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Portuguese Pages 183 [93] Year 2000
Ern tempos de cultura mundializada.. se nao se pode 'afirmar que todo 0 mundo gosta de mUska, pode-se dizer com tranquilidade ,que grande parte da populacrao consome mUska. Do conjunto das mercadorias produzidas pela in.dUstria cultural, a mUska se distingue pela grande inte~o que estabelece com os media. Ai6n de poder ser ouvida no toca-discos (ou similar) de cada urn a partir da escolha do que se quer ouvir, ela escl presente no radio, na televisao, no cinema, na publicidade, nos computadores, em manifesta¢es da vida social de todo 0 tipo. 0 cidadao do mundo, como simples transeunte, escl exposto a uma quantidade impressionante de cancr6es que .emanam de inlimeros p6los difusores. Os donas da voz nos oferece urna analise abrangente e inedita do funcionamento da indUstria fonogclfiq:biasileira - que espelha a sua forma mundial de amacrao - enos permite compreender os lI}eandros da producrao dessas mercadorias culmC;Us tao especiais; Destina~se a cientistas sociais, comunic61?gos, artistas, mUsicos, empresarios, produtores muSicais, tecnicos, consurnidores ou cidadaos interessados em mUsica. livro avalia os ertormes avanc;os da indUstria fonografica no mercado mundial, examinando sua organizacrao administrativa, seus criteriosde. producrao, seus numeros cada vez mais astron6micos, suas fus6es e ate seus produtos em serie ou diferenciados. Trata desse tenia no contexto brasileiro das decadas de 1970, 1980e 1990 e renQva as informa¢es de trabalhos ja produzidos sobretudo nos anos , 1970, quando a realidade da ,chamada indUstria cultural era considetavelmehte distinta.
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Marcia Tosta Dias
It3APESP
~,~~~~ EDITORIAL
Copyright © 2000 by Marcia Tosta Dias
A voz do dono e a dono da voz Chico Buat-que de Hollanda
Prepara~ao
Maria Cristina Cupertino
Ate quem sabe a voz do dono
Revisao Daniela finkings Ana Paula Elias
Gostava do dono da voz
Casal igual a n6s, de entrega e de abandono De guerra e paz, contras e pr6s
Capa
Fizeram bodas de acetato - de fato Assim como os nossos av6s
Ivana finkings Antonio Carlos Kehl
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(Ilus[racao: Biblloteca CJentfjtca Life - Mdqulnas © 1969 by Time Inc.)
dono prensa a voz, a voz resulta urn prato
Que gira para todos n6s
o dono andava com outras doses
Editora,ao eletr6nica Antonio Carlos Kehl
A voz era de urn dono s6 Deus deu ao dono as dentes, Deus deu ao dono as nozes
Produ,ao grlifica
As vozes Deus s6 deu seu d6
Sir/ei Augusta Chaves
Porem a voz ficou cansada ap6s Cern anos fazendo a santa
Fotolitos OESP
Sonhou se desatar de tantos n6s
Impressao e acabamento Palas Athena
Nas cordas de outra garganta A louca escorregava nos len~6is Chegou a sonhar amantes E, rouca, regalar os seus bem6is
ISBN 85.85934.53.0
Em troca de alguns brilhantes Direitos de reprodu~o cia letra A voz do dono e 0 dono da voz gentilmente cedidos por Chico Buarque de Holanda. ©1981 Marola Edi,oes Musicais Ltda.
Enfim, a voz firmou contrato E foi morar com novo algoz Queria-se prensar, queria ser um prato Girar e se esquecel', veloz
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
au reproduzida sem a expressa
autoriza~ao
Foi revelada na assembleia - ateia Aquela situa~ao atroz
da editora.
A voz foi infiel trocando de traqueia E a dono foi perdendo a voz
I' edi,ao: junho de 2000 Todos os direitos reservados
a:
E a dono foi perdendo a Iinha - que tinha E foi perdendo a luz e alem
BOITEMPO EDITORIAL ]inkings Editores Associados Ltda.
E disse: Minha voz, se v6s nao sereis minha V 6s nao sereis de mais ninguem
Av. Pompeia, 1991 - Perdizes Sao Paulo - SP - 05023-001 Tel. (xx11) 3865 6947 - Fax 3872-6869
(0 que e bam para 0 dono e bom para a voz)
E-mail [email protected]
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Sumiria
Prefacio, por Renato Ortiz .................................................. 11 Introdu~ao
........................................................................... 15
Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 1. A atualidade do conceito de industria cultural ...... ......... 23 2. Industria fonografica e mundializas;ao da cultura ........... 31 3. Sobre musica popular ....................................................... 45 Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 1. Os anos 70 e 0 mercado internacional-popular .. ...... ...... 51 2. Estrutura e organizas;ao das Majors no Brasil: anos 1970 e 1980 .................................................. 65 Os anos 90 e as mudanps na industria fonografica brasileira 1. Ainda 0 processo de produs;ao: o produtor musical........................................................... 91 2. A terceirizas;ao ................................................................... 102 3. Formas da mundializas;ao da industria fonografica ........ 116
o espas;o da produs;ao independente 1. Pressupostos ...................................................................... 2. Brasil: os anos 80 e a atitude independente .................... 3. Tinitus: uma indie em tempo de globalizas;ao ................ 4. Baratos afins: 0 alternativo como segmento ....................
125 131 141 151
fndice de quadros, tabelas, graficos e organogramas
Aspectos da difusao ............................................................ 157 Considera~oes
finais ........................................................... 171
Post-scriptum ....................................................................... 175 Bibliografia .......................................................................... 179 Entrevistas realizadas ........................................................ 183
Quadro I. Fus6es na industria fonografica - 1928/1945 ........... 36 Quadro II. Fus6es na industria fonografica - 1969/1993.......... 43 Tabela I. Evolu~ao da porcentagem de domicilios com radio e TV: Brasil - 1970/1996 ..................................... 52 Grafico I. Porcentagem de investimento publicitario por meio (via agencias): Brasil: 1963/1988 ........................... 53 Tabela II. Venda de produtos da industria fonografica: Brasil - 1968/1980 ................................................................... 55 Tabela III. Venda de compactos simples e duplos: Brasil - 1969/1989 ................................................................... 56 Organograma I. Estrutura da grande empresa fonografica: Brasil - Anos 70/80 .................................................. :.. ............ 71 Quadro III. Companhias fonograficas com fabrica e estudio: Brasil - Anos 70 ...................................................................... 74 Tabela IV. Venda de produtos e faturamento da industria fonografica: Brasil - 1982/1990...... ................ .... .... ................ 78 Tabela V. Venda de produtos e faturamento da industria fonografica: Brasil - 1989/1995 .............................................. 106 Tabela VI. Evolu~ao do mercado mundial de compact-disc - 1983/1995 ...................................................... 107 Organograma II. Estrutura da grande empresa fonografica - Brasil: anos 90 .................................................. 112 Tabela VII. Numeros do selo Tinitus 1994/1995 ....................... 149 Tabela VIII. Investimento publicitario por meio: Brasil - 1990/1995 ................................................................... 160
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Preficio
Sabemos, 0 Brasil e um pais de grande tradi~ao musical. Uma diversidade de ritmos, uma pluralidade de generos musicais, uma rica expressao de musica popular, instrumental e de canto, constituem 0 seu legado. Dinamicamente, ao sab~r da criatividade de seus. agentes, ela se refaz constantemente diante das diferentes circunstancias hist6ricas que a envolvem. 0 estoque do passado, fecundado pelas influencias do presente, e desta forma renovado, reinterpretado, recriado. Entretanto, apesar deste dinamismo, quando se confronta esta tradi~ao musical aos estudos que sobre ela foram feitos, constata-se a existencia de um hiato. Longe de constituir um campo de estudo bem delimitado, como acontece com outras especialidades nas Ciencias Sociais, observa-se que a reflexao sobre a musica popular brasileira encontra-se ainda restrita aos music610gos e a um pequeno setor das faculdades de comunica~ao. Tanto a Sociologia, quanta a Antropologia e a Hist6ria, ate recentemente, manifestaram pouco interesse pela problematica em questao. Outros temas como Estado, sindicatos, partidos, industrializa~ao, comunidade, mundo rural, desfrutavam de uma legitimidade inquestionavel. Talvez seja possivel vincular esta lacuna ao desenvolvimento dos estudos sobre a "cultura de massa" no Brasil (as aspas sao propositais). Em A moderna tradi('ao brasileira tive a oportunidade de ressaltar que ha no meio academico um relativo silencio em rela~ao as industrias culturais. Esomente nos anos 70 que surge um conjunto de trabalhos que se voltam para a compreensao dos meios de comunica~ao. Mesmo assim, as Ciencias Sociais vem se ocupar tardiamente do tema, apenas no final da decada. No caso da industria fonografica pode-se acrescentar ainda um outro elemento: dentre os meios de comunica~ao, 0 radio e a televisao foram privilegiados, deixando em segundo plano os aspectos relativos a parte fonografica. Aesta fragillegitimidade do tema se agregam outros fatores. Muito do que se escreveu sobre musica popular brasileira retoma 0 velho esquema, ja criticado por muitos, de uma
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Prefkio
Os donos da voz
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certa hist6ria da arte. 0 enfoque fixa em demasia 0 artisra considerado como 0 demiurgo da pr6pria explica~ao sociol6gica. 0 narcisismo mediatico vern acrescentar a esta interpreta~ao ingenua, herdada do seculo XIX, uma serie de problemas. Como 0 artisra e 0 ponto de partida do star-system a explica~ao se encerra na sua Figura ou no testemunho e reflexoes que ele e os jornalistas fazem de sua produ~ao. 0 trabalho de Marcia T. Dias pertence a uma nova flora~ao de estudos que deliberadamente escolhe 0 campo da musica popular como uma problematica legitima e procura trata-la dentro de uma perspectiva que escapa as armadilhas da tautologia do "eu artistico". A musicalidade dos sons e dos arranjos, a poesia das letras, a entona~ao da voz fazem parte de urn campo de organiza~ao social, cultural e economica, no qual a criatividade individual se encerra e se desenvolve. Criatividade dificil, negociada, mediada pela tecnica e pelas leis de mercado. Os donos da voz tern 0 merito de nos introduzir no panorama do mundo contemporaneo. A musica popular brasileira, produzida e . difundida nos padroes da industria cultural dos anos 70, entra neste seculo que se inicia marcada pela globaliza~ao economica e pela mundializa~ao cultural. Ate recentemente podia-se discutir a problematica da cultura popular em termos exclusivamente nacionais. Por exemplo, 0 debate que se fez em torno do samba durante 0 Estado Novo, da bossa-nova nos anos 50/60, do tropicalismo no final da decada de 60. Em todos esses momentos 0 tema da identidade nacional se impunha. 0 processo de mundializa~ao da cultura desloca a discussao para urn outro patamar. A pr6pria no~ao de espa~o nacional ja nao pode ser definida como algo univoco e permanente. Nos anos
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0 rock era visto como uma
musica "alienada", "estrangeira",
uma manifesta~ao do "imperialismo" ou do "colonialismo". Seria dificil manter a mesma visao das coisas. Torna-se mais preciso dizer que o rock constitui-se numa cultura internacional-popular, cuja legitimidade contrasta com as musicalidades nacionais, regionais e etnicas. 0 embate rock x MPB se estrutura portanto dentro de outros criterios. A rigor, 0 pr6prio p610 MPB ja nao possui a mesma consistencia. Nele uma diversidade de generos e de interesses se chocam. Existem padroes bern ajustados a demanda de mercado, por exemplo as musicas compostas e veiculadas pelas telenovelas, e outros, como 0 da musica instrumental, que valorizam a cria~ao fora de urn contexte ime-
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diatamente comercial. A oposi~ao que existia entre nacional x estrangeiro e redefinida externa e internamente. Num mundo no qual a pr6pria no~ao de espa~o se transformou, a rela~ao entre internol externo, aut6ctone/alienigena, toma uma nova configura~ao. Mas a globaliza~ao traz com ela uma outra dimensao, a economica. 0 mundo do entretenimento, ao se globalizar, requer a reestrutura~ao das grandes empresas. Para atuar num mercado desta dimensao elas devern se tornar mais flexiveis, terem capacidade financeira e tecnol6gica, e sobretudo, constituirem-se em grandes oligop6lios que possam reduzir os concorrentes a uma posi~ao de desvantagem. 0 setor fonografico e certamente uma das atividades mais expressivas deste movimento de transnacionaliza~ao. Nele ocorre uma concentra~ao de poder em escala sem precedentes. E sempre possivel relativizar as coisas, lembrando, por exemplo, que as transnacionais fonograficas operam de forma distinta da televisao ou do cinema. Seu produto e sempre a musica local. Com as novas conquistas tecnol6gicas houve ainda uma diversifica~ao da produ~ao. Urn pequeno estudio, com um minimo de recursos tecnicos, e capaz de produzir um CD. Entretanto, nao se pode esquecer que a politica de difusao, que implica em acesso a televisao, ao radio, revistas e jornais, assim como um investimento importante em propaganda e marketing, e definida fora do ambito desses estudios. Dito de outra forma, a concentra~ao desses oligop6lios prescinde da propriedade dos "meios de produ~ao": 0 que importa e o controle dos canais de distribui~ao e 0 acesso publico ao mundo da midia. 0 caso brasileiro nao escapa as imposi~oes desta l6gica de mercado. A criatividade do letrista, do compositor, do arranjador, do musico, e permeada pelas injun~oes de carater comercial. E possivel caracterizar a posi~ao do artista e da empresa recorrendo a dois conceitos cunhados por Michel De Certau. Ele denomina de "estrategia" o calculo das rela~oes de for~a que se torna possivel a partir de um "sujeito" (empresario, proprietario, institui~ao cientifica etc.) que se situa num espa~o especifico. Toda estrategia vincula-se a uma base territorial a partir da qual ela analisa e expande 0 seu poder. Existe assim uma clara distin~ao entre a institui~ao que aplica uma determinada estrategia e 0 objetivo a ser atingido. De Certau reserva 0 termo "tatica" para os sujeitos individuais para os quais 0 calculo nao pode contar com um lugar pr6prio. A tatica possui como lugar 0 lugar do outro, seu alcance e sempre local. No fundo ela e uma artimanha para
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Os donos da voz
Introdu~ao
reverter 0 poder das institui~oes, mas situando-se sempre no seu raio de a~ao. Eu diria que 0 artista opera atraves da tatica e a industria . fonografica atraves da estrategia. Para essas 0 dlculo pressupoe uma politica globalizada de a~ao, 0 aproveitamento das musicalidades 10cais e um controle efetivo do mercado fonografico. Resta ao artista jogar dentro do "Iugar do outro" procurando, na medida do possivel, subverte-Io a seu favor; sua perspectiva de a~aq e porem parcial e individualizada pois ele deve se conformar a posi~ao que de antemao Ihe foi atribuida neste jogo de for~as desiguais.
o estudo da cultura nas sociedades contemporaneas tem apresentado alguns desafios as ciencias humanas. A grande velocidade com que mudanps sao implementadas, no ambito da produ{'ao e do consumo, tem dificultado a apreensao, analise e compreensao das rela~oes culturais que se estabelecem a partir da sofistica~ao tecnica dos processos. Os donos da voz, resultado da pesquisa apresentada na disserta~ao de mestrado Sobre mundializafao da industria fonografica. Brasil: anos 70- 90, no IFCH/UNICAMP em 1997, pretende reunir-se a um debate intenso e dinamico, existente sobretudo no ambito das ciencias sociais. o projeto inicial de pesquisa, bem como seu objeto, foram passando por mudan~as muito significativas durante 0 seu desenvolvimento. No entanto, a ideia central permaneceu: refletir sobre a importancia da musica no processo de mundializa~ao da cultura que, como face do movimento de globaliza~ao economica, se intensifica neste final de seculo. Visando a defini~ao da maneira mais adequada para a analise do processo, considerei, como constata~ao empirica elementar, a continua e persistente existencia do hit, do sucesso musical, das ondas e explosoes de estilos musicais diversos e, muitas vezes, mundializados, convertidos e contabilizados em milhoes, tanto de unidades vendidas quanto de d61ares de faturamento para sua industria. Assim, se nao se pode afirmar que todo mundo gosta de musica, e possivel considerar que grande parte dos cidadaos consome musica. Do conjunto das mercadorias produzidas pela industria cultural, ela se distingue pela grande intera~ao que estabelece com todos os media. Alem de poder ser ouvida no toea-discos (ou similar) de cada um a partir do ato de compra ou escolha do formato, a musiea estii presente no radio, na televisao, no cinema, na publicidade, nos computadores, nos ambientes de todo 0 tipo. Tal consumo aleat6rio e, muitas vezes, compuls6rio a que 0 cidadao do mundo esta exposto como simples transeunte nao e contabilizado nas cifras apresentadas pela industria
Renato Ortiz
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Introdu~ao
Os donos da VOz
fonogriifica. Por outro lado, a importilncia da musica como mercadoria cultural pode tambem ser avaliada se considerarmos a proximidade e a intirnidade que ela consegue estabelecer com os indivfduos, pela capacidade que tem de sensibilizar as pessoas, a partir dos esquemas propostos pelos varios meios que dela fazem uso. Como entender entlio, a configura~ao que 0 mercado fonografico vai tomando, no decorrer do tempo? Como compreender as estrategias que elegem determinados artistas e can~oes para comporem 0 fluxo mundial de bens simb6licos? Quais os agentes sociais que orientam a decisao sobre 0 tipo de musica que irii integrar 0 mercado: 0 publico, a industria ou os artistas? A alternativa para 0 tratamento dessas questOes estava na investiga~ao do processo de produ~ao na grande companhia fonogriifica, a partir da analise das etapas que conduzem a produ~ao de discos e de seus respectivos artistas. Tinha, inicialmente, como modelo ideal, a linha de produ~ao industrial organizada nos moldes do mais racional planejamento; uma verdadeira linha de montagem, 56 que de uma mercadoria cultural. Como ~ industria conceberia 0 seu produto? Como ele chegaria ate ela? Quais as especificidades do processo de trabalho? Com quais caracterfsticas 0 produto chegaria ao mercado? Como se daria a realiza,ao e a reprodu~ao desse processo? Portanto, para poder responder a tais questoes, a pesquisa deveria realizar-se dentro de uma grande empresa produtora de discos (na maio ria das vezes, uma companhia transnacional cuja estrutura e, basica e consequentemente, globalizada), que, aventava-se, alem de ser responsavel pelas maiores fatias do mercado brasileiro, possufa condi~es estruturais para 0 desenvolvimento de todas as etapas da produ~o (essencialmente: concep~ao do produto, prepara,ao do artista e do repert6rio, grava~ao em estUdio, mixagem, prepara,ao da fita master, confec~ao das matrizes, prensagem-fabrica~ao, controle de qualidade, capa-embalagem, distribui,ao, marketing-divulga~ao). Nao foi possfvel observar a "linha de montagem" uma vez que o processo ja se encontrava fragmentado, disperso para alem do espa~o ffsico (e muitas vezes intelectual) da empresa onde ate entao se efetivava toda a produ,ao. A transforma,ao que se opera nao tem precedentes na hist6ria da industria fonografica e se realiza em escala 'mundial, estreitamente sintonizada com 0 rearranjo estrutural pelo qual toda a produ~ao
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capitalista passa, com maior intensidade, nos ultimos vinte anos. Seu principal agente e a grande transnacional produtora de discos, num processo iniciado pelo alto, como parte da contfnua racionaliza,ao c\a produ~ao, atingindo, aos poucos, ate mesmo setores com que se relaciona indiretamente, como 0 circuito da produ,ao "independente". Por sua vez, tal racionaliza,ao tern sido observada na forma de sucessivas ondas de inova~ao tecnol6gica, que vao sendo propostas ao longo do tempo, evidenciando a rela,ao primordial entre desenvolvimento tecnico e produ~ao fonogriifica. Nesse sentido, os avan,os, sobretudo no ambito das tecnologias de grava~ao (estudio e fabrica), vao permitir uma relativa autonorniza,ao de algumas etapas da produ~ao de discos, possibilitando que artistas e empresas indepen dentes produzam e busquem seu lugar no mercado. Portanto, 0 que se observa nesse final de seculo e a definitiva fragmenta~ao do processo produtivo na grande industria fonografica, no qual serno terceirizadas, principalmente, as etapas de grava~ao, fabrica~ao e distribui~ao ffsica do produto, ficando nas maos das transnacionais 0 trabalho com artistas e repert6rio, marketing e difusao. As grandes empresas transformam-se em escrit6rios de gerenciamento de produto e elabora,ao de estrategias de mercado. Essa significativa mudan,a traz para a cena novos atores sociais, tais como os envolvidos nas atividades terceirizadas. Mas a questao torna-se ainda mais complexa quando a grande empresa passa, em algumas sitlja,oes, a buscar artistas com seus discos ja prontos, terceirizando mesmo a concep,ao do produto, limitando-se a distribuf-lo. A partir dessa constata~ao, instaura-se um debate dos mais prof1cuos para a reflexao sobre a produ~ao cultural nos dias atuais, uma vez que "a mao branca da tecnologia" parece intervir colocando a hip6tese de urn real aumento de oportunidades, de melhoria da qualidade do produto e de diminui,ao do poder, ate entao inquestionavel, da grande transnacional do entretenimento. E nesse contexto que acabei optando pela realiza~ao de um trabalho em perspectiva, considerando todas as dificuldades e lirnita~oes que essa escolha pode conter. A riqueza e a complexidade do cenario que se impoe, assim como 0 cariiter incipiente das transforma~oes que se operam, convidaram-me a tentar tra~ar urn panorama dos ultimos vinte anos da industria fonogriifica no Brasil, privilegiando a analise da esfera da produ,ao. Tomo como referenda os anos 1970,
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AS
donos da voz
Introdu~ao
perfodo de consolida~ao da moderna industria fonografica brasileira. Nos anos 1980 e 1990 e definida e, efetivamente, colocada em pratica a sua reestrutura~ao. Contudo, nao tenho 0 prop6sito de levantar toda a riqueza hist6rica do perfodo, mas sim 0 de alinhavar pontos que considero fundamentais para a compreensao dos caminhos que a produ~ao fonografica brasileira tern seguido, em tempos de mundializa~ao da cultura. Da mesma forma, tomada a partir do processo produtivo, a analise pode nos conduzir 11. preocupa~ao inicialmente enunciada, na medida em que e a mundializa~ao das tecnicas de produ~ao, de distribui~ao e de difusao que parece potencializar a capacidade de transpor fronteiras nacionais e culturais, apresentada pela mercadoria musical. No decorrer da pesquisa propriamente dita, fui encontrando e fazendo uso de uma pequena, porem substanciosa, bibliografia espedfica, na maioria das vezes filiada, implicita ou explicitamente, a grandes debates sobre meios de comunica~ao de massa ou sobre cultura na sOciedade contemporanea. Simultaneamente as referidas mudan~as nos pianos de trabalho, comecei a realizar entrevistas com executivos, ·produtores musicais, tecnicos, musicos, divulgadores e jornalistas. Penso que os resultados obtidos com tais entrevistas representem o que 0 trabalho possa ter de original, na medida em que tenta explorar 0 universo das justificativas, das motiva~oes e dos argumentos apresentados pelos agentes sociais par~ua atual;ao no processo. as argumentos surgem, naturalmente, como visoes de mundo. No entanto, surpreende a sua capacidade explicativa, seja na abordagem de todo 0 contexto, como na de suas partes. Tais justificativas, sobretudo no caso dos dirigentes e dos produtores musicais, tornaram-se preciosos instrumentos para a analise da dinamica da industria fonografiCa, em tempos de mudan~as nas estrategias de atua~ao. Da mesma forma, reuni material de imprensa sobre temas gerais e especificos. Mas vi alguma dificuldade em trabalhar com esse tipo de fonte, uma vez que, nessa area de interesse, a fronteira entre a informa~ao e a divulga~ao (marketing) dos produtos culturais e, as vezes, bastante confusa. Sobretudo as revistas especializadas, elas mesmas produto cultural atuando em e para segmentos espedficos, tern para este trabalho a mesma importancia que 0 ponto de vista dos entrevistados. Com rela~ao a dados numericos, exce~ao deve ser feita a revista Hfl', que circulou por apenas meio ana (final de 1991 a meados de 1992), mas que, ao direcionar-se aos pr6prios profissionais
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do mercado fonografico, apresenta urn especial cuidado com as fontes. Algumas reportagens sobre 0 tema, encontradas em jornais de grande circula~ao, tambem foram de grande valia para a pesquisa. No campo dos referenciais te6ricos, urn conceito e especialmente caro a esta analise: 0 de industria cultural, tal como foi elaborado por T. W. Adorno e M. Horkheimer na Dialetica do esciarecimento (R]: Zahar, 1944/1985). Esse referencial basico, no entanto, vai se expandindo para outras questoes, encontradas, sobretudo, em obras de Adorno, na medida em que a analise vai se restringindo ao seu objeto central. ]a ha algum tempo e muito comum encontrarmos, em estudos sobre meios de comunica~ao de massa e, mais especificamente, sobre produ~ao fonografica, a recusa total ou parcial do conjunto de ideias proposto por Adorno, principalmente quando este se dedica a sociologia da musica. Sao apontados serios limites as suas ideias, julgadas elitistas, pessimistas elou produto de urn tempo hist6rico espedfico e ultrapassado. Raramente sao considerados os pressupostos metodol6gicos que fundamentam e guiam as analises. Nas referencias ao seu tom pessimista, que tanto incomodo parece causar, e ainda mais raro encontrarmos tratadas as possibilidades de supera~ao da realidade que ele denuncia, encontradas em varios de seus escritos. Assim, penso que tais leituras e juizos, alem de nao comprometerem, com suas interven~oes, 0 nuc1eo da argumenta~ao sobre a industria cultural, nao debilitam seu poder explicativo e, consequentemente, nao conseguem negar sua extrema atualidade. Optando por urn caminho diverso, penso que nunca 0 conceito de industria cultural teve tanto sentido. Neste final de seculo, 0 raio de atua~ao e infiuencia (e 0 consequente dominio) dos meios de comunica~ao de massa ampliou e qualificou espantosamente. Se 9 capitalismo mundial tern mudado, agregando formas mais complexas e sofisticadas para 0 seu desenvolvimento, se a padroniza~ao dos produtos culturais nao e mais tao evidente, se as tecnicas de produ~ao permitem a participa~ao de urn maior numero de atores no cenario, se 0 consumo nao e mais verticalizado, isso nao significa que possamos conc1uir que tais mudan~as definem a fragiliza~ao e 0 enfraquecimento dos processos "controlados e controladores", sofisticadamente administrados e previsiveis, que sempre caracterizaram a atua~ao da industria cultural. Meios como a televisao, reprodutores musicais, cinema, computadores e radios tornaram-se, de certa maneira, elementos ba~icos
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Os donos da voz
da vida social, adquirindo, freqiientemente, status pr6ximo aos dos "generos de primeira necessidade", e nao s6 de entretenimento e lazer. A telenovela, as series televisivas, 0 telejornal, a publicidade, os hits, os pop stars e de tal forma as produ~aes cinematograficas e seus subprodutos entranham-se na vida, no cotidiano do cidadao comum e do mundo que Ihe sao, muitas vezes, considerados como elementos "naturais". Essa rela~ao de naturalidade que se estabelece entre consumidores e produtos e resultado da sutileza e da sofistica~ao alcanpdos pelos media, seu modo de produ~ao e difusao. Se se resgata 0 ponto de vista de Gabriel Cohn sobre Adorno, exposto na apresenta~ao de uma coletanea de textos desse autor, segundo 0 qual 0 fil6sofo e music610go alemao nao considerava em sua reflexao 0 real tal como este se manifestava no tempo hist6rico em que ele vivia, mas sim que suas ideias tinham um carater metodologicamente prospectivo, apontando para tendencias sociais e para "( ... ) potencialidades de sua realiza~ao mais acabada", podemos pensar que este e 0 tempo em que se realizam varios dos progn6sticos I,.n~ados por Adorno. Portanto, no primeiro capitulo, tento aproximar algumas ideias desses autores, bem como as de outros que ~nsidero complementares, da questao central proposta, ambientando t71. Na musica popular, 0 todo so tem sentido enquanto formula previamente estabelecida, destacado da propria experiencia musical. 0 detalhe toma para si a funfao de distinguir uma pep da outra, sem ter, no entanto, nenhuma relas;ao especifica com elas, podendo ser, em cada uma, fadlmente substitulvel. Esse padrao elementar, caracterfstico da musica popular, foi se estandardizando a partir de um processo competitivo, por meio da imitafao de canfoes que se tornavam grandes sucessos. Esses sucessos e suas formulas foram se "cristalizando" em standards, que por sua vez foram "congelados" pelas condifOes centralizadas de Produfao. Assim, os modelos standards sao, freqiientemente, revisitados (pelos chamados revivals) e recebendo uma nova roupagem poupam do desgaste as formulas conhecidas. Por outro lado, a audifao do standard corresponde uma maneira preestabelecida de ouvir, uma vez que 0 esquema reiterado e pre-digerido e, ele mesmo, escuta pelo ouvinte. Mas, como 0 sempre igual acaba por nao comover, 0 processo de pseudo-individuafao preenche a formula com detalhes, com efei-
quase que completamente, tomado pela musica popular de massa, a musica pop, e 0 popular traz 0 refendo sentido da populandade adquirida atraves do mercado. Assim, a analise do processo de produ¢.io da grande transnacional do disco vai, certamente, nos levar a produ¢.io de musica popular, seja qual for seu genero ou estilo. Mesmo grande parte do que se produz no segmento de musica erudita, apesar das pecuUaridades que possa apresentar do ponto de vista da produ¢.io, nao se encontra tlio distanciada, do universo do pop, considerando 0 seu envolvimento com todo 0 processo tecnico de distnbuifao e difusao, propnos a grande companhia fonografica. ponanto - e ao falarmos de musica erudita nos aproximamos decisivamente do assunto - gostana de reafirmar 0 carater fundamental que tem a contribuifao de T. W. Adorno para a compreensao da contemporaneidade da produ~ao de mercadonas musicais. Todavia, parefo percorrer 0 sentido contcirio daquele seguido por boa parte das analises sobre cultura na sociedade atual, para as quais 0 termo "adomiano" pode ser encontrado como sinonimo do que esta definitivamente ultrapassado'". Preocupa-me enormemente o fato de que as grandes mudanfas que estlio sendo observadas no cenario cultural estejam definindo um tom de eufemismo e de encantamento a muitos estudos. Nao se trata, absolutamente, de alimentar posturas pessimistas ou otimistas, como se 0 pensamento estivesse condenado a variar sempre entre esses polos opostos. Para alem da .necessidade de rotulafoes, trata-se de ten tar apreender 0 problema da maneira mais ampla posslvel69 . Assim, a afumafao de uma nova realidade no panorama de produ¢.io de musica industrializada, antes de distanciar-nos de referenciais te6ncos ja tornados classicos, permite que tomem grande sentido aqueles, tais como os de pseudo-individua¢.io, estandardiza¢.io e repeti¢.io, desenvol68
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Para apresentar urn exemplo: ao fazec urn comentario sabre urn livre que analisa rela~oes entre juventude e televisao no Mexico, J. MARTIN-BARBERO afirma: "Interessante que 0 livro come~a estudando as industrias culturais, mas nao no velho sentido apocaHptico, adorniano, e sim a industria cultural de nOBsas sociedades, 0 industrializar esses conhecimentos". cr.: "A America Latina e os anos recentes: 0 estudo da recepcao em comunica\=3.o social". In: SOUZA, M. W. (arg.) Sujeito, 0 lado oculto do receptor, op. cit., p. 39-68. A cita\=ao e da p. 57. Urn precioso exemplo do imbricamento existente entre posicoes metodol6gicas e suas conseqUencias poli'ticas podemos ver em ADORNO, T. W. "Televisao e Formar;ao". In: Bdttca~ao e emancipa~ao. RJ: Paz e Terra, 1995, traduc;ao de Wolfgang
70 71
Leo Maar, p. 75-95.
"J
ADORNO. SMP. e ADORNO. FMRA. ADORNO. SMp, p. 117. 0 autar, no entanto, admite a existencia da "rna musica seria", que pode obedecer a esquemas tao rigidos quanta a popular.
Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos
Os donos da voz
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49
( tos, que garantem lis can~oes, uma aura de particularidade, de referencias especificas aos indivlduos. Mas e mais que isso: "P~r pseudoindividua~ao entendemos 0 envolvimento da produ¢o cultural de massa com a aureola da livre escolha ou do mercado aberto, na base da pr6pria estandardiza¢o"". Desta forma, os improvisos, os desvios, as inova~oes, sao trazidos de volta a norma e oferecidos como possibilidades desta ". Os efeitos previstos fornecem seguran~a 11. audi~ao e ao consumo; garantem.a sensa~ao de satisfa~ao, de proximidade, a musica soa como natural. Ao contrario de uma simplicidade exagerada, as can~oes devem ser ricas em detalhes e cita~oes. A repeti~ao garante a aceita~ao do material, estendendo a difusao 0 que ja foi repetido no processo de produ~ao. A divulga~ao repete, insistentemente, a f6rmula padronizada, favorecendo a constitui~ao de habitos de audi~ao. "A repeti~ao confere ao hit uma importancia psicol6gica que, p~r outro lado, ele jamais poderia ter"", tornando-o pr6ximo, conhecido, reconhecivel. Por outro lado, ao .perceber que a. can~ao e repetida varias vezes no radio, 0 ouvinte e levado a pensar que ela ja e urn sucesso, e 0 referendo e ainda suficientemente reiterado pelo locutor ou disc-j6quei: "0 reconhecimento s6 e socialmente efetivo quando lan~do pela autoridade de uma agencia poderosa":" Pelo processo, transforma-se a repeti~ao em reconhecimento e este, em aceita~ao. 0 reconhecimento perde sua posi~ao de meio para 0 conhecimento, para tornar-se urn fim'·. Todo 0
72 Idem, p. 123. 73
0 jazz foi urn dos objetas da analise de Adorno, como exemplo cia estandardiza~ao
pseudo-individua~ao. A intensidade alcan~ada pela expansao e consolidada estandardizacao musical e seus desdobramentos talvez possa explicar 0 fatc de 0 jazz ter se tornado, nos dias de hole, uma especie de musica seria, considerada de diffcil assimila~ao. 74 ADORNO. SMP, p. 125. 75 Idem, p. 135. 76 Ibidem, p. 125 e 130-31. EGO, 1994, p. 13, analisando a repeti!,lio na produ!,lio cultural des mass media e citando 0 exemplo do romance policial. aponta que 0 leiter compf".t o livro exatamente por conhecer, M muito, tado 0 esquema pelo qual a hist6ria se faz: "lgnorar a identidade do culpado toma--se urn elemento anexo, quase urn pretexto". No entanto, Eco cia uma dimensio cUferente ~ analise cia repeti~, quando investiga sua presen~ no mundo cia arte, sobretudo aquela peculiar ao p6s-modemismo. Questiona se a repeti~ nao selia um tra{X> comum a toda hist6ria da humanidade, considerando-se a hip6tese de conhecennos apenas trechos dessa hist6ria.
e da ~ao
esfor~o
empreendido pelo ouvinte e orientado para que ele identifique acaba de ouvir com 0 que ja conhece e, a partir da identifica~ao de tal processo como coletivo, tambem se reconhep nele. A reitera~ao constante garante estabilidade suficiente para que a situa~ao se conserve, possibilitando que a musica popular seja objeto de manipula~ao de variados interesses, sobretudo os de mercado. A promo~ao e 0 componente final para 0 reconhecimento e se efetiva a partir da conexilo entre gravadoras, esta~oes de radio, filmes, imprensa etc. No entanto, a atividade dos jornalistas quando privilegiam a divulga~ao de urn produto em especial nao pode ser chamada de corrup~ao, na medida em que "as pessoas sao compelidas a agir voluntariamente de modo que s6 se esperaria que elas agissem se fossem pagas para tanto. C.. ) OS jornalistas falam com vozes incorruptas. Uma vez que tenha sido alcan~ado urn certo grau de retaguarda economica na promo~ao, esse processo transcende as suas pr6prias causas e se torna uma for~a social autonoma"". Por seu turno, os empresarios limitam-se a dizer que oferecern "0 que 0 povo quer", considerando a resposta positiva do publico ao esquema proposto. Na verdade, da maneira como e engendrado, 0 processo leva os "consumidores a concordarem com os criterios ditados pelos produtores"'8. Desta forma, considero ja estarmos de posse de urn instigante conjunto de ideias que podem nos auxiliar na analise do objeto. A diversidade, a segmenta~ao, a variedade, a pluralidade enunciadas pela era da mundializa~ao, por mais que tomem uma configura~ao espedfica neste fim de seculo, sao caracteristicas fundantes da industria cultural e do capitalismo global. A novidade esta na radicaliza~ao de determinados processos, tais como a sofistica~ao da pseudo-individua~ao e da estandardiza~ao, que criam micro-espa~os autonomos e contudo subservientes 11. norma geral. Diz Adorno: "Para todos algo esta previsto; para que ninguem escape, as distin~oes sao acentuadas e difundidas"79. "A igualdade dos produtos oferecidos, que todos devem aceitar, mascara-se no rigor de urn estilo que se proclama universalmente obrigat6rio; a fic~ao da rela~ao de que
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0
ADORNO. SMP, p. 129-30. ADORNO. fMRA, p. 177. ADORNO e HORKHEIMER.
Dr.;
p. 116.
p 50
Os donos da voz
oferta e procura perpetua-se nas nuan~as pseudo-individuais"so. A difusao, por sua vez, amplia-se e qualifica-se enormemente, multiplicando os canais do grande mercado, pelos quais acabamos por, constantemente, encontrar 0 sempre igual.
Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80
1. Os anos 70 e
0
mercado internacional-popular
Tern grande importancia para 0 entendimento do contexto no qual se consolida a grande industria produtora de discos no Brasil a analise do processo de expansao e desenvolvimento dos meios de comunica~ao de massa, desencadeado no pais a partir de 1964 pelo governo militar. Esse desenvolvimento dos media que, no seu conjunto, pode ser efetivamente observado na decada de 70, e fundamental nao somente por constituir-se num setor economicamente significativo, uma vez que 0 crescimento do mercado de bens culturais esta, na maioria das vezes, vinculado ao setor de bens de consumo duraveis. Sua expansao interessava profundarnente 11 ideologia do "desenvolvimento com seguran~a" vigente no periodo'. Desta forma, 0 Estado brasileiro e 0 realizador, mais uma vez, de uma especie de mocierniztlfiio conseroadora', fornecendo toda a infraestrutura necessaria 11 implanta~o da industria cultural no pais em nome da Seguran~a Nacional. E de 1965 a cria~ao da Embratel, bern como a vincula~o do Brasil ao Intelsat (sistema internacional de satelites) e de 1968 a constru~ao de urn sistema de comunica~ao por microondas que viabiliza a aproxima~o de todos os cantos do pars. "A ideia de 'integra~o
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2
Cf. ORTIZ, R. A moderna tradlfiJo brasilelra, especialmente "0 mercado de bens simb6Iicos", p. 113-145. cr. tambem MENDON de vista da industria cultural, do que encontrou e escolheu como produto, depois de pesquisar 0 que acontecia no cenario"'. Como
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veremos adlante, OS anos 80 sao 0 palco de uma substanciosa produ~o musical e cultural, que nao foi absorvida pela grande industria. Porranto, apesar do rock ter uma imporrancia cultural diferenciada, permitindo a sobrevivencia de uma produ~ao desvinculada dos media e da grande industria, 0 que e veiculado e consumido, em larga escala, e resultado de um planejamento exato, com estrategias muito bem definidas. Se 0 rock e cultural mente distinto de uma simples moda, sob sua egide existiram e continuam a existir muitas bandas de um s6 sucesso, de um s6 verno"'. Ampliando 0 cenario, gostaria de trazer para a discussao outros pontos de vista. Como vimos, para Marcos Maynard, as gravadoras simplesmente ajudam a propagar as ondas sonoras. Questionado se a industria fonografica faz pesquisa de opiniao para saber 0 que as pessoas estao querendo ouvir ou para conhecer 0 que esta sendo produzido para, enta~, ser propagado, Maynard responde: Nossa industria nao funciona assim, porque voce esta mexeodo com sensibilidade e nao com sabonete. Voce nao pode criar oodas, nem pesquisar a opiniao publica para saber 0 que 0 publico quer, porque 0 publico, em termos de musica, e intuitivo. A musica esta no ar, esta na criatividade dos artistas que a gravadora propaga. Porque meu produto e um produto que pensa, sente, dorme, respira, fala bobagem, fala coisa certa, e inteligente, nao e inteligente. Agora, 0 sabonete e 0 sabonete, voce 0 coloca ali"na prateleira; ele fica parado, voce faz 0 marketing que quiser desse produto, diz que ele e dourado, que e maravilhoso, que cheira bem e ele nao vai dizer nada. Agora, se voce falar que 0 seu artista e bonito, simpatico, de repente muita gente pode MO achar (...). Se um artista nao grava bem por qualquer tipo de problemas pessoais, ele nilo vai passar 0 que ele deveria atraves da miisica e isso e perceptivel atraves das ondas sonoras, 0 publico percebe isso claramente. Ele noo sabe por que gosta mais de uma musica do que de outra, de um artista do que de ~Utro, mas e i8S0: a em~o propagada pela8 ondas sonoras.
°
80
Nesse senti do, e exemplar a discussao sabre 0 advento do punk rock, no Brasil e alhures. GROPPO, 1996, p. 189. afirma que 0 fato de existir uma movimenta~ao em torno do punk rock no Brasil em 19n. quase que ao mesrno tempo que na Inglaterra, sua terra natal, explica-se pelo interesse dos jovens em buscar novidades
musicais, uma vez que 0 punk tetia chegado no Bmsil "sem nenhuma campanha de marketing articulada pela industria musical". Venda de maneira diferente, considero que ~ a propria segmenta~o da produ~ao fonografica que permitiu ao punk rock usufruir de uma promor;ao diferenciada, 0 fato de urn produto nao receber 0
tratamento promocional tradicionalmente massificado, ao meu ver, nao significa que ele tenha estado fora dos esquemas promocionais das gl"'dvadoras. Ademais, 0 punk conquistou grandes espa~os na midia impressa como movimento que prega~ va uma atitude e urn comportamento especfficos, com dimensao cultural e mesmo polltica. Portanto, a industria fonogrMica era apenas uma etas partes envolvidas. Transformado progressivamente em produto eta industria cultural (como demonstra 0 pr6prio autor, na p. 68), 0 punk rock vai encontrar, em faixas da juventude das sociedades urbanas e industrializadas do mundo, 0 mercado consumidor ideal. 81 GROPPO, 1996, p. 193-194. 82 Por outro lado; ha que se ressaltar a qualidade de muitos dos trabalhos surgidos no perfodo, sobretudo se comparados ao atual panorama, tanto do rock, quanta da MPB. Vistos em perspectiva, muitos artistas surgidos nos anos 80 podem ser considerados como frutos de efetiva efervescencia cultural, nao mais observada nos 3nos seguintes. (
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"~
A opiniao de Luis Oscar Niemeyer, presidente da BMG-Ariola, apresenra significativas semelhan~as com a de Maynard:
83 GROPPO, 1996, p. 199.
,2 88
Trajetoria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80
Os donos da voz
Nao contratamos de acordo com a tendencia de mercado. Evidentemente estamos atentos ao momento, as coisas que estao acontecendo
e 6bvio que onde ha uma oportunidade, proMas 0 mercado da musica e muito instaveL Voce
nas areas de cria~ao e, curamos ataca-la.
tern de estar bern localizado em cada urn destes segmentos. Houve uma epoca em que a musica romantica explodiu. Noutra, foi 0 rock, depois a MPB. N6s estamos muito presentes em todo 0 mercado. Se a genera rock, por exemplo, voltar, continuamos acreditando neste segmento. Tern sido assim. Nao e como um sabao novo, com pesquisa. A musica e muito vulneravel. Nao ha como medir. Jorge Benjor, por exemplo, explodiu de repente. Nao foi apenas marketing, mas uma nova geras;:ao, que nao 0 conhecia, come~ou a ·consumi-l0. A coisa nao
e cientifica.84
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cado brasjleiro de discos, as classes Bee representam de 60 a 65% do mercado. "Nosso publico e esse. Mas a classe A, que e pequena e consome jazz e musica erudita, tambem compra discos de artistas consagrados" .•6 Uma estrategia verticalizada e menos comum era utilizada por uma empresa como a WEA. Andre Midani, garantindo 0 retorno do que propos fazer na companhia, afirmava em 1988: "Somos a gravadora mais vertical de todas. Nosso publico tern de 15 a 35 anos e pertence as classes A e B - especialmente estudantes de colegio e de universidade. Estamos atras de pessoas nessa faixa e que sejam inconformadas com tudo".·' Estabelecida a segmentafao como firme estrategia de diversificafao de riscos, uma empresa da importancia da PolyGram faz a sua escolha, como afirma Marcos Maynard:
A partir da distinfao entre artistas de marketing e artistas de catalogo, no final dos anos 80, a maioria das gravadoras aderiu a uma estrategia horizontal de atuafao, trabalhando com varios estilos, aper. feifoando a segmentafao. Assim, e POSSIVe! encontrar, por exemplo,
Se hoje em dia, a PolyGram produzir somente urn estilo de musica, ela corre 0 risco de ter que fechar as portas. Por exemplo, se voce s6 grava rock'n roll e, de repente,
0
estilo nao
e mais rock'n roB e ama-
nha passa a ser ~e music e eu nao tenho nenhurn artista de axe, 0
argumenios como a de "investir mais, para lucrar mais", como fazia a
BMG-Ariola, com urn cast de 65 artistas nas areas de MPB, samba, pop/rock, musica romantica, regional e infanto-juvenil. A justificava estava no fato de, ao cobrir todas as areas, tornava-se posslvel fugir dos modismos. Outra gravadora com atuafao horizontal na epoca era a SQm Livre, que continuou trabalhando com trilhas de novelas, filmes e coletaneas·5• A especificidade de seus produtos the permitiu manter e consolidar, nas decadas de 80 e 90, sua posi~ao entre as maiores vendedoras de discos do paIs. Joao Araujo, diretor geral da Som Livre, justificava 0 sucesso da empresa, afirmando que, no mer-
. que eu fa,o?
0
que eu fa,o com todos aqueles artistas de rock que
hoje vendem urn milhao de c6pias cada urn e amanha vendem tres discos? Entao a PolyGram e todas as outras companhias de discos tern urn cast ecletico, tern que ter artistas de estilos diferentes. Porque, na hora que o samba estiver em baixa no mercado, como e que voce vai sustentar os artistas de samba? Vai parar de fazer seus discos? Vai manda-los para a rua? Nao! Tern que manle-los. Voce vai gastar mais dinheiro sustentando-os, mas se de repente
0
samba sobe, enta~ eles vendem.
Mais uma vez, encontramos proximidade entre as opiniOes dos 84
Entrevista corn Luis Oscar Niemeyer, RJ: 26-09-94. Todos os excertos citados sao extrafdos da entrevista. Parecem constituir-se num jargao do meio, as comparacoes de m(isica corn sabonete oU sabao. Leo Monteiro de Barros, enrno diretor de Marketing da BMG, afirrna que a diferenca "entre 0 marketing do disco e de outro produto qualquer e que 0 '0 sabonete nao da entrevista'. (, ..) Nos outros produtos 0 marketing pode moldar toda a personaHdade do produto, mas corn 0 artista nao e assim". In: "A explosao do show biz", EXAME, ano 29, n'I 8, 04-96, SP: Ed.
executivos: A BMG tern urn elenco dos mais diversificados. N6s nao escolhemos urn segmento especifico do mercado. Entendemos que a cena musical no Brasil e superdiversificada e abrangente, ou seja, que temos varios
Abril, p. 39. 85
Desde 0 final dos anos 80, a (mica artista contratada da Som Livre dora Xuxa.
e a apresenta-
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"Mercado de discos enfrenta crise". In: f