, “camada” e “fração” de maneira frequentemente indistinta: é, no entanto, importante pôr-se de acordo quanto à terminologia. À propósito da distinção das categorias e das frações — mais particularmente das frações autônomas -, é preciso notar que ambas são susceptíveis de constituir forças sociais. O problema não apresenta dificuldades para as frações identificáveis já no nível das relações de produção; por exemplo, frações comercial, industrial, financeira da burguesia — é o que as distingue, nesse caso, das categorias identificáveis no nível de estruturas diferentes da econômica. No entanto, ele se torna mais complexo no caso
de certas frações de que fala Marx, as quais são identificáveis unicamente no nível político.”* Nesse caso, o que as distingue das categorias é precisamente a relação sobredeterminante das categorias com as estruturas políticas e ideológicas das quais elas são o efeito específico: no que diz 82
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respeito ao político, por exemplo, trata-se de relação da burocracia com o aparelho de Estado no sentido estrito do termo.
A propósito da distinção das camadas e das frações, ela é sobretudo pertinente no tocante ao seu reflexo no nível político: as frações, na medida em que se tornam autônomas, são susceptíveis, ao contrário das camadas,
de se constituirem em forças sociais. Isso não significa de maneira alguma que a distinção frações-camadas coincida exatamente com a dos efeitos
respectivos do econômico e do político-ideológico. Podem-se efetivamente decifrar, por um lado, frações decorrendo, porém, unicamente do político e, por outro lado, simples camadas identificáveis, contudo, já no econômico — é
o caso da aristocracia operária. Aliás, não se deveria crer que a localização de camadas - distintas assim das frações — obedece a um hiperempirismo acadêmico “estratificador”. Ela é importante, na medida em que designa, como produtos dos efeitos secundários da combinação dos modos de produção, certas franjas-limite das classes, categorias e frações que podem, sem ser forças sociais, influir sobre a prática política daquelas. É o caso,
por exemplo, da “aristocracia operária” que Lenin designa em O imperialismo... como camada social: ela não pode, em virtude de seu caráter de
franja intermediária, constituir ela própria uma força social, mas influi sobre a prática política da classe operária, comportando-se politicamente como “funcionário” operário da burguesia.
Estruturas e práticas de classe: A luta de classes As análises precedentes estabeleceram a distinção e a relação entre dois sistemas de relações, o das estruturas e o das relações sociais: o conceito de
classe recobre a produção das relações sociais como efeito das estruturas. Possuímos agora os elementos necessários para formular as duas proposições seguintes: 1. Essa distinção recobre a das estruturas e das práticas, ou mesmo das
práticas de classe; 2. As relações sociais consistem em práticas de classe, estando as classes sociais aí situadas em oposições: as classes sociais não podem ser concebidas senão como práticas de classe, existindo essas práticas em
oposições que, em sua unidade, constituem o campo da luta de classes. 83
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Não posso, nos limites deste ensaio, fornecer mais do que algumas indicações. A primeira proposição resume as análises precedentes enunciando um problema novo. As classes sociais não recobrem as instâncias estrutu-
rais, mas as relações sociais: essas relações sociais consistem em práticas de classe, o que quer dizer que as classes sociais não são concebíveis senão em termos de práticas de classe. Assim, vou insistir, na sequência, sobre a
nova forma de que a distinção dos domínios assinalados se reveste, e que se torna aqui uma distinção entre estruturas e práticas. A segunda proposição indica que as classes sociais são enunciadas apenas em sua oposição: as práticas de classe não são analisáveis a não ser como práticas conflituais no-campo da “luta” de classe, composto de relações de oposição, de relações de contradição no sentido mais simples do termo. A relação conflitual, em todos os níveis, das práticas das diversas classes, a “luta” de classes, ou mesmo a existência das próprias classes são o efeito das relações das estruturas, a forma de que as contradições das estruturas se revestem nas relações sociais; elas definem, em todos os níveis, relações
fundamentais de dominação e de subordinação das classes — das classe — que existem como contradições particulares.” Trata-se, plo, da contradição entre as práticas que visam à realização do que visam ao aumento dos salários — luta econômica --, entre as
práticas de por exemlucro e as que visam
à manutenção das relações sociais existentes e as que visam à sua transfor-
mação — luta política - etc. Assim como o tratamento científico das contradições dentro das relações da estrutura requer conceitos apropriados, o das relações conflituais das práticas dos diversas classes, do campo da “luta” de classes, recorre, quer se trate das relações sociais econômicas (luta econômica), das relações sociais políticas (luta política), ou das relações sociais ideológicas (luta ideológica), a conceitos próprios — ou seja, não importáveis para o exame das estruturas --, notadamente aos de “interesses” de classe
e de “poder”. Não entrarei aqui nesse problema, mas tentarei estabelecer mais precisamente a distinção e a relação entre as estruturas e as práticas.
Essa distinção, operada na problemática historicista, conduziu a uma importante confusão: ela consiste em ver nas estruturas uma “práxis fossilizada”, estando as estruturas localizadas afinal em relação ao grau de
permanência da prática que as origina. Sabe-se que Althusser fez a crítica dessa concepção, mostrando a relação de uma instância estrutural e de uma
prática específica: e isso, pensando a prática como uma produção — trabalho de transformação. Ora, é importante ver que, nesse sentido, uma instância 84
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estrutural não constitui por isso diretamente uma prática: trata-se de dois
sistemas — ou séries de relações reguladas - particulares, que possuem suas próprias estruturas, mas cuja relação é a de estruturas com práticas estruturadas relacionadas a essas estruturas. Repetimos, as relações de produção não são a luta econômica de classe — essas relações não são classes —, assim
como a superestrutura jurídico-política do Estado ou as estruturas ideológicas não são a luta política ou a luta ideológica das classes — o aparelho de Estado ou a linguagem ideológica não são classes, como também não o são as relações de produção. E parece-me muito importante insistir sobre este ponto, pois nem sempre é claro. Uma redução das estruturas às práticas pode
conduzir a consequências importantes: não conseguir situar corretamente as relações entre os diversos níveis de estruturas e os diversos níveis de práticas, e, assim, as relações entre os dois sistemas de relações que são, por um lado, as-estruturas e, por outro, as práticas de classe. Tomo um texto característico a esse respeito, de E. Balibar — em Lire le Capital* —, em que o problema é designado, e no qual, no entanto, a ambi-
guidade dessa confusão se faz sentir. Em primeiro lugar, Balibar enuncia o problema como sendo de duas formas de articulação dos diversos níveis, sem, contudo, distinguir que aí se trata, de fato, de articulações recobrindo dois domínios diferentes. Ele nos diz, a propósito da articulação dos diversos
níveis da estrutura social: No que precede, encontrou-se já essa articulação sob duas formas: por um lado, na determinação da “última instância” determinante da estrutura social, que depende da combinação própria do modo de produção considerado; por outro lado... como a determinação dos limites dentro dos quais o efeito de uma prática pode modificar uma outra da qual ela é relativamente autônoma... A forma particular da correspondência depende da estrutura das duas práticas.
De fato, essas duas formas de articulação se encontram ao mesmo tempo
nas estruturas e nas práticas. Elas não se referem de maneira alguma a uma confusão de ambas, parecendo as estruturas e as práticas corresponder, de alguma forma, a simples formas diferentes de articulação na mesma série de relações. Vejamos as consequências na continuação do texto de Balibar: Podemos generalizar esse tipo de relações entre duas instâncias relativamente autônomas que se encontra, por exemplo, na relação entre a prática econômica e a
prática política, sob as formas da luta de classes, do direito e do Estado. Aqui também, a correspondência é analisada como o modo de intervenção de uma prática 85
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dentro dos limites determinados por uma outra. Isso ocorre com a intervenção da “luta de classes” dentro dos limites determinados pela estrutura econômica. Ocorre o mesmo com a intervenção do direito e do Estado na prática econômica. Também não encontramos, portanto, nesse caso, uma relação de transposição, de tradução ou
de expressão simples entre as diversas instâncias da estrutura social. Sua “correspondência” não pode ser pensada senão sobre a base de sua autonomia relativa, de sua própria estrutura, como o sistema de intervenções desse tipo de prática em uma outra (não faço mais, aqui, evidentemente, do que designar o lugar de um problema teórico, e não produzir um conhecimento).
As consequências que ressaltam da não distinção das estruturas e das práticas são aqui nítidas: em primeiro lugar, identificação, no nível político, da superestrutura jurídico-política do Estado — o Estado, o direito — com a
prática política de classe. O modo de intervenção do Estado e do direito — estruturas — sobre a estrutura econômica é pensado como intervenção da
prática política - luta política de classe — sobre a prática econômica — luta econômica de classe. Essa redução parece ser operada aqui mediante o termo
“intervenção” que, no sentido metafórico, recebe o nome de “prática”. A prática, sob o termo intervenção, seria uma forma de articulação das estruturas.
Em segundo lugar, e isto é ainda mais grave, o econômico é considerado como estrutura sobre a qual teria “desencadeado” a luta de classes, limitada
esta unicamente aos níveis político e ideológico: “O mesmo ocorre com a intervenção da “luta de classes” dentro dos limites determinados pela estrutura econômica...”
A confusão estruturas-práticas parece garantir aqui
no límite o velho equívoco, que consiste em de classes emergirem nos níveis do político ação” as leis inconscientes da economia. O luta de classes, a prática — evanescência da
ver as classes sociais e a luta e do ideológico, para “pôr em político e o ideológico são a estrutura jurídico-política do
Estado e do ideológico —, o econômico é a estrutura — evanescência da luta econômica de classe. Se acentuo essa ambiguidade, é devido às suas consequências: na se-
gunda consequência que assinalei, ela conduziria no limite a uma impossibilidade de pensar o conceito leninista de conjuntura.” No entanto, atenho-me neste momento ao primeiro ponto, a saber, as articulações dos níveis nas estruturas e nas práticas de classe. No que se refere à articulação da super-
estrutura jurídico-política do Estado, ou da estrutura ideológica sobre a estrutura econômica, em suma, à intervenção de um nível das estruturas dentro dos limites colocados por um outro, ela não pode de maneira alguma
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ser apreendida como uma intervenção da prática política ou ideológica sobre a prática econômica. A relação, por exemplo, do contrato — do direito - e da troca é uma relação de estruturas. Ocorre o mesmo no que diz respeito à intervenção do Estado no econômico: intervenção não significa aqui prática, mas indica um tipo de articulação das estruturas. Ora, os níveis estruturais, apresentando um ritmo específico e caracterizados por seu desenvolvimento desigual, mantêm, em uma formação, relações de defasagem específica. O mesmo acontece no tocante às relações
dos diversos níveis de práticas no campo da luta de classes. Assim como se podem constatar defasagens entre as estruturas econômicas, políticas, ideo-
lógicas de uma formação, podem constatar-se defasagens entre os níveis de prática e de organização — econômica, política, ideológica — de uma classe
nas suas relações, nos diversos níveis de luta, com as das outras classes: luta política de uma classe defasada em relação à sua luta econômica, luta ideológica defasada em relação à sua luta política etc. Em suma, a descentralização que caracteriza as relações entre os níveis das estruturas carac-
teriza igualmente as relações das práticas de classes, na medida em que as práticas de classe constituem igualmente um sistema estruturado, refletindo as relações das instâncias sobre os suportes.” O que importa, portanto, ver aqui é que se trata de dois sistemas de relações. As relações entre essas duas séries de relações são elas mesmas relações
de defasagem caracterizadas por uma não correspondência unívoca, de termo a termo, dos níveis respectivos desses sistemas. Tomemos o caso das análises de Marx referentes à Grã-Bretanha após 1680. Nas relações dos níveis de estruturas, constata-se uma defasagem entre o econômico,
o político e o ideológico: enquanto o M.P.€. está em vias de alcançar a dominação, o Estado e a ideologia ainda apresentam estruturas dominantes feudais.” Tomemos, por outro lado, os níveis de luta da classe burguesa
deixando aqui de lado suas próprias defasagens, a fim de ver suas defasagens com os níveis da estrutura. Constata-se que, no mesmo período, a. organização política, a luta política da classe burguesa está muito avançada, não sendo a classe da nobreza fundiária, que é a “detentora” do Estado feudal, na realidade, senão o “representante” dos interesses políticos
da burguesia.” Vemos claramente, neste exemplo, que a superestrutura jurídico-política do Estado está defasada não simplesmente em relação às outras estruturas, mas também em relação ao nível da luta política da burguesia no campo. da luta de classe: não se trata de um Estado feudal, defasado em relação ao econômico, mas correspondendo a uma classe de 87
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aristocracia fundiária politicamente dominante, ela mesma defasada de uma burguesia economicamente dominante. Trata-se aqui de relações de
defasagem entre dois sistemas de relações de defasagem. É precisamente essa relação dos dois sistemas que faz, na conjuntura concreta em questão, a forma de reflexo da dominância do M.P.C. num Estado feudal ter como efeito a dominação política da burguesia no campo da luta de classes. Isso é igualmente nítido, aliás, no caso do índice de dominância nas estruturas e nas práticas. Por exemplo, a dominância, nas estruturas, do político — tomemos o caso do capitalismo monopolista de Estado e do Estado intervencionista — não corresponde necessariamente à dominância, no campo das práticas, da luta política de classes etc. Não temos aqui a intenção de
multiplicar os exemplos: vemos, no entanto, a importância dessas observações para toda análise política de uma conjuntura concreta. Podemos agora, à luz dessas considerações, aprofundar a questão das formas de intervenção da luta política na luta econômica, e da luta econômica
na luta política, e elucidar a posição teórica de Lenin referente à distinção e à relação entre a luta econômica e a luta política: posição que vai do texto fundamental Que fazer até sua controvérsia com Trotsky e Bukharin sobre a questão dos sindicatos na U.R.S.S. (1921). Essa posição é caracterizada pelos seguintes pontos: 1. Distinção da luta econômica e da luta política: damente das críticas feitas por Lenin a posições fazer, crítica dos economistas que acreditam que é senão a forma mais desenvolvida, mais ampla e
ela sobressai adversas. Em “a luta política mais efetiva da
nitiQue não luta
econômica”; justamente, diz Lenin, ela não é só isso. Crítica igual-
mente da tese economicista segundo a qual “é preciso dar à própria luta econômica um caráter político”. Nos textos sobre a questão sin-
dical, crítica de Bukharin que, “defendendo a reunião dos pontos de vista econômico e político, deslizou para o ecletismo teórico”. Ora, sabe-se que Lenin entende: a) por luta econômica, “a luta econômica
prática que Engels chamou “resistência aos capitalistas e que é chamada luta profissional e sindical”, b) por luta política, a luta que tem
por objetivo específico o poder de Estado. A distinção dessas lutas funda a diferença de suas formas de organização: sindicatos-partidos. 2. Essa distinção implica uma relação entre a luta econômica e a luta política: o caráter essencial dessa relação consiste em que a luta
política é o nível sobredeterminante da luta de classes, na medida 88
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em que ela concentra os níveis de luta de classe. Decorre daí: a) Ao contrário de uma concepção evolucionista de “estágios” de luta —
primeiro econômica, depois política —, a luta política deve deter sempre o primado sobre a luta econômica — é o papel do partido: “A política não pode deixar de ter o primado sobre o econômico; sem uma posição política justa, uma classe dada não pode manter sua
dominação nem, por conseguinte, cumprir sua tarefa na produção”; ou ainda: “Do fato dos interesses econômicos desempenharem um papel decisivo, não decorre absolutamente que a luta econômica seja de um interesse primordial, pois os interesses mais “decisivos” e essenciais das classes não podem ser satisfeitos, em geral, senão por transformações políticas radicais.. ”;** b) Uma intervenção cons-
tante da luta política nos outros níveis de luta, mais particularmente na luta econômica, e vice-versa. Por exemplo: i) Uma ausência de
luta política de classe não significa de maneira alguma que a luta econômica dessa classe não se reflita, por “efeitos pertinentes”, no nível político; restringir-se unicamente à luta econômica estrita pode produzir “efeitos pertinentes” extremamente positivos, os quais consistem em deixar fazer a política do adversário; ii) Pode-se fazer uma política no sentido próprio, mas que atribua o primado ao econômico; trata-se da política que, de acordo com os termos irônicos de Lenin, quer fazer “a luta econômica contra o governo!!! A luta econômica contra o governo é a política trade-unionista... é preci-
samente a política burguesa da classe operária”. 3. A luta política, que tem como objetivo o poder de Estado, tem como objeto a conjuntura: versa assim sobre: a) o econômico. Lenin nos diz que “a tática dos “políticos” e dos revolucionários, longe de des-
conhecer as tarefas 'trade-unionistas* é a única capaz de assegurar o cumprimento metódico dessas tarefas”; b) o político no sentido estrito; c) o ideológico. Esses problemas pertencem ao exame do conceito de conjuntura.
Conjuntura, forças sociais, previsão política É nessa linha teórica que se situam as análises políticas de Marx. Lenin,
contra os desvios da Segunda Internacional, restaurou o pensamento autêntico de Marx produzindo o conceito de conjuntura, equivalente ao do 89
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“momento atual” que é o objeto específico da prática política. Com efeito, se a prática política tem como objetivo específico o Estado, o poder político institucionalizado, fator de coesão de uma formação social determinada e lugar nodal de suas transformações, ela tem por objeto o “momento atual”, que reflete a individualidade histórica, sempre original, porque singular, de uma formação. A enunciação rigorosa desse problema permite elucidar toda uma série de questões: especialmente, aquelas referentes à “ação” da prática política sobre as estruturas, o inventário de possibilidades que as estruturas oferecem à prática política, a previsão estratégica na prática política etc. O conceito de conjuntura está situado, em Lenin, no campo das práticas e da luta de classes. A originalidade historicamente individualizada de uma formação social que é o objeto da prática política é constituída em primeiro lugar pela “ação combinada das forças sociais”. A homogeneidade
de campo da conjuntura consiste na consideração das práticas de classe — mais particularmente, das práticas políticas de classe —, em relação à sua “ação” sobre a estrutura, como forças sociais.” Com efeito, nos textos do ano de 1917 (fevereiro-outubro), Lenin procede a uma análise das forças sociais essenciais que constituem a atualidade e a originalidade da situação
concreta na Rússia: são a monarquia czarista, a burguesia monarquista, o proletariado e as classes camponesas. Entre essas forças sociais que são classes distintas, Lenin introduz um elemento, a monarquia czarista,
que parece, à primeira vista, designar a superestrutura política do Estado czarista, logo, um elemento da estrutura. No entanto, não se trata, de fato,
da importação direta para a conjuntura, e, enquanto força social, de um elemento da estrutura, Lenin entende aqui por monarquia czarista “os proprietários fundiários feudais e o velho corpo dos funcionários públicos e dos generais”, designados por esse termo — monarquia czarista — enquanto forças sociais. Ora, nessas forças sociais, se os proprietários fundiários
designam uma classe distinta, o “velho corpo dos funcionários públicos e dos generais” constitui uma categoria: Lenin falará frequentemente da burocracia ou da polícia enquanto forças sociais, precisando que não se trata de classes. Logo, caso se queira delimitar os elementos da conjuntura, pode-se dizer: a) São em primeiro lugar classes distintas e frações autônomas que se refletem no nível da prática política por “efeitos pertinentes”, e isso as caracteriza precisamente como forças sociais; b) Ademais, podem constituir forças sociais, categorias específicas que chegam, num momento concreto, a ter “efeitos pertinentes” como foram definidos,” no nível da
prática política, sem, no entanto, serem classes nem frações de classe. 90
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Assim, a conjuntura, objeto da prática política e lugar privilegiado onde se reflete a individualidade histórica sempre singular de uma formação, é a situação concreta da luta política de classe. Dito de outro modo, a articulação e o índice de dominância que caracterizam a estrutura de uma formação social refietem-se, enquanto conjuntura, no nível da luta política de classe. Ora, como opera essa reflexão ou, o que é apenas o outro aspecto da questão, como age a prática política sobre a estrutura, na medida em que a conjuntura não é uma simples expressão da estrutura, mas circunscreve precisamente a
ação da prática política sobre a estrutura? Qual é o modo de determinação pela estrutura da prática política que age sobre ela? Essa questão pode receber uma resposta se observarmos que as relações entre as estruturas e as práticas de classe pertencem ao mesmo tipo a que
pertencem as relações de cada um desses domínios. No que diz respeito às relações das instâncias, sua assim chamada “interação”, que é, de fato, o modo de intervenção de um nível sobre o outro, consiste nos limites no interior dos quais um nível pode modificar o outro. Esses limites são o efeito simultaneamente da matriz concreta de uma formação e das estruturas específicas respectivas de cada nível, elas mesmas determinadas pelo seu lugar e sua função nessa matriz. Neste sentido, a determinação de uma estrutura por uma outra, nas relações entre estruturas, indica os limites
das variações de uma estrutura regional — digamos, o Estado - em relação a uma outra — digamos, o econômico -, limites que são eles próprios os efeitos da matriz. Esse é também o caso, aliás, das práticas de classe, das relações entre si dos níveis da luta de classes,
As relações das estruturas e das práticas de classe, as relações assinaladas entre esses dois-sistemas de relações são elas mesmas do mesmo tipo. A determinação das práticas pela estrutura e a intervenção das práticas na
estrutura consistem na produção pela estrutura dos limites de variações da luta de classes: esses limites são os efeitos da estrutura, Entretanto,
isso ainda não circunscreve exatamente a relação da prática política com a estrutura: de fato, nesse nível, os limites são complexos. A prática política,
prática sobredeterminante que concentra em si as contradições dos outros níveis de luta de classe, está ela própria inscrita dentro de limites, que são os efeitos do campo global da luta de classes e dos diversos níveis dessa luta sobre a prática política. Esses limites, porém, são limites de segundo grau, na medida em que o campo das práticas está ele mesmo circunscrito pelos efeitos das estruturas como limites. Nesse sentido, a prática política é exercida dentro dos limites colocados pelas outras práticas e pelo campo 91
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global de práticas de classe — luta econômica, política, ideológica — por um lado, enquanto esse campo está ele mesmo circunscrito pelos efeitos da estrutura como limites, por outro: a distinção dessa série de limites vai tornar-se mais clara, adiante. Retenhamos aqui que, neste contexto,
a conjuntura aparece como os efeitos das estruturas sobre o campo das práticas concentradas, em sua unidade, no nível da luta política de classe. Esses limites regulam, enquanto tais, um jogo de variações possíveis das forças sociais, em suma, a intervenção da prática política, que é aqui a intervenção concentrada do campo das práticas, sobre as estruturas. A
eficácia da estrutura no campo das práticas é, pois, cla mesma limitada pela intervenção da prática política sobre a estrutura. Importa então ver aqui que a conjuntura, o “momento atual” que é o
objeto da prática política, é produzida pelo reflexo sobre as práticas do conjunto dos níveis da estrutura, em sua unidade. Se a superestrutura política do Estado é um lugar privilegiado que concentra as contradições dos níveis da estrutura e permite a decifração concreta da sua articulação, a conjuntura
permite decifrar a individualidade histórica do conjunto de uma forma: ção, em suma, a relação entre a individualidade concreta das estruturas e a configuração concreta da luta de classes. Neste sentido, a superestrutura
política do Estado, que é o objetivo da prática política, é também, refletida na conjuntura, um elemento do objeto dessa prática: conquistar o poder de Estado quebrando a máquina estatal, dizia Lenin, e isso diz tudo. Assim, não se pode em nenhum caso ver na prática política e na conjuntura um campo de variações cujos limites seriam produzidos unicamente pela estrutura econômica: essa interpretação “economicista-voluntarista” de Lenin se refere precisamente à concepção errônea das classes sociais que não distingue as estruturas e o campo da luta de classes. Ela ainda está viva, e encontra-se mesmo teoricamente formulada num autor tão competente
como €. Luporini: os limites de variações da ação das forças seriam constituídos unicamente pela “estrutura econômica”, recoberta pelo conceito de “formação econômico-social”? Esse conceito indicaria, em Lenin, o nível unicamente da “estrutura econômica”, no qual “agem” as classes sociais, O nível político da luta de classes. Esse conceito seria: um modelo que (como é geralmente o caso para todo modelo científico) teria uma função interpretativa relativamente ao campo que delimita. Neste caso, essa função interpretativa permite identificar tendências objetivas de desenvolvimento, e operar previsões nesse sentido. Trata-se desse tipo de previsão que se refere aos caracteres
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próprios do campo econômico e de suas leis e que permite inserir aí a ação concreta: a de uma força política ou de um grupo social consciente.”
Interpretação que é, aliás, apenas a expressão da concepção historicista das classes sociais, e que vê nessas classes o nível político e ideológico — luta de classes — em ação sobre a “estrutura” econômica. De fato, nada de mais
alheio ao pensamento de Lenin. Sabe-se que quando Lenin via na conjuntura russa o elo mais fraco da cadeia imperialista, ele percebia, como limites da prática política concreta da classe operária, os efeitos no campo da luta de classes de um conjunto de estruturas em sua unidade: simultaneamente da estrutura econômica, da superestrutura do Estado czarista e das estruturas
ideológicas refletidas na conjuntura. Sem isso, Lenin teria ficado na interpretação economicista de Marx feita pela Segunda Internacional, interpretação “que é afinal uma teoria economicista do elo mais forte. Recapitulo brevemente. A prática política de uma classe ou fração não se identifica com o reflexo de uma classe ou fração no nível da prática politica por “efeitos pertinentes”: somente uma prática política que tem efeitos semelhantes caracteriza o funcionamento concreto de uma classe ou fração de classe, dentro de uma formação, como classe distinta ou fração autônoma.
Somente essas classes distintas ou frações autônomas constituem forças sociais. No entanto, Lenin introduz ainda um critério da ação concreta das forças sociais na conjuntura, que é o da sua ação aberta ou declarada: ele nos diz, frequentemente, que o único critério real das alianças é a ação
aberta das classes sociais, sua “participação efetiva na luta”. Com efeito, por que esse critério suplementar, quando sabemos que as forças sociais não são simplesmente as classes em sua determinação econômica, e sim as classes no nível político? De fato, Lenin entende por ação aberta ou decla-
rada, em primeiro lugar, uma organização específica, política e ideológica de uma força social, que ultrapassa seu simples reflexo no nível político por “efeitos pertinentes”. Trata-se da organização de poder de uma classe que, será analisada no capítulo seguinte. Uma classe ou fração podem muito
bem existir enquanto forças sociais, sem por isso preencher as condições de organização que as podem fazer entrar nas relações de poder político: regra
geral, a ação aberta significa um poder político “próprio” de uma força social e, regra geral também, junto com uma organização em partido distinto e autônomo. Se tais são as condições da ação declarada, esta se refere ao campo de indeterminação da conjuntura, da “ação combinada das forças sociais”. O
único critério que pode mostrar qual é a forma concreta que essa combinação 93
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toma num momento determinado, dentre todo um inventário de variações
possíveis no interior da série dos-limites assinalados, é a participação efetiva na luta de uma classe que preenche condições particulares de organização.
Notas 1
Artigo 7 dos estatutos da Primeira Internacional (1866).
2
Elas vão, como se verá, do Manifeste communiste à carta a Bolte de 1871.
3
Notemos que essa concepção se encontra igualmente nos Grundrisse, onde Marx nos fala da “massa” dos “trabalhadores livres-indivíduos nus” que se constituem progressivamente em classe. Segundo essa concepção, a ordem das estruturas e a regulamentação de sua relação se reduzem à sua “totalidade significativa” constituída por esse centro que é a “concepção do mundo” da “classe para si”, sujeito, que as produz. Como o exprime Lukács: “A vocação de uma classe para a dominação significa que é possível, a partir de seus interesses de classe, a partir de sua consciência de classe, organizar o conjunto da sociedade conforme
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esses interesses. E a questão que decide, em última análise, toda a luta de classes é esta.
Até que ponto a classe em foco realiza conscientemente, até que ponto inconscientemente, até que ponto com uma consciência faisa as tarefas que lhe são impostas pela História?” (Histoire et conscience de classe, Paris, p. 76 ss). Posição ainda mais nítida do problema. se encontra em H. Marcuse, Kultur und Gesellschaft, t. 1, 1965, p. 34, e em One Dimensional Man, 1964, p. 55 ss, Mais perto de nós, encontram-se todos os temas gastos dessa mitologia em Touraine, na sua assim denominada Sociologie de Vaction, 1966.
5
6
7
Th. Geiger, Die Klassengeselischaft im Schmelztiegel, 1949, p. 37 ss. R. Dahrendorf, Class Conflict in Industrial Society, 1965, passim. Bourdieu, “Situation et position de classe”, curso mimeografado, e Travail et travailleurs en Algérie, 1964. Falamos aqui de uma interpretação funcionalista de Marx, e não do problema das “classes” ou do “grupo” na corrente funcionalista em geral. A citação é de Dahrendorf, para quem as classes são os “elementos dinâmicos variáveis que, como “função”, operam as transformações das “estruturas” sincrônicas (op. cir., p. 12iss). As análises de Weber encontram-se em muitos capítulos do Wirischaft und Geselischaft, Túbingen, 1947, sect. III, embora seus resultados apareçam mais nitidamente nos Gesam-
melte Aufsâtze zur Religionssoziologie e nas suas análises políticas de Gesammelte politische Schriften, Túbingen, 1958. O ponto importante de sua teoria de classes é a distinção entre a situação de “classe” — “chamo classe todo grupo de pessoas que se encontram
em uma comum situação de classe” —, definida principalmente pelos rendimentos, e o “grupo estatutário”, de certa maneira a função; essa distinção conduz à sua problemática da classe política e da burocracia. Voltarei a este ponto em Weber, pois ele me parece ser sem dúvida nenhuma o nó da relação entre o historicismo marxista e o “funcionalismo” da ciência política atual, duas correntes cujos princípios teóricos são rigorosamente idênticos, não diferindo muitas vezes a não ser pela oposição das suas conseguências. Assinalo aqui somente que o duplo estatuto ideológico que esta problemática atribui ao “grupo social”, será às vezes, por conseguinte, conceitualmente delimitado: tal foi já o caso para Weber e sua delimitação entre a “classe” — situação de classe — e o “grupo estatutário” — função. Tratar-se-á aqui de delimitar, por um lado, “classes” sociais reduzidas
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à “situação-econômica-de-classe”, e, por outro lado, “grupos” diferentes, cuja relação com as classes permanece sempre misteriosa, grupos esses que participam das relações política-função (estando as classes sociais limitadas à situação econômica de classe). É o problema da corrente “marxizante” das elites políticas, grupos-funções paralelos, aqui, às classes-situações. O problema é enunciado, da forma mais nítida possível, por esse fundador moderno das teorias das elites políticas que é R. Michels — Les partis politiques —, discípulo historicista “marxizante” de M. Weber.
A delimitação das classes em relação ao “econômico”, como se encontra em O capital, abrange, por exemplo, as seguintes relações: a) relações de produção no sentido estrito: produtor-proprietário dos meios de produção; b) relações de repartição do trabalho social: produtor-produtor; c) relações de transferência do produto social: produtor-produtor. Essas relações decorrem da combinação das duas relações econômicas — apropriação real e propriedade --, remetendo, assim, à organização do processo de trabalho e à divisão do trabalho. Por outro lado, no âmbito da concepção “funcionalista” que assinalei, e que também conduz à confusão das estruturas e das relações sociais, tratar-se-á, ao contrário, de esta-
belecer uma especificidade do “social” que não se reduziria ao “econômico”. Tomemos, por exemplo, o caso de Bourdieu: “A oposição weberiana [que Bourdieu aceita) implica então o reconhecimento de uma ordem propriamente social que deve sua autonomia relativa em relação à ordem econômica, ..” (Situation et position de classe, op. cit., p. 5). Ora, o problema, enunciado dessa forma, não tem estritamente nenhum sentido: como se
o econômico não se situasse também nas relações sociais — relações sociais econômicas, ou mesmo
na luta econômica de classe. De fato, essa distinção “econômico-social” é
operada por uma problemática ideológica, remontando precisamente aM. Weber, como demonstra o próprio título de sua obra principal, Économie et société, Althusser, Lire le Capital, t. JJ, p. 157. nu
É aqui, efetivamente, que aparece o erro fundamental de suas análises em Rationalité ef irrationalitê économique, 1966, e em “Systême, structure et contradiction dans Le Capital”, Les Temps Modernes, novembro de 1966. Segundo Godelier, o M.P.C. seria
caracterizado por duas contradições situadas nas estruturas, intervindo a primeira — fundamental — entre duas estruturas diferentes: de um lado, as relações de produção — propriedade privada dos meios de produção — e, do outro, as forças produtivas, e a segunda, a das classes capitalistas-operários assalariados, intervindo no interior de uma mesma estrutura, à das relações de produção. Duplo erro: a) As relações de produção e as forças produtivas pertencem à mesma combinação-estrutura do econômico, pertencendo a propriedade “privada” - jurídica — dos meios de produção à superestrutura; b) o que nos interessa, sobretudo aqui — a contradição das classes não é localizável no próprio interior das estruturas e assim unicamente no nível das relações de produção. Ela não é homogênea à primeira, e nem mesmo depende do mesmo sistema, pois se refere às, relações sociais: neste sentido, aliás, ela caracteriza todos os níveis das relações sociais,
de luta de classes, e não simplesmente as relações sociais de produção. Logo, podem-se subscrever inteiramente, a este respeito, as observações de L. Sêve, que retruca justamente a Godelier, afirmando que as contradições de classe estão presentes em todos os níveis do edifício social (La Pensée, outubro de 1967). 12 Anthropologie structurale, p. 305 ss. 3
Não é inútil assinalar esse problema. Com efeito, apareceram inúmeras confusões, a esse
respeito, na teoria sociológica atual, centradas no fato de saber se as “classes” sociais são um Realphinomen — concreto empírico — ou um Ordnungsphánomen — um conceito no
sentido de “modelo”. Ver, entre outros: Lenski, “American social classes — Statistical strata
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or social groups?”, American Journal of Sociology, vol. LV II, 1952; Lipset & Bendix, “Social Status and Sociai Structure”, British Journal of Sociology, vol. H, 1951 ete. Não se deveria, evidentemente, tornar aqui-o termo efeitos num sentido cronológico, o que seria fazer uma gênese ao contrário. Entendo por efeitos a existência da determinação das estruturas nas classes sociais. Encontram-se, em Lenin, vários textos referentes às classes sociais, que vão no mesmo
sentido: “A classe burguesa é o produto e a expressão da “vida” social representando uma formação social capitalista” (Cuvres, t. 1, p. 378), ou ainda: “Notem que Marx fala aqui da crítica materialista, a única que considera científica, ou seja, a que aproxima os fatos político-jurídicos, sociais, morais etc., do econômico, do sistema das relações de produção, dos interesses das classes que se constituem forçosamente no terreno de todas as relações sociais antagonistas” (Idem, ibidem, p. 355).
O problema é muito importante e assinalo-o já: as classes conotam sempre práticas de classe, e essas práticas não são esiruturas — a prática política não é a superestrutura do Estado, nem a prática econômica as relações de produção. E para aqueles que poderiam ainda se espantar com essa concepção das relações de produção, na constituição das classes sociais, como “luta econômica”, cito esta frase reveladora de Lenin que vai mesmo demasiado longe: “é a luta econômica de classe que constitui a base da “sociedade” e do Estado” (Euvres complêtes, Éd. Sociales, t.1, p. 419). Digo que Lenin vai demasiado longe, no sentido inverso, todavia, da confusão que constatamos até agora: em vez de incorporar a “luta econômica” de classe — a relação das classes com as relações de produção — nessas relações, Lenin, aqui, incorpora as relações de produção na “luta econômica”. Mais particularmente, La lutte des classes, 1965, op. cit. Mesmo caso para Gurvitch, “Le concept des classes sociales”, curso mimeografado,
1962.
Esse problema da multiplicidade dos critérios posto em jogo pela definição das classes merece atenção. Se por aí se entende que as classes sociais não são definidas simplesmente em sua relação com o econômico, mas também em sua relação com o político e o ideológico, essa observação é exata. Não se trata, porém, neste caso, de uma pluralidade qualquer de critérios — estes não são 6, 8 ou 14; trata-se de um critério perfeitamente definido que é uma relação complexa com níveis de estruturas, níveis por sua vez perfeitamente definidos. Enumerar, por exemplo, no nível ideológico, uma “pluralidade” qualquer de critérios (níveis de instrução, consciência de classe, atitude “racionalizante” ou não diante do trabalho etc.) - penso aqui principalmente nos trabalhos bem conhecidos de Bourdieu — constitui um erro na medida em que a relação global com o ideológico, nas suas diversas manifestações concretas, é estritamente definida como relação com as estruturas da ideologia. Isso vale também, aliás, para o problema dos rendimentos em sua correspondência com as relações de produção. Assim, rejeitar a concepção de uma pluralidade dos critérios de classe não quer dizer reduzir as classes à sua definição puramente econômica, mas reter em sua distinção os efeitos pertinentes das estruturas, tendo em vista que o marxismo nos dá a possibilidade de decifrar essas estruturas. 20 Oeconomicismo tentou evitar esse problema, considerando as relações jurídicas formais de propriedade como relações “econômicas”, o que se vê claramente em Pashukanis, Aligemeine Rechislehre und der Marxismus. É desnecessário notar que isso torna teoricamente impossível a distinção capital entre apropriação real, propriedade econômica e propriedade jurídica formal no modo de produção “puro”. 2
De fato, toda uma série de pensadores, que atribuem a Marx uma concepção “economi-
cista” das classes sociais, por um lado, e que aceitam que as classes do modo capitalista
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de produção se prestam efetivamente a uma definição exclusivamente econômica, chegam portanto, por um duplo erro teórico, a isto: admitem a validade da assim concebida teoria marxista das classes sociais apenas para as classes do modo capitalista de produção, e rejeitam-na para os outros modos nos quais a definição exclusivamente econômica é insuficiente de maneira particularmente nitida (ver, entre outros, T. Bottomore, Classes in Modern Society, 1966, p. 16 ss, etc). 22 Ver adiante, sobre este assunto particular, pp. 237-239, 23 Para tomar apenas um exemplo dentre muitos, citemos o primeiro parágrafo do artigo 7 dos estatutos da Primeira Internacional, redigidos por Marx em 1866: “Na sua luta contra o poder coletivo das classes possuidoras, o proletariado só pode agir como classe constituindo-se ele próprio em partido político distinto...” assim como esta passagem de uma carta a Boite, de 23 de novembro
de 1871: “Por outro lado, todo movimento
pelo qual a classe operária se oponha, enquanto classe [é Marx que sublinha], às classes dominantes, é um movimento político”. É, aliás, nesse contexto que se pode elucidar a ambiguidade da fórmula constante de Marx, segundo a qual toda luta de classe - das classes enquanto tais — é uma luta política. 24 Voltarei às implicações dessas fórmulas de Marx a respeito das formações sociais, e a uma definição mais precisa das práticas de classe e da luta de classes. 25 À nouveau
les syndicats...
26 De fato, o problema das “frações” de classe é mais complicado, mas tomo aqui apenas o caso de certas classes que se tornam, devido à combinação, frações de outras classes. Na formação social pode-se, ademais, descobrir, como efeitos próprios das estruturas políticas concretas dessa formação, o aparecimento de frações dentro de uma mesma classe; darei exemplos de Marx no capítulo sobre o bloco no poder. Por outro lado, o
fracionamento de uma classe pode estar presente já no modo “puro” de produção, e no nível econômico desse modo: por exemplo, a burguesia comercial, industrial, financeira. 27 Mais particularmente, seus textos referentes à organização da classe operária em partido autônomo. 28 Aliás, isso vale também para a existência de uma fração de classe como “fração autônoma”, como “força social”, 29 Já se vê aqui que a ausência de “efeitos pertinentes” no nível político não significa uma ausência de prática política: o sufrágio é, por exemplo, uma prática política para aquele que o exerce. 30 Le 18 Brumaire, Éd. Pauvert, p. 393 ss. Aliás, esse funcionamento dos camponeses
parcelares na França como força social decorre também das estruturas do ideológico. Marx nos mostra como Louis Bonaparte chega a apresentar-se como “representante” dos camponeses parcelares, fenômeno que, sem dúvida, remonta à ideologia política profundamente ambígua que foi o jacobinismo francês (ver, nesse sentido, E. Hobsbawn, . The age of revolution,
3
1789-1848,
1962, p. 109 ss., p. 149 ss.)
Ver o problema em Engels, La Question du logement, 1872, 2º parte, 2º seção, e no Prefácio de 1874 da Guerre des paysens, Éd. Sociales, pp. 15-23, mais particularmente
p. 20 (o bonapartismo bismarckiano). A análise dos camponeses é mais detalhada em Révolution et contre-révolution en Allemagne (Idem, ibidem, pp. 203-211). Engels distingue os camponeses parcelares, os operários agricolas e os arrendatários feudais. Notemos que o fato de grande parte dos camponeses alemães não ser, do ponto de vista econômico, arrendatário feudal não implica o não comportamento dessas três classes de camponeses enquanto classes distintas no bismarckismo; os arrendatários feudais poderiam ter se comportado com os camponeses parcelares e os operários agrícolas
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como força social precisamente para a abolição dos privilégios feudais, porém havia o Estado e Bismarck... 32 Cf. meu artigo “La théorie politique -marxiste en Grande-Bretagne”,
em Les Temps
Modernes, março de 1966, e minhas referências detalhadas às análises de Marx. 33 No meu artigo assinalado, fiz a crítica do emprego por P. Anderson, a fim de designar o problema de subdeterminação de classe, do conceito de “totalidade destotalizada”,
de Sartre,
34 Esse problema foi sistematicamente tratado por Lenin em O desenvolvimento do capita-
lismo na Rússia. À respeito da enunciação do problema das classes nessa obra capital, é preciso notar que Lenin, já no Prefácio da primeira edição, sublinha que foi obrigado a limitar-se “unicamente ao aspecto econômico dos processos”. A relação desse aspecto econômico e do aspecto político é, porém, assinalada no Prefácio à segunda edição, embora sob o termo “confirmação”:
w
2
Le 18 Brumaire, p. 229. Refiro-me aqui à edição Pauvert que apresenta os textos de Luites des classes en France e Le 18 Brumaire reunidos. Vou citar doravante Lí, para o primeiro texto e Br. para o segundo. Lt, p. 66. La question agraire et les critiques de Marx. Programme agraire de la social-démocratie dans la premiêre révolution russe de 1905 à 1907.
oo
aa
Br. p. 134.
O capital, 3, 1, p. 280. Idem, p. 42.
Br, p. 256.
Engels nos descreve as consequências concretas dessa situação nos termos seguintes: “Parece ser uma lei do desenvolvimento histórico que a burguesia não possa, em nenhum país
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da Europa, conquistar o poder político — ao menos por um tempo bastante prolongado — da mesma maneira exclusiva que a aristocracia feudal na Idade Média” (Socialisme utopique et socialisme scientifigue, Prefácio da edição inglesa, 1892). Ou ainda, no Prefácio a La guerre des paysans (1850): “O que distingue a burguesia dé todas as classes que reinaram outrora é a particularidade de haver no seu desenvolvimento uma virada a partir da qual todo acréscimo de seus meios de poderio não faz senão contribuir para torná-la cada vez mais inapta à dominação política, A. partir desse momento ela perde a força de manter. exclusivamente sua dominação política; procura aliados com os quais partilha seu poder ou aos guais o cede completamente, segundo as circunstâncias”. Veremos, no entanto;
por um tado, que o termo “aliança” é inadequado para circunscrever essa particularidade. da burguesia (a classe feudal também, como constatou Engels várias vezes, concretizou alianças); por outro lado, que se trata precisamente de um bloco no poder no interior do qual a burguesia não “partilha”, de fato, o poder, nem o “cede completamente”. 10 Ver, anteriormente, pp. 148 e 153.
nº L'État et ta révolution, obras-em três volumes, vol. TI, Éd. Moscou, p. 358.
2 Lt, p 13% 13 Lt,p.56.
14 Br, p. 244.
15 Br, p. 244. 16 Br, p. 315.
17 Lt, pp. 131-132.
.
18 Uma observação a esse respeito: no capítulo sobre as classes sociais, falei, a propósito da subdeterminação das classes dos modos de produção não dominantes, de sua dissolução e fusão nas classes do modo de produção dominante. No entanto, o termo “fusão” indicava. ali precisamente o fato de que certas classes ou frações não funcionam, em uma formação; como “classes distintas” ou “frações autônomas”, com efeitos pertinentes no nível do político, em suma, como “forças sociais”. Aqui, trata-se, ao contrário, de apreender um
tipo de unidade entre forças sociais.
19 LE, p. 131.
20 Lt. p. 160. 21
As implicações e as consequências do emprego da noção de fusão encontram-se, aliás, em várias obras atuais da ciência política marxista. Fiz a crítica desse conceito, empre gado por autores tais como P. Anderson e T. Nairn, em suas análises referentes à evolu-: ção do capitalismo na Grã-Bretanha, em “A teoria política marxista na Grã-Bretanha”, artigo citado. Índico, nesse artigo, as análises concretas de Marx e Engels referentes ag “bloco no poder” na Grã-Bretanha, e que seguem as mesmas linhas reóricas que essas análises de Marx sobre o caso francês. Porém, é preciso notar, de passagem, que a particularidade histórica da França consiste, a esse respeito, na hegemonia quase constante, a partir de Louis-Philippe, do capital financeiro; em contrapartida, na Grã-Bretanha e na Alemanha, esse lugar cabe frequentemente ao capital comercial e industrial. Sobre as razões dessa situação na França, ver G. Dupeux, La société française, 1789-1960, 1964, p. 39 ss., p. 132. ss.
22 Lt, p. 161.
23 Br.,p. 315.
24 Br. p. 228. 25 Sobre o conceito de aliança, ver também Linhart, “La Nep. Queiques caractéristiques de la transtion soviétique”. Assinalo aqui que Lenin, assim como Mao, sublinha frequentemente. os limites do conceito de aliança, procurando demarcá-lo de conceitos especificados, como,
258
O ESTADO
CAPITALISTA
E AS CLASSES
DOMINANTES
por exemplo, o de frente única. Se não me refiro a suas análises, é porque elas se referem à ditadura do proletariado e à transição do capitalismo ao socialismo, e não podem ser diretamente apiicadas à formação capitalista. No entanto, a necessidade em que eles se viram de empregar o conceito de “frente unida”, demarcado do de “aliança”, legitima meu recurso ao conceito de “bloco no poder”. 26 Lt, p. 93. 27 Br.,p. 31655. 28 Lt., p. 93; Br., p. 250.
29 30 31 32 33
Voltaremos a isso com exemplos concretos. Br. p. 227. Br. p. 250. Mais particularmente Duverger. Ver, adiante, p. 325 ss. Voltaremos mais amplamente a análises concretas referentes a essa relação entre a cena política — lugar de representação partidária — e a tipologia dos regimes políticos. Essa relação, indicada por Marx, foi sublinhada por Gramsci, em suas análises a respeito O 18 Brumário, e sobretudo em seu texto Observations sur quelques aspects de la structure des partis politiques en période de crise organique, no qual, em lugar do termo cena política, emprega o termo terreno dos partidos: “Num certo ponto de sua vida histórica, os grupos sociais separam-se de seus partidos tradicionais, ou seja, os partidos tradicionais, na forma de organização que apresentam, com os homens bem determinados que os constituem, os representam e os dirigem, não são mais reconhecidos como a expressão
de sua classe ou fração de classe... Como se formam essas situações de oposição entre “representados e representantes: que, do terreno dos partidos... se refletem em todo o organismo de Estado?”. Levando em conta o fato de que Gramsci examina aqui apenas o caso de uma crise da cena política, o que importa reter é a relação indicada entre “o organismo de Estado” e o funcionamento concreto da representação partidária. (Cito o texto de Gramsci a partir da tradução francesa das Éd. Sociales, op. cit, p. 246 ss.) 34 CEuvres politigues, t. II, pp. 10-11, e os textos sobre Palmerston, t. Te VI. Análises capitais de Engels a esse respeito encontram-se no Prefácio de 1892 à primeira edição inglesa de Socialisme utopigue e socialisme scientifique, onde se encontram, aliás, observações penetrantes sobre a periodização do “bloco no poder” na Grã-Bretanha. 35 CEuvres politigues, op. cit. t. VL p. 19 ss. 36 A esse respeito, ver G. Dupeux, La Société française, 1789-1960, 1964, p. 182 ss. Notemos, porém, que Dupeux, não operando as distinções assinaladas, considera — com reserva — essa situação como “perda do poder político” da grande burguesia.
259
PARTE
IV
A UNIDADE
DO
PODER
E A AUTONOMIA
RELATIVA
DO
ESTADO
CAPITALISTA
I
O PROBLEMA PELOS
E SUA
ENUNCIAÇÃO
CLÁSSICOS
DO
TEÓRICA
MARXISMO
Vou-me ocupar, nesta parte, de uma das características mais importantes
do tipo capitalista de Estado, e que deu lugar a inúmeras controvérsias é interpretações errôneas. Trata-se da unidade própria do poder político institucionalizado e de sua “autonomia relativo”, Digamos desde já que essas noções de unidade própria e de autonomia relativa não parecem, de imediato, apresentar todo o rigor desejável para
o tratamento científico dos problemas; habitualmente empregadas pela teoria marxista, não tiveram frequentemente senão a função de dispensar uma análise aprofundada dessas questões. Com efeito, não podemos
permitir-nos utilizá-las a não ser precisando exatamente seu sentido. É o que tentarei fazer ao longo deste capítulo. No entanto, a fim de fixar as
ideias, dou já algumas precisões, indicando, sobretudo, os problemas que elas recobrem na teoria marxista. a) Por unidade própria do poder político institucionalizado, entendo esse caráter particular do Estado capitalista que faz com que as instituições de poder de Estado, relativamente autonomizadas do econômico, apresentem uma coesão interna específica: esta pode
ser apreendida em seus efeitos. Poderíamos já dizer, aproximativamente, que ela impede as relações das classes ou frações do bloco no poder, e, com maior razão, destas e das classes ou frações aliadas ou apoios, de se fundarem em uma parcelização, uma fragmentação 261
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
ou uma partilha do poder institucionalizado do Estado. Esse caráter aparece como próprio do Estado capitalista. Com efeito, os tipos “precedentes” de Estado, cuja relação com-o econômico é radical-. mente diferente daquela do Estado capitalista, não apresentavam
essa coerência específica de uma superestrutura jurídico-política autonomizada;
suas instituições consistiam em uma pluralidade:
compartimentada de centros de poder de caráter econômico-político, estando as relações de classe frequentemente fundadas numa partilha desses centros. b)
Por autonomia relativa desse tipo de Estado, entendo aqui não mais
diretamente a relação de suas estruturas com as relações de produção, mas a relação dô Estado com o campo da luta de classes, mais particularmente sua autonomia relativa a respeito das classes ou frações do bloco no poder e, por extensão, de seus aliados ou apoios. Essa expressão se encontra nos clássicos do marxismo e designa o
funcionamento do Estado em geral no caso em que as forças políticas em presença estão “prestes a se equilibrar”. Emprego-o aqui, num: sentido ao mesmo tempo mais amplo e mais estrito, para designar um funcionamento específico do Estado capitalista. Espero dessa forma marcar nitidamente a distância que separa essa concepção do: Estado, de uma concepção simplista e vulgarizada, que vê no Estado. o utensílio ou o instrumento da classe dominante. Trata-se, portanto;
de apreender o funcionamento específico do tipo capitalista de Estado em relação aos tipos de Estado precedentes, e demonstrar que a concepção do Estado em geral como simples utensílio ou instrumento da classe dominante, errônea em sua própria generalidade, é
particularmente inapta para apreender o funcionamento do Estado capitalista. Acrescentarei igualmente, e isto é importante, que se poderá constatar,
no que se segue, uma correlação entre essas duas características do tipo capitalista de Estado. Se este apresenta uma autonomia relativa no tocante às classes e frações dominantes, é na exata medida em que possui uma unidade própria - unidade de poder de classe —, enquanto nível específico do M.P.€. e de uma formação capitalista, Conjuntamente, ele possui essa
unidade institucional na medida em que é relativamente autônomo no tocante a essas classes e frações, ou seja, em última análise, em razão da função que lhe incumbe no tocante a estas. 262
O PROBLEMA
E SUA
ENUNCIAÇÃO
TEÓRICA
PELOS
CLÁSSICOS
DO MARXISMO
Essas observações são tanto mais importantes quanto toda a tendência historicista do marxismo, com seu invariável “voluntarismo-economicismo”, estabeleceu bem essa relação entre a unidade do poder político
institucionalizado e sua função no tocante às classes e frações de classes dominantes, enganando-se, porém, sobre seu sentido. Essa tendência vê no
Estado, no fim das contas, o produto de um sujeito, quase sempre da classe dominante-sujeito, de que constitui um simples utensílio de dominação, manipulável à vontade. A unidade desse Estado é assim relacionada a uma unidade pressuposta da “vontade” da classe dominante, a respeito da qual o Estado não apresenta nenhuma autonomia. O Estado, unificado pela vontade única de dominação dessa classe, não é para ela senão um utensílio inerte. Isso acarreta imediatamente a seguinte conclusão: por menos que se
admita uma autonomia relativa do Estado a respeito da classe dominante, isto é imediatamente interpretado como uma ruptura da unidade do poder político institucionalizado, como uma fragmentação e parcelização desse poder, do qual a classe operária poderia conquistar uma “parte” autônoma. Ou ainda, por uma inconseguência teórica flagrante, o Estado capitalista será simultaneamente considerado como simples “auxiliar” da classe dominante, e como amontoado de parcelas que não esperam mais do que se
tornar presa da classe operária. Uma observação suplementar: já indiquei a relação do Estado capi-
talista com o conjunto dos níveis de estruturas do M.P.C., assinalando a função particular de fator de unidade de uma formação capitalista, composta de níveis específicos e relativamente autônomos, que incumbe a esse Estado. No entanto, abordarei aqui o problema examinando, não diretamente a relação entre o Estado e as outras instâncias, mas a do
Estado com o campo da luta de classes, mais particularmente da luta política de classe. Deveremos, então, ter constantemente em vista que essa última relação reflete de fato a relação das instâncias, pois é seu efeito, e
que essa relação do Estado com a luta política de classe concentra em si. a relação entre os níveis das estruturas e o campo das práticas de classe. Em outras palavras, o caráter de unidade do poder de Estado, relacionado com seu papel na luta de classes, é o reflexo de seu papel de unidade no tocante às instâncias; sua autonomia relativa no tocante às classes ou frações politicamente dominantes é o reflexo da autonomia relativa das instâncias de uma formação capitalista. Em suma, essa unidade e essa autonomia do tipo capitalista de Estado se referem à especificidade de 263
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
suas estruturas — relativamente autônomas
a respeito do econômico —
em sua relação com a luta política-de classe — relativamente autônoma a!
respeito da luta econômica de classe, As características em questão do Estado capitalista foram, de fato, estudadas e analisadas por Marx, assim como por Engels, em suas obras políticas. Seria, no entanto, necessário fazer aqui duas observações: a) No tocante pelo menos a essas questões, esses textos nem sempre
são explícitos. Além disso, como foi o caso a respeito do bloco no poder, Marx e Engels analisam frequentemente as realidades históricas referindo-se explicitamente a noções que não bastam.
para explicá-las. Esses textos contêm indicações preciosas, com a condição de decifrar os conceitos científicos exigidos para seu tratamento, conceitos esses que, ou faltam, ou então, no mais das vezes, se encontram aí no estado prático;
b) É preciso relembrar aqui as ambiguidades desses textos. De fato, à despeito das aparências, eles não constituem simplesmente análises históricas de fenômenos concretos de uma formação determinada, mas também, num desdobramento de decifração complexa, uma re-
flexão histórica sobre as formas políticas do M.P.C, Reportemo-nos, por exemplo, aos textos de Marx referentes ao periodo de 1848-1852 na França. Lenin já os considerava como apresen-. tando, de forma concentrada, as transformações que afetaram o Estado
capitalista. Lenin entende por isso que esses textos de Marx representam um esforço de construção teórica do conceito de Estado capitalista, Sob esse ângulo de leitura, é possível decifrar, sob as formas históricas concretas que Marx estuda na formação social na França, sob as diversas “etapas” de transformação das formas políticas, traços constitutivos do conceito do Estado capitalista. Logo, não se trata de forma alguma, nessa leitura, de construir um tipo de Estado mediante uma generalização a partir dos dados históricos, ou seja, a partir das formas políticas concretas descritas por Marx. Trata-se de se reportar ao conceito de Estado capitalista, o que é uma coisa completamente diferente. É esse conceito que nos permite compreender as transformações históricas, analisadas de forma “concentrada” por Marx. E isso, sem nunca perder de vista o caráter fragmentário e esquemático dessas análises, que nos fornecem 264
:
O PROBLEMA
E SUA
ENUNCIAÇÃO
TEÓRICA
PELOS
CLÁSSICOS DO
MARXISMO
apenas indicações teóricas. Em suma, se O capital nos dá indiretamente
os traços conceituais do Estado capitalista analisados precedentemente, as obras políticas oferecem-nos os da unidade e da autonomia relativa desse tipo de Estado. Dito isso, podemos abordar o problema, capital a esse respeito, do bonapartismo. O que se encontra, em primeiro lugar, nos textos de Marx
e Engels no tocante ao bonapartismo, é a análise de um fenômeno político concreto de uma formação determinada. Contudo, o bonapartismo é, paralelamente, sistematicamente pensado por Marx e Engels, não simplesmente como uma forma concreta de Estado capitalista, mas como um traço teórico
constitutivo do próprio tipo capitalista de Estado. O que foi expresso por Engels, em uma carta a Marx de 13 de abril de 1866: o bonapartismo é a verdadeira religião da burguesia moderna. Vejo cada vez melhor que a burguesia não é feita para reinar diretamente; por conseguinte, uma semiditadura bonapartista torna-se a forma normal; ela toma nas mãos os grandes interesses da burguesia (contra a burguesia se for preciso), mas não lhe deixa parte alguma na dominação. '
Engels volta a esse ponto no famoso Prefácio à terceira edição dO 18 Brumário, no qual considera a França tão representativa do M.P.C,, no tocante às formas políticas, quanto o é a Grã-Bretanha, no tocante ao econômico. Finalmente, essa concepção está implicitamente contida no
Prefácio, de 1869, de Marx ao 18 Brumário, no qual opõe o bonapartismo, como forma política da luta moderna de classes em geral, às formas políticas de formações dominadas por outros modos de produção diferentes do modo capitalista: Afinal de contas, espero que esta obra contribua para afastar o termo, usual-
mente empregado hoje em dia, particularmente na Alemanha, de cesarismo. Nessa analogia histórica superficial, esquece-se o principal, ou seja, que na antiga Roma, a luta de classes travava-se apenas no interior de uma minoria privilegiada, entre os cidadãos ricos livres e os cidadãos pobres livres, ao passo que a grande massa produtiva da população, os escravos, não servia senão de pedestal passivo aos combatentes. Considerando a total diferença entre as condições materiais, econômicas, da luta de classes na Antiguidade e nos tempos modernos, as formas políticas que
daí decorrem não podem ter mais semelhança entre si do que o arcebispo de Canterbury com o grande profeta Samuel.
265
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
Torna-se claro dessa forma que, quando nos reporiamos a esses textos, é sempre preciso esclarecer as duas leituras possíveis, e, assim, distinguir o que se refere ao fenômeno histórico concreto do-bonapartismo na França; e o que se refere ao bonapartismo como característica constitutiva do tipo.
capitalista de Estado. Ora, uma das características essenciais do bonapartismo no segundo
sentido é a autonomia relativa do Estado no tocante às classes ou frações dominantes, e é precisamente sob esse ângulo que Marx e Engels o consideram.
Qual é, no entanto, o esquema pelo qual explicam o bonapartismo? Quase sempre, recorrem à explicação geral de uma autonomia relativa
do Estado quando as classes em juta nos diz, nesse sentido, em 4 guerra se explica por aquele momento em e a classe operária ainda não tenha
estão “prestes a se equilibrar”. Marx civil na França, que o bonapartismo que “a burguesia já tenha perdido, adquirido, a faculdade de governar
a nação”. Isso é ainda mais nítido em Engels: ele recorre, a respeito do bonapartismo, à explicação geral que o marxismo admite da autonomia relativa do Estado no caso de um equilíbrio das forças sociais em presença, e tem tendência, por isso mesmo, a assemelhar fenômenos tão diferentes quanto o Estado absolutista, o bismarckismo e o bonapartismo. Importa, porém, assinalar que o bonapartismo, como fenômeno histórico, se refere
ao Estado de uma formação social com dominância já consolidada do M.P.C. Trata-se, portanto, ao contrário do Estado absolutista do período
de transição, de uma forma política que pertence à sua fase de reprodução ampliada — constituindo o bismarckismo ainda um fenômeno diferente. Aliás, é em razão disso que Marx, a propósito de seu estudo concreto do bonapartismo, inicia uma reflexão sobre o tipo capitalista de Estado. Ora, é claro que a explicação da autonomia relativa do Estado bonapartista, considerado como “religião da burguesia”, como traço constitutivo do tipo de Estado capitalista, por referência a uma situação de equilíbrio entre as forças sociais em luta, não é absolutamente suficiente. Ainda mais: não
basta sequer para explicar o fenômeno concreto do bonapartismo na França. Tudo acontece, de alguma forma, como se Marx e Engels se referissem
unicamente à concepção da autonomia relativa do Estado que elaboraram teoricamente, a fim de explicar fatos para os quais esta se revela insuficiente. Com efeito; por uma leitura aprofundada dos textos de Marx, pode-se ver que este não admite absolutamente, no caso do bonapartismo na França,
um equilíbrio entre a classe burguesa e a classe operária — no sentido, por 266
O PROBLEMA
E SUA
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TEÓRICA
PELOS
CLÁSSICOS
DO MARXISMO
exemplo, em que se pode falar de um equilíbrio entre a classe feudal e a classe burguesa unicamente no último período do Antigo Regime: a classe operária, desorganizada pelos acontecimentos de 1848, não só não está em uma situação de equilíbrio de forças com a burguesia, como “desaparece mesmo de cena”. A contradição principal desloca-se e concentra-se entre a burguesia, de um lado, e a pequena burguesia e o campesinato, do outro,
sem que se possa tampouco falar de um equilíbrio entre essas forças. Lenin segue igualmente, em seus-textos sobre o bonapartismo fran-
cês, esse esquema explicativo.” Somente a posição de Gramsci sobre esse ponto é mais avançada, sem atingir, no entanto, o fundo da questão. Em seu texto capital sobre o cesarismo, ele tenta apreender esse fenômeno
político específico situando-o em relação aos diversos tipos de Estado. Desse modo, vê no bonapartismo francês de Napoleão II uma forma particular de cesarismo, situada no âmbito do Estado capitalista. Não tenta considerar o bonapartismo, do ponto de vista teórico, como característico
do tipo de Estado capitalista; o pertencimento do bonapartismo a esse Estado serve aqui para concretizar esse fenômeno como forma particular do cesarismo. Ora, o cesarismo, como fenômeno político específico, é
relacionado por Gramsci não a qualquer equilíbrio das forças sociais em presença, mas a um equilibrio particular apreendido pelo seu conceito de equilíbrio catastrófico, produtor de crise política; trata-se de um equilíbrio “de tal sorte que o prosseguimento da luta não pode ter outra conclusão senão a destruição recíproca e que oferece uma perspectiva de catástrofe”. Observações capitais, próximas das de Marx, relacionando o bonapartismo francês a esse equilíbrio de forças particular que faz com que “a classe burguesa tenha já perdido, e a classe operária ainda não tenha adquirido, a faculdade de governar a nação”.
Contudo, se é verdade que esse equilíbrio catastrófico particular, que se deve assim distinguir, como faz Gramsci, do equilíbrio geral — manifesto no caso do Estado absolutista -, conduz a esse fenômeno especifico que é o. cesarismo, não é menos verdade que ele não pode, como tampouco o equilibrio geral, explicar o fenômeno histórico concreto do bonapartismo francês. Aliás, Gramsci está bem consciente disso, e isso está claro nas precauções
que toma para explicar o bonapartismo francês, de forma alguma redutível a essa crise política de equilíbrio catastrófico: a fase catastrófica pode apresentar-se em decorrência de uma deficiência política “momentânea” da força dominante tradicional, e não por causa de uma
267
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
deficiência orgânica necessariamente insuperável. Foi o que ocorreu no caso de Napoleão III [no qual] a forma.social existente ainda não esgotara suas possibilidades de desenvolvimento, como demonstrou amplamente a sequência dos acon-
tecimentos. Napoleão II representa essas possibilidades latentes e imanentes: seu cesarismo tem então uma cor particular, No caso do cesarismo de Napoleão, não houve passagem de um tipo de Estado a um outro tipo, mas somente “evolução”:
do mesmo tipo segundo uma linha ininterrupta. Ora, essa autonomia relativa do Estado bonapartista francês no tocante
às classes ou frações dominantes só pode ser compreendida pelo pertencimento dessa forma concreta ao tipo capitalista de Estado. Esse Estado apresenta efetivamente essa autonomia relativa como traço constitutivo de seu conceito. Esse traço remonta, portanto, à sua relação com as ca
racterísticas específicas da luta de classes no M.P.€. e em uma formação capitalista, relação que estabelece os limites que circunscrevem a ação concreta dessa luta sobre o Estado. Essa autonomia existe mesmo no caso em que não se trata nem de um equilíbrio no sentido geral, nem de um equilíbrio catastrófico das forças sociais, sede da contradição principal.
Queremos dizer com isso que essa autonomia, inscrita como possibilidade no jogo institucional do Estado capitalista e cujas variações e modalidades de realização dependem da conjuntura concreta das forças sociais,
nem pode ser reduzida ao esquema geral de equilíbrio dessas forças, nem. àquele, catastrófico, que subtende o fenômeno particular do cesarismo. Examinarei, a seguir, as razões e o sentido exato dessa autonomia sobre
a qual Marx nos dá indicações em suas obras políticas. No entanto, essa autonomia do tipo capitalista de Estado não elimina a possibilidade de funcionamento, em uma forma histórica desse tipo, da autonomia devida ao equilíbrio, geral ou catastrófico, das forças em presença. O que é preciso ver bem é que essas autonomias, na relação entre o Estado e o campo da luta de classes, não são da mesma ordem: no caso do equilíbrio das forças em presença, o Estado pode funcionar efetivamente, como diz Engels, no
sentido objetivo de uma arbitragem entre essas forças. Em compensação, a autonomia constitutiva do tipo capitalista de Estado, em sua relação — de li-
mites — com os caracteres específicos da luta de classe do M.P.C., não pode, em sentido algum, ser apreendida como uma arbitragem. Se esses modos
de autonomia relativa podem ser conjugados em uma forma concreta do Estado capitalista, podem também ser contraditórios. A autonomia relativa de uma forma desse Estado, devida a um equilíbrio das forças sociais
268
O PROBLEMA
E SUA
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TEÓRICA
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CLÁSSICOS
DO
MARXISMO
em presença, pode pôr em causa, como se verá, sua função no tocante às classes e frações dominantes, portanto o modo de autonomia relativa que lhe incumbe em razão de seu pertencimento ao tipo capitalista de Estado.
Notas 1
2 3
Emprego esses termos, pois são termos já estabelecidos, que é preciso levar em conta. A esse respeito, não consigo resistir à tentação de citar a resposta de Lenin a Parvus, que o censurava por empregar 0 termo “figurado” de “boicote ativo”: “Parvus pode, é certo, objetar que não considera obrigatório o uso de termos figurados. Essa objeção será justificada quanto à forma, mas não valerá nada quanto ao conteúdo. É obrigatório saber do que se fala. Não discutamos as palavras em si, mas digamos simplesmente que os termos políticos aceitos na Rússia, sobre o teatro das operações, pertencem ao domínio dos fatos e exigem ser levados em conta”. CBuvres, t. IX, p. 275. Notadamente em CEuvres, t. XXV, pp. 93-96 e pp. 240-244: “Les débuts du bonapartisme”. Cito aqui segundo a tradução das Éd. Sociales, op.-cit., pp. 256 e 258.
269
IH
ALGUMAS
INTERPRETAÇÕES
E SUAS
ERRÔNEAS
CONSEQUÊNCIAS
À teoria geral Seria útil, antes de irmos ao âmago
do problema e a fim de sublinhar-
mos sua importância, notar as confusões que podem decorrer de certas concepções modernas do Estado e do poder político. Essas correntes se formaram, sobretudo, fora ou à margem
do pensamento marxista, mas,
pela via da social-democracia europeia, influenciaram com frequência a estratégia operária nesses países. Tiveram amiúde repercussões implícitas sobre a teoria marxista do Estado. Por outro lado, assinalaremos certas deformações dessa teoria que, tomando o sentido contrário dessas corren-
tes — embora admitindo os mesmos princípios teóricos —, se afastam do teor científico da teoria marxista do Estado, sempre no tocante à questão
de sua unidade própria e de sua autonomia relativa. Se parece difícil classificar de maneira sistemática teorias aparentemente muito diversas e que, atualmente, se apresentam num sincretismo edificante, podemos, ao menos, estabelecer inicialmente uma temática comum. Basta para isso ler, através das variantes, uma série de correlações altamente reveladoras. Essas correlações parecem ser:
a) 4 depreciação do político. Ele perde sua especificidade como nível relativamente autônomo de estruturas e de práticas sociais. Em outras palavras, constata-se a ausência de uma concepção científica da 271
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
relação entre o econômico e o político que, como matriz invariante do M.P.C. e de uma formação capitalista, rege as variações dessa relação nos diversos estágios e fases dessa formação. O desconhecimento dessa relação apresenta-se teoricamente sob duas formas:
dissolução do político no econômico, por um lado; absorção do econômico no político, por outro. b) À ausência de uma concepção da unidade do poder de Estado e do
poder político em geral, Série de concepções de uma parcelarização do poder político institucionalizado em benefício de um “pluralismo”. de poderes-contrapoderes, grupos de veto, centros de decisões etc. c) À ausência de uma concepção da autonomia relativa do poder político, o qual se torna presa partilhada pela “pluralidade” dos porta-
dores — grupos, conjuntos etc. — desses poderes parcelarizados, ou a interpretação errônea dessa autonomia — concepção do Estado
forte — árbitro —, ou de um Estado passível de uma revolução a partir de cima em direção ao socialismo. d) A ausência da concepção da luta de classes ou a interpretação errônea da teoria da luta política de classes. Em segundo lugar, podemos referir-nos aos princípios epistemológicos dessas teorias que, em aparência, têm origens bastante diversas, Elas re-
montam, no tocante à sua formulação em uma forma moderna, às primeiras concepções do “institucionalismo” de Veblen e de Commons e às concepções
“neocorporativistas” do Estado, que ganharam corpo na Alemanha após a República de Weimar. É verdade que na sequência elas se revestiram de formas muito diversificadas, e se modernizaram de algum modo, canalizando-se para várias correntes teóricas e políticas. Quase sempre se inseriram nas diversas concepções atuais das assim chamadas transformações da sociedade
capitalista. Suas origens foram, assim, ocultadas com o tempo. Ora, refiro-me aqui a essas origens relativamente precisas, pelas duas razões seguintes, Por um lado, para mostrar que, sob sua forma “moderna”, decorrente das chamadas transformações atuais — evidentemente — da sociedade, esconde-
-se uma função ideológica bem antiga: aquela que consiste em mascarar as características de classe do poder político institucionalizado. Assim, não é por acaso que essas formas teóricas e políticas “atuais” coincidem com os princípios e as conclusões de suas origens remotas. Essas formas antigas tiveram as mesmas repercussões na corrente da social-democracia europeia
antes da Segunda Guerra Mundial, que as formas atuais na corrente social272
ALGUMAS
INTERPRETAÇÕES
ERRÔNEAS
E SUAS
CONSEQUÊNCIAS
-democrata moderna. Por outro lado, se escolho aqui suas fontes precisas, é também na medida em que elas enunciam os problemas da unidade própria e da autonomia relativa do Estado capitalista com uma particular nitidez. É possível delinear os pontos comuns desses princípios teóricos, desde aorigem hegeliana das concepções neocorporativistas alemãs, prolongadas pela corrente corporativista atual, até as repercussões profundas do institucionalismo americano sobre a corrente do “funcionalismo” — o que é patente
na maioria das teorias atuais do Welfare State! Não me demorarei nesse ponto. Lembremos simplesmente a relação entre a problemática historicista
e o funcionalismo. A propósito do problema da unidade e da autonomia relativa do Estado capitalista, essas correntes, reportando-se finalmente à
problemática do sujeito central, não podem admitir a estruturação de um conjunto social em níveis específicos com eficácia própria. Toda unidade, seja ela a de um nível particular ou a do conjunto do sistema social, é relacionada a uma totalidade de tipo gestaltista, ou seja, simples e circular, constituída de elementos homogêneos e equivalentes. A unidade e a relação desses elementos estão fundadas no sujeito originário, centro de totalização. Nessa problemática, encontramos, nas formas diversas de que se revestiram em seguida essas teorias, a série das correlações mencionadas: a)
Uma ausência do conceito científico da luta de classes. Tratar-se-á das relações de “integração” entre certos “grupos”, “conjuntos”, “conste-
lações de interesses” etc., num sistema social-sujeito. b) Nesse contexto, o poder político institucionalizado do Estado não pode ser apreendido em seu estatuto de nível específico do sistema social; isso é nítido na noção, admitida por essas correntes, de instituição. Essa noção apresenta, aliás, uma confusão característica, e é
substituída indiferentemente pelos termos “estrutura”, “organização”, “associação” ou “corporação”. Recobre ao mesmo tempo o dominio
do econômico — designando com isso os “grupos” ou “conjuntos”. econômicos como as grandes empresas, os sindicatos, os lobbies, os
grupos de pressão etc. — e as estruturas próprias do poder político. O Estado-instituição é considerado como um elemento, homogêneo e equivalente aos outros, do sistema social de conjunto, como um produto do sujeito originário, integrado em seu equilíbrio circular. Ele
participará dessa função difusa e indistinta de coesão do todo social que incumbe a todas as suas partes totais — vimos, a esse respeito, a
concepção típica do político em T. Parsons. 273
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCHIS
c) O próprio Estado, como elemento particular do sistema social de conjunto, não apresentará unidade interna no sentido próprio. O poder político institucionalizado será concebido como composto de uma “totalidade” de “poderes-contra poderes”, de “poderes compensatórios”, de “grupos de veto”, em suma, de partes equivalentes. Essas partes serão elas próprias divididas entre os diversos conjuntos ou grupos:
equilibrados nesse sistema circular; equilíbrio circular, portanto, que rege simultaneamente o conjunto social e todos os seus elementos particulares, seja o nível econômico ou o nível político. O equilíbrio c a
partilha do poder político estão aqui calcados no equilíbrio calculado, no domínio econômico, entre os “conjuntos-grupos” que o compõem; esses conjuntos compartilham o poder político, e, evidentemente, a
luta de classe está aqui ausente. Estas linhas muito gerais vão se tornar precisas se considerarmos concretamente, em suas formas atuais, as duas consequências que acarreta a ausência
de especificidade do nível político, por um lado, a dissolução do político no econômico, por outro, e, ainda, a absorção do econômico no político. a) A primeira tendência está atualmente manifesta na corrente do neo-
liberalismo, vinculada às concepções clássicas de “equilíbrio” e de “pluralismo” do liberalismo.” Nesse contexto, o Estado, apreendido. como instituição, não constitui um nível particular, um poder político institucionalizado com unidade e especificidade próprias. Esse poder político estaria diluído em uma multiplicidade pluralista de novos centros de decisão, entre os quais o equilíbrio se teria automa-
ticamente realizado pela concertação dos diversos agrupamentos de forças, grupos de pressão ou poderes de fato — empresas, sindicatos, organizações de consumidores —, representando as forças econômicas de uma sociedade integrada A unidade do poder político institucionalizado parece desintegrada em proveito dessas instituições. Sua
especificidade se dilui através de diversos elementos, poderes-contrapoderes, poderes compensatórios, grupos de veto etc., em proveito.
dessas forças cujo equilíbrio se realiza por uma “limitação mútua”, por um “controle respectivo” no processo social de conjunto.” De acordo com essa corrente, ao contrário do liberalismo em sua forma clássica, o equilíbrio “automático” natural do mercado, supondo um
poder político autônomo sem intervenção no processo econômico, 274
ALGUMAS
INTERPRETAÇÕES
ERRÔNEAS
E SUAS
CONSEQUÊNCIAS
transforma-se aqui em equilíbrio de poderes “mistos” na sociedade tecnológico-industrial. Esse equilíbrio “planejado” será realizado pela concertação de forças econômico-políticas, cujos poderes de decisão compartilham o poder político institucionalizado.* Nesse contexto, paralelamente ao problema da unidade desse poder, o
de sua autonomia no tocante a esses “grupos-forças” não se pode enunciar, na medida precisamente em que não possui especificidade própria. Ele se reveste de uma função técnica de organização, fornecendo a essa sociedade
pluralista, já institucionalizada-integrada, um quadro de coesão formal. Seu papel, definido pelo princípio de “subsidiariedade”, limita-se ao de simples executante das decisões concertadas dos diversos poderes econômico-políticos que compartilham o poder de Estado, ainda que o equilíbrio desses poderes esteja principalmente fundado no domínio do processo econômico. A autonomia do Estado será, a rigor, muito excepcionalmente admitida sob
o modo da disfunção do Estado-instituição, no tocante à sociedade-sujeito. Deixemos, porém, de lado as transformações supostas do processo capitalista de produção que essa corrente atual admite. Retenhamos simplesmente
a ausência de especificidade do nível político, diluído no nível econômico. b)
A tendência inversa encontra-se atualmente nos prolongamentos da
concepção institucionalista “neocorporativista” do Estado. Nesse caso, supondo teoricamente a mesma relação integracionista entre
os diversos conjuntos ou “constelações de interesses” do nível econômico, admitir-se-á a existência perturbadora de certos antagonismos entre eles, sem chegar, no entanto — evidentemente —, a falar de luta de classes. Vai-se então recorrer a um poder político institucionalizado,
que poderia ter funcionado como fator central de “dirigismo esclarecido” na concertação dinâmica desses conjuntos.º Não se tratará de abandonar as concepções gerais do institucionalismo funcionalista; o pluralismo concertado de elementos equivalentes continua obrigatório. No entanto, se os diversos poderes-contrapoderes se apresentam,
nesta segunda versão, como “institucionalizados”, já não é na medida em que constituem instituições “econômico-sociais” exteriores ao Estado-fantasma, e sim na medida em que são diretamente institucionalizados pelo Estado forte. Esses diversos grupos de interesses e
grupos de pressão devem receber diretamente um estatuto público, ser oficialmente reconhecidos e diretamente arregimentados pelo Estado 275
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
que realiza sua unidade. A instância do Estado-instituição reaparece:
trata-se da criação de centros de poder político, de diversas comissões ou organismos públicos estatizados com os quais esses grupos “institucionalizados” teriam cooperado, sob a direção e a arbitragem neutra da administração tecnoburocrática, em vista de uma “concertação
dirigida” da sociedade. É a concepção atualmente conhecida, em sua forma moderna, pelo termo institucionalização da luta de classes: Essa concepção neocorporativista do Estado enuncia, evidentemente, o problema da unidade própria do poder político e de sua autonomia. Contudo, essa unidade apresenta-se, precisamente, como desintegrada em benefício
desses poderes institucionalizados. A teorização, pelo neoliberalismo, de uma dissolução global do nível político em benefício de um pluralismo de poderes “econômico-sociais de fato”, em suma, a de uma dissolução do nível político específico em uma sociedade praticamente autogerida, apresenta-se, aqui em uma forma invertida. Vai tratar-se de uma disseminação multicentrista, no interior do Estado-instituição, do poder político em benefício dos diversos conjuntos de interesses pluralistas politicamente institucionaliza-
dos. A dissolução do poder político no domínio econômico traduz-se aqui por uma absorção do econômico no político. Ora, essas duas correntes estão em correlação, na medida em que desem-
bocam numa ausência de delimitação rigorosa do econômico e do político; A autonomia do Estado constitui efetivamente um problema na segunda!
corrente corporativista, visto que a instância política é reconhecida em sua necessidade de arbitragem “dirigida”. Mas está relacionada com a concepção clássica da burocracia: a teoria das elites e da classe dirigente não é mais que seu último rebento.
A teoria política marxista Essas correntes teóricas têm repercussões, muitas vezes implícitas, na teo-
ria atual do movimento operário. Nunca nos damos suficientemente conta da contaminação da teoria marxista do poder político por essas correntes
ideológicas. É preciso repetir que essas concepções, em sua forma atual, mas fiéis à sua velha função ideológica, invocam as assim chamadas trans-: formações do modo capitalista “clássico” de produção. De fato, ante as
flutuações da teoria marxista do capitalismo monopolista de Estado, ante 276
ALGUMAS INTERPRETAÇÕES ERRÔNEAS E SUAS CONSEQUÊNCIAS
uma ausência de teoria científica dessas transformações, seu impacto faz-se sentir pesadamente. Basta, por exemplo, ver a importância atribuída, pela corrente social-democrata atual, às concepções dos contrapoderes, dos poderes compensatórios etc. Ela se acha assim na linha própria de todo reformismo: essa linha diz respeito precisamente aos problemas da unidade de classe e da autonomia relativa do poder de Estado capitalista* Assim, a fim de indicar a permanência da função ideológica dessas teorias, não é inútil relembrar sua influência sobre a história do movimento operário. Consideremos notadamente dois exemplos característicos: a)
O exemplo mais convincente que, sem dúvida, se pode dar é o das
influências nefastas da concepção “institucionalista-corporativista” do Estado sobre a corrente da social-democracia alemã.” Essas teorias se cristalizaram após a constituição da República de Weimar, e seu caráter “pluralista” fez com que os teóricos políticos da época gastassem muita tinta:'º elas já haviam tido repercussões diretas nos escritos de Kautsky e de Bernstein." O poder político unitário do Estado aparecia diluído em benefício de conjuntos “corporativos” diretamente institucionalizados no Estado. Isso aparece na teoria po-
lítica ideológica através de uma critica das teorias liberais clássicas da unidade e da soberania do Estado, fundada em sua “personalidade
moral” e em sua “vontade superior” — o que'era de fato a explicação ideológica direta da unidade do Estado de classe. Essa soberania seria doravante fundada em uma “constelação de interesses”, em corporações institucionalizadas, equilibradas e concertadas no seio do Estado
por uma confusão do econômico e do político, tema na ordem do dia após o Estado do capitalismo de guerra. O poder de Estado parecia assim disseminado e compartilhado entre esses conjuntos corporativistas: adivinham-se facilmente as consequências que daí decorrem. A classe operária parecia poder constituir um desses conjuntos e, por. sua integração à instituição do Estado, deter uma parcela autônoma
do poder político pluralista. A sequência é conhecida: essas teorias “pluralistas”, celebradas por vários teóricos liberais e social-democratas da época, evoluíram diretamente, com €. Schmitt e K. Larenz, para a concepção “corporativista-institucionalista” do Estado nazista (e remeto aqui o leitor às excelentes análises, sobre o conjunto do problema do “Estado corporativista”, de D. Guérin 277
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
em Fascisme et grand capital). A “institucionalização” da classe operária ocorreu, aliás, efetivamente.no Estado nazista, mas, como era de esperar,
sem compartilhamento do poder com as classes dominantes. O exemplo é aqui patente e característico do ponto de vista teórico; manifesta, com efeito, essa relação, à primeira vista perturbadora, entre certas concepções
social-democratas do Estado e as concepções corporativistas do Estado”. fascista. Essa corrente, aliás, prolongou sua influência até as evoluções da teoria fabiana dos trabalhistas ingleses dos anos 1920. b)
O problema da autonomia relativa do tipo capitalista de Estado não é, aliás, menos importante, As formas atuais dessas teorias, sobretudo
mediante a corrente que insiste no “dirigismo esclarecido” por parte do Estado e no papel, a esse respeito, da administração, tiveram uma,
influência decisiva sobre as formas modernas da velha corrente da revolução pelo alto, vinculada ao lassalismo."? É bem verdade que essa corrente atual não se apresenta explicitamente, tal como sua predeces-
sora, como partidária da concepção de um Estado árbitro, conciliador e neutro entre as classes; a questão é aqui mais complicada, pois ela recorre notadamente às análises de Marx e, sobretudo, de Engels
sobre o bismarckismo. Essa corrente é particularmente interessante, na medida em que se concentra sobre a questão da autonomia relativa do Estado capitalista. O problema é o seguinte: pode o Estado ter tanta autonomia no tocante às classes dominantes que possa realizar a passagem para o socialismo, sem. que o aparelho de Estado seja destruído pela conquista de um poder de classe pela classe operária? Rememoremos as características do bismarckismo. No
período particular de transição, na Prússia, do modo de produção feudal para o modo capitalista de produção, o Estado bismarckiano reveste-se de uma
autonomia muito particular. E isso, relembremos, em razão das defasagens entre as instâncias, por um lado, e entre essas instâncias e o campo da luta de classes, por outro, introduzidas pela superposição complexa desses mo-
dos nessa formação. A autonomia de suas estruturas permitiu-lhe realizar a passagem do feudalismo ao capitalismo contra a classe feudal politicamente dominante, consolidando a dominação econômica nascente da classe burguesa
e elevando-a à dominação política. Autonomia, portanto, do Estado prussiano no tocante à classe feudal politicamente dominante e que, aliás, não pode ser reduzida a um equilíbrio de força entre a nobreza fundiária e a burguesia. 278
ALGUMAS
INTERPRETAÇÕES
ERRÔNEAS
E SUAS
CONSEQUÊNCIAS
Ora, quais são os pressupostos admitidos pela forma atual da teoria de uma revolução pelo alto? Ela descobre na situação atual uma analogia histórica com o fenômeno bismarckiano. Estaríamos, atualmente, num período
de transição do capitalismo para o socialismo, que consistiria na fase do capitalismo monopolista de Estado. Essa transição seria caracterizada por uma não correspondência específica entre a superestrutura jurídico-política
do Estado e o econômico, no sentido em que (assim como na passagem do feudalismo ao capitalismo) a superestrutura jurídico-política — nacionalizações, planejamento etc. — estaria de alguma maneira adiantada em relação ao econômico, e já apresentaria os traços de um Estado socialista. Em virtude dessa característica fundamental, assistir-se-ia a uma autonomização
particular do Estado atual no tocante ao econômico. Esta se refletiria numa autonomização particular do aparelho de Estado no tocante à burguesia monopolista — desempenhando a categoria tecnoburocrática atual, analogicamente, o papel da burocracia bismarckiana. Acrescenta-se a isso, no mais das vezes, a hipótese de um equilíbrio atual de forças entre a burguesia e a classe operária, hipótese que manifesta aqui o impacto das concepções de um pretenso equilíbrio entre poderes oficiais e contrapoderes detidos pela classe operária. Esse equilíbrio calculado das forças sociais em presença deve fornecer mais uma analogia com o fenômeno bismarckiano, ele próprio explicado por meio de um equilíbrio suposto entre a nobreza feudal e
a burguesia no bismarckismo. ' Não há dúvida de que essas concepções são radicalmente falsas, tanto em suas análises do fenômeno bismarckiano quanto em sua explicação das transformações do M.P.€. sob o modelo de uma transição do capitalismo ao
socialismo. De fato, trata-se apenas da repetição de uma forma típica de revisionismo,
a do
“socialismo de Estado”,
que aparece invariavelmente
todas as vezes em que o Estado capitalista empreende intervenções maciças, a fim de adaptar e ajustar o sistema ante a socialização das forças produtivas:
“lassalismo” — Bismarck; Proudhon e o “cesarismo social” -L..
Bonaparte; “capitalismo social” —- New Deal rooseveltiano; Welfare state —
capitalismo de Estado sob o imperialismo. Mas não é meu objetivo entrar no debate. É um outro ponto que deve interessar-nos aqui: o problema real
da autonomia relativa do Estado capitalista no tocante às classes e frações dominantes que essas concepções atuais enunciam. Essa autonomia, que elas constatam efetivamente, não lhes parece poder ser explicada senão segundo
o modelo de um equilíbrio das forças sociais, conjugado à autonomização de estruturas não correspondentes de uma fase transitória no sentido estrito do 279
PODER
POLÍTICO
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SOCIAIS
termo. O que conduz à interpretação errônea dessa autonomia do Estado sob o imperialismo. Esta, no-entanto, é apenas a forma concreta de que se reveste atualmente a autonomia relativa constitutiva do tipo capitalista de Estado. Esse modo preciso de autonomia relativa se distingue radicalmente
da autonomia da superestrutura de uma formação em transição ou ainda, da autonomia devida a um equilíbrio entre as forças sociais em presença; ela:
não pode, em sentido algum, funcionar em vista de uma revolução pelo alto. Ante essas concepções, a teoria marxista, deixando-se às vezes sub-repticiamente invadir por essas concepções ideológicas, repetiu, regra geral, o esquema do Estado utensílio ou instrumento da classe dominante. Esse esquema, tomando, em
aparência, o sentido contrário dessas concepções,
só o faz admitindo os mesmos princípios teóricos. Não é assim absoluta: mente de espantar que essa fraseologia esquemática, que é radical apenas na aparência, permita precisamente, sob esse pretexto, a contaminação da
teoria marxista pela ideologia. Mais particularmente, em sua continuidade: teórica, esse esquema conduz à concepção do Estado-agente dos monopó-
lios no capitalismo monopolista de Estado. Ora, não resta dúvida de que as: transformações do M.P.C, conotam, pelo desenvolvimento do imperialismo; toda uma articulação específica e complexa do econômico e do político. No
entanto, o esquema Estado-agente dos monopólios implica, sem razão, uma confusão do econômico e do político — aproximando-se assim das ideologias atuais assinaladas do Estado - e não é, por outro lado, senão um termo cobrindo uma ausência de teoria científica nesse domínio. Isso se manifesta em inúmeras contradições: mais particularmente, en-
contrar-se-á enxertada acriticamente nesse esquema a concepção de uma: autonomia do Estado semelhante àquela que admitem os defensores da revolução pelo aito. Uma relação de “auxiliar-utensílio” com a fração monopolista é compreendida como uma conspiração que, por laços pessoais, coloca o Estado, apto porém a conduzir uma revolução pelo alto, nas mãos de um punhado de monopolistas. Que todo o povo expulse esses usurpadores, e. 0.
Estado fará o resto!!! Mas o problema é ainda mais complicado do que parece: Se essa concepção pode conduzir diretamente a um oportunismo de direita, conduziu também, de formas diferentes, a um extremismo de esquerda;
manifesto nas análises da Terceira Internacional concernentes ao Estado das sociais-democracias — o “social-fascismo” auxiliar dos monopólios.=;
extremismo corrigido em seguida no VII Congresso da Internacional.“ Não tratarei das consequências dessa concepção do Estado. Indico simplesmente que a autonomia relativa do Estado atual no tocante às classes 280
ALGUMAS
INTERPRETAÇÕES
ERRÓNEAS
E SUAS
CONSEQUÊNCIAS
ou frações dominantes é apenas a forma concreta de que se reveste essa autonomia, constitutiva do tipo capitalista de Estado, na medida em que reflete, nas relações entre as estruturas e o campo da luta de classes, uma nova articulação do político e do econômico. Essa articulação supõe, no entanto,
o tipo de relações entre o político e o econômico do M.P.C.: constitui uma variável no interior de limites invariantes. Essa autonomia relativa não tem nada a ver com a de um Estado de transição, nem com a de um equilíbrio de forças. Em outras palavras, não coloca em causa, de maneira alguma, as
relações profundas entre o Estado atual e a fração hegemônica dos monopólios: muito pelo contrário, ela as pressupõe.
Notas 1
Sobre os pressupostos funcionalistas das concepções do Welfare State e seu impacto decisivo sobre a concepção do poder dos trabalhistas ingleses, ver o artigo de D. Weddeburn, “Facts and theories of the Welfare State”, em The socialist register, 1965, p. 127 ss.
2
A literatura relativa a esse assunto é vastíssima. Embora as duas correntes teóricas que admitem uma confusão do político e do econômico coincidam frequentemente, a tendência “neoliberal” domina, por exemplo, em A. A. Berle (The 20" Century Capitalist Revolution, 1961; “Corporations and the Modern State”, The future of democratie capitalism, ed. por Arnold, 1961; e, em colaboração com G. Means, The Modern Corporation and Private property); em autores do início da corrente Trend of Economics, sobretudo J. M. Clark; em Galbraith (notadamente The affluent Society, e também Der amerikanische Kapitalismus im Gleichgewicht der Wirischafts-Krafte, 1956); em Hoover (The economy, liberty and the State) etc.
3
Ver, nesse sentido, H. Laski: “The pluralistic State”, Foundations of sovereignty, 1931; A grammar of politics, 1948; e também H, ), Kaiser, Die Reprisentation organisierter Interessen, 1956. A respeito do conceito de “pluralismo”, convém notar que ele não serve aqui simplesmente para designar um sistema político de “pluripartidarismo”, ao contrário de um sistema de partido único, mas, antes, ele se estende a toda uma concepção “integra-
4
cionista” do sistema social em seu conjunto. Para a instrução do leitor francês, a referência às vulgarizações de Aron não é inútil (por exemplo, Démocratie et totalitarisme, p. 26 8s., p. lil ss. etc). Ver, por exemplo, H. Pross, “Zum Begriff der pluralistischen Geselischaft”, Zeugnisse Th. Adorno, 1963, p. 441 ss. Esses conceitos de “controle”, de “equilibrio” e de “pluralismo”, em sua forma neoliberal, subtendem, aliás, as análises de Schumpeter em Capitalisme,
5
socialisme et démocratie, cuja influência sobre a social-democracia europeia é conhecida. Vera crítica desse ponto em MacPherson, autor da excelente obra The political theory ofpossessive individualism, em seu artigo “Post-liberal democracy?”, publicada na New Left Review, set.-out. de 1963.
6
Os precursores da confusão entre 9 político e o econômico, e da concepção neocorporativista do Estado, são teóricos alemães como €, Schmitt, O. Spann, K. Larentz, cujo precursor era O. Gierke. Tal confusão é característica da doutrina católica, tal como se
exprime na encíclica Quadragesimo anno, do papa Pio XI, e ultimamente na Mater et
281
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
Magistra — a propósito desta última, ver a crítica de U. Cerroni em Politica ed Economia; agos.-set, de 196]. A virada, na teoria americana, do neoliberalismo para uma concepção: neocorporativista, é nítida nos-relatórios do 66º Congresso da Associação Econômica: Americana, em 1953. É encontrada atualmente em Ehrmann, Interest groups on four: continents, 1959; Eschenburg, Herrschaft der Verbénde?, 1955; W. Weber, Spannungen und Kráfite im westdeutschen Verfassungssystem, 1951 ete. Tematizada por R. Dahrendorf, Class conflict in industrial society, 1965, mas que se pode : encontrar também em T. Parsons, The social system, 1951, p. 127 ss. Esses temas da concepção social-democrata ideológica do poder encontram-se, numa:
confusão exemplar, sob a pena de vários socialistas franceses. Ver, por exemplo, o Prefácio de L. Blum à edição francesa da Révolution des techniciens de Burnham; o livro de L, Laurat intitulado Problêmes actuels du socialisme, 1955; o Prefácio de G. Mollet — onde ele retoma por sua conta os temas de Schumpeter — à obra de Weille - Raynal, Déctin et succession du capitalisme, 1944; A. Philip, Le Socialisme trahi, 1957 etc, Ver a crítica
dessas concepções por A. Gorz, Stratégie ouvriêre et néocapitalisme, 1964, p. 5 Isso fora assinalado na época por Fr. Neuman, num artigo reproduzido em The cratic and authoritarian state, p. 65 ss., e por H. Marcuse em seu artigo “Der gegen den Liberalismus in der totalitáren Staatsanffassung”, reproduzido em
ss. demoRampf. Kultur
und Gesellschaft, 1963, p. 34 ss.
O caso é particularmente significativo, pois, considerando o equilíbrio relativo de força das classes capitalista e operária no momento da constituição da República de Weimar, esta oferecia efetivamente a aparência de um pluralismo. A esse respeito, P. Sweezy; The
theory of capitalism development, 1962, p. 329 ss. Caso particularmente nítido em Bernstein, “La théorie marxiste de "évolution sociale”, trad. em Études de marxologie, n.6, Paris, 1962.
Refiro-me agui a Lassale, pois ele foi o primeiro a formular teoricamente essa corrente em termos marxistas. Porém, não se deve esquecer de que o cesarismo social tem tradi-
ções tenazes no movimento operário francês, onde se revestiu de formas absolutamente. originais: remonta a L. Blanc e Proudhon — recordemos a atitude deste último a respeito de L. Bonaparte — e mergulha sem dúvida suas raízes na corrente jacobina. O problema é nítido no artigo, todavia muito perspicaz, de L. Barca intitulado “Sviluppo delPanalisi teorica sul capitalismo monopolistico di Stato” (Critica Marxista, set.-dez. de 1966, pp. 35 e 62), em que ele se refere precisamente a essa explicação a fim de criticar a concepção esquemática do Estado-agente dos monopólios, do Estado e dos monopólios como mecanismo único. mw
É, com efeito, a conclusão que se arriscaria a tirar da tese da reunião do poderio dos.
monopólios e do Estado em um mecanismo único para salvar a sociedade capitalista, e que dominou o colóquio de Choisy-le-Roi sobre o “capitalismo monopolista de Estado”.
o
Essa tese, em aparência ultrarrevolucionária, admite, no entanto, muito bem que esse
famoso “mecanismo único” não afeta em nada as estruturas do Estado. Vê-se isso na comunicação, nesse mesmo colóquio, de Fr. Lazard, segundo a qual esse mecanismo único proclamado a toque de caixa não afetaria senão “o conteúdo da intervenção do Estado, as formas pelas quais ela se manifesta” (Economie et politique, número especial, EL, p. 19). O que se desenha aqui em filigrana é a concepção de que esse Estado, “utilizado”. de outro modo, poderia operar a passagem ao socialismo. A esse respeito, ver sobretudo a comunicação de G. Dimitrov ao VII Congresso (Euvres
choisies, Éd. Sociales).
282
HI
O ESTADO CAMPO
DA
CAPITALISTA LUTA
DE
E O
CLASSES
O problema geral A unidade própria e a autonomia relativa do tipo capitalista de Estado no tocante às classes e frações dominantes devem-se ao seu lugar nas estru-
turas do M.P.€. e à sua relação particular com o campo da luta de classe nesse modo. Assim, conviria relembrar aqui brevemente análises já feitas
a esse respeito.! 1. As relações de produção capitalistas — separação, no âmbito da relação de apropriação real, do produtor direto e dos meios de produção — conferem à superestrutura jurídico-política do Estado uma
autonomia específica no que se refere às relações de produção. Essa autonomização das instâncias se reflete, no campo da luta de classes,
em uma autonomia da luta econômica — relações sociais econômi-, cas — de classe, e da luta política — relações sociais políticas — de classe. Ora, as estruturas jurídicas do Estado capitalista, combinadas à ideologia jurídica e ao ideológico em geral desse modo de produção, têm por efeito, sobre a luta econômica de classe, sobre as relações sociais econômicas, o isolamento dos agentes de um modo de produção no qual, entretanto, a estrutura real das relações de produção — separação do produtor direto e dos meios de produção
— conduz a uma prodigiosa socialização do processo de trabalho. 283
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
Esse isolamento, efeito sobredeterminado mas real, é vivido pelos agentes no modo da concorrência e desemboca na ocultação, para esses agentes, de suas relações como relações de classe. Esse isola-
mento vale, aliás, tanto para os capitalistas-proprietários privados quanto para os operários assalariados, embora não se manifeste, sem dúvida, da mesma maneira nas relações sociais econômicas dessas duas classes. Assinalou-se a importância que Marx e Lenin
atribuem a essas características da luta econômica da classe operária, quando demonstram a necessidade de um partido político; entre outras coisas, este tem a função de constituir a unidade politica revolucionária dessa classe, presa constante da luta econômica “individual”, “local”, “parcial”, “isolada”. . Deve-se levar em consideração, no âmbito de uma formação capitalista dominada pelo M.PC,, o isolamento das relações sociais econômicas de classes pertencentes a outros modos de produção coexistindo nessa formação: é o caso da pequena burguesia e do
campesinato parcelar. Seu isolamento, sobre o qual Marx, Engels, e Lenin tanto insistiram, não é homólogo ao das classes do M.PC.; deve-se notadamente às próprias relações de produção dessas clas-. ses, relações precisamente caracterizadas por uma não separação
do produtor direto e dos meios de produção. No entanto, na medida em que essas classes estão presentes em uma formação capitalista;
esse isolamento real que lhes é próprio é aí sobredeterminado pelo: efeito de isolamento que o M.PC. impõe. . A relação entre o Estado capitalista e o campo da luta de classes é dupla: ocorre na luta política de classe, por um lado, e na luta econômica de classe, por outro. Havíamos constatado, a esse respeito, a
ligação desse Estado com as relações sociais econômicas tais como se apresentam mediante o efeito de isolamento, cujo fator, acrescido
ao ideológico, é o próprio Estado. Esse Estado possui instituições no. interior das quais a existência econômica de classe e a luta política de classe estão ausentes. Esse Estado se apresenta, a partir desse efeito de isolamento sobre as relações sociais econômicas, como à
unidade propriamente política e pública dos antagonismos econô-: micos particulares e “privados” do conjunto da “sociedade”. O poder institucionalizado do Estado capitalista apresenta uma unidade própria, nas suas relações com as relações sociais econômicas — luta. econômica de classe —, na medida em que representa a unidade do 284
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O ESTADO
CAPITALISTA
E O CAMPO
DA
LUTA
DE
CLASSES
povo-nação composto de agentes instaurados em sujeitos “individuos-pessoas políticas”, ou seja, na medida em que representa a unidade política de um isolamento econômico que é seu próprio efeito. Isso conduz, no nível das relações entre o Estado e a luta política de classe, a um resultado aparentemente paradoxal, mas que, de fato, constitui o “segredo” desse Estado nacional-popular-de-classe: o
poder institucionalizado do Estado capitalista de classe apresenta uma unidade própria de classe, na medida precisamente em que ele pode se apresentar como um Estado nacional-popular, como um Estado que não representa o poder de uma classe ou de classes
determinadas, mas a unidade política de agentes privados, entregues a antagonismos econômicos que o Estado se atribui a função de superar, unindo esses agentes em um corpo “popular-nacional”, 4.
Essa característica do Estado capitalista relaciona-se, é verdade, com
uma função ideológica precisa: não se poderia subestimar a importância dessa função, levando em conta a eficácia específica do ideo-
lógico e seu papel no âmbito do Estado capitalista. Essa função diz efetivamente respeito ao problema complexo da legitimidade desse Estado. Função ideológica que não deve, aliás, ser confundida com
a intervenção do ideológico na própria organização desse Estado, ou seja, na instauração dos agentes em sujeitos jurídico-políticos e na constituição do corpo nacional-popular. No entanto, impõe-se uma observação: se a superestrutura jurídico-política do Estado está em relação com sua função ideológica, isso não
significa que ela se.reduz ao ideológico. Em suma, o Estado “representando” a unidade política do povo-nação se reflete, contudo, em todo um
quadro institucional real, que tende a funcionar, efetivamente, segundo a situação concreta das forças em presença, no sentido de uma unidade própria do poder de Estado e de uma autonomia relativa no tocante às classes. dominantes. Se é bem verdade que não se pode superestimar esse quadro
institucional, e que é preciso ter sempre em vista o que ele oculta, não se pode, por outro lado, negligenciar a eficácia específica que apresenta,
conjugado à função ideológica de legitimidade do Estado, a respeito de sua unidade própria e de sua autonomia relativa. Com efeito, esse Estado deve representar o interesse geral, a vontade.
geral e a unidade política do povo e da nação. Encontramo-nos em presença das características da representatividade, do interesse geral, da opinião
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
pública, do sufrágio universal, das liberdades públicas, em suma, em presença do conjunto normativo institucional da democracia política. Con-. tudo, a fim de examinar o problema da unidade do Estado, vou-me referir,
mais particularmente, ao conceito de “soberania popular” e à formação. do conceito de “povo”, O conceito de soberania popular, recobrindo o Estado capitalista, está. vinculado, na teoria política, ao problema da unidade própria do poder politico institucionalizado. O conceito de soberania, que foi forjado a propósito: do Estado absolutista, indicava, de modo ainda bastante confuso, a estrutura
unitária do poder político emancipado do econômico. No sentido de soberania popular, ele designa, como fonte de legitimidade do Estado, um conjunto de cidadãos, de indivíduos formal e abstratamente livres e iguais, erigidos
em pessoas políticas. Esse conjunto é concebido como o corpo político da sociedade, como o povo. O que mais importa aqui, no entanto, é que a soberania do Estado e a soberania popular se recobrem; esse povo de cidadãos não deve adquirir sua existência de corpo político, fonte de legitimidade, senão na medida em que se reveste de uma unidade diretamente encarnada
pela unidade do poder de Estado. Isso se expressou, mediante as teorias políticas do contrato social e da democracia política, na relação ambígua: entre o pacto de associação civil e o pacto de governo; tanto é verdade que,
com exceção de Rousseau, cujas conclusões fazem explodir o quadro da democracia política, Hobbes aparece como a verdade das teorias do contrato social. Resta mencionar o problema da vontade geral e da representatividade nas instituições do Estado oriundo da Revolução Francesa. A representação. do povo pelas diversas assembleias eleitas não tem, a rigor, o sentido de uma simples expressão de um corpo político com unidade pré-constituída, mas
o da própria constituição da unidade, ou mesmo da existência, desse corpo político. A soberania popular identifica-se com a soberania do Estado visto que o povo só está fixado no Estado se estiver representado. O papel dos representantes do povo não é exprimir a vontade da nação, mas, segundo uma expressão que volta constantemente sob a pena dos teóricos da democracia
liberal, a vontade pela nação, ou seja, constituir o corpo político que é o povo, atribuindo a unidade aos membros da “sociedade”? Podem-se constatar as incidências dessa relação entre a soberania: do Estado e a soberania popular, estabelecida por meio dessa concepção da representação, sobre as instituições do Estado. O poder de Estado constitui
uma unidade própria, na medida em que suas instituições são organizadas como constitutivas da unidade do povo e da nação. O Estado, estabelecido 286
O ESTADO
CAPITALISTA
E O CAMPO
DA
LUTA
DE
CLASSES
como lugar do “universal”, da vontade geral e do interesse geral, do público, deve representar não estes ou aqueles interesses privados e constelações econômico-sociais, ou sua soma, mas o conjunto político unitário do povo-nação. A soberania do Estado aparece assim vinculada à “pessoa moral” do Estado, una e indivisa. Toda “parte” do poder do Estado e todo
órgão particular do Estado são fixados institucionalmente como representando simultaneamente a unidade do corpo político e a unidade do poder do Estado; é assim que cada representante nas assembleias eleitas deve representar não os interesses privados de seus eleitores, mas o conjunto do corpo eleitoral — ao contrário dos “estados gerais”. Nisso consiste, aliás, o
que exclui a possibilidade do mandato imperativo no âmbito da democracia política. Os próprios órgãos da administração representam a unidade do poder de Estado, o que é uma das caracteristicas da burocracia moderna,
funcionando enquanto hierarquia de competências por delegação do poder central. A própria relação dos poderes institucionais do Estado, relação concebida como uma “separação” dos três poderes, é de fato fixada no Estado capitalista apenas como uma distribuição do poder, a partir da unidade indívisa da soberania estatal; é, aliás, dessa maneira que foi teo-
rizada por Montesquieu.” lista rege sua organização diretamente relacionado nesse ponto central que é
Essa característica de unidade do Estado capitacentralizada; o declínio dos poderes locais está com a organização unitária do Estado fundada a instituição da soberania popular. A unidade do
Estado encontra-se, aliás, sob outras formas, no sistema jurídico moderno no sentido estrito; esse conjunto normativo específico, constituído a partir
dos “sujeitos do direito” calcados na imagem dos cidadãos, apresenta no mais alto grau uma unidade sistemática na medida em que regulamenta,
por meio de leis, a unidade desses “sujeitos”? Não tenciono multiplicar aqui exemplos que trouxe apenas a título indicativo. Contentemo-nos em notar que a região jurídico-política do Estado
capitalista é efetivamente organizada como unidade institucional do poder. propriamente político (público), na medida em que está fixada como constitutiva da unidade de um conjunto de elementos (cidadãos), cuja determinação econômica -- e, portanto, cujo pertencimento de classe — está sistematicamente ausente de suas instituições. É possível passar agora à segunda etapa da pesquisa, ou seja, mostrar
como esse quadro institucional unitário, conjugado à função ideológica própria desse Estado, lhe permite funcionar, em suas relações com a luta de
classe, como poder político unívoco das classes ou frações dominantes, e 287
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também em que sentido preciso o funcionamento unívoco desse Estado im-: plica sua autonomia relativa no tocante a estas. Irei me deter, para começar,
sobre o que Marx nos diz disso em suas obras políticas.
Ás análises de Marx Com efeito, se considerarmos essas obras políticas de Marx como refe-
rindo-se primeiro Estado à nos dirá,
ao tipo teórico de Estado capitalista, o que nos impressiona, em, lugar, é que ele apreende precisamente esses traços distintivos do maneira de um “antagonismo entre o Estado e a sociedade”. Ele por exemplo: “Apenas sob o segundo Bonaparte é que o Estado
se tornou completamente independente. A máquina de Estado reforçou-
-se bastante diante da sociedade burguesa”; ou, ainda: “A paródia do imperialismo [o culto do imperador] era necessária para libertar a massa da nação francesa do peso da tradição e destacar em toda a sua pureza O antagonismo existente entre o Estado e a sociedade”. º Esse antagonismo é também descrito do seguinte modo: “Cada interesse comum foi imediatamente separado da sociedade, oposto a ela a título de interesse superior, geral, subtraído à iniciativa dos membros da sociedade, transformado em.
objeto da atividade governamental”? O Estado é assim apreendido como “libertando completamente a sociedade burguesa da preocupação de se governar a si própria”, da preocupação do self government; sob o Segundo Império, “a nação abdica de toda vontade própria e submete-se às ordens
de uma vontade alheia, a autoridade”. O Estado bonapartista “exprime-a, heteronomia da nação, em oposição à sua autonomia”? Essas observações, essenciais nas análises de Marx sobre o tipo capita-
lista de Estado, podem, à primeira vista, parecer estranhas. Não deixaram de induzir ao erro, como vimos, inúmeros intérpretes que veem nelas um retorno tardio de Marx a suas obras de juventude, à concepção do Estado. como alienação da sociedade civil, no sentido que tem esse conceito — “in-
divíduos concretos-homem genérico” — no jovem Marx. Por conseguinte; essas análises de Marx parecerão em contradição com a concepção do Marx.
da maturidade sobre o Estado de classe. Assim, P. Nora escreve: Mas sobre essa máquina do Estado centralizado, Marx faz dois julgamentos
contraditórios: de um lado, afirma que ela é o instrumento de opressão da classe dominante; de outro lado, tem o sentimento de que essa máquina centralizada, cada
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vez mais independente da sociedade pelo aperfeiçoamento de suas engrenagens, é o lugar do interesse geral,º Ou, ainda, M. Rubel: Não parece, à primeira vista, que o bonapartismo corresponda à ideia que Marx fazia do Estado, a saber, que o Estado é o instrumento do poder e da dominação da classe exploradora. Ele traça uma perspectiva ideal, segundo a qual o bonapartismo é uma “relação de forças”, em que o Estado e a sociedade estão nos extremos, ên-
frentando-se num antagonismo absoluto.”
Mesmo que sejam errôneas, essas interpretações evidenciam, no entanto, a importância do problema que nos ocupa. De fato, Marx, na perspectiva cientifica rigorosa de suas obras de maturidade, estabelece constante e siste-
maticamente a relação entre o Estado capitalista e as formas precisas de luta política das classes dominantes em uma formação dominada pelo M.P.C., ou seja, “a dominação burguesa, enquanto emanação e resultado do sufrágio universal, enquanto expressão do povo soberano”, ou, ainda, “a nação elevava sua vontade geral à altura de uma lei, ou seja, fazia da lei da classe
dominante a sua vontade geral”? Como, então, nesse contexto complexo, o poder de Estado se organiza em unidade própria, unidade de poder de classe, enquanto apresenta, e precisamente na medida em que apresenta, uma autonomia relativa em relação à classe ou às classes dominantes? Somente a ausência de esclarecimento dessa questão permite a afirmação de contradições nas análises de Marx. Vejamos o que Marx apreende nesses textos como “antagonismo entre o Estado e a sociedade”. Primeiro, é claro que não se trata aqui de uma defasagem de contradição entre o Estado e o econômico, o que se entende, por exemplo, como uma defasagem particular entre a base e a superestrutura jurídico-política. Bem pelo contrário, o bonapartismo, como tipo de Estado | — “religião da burguesia” —, é precisamente apreendido enquanto forma espe-
cífica de correspondência entre a superestrutura jurídico-política e as relações de produção no M.P.C. ou em uma formação dominada por esse modo. Se nos reportarmos ao conjunto das análises precedentes, poderemos ver que o que Marx apreende aqui como antagonismo entre o Estado e a sociedade, o
público e o privado etc. não é nada mais — eu já o notara —!! do que a apreensão dos efeitos da autonomia das instâncias do M.P.C. sobre o campo da luta de classes. Isso se reflete, na relação das estruturas com o campo da luta de
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classes, por uma defasagem específica entre o Estado e a luta econômica de
classe. A forma que essa defasagem assume consiste precisamente na relação. entre o Estado — representativo da “unidade” — e o isolamento das relações sociais econômicas, por meio da soberania popular e do corpo político do “povo-cidadãos”, Antagonismo entre o Estado e a sociedade quer dizer aqui defasagem e autonomia respectiva do político e do econômico e defasagem entre o Estado e a luta econômica de classe - “isolada”. Esse “antagonismo entre o Estado e a sociedade” indica, porém, além desse problema no qual se insistiu até aqui, uma autonomia relativa do. Estado e das classes politicamente dominantes. A relação entre o Estado € o interesse político dessas classes, que Marx distingue muitas vezes de seu interesse “privado”, “econômico”, “egoísta” ete., não se estabelece senão
por uma autonomia relativa do Estado e dessas classes, cujo segredo nos é desvendado pelo bonapartismo: sua característica essencial é precisamente a independência particular do Estado a respeito das classes dominantes. O Estado capitalista, que não está em relação direta com os interesses econômicos.
das classes dominantes, no sentido de que a luta econômica está ausente de suas instituições e de que seus agentes da produção distribuídos em classes estão aí presentes na forma de “povo-cidadãos”, está em relação com seus interesses propriamente políticos sendo relativamente autônomo no tocante a essas classes. Já podemos, então, adiantar que o termo “antagonismo entre
o Estado e a sociedade” indica, em primeiro lugar, no Marx da maturidade, à autonomia das estruturas respectivas do político e do econômico refletida na relação entre o Estado e a luta econômica de classe, mas também a autonomia
relativa do Estado e das classes politicamente dominantes. Ele designa 2 relação entre esses dois fenômenos, levando em conta o fato de que o termo. “autonomia” não deve ser tomado, em suas diversas aplicações, num sentido idêntico, mas que serve aqui, sobretudo, para identificar os problemas,
Marx vê bem, nesse contexto, a relação entre a unidade própria do poder de classe do Estado capitalista e o fato de que ele representa a unidade política de agentes, cujas relações econômicas manifestam o efeito de isolamento: unidade que é aqui a condição de possibilidade de sua autonomia. relativa a respeito das classes dominantes. Esse Estado atribui-se a função de criar “a unidade burguesa da nação”. A propósito da Comuna de Paris,
diz-nos em 4 guerra civil na França: A unidade da nação não devia ser quebrada, mas ao contrário organizada pela
Constituição comunal; devia tornar-se uma realidade pela destruição do poder de Es-
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tado que pretendia ser a encarnação dessa unidade, mas se arrogava independente da
própria nação, e superior a ela, quando não passava de uma excrescência parasitária.!é
Unidade propriamente política que o Estado representa no tocante aos “agentes isolados” da luta econômica de classe: esses agentes que Marx vê, nesse mesmo texto, como “a deformidade incoerente do corpo social” e cuja unidade política se apresenta como Estado. A propósito da relação entre esse
fenômeno e a unidade própria do poder político institucionalizado, Marx nos dá algumas indicações em suas análises do bonapartismo referentes ao caráter centralista do Estado capitalista. Noção de centralismo que não é empregada por Marx meramente no sentido “administrativo” do termo, e
sim a fim de indicar o caráter de unidade do poder do Estado capitalista. É igualmente este o sentido das observações de Engels sobre o “Estado unitário” e a “República unitária” na Crítica do programa de Erfurt. Ora, essa característica de unidade do poder institucionalizado corres-
ponde precisamente ao fato de que ele constitui um poder unívoco das classes ou frações dominantes. É a esse ponto que Marx volta constantemente.
Esse Estado se relaciona dessa forma com os interesses políticos, com a organização propriamente política das classes ou frações dominantes em
sua luta política de classe com as classes dominadas. Com efeito, o bonapartismo, considerado aqui como tipo de Estado capi-
talista, como “religião da burguesia”, corresponde a seus interesses políticos, a seu poder político unívoco de classe. Este é, aliás, o caso do fenômeno histórico do bonapartismo francês, que serve exclusivamente aos interesses
políticos da burguesia, ao passo que os camponeses parcelares, representados por Louis Bonaparte, não são, de fato, senão uma classe-apoio sem nenhuma
influência sobre o poder político. Trata-se, portanto, de uma relação entre o Estado capitalista e os interesses das classes ou frações dominantes, mas de seus interesses políticos. Com efeito, uma classe ou fração hegemônica, aquela que detém finalmente o poder político de uma formação capitalista. com autonomia da luta econômica e da luta política, só pode dominar efetivamente se erigir seus interesses econômicos em interesses políticos. Não pode perpetuar as relações sociais existentes detendo o poder de Estado senão por toda uma gama de compromissos, que mantêm o equilíbrio instável das classes em presença, senão por toda uma organização política e um
funcionamento ideológico particular, pelos quais ela consegue se apresentar como representativa do interesse geral do povo e como encarnando a unidade
da nação. Trata-se, aí, do papel do Estado capitalista a respeito das classes 291
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dominadas, o que funda, aliás, a relação específica entre esse Estado e os interesses políticos das classes e frações dominantes.
No entanto, por que essa relação, ou institucionalizado como poder unívoco lecer apenas a partir de uma autonomia respeito delas, autonomia cujas chaves
seja, a unidade própria do poder dessas classes, pode se estaberelativa do Estado capitalista a o bonapartismo-religião da bur-
guesia nos entrega? Marx e Engels dão-nos a resposta: a classe burguesa, por sua constituição e seu lugar na luta de classes, parece, salvo em casos excepcionais, incapaz
de elevar-se, por seus próprios partidos políticos, ao nível hegemônico de organização. Marx falará com frequência de “essa burguesia que, a cada ins-: tante, sacrificava seu próprio interesse geral de classe, seu interesse político,
a seus interesses particulares mais tacanhos, mais sujos”,” dessa burguesia “que provava que a luta para a defesa de seus interesses públicos, de seus próprios interesses de classe, de seu poder político, não conseguia senão
indispô-la e importuná-la como se atrapalhasse seus negócios privados”.* Façamos, porém, duas observações. a) Essa incapacidade da burguesia de erigir-se ao nível propriamente
político vem de sua impotência para realizar sua unidade interna: ela deixa-se afundar em lutas de frações, sem poder realizar sua unidade política a partir de um interesse comum politicamente concebido. b) Essa incapacidade, porém, decorre conjuntamente, e é o que nos importa aqui, da luta da burguesia contra as classes dominadas, e da dificuldade particular na qual ela se encontra para realizar sua hegemonia política no tocante a estas. Com efeito, Marx nos mostra, à
propósito das frações da burguesia, que a República parlamentar era a “condição indispensável de sua dominação comum, a única forma de Estado na qual seu interesse geral de classe podia subordinar a
si simultaneamente as pretensões dessas diferentes frações e todas. as outras classes da sociedade”. E, no entanto, “a França atual — 0 bonapartismo — já estava inteiramente na República parlamentar”?
Marx e Engeis apresentam-nos igualmente as razões dessa dificuldade da burguesia para realizar sua hegemonia a respeito das classes dominadas: o fracionamento interno da classe burguesa; a permanência, nas formações capitalistas, das classes da pequena produção e seu reflexo complexo no
nível político, a ascensão e a
luta política organizada da classe operária; as 292
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instituições do Estado capitalista, dentre as quais o sufrágio universal, que lançam na cena política todas as classes ou frações da sociedade etc. Em
suma, tudo acontece como se as coordenadas específicas da luta das classes dominantes contribuíssem aqui conjuntamente para uma incapacidade de organização política dessas classes. Qual é, nesse contexto, o papel que incumbe ao Estado capitalista de classe? Pode-se dizer que, de algum modo, ele toma a seu cargo o interesse político da burguesia, que realiza por sua conta a função de hegemonia política que esta não pode preencher. Para fazer isso, contudo, o Estado capitalista reveste-se de uma autonomia relativa no tocante à burguesia,
é aí que reside o significado profundo das análises de Marx referentes ao bonapartismo como tipo capitalista de Estado. Essa autonomia relativa lhe
permite precisamente intervir não só em vista de realizações de compromisso a respeito das classes dominadas — que, a longo prazo, se revelam úteis para os próprios interesses econômicos das classes e frações dominantes —, mas também intervir, segundo a conjuntura concreta, contra os interesses econômicos a longo prazo desta ou daquela fração da classe dominante; compromissos e sacrifícios por vezes necessários para a realização de seu interesse político de classe. Basta tomar o exemplo das chamadas “funções sociais” do Estado que assumem atualmente uma importância crescente. Se
é verdade que elas são atualmente conformes à política de investimentos estatais, visando à absorção dos excedentes da produção monopolista — logo, conformes aos interesses econômicos dos monopólios —, não é menos verdade que elas foram impostas às classes dominantes pelo Estado, sob a pressão da luta das classes dominadas; isso se traduziu frequentemente por uma hostilidade entre o Estado e as classes dominantes. Por vezes, foram
mesmo impostas pelos governos social-democratas - a rigor, isso não muda em nada o assunto. Esses governos funcionaram precisamente, nesse caso, por meio do Estado, em suma, por meio de sua autonomia relativa, como organizadores políticos das classes dominantes. . No entanto, o Estado, a fim de assumir concretamente essa autonomia relativa inscrita no jogo de suas instituições e necessária precisamente à dominação hegemônica de classe, apoia-se em certas classes dominadas da sociedade, chegando a apresentar-se, por um processo ideológico complexo, como seu representante; ele as faz, de alguma forma, jogar contra a classe
ou as classes dominantes, mas para proveito político destas últimas. Assim, consegue precisamente fazer aceitar toda uma série de compromissos pelas
classes dominadas, como sendo conformes ao interesse político delas. No 293
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caso histórico concreto do bonapartismo francês, Marx nos mostra esse
funcionamento complexo -do Estado capitalista em relação ao campesinato parcelar e à pequena burguesia: Ao mesmo tempo, Bonaparte opõe-se à burguesia enquanto representante dos
camponeses e do povo, em geral, que quer, dentro dos limites da sociedade burguesá, * fazer a felicidade das classes inferiores. Daí, novos decretos que privam de antemão os “verdadeiros socialistas” de sua sabedoria governamental.” Pois, a despeito das diferenças que Marx estabelece entre o poder parlamentar da República e o poder executivo do Estado bonapartista, e que se referem às diferenças-de formas históricas de Estado, o bonapartismo, enquanto tipo capitalista de Estado, chega precisamente a apresentar-se
como emanação do interesse geral e como representativo da unidade do povo-nação. No caso concreto do bonapartismo francês, Bonaparte, eleito
pelo sufrágio universal que ele próprio restabelece, é mais “representativo”. do que a República que o suprimira: “Se o poder executivo, pela sua proposta de restabelecimento do sufrágio universal, recorria da Assembleia nacional para o povo, o poder legislativo, pela sua “proposta de mesa
diretora”, recorria do povo para o exército”? Vê-se, assim, que o Estado capitalista, ao preencher sua função política,
chega a apoiar-se nas classes dominadas, a fazê-las jogar por vezes contra as classes dominantes, realizando concretamente a autonomia relativa no tocante a estas, inscrita em suas instituições — autonomia que lhe permite
estar em relação constante com seu interesse político. Sobretudo, convém não esquecer, com efeito, de que o Estado capitalista, dentro desses limites
precisos, não se desvia um passo sequer dos interesses políticos da burguesia: no caso do bonapartismo francês, Marx nos mostra bem como Louis
Bonaparte, representante “oficial” da pequena burguesia e do campesinato parcelar, não toma nenhuma medida política a favor deste. Dentro dos limites colocados pela relação entre as estruturas e o campo da luta de classes, essa autonomia relativa do Estado pode variar segundo as modalidades de que se reveste a função que ele detém no tocante às classes dominantes, e segundo a relação concreta das forças em presença.
O Estado, por exemplo, pode funcionar como fator de organização política dessas classes, o que se manifesta na relação complexa entre ele e os partidos das classes dominantes. Nesse caso, essa autonomia relativa:
será decifrada na relação Estado-partidos, continuando esses partidos a se 294
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revestirem de uma função organizacional própria. O Estado pode também substituir os partidos, continuando a funcionar como fator de organização hegemônica dessas classes. Pode também, em certos casos, tomar inteira-
mente a seu cargo o interesse político das classes dominantes: trata-se do fenômeno histórico concreto do bonapartismo francês. Neste último caso, a autonomia relativa do Estado é tal que as classes ou frações dominantes
parecerão renunciar a seu poder político, assim como Marx o descreve em suas análises relativas ao Segundo Império. No entanto, todas essas variações se situam nos limites da autonomia
relativa constitutiva do tipo capitalista de Estado, limites que se relacionam com as características próprias da luta de classes nas formações capitalistas; elas se distinguem nitidamente dos casos de uma autonomia do Estado devida ao equilíbrio das forças em presença na luta de classes. Neste último caso, encontramo-nos, regra geral, quer diante de forças “equivalentes” politicamente organizadas, quer diante de forças equivalentes politicamente
desorganizadas. Em ambos os casos, o que é característico é que é difícil decifrar, durante esse período, uma relação direta entre o Estado e os in-
teresses políticos das classes dominantes no campo da luta de classes. O Estado, fazendo aiternativamente jogar uma contra a outra as forças em presença, não contribui para a dominação efetiva de certas classes — pois jamais é um árbitro neutro — senão por seu papel de fator de coesão e de
manutenção das estruturas de uma formação dada. As estruturas e 0 campo das práticas de classe apresentam-se aí em uma defasagem particular. Em contrapartida, no caso da autonomia relativa do Estado capitalista, pode-se
sempre estabelecer, no quadro da periodização política, a relação direta do Estado com os interesses políticos das classes dominantes, quer ele funcione
como fator de organização política dessas classes, quer tome diretamente a seu cargo esses interesses. Assim, essa autonomia relativa do Estado capitalista decorre de sua fun-
ção propriamente política a respeito das diversas classes de uma formação dominada pelo modo capitalista de produção, e mais precisamente: a) De sua função de fator de organização política das classes dominantes incapazes, quase sempre, em razão do isolamento das relações sociais econômicas, do fracionamento da classe burguesa etc., de erigirem-se por seus próprios meios ao nível hegemônico no tocante às classes
dominadas. É precisamente nesse sentido que se devem entender, a propósito do Estado capitalista, as expressões frequentes de Marx, 295
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de Engels e de Lenin que veem, no Estado, a “organização da classe dominante”, ou ainda a “organização da dominação de classe”. b)
De sua função de fator de desorganização política, ou seja, de impe-
dimento de organização da classe operária em partido político “autônomo”. A organização política da classe operária, sua luta política, é um fator que necessita da organização hegemônica das classes dominantes, mas que conjuntamente a impede. Neste caso, o Estado organiza politicamente estas últimas, ocupando-se, simultaneamente, de
desorganizar politicamente a classe operária. O efeito de isolamento constante que a luta econômica da classe operária manifesta necessita da organização política dessa classe em partido autônomo realizando sua unidade. Ora, o Estado tem por função mantê-la nesse isolamento — que é seu próprio efeito —, apresentando-se como representativo da
unidade política do povo-nação: isso contribui para sua autonomia relativa a respeito das classes dominantes.
c) De sua função particular, e que se reveste de uma importância frequentemente capital, em relação a certas classes dos modos de pro-
dução não dominantes na formação capitalista, mas que são afetadas pelo isolamento sobredeterminante do M.P.C. dominante; é o caso do campesinato, mais particularmente do campesinato parcelar, e
da pequena burguesia, em suma, segundo a expressão de Lenin, do “oceano da pequena produção”. Jogadas na cena política pelas insti-
tuições do Estado capitalista, essas classes constituem com frequência classes-apoios. O Estado, mediante um processo ideológico complexo, aproveita-se da incapacidade dessas classes para se afirmarem
politicamente, em virtude de seu lugar no processo de produção — ao contrário da classe operária em favor da qual atua a socialização do processo de trabalho -, e apresenta-se, com frequência, diretamente como o representante político dos interesses da pequena produção. Pode-se, assim, decifrar a relação entre o caráter unitário do poder institucionalizado no Estado capitalista, e sua autonomia relativa referente às classes dominantes. O caráter paradoxal dessa relação reside no fato de esse Estado se revestir de uma autonomia relativa no tocante a essas clas-.
ses, na medida precisamente em que constitui um poder político unívoco e exclusivo destas. Dito de outra forma, essa autonomia no que diz respeito às classes politicamente dominantes, inscrita no jogo institucional do Estado capitalista, não autoriza, porém, de forma alguma, uma participação efetiva 296
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das classes dominadas no poder político, ou uma cessão a essas classes de “parcelas” de poder institucionalizado. O poder de Estado não constitui uma máquina ou um instrumento, simples objeto de cobiça das diversas classes, cujas partes que não estivessem diretamente “nas mãos” de alguns estariam automaticamente nas mãos dos outros, mas um conjunto de estruturas. Se,
no âmbito de uma autonomia do Estado devida a um equilíbrio das forças em presença, podemos por vezes constatar uma certa distribuição do poder
político institucionalizado, não o podemos absolutamente nos limites da autonomia relativa constitutiva do tipo capitalista de Estado. Sua unidade política, como representante da unidade do povo-nação, não é, em última
análise, senão sua unidade enquanto poder político unívoco das classes dominantes. Sua autonomia relativa, função de sua característica unitária enquanto Estado nacional-popular, não é, em última análise, senão sua autonomia necessária à organização hegemônica das classes dominantes, senão a autonomia relativa indispensável ao poder univoco dessas classes. Essa autonomia relativa do Estado capitalista depende, assim, nas relações entre o Estado e o campo da luta de classes, das características próprias da luta — econômica, política — das classes no M.P.C. e em uma formação capitalista, Isso deve ser entendido no sentido geral da relação entre estruturas € campo da luta de classes. Nesse sentido, o Estado estabelece os limites em que a luta de classes age sobre ele; o jogo de suas instituições permite
e torna possível essa autonomia relativa no tocante às classes e frações dominantes. As variações e modalidades dessa autonomia relativa dependem
da relação concreta das forças sociais no campo da juta política de classe; dependem, mais particularmente, da luta política das classes dominadas. É
aqui que intervém, efetivamente, o problema do eguilíbrio das forças sociais em presença na luta política. Esse equilíbrio não é a condição necessária
da autonomia relativa do Estado capitalista a respeito das classes e frações dominantes, no sentido de que essa autonomia, no interior desses limites,
depende das próprias características do campo da luta de classes do M.P.C. e de uma formação capitalista. É, contudo, evidente que esse equilíbrio intervém, de maneira decisiva, nas modalidades e variações dessa autonomia.
Essas considerações indicam então duas coisas: a) que esse equilíbrio, no sentido geral ou no sentido de equilíbrio catastrófico, não é, como em outros tipos de Estado, a única forma que
permite à luta política das classes dominadas agir sobre a autonomia relativa do Estado capitalista. Na medida em que essa autonomia está 297
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inscrita na atuação de suas instituições, a luta política das classes
dominadas pode manifestar-se aí, mesmo sem ter atingido o limiar de um equilíbrio das forças sociais; b)
que essa autonomia, aparecendo aqui como efeito da luta política das classes dominadas, não deve ser apreendida como resultante de um equilíbrio das forças. Mais particularmente, mesmo sendo real” no sentido em que está inscrita nos limites estabelecidos pelo jogo.
institucional, ela não funciona absolutamente da mesma maneira que uma autonomia devida ao equilíbrio das forças em presença?
totalitário
Essas características do Estado capitalista foram abordadas, de maneira im-
precisa, pela feoria política atual, sob o tema ideológico “totalitarismo”. Sendo vastíssimo o assunto, poderei trazer aqui apenas algumas indicações breves.
Embora se tenha por vezes tentado dissolver o chamado fenômeno totalitário em uma teoria geral da “ditadura”, tentou-se apreendê-lo, re-
gra geral, como uma forma política específica aplicável às transformações atuais do Estado capitalista, que seria assim radicalmente oposta à forma liberal de Estado. Estando a problemática do totalitarismo, aliás;
intimamente ligada à perspectiva dos “indivíduos”, sujeitos da sociedade e produtores do Estado, o Estado totalitário decorreria de uma forma de poder institucionalizado cujo princípio de legitimidade estaria fundado em uma sociedade de “massa”. O Estado, essência alienada dos “átomos, massificados” de uma sociedade industrializada, apareceria atualmente em todo seu antagonismo com a sociedade. Na sociedade e no Estado libe-
rais, os indivíduos possuiriam uma esfera de autonomia privada, oriunda por princípio de sua participação no político e favorecida pelas diferenças de classe que impedem essa massificação globai. Em contrapartida, assistir-se-ia atualmente a transformações radicais: a uma perda total da essência individual no processo tecnológico; a um desaparecimento da luta de classes em benefício de uma sociedade homogênea de átomos reificados, idênticos e díspares, a massa, e à criação de uma nova alienação;
o Estado totalitário, açambarcando totalmente a essência individual por sua oposição antagônica à sociedade; a uma imposição total do poder de Estado sobre todas as esferas da atividade individual, a uma absorção do domínio privado nas entranhas do Behemoth estatal; a uma ausência de, 298
o
O assim chamado fenômeno
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participação dos indivíduos no político, doravante peças mecânicas desse
novo Leviatã monstruoso. Não avanço mais nessa mitologia apocalíptica. No entanto, é verdade que lhe devemos por vezes descrições interessantes da instância jurídico-política moderna. Se a problemática que rege essas análises é aquela, ideológica, dos indivíduos-sujeitos, se ainda as transformações atuais supostas decorrem
mais da fantasmagoria do que da ciência, podem-se decifrar, no entanto, nessas análises, problemas reais mascarados pela ideologia. Mais particularmente, o Estado capitalista extrai, com efeito, seu prin-
cípio de legitimidade do fato de apresentar-se como a unidade do povo-nação, apreendido como um conjunto de entidades homogêneas, idênticas e dispares, fixadas por ele enquanto indivíduos-cidadãos políticos. É pre-
cisamente nisso, e alguns dos teóricos do fenômeno totalitário fizeram-no justamente observar, que ele difere radicalmente de outras formas de
“despotismo”, por exemplo, do poder político “absoluto”, formalmente semelhante, exercido por formas de tirania fundadas na legitimidade divi-
no-sagrada.? Essas formas, tais como se apresentavam, por exemplo, nas formas de Estado escravista ou feudal, não deixavam, porém, de conter
o poder dentro de limites estritamente regulados. Em outras palavras, é exatamente o tipo de legitimidade do Estado capitalista, representando a unidade do povo-nação, que permite um funcionamento específico do Estado apreendido pelo termo “totalitarismo”. Esse povo não é senão a
expressão político-ideológica do efeito de isolamento sobre os agentes das estruturas ideológicas e políticas, efeito que manifestam as relações sociais
econômicas. Portanto, podem-se facilmente identificar os fenômenos reais ideologicamente apreendidos pelo termo “massa”. Assim, o funcionamento do Estado capitalista apreendido pelo termo “totalitarismo”, e que se refere de fato à relação entre esse Estado e as classes, torna-se possível pela relação entre o princípio de legitimidade desse
Estado e o isolamento do econômico, isolamento que, precisamente, por um lado, ocuita aos agentes o caráter de classe de suas relações e, por outro lado, permite a ausência de expressão direta da luta de classe nas instituições
desse Estado. Foi precisamente o que conduziu as teorias do totalitarismo a admitir, e isto é muito revelador, uma correlação entre a forma política totalitária e o que elas designaram como uma “ausência” ou um “declínio” da luta de classes. A sociedade, dizem elas, na qual a luta de classes está presente, na qual interesses opostos de classe são politicamente organizados
como “mediação” entre o indivíduo e o poder político, é uma sociedade que 299
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apresenta uma forma política “pluralista” do poder. O Estado totalitário só aparece numa sociedade de massa na qual, não operando mais o pertencimento de classe, o indivíduo é diretamente entregue ao poder político.” Resposta ideológica ao problema real que ela mascara: é verdade que o funcionamento, apreendido como “totalitário”, do Estado capitalista está em
correlação não com uma ausência qualquer de interesses opostos de classe: ou de associações “mediadoras” entre o “indivíduo” e o “Estado”, mas com uma ausência de expressão direta da luta de classes nas instituições do poder: político. O que não era possível no momento da fixação das classes como
castas ou estados no interior da organização institucional torna-se possível no Estado-popular-de-classe; ou seja, em um Estado que funciona como um Estado de classe na medida em que a luta política de classe está ausente
de suas instituições, na medida em que ele se apresenta como a unidade do povo-nação. Dito de outro modo, de uma forma descritiva, a concentração do poder político de classe jamais foi em parte alguma tão reforçada e intensa — totalitária — como quando ele conseguiu excluir de seu princípio ideológico de legitimidade o seu caráter institucional de classe. Isso assume, aliás, uma dimensão ainda mais importante, se nos refe-
rirmos ao impacto do efeito de isolamento das relações sociais econômicas das formações capitalistas sobre os outros níveis da luta de classes. O que foi apreendido por essas teorias como correlação do fenômeno totalitário
e de uma ausência da luta de classes refere-se de fato também ao impacto desse isolamento da luta econômica de classe sobre a organização política de classe. Com efeito, os Estados nazista e fascista, com frequência considerados como formas particularmente intensas do totalitarismo, têm a ver com a ausência de organização política própria de certas classes, o que é devido, entre outras coisas, ao efeito reverso sobre a luta política do isolamento da luta econômica. Não se trata, então, absolutamente, de uma dissolução da luta de classes entre os indivíduos “massificados”, mas sim de uma ausência de organização política de classe em função do isolamento, da luta econômica. Ela afetou sobretudo as classes que, para além do isolar mento decorrente de suas próprias condições de vida econômica, sofreram
o efeito de isolamento imposto aos outros modos de produção pelo modo capitalista, ou seja, a pequena burguesia e certas frações do campesinato,
como o campesinato parcelar. O Estado nazista na Alemanha, por exemplo, fez-se-acompanhar da falta de organização política própria daquelas.e pelo apoio que trouxeram ao Estado, mediante o mecanismo ideológico do fetichismo do poder: elas consideraram o Estado seu representante político 300
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enquanto encarnação da unidade do povo-nação. Por outro lado, conviria não esquecer de que o Estado nazista, estando a serviço dos monopólios, correspondeu a um periodo de crise particularmente intensa de organização
politica característica da própria classe burguesa* Deixo de lado, no entanto, o problema do Estado fascista, fenômeno
muito complexo que não pode, como é de calcular, ser diluído na nomenciatura geral do totalitarismo, e que não pode ser estudado senão pelo exame
da relação das forças sociais na conjuntura concreta.” O termo totalitarismo não pode, assim, remeter a nenhum fenômeno
político preciso: conota simplesmente um caráter particularmente “forte” do poder de Estado, embora se tenha tentado distingui-lo do “autoritarismo”. Os fenômenos que lhe são atribuídos se relacionam de fato com as carac-
terísticas de unidade própria e de autonomia relativa do Estado capitalista em geral. Ademais, impede-se com isso a possibilidade de uma análise científica desses fenômenos. O que é ideologicamente apreendido como caráter “totalitário” do Estado no tocante às massas diz respeito de fato à concentração € à unidade específica do poder político, um reforço particular do poder político exclusivo e univoco de classe no Estado capitalista, ou
seja, o Estado-popular-de-classe que representa a unidade do povo-nação. De maneira semelhante, o que é descrito como oposição antagonista do Estado totalitário e da sociedade não é, em última análise, senão a autonomia
relativa do Estado capitalista no que diz respeito às classes dominantes. Por fim, o que é descrito como a relação entre o fenômeno totalitário e a ausência
da luta de classe não é senão a relação particular do Estado capitalista com a organização política de classe nas formações capitalistas. O que finalmente se pode reconhecer nas teorias do totalitarismo é terem insistido na relação entre as instituições políticas como representativas da unidade política de agentes cujas relações de classe manifestam o efeito de isolamento, por um lado, e o caráter unitário particular, acarretando sua autonomia relativa característica do poder político, por outro; essa relação só pode ser explicada |
pela análise marxista do poder político. Por outro lado, é certo que as transformações atuais do M.P.C. correspondem a transformações do Estado capitalista em sua forma atual. É igualmente certo que elas não podem ser decifradas na problemática do to-
talitarismo, e ser, por exemplo, especificadas pelo termo “totalitárias”. Com efeito, os caracteres reais implicitamente compreendidos sob esse termo não estão de modo algum em oposição à forma de Estado liberal propriamente
dito: os fenômenos reais mascarados por essa ideologia política encontram-se 301
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na forma do Estado liberal, na medida precisamente em que se relacionam com o tipo capitalista de Estado. Problema que já encontramos a propósito das ideologias políticas, quando constatamos que.as características reais das ideologias políticas atuais, recobertas pelo termo “ideologias políticas totalitárias”, encontram-se de fato nas ideologias políticas liberais, e são traços constitutivos das ideologias políticas burguesas. Assim, não surpreende
ver inúmeros ideólogos do fenômeno totalitário admitirem explicitamente a presença das características desse fenômeno no próprio Estado liberal: e isso, descobrindo sua fonte no Estado moderno em geral.”?
Notas 1
Anteriormente, p. 123 ss.
2
Sobre esse assunto, pode-se consultar com proveito a obra de G. Burdeau intitulada Traité de science politique, t. V-VTI, assim como a de Leibholz chamada Das Wesen der Reprasentation und der Gestaltwandel der Demokratie in 20. Jahrhundert, 2. ed., 1960.
3
A esse respeito, Ch, Eisenmann, “LU Esprit des lois et la séparation des pouvoirs”, Mélanges Malberg, Paris, 1933.
4
Forneci indicações a esse respeito em meus artigos “Vexamen marxiste de "État et du droit actuels”, Temps modernes, agos.-set. de 1964, e “A propos de la théorie marxiste du droit”, Archives de philosophie du droit, t. XII, 1967, “Marx et le droit moderne”.
vala
Le 18 Brumaire, p. 348.
9
Ibidem. Idem, p. 347.
Idem, p. 242. Idem, p. 348.
10 Na Introdução de Le 18 Brumaire, da Éd. Pauvert, p. 15.
= o
H K Marx devant le bonapartisme, 1960, p. 155. Luttes des classes, p. 185. 13 Le 18 Brumaire, p. 245. 14 Ver, anteriormente, p. 134.
15 Le 18 Brumaire, p. 347. 16 4 guerra civil na França,
1891, p. 288.
q
Le 18 Brumaire, p. 327. 18 Idem, p. 342. 19 Idem, p. 315.
20 Idem, p. 343,
21 Idem, p. 360. 22 Idem, p. 339. 23 Esses dois casos de autonomia do Estado podem estar em contradição, na medida em que sua coexistência concreta se revela frequentemente incompatível. Com efeito, o que é significativo a esse respeito é que, no caso de uma autonomia devida ao equilíbrio
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das forças em presença,o Estado cessa de funcionar como organizador político das classes dominantes - o que é claramente perceptível nas relações Estados-partidos; neste último caso, pode-se, com efeito, assistir a uma “crise” profunda da dominação
política, a uma crise de hegemonia, o que não é de modo algum o caso a respeito da autonomia relativa do tipo capitalista de Estado. Quando, em contrapartida, o equilíbrio das forças não manifesta uma crise, a saber, uma modificação do conjunto das relações de uma formação — de uma de suas fases ou estágios —, mas se limita ao espaço da cena política, esses dois modos de autonomia do Estado podem se conjugar, em formas que variam segundo as situações concretas. 24 Sobre o “totalitarismo” em geral, a literatura é numerosa. Mais particularmente: E. Arendt, The origins of totalitarianism, 1951; W, Kornhauser, The politics of mass society, 1965; Adorno, The authoritarian personnality, 1950; €. Friedrich (ed), Totalitarianism, 1944;
a única tentativa de abordagem do fenômeno, do ponto de vista marxista, acha-se em Fr. Neumann, Behemoth: The structure and practice of national socialism, 1944, e The
democratic and the authoritarian state, 1957. 25 Ver, por exemplo: Arendt, op. cif., e Taimon, Les origines du totalitarisme, 1966, p. 10 ss.
26 indicações interessantes referentes a essa posição marxista rigorosa do problema em R. Banf, “Abozzo di una ricerca attorno al valore d'uso nel pensiero di Marx”, Critica Marxista, jan.fev. de 1966, p. 137 ss.
27 Ver nesse sentido Arendt, op. cit., p. 305 ss.; Kornhauser, op. cif., p. 33 ss., p. 48 ss., p. 76 ss. Aliás, guardadas as proporções, pode-se aproximar dessa concepção a critica da autoridade despótica feita por Durkheim, baseada, segundo ele, em uma ausência de organizações “mediadoras” entre o indivíduo e o Estado. Finalmente, o problema ideológico
enunciado por essas teorias do totalitarismo de uma relação Estado alienação-indivíduos sociais, eliminando a relação Estado-classes, é o mesmo que enunciavam, como vimos
(anteriormente, pp. 288-289, Rubei e Nora a propósito das análises de Marx sobre o bonapartismo, onde julgavam descobrir duas concepções contraditórias, a de uma relação Estado alienação-indivíduos e a de uma relação Estado-classes. 28 Isso foi particularmente evidenciado por Gramsci em seus textos sobre o “cesarismo” e sobre o fascismo. Gramsci tenta esclarecer um fenômeno específico do cesarismo, que
assumiria formas diferentes segundo as diversas formações sociais. Ele resultaria não de um simples equilíbrio entre as forças sociais em presença, mas de um eguilibrio catastrófico, a saber, de uma situação em que essas forças “se eguilibram de tal modo que a continuação da luta não pode ter outra conclusão senão a destruição recíproca”. Essa situação atribui ao poder político formas diferentes daquelas de que ele se reveste no caso de um equilíbrio geral: na formação capitalista, cla existe como crise política das forças sociais em presença, como desorganização política particular das forças sociais entre as quais joga esse equilíbrio catastrófico, mais particufarmente da classe burguesa. O fascismo é precisamente considerado por Gramsci como o cesarismo próprio das formações capitalistas desenvolvidas, (Ver, mais particularmente, seu texto sobre o cesarismo, em CEuvres, Ed. Sociales, p. 255 ss.)
.
29 A propósito do Estado fascista, faço apenas uma observação, Se se atribuir a esse termo, como se faz em geral, um sentido muito vago de “autoritarismo” ou de “totalitarismo”,
ele perde toda especificidade: toda forma concreta de Estado capitalista é, nesse sentido, mais ou menos “fascista”. Chega-se, aliás, aos mesmos resultados, a uma ausência de
especificidade desse fenômeno, se virmos simplesmente, na linha teórica da Terceira Internacional, antes do VIT Congresso, o fascismo como a forma de Estado capitalista que corresponde ao capitalismo monopolista e ao imperialismo -nesse sentido, toda forma atual de Estado seria, em diversos graus, “fascista”. Ora, essas concepções são eminentemente
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insuficientes, sobretudo na medida em que não permitem o estudo científico de formas políticas específicas. Dever-se-ia atribuir ao termo Estado fascista um “sentido preciso”, conotando essas formas de Estádo específicas que apareceram na Alemanha nazista, e, num grau diferente, na Itália fascista. Repito, embora isso não devesse ser necessário, que se trata de formas de Estado específicas, e isso na medida em que elas não se podem inserir no quadro tipológico do Estado capitalista porque são precisamente caracterizadas por uma articulação do econômico e do político diferente da articulação que especifica o:: tipo capitalista de Estado. O que não é de modo algum o caso, e isso se torna patente aqui, no quadro autoritário do Estado capitalista “típico” que permite conceber o bonapartismo como a “religião da burguesia”. Acrescento duas breves indicações. Em primeiro lugar; esse desvio do Estado fascista, assim concebido, do tipo de Estado capitalista não coloca impossibilidades teóricas, no mesmo sentido em-que o capitalismo de guerra não coloca impossibilidades teóricas à análise do modo capitalista de produção ou mesmo ainda do capitalismo monopolista: trata-se de desvios históricos marginais. Em segundo lugar, o Estado fascista, aparecendo numa formação capitalista, apresenta, evidentemente, ao contrário de outras formas “ditatoriais” ou “absolutistas”, numerosas características do
tipo capitalista de Estado embora situando-se à margem de seu quadro tipológico: problema teórico formalmente aparentado, mutatis mutandis, àquele que havíamos encon-
trado a propósito do Estado bismarckiano (anteriormente, pp. 145-146. É precisamente. o que conduziu a diluir o Estado fascista no tipo capitalista de Estado aparentando-o ao “bonapartismo” (ver, por exemplo, o paralelismo bonapartismo/nacional-socialismo em Aug. Thalheimer, Uber den Faschismus, reproduzido em Faschismus und Kapitalismus, Europa Verlag, 1967, p. 19 ss,, e em H. Berl, Napoléon III. Demokratie und Diktatur, 1948
etc). Dito isso, estas observações não respondem absolutamente à questão de quais são os fatores concretos, ou mesmo os relações políticas das classes, na conjuntura concreta. de uma formação capitalista, que engendram esse fenômeno político específico que é O Estado fascista: trata-se de um problema complexo que não posso abordar aqui. 30 Por exemplo, entre outros, Talmon, op. cit.
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IV
O ESTADO CLASSES
CAPITALISTA
E AS
DOMINANTES
O bloco no poder A unidade e a autonomia relativa do tipo capitalista de Estado, até aqui estudadas sobretudo a partir de sua relação com o campo geral da luta de classes, devem ser examinadas também a partir de sua função específica nas relações das classes e frações dominantes no interior de uma formação
capitalista. É essa função política que nos ocupará no que se segue. E, ainda uma vez, iremos nos reportar às análises de Marx, na medida em que elas se referem ao conceito de Estado capitalista. Para isso, deveremos reportar-nos às observações referentes ao bloco no poder, cujos pontos que importam aqui relembro brevemente.
1. Em uma formação capitalista pode-se estabelecer a coexistência pacífica, no nível da dominação política, de várias classes e, so- . bretudo, frações de classes constituídas em bloco no poder. Isso se
deve primeiro às relações capitalistas de produção, por exemplo, à coexistência particular, como classes dominantes de uma formação
capitalista, dos grandes proprietários de renda fundiária — no início, como classe de nobreza fundiária ou fração da nobreza, em seguida, como fração autônoma da burguesia — e da burguesia, e ao fracionamento particular da burguesia em frações comercial, industrial e financeira; deve-se, depois, ao tipo de dominância do M.P.C. sobre 395
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os modos não dominantes, e à presença de classes destes no bloco no poder que decorre'daí; e deve-se, por fim, às estruturas do Estado. capitalista que tornam possível a presença na cena política de várias classes e frações de classe etc. 2.
Por outro lado, determinou-se o tipo de relações das classes ou frações de classe que fazem parte do bloco no poder. Ao contrário de certas :
noções que Marx emprega — fusão ou sintese, por exemplo —, o bloco no poder constitui uma unidade contraditória das classes ou frações dominantes, unidade dominada pela classe ou fração hegemônica, Essa unidade do bloco no poder é constituída sob a égide da classe ou fração hegemônica que polariza politicamente os interesses das
outras classes ou frações que fazem parte dele. Descobriu-se, assim, uma característica importante do bloco no poder; apesar de certas expressões ambíguas, as análises de Marx repousam num princípio constantemente admitido: as relações das diversas classes ou frações
desse bloco não podem consistir em uma partilha do poder político institucionalizado, cuja classe ou fração hegemônica deteria simplesmente uma parcela mais importante que as outras. Dito de outro modo, se a concepção de um poder de Estado dividido em parcelas
não vale para as relações classes dominantes-classes dominadas, ou, ainda, classes dominantes e classes-apoios ou aliadas, também não vale para as relações entre ciasses e frações que constituem o bloco no
poder. Tanto é verdade que a representação da correspondência entre o Estado e os interesses específicos da classe ou fração hegemônica, na medida em que esses interesses polarizam os das outras classes ou frações do bloco no poder, sustenta essas análises de Marx. É sempre
a classe ou fração hegemônica que parece, em última análise, deter o poder de Estado em sua unidade, e de maneira tão explícita que
aparece frequentemente em Marx como a classe ou fração “exclusivamente dominante”, Unidade política do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica significa, assim, unidade do poder de Estado, em sua correspondência com os interesses específicos dessa classe ou fração. Essa característica se relaciona, entre outras coisas, com o jogo interno das instituições do Estado capitalista, com sua unidade própria e sua autonomia relativa, consideradas aqui do ponto de vista da função do Estado. no tocante ao bloco no poder. Pois, de outro lado, essa relação particular 306
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CAPITALISTA
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entre o Estado e a classe ou fração hegemônica não decorre absolutamente
de uma dependência direta da “máquina” estatal dessa classe ou fração; bem pelo contrário, faz-se acompanhar por sua autonomia relativa diante
desta, e, aliás, diante do bloco no poder em seu conjunto. 3. Com efeito, simultaneamente à coexistência, no terreno da dominação
política, de várias classes e frações de classe que constituem o bloco no poder, pode-se constatar sua incapacidade característica de se instituir em unidade política sob a égide da classe ou fração hegemônica. Constata-se, em outras palavras, uma incapacidade da classe burguesa ou das frações dessa classe de se elevar ao nível hegemônico, por
seus próprios partidos na cena política; incapacidade de transformar, por seus próprios meios de organização, seu interesse específico em
interesse político, que polarizaria os interesses das outras classes e frações do bloco no poder: não podem, assim, constituir a unidade das classes e frações desse bloco. Isso se deve, principalmente, ao fracionamento profundo, já a partir das próprias relações de produção, da
classe burguesa em frações antagonistas de classe: “Essa burguesia, que, a cada instante, sacrificava seu próprio interesse geral de classe,
seu interesse político, a seus interesses particulares mais limitados, mais sujos”.! Isso se deve também, conjuntamente, ao fato de que o efeito de isolamento sobre as relações sociais econômicas, do lado da
classe capitalista dos “capitalistas privados”, não é compensado, como é o caso do “trabalhador coletivo” do lado dos operários assalariados da classe operária. Entregues a si mesmas, as classes e frações no nível da dominação política não só se esgotam em fricções intestinas,
mas, no mais das vezes, afundam-se em contradições que as tornam incapazes de governar politicamente. Mesmo que essas contradições,
no conjunto das relações de classe de uma formação capitalista, sejam contradições secundárias, mais raramente aspectos secundários dacontradição principal, nem por isso seu impacto deixa de ser capital.
Conjugadas à contradição principal, ou ao aspecto principal desta última, elas criam, por seu funcionamento de classe, uma situação
sempre instável da dominação no nível político. 4. Foi o que Gramsci, aliás, fez questão de sublinhar, em seu texto mencionado sobre o cesarismo, embora circunscreva aí uma especificidade teórica do fenômeno “cesarista”, sem o considerar como caráter
do tipo capitalista de Estado: e isso, relacionando-o a um “equilíbrio 307
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catastrófico” entre as forças sociais fundamentais. Gramsci assinala; porém, os limites dessa explicação, fornecendo indicações úteis para a interpretação desse tipo de Estado: Seria um erro de método (uma forma de mecanicismo sociológico) considerar que, no fenômeno do cesarismo, o fenômeno histórico novo é inteiramente devido;
ao equilíbrio das forças “fundamentais”; é preciso, igualmente, ver as relações que intervêm entre os grupos principais das classes fundamentais e as forças auxiliares dirigidas pela força hegemônica, ou submetidas à sua influência.? Ora, são precisamente essas relações contraditórias das forças sociais
da classe burguesa, constitutivamente fracionada em frações de classe, que revelam as tendências cesaristas imanentes ao tipo capitalista de Estado, ou seja, o bonapartismo como religião da burguesia. Por fim, essas observações assumem toda sua importância se considerarmos que a maioria das teorias políticas atuais que negam a existência de
uma classe dominante fazendo vigorar a concepção das elites políticas entre, as quais o poder seria partilhado baseia-se no fato de que a burguesia já não constituiria, atualmente, a classe coerente e monolítica que teria sido no
passado. De fato, a burguesia jamais constituiu essa classe-sujeito sem que isso tenha mudado o que quer que seja no seu caráter de classe dominante, nem tampouco, evidentemente, em sua unidade do poder institucionalizado e relativamente autônomo, em sua correspondência unívoca com os interesses específicos da fração hegemônica dessa classe, Qual é, nesse caso, o papel do Estado? Ele constitui, de fato, o fator de
unidade política do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica. Dito de outro modo, ele constitui o fator de organização hegemônica
dessa classe ou fração de maneira que seus interesses específicos possam polarizar os das outras classes e frações do bloco no poder. É verdade que a teoria marxista pôs muitas vezes a tônica nesse papel do Estado no tocante às classes ou frações no poder, porém esse papel foi em geral descrito como um
papel de arbitragem do Estado, É este último mito que seria preciso destruir, e que se deve, aliás, a um desconhecimento do papel sobredeterminante que podem desempenhar as contradições secundárias em uma formação. Não se trata, a rigor, neste caso, de uma função do Estado no tocante a classes ou
frações já politicamente organizadas por meio de seus próprios partidos, de uma arbitragem entre forças sociais já constituídas. Tudo acontece precisamente como se o Estado detivesse permanentemente o papel de organização
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política do bloco no poder, o que se tornará mais claro no estudo das relações entre o Estado capitalista e os partidos das classes e frações desse bloco. Se o Estado detém esse papel, é em razão direta da incapacidade dos partidos políticos da classe burguesa e de suas frações para desempenhar um papel organizacional autônomo, mesmo de longe análogo ao papel dos partidos da classe operária. Vemos, assim, aparecer mais claramente o papel essencial
do Estado, como fator de unidade política do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica -- portanto, seu papel no tocante às classes e frações não hegemônicas do bloco no poder --, e como fator de organização dos interesses da classe ou fração hegemônica — portanto, seu papel específico no tocante a esta. Se tentarmos agora considerar as características do Estado capitalista no tocante às classes é frações dominantes, poderemos ver que esse Estado
apresenta uma unidade própria, conjugada com sua autonomia relativa, não na medida em que constitui o instrumento de uma classe já politicamente unificada, mas na medida em que constitui precisamente o fator de unidade do bloco no poder. Não se trata então de forças sociais partilhando entre si o poder institucionalizado; trata-se, sim, de várias classes e frações presentes no terreno da dominação política, que não podem, no entanto, assegurar essa
dominação senão na medida em que estão politicamente unificadas. O Estado extrai sua unidade própria dessa pluralidade de classes e frações dominantes, na medida em que sua relação, não podendo funcionar segundo o modo da
partilha do poder, necessita do Estado como fator organizacional de sua unidade propriamente política. Essa unidade, realizada sob a égide da classe ou fração hegemônica, corresponde assim à unidade do Estado como fator de organização dessa classe ou fração. Nesse sentido, a unidade do poder de Estado reside, em última análise, em sua relação particular com a classe ou
fração hegemônica, no fato da correspondência unívoca do Estado com os interesses específicos dessa classe ou fração. É exatamente esse o sentido das análises de Marx referentes ao período 1848-1852 na França, nas quais,
ele mostra constantemente, ao mesmo tempo, essa relação entre o Estado e o bloco no poder, e o funcionamento unitário do poder institucionalizado em proveito da classe ou fração hegemônica. Essas observações podem, de resto, servir para destruir ainda um mito,
muito em voga atualmente, que consiste em ver no Estado burguês do passado o representante do conjunto da classe burguesa, e no Estado atual do capitalismo monopolista de Estado unicamente o da fração monopolista.
Isso, rigorosamente falando, é duplamente inexato: o Estado capitalista, 309
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representando os interesses do bloco no poder em seu conjunto, sempre funcionou em uma relação específica com a classe ou fração hegemônica desse
bloco, e esteve sempre a serviço dos interesses específicos dessa classe ou fração. O que não impedia, muito pelo contrário, a dominação política das outras classes e frações do bloco no poder. Por outro lado, a relação atual do
Estado com a fração monopolista hegemônica não impede de modo algum o pertencimento de outras frações da burguesia ao bloco no poder. Não posso, aqui, entrar nesse problema cuja discussão nos levaria muito longe. Indico simplesmente que o desenvolvimento do imperialismo, dando origem a novas clivagens e a deslocamentos das contradições — burguesia imperialista e compradora, burguesia nacional, média burguesia —, não abole as coordenadas fundamentais do bloco no poder (ao contrário de uma opinião
que situaria a linha de demarcação atual de dominação política entre um punhado de vis monopolistas por um lado, e o resto da nação por outro). Essa função do Estado capitalista determina, aliás, sua autonomia rela-
tiva a respeito do bloco no poder « a respeito da classe ou fração hegemônica — autonomia que pode revestir-se de várias formas concretas. O Estado pode, por exemplo, apresentar-se como o fiador político dos interesses das diversas classes e frações do bloco no poder, diante dos interesses da classe ou fração hegemônica, fazer por vezes jogar essas classes e frações contra. esta última; isso, porém, em sua função de organizador político desta, à
qual faz admitir os sacrifícios necessários à sua hegemonia. Dizer, assim, segundo a frase do Manifesto comunista, que o Estado é o comitê de gestão dos negócios comuns da burguesia “em seu conjunto” é simultaneamente
exato € insuficiente: insuficiente, se isso nos faz perder de vista o papel complexo do Estado no tocante ao bloco no poder, e sua relação particular. com a classe ou fração hegemônica. Mais particularmente, é essa autonomia relativa do Estado que se deve verno caso do bonapartismo. Com efeito, no caso histórico concreto do bo:
napartismo francês, Marx mostra sua gestação a partir das contradições das. classes e frações no poder, e a incapacidade de uma destas de se constituir.
em classe ou fração hegemônica empreendendo, assim, a unificação do bloco no poder sob sua égide. O Segundo Império é relacionado, desse ponto de. vista, com a dissolução do bloco no poder sob a égide do capital financeiro: O partido da ordem era uma mistura de elementos sociais heterogêneos: À questão da revisão da Constituição criou uma temperatura política que decompôs
o produto dessa mistura em seus elementos primitivos. A dissolução do partido da
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DOMINANTES
ordem não se deteve em seus elementos primitivos. Cada uma das duas grandes frações se decompôs por sua vez.”
Paralelamente, Marx insiste, nesse contexto, no questionamento da hegemonia do capital financeiro, que aparece aqui no momento em que essa fração rompe com seu partido político, com os “políticos que a represen-
tavam”, e se torna “bonapartista”.* O Estado do Segundo Império é assim relativamente autônomo em relação ao bloco no poder e a essa fração financeira, embora sirva aos interesses da burguesia em seu conjunto €, mais particularmente - Marx voltará a essa questão em À guerra civil na França -, aos interesses do capital financeiro.” Em suas análises políticas concretas,
Marx e Engels relacionam constantemente o bonapartismo, como religião da burguesia, como característica do tipo de Estado capitalista, à sua unidade
própria e à sua autonomia relativa oriunda de sua função a respeito do bloco no poder e da classe ou fração hegemônica. E, também aqui, convém precaver-nos contra a noção de equilíbrio; essa autonomia relativa do Estado no tocante ao bloco no poder e à classe ou fra-
ção hegemônica não se deve a um equilíbrio de força das classes e frações dominantes, entre as quais o poder institucionalizado operaria como árbitro. Com efeito, regra geral, a classe ou fração hegemônica, cujo organizador político o Estado constitui, detém precisamente a preponderância entre as outras forças do bloco no poder; essa posição privilegiada que cla ocupa não impede, no entanto, a autonomia relativa do Estado a seu respeito. É evidente que, também nesse caso, a unidade e a autonomia relativa do Estado se revestem, nas diversas formas concretas de Estado e de regime,
de formas particulares, ou mesmo de graus diferentes; trata-se de variações no interior dos limites fixados por suas estruturas.
A separação dos poderes Essas observações referentes à unidade própria do Estado capitalista podem ser esclarecidas se considerarmos as instituições próprias desse Estado, detendo-nos, mais particularmente, na célebre teoria da separação dos
poderes. Com efeito, a despeito da declaração de separação dos poderes, mais particularmente do poder legislativo — parlamento — e do poder executivo, pode-se constatar que o Estado capitalista funciona como unidade
centralizada, organizada a partir da dominância de um desses poderes 3H
PODER
POLÍTICO E CLASSES SOCIAIS
sobre os outros. De fato, essa distinção do legislativo e do executivo não é
uma simples distinção jurídica formal, mas corresponde ao mesmo tempo a relações precisas das forças políticas e a diferenças reais no funcionamento
das instituições do Estado. Porém, o que importa no momento é reter que, ao contrário de uma concepção de partilha, multicentrista e equilibrada,
do poder interno do Estado, pode-se sempre decifrar a dominância carac> terística de um desses poderes, daquele que constitui a instância principal da unidade do Estado. Essa instância — regra geral, o legislativo ou o executivo — constitui assim o lugar nodal onde se concentra, no interior da
organização complexa do Estado, o poder institucionalizado unitário: ele reflete o indice das relações internas de subordinação, por delegação de
poder, dos diversos “poderes” do Estado, a esse “poder” dominante, que constitui o princípio de unidade do poder de Estado. Como decifrar esse lugar central do poder institucionalizado? A unidade do Estado capitalista deve-se, ao mesmo tempo, ao fato de que ele representa a unidade política do povo-nação, e ao fato de que constitui a unidade
política do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica, A instância principal da unidade interna désse Estado constitui o lugar onde se concentra a relação entre esses dois princípios de unidade do Estado, o
lugar onde se exprime a legitimidade do poder político institucionalizado. Na relação entre o Estado e as relações sociais econômicas “isoladas”. — relação à qual se reduz, finalmente, nas instituições do Estado, a relação entre o Estado e as classes dominadas —, essa instância constitui o lugar
onde se reflete a soberania popular. Na relação do Estado com as classes e frações dominantes, essa instância
designa o lugar onde se constitui — no interior do Estado como fator de unidade do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica — essa classe ou fração enquanto hegemônica. Ora, constatamos, com efeito, que esse lugar permanece, regra geral,
o mesmo, e isso na exata medida em que, nesse lugar institucional e por intermédio do Estado, essa classe ou fração chega a organizar-se como re-
presentativa de um interesse geral do povo, materializando em si a soberania popular, e consegue constituir seus interesses específicos em interesses do bloco no poder, realizando sob sua égide a unidade desse bloco. Em suma;
essa instância da unidade interna do Estado capitalista concentra a relação dos dois princípios de unidade do poder institucionalizado. Ela representa o lugar onde se forma, por intermédio do Estado, a organização política da classe ou fração hegemônica no tocante à “sociedade” e no tocante ao bloco no poder. 312
O ESTADO
CAPITALISTA
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Se essas observações nos permitem decifrar o funcionamento unitário do Estado, a despeito da aparente separação dos poderes, pode-se aprofundar ainda mais seu exame na relação entre o Estado e o bloco no poder. Lembro ainda que a distinção legislativo-executivo recobre de fato toda uma série de fatores heterogêneos. O que importa aqui é ver por que e como esses fatores, refietidos na relação do Estado com o bloco no poder, se institucionalizaram precisamente como relações executivo-legislativo apreendidas, além disso, como separação dos poderes.
A presença, no terreno da dominação política, de várias classes e frações de classe, o que sustenta a formação do bloco no poder, é agui fundamental. Pode-se efetivamente estabelecer que a distinção dos poderes é devida às relações complexas das classes e frações desse bloco, e que ela foi instituída para o caso em que classes e frações diferentes desse bloco
tivessem influência quer sobre o executivo, quer sobre o legislativo, para o caso, portanto, em que classes ou frações diferentes se cristalizassem em
lugares institucionais diferentes. A distinção dos poderes institucionais é, nesse sentido, uma característica típica de um Estado que funciona diante de um bloco no poder. Marx nos dá indicações disso n'O 18 Brumário e em Lutas de classes na França, onde estuda as relações do executivo e do legislativo, antes do golpe de Estado de L. Bonaparte, na medida em que - essas obras refletem as relações entre a fração financeira — executivo — e
a fração industrial — legislativo. Em que sentido essa distribuição dos poderes funciona realmente? No caso em que o executivo e o legislativo são controlados pela mesma classe ou fração — hegemônica —, a distinção dos poderes é, em seu funcionamento, inexistente: o caso é aqui demasiado patente para que insistamos nele. Basta
mencionar o exemplo clássico da Grã-Bretanha onde, a despeito das aparências, à distinção legislativo-executivo, até estes últimos tempos, não funcionou realmente; isso se deve à configuração e ao funcionamento particulares, que assinalamos muitas vezes, do bloco no poder na Grã-Bretanha.
É mais interessante examinar o que acontece quando o executivo e o legislativo refletem classes ou frações diferentes do bloco no poder. Tratar-se-ia, nesse caso, de uma real “separação” dos poderes de Estado, em suma, de
uma partilha efetiva do poder político em benefício dessas classes ou frações diferentes? Nada disso. Com efeito, a unidade do poder institucionalizado é
mantida por sua concentração em torno do lugar dominante, onde se refiete a classe ou fração hegemônica. Os outros poderes funcionam, sobretudo, como resistências ao poder dominante: inseridos na função unitária do Es313
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
tado, contribuem para a organização da hegemonia da classe ou fração que:
se reflete, como força política, no poder dominante Isso pode ser constatado simultaneamente na formação do Estado oriundo da Revolução Francesa, assim como naquele da II República, e no plano da teoria política, na obra de Montesquieu, em particular, que foi certamente
o teórico mais importante e influente da democracia política. Para começar: por esta última, Ch. Eisenmann e L. Althusser? mostraram que Montesquieu:
não estabelece absolutamente a separação dos poderes, como se pretende, e que sua teoria da distribuição dos poderes, pressupondo uma unidade do Estado, não remete, nele, a uma concepção constitucional-jurídica de separação das diversas esferas de legalidade. Remete a uma certa concepção das relações das classes sociais em luta, no âmbito do período transitório
que Montesquieu tinha em vista. As relações do executivo e do legislativo; distintas em câmara baixa e em câmara alta, relacionam-se com uma certa concepção das relações das forças sociais, relações entre a realeza, que tem sua sede no poder executivo, a nobreza, que tem sua sede na câmara alta, e o “povo”, ou seja, a burguesia, que tem sua sede na câmara baixa.
Mas encontra-se mais em Montesquieu: sua concepção da distribuição dos poderes pressupõe a da unidade do poder institucional, no sentido de que essa distribuição não é pensada como uma separação-partilha pondo em causa à
unidade. Essa unidade é ela mesma relacionada à dominância de um desses poderes sobre os outros, que constitui o lugar nodal do poder do Estado. AlL-
thusser enuncia justamente o problema, embora retenha o termo “partilha”: Contentando-se em revelar, sob a aparência mítica da separação dos poderes, à operação real de uma partilha do poder entre diferentes forças políticas, corre-se. o risco, parece-me, de alimentar a ilusão de uma partilha natural que parece evidente
e responde a uma equidade evidente. Passou-se dos poderes aos poderios. Mudaram os termos? O problema continua o mesmo: jamais se trata senão de equilíbrio e de. partilha. Esse é o último mito que gostaria de denunciar. Pois este esclarecimento faz ele próprio uma pergunta: Em benefício de quem se faz essa partilha?
E Althusser mostra perfeitamente que, na teoria de Montesquieu, o poder: institucionalizado dominante, centro de organização da unidade do Estado, é constituído pela câmara alta, sede da nobreza. Tomemos agora o exemplo da instauração da distribuição dos poderes no
caso do Estado oriundo da Revolução Francesa. A separação do executivo (o rei e seus ministros) e do legislativo (a assembleia nacional) no âmbito da
314
O ESTADO
CAPITALISTA
E AS CLASSES
DOMINANTES
Constituinte corresponde ao conflito entre a nobreza e a burguesia, que controlavam respectivamente o executivo e o legislativo. No interior da unidade desse Estado burguês recém-instaurado, fundado na soberania popular, a distribuição é feita em benefício do executivo e da nobreza. Com a Convenção, assiste-se à derrubada desse estado de coisas e a uma nova distribuição do executivo (no início, o Conselho executivo e, depois, o Comitê de salvação
pública) e do legislativo (a Assembleia convencional). O executivo está aqui nas mãos da fração comercial da burguesia, mais tarde representada pela Montanha, e o legislativo, nas mãos da fração financeira e industrial, representada pela Gironda. No interior da unidade desse Estado burguês, a fração financeira e o poder legislativo assumem, com o tempo, o papel dominante, o
que desemboca, aliás, na evicção definitiva da Montanha do poder. O caso é ainda mais claro no âmbito da Constituição da Terceira República.! A Assembleia de Bordeaux, dotando a França do regime republicano tal como funcionou por muito tempo, regulamentando pela chamada “Lei dos Trinta” a responsabilidade ministerial e as relações entre o presidente, o chefe do governo e a Assembleia, de modo algum se propunha instituir a dominância
do parlamento que realizou o funcionamento dessa forma de Estado. Com efeito, á burguesia financeira e os grandes proprietários de terras, representados pelos monarquistas e bonapartistas, visavam instituir uma primazia do
executivo sobre o legislativo: por um lado, porque sua base no parlamento parecia fraca diante dos radicais e dos republicanos, e, por outro lado, porque haviam tido, sob Thiers e Mac-Mahon, a possibilidade de se implantar no
interior do corpo administrativo do executivo. Aliás, é essa dominância do executivo que caracteriza a presidência de Mac-Mahon. No entanto, no decurso da evolução da Terceira República, por um processo complexo mediante o qual essa classe e essa fração puderam estabelecer seu controle sobre o parlamento (fração financeira) e o Senado (proprietários de terras), a distribuição dos poderes não assumiu em geral mais que uma importância formal, tendo o poder legislativo permanecido a instância central do Estado.
vo
Notas Le 18 Brumaire, p. 327. Cito o texto segundo a tradução francesa das Éd. Sociales, op. cit., p. 259. A esse respeito, Bottomore, Classes in modern society, 1966, p. 28 ss.; Elites and society,
1964, p. 24ss,
315
PODER
4
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
O caso é particularmente nítido no estudo das relações entre o Estado e os partidos das classes e frações dominantes. É preciso ver bem que esses partidos raramente conseguiram alcançar um papel organizacional em-relação a essas classes e frações, mesmo de longe análogo ao dos partidos socialistas, e, depois, dos partidos comunistas. Eles assumiram,
sobretudo, a função de representação dessas classes e frações ante o Estado, constituídos sobretudo segundo o modo de “frações parlamentares”. Parece assim justo considerar que funcionaram, sobretudo, segundo o modo de correias de transmissão do poder de Estado, Contudo, essa observação é demasiado geral; pode-sé especificá-la estabelecendo que o Estado se reveste de tanto mais autonomia no tocante às classes e frações dominantes, tomando a seu cargo esse papel organizacional, quanto esses partidos estão em declínio. Dito de outro modo, o declínio desses partidos não significa uma desorganização politica do bloco no poder, na medida em que o Estado assume esse papel; é frequentemente o caso de uma autonomia do Estado com predominância característica do executivo, quando esta está conjugada com o declínio dos partidos e a substituição deles por grupos de pressão. Também
importa assinalar que, finalmente, a análise teórica dos partidos da
classe burguesa e dos da classe operária não pode absolutamente proceder dos mesmos princípios - ao contrário da maioria das análises da ciência política moderna, mas tam-
bém da teoria marxista, como é o caso, por exemplo, de Umberto Cerroni, num artigo importante: “Per una teoria del partito político”, em Crítica marxista, set.-dez, de 1963,
p. 15 ss. A diferença de que falo aqui não se reduz, aliás, apenas ao fato de que o “partido
do tipo novo” visa a uma transformação revolucionária das relações sociais; em outras
palavras, a incapacidade organizacional dos partidos burgueses não se deve ao simples fato de que a classe burguesa visa à manutenção das relações sociais existentes. Com efeito, os partidos burgueses não desempenham de modo algum, em geral, o papel autônomo de organização dessas classes, necessário precisamente para a manutenção das relações sociais existentes, incumbindo então ao Estado esse papel. Le 18 Brumaire, pp. 313 319.
5
Idem, p. 322.
Essas análises de Marx são confirmadas por estudos recentes. As medidas muito importantes que L. Bonaparte tomou a favor da burguesia industrial não significam que a burguesia financeira não deteve a hegemonia, Tanto mais que, sob L. Bonaparíe, a burguesia financeira interessou-se, pela primeira vez na França, pelo processo de industrialização (G. Dupeux, La société française, 1789-1960, 1964, p. 132 ss). 8
Não é inútil notar que, para os defensores da corrente “ntoliberal” assinalada, a concep-
ção renovada dos checks and balances institucionais coincide com a concepção integracionista do muiticentrismo equilibrado do poder na sociedade (assim, por exemplo, R. Dahl, Modern political analysis, 1963, p. 83 ss.). Lembro, a propósito da terminologia,
9
minhas observações sobre o conceito de poder: relacionando-se este ao poder de classe, quando se designam estruturas institucionais pelo termo poder, deve-se entender, de fato, centros de poder. Montesquieu, la politique et | histoire, 1964.
10 Sobre essas questões, ver, entre outros, A. Soboul, Histoire de La Révolution Française,
Paris, 1964, t. LIL
H
A esse respeito, entre outros: G. Hanotaux, Histoire de La France contemporaine, 1908, t ER. Dreyfus, La république de M Thiers, 1930; D. Thompson, Democracy in France.
since 1870, 4, ed., 1964, 3º capítulo, D. Halévy, La républigue des dues, 1937.
316
v
O PROBLEMA ESTADO
E NAS
O EXECUTIVO
NAS
FORMAS
FORMAS
DE
DE
REGIME.
E O LEGISLATIVO
Formas de Estado, formas de legitimidade Essa relação entre o legislativo e o executivo fornece um excelente exemplo para a análise concreta do problema das formas de Estado e dos graus de unidade e de autonomia relativa que caracterizam cada forma. Isso, à luz das análises precedentes, vai nos ajudar a estabelecer precisamente a pertinência do critério das relações legislativo-executivo na distinção das formas de Estado. Duas observações prévias se impõem.
1. Essa distinção legislativo-executivo, fora de sua significação política nas relações de poder de classe, e se deixarmos de lado sua expressão constitucional-jurídica, o mais das vezes de extração
ideológica, recobre vários fatores heterogêneos. Primeiro, fatores de ordem sécnica referentes ao funcionamento do Estado, na me-. dida em que o executivo, no sentido amplo do termo, recobre mais
particularmente o que se designou como aparelho de Estado — burocracia, administração, polícia, exército. Seu funcionamento, no interior do Estado capitalista, não pode ser absorvido nas funções próprias das assembleias diretamente elegíveis, representativas no sentido estrito. Em seguida, não há dúvida de que essa distinção, e a dominância de um desses poderes sobre o outro, recobre também formas diferenciais de articulação, ou mesmo de intervenção e de 317
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
não intervenção, do econômico e do político: por exemplo, uma predominância do executivo conota muitas vezes uma intervenção específica do político no econômico.' 2. A distinção das formas de Estado relaciona-se, como lembramos,
com variações da articulação do econômico e do político nos limites colocados pela dominância do M.P.C. na periodização em estágios de uma formação capitalista; ela diz respeito a toda uma série de transformações das funções do Estado, de deslocamento de domi-
nância entre essas funções, diferenciações das formas de intervenção do político no econômico e do econômico no político.? No entanto, havíamos constatado que essas variações, referentes às formas de Estado, se, por um ládo, recobrem as formas diferenciais de intervenção e de não intervenção do econômico e do político nas estruturas,
por outro, não são por elas diretamente determinadas. Dito de outro modo, elas não se refletem em formas diferenciais de Estado senão se concentrando nas relações entre o Estado e o campo da luta de classes: a saber, precisamente, nas relações entre o Estado e o isolamento das
relações sociais econômicas, por um lado, nas relações entre o Estado e o bloco no poder no âmbito da luta política de classe, por outro, e segundo as formas de conjugação dessas duas relações.”
É assim que se pode estabelecer a pertinência do critério das relações entre. o legislativo e o executivo como traço distintivo da tipologia em formas de Estado. Se a distinção executivo-legislativo recobre funções diferenciais do Estado, que se referem a variações das formas de intervenção ou de não, intervenção do econômico e do político, não é enquanto tal que ela é perti-
nente como critério das formas de Estado: essa correlação entre as formas de Estado e a relação executivo-legislativo é, ela própria, sobredeterminada. A pertinência do critério das relações executivo-legislativo funda-se no fato de ele concentrar a relação do Estado com a luta econômica e a luta política de classe. É isso, aliás, que nos permite compreender por que e como as
formas diferenciais de articulação do econômico e do político, caracteristicas das formas de Estado, se refletem pertinentemente na relação entre o. legislativo e o executivo.
a) Narelação entre o Estado e o isolamento da Inta econômica de classe à quai se reduz, finalmente, a relação entre o Estado e as classes dominadas, tal como se encontra presente em suas próprias instituições, 318
O PROBLEMA
NAS FORMAS
DE ESTADO
E NAS
FORMAS
DE
REGIME...
essa distinção parece pertinente, na medida em que corresponde a diferenciações das formas de legitimidade do Estado capitalista; portanto, a diferenciações dos processos ideológicos complexos pelos quais esse Estado se apresenta como representativo da unidade do po-
vo-nação, e pelos quais ele age como fator de desorganização política das classes dominadas. Isso é a consequência do fato de que o próprio isolamento das relações sociais econômicas, das quais o Estado se apresenta como a unidade, não é senão o efeito do jurídico-político e do ideológico. Com efeito, seja no legislativo ou no executivo que se
reflete a classe ou fração hegemônica, esse lugar, enquanto instância dominante do Estado, deve, em princípio, concentrar igualmente essa relação do Estado com a luta econômica das classes. No entanto, as
formas pelas quais o executivo ou o legislativo se apresentam como unidade do povo-nação são diferentes. A predominância característica
do legislativo ou do executivo especifica assim as formas de Estado, na relação Estado-isolamento das relações sociais econômicas, na me-
dida em que corresponde a diferenciações das formas da legitimidade burguesa. As transformações de articulação, de intervenção e de não
intervenção específicas do econômico e do político, que caracterizam os estágios de uma formação capitalista, refletem-se no Estado por diferenciações de legitimidade. Com efeito, se, no âmbito da predominância do parlamento, a legitimidade tende a confundir-se com a legalidade, ou seja, com um sistema
normativo específico de regulamentação, que se apresenta como a vontade geral editada pelos representantes do povo, os processos ideológicos funcionam de maneira diferente no tocante à legitimidade do executivo: diminuição do papel da publicidade parlamentar, o que influi na ocultação
do saber próprio da burocracia (papel preponderante do aparelho de Estado que indica a predominância do executivo); importância de elementos “ca-. rismáticos” — inseridos, evidentemente, no tipo de legitimidade burguesa —, que concentram a legitimidade hierárquica por delegação do poder do
aparelho de Estado na personalidade de um “chefe”: esse “chefe” apresenta-se como representante da unidade do povo-nação por todo um arsenal
ideológico particular, de que Marx e Engels nos deram análises brilhantes a propósito de Louis Bonaparte e de Boulanger; e que é atualmente apreen-
dido, sob um termo ideológico, como “personalização do poder”; curto-circuito da relação “representativa” entre o Estado e as classes sociais, 319
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
que se opera aqui pelo desvio do papel dos partidos e pela manipulação direta da opinião pública pelo aparelho de Estado etc. É nesse sentido que se devem interpretar as análises de Marx, mais par: ticularmente as d'O 18 Brumário, em que ele indica como critério pertinente das formas de Estado o deslocamento de dominância do legislativo para o executivo. Trata-se de transformações das formas burguesas de legitimidade,
e é precisamente, parece-me, o que Marx quis sublinhar indicando que “o. poder executivo, contrariamente ao poder legislativo, exprime a heteronomia da nação, em oposição à sua autonomia”. É preciso insistir neste ponto, pois
toda uma tradição “parlamentarista” do movimento operário, ao exprimir sua desconfiança do poder executivo, devida, sobretudo, às ilusões idílicas que cria sobre o legislativo, interpretou essas análises de Marx como um
questionamento da legitimidade do executivo. Isso permitiu fazer faciimente uma crítica da predominância do executivo, dispensando uma crítica adequada do Estado capitalista enquanto tal. Em suma, essa tradição considera a legitimidade parlamentar como a única legitimidade “autêntica” da democracia política burguesa, a única expressão legítima do “povo”, e vê na predominância do executivo um poder. ilegítimo, de algum modo uma deformação do Estado nacional-popular de classe.” Nada mais falso: no âmbito do Estado capitalista de classe, a legitimidade parlamentar não está de modo algum “mais próxima do povo” do que
a legitimidade correspondente à predominância do executivo. Com efeito, trata-se sempre, num caso como no outro, de processos ideológicos. A legitimidade, no caso de uma predominância do executivo, pode perfeitamente.
se inserir no âmbito da soberania popular do tipo de Estado capitalista. Ao contrário dos outros tipos de legitimidade, a carismática de direito divino,
por exemplo, aos quais se assemelha apenas de maneira muito superficial, essa legitimidade é apenas uma forma diferencial do tipo de legitimidade burguesa. Em suas análises sobre o Segundo Império, Marx mostra-nos
muito bem como L. Bonaparte conseguiu fazer passar seu poder executivo pelo representante da unidade do povo-nação, pela encarnação da soberania popular, restabelecendo mesmo, no caso, o sufrágio universal precedentemente abolido pela República parlamentar. Nota-se assim, com frequência, no caso da legitimidade do executivo;
o que se caracteriza impropriamente como trucagens, pelas quais a predominância do executivo procuraria mascarar sua ilegitimidade importando traços da única legitimidade da soberania popular, a do parlamento, De fato, não se trata disso, mas de caracteres comuns que se devem ao fato de essas 320
:
O PROBLEMA
NAS
FORMAS
DE
ESTADO
E NAS FORMAS
DE REGIME...
legitimidades serem apenas formas diferenciais da soberania popular do povo-nação. Os processos ideológicos que regem a legitimidade parlamentar clássica, assim como a legitimidade do bonapartismo francês, são de fato
apenas formas diferenciais do mesmo tipo. Tanto é verdade, como a história mostrou, que a soberania popular da democracia política pode encontrar sua
expressão tanto num parlamentarismo clássico como em uma “semiditadura” bonapartista. Max Weber, em sua perspectiva própria, é verdade, constatava, porém, o-parentesco tipológico profundo de legitimidade entre a supremacia parlamentar, e o que designava como formas políticas “autoritárias”* Ora, essa distinção legislativo-executivo, no tocante à relação entre o Estado e as classes dominadas, é uma relação entre o Estado e o isolamento das relações sociais econômicas e diz respeito a formas de legitimidade: ela
não é, regra geral, diretamente determinada pela luta política das classes dominadas. Explico-me: tem-se frequentemente tendência, na deformação “parlamentarista”, a considerar que o parlamento se apresenta às classes
dominantes como um lugar perigoso, em razão dos riscos de sua conquista pelas classes dominadas por meio do sufrágio universal. Nesse sentido, a distinção legislativo-executivo seria uma garantia para as classes dominantes: permitiria o deslocamento do centro de gravidade da unidade do poder, no caso de uma escalada parlamentar das classes dominadas. Numerosos são os autores, depois de Kaustsky,” que interpretaram os avanços rumo a uma
predominância do executivo a partir da ascensão parlamentar dessas classes. Essa interpretação, para a qual Marx e Engels, que não haviam conhecido situações semelhantes, parecem às vezes deslizar, é, em sua generalidade,
um mito. De fato, relativamente à conquista do parlamento pelas classes dominadas, sabe-se que a dominação de classe dispõe de um arsenal de meios que a preservam de tais desventuras. E, aliás, as classes dominantes, quanto a isso — com o tempo — não se enganaram. Muito raros são os casos em que uma predominância do executivo, característica de uma forma de Estado, correspondeu a um risco de conquista do parlamento pelas clas-.
ses dominadas; a prova disso são os inúmeros países ocidentais nos quais se afirma atualmente a predominância do executivo e que estão longe, na
maioria, de ser ameaçados por tal risco, neutralizado há já muito tempo no âmbito parlamentar clássico. Não que as classes dominantes não tenham
acreditado, durante certo tempo, nesse risco, crença exatamente paralela às ilusões, a esse respeito, de uma fração do movimento operário; no entanto, o comportamento da social-democracia dissipou rapidamente esses temores
das classes dominantes. Essa predominância atual do executivo corresponde 321
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
efetivamente às dificuldades que a fração monopolista encontra para organi-
zar sua hegemonia política no tocante às classes dominadas no parlamento — em suma, a transformações de legitimidade —, mas essas dificuldades não comprovam por isso um risco real de conquista do parlamento pelas classes dominadas — o que é um assunto completamente diferente." De qualquer maneira, mesmo se esse risco revelasse fundamento, seria impossível interpretar esse fato como uma conquista do poder político pelas classes do-
minadas. Não simplesmente porque, nesse caso, o poder do Estado teria se concentrado no executivo, mas em razão de todo o funcionamento do poder. e do aparelho de Estado em uma formação capitalista. b) Na relação entre o Estado e o bloco no poder, o deslocamento de dominância do legislativo para o executivo é um critério pertinente de
diferenciação das formas de Estado, na medida em que diz respeito às modificações da fração hegemônica do bloco no poder segundo os estágios de uma formação, e o deslocamento dos lugares onde se reflete o poder político dessa fração no tocante ao bloco no poder: deslocamentos da hegemonia da fração industrial à fração financeira e, a seguir, monopolista. Por exemplo, a predominância característica do
executivo em uma hegemonia dos monopólios responde diretamente a uma incapacidade particular de organização dessa hegemonia “no tocante ao bloco no poder” no âmbito do parlamento. As contradições
particularmente vivas entre as diversas frações do bloco no poder do estágio monopolista, refletidas e multiplicadas no parlamento por toda uma defasagem particular dessas frações e dos partidos, devida a “sobrevivências” tradicionais de representação partidária, são testemunhas dessa incapacidade. A hegemonia organiza-se, doravante, por processos diferentes, no interior do executivo. Isso pode se tornar mais claro nessa forma de Estado se nos referirmos
à relação que ela implica entre o Estado e os partidos do bloco no poder. É verdade que as modalidades concretas da representação partidária se inserem na cena política, pela periodização especificamente política em formas: de.
regime. No entanto, a relação entre as formas de Estado e o funcionamento dos partidos não é por isso indiferente. As formas de Estado fixam os limi-
tes do funcionamento dos partidos na cena política; elas circunserevem o quadro geral do papel dos partidos a respeito do bloco no poder e de sua organização política de classe. Dito de outro modo, as formas de Estado; a 322
O PROBLEMA
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ESTADO
E NAS PORMAS
DE REGIME...
predominância do executivo ou do legislativo, estão em relação com o papel dos partidos do bloco no poder na medida em que elas se vinculam às relações de classe do bloco no poder, às modalidades de organização política desse bloco; essas formas de Estado circunscrevem, assim, os limites do espaço da cena política. Pode-se então estabelecer, num sentido muito geral,
que a predominância do executivo característica de uma forma de Estado corresponde, do lado do bloco no poder, a um declínio característico do papel organizacional próprio dos partidos desse bloco. Isso pode ter múltiplas consequências, como, por exemplo, a substituição dos partidos pelos grupos de pressão etc.” Trata-se, nesse caso, de uma responsabilização direta, por
parte do Estado, pela organização política da fração hegemônica e de sua hegemonia relativa ao bloco no poder.
Regra geral, a predominância do executivo, característica de uma forma de Estado, significa, assim, atualmente uma incapacidade particularmente aguda da fração monopolista de organizar, por seus próprios partidos, a hegemonia relativa ao povo-nação — transformações de legitimidade — e a hegemonia relativa ao bloco no poder; em suma, um recrudescimento da
prática política organizacional do aparelho de Estado.” É preciso, por fim, notar aqui que essa distinção ampla do legislativo e do executivo não pode em sentido algum substituir um estudo específico dos
diversos centros de poder político, nas diversas formas de Estado. Esses centros compreendem lugares institucionais tão diversos quanto as assembleias, a administração, o exército, a polícia, a magistratura, as municipalidades, os
próprios partidos políticos, as diversas “comissões” atuais como a comissão do plano e o conselho econômico e social na França etc. Seria preciso, por outro lado, distinguir esses lugares dos centros de poder econômico e dos
centros de poder ideológico. Parece, no entanto, se nos reportarmos ao funcionamento concreto do
Estado e às diversas formas de legitimidade, que a distribuição desses lugares institucionais coincide, regra geral, com a distinção do legislativo. e do executivo. Isso é particularmente nítido no estudo do sistema político atual, onde se constatam simultaneamente um policentrismo desses
lugares, centros de poder político — e não, evidentemente, um pluralismo de poder de classe — e sua concentração no executivo atualmente predominante. Essa predominância corresponde à hegemonia dos monopólios e à
sua incapacidade de organizar por seus próprios partidos essa hegemonia sobre o bloco no poder, e sobre o povo-nação, no parlamento. Estamos
assim diante de um declínio dos partidos do bioco no poder, de um re323
PODER
POLÍTICO
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crudescimento do papel político do aparelho de Estado e de uma organização dessa hegemonia dos monopólios, por meio do Estado, no próprio executivo. Esse policentrismo do executivo não faz mais que refletir, em seu funcionamento real, as relações atuais entre o bloco no poder e os monopólios, respondendo o executivo, em seu conjunto, aos interesses dos monopólios. Considerando a organização hierárquica particular por
delegação das funções que especifica o executivo, essa hegemonia dos monopólios realiza-se atualmente na conquista das cúpulas do executivo:
não simplesmente o alto pessoal do Estado, mas em primeiro lugar os “centros altamente situados” do executivo — o que não impede, portanto,
antes pelo contrário, a autonomia relativa do aparelho de Estado, o papel político próprio da burocracia etc. Em suma, as relações de classe do bloco no poder, que se refletem ou no legislativo, ou nas relações legislativo-executivo, têm uma tendência cada vez maior a se transportarem para os centros do próprio executivo, desposando seu funcionamento particular. Abordemos agora o problema da unidade do Estado capitalista no caso da diferenciação, assim estabelecida, do legislativo e do executivo. A predominância de um desses poderes representa a instância central de unidade do Estado, na medida em que concentra em si os dois princípios de unidade do Estado. Por um lado, ela reflete a legitimidade política de uma
formação e, por outro lado, é a sede de organização da fração hegemônica. No entanto, pode ocorrer que, em um período dado, certas defasagens se manifestem; pode ocorrer que o parlamento continue a se apresentar como o lugar representativo da soberania popular, da unidade do povo-nação, enquanto a fração hegemônica se reflete no executivo. Constata-se então a correspondência da forma de legitimidade do Estado e da dominância
das Assembleias eleitas, enquanto a fração hegemônica não consegue instaurar sua hegemonia no âmbito parlamentar e se refugia no executivo. É nítido que, nesse caso, não se trata de modo algum de uma desarticulação.
do poder de Estado, de alguma forma de um duplo poder dos poderes institucionalizados “separados”. A unidade do poder institucionalizado organiza-se sob a dominância do poder que é a sede da classe ou fração hegemônica do bloco no poder. De fato, encontramo-nos aqui em presença de uma defasagem entre a dupla função hegemônica dessa classe ou fração: se ela continua a de-
ter, por intermédio do Estado, a hegemonia do bloco no poder, perde sua hegemonia relativa ao conjunto da formação social. Isso se reflete por
uma distorção entre a sede institucional de seu poder e a forma de legiti324
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ESTADO
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midade do Estado. Nessa situação, que pode, aliás, ir até a crise política, constata-se, regra geral, ainda, um breve período de recrudescimento da atividade do aparelho de força do Estado, período durante o qual o Estado
cai na dependência direta dessa classe e fração. Porém, o Estado acaba por recuperar sua autonomia relativa no tocante a esta, operando em vista
de sua coincidência com a forma de legitimidade, e isso, quer restabelecendo o antigo estado de coisas, ou seja, organizando a hegemonia dessa classe ou fração no parlamento —- por toda uma série de modificações dos regimes eleitorais, de intervenções nas relações partidárias etc. —, quer
modificando, por numerosos meios, a própria legitimidade.
Formas de regime, partidos políticos É evidente que essas formas de Estado só podem ser estudadas concretamente em sua conjugação com as formas de regime, no tocante à cena polí-
tica e à periodização propriamente política. As formas de Estado estabelecem os limites desse espaço particular que é a cena política, circunscrevendo o quadro geral do papel dos partidos a respeito do bloco no poder. À cena política refere-se às modalidades concretas da representação partidária em rélação à ação aberta ou declarada das forças sociais. A combinação das for-
mas de Estado e da configuração da cena política dá-nos os regimes políticos. Não tenho a intenção de ir ao fundo do problema de uma tipologia dos regimes políticos. Remeto simplesmente às indicações particularmente importantes a esse respeito que M. Duverger nos dá em suas diversas obras. Ele foi o primeiro a destacar as relações, nessa tipologia, entre a predominância do executivo ou do legislativo, ou seu equilíbrio (não sendo mais os termos
“legislativo” e “executivo” tomados em seu sentido constitucional-jurídico, mas num sentido próximo deste aqui adotado), por um lado, e a configuração concreta da cena política, por outro. Neste sentido, mostra a importância de fatores como o número dos partidos — regimes de bipartidarismo ou de
multipartidarismo —, a estrutura própria desses partidos — bipartidarismo ou multipartidarismo flexível ou rígido — etc.” Essas análises podem nos fornecer indicações muito úteis, com a condição de sublinhar que Duverger,
como aliás a maioria dos teóricos de ciência política, não opera a distinção entre as duas periodizações e os dois espaços em causa, neste caso o das
formas de Estado e o das formas de regime. Sua tipologia das formas de regime absorve a distinção das formas de Estado. 325
PODER
POLÍTICO
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Nas análises sobre o bloco no poder, eu indicara” que essa ausência
de distinção entre os dois espaços e as duas periodizações acarreta uma confusão entre a configuração de classe do bloco no poder e as relações
partidárias na cena política. Torna-se então difícil localizar as diversas defasagens e, finalmente, decifrar exatamente a ossatura de classe da cena política. No caso que nos ocupa aqui, essa ausência também tem seus pró-
prios efeitos. Não permite ver que a distinção em regimes toma um sentido completamente diferente segundo as diversas formas de Estado nas quais esses regimes se situam: esses regimes não podem ser recortados senão a partir das formas de Estado que circunserevem seu espaço. Somente assim o que aparece como uma correlação — por exemplo, a predominância
do executivo e o bipartidarismo flexível ou o multipartidarismo — pode tornar-se uma explicação, por referência ao conjunto das coordenadas de um estágio de uma formação e à prática política de classe, e o que parece uma combinatória pode revelar-se uma combinação precisa. A unidade própria e a autonomia relativa, no tocante às classes e fra-
ções dominantes, do Estado capitalista, seus graus e suas formas concretas não podem, portanto, ser estudados senão nessa combinação das formas de Estado e das formas de regime, e isso na medida em que elas estão es-
treitamente ligadas às modalidades concretas da representação partidária, às formas de organização política do bloco no poder. Para tomar apenas o
exemplo da separação dos poderes e da unidade do poder institucionalizado: a separação funciona de maneira muito diferente se se tratar de uma predominância do legislativo de sistema multipartidário ou bipartidário, ou se se tratar de uma predominância do executivo de sistema bipartidário flexível ou rígido, ou muitipartidário.'º No entanto, a distinção das formas
de Estado e das formas de regimes permanece capital na pesquisa da relação da unidade do Estado e da classe ou fração hegemônica do bloco no poder, sob as aparências da cena política no âmbito dos regimes. Em suma, ela é capital na distinção dos efeitos reais, sobre a unidade do poder de Estado,
da combinação formas de Estado-formas de regime sob as aparências, frequentemente enganadoras, do simples regime.
Tomemos o exemplo de uma forma de Estado com predominância do legislativo e de regime multipartidário: trata-se de um caso típico em que se está, muitas vezes, em presença de coligações partidárias governamentais
que parecem, na cena política, pôr em causa a unidade do poder de Estado com sua partilha entre os diversos partidos dessa coalizão. De fato, trata-se,
mais frequentemente, da unidade do poder de Estado diante da unidade do 326
-
O PROBLEMA
NAS
FORMAS
DE ESTADO
E NAS
FORMAS
DE REGIME...
bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica, em suma, de uma relação unívoca entre o poder de Estado e essa classe ou fração. Isso pode ser provado pelo exame da forma de Estado e da configuração de classe do bloco no poder; esse exame, por sua vez, poderá revelar-nos a disposição exata, na cena política, dos atores mascarados. Com efeito, nesse caso, a unidade do poder de Estado revela-se pela organização, no parlamento, da hegemonia dessa classe ou fração sobre as outras, seja pela dominância
complexa sobre os outros partidos do partido da classe ou fração hegemônica — é o caso do “partido dominante” da coligação governamental; seja através de uma tradução complexa de representação na cena política, por meio da
qual essa classe ou fração é representada no seio dos diversos partidos dessa coligação; seja pela detenção dos setores governamentais-chave pelo partido, ou partidos, dessa classe ou fração.
Aliás, é essa combinação das formas de Estado e das formas de regime que nos permite igualmente avaliar os graus da autonomia relativa do
Estado a respeito das classes ou frações dominantes. Por exemplo, essa autonomia de uma forma de Estado com predominância do executivo de-
pende simultaneamente da configuração concreta de classe do bloco no poder, do papel geral dos partidos que essa forma de Estado delimita, e do comportamento próprio dos partidos na cena política nos âmbitos das formas de regime. Em outras palavras, a predominância do executivo não significa uma autonomia crescente do Estado a respeito dessas classes e frações, a não ser quando ela se combina com um declínio característico do papel organizacional dos partidos refletido até na cena política. Essa correlação é encontrada com bastante frequência. É nítida no caso do fenômeno histórico do bonapartismo francês. Manifesta-se, assim como Gramsci, depois de Marx,
fez observar, por uma situação de crise de
representação partidária, em suma, por uma ruptura entre as diversas
classes ou frações e seus representantes.” No entanto, podemos muitas vezes decifrar variações dessa correlação; por exemplo, a autonomia relativa do Estado pode ser mais importante no
caso de uma predominância do legislativo de regime multipartidário particularmente manifesta no papel da burocracia diante da instabilidade governamental -, do que numa predominância do executivo de regime
bipartidário com estruturas fortes e com disciplina interna rígida desses partidos — caso atua] na Grã-Bretanha; ou pode ser mais importante ainda no caso de uma predominância do executivo de regime multipartidário — caso atual na França. 327
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
A combinação assinalada pode fornecer-nos as explicações disso: no caso do bipartidarismo com disciplina interna forte dos partidos — Grã-Bretanha —, estamos, parece,
em presênça de uma capacidade par-
ticular de organização política própria da hegemonia dos monopólios, o que torna menos importante a autonomia do aparelho de Estado a seu respeito. As relações entre a ação aberta da fração hegemônica e o bloco no poder, assim como a organização de sua hegemonia no tocante ao po-
vo-nação, estabelecem-se já no seio de um mesmo partido, ou no seio de dois partidos que ocupam alternadamente o proscênio político. A fração hegemônica torna-se fração reinante ao ocupar, graças a seus “auxiliares”
— conceito político e não simples palavra designando relações de pessoas -—, as “cúpulas” desse ou desses partidos. O caso é nítido no tocante aos Estados Unidos, onde a organização menos forte dos partidos permitiu, contudo, às vezes uma autonomia relativa do Estado, que funcionou efetivamente no New Deal rooseveltiano. Essa autonomia funcionou também,
de alguma forma a despeito do sistema, no caso particular do governo trabalhista de 1945 na Grã-Bretanha."
Notas 1
Seria preciso assinalar aqui que o próprio objeto das noções de legislativo e de executivo varia segundo as diferentes formas de Estado, Vamos atribuir-lhes, a seguir, um sentido mais preciso, distinguindo as instituições e as funções particulares que elas recobrem segundo as formas de Estado. Também
não me demoro sobre o sentido constitucional-
jurídico dessa distinção — poder de decisão e de execução, poder político e administrativo, poder governamental e consultivo — que não é senão a máscara das relações de poder de classe. De fato, o que importa aqui é assinalar as relações de poder de classe que fixam institucionalmente divisões técnicas como distinção de funções políticas. Nesse sentido precisamente, o termo “executivo” não se identifica com o de aparelho de Estado. Ele recobre um centro de poder político ao conotar um funcionamento político particular do aparelho de Estado. É importante sublinhá-lo, pois várias citações de Marx (O 18 Brumário) e de Lenin (O Estado e a Revolução) são ambíguas a esse respeito; elas parecem por vezes identificar os termos “executivo” e “governo” com “aparelho de Estado”, no sentido de que o executivo não indicaria um centro de poder político particular, mas unicamente o aparelho técnico do Estado — ou mesmo o “pessoal de Estado”. É evidente que isso não permitiria ver as razões políticas da distinção executivo-legislativo e as relações complexas de classe que se estabelecem em sua relação. Aliás, uma leitura atenta de Marx mostra que a predominância do executivo em uma forma de Estado indica neste a função política particular do aparelho de Estado em relação com transformações de legitimidade e relações de classe do bloco no poder. É preciso também notar que vários teóricos atuais da ciência política, retendo, aliás, dos diversos critérios não jurídicos de classificação, estruturas e funções do sistema político, mantêm o esquema tipológico da
328
*
O PROBLEMA
NAS FORMAS
DE
ESTADO
E NAS FORMAS
DE
REGIM!
distinção executivo-legislativo: por exemplo, Almond & Coleman, The political system of developing areas, 1960, em uma “Introdução” (pp. 3-64) que contém observações gerais sobre a tipologia dos sistemas políticos; R. Dahl, 4 preface to democratic theory, 1964, p.63ss.; S. W. Eisenstadt, The political systems of historical bureaucratic empires, 1963; na França, Duverger, Vedel, Lavau, para mencionar apenas alguns dos mais importantes. Anteriormente, p. 144.
Ver, anteriormente, pp. 148-149. Por conseguinte, nunca seria demais criticar a deformação tecnologista que vê na predominância atual do executivo o efeito direto da intervenção do político no econômico e do papel “técnico” crescente da administração burocrática; tanto é verdade que esse funcionamento do aparelho de Estado em uma economia assim chamada “dirigida” pode ocorrer perfeitamente no âmbito de uma predominância do legislativo. Prova disso, em uma certa medida, são as diferenças relativas, atualmente, das estruturas do Estado entre
a França, por um lado, a Itália e a Alemanha por outro, onde, no entanto, a despeito das aparências, a intervenção estatal é tão forte quanto na França. É nitido que o problema é eminentemente político. Anteriormente, p. 225.
Mais particularmente as observações de Engels sobre o “bouiangismo” em sua Corres-
pondance avec P. et L. Lafargue, Éd. Sociales.
Essa tradição foi, aliás, particularmente virulenta no movimento operário francês; isso se explica, em parte, por razões históricas que remontam à Revolução Francesa — prestígio das assembleias eleitas — e ao impacto do jacobinismo nesse movimento. Ver também, a esse respeito, as observações de M. Duverger, Institutions politigues, 1966, p. 162 ss. Kautsky, La Révolution sociale, éd. Marc-Rivigre, 1912. Basta mencionar os sistemas eleitorais, novas formas, a esse respeito, de sufrágio censitário, no sentido de classe desse termo.
Quando digo então que, regra geral, esse deslocamento de dominância para o executivo não corresponde diretamente à luta política das classes dominadas, entendo que ele não é diretamente determinado por ela. Não resta dúvida de que o declínio do parlamentarismo está indiretamente em relação, ou seja, com uma margem de indeterminação, com a ascensão política do movimento operário; isso, evidentemente, não se identifica com um risco de conquistá do parlamento pelas classes dominadas, mas relaciona-se, entre outras
coisas, com as dificuldades indicadas da fração monopolista de organizar sua hegemonia no pariamento; em suma, relaciona-se com um problema de /egitimidade. Nesse sentido precisamente, não se deveria confundir a predominância do executivo no âmbito de uma forma de Estado, e o papel repressivo acrescido do Estado no caso de uma ascensão política das classes dominadas: neste último caso, a predominância do executivo não é absolutamente necessária para que o Estado assuma esse papel. O quadro do parlamentarismo com predominância do legislativo permite muito bem, ao contrário de certas opiniões idílicas a esse respeito, esse papel de repressão. Em resumo: a ascensão política das classes dominadas não implica diretamente, nesse caso, como resposta, uma predominância do
executivo, mas, por implicar um recrudescimento da repressão pela força, coincide perfeitamente, a experiência mostrou-o, com o quadro parlamentar clássico. Por outro lado,
sabe-se que Lenin designou, muito vagamente, aliás, a “República democrática” como o “melhor regime possivel” para a classe operária em uma formação capitalista: ora, a supor mesmo que isso indique uma supremacia do parlamento, não se deveriam criar ilusões e considerar essa forma de Estado como a única “popular”, a única “próxima das massas” do Estado capitalista, fazendo a crítica da supremacia atual do executivo como ilegítima.
329
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
12 A propósito dos grupos de pressão, é verdade que tiveram um papel capital, mesmo durante. a predominância do legislativo, papel que se conjugava, no entanto, com aquele próprio dos partidos. Atualmente, seu funcionamento é completamente diferente, na medida em
que eles parecem assumir o papel reivindicativo-profissional dos partidos, enquanto o aparelho de Estado assume o papel político dos partidos do bloco no poder, A esse respeito: J. Meynaud, Les groupes de pression en France, 1938, e Nouvelles études sur les groupes de pression, 1962; G. Lavau, “Note sur un “pressure group” français: la Confédération générale des Petites et Moyennes entreprises”, Revue française de Science politique, 1955.“ 13 Encontram-se análises notáveis a esse respeito em A. Gorz, Le socialisme difficile, 1967, 1º capítulo: “Syndicalisme et politique: Crise de la démocratie représentative”. 14 Ver sobretudo: Sociologie politique, 1967, p. 116 ss.; Institutions politiques, 1966, p. 137 ss.; Les pertis politiques, 1964, p. 387 ss., onde Duverger propõe a distinção em regimes presidenciais de “pseudobipartidarismo” (bipartidarismo flexível) ou de multipartidarismo, regimes parlamentares de bipartidarismo, regimes parlamentares de multipartidarismo. Ver também, a esse respeito, as análises importantes de A. Hauriou em “Régimes politiques et structures économico-sociales”, curso mimeografado para o doutorado. 15 Anteriormente, p. 253 ss.
16 Ver Duverger, Les partis politigues, o capítulo “Les partis et la séparation des pouvoirs”, 17 “Como se formam essas situações de oposição entre 'representados-representantes” que, do terreno dos partidos se refletem em todo o organismo de Estado, reforçando a posição correspondente do poder burocrático”. Gramsci, “Observations sur quelques aspects de la structure des partis politiques en période de crise organique”, (Euvres, Éd. Sociales, p. 246.
18 Sobre o problema dos governos trabalhistas na Grã-Bretanha, a obra mais esclarecedora é, sem dúvida, a de R. Milliband intitulada Parliamentary socialism, Londres, 1964.
330
PARTE
SOBRE
A BUROCRACIA
O PROBLEMA
Encontramo-nos,
V
E AS
E AS
TEORIAS
ELITES
DAS
ELITES
agora, à altura de empreender um exame rigoroso do
aparelho de Estado. Sabemos que a discussão, na teoria marxista, se organizou em torno do problema da burocracia que não é, aliás, senão um dos aspectos, sem dúvida o mais importante, do aparelho de Estado. Sabemos igualmente que a pesquisa teórica foi amplamente obliterada, em razão dos erros das análises de Trotsky, mas, sobretudo, da confusão ideológica de seus epigonos. Tentarei evitar o próprio terreno ideológico dessa discussão, atendo-me às indicações científicas que Marx, Engels, Gramsci e Lenin nos fornecem a esse respeito. Levarei em consideração apenas as análises de Max Weber; a despeito das críticas que lhe possam ser dirígidas, pode-se certamente considerá-lo como aquele que melhor
esclareceu esse problema. Iniciarei a análise por um breve exame das teorias das “elites políticas”; elas têm uma influência considerável na teoria política atual, e apresenta-,
ram-se explicitamente como críticas da teoria marxista do político. Não há dúvida, porém, de que se dirigem a interpretações errôncas do marxismo € de que a teoria marxista se prestou a essas críticas pela deformação a que submeteu frequentemente as concepções marxistas científicas. Em suma,
a maioria das teorias das elites políticas enuncia problemas que não podem ser resolvidos por um marxismo assim deformado, nem nas perspectivas
ideológicas que elas propõem; esses problemas só podem ser resolvidos na problemática científica do marxismo. 331
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
Com efeito, essas teorias das elites políticas abordam dois problemas relativamente distintos, ao enunciar a questão de suas relações:
1. O da “classe politicamente dominante”, recoberta, por vezes, na concepção das elites políticas pelo termo especificado “classe política”. A esse respeito, a contestação principal da teoria marxista”. versa sobre a identidade necessária que ela estabeleceria entre a
classe economicamente dominante e a classe politicamente dominante. Ora, essas teorias constatam com exatidão que nem sempre
é assim. A partir daí, iniciam-se diversas tentativas de elaboração de uma concepção do poder político, que se separaria radicalmente da concepção marxista. Nessa crítica principal enxerta-se, por outro lado, a corrente das assim chamadas “transformações” do sistema
capitalista; não se poderia, atualmente, falar de uma classe economicamente dominante, no sentido marxista do termo — separação da.
propriedade e do controle, circulação e mobilidade entre os grupos sociais etc. -, o que acarretaria a necessidade de recorrer a outras explicações do fundamento do poder político. 2. O do aparelho de Estado e da burocracia. Em primeiro lugar, essas teorias veem, na concepção marxista, uma concentração empírica de todas as funções políticas nas mãos da classe econômica-politicamente dominante, seu exercício prático sendo realizado pelos membros dessa mesma classe. Se a classe feudal tinha nas mãos as funções de governo político, de administração pública, as funções militares etc., o mesmo não ocorre, efetivamente, com a classe burguesa, Daí o recurso, para explicar teoricamente essa defasagem,
a uma concepção que descobre o fundamento do poder político na própria existência do aparelho de Estado, e atribui, por uma confusão entre poder de Estado e aparelho de Estado, um poder político próprio à burocracia de Estado. Em segundo lugar, essas teorias veem na teoria marxista a concepção de um Estado funcionando como mero instrumento de dominação da classe dominante;
a teoria marxista privar-se-ia, por isso mesmo, da possibilidade de examinar a autonomia relativa da burocracia no tocante a essa
classe. Daí o recurso a um poder político autônomo, paralelo à dominação
econômica ou política de “classe”, atribuído à buro-
cracia; seria, segundo essas teorias, o único meio de explicar o funcionamento particular desta. 332
O PROBLEMA
E AS TEORIAS
DAS ELITES
Essas críticas de uma teoria marxista deformada são expressas muito claramente por Wright Mills, ao explicar por que rejeita o termo “classe dominante”, retendo o termo “elite no poder”: “Classe dominante” é um termo pesadamente carregado: “Classe” é um termo econômico: “dominação” é um termo político. À noção “classe dominante” implica
assim a concepção de que uma classe econômica domina politicamente. Essa teoria, que conduz a um curto-circuito, pode às vezes ser exata, mas pode também não ser; não desejaríamos, porém, implicar essa teoria demasiado simplista nos próprios termos que se utilizam para definir os problemas. Mais particularmente, a expressão “classe dominante”, em sua conotação política habitual, não permite reconhecer suficiente au-
tonomia à ordem política e a seus agentes, e não diz nada a respeito da ordem militar. Considero que essa visão simplista de um “determinismo econômico” deve ser completada por um “determinismo político” e um “determinismo militar”; que os agentes superiores desses três domínios possuem atualmente um grau apreciável de autonomia!
Antes de ver a relação que essas teorias estabelecem entre o aparelho de
Estado no sentido estrito, por um lado, e o que se designa como classe politicamente dominante, por outro lado, iremos nos deter brevemente nas soluções
que elas propõem. Regra geral, tratar-se-á de descobrir fundamentos de poder político diferentes dos admitidos pela teoria marxista, ou seja, em última análise, diferentes da relação complexa entre o político e as relações de produção. E isso, segundo diversas variantes: quer na continuidade de Pareto — falando esquematicamente —, numa relação quase ontológica governantes-governados, aparentada ao esquema hegeliano Senhor-Escravo, como se encontra em C.
Schmitt; quer, na linha de Mannheim, e de seu esquema da freischwebende Intelligenz, a partir do monopólio “intelectual” das elites no tocante às massas; quer, segundo uma corrente mais importante, remontando a M. Weber, a partir
do controle do aparelho de Estado, sendo o próprio Estado considerado ora como fundamento exclusivo do poder político, e independente do econômico, ora como fundamento de poder político independente a respeito do poder econômico, mas paralelo a este. Esta última representação nos interessa particularmente. Ela decifra o funcionamento da burocracia a partir de um poder
político próprio, que ela manteria por seu mero controle sobre o aparelho de Estado, fundamento autônomo de poder político.
Quais são agora as relações admitidas entre o grupo social que controla o aparelho de Estado, mais particularmente a burocracia, e as outras elites políticas, o que se refere, na teoria marxista, às relações entre a burocracia
333
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
e a classe dominante? A questão é tanto mais interessante quanto remete
a uma querela interna dessas teorias, afirmando algumas a “unidade das elites políticas”, e outras a pluralidade das elites políticas ou categorias dirigentes. Essa questão refere-se, aliás, também a um problema da teoria marxista autêntica: a unidade e a coesão própria dessa categoria social que é a burocracia. a) A concepção da pluralidade das elites políticas ou categorias dirigentes não merece que nos detenhamos nela. Não é senão uma reação ideológica típica à teoria marxista do político: a da corrente “funcionalista”.? Em sua função ideológica, essa negação de toda unidade entre as assim chamadas elites políticas ou categorias dirigentes, visa, com a máxima clareza, cortar a possibilidade de qualquer des-
lize para a mínima evocação da existência da luta de classes; se se admitir a unidade dessas elites ou categorias, corre-se o risco de um perigoso contato com aqueles que ainda admitem uma classe dominante; coincidentemente, foi ainda Aron quem melhor se apercebeu disso. Sob a salvaguarda do funcionalismo, que retira a especificidade do conceito e da realidade do político considerando-o como função difusa e indistinta de “direção” dos diversos “elementos-domínios”. de uma “totalidade” social “integrada”, chega-se então a isto: as elites
políticas são definidas por seu lugar de direção nos diversos domínios da realidade social — dentre os quais o político institucionalizado, o Estado; são assim elites políticas enquanto categorias dirigentes. Constituem uma pluralidade simultaneamente porque esses diversos domínios — dentre os quais o Estado no sentido estrito — não têm entre si outras relações senão a de estarem circularmente integrados no con-.
junto social, e porque esses high social stratums dos diversos grupos sociais representam interesses divergentes pluralmente integrados:
Pode-se dizer que os “altos sindicalistas”, o “alto pessoal” de todos os partidos políticos importantes, os “altos managers” dos monopólios; os “altos burocratas de Estado” — que constituem, sob mesmo título;
categorias dirigentes, segundo essa teoria — apresentam uma unidade política? O minimo que se poderia dizer é que seria excessivo! Neste contexto, atribui-se ao aparelho de Estado, à burocracia e mais particularmente a suas “cúpulas”, um poder político próprio, cuja relação com os outros é regida pela concepção geral da “parcelarização” do poder político característica da teoria funcionalista. 334
O PROBLEMA
E AS TEORIAS
DAS ELITES
b) A corrente que mais nos interessa é a que aceita a unidade das elites políticas, expressa por vezes pela noção de “classe política”? E isso na medida em que, fazendo embora a crítica da concepção marxista de classe dominante que não permite, segundo essa corrente, examinar
a descentralização moderna das funções políticas e o papel próprio da burocracia, e supõe uma unidade política da classe burguesa que, atualmente, já não existiria, decide reter o esquema geral da domina-
ção política. Encontram-se também aqui diversas variantes; a unidade dessas várias elites será por vezes fundada, como o faz Mosca com a “classe política”, no próprio fato de sua relação — de influência ou de
participação — com o poder político institucionalizado. Esse poder, sem fundamento possível, é considerado como um mero lugar cuja própria existência unificaria as diversas elites, constituindo as cúpulas da burocracia uma elite entre as outras. Na sequência dessa corrente,
tratar-se-á de descobrir fontes de poder político paralelas, sendo o próprio econômico considerado como uma fonte de poder, e o Estado como uma outra. As elites, entre as quais a burocracia, reduzidas a suas relações com essas diferentes fontes, são, não obstante, tidas como unificadas, assim como o expõe Wright Milis, pelo fato de os - “chefes de corporações econômicas”, os “chefes políticos” - entre os quais a cúpula da burocracia — e os “chefes militares” — as elites — per-
tencerem todos ao que ele designa como corporate rich. Neste caso, essa concepção, que queria superar o chamado determinismo econômico marxista e examinar o funcionamento autônomo da burocracia, parece precisamente diluir o problema num sobredeterminismo econômico. O funcionamento político do aparelho de Estado é absorvido no pertencimento de seus membros, paralelamente às outras elites, a esse centro unificador que seria um grupo de rendimentos elevados.
Essa unidade é também por vezes relacionada à dominância, sobre as outras elites, da elite que detém o poder fundado nas relações de produção, como faz Meynaud, ou o poder fundado no próprio controle do aparelho de Estado, fundamento paralelo de poder político da teoria da burocracia de Weber, como se vê em certos discípulos, entre os
quais R. Michels; dominância que é, aliás, totalmente inexplicável no contexto dessas concepções. Ou, por fim, como em Burnham, essa
unidade é explicada pelo pertencimento das diversas elites à nova “classe” tecnoburocrática dos managers, controlando a produção ao mesmo tempo mediante a assim chamada separação da propriedade 335
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
e do controle nas grandes empresas, e mediante seu pertencimento. ao aparelho de Estado referente ao setor nacionalizado. Não empreenderei aqui a crítica dessas concepções e de seus pressupos-.
tos teóricos; outros já o fizeram de maneira suficientemente exaustiva.” Seu defeito capital é não fornecerem nenhuma explicação para o fundamento do poder político. Ainda mais: ao admitirem uma pluralidade de fontes do poder político, não podem fornecer nenhuma explicação de suas relações. Chegam assim a resultados contrários aos que visavam. Embora fazendo a. crítica da concepção marxista deformada da classe dominante, querendo; mais particularmente, examinar o funcionamento próprio da burocracia; acabam por admitir a unidade das elites políticas. Porém, essa unidade permanece, nesse caso, ideológica; no tocante à burocracia, elas acabam,
por meio do poder próprio que lhe reconhecem, seja por diluir seu funcionamento em seu pertencimento a um grupo econômico fantasista — Mills, —, Seja por considerá-la como “sujeito” exclusivo do poder político em um sentido estrito - tendência weberiana —- ou em um sentido amplo — Burnham,
Notas 1
C.W. Mills, The power elite, 1963, p. 277. T. B. Bottomore expõe muito bem essa linha de críticas que as teorias das elites dirigem à teoria marxista: Elites and society, 1966, os dois primeiros capítulos, e Classes in modern society, 1966, primeiro capítulo. Analiseí anteriormente, no capítulo sobre o poder, a concepção do poder que sustenta a maioria das análises das elites políticas.
2
Encontramos os princípios funcionalistas dessa concepção na crítica que T. Parsons faz da obra citada de Mills: “The distribution of power in American Society”, World Politics,
vol. X,n. 1. Defensores da pluralidade, entre outros: Aron, “Classe sociale, classe politique, classe dirigeante”, Revue Européenne de sociologie, I (2), 1960, e “Classe politique ou catégories dirigeantes?”, Revue française de Sc. Politiques. 3
4
É sobretudo o caso de Mosca,
The ruling class,
1939, p. 12 ss.; de R. Michels e sua
burocracia-classe política: The political parties, 1966, p. 43 ss., p.188 ss.; de Wr. Mills, op. cit.; de 3. Meynaud, Les élites politiques, 1960; da tendência “gerencial” de Burnham etc. Repare-se que os defensores da concepção da unidade das elites são os que mais foram marcados pela concepção marxista, Assinalo, mais particularmente, a crítica de Mills por Sweezy: “Power elite or ruling class”, extrato da Monthly Review, 1963.
336
IH
A POSIÇÃO
MARXISTA
DE PERTENCIMENTO DO APARELHO
E A QUESTÃO DE CLASSE
DE ESTADO
Ora, os problemas que foram enunciados pelas teorias das elites podem ser resolvidos na teoria marxista do político. Com efeito, se retomarmos as eríticas dirigidas à teoria marxista, poderemos ver facilmente que se dirigem apenas a suas deformações. Examinemos,
em primeiro lugar, a crítica referente ao conceito de
classe dominante. O conceito de classe referir-se-ia apenas ao nível econômico; o conceito de dominação, apenas ao nivel político. O conceito de classe dominante implicaria, assim, necessariamente, por uma extensão abusiva, que a classe econômica dominante seria a classe politicamente dominante. De fato, mostramos no capítulo sobre as classes sociais em
que sentido o conceito de classe não recobre, de forma alguma, apenas a relação entre os agentes e as relações de produção, mas indica os efeitos do conjunto da estrutura no campo das relações sociais. Mostramos também, no capítulo sobre o conceito do poder, que este e, por outro lado, o conceito
de dominação, em sua relação com o conceito de classe, não recobrem de forma alguma unicamente o nível das estruturas políticas, mas o conjunto do campo das relações sociais, ou seja, das práticas econômicas, políticas e ideológicas de classe. Essas considerações haviam-nos conduzido a explicar a possibilidade de
descentramento e de defasagem entre os vários lugares de dominação econômica, política e ideológica detidos por diversas classes. Se o nível econômico das relações de produção determina, em última instância, os lugares de poder 337
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
e de dominação do campo da luta de classes, é apenas por seu reflexo no conjunto complexo de uma formação. Assim, encontramos vários exemplos de defasagem entre a classe economicamente dominante e a classe politicamente
dominante. Por outro lado, tendo mostrado à estrutura complexa e a autonomia relativa do político, assim como os diversos espaços que ele compreende, mostramos a possibilidade de descentramento das várias funções políticas, detidas
por diversas classes: diferenciação entre classes politicamente dominantes, fazendo parte do bloco no poder, e a classe hegemônica desse bloco, detendo finalmente o poder político e tendo o papel de organização política do bloco
no poder; diferenciação entre estas, por um lado, e a classe reinante que tem o papel de representação no espaço da cena política, por outro lado. Em suma,
a concepção marxista rigorosa da classe dominante não implica de modo algum a concentração empírica das diversas funções políticas nas mãos dos
próprios membros de uma classe, mas explica esse descentramento eventual, segundo as formas concretas da luta de classes, e as estruturas políticas, os
tipos e formas de Estado e as formas de regime. Contudo, trata-se, nesse caso, das relações entre diversas classes, o que
não resolve absolutamente o problema colocado pelo grupo social do aparelho de Estado. Retenho aqui o termo “burocracia” em razão da importância de que se revestiu, embora designe finalmente, ao lado do exército,
da polícia etc., apenas uma parte desse grupo, habitualmente denominado pelos clássicos do marxismo pelo termo “administração de Estado”. Já indicamos, a propósito da distinção entre fração, camada e categoria, que
a burocracia constitui uma categoria específica.” Se levarmos em consideração o todo complexo de um modo de produção e a eficácia específica de suas diversas instâncias, veremos que a burocracia é o efeito específico da
estrutura regional do Estado sobre os agentes, em uma formação social, é O mesmo mecanismo que se constata nos “intelectuais” em sua relação com
a região da ideologia. Se é verdade que essa estrutura regional do político também tem efeitos sobre os agentes distribuídos em classes sociais ou frações de classe, na medida em que não se trata de conceitos recobrindo os efeitos sobre os agentes unicamente do econômico, a produção dessa categoria que é a burocracia constitui seu efeito específico. Do ponto de vista da burocracia, isso se manifesta em primeiro lugar por seu perten-
cimento ao aparelho de Estado, na medida em que ela põe a funcionar, de algum modo, as instituições do poder político. A burocracia como categoria social do aparelho de Estado não é, porém, senão um aspecto do problema. Com efeito, é muito importante distinguir 338
A POSIÇÃO
MARXISTA
E A QUESTÃO
DE
PERTENCIMENTO
DE
CLASSE
DO APARELHO
DE ESTADO
no termo burocracia os dois sentidos de que se reveste, os dois sentidos que lhe conferem Marx, Engels, Lenin e Gramsci. O segundo sentido designa, a rigor, não diretamente essa categoria social, mas um sistema específico de
organização e de funcionamento interno do aparelho de Estado, que manifesta sobretudo o impacto político da ideologia burguesa sobre o Estado: fenômeno frequentemente expresso pelo termo particular burocratismo ou burocratização? Essa distinção se reveste de uma dupla importância: em primeiro lugar, coloca a questão das relações entre burocracia e burocratismo, entre a localização dessa categoria e o funcionamento desse sistema de
organização, mais particularmente do aparelho de Estado, em uma formação social determinada. Em segundo lugar, coloca a questão de possibilidade de uma permanência do burocratismo, independentemente da existência ou não da burocracia como categoria social. Trata-se aí de toda a problemática dos textos de Lenin sobre o Estado de transição na URSS, e da permanência do burocratismo, o que ele designa como “tendência à burocratização”, sem a
existência da “burocracia” como categoria específica. De todo modo, esses dois aspectos do fenômeno burocrático referem-se
sempre ao aparelho de Estado e não ao poder de Estado. Mais particularmente, a burocracia como categoria social específica depende do funcionamento concreto do aparelho de Estado, e não do seu próprio poder de Estado. Para entrar nesse problema cuja importância foi, sem dúvida, exagerada, a burocracia não pode constituir, em si mesma, uma classe particular ou
mesmo uma fração, autônoma ou não, de classe. Mesmo que Engels a tenha, excepcionalmente, designado pelo termo classe, isso, evidentemente, não
pode ser retido. Se o que a especifica é precisamente a sua relação particular com o poder institucionalizado e seu pertencimento ao aparelho de Estado, ela não pode ser mais do que o efeito da relação do Estado com as estruturas econômicas, por um lado, e com as classes sociais e frações de classe, por outro. Não basta dizer, a esse respeito, que a burocracia não tem lugar espe-
cífico nas relações que definem as classes no nível das relações de produção no sentido estrito. Se isso basta para rechaçar a concepção da burocracia
como classe já no nível das relações de produção, não basta, porém, para rechaçar a concepção da burocracia como fração de classe; pode-se, com efeito, definir frações autônomas de classe unicamente no nível das relações
políticas. Ora, o funcionamento da burocracia, especificada pela sua relação particular com o Estado, e por seu pertencimento ao aparelho de Estado, só pode ser estritamente determinado, no nível político, pelo funcionamento
de classe desse Estado. Em outras palavras, o que foi por vezes considerado 339
PODER
POLÍTICO
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como uma caracteristica privilegiada da burocracia, a saber, sua relação particular com o Estado, não só não a constituí em classe social ou fração de classe como, especificando-a como categoria, exclui precisamente sua existência como fração autônoma de classe no nível político, ao circunscrever seu funcionamento no poder de classe desse Estado. Por outro lado, a discussão, que conduziu por vezes a falsear essa car
racterística da burocracia, incidiu sobre o papel do Estado no processo de produção, ou mesmo em suas diversas funções econômicas. Essas funções pareciam poder atribuir à burocracia, em certos casos e por esse viés, um lugar específico nas relações de produção no sentido estrito. Mas as funções do Estado são precisamente circunscritas pelo poder político de classe desse
Estado. O caso particular que se pode apresentar aqui por vezes é aquele cujo exemplo nos é oferecido pela burguesia de Estado de certos paises em vias de desenvolvimento: a burocracia pode, por meio do Estado, constituir um
lugar próprio nas relações existentes de produção, ou mesmo nas relações ainda não dadas de produção. No entanto, não constitui, então, uma classe enquanto burocracia, mas enquanto classe efetiva. Esse esclarecimento era indispensável, a fim de enunciar o problema da
relação da burocracia com as classes e frações de classe. Se a burocracia constitui uma categoria específica, isso quer dizer que ela própria tem um pertencimento de classe. Trata-se das classes ou frações de classes sociais de onde vêm as diversas camadas da burocracia, onde se recrutam os membros da administração. Marx, Engels e Lenin insistiram no fato de que a burocracia deve ser distinguida, desse ponto de vista, em algumas
camadas distintas, com recrutamento e pertencimento de classe diferentes. No caso, por exemplo, das burocracias alemã e francesa, Marx e Engels distinguem as “cúpulas”, segundo o termo de Lenin, da burocracia, per-
tencentes respectivamente à nobreza fundiária e à burguesia, das camadas subalternas, pertencentes à pequena burguesia. Marx e Engels fazem, aliás, frequentemente distinções, no tocante ao recrutamento de classe das cúpulas da burocracia, entre as diversas frações da classe burguesa, mais
particularmente industrial e financeira.” Marx e Engeis assinalaram a importância dessa classe ou fração na qual se recrutam as “cúpulas” da burocracia por um conceito específico,
o de classe detentora do Estado. Esse conceito lhes pareceu indispensável para indicar que essa classe ou fração pode se identificar, mas pode também
não o fazer, com a classe ou fração hegemônica do bloco no poder, a que habitualmente se designa, embora impropriamente, como a classe ou fração 340
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politicamente dominante. Em suma, essas cúpulas da burocracia podem provir de uma classe ou fração politicamente dominante, que faz parte do bloco no poder, mas que não é a classe ou fração hegemônica desse bloco. Trata-se do caso típico do aparelho de Estado na Grã-Bretanha, após 1830, mas também da Alemanha, após Bismarck, onde essas cúpulas eram recrutadas na propriedade fundiária, ao passo que o lugar hegemônico era detido pela burguesia. Essa classe ou fração detentora do Estado pode se identificar, aliás, como pode também não o fazer, com a classe ou fração reinante na cena
política. Já encontramos, em nossos exemplos, toda uma série de defasagens entre as classes ou frações hegemônica, reinante, e detentora do Estado, na qual se recrutam as cúpulas da burocracia.
Essas observações são importantes, na medida em que todo o problema da burocracia é constituir uma categoria específica. Isso quer dizer que seu funcionamento particular, o que a especifica como categoria, não é diretamente determinado por seu pertencimento de classe, pelo funcionamento po-
lítico das classes ou frações de que ela é oriunda; depende do funcionamento concreto do aparelho de Estado, ou mesmo do lugar do Estado no conjunto de uma formação e de suas relações complexas com as diversas classes e
frações. É o que permite precisamente à burguesia possuir, como categoria social, uma unidade e uma coerência próprias, a despeito da diversidade de recrutamento e de pertencimento de classe de suas diversas camadas. Essa unidade política da categoria burocrática não pode, então, ser relacionada à classe detentora do Estado.
Ela também não pode ser relacionada à classe ou fração hegemônica que detém, em última análise, o poder de Estado. Detenhamo-nos aqui. Marx e Engels insistiram — distinguindo entre poder de Estado e aparelho de Estado — no fato de que a burocracia, não sendo uma classe ou uma fração autônoma
de classe, não pode ter poder político próprio. O chamado “poder burocrático” não é, de fato, senão o exercício de funções do Estado; é o segundo sentido
que Marx e Lenin atribuem ao termo aparelho de Estado — Estado que não é o fundamento do poder político, mas o centro de poder político que pertence a classes determinadas, neste caso à classe ou fração hegemônica.” Em outras palavras, o funcionamento da burocracia corresponde, em última análise, ao interesse político dessa classe ou fração; esse funcionamento se dá, porém, por intermédio da relação complexa entre o Estado e o poder político dessa classe ou fração, e não da relação de pertencimento ou de recrutamento de classe da
burocracia. Se a burocracia, assim, não tem poder de classe próprio, tampouco exerce diretamente o poder das classes a que pertence, e muito menos por 341
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causa desse pertencimento. Isso é patente no caso de uma defasagem entre classe ou fração detentora do Estado e classe ou fração hegemônica; nesse caso, como mostram Marx e Engels em seus textos sobre a Grã-Bretanha, a burocracia exerce não um poder da classe detentora, mas um poder da classe ou fração hegemônica. É muito importante assinalar isso na medida em que se
tenta frequentemente encontrar a relação entre a burocracia e o poder político » da classe ou fração hegemônica, estabelecendo a identidade desta e da classe de que são oriundas as cúpulas burocráticas, seja no sentido fantasista de Wright Mills, seja, num sentido ainda mais fantasista, pela busca de misteriosas e
diferentes relações ocultas de parentesco imediato ou próximo entre essas cúpulas e os membros da classe ou fração hegemônica. Passamos assim ao segúndo aspecto do problema, Mesmo no caso em que
a classe ou fração hegemônica for aquela em que são recrutadas efetivamente as cúpulas da burocracia, em que há, portanto, identidade entre classes ou frações hegemônicas e detentoras, a relação entre a burocracia e o poder político desta nem sempre é determinada por seu pertencimento de classe: ela passa pela intermediação do Estado. Os caracteres de unidade e de coerência próprios da burocracia como categoria específica não são redutíveis, por seu pertencimento de classe, aos da classe detentora que é também, nesse caso, a classe hegemônica, mas dependem de sua relação específica com o Estado e de seu pertencimento ao aparelho de Estado. É precisamente isso
que permite a autonomia relativa do seu funcionamento político no tocante à classe ou fração hegemônica cujo poder ela exerce. A burocracia enuncia, portanto, com efeito, um problema particular.
Graças a essa relação específica com o Estado, a burocracia conquista, no caso de uma identidade das classes hegemônicas e detentora, uma autonomia relativa a respeito desta e, no caso de uma defasagem dessas classes,
coloca-se a serviço dos interesses políticos da classe hegemônica, a despeito de seu pertencimento de classe à classe detentora. Neste último caso, ela sempre tem, contudo, uma autonomia relativa no tocante à classe hegemônica, não por pertencer a uma classe diferente — classe detentora —, mas em
razão de seu caráter de categoria específica por intermédio de sua relação com o Estado. Portanto, assinalo já que não há necessidade, teoricamente, de justificar essa autonomia relativa do funcionamento político da burocracia,
de lhe conceder um poder político próprio, como tampouco é necessário atribuir um poder próprio ao Estado -- não sendo o Estado senão um centro de poder de classe - para justificar sua autonomia relativa a respeito do bloco no poder e da classe hegemônica. 342
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Se o pertencimento de classe da burocracia não é diretamente determinante no que se refere ao seu funcionamento político próprio, nem por isso é indiferente a esse funcionamento. Marx e Engels fornecem-nos certos exemplos em que ele se manifesta, embora geralmente no interior de limites estabelecidos pela relação entre o Estado e as classes hegemônicas. O caso é particularmente surpreendente quando há uma diferenciação entre as classes ou frações hegemônicas e as classes nas quais é recrutada a burocracia, entre as quais a classe detentora. Ora, nesse caso — e regra geral —,
o impacto do pertencimento de classe da burocracia à classe detentora não se manifesta por um poder político próprio dessa classe, em virtude do fato
de que as cúpulas da burocracia são recrutadas em seu seio — poder político diferente daquele que ela detém devido à sua posição na luta de classes. Esse impacto se reflete antes por limites, barreiras de segundo grau que esse
pertencimento de classe das cúpulas da burocracia coloca ao poder político da classe ou fração hegemônica. É a conclusão geral que se pode tirar, com
efeito, das análises de Marx referentes ao aparelho de Estado na Grã-Bretanha - aristocracia de renda fundiária capitalista contra burguesia —, e das de Engels referentes ao aparelho de Estado prussiano — grande propriedade agrária feudal contra burguesia. é É o que se vê aparecer, embora de maneira mais sutil, nos períodos de transição no sentido estrito. Nesse caso, em razão do papel dominante que
incumbe à instância política, da instabilidade particular do poder de Estado e do equilíbrio instável e precário das classes em luta, o pertencimento de classe do aparelho de Estado pode desempenhar um papel determinante a fa-
vor das classes detentoras que não são hegemônicas; não que ele lhes confira, em si, um poder político, mas cria as condições de seu acesso a esse poder. É precisamente sob esse ângulo que Marx vê o aparelho de Estado na França: Mas, sob a monarquia absoluta, durante a primeira Revolução e sob Napoleão, a burocracia era apenas o meio de preparar a dominação de classe da burguesia (sendo a burguesia, como se sabe, desde logo a classe detentora). Sob a Restau-
ração, sob Louis-Philippe, sob a República parlamentar, ela era o instrumento da classe dominante, quaisquer que fossem, aliás, seus esforços para se constituir em
poder independente.” Mas o caso francês é particular. Na transição na Grã-Bretanha, o estabelecimento, particularmente nítido e bem-sucedido, da dominância do M.P.C. opera-se de algum modo a despeito do pertencimento de classe do aparelho
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de Estado (nobreza fundiária). Na transição na Alemanha, o estabelecimento da hegemonia da classe burguesa opera-se, de maneira característica, por
meio do aparelho de Estado que pertence, contudo, à classe da nobreza fundiária. Esses funcionamentos concretos da burocracia são possiveis na medida em que dependem estritamente da relação entre as forças sociais e o papel do Estado durante o período transitório. No entanto, esse pertenci-mento de classe dos aparelhos de Estado de transição continua, aqui também,
a fazer-se sentir na forma de impedimentos e de resistências ao estabelecimento da dominância do M.P.C., no interior dos limites do processo geral da transição; eles variam segundo o papel preciso do Estado nesse processo, e são particularmente nítidos na Alemanha, onde esse papel é muito importante. É, aliás, e voltaremos a esse ponto, a linha teórica que comanda as
análises de Lenin sobre o problema burocrático na URSS (os especialistas burgueses do aparelho de Estado) no estágio inicial da transição. O pertencimento de classe do aparelho de Estado não é somente importante no tocante às relações entre as cúpulas da burocracia e a classe detentora; se, em razão do funcionamento hierarquizado particular que caracte-
riza a burguesia, essas cúpulas têm um impacto decisivo, o pertencimento pequeno-burguês das camadas subalternas desse aparelho, na França e na Alemanha, por exemplo, conjugado com o lugar particular da pequena burguesia nesses países — ao contrário da Grã-Bretanha —, revestiu-se de uma
importância característica. Esse pertencimento de classe das camadas subalternas do aparelho de Estado merece que nos detenhamos nele. Com efeito, ele é uma das causas da extensão particular do aparelho burocrático de Estado. Marx, em O 18 Brumário, À guerra civil na França e em seus textos sobre a Espanha; Engels, em O status quo na Álemanha, e Gramsci insistiram nessa relação
entre a extensão do aparelho burocrático de Estado e a existência das classes - ou frações — da pequena produção — seja da pequena burguesia, do campesinato parcelar etc. —, em uma formação em vias de estabelecimento da dominância do M.P.C. Gramsci, por exemplo, formulava a questão deste modo: “Existe em um país determinado uma camada social numerosa para
a qual a carreira burocrática, civil e militar, seja um elemento muito importante de vida econômica e de afirmação política?”? As razões dessa relação são de ordem econômica, inicialmente: a coexistência dos modos da pequena
produção e do modo capitalista “cria uma superpopulação sem trabalho que, não encontrando lugar nem no campo nem nas cidades, procura, por conseguinte, os postos de funcionários como uma espécie de esmola res-
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peitável e provoca sua criação”º De ordem política: extensão do aparelho
burocrático permitindo às classes dominantes conquistar essas camadas subalternas, transformando-as em classes-apoios. De ordem ideológica: e mais
particularmente a ideologia do fetichismo do poder dessas classes-apoios, vinculada à sua ausência particular de organização política própria, que torna seus membros especialmente aptos a servir como camadas subalternas do aparelho burocrático. No entanto, as razões de extensão do aparelho burocrático pelo pertencimento de classe de suas camadas subalternas não se identificam com as
razões de sua existência e de seu funcionamento decorrentes da posição das classes da pequena produção no campo da luta de classes. Em suma, elas
não se identificam com as razões decorrentes da ação política própria da burocracia a respeito dessas classes. Por exemplo, essa posição necessita, e torna possível, sobretudo em razão das condições de vida econômicas
— isolamento etc. — e da incapacidade de organização política das classes da pequena produção, de um aparelho burocrático que as represente de
maneira particular. É assim esse aparelho que condiciona o apoio dessas classes ao poder dominante por sua ação própria e não, diretamente, o
pertencimento de suas camadas subalternas a essas classes. É preciso ter também em vista, por outro lado, que o funcionamento subalterno pequeno-burguês
desse aparelho
do Estado, em relação de unidade com as
“cúpulas”, varia de acordo com as estruturas do Estado, de acordo, portanto, com o poder de Estado das classes dominantes. Finalmente, a relação entre a burocracia como classe social e as classes
da pequena produção resulta do fato de a burocracia ser o efeito da instância regional do Estado em uma formação social. A burocracia exprime a conjugação concreta, nessa formação, do M.P.C. com os outros modos, que
dão origem às classes da pequena produção. Essa relação depende, portanto, da sobredeterminação dessas classes pelas classes do modo capitalista e por suas relações com o Estado capitalista.
Notas 1
Ver, anteriormente, p. 255.
2
Ver, anteriormente, p. 82.
3
A distinção pode, aliás, ser igualmente encontrada em Weber, Wirtschaft und Geselischaft, HI parte, 6º capítulo, e em Michels. Nas discussões que se seguiram, essa distinção foi, sobretudo, apreendida como referente à burocracia “sistema de transmissão e de
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execução” (burocratismo) e à burocracia em termos de poder (a burocracia propriamente dita). Foi o caso de A, Touraine, “LValiénation bureaucratique”, Arguments, n. 17,
1960; de €. Lefort, “Qu'est-ce que la bureaucratie?” Ibidem; de G. Lapassade, Groupes,
organisations, institutions, 1967, p. 57 ss.; assim como das análises de Socialisme ou Barbarie sob a influência do trotskismo. Uma simples observação aqui: essa corrente
vê o burocratismo como problema geral da organização e relaciona a existência da burocracia & seu próprio poder. Duas concepções que não valem para a distinção marxista | burocratismo-burocracia. Marx, Le 18 Brumaire, p. 344ss., p. 355 ss., assim como La guerre civile en France e suas obras citadas sobre a Grã-Bretanha. Engels, Le statu-quo en Allemagne; La question du logement; o Prefácio a La guerre des paysans; o Prefácio à primeira edição inglesa de Socialisme utopique et socialisme scientifique etc. O tema geral de Marx e de Engels é que a burocracia é a “auxiliar” ou a “representante” das classes hegemônicas. Vimos, por outro Íado, na crítica da concepção do “poder soma zero”, que esses limites ao poder de uma classe não significam por isso, e sem mais, um ganho de poder próprio para a classe que os coloca, neste caso, a classe detentora por intermédio da burocracia. Le 18 Brumaire, p. 348.
Gramsci, em seu texto citado sobre o “cesarismo”. Voltarei à enunciação do problema em Lenin. Marx, Le 18 Brumaire, p. 355.
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Constatamos, portanto, que a análise do problema burocrático supõe o estabelecimento rigoroso das relações entre a categoria específica de burocracia, o burocratismo como sistema de organização particular do «aparelho de Estado, e as estruturas de um tipo de Estado. É necessário então examinar, por um lado, a burocracia no âmbito de um modo
de
produção determinado e de uma formação dominada por esse modo, no caso o modo
capitalista, e, por outro lado, sua inserção no âmbito da
luta de classe dessa formação, problema distinto daquele relativo ao seu pertencimento de classe. Vou me limitar a dar algumas indicações referentes à burocracia e ao
burocratismo no âmbito do M.P.C. e de uma formação capitalista. Seguirei nisso as indicações de Marx e de Engels, levando em consideração as análises de M. Weber, que muito contribuíram para a enunciação das relações particulares da burocracia e do burocratismo com o sistema capitalista, por
um lado, e com a democracia política, por outro. As únicas análises válidas da ciência política posterior sobre o fenômeno burocrático prolongam suas observações. Weber nos fornece indicações úteis, considerando-se as críticas que é possível dirigir-lhe.
Resumamos brevemente as críticas formuladas anteriormente. No tocante à burocracia, a problemática geral de Weber desemboca, ao mesmo
tempo, em um estatuto insuficiente e impreciso do burocratismo, e em um falso estatuto da burocracia. Do burocratismo, inicialmente, na medida 347
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em que estabelece sua relação com o sistema capitalista sob a noção vaga de “racionalidade formal”, conjunto de modelos normativos que regem a
organização dos diversos setores do sistema capitalista. Da burocracia, em seguida: esse grupo social acaba por constituir, para ele, o sujeito-
-criador do poder político moderno e o sujeito do desenvolvimento político, na medida precisamente em que faz dele o sujeito-criador dessas normas de comportamento no nível político.! Assiste-se assim a uma ocultação sistemática da relação entre a burocracia e as classes sociais,
ou mesmo da luta política de classe: a concepção weberiana da burocracia, como sabemos, foi explicitamente formada a fim de combater a da
luta de classes.
|
Reteremos, contudo, principalmente, que Weber estabelece, assim como os clássicos do marxismo, uma relação necessária entre burocra-
tismo-burocracia e o modo de produção capitalista. Embora ele situe indistintamente o fenômeno burocrático nos diversos setores de uma formação capitalista, insiste mais particularmente em sua relação com a forma política do Estado moderno, ou seja, do Estado capitalista. Relação necessária, mas com duas faces: esquematicamente, o fenômeno
burocrático — a burocracia e o burocratismo — parece-lhe indispensável ao funcionamento do conjunto de uma formação capitalista e de suas formas políticas, e, simultaneamente, comportar em si germes importantes de
contradições, manifestas sobretudo no nível político. Ora, a ciência política atual, após as análises desse representante do
funcionalismo que é R. Merton, examina, seguindo Weber, o fenômeno burocrático sob a noção de disfunção O funcionamento da burocracia não constituiria um problema ou um fenômeno político específico a não ser unicamente nos casos excepcionais, ou mesmo “patológicos”, em que seu funcionamento no sistema capitalista uitrapassasse os quadros referenciais de integração desse sistema. Inserem-se nessa perspectiva a quase totali-
dade das análises da sociologia americana sobre a burocracia, segundo as quais seria preciso distinguir entre uma burocracia funcional, eficaz para o sistema, e uma burocracia disfuncional, que se trataria, sobretudo, de corrigir por um reajustamento das “relações humanas” no quadro desse sistema. Weber aparece então como a pessoa mais detestada: se estabeleceu
uma relação entre a existência da burocracia e do burocratismo, por um lado, e o que ele chama a “racionalidade do sistema”, por outro; em suma,
se viu a burocracia e o burocratismo como o quadro de ação mais eficaz 348
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nesse sistema, insistiu também na contradição necessária entre o fenômeno
burocrático e a democracia política, É igualmente verdade que essa contradição está mal situada, e conduz à concepção
de Michels
da “burocracia-classe política” em
sua
relação com a democracia política. No plano weberiano geral, o vício aparece já na relação do burocratismo com o capitalismo estabelecido sob a noção de “racionalidade”. Esta tem, em Weber, um primeiro sentido estrito, quando se refere ao sistema de contabilidade orçamentária da empresa e do Estado capitalista; nesse caso, ela é demasiado restrita
e designa apenas um efeito parcial e secundário das estruturas desse modo de produção. Ela assume com frequência também o sentido muito
vago de “racionalidade” em geral; nesse sentido, a contradição burocratismo-capitalismo torna-se em Weber, tal como o mostrou H. Marcuse”
tirando as conclusões últimas dessa representação, o resultado da racionalidade formal do funcionamento burocrático como “irracionalidade” pesando sobre o sistema. Aliás, não é inútil relembrar que o próprio Marx, nas obras de juventude, opera a crítica da burocracia, e de sua relação com o Estado moderno e com a sociedade burguesa, segundo o tema
“racionalidade-irracionalidade”
próprio
da sua problemática
“da alienação.
De fato, o Marx da maturidade, Engels, Gramsci e Lenin estabelecem simultaneamente a relação necessária do “fenômeno burocrático” — da burocracia e do burocratismo — com o Estado capitalista e uma formação
capitalista, e o caráter contraditório dessa relação. Mais particularmente, a burocracia, como objeto específico da pesquisa teórica, não remete absolutamente a um funcionamento excepcional e patológico do aparelho de Estado capitalista; ela exprime um caráter constitutivo do aparelho de Estado relacionado ao tipo teórico do Estado capitalista. Assim, quando Marx, nas obras de maturidade, Engels e Lenin fazem a crítica da burocracia do aparelho de Estado capitalista como “corpo parasitário”, como corpo “estranho” à sociedade,* não é com a finalidade de circunscrever um caráter excepcional, em uma situação concreta, desse aparelho em uma
formação capitalista. Eles se propõem, de fato, identificar toda uma série de contradições entre essa categoria específica do aparelho de Estado, e
uma formação capitalista, “corpo parasitário” absolutamente necessário ao seu funcionamento, e cuja existência diz respeito ao tipo capitalista de Estado. Essas contradições se situam nas relações do funcionamento da 349
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burocracia com as classes sociais. Elas decorrem, por um lado, do M.P.C. em uma formação, ou seja, das relações entre a burocracia e as classes
desse modo, entre as quais a classe burguesa, e da autonomia relativa da burocracia em face desta; por outro lado, das relações entre a burocracia e as classes dos outros modos de produção de uma formação capitalista, ou
mesmo as classes da pequena produção. A burocracia aparece assim, em sua necessidade e em suas relações a respeito das classes, como o efeito
do tipo capitalista de Estado em uma formação social capitalista, segundo as formas de conjugação do modo capitalista de produção e dos outros modos, e as relações políticas daí resultantes.
A mesma linha teórica será seguida 2 propósito do burocratismo; tratar-se-á de identificar a necessidade e as contradições de um certo sistema
de organização do aparelho de Estado, em suas relações com os modelos ideológicos do modo capitalista e dos modos da pequena produção, ou seja,
com a ideologia burguesa e a ideologia pequeno-burguesa. As contradições serão aqui situadas simultaneamente no próprio seio da ideologia
política capitalista, entre a legitimidade da democracia política e as formas de que a ideologia capitalista se reveste no funcionamento burocrático, e entre esta e o aspecto pequeno-burguês da ideologia que preside ao fun-
cionamento burocrático. Dizer assim que a burocracia e o burocratismo estão em relação com um tipo de Estado, o Estado capitalista, e com as formas concretas desse Estado é ter já, a respeito do fenômeno burocrático, a perspectiva dos clássicos do marxismo: o fenômeno burocrático é um fenômeno especificamente político. Evidentemente, localizado no conjunto de uma formação capitalista, ele apresenta “homologias”, sob seu aspecto de burocratismo como modelo normativo ideológico de organização, com a organização nos diversos setores dessa formação:
empresas-organi-
zação do trabalho, domínio cuitural-“burocratização” da cultura etc. Essas homologias são devidas, nesse caso, à dominância de um modelo ideológico sobre o conjunto de uma formação. Porém a burocracia, no
sentido estrito, designando uma categoria social específica, diz respeito ao seu pertencimento ao aparelho de Estado.
Isso permite localizar os fatores econômicos da burocracia. Esses fatores, referentes às relações de produção capitalistas em relação com as dos outros modos em uma formação capitalista, não têm impacto direto sobre a criação da burocracia. Só têm efeito, seja no que diz respeito a 350
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BUROCRACIA
essa própria burocracia quanto à sua relação com as classes sociais — por
exemplo, ali onde a “superpopulação” das classes da pequena produção as faz procurar os empregos burocráticos como fontes de renda -, seja no
medida em que eles se refletem nas estruturas e nas funções do Estado. O aspecto principal do problema é exatamente, aqui, a extensão característica dos “atributos e das funções”, como diz Marx, do Estado em uma formação capitalista, mais particularmente das funções que dizem
respeito à sua intervenção específica no econômico no tocante a outros tipos de Estado.” Essas funções cobrem, além disso, todo um leque que
vai da percepção das taxas e da extensão do orçamento estatal, elementos cuja importância é assinalada tanto por Weber quanto pelos clássicos do marxismo, até sua intervenção mais direta no econômico, manifesta no
estágio do capitalismo monopolista de Estado. É aí que se encontra, aliás, a questão da propriedade nacionalizada de Estado. O problema merece ser sublinhado, sobretudo em razão das interpretações errôneas que suscitou; entre outras, a tendência “gerencial”, fundada quer numa confusão
das relações de produção com a divisão técnica do trabalho na empresa, e na assim chamada “separação entre a propriedade privada e o controle”
atual, quer numa concepção geral das “organizações”, tendência que viu “no econômico, ideologicamente concebido — organização da empresa etc, -—, os fundamentos da “classe” dos burocratas.
Essa extensão dos “atributos e funções” do Estado capitalista não abrange apenas os econômicos, mas também os atributos e funções po-
líticos e ideológicos desse Estado. Ela é importante para a burocracia, em primeiro lugar, na medida em que determina a extensão numérica do pessoal de Estado. Se é verdade que essa burocracia, por inúmeras razões, pode ser estendida, “sobrenumericamente”, para além do número neces-
sário à realização desses atributos e funções, não é menos verdade que a relação entre a extensão do aparelho de Estado - categoria social - e a do
aparelho de Estado — atributos e funções — é aqui capital. Essa extensão das funções do Estado reveste-se ainda de uma outra
importância, quando corresponde, caso frequente, a um deslocamento da dominância entre as instâncias de uma formação; trata-se de uma situação em que o Estado assume o papel dominante de uma formação capitalista.
Isso influi no funcionamento político da burocracia e no papel desse funcionamento, que cresce com o papel dominante do Estado. Deve-se assim distinguir, no interior de sua relação, entre o impacto da extensão das 351
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funções de Estado sobre a extensão numérica da categoria burocrática, e
o impacto do papel de dominância do Estado no funcionamento político da burocracia, não coincidindo esses dois fatores necessariamente de maneira
exata. Marx e Engels analisam, sob esse duplo aspecto, os aparelhos de Estado e a burocracia na França, na Alemanha e na inglaterra. Na França e na Alemanha, a burocracia tem um papel político ao mesmo tempo particular e importante, em razão do papel dominante que incumbe frequentemente à instância estatal. O impacto da extensão das funções e dos atributos do Estado sobre a extensão da categoria burocrática é particularmente marcado, porém, na França, em razão da extensão do campesinato parcelar: sobre-
determinada pela produção capitalista, sua “superpopulação” é colocada no aparelho de Estado. Em contrapartida, na Grã-Bretanha, a dominância
particularmente bem-sucedida do M.P.€. sobre os outros modos conduz simultaneamente a uma dissolução das classes da pequena produção, e ao
papel dominante do econômico, em suma, ao estabelecimento da matriz típica do M.P.C. na formação social britânica; o papel da burocracia é menos importante, o que faz com que essa categoria específica quase nunca se tenha constituído, na Grã-Bretanha, como força social. Poderíamos evidentemente prolongar estas observações por meio de uma análise da evolução posterior, e diferencial, da burocracia nesses diversos países, e do papel político que desempenhou. No entanto, o estudo da categoria burocrática
em uma formação capitalista não pode se limitar ao problema das funções que incumbem ao Estado capitalista. Essa categoria depende, em primeiro
lugar, das estruturas desse Estado e, por conseguinte, do lugar desse tipo de Estado no conjunto das instâncias do M.P.C. O elemento capital é aqui a autonomia relativa do político e do econômico, que caracteriza o M.P.C. no tocante aos outros modos de produção, por exemplo, ao modo de produção feudal. Particularidade cujo efeito sobre as condições de possibilidade de existência da burocracia, como categoria específica, foi assinalado tanto por Marx quanto por Max Weber. No modo de produção feudal e na relação do econômico
com o po-
lítico que o caracteriza, o exercício das funções públicas derivava dos vínculos pessoais, econômico-políticos, entre seus ocupantes e o monarca, que representava a soberania do Estado. O exercício dessas funções identificava-se, mais particularmente, com o lugar das classes nesse modo,
com seu “estatuto público” como “castas” e com o funcionamento dos direitos feudais. Trata-se do que Weber designava como “administração 352
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CAPITALISTA,
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dos notáveis”: a classe feudal dominante concentra aqui em suas próprias mãos o exercício das funções políticas. Pode-se dizer que, nesse caso, é precisamente o pertencimento de classe, na forma de casta ou de Estado, que determina diretamente a administração do Estado, o que exclui a pos-
sibilidade de uma burocracia funcionando como categoria específica. Isso é, aliás, igualmente nítido no que se refere ao funcionamento do ideológico em uma formação feudal, funcionamento que impede a formação de uma categoria específica de “intelectuais”: trata-se do problema do clero como classe, ou mesmo como casta. Estudou-se mais amplamente, nas análises sobre o Estado absolutista, a passagem dessa situação à burocracia moderna. Essa passagem supõe o
tipo capitalista de Estado, ou seja, uma instância jurídico-política relativamente autonomizada do econômico, e que funda as características concretas
do burocratismo. É a esse “tipo” capitalista de Estado que se refere Marx, nO 18 Brumário,* ao descrever a constituição da burocracia francesa: Esse poder executivo, com sua imensa organização burocrática, constitui-
-Se na época da monarquia absoluta, Os privilégios senhoriais dos grandes proprietários fundiários e das cidades transformaram-se em outros tantos atributos - do poder de Estado, os dignitários feudais, em funcionários remunerados,
e o
mapa heterogêneo dos direitos soberanos medievais contraditórios tornou-se o plano bem regulamentado de um poder de Estado. A primeira Revolução Francesa, que se apresentou com a tarefa de abolir todos os poderes independentes, locais, territoriais, municipais e provinciais, para criar a unidade burguesa da nação, devia necessariamente desenvolver a obra começada pela monarquia absoluta: a centralização, mas também, ao mesmo tempo, a extensão e os atributos
do poder governamental.
Antes de examinarmos o impacto do Estado capitalista no funcionamento da burocracia, detenhamo-nos no segundo aspecto do problema, o do burocratismo. Entendemos precisamente por burocratismo um modo particular
de organização e de funcionamento do aparelho de Estado coextensivo, no caso do Estado capitalista, à categoria burocrática específica. O burocratismo é devido, nesse caso, simultaneamente, às estruturas do Estado
capitalista e ao impacto da ideologia capitalista dominante sobre as regras normativas de organização do aparelho de Estado; trata-se aí de dois fatores relativamente distintos do burocratismo. O impacto da ideologia capitalista dominante sobre o burocratismo reveste-se de várias formas:
353
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
a) uma forma geral, que diz respeito ao próprio caráter constitutivo de toda ideologia, por exemplo, a ocultação específica do saber, manifesta no “segredo” burocrático; b)
formas particulares da ideologia capitalista, que Marx estudou no
fetichismo da mercadoria, e que vão do caráter impessoal das funções burocráticas — constituição ideológica do “indivíduo-pessoa” — até os modelos normativos da divisão do trabalho;
c) formas jurídico-políticas, região dominante da ideologia capitalista dominante. Neste último caso, trata-se, mais particularmente, do impacto da legitimidade burguesa sobre o burocratismo que Marx, nas
obras de maturidade, e M. Weber — a legitimidade “racional-legal” — sublinharam. A burocracia parece, no âmbito dessa legitimidade,
representar a unidade política do povo-nação; ela se apresenta, e pode apresentar-se, como um “corpo neutro” que encarna o interesse geral e cujo funcionamento político no tocante às classes é, assim, sistematicamente mascarado;
d) o impacto da ideologia dominante capitalista, ou mesmo da ideologia pequeno-burguesa, sobre o burocratismo manifesta-se finalmente por
seus efeitos sobre a incultura e a ausência de saber das massas: isso permite precisamente o monopólio burocrático do saber. É assim nítido que o burocratismo do aparelho de Estado, por intermédio, precisamente, de suas relações com a ideologia dominante no conjunto
da formação capitalista, apresenta homologias com os modelos normativos que regulam a organização e a divisão do trabalho nos diversos setores dessa formação: nas fábricas, nas instituições culturais etc.” No entanto,
ele constitui um efeito específico dessa ideologia apenas para o aparelho de Estado, na medida exatamente em que está em relação, no interior das formações capitalistas, com a existência da burocracia como categoria social. Isso, aliás, na medida em que a ideologia se conjuga, nesse domínio, com as estruturas do Estado, para produzir o burocratismo em suas relações com o fenômeno político da burocracia, em suma, a burocracia
em suas relações com a luta política das classes. Ora, se a burocracia constitui uma categoria social específica, é em razão da unidade própria que apresenta em seu funcionamento como grupo social, e de sua autonomia relativa em relação às classes sociais, tanto às
classes a que pertence quanto às classes dominantes. Essas características 354
ESTADO
CAPITALISTA,
BUROCRATISMO,
BUROCRACIA
decorrem, em uma formação capitalista, em primeiro lugar, do burocratismo
como resultante da ideologia dominante e do Estado; em segundo lugar, das relações da luta de classes com esse Estado. Quanto ao burocratismo, sua análise foi feita demasiadas vezes para que insistamos nela. Relembremos muito brevemente certos traços, sem distinguir os que procedem dos traços distintivos do Estado e os que procedem da
ideologia, sem procurar tampouco classificá-los por ordem de importância. Eles foram estudados por Marx, Engels, Gramsci e Lenin, e por Weber: é aqui que as análises deste último são úteis. Pode-se dar a seguinte definição geral: o burocratismo representa uma organização hierárquica por delegação de poder do aparelho de Estado que tem efeitos particulares sobre seu funcionamento. Ele é, regra geral, correlativo:
1. à axiomatização do sistema jurídico em regras-leis abstratas, gerais, formais e estritamente regulamentadas, distribuindo os domínios de
atividades e de competências (Engels, Weber); 2. à concentração das funções e à centralização administrativa do ,
aparelho (Marx, Engels, Gramsci);
3. ao caráter impessoal das funções do aparelho de Estado (Marx, Weber); 4. ao modo de retribuição dessas funções, mediante remunerações fixas (Marx, Weber);
5. ao modo de recrutamento dos funcionários públicos por cooptação ou designação a partir do “topo”, ou ainda a partir de um sistema particular de concursos (Marx, Weber);
6. à separação entre a vida privada do funcionário e sua função pública, sua “repartição” (Marx, Weber);
7. a uma ocultação sistemática do saber do aparelho, ou mesmo ao segredo burocrático a respeito das classes (Marx, Engels, Lenin, Weber); 8. a uma ocultação do saber no próprio interior do aparelho, detendo
suas “cúpulas” as chaves da ciência (Lenin); 9. auma disparidade característica entre a formação científica das “cúpulas” e a incultura das camadas subalternas (Marx, Lenin) etc.
Esse burocratismo da organização do aparelho de Estado acarreta um funcionamento hierárquico estrito por delegação de poderes e de setores 355
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
das funções, uma forma interna particular de distribuição da autoridade e da legitimação a partir do topo, uma perpétua transferência das responsabilidades aos escalões superiores, caracteres frequentemente descritos por Marx, Engels e Lenin, assim como por vários autores. É precisamente o burocratismo que, em primeiro lugar, atribui à burocracia, no funcionamento do aparelho de Estado, seu caráter de unidade, e que a constitui
assim como categoria específica; é ele, fusão da ideologia dominante e das estruturas do Estado capitalista, que permite à burocracia, a despeito das divergências de pertencimento de classe de suas diversas camadas, funcionar como categoria social. É verdade que esse grupo social tem interesses próprios — acesso às funções administrativas como fontes de renda, como quadros de carreira etc. -, mas estes não bastam para constituí-lo em ca-
tegoria específica, por um lado, em razão da disparidade desses interesses entre as diversas camadas da burocraciá e, por outro lado, em razão do fato de que esses interesses explicam, em certa medida, a relação estreita entre a burocracia e as classes dominantes, mas não explicam a autonomia
relativa da burocracia a seu respeito, autonomia essa que contribui para constituí-la em categoria específica.
Notas t 2
4
5
8
A respeito de Weber, refiro-me aqui e no que se segue sobretudo ao capítulo citado do Wirtschaft und Gesellschaft. Merton, “Bureaucratic Structure and Personality”, Social Forces, t. XVIE, 1940, p. 560 ss. O representante típico dessa tendência na França é M. Crozier, Le phénomêne bureaucratique, 1963, p. 233 ss. One dimensional man, 1964. Mais particularmente Marx, Le 18 Brumaire, p. 346, e Lenin a respeito das formações
capitalistas em L'Étar es la Révolution. Eme 18 Brumaire e La guerre civile en France. Max Weber também insiste nesse aspecto do problema. Op. cit., p. 346. Marx assinalou essas homologias, tanto nas suas análises referentes à divisão técnica do trabalho na grande empresa (no primeiro livro de O capital) como nas referentes ao aparelho de Estado “cujo trabalho é dividido e centralizado como numa fábrica” (Le 18 Brumaire, p. 347). As análises mais importantes de Lenin referem-se ao Estado socialista de transição e encontram-se em suas obras a partir de 1918 (sobretudo nos tomos 32-35 de suas obras completas). O problema é que, nesses textos, Lenin entende pelo termo burocracia o “burocratismo”, e é, regra geral, este último termo que emprega paralelamente ao termo “burocratização” (“tendências à burocratização”). A linha teórica geral que
356
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CAPITALISTA,
BUROCRATISMO,
BUROCRACIA
ressalta desses textos é a seguinte: ele considera que, nessa situação de transição, pode existir um burocratismo que não está ligado à existência de uma burocracia como categoria específica, e isso em razão de várias características da transição, seja a ausência de uma classe exploradora, a organização política do proletariado etc. A permanência do “burocratismo” sem “burocracia” é relacionada precisamente por Lenin, por um lado, ao legado ideológico da formação social anterior (da ídeologia capitalista, sobretudo) e à permanência de caracteres do Estado anterior no Estado socialista, entre outros a existência de “especialistas” burgueses “por seu modo de vida e sua ideologia” nos escalões da administração (mais particularmente sobre esses problemas, t. XXXII, p. 160 ss., p. 267 ss., p. 372 8s.; t. 33, p. 372. ss.; t. 35, p. 505 ss.). Essa permanência é, por outro lado, relacionada às consequências econômicas, políticas e ideológicas da presença, na formação russa de transição, do capitalismo de Estado e das classes da peguena produção, ou mesmo da pequena produção camponesa. As análises leninistas, tendo em conta essas observações, podem ser úteis para a formação capitalista, e isso quanto ao impacto, sobre o “burocratismo”, das ideologias capitalista e pequeno-burguesa, e são igualmente úteis no tocante à linha teórica geral de exams do fenômeno burocrático. É capital assinalar aqui que a permanência do “burocratismo” na URSS, na medida em que se refere aos especialistas “burgueses” do aparelho de Estado, não é relacionada por Lenin com seu pertencimento “burguês” de classe nas relações de produção, mas com sua ideologia burguesa: a burguesia como ctasse está quase liquidada, nessa época, na URSS, Essa problemática deve ser estendida à existência da burocracia nas formações capitalistas; nessas formações, a burocracia tampouco se reporta a seu pertencimento de classe, e sim às estruturas do Estado — pois trata-se, aqui, de burocracia — e ao impacto da ideologia.
357
Iv
A BUROCRACIA
E A LUTA
DE
CLASSES
Seo burocratismo e a burocracia estão em relação com o Estado capitalista, isso deve nos remeter ao problema das relações da burocracia com a luta de classes em uma formação capitalista. Somente essa relação pode nos revelar a autonomia relativa da burocracia no tocante às classes dominantes nessa formação que, conjuntamente à sua própria unidade, a constitui em
categoria específica. Nos textos de Marx e de Engels, descobre-se uma linha teórica invariante referente a esse problema: essa autonomia relativa da burocracia a respeito
das classes dominantes é absoluta e exaustivamente determinada pelas relações entre o Estado capitalista e a luta de classes. Não dispondo a burocracia de poder próprio, sua autonomia relativa não é senão a que incumbe a esse
Estado nas relações de poder da luta de classes, poder de Estado detido por classes, visto que o Estado não é, de fato, mais que um centro de poder. É preciso, porém, lembrar aqui a questão da autonomia relativa do Estado capitalista em Marx e Engels: ela é explicitamente relacionada, de acordo
com a única concepção que eles haviam elaborado teoricamente, somente ao equilíbrio entre as forças sociais em presença. Por conseguinte, a autonomia
relativa da burocracia, embora sendo neles estritamente determinada pela autonomia relativa do Estado no tocante às classes, está localizada unica-
mente nas situações que realizam tal equilíbrio. É sobretudo nesse sentido que Marx examina o problema da burocracia, a propósito do fenômeno histórico concreto do “bonapartismo” francês, fenômeno que ele reduz, 359
PODER
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
abusivamente, ao modelo de um equilíbrio de forças. Diz-nos, assim: “a burocracia sob a Restauração, sob Louis-Philippe, sob a República parlamentar, era o instrumento da classe dominante, quaisquer que fossem, aliás, seus
esforços para se constituir em poder independente. Somente sob o segundo Bonaparte o Estado parece ter-se tornado completamente independente” (trata-se aqui da autonomia relativa da burocracia bonapartista no tocante às classes dominantes.) O caso é ainda mais nítido em Engels: Na realidade, também na Alemanha, o Estado ta! como existe é o produto ne-
cessário da infraestrutura social de que provém. Na Prússia - e a Prússia constitui autoridade hoje em dia — existe, ao lado de uma nobreza agrária sempre poderosa, uma burguesia relativamente jovem e sobretudo muito covarde, que, até agora, não conquistou nem o poder político direto como na França, nem o poder mais ou menos indireto como na Inglaterra. Mas ao lado dessas duas classes, há um proletariado
intelectualmente muito desenvolvido que cresce rapidamente e se organiza mais a cada dia. Encontramos, portanto, aqui, a0 lado da condição fundamental da antiga
monarquia absolutista — o equilíbrio entre a nobreza fundiária e a burguesia —, a condição fundamentai do bonapartismo moderno: o equilíbrio entre a burguesia e o proletariado. Mas tanto na antiga monarquia absolutista quanto na monarquia bo-
napartista moderna, o poder governamental real encontra-se nas mãos de uma casta particular de oficiais e de funcionários que se recruta, na Prússia. A autonomia dessa casta, que parece se manter fora e, por assim dizer, acima da sociedade, confere ao
Estado uma aparência de independência ante a sociedade.?
Vê-se claramente aqui que Engels atribui um poder próprio à burocracia, chegando mesmo por vezes a considerá-la como uma classe; obviamente, os dois pressupostos são falsos. O que importa é sua enunciação do problema da autonomia relativa da burocracia. Por vezes, ainda, Engels localiza a
autonomia relativa da burocracia na situação particular de equilíbrio que constitui o equilíbrio catastrófico, como, por exemplo, em seu texto O status
quo na Álemanha: “Esse regime representado pela burocracia é a sintese política da impotência geral. A miséria do status quo alemão consiste prin-
cipalmente nisto, que nenhuma classe foi suficientemente forte até aqui para se constituir em classe representativa dos interesses de toda a nação”? Esse equilíbrio catastrófico aproxima-se de uma outra interpretação de Marx da
autonomia relativa da burocracia no bonapartismo francês, que seria devida ao fato de que “a classe burguesa já havia perdido, e a classe operária ainda não havia adquirido, a faculdade de governar a nação”.
360
A BUROCRACIA
E 4 LUTA
DE CLASSES
No entanto, esses modelos de equilíbrio não bastam para explicar a autonomia relativa do Estado capitalista ante as classes dominantes, tampouco
bastam para explicar a autonomia relativa da categoria específica do aparelho de Estado no tocante a estas. Essa autonomia relativa é um traço constitutivo do tipo capitalista de Estado, portanto dessas formas concretas, mesmo no caso em que não se está de maneira alguma em presença de um equilíbrio das forças. Assim, na medida em que se encontra em Marx o exame (no estado prático) da autonomia relativa do tipo capitalista de Estado ante as classes dominantes, encontra-se, de uma maneira diretamente determinada, o da autonomia relativa da burocracia ante estas, mesmo no caso de uma situação
concreta de não equilíbrio das forças. Não faço aqui mais do que remeter o leitor ao capitulo precedente, referente aos fatores da autonomia relativa
desse tipo de Estado e de suas formas concretas nas formações capitalistas. As análises de Marx sobre a burocracia coincidem, precisamente, com suas
análises do Estado capitalista em suas relações com as classes, acentuando o caráter de unidade próprio da burocracia no tocante a essas classes, cuja causa é a combinação das estruturas do Estado e da ideologia dominante, mais particularmente da ideologia jurídico-política. -Essa unidade da burocraciaé posta em relação, através disso, com o con-
junto dos níveis da luta de classes em uma formação capitalista, simultaneamente das classes do modo capitalista e das classes dos modos de produção não dominantes dessa formação. Ela é posta em relação, em primeiro lugar, com o efeito de isolamento, característico da luta econômica da burguesia e
da classe operária, e com o isolamento particular do campesinato parcelar e da pequena burguesia. Esse isolamento permite à burocracia de Estado apresentar-se como unidade política, representativa da unidade do povo-nação. Marx insiste nesse ponto, em suas análises da relação particular entre a burocracia e o campesinato parcelar: A propriedade parcelar, por sua própria natureza, serve de base a uma burocracia onipotente e incomensurável. Ela cria por toda a superfície do país a igualdade do nível das relações e das pessoas e, por conseguinte, a possibilidade de um poder
central exercer a mesma ação sobre todos os pontos da massa.
Engels insiste igualmente nesse ponto, em suas análises da relação entre a burocracia e a pequena burguesia alemã com seus “pequenos interesses locais, sua organização local nas diversas cidades, suas lutas locais e seus progressos locais”.º No caso da conexão burocracia-burguesia, trata-se da
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PODER
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E CLASSES
SOCIAIS
relação entre a burocracia e os “burgueses comuns”, prontos a sacrificar seus
interesses privados a seus interesses gerais de classe -- efeito de isolamento —, por um lado, e de sua relação com uma burguesia profundamente dividida em frações de classe, por outro. No nível da luta política de classe, trata-se da relação entre a burocracia e a luta das classes dominantes e das frações dessas classes, o que conduz ao problema de sua organização política, tornando-se a burocracia um fator
representativo de sua unidade política, por intermédio do Estado que desempenha o papel de fator dessa organização. Na relação da burocracia com as classes da pequena produção, trata-se de sua incapacidade constitutiva
para se organizar politicamente, o que acarreta seu fetichismo do poder e o papel da burocracia como representativa de sua unidade: o campesinato
parcelar e a pequena burguesia são “tipicamente” representados no nível político pelo corpo burocrático que, por intermédio do Estado, os mantêm em sua desorganização política. Em suma, constata-se que a autonomia relativa da categoria burocrática
a respeito das classes dominantes se refere à do tipo capitalista de Estado e de suas formas nas formações capitalistas. Retomando, a rigor, nossas con-
clusões sobre a autonomia relativa do Estado, pode-se dizer que a própria burocracia, como categoria social, se reveste dessa autonomia, na medida
em que reflete precisamente o poder político das classes dominantes, e representa seus interesses nas condições particulares econômicas, políticas &
ideológicas, da luta de classes nessas formações. Essas observações permitem elucidar um certo número de questões.
a) A de certos aspectos da relação entre burocratismo, como sistema de organização do aparelho de Estado, e formas de dominação política da burguesia, questão que, na discussão ideológica, foi centrada no tema da “disfuncionalidade” do aparelho burocrático. De fato, essa questão não é, por um lado, de ordem técnica — de eficácia ou de não eficácia técnica —, e sim eminentemente política, e, por outro
lado, ela não pode ser apreendida sob a noção de disfunção. O que se torna evidente nas análises de Marx e de Engels é que o burocra-
tismo, embora sendo um efeito político necessário da dominância do M.P.€C. em uma formação, apresenta toda uma série de contradições com-suas formas de dominação política. A rigor, trata-se aqui das
contradições inerentes tanto à ideologia política dominante quanto às estruturas do Estado capitalista, como mostrou Engels, por exemplo, 362
A BUROCRACIA
E 4 LUTA
DE
CLASSES
entre o segredo burocrático, necessário ao aparelho desse Estado, e
o princípio de publicidade, que caracteriza ao mesmo tempo a ideologia política burguesa — opinião pública etc. — e o Estado “representativo”” ou, ainda, como mostrou Marx, entre o funcionamento
do poder executivo, recobrindo a burocracia, e o funcionamento da representatividade parlamentar. No entanto — e este é um aspecto pelo qual se passa geralmente demasiado depressa —, essas contradições decorrem também das relações entre
o burocratismo e as classes da pequena produção, na medida em que esse efeito — burocratismo e burocracia —, de um tipo de Estado sobre a luta de
classes, se reflete em uma formação social. Essa relação, produtora dessas contradições, é tão evidente, que Engels chegará até a construir todo o seu texto em questão sobre a “incompatibilidade” entre a dominação política da burguesia e as formas políticas “burocratizadas”.º Aliás, Lenin vê igual-
mente no burocratismo do Estado socialista de transição ao mesmo tempo o legado ideológico do capitalismo e o impacto da ideologia pequeno-burguesa. Ora, esse aspecto da relação entre o burocratismo e as formas políticas de dominação da burguesia remete: 1. Às contradições entre a ideologia capitalista dominante e a ideologia pegueno-burguesa no aparelho de Estado capitalista. Essa ideologia pequeno-burguesa é necessária ao funcionamento do burocratismo no aparelho de Estado capitalista. O fetichismo do poder, característico
dessa ideologia, contribui para a constituição das regras normativas, que fazem operar a subordinação hierárquica nas camadas subalternas do aparelho de Estado. Porém, esse fetichismo ameaça o conjunto do aparelho, e entra então em contradição com a ideologia capitalista que domina aí. É o caso, por exemplo, da personalização por privilégios dos cargos em contradição com seu caráter impessoal, do fatalismo
e da ausência de ação em contradição com a ideologia da eficácia ete. 2. Às contradições entre o tipo capitalista de Estado e as caracteristicas que, em uma formação, lhe são impostas pela existência das
classes da pequena produção. É o caso da “hipertrofia” do aparelho de Estado na França, devida à existência do campesinato parcelar e
da pequena burguesia, à origem, entre outras coisas, das contradições entre o poder executivo e a representatividade parlamentar nesse país.
363
PODER
POLÍTICO
E CLASSES
SOCIAIS
Essas considerações permitem a elucidação de um problema “paradoxal”
do fenômeno burocrático, fenômeno tipicamente capitalista: o impacto do burocratismo é tanto mais importante, as possibilidades de a burocracia se constituir em força social são tanto maiores, quanto a dominância do M.P.C.
sobre os outros modos for menos franca e nítida em uma formação, como comprovam os casos francês e alemão, ao contrário daquele da Grã-Bretanha. b) Vários autores, entre os quais Weber e Michels, assinalaram por outro lado o que designam como “contradição” do burocratismo e das formas da “democracia”. Trata-se da tendência que estabelece relações entre o burocratismo e as formas políticas “totalitárias”, concebidas
como radicalmente distintas da “democracia” em geral. Mais: a burocracia é aí frequentemente considerada como o sujeito-criador do burocratismo — das normas do funcionamento burocratizado e do poder institucionalizado — e, assim, como o fundamento das formas institucionais totalitárias. Seria preciso, para analisar os fenômenos
reais que essa problemática ideológica mascara, desmembrar uma série de problemas distintos, deixando de lado a questão das contradições entre o burocratismo e a democracia socialista da ditadura do
proletariado, tal como é enunciado por Marx em seus textos sobre a Comuna de Paris, e por Lenin a propósito do Estado socialista de
transição, pois essa matéria é colocada num contexto completamente diferente daquele que nos ocupa aqui. O que dizer do problema das relações entre o burocratismo e a democracia burguesa, ou mesmo das formas institucionalizadas de dominação política da burguesia? Do ponto de vista da legitimidade, enfoque essencial para a análise do burocratismo, vê-se que, de fato, a legitimidade própria da
burocracia, ou seja, o impacto da ideologia política dominante no funcionamento do aparelho de Estado, faz parte do tipo de legitimidade burguesa, Nesse sentido, o burocratismo constitui um traço característico do tipo dessa
legitimidade, tanto quanto a burocracia representa uma característica do tipo capitalista de Estado. É verdade que existe uma legitimidade própria do aparelho de Estado, que não é senão a característica do burocratismo. A legitimidade desse aparelho de Estado, em razão de seu funcionamento hie-
rárquico por delegação de poder e do fetichismo do poder, contém, por exemplo, elementos carismáticos levando à autoridade suprema de um “chefe” — topo da pirâmide estatal, tendências ao isolamento do aparelho a respeito 364
À BUROCRACIA
E 4 LUTA
DE CLASSES
da representatividade popular ete. Essa legitimidade própria da burocracia é, porém, apenas uma forma particular da legitimidade burguesa, aquela que caracteriza a dominância do executivo. A legitimidade burocrática não é de modo algum contrária à legitimidade típica do Estado capitalista, tampouco as formas de Estado dominadas pelo executivo, entre as quais as diversas
formas bonapartistas-cesaristas, são contrárias às formas típicas da dominação burguesa, ou seja, às instituições da democracia política. Podemos, no entanto, assistir a toda uma série de contradições e de defasagens entre a
legitimidade do aparelho de Estado e a de uma forma de Estado com dominância parlamentar, ou ainda entre a legitimidade de uma forma de Estado com dominância do executivo e a da formação social, quando a forma de
legitimidade que domina nessa formação é a legitimidade parlamentar. c) No caso de uma forma de Estado capitalista dominada pelo executivo,
que está de acordo com a forma de legitimidade dominante em uma formação, existe uma coincidência entre a legitimidade interna do aparelho burocrático e a legitimidade no conjunto da formação. isso enuncia, com uma acuidade particular, a questão do papel próprio da burocracia em uma forma concreta de Estado dominada pelo
executivo. Com efeito, se tal papel existe, é no impacto do fenômeno político-ideológico do burocratismo que se deve procurá-lo, mais do que em uma burocracia que defende seus interesses econômicos próprios, sustentando a dominância do executivo. Nunca será demais repetir que a burocracia é constituída como uma categoria específica
por causa de sua relação com o político e o ideológico. isso depende de a burocracia constituir ou não, na conjuntura concreta, uma força social. Duas observações prévias: 1. A primeira é bastante evidente: não sendo a burocracia uma classe
ou uma fração de classe, não pode, de maneira alguma, ter um papel principal na constituição de uma forma de Estado. No caso de um Estado dominado pelo executivo, e que corresponde à legitimidade dominante de uma formação, essa forma se estabelece a partir do con-
junto dos fatores da luta de classes. É a mesma coisa no caso de uma defasagem entre essa forma de Estado e a legitimidade dominante em uma formação, defasagem que não é então exclusivamente, nem
mesmo principalmente, redutível à existência da burocracia. 365
PODER
2.
POLÍTICO
E CLASSES SOCIAIS
A segunda observação é menos evidente: se a burocracia, enquanto
tal - a partir do momento em que pode constituir um objeto teórico —, é uma categoria específica, se ela possúi uma autonomia relativa e uma unidade própria, não é por isso - como tampouco, aliás, as
classes ou frações autônomas de classe - uma força social. Enquanto categoria específica, ela pode, em uma conjuntura concreta
— Lenin insistiu nisso no caso do Estado capitalista -, vir a sê-lo. Constituindo então uma força social, tem um papel próprio na ação
política, o que não lhe confere por isso um poder próprio — o que pode ocorrer, além disso, também a classes-forças sociais, como, por
exemplo, à classe operária ou eventualmente às classes-apoios, que podem constituir forças sociais sem, no entanto, ter poder próprio. A constituição da burocracia em força social depende da conjuntura. Depende, por exemplo, do papel, dominante ou não, do Estado no conjunto das instâncias — o que se produziu sobretudo na Alemanha, em menor grau na França, quando a burocracia foi uma força social no qua-
dro geral do papel dominante que frequentemente incumbiu ao Estado. Depende também da situação concreta da luta de classes, Por exemplo,
as situações assinaladas de um equilíbrio geral das forças em presença ou, sobretudo, de um equilíbrio catastrófico, operando no quadro de um Estado capitalista, criam circunstâncias favoráveis para a constituição da burocracia em força social. Mesma coisa nos casos de desorganização
política particular das classes dominantes — crise de representatividade partidária na cena política —, combinados ou não com situações de equibrio, ou nos casos de constituição em forças sociais das classes da pe-
quena produção, do campesinato, mais particularmente do parcelar, e da pequena burguesia; é que, neste último caso, a burocracia se constitui em força social funcionando como a “representante” política dessas classes; ou ainda, nos casos de crise geral de legitimidade em uma formação. Em suma, trata-se aí de um conjunto de fatores que, em sua combinação
sempre original no interior de uma formação, podem permitir à burocracia funcionar não simplesmente como categoria específica com unidade própria e autonomia relativa, mas como força social efetiva. Essa existência da burocracia como força social pode ser decifrada no âmbito de uma correlação com as formas de Estado capitalista. Ela é
particularmente nítida nessas formas históricas particulares de Estado capitalista que são as formas cesaristas, tais como os Impérios dos dois 366
À BUROCRACIA
E A LUTA
DE CLASSES
Bonaparte na França. Nesses casos, a burocracia exerce sua função de força social, que lhe advém da própria conjuntura, contribuindo eficazmente para a constituição e o apoio dessas formas de Estado. A burocracia-força social tem, nesses casos, um papel próprio; trata-se do apoio que traz, por intermédio do burocratismo que caracteriza sua legitimidade interna, a essas formas particulares de Estado. Marx, no /8 Brumário, mostra-nos
bem o apoio particular, pela intermediação do burocratismo, do aparelho de Estado na França a Louis Bonaparte. Esse apoio é principalmente con-
dicionado pelo burocratismo, e não pelos simples interesses materiais dos membros do aparelho de Estado.
DORSO me
Notas Le 18 Brumaire, p. 348. La question du logement, cap. 15, 82. Engels, Der status quo in Deutschland, p. 26. Le I8 Brumaire, op. cit., p. 355, Engels, Der status quo in Deutschland, op. cit. p. 22, Cf. também Lenin: “Existe entre * nós uma outra causa econômica do burocratismo:
é o isolamento, a disseminação dos
pequenos produtores, sua miséria, sua incultura, a ausência de estradas, o analfabetismo,
a ausência de trocas entre a agricultura e a indústria, a falta de ligação, de ação recíproca entre elas” (Giuvres, t. AXXIL, p. 227).
6
Essas análises encontram-se, sobretudo, no conjunto dos textos de Marx sobre a França. Notemos que, segundo as formações sociais consideradas, essa relação típica de “representação” das classes da pequena produção pelo aparelho de Estado pode cristalizar-se num “corpo de Estado” diferente do da burocracia no sentido estrito — por exemplo, o exército. É notadamente o caso de numerosos países da América Latina; ver, nesse sentido, José Nun, “Amérique Latine: La crise hégémonique et le coup dÉtat militaire”,
Sociologie du travail, n. 3, 1967. Trata-se de Der status quo in Deutschland, texto de Engels já mencionado. “A burocracia foi instituída para governar pequeno-burgueses e camponeses”, Der status quo in Deutschland, op. cit. p. 30.
367
Titulo
Poder político e classes sociais
Autor
Nicos Poulantzas
Tradução Revisão récnica Coordenação Editorial Secretário gráfico Preparação dos originais Revisão Editoração eletrônica Design de capa "Formato
Papel
Tipologia Número de páginas
Maria Leonor F. R. Loureiro
Danilo Enrico Martuscelli
Ricardo Lima Ednilson Tristão Lúcia Helena Lahoz Morelli Vinícius Emanuel Russi Vieira Vitória Bonuccelli Heringer Lisboa Aline Martins | Sem Serifa Ana Basaglia 16x23em Pólen soft 80 g/m? — miolo Cartão supremo 250 g/m? - capa Times New Roman 368
ESTA OBRA FOI IMPRESSA NA GRÁFICA AS PARA A EDITORA DA UNICAMP EM OUTUBRO DE 2019.
COLEÇÃO MARX 21 Esta coleção pretende contribuir para o estudo e a renovação do marxismo.
Publica
obras
que
obtiveram
re-
percussão no exterior, mas que permanecem desconhecidas do público brasileiro. Excepcionalmente,
publica
também
para
obras já traduzidas
português,
O
mas que se encontram fo-
ra de catálogo e são de difícil acesso para o grande público.
Nicos PouLANTZAS foi um sociólogo marxista grego radicado em Paris. Lecionou na Université de Vincennes, atual Université de Saint Denis (Paris VIID, e publicou, além de Poder político e classes sociais,
outras obras de grande repercussão como Fascismo e ditadura, (Às classes sociais no capitalismo de hoje, À crise
das ditaduras e, aquele que foi o seu último livro, Estado, poder e
socialismo. Foi membro do Partido Comunista Grego. Faleceu em 1979 na capital francesa.
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muitas,
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fundamentais: a análise da instituição do Estado de tipo , capitalista ea elaboração do conceito de bloco no poder. lo mostra que o Estado de tipo capitalista, diferentes. "mente do Estado fe Ao fa ita O feudal, logs fio afe(o "como uma pec de classe responsável pela organt'Zação da dominação de Se mas, sim, como um Es. tado de todo o povo”. O Estado capitalista não aparéce -
como aquilo que é, mas sim como algo que parece ser..
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de: “todo. o povo”,
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instituições:
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são: inclusive porque estão indissoluvelmente vinculadas: “à organização da economia e da sociedade:
Do Prefácio-a edição brasileira” Armando Boito Jr.
DIM!
ISBN 978-85-268-1488-2
788526!81488
venia eoltoraunicamp.oôm.br,
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