O Príncipe da Moeda
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0, Príncipe da Moeda Gilberto Felisberto Vasconcellos

(Santas indignações permeiam este livro)

Glauber Rocha - O golpe de 64 começou na Guerra do Paraguay. Alain Touraine - Le PSDB c’est une merde! Gilberto Vasconcellos - Com FHC, a tropicália chega ao poder: é o petróleo sem Petrobrás.

São vozes que atuam por contraste com o pano de fundo: o monopólio das comunicações inviabilizaria o exercício da vontade individual (o livre arbítrio) e da vontade coletiva (a soberania nacional). O livro de Gilberto Vasconcellos é exatamente a contraprova de que pensar e fazer pensar não é mais possível. Antes ou depois de você ler o que ele pensa, leia o que o livro dele me faz pensar.

A disputa do poder por correntes que expressam as duas faces da mesma moeda uma das estratégias de reprodução leológica: o próprio regime cria a sua posição. Israel-lnglaterra-EUA. No caso □rasileiro, Getúlio Vargas concebeu dois partidos que em 20 anos de democracia só deixaram de ocupar a Presidência por uma brecha de meses, o suficiente para se infiltrarem 20 anos de ditadura sobre nossas cabeças. Aparentemente antagónicos, o PTB e o PSD de Vargas seriam complementares, assim como, por diferentes motivações, a ARENA e o MDB.

Meio século após o cruzeiro, a globalização cunha no país, precisamente em São Paulo, a cara e a coroa de uma nova moeda: situação e oposição fundidas no antigetulismo (os estatutos do PT e o discurso de posse de FHC) e na coabitação

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Gilberto Felisberto Vasconcellos

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© Gilberto Felisberto Vasconcellos, 1997

Diagramação: Luiz Oliveira Geraldo Garcez Condé T

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^fffÁLOGAÇÃO NA FONTE DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO V331p

Vasconcellos, Gilberto Felisberto O Príncipe da Moeda / Gilberto Felisberto Vasconcellos. - Rio de Janeiro : Espaço e Tempo, 1997 264p. 14;21 cm. ISBN 85-85114-95-9 Inclui bibliografia. 1. Comunicação de massa - Aspectos políticos - Brasil. 2. Comunicação de massa - Aspectos sociais - Brasil. 3. Brasil - Política e governo. I. Título.

CDD-320.981

COLEÇÃO BRASIL HOJE Conselho Editorial

Roberto Ginatalli, Bertha Koiffmann Becker, Joel Rufino dos Santos, Paulo Becker.

Direitos de Publicação em Língua Portuguesa: EDITORA ESPAÇO E TEMPO LTDA. Tel/Fax: (021) 262-2669 Rua Santa Cristina, 18 - Santa Teresa - CEP 20241-250 Rua Antunes Maciel, 131 - parte (depósito) - CEP 20940-010 Rio de Janeiro

Brasil Hoje

ste livro que temos o prazer de oferecer ao leitor encarna de modo notável o objetivo de dar voz e espaço para a produção que não se encaixa no discurso dominante, feita por gente nossa, nas áreas intelectual e científica. E no Brasil isso pode significar até mesmo a maioria dissidente. Quando publicamos Em Defesa do Presidencialismo, o país da mídia era parlamentarista, com larga maioria nas pesquisas de opi­ nião; um mês depois, os índices inverteram-se espetacularmente. Com o governo de Fernando o Príncipe, acontece o mesmo, no pró­ prio momento em que lançamos O Príncipe da Moeda. Os artifícios da mídia já não disfarçam os dramas da desnacionalização, do de­ semprego, do desprezo pela questão social, e a iniqiiidade da ação de um governo sem norte, carente do conceito mesmo de nação bra­ sileira. Há um mês, quem apostaria na queda vertiginosa dos índi­ ces de popularidade de FHC? Na resistência popular à venda de uma estatal, como a Vale do Rio Doce? Que a conta da reeleição se apresentasse tão precocemente? O autor não se iludiu sobre o assunto. De Gilberto Freyre a Darcy Ribeiro, e resgatando a visão de Glauber Rocha sobre a história bra­ sileira, ele nos dá uma crítica original da sociologia paulista pós-64 e da trajetória de outra forma inexplicável de Fernando Henrique. Ao seguir o fio de seu pensamento, somos instigados a perguntar; porque foi este o Fernando que deixou a esquerda perplexa e a direita... fe­ liz? Como explicar a ascensão e queda de Collor? Que misteriosa identidade há entre FHC, Weffort e Lula, que esvaziou o discurso de oposição em 1994? A interpretação da verdadeira natureza do golpe de 64 e os desvios do pensamento dito de esquerda a partir daí, prin­ cipalmente a rejeição visceral ao nacionalismo e ao trabalhismo são os pontos cujo exame é essencial para que possamos chegar a algu­ ma resposta. Estamos convictos de que o trabalho de Gilberto Felisberto Vasconcellos vem preencher esta lacuna, e o faz com um estilo saboroso e saudavelmente polêmico, numa época em que a una­ nimidade burra é despudoradamente glorificada como virtude. Paulo Becker Conselho Editorial

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ÍNDICE

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10.

11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18.

O Modelo Político da Telemoeda........................................ 13 Da Fama Sem Imortalidade................................................. 39 O Cederrum do Seminário de Marx................................... 57 A Trama do Exílio na Cultura Brasileira Pós-64........... 61 Antigos e Novos Coveiros da Era Vargas.......................... 69 Crítica à Economia Política Travesti............................... 117 Do Anal-Liberalismo.......................................................... 129 O Marquês de Pombal da Social-democracia................ 139 Xica da Silva da Globalização......................................... 179 Psicovideopopfinanzkapital ou as Bases Eletrónicas da Legitimidade Volátil............................................................ 193 1994: Tropicália no Poder..................................................211 Sem Terra e com TV............................................................221 A Alternativa da Biomassa Energética............................ 227 O Peagadê da Flórida........................................................ 235 Fascismo Honoris Causa ou a Nêmesis de Itamar Franco................................................................................... 243 Masoquismo Romanceado................................................. 245 Darcy Ribeiro, Rei de Janeiro.......................................... 247 Recuerdos del Paraguai: ao Perdedor as Baratas........ 255 Bibliografia.......................................................................... 261

AGRADECIMENTOS

André Moisés Gaio concedeu-me o privilégio de con­ sultar sua biblioteca, Sirlei Lopes Bastos cuidou dos

meus hieróglifos, Cristiano Batista dos Santos atuou

como homo informaticus, Frederico César do Carmo tratou da correspondência epistolar.

“Torna-te quem és.” Píndaro

“No Brasyl, o gancho do Pentágono é o Centro Brasyleiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que funciona em São Paulo. Quando eu filmar a Odysseya convidarei o professor Fernando Henrique Cardoso para o papel de sedutor, embora não saiba se o Pryncype topa contracenar nu com Ariadne no Labyrynto do Cebrap. O professor Fernando Henri­ que Cardoso disse que não era assoprador de novi­ dades nos ouvidos do Pryncype. Claro: o Pryncype é ele, assim o batizey no Peru em presença do magnyfico Darcy Ribeiro. Uma tese que o Cebrap não aceita e por isso não consigo me entender com o Pryncype: a revolução de 64 começou na Guerra do Paraguai. Fernando Henrique Cardoso é apenas um neocapitalista, um kennediano, um entreguista. ”

Glauber Rocha entre os anos de 1974 e 1979.

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O Modelo Político DA TELEMOEDA

este livro sobre o príncipe da moeda de 1994 escolhi como método de investigação a idéia de que a forma pela qual se alcança o poder determina o conteúdo do futuro governo. O leitor encontrará repetidas vezes a expressão “capitalismo videofinanceiro” para designar a particularidade histórica do momento atual no Brasil, onde a presença monopolizada do sistema televisivo afeta sobremaneira a conduta do Estado, dos partidos políticos, da Igreja e da Universidade. A política do partido único da mídia se desenvolve em simbiose orgânica com o Estado. Depois do governo Sarney, a despeito do golpe ocorrido em 1964, as Forças Armadas convertem-se em fatores invisíveis da história, tanto que o Exército é menos referido na crónica política do que as estrepolias dos “carapintadas” de 1992. No momento em que mal nos despedimos da ditadura soa um tanto provocativa a reflexão sobre a natureza do golpe político no Brasil democrático durante a década de 90. Convém rememorar que o regime de 1964 trouxe um impulso considerável do desenvolvimento da comunicação de massa. Isso coloca na ordem do dia a discussão sobre a integração nacional em bases eletrónicomonopolistas e o perigo da dissipação territorial. A concessão de monopólio televisivo, a sesmaria eletrónica legitimadora da ideologia do Estado pós-64, produziu determinados

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efeitos que ultrapassam a esfera política. O que está em pauta é a totalidade cultural da nação. A mentalidade da coletividade se adequa inteiramente ao padrão audiovisual de desenvolvimento, cujas sucursais repetidoras atingem todas as regiões do país. E aqui cabe ressaltar que absolutamente não importa se muita gente não se integra ao mercado de trabalho, o fato insofismável é que a sociedade brasileira é uma típica sociedade de massa com indústria cultural. A TV é o agente socializador e organizador da cultura, de cujas implicações políticas os partidos de esquerda ainda não se deram conta, posto que seus intelectuais e militantes não estão imunes ao influxo midiático generalizado, não obstante a voga gramsciniana nos meios universitários dos intelectuais e a organização da cul­ tura, desde os anos 60. A natureza do golpe político no Brasil democrático se revela através do processo eleitoral nas últimas décadas. Basta reparar no resultado das sucessivas eleições para perceber que o putsh à brasileira tem invariavelmente oscilado da astúcia do vídeo ao tru­ que da moeda, tal como sucedeu com o Plano Cruzado dos tecnoburocratas de José Samey, a que se seguiram a façanha do “caçador de marajás” e o recente master plan da moeda real, o cabo eleitoral de Fernando Henrique Cardoso em 1994. Depois de quase 30 anos sem eleições, o palanque eletrónico em 1989 substitui o comício pela primeira vez na história do Bra­ sil; trata-se pois de um condicionamento político que não se re­ duz a mero instrumento de comunicação, porquanto é inegável que a TV impõe uma gramática à mentalidade e ao modo de se pensar e falar, ou seja, existe isomorfia entre forma e conteúdo, sem todos eles o discurso político parece rodopiar no vazio des­ provido de capacidade persuasiva. Acrescente-se a patológica pro­ liferação de institutos de pesquisa, cada qual com a mesma metodologia para orientar campanhas, forjar candidaturas e an­ tecipar resultados eleitorais, e cujo exemplo mais famoso é o Proconsult no Rio de Janeiro, em 1982, dois anos após o fim do bipartidarismo de Arena e MDB. Fernando Collor foi o primeiro presidente da República eleito pela telenovela. Esta apresenta-se, a partir daí, como uma das prin­

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cipais formadoras de opinião. Junto com o editorial do noticiário político, sem esquecer o detalhe significativo de que as seitas pro­ testantes almejam ocupar os canais de rádio e TV. São as “igrejas eletrónicas”. Da moeda à telenovela, eis a opção que se oferece à classe do­ minante como caminho objetivo e mais seguro para alcançar de­ mocraticamente o poder. A eleição presidencial de 1989 aparece como marco importante de uma ideologia vencedora, cuja subs­ tância está menos no ideário proposto do que no modo de organi­ zar a persuasão da massa. É por isso que não devemos nos ater à aparência do poder legitimado pelo voto popular se quisermos com­ preender o processo político que se desenrola sob a vigência do capitalismo monopolista videofinanceiro. Esse modelo internacio­ nalizado, que envolve o perfil do Estado, espraia-se com o adven­ to, em 1965 (um ano após o golpe militar), da new plantage cha­ mada Rede Globo, que serve evidentemente de oráculo aos outros canais de TV, sendo paradigma de qualidade com os seus 80% de audiência - paradigma para qualquer modalidade de comunicação na atual sociedade brasileira. Sobre a base eletrónica da dinâmica eleitoral, cumpre ter em mira que a TV hegemónica no mercado se transformou, durante a década de 80, em partido político. Assim, a expressão “governo da TV” ganha inegável concretude histórica desde 1965. Há quase 30 anos a TV incorporou-se organicamente ao poder de um Estado que, por seu turno, prima em governar com a morfologia da mídia, a qual faz uso de uma estranha ciência informatizada das eleições. Curiosamente os partidos de esquerda não se empenham em ofere­ cer uma linguagem alternativa à norma audiovisual dominante, cuja aceitação coletiva impede qualquer clivagem entre esquerda e di­ reita. A técnica de public opinion é a prova convincente de que o povo, cada vez mais despolitizado, vota de acordo com a estética diária da telenovela. Desde 1970 a unificação do país do ponto de vista ideológico é realizada pela TV. Seu gênero “estético” específico made in Bra­ sil: a telenovela. A novidade da vitória de Collor em 1989 é que, com ele, o hotno telenovelicus chega ao Palácio da Alvorada atra­ vés do voto popular. O imaginário da telenovela é que oferece aos 15

candidatos à Presidência da República sua gestuália, sua fitinha do Senhor do Bonfim no pulso, suas palavras de ordem, além da dramaturgia de seus personagens, tal como aconteceu com a tele­ novela O Salvador da Pátria. Seria superficial analisar o processo das eleições restringindose aos debates e performances de cada candidato no horário eleito­ ral gratuito. A substituição do príncipe da telenovela pelo fetichismo da moeda transcorre num país com formação oral, ágrafo, analfabeto e unificado eleitoralmente pela TV. Esse mo­ delo político está alicerçado numa estrutura videofinanceira, de cuja reprodução social depende a “governabilidade” pós-64. A percepção em profundidade desse quadro videofinanceiro muitas vezes nos escapa, porque sua mais-valia aparece como um produto volátil (a telenovela), diferenciando-se neste aspecto da velha san­ dália de Aristóteles, citada por Karl Marx em O Capital para ex­ plicar o valor da mercadoria mediatizada entre o estômago e a fan­ tasia. Na dança com as outras mercadorias, a telenovela surge como mercadoria sui generis, um produto cujo valor de uso é difícil de apontar com precisão, como se nossa modernidade conseguisse a notável proeza de fabricar uma mercadoria que abole a duplicidade do valor de uso e do valor de troca. Esta é a lógica da economia política da telenovela. A telenovela videofinanceira funciona como agente da moder­ nização societária, o conteúdo cultural da modernidade pós-64. Infelizmente José Guilherme Merquior, o crítico da cultura que pela primeira vez importou da Europa o conceito de modernidade, não nos deixou qualquer reflexão acerca da particularidade do desenvolvimento da mídia entre nós. A mídia é o enlatado da modernidade. Nada culturalmente permanece à margem do Leviatã eletrónico sediado no Botanic Garden. A TV é o todo, e não ape­ nas a hegemonia cultural. Da ditadura herdamos o “sociovídeo”, assim como o golpe de 64 pode ser visto como um marco histórico da acumulação do capital videofinanceiro. Basta um simples cote­ jo entre Fernando I e II: o fato essencial é que o primeiro não con­ tou oficialmente com o aparato do governo José Sarney, ao contrá­ rio do que sucederia com o presidente Itamar Franco, que lançou seu plano de estabilização económica neocolonial às vésperas de

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1994. Diferentemente do discurso irado e demagógico de Collor, nota-se em FHC a ausência completa da ratio oposicionista. O can­ didato de Itamar Franco desfrutou a seu bei prazer da machine governamental, conforme ficou plenamente evidenciado com o episódio da parabólica do diplomata Ricupero. Designamos por sistema político videofinanceiro o processo so­ cial pós-ditadura de 64. Depois de quase 30 anos, configura-se um tipo específico de dominação política que merece vir a ser investigada em seus aspectos eleitorais acoplados à mídia e ao Estado. Esse amálgama de mídia, Estado e processo eleitoral é o sucedâneo da ditadura, ou outra ditadura que é julgada pela maio­ ria do população como algo agradável. Não seria descabido afir­ mar que a ditadura converteu-se em telenovela, que é a superestru­ tura da network responsável pela mistificação da moeda como es­ petáculo eleitoral em 1994. A natureza do golpe político no Brasil democrático oscila do vídeo à moeda. São duas mediações do processo eleitoral. A escolha de um ou de outro caminho. Depois de Itamar Franco não é mais possível lidar com a noção de acaso. FHC alcança o poder com uma aliança oligárco-videofinanceira-multinacional, na sequência da vertiginosa ascensão e queda de Fernando Collor. O primeiro presidente da República eleito pelo povo depois de 1964 teve pela primeira vez cobertura televisiva integral. Em termos de máquina e dinheiro, a campanha de FHC superou em muito a de Fernando Collor, o qual não contou oficialmente com o aparato do governo Sarney, nem tampouco lançou mão de um plano de estabilização monetária como cabo eleitoral. Con­ vém sublinhar a ausência de qualquer veleidade oposicionista no discurso de FHC em 1994. É a continuação ideológica do golpe de 64 e seu modelo económico e cultural. Resulta daí a ponte entre João Goulart e FHC. A derrota de Jango foi uma tragédia para o país, porque signifi­ cou a derrota da democracia e a maior vinculação subalterna do país ao sistema económico mundial. Nunca fomos no quadro in­ ternacional mais consumidores do que produtores de história do que após o colapso janguista, cuja desastrosa consequência foi o corte no processo da descolonização do Brasil. 17

0 golpe de 64 promovido pela CIA reforça a condição depen­ dente e colonial, assim como simultaneamente nos impõe a evi­ dência trágica de que somos uma nação impossibilitada de alterar os rumos da história do mundo. Não é minha intenção aqui elocubrar sobre a relação da história do Brasil com a teoria geral da história, mas não posso deixar de reconhecer que FHC é um presidente da República cabeça-feita pelas ciências sociais. Recordemos que em Roma, 1974, quatro anos antes de FHC candidatar-se a senador pelo PMDB de Franco Montoro, o “profe­ ta alado” Glauber Rocha epiteta-o de “príncipe da sociologia”, menos na acepção aristocrática do que em sentido “maquiavélico”, porquanto o príncipe anticomunista do Cebrap vinha mentalizado em contraposição ao “gênio da raça” Darcy Ribeiro. Esta matéria quase onírica da entrevista de Glauber Rocha na Itália apontava o general Golbery como o artífice discreto que po­ ria em prática a “teoria do autoritarismo” alardeada por Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo descendente de família de gene­ rais (mimado pelo SNI durante o governo Geisel) e que pode ser considerado a síntese de Tancredo Neves e Juscelino Kubitschek no funeral político de João Goulart: de um lado, repulsa retórica ao advento do regime de exceção e, de outro lado, tolerância cíni­ ca e sarcástica em relação aos agentes empresariais e autoritários que investiram contra o presidente deposto em 1964. Essa ambiguidade contida nos livros de sociologia de FHC, que se manifesta mais claramente quando ele deixa a cátedra da USP pelo planejamento do Cebrap, financiado pela Rockfeller e pela Ford, vem acompanhada de uma ênfase obsessiva na ideia de que a qualquer momento poderia surgir novo golpe militar ou recrudescimento da repressão. Os textos sociológicos de FHC indicavam invariavelmente duas tendências: ora a formulação (durante os anos 60) da dependência e do caráter associado da burguesia brasileira de São Paulo (que trai qualquer projeto de um desenvolvimento autónomo), ora a análise institucional do regime na década de 70. A paráfrase contida em sua teoria da dependência não apresenta nenhuma novidade, porque se insere na tradição teorética marxista 18

sobre o imperialismo, que mostra a industrialização do Brasil concomitantemente à internacionalização do sistema capitalista. Fazendo carreira acadêmica, FHC propugna administrar a par­ ceria subalterna da dependência externa, porém realizada dentro de um quadro institucional democrático. Portanto o jovem profes­ sor de sociologia era no fundo o mesmo coisa de 1994, principal­ mente porque ele pregava gerencialmente que não havia necessi­ dade da existência da ditadura, nem tampouco necessidade de rom­ per os laços com o desenvolvimento associado ao imperialismo. Eis um aspecto bastante curioso em sua notável carreira de pro­ fessor da USP: ele é considerado unanimemente um autor de es­ querda hábil em fazer paráfrase do marxismo, ao substituir a pala­ vra burguesia por empresário e ao abandonar a palavra imperialis­ mo, a qual não deveria ser usada pelos schollars, por causa da excessiva conotação emocional. A “teoria da dependência” de FHC, formulada em co-autoria com um ilustre sociólogo latino-americano, é uma jogada bemsucedida para expurgar o imperialismo como bode expiatório das interpretações do Brasil a partir de 1964. Em seu indisfarçável regozijo pela internacionalização da eco­ nomia, ele afirmava a idéia “pluralista” de que a dinâmica interna do país não era mais o colonial reflexo dos interesses externos. O nacionalismo para FHC aparecia como coisa de caipira, ou senão nostalgia varguista pela década de 50. Não por acaso o traço de modernidade em sua teoria política resume-se em condenar como fator de instabilidade social o aspecto carismático da liderança tra­ balhista, assim como a antipatia da UDN em relação ao caudilhis­ mo gaúcho, quase sinónimo de agente disruptivo da ordem públi­ ca, identificando o político carismático com a demagogia que age em detrimento das estruturas partidárias. Para quem ler os livros e artigos do sociólogo Fernando Henri­ que Cardoso, será fácil verificar sua paranoia em relação às Forças Armadas. Mas, em contrapartida, não há nenhuma alusão à mídia eletrónica como elemento decisivo da governabilidade. Não há na prosa sociológica do atual presidente da República lugar para a fun­ ção política da TV na sociedade pós-64, malgrado sua íntima apro­ ximação durante a campanha eleitoral com a “esquerda democráti­ 19

ca” de Jorge Amado, o escritor da estética telenoveleira, o principal articulador da aliança São Paulo e Bahia. Esta aliança eleitoral do empresariado industrial paulista com a classe dominante baiana é um enclave tipicamente tropicalista. Trata-se de um casamento rentista perfeito com missa cantada pelo compositor Caetano Veloso, não obstante o atrito entre os ministros ACM (Bahia) e Luiz Bresser Pereira (São Paulo), que trocaram farpas sobre a ética na política durante o governo Samey. Em todo caso, a aliança sampaba se faz através da sanfona de Dominguinhos. É o poeta pau-de-arara can­ tando a glória da avenida paulista. Desde 1967 a tropicália, com o aval da poesia concreta, narcisa a cidade de São Paulo. Em 1995 os senhores da situação política são os tucanos em parceria com o liberalismo do PFL, convencidos de que depois do playboy Collor a hora é de desdramatizar o jogo político através de um maduro e equilibrado ex-professor de sociologia que se de­ clara avesso à vocação soteriológica, carismática e messiânica na política. O tucano é politicamente um anti-herói, no sentido de que o herói, como diria Ortega y Gasset, é um sujeito que não está contente com a realidade. Ora, uma característica do estilo tucano bem com a vida, segundo Roberto Mangabeira Unger, é justamen­ te a ausência de qualquer indignação diante da miséria do país. Todo tucano é um Apoio batendo às portas de Delfos. Nenhum traço de angústia ou culpa. Sua culturologia mistura o ethos em­ presarial à Schumpeter (com o apego analcrematístico da circula­ ção monetária) ao temperamento da concordia discors, ou seja: a conciliação dos contrários. O discurso em cima do muro é menos a tentativa de harmonizar neoliberalismo e social-democracia do que a continuidade da tran­ sição iniciada em 1964, o que afasta qualquer alteração no status da comunicação eletrónica. É por isso que o ministro Serjão Mota, o ex-dono do jornal Movimento, dá adeus à crítica de um Tocqueville ao domínio totalitário da indústria cultural. O minis­ tro Serjão Mota é o pragmatismo. Sua apologia do faktum menos­ preza a fantasia, identificada com “masturbação sociológica”. O estilo de se fazer política com esperteza é o da tecnocracia monetária. Parafraseando Hegel, estamos vivendo na era FHC sob a astúcia eleitoral do plano económico, que é a fonte da legitimi­

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dade política, a qual requer necessariamente o caminho da TV. De modo que as idéias dominantes na década de 90 são as idéias da TV dominante. A passagem da ditadura à democracia significa que o Exército não é o epicentro político da sociedade, sendo substituído pela musa da TV O Exército torna-se uma mão-de-obra morta em rela­ ção ao vivo vídeo. Diretor de telenovela é mais importante do que general de quatro estrelas. Trata-se de mais um exemplo na histó­ ria da criatura (a TV de 1965) que supera o criador: o Exército de 1964. O baixo nível político do povo brasileiro se agravou com o advento da telenovela que elegeu Collor em 1989, na razão direta da brutal regressão da liberdade de imprensa. A eleição do Plano Real de 1994 é o golpe “brando” mais bem bolado da história re­ publicana. A efetiva tomada do poder do Estado por um sociólogo mostra que de 1964 para cá o Exército foi pouco a pouco se ausentando do processo político, ao passo que se desenvolvia a mídia como partido único. O Plano Real é o além do autoritarismo. A perversi­ dade reside no ardil de um governo do Ministério da Fazenda, e não mais a classe militar reinante do pós-João Goulart. Em 1994 a mídia do partido único realiza a consolidação da democracia. No clima intelectual da USP durante a metade da década de 70 era impossível não citar a “teoria da dependência” e as “idéias fora do lugar” de Roberto Schwarz, o discípulo de Antonio Cândido que vivia em Paris com aura marxista de um Walter Benjamim auto-exilado. O problema é que a teoria da dependência é uma casa da Maria Joana na sociologia. É tão anfibológica quanto a teoria do populismo de Francisco Weffort. De resto, o próprio FHC (em parceria com José Serra) iria gozar a desventura da dependên­ cia, palavra diluidora do imperialismo que descarta a soberania nacional. Em sua monumental Sociologia do Açúcar, Luiz da Câmara Cascudo ironiza a sociologia como uma ciência para justificar o itinerário pessoal do sociólogo. De 1962 a 1978, fomos educados num ambiente de quase unanimidade em relação à sociologia “contestadora” de FHC, ainda que não tivéssemos conhecimento dos meandros dessa notoriedade intelectual, aplaudida fora e den­ 21

tro do Brasil. O reconhecimento da superstição em torno da noto­ riedade requer no entanto a seguinte ponderação: nem o que FHC escreveu sobre política revela o futuro presidente da República, nem tampouco convém jogar no lixo os textos escritos por ele a fim de julgar a natureza de seu governo. Tenho cá minhas dúvidas se vale a pena realizar uma exegese em torno dos textos de FHC com objetivo de apurar o que real­ mente permanece de válido em sua obra sobre o Brasil e a Améri­ ca Latina, ainda que o objetivo imediato seja o de responder se ele foi algum dia de esquerda, ou em que momento ficou de direita, ou se houve da ruptura entre vida e obra. Durante a campanha eleito­ ral comentou-se muito a frase que o candidato teria ou não dito: esqueçam o que eu escrevi”. Ninguém chegou a levantar a possi­ bilidade de que já estivesse sido esquecido o que FHC escreveu em ciências sociais. Francisco Weffort analisa a vitória de FHC pelo ângulo acadê­ mico, chamando-o de intelectual líder de intelectuais, por ter de­ fendido as seguintes teses: 1) A existência de preconceito de cor no Brasil 2) Os empresários querem o pirão primeiro da parte do Estado 3) A despeito da dependência, há crescimento da economia. O regime de 64 não é fascista. Sua característica essencial é o autoritarismo político que, por sua vez, não exclui a modernização da economia 4) São Paulo cresce com miséria e riqueza. De olho num ministério, Weffort estava convencido de que FHC venceu as eleições de 1994 por seus próprios méritos, e não por causa do favorecimento do governo Itamar Franco. Segundo Weffort, Leonel Brizola estaria transvariando por achar que as elei­ ções de 1994 foram fraudadas. Sem olvidar seu passado petista, Weffort prognostica que, a partir de 1994, somente existirá o go­ verno de um líder intelectual e a oposição comandada por um líder operário. Weffort assume o Ministério da Cultura ignorando sole­ nemente a crítica do cineasta Glauber Rocha, para quem o reinado do neoliberalismo iria transformar o povo brasileiro em escravo num país com 27 networks multinacionais. O gigante fragmentado exibiria um povo neo-escravizado. Segundo Glauber Rocha, com

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o liberalismo é inconcebível a idéia de um Brasil internacional desenvolvido capaz de eliminar a fome. Eis a proposta social-de­ mocrata: somente internacionalizando o Brasil é que seremos na­ cionais. Antes de atingirmos a identidade nacional, teremos de palmilhar o caminho da internacionalização do país. A ideologia tucana separa o popular do nacional. O critério pragmático do fun­ cionamento do Estado estará acima de qualquer consideração na­ cional. A ambição de FHC é converter a direita civil pós-64 em agente do progresso com justiça social, contando para isso com o apoio do sistema económico internacional. Loucura é constatar que isso não difere do entusiasmo de Lula pelas multinacionais que pagam melhor seus operários do que as empresas nacionais; o que importa é o salário do trabalhador, e não a nacionalidade da pro­ priedade, como se a classe trabalhadora não estivesse nem aí para a idéia de pátria. É preferível um operário antipatriota do que um operário mal-pago. O pensamento tucano é a linguagem da resignação: estamos des­ tinados a administrar a dependência externa, e não a eliminá-la. O que interessa é a taxa da racionalidade na administração da depen­ dência externa. Assim, se for necessário, não há o menor proble­ ma em utilizar profissionais estrangeiros no gerenciamento do Es­ tado. Em FHC a internacionalização da inteligência precede a es­ tabilização colonial da moeda. Acrescente-se o entusiasmo pela globalização do mundo, a exemplo do sociólogo Octávio lanni, o seu ex-parceiro na USP. Em 1994 o culto do sportman cede lugar ao simulacro do intelectual. Do muscular à sociologia. De Collor a FHC. O PSDB propugna pela ausência de originalidade política e cultural; trata-se de um partido que se contenta com a cópia, a tradução e a adaptação. A estabilização monetária colonial reforça a ideologia da solidariedade com os EUA: o que é bom para os Estados Unidos é bom para São Paulo. No decurso de sua campanha eleitoral, empreendimento mais publicitário do que propriamente político, FHC atribui o fracasso de Lula (sinal de precoce anacronismo) à pretensão de dar uma de líder “messiânico”, sobretudo com a caravana da fome pelo Nor­ deste, que poderia ser dirigida pelo cineasta Cacá Diegues, o dire­ tor da comédia Bye, Bye Brasil, filme anunciador do domínio esté­

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tico da televisão na sociedade brasileira. Glauber Rocha dizia que não tinha visto esse filme por causa da fatídica dialética cantada por Chico Buarque de Holanda: o Brasil na TV e a TV no Brasil. Em 1994 a ética de FHC está de olho no pragmatismo: a fome não é mais importante do que a moeda. A fome se resolve com moeda forte no bolso; basta para isso levar uma vida mesquinha, avaren­ ta, somítica, contando os níqueis na hora do troco. A ópera do equivalente venal de Primeiro Mundo funciona como o charme de sua campanha, denunciada pelo professor Roberto Mangabeira Unger em seu retrato psicológico da social-democracia: a falta de imaginação é tão nociva quanto a falta de escrúpulo. A denúncia mangaberiana da falta de imaginação política, que acompanha a imitação institucional colonizada da social-democracia, mostra a questão do cinismo, mas não explica o sucesso do intelectual FHC. Em Harvard, Roberto Mangabeira denuncia a estabilização impe­ rialista da moeda. E difícil acreditar que Lula tivesse vocação messiânica, antes ou depois das eleições. Se o PSDB é anti-romântico, o PT é antiescatológico. Lula não tem idade para ser profeta, assim como FHC faz parte daqueles políticos modernos cujo objetivo é vencer e al­ cançar o sucesso. Para FHC, o julgamento histórico carece de significação mo­ ral. O político não precisa mais de carisma se souber extrair vanta­ gem no poder: do Ministério da Fazenda à Presidência da Repúbli­ ca. Sua carreira política é impensável sem a presença do Estado como articulador dos sucessivos golpes monetários durante o pro­ cesso eleitoral. Plano Cruzado. Plano Real. Numa democracia re­ cém-egressa da ditadura, o maranha José Sarney inova com um novo modelo político, cuja técnica consiste em manter o preço estável das mercadorias durante o processo eleitoral. FHC fará a leitura do sucesso de José Sarney: a racionalidade do mercado dis­ pensa a exigência do carisma. É o fim da chamada autonomia rela­ tiva da política e, conseqúentemente, um ponta pé na existência de partidos políticos, o que não deixa de ser paradoxal, em se tratan­ do de um ex-professor de ciência política. É por isso que todo so­ ciólogo que se preza está interessado em refletir sobre a aventura de FHC: da cátedra ao palácio.

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Os historiadores no futuro irão discutir a natureza do golpe de 64 em relação ao Plano Real de FHC em 1994. A vitória da plutocracia social-democrata se dá através do voto popular manipulado de fora para dentro do país: nesse contexto o político se converte em vende­ dor. O sujeito do processo eleitoral é o plano económico, e não o candidato, diferentemente de Collor de 1989, que decretou guerra retórica ao marajá como ricohombre ou tecnoburocrata das estatais. O que existe em comum entre o Fernando I e o Fernando II é a sobredeterminação do Estado pela TV, em que a tal da governabilidade entra em pânico se não tiver em sintonia com os interes­ ses da TV hegemónica. Samey. Collor. Itamar. FHC. A TV está no lugar das Forças Armadas há 15 anos. O poder do Estado toma-se vulnerável aos caprichos do sistema videofinanceiro internacional, que é a infra-estrutura do modelo político desde as eleições diretas de Collor. Não por acaso o ghostwriter de Collor, o diplomata José Guilherme Merquior (convertido ao liberalismo) compra uma briga com a Kulturkritik influenciada pela escola de Frankfurt, cujo peca­ do - de acordo com Merquior - seria ver na mídia a encarnação do demónio. Não há motivo, dirá o Merquior quarentão, para se rebelar contra a comunicação de massa. O ministro Ciro Gomes de Itamar Franco, nessa linha neoliberal de Merquior, irá declarar que a TV Globo é o princi­ pal agente da modernidade para o pobre ferrado do Nordeste. A total complacência em relação à videocracia faz parte da produ­ ção sociológica da USP, a qual lamenta menos a ocorrência do golpe político que derrubou João Goulart do que a falta de resis­ tência ao golpe. Convém não esquecer que a comunidade acadê­ mica no eixo Rio/São Paulo/Minas aplaudiu com indisfarçável entusiasmo a grande descoberta “sociológica” realizada por FHC e Serra: a economia cresceu na época de Médici, de modo que o intercâmbio desigual não atrapalha o progresso do país. Glauber Rocha estava pensando em FHC quando escreveu em 1965 • “O presidente eleito viajou 50 dias para ver o mundo exte­ rior e de lá trazer fórmulas para salvar a nação. Técnica, Econo­ mia e Feijão’ ! Em 1996 FHC declara repetidas vezes o entusiasmo pelo futu­ ro do Brasil, ainda que não se observe em seus livros de sociologia 25

política nenhuma ardência patriótica. Não há em FHC paixão nativista ou nacionalista pelo Brasil, como se vê pelos títulos de seus livros: Empresário, Capitalismo Meridional, Autoritarismo, Dependência, Idéias e seu Lugar, etc. Exceção feita à legendária militância juvenil (junto ao Partidão?) a favor do petróleo é nosso, o que se conhece dos textos escritos por ele, antes e depois de 1969, não nos autoriza a enquadrá-lo como autor telúrico ou radi­ cal da pátria. FHC é um sociólogo inteiramente anti-romântico, no sentido de que foi o romantismo que inventou o verde-amarelo; de resto, nele a empatia pelo método nas ciências sociais é infinita­ mente maior do que afeição pelo processo civilizatório da gente brasileira. Sua carreira acadêmica (não obstante ter sido aluno de Roger Bastide) está mais entrosada com o repúdio ao ensaísmo do que com a ontologia brasiliana. Tanto que a vocação de sua socio­ logia internacionalizada converte a escravidão numa abstrata ca­ tegoria económica, de acordo com a dialética do marxólogo Arthur Gianotti, o principal responsável pela tese de doutorado de FHC sobre o Capitalismo Meridional. Segundo a crítica do antropólogo Darcy Ribeiro durante a campanha eleitoral de 1994, a sociologia de FHC não toca nos temas substanciais do Brasil. Curiosamente essa mesma crítica, antes de Darcy Ribeiro, foi formulada por Glauber Rocha em 1974, dizendo que as interpretações do Cebrap sobre o Brasil eram fracas, superficiais, equivocadas, embora va­ zadas em estatísticas e sofisticados arsenais metodológicos. Aos cientistas sociais afeiçoados à história das idéias um ponto que merece vir a ser considerado é o espectro de Getúlio Vargas rondando o governo FHC. Pouco importa se as idéias dominantes são do PFL ou do PSDB, com respeito a um abismo na estrutura económica entre o Brasil de hoje e aquele dos anos 50. É no entan­ to essa suposta diferença histórica que justifica o mote, tão amiú­ de repisado por FHC, de que o “Brasil mudou”, embora nunca seja explicitada a natureza desta mudança, cabendo a pergunta: mu­ dou em relação a quê? Segundo FHC, o Brasil mudou. E isso basta para o e eito retór co o Brasil já não é mais o mesmo. Em meados dos anos 70, retonco. o jji j rPOime ele se definirá como um opondo-se ao autontansm necessidade inadiável de mumilitante “mudancista”. apelando à neeess.

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dança na sociedade brasileira: do autoritarismo para a democra­ cia. Mais eis que de 1978 a 1994 operou-se a tal mudança, ainda que não se saiba em que ela consiste, a não ser naquele sentido banal de que o Brasil mudou porque um sociólogo chega pela pri­ meira vez à Presidência da República. FHC sempre contou prosa de ser um sociólogo com formação marxista e conhecedor do Es­ tado, realizando pois a difícil crítica da política, diferentemente de seu mestre Florestan Fernandes, em cuja obra quase não há lu­ gar para a reflexão sobre o Estado. FHC sempre se auto-elogiou por não ter embarcado na estatofobia sociológica, um dos compo­ nentes essenciais na formação do PT, temperado com o molho de Gramsci. O PT, segundo FHC, padece do mal do “basismo” que descarta o Estado. Em 1969 FHC (aposentado) deixa de ser funcio­ nário público, mas não abandona a reflexão sobre o Estado, inclu­ sive seu sucesso na iniciativa privada do Cebrap estaria condicio­ nado à fama de funcionário público politicamente perseguido pelo autoritarismo pós-64. A convergência de FHC (PSDB) com Weffort (PT) no poder pressupõe o definitivo perdão, na sociologia políti­ ca, ao golpe de 64. Na década de 80 muita lábia rolou para subli­ nhar o mérito de FHC que, através da estatística dos bens de con­ sumo durável (rádio, TV, geladeira e fogão), teria mostrado que houve aumento de produtividade económica sob a vigência do re­ gime pós-64, não obstante a subalternidade ao imperialismo e o arrocho salarial. A semântica do termo “dependência” é um eufe­ mismo para designar o imperialismo, o qual acaba por não ser res­ ponsável pela atraso ou miséria do país. Noutras palavras, a de­ pendência não exclui o desenvolvimento, nem é incompatível com as liberdades democráticas - eis a essência do realismo de FHC para justificar sua aliança com os protagonistas do golpe de 64. Para FHC, mesmo integrado ao mercado mundial, o destino da sociedade brasileira não é o da superexploração da força de traba­ lho nem tampouco os países ricos são ricos por causa da pobreza do Terceiro Mundo, apesar do intercâmbio desigual ou da remessa de lucros. Segundo ele, a dependência não é a morte, porque nem oda a mais-valia produzida no país é drenada para as economias ° resultando daí o carreirismo tucano: afirmar que é plenaente viável um desenvolvimento auto-sustentado, onde o impe­

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rialismo torna-se complemento à produção industrial. Assim o im­ perialismo não deve ser considerado o vilão responsável pela re­ pressão política e pelo subdesenvolvimento. Segundo a retórica tucana, o Brasil não é mais um país subdesenvolvido, e sim um país injusto. O sociólogo da dependência converte-se em príncipe do capital associado. O imperialismo a partir de 64 muda de fisionomia: ao invés de operar de fora para dentro, ele instala-se no mercado interno como sócio privilegiado da acumulação de capital. Por conseguinte, o charme sociológico da “teoria da de­ pendência” seria o manejo das variáveis interna e externa, pois a mudança na fisionomia do imperialismo fortalece a dinâmica pró­ pria do espaço nacional, ou seja, o imperialismo influencia mas não determina a estrutura da sociedade brasileira. Enfim, sob o ângulo entreguista da sociologia da dependência, a Carta Testa­ mento de Vargas é um documento anacrónico. Para os teóricos tu­ canos, o imperialismo é a saúde do desenvolvimento das forças produtivas, ampliando o progresso para a maioria da população. O economista Luis Carlos Bresser Pereira, cuja carreira se origi­ na na iniciativa privada (e que pode ser visto como um discípulo do modelo da substituição de importações) segue a mesma tendência intelectual: a de hipostasiar o elemento endógeno na compreensão da sociedade brasileira, não obstante a referência ao drama da dívi­ da externa. O que se observa em seus últimos livros e artigos é o enfoque da “crise fiscal” do Estado à margem da inserção do país na trama das relações internacionais. Para Bresser, não há nada de “fora” que obstaculize o desenvolvimento autónomo do país. Nesta teoria do desenvolvimento o marxismo cede lugar ao funcionalismo. A social-democracia é uma teoria funcionalista da autocausação da dinâmica interna (Estado, acumulação, classes sociais), porém aplau­ de a internacionalização do intelectual e a globalização do planeta. A hipóstase endógena típica do funcionalismo paulista é o espagueti da ideologia neocolonial, pois para eliminar o atraso do pais não é necessário alterar o modo pelo qual a economia brasileira se conecta aoc núcleos cêntricos do capitalismo mundial. Aos opositores de seu projeto de reformar a Constúuiçao para bem exercer a arte social-democrata com'of‘“ „ corporativismo dos hnconános publ.cos (r 28

insurge contra os anacrónicos defensores do nacionalismo dos anos 50 (PDT), os quais não teriam se apercebido que o mundo globalizado já não é mais o mesmo da época da substituição das importações, sugerindo assim que a própria realidade histórica teria enterrado definitivamente a era Vargas. Por conseguinte, os atuais herdeiros ideológicos do trabalhismo (Leonel Brizola e Darcy Ri­ beiro) seriam defuntos que se esqueceram de deitar no caixão. Os notáveis do PSDB, diante de seu parceiro de aventura po­ lítica (o PFL), insinuam que o caminho politicamente correto da oposição seria a tolerância em relação a FHC, para evitar o pior: a ascensão da pefelândia direitista. Há também aqueles que insi­ nuam a sutil distinção entre um PFL autoritário e outro progres­ sista. Seria o caso do vice Marco Maciel, a quem se atribui a qualidade política da tolerância e civilidade, embora tenha sido um burocrata que fez carreira durante a ditadura de 64. O que se elogia em Maciel é a hábil plasticidade política de amalgamar o engenho de açúcar do Nordeste com o empresariado industrial de São Paulo. Partido político de coronéis, de rentistas e de oligarcas, o PFL apresentaria um perfil dual: na ala pernambucana teríamos os progressistas Krause e Maciel (o ilustrado “PFL da dona Ruth”), enquanto o PFL baiano seria o enclave da oligar­ quia com a indústria cultural, representado pelo binómio ACM e Roberto Marinho, os quais controlariam o Senado e a Câmara dos Deputados. Isso significa dizer que a essência do governo social-democrata é o PFL, cuja articulação envolve o Estado, a política e a mídia. Nem tudo decorre do golpe de 64 - eis o segredo da trajetória intelectual de FHC, a síntese do sociólogo competitivo com o mi­ litante político, de que falava o mestre Florestan Fernandes, sem demonstrar mal-estar algum (ao contrário de Karl Marx) em rela­ ção à existência da competição no mercado intelectual acadêmico. Neste sentido é que a sociologia paulista, desde a década de 60, é a expressão da sociedade civil, embora feita por funcionários pú­ blicos do estado de São Paulo, onde a USP aparece como um apa­ relho ideológico colonizador das demais regiões, ou seja, a USP é a Roliudi da sociologia brasileira. São Paulo, dentre todos os ou­ tros estados, foi o que se deu melhor com a política do golpe de 29

64. É por isso que a reflexão sobre a trajetória de FHC não deve circunscrever-se apenas aos seus livros, pois requer a análise da totalidade da produção sociológica acadêmica no Brasil pós-64, principalmente no eixo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas, tendo como característica essencial a estranha subestimação do golpe de 64 nos rumos da história do Brasil, ou senão a idéia correlata de que 64 inaugura algo inteiramente novo na estrutura social do país, ou seja: a idéia feagaciana de que o “Brasil mudou”. Francisco Weffort foi seu ex-aluno na USP, assim como Florestan Fernandes foi seu ex-professor, o que revela a impossi­ bilidade de entender a caminhada de FHC ao Palácio do Planalto sem cotejá-la com o aparecimento do PT em São Paulo. A despeito das diferenças de personalidade (a menor ou maior fé na existência de partido político), FHC e os intelectuais protopetistas estavam desconectados do transe de 1961 a 1964, quer da vertente brizolista, quer da vertente janguista. Em meados dos anos 60 os futuros sociólogos petistas de São Paulo se dedica­ ram a fazer a crítica do populismo e da tutela manipuladora do Estado nos movimentos sindicais, enquanto FHC enveredava por outras plagas: empresariado, dependência, desenvolvimento asso­ ciado, sem contudo deixar de repudiar os efeitos maléficos do cau­ dilhismo na América Latina, resultando daí sua aversão declarada ao comportamento carismático, messiânico, personalista, salvacionista. * Não é preciso ser Fernando Henrique para compreender Fernando Henrique, ainda que pesquisar história não seja o mes­ mo que fazer história. E que história faz Fernando Henrique? Dei­ xemos de lado o caráter imprevisível na ação humana e a irracionalidade do acaso - inclusive o acaso objetivo (aposentado­ ria da USP? Cebrap? Ministro de Itamar?) - para pensarmos na escola sociológica anticarismática de FHC e seus condicionantes políticos na história do Brasil pós-64. Ainda é cedo para imputarlhe o paradoxo das consequências na ação histórica: fazer política de esquerda com gente de direita ou fazer política de direita com gente de esquerda? O jovem professor de sociologia teve a sorte extraordinária de ganhar uma prematura aposentadoria na USP em 1969. É nesse momento que baixou nele a virtú, não propriamente

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a de Maquiavel, mas a de Max Weber, posto que vítima jubilosa de um erro na machine burocrática da universidade. Tal sorte não a teve Francisco Weffort, então professor de ciências sociais da USP; Florestan Fernandes compartilhou da mesma aposentadoria de FHC, porém não do mesmo destino político, o que mostra quão complicada é a relação da biografia com a história. Quanto ao traço anticarismático de FHC, não devemos entendêlo como reação ao “sebastianismo” de Collor. Durante sua campanha eleitoral de 1994, FHC (tal qual Lula) não se arvorou a profeta de uma nova ordem social, nem tampouco se apresentou como um político visionário; afinal ele leva a fama de ateu e incrédulo, assim como não pode ser considerado um sociólogo que tenha fé na história. Laico, secular, weberianamente desencantado e realista, o sociólogo FHC transfere a ausência de vocação carismática (o dom da graça) para a moeda do Plano Real. Este é o seu mais forte cabo eleitoral, inclusive a fonte de legitimidade de seu governo. O determinante é o fator económico em primeira instância, o que acaba por colocar em nível subalterno a existência político-partidária, comprometendo seriamente a tal “autonomia relativa” da política, que é substituída tecnocraticamente pelo mercado, operando a conversão do carisma em dinheiro, portanto prisioneiro da estabilização monetária. Visitando Manaus, abril de 1994, três meses depois de empossado presidente da República, ele lança esta autognose: “Tive votação acima de 60, 70 por cento nestas regiões. Não votaram em mim como pessoa, seria presunçoso de minha parte, votaram numa esperança para o Brasil, num caminho que eu no momento simbolizo, e continuo simbolizando, e vou simbolizar, porque esse é o caminho do Brasil”. Pretendendo erradicar o sobressalto dramatizado da era Collor, seu lema anti-fracassomania é o otimismo do tout va bien, madame la marquise'. FHC é um príncipe da moeda que atua num contexto da tecnocratização autoritária da política, iniciando sua carreira de homem público pela via prussiana: de cima para baixo. Delfim Neto o batizou de “estelionatário reincidente”: primeiro foi com o Plano Cruzado em 1986, senador; depois com o Plano Real, elegendo-o presidente da República através de um “plebiscito”. 31

Um dos mais altos valores prezados por FHC de 1969 a 1982 (entre o Cebrap e o Senado) é justamente a internacionalização do intelectual, o que revela mais uma vez, como diria Karl Marx, que as atividades intelectuais não têm história; daí a conexão na ideo­ logia tucana entre a burguesia internacionalizada de São Paulo e os gerentes das multinacionais. A “teoria da dependência” de 1967 é o prelúdio da sua viagem cosmopolita, assim como a ideologia social-democrata emana das condições materiais de São Paulo pós64 com a sua função neocolonizadora das demais regiões. E através do aprofundamento internacional do país que deve ser conduzido nosso desenvolvimento. FHC é o sociólogo que toma gosto pela dependência externa. O imperialismo converte-se numa fatalidade. Aliás, não é por acaso que os políticos paulistas desde 1930 são favoráveis ao pagamento da dívida externa, a exemplo de Whitaker, ministro da Fazenda. Não deixa de ser estranho aplaudirmos um presidente sociólogo no momento em que a sociologia declina, moribunda e decadente, sendo substituída pela publicidade e pelos institutos de pesquisa. Em 1994, na hora do programa eleitoral da TV, apareceu ines­ peradamente a voz off do ex-presidente Collor a reclamar do impiti que o vitimou, como se o voto não fosse garantia para se alcançar e permanecer no poder. O que há em comum entre o Fernando I e o Femando II é menos a admiração de um pelo outro do que a inser­ ção de ambos na estrutura do capitalismo videofinanceiro da déca­ da de 80, no qual encontram-se em simbiose a economia financei­ ra e a mídia monopolista. Nesse contexto a Kulturtevê é a cultura popular no processo das escolhas eleitorais, o que significa dizer que o povo torna-se público de TV. O presidente FHC é a realização do projeto empresarial paulista desnacionalizado; contudo convém não perder de mira sua vinculação orgânica com a classe dominante rentista do Nordeste, que, por sua vez, estabelece o elo de ligação com a indústria cultu­ ral eletrónica da Rede Globo. A ideologia neoliberal desse enclave timbra em dissociar o processo da democracia do conceito de na­ ção, de que resulta necessariamente o cinismo ou sarcasmo com° figura de estilo. Assim a luta pela liberdade democrática não deve conduzir ao objetivo da emancipação nacional. Aliás, essa foi a ilusão do jotakaísmo em administrar racionalmente a dependên­ cia: o famoso salto dos 50 anos em cinco.

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Com o impiti de CoIIor (do qual FHC não é senão o desfecho planejado), o processo eleitoral requer a análise da legitimidade política sob o capitalismo videofinanceiro internacional, do qual faz parte o filme pornô de James Canville e sua wife pistoleira, recebidos jubilosamente em São Paulo como as feras marqueteiras da globalização de Bill Clinton. Não resta hoje a menor dúvida de que o dispositivo da TV foi suficiente para Collor ganhar as elei­ ções. FHC não dispensou esse dispositivo da TV com o sinistro embaixador Ricupero, mas incorporou um plano monetário em sua campanha eleitoral: o plebiscito do real. O sociólogo FHC se va­ leu da cobertura da mídia porque já tinha a seu dispor o Estado, sendo o candidato oficial de Itamar Franco, enquanto Collor não foi o candidato originalmente concebido por José Sarney. A desgraça de Collor seguiu-se o êxito de FHC, que caiu nas graças de Itamar Franco, embora ainda seja cedo para apontar o epílogo dessa amizade, pois FHC talvez tenha psicologicamente apreço maior por Collor, considerando no fundo Itamar um caipira, um provinciano, um bronco que não entende nada de economia, enfim, um jacu de Juiz de Fora, incapaz de se apresentar bem vestido ao Michel Candessus do FMI. Sob a bênção de Stanley Fischer, assíduo leitor da sociologia de Florestan Fernandes, foi fácil para FHC derrotar Leonel Brizola e Lula. São Paulo também elegeu Collor, ainda que não fosse este o candidato ideal do empresariado paulista. Ora, FHC é a candidatura dos olhos do empresariado de São Paulo, inclusive porque ele é o seu eminente sociólogo, em cuja carreira acadêmica se observa o empenho de atenuar a responsabilidade da burguesia industrial paulista no golpe de 64. Dificilmente essa burguesia fará qualquer tipo de oposição a FHC, ao passo que Collor foi despachado pelo empresariado de São Paulo, o qual teria se indisposto com o pedágio de PC Farias, o único nordestino que até hoje conseguiu a façanha de tirar algum troco de Antônio

Ermínio de Moraes. Tanto Collor quanto FHC raciocinam de fora para dentro do naís- são os agentes do novo processo imperialista, daquilo,que o físico Bautista Vidal denomina de “periferização por dentro”, cujo principal instrumento na esfera da comunicação é a Rede Globo, a

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despeito de seu capital inteiramente nacional. A Roliudi do Jardim Botânico está empenhada em colocar a economia do mercado financeiro acima da democracia e da soberania nacional, enfim, a televisão cumpre o papel de persuadir o público boçalizado de que o automovimento do dinheiro é mais vital do que o sentimento da pátria. A televisão funciona como um King-Kong eletrónico do projeto imperialista (conduzido de fora) para demolir o Estado, desagregar a nação e converter o povo brasileiro em escravo das grandes corporações multinacionais. A social-democracia tucana está menos para o governo geral de Tomé de Souza do que para as privadas capitanias hereditárias. A propósito de FHC, digamos que a fofoca sobre a sua vida íntima descende a um plano de interesse secundário, o que não significa no entanto que o fator subjetivo de sua personalidade deva ser descartado numa análise do tucano estilo de governar o país. Então, seria preciso começar pela sua inserção acadêmica nas ciências sociais, que correm o sério risco de serem levadas na galhofa no momento em que um sociólogo torna-se presidente da República. E constrangedor para os cientistas sociais a constatação de que um ignorante como ACM seja o conselheiro do presidente peagadê, ainda que FHC já tenha cometido a loucura de dizer que o doutor Roberto Marinho é um empresário renascentista. Logo depois de apurados os votos em 1994, o sociólogo Francisco Weffort declara na frente da TV que sentia “inveja saudável” de FHC, por ser este um intelectual que se encontra no comando do Estado. O que constitui a preocupação máxima da ciência política desde Maquiavel gira em torno da capacidade do príncipe em ouvir as vozes que não são áulicas ou bajuladoras. Daí a curiosidade de saber quem são os conselheiros do príncipe, sobretudo em se tratando de FHC, que leva a fama de ser um tipo arrogante e orgulhoso, convencido de que encarna a fina flor da racionalidade tecnoburocrata capaz de colocar ordem na casa. FHC se julga o detentor da razão e do juízo, o que não o impede de vir a se enredar num impasse análogo ao do personagem Simão Bacamarte, o louco-

varrido da prosa machadiana , antes, FHC jogQu Já no Ministério da azen a, ou q Ç ideo]ogja> principalmente no lixo a utopia, retendo para si apenas 34

através de um discurso eminentemente antivisionário e antiromântico, tomando partido do “realismo” e do apego à realidade. Neste sentido trata-se de uma personagem que não tem nada de religioso e, conseqúentemente, que recusa o dom do carisma, talvez por saber que não o possui como político. Todavia o carisma para ele é identificado como algo nocivo; tampouco existe em sua personalidade alguma veleidade messiânica. Desde o seu antigo discurso sociológico uspiano não há lugar para a idéia do político convertido ao amor de Cristo. Poder-se-ia afirmar tranqúilamente que em FHC a prostituta da moeda substitui Cristo, inclusive como fonte de sua legitimidade política. Deixemos de lado a lógica de sua bem-sucedida carreira palaciana (de professor a latifundiário) e indaguemos sobre o modelo político de alcançar o poder. Seria perda de tempo tentar empreender uma hermenêutica da doutrina tucana; de resto, o tucanismo não se deixa conhecer pelo aspecto doutrinário, e sim pelo ardil videofinanceiro. O que aí conta na verdade é a ambição pragmática, acrescida do estranho desígnio de acabar com o sentido de missão da carreira pública. Convém desconfiar da atitude que estabelece um corte entre o que foi a imaginação sociológica e o que se entende por realismo do político, assim como não se deve levar a sério a declaração do candidato, uma semana antes das eleições, de que seus mestres são Weber, Tocqueville e Florestan Fernandes, para analisar a partir daí sua trajetória política como uma miscelânea refundida desses autores. Em Juiz de Fora é comum ouvir o comentário de que nunca Itamar Franco adiantou tanto o lado de alguém quanto o de seu exministro da Fazenda. De fato, FHC deitou e rolou durante o gover­ no de Itamar, lançando o Plano Real no apagar das luzes, diferen­ temente do Piano Cruzado, que foi mentalizado durante o início do governo Sarney. Quando Itamar Franco assumiu a Presidência, a mídia de São Paulo torpedeou seu Ministério por carecer de peagadê, exceção ao chanceler FHC, doutor em sociologia pela USP, sugerindo que em Minas Gerais a sociologia não goza de bom nome. Diante des­ sa armadilha montada pela mídia de São Paulo, Itamar se sentiu

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despeito de seu capital inteiramente nacional. A Roliudi do Jardim Botânico está empenhada em colocar a economia do mercado financeiro acima da democracia e da soberania nacional, enfim, a televisão cumpre o papel de persuadir o público boçalizado de que o automovimento do dinheiro é mais vital do que o sentimento da pátria. A televisão funciona como um King-Kong eletrónico do projeto imperialista (conduzido de fora) para demolir o Estado, desagregar a nação e converter o povo brasileiro em escravo das grandes corporações multinacionais. A social-democracia tucana está menos para o governo geral de Tomé de Souza do que para as privadas capitanias hereditárias. A propósito de FHC, digamos que a fofoca sobre a sua vida íntima descende a um plano de interesse secundário, o que não significa no entanto que o fator subjetivo de sua personalidade deva ser descartado numa análise do tucano estilo de governar o país. Então, seria preciso começar pela sua inserção acadêmica nas ciências sociais, que correm o sério risco de serem levadas na galhofa no momento em que um sociólogo torna-se presidente da República. E constrangedor para os cientistas sociais a constatação de que um ignorante como ACM seja o conselheiro do presidente peagadê, ainda que FHC já tenha cometido a loucura de dizer que o doutor Roberto Marinho é um empresário renascentista. Logo depois de apurados os votos em 1994, o sociólogo Francisco Weffort declara na frente da TV que sentia “inveja saudável” de FHC, por ser este um intelectual que se encontra no comando do Estado. O que constitui a preocupação máxima da ciência política desde Maquiavel gira em torno da capacidade do príncipe em ouvir as vozes que não são áulicas ou bajuladoras. Daí a curiosidade de saber quem são os conselheiros do príncipe, sobretudo em se tratando de FHC, que leva a fama de ser um tipo arrogante e orgulhoso, convencido de que encarna a fina flor da racionalidade tecnoburocrata capaz de colocar ordem na casa. FHC se julga o detentor da razãoe do juízo, o que não o impede de vir a se enredar num impasse análogo ao do personagem Simão Bacamarte, o louco.

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através de um discurso eminentemente antivisionário e antiromântico, tomando partido do “realismo” e do apego à realidade. Neste sentido trata-se de uma personagem que não tem nada de religioso e, conseqiientemente, que recusa o dom do carisma, talvez por saber que não o possui como político. Todavia o carisma para ele é identificado como algo nocivo; tampouco existe em sua personalidade alguma veleidade messiânica. Desde o seu antigo discurso sociológico uspiano não há lugar para a ideia do político convertido ao amor de Cristo. Poder-se-ia afirmar tranqúilamente que em FHC a prostituta da moeda substitui Cristo, inclusive como fonte de sua legitimidade política. Deixemos de lado a lógica de sua bem-sucedida carreira palaciana (de professor a latifundiário) e indaguemos sobre o modelo político de alcançar o poder. Seria perda de tempo tentar empreender uma hermenêutica da doutrina tucana; de resto, o tucanismo não se deixa conhecer pelo aspecto doutrinário, e sim pelo ardil videofinanceiro. O que aí conta na verdade é a ambição pragmática, acrescida do estranho desígnio de acabar com o sentido de missão da carreira pública. Convém desconfiar da atitude que estabelece um corte entre o que foi a imaginação sociológica e o que se entende por realismo do político, assim como não se deve levar a sério a declaração do candidato, uma semana antes das eleições, de que seus mestres são Weber, Tocqueville e Florestan Fernandes, para analisar a partir daí sua trajetória política como uma miscelânea refundida desses autores. Em Juiz de Fora é comum ouvir o comentário de que nunca Itamar Franco adiantou tanto o lado de alguém quanto o de seu exministro da Fazenda. De fato, FHC deitou e rolou durante o gover­ no de Itamar, lançando o Plano Real no apagar das luzes, diferen­ temente do Plano Cruzado, que foi mentalizado durante o início do governo Sarney. Quando Itamar Franco assumiu a Presidência, a mídia de São Paulo torpedeou seu Ministério por carecer de peagadê, exceção ao chanceler FHC, doutor em sociologia pela USP, sugerindo que em Minas Gerais a sociologia não goza de bom nome. Diante des­ sa armadilha montada pela mídia de São Paulo, Itamar se sentiu 35

intelectualmente inferiorizado, e aceitou a internacionalização da economia e da cultura, assim como acabou aplaudindo a privatização. A empresa Usiminas foi privatizada a preço de banana. Com a privatização de Volta Redonda, Itamar começa a enter­ rar a era Vargas. A vitória eleitoral de FHC em 1994 faz parte de um modelo polí­ tico no qual os partidos sem pecúnia transformam-se em associa­ ções inoperantes. O processo eleitoral do Plano Real aparece como mero reflexo da manipulação da economia empreendida pelo Esta­ do em conluio com a mídia. Este é o modelo político típico do capi­ talismo videofinanceiro, o qual coloca numa situação embaraçosa a necessidade de fortalecer o pluralismo partidário. Estamos diante de uma novidade “democrática” na vida nacional. Além de interfe­ rir ou regular o funcionamento do mercado, o plano monetário age como manipulador ideológico do processo eleitoral. A cada nova eleição um novo plano económico, eis a dinâmica política do capi­ talismo videofinanceiro. O Plano Cruzado foi o congelamento de preço. O Plano Real foi a estabilização monetária. O que levou o físico Bautista Vidal a dizer com toda a razão: ou o Brasil acaba com o Banco Central ou o Banco Central acaba com o Brasil! O fantasma de FHC chama-se Fernando Collor. Fantasma no sen­ tido freudiano: aquela instância fantasmática que persegue a dialética do amor e ódio. Dir-se-ia que o retorno possível de Collor é o retor­ no ao reprimido de FHC, malgrado o ex-presidente apontar em Itamar a génese do calvário que o levou ao impiti cara pintada. O espectro a curto prazo de FHC não é Leonel Brizola, o qual foi derrotado por Collor em 1989, que se serviu de Luiz Inácio Lula como tomada eletrónica da Rede Globo. O doutor Roberto Marinho não perdoou a Collor por aproximar-se de Brizola, discorrendo (em visita ao Palácio do Planalto) sobre a tradição gaúcha do castilhismo, de que Lindolfo Collor foi um dos discípulos intelectuais junto com Getúlio Vargas. A Rede Globo não gostou da sedutora conversa de Brizola sobre Júlio de Castilhos, cujo interlocutor - o presidente Collor - poderia talvez ingressar num lance que o fizesse atenuar o neolibera^lismo colonizado. A^sini, do ponlo de^isu^ideológico, o

impiti de Collor começou na tumba de seu conciliado postumamente com GetuhoV g

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Na conversa sobre a aventura de Vargas e Lindolfo, Fernando Collor vacilou por falta de convicção espiritual na história do Bra­ sil depois de 1930. Collor deu naquele momento sinais inequívo­ cos de hesitação e pusilanimidade, contribuindo para a explicação de seu impiti pelo pecado do Fiat Elba. Aos olhos dos historiado­ res superficiais, o Fiat Elba de Collor é o Gregório Fortunato da rua Tonelero. Não tenho vocação a profeta, portanto não arrisco vaticinar nada sobre o futuro do Collor, a não ser a constatação empírica sobre o efeito emocional que ele exerce na personalidade de FHC. Não sou capaz de advinhar o que se passa na cabeça de Collor pósimpiti, ou seja: na passagem de herói a vilão da moralidade. De resto, ninguém sabe exatamente se Collor, durante seus shakesperianos solilóquios em Miami, se julga politicamente se­ pultado, porque posto fora da telenovela.

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2 Da Fama Sem Imortalidade

s anos de formação são decisivos. Da juventude à maturidade não há abismo como supõem os que acreditam na irrupção deus ex machuia do PFL na carreira do atual presidente da Repú­ blica. Por ser FHC intelectual (um produto uspiano de Antonio Cândido, de Sérgio Buarque de Holanda e de Florestan Fernandes), o significado dele na política requer abordagem que aprofunde a questão da cultura: a moeda real não é apenas combate à inflação, e sim atitude reveladora da dominação do dinheiro sobre todos os aspectos da vida. Disso o reflexo é a frivolidade na linguagem e no comportamento dos atuais detentores do poder, que leram Tocqueville, Marx e Weber. O sexo frio dessa política se manifes­ ta na recusa do romântico, do carisma e do amor. Em essência, trata-se de uma mensagem baixo astral, onde o dinheiro é força e potência de um mundo onde não tem vez o espírito. O Plano Real carece de alma, pois está situado no reino abstrato do dinheiro. O crítico literário José Guilherme Merquior, convertido infelizmen­ te ao “progresso” neoliberal da década de 80, ridicularizou o ódio de Karl Marx ao dinheiro: um ódio maior ao dinheiro do que ao Estado. Todavia FHC começa com o Marx universitário do fatoreconômico-em-última-instância, dando preferência à grana do que ao “dom da graça” na política, contribuindo mais tarde para o tris­ te adeus à “autonomia relativa da política”. O materialismo mecanicista do sociólogo FHC radicalizou o Plano Cruzado de Sarney e elevou ao máximo o fetichismo do vil metal.

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A composição do Piano Real relaciona sexo com política a partir da USP, na esteira da pesquisa institucional de Sérgio Miceli: o Plano Real como manifestação do erotismo castrado em São Paulo. No discurso anticristo dos tucanos não sobra espaço para a inspiração pneumática, considerada coisa “arcaica”, atrasada, provinciana e folclórica. Em suma, culturalmente a personalidade tucana despreza o amor, a pátria e o espírito. É o ateísmo reacionário que só acredita no dinheiro como estratégia racional para alcançar o poder. Talvez seja por esse motivo de ordem antierótica que FHC (mesmo em se tratando de um homem que se tornou presidente da República) não valha uma biografia. O futuro dirá se estou ou não errado a respeito da aliança do PFL com o PSDB. Nesse pactuni, o órgão do corpo humano mais expressivo não é a mão do trabalhador, mas o ânus do capital videofinanceiro. Um artista do primeiro time, dotado de sensibilidade apurada para entender o segredo do nosso tempo, Jean-Luc Godard, já colocou na tela do cinema o seguinte diálogo:

- C est pas de la politique, c*est du cul. - Non, c est pas du cul, c’est de la politique. ” Não é preciso ser um gênio iluminado em ciências sociais para verificar que o ex-sociólogo “marxista”, “marxólogo” - ou quiçá weberkeimiano (essa combinação eclética de Weber com Durkheim didatizada por Florestan Fernandes na USP) foi em 1994 um prín­ cipe ungido pela moeda do Plano Real. Ele já cansou de repetir que sua viagem ao poder não se deve a qualquer dom carismático, deixando bastante claro a recusa do traço “mágico” ou “heróico” em sua vocação de homem público. Sob esse ângulo, FHC é um condottiero, fruto de uma leitura especializada de Raízes do Bra­ sil de Sérgio Buarque de Holanda, o historiador que identificou nos anos 30 o perigo do carisma converter-se em personalismo do tipo caudilho latino-americano, prenunciando com essa formulacão de 1933 a crítica ao futuro Estado Novo vargutsta de >937.O oue não deixa de revelar sua atitude inaugural refrarana a Getuque j ermim?nto democrático anti-Vargas, lio Vargas. Trata-se e um g . ca (je São Paulo há mais cuja influência é enorme na vida académica de meio século. 40

Por mais problemática que seja aludir à paixão de mestre e discípulo em se tratando do sociólogo FHC, reconheçamos no en­ tanto que em São Paulo, dentre os grandes ensaístas da década de 30 (Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre), não há dúvida de que é maior o prestígio intelectual de Sérgio Buarque de Holanda na política paulista, inclusive em relação à sociologia elaborada pelo professor Florestan Fernandes, cujos dotes estilísticos sempre fo­ ram inferiores aos do autor de Raízes do Brasil, livro que até hoje é considerado opus magnum da tradição progressista democrática, incomparavelmente mais curtido do que qualquer ensaio de Alberto Torres ou de Oliveira Viana, autores que foram classificados sob a rúbrica “agro-autoritário estatizante”, por conseguinte avessos ao cosmopolitismo anticaipira e urbaníssimo de FHC. A acusação de que o ciclo do Estado (1937) se tornou anacróni­ co na década globalizada de 90 está ancorada na herança intelec­ tual de Sérgio Buarque de Holanda. Este legado coloca no limbo ou é contrário à outra vertente do pensamento social brasileiro, que vai de Silvio Romero a Nelson Werneck Sodré, ou de Manoel Bonfim a Darcy Ribeiro. Em FHC a existência do PFL não é um acaso desprovido de antecedentes intelectuais, embora ele simplifique a crítica de Sér­ gio Buarque de Holanda ao iberizante carisma personalista caudilhesco. Nisso FHC acabou por joaquinabuquizar em demasia o autor de Raízes do Brasil: um Brasil globalizado, sem raízes, flutuando no espaço das neíHW*&.y_rnultinacionais. O fator determinante da globalização afasta culturalmente a idéia de expressão particular, identificada por FHC como o domí­ nio do “arcaico” caipira. O objetivo do Plano Real é melhorar a sorte do Brasil, com a condição deste se desnacionalizar por intei­ ro. A tal globalização determina a própria inoperância em fazer história, ou seja: a inércia política diante do cenário mundial. A filosofia da história dos tucanos é um convite à brochada. Em 1995 o ministro Luiz Bresser Pereira polemiza com o dramaturgo Octávio Frias Filho sobre o tanto faz esquerda ou direita, nacionalismo ou entreguismo. Cabe aqui referência ao raciocínio do historiador Nelson Werneck Sodré em A Farsa do Neoliberalismo: globalização quer 41

dizer o fim da história para os países do Terceiro Mundo. Nao adianta esperar que a história caminhe em diieçao à autonomia

nacional. As decisões económicas não são tomadas em âmbito na­ cional. Evidentemente o governo propaga a ilusão em torno das vantagens que o país poderia tirar da dependência globalizada Nisso consiste sua única ousadia: a de apostar no desaparecimento da entidade nacional soberana: ou moi (Plano Real) ou o caos. No início do ano de 1995 assistimos ao espetáculo do Sivam ianquizado. O cenário de Guerra do Vietnã à maneira brasileira: nenhum tiro. Apenas uma chamada telefónica entre Clinton e FHC, combinando que a Amazônia permanecerá sob o protetonado mili­ tar norte-americano, atribuindo ao Exército brasileiro o papel de polícia regionalizada. O escritor Barbosa Lima Sobrinho acusa FHC, o sociólogo da teoria do autoritarismo, de ditador. Ditadura branca. Trata-se de um plano monetário que engendra a cultura da baixa energia, apesar de dar trela ao internacional ânimo competi­ tivo de mercado. A moeda forte não é capaz de criar nenhum fluxo energético patriota. Auto-estima zero. A desnacionalização holística é física e mental. Para isso concorre o processo das privatizações, humilhando a psicologia do homem brasileiro. O populismo'’ económico pós-moderno de FHC é a consagração da impotência neocolonial, vivida com júbilo por não decidir autono­ mamente o destino, portanto satisfeita diante do desaparecimento do espírito nacional. Vale a ironia de ver Hegel a partir de Brasília. Para FHC, a histó­ ria acabou nos Estados Unidos. Resulta daí a tentativa de cópia do Primeiro Mundo. É nessa cópia que reside a originalidade do Novo Mundo. Eis o achado da sociologia feagaceana: a cópia é originali dade e o desenvolvimento se faz dentro da esperteza dupen ^nl^ Não foi senão por motivo nacionalista a op ç Rocha a FHC durante a década de 70. Esta somo ogia^ mundo, incapaz de promover o avanço socia^ comprometida com o racionalismo anti-erot

velho estaj.

essgncia desta civjjizat IQ04 fni o caipirão do Itamar que colocou 0 teIen0Ve a/ '"Li Palácio da Alvorada. A mesma ilusão cosmopolita Plano Rea n Cruzado de José Sarney, a ou cinismo é reproduzida es exequível sem alterar saber: a idéia de que a justiça social 0

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síatiis quo da comunicação audiovisual, a principal herança da ditadura pós-64, o que prova que a essência espiritual da sociedade brasileira localiza-se no aparelho ideológico da TV dominante, sem a qual não existe governabilidade possível, embora o discurso dominante disjunte os nexos entre mídia, Estado e sociedade civil. Tenho ouvido alguns ex-alunos e colegas acadêmicos de FHC perguntarem que exemplo de homem público pretende ele nos ofe­ recer, ou mais exatamente: que Brasil é que vai vencer com FHC? Sem nenhuma veleidade de fazer futurologia, convém assinalar que o atual presidente da República tem horror à ideia de martírio, ou seja: não é o desejo de ser mártir o que lhe seduz psicologicamen­ te. Tampouco parece acreditar em milagre para tirar o Brasil do atoleiro. Sua identificação com a moeda, selando seu destino polí­ tico no imediatismo do dinheiro, já revelava durante a campanha eleitoral o compromisso com o ufanismo monetário, denunciando a “fracassomania”dos oposicionistas, o que não deixa de ser pitores­ co num sociólogo que sempre foi sarcástico em relação a um Bra­ sil autónomo e independente. A transitória paridade do real com o dólar é mais um indício, como dizia Anísio Teixeira, de que pode­ mos ser iguais aos Estados Unidos. A volúpia tucana pela internacionalização da economia frisa sempre a cantilena da impossibilidade do isolamento nacional diante de interdependência universal das nações. Trata-se de uma leitura pilantra do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels: a internacionalização do processo produtivo e da cultura. Essa volúpia internacionalizante não exclui certo pendor totalitário (talvez até um totalitarismo neocolonial), conforme se depreende dos efeitos do Plano Real em nossa vida política. Num pronunciamento dramático, às vésperas das eleições de 1994, o candidato Leonel Brizola cantou a jogada: a vitória de FHC é uma rasteira nos partidos políticos, os quais se convertem em trastes inúteis, associações de fachada, ritual meramente decorativo, porque o processo eleitoral acaba por se tornar um apêndice da manipulação da economia empreendida pelo Estado em conluio com a mídia e os institutos de pesquisa de opinião pública. Disso resulta a ditadura de partido único. Um novo modelo político totalitário em que o Brasil surge como a vanguarda da barbane videofinanceira no cenário mundial 83

Este modelo político típico do atual estágio do capitalismo videofinanceiro descarta a formulação (defendida por FHC e Weffort durante os anos 70) que insistia no fortalecimento do pluralismo par­ tidário como condição imprescindível à democracia. A gestuália do Collor candidato era com os punhos cerrados, enquanto FHC levanta a mão. Esse gesto feagaceano não é es­ tranho à sua politicologia fascinada pela idéia de golpe, refor­ çando o chavão de que a política entre nós é arte do golpe. Tenha ou não dito a frase - “esqueçam o que escrevi” não há dúvida de que ela deveria ser inventada, pois é realmente um achado extraordinário a suscitar várias interpretações, a começar pela questão da vaidade autoral. É que a frase de FHC revela que ele talvez tenha embarcado nessa de querer ser presidente da República porque nasceu-lhe, lá pela altura de 1978, a desconfiança de que sua obra sociológica não resistiria à “abertura” política de Geisel e Figueiredo. O que está em jogo aqui é a questão autoral. No final da década de 70, FHC percebeu que não lhe dava entusiasmo escrever textos de sociologia e, como nunca foi propriamente escritor (embora tenha castigado alguns versinhos quando moço), resolveu ingressar na política, já sabendo que os seus livros de sociologia seriam esquecidos na passagem da fase “autoritária” para a fase “democrática” da sociedade brasileira. Textos datados que não transcendem à conjuntura. Basta lembrar a mensagem principal de sua reflexão: não é politicamente necessária a existência da ditadura na periferia da capitalismo. Impossível saber quando surgiu o desejo de ser presidente do Brasil. Ninguém sabe ao certo se Franco Montoro ou Ulisses Guimarães anunciou-lhe o futuro companheiro Itamar Franco, o ex-presidente que em Juiz de Fora não teve qualquer vínculo com o curso de ciências sociais. No jargão da sociologia, o Dezoito Brumário de FHC aconteceu em 1964, ou seja: nenhum outro professor da USP (mesmo que tivesse sido aposentado) chegou ao poder supremo da nação Francisco Weffort não consegu.u se eleger deputado federal naçao. ridiius eSnecial na carreira de FHC pelo PT. Então ha a gum iliserção empresarial, CUja mediatizada por uma subteXto reptício: o de que não é pecúnia foi precedida p’ ncja que nos prendem aos núcleos mister romper os laços de p

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cêntricos do capitalismo mundial. O texto do sociólogo é a cara da vida que ele leva, como se a sociologia fosse ilustração do itinerário pessoal: o “marxismo” gianottiano não apenas mitiga o conceito de imperialismo, como também travestiza o intelectual de esquerda. Em FHC o autoritarismo político deixa na moita a natureza entreguista do regime pós-64, dissociando as Forças Armadas do imperialismo na responsabilidade pelo restabelecimento da ordem democrática. Cumpre observar que na travessia da ditadura à democracia, o Exército foi substituído - em seu papel de condutor da vida política - pela televisão. No ano de 1995 o antropólogo Darcy Ribeiro prognosticou, entre a lucidez e a loucura, que o sonho de FHC na presidência é desdobrarse em FHC-I e FHC-2. Darcy profetiza 8 anos de Brasil com FHC. Da USP o crítico Alfredo Bosi mandou alerta para não se confundir Getúlio Vargas com Mussolini, pois, em termos de influência externa, vale mais a do filósofo Augusto Comte. Na prata da casa Getúlio Vargas viaja em Raul Pompéia e Euclides da Cunha. Um líder operário que despreza a história do Brasil não ten futuro. Não por acaso o governo FHC almeja enterrar a era Vargas derruindo o Estado em nome do mercado. A função do funcionário público é pensar a essência do Estado, dizia Hegel. FHC tudo deve ao Estado, inclusive sua aposentadoria-prêmio em 1969, que o converteu aos olhos da juventude num perseguido político, afastado da cátedra por motivo ideológico e por força de suas idéias. Este foi o caminho do “clássico” em ciências sociais, de pijama aos 37 anos; mas, na verdade, ele foi aposentado por motivos burocráticos da panelinha acadêmica da USP. Pouca gente em nosso país se deu tão bem com os efeitos da ditadura de 1964. Não há rigorosamente nada na obra sociológica de FHC que justificasse o velo ideológico dos militares depois do AI-5. Nunca FHC foi sociólogo janguista, apenas foi antiautoritário na sequência do golpe de 64, mas a essência do regime pós-64 não reside na questão do autoritarismo, e sim na sangria imperialista do país. A grande lacuna sentimental na formação do líder do PT é a admiração política maior por FHC e Weffort do que por Leonel 85

Brizola e Darcy Ribeiro, estes sim exilados com o golpe de 64, ainda que não sejam inimigos das Forças Aimadas. Darcy Ribei­ ro aprendeu tudo com o Marechal Rondon. Glauber Rocha inventou a mediação militar como componente fundamental no destino político de FHC. As Forças Armadas não permitiram a realização das reformas de base de João Goulart. O objetivo do governo FHC é apresentar-se como anti-Vargas, isto é: o coveiro póstumo de um morto que ainda não foi enterra­ do, morto-vivo. Zumbi. FHC declarou que o objetivo de seu governo seria eliminar os últimos vestígios varguistas. Brizola reagiu com humor a respeito desse projeto tucano. Ele perguntou: “FHC quer tirar o direito de voto de dona Ruth?” Por que Getúlio Vargas? Por que não sepultar a herança de 1964? Por que não destruir a ditadura? O PSDB é a antiga UDN com peagadê. O presidente da República é doutor em sociologia. Como dis­ se Darcy Ribeiro: luxo intelectual. FHC é filho de militar nacio­ nalista do petróleo é nosso, filho do general Cardoso, o general da panela vazia. Em 1995 o governo tucano pretende caminhar em direção contrária ao processo social da era Vargas. É um governo que almeja, segundo seus teóricos cosmopolitas, aprofundar a ocidentalização do país, tentando aproximá-lo dos núcleos cêntricos do capitalismo, o que se assemelha ao proto-udenismo do Manifesto dos Mineiros de 1942, afeito ao Banco. Do prelúdio à valsa tucana da globalização da economia. Em 1978 o sociólogo do Cebrap, aposentado como jovem nrnfessor da USP inicia sua carreira política de senador suplente de Pr°f ° ’htpndo apoio do líder Luiz Inácio Lula, identificados Franco Montoro, L da democracia e contra o autoritarismo. ambos na mesma lu P cQlocava como adversário da herança Cada um a seu modo tendo por argumento udemsta o repúdio trabalhista de Getulio va g ■ Estado Novo (autocrático-nacionalao caudilho gaúcho, o ditaoo Estados Unidos em , 945 sindicalista) que fo. derrub ‘cracia representativa com ltberdade O argumento reivi„dicado pelos mtelec^ de imprensa, tão in^"1

adversários do Estado Novo, não deve ocultar o fato de que Getúlio Vargas - derrubado pela força em 1945 - volta ao governo pelo voto em 1950. Um tirano deposto voltar ao poder pelos braços do povo, tendo como lema a independência económica do Brasil e a denúncia do imperialismo. Diante do equívoco de reduzir a era getuliana à década de 50, é mister pôr em destaque que o legado administrativo do Estado Novo foi extremamente positivo para o país, não obstante a ausência do ritual da democracia representativa. A falta de liberdade de imprensa não impediu que houvesse notável expansão criativa na área da cultura. Getúlio Vargas continua sendo aletrada política no Brasil, de acordo com o grande ensaísta Moisés Velhinho. Em Aquarela do Brasil (1959), Assis Chateaubriand escreve que Getúlio Vargas “jamais entra em crise com os homens da indústria de São Paulo”, afirmando que Getúlio tinha total interesse por São Paulo, muito mais do que qualquer outra unidade da federação. O socialista Hermes Lima assinala que o golpe de 37 foi para cortar o voo do candidato Plínio Salgado, que gozava de simpatia no meio do Exército e da Igreja. Curiosamente a interpretação tucana de que a defasagem entre a importância económica de São Paulo e sua fraca representação política teria sido eliminada com a chegada de FHC ao poder retoma o mesmo argumento integralista de Plínio Salgado, para quem São Paulo - estado tão vaidoso de sua autonomia - era tratado politicamente à maneira de uma colónia, como se a grandeza de São Paulo estivesse menos na capacidade dos paulistas em política do que em sua atividade económica. Em 1994 o desígnio de Plínio Salgado concretiza-se com a plataforma tucana, a qual elimina a contradição entre infra-estrutura económica e superestrutura política. FHC no poder é a idéia dentro do lugar: a política do Estado economicamente dominante é o espelho do progresso para o resto da nação. A socialdemocracia do Estado mais rico estaria empenhada em eliminar a pobreza dos outros Brasis. Em 1997 o que atrapalha a performance gerencial do Estado, segundo os economistas tucanos, é o corporativismo do Estado Novo getuliano, o qual significa, na interpretação do brasilianista Robert Levine (O regime de Vargas, 1980), o interesse trabalhista subordinado ao interesse nacional. O exílio do ilustre Armando Sales 87

de Oliveira é o acontecimento determinante na fama de Vargas como tirano e anti-intelectual, refratário à literatura e ao livre pensamento. Armando Sales de Oliveira, nomeado depois de 32 interventor em São Paulo, é exportador paulista de cafe, cunhado da família de Júlio Mesquita, do jornal O Estado de Seio Paulo, que se lança candidato à Presidência da República em 1937, mas cai do cavalo com a implantação do Estado Novo. Otávio Mangabeira e Júlio Mesquita iriam conspirar no assalto integralista ao Palácio do Catete em 1938. Em São Paulo Getúlio Vargas é um grosso que manda fechar jornal, sendo repudiado no Congresso Brasileiro de Escritores (1945) por Sérgio Miliet, Jorge Amado, Astrogildo Pereira, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Lacerda, Caio Prado Júnior, Paulo Emílio Salles Gomes, Dionélio Machado, Aníbal Machado e Oswald de Andrade. Cumpre ressaltar que a maior parte desses intelectuais iria reconciliar-se com Vargas, inclusive trabalhar para o Estado Novo. O escritor André Carrazonni seria seu biógrafo num livro escrito em 1939, dois anos após o golpe de 37, enfatizando o lado intelec­ tual de Vargas, leitor de Euclides da Cunha, Raul Pompéia, Michelet, Shopenhauer, Goethe, Zola e Nietzsche. Gilberto Ama­ do elogia a capacidade de escrever de Vargas. Lauro Cavalcanti (Preocupação coin o Belo, 1995) mostrou que a questão estética do Estado Novo supera a tal determinação autoritária, pois com Oscar Niemeyer e Lúcio Costa o centro do Rio de Janeiro é a arquitetura do Estado Novo, ou seja: Vargas faz Brasília em 1937 na ex-capital federal. Aven.da Presidente Antônio Carlos. Central do Brasil. Ministério da Guerra. Associação Brasileira de Imprensa. O centro do R.o de Jane.ro e a Bras.ha dos Brasileira u v construídos em palácios. A esquerda anos 30. Os orgao p Fstado ditatorial. O artista é Niemeyerdita a norma arquitetónica no Esmdo^^ ^yer. 0 estrategista, Lucio mUdar o país através das Estado Novo: a convicção^ p etônica do serviço público. sobretudo com a renovaçac> ■ se incumbe, na década 0 cineasta Glauber Roc" cullurai e estética do Estado NOvo 70. de fazer o elogio da Sassuarana quanto em seu ensaj • tanto em seu romance « 88

A Revolução do Cinema Novo. O próprio Cinema Novo é considerado por Glauber Rocha como síntese de Vargas e Villa Lobos, o que revela a relação contraditória de Vargas com os intelectuais, diferentemente da monocórdica interpretação petista ou da abordagem tucana, para quem o sociólogo FHC é o máximo do intelectual, e não o “obscurantista” Getúlio Vargas. Em vários textos e entrevistas, Glauber fala da necessidade de revisão da história do Estado Novo, tendo em vista a importância do nacionalismo. Getúlio adolescente se deslumbra com Aleijadinho em Congonhas do Campo; Getúlio nacionaliza o subsolo, mas é mal-compreendido pela esquerda marxista colonizada pelo marxismo soviético, o qual determinará os rumos da História do Brasil com Luiz Carlos Prestes. Escrevendo em plena década de 70, no auge da ditadura militar, Glauber prefere o nacionalismo de Getúlio ao marxismo de Prestes, sem que em tal preferência apareça como critério decisivo a questão do autoritarismo versus democracia, que é a tônica do enfoque formalista da UDN sobre o Estado Novo, retomado pela sociologia da USP (através de convergência Florestan, Weffort e FHC) sobre o regi me de 64. Glauber Rocha foi o primeiro a estabelecer o confronto entre o trágico sangue do suicídio de Vargas e o Cebrap de FHC. O nacionalismo do Estado Novo é a raiz do nacionalismo do Cinema Novo. Provavelmente Glauber Rocha - que sublinhava a inexistência do mundo na gestação de seu cinema - subscreveria a formulação de Azevedo Amaral, o teórico do Estado Novo, segundo a qual o nacionalismo varguista é refratário à universalização de um regime político e à generalização mundial de instituições padronizadas, a mesma concepção veiculada por Roberto Magabeira Unger (A Alternativa Transformadora (1990)), que nega a idéia de uma lógica irredutível ao longo do processo social que conduziria à configuração contemporânea de um mesmo padrão na economia de mercado, na produção industrial de massa e na democracia parlamentar. Enfim, ao sublinhar a tradição nacionalista do Estado Novo na estética cinematográfica de Glauber Rocha, minha intenção é ir além do sociologismo que reduz a “brasilidade” do Estado Novo a um desdobramento, na área da cultura, do processo de substituição das importações. Pior do que isso é identificar o

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nacionalismo de Vargas ao fascismo de Mussolini, tal como aconteceu com o “novo sindicalismo’. Na década de 70, em São Paulo, Luiz Inácio Lula é socializado politicamente por uma energia anti-estadonovista, temperada a uma miscelânia marxóloga eurocêntrica da USP e ao ressentimento da elite paulista exportadora de café, que decanta até hoje o exílio de Armando Salles em 1938, um ano antes de Glauber Rocha nascer em Vitória da Conquista. O antigetulismo de FHC soa esquisito para quem conhece seus livros de sociologia política. Isso porque o ex-professor da USP nunca até então externara desapreço explícito ao papel de Getúlio Vargas em nossa história, ainda que a fonte da sociologia de FHC não seja a história do Brasil. O antigetulismo sempre foi mais perceptível na obra do sociólogo Francisco Weffort, cuja carreira acadêmica e sindical esteve sempre associada à denúncia obsedante do populismo de Vargas e João Goulart. Não existe a menor dúvida de que o partido dos trabalhadores (o PT) foi concebido pelo teórico Francisco Weffort numa diretriz política menos adversa ao marxismo do Partidão do que ao trabalhismo de Getúlio Vargas. Direta ou indiretamente, o professor Weffort tem interferido no fabrico de inúmeras teses acadêmicas, todas mais ou menos centradas na questão um tanto quanto bizantina da outorga ou conquista da legislação trabalhista durante o Estado Novo. A im­ pressão que se tem diante dos livros de Weffort é que Getúlio Vargas emerge como um mata-borrão da consciência de classe do proletariado brasileiro a partir da década de 30. A interpretação sociológica da USP sobre o Estado Novo está na origem ideológica tanto do PT quanto do PSDB. Interpretação que começa depois do golpe de 64, sobretudo na segunda metade da década de 70, coincidindo com a vigência da drtadura. da aecaua u , sindicalismo”, produzida na USP e A hreratura sobre o novos,

repercutida pelo Cepe ° “novo sindicaiismo>. se “populismo autoritano , Jtidária» do Estado Novo. Inúmeras pela repulsa à tutelag Pconcebjdas durante a década de 70 teses de sociologia fora ^arx £ GramSci, Com o objetivo dè utilizando alguns retoque através do Mlnistéri0 do achincalhar o “ditador Va g Q0

Trabalho, controlou o sindicato e diluiu a ação da classe operária, favorecendo a acumulação de capital sob a égide da burguesia industrial. A legislação trabalhista do corporativismo getuliano fascistóide teria, segundo os autores do “novo sindicalismo”, domesticado a heroica e combativa classe operária, sobretudo na São Paulo dos emigrantes anarquistas italianos. A carta de trabalho do Estado Novo é responsável por desviar a classe operária da influência marxizante dos emigrantes, colocando-a sob o cabresto estatal que, por sua vez, assegura a rotineira exploração do capital. A caricatura do marxismo é menos relevante do que a avaliação perfunctória do Estado Novo, o qual é cotejado pelo viés do autoritarismo militar com a interrupção do processo democrático de 1964. Dir-se-ia que a atitude anti-Estado Novo é um componente imprescindível à própria justificativa da “novidade” do PT na história do Brasil desde a Revolução de 30, porque o “novo sindicalismo” se insurge contra a estatização da política, cujo pecado mortal é nascer de cima para baixo, movendo-se do Estado em direção à sociedade. Resulta daí o cotejo entre Estado Novo e ditadura de 64, o indisfarçável orgulho petista em proclamar que o partido dos trabalhadores não foi parido nos tapetes do poder Federal, pois nasceu nas greves do ABC paulista como instrumento de pressão da “sociedade civil”, livre e autónoma da tutelagem partidária feita pelo Estado. As ciências sociais produzem durante a ditadura de 64 um discurso sobre a era Vargas marcadamente estatofóbico, discurso esse (extraído do léxico marxista) que apresenta uma visão sociocivilcêntrica para fazer a articulação de partido político com movimento social. A moderna sociologia de São Paulo acusa o Estado Novo de amortecer a ação operária, impedindo a emergência da consciên­ cia de classe, como se o corporativismo estadonovista, ao exer­ cer o controle estatal sobre o proletariado, tivesse cortado o ba­ rato revolucionário. A partir de 1994, com o pouso de FHC no Palácio da Alvorada, a produção sociológica dos discípulos de Florestan Fernandes sobre o processo social iniciado em 1930 não é nenhum documento de inocência política ou de falsa consciência. Já não há mais condições

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psíquicas e existenciais para distinguir produção científica de sociologia militante. É a abordagem acadêmica sobre o Estado Novo de 1937, ainda que tangenciando Getúlio Vargas como figura de carne e osso, que prepara (o PT não é senão uma determinada leitura do Estado Novo) e justifica a atual política da globalização. Darcy Ribeiro se entusiasma pelo livro A Dialética da Colonização, de Alfredo Bosi, o qual revisa a tese petista equivocada que identifica a Carta di Lavoro de Mussolini com Getúlio Vargas, e cujo erro de avaliação deixa de lado na formação ideológica getuliana a influência de Júlio Castilhos e Augusto Comte. Intelectualmente São Paulo tem de Getúlio Vargas a imagem de um rude e fascistóide, o que se constata com a minha geração, que entrou na faculdade Maria Antônia em 1968: a mesma imagem depreciativa perdura ainda durante 30 anos. Em 1997 estou longe de assegurar com certeza se o crítico Alfredo Bosi votou na chapa Brizola-Darcy para a presidência da República. Curiosamente o célebre historiador das idéias, o carioca José Guilherme Merquior, situa o “consulado” de Vargas como rebento ideológico de Azevedo Amaral, o ideólogo do Estado Novo de 1937, o que revela também equívoco na apreciação superficial, pois descuida do Getúlio antes de 1930, de modo que tanto a ala liberal do Itamaraty quanto o marxismo uspiano do PT são convergentes na interpretação da história do Brasil. O historiador tucano de 1930, Bóris Fausto, declara em alto e bom som que FHC no poder em 1994 é um marco histórico tão importante quanto a revolução liderada por Getúlio Vargas. O tucano Bóris Fausto sucede a Sérgio Buarque de Holanda na direção da História da Civilização Brasileira. É por isso que sempie tive imensa curiosidade em saber por que Sérgio Buarque de Holanda não escreveu um belo livro sobre Getúlio Vargas. Afinal o exfuncionário da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro teve seu emprego durante a gestão getuliana. O problema é que Mano de ITdrade infundiu na intelectualidade de Sao Paulo ogerIza ao Anaraue nuu _ princlpalmente se fOr dn Estado Novo. Eu sei que cad. e‘creve sobre °r

porte de um Sérglo BuarqU® muito bom à compreensão histódca lhe der na veneta; todavia um ajuste de contas do nosso tempo se ele

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Vargas, assim como o crítico Antonio Cândido bem que poderia ter escrito alguma coisa definitiva sobre João Goulart ou Leonel Brizola, os dois principais discípulos de Vargas. Em 1979 o PT iria alardear, entre os professores e estudantes universitários, os nomes de Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Cândido como seus ilustres fundadores, junto com o sociólogo Florestan Fernandes, o futuro deputado de São Paulo. Florestan Fernandes foi o Fausto da USP, que, seduzido pela idéia do conhecimento científico, implantou o padrão competitivo no relacionamento profissional dos sociólogos com a sociedade de classes. O deslumbre atual pela relação de competição não é fruto da voga neoliberalsocialdemocrata. O marxismo paulista de Florestan Fernandes repele a boémia de Oswald de Andrade, o escritor simpático ao messianismo de um Estado-mãe. A sociologia de Florestan Fernandes desdenha o papel do Estado na sociedade brasileira. A missão histórica do Estado está ausente da reflexão de Florestan Fernandes sobre o Brasil a partir de 1930. O filósofo Hegel não empolgou a sociologia do desenvolvimento da sociedade de classes em São Paulo. Do ponto de vista do espírito, a grande tragédia das ciências sociais é que nenhum professor da USP conseguiu incutir no jovem FHC a paixão hegeliana pela coisa pública: nada há de privado no eterno! Em Florestan Fernandes a passagem da etnologia tupinambá para o Marx da pós-abolição dos escravos acaba por trazer o ethos burocrático da fábrica internacional paulista para o discurso universitário das ciências sociais. A sociologia “marxista” do desenvolvimento de Florestan Fernandes passa a ocidentalizar em excesso o conhecimento da realidade brasileira, caminhando em direção oposta ao legado epistemológico do professor Roger Bastide na USP até o ano de 1954, quando inesperadamente regressa a Paris, deixando na Faculdade de ciências sociais a alternativa: marxismo subsoviético ou funcionalismo norte-americano. No início da década de 70, Roger Bastide chegou a ironizar esta subordinação ao modelo urbano industrial da sociologia de São Paulo, em que já estava em gestação o cidadão Kane da sociologia na década de 90. Orientado pelo mestre Florestan Fernandes, FHC é o cidadão Kane da sociologia que rachou de 93

ganhar dinheiro com a internacionalização dos intelectuais e da empresa privada. Com a partida de Bastide a teoria do desenvolvimento dissociouse completamente do espírito da cultura popular, de modo que o padrão “científico” do trabalho sociológico privilegiou o caminho da ocidentalização e da dependência cultural, seguindo a prestigiada trilogia: Marx, Durkheim e Weber, em que a ontologia social do Terceiro Mundo ocupará um lugar secundário e incomodo diante da sofisticação metodológica, a qual é capaz de versar sobre o tema do escravo no Rio Grande do Sul, tal como aconteceu em 1962 com a tese de doutoramento de FHC dedicada a Florestan Fernandes. Eis o ponto fundamental: a passagem do folclore de Florestan Fernandes para o marxismo protopetista da São Paulo urbano-industrial, em que vai se configurando hegemonicamente como prestígio acadêmico (tanto aqui quanto no exterior), uma sociologia gerencial da dependente sociedade de classes, às vezes temperada com o molho da “revolução socialista”. No final dos anos 70 os três pesos-pesados da intelectualidade universitária de São Paulo - Sérgio, Cândido e Florestan - são os fundadores de um novo trabalhismo no Brasil, sem que tivessem no entanto realizado um balanço crítico em profundidade do antigo trabalhismo nascido em 1930, de modo que minha geração de 68 se viu diante de uma descontinuidade entre o antigo e o novo trabalhismo. O que acabou por prevalecer foi o preconceito sobre a feição anti-intelectual dos líderes Vargas, Jango e Brizola. Uma futura história das idéias no Brasil, de Getúlio Vargas a FHC, deverá esmiuçar necessariamente essa visão dos intelectuais paulistas acerca do processo social iniciado em 1930, inclusive com o intuito de pôr o dedo na ferida e investigar os motivos pelos quais o brizolismo de Darcy Ribeiro deu com os burros n agua em Sao Paulo nas eleições presidenciais de 1989 e 1994 sobretudo levando Paulo nas e Ç p não apenas estudou em Sao Paulo em consideraça q nnhpcedor da vida intelectual paulista, como é també"ieX^°a "passado quase em brancas nuvens na embora sua obra ^e P aí um consenso antigetuliano, onde Paulicéia-porqueconfigu Lévi.Strauss, não obstante a 0 rei da anlroPol°gia ° lde por Vargas, a mesma siIllpatia simpatia de Roger 94

compartilhada pelos romances de Oswald de Andrade, segundo a leitura nacionalista do cineasta Glauber Rocha, em cuja interpretação da cultura brasileira o anti-romântico FHC não é tão diferente do crítico iluminista Antonio Cândido. Bastaria apenas um levantamento estatístico para perceber que Darcy Ribeiro cita muito mais em sua obra os mestres Sérgio, Cândido e Florestan do que estes aquele, malgrado o fato de Darcy ler escrito a única antropologia marxista entre nós. Antropologia dialética. A propósito cumpre realçar que Darcy Ribeiro não concede deslumbrada importância à estratificação social, nem tampouco considera que a história deva passar forçosamente pela luta e consciência de classes, assim como a família ganha menos peso em sua antropologia do que a etnia. A relação de São Paulo - dos notáveis intelectuais paulistas com Darcy Ribeiro é uma amostra de como funciona a lei da solidariedade no câncer. Desde 1954 Darcy vinculou seu pensamento político nacionalista ao de Getúlio Vargas; a partir da década de 60 ao de João Goulart; e, daí em diante, ao de Leonel Brizola. Por isso a admiração paulista por Darcy ficou truncada. Isso porque com Darcy não é possível o elogio à sua obra de antropólogo separado de sua vida política. Dificilmente encontrar-se-á outro autor nas ciências sociais do Brasil, para não dizer na América Latina, dotado de tamanha garra descolonizadora quanto a do antropólogo Darcy Ribeiro. Tal atitude é acompanhada por uma reflexão sobre a natureza do processo ci vilizatório, conciliando pois os imperativos da ciência com a paixão pelo povo de seu país, conforme um de seus livros intitulado América Latina Pátria Grande. Dispensável investigar se essa paixão é que o levou ao pensamento ou vice-versa, mas o que realmente espanta é a ousadia de seu empreendimento intelectual na área das ciências humanas, ou seja, nada menos do que uma teoria da evolução cultural da humanidade como pré-requisito para a compreensão dos povos latino-americanos. Assim, para fazer a anatomia dos brasileiros, Darcy Ribeiro constrói uma taxonomia abrangente de todas as configurações histórico-culturais do processo civilizatório, não tendo sido movido por mera erudição, mas sim com o objetivo de detectar as causas do desenvolvimento desigual

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das sociedades modernas e os caminhos da superação do subdesenvolvimento, do atraso e da dependência. Em Darcy outro aspecto que merece destaque especial é a preocupação com a origem, a evolução e o futuro da espécie humana. O antropólogo das civilizações é capaz de abordar dos primórdios da irrigação à contemporânea tecnologia termonuclear, sem deixar de aludir aos caminhos da ação humana em relação aos diferentes povos: povo testemunha, povo transplantado, povo novo, povo insurgente. No caso de povo novo como o Brasil, Darcy elabora duas categorias que são um verdadeiro prodígio em termos explicativos: o modo de agir através da aceleração evolutiva (revolucionária) ou da incorporação histórica (modernização reflexa), ou seja, duas modalidades que se impõem como dilema ao desenvolvimento da sociedade brasileira: a superação do atraso ou a renovação do atraso. A isso equivale o procedimento cultural autêntico ou espúrio, isto é, alienado: a introjeção da visão do dominador sobre nós e o mundo. A tipologia darcyana possui a grande vantagem de operar do abstrato ao concreto quando mostra que a alternativa da aceleração evolutiva (com reforma agrária e lei da remessa de lucros) esteve prestes a concretizar-se durante o governo de João Goulart. Não deveria ser o que é, cientista e artista, nem tampouco devia ter se metido na política. É o que se diz por aí sobre o intelectual Darcy Ribeiro, que desbundou com o nacionalismo de Getúlio Vargas e o significado mítico daquele sangue derramado no Palácio do Catete em 1954, o que prova que a Carta Testamento de Vargas não é menos importante do que o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels. Em 1994 Darcy Ribeiro é um homem frustrado pela história. De Darcy o cineasta Glauber Rocha disse que eia gênio da raça”. O fato é que o ex-chefe da Casa Civil de João Goulart ainda não foi assimilado pela triste ciência social, que o mantém no ostracismo acadêmico, ocultando sua contribuição cientifica ao conhecimento do ““'"^“XTbrasileiro das civilizações e Darcy Ribeiro e o an r p . tecnológico do mundo, dando conhecedor do processo ci vi iza ori Tecno]o particular ênfase à caravela e a arm

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navegação. A crítica da tecnologia que Karl Marx pediu em O Capital para sei feita um dia, Darcy Ribeiro a escreve em O Processo Civilizatório (1969). É a reflexão teórica totalizante da evolução cultural da humanidade. Da irrigação ideográfica à eletrónica termonuclear. Da origem ao futuro do homem. E nós quem somos entre os povos do mundo? Esta é a pergunta do professor especialista em povos iletrados. Nós que não somos a Europa, o Ocidente ou a América original. Que somos nós, os brasileiros? Gente que só tem futuro no futuro do homem. Darcy gosta de citar Hegel sobre a guerra América do Sul-América do Norte. A antropologia tabula rasa. O marco zero. O Zé ninguém. O filho da índia prenhada por branco. Não é negro nem branco. Gente mestiça. Entidade nova. Fenotipia nova. Fenotipia more­ na. Útero indígena. Sua teoria do subdesenvolvimento é de natureza popular e con­ tém o segredo da sociedade brasileira: o fracasso em integrar-se na civilização industrial moderna. Os brasileiros somos bichos tri­ turados na engrenagem neocolonial de gastar gente. Vivemos a reinplantação da escravidão greco-romana com as perdas internacionais da plantation videofinaceira. Identidade de gente ambígua. Que ainda está para ser. Gente que foi desfeita. De índio, de branco, de negro. Gente derrelicta. Darcy cita o exemplo de Yemanjá: única deusa depois da Grécia que faz amor. O perigo desse desfazimento ontológico é sermos remoldados por nós mesmos com a cultura genocida da TV antiTerceiro Mundo. Darcy Ribeiro é o nosso primeiro etnólogo profissional que pratica a antropologia dialética, 10 anos de convívio com os índios, procurando a explicação das causas do atraso do povo brasileiro. Não seremos nada se não formos protagonistas da história universal. Em Darcy Ribeiro a objetividade científica é paixão pela autonomia do pais, enquanto as ciências sociais produzem um discurso anti-nós, assim como sentem ciúmes sexuais do mulo mulherófilo de Minas, resid.ndo talvez ai a origem do boicote rpnrpssivo em cima de sua obra de educador. I CUI wO «3 1

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Embora intelectual público na cena contemporânea desde 19521954. não apareceu na USP tese sobre ele. Salvo engano, os mestres Florestan Fernandes e Antonio Cândido não se ocuparam do criador do Parque do Xingu. Nenhuma referência encontrei da parte de José Guilherme Merquior. Nem Sérgio Buarque de Holanda. É por isso que São Paulo não votou nele em 1994. O brilhante discípulo de Rondon faz uma antropologia mui mais profunda e melhor escrita do que a de Lévi-Strauss. Darcy amado. Macho que não é pomo, nem Édipo com pinta de vítima, assim como nele não medra patrofobia. Sua abordagem do cruzamento racial possui alcance explicativo mais abrangente do que Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. O europeu reprodutor da indiada seduzida é mercadoria: faca de aço, machado, tesoura, canivete. Nascemos no mercado mundial para enricar o além-mar. Darcy Ribeiro concede ênfase ao processo tecnológico mesmo quando o objeto de sua reflexão é o amavio erótico. Para ele, não é o tamanho domenibrum virile do europeu o motivo do cruzamento no Novo Mundo. O cunhado é a primeira relação de parentesco na colónia, o jeito de relacionar-se com gente estranha. A índia oferecida ao branco. Para desgraça nuestra, o Brasil, boçalizado pela telenovela ágrafa, ainda não exercitou a fantasia libertária de Darcy Ribeiro, o idealizador do gentio materno reconstruído pedagogicamente nos brizolões. Todavia é sob o signo de seu pensamento que devemos julgar o que é feito dos brasileiros. O brasileiro vira brasileiro para deixar de ser ninguém. Qual é a do Lula à luz do processo civilizatório mentalizado por Darcy Ribeiro? E a trajetória do sociólogo FHC ao Palácio da Alvorada? O que isso significa do ponto de vista do fazimento do povo brasileiro? FHC é a alienação do atraso ou a renovação

da miséria? , , „ . A darcyana é ligação direta com Glauber Rocha, assim como poder-se-ia associá-la aos nomes Rondon, ms.o Te1Xeira, Hermes Lima, Salvador )ogo de Darcy com Glauber 0 melhor de ™"ha «er Ç, tecn0j0gia; Glauber, comunicação^ diálogo de gigantes. Dar y

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Os dois juntam aite, ciência e política. Lamentável Glauber não estivesse aqui para filmar os Cieps. Mas o cineasta deixou roteiro inacabado sobre FHC. O roteiro sobre FHC passa pela mediação de Darcy Ribeiro, o magnífico reitor. Na ópera do exílio Glauber exorbita o papel progressista dos militares. Glauber, Darcy e FHC. Este encontro imaginário é atravessado pelo vulto de Jango. O golpe de 64 é a CIA. A conversa gira em tomo da xoxota tupiguarani, do Exército e da Guerra do Paraguai. A alternativa da aceleração evolutiva da nossa história estava na ordem do dia durante o governo João Goulart. Na década de 90 rememora Darcy: “Estávamos, sem saber, tocando no eixo do mundo”. Introjetamos a feitoria da rede Globo roliudinizada, a versão moderna do dominador sobre nós. Quem vence é o vídeo espúrio porque sistematizador do discurso opressivo sobre o povão desciepado. A telenovela toma conta da cultura popular. A vídeosesmaria seduz o voto detritário. Modernização reflexa. Afinal Roliudi fez 64, o leviatão da TV Globo. O brasileiro como ente novo corre o risco de ser moldado pelos valores do monopólio televisivo. Glauber perguntava por uma Ariadne no labirinto do Cebrap em São Paulo, contracenando-a com o neo-Kennedy do Pentágono criticado por exagerar a autocracia militar em detrimento do ca­ ráter antinacional e antipopular do regime pós-64. Era engraçada a conversa glauberiana: Tancredo Neves gostava de Carmem Miranda, que traiu Getúlio para dar pro Walt Disney. Para Leonel Brizola, o presidente FHC se enredou num lance perigoso ao definir a moeda real como o coveiro póstumo de Getúlio Vargas. A coincidência é que Jotaká também vampirizou eieitoralmente o Vargas morto e implantou uma política oposta à de João Goulart. Dizia o saudoso Castelinho que Fernando Collor só caiu do cavalo porque se aproximou da Linha Vermelha de Brizola. Curiosamente a historiadora de São Paulo (de 1945 até hoje) nasceu no Rio de Janeiro, Maria Victoria Benevides, minha colega nos anos 70 no curso de ciências sociais da USP, orientada por Francisco Weffort na área de política, especializando-se no que se convencionou denominar de "República Populista”: 1945-1964. Maria Victoria Benevides tornar-se-ia, depois de 1979, fundadora do Partido dos Trabalhadores, tendo participado da Arquidiocese 99

de São Paulo ao lado de Dom Evaristo Arns. Escreveu leses e ensaios notáveis sobre JK, Jânio, PTB paulista, mas não escreveu nada de sistemático e definitivo sobre João Goulart. É deveras lamentável, porque ela talvez seja a única pessoa do PT paulista a compreender o que se passou no Brasil antes de 1964, pois o PT em sua estratégia prosélita tende a meter a tesoura na história do trabalhismo: antes e depois de sua memorável fundação em 1979. Até então o que existia era partido para trabalhadores; porém com o advento do PT lemos finalmente partido de trabalhadores, o que corresponde à voga norte-americana da sociologiafrom Columbia, que, sob o enfoque marxólogo ou funcionalista, lança luz na aparição socialmente necessária do new sindicalism, que, a partir de 1979, estaria livre do peleguismo, do fisiologismo e da tutela do Estado sobre o movimento sindical. Assim, o operariado em São Paulo estaria completamente afastado de qualquer tipo de nacionalismo. O interesse historiográfico de Maria Victoria Benevides por JK, a chanchada bem sucedida do liberalismo, deve possivelmen­ te ter-lhe aparecido quando ela morava no Rio de Janeiro, cidade em que Gelúlio Vargas deu um tiro no coração em 1954. Uma pergunta se impõe em conexão com outra pergunta: por que JK é o santo unânime? E por que Jango é o diabo para todos? JK, a comédia; Jango, a tragédia. Empenhada na revisão da história partidária e na criação de um partido popular e democrático, Maria Victoria Benevides pega carona no conceito de populismo para diferenciar a experiência trabalhista pré-64 do trabalhismo autêntico feito de trabalhadores assalariados. A confusão da palavra populismo é aceita por ela como se fosse a verdade da testemunha de Jeová: populismo vira dogma da sociologia, especialmente em São Paulo. Convém observar a inserção regional da palavra populismo, assim como a pluralidade de Petebês que tivemos em cada estado: em São Paulo o PTB foi fraco, diferentemente do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. É digno de nota, por exemplo, que o mineiro Octavio Dulci não reproduza a semântica pejorativa da palavra populismo em seu estudo sobre a UDN antipopulista. Em Belo Horizonte, antes das eleições de 1989, preocupado em fundamentar historicamente o anagrama Brizula (a aliança Brizola e Lula), estive

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conversando com o simpático Octavio Dulci a respeito do populismo como bode expiatório da barreira intransponível entre o último líder getulista e o novo líder dos metalúrgicos pós-64. Militante do PT mineiro, o cientista político Octavio Dulci disse-me que, salvo engano, foi o deputado Pedro Aleixo da UDN quem primeiro lançou mão da palavra populismo em âmbito parlamentar, antes portanto de Hélio Jaguaribe em sua análise do ademarismo e do janismo. Não altera muita coisa classificar Adhemar de Barros e Jânio Quadros de “populismo de direita”, enquanto João Goulart e Leonel Brizola seriam “populistas de esquerda”. Não me sinto a pessoa mais indicada para fazer a psicanálise dos historiadores do PT em relação ao carisma de Getúlio Vargas; apenas posso testemunhar o tom dramático que, durante as eleições de 1989, assumiu a defesa de sua memória por parte de Leonel Brizola, várias vezes indignado diante da versão unilateral de Luiz Inácio Lula a respeito do “ditador” Getúlio Vargas, que plagiou Mussolini. Há vários Getúlios, tantos quantos se diz em relação Vinícius de Moraes. Há inclusive certa androginia ideológica d Getúlio “pai dos pobres” e Getúlio “mãe dos ricos”, como assinala Maria Victoria Benevides em seu livro de 1989: O PTB e o Trabalhismo. Há o Getúlio visto por Luís Carlos Prestes, assim como há o Getúlio de Villa Lobos, e também aquele mentalizado por Glauber Rocha, historiador e dramaturgo da janguarana, para quem o Partido Comunista Brasileiro errou ao não apoiar o nacionalismo de Vargas. Não seria descabido afirmar que no PT de São Paulo se cristalizou uma repulsa irracional pela imago paterna, sobretudo através de seu empenho em fazer um partido de órfãos, psicologicamente de baixo para cima e em “eterna vigilância” contra o aparecimento de líderes personalistas, centralizadores, caudilhos. Evidentemente há o aspecto saudável em cuidar da permanência objetiva do partido (o líder passa, o partido fica); todavia não há povo sem líder e, após 10 anos de fundação, o PT não engendrou renovadas lideranças públicas mais do que os outros partidos carentes de organização de base. Nossa intelectualidade, nos últimos 30 anos, foi tomada de uma aversão ao conceito de continuiun histórico, como se este fosse vício da abordagem conservadora. Passaria por alucinação

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delirante enfatizar o laço fantasmático que prende Getúlio Vargas a Luiz Inácio Lula, não obstante o surgimento do monopólio da comunicação de massa e as greves no ABC de 1968. Em geral, os teóricos do PT se vangloriam da formação marxista de seus quadros, dizendo que na ótica do ser de classe social encontra-se o elemento fundamental que diferencia o PT do trabalhismo populista do passado. Esta ótica de classe social, apesar da influência de Luckács, Gramsci e Trotsky, talvez não vá além do emprego, da profissão, do salário corporativista. De resto, um rigoroso ponto de vista em cima da classe social acabaria por diluir-se no dia-a-dia diante do perfil de “frente” do PT, não obstante o propósito de representar o partido do proletariado industrial moderno do Brasil. Imagino às vezes uma conversa descontraída entre Maria Victoria Benevides e Leonel Brizola, ou seja: a especialista de esquerda da UDN (e do udenismo) junto com o líder trabalhista vítima em 1964 do golpismo da UDN. Na campanha presidencial de 1989, Leonel Brizola qualifica o PT de neo-UDN da indústria automobilística multinacional, como se a UDN não tivesse desaparecido em 1965. Por outro lado, no mesmo ano de 1989, foi lançado o livro de Maria Victoria Benevides sobre o PTB paulista. Lá pelas tantas, ela afirma uma de suas teses: “os três maiores partidos do período (1946-1964) - e não apenas o PSD e o PTB, mas também a UDN - foram, de formas diversas, criaturas de Getúlio Vargas”. O criador Getúlio fez a UDN como criatura demoníaca para tirá-lo do poder e levá-lo à morte. Excluído esse estranho componente masoquista imputado à personalidade do expresidente, vale observar - seguindo o raciocínio de Maria Victoria Benevides - que até mesmo o PT pode ser considerado como mais uma “criatura” de Getúlio Vargas - só que agora uma “criatura” para combatê-lo nopost-mortem de sua memória. Assim, por pouco não chegamos ao teatro shakespeareano, onde o sobrenatural determina os rumos da política. O general Golbery, palaciando com Ivete Vargas, a sobrinha-neta de Getúlio, em 1979, ano da reestruturação partidária, comprometerá para todo o sempre a união nacional do trabalhismo. O ex-coronel antigetulista desfecha um golpe definitivo na herança trabalhista do 102

getulismo após 1964, entregando ao parentesco de Ivete Vargas a sigla do PTB, que foi parar nas mãos de Jânio Quadros e Delfim Neto. O general Golbery jogou pesado contra Leonel Brizola ao tirarlhe o PTB, ao mesmo tempo que engendrou a ilusão em São Paulo de que um novo trabalhismo estava nascendo em oposição ao trabalhismo do passado: de Getúlio, de Jango e de Brizola. A superstição da novidade, verdadeira erva-daninha que acom­ panha a política no Brasil, confere um charme especial ao fim do bipartidarismo na década de 80. Em que pese o contexto das greves operárias no ABC paulista, o nascimento do PT está vinculado tanto à mais-valia relativa do Wolfgang Sauer quanto aos caprichos antigetulistas do general Golbery. Ao esquizofrenizar o trabalhismo destruindo a força progressista do PTB getuliano nas mãos da dona Ivete Vargas - o general Golbery será o mentor responsável pela impossibilidade de sinfonizar a dupla Brizulla em 1989, o que sem dúvida abriu espaço para a vitória de Collor, o filhote da UDN nor­ destina. Graças ao bisturi do general Golbery, conchavando com Ivete Vargas para fincar uma ruptura no trabalhismo brasileiro após o gol­ pe de 64, a esquerda do Brasil-1 (PT) se viu irremediavelmente se­ parada da esquerda do Brasil-2 (PDT). Golbery escolheu São Paulo - através do PTB de Ivete Vargas - como o lugar da sangria trabalhista; daí a tautologia: São Paulo não gosta de Leonel Brizola porque São Paulo gosta de Jânio Quadros. Em maio de 1980, o poeta Carlos Drummond de Andrade registrou a passagem da sigla PTB: de Leonel Brizola a Ivete Vargas: “Vi um homem chorar porque lhe negaram o direito de usar três letras do alfabeto para fins políticos. Vi uma mulher beber champanha porque lhe deram esse direito negado ao outro. Vi um homem rasgar o papel em que estavam escritas as letras, que ele tanto amava.” Desde a Carta de Lisboa, 12 de maio de 1980, o PDT (herdei­ ro do ex-PTB janguista) encontra-se dentro d’água ao tentar se­ duzir São Paulo que, com a manobra de Golbery, se mantém im­ penetrável ao brizolismo, o qual é pichado na universidade e na grande imprensa de ideologia arcaica, populista, caudilhesca, an­ tiquada. Há quem diga que Brizola se equivocou quando quis en­ trar em São Paulo, através do filho de Adhemar de Barros, que

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fizera uma aliança esporádica com Getúlio Vargas no passado. O PDT em São Paulo teria então se queimado à direita, tal qual a ambiguidade do velho PTB paulista, oscilando entre Jânio Qua­ dros e Adhemar de Barros. Maria Victoria Benevides coloca bem a questão: o PTB é fraco em São Paulo, a cidade operária da América Latina. Mas seu livro aborda apenas os efeitos (fisiologismo, peleguismo, falta de princípios), e não as causas do divórcio entre São Paulo e o PTB. A fim de realçar - do ponto de vista da esquerda - a fragilidade ideológica do PTB paulista, Maria Victoria Benevides lembra que muitos ex-petebistas ingressavam na ARENA, e não do MDB. Com exceção de Coutinho Cavalcanti, Leônidas Cardoso, Eusébio Rocha, Salvador Lossaco, Gernival Feijó, Abguar Bastos e Rubens Paiva, as melhores cabeças do PTB não estavam em São Paulo, a exemplo de Alberto Pasqualini e San Thiago Dantas. Maria Victoria Benevides aprecia menos Getúlio, Jango e Brizola do que o professor Darcy Ribeiro. O que importa é a ausência de intelectual uspiano no PTB paulista, assim como a afinidade do pensamento universitário com a UDN. Leonel Brizola não agrada o eleitorado de São Paulo. João Goulart parece também que não era bem visto pelos intelectuais universitários paulistas, conforme se verifica pela história das ciências sociais da USP. Basta lembrar que em 1964 a intelectualidade paulista universitária estava completamente por fora do que estava ocorrendo com João Goulart em Brasília. A própria cassação dos professores da USP pelo AI-5 deve-se menos a motivos políticos do que à picuinha da engrenagem burocráticouniversitária. A moderna intelectualidade paulista - a fina flor da USP - não participou da utopia jangarana. A elite intelectual de São Paulo estava viajando noutras de 1960 a 1964 sua preocupação essencial era adequar o instrumento analítico da sociologia das classes sociais ao entendimento do capitalismo nos trópicos. Por aquela época, reunir-se num apê para estudar O Capital de Karl Marx era muito mais importante do que se ligar nas reles contradições cotidianas do janguismo. É depois do golpe de 1964 que o curso de ciências sociais se politiza, mas se politiza em função do parâmetro da classe social, 104

cuja debilidade estrutural explicaria a prática populista na América Latina, contra a qual o marxismo se insurge em nome da ciência ou da modernidade. Influenciada pelo “marxismo funcionalista” e desconectada do contexto janguista pré-64, a sociologia em São Paulo iria mixar o populismo da UDN com a crítica antipopulista de Hélio Jaguaribe. O resultado dessa mistura era a idéia equivocada de que a causa do golpe de 64 estava na condução incompetente e a-científica das lideranças populistas que, ao invés de organizarem as classes sociais populares, evocaram a massa folclórica ou o povo como comunidade. A sociologia antipopulista de São Paulo, que fará a cabeça de Luiz Inácio Lula em 1989, acaba nos oferecendo a seguinte aporia: tolerância em relação à queda de João Goulart e, ao mesmo tempo, repúdio à ditadura militar. Esta sociologia não indaga nem sobre o que poderia ter sido; e se fosse ditadura militar com João Goulart? Eis o que escreve Jorge Roux, em seu excelente estudo sobre o filósofo Álvaro Vieira Pinto - Nacionalismo e Terceiro Mundo (1990, Cortez, São Paulo): “O PT tem origem numa iniciativa da nova liderança sindical nascida da organização dos operários da indústria automobilística no ABC paulista e de um grupo de intelectuais e estudantes. A nova agremiação começa a ganhar projeção no governo Geisel. Diversamente do PC, que tem vivido quase toda suas existência na clandestinidade, o novo partido nasce legal, sem ser hostilizado pelo poder ditatorial. Seu líder, à época do surgimento do novo movimento sindical, foi devidamente divulgado pela imprensa e teve espaço para trabalhar. Fique claro, porém, o seguinte: o registro de tais fatos não significa que se esteja sugerindo ter o novo partido e a nova liderança nascido sob o signo da obediência do poder. O que se quer dizer é que, objetivamente, na nova situação de trânsito para as instituições democráticas, configurava-se como do interesse das classes empresariais do próprio governo o surgimento de uma liderança operária alternativa a do PC e seus aliados.” Acrescentese que era uma alternativa ao “petebê-comunismo” de Leonel Brizola, cuja liderança trabalhista nos anos 60 foi muito mais expressiva do que a representada pelos líderes do Partidão. Maria Victoria Benevides várias vezes incide no “retorno ao reprimido”, ora com ironia a respeito do “choro” de Brizola ao perder

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a sigla do PTB para Ivete Vargas, ora aludindo à bruxaria do general Golbery para “bloquear a expansão do PT de Lula e do novo sindicalismo”. A outra interpretação deve também ser posta em relevo: Golbery deu força na expansão do PT com o objetivo de dificultar o acesso de Leonel Brizola a São Paulo, região estrategicamente escolhida de acordo com o caráter antipopulista (anti-Getúlio e Jango) da grande imprensa e do ambiente universitário: além do separatismo de 1932, do fechamento do jornal O Estado de São Paulo, da intervenção federal, etc. Em São Paulo o enfoque excessivamente jurídico-liberal, à Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, traça de Getúlio Vargas um péssimo retrato: o do ditador que encarcera Graciliano Ramos e entrega Olga, a esposa de Luiz Carlos Prestes, à Gestapo nazista. Pouca gente intelectual em São Paulo concebe Getúlio Vargas sob o ângulo do subsolo, incluindo aí o petróleo e a música de Vi 11a Lobos. E digno de reparo que o cineasta paulista Nelson Pereira dos Santos filmou Graciliano Ramos {Memórias do cárcere) como se todo mundo - depois de 1954 - tivesse um pai lacerdista. Ao :ontrário da abordagem nacionalista de Glauber Rocha a respeito dos intelectuais em São Paulo desde 1922. Na Semana de Arte Moderna os artistas deram as costas à Coluna Prestes. Em 1980, Glauber alertou Luiz Inácio Lula, através de um artigo de jornal em São Paulo, para meditar na mensagem crítica do filme A Idade da Terra. O cineasta denuncia a alienação formalista cosmopolizante da intelectualidade em São Paulo; daí o vexame de querer reformar o soneto em 22, enquanto a Coluna Prestes subia o Brasil carecendo de pensamento nacional, carência intelectual que por fim levou Prestes ao marxismo-leninismo/n?m Moscou. Em vários textos inéditos do cineasta aparece a sofisticada dupla Paulo Emílio Salles Gomes e Antonio Cândido. Segundo o cineasta, o crítico literário acerta em seu juízo sobre o arcadismo mineiro, mas pisa na bola em relação ao verde-amarelo do romantismo brasileiro. Infelizmente a geração pós-64 não encontra nos escritos de Antonio Cândido e de Sérg10 Buarque de Holanda uma reflexão histórica sobre o trabalhismo de Vargas, de João Goulart e de Leonel Brizola, embora Antonio Cândido e Sérgio Buarque de Holanda tivessem a idade da maturidade

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intelectual quando desabou o golpe de 1964. Nào basta constatar, através da mera tolerância pluralista, que há povo atrás de Leonel Brizola pedetista. Isso é acacianismo. Eis o que se espera dos intelectuais do primeiro time em São Paulo: uma análise histórica para nos esclarecer a respeito da suposta inconsistência política do brizolismo. Diga-se de passagem que Antonio Cândido e Sérgio Buarque de Holanda são os dois ilustres intelectuais citados como fundadores do PT em São Paulo, de modo que a resistência eleitoral paulista ao nome de Leonel Brizola configura-se como um fenômeno de natureza intelectual, simbólica e estética. Não estou querendo dizer que Leonel Brizola estaria eleito se porventura Antonio Cândido o apoiasse em São Paulo; todavia é revelador do astral particular da nossa época se por acaso o crí­ tico tiver dado a Luiz Inácio Lula seu voto no primeiro turno de 1989. Eis o equívoco fatal do trabalhismo: a existência da opção Lula ou Brizola. Num país sugado pelo imperialismo da dívida externa, a concepção política lúcida em torno do trabalho exigiria a convergência do Brizulla, com o objetivo de se opor aos efei­ tos sócio-culturais deletéricos de 1964. O resultado desse desencontro no campo trabalhista foi a vitória espetacular de Fernando Collor em São Paulo. A capital financeira e cultural do país votou no candidato da telenovela carioca. Em São Paulo, a existência da alternativa Lula ou Brizola constitui uma prova irrefutável de que o ano de 1964 se dissipou da memória coletiva, graças ao influxo estético das telenovelas e à militância do PT, que odeia Getúlio Vargas e João Goulart. Longe de mim concordar com a ciência tucana universitária que encara o fenômeno eleitoral de Fernando Collor como um acidente histórico fruto de um vazio político da transição de José Sarney. Candidato dos tucanos, Mario Covas fica deveras constrangido quando lhe perguntam em público se ele votou em Jânio Quadros para presidente da República na década de 60. Em 1990, marco terminal da agonia do curso de ciências sociais no Rio e São Paulo, o sociólogo francês Alain Touraine lança um tratado sociológico sobre o sangue, recuperando a palavra populismo (ou Estado nacional-popular) como ontologia política progressista na América Latina, enfatizando justamente aquilo que Octávio Dulci já mostrara 107

em seu inteligente ensaio: que a ditadura militar de 1964 foi antipopulista. Para tirar o véu do irracionalismo que atrapalha a compreensão eleitoral, é mister prestar atenção no ritmo da redemocratização cíclica: depois de 1945 temos PTB e UDN; depois de 1979, PT e PDT. O ciclo sadomasoquista se repete através da direita arrependida que dá o golpe, mas é perdoada pela esquerda. A crítica das armas feita pela esquerda ex-terrorista acaba responsabilizando o estado psíquico juvenil pelo ato de pegar em armas para depor a ditadura. Maria Victoria Benevides está coberta de razão em sua tese de doutorado sobre o demónio do udenismo na política até os anos 2000. Ela enfatiza que o fantasma da política no Brasil é a tomada do poder através do golpe. Nunca uma definição genial da política foi pichada tão burramente como aquela frase: a questão social no Brasil é uma questão de polícia. Não é somente em minha cabeça que se dá a conversão de Jânio Quadros em fenômeno policial. O inconsciente paulista morre de volúpia pela polícia, e não apenas como fator civilizatório, mas sim como libido, sexo, sedução. Se não tiver charme policial, é difícil político estourar na preferência dos eleitores de São Paulo. A repressão bandeirante ganha valor positivo no gosto médio dos paulistas. A polícia é a heroína da modernidade em São Paulo. O cineasta Rogério Sganzerla perce­ beu de modo arguto o fim do homem cordial em seu filme sobre São Paulo: O Bandido da Luz Vermelha. A sociologia produzida pela USP não foi capaz de explicar o fascínio boçal por Jânio Quadros, cuja errância partidária é mal vista (traço de personalidade autoritária), assim como se condena sua recusa da representação democrática. Qualquer analista polí­ tico - seja o petista José Álvaro Moisés ou o tucano Bolívar Lamounier - está cansado de saber que a simples idéia de legali­ dade política entre nós assume existência instável e problemática. A metáfora brizolista da “saúva eletrónica” é um achado estupendo sobre a existência da comunicação de massa. Segundo o ex-governador do Rio de janeiro, a Rede Globo funciona tal e qual um partido político, sem esquecer no entanto o detalhe de que a saúva eletrónica conquistou o “padrão de qualidade” do público médio e intelectual.

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Classe social, partido político e voto - esse trinômio constitui a etapa necessária para se alcançar o poder numa sociedade em que o Estado é o instrumento por excelência da transformação social. O Estado continua sendo uma instituição mais forte do que a TV, embora tenha sido esta - e não o Estado da ditadura de 64 - quem unificou o país de ponta a ponta depois de 1970. A insolidariedade social de que falava Oliveira Viana para explicar a precariedade da consciência do interesse público, persiste ainda na sociedade brasileira dominada pelos clãs parentais. Todavia surgiu um fato histórico novo a partir de 1964: a formação do monopólio intimamente vinculado à etapa informática do capitalismo mundial, o qual minou o socialismo soviético na superestrutura ideológica: McDonald ao invés de Sergei Eisenstein. Os antigos clãs oligárquicos regionais se desdobram em clãs financeiros associados ao monopólio televisivo da Rede Globo, a empresa de comunicação paradigmática do modelo imperialista. Os generais brasileiros de 1964, cujas esposas foram colonizadas pelo cinema do Pentágono Roliudiano, entregaram o controle da comunicação a um donatário do espaço eletrónico. Este foi o maior equívoco histórico do Exército brasileiro - de gravidade ide­ ológica maior do que própria derrubada de João Goulart. A Escola Superior de Guerra, seduzida pelo cinema america­ no de 1 945, viu em 1964 o modelo de desenvolvimento do Brasil delineado na televisão Primeiro Mundo do doutor Roberto Mari­ nho, empresa hoje de capital inteiramente nacional e, ao mesmo tempo, veiculadora da modernidade, ora com mensagem metaRoliudi, ora sub ou superroliudiana. O “milagre” da ditadura foi o aparecimento do gênero telenovela como cabo eleitoral respon­ sável pela misteriosa vitória de Fernando Collor em 1989. Ao implantar por todo território nacional um canal privado de TV, o golpe de 1964 desloca culturalmente o imperialismo de fora para dentro de casa, à medida que consolida uma indústria cultural de desenvolvimento auto-sustentado. Aparentemente o cinema americano (porta voz da ideologia de Roliudi) já não é mais o principal inimigo externo; a cultura da telenovela elimina a idéia de “inimigo externo”: o imperialismo já era. O mercado interno prova que nenhum cinema americano teve tanta penetração ideológica de massa quanto 109

a fábrica de telenovela e seus derivados endógenos. Ninguém em sã consciência, analisando o sucesso da TV Globo no mercado nacional e internacional, dirá que o doutor Roberto Marinho não passa de um títere do imperialismo americano. Enfim, a TV Globo não é testa de ferro de outras TVs multinacionais; não se trata de um epifenômeno da dominação externa, ou de empresa pau-mandado do FMI. A organização Globo é uma empresa de comunicações que, do ponto de vista económico, possui uma dinâmica endógena autónoma; todavia isso não impede que a consideremos peça-chave do modelo de desenvolvimento pró-imperialista inaugurado com a ditadura de 1964. “Atualmente” - escreve Leonel Brizola num “tijolaço” de janeiro de 1992 - “a Rede Globo tornou-se tão forte e avassaladora que, no equilíbrio de forças de um país como o Brasil, adquiriu um poder de guarda, em muitas circunstâncias, certa equivalência ao das Forças Armadas. A diferença é que nestas existem leis, regulamento e colegiados, cuja violação só se verifica em raras situações, enquanto no império da Globo o poder é pessoal, permanente e discricionário, invariavelmente em tomo dos interesses económicos do sr. Roberto Marinho. Eis o poder paralelo a que tenho me referido, ilegítimo, ameaçador e onipotente”. No Brasil da década de 90 os “tijolaços” são superiores ao palavreado retórico e pedante dos politicólogos acadêmicos, ou senão dos chatíssimos jornalistas especialistas em política. O ob­ jeto do discurso público de Leonel Brizola é a impostura da sesmaria eletrónica, de modo que esta se converte numa instân­ cia determinante da vida política, inclusive como matriz geradora de determinadas palavras de ordem, a exemplo do projeto Brasil Novo: ingressar na modernidade de Primeiro Mundo e competir no mercado internacional. Esta ilusão neo-etapista é formulada com base na Rede Globo: a TV do Primeiro Mundo ideologica­ mente é anti-Terceiro Mundo. Em seu livro Desenvolvimento e Crise no Brasil (1930-1983), Luiz Carlos Bresser assinala: “A Revolução de 1964, ao instalar no Brasil um regime militar, consolidou no país o capitalismo tecnoburocrático, ou seja, uma formação social dominantemente capitalista mas crescentemente estatal, baseada na aliança da burguesia com a tecnocracia.” Apenas há que acrescentar a 110

existência de uma configuração videofinanceira do capitalismo sob a batuta do neomilitarismo tecnoburocrático de 1964. No entanto, tal dimensão nunca é cogitada nas análises e interpretações macrosociológicas do Brasil contemporâneo: de Luiz Bresser Pereira, passando por José Guilherme Merquior, até Alain Touraine ou Richard Morse. Não há referência à especificidade do monopólio televisivo. Não se discute nunca a que ponto a indústria cultural pós-64 inscreve-se no processo de modernização do “jogo político”. Lendo os discursos do presidente Collor, onde avulta o copy de Rouanet e Marcílio Marques Moreira, observamos a filiação do governo à doutrina neo-socioliberal; pelo menos na retórica sobressai uma diluição epigônica de José Guilherme Merquior, o ensaísta liberal em cuja prosa está ausente a conexão cultural do golpe de 64 com a formação do monopólio televisivo, embora tenha sido ele o autor brasileiro que lançou em 1969 a discussão teórica da “modernidade” e o conceito de indústria cultural. Refiro-me ao ensaio crítico sobre a escola neo-hegeliana de Frankfurt, dedicado à memória do petebista mineiro Francisco Clementino San Thiago Dantas. Registra-se mais este paradoxo em nossa cultura de barrocos paradoxos e inusitadas conciliações: José Guilherme Merquior não se ocupou de seu amigo Glauber Rocha como crítico de cultura, que é tão ou mais importante do que o mexicano Octávio Paz. Ora, em Glauber Rocha o que sobressai é a politização levada às últimas consequências do controle audiovisual da sociedade brasileira. Hegel não conheceu a fotografia. “Pouco antes da morte de Hegel, Nièpce inventou a fotografia”, escreve Merquior em 1969. O governo pop de Collor em 1992 pode ser visto como decalque da modernidade neoliberal de José Guilherme Merquior, enquanto a prática da modernidade seria o conteúdo da Rede Globo, como se Fernando Collor fosse o jovem Kaiser da telenovela. Depois do fechamento da Embrafilme - e a despeito do curativo da Lei Rouanet - a única luz que brilha culturalmente no governo Brasil Novo é a luz do aparelho de TV. Darcy Ribeiro é malcompreendido pelos intelectuais de São Paulo com a fama de fazer a redução simplista do imperialismo multinacional. Este somente drenaria a economia do país para fora. Escreve Darcy, 1991, do Senado Federal: “ontem enveredamos, impávidos, pelos caminhos cepalinos 111

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da industrialização substitutiva. Ela nos deu, é certo, um impulso de progresso, mas resultou, afinal, num acesso de modernização reflexa e na criação, em São Paulo, de um poderoso núcleo de recolonização de nossa economia, cuja expansão, no limite, ameaça até a unidade nacional.” De olho na orientação para a América Latina requerida pelo FMI, assinala: “Para nos impor esta política é que armaram o golpe militar de 1964, cujo estopim foi a promulgação da lei de controle das remessas de lucros, votada na Câmara e no Senado, mas vetada pelo governo norte-americano.” O fórum de Nova Iorque continua dando as cartas, impondo-nos “uma dívida impagável, que não é devida, porque decorre em enorme percentagem de arranjos interbancários de efeitos de políticas antiinflacionárias do governo norte-americano”. A crítica endereçada ao nacionalismo de Darcy Ribeiro - cujo equívoco seria considerar as multinacionais apenas como sanguessugas da economia brasileira - não procede se atentarmos para a sua distinção entre capital estrangeiro amigo e inimigo. “Frente ao capital estrangeiro, só nos deve preocupar uma vigilância contábil, que indique se ele nos deixa ou nos deixará, em prazos previsíveis, algum saldo, ou se só opera sugando nossos recursos. Outra preocupação deve ser uma política de distribuição regional dos investimentos multinacionais, que não aumente a concentração que já está ameaçando fazer do Brasil rico, centrado em São Paulo, um pólo de colonização interna sobre os Brasis pobres.” Darcy Ribeiro denuncia o ilusionismo primeiro mundoso da Paulicéia. O intelectual paulista sente desprezo pelo nacionalismo de Darcy Ribeiro e de Leonel Brizola. Há de fato um fundamento socioeconômico-estético responsável pela desavença de São Paulo em relação ao brizolismo: a concentração aí de capital multinacional, cuja consequência é a modernidade reflexa e socialmente excludente. Ainda que o desenvolvimento de São Paulo seja analisado sob o ângulo do progresso industrial, haveremos de convir (basta para isso andar pela estrada de Santos) que a indústria foi extremamente cruel com o povo paulista. O Brasil inteiro - se for julgado pelo prisma civilizatório - padeceu o diabo ao inserir-se no nevitável processo industrial do século XX. Nós perdemos o fio da história com o estúpido golpe de 64. Do jeito que va. indo a coisa

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na roça (onde ninguém quer morar), a população urbana não terá o que comer daqui a pouco. Nossos governantes não perceberam o conselho do sábio português Agostinho da Silva: educação é reforma agrária. A Kultur agri do velho Brasil rural não encerra nenhuma nostalgia patriarcal latifundiária. Ao contrário, o êxodo rural rumo à magalópole aparece como pesadelo, ou seja, uma opção predatória de desenvolvimento industrial. A Amazônia é a farmácia do mundo. Se por acaso um alto executivo na Avenida Paulista cafungar um naco de coqueine, o barato dele depende do pulmão da hiléia amazônica, assim como do fel do urubu pode vir a cura do câncer. O planeta, dizem os ecologistas, está à míngua, mas o Brasil sortudo ainda possui estoque vital de energia telúrica, aquilo que René Dreifuss chama de “capital biótico”, graças à Amazônia e à existência de uma enorme população etnicamente integrada na meta-raça: “o Brasil tem na Amazônia a base para a ciência, a tecnologia e a produção do século XXI”. Na época da ressurgência da regionalidade, é milagre a exis­ tência de um país continental com multi-regiões integradas, de modo que a sopa de São Paulo não é separada. O estágio informático do capitalismo traz o perigo da desintegração interregional com 22 estados multinacionais. A dominação colonial re­ força os fragmentos desordenados das nações latino-americanas. São Paulo - no imaginário da mídia bandida - está mais próxima de Berlim do que de Buenos Aires. A curtição cosmopolita perde o charme na década de 90. Uma das falhas ideológicas do PT paulista é admitir que tal partido político não possui predecesso­ res no passado trabalhista. O new sindicalism em São Paulo tra­ ça de Leonel Brizola a imagem distorcida de um político lacucaracho, um mujique místico que se deslumbrou com a Car­ ta Testamento de Getúlio Vargas. Não é necessário ser brizolista ou filiado ao PDT para reconhecer na figura de Leonel Brizola o epicentro da política, inclusive na relação de São Paulo com o resto do Brasil e do mundo. A história não é apenas cronologia: de 1964 a 1994. Longe de mim a pretensão de profeta apocalíptico; todavia o pulo da eletricidade à informática requer algumas mediações intelectuais, a começar pela coincidência doida de querer se juntar ao Primeiro Mundo 113

num momento em que a economia brasileira corre o risco de tornarse peça descartável no processo de troca internacional. O Brasil corre o sério risco de não servir nem mais de proletariado externo. Da legendária substituição das importações ao processo descartável de insumos baratos, eis o estado pós-moderno de prescindência em que o país se encontra na segunda metade da década de 90. Richard Morse. o historiador da cidade de São Paulo, resumiu a condição descartável que assumiu o Macunaíma brasileiro no final do século XX: o brazilianist já não mais se interessa pelo pobre coitado colonizado. O brazilianist não quer mais estudálo. O computador Maquilurra tirou o Macunaíma do mapa mundi. A passagem do malandro ferrado ao marginal despolitizado não altera a rejeição burguesa ao calote da dívida externa, o mecanismo neocolonial substitutivo da guerra fria. Era ditadura durante a guerra fria; no período da redemocratização é dívida externa. No entanto, verdade seja dita: o imperialismo na São Paulo concentracionária de capital multinacional não se configura como uma entidade perceptível. São Paulo significa xipofagia com o capital estrangeiro, de modo que aí não faz sentido perguntar sobre a derrama das “perdas internacionais”. Para o paulista antropofágico, Leonel Brizola é um político antiquado, por não saber tirar proveito da internacionalização da economia. São Paulo vai ler o mesmo destino da Espanha durante a onda do neoliberalismo. Assim, Deus é mercado, livre da ingerência do Estado. O chocante nisso tudo é que talvez o brizolismo seja a tendência política que melhor compreenda a perversidade da internacionalização económica pós-1964. O mito São Paulo começa a tomar o corpo em 1900; antes dessa data, a Paulicéia era um conglomerado humano medíocre, embora tenha se dispersado pelo Tietê, Paraíba, São Francisco, Sorocaba, Prata. Colónia do Sacramento. A São Paulo mítica é invenção do imigrante italiano, região centralizadora do progresso industrial. O antigo efeito dispersivo do aventureiro paulista persiste através da errância do macarrão, o alimento italiano que conquistou o Brasil de ponta a ponta. Depois de 1964 a ditadura - vá lá o termo moderniza a rede rodoviária e o sistema das telecomunicações. As diversas regiões se intercomunicam pelas estradas perpendiculares 114

ou paralelas ao mar. A Rio-Bahia (de Getúlio Vargas e João Goulart) foi a estrada de rodagem em que o cineasta Glauber Rocha fez sua cabeça no folclore de Vitória da Conquista. Mas, a partir do golpe de Estado de 1964, o que houve foi menos a integração do Brasil através das estradas e rodovias do que a unificação articulada pelo monopólio televisivo de massa. É absolutamente necessário questionar a hegemonia da estética pornochique de auditório, sobretudo porque o patológico inchaço urbano é fruto da mensagem de telenovela, que apresenta o caboclo de João Guimarães Rosa vendo TV e se masturbando com a miragem erótica do Rio de Janeiro e de São Paulo. Na década de 1970 o Brasil torna-se urbano através da ditadura e da Rede Globo. Para avaliar o alcance societário do domínio televisivo de 1965 a 1989, basta considerar o seguinte fato reconhecido por Mario de Andrade em 1942: a Semana de Arte Moderna conectou São Paulo mais com Paris do que com Cataguases.

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6 Crítica à Economia Política Travesti

"Na luta ideológica há que temer principalmente o travesti: o que posa de oposição e ajuda a situação, o que se apresenta como esquerda e leva água ao moinho da direita, o que proclama sua repulsa a determinadas formas de ação política, mas colabora, direta ou indiretamente, para que ela se efetive. 0 travesti é eficaz justamente na medida de seu disfarce. A eficácia do travesti deriva, justamente, de sua condição específica: é uma coisa e apresenta-se como outra. Nelson Werneck Sodré

processo de internacionalização da classe operária no Brasil coincide com a cultura da telenovela. A sociologia do PT é impensável sem a ideia do salário bem pago. Os trabalhadores bem pagos são os primeiros a se organizarem. É a filosofia da miséria by Proudhon: melhorar a condição operária através do salário. Não é o travesti que trabalha o objeto desta crítica da economiapolítica, mas sim o trabalhador travesti, ainda que seja o ouvrier embalado pela nova mitologia: a de que a classe trabalhadora não precisa se precaver contra o Partido dos Trabalhadores e sua representação da vontade popular. Com Lula dispensa-se o conceito

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de representação política. Não existe mais o drama político da famosa passagem da classe em si à classe para si. Em qualquer lugar do mundo o trabalho se converte em trabalho assalariado; todavia entre nós surge a distonia entre a noção de trabalho c a história do Brasil: a contradição entre um partido que pretende assumir o ponto de vista do trabalho, mas que recusa a história do Brasil antes de 1979, de modo que a defesa do trabalho produtivo (em oposição à especulação financeira) passa a significar por si mesma a práxis da liberdade. O que interessa ao economista Mercadante é menos a estrutura das relações sociais do país do que o bem-estar setorial da classe trabalhadora do ABC paulista. Em suma, para a cúpula do PT, o trabalho não é o elemento através do qual se pode compreender a história do Brasil, portanto o PT exibe como trunfo o fato de ser um partido sem história, ou melhor, o absurdo de uma esquerda sem história. Além da ascensão de Collor ao poder, o ano de 1989 traz outra grande decepção: a imposibilidade de concretizar a dobradinha Brizulla no primeiro turno das eleições presidenciais. Esta impossibilidade dificulta extremamente o projeto de emancipação do país através do voto democrático: a impossibilidade de realizar a síntese do trabalhismo no Brasil pós-64. Esta separação de Lula e Brizola em campos opostos significa o divórcio entre Ogum e São Jorge. Separação que o povo não entende, pois a convergência trabalhista dos dois líderes traria uma aliança eleitoral imbatível. A aliança do velho líder com o líder jovem representaria a verdadeira superação de estrago histórico que o ano de 1964 causou ao país. O ruído na sinfonia trabalhista prepara a vitória de Fernando Collor. Brizulla não rimou no primeiro turno. A direita acabou ganhando as eleições diante da bobeira trabalhista. Em 1994 continua a guerra sem fim do PT com o PDT, o avesso do Brizulla que não houve em 1989. Brizulla será lembrado como anagrama frustrado pela histó­ ria. A interpretação inteligente da sinfonia Brizulla cabe a Roberto Mangabeira Unger: Lula, a esquerda do Brasil-1 (Sao Paulo); Leo­ nel Brizola, a esquerda do Brasil-2, sendo que o Rio de Janeiro é a capital produtora da telenovela, assim como São Paulo - o pivô do investimento multinacional - é o berço da social-democraca que seduz os operários do ABC.

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Roberto Mangabeira acredita que a invenção política poderá acontecer no Brasil-2. O perigo chama-se social-democracia neoliberal, o prato do dia das elites intelectuais em São Paulo, ainda que o PDT não esteja imune ao influxo social-democrata, a ala light grã-fina que subtrai o quantuni de indignação do discur­ so folk de Leonel Brizola. O destino político de Luzinácio em 1994 oscila do discurso social-democrata ao realismo reacionário da telenovela. Não é por acaso que ele usa e abusa da expressão “vender a idéia”. Fulano de tal quer vender a idéia de que o líder operário é epifenômeno da telenovela, a arte popular industrial capitalista com a qual o operário ejacula de prazer. A sociologia política das classes sociais não tem nada a dizer depois de 64. É difícil admitir que Collor tivesse sido destronado do Planalto porque não quis ou não conseguiu governar com o empresariado industrial de São Paulo. Fernando Collor é um verdadeiro desafio para as ciências so­ ciais, sobretudo quando a consciência coletiva é objeto de inves­ tigação social. Algo semelhante aconteceu com a escola de Frankfurt, que não conseguiu explicar a doença Hitler na Alemanha. A revista Veja ajuda a colocar o homem em Brasília e, depois de dois anos, resolve tirá-lo de lá a partir das denúncias do defroqué da corrupção: o broder Pedro Collor. Em 1974 o empresário industrial de São Paulo acha mal ter dado o golpe de 64. Dez anos depois é a “abertura” contra o autoritarismo militar. Em 1989 a burguesia paulista vê com bons olhos a façanha de Collor. Karl Marx dizia da consciência comum: as coisas estão colocadas de ponta cabeça. A consciência comum hoje é videotizada pela ideologia do monopólio, portanto a burguesia industrial paulista é a única classe com vocação para a dominação política. Impossível governar o país sem contemplar a Fiesp e a mídia - os dois gigantes do processo histórico. A anatomia da produção televisiva é a chave da anatomia da sociedade civil. Por conseguinte, a dominação da burguesia industrial de São Paulo perde terreno para a indústria cultural sediada no Rio de Janeiro. A crítica da economia política inclui a critica da TV. O 119

arsenal televisivo monopolista determina não apenas o comportamento da “sociedade civil”, como também a natureza do poder do Estado. Desde 1987 a “tela quente” prepara Fernando Collor com apa­ rições heroicas no Globo Repórter, Fantástico, A Praça é Nos­ sa, etc. Do Salvador da Pátria aos Anos Rebeldes, cada tele­ novela é uma minissérie ininterrupta que resume a ascensão e queda do jovem “caçador de marajá”. Evidentemente a televisão não é força motriz da história, po­ rém as circunstâncias audiovisuais determinam a preferência do eleitorado, principalmente no Brasil em que a ação unificada da TV atinge tamanha amplitude societária. Se porventura KarI Marx estivesse por aqui, com certeza iria começar a anatomia da sociedade brasileira através da crítica à economia-política da telenovela. A mercadoria fantasia circula cotidianamente durante oito a dez horas. Esta é a força espiritual dominante do partido único. A mídia como força material dominante é um meio de produção ide­ ológico que condiciona a sociedade civil e o Estado. A TV com 80% de audiência é sucesso de público e crítica. Domínio absoluto. Trata-se de uma configuração histórica espe­ cífica: a TV produz a cultura política. Nenhum “plano económi­ co” torna-se concebível (recorde-se o Plano Cruzado) sem a me­ diação do monopólio televisivo. O governo de Collor deve ser analisado como uma modalidade de programa de auditório. O segredo de sua modernidade é a telenovela com o objetivo de ingressar o país na modernidade do Primeiro Mundo. A travestização das relações sociais atravessa toda a socie­ dade brasileira: do capital ao trabalho. Então um líder operário não é em si nenhum sinal de emancipação política, porquanto existe a dominação do trabalho materializado sobre o trabalho vivo, ou seja, o produto do trabalhador sobre o trabalho. A particularidade essencial da mercadoria travesti é apresentarse como um produto sem história, ainda que a condição da génese do capital como telenovela seja a ditadura de 1964. A amnésia 1964 coincide com o domínio do capital telenovela, o qual necessitou da intervenção do Estado para existir como totalidade.

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O domínio cada vez mais crescente do transsexual - Madona, Maicojequisô, Xuxa - cuja expressão máxima é o travesti merca­ doria, está entronizado com a dissipação do valor de uso no capi­ talismo da década de 90. O Brasil importa simulacros de massa do capitalismo norteamericano e exporta travesti. Existe gay rico, mas travesti é ne­ cessariamente pobre. Vive de mixê, vende seu corpo, mercadoria pura. Submete-se à cirurgia que lhe arranca o pênis. O travesti economicamente remediado abole o valor de uso, eliminando as­ sim a dualidade da mercadoria, ou seja, converte-se inteiramente em valor de troca. O travesti é o fetichismo do fetichismo da mercadoria, a in­ versão sexual que Freud não conheceu em sua taxonomia das inversões sexuais, ou seja, é mais do que o invertido anfígeno ou o hermafrodita, cujo objeto sexual pertence a um ou outro sexo. O draguiquim pop, cuja génese cultural encontra-se na tropicália dos anos 60, segundo o testemunho histórico de Glauber Rocha, é resultado de um modo de produzir mais-valia. Este ca­ pitalismo videofinanceiro é o automovimento do dinheiro. O direito de nascer travestizado como mercadoria moderna data de 1965. A produção da mercadoria moderna no Brasil é a telenovela. O dinheiro se torna capital. A telenovela capital. A última ratio do Primeiro Mundo. O embuste económico neoliberal. À primeira vista choca o raciocínio de que Fernando Collor e Luzinácio Lula são ambos produtos da telenovela. Com a existência do capitalismo videofinanceiro torna-se volátil a dominação de classe. Nosso capitalismo consegue a proeza de fabricar a mercadoria perfeita, a mercadoria por excelência: a telenovela da indústria cultural videofinanceira. Líder operário na década de 1990 depende da TV. Marx dizia do capital: uma contradição vivia in ato. A TV Globo é ao mesmo tempo tigre de papel e refém do Estado, de onde extrai toda sua fortuna. O sobretrabalho da TV é extraído da nação inteira para engordar o capital telecolonial. A mímese da telenovela é tão abrangente que estrutura a representação literária do romance brasileiro contemporâneo. Pela primeira vez na história da nossa cultura o gênero romance abdica de sua autonomia narrativa para se adequar ao procedimento 121

roteirizante da telenovela, que reproduz por sua vez apetite histoire da série B cinematográfica, cujo conteúdo é mostrar que a sociedade está articulada na polícia. Esta mímese videoclipe amarra o gênero romanesco às leis prosaicas do mercado de audiência, ou seja, é o triunfo completo do valor de troca televisivo. Se fosse apenas o fim do romance não seria tão sério; o problema é que depois de 1989, com a vitória de Collor, a hegemonia ideológica da TV atinge a totalidade. O procedimento da telenovela incorpora-se cada vez mais à prática da política. A minissérie da TV torna-se indissociável da práxis eleitoral de massa. O domínio absoluto da Kulturtevê em nossa sociedade é a característica principal que nos diferencia dos outros países desenvolvidos ou subdesenvolvidos. Tudo hoje no Brasil gira em torno da lógica deste capital telenovela: a TV como relação social. A anatomia da sociedade civil ou do Estado encontra-se na TV. A idéia dominante é a idéia da TV dominante. A concentração da riqueza se expressa através da comunicação monopolizada. A sonoplastia dos carapintadas é moldada pela TV dominante. A escola dos carapintadas é a telenovela que acaba com a idéia de continum histórico, na mesma proporção em que mistifica a juventude videoclipe inaugurada pelos Bitols de Liverpool. Em todas as igrejas explode o som eletrónico iê-iê-iê reproduzido pela telenovela, a parada de sucesso das eleições de 1989. Em primeiro lugar, o desempenho da telenovela - a minissérie como agente histórico -, depois o banco, o automóvel, o supermercado. Na economia política videoclipe a telenovela é a rainha das mercadorias, a célula draguiquim da sociedade brasileira. A telenovela substitui a antiga função ideológica de Roliudi, o cinema responsável pela gestação do golpe de 64. A metamorfose de Roliudi em telenovela made in Brasil ocorre no momento em que morre o cineasta Glauber Rocha. A década de 80 favorece o domínio absoluto da TV Globo. A sigla ACMarinho-Sarney. Os diretores do enredo político videofinanceiro. Evidentemente Roliudi não sumiu do mapa com a tela quente. O i□ y-nnitnlismo no Brasil encontra sua Éexpressão TeX.-Te — Mundo. ^Z adequada com a teienu

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determinante dos rumos da democracia. A história do país como capítulo produzido pela TV. O cineasta Sergei Eisenstein referia-se ao “imediatismo da televisão” que atropelou as experiências do cinema mudo e sonoro. Eisenstein falava da Europa e dos Estados Unidos, sobretudo deste último, onde não foi brusco o salto do cinema à TV, diferentemente do que iria acontecer entre nós com o domínio televisivo absoluto a partir da década de 80. Na década de 70 o país estava inteiramente organizado pela TV Globo. Antes de Luzinácio luzir sua estrela no fordismo do ABC, Walter Clark despontava como operário padrão da telenovela em 1965. Sua vida de trabalhador playboy - fama, dinheiro, mulher, automóveis importados - foi tanto ou mais divertida do que a do proprietário dos meios de produção da telenovela. A existência da TV Globo perdura além do “operário” Walter Clark e do capitalista Roberto Marinho. O lance da política é tomar o poder da televisão. Evidentemente não se trata de considerar a TV o motor da história, porém não se deve subestimar seu papel modelador do Estado, da política e da chamada “sociedade civil”. De 1965 a 1993, em menos de 30 anos, a empresa mais desenvolvida do monopólio audiovisual detém um capital inteiramente nacional, assim como exporta seus produtos em condições de competir no mercado mundial. Em 1964 Luzinácio não estava nem aí para a queda de João Goulart. Sua vida de operário começa em 1969 pela porta do sindicato. A escola da reivindicação imediata por melhores salários. Luzinácio aos 24 anos é líder sindical contra a repressão do governo militar sob a influência do combate ao “autoritarismo” e, simultaneamente, da luta pelas liberdades democráticas. A aliança de padre, estudante e operário. A tortura. O terrorismo de esquerda. A greve é objeto de investigação sociológica. Do contacto de líderes sindicais e professores de sociologia nasce o PT. Nos corredores da velha USP dizia-se que o professor Francisco Weffort era o Golbery do Lula. A sociologia paulista seduz o ABC. Em 1969 Luzinácio tinha 24 anos. João Goulart estava exilado na Argentina. Após 10 anos de militância no movimento sindical,

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Luzinácio torna-se o primeiro presidente do PT. Em 1979 é a extinção do bipartidarismo. No segundo turno de 89 a disputa se dá entre os dois produtos da produção eletrónica pós-64: Rede Globo versus Rede Povo. A telenovela prova a tese de que o interior da nossa casa é que anda errado, antes de qualquer ingerência externa do imperi­ alismo. Esta indiferenciação entre a variável interna e a variável externa constitui o cerne da “teoria da dependência”. Lula viaja pela Rio-Bahia de caminhão. Em 1957 vai morar na capital paulista. Não havia conhecido ainda Francisco Weffort, o sociólogo antipopulista que odeia Getúlio Vargas na história do Brasil. 1969. Lula ingressa no movimento sindical quando a interpre­ tação sociológica antipopulista da USP ganha fama em todo o Brasil com a dupla Octavio lanni e Francisco Weffort. Em Marx o conceito de sociedade civil não significa o paraíso na terra. Ao contrário, sociedade civil é o reino do bellum onmiitm contra omnes, ou seja, a antítese da comunidade, separação en­ tre o público e o privado. Egoísmo, eis o princípio da sociedade civil, assim como o Deus da necessidade prática é o dinheiro. A dominação do dinheiro. Em seu livro Crítica da Doutrina do Estado de Hegel, designa Marx por sociedade civil a esfera da vida económica na qual as relações individuais são governadas por necessidades egoístas. O homem burguês é o membro por excelência da sociedade civil, assim como o conceito de seguran­ ça vale como o conceito de polícia: segurança é a garantia do egoísmo da sociedade civil. E mais: sociedade civil e família são componentes do Estado. Os cidadãos do Estado são membros da família e da sociedade civil. O PT moderno se internacionaliza mais que o Partidão, cuja orientação intelectual esteve sempre calcada nos parâmetros do marxismo soviétco. Com o advento do PT dissipa-se a idéia de que lugar de marxista é no Partidão. A partir de 1979 o verdadeito e único partido político de gente marxista é o PT. Nao há outro. Afinal a obra de emancipação dos trabalhadores deve ser feita por trabalhadores. Roberto Freire é responsável Peja d „ome do Partido Comunista Brastletro. De 19^u, o PCB vai a 124

reboque da conjuntura internacional. A mesma ausência de filosofia nacional de que falava Glauber Rocha. Na alienação do ser colonial o intelectual se ocupa do que acontece com as metrópoles que fazem a “história universal”. Pouco importa se Roberto Freire esteja em Kiev ou em Olinda. A paixão dele é o marxismo de Primeiro Mundo. Isso significa que o marxismo pode assumir função colonizadora tanto quanto o cinema americano, não obstante as diferenças entre Lenin e Marlon Brando. Ora, devido às condições sociais de seu nascimento na indústria automobilística, o PT é um partido que vibra com o processo da internacionalização da classe operária em São Paulo, o equivalente tucano diante do processo da internacionalização do empresariado. O “internacionalismo” aparece como um elemento essencial da ideologia petista, e não apenas na vertente pop trotsquista do partido, cuja justificativa do aspecto positivo desse mecanismo internacional da produção capitalista aponta para a situação disciplinada, unida, organizada da classe operária. O problema é que não há no PT nenhuma teoria da revolução brasileira, portanto torna-se ocioso discutir se a emancipação da classe operária far-se-ia como reação ao caráter concentrado de operários em São Paulo. Tal como sucede com o grã-finismo do PSDB, o PT internacionalizante mostra-se inteiramente insensível à taxa de mais-valia que é drenada para fora do país. Segundo o PT, a ênfase na divisão internacional do trabalho não passa de um obsoleto ranço anti-imperialista. A atitude petista diante da fabricação de assalariados nas ex-colônias é o resultado da leitura de O que é isso Companheiro de Fernando Gabeira ao invés de O Capital de Karl Marx. É impossível aplicar no Novo Mundo o segredo da economia política do Velho Mundo. A utilização do esquema centro e periferia atrapalhou muito mais do que ajudou a compreensão da realidade nacional. Isso porque a noção de periférico reativa o complexo de inferioridade de origem colonial. Infelizmente não tivemos pequena burguesia, infelizmente não tivemos guerra civil, infelizmente não fomos colonizados pelos holandeses. Em Marx não existe o esquema de “centro” e “periferia” do capitalismo

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nem polarização esquemática de atraso e avanço, como se para ele na altura de 1850 fosse melhor viver em Londres do que na Itaparica de João Ubaldo Ribeiro. A liderança sindical de Luzinácio Lula desponta na fase da produção capitalista multinacionalizada do Brasil-One com a maisvalia da telenovela. Absolutamente não importa se Lula nunca viu TV em sua vida; o que importa é a escola da telenovela em sua personalidade política. O capital videofinanceiro prescinde da informação sobre a intencionalidade dos agentes históricos. O peão working light da novela das oito seduzirá o empresariado paulista em 1994.. “Lula não é mais aquele cara radical”. Esta frase soa esquisita. Lula nunca foi radical. Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para Lula a raiz do homem é a teologia da libertação. A concepção maligna do poder à UDN faz do PT um partido da “negatividade”: um partido que não quer tomar o poder, sempre oposição ao governo, com aura socialista, a exemplo da boaconsciência de Antonio Cândido, o ministro da cultura do “governo paralelo”. Na hora de chegar ao poder, morre na praia. “Caçador de maracujá”, eis a paráfrase lançada contra Fernando Collor por Luzinácio em debate na TV, depois de consultar os professores da USP e os padres do catolicismo progressista. O povo queria que Lula desse um tapa na cara do Collor. Ganharia a eleição. Mas ele não queria ganhar as eleições. Sua missão estava cumprida ao chegar no segundo turno. A reativa voz pequeno-burguesa teima em tripudiar que ele não trabalha há 20 anos, vivendo da política e não exclusivamente para a política. Este argumento entusiasta do trabalho operário na fábrica deve ser no entanto relativizado em função do caráter perverso do modo de produção capitalista. A alienação não surge somente no resultado, mas sim durante o processo de trabalho, ou seja: surge no ato da produção. Como o trabalho é exterior ao operário, então o operário é ele quando não trabalha, por conseguinte quando trabalha o operário não é nada. Ao trabalhar na montagem de um automóvel, Luiz Inácio Lula não seria ele, e sim outro, por exemplo: o alemão dono da Wolks.

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Não adianta estar lora da fábrica porque a telenovela tornase o lugar da maior taxa de mais-val ia, a força ideológica hegemónica da “sociedade civil”. Difícil saber hoje em dia o que significa ser operário. Por exemplo: os atores e técnicos da telenovela fornecem polpuda maisvalia aos proprietários dos meios de produção. Então os artistas são os operários da telenovela? Na década de 70 Glauber Rocha foi à imprensa declarar que seu salário era inferior ao de Lula.” Sou um proletário intelectual”. A mais-valia da telenovela se realiza numa escala progressiva muito mais ampliada do que a da indústria de automóveis. Acumulação de capital por segundo, em aspirai, plim-plim - eis a característica básica do nosso capitalismo videofinanceiro. Economicamente a Fiesp não é um mero organismo caudatário do monopólio televisivo, ainda que também não seja adversária da hegemonia da TV na sociedade brasileira. O movimento sindical recusa pensar o Brasil em função das “perdas internacionais ”. Dificilmente um intelectual petista alude ao fato histórico de que a acumulação primitiva de capital se deve à descoberta de ouro e minas nas Américas. Nesse aspecto o PT é o anti-Marx, sobretudo o Marx que assinala a conexão da pre­ dominância do regime colonial na génese da acumulação de capi­ tal na metrópole. Navegação. Comércio. Do regime colonial se origina, segundo Marx, o crédito público. Agiotagem. Bolsa. Bancocracia. Crédito internacional. Ao contrário de Luzinácio Lula e seus colegas do sindicalismo pragmático, Karl Marx não perde de vista que o sangue dos negros africanos é a estética Liverpool. A Inglaterra empresta dinheiro às nações para tomálas clientes. O sistema de crédito pressupõe especulação. O antinacionalismo de Luzinácio (ou a idéia de que o naciona­ lismo já era) não lhe permite compreender a inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho. A relação do arco e da flexa com o Banco da Inglaterra passa-lhe inteiramente despercebida, como se o imperialismo fosse uma invenção getulista. A revolução de 64 é a TV Globo. Este fato histórico exige abordagem sociológica para lá do pós-moderno, ou seja: sincroni­ zar Marx (a telenovela) e Freud (o travesti).

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Se fosse partido da “classe operária”, a cooptação feita pela Rede Globo torna-se-ia menos fácil do que “partido dos trabalha­ dores”. Com esse nome indiferencia-se o trabalho produtivo do trabalho improdutivo, tal qual a mercadoria telenovela. Evidentemente o dinheiro da TV tem tudo a ver com o Estado desde 1965. A TV Globo serviu de modelo económico aos gene­ rais da ditadura militar de 1964. O marechal Castelo Branco é a passagem de Roliudi à TV Golbery. Em São Paulo a economia-política da telenovela é objeto de gozação: energia negativa que põe toda a culpa do atraso na TV. Não foi a Rede Globo a causadora do desenvolvimento colonial. Para se configurar o monopólio da indústria cultural houve ne­ cessidade de um golpe de Estado. O ano de 1964 combina golpe de Estado, indústria cultural e “modelo económico”.

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7 Do Anal-Liberalismo

m 1994 Roberto Campos publicou sua avantajada memória, A Lanterna na Popa, tendo começado a escrevê-la em 1992, na sequência da morte de seu amigo José Guilherme Merquior e do impiti de Fernando Collor. Assim, em menos de dois anos, es­ creveu ou ditou - ou ambas as coisas - 1.400 páginas, o que é assombroso em se tratando de gênero memqrialístico. É visível a preocupação de Roberto Campos com a posteridade. O que dele dirão os pósteros? Roberto Campos tem a ambição de se aplaudir a si mesmo, tanto que parece meio postiça sua confissão em torno do “sonho frustado da juventude”: o de não ter escrito um livro à Adam Smith sobre as causas da riqueza do Brasil. Isso não convence. Roberto Campos é um homem vencedor. A propósito um jornal paulista, dedicando caderno especial a seu calhamaço, colocou o seguinte título-homenagem: “Ok, Bob, você venceu”. Sua memória é documento tecnocrata do poder. O capitalismo cósmico prevaleceu a partir da década de 80. Roberto Campos sempre apostou que Adam Smith venceria Karl Marx. Memória escrita em estado de êxtase depois da queda do Muro de Berlim em 1989 e da dissolução da União Soviética em 1991, dois acontecimentos identificados ao triunfo do capitalismo sob o socialismo, tanto que associa Roberto Campos o anacronismo de seu principal adversário, Leonel Brizola, à queda do Muro de Berlim em 1989, o ano nao apenas da vitoria de Fernando Collor, mas

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também da prova irrefutável da superioridade do capitalismo como sistema socioeconômico. Foi a queda do Muro de Berlim que motivou Roberto Campos a escrever A Lanterna na Popa. Ele está convencido de que o século XX terminou em 1989, ano emblemático que assinala o “colapso do marxismo-leninismo ”. Motivo de júbilo. Não há mais como acusá-lo de direita, entreguista e pró-americano. O marxismo não passa de fanatismo patológico alheio à realidade. Maluquice. Intelectualmente Roberto Campos repudia o nacionalismo (sinónimo àefolie temperamental), mas o considera superior ao marxismo e ao do perigo comunista. Roberto Campos tripudia o nacionalismo brasileiro: coisa de índio. “Nacionalismo botocudo”. A prosa sociológica de FHC substituirá o índio por caipira. Nacionalismo é coisa de tabaréu. Roberto Campos é dotado de melhor sensibilidade estética do que FHC, cujo ouvido foi emprenhado pelos cantores da MPB. Roberto Campos teve como alterego estilístico a capacidade frasista de Nelson Rodrigues, com quem conversava nas tardes de ócio. Para ele, 64 evitou a ressurgência de outro Estado Novo. Enquanto a maioria absoluta está condenada ao fracasso existencial, Roberto Campos é um sortudo neste país de frustrados. Antes de amá-lo ou odiá-lo, é preciso compreendê-lo. Nascido em berço pobre, Mato Grosso, estuda em seminário de Igreja, Minas Gerais, ingressa no Itamaraty no final da década de 30, especializase em economia, destacando-se como tecnocrata liberal “clássico”, para quem o Estado é um predador por natureza. Sua musa é a economia de mercado. Esta musa permanece num patamar inatingível - tipo ideal -, pois ela até hoje, segundo Roberto Campos, não tomou corpo inteiramente na sociedade brasileira, exceto durante o período Castelo Branco de 1964 a 1967. Por que Roberto Campos é um “clássico” do liberalismo? Embora anglo-saxônico e protestante em teoria económica, ele não é puritano em matéria sexual. Eis as modalidades de sexo evocadas pelo ex-embaixador: felatio, sodomia, suruba, prostituição, referência ao tamanho do pênis, etc. O leitor se surpreende, como eu me surpreendi, quando, nas últimas páginas de A Lanterna na Popa, Roberto Campos declara com todas as letras que, em sua longa vida, nunca foi “viado” nem “atleta

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sexual”. É ousada sua transparência em torno dos laços de ligação entre libido e política económica. Sexo, economia e teologia são os domínios através dos quais ele relata sua experiência no poder desde 1945, sem dúvida o mais importante exemplar da nossa burocracia estatal, ainda que refratário ao poder fálico do Estado. Este paradoxo é psicanalítico, porque o Estado na sociedade brasileira talvez esteja mais próximo do órgão sexual feminino: o Estado-Mãe, de que falava o escritor Oswald de Andrade perguntando: o que é sexualmente a economia de mercado? Feminino? Masculino? Homossexual? A psicologia de A Lanterna na Popa é pós-moderna em sua ambivalência: Roberto Campos goza da fama de economista recessivo, arrochado, retensivo, asceta, mas, por outro lado (ou do mesmo lado), faz o elogio do abandono orgíastico de si, fascinado pela liberdade dos instintos, sexualmente dissoluto, imaginação lasciva, atraído por todas as perversidades polimórficas. Roberto Campos odeia a preguiça Macunaíma. Ele não suporta a facilidade com que brota a mandioca ou a banana em nosso país. Sua fobia pela cobra é deveras curiosa, tendo ele passado a infância em Mato Grosso. No ano de 1989, com a queda do Muro de Berlim, Roberto Campos votou em Paulo Maluf. A psicanálise do vencedor deve começar pelo Estado Novo dt Getúlio Vargas. De seus grandes inimigos históricos perdoa Carlos Lacerda - cujas arestas nasceram de um mal-entendido - mas não poupa Leonel Brizola, o herdeiro de Getúlio Vargas. Além da ambição de morrer elegantemente, Roberto Campos conforme Delfim Neto declarou à imprensa em 1993 - pretende levar para o túmulo todos os seus opositores ideológicos. Epor isso que desperta curiosidade saber sobre sua filosofia da história, pois ele se gaba de ser precursor da “nouvelle vague anti-étatique”, assim como contesta a versão de 64 dada por Darcy Ribeiro em Aos Trancos e Barrancos. Roberto Campos nega a participação norte-americana nos idos de 64. Para ele, a operação Brother Sam é invenção doentia. E mais: 64 trouxe a razão. Ano abençoado. Castelo Branco é herói. Estadista. Roberto Campos não esconde sua vaidade por ter

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participado do governo Castelo Branco como “o cirurgião económico da revolução de 64”. O que surpreende em sua memória é o ataque sistemático ao nacionalismo varguista, por representar a irracionalidade do processo histórico. O nacionalismo “satisfaz a necessidade primitiva de odiar”. Sua linguagem às vezes lembra o discurso integralista, por psicologizar em excesso. O nacionalismo é considerado doutrina de complexados. Doutrina escapista “que visa a inculpar os demónios pelos pecados internos”; portanto desvia o foco de atenção para o externo, com o objetivo de não querer olhar para dentro de nós mesmos. “A transferência de culpa do subdesenvolvimento aos agentes internacionais passou a ser uma forma de escapismo”. Esta doença começa com Getúlio Vargas, Carta Testamento, e continua com Leonel Brizola, que transformou as perdas internacionais em bode expiatário do fracasso do desenvolvimento brasileiro”. Para Roberto Campos, nacionalismo é interpretação conspiratória da história. “Ao invés de analisarmos nossos defeitos, transferimos a culpa a outrem.” Por isso ele nunca deu a mínima bola para a existência do imperialismo: “Sempre achei que nossos demónios eram internos.” A “masculinidade nacionalista” é projeção patológica de demónios externos: “diabos invisíveis” como em Getúlio Vargas. Por aí se percebe que o discurso de FHC em 1994 deve muito a Roberto Campos como o principal ideólogo do liberalismo, inclusive a retórica da “casa em ordem”, que é palavra de ordem do Banco Mundial desde os anos 50. O candidato FHC deve a Roberto Campos seu mote de campanha: ‘ralos’ por onde o dinheiro some no Brasil. Citemos a frase de Roberto Campos: “ O gasto social no Brasil é uma sucessão de “ralos” burocráticos.” O FHC de 1994 está inteiramente retratado em A Lanterna na Popa, que apresenta o déficit público como a causa da inflação. A Lanterna na Popa serve como roteiro para o governo de FHC seguir, caso esteja interessado em implantar o Eldorado da economia de mercado à Adam Smith. Infelizmente Sarney não lhe deu ouvidos, assim como o “esquizofrénico” do Collor não levou a sério as diretrizes do discurso de posse, escrito por José Guilherme Merquior. A impressão que se tem e que sempre Roberto Campos pregou no deserto, ao contrario da versão dada

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por Leonel Brizola, segundo a qual temos na política económica, a partir de 1964, uma sucessão de ilustres Roberto Campos: 1,2, 3, 4, 5. Talvez Mallan seja o sétimo ou o oitavo. O Mallan de FHC. O Marcílio de Collor. Com exceção de Dilson Funaro (e, em menor dimensão, Bresser Pereira), todos os ministros da Fazenda depois de 64 não deixam de receber referências elogiosas em sua memória A Lanterna na Popa. Roberto Campos está no poder desde Dutra, conforme assinalou Nelson Werneck Sodré em seu livro A Ofensiva Reacionária (1992): “a política económica do Brasil não fora alterada, em essência, através do tempo, nos períodos de governo de Dutra, de Getúlio Vargas, de Café Filho, de Kubitschek, de Jânio Quadros, de João Goulart, de Castelo Branco, de Costa e Silva, de Médici. E mais do que isso: tal política não escapou, ao longo de todo o tempo, ao controle das forças representadas por figuras como Gudin, Bulhões, Campos. Sem falar em personagens menores, simples satélites: os Guarrido Torres, os Lucas Lopes, os Glycon de Paiva, os Mário Henrique Simonsen, os Delfim Neto, etc, etc, etc”. Até no ISEB dos anos 50 Roberto Campos marcou presença, assim como, embaixador em Londres na década de 70, foi ele um dos responsáveis pela conversão de José Guilherme Merquior ao “ liberalismo neo-iluminista”. Hoje, em meados de 90, é fácil constatar que, na história recente da cultura brasileira, o golpe de 64 concedeu o Cebrap a São Paulo e, simultaneamente, tirou o ISEB do Rio de Janeiro. Roberto Campos não menciona o Cebrap em sua memória, porém considera São Paulo - sob o ângulo da teoria económica inferior ao Rio de Janeiro, com Gudin, Bulhões e Simonsen. O fato é que, segundo o balanço de Roberto Campos, em São Paulo o espírito do doutor Murtinho - ministro da Fazenda de Campos Sales - não fecundara o talento dos economistas Zélia, Belluzo e João Manuel. E Delfim Neto? Roberto Campos considera-o menos um economista do que um talentoso frasista dotado de veia satírica. Quanto a José Guilherme Merquior, o livro A Lanterna na Popa contém um epitáfio com algumas informações acerca do relacionamento do crítico literário com o ex-presidente Collor, relacionamento um tanto misterioso, pois até o presente momento 133

permanecem desconhecidos os verdadeiros motivos da aproximação dessas personalidades culturalmente tão diversas. Eu procurei nas páginas de Roberto Campos alguma coisa que me infomasse sobre o voto de Merquior nas eleições de 1989. Para quem teria ele dado seu voto no primeiro turno? Collor? Maluf? Covas? Certamente o liberal Merquior não teria votado em Brizola, nem tampouco em Lula. O discurso de posse de Collor, março de 1990, foi escrito por Merquior, informa Roberto Campos. Em 1989, Paris, Collor encontrou-se com Merquior, antes e depois de eleito presidente de República. Segundo Campos, o intuito de Collor nesse encontro era colher idéias sobre modernidade, justamente da parte de um autor brasileiro que, desde meados dos anos 60, se destaca como um exímio especialista neste tema. Merquior atacou sem tréguas todos os intelectuais que rejeitaram a modernidade. Seu liberalismo quase poderia ser reduzido a uma defesa incondicional da modernidade. Esta virou chavão nos pronunciamentos de Collor, assim como atualmente a palavra globalização é presença obrigatória nos discursos de FHC. José Guilherme Merquior morreu em janeiro de 1991. Eleito em 1990, Collor convida Merquior para jantar em Brasília, junto com Roberto Marinho. Nesse encontro - o terceiro desde Paris - ao invés de oferecer-lhe o Itamaraty, Collor ofereceu a Merquior a Secretaria da Cultura. Merquior recusou, mas disse a Roberto Campos que o diplomata Marcos Coimbra tirou-lhe o tapete junto a Collor para o cargo de ministro das Relações Exteriores. Quando já tomado pelo câncer, Merquior ouviu de Collor o pedido para estruturar um novo partido político: Partido Social Liberal. Daí nasceram os textos de Merquior, que foram copiados por Collor, sendo alguns publicados em jornais, o que acabou motivo de chacota, seguida da compra da biblioteca de Merquior pelo Banco do Brasil. O episódio do plágio, a questão da compra de sua biblioteca pelo governo Collor, isso tudo certamente prejudicou a assimila­ ção de sua obra ensaística pelo público. E nesse aspecto Roberto Campos merece ser elogiado por trazer à tona alguns episódios da vida de José Guilherme Merquior, inclusive interpretando a queda de Collor em função do menosprezo às ideias do crítico literário. Segundo Roberto Campos, Collor teria usado Merquior

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apenas para brilhar em seu discurso de posse, o que dá margem a se pensar que mesmo se Merquior não tivesse com câncer, Collor não iria pôr em prática suas idéias, preferindo seguir o receituá­ rio de Zélia Cardoso, ex-partidão, com militância estudantil em São Paulo, imbuída da demagogia antimilitar, e que em Londres se rendeu aos encantos da dona Margareth Thatcher. A interpretação de Roberto Campos sobre a relação de Merquior com Collor merece ser posta em relevo, porque a escolha de Zélia Cardoso para o Ministério da Fazenda seria consequência de um fantasma anti-militar de Collor, o que fez com que o discurso liberal de Merquior não se convertesse em ação durante seu governo. O fato é que em Roberto Campos a evocação de seu amigo diplomata aparece conectada à explicação do fracasso de Fernando Collor. Este se deu mal, entre outras coisas, porque não levou a sério o ideário liberal de José Guilherme Merquior. Assim, Collor teria hesitado entre a cultura de Merquior e a família de Marcos Coimbra. Venceu o “atleta” Collor em detrimento do literato Merquior. Nesse episódio sublinha Roberto Campos a atitude de Collor: apropriar-se da expressão literária de Merquior, porém sem convertê-la em práxis política. Este foi o mais grave sintoma da esquizofrenia de Collor no poder: a contribuição intelectual de Merquior foi preterida pela facção jovem pop ex-esquerdista de Zélia Cardoso. Assim o perfil familiarista de Collor não lhe permitiu assenhorar-se da modernidade teorizada pelo liberal José Guilherme Merquior. Resultado: Collor não apenas desmoralizou o liberalismo - sem colocá-lo em prática -, como também manchou, segundo Roberto Campos, o nome de José Guilherme Merquior, que morreu com o apodo nada elogiável de intelectual de direita, o mais brilhante intelectual de sua geração. E, por fim, ao descartar a experiência culta de Merquior, o presidente Collor se precipitou na falta de decoro e foi impichado. Roberto Campos abomina a categoria de colónia, de conquista, de colonialismo. Um ismo” idiota como qualquer “ismo”. O ponto de vista colonial não se lhe afigura “paradigma universalisável”. Tolice a idéia de mundo novo ou de povo novo. O Brasil não está destinado a inventar nada de novo em matéria de vida institucional. 135

Que o país se dê por satisfeito se conseguir repetir com inteligência o que já foi realizado por outros povos. Roberto Campos abomina o Cinema Novo e, antes de se opor ao nacionalismo de Glauber Rocha (hoje tido pela mídia de São Paulo como Kineasta Neoliberal) sente desprezo pela antropologia de Darcy Ribeiro. A política cultural de Castelo Branco é a favor da TV cosmopolita: Roberto Campos ironiza o nacionalismo estético como “simpathya for the underdog”. As portas liberais do governo Castelo Branco se abriram para a TV junto com o entusiasmo pelo general De Gaulle. Roberto Campos acusa o Cinema Novo de precisar de reserva de mercado. A TV Globo é a vencedora da comunicação. O azar do Cinema Novo foi coincidir com o surto da TV. Roberto Campos elogia a linguagem simples e direta da TV, enquanto o cinema brasileiro mama nas tetas da Embrafilme. A ditadura castelista de 64 favorece o desenvolvimento da TV Globo: a TV imperialista contra a estética da fome de 1965. Com FHC trinta anos depois, a TV Globo se julga mais poderosa do que o Exército, ainda que o Exército teaha sido o criador da TV Globo. O sucesso da telenovela significou o fracasso do cinema. Perante o público, a TV Globo não deve nada à ditadura de 1964. O vídeo da democracia liberal é o veículo do capital especulativo financeiro. Historicamente o Exército foi usado peia TV. A Estética da Fome de Glauber Rocha denuncia o estilo bossa nova: Bob Fields toma uísque e contempla o Exército sendo dirigido pela TV Globo. O Exército entrega o poder da comunicação à estética da telenovela. Com FHC o Exército sai de cena para ceder seu lugar ao oligopólio civil da mídia, à publicidade dos Bancos, às multinacionais e aos supermercados. A Lanterna na Popa ataca o cinema nacional, que não teve força competitiva diante da ascendência da TV sob a ditadura de 64, a qual concebeu, no governo Castelo Branco, o Instituto Nacional de Cinema e o decreto de exibição obrigatória de filmes nacionais. 0 cinema “nacionalistóide” morreu de “entropia burocrática”: a Embrafilme oficializou o calote dos cineastas. Segundo Roberto Campos a TV Globo nasce privatizada, pois nunca teve nem reserva de mercado nem subsídios fiscais e cred.t.c.os e tornou-se 136

competitiva com suas novelas. Salvo honrosas exceções, a filmoteca nacional é artigo de consumo interno”. Por aí se explica (TV = economia de mercado, cinema = Esta­ do) a fúria de Glauber Rocha. Um texto inédito do cineasta, es­ crito em 1964, faz o retrato de Roberto Campos: “ex-padre, exembaixador em Washington, um dos tarados sexuais de maior periculosidade do Ministério das Relações Exteriores, amante es­ piritual de Castelo Branco, antimarxista e fanático por tudo o que é americano.” A luz do procedimento kinético glauberiano, Breton Woods em 1945 é a suruba que junta Keynes e Roberto Campos, coincidin­ do com o fim do Estado Novo de Vargas, estigmatizado pela di­ reita como exemplo de macheza nacionalista, assim como Leonel Brizola, em 1989, recebera do sociólogo Florestan Fernandes o epíteto de “machão”. O que sobressai, tanto no Itamaraty liberal quanto na sociologia marxóloga da USP, é a ressurgência de um mesmo espectro sexual para caracterizar os expoentes culturais e políticos do nacionalismo, considerado fálico e viril, enquanto à doutrina liberal aplicar-se-ia a metáfora do ânus privatizante: um ânus cosmopolita e de função exógena, reflexo da eróticz mameluca sádica que se volta internamente contra o gentio ma terno, cuja doutrina espelha o misógino tukânus.

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O MARQUÊS DE POMBAL DA

S ocial-Democracia

uem prestou homenagem à economista Zélia Cardoso foi Luiz Carlos Bresser Pereira com o livro Os Tempos Heroi­ cos de Collor e Zélia. O acerto de Zélia, segundo ele, foi tocar na questão da “crise fiscal do Estado”, enquanto seu equívoco consistiu em acatar a ortodoxia monetarista internacional. Na pri­ meira fase, Zélia teria sido progressista de “esquerda”, mas de­ pois ela se deixou tragar pelo dragão da direita, representado pelo monetarismo ortodoxo. Bresser Pereira não tece comentário sobre a ética da campanha eleitoral de Fernando Collor, assim como prefere situar Zélia Cardoso num capítulo de história das idéias. Depois de estagiar com Roberto Campos e Dilson Funaro, a jovem economista passou pela equipe de Bresser Pereira no Ministério da Fazenda, mas Bresser não foi para Sarney o que Zélia foi para Collor. Este, apesar de representar a gangue multimídia do capitalismo videofinanceiro, foi eleito pelo povo em 1989, ao passo que o governo de José Sarney teve de herdar o cadáver de Tancredo Neves. Ao elogiar a parte tributária do plano económico da Zélia, escreve Bresser Pereira: Demiti-me do Ministério da Fazenda exatamente porque não consegui apoio do presidente e da sociedade para um conjunto de medidas semelhante a esse.” Mais do que um técnico em economia (do modo de produção tecnoburocrático ao

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estruturalismo da inflação inercial), Luiz Bresser Pereira é analista da conjuntura política, ainda que eu não concorde com suas teses, notadamente a utilização que faz da modernidade, desdobrando-a em direita e esquerda. Enfim, há em seus textos a besteira em torno do conceito de modernidade, o tesão da metodologia estruturalista. É por isso que ele não nos oferece uma compreensão histórica do governo Collor. Bresser se equivoca quando aborda a relação entre os empresários e a candidatura Collor: “o presidente pode, eventualmente ser eleito à revelia deles, como aconteceu com Collor, ou contra eles, como aconteceria se Lula tivesse sido eleito, mas depois não há alternativa senão governar com eles.” Collor não foi eleito à revelia do empresariado, assim como seria disparate afirmar que ele não teve apoio da sociedade civil, que o elegeu através da telenovela. Surge a onda do liberalismo com a derrocada do chamado “socia­ lismo real” no mundo. Essa euforia parece se justificar após a perestroika soviética; mas, por outro lado, convém lembrar que a década de 80 é a idade da regressão em termos de pensamento. A partir de 1970, as ciências sociais baniram de seu léxico especializa­ do a palavra imperialismo. Evidentemente, há, na década de 90 um abismo ideológico entre o pedetista Darcy Ribeiro e o tucano Luiz Bresser Pereira. Como o próprio Bresser Pereira escreveu em seu artigo “Seis interpretações sobre o Brasil”, realçando “o forte con­ teúdo nacionalista” das análises histórico-sociológicas de Darcy Ri­ beiro, o qual lamentavelmente “insiste em ver as multinacionais como meras bombas de sucção de divisas”. Para curar tal miopia naciona­ lista, Luiz Bresser Pereira propõe em 1983 a renovação do material analítico nos moldes da cosmopolita “teoria da dependência’ de Fernando Henrique Cardoso. Ele prefere a abordagem internacionalizante de Fernando Henrique Cardoso. O equívoco de Darcy consiste em considerar as multinacionais o satanás do desenvolvimento excludente da América Latina. Diante do fenómeno da estattzaçao da dívida n • e^.r Jín ir além da formulação de que a externa”, é mister , oje ale^m d

hegemonia das mu l‘^C‘ j alidade constitucional democrática. brasileiro afasta a vioenci 1 g afirmar que a nossa burgUesia Não se trata de descoberta insol 140

industrial pode apresentar comportamento “liberal-democrático”. Luiz Bresser Pereira se empolga demais com o talento de seu colega (e rival em prestígio acadêmico) Fernando Henrique Cardoso, ao escrever em 1983: “Só a partir da interpretação da nova dependência seria possível compreender o processo de redemocratização que tem início no Brasil a partir de 1975 e principalmente a partir de 1977”. E curioso nesse aspecto que Luiz Bresser Pereira, ex-crítico de cinema, não tenha se dado conta de que o intelectual brasileiro anunciador da “abertura” política de Geisel/Figueiredo chama-se Glauber Rocha, cineasta que justamente no ano de 1974 batizou Fernando Henrique Cardoso de “príncipe da sociologia”. Para o cineasta, a redemocratização origina-se no interior do Exército, ao passo que Bresser Pereira atribui a retomada da democracia ao projeto político da burguesia industrial. Em 1964 o capital industrial (unindo-se à tecnoburocracia) apelou para o dispositivo da ditadura; dez anos depois, em 1974, segundo Bresser Pereira, a burguesia industrial, apropriando-se da mais-valia, percebe finalmente que é possível “realizar lucros sem recorrer diretamente à força”. N' interpretação do golpe de 1964, embora minimize o fator da gueri fria com o imperialismo norte-americano, ele sublinha “a necessidaG típica dos países retardatários de aumentar a taxa de acumulação”. Curiosamente, em Os tempos heroicos de Collor e Zélia está ausente a sociologia política das classes. A burguesia industrial competitiva, ao contrário de outros setores das classes dominantes, dispensa o Estado na extração do excedente económico. Por conseguinte, aposta no reinado da democracia, ou seja, “uma democracia burguesa no Brasil semelhante à existente nos países capitalistas centrais, em que a luta de classes é travada dentro de um quadro institucional relativamente estável”.

Deus Jotaká e Jango Diabo

Luiz Bresser Pereira não simpatiza com o liberalismo, arma ideológica da aristocracia rural, assim como não considera democracia sinónimo de liberalismo. Ele afirma que não existe 141

interpretação liberal no Brasil. A esquerda colaborou no sonho de industrializar o país sob a hegemonia da burguesia industrial. O primeiro grande impulso foi com Getúlio Vargas, enquanto a consolidação da industrialização aconteceu com JK. Convém insistir que Bresser Pereira em seus livros se esforça por apontar um período heroico para a nossa burguesia industrial. É no governo JK que a burguesia industrial é aceita como classe dominante pela primeira vez na história. O charme da burguesia de Juscelino fascina a modernidade Collor mais do que a derrubada de Goulart. Juscelino é Deus, Jango é diabo. Estamos diante de uma escolha difícil para saber quem é o personagem épico da burguesia industrial. Eis que, de 1955 a 1964, ela rompe sua defensiva com a esquerda e se alia ao latifúndio, junto com o alto comércio exterior e o capital estrangeiro. O nacionalismo passa a ser tema de um passado morto para a burguesia industrial na era do JK. Depois de JK, diz Bresser, o nacionalismo passa a fazer parte do ideário político de esquerda. Nem em São Paulo, a megalópole do Terceiro Mundo, a industrialização consegue eliminar a fome e a miséria. Na interpretação tecnoburocrata de Bresser sobre o golpe de 64, a palavra populismo é o demónio udenista da sociologia da USP. Em 1964 a direita se uniu em torno do perigo comunista, que não mais existe em 1991. Segundo Bresser Pereira, 1964 é um golpe da burguesia industrial que revela o ponto fraco de sua trajetória autoritária de direita. A teoria da “nova dependência” alivia a responsabilidade do imperialismo na derrubada de João Goulart. A proeza de unir, sem derramamento de sangue, todas as modalidades de burguesia sob a égide do capital monopolista. A burguesia industrial foi “heroica” somente quando teve a colaboração da esquerda. Em 1964, a burguesia industrial teve de ceder uma parcela do poder à tecnoburocracia estatal civil e militar. A burguesia industrial, em 1974, se arrepende da ditadura de 1964. A burguesia detém o domínio económico da sociedade, mas não a hegemonia política. Bm 1974, a burguesia industnal toma consciè„cia ne emuiseu p ític0 requer a redemocratizaçao da sociedade. deoque poder po ..t coreq»^ o esquema inte p de Estado para consolidar 0 historicamente necessano um golp

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capitalismo no Brasil. A parte determinante desse processo económico é a burguesia industrial eternamente oscilante entre a perspectiva autoritária e a democrática. Ficamos sem compreender a relação de Fernando Collor com a classe industrial dominante de São Paulo. Em Bresser a categoria da “modernidade” significa que a análise do ponto de vista da classe social perdeu seu alcance explicativo. Qual a relação do governo Collor com o tripé (empresariado industrial, tecnoburocrata e capital estrangeiro) que sustentou a ditadura de 64? A burguesia industrial pós-José Sarney verte sua culpa por não ter conduzido com competência o processo de redemocratização do país. O capitalismo tecnoburocrático de 1964 se converte em modernidade collorida em 1989. A tipologia política formulada por Bresser Pereira ajuda a compreender o êxito eleitoral de Fernando Collor. Este chamou de marajá o tecnoburocrata estatal. A tecnoburocracia, parceira da burguesia industrial em 1964, foi o bode expiatório da retórica anti-marajá de Fernando Collor. 1974 é o fim do milagre da ditadura. Na campanha contra as mordomias dos tecnoburocratas estatais estava em gestação a saga “caçador de marajá”. A retórica da moralidade em Collor é uma resposta ao poder da tecnoburocracia estatal que vigorou até o governo José Sarney. Ainda que de 1964 a 1974 a tecnoburocracia estatal tenha colocado as manguinhas de fora na composição do poder, escreve Luiz Bresser Pereira: “Intrinsecamente é a fração mercantil (especulativa e latifundiária) que sempre dependeu dos mecanismos de acumulação primitiva para apropriar-se do excedente económico”. Segundo o teórico do modo de produção tecnoburocrático, a burguesia industrial derrubou o AI-5 e dirigiu o processo de redemocratização; portanto, ela é a estrela principal da sociedade civil, cuja sede está localizada em São Paulo. Embora a tipologia bressiana do capitalismo tecnoburocrático não inclua a percepção regional das disparidades entre os vários Brasis, podemos concluir que o processo de democratização é de natureza paulista, não obstante a participação de Tancredo Neves e José Sarney. O projeto de hegemonia pol ítica da burguesia industrial se consolida com José Sarney, cujo governo se prolonga além de 1986. 143

Bresser não esclarece como é que a progressista burguesia industrial de São Paulo chegou a ponto de acreditar no perigo da “subversão comunista” em 1964. Em seu esquema interpretativo, 1964 não recebe tratamento totalizante. O ano de 1964 continua sendo mistério em nossa ciências sociais. Para Bresser, sob o ângulo da economia, o padrão de acumulação de capital é o mesmo hoje em dia do que aquele implantado em 1964. Resta contudo saber se o governo Collor esteve atrelado à burguesia mercantil especulativa. Ele não considera a organização Globo do ponto de vista ideológico, ou seja: se ela é a metrópole reproduzida como simulacro na colónia videofinanceira. Roberto Mangabeira aponta o “fetichismo institucional” da social democracia paulista, não apenas por negar a luta de classes e não ser socialista, mas sim pela abordagem simplificadora da relação periferia e centro do capitalismo. O charme epistemológico do PSDB já estava na “frente” PMDB, cuja trajetória revela a impotência do projeto da burguesia industrial em erradicar a fome e o atraso. Na segunda metade dos anos 70, os estudiosos da sociologia das classes sociais em São Paulo motejavam do tecnoburocrata teorizado que viria a ser ministro da Fazenda devido, entre outros fatores imponderáveis, à capacidade de formular uma tipologia da tecnoburocracia em ciências sociais. Não se trata de insinuar que Luiz Bresser Pereira seja um grego que, no dizer de Hegel sobre os pré-socráticos, não distinguia o ser do pensar. Após a leitura de Tempos Heroicos fiquei pasmo ao constatar que o autor não analisa o fenômeno Collor do ponto de vista da luta de classes, como se o “caçador de marajá” estivesse além do capital mercantil, industrial e estrangeiro. Reparei nisso porque Bresser tem predileção por classificar os agentes políticos e económicos da sociedade brasileira. Discípulo de Hélio Jaguaribe, o economista Luiz Bresser Pereira poderia nos oferecer uma reflexão sobre o ideário político de João Goulart e Leonel Brizola. Assim ele preencheria a grande lacuna das ciências sociais em São Paulo, pois o 6 janguismo aí é sempre visto pela rama, sem mencionar o fato de que nossa historiografi a ainda não apurou devidamente as causas históricas do golpe de 64. 144

A dívida externa, segundo Bresser Pereira, inviabiliza o crescimento da economia e a estabilidade de preços. De 1964 a 1991, absolutamente nada foi alterado na relação de subalternidade do país às centrais hegemónicas do capitalismo; todavia é inegável que mudou a linguagem da crise. A dívida externa substitui o antigo imperialismo, assim como a noção de desenvolvimento cede lugar à modernidade. Se 1964 consolida o capitalismo tecnoburocrático, então 1989 é o zénite da Kultitr-tecno-vídeo-burocrâtico-financeiranudtinacional. Luiz Bresser Pereira não resistiu ao glossário fascinante da moda contemporânea: modernidade funciona como subtítulo dos “tempos heroicos” de Collor e Zélia. Certa vez perguntei por telefone a Gabriel Cohn quem havia sido o intelectual a introduzir a tal modernidade nos cursos de ciências sociais da USP. Roger Bastide, ele me respondeu. Curioso o nome de Roger Bastide como padrinho da modernidade na USP, porque ele batalhou por uma sociologia do transe sociomístico e no livro Antropologia Aplicada descartou a vocação made in USA e in MosKou das teorias funcionalistas e marxistas sobre o desenvolvimento. Roger Bastide não torceu para nosso país tomar o rumo do desenvolvimento do Primeiro Mundo. Além de ser aqui irreprodutível o Primeiro Mundo, não valeria a pena reproduzi-lo, eis a mensagem contida em sua Antropologia Aplicada. Tantos anos depois do suicídio de Walter Benjamin na Espanha, a palavra modernidade é lançada entre nós por José Guilherme Merquior, através de um ensaio estupendo: Arte e Sociedade em Adorno, Marcuse e Benjamin (1967). Mergulho na Kulturkritik da Escola de Frankfurt, o ensaio de Merquior enfoca a modernidade sob duplo ângulo: ora ela é vista como esfera da beleza da indústria, ora como domínio capitalista do fetiche, à semelhança da “neurose” de Walter Benjamin em relação ao mercado e à mercadoria: a rua da modernidade é perversamente “livre” da determinação de classe. Não obstante o risco de hipostasiar o raciocínio analógico, a disposição heroica contida na modernidade de Collor e Zélia traz o exercício sádico do “choque” na economia. Em Baudelaire o mercado é meretrício vespertino, onde o poeta vende seu peixe, alguma coisa meio santa e prostituta, ambigíiidade que faz parte, segundo Walter Benjamin, da “mercadoria que flana”. Baudelaire, 145

alma lírica no auge do capitalismo, justifica o fascínio pela modernidade. Em Marx, o demónio é o capital; em Baudelaire é a capital, a cidade de Paris em 1850. A modernidade indistingue a cultura da economia política, assim como a luta de classes pode se expressar mais radical no plano da metáfora. Quanto ao roteiro político da modernidade - da “sobrevivência arcaica” de um Sérgio Buarque de Holanda até o pólo moderno do capitalismo tecnovideofinanceiro - convém não esquecer que em 1972 José Guilherme Merquior, embora fã do Kulturkritiker Walter Benjamin, descurte o freudomarxismo frankfurtiano. Para Merquior, a Kultiirkritik é ideologia irracionalista da antimodernidade, ideologia que proliferou no meio dos professores universitários pós 1968. A maneira do social-democrata Bresser Pereira, José Guilher­ me Merquior é um pensador otimista que subtraiu da modernidade o toque satânico de Baudelaire, trocando-o pela atitude iluminista neoliberal. Seria então o caso de perguntar se o governo Collor é invenção de José Guilherme Merquior com sua defesa e divulga­ ção da modernidade desde 1967? Para Bresser Pereira, o gover­ no Collor não é neoliberal, apesar das luzes dos ministros Paulo Sérgio Rouanet e Marcílio Marques Moreira. Trata-se de um de­ safio estabelecer a génese histórico-cultural do fenômeno Collor. Para Bresser, ele representa a modernidade conservadora: um líder moderno-conservador que, ao polarizar com o metalúrgico Luiz Inácio Lula nas eleições de 1989, apontava o futuro. Assim adjetivada entre o dualismo arcaico e moderno, a “modernidade” desistoriciza a direita que deu o golpe de 1964. Conseqúentemente, Collor surge sem vínculo com o passado do pacto tecnoburocrático-autoritário. O domínio da técnica narrativa da tele­ novela aproxima-se do método estruturalista que põe ênfase no corte sincrônico: Nova República, Brasil Novo. Bresser considera o economista Roberto Campos a direita ideológica. Com a vitória de Fernando Collor em 1989, a história teria dado razão ao economista Roberto Campos, e não ao cineasta Glauber Rocha. Ao prefaciar em 1991 o livro (sobre liberalismo) de José Guilherme Merquior, Roberto Campos fala da “frustrada busca terceiromundista de uma terceira via entre o capitalismo e o . » . begunuv c^nndo o ex-embaixador, a alternativa Terceiro socialismo 146

Mundo redundou na pobreza e na violência do islamismo, cujo resultado foi a Guerra do Golfo. Ele abomina a formulação terceiromundista por não ser um “paradigma universalizável”, o que significa resignar-se aos caminhos da história traçados pela anthropos do Primeiro Mundo, o qual é speculimi do complexo colonial de inferioridade. O “universalismo” colonizado de Roberto Campos almeja pegar a carona da modernidade planetária, cujo fac-símile encontra-se na expansão local da mídia televisiva: a telenovela de sucesso é internacionalizante. Luiz Bresser Pereira representa a máxima consciência possível do empresariado industrial em São Paulo. A teoria do desenvolvimento carece de uma sociologia do intelectual que vive em condições sociais adversas. No caso do administrador de empresa, é difícil estabelecer as mediações da homologia entre o ordenado e a produção de artigos e livros em ciências sociais. A influência de Hélio Jaguaribe não é fator determinante na formaçãí intelectual de Bresser Pereira; sem falar de seu fascínio pelo EUA, onde estudou na década de 60. Em seus textos não assume conotação crítica a categoria do colonialismo, apesar de conhecer por dentro a embusteira conversão estatal da dívida privada externa, isto é: a vergonhosa dívida pública da nação com os bancos multinacionais. Ainda que contando com a colaboração do gênio Darcy Ribeiro, Leonel Brizola ainda não conseguiu traduzir o conceito de “perdas internacionais’’ para um samba-enredo de carnaval, a fim de esclarecer a opinião pública quem ganha com as “perdas internacionais” e, assim, refutar a própria existência da dívida externa, posto que - de acordo com o povão - quem deve tem que pagar. A má fama de caloteiro é pior do que a condenação popular do assassinato. “O banco não tem vocação para polícia”Bresser Pereira atenua o pavor da burguesia industrial brasileira diante da retaliação bancária do imperialismo. Em seus textos, a violência da paranoia policial é sublimada através do conceito hegeliano de sociedade civil. Bresser é o último intelectual paulista a lançar mão do conceito de sociedade civil. Sociedade civil vira “conceito” de esquerda na luta contra a ditadura militar, embora o grande lance da sociedade

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civil em Sào Paulo tenha sido a burguesia industrial, que cooptou o charme automobilístico do partido dos trabalhadores. Em 1994 ele foi tesoureiro da campanha eleitoral de FHC e, depois, ministro da Administração, pasta através da qual pretende pôr em prática as medidas ou as reformas para erradicar a “crise fiscal”, o grande cavalo de batalha da sociedade brasileira. A 6 de setembro, um dia antes do 7 de setembro de 1996, chegou-me pelo correio a conferência do ministro, intitulada “Social-democracia e Esquerda no Final do Século”. Ao ler o título, confesso que fiquei pasmo: um ilustre membro da cúpula do PSDB ainda se ocupar da esquerda! O jovem Bresser Pereira (à época da substituição das importações) agora é ministro de Estado sob a vigência da “globalização” económica. O toque biográfico de seu artigo - não apenas como resultado da conferência promovida na convenção nacional estraordinária para reforma estatutária do PSDB - sobressai através da ênfase “de quem fez uma transição intelectual e ideológica, de quem continua fiel à esquerda porque comprometido com a justiça social”. Esta transição é de natureza intelectual e política: o jovem autor dos anos 60 (prefaciado pelo nacionalista Barbosa Lima Sobrinho) vira o internacional social-democrata da década de 90. O que justifica tal mutação ideológica e a consequente práxis política? A diferença que separa a década de 50 dos anos 90 nunca é explicitada com clareza pelos discursos tucanos, os quais usam e abusam da palavra globalização, valendo o aumento da competição internacional entre as nações por causa da redução do custo do transporte e das comunicações. Esta é, segundo Bresser Pereira, a base objetiva da evolução do capitalismo mundial. Assim, diante do progressivo aumento da competição, só resta ao Brasil competir com as outras economias, de modo que o Estado deve propiciar as condições de competição às empresas nacionais e multinacionais, ainda que tal distinção empresarial seja tênue e insignificante para a social-democracia, assim como lhe é indiferente se a lógica da competição se faz num regime monopolista e, no limite, com subordinação neocolonial. Para Bresser Pereira “a globalização não é nenhuma conspiração da direita. A globalização é um problema sério perigoso. É um fato histórico que esta aí, que decorre 148

fundamentalmente da redução brutal do custo dos transportes e das comunicações”. A globalização também não é de esquerda, embora Bresser raciocine associando esta com aquela, pelo menos ao classificar a esquerda viva contemporânea: (o PSDB) da esquerda morta do passado: o “populismo” da década de 50, mas nunca é periodizado o verdadeiro nascimento da globalização. Em seu artigo é vaga a referência à defesa do “interesse nacional”, o que revela a atitude coerente de quem repudia o nacionalismo, considerado contrafacção da esquerda. Sob esse ângulo, Bresser Pereira (tal qual a vertente uspiana da sociologia) segue repudiando o legado do IS EB: o nacionalismo tinha graça quando o Estado possuía capacidade de realizar poupança pública. Ora, como isso não existe mais, chegou a hora de privatizar, mas existe a seguinte questão: como reconstituir o Estado depois das privatizações? Em vários livros Bresser condena o liberalismo como uma doutrina inversa ao valor de justiça, como se o mercado fosse uma instância a -ética da vida social: o Estado Mínimo no Brasil não faria senão propagar a miséria. Sua intenção não é enfraquecer o Estado; mas modernizá-lo, torná-lo eficaz, racional, extirpando-lhe o vício patrimonialista, enfim, contribuir para eliminar os privilégios dos aparatchiki, isto é, os integrantes da máquina tecnoburocrática. Embora egresso da empresa privada, ele não se declama refratário ao Estado (em nome de um liberal laissez-faire), porque em sua juventude de marxólogo (mais de marxólogo do que de nacionalista) ainda permanece a convicção de que é no Estado que a nação se olha a si mesma, não obstante a ambivalência de amor e ódio em relação ao Estado que se encontra nos autores marxistas. Viva Hegel. O Estado é a reflexão nacional. E aqui cabe sublinhar um traço biográfico dos notáveis professores paulistas fundadores do PSDB: todos fizeram carreira no Estado como funcionários públicos, tornando-se empresários ou políticos (se bem que funcionários do estado de São Paulo e não funcionários federais), distinção que deve ser levada em conta para expHcar a visão paulistocêntrica da social-democracia, como se o padrinho Franco Montoro retomasse em 1997 o espírito de Armando Salles de Oliveira de 1934. 149

Ainda que não tivesse sido professor da USP, Bresser Pereira assimilou o esquema sociológico simplista de dividir a realidade social através da antítese “arcaico” e “moderno”. É verdade que ele substitui em 1996 “o moderno” pelo “contemporâneo”; mas continua a incorrer no equívoco de conceber o país sob o ponto de vista do tempo colonial, estigmatizando a esquerda “arcaica” (a dos anos 50 e não aquela nascida no ABC paulista), por não entender a “crise do Estado”, ou seja: a incapacidade do Estado de intervir na sociedade brasileira. O Estado é incapaz de fazer uma política autónoma e soberana. A “crise do Estado” se torna o fator determinante da sociedade brasileira, trocando a causa pela consequência, sem atinar para o fato histórico de que foi o golpe de 64 que alquebrou o Estado, cuja “crise fiscal” (assim como a “crise” do Exército) é condicionada pela situação colonial do país. O PSDB se define como um partido >1 ítico que aboliu a idéia de imperialismo ou de dominação externa: diabo está dentro de casa. Na tentativa de nos persuadir de que “o Brasil mudou” a partir da década de 80, a retórica social-democrata descarta a continuidade da história, como se esta não fosse tecida de gerações e gerações através de um processo cumulativo, ou como se a tal “crise do Estado” dos anos 80 não tivesse nada a ver com o Estado em crise de 1964. Esse irracionalismo do fragmento influenciado pela perspectiva - vá lá a palavra horrorosa - “mudancista” é o resultado de uma filosofia videoclipee da história; de resto, a tendência tucana é enveredar para a negação da história, como se vê por este trecho do artigo de Bresser Pereira: “Se a emergência do proletariado e a vitória do socialismo são historicamente inevitáveis, a rigor não há razão para lutar por eles. Ou, quando se luta, se é investido de uma segurança pessoal, de uma certeza de estar com a verdade - a verdade da história - que é tão deletéria quanto as teorias imobilistas dos conservadores”. Deixemos de lado a concepção fatalista que ele tem do materialismo histórico, a fim de realçar a positividade de sua definição de esquerda: a idéia (criticada por Marx em sua polêmica cnm Proudhon) de que esquerda é manter o compromisso com a t ça social Em principio, todos os partidos políticos defendem

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a justiça social. No entanto, Bresser vai mais longe: ele quer arriscar a ordem em nome da justiça”. Bresser Pereira alucinou com a leitura do italiano Bobbio, ou senão errou ao filiar-se ao PSDB, o partido político do conformismo. O diagnóstico da ‘‘crise fiscal” do Estado formulado por Bresser Pereira - ao deixar de lado a determinação midiática da coisa pública junto com a bancocracia - é um diagnóstico nostálgico pré-anos 50. Bresser Pereira escreveu que o historiador Caio Prado Júnior linha visão ressentida do golpe de 64. A queda do muro de Berlim. O subnietzschenismo acusa de ressentimento os que foram vencidos pela história. Deveríamos banir do léxico três palavras: populismo, modernidade e ressentimento. Bresser não quer ser conhecido na história do Brasil como um intelectual orgânico de direita. Isso porque, dentre outros motivos, quando jovem ele se comoveu com a leitura dos grandes gênios das ciências sociais, que são autores de esquerda em qualquer lugar do mundo. Não é senão daí que resulta seu esforço em querer tirar do PSDB a pecha de partido conservador. Há nisso alguma coisa de romântico, talvez única e última manifestação de romantismo na inteligência tucana: o desejo de testemunhar pela escrita que sua práxis política não é de direita. Ele diagnostica a “crise fiscal” do Estado como o problema fundamental da vida contemporânea; todavia é incapaz de perceber que no Brasil a TV é quem faz o Estado, de modo que o ethos patrimonial ou tecnoburocrático do rent seeking é o componente midiático típico do capitalismo videofinanceiro, dentro do qual está inserido o Estado como superestrutura política e administrativa. O autor chegou duas vezes a ministro de Estado no prazo de 10 anos, conquanto seja prudente não exagerar a magnitude das idéias na conduta (práxis) dos tucanos, o que levaria erroneamente a supor que FHC encasquetou de ser presidente da República a fim de realizar o logos de sua sociologia. Na década de 70 alguns sociólogos da USP e do Cebrap começaram a falar aquilo que os empresários de São Paulo queriam ouvir deles principalmente a vocação progressista do empresariado industrial’ A responsabilidade foi levianamente atribuída aos “líderes do

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populismo” que não souberam organizar a massa da população para reagir contra a investida do Pentágono e dos militares. É sintomática a agonia do professor universitário e o zénite vivido pela sondagem publicitária de opinião pública, que matou a reflexão sociológica no Brasil, embora estejamos exibindo ao mundo um “príncipe da sociologia”. Bresser Pereira é um autor obcecado com o processo substitutivo das importações, tido como esplendor e ao mesmo tempo sepultura da década de 50 no Brasil. Os intelectuais do PSDB se gabam de não terem ideologicamente empacado no decénio de 1950, época em que foram jovens, bonitos, inteligentes, ávidos de leitura, estudiosos de Marx, Weber, Tocqueville, Sartre. Todos eles são unânimes em afirmar hoje que a época de sua juventude não tem nada com a maturidade sessentona, dando por suposto que houve interação entre a metamorfose do país e a maneira como os intelectuais partiram para a ação política (a dissidência do PMDB) * conquistaram o Estado em 1994. O assunto complicado continua sendo este: onde começa na nistória uma época nova? O discurso da social-democracia referese menos à década de 30 do que aos anos 50 (a despeito da interpretação reducionista de Bresser sobre a Revolução de 30 como “crise de mercado”), com o nítido propósito de justificar a atual práxis política. A causa do golpe de 1964 é o desfecho do progressivo esgotamento do processo substutivo de importações da década de 50. A palavra-chave é competição. Lá por meados dos anos 60, deixamos de ser a indústria nacional nascente, tal qual aconteceu na década passada com o processo substutivo das importações. O Brasil economicamente se dá bem quando o mundo entra em guerra, muito embora a psique tucana não seja afeita ao uso (considerado muito “emotivo”) do termo imperialismo. Se na década de 50 a indústria nacional era uma criança, daí em diante ingressamos na fase adulta da indústria multinacional, em que o chamado capital associado será elemento ineliminável do desenvolvimento industrial, portanto não mais existem bases objetivas para o aparecimento de atitudes nacionalistas no meio do empresariado. .... O noder na década de 90, utiliza-se da linguagem das ciências sociais. Os intelectuais tucanos eram de esquerda quando jovens e

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- maduros agora - são de direita? Não, eles responderão, continuam sendo gente de esquerda. O que eles dizem é que abandonaram a “esquerda arcaica’ , adequando-se aos novos tempos dos anos 80 e 90. Como intelectuais e políticos estariam mal acaso tivessem parado na época de sua formação juvenil e universitária, ou seja, estariam perdidos, nostálgicos, acomodados às velhas idéias do passado. O que dizem os intelectuais notáveis do PSDB é que o Brasil e o mundo mudaram. Assim, a esquerda da década de 90 não pode ser a mesma da década de 50, embora para o ponto de referência dessa “mudança” nunca se aponte o golpe de 64, e sim a década de 50, cujo acontecimento histórico marcante foi menos a posse de JK do que o suicido de Vargas em 1954. A racionalização ideológica dos tucanos apresenta um recorte sempre geracional diante da evolução do capitalismo, convencidos de que são o moderno quadro administrativo competente para gerenciar o país sob o reinado do Banco e da TV. Esta crítica à “crise fiscal” do Estado tem por fundamento tecnológico a configuração videofinanceira do capitalismo no Brasil, em cujo regime económico o dentro (nação) e o fora (internacional) tornam-se inteiramente indistinguíveis. As “reformas” do Estado, ao invés de representarem o progresso antipatrimonial e anticorporati vo-clientelístico, correm o risco de ser uma perigosa regressão submetida aos interesses videofinanceiros coloniais. Ultimamente ele sublinha cada vez mais que o nacionalismo não basta para definir o que seja esquerda, embora convenhamos que a justiça social (na acepção de Bobbio) sempre estivesse contida no nacionalismo varguista. Em 1954 os futuros tucanos da sociologia tinham de 20 a 23 anos, mas não sabemos se, jovens, eram eles nacionalistas. Nenhum intelectual social-democrata se comoveu com o sangue da Carta Testamento de Getúlio Vargas. O que os sociólogos do PSDB evocam com indisfarçável orgulho é a leitura de O Capital de KarI Marx realizada na década de 50. A leitura de KarI Marx para ganhar dinheiro, segundo seus críticos. Registre-se, a título de curiosidade, que o sociólogo Florestan Fernandes tinha poi habito jactar-se de ter nascido marxista: ou pelo menos trotskista na década de 40. Porém - e isso diz tudo na 153

década de 50 seu pensamento correu completamente por fora do getulismo e foi refratário ao nacionalismo isebiano. Segundo Bresser Pereira, a “esquerda arcaica” dos anos 50 apresentou-se moderna quando o nacionalismo era expressão da substituição da importações; porém (e aqui o raciocínio bresseriano lembra um dédalo classificatório) de moderna essa esquerda nacionalista converte-se em “arcaica” por não compreender que mudou a situação económica do país. Estranhamente o nacionalismo é encarado como sinónimo de competição frustrada ou de ausência de competição, de onde se conclui que o nacionalismo, de acordo com Bresser Pereira, é a doença infantil do processo substitutivo das importações. Nacionalismo é derrota, frustração, masoquismo. suicídio: o empresariado brasileiro foi no passado nacionalista, mas isso atualmente tornar-se-ia irrepetível diante da evolução tecnológica do capitalismo mundial. Se o nacionalismo estatizante serviu como estratégia de desenvolvimento na década de 50, deduz-se que sua antítese ideológica - o entreguismo neocolonial do mercado - é hoje o único caminho objetivamente inevitável a ser trilhado como decorrência da globalidade capitalista multinacional. A social-democracia topou essa regra imperialista do jogo mundial: o preço da estabilidade monetária é a desnacionalização do país. A ideologia da socialdemocracia diviniza a competição do mercado e declara anacrónica a veleidade de autonomia nacional. A economia política não se preocupa com desempregado. O Brasil dos ricos engana o Brasil dos pobres. Em 1994 o numerário determina o resultado do processo eleitoral. Essa determinação videofinanceira do voto corrói a legitimidade política do governo FHC. Os fracos são engolidos pelos fortes, valendo o anexim: peixe grande papa peixe pequeno.

Inimigo Number One do Funcionalismo Público Por aue Bresser sente prazer em ser odiado publicainente? Talvez por causa de sua alucinada preocupação em não ser 154

“populista ; ou porque ele não sabe que é odiado; ou senão imagina que os servidores públicos irão aplaudi-lo mais tarde, caso suas reformas administrativas sejam concretizadas. Longe de mim a pretensão de saber o que se passa no foro íntimo de um ministro de Estado; só posso assegurar que ele não precisa desse cargo honorífico para viver. Faço aqui o modesto trabalho de historiador das idéias sob o prisma geracional. Durante o governo Sarney eu perguntei a Florestan Fernandes: então, mestre, a sociologia chegou ao poder? Ele respondeu que a sociologia não tinha chegado ao poder. Na ocasião fiquei sem aprender nada com a resposta; mas depois de 1 994 é evidente a potestade sociológica: FHC foi eleito por um plano (o “Real”) concebido por Luiz Carlos Bresser Pereira, o tesoureiro de sua campanha eleitoral. Crise Económica e Reforma do Estado no Brasil (1996). Dificilmente outro intelectual tucano conseguirá superar o seu esforço de representar a racionalidade ou a ideologia oficial do governo. O “príncipe da sociologia” deixou de sê-lo após a publicação do livro de Bresser, cuja mensagem é cristalina no que concerne ao caráter anacrónico da sociologia de FHC. Em termos de reflexão sociológica, a bola da vez agora estaria com o ministro da reforma do Estado. Súmula do que Bresser vem escrevendo desde a década de 60, com todas as inevitáveis repetições e redundâncias, o livro Crise Económica e Reforma do Estado no Brasil deve ser analisado tendo em mira as relações do poder com as ciências sociais, ainda que não seja fácil estabelecer os nexos entre política pública e seus conteúdos de classe. Segundo Karl Marx, autor tão curtido pelo jovem Bresser Pereira (junto a Keynes e Weber), seria ridículo julgar um homem pelo que ele acha de si mesmo, assim como determinada época histórica não se reduz ao que dela pensam seus contemporâneos. Enfim, há sempre o risco de confundir essência com aparência. O livro sobre a reforma do Estado primeiro foi escrito em inglês, depois traduzido, tal qual o póstumo Liberalismo New and Old de José Guilherme Merquior. A prata da casa está ausente da paidéia bresseriana. Sua juvelíma é Prebisch e sua maturidade é Bobbio, a estrela intelectual italiana que impressionou o crítico Merquior,

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embora este apareça no livro de Bresser situado à direita da democracia social, o que provocaria certamente acirrada polêmica se o autor de Saudades do Carnaval estivesse vivo no ano de 1996. José Guilherme Merquior não tolerava que lhe chamassem de intelectual de direita, sobretudo quando o exemplo apontado de intelectual de esquerda era a filósofa Maria Helena Chauí. O comentário mais corrente que se ouvia no meio das ciências sociais da década de 70 girava em torno do seguinte: ele falava de si ao elaborar a sociologia da nova classe média tecnoburocrata das grandes empresas privadas e estatais. Isso porque a matéria das considerações sociológicas sobre a nova classe média era constituída a partir de sua ocupação profissional na empresa privada em meados dos anos 60. Trinta anos depois, o ministro Bresser Pereira almeja corrigir ou reformar as irracionalidades das organizações públicas, tendo no entanto por experiência anterior sua função de tecnoburocrata junto a uma empresa privada, no caso, um supermercado que é emblematicamente o alvo preferido do ataque dos marxistas e frankfurtianos: o supermercado como sinónimo de alienação e mau gosto da sociedade industrial. Embirrado com a teoria marxista e frankfurtiana (ambas enfeitadas sob a denominação Kulturkritik), Merquior ironizava, no final dos anos 70, a mania de demonizar a televisão e o supermercado como os principais fatores responsáveis pela manipulação política na sociedade contemporânea. A fim de deixar o espaço ideológico aberto à aceitação do liberalismo, José Guilherme Merquior equivocou-se em seu diagnóstico acerca da magnitude da influência Kulturkritik na vida intelectual brasileira durante a década de 70, época da plena consolidação da indústria cultural monopolizada, sobre a qual no entanto ele preferiu guardar silêncio, não obstante ter divulgado o conceito de indústria cultural em âmbito universitário. Mesmo sob a égide do capitalismo industrial paulista, não houve nenhuma tendência intelectual significativa que tivesse incorporado a nesatividade da Kulturkritik européia; na verdade, foi justamente o contrário o que sucedeu com a maioria dos nossos intelectuais colaboradores e coniventes ante a fusão tup.confomústa da universidade com a indústria cultural, aceitando a bazófia em torno

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da “modernidade . Paralelamente a isso, a vida intelectual se organizou cada vez mais através dos institutos de pesquisa (Cebrap, Cedec, etc) com a sua dinâmica burocrático-gregária e mentalmente padronizada, em que não haveria lugar para o tipo de intelectual independente e dotado de individualidade estilística. De modo que a indústria cultural (com o primado do videojornalista sob o professor) passou a ditar as normas e os valores para a reflexão acadêmica, a qual se confundirá com pesquisa de opinião pública submetida ao exclusivo valor de troca. E como não poderia deixar de acontecer a vida intelectual regrediu ao estágio colonizado, repercutindo as modas internacionais dos núcleos hegemónicos, sobretudo com a dissolução da União Soviética e a queda do Muro de Berlim em 1989. É por isso que a “morte do socialismo” arruinou o marxismo local, preparando os ex-marxistas para a função de cínicos gerenciadores dos problemas do capitalismo globalizado. Um dia far-se-á a sociologia do intelectual tucano (da Cepal ao Palácio da Alvorada) que se pavoneia com o grau de sua internacionalização (onde muitas vezes o marxismo economicista mistura-se ao liberalismo burguês), levando em conta o percurso institucional que começa na universidade, passa pela empresa privada (ou senão pelos organismos financeiros internacionais de pesquisa sociológica) e culmina no banco, tendo por complemento necessário o arsenal midiático da TV, ou seja, a mais recente etapa imperialista do capitalismo videofinanceiro. Este é o tipoi deal, para usar a terminologia de Max Weber. Evidentemente cada caso é diverso em si, porém o esquema acima traçado engloba todos os integrantes da cúpula do PSDB, desde a saga do professor aposentado até a antinomia público/privado. Que sirva de exemplo o livro de Bresser: sua psicanálise em cima de um Estado que já foi rico e agora é pobre. O Plano Real é o revide à tecnoburocracia estatal que crescera em demasia no ano de 1964, o berço do “marajá” decantado por Collor em 1989, ainda que o ex-presidente tivesse ou não lido o livro de Bresser sobre a sociedade estatal. Os intelectuais da social-democracia são unânimes em glosar a inserção internacional deles mesmos e do país; em sua política posta em prática avulta a concepção do Brasil como colónia cordata, à espera das migalhas dos ricos. A globalização é um fato “novo”

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mistificado da década de 90, pois antes dos anos 50 Harry Truman já preconizava o “sistema global . Glauber Rocha, em plena década de 70, dizia que o general Médici incentivava a penetração imperialista a preço da miséria popular. Para Bresser, a atual burguesia não é nacionalista, portanto não tem mais sentido falar na existência de nacionalismo, embora o Brasil tenha sido sempre internacionalizado no nível financeiro. Em 1959, aos 25 anos, Bresser é professor concursado na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Foi aí que o conheci entre 1974-1977, professor de economia e manager de um grande supermercado, eu era também professor (de sociologia), chamado professor “horista”, essa aberração trabalhista que existia na FGV. Não obstante a diferença de idade (ele quarentão; eu com 25 anos), tornamo-nos amigos. Na época Bresser estava interessado em teorizar o “modo de produção tecnoburocrático”, empreendimento teórico que era mal-visto ou motivo de chacota pelo pessoal de ciências humanas da USP e do Cebrap, mas que apontava para o fenômeno do crescimento durante a ditadura da privilegiada burocracia estatal, a qual não deixava de abocanhar determinado montante de mais-valia, fazendo parte como “classe social” do pacto político pós-64, junto com a burguesia industrial e o imperialismo. Por conseguinte, de 1974 até 1984, data em que defendeu tese de livre-docência na Faculdade de Economia da USP, Bresser Pereira poderia ser considerado marxólogo do PMDB, isto é, autor que se vale da metodologia de Marx para analisar os fatos económicos da sociedade contemporânea, porém sem olvidar o detalhe de que ele não subscrevia a tese de Marx sobre a iminência do fim do capitalismo (o declínio tendencial da taxa de lucro) e o caráter historicamente inevitável do sistema socialista. É fundamental seu ingresso no governo paulista de Franco Montoro em 1993, momento em que lhe abririam as portas, ou seja, sua aceitação definitiva como autor de ciências sociais e económicas. Ele passou a gozar de status e importância tanto quanto o prestigiado FHC, se bem que não embalado pela lenda heroica de “exilado”. E aqui vale a pena cotejar a carreira de um com o outro, posto que Bresser (mais culto e estudioso, com maior taxa de horas de le.tura de O Capital) de desdém por ser advogado de formaçâo e „ã0 158

estudado ciências sociais ou filosofia na USP, além de diretor administrativo de empresa privada (Pão de Açúcar) desde 1963, um ano antes do golpe de 64. Com esse currículo, Bresser Pereira foi no entanto patrulhado (em termos de status e prestígio acadêmicos) por exercer a função de tecnoburocrata em empresa privada, auferindo salário superior aos seus pares que trabalhavam na Universidade de São Paulo. A convergência ideológica entre os dois (FHC e Bresser) ocorrerá através da adoção de uma mesma marxologia como instrumento da industrialização capitalista. A vocação modernizante do marxismo paulista (do qual está banido o sentimento de indignação de Marx no tocante ao capital como relação patológica) caracterizaria os dois autores em ciências sociais, porém FHC abandonou logo o conceito de imperialismo, enquanto Bresser Pereira fará uso desse conceito até o ano de 1984 em seu livro Lucro, Acumulação e Crise, tecendo considerações sobre o capitalismo oligopolista tecnoburocrático de Estado. Nota Bene: nesse livro a volúpia pela competição ainda não havia seduzido o Bresser marxólogo, ao contrário do que sucederá com o Bresser neo-estruturalista da década de 90. Embora em sua tese de livre-docência constasse um capitule sobre o imperialismo, não havia qualquer formulação de Bresser acerca da questão nacionalista. Na USP (malgrado a batalha de Cruz Costa) o nacionalismo nunca desfrutou de valor “científico”, sendo que agora se verifica em seu livro de 1996, Crise Económica no Brasil e Reforma do Estado, total animosidade contra o “nacionalismo tacanho”, sobrevivência “arcaica” dos anos 50, cujo representante (por sinal, seu tio), o jornalista Barbosa Lima Sobrinho, é discípulo de Alberto Torres, o talentoso pensador fluminense que antecipa em muitos aspectos a concepção do imperialismo de Lenin. Ultimamente, nas manifestações contra a venda da Vale do Rio Doce, o eminente jornalista tem se reportado a seu sobrinho ministro como exemplo de tiocídio ideológico, semelhante ao parricídio de FHC em relação a seu pai nacionalista. Bresser Pereira exasperou, como até então nunca havia acontecido em livros anteriores,'sua implicâ110*3 com 0 nacionalismo, cuja compreensão revela-se bastante limitada, não apenas o de Vargas dos 30 e 50, como o de

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João Goulart e Leonel Brizola dos anos 60 em diante (os dois políticos ausentes do livro de Bresser), para não dizer o nacionalismo antes de 1930. De resto, Bresser não chega a atinar para a complexidade do fenômeno nacionalista na cultura brasileira, quer no aspecto conceituai, quer no aspecto estético, rejeitando-o dogmaticamente, ou por imperativos de natureza Realpolitik. Depois de ler, ao longo dos anos, muitas páginas escritas por Bresser Pereira, levantei a hipótese (plenamente confirmada em Crise Económica e Reforma do Estado no Brasil) que sua exagerada ênfase modernizante na influência civilizadora do capital acompanha a rejeição simplificadora do nacionalismo como doutrina datada, portanto anacrónica hoje, conforme se encarregaria de mostrar o atual estágio globalizado do imperialismo. Já disse alhures e repito a minha impressão de Bresser como o Proudhon da socialdemocracia tucana, preocupado em distinguir o bom imperialismo do imperialismo ruim. Bastar citar este trecho significativo: “O objetivo do nacionalismo era proteger-se contra o imperialismo, em vez de negociar com os países mais desenvolvidos, tendo como critério o interesse nacional”. A concepção neo-estruturalista de Bresser abomina a idéia de antagonismo de classes e de nações ricas e pobres, assim como não dá para entender o que a defesa do “interesse nacional” significa, sobretudo a partir do repúdio ao nacionalismo - a não ser o truísmo de que as multinacionais não são contrárias ao desenvolvimento económico. A década de 80 muda a vida do país e afeta a concepção teórica de Bresser, para quem o subdesenvolvimento não é uma fatalidade da exploração imperialista, ou seja: o Brasil poderá ser livre, soberano e socialmente justo, ainda que sob o domínio do imperialismo. Bresser se opõe à falácia de que o imperialismo é a causa principal do subdesenvolvimento na América Latina. O governo FHC divulga pela imprensa que a sobrevivência do Plano Real depende das reformas do Estado mentalizadas pelo neo-estruturalismo. Isso quer dizer que o nosso atraso, conforme veiculou a campanha de FHC em 1994, não deve ser atribuído aos EUA ou aos países ricos. A teoria bresseana da ‘-crise fiscal do Estado”, embora nao seja inteiramente made in Brasil, afasta o imperialismo como a causa principal da miséria brasileira. O Estado quebrado e o responsável pela crise

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económica. O abandono marxista pelo método estruturalista leva-o a considerar a superestrutura estatal, e não as relações de produção económica, como o elemento fundamental na interpretação da sociedade brasileira. O grande desafio de Bresser Pereira é mostrar a conjugação da “abertura económica” com a defesa do “interesse nacional”. A base eclética de seu pensamento, típica do irracionalismo gnosiológico finissecular (de acordo com o Luckács de História e Consciência de Classe), sublinha que na era da mundialização do capital a riqueza dos países ricos não requer a pobreza dos países pobres. Recorde-se que o velho liberal Raymond Aron já dizia que os EUA não iriam falir se não recebessem os lucros da América Latina. Ele está convencido de que é possível estabelecer uma “política racional” do Brasil com os EUA, país que desde 1991, segundo ele, não mais detém a hegemonia económica mundial, embora detenha a hegemonia bélica e ideológica. Se o Japão conseguiu neutralizar a hegemonia norte-americana, isso significa que os EUA não irão atrapalhar a vida do Brasil. Segundo ele, é possível que os credores concedam perdão à dívida externa. Nada impede que o Brasil do sociólogo FHC conte com a boa vontade dos países ricos. Bresser almeja ser o novo teórico da América Latina pós-dependente, em que a “crise fiscal” do Estado substitui a antiga e obsoleta divisão, operada por Prebisch (1949), entre centro e periferia. De 30 a 70, o Estado esteve bem; todavia, a partir dos anos 80, o Estado entrou em colapso. Daí a necessidade urgente da privatização, a qual está ancorada em outra formulação bresseriana de 1988: “o caráter cíclico e mutável da intervenção do Estado”. Num aspecto temos de concordar com Bresser: o Estado é fraco, pois apresenta-se inteiramente submetido ao sistema televisivo, ainda que ele não tematize o papel decisivo da indústria cultural no processo da dominação política a partir de meados dos anos 60. Acontece que hoje em dia tal lacuna é imperdoável, posto que a crítica ao Estado - ou seja, a crítica da política - não pode ser feita sem levar em conta a condição a-democrática do mass media, sobretudo quando se discutem as relações de poder ou a legitimidade política da década de 90. Ora, Bresser inclui em seu livro o tópico 161

da “contradição da cidadania”, consequência da heterogeneidade da estrutura social - o amálgama entre voto e miséria - amálgama que converteria a legitimidade das eleições em algo bastante problemático; porém, não tece consideração alguma acerca dos laços entre mídia, Estado e sociedade civil, de modo que sua abordagem da legitimidade política e cidadania reveste-se de um caráter superficial, posto que elide a herança maior da ditadura de 64: o monopólio televisivo. A TV é o agente privilegiado do rent seeking ou da privatização do Estado. Parodiando a interpretação fiscal de Bresser, eu diria que a causa da crise brasileira é televisão demais e escola de menos; todavia a ideologia social-democrata - ainda que lamente a existência da simbiose entre voto, miséria, analfabetismo e despolitização - não reconhece que a governabilidade de 1994 (eivada de uma precária legitimidade política) depende dos interesses económicos e políticos do videocapitalismo financeiro, cujos representantes são imprescindíveis à aliança de classe preconizada por Bresser com o intuito de fazer do Brasil um “país forte em uma sociedade cada /ez mais globalizada”. O próprio Bresser (quando ministro de Sarney) teve oportunidade de porfiar, através da imprensa, com ACM, o político rentista representante do enclave videofinanceiro imperialista, que hoje é peça chave do governo FHC. Isso mostra que, além do limitado alcance explicativo de sua interpretação da “crise fiscal do Estado”, a abordagem de Bresser parece ter caducado diante da configuração mais totalizante do capitalismo videofinanceiro. Assim, do ponto de vista sociológico, a interpretação da “crise fiscal”, apresentada por Bresser como a mais recente teoria do desenvolvimento da América Latina, exibe um estruturalismo sincrônico classificatório, tendo por critério o desenvolvimento periodizado em décadas, mas que é incapaz de fornecer a explicação histórico-causal do que vem acontecendo ultimamente na sociedade brasileira. Ao tomar como objeto de análise o que é dado em cada decénio da economia, ele não aprofunda a génese do processo histórico. Por exemplo: a causa da crise geral brasdeira e a cnse do Estado, 14 aerada nela dívida externa. Esta, por sua vez, é resultado Atadura de 64. acontecimento no entanto qne não ,em nada „

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ver com a dominação imperialista, se bem que a inserção internacional do país, segundo Bresser, converta a década de 80 num marco histórico mais relevante do que o golpe de 64, para o qual não se deveria conceder demasiada atenção. A inópia conceituai de Bresser revela-se no seguinte ponto: para ele, os militares de 64 foram os últimos nacionalistas que se cingiram à ideologia do nacional desenvolvimentismo. Todavia, essa ideologia carece de qualquer fundamento na realidade social do país, pois da década de 80 em diante a América Latina, segundo Bresser, não mais está cercada de poderes imperialistas. Estes se dissiparam com o advento da multiplicidade de blocos económicos mundiais. Ora, o pecado do “velho nacionalismo” (“caipira”, diria FHC) é não saber negociar com os países ricos, enquanto o grande triunfo do governo social-democrata de 1994 é a capacidade de lidar com o mundo desenvolvido. Bresser acredita que virá algum refresco dos países hegemónicos, refresco no sentido de alívio na exploração imperialista da América Latina. Porém, da leitura do livro de Bresser avulta outra hipótese relacionada à história do conceito sobre o desenvolvimento do Brasil, a saber: o perigo da regressão pré-Cepal e, quiçá, o retorno tucano à República Velha, embora o vetor do governo FHC não seja o “primário exportador”. A interpretação da “crise fiscal” do Estado decreta anacrónico o antagonismo de classes e de nações. A velha estratégia colonial do consentimento vem de fora (Nova York e Washington), apesar de Bresser insistir que não é adepto do desavergonhado confidence building (submissão irrestrita) que levou recentemente o México à bancarrota. Seu ecletismo conceituai busca o meio termo: nem internacionalismo entreguista, nem nacionalismo autónomo, mantendo distância tanto de Roberto Campos quanto de Celso Furtado. Com base na tipologia iluminista de José Guilherme Merquior, o livro de Bresser estaria menos para Hegel do que para Kant. Há nele o enfoque neo-estruturalista que coloca ênfase na harmonia do Brasil com os EUA e a Europa, ou seja, a velha aproximação ocidentalizante à Joaquim Nabuco sob a nova roupagem do “realismo periférico”. Para Bresser, os Estados Unidos atualmente precisam do Brasil depois do extraordinário desempenho económico do Japão, ainda que não 163

seja crível admitir os EUA interessados na emergência de um enorme Japão Tropical trader na América Latina. Embora cite o PT como partido de oposição, na verdade a obsessão bresseriana é com o morto-vivo: o nacionalismo. Este é o seu sintoma compulsivo. Imbuídos do ideal de soberania, os nacionalistas seriam uns tolos, porque supõem que as multinacionais inviabilizam economicamente a nação. Bobagem. Isso é birra xenófoba, mania anti-estrangeiro. Isso saiu de moda na década de 80, por sinal a década que castigou sem piedade a América Latina, o que mostra a ambivalência psicológica dos tucanos em relação ao decénio passado: mistura simultânea de aprovação e repulsa. Aprovação porque liquidou com o nacionalismo, repulsa porque foi a “década perdida” para o Brasil; mas, de qualquer maneira, como dado empírico, a partir daí, o pensamento latino-americanono (em homologia à burguesia de imitação colonial) deveria substituir a palavra dependência (a “teoria da dependência” by FHC caducou em 1983, segundo Bresser) pela interdependência. Assim, loravante, entre o Brasil e o imperialismo haverá interesses ecíprocos; então o caminho a trilhar é o da “retórica amigável”, e não o confronto desnecessário. A obsolescência da teoria da dependência em 1993 coincide com o governo Franco Montoro em São Paulo, a passagem da teoria à práxis no interior do aparelho de Estado. A genealogia da moral tucana entronca-se no governo Franco Montoro, o momento da gestação do PSDB como partido dissidente do PMDB de Orestes Quércia. Aí estão as origens da interpretação da “crise fiscal do Estado”. Vale a pena reter a data de 1983. Eis o que diz Bresser sobre a eclosão da dívida latinoamericana: “percebi, pela primeira vez, que o Estado havia empobrecido, que caminhava para a falência, ao passo que o setor privado estava agora rico, e passara a financiar o Estado”. Ainda que sem intenção de fazer a sociologia da vaidade autoral junto aos intelectuais notáveis do PSDB, gostaria de sublinhar que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, no decurso da década de 80 (já no Senado), será substituído nas ciências sociais por Bresser Pereira, o novo teórico do desenvolvimento da América Latina que focaliza a crise do Estado. Assim, teríamos, na ordem sequencial, os au.ores Raul P^b.scb, Celso Furtado, FHC e,

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finalmente, Bresser, cuja capacidade de conceber uma interpretação socioliberal do desenvolvimento latino-americano não deve ser encarada como mero epifenômeno ideológico do Consenso de Washington, o qual decretou o anacronismo da hermenêutica “nacional-desenvolvimentista”. O que Bresser faz questão de sublinhar é a convergência, mais ou menos coetânea, de sua interpretação da “crise fiscal” com as enteléquias formuladas pelo Consenso de Washington acerca da alternativa viável à estratégia de substituição de importações. Em se tratando de neo-estruturalismo, o tópico da linguagem (o léxico, a semântica, a terminologia) assume importância crucial. Por exemplo: o que Bresser denomina “crise fiscal do Estado”, o historiador marxista Nelson Werneck Sodré, em A Farsa do Neoliberalismo (1994), designa por “desestatização”, processo que teria sido iniciado com o golpe de 64, sob o comando do imperialismo, não obstante a aparência do gigantismo estatal, de modo que o Consenso de Washington da década de 90 seria o desdobramento ou a resposta à crise política do Estado ocorrida em 1964. Segundo Nelson Werneck Sodré, a essência do golpe de abril (que também foi planejado em Washington) tinha por objetivo desestatizar o Estado no Brasil e, temporária ou definitivamente, eliminar a alternativa nacional desenvolvimentista, o que afinal teria acontecido 30 anos depois com o governo do sociólogo FHC. Evidentemente não é fácil a um ministro de Estado (por mais dialético que seja no manejo das categorias das ciências sociais) reconhecer a continuidade histórica ou a presença de um mesmo fluxo do “autoritário 64” ao “democrático 1994”. Bresser Pereira não reivindica originalidade autóctone ao Plano Real, assim como não se intitula pioneiro, em âmbito mundial, na interpretação da “crise fiscal do Estado”, ressaltando, por outro lado, que não aceita a acusação de que o Plano Real seja prescrição do FMI. Nem originalidade, nem tampouco originalidade da cópia, conforme dizia FHC quando dialogava com a interpretação do positivismo à brasileira feita por Cruz Costa. Habituado ao sarcasmo anti-romântico do crítico Roberto Schwarz, o sociólogo FHC se mostrou desconfiado em relação às idéias daqui como requentamento de segunda mão das idéias de lá. Aquilo que passa

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na “periferia” como sendo criação original vai ver é decalque do que ocorre no “centro” do capitalismo. Sabedor de que as variáveis “interno” e “externo” se indiferenciaram com o acaso sociológico da “teoria da dependência” de FHC durante década de 80, o autor Bresser Pereira sugere em 1996 que os fautores do Plano Real (Resende, Bacha e Arida) colocaram em prática sua teoria da “inflação inercial”, que antecede, em muitos aspectos, o diagnóstico do Consenso de Washington. Para Bresser, a “crise fiscal” do Estado é mundial, por conseguinte, procurar a autoria nacional dessa formulação seria chover no molhado; no entanto o que se depreende de seu livro é que a teoria da “inflação inercial” foi tão responsável pela vitória de FHC quanto Itamar Franco, cujo governo - fraco e desprogramado - somente tomaria tino depois de FHC assumir o Ministério da Fazenda sob o beneplácito das autoridades de Nova York e Washington. Bresser apela à “coalizão de classes” para fundamentar um pactum político que levaria a superar a crise económica oriunda da “crise fiscal do Estado”. Evidentemente aos olhos do PFL, parceiro político dessa “coalizão de classes”, o imperialismo nunca existiu como força determinante da sociedade brasileira. Para os tucanos, o imperialismo norte-americano ainda existe - só que milagrosamente tornou-se nosso aliado a partir da década de 80. Da leitura do livro de Bresser sobressai a túrbida impressão acerca da repentina mudança na natureza do imperialismo no decurso dos últimos 30 anos, porquanto se este contribuiu para a deposição de João Goulart em 1964, desempenharia função positiva e saudável quanto ao desenvolvimento do país depois da década de 80. Mudaria o imperialismo ou mudara o país? Ambos mudaram, diria o teórico tucano; porém, graças à irresistível propensão internacionalista de seu raciocínio, o que na verdade parece ter mudado foi antes a atitude do imperialismo do que a estrutura social do país, sobretudo com o fim da guerra fria e o aparecimento em 1994 de um governante confiável, isto é, passível de ser objeto de admiração do mundo desenvolvido, inclusive porque FHC é mais culto estudado, elegante e bonito do que o presidente B.1I Clinton. Um dos traços recorrentes no discurso soc.al-democrata do PSDB é o inegável sentimento de vaidade em estar ao lado do

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“novo”. Acontece porém que não é fácil mostrar o fundamento desse “novo (“a novidade sem nada de novo”, para retomar padre Antônio Vieira) no que concerne à história do Brasil, pois o “novo” em 1994 não passa muitas vezes de repetição do pior passado, isto é: a morbidez dependente acerca do Brasil “colónia mimada” pelos sucessivos imperialismos, cuja expressão é o mazombismo masoquista que vê o povo brasileiro como um menor que deve ser tutelado. A “retórica amigável” da social-democracia, no trato com Bill Clinton, lembra o general Golbery, para quem o Brasil era o satélite privilegiado dos EUA. A novidade em 1994 é que a “ciência política” é governo. A “ciência política” que alcançou o poder se origina da realidade empírica de São Paulo, onde o empresariado industrial esteve sempre conformado à condição de “sócio menor” das empresas multinacionais. Com o presidente FHC, depois da façanha económica do Japão no cenário mundial, o que existe é algo mais seguro: a certeza de que nosso amor não será rejeitado pelos EUA, com o qual não se justifica manter nenhuma “picuinha”. Evidentemente permanece o mecanismo da troca desigual: o Brasij se contenta em receber as indústrias obsoletas e poluentes do ja que foi o desenvolvimento dos países ricos e, em troca disso, abdica de possuir seu capital bioenergético, sendo cativado pelas missangas eletrodomésticas. O Plano Real de desenvolvimento reativa o velho tratado de Methuem no estágio tecnológico da evolução termonuclear, ou seja: o desenvolvimento neocolonial sem energia própria. Disso a consequência danosa é o perigo de uma escravidão tecnológica irreversível, com o subsolo do país doado à propriedade e controle dos europeus e norte-americanos. Ao focalizar a vida política brasileira desde 1979, Bresser aprecia menos Sarney e Itamar do que Collor, a quem dedica algumas páginas de seu livro, elogiando-o por ter confiado plenamente em sua ministra da Fazenda, ou por ter mudado a “agenda” do país, sem preocupar-se no início de seu governo com a recepção “populista” das medidas económicas. A propósito da interpretação política de Bresser ficou-me a suspeita de que o ex-presidente Collor se deu mal porque não incorporou em sua política económica os ensinamentos neo-estruturalistas da “inflação inercial”. Outra teria

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sido a história do Brasil de 1989 em diante, se por ventura Collor ao invés da jovem e deslumbrada Zélia Cardoso - tivesse convidado o maduro economista do PSDB para o cargo de ministro da Fazenda. Provavelmente ele teria aceito o convite (afinal FHC não fez de tudo para ser convidado?), principalmente porque Collor se afastara da sedução “populista” (ao contrário de Sarney), governando sem o receio de tomar medidas impopulares a fim de estabilizar a economia. Segundo Bresser, Collor elegeu-se pela via populista, mas governou contra o populismo, por conseguinte concluise que Bresser espera da política económica de FHC maiores afinidades com Collor do que com o “populista Sarney”. A semântica da palavra “populismo” complica ainda mais com a crítica ao Plano Real empreendida por Roberto Mangabeira Unger: um plano económico “populista”! Justamente o tal do populismo que Bresser tanto abomina em sua teoria da “inflação inercial”, embora o leitor nunca saiba ao certo o que significa esse conceito tábua de salvação. Em quase tudo há, segundo Bresser, populismo no Brasil de 1979 a 1996. Populismo ubíquo. Em seu livro a palavra “populismo” é mais citada do que a palavra “autoritário” durante a década de 70. Se substituirmos a globologia da moda por uma culturologia da “inflação inercial”, não podemos fingir que ignoramos a grave acusação de Roberto Mangabeira ao neo-estruturalismo, o qual aceita o Brasil como o paraíso da mais-valia. A estabilidade neocolonial da moeda tem como corolário um inequívoco conteúdo de classe: as reformas do Estado não tascam os dinheirosos da sociedade civil, concentrando-se apenas no anátema udenocollorido dos funcionários públicos como subprivilegiados ou “marajás”. A fúria antipatrimonialista em Bresser talvez decorra de sua leitura da legitimidade na obra de Max Weber (legitimidade mais para os aovernantes do que para os governados); no entanto é omitida a estrutura social que engendra o ethos patrimonialista. O fastígio a aue chega a consciência social-democrata do Brasil-país injusto” e o confronto entre o privilegiado funcionano publico urbano e o 1L 4 rural. F verdade que na interpretação fiscal pobre trabalhador E verda j protecjon . do Estado às vezes dePa™”° estatal à burguesia, que ja g

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hou a excêntrica denominação de

“burguesia de Estado” (FHC), correspondendo à “classe tecnoburocrata ’ de Bresser, autor sensível a uma sociologia do trinômio lucro, ordenado e salário, em que o ídolo do mercado (a instância maravilhosa da sociedade) entronca-se no elogio do lucro, o qual é por ele mais apreciado do que o salário e o ordenado, o que lembra a concepção ética da honestidade como alguma coisa intrinsecamente puritana. A bibliografia do livro Crise Económica e Reforma do Estado no Brasil não cita senão os autores tucanos ou prototucanos, de modo que não se observa nenhuma preocupação em debater ou polemizar com outras posições adversas, como é o caso da crítica de Roberto Mangabeira: a estabilidade neocolonial da moeda significa, do ponto de vista cultural, a renúncia do Brasil em possuir civilização própria. Nas trezentas e poucas páginas do livro de Bresser não há qualquer alusão à cultura brasileira depois que, segundo ele, sumiu do mapa o processo substitutivo de importações. Com a vinda para cá das multinacionais, através da inexorável tendência à globalização, a inviabilidade do nacionalismo também se aplicaria à esfera da cultura? Qual seria o critério do “interesse nacional” caso a caso, como repete Bresser, se o ângulo de análise for o relacionamento entre Estado, economia e cultura? Do ministro Francisco Weffort não conhecemos resposta a essa questão, pois ele nunca lidou, em sua carreira acadêmica de sociólogo, com a idéia da particularidade cultural do Brasil. De resto, segundo os intelectuais tucanos, cultura é mercado, ou seja, cultura subordinada à mercadoria televisiva. Assim, tudo o que é cultura, a TV dominante cuida de administrar através da lógica do mercado: a redução do Brasil à mercância internacional. Culturalmente não faz mais sentido o “instinto de nacionalidade”, de que falava o escritor Machado de Assis. A indefectível tara entreguista da classe dominante de extração colonial reaparece na década de 90 através da denúncia feita por Bautista Vidal, cuja interpretação energética do desenvolvimento ataca o menosprezo da ecosfera em função do pragmatismo financeiro. Cumpre salientar que a oposição ao dinheiro na sociedade brasi leira vem justamente da abordagem biótica do desenvolvimento, pois o economista só vê valor na floresta morta, isto é, com a produção da madeira. Não por acaso em José Guilherme Merquior,

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intelectual pontífice da tendência mundial ao liberalismo durante a década de 80, a questão do dinheiro vai gradativamente perdendo a dimensão deplorável de coisa para se transformar em algo inconcebível de ser erradicado da vida humana. José Guilherme Merquior viveu o final de seus dias sem o menor constrangimento em relação à existência alienada do vil metal, como se a crítica deste fosse inequívoco sintoma de utopismo ou de neurose individual. Um indício de que o marxismo entre nós não anda bem das pernas é o fato de ter passado desapercebida a crítica energética de Bautista Vidal à estabilização monetária, a qual se confunde com imobilidade histórica: para que o Plano Real seja tudo, a energia nacional deve ser nada. Bautista Vidal pega o melhor do pensamento marxista, adequando-o à crítica da apropriação tecnológica imperialista da bioesfera. Nenhuma mudança da moeda pode suprimir as contradições inerentes ao dinheiro. Nenhuma reforma monetária altera a estrutura da produção económica. Bresser Pereira não dialoga em seus textos com o cientista J. W. Bautista Vidal, autor de vários livros importantes sobre tecnologia energética, publicados a partir da década de 80, denunciando a desnacionalização do país. De Bautista Vidal não se pode dizer que seja/zcwzo literatus; ao contrário, engenheiro, pós-graduado em física, ele entende como poucos do património mineral, genético e hidráulico do Brasil. É bem provável que Bresser o conheça pessoalmente, ou saiba de sua participação no programa Pró-álcool. Além disso, o núcleo da argumentação de Bresser sobre a “crise fiscal do Estado”, várias vezes repisada (inclusive no recente artigo “Da Administração Pública Burocrática à Gerencial”, Revista do Serviço Público, n° 1 abril, 1997) refere-se ao “segundo choque do petróleo” de 1979, tido como um dos detonadores da crise económica e da crise do Estado. Bautista Vidal tem se dedicado a esse tema de maneira obsedante (vide O Esfacelamento da Nação, 1995), a começar de seu julgamento sobre 64, movimento marcado pela contradição terrível: “tradição nacionalista dos militares e a natureza entreguista do regime-, O militar em 64 .ove o poder — o, —“S "64 outro marco his.Orico para o £.s H de qUe’ a° 3o a qUal tèm destruído a econom.a nacional seguindo democratização, a quai

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o ideário colonizado de Roberto Campos, para quem o homem brasileiro é um incompetente tecnológico por definição. É de todos sabido o ódio de J. W. Bautista Vidal aos tecnocratas pós-64 (ignorantes em tecnologia, a exemplo do economista Roberto Campos): “não são capazes de plantar uma couve...mas interferem diretamente em seu plantio, em geral dificultando-o”. Para Bautista Vidal, o Ministério da Fazenda é a casa do “papel pintado”, da especulação, da inflação, da dívida externa. O processo inflacionário é instrumento de concentração de renda e de manipulação eleitoreira, da qual o Plano Real não escapa através da conexão de FHC com os mit boys (os chicagos boys foram consultores de Pinochet no Chile): o que está na base da criação do Real é a renegociação da dívida externa. O setor financeiro, comandado de fora, domina a sociedade brasileira. Esta “ocupação” imperialista não precisa sequer dar um tiro. Internamente, o domínio do capital financeiro quer acabar com o sentido de missão da carreira pública com o fim do intelectual: a nação reduzida a mercado. Câmbio manipulável. Emissão arbitrária. Riqueza fictícia. Ao contrário de Bresser Pereira, que não analisa o papel do Exército na sociedade brasileira, Bautista Vidal acusa o projeto geopolítico conduzido de fora (pelos países do G7) de demolir o Estado e desagregar a nação, transformando as Forças Armadas em polícia de narcotráfico. A segurança do continente latinoamericanono caberá ao Exército dos EUA, país conivente com a “democracia” entre nós; afinal, a supremacia da internacional globalização é sempre de um Estado nacional sob outro Estado. As mutinacionais (300 empresas, de acordo com o cálculo do ge­ neral Andrada Serpa) não competem entre si; o que elas fazem é dividir o mundo em áreas e feudos. Do Consenso de Washington Bautista Vidal extrai a seguinte consequência sinistra: a econo­ mia de mercado (junto com a receita da “disciplina fiscal”) é pos­ ta como valor acima da democracia e da soberania nacional. Nesse contexto é que o social e o político se subordinam ao primado do capital financeiro, daí a ideologia do “mercado auto-regulável” e a vinculação da moeda nacional ao dólar. Bautista Vidal adora citar a frase de seu amigo Severo Gomes: AI Capone matou me­ nos gente do que a escola de Chicago de Milton Friedman. 171

Quanto ao petróleo, de que fala Bresser a propósito da crise do Estado no limiar dos anos 80, Bautista Vidal defende o monopólio estatal do petróleo, condição de sobrevivência da nação brasileira; contudo acrescenta que o Brasil não deveria (a mando dos países ricos) atrelar-se energeticamente apenas à exploração do petróleo. Para Bautista Vidal, o Brasil deveria explorar outra fonte energética: a biomassa. Isso porque a terceira revolução industrial é a da biomassa: sol e água. Biotecnologia. Somos ricos em nióbio, titânio, tântalo. Nosso capital é biótico. Este património biológico, o fundamento da riqueza do trópico, é no entanto alvo de cobiça dos países ricos situados no hemisfério norte e frígidos da terra. Carentes de fontes energéticas, os países ricos procuram carvão, petróleo e nióbio. Japão e Alemanha não têm petróleo em seus territórios, assim como França, Inglaterra e Itália têm pouco, tal qual os EUA. Assim, de acordo com a ontologia energética revolucionária de Bautista Vidal, chegamos à situação paradoxal no final do século XX: os países ricos precisam mais dos países pobres do que estes dos países ricos. Bautista Vidal dá vida à tradição nacionalista de Sílvio Romero (anterior a Alberto Torres) quando ensaia - a partir do arsenal biótico e da biomassa - estabelecer uma filosofia da história, “o mais temeroso problema que possa ocupar a inteligência humana”, conforme escreveu Sívio Romero em sua estupenda História da Literatura Brasileira, ou seja, a tentativa de mostrar o que diferencia um povo no meio de todos os outros povos. Tal tradição intelectual nacionalista, ao contrário do que deixa entrever Bresser Pereira em sua esquemática periodização económica por décadas (Marx, de resto, tomando exemplo da geologia, defendia a inexistência de linhas de demarcação rigorosas separando as diversas épocas da história), sublinha que um povo novo como o brasileiro não deveria pedir lições aos outros, mas sim dar exemplo. Trilhando o mesmo caminho da filosofia da história de Sílvio Romero, Bautista Vidal afirma que a tecnologia externa é o inimigo principal do Brasil, pois impede-o de virar a potência civihzadora e solidária dos trópicos. Curiosamente Bresser Pere.ra e FHC registra Bautista Vidnl em seu livro Do Estado Servtl a Naçao Soberana (1987), assinaram em 1980 o manifesto Em Defesa a açao Ameaçada. 172

Não tardou no entanto a mudança na maneira de Bresser conceber o país durante o decurso da década de 80, mudança relacionada ao governo Franco Montoro (1982) em São Paulo, o qual empurrou o sociólogo FHC para o Senado. A crónica política registrará, no itinerário da social-democracia, os nomes de Franco Montoro, José Sarney e Fernando Collor, mas há também o contexto internacional em que o socialismo entrou em pânico. Na história da cultura brasileira contemporânea o governo Franco Montoro representa, de um lado, a cooptação dos intelectuais e, de outro lado, o declínio total da atividade do professor. A escola é engolida pela TV. Somente restará como prestígio a evocação do “professor aposentado”, conforme admiração de FHC pelo deputado Florestan Fernandes, ou seja: professor acabou! O declínio cultural do professor coincide com o zénite do Itamaraty, que desbanca o prestígio da universidade, embora a verdadeira vocação do diplomata José Guilherme Merquior talvez fosse a de professor, cuja taxa de liberdade intelectual é superior à do diplomata. O signo da internacionalização do intelectual na década de 80 corresponde à consolidação da videoesfera, onde o professor perde a vez para o jornalista de TV. Em nenhum outro lugar do mundo como no Brasil é mais fácil perceber como a mãe da globalização é a mídia eletrónica. Esta particularidade da sociedade brasileira sempre foi mentalizada pelo cineasta Glauber Rocha ao advertir que a câmera é um objeto que mente: a TV nasce do Estado de 64, porém com o desígnio ideológico neocolonial de persuadir a todos que o Estado não deve ser obstáculo à exploração imperialista do património bioenergético do país. Este nexo que estabelece a conexão entre médium e energia é o principal suporte imperialista do poder na década de 90, por onde convém fazer a crítica política do Estado em Bresser Pereira. Isso porque o modelo político de FHC aprofunda a relação desigual da economia brasileira com as economias desenvolvidas na etapa termonuclear das forças produtivas. Resulta daí o acordo de cavalheiros: oferecemos a entrega do nosso minério para a indústria estrangeira da informática e, em troca, recebemos eletrodomésticos e automóveis, mercadorias que tiveram seu apogeu durante a segunda revolução industriai 173

Culturalmente o modelo político de FHC é a expressão de uma sociedade ágrafa e dominada pela mídia televisiva, que decide em última instância o processo eleitoral, de modo que o médium (e seu descaso pela escola e consequente repressão à letra) é quem faz a política. O capitalismo impõe sua videouniversidade em escala planetária (a TV é norte-americana), começando na França o predomínio da videoesfera em 1968, marco da substituição da grafoesfera e da visão tipográfica do mundo, cujo tripé baseavase na escola, no livro e no partido político. Entre nós a particularidade da implantação da videoesfera a partir de 1965 consistiu em pular o estágio da educação pela letra, deixando a maioria da população sem escola, de modo que a superestrutura videofinanceira se instaurou na ausência de um suporte letrado, que é por assim dizer o vazio analfabeto típico do subdesenvolvimento, ao qual se acoplou a oligarquia internacional do dinheiro, isto é, o hot tnoney. Por conseguinte, essa oligarquia financeira comandará a socialização audiovisual da sociedade brasileira um ano depois do golpe de 64. A grandeza artística de Glauber Rocha decorre de sua capacidade em tematizar a geopolítica da videoesfera através de uma perspectiva nacionalista, que junta no cinema Villa Lobos e Getúlio Vargas. No início da década de 90, o governo Collor acabou com a Embrafilme, reforçando assim os interesses da videoesfera imperialista, em cujo processo estão embutidos a erosão internacional do território e o património público zero. A existência de um sociólogo governante em 1994 não significa que a letra recupere seus direitos perante a videoesfera. A propósito, vale lembrar que o equívoco fundamental da crítica da cultura em José Guilherme Merquior foi supor que, da década de 70 em diante, haveria hegemonia grafokulturkritik nas universidades, quando na verdade ocorreu o domínio absoluto da oralidade videoesfera, cuja consequência deplorável é a anacolutia verbal que medra atualmente na linguagem da elite e da massa. O L dl videocracia aumentou ainda mais com a social-democracia r fflC De 65 A é «o pode, da de FHC. He o in rogreSs, eis a consequência civil do golpe míd‘a te?M Selundo Glauber Rocha, o divórcio entre povo e

militar de 64. 174

Forças Armadas ocorreu por causa da influência ideológica do cinema Roliudiano, o braço direito do Pentágono. Essa formulação glauberiana, cuja origem encontra-se em sua preferência por Floriano Peixoto em detrimento de Rui Barbosa, choca-se com a síndrome mameluca do governo FHC, que aposta numa repentina philia americana entre o norte e o sul, a mesma “ilusão americana” denunciada por Eduardo Prado, o paulista que ironizava os descendentes dos “pobres luso-índio-negróides”, tal qual o mexicano Leopoldo Zea, cético em relação à solidariedade entre o irmão neobritânico e o irmão neolatino, segundo o prognóstico do filósofo Hegel: a solidão da América do Sul é a saúde política. Antes de Bresser Pereira escrever sobre o papel dos empresários industriais no processo da abertura política de 1974, o cineasta Glauber Rocha, no Peru, em conversa com Darcy Ribeiro, torcia em 1972 para que o Exército brasileiro se libertasse da tutela audiovisual imperialista roliudiana. No final do século XX a economia, a política e a mídia formam um todo indivisível. Basta verificar o que aconteceu de 1989 em diante, onde não mais teria base de sustentação a liderança carismática e messiânica diante do condicionamento midiático do processo eleitoral, tanto que se propaga por aí que o último político adversário da Rede Globo chama-se Leonel Brizola, o principal candidato derrotado por Collor e FHC. A TV eliminou 64 da história do Brasil. O nome legendário do proprietário da TV Globo, Roberto Marinho, passou a ser mais citado do que a tramoia da CIA no início dos anos 60. A TV é o poder paralelo ao Estado. Dos caprichos da Vénus platinada depende a governabilidade do país: Sarney, Collor, Itamar e FHC. Este capitalismo videofinanceiro ainda não foi devidamente compreendido pelas ciências sociais, malgrado a obra de Glauber Rocha, sobretudo o magnífico ensaio póstumo O Século do Cinema (1985), que é uma síntese da economia-política audiovisual. Sobre o filme O Nascimento de uma Nação (1915) de David Griffith, escreve: “produto típico do neocapitalismo norte-americano”, onde “o modo de produção neocapitalista produz a superestrutura imperialista”. Assim, o cinema é a principal superestrutura do imperialismo. Ou seja: o século XX, século do cinema, seria a história dessa superestrutura ideológica. Ao final do século XX, o cinema 175

cede seu lugar à TV como o mediam dominante da nova superestrutura imperialista. Tanto o cinema quanto a TV são produtos audiovisuais: PAV, segundo a terminologia de Glauber Rocha usada em A Revolução do Cinema Novo (1981), porém as notórias diferenças refletem mudanças ocorridas na evolução da superestrutura imperialista, a qual é a grande responsável pela sobrevida do capitalismo mundial, inclusive sua vitória (momentânea ou definitiva) em cima do sistema socialista. A última etapa pop do imperialismo. Escrevendo sobre a videoesfera da década de 90, o ex-guerrilheiro Regis Debray considera que a TV nocauteou o marxismo. A revolução proletária é pré-televisão. O marxismo dançou como produto da grafoesfera, o complexo da tipografia, do livro, do panfleto, da escola e do professor. Acrescente-se a isso a contribuição de Glauber Rocha ao entendimento da superestrutura imperialista neocolonial: o Brasil aparece como a vanguarda do capitalismo videofinanceiro. Readaptando os clichés audiovisuais roliudianos, a TV dominante ganha um amplitude societária que o cinema norte-americano jamais teve desde o início do século. A história da TV é indissociável do Estado pós-64. Esta é a essência da superestrutura da sociedade brasileira. Sem esquecer o detalhe da periodização: de 1965 a 1980 a TV hegemômica esteve a serviço dos governos, ao passo que de José Sarney em diante todos os sucessivos governos serão da TV, portanto, a determinação midiática do Estado torna-se mais relevante do que a “crise fiscal” do Estado. A inexistência de “oposição” ao governo de FHC deriva do fato da TV dominante não possuir opositor na vida intelectual e política do país. A TV faz o Estado. A dominação videocrata não é concebida como ditadura, ou senão é ditadura agradável e aprovada pela doxa do Ibope. Lembro a paráfrase midiológica de Karl Marx feita por Regis Debray na era eletrónica: o elemento espiritual da superestrutura torna-se força material ao penetrar em nossos olhos e ouvi os. Bresser reconheceu recentemente, em artigo escnto para a/^m , c Piíhlicn aue até o ano de 1987 esteve teoricamente d° n' ceDCão do nacional-desenvolvimentismo.e que somente vinculado a concepç ndeu que tinha chegado a vez da a partir dessa data cou«f 176

interpretação da crise fiscal” do Estado, o que implica em considerar que o movimento da história é determinado pelo Estado, ou pelas intervenções do Estado. Assim, retomando um autor injustamente esquecido, para não dizer marginalizado das ciências sociais de São Paulo, Luiz Alfredo Galvão (que colocou num livro ousado de 1984 o dilema Capital ou Estado), seria pertinente sustentar que a “crise fiscal” em Bresser é a formulação do Capital versus Estado, pois a tecnoburocracia surge como o fator que entrava o desenvolvimento da economia de mercado. Disso decorre a vinculação, tantas vezes repetida, entre o destino do Plano Real e as reformas administrativas. Noutras palavras, bastaria substituir a administração burocrática pela modernização gerencial que estaria encaminhada a solução (“a impotência é a lei da administração”, dizia Marx) da crise económica da sociedade brasileira. Este é o fundamento ideológico de sua reforma antipatrimonialista, da qual não abre mão porque nela acredita (“um tema novo para o país”), a despeito das resistências do baixo funcionalismo e do “clientelismo” de direita. Para Bresser, o governo FHC lhe proporcionou a grande oportunidade em sua vida de realizar na prática (isto é, no poder) o diagnóstico sobre a crise fiscal brasileira. É talvez por isso que ele não tenha até agora se recusado a desempenhar o papel de ministro bucha-de-canhão do “pacto democrático-reformista de 1994”.

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9 Xica da Silva da Globalização

Guerra do Paraguai (1864-1870) é o cenário de um roteiro inconcluso de Glauber Rocha sobre o atual presidente da República, ainda que o cineasta tivesse desprezo pela sociologia, conforme poderá testemunhar Roberto Schwarz, a expressão literária do processo substitutivo de importações. Cem anos depois é o golpe meia-quatro. Glauber: O príncipe da sociologia não entende que o golpe de 64 começou na Guerra do Paraguai”. Por que FHC posto assim num cenário da Guerra do Paraguai? Sabemos que o Exército, em substituição da Guarda Nacional, se formou aí, junto com a famigerada dívida externa, ainda que a moda hoje em dia seja acusar tudo isso de infundada mitologia antiimperialista. Afinal, da Guerra do Paraguai avultam como heróis militares Caxias e Tamandaré, enquanto de 64, os nomes que ficaram na memória são os generais Mourão e Castelo Branco. Por que Glauber faz a mediação entre a Guerra do Paraguai com o golpe de 64 através do sociólogo Fernando Henrique Cardoso? No roteiro inconcluso de Glauber o sociólogo FHC está sem roupa que nem Adão, contracenando nu com a top-model grega Ariadne nos corredores epistemológicos do Cebrap, o herdeiro famoso do Seminário de Marx orientado por José Arthur Gianotti O cineasta pinta o corpo do príncipe da sociologia com a cor vermelha de urucum. Dialogo em o# com o magnífico reitor Darcy

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Ribeiro sobre o conceito greco-tupi de democracia. Para o povo do Paraguai, Getúlio Vargas é o imperador do Brasil, e não D. Pedro II. O cineasta é o primeiro autor brasileiro a estabelecer a antíte­ se entre o Cebrap sociológico e a Carta Testamento de Vargas, cujo pai lutara na Guerra do Paraguai. Algumas cenas do fantástico roteiro glauberiano são tomadas na biblioteca do Palácio de Lima. Ouve-se a voz do cineasta falando em guarani sobre a necessidade de um conselheiro político para assoprar no ouvido do “príncipe da sociologia”. Toca o trem nacionalista de VillaLobos carregando os generais tenentistas, os futuros insurgentes da Coluna Prestes que passaram por São Paulo desapercebidos pelos escritores modernistas empenhados na reforma do soneto. Glauber está vestido com a capa comprida de soldado à Antônio das Mortes, o mamelucofreak matador de cangaceiro, homenagem ao ator Maurício do Valle. Na fronteira do Uruguai, Darcy apresenta Jango a Glauber, mas Jango acha Glauber maluco, embora o cineasta fosse o dramaturgo da shakespeariana Jangarana, onde o ex-presidente da República é comido pelo povo durante o carnaval. Glauber assinala (antes do Habbermas de Rouanet e Freitag) que a comunicação deforma a história. Desde 1972 Glauber incita o Exército a escapar da tutela roliudiana. As esposas dos generais brasileiros assistem a todos filmes de John Wayne nas matinés de Washington, o que prova que o golpe de 64 é um filme roliudiano com o objetivo de instaurar o domínio da televisão no Brasil. Neste roteiro assombroso e premonitório da atualidade, Glauber diz que o desejo do príncipe da sociologia é ser amado por Hollywood, aventando inclusive a possibilidade do amor recusado, tal como Danusa Leão recusara o amavio erótico do líder Carlos Lacerda, que trocou a ditadura do proletariado pelo golpismo udenista. A psicanálise da tucanália gótica está no Kinema barroco. Glauber aconselha o príncipe da sociologia a romper os grilhões anti-eróticos das ciências sociais, se não quiser renunciar a gloria popular. De

M74l maio0994. Õ candida.» EHC declara que o paIs va, ficar

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tal qual o filme Terra em Transe caso Luzinácio Lula chegue ao poder. Essa declaração de FHC me deixou pasmo. O filme clássi­ co de Glauber Rocha é realizado em 1967, doze anos antes da fundação do PT em 1979. Não interessa se FHC viu Terra em Transe ou se ele falou o que lhe assopraram os assessores, valendo a informação simplista de que esse filme denuncia o político “populista” que explora a miséria do povo. Provavelmente Lula também não viu Terra em Transe. Em artigo de jornal publicado em São Paulo (1980), Glauber Rocha sugeriu que Lula iria brizolar se visse o filme visionário A Idade da Terra sobre o nacionalismo de Getúlio Vargas e a utopia de Vi 11a Lobos. Terra em Transe é o filme que sofreu a maior repressão na história do cinema brasileiro durante a época de Costa e Silva. Todavia o que me causou espanto foi Terra em Transe aparecer no discurso eleitoral de FHC, que é o anti-Glauber Rocha do ponto de vista estético e político. Para Glauber Rocha, dramaturgo de João Goulart (quando este ainda vivia), a moeda imperialista e o fantoche moderno do sindicalismo configuram a natureza política do transe colonizado, ou seja, o transe é de direita, mas o diretor do filme é um intelectual nacionalista de esquerda que lamenta as cabeças populistas cortadas pela interrupção do processo democrático em 1964. O Brasil permanece de cabeça para baixo (o golpe de 64 foi um golpe antipopulista) porque ainda não saímos do cenário histórico de Terra em Transe. Nesse filme Lula aparece como o filho de FHC, o discípulo sindical parido junto com o professor Francisco Weffort da USP. Lula seria a síntese sociológica de Weffort com FHC. O critério político da análise glauberiana é a questão da autonomia nacional e do nacionalismo cultural. Seu último filme, A Idade da Terra, elimina o transe de direita, porém não sinaliza nenhuma esperança em relação ao empresário desnacionalizado, assim como não morre de amores pela classe operária, cuja escola política é a telenovela das oito. Em seu livro Por Que Democracia (1984), Weffort diz que Lula se indispôs com a ditadura militar quando seu broder foi preso e torturado. Na USP Weffort era professor de ciência política,

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especialista em “democracia populista” de 1950 a 1964. Segundo a historiadora Maria Victoria Benevides, o livro de Weffort sobre o populismo é o padrinho laico do Partido dos Trabalhadores. Nem a veneranda “teoria da dependência” (by FHC em parceria com Enzo Falleto) obteve tanta receptividade nomilieu universitário e sindical. A ciência política entrava em ruído com a profecia nacionalis­ ta do Cinema Novo. Glauber Rocha foi o crítico lúcido das letras e filosofia da USP. Entre os estudantes rolava a fofoca de que a cultura brasileira era o ponto fraco de Francisco Weffort, para quem o golpe de 64 começara em 1968. Ninguém de nós poderia supor que o mote “abaixo a ditadura” era um tremendo truque. Não havia o tal estancamento económico de 1964 a 1968. Aqui se plasmará a carrière do ministro José Serra na sequência espistemológica da deputada d’além mar: Maria da Conceição Tavares. O mérito teórico de FHC, revelado por Francisco Weffort, é uma trivialidade sobre o clima antijangarana: a ditadura de 64 como agente do processo capitalista de modernização industrial. É por aí que deve ser contada a amorosa convergência do PT com o PSDB em São Paulo, e não através do argumento economicisla de que a população empregada no setor secundário da economia dobrou de 1960 a 1990. Viajando por Alagoas em 1995, o presidente FHC declarou aos jornalistas que Glauber Rocha havia o convidado a participar de um filme, do qual não sabia o nome nem o ano; acontece todavia que Glauber Rocha e FHC nunca se encontraram pessoalmente, de modo que nunca houve tal convite. Em 1980, a propósito da querela sobre patrulhas ideológicas, Glauber dá um depoimento extremamente lúcido sobre a situação da cultura brasileira desde 1959, quando tinha 20 anos, ainda estava vivendo na Bahia e, segundo ele, já se encontrava descolonizado, tanto em relação ao imperialismo americano quanto ao sovietismo ou ao sartrianismo marxisado. Vale a pena retomar esse depoiracnco para aprender o fio condutor de seu racioc.nio, o qual se mantém eo«ente em vários aspectos com o romance RrveraoSu.ssuarana c°e.prelúdio literário da linguagem e.nema.ografrca uti|ÍMda i meT/1* da Terra (I 980). O interessante desse deP„.men[0

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que foi falado e não escrito, é que nele a ênfase nacionalista põe em foco o processo da colonização, tendo por objetivo apresentar a alternativa construtivista para o Brasil, o qual não deveria aterse ao eterno começo, ou senão ao projeto abordado (“O começo está no Brasil”). O raciocínio glauberiano é cristalino em seu delineamento básico: o nacionalismo é a única opção para conduzir o processo da descolonização, posto que o Brasil é um país ocupado pelo imperialismo, além de mistificado por um catolicismo de exescravos. O nacionalismo constitui o cerne de sua visão de mundo, o que separa o bem do mal, ou, digamos assim: o critério fundamental. Diz Glauber: “Quando subiu o general Geisel em 74, nesse período (não sei se antes ou depois) formou-se o jornal Opinião, dirigido pelo sr. Fernando Gasparian, que era ligado ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro). A maioria dos colaboradores deste jornal era composta por universitários, dos quais uma parte, professores, sociólogos, cientistas sociais e tal, estava ligada ao Cebrap, que é co-financiado ou patrocinado pela Fundação Rockfeller ou pela Fundação Ford, não sei qual... aliás, elas trabalham juntas. Acontece que na programação cultural desse grupo - que tem inclusive ligação com o liberalismo americano, ou seja, com kennedianismo, com a política dos Kennedy para o Brasil - havia uma ordem de combater o Cinema Novo. E isso porque o Cinema Novo, tendo transado a Embrafilme, criava um duplo problema: primeiro, isso significava que o grupo de cinema estava tomando o poder económico e político e, segundo, estava veiculando uma política estatal. A Embrafilme é combatida, justamente, porque é a metáfora do modelo estatal no Brasil’. Assim o jornal Opinião do MDB, a expressão do liberalismo das multinacionais, é o comité do Cebrap, o moderno aparelho ideológico do imperialismo para combater o Cinema Novo estatizante e o pensamento nacionalista. Glauber refere-se a uma frente ampla contra o Cinema Novo: “O jornal Opinião encampou isso; inclusive o Fernando Henrique Cardoso criou o primeiro incidente: ele proibiu um artigo do Gustavo Dahl sobre televisão e comunicação de massa no Opinião, dizendo que o artigo era geiselista. Isso são coisas secretas, mais, a briga começou aí.” Em

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seguida, Glauber conta sobre uma carta de Cacá Diegues que não foi publicada no jornal do Gasparian. Glauber morre em 1981, vem o liberalismo de Collor em 1989 e fecha a Embrafilme, a qual não é pranteada pela maioria dos cineastas, assim como alguns amigos (caso de Gustavo Dahl) tornam-se colloridos de olho no Ministério da Cultura. Em 1994, esquecido o incidente com o liberalismo ianque de Gasparian, Cacá Diegues declara seu voto em FHC. Mais ou menos a mesma coisa acontece com Arnaldo Jabor, que fará de tudo para ser convidado ministro da Cultura do governo FHC, a negação do nacionalismo estatizante glauberiano. Isso significa que era problemática a convicção ideológica ou patriótica dos cineastas. Glauber Rocha realmente amava o Brasil e seu povo. E nenhum destes cineastas vivos mostrou em que o nacionalismo dele estava racionalmente equivocado: apenas houve manifestação de apreço ao vencedor FHC. O Cebrap é vitorioso sobre o cinema porque tomou o poder. Em Glauber Rocha o tema da capacidade de organização po­ lítica inclui o papel das Forças Armadas, tal como lhe ocorreu um dia em Paris: o imperialismo americano depois de 74 não queria a permanência militar. Para Glauber, o príncipe da moeda nasce aí como categoria dramática: o agente recolonizado das multi­ nacionais, o fruto tropicalista pós-68, a Xica da Silva da socialdemocracia. Internamente é a cultura do Opinião, do Movimen­ to, do Le Monde e do New York Times: a “cultura empacotada das universidades”, ou seja, “uma cultura de recuperação, fenomenológica, de análises estruturalistas, pseudo-estruturalistas... todo um estilo interpretativo pseudo-colonizador que não chega a nenhuma conclusão. Quer dizer, todo um grande pacto ideológico com o objetivo de combater o nacionalismo”. O que para mim é incompreensível nesse depoimento de Glauber, como em tantos outros, é o elogio ao romancista Jorge Amado, como se este ocupasse o lugar de antípoda ideológico ou estético da social-democracia americanizada de FHC. Na verdade, Jorge Amado faz parte dessa “esquerda liberal kennediana” que iunta a UDN do Banco Nacional do Magalhaes Plnt0 com a pornochanchada da Rede Globo feira pelos ■nIelectuais do

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partidão, enfim, Jorge Amado podia estar tranqúilamente no MDB, no Cebrap ou na consultoria do jornal Opinião. Glauber Rocha é o crítico implacável da cultura liberal. Ele denuncia o “texto da decadência da colónia” com personagens cínicos, decadentes, podres, propagandistas da política americanizada. Interview. Colunas sociais do Globo. Show da Gal Costa. Espetáculo de Ney Matogrosso. Telenovela de Dias Gomes. Isso tudo configura o pacto ideológico para combater o nacionalismo no momento da abertura política. Impressionante como em 1974 Glauber Rocha percebe a tragédia do Exército brasileiro, que dá em 64 um golpe contra si mesmo, ao mesmo tempo em que reprime a linguagem popular. Ninguém realizou tão bem a desmontagem da cultura do capi­ talismo videofinanceiro quanto Glauber Rocha, opondo-se inclu­ sive ao baixo nível intelectual da Igreja católica e sua teologia da libertação. “Aqui você tem que adorar Deus, MDB, Flamengo e ser fã de Maria Bethânia. É uma série de classificações de origem católica como o cinismo do perdão, como a anistia que Figueiredo dá aí para a esquerda. É tudo a mesma coisa, é o perdão do padre. Então sai todo mundo a fim de pecar outra vez: o carnaval, depois a semana santa. E todo mundo participa disso. Todo mundo sai para ver desfile de escravo no carnaval, a intelectualidade de esquerda vai valorizar o populismo das escolas de samba que é uma coisa europeizada, vestida pela marquesa de Santos. Todo mundo participa do massacre económico da população, joga o jogo da inflação e protesta contra a ditadura”. Até mesmo seu diálogo com a esquerda brasileira se situa dentro da problemática da colonização: marxismo, luta armada e exílio. E aqui patenteia a solidão intelectual em que se enredou o pensamento de Glauber, que reclama em 1980, (um ano antes de morrer) da ausência de um ensaio que tematizasse a experiência estética do Cinema Novo. O nacionalismo dele não encontrou nenhuma resposta da intelectualidade brasileira. Nenhuma crítica. Apenas frase de efeito, piadinhas, maledicência. “Veja bem que, no Brasil, todo mundo esculhamba o Cinema Novo. Se esculhamba com frases em jornais, e isso todo mundo: a direita, a esquerda...”

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A questão do nacionalismo o faz brigar com católicos, comunistas, intelectuais de esquerda e vanguardistas. Da Igreja ao Partidão. Da luta armada à poesia concreta. Do CPC à contracultura. Da tropicália à Academia Brasileira de Letras. Do Itamaraty à teoria literária da USP. Em várias entrevistas ele se pergunta o motivo de toda a intelectualidade brasileira ter reagido contra Terra em Transe. Ele mesmo irá dizer em 1980 que, apesar de tudo, não abandonou o discurso desse belíssimo filme. Que discurso é esse que provocou a maior repressão na história do cinema biasileiro? Esse discurso permanece o mesmo quando ele volta ao Brasil em 1976. “Eu não estava de acordo com as opções da esquerda armada, porque fiz Terra em Transe em 1966, antes do livro do Régis Debray chegar aqui na América Latina”. O fundamento desse procedimento mental glauberiano é a crítica à credulidade colonizada, ou seja, a superstição política em torno das teorias e modismos importados. Desde a Inconfidência Mineira até o foquismo das guerrilhas. “Aqui a esquerda revolucionária, por ser colonizada, não entendeu o meu discurso, preferindo adotar o do Regis Debray, abalizado pelo Fidel Castro, que era um fenômeno de colonização”. Sobre o prestígio político e cultural do fabordão estrangeiro, Glauber Rocha nunca deixava de se referir com humor e gozação, mas sempre sublinhando a condição colonial da linguagem. Ele dizia que tinha lido Guimarães Rosa, não como um linguista famoso, mas como um sertanejo. Ao invés de água de coco, intelectual brasileiro gosta de coca-cola e Marlon Brando. Os editores brasileiros dão preferência ao produto estrangeiro; os críticos literários curtem as páginas do Times assim como a medicina das multinacionais mata as pessoas, etc. “Quem faz propaganda da cultura, da roupa, da moda, da língua, da economia e da política americana está simplesmente traindo o país, porque esse é um país ocupado pelo imperialismo”. Isso assim formulado em nível estético-antropológico ninguém suportava ouvir, porque anunciava a escravidão imperialista da década de 80. A democracia videofinanceira exaspera o entreguismo, a exemplo de seu amigo Paulo Francis, o correspondente da ficção novaiorquinagay-power A Idade da Terra (1980) - um filme contra a idolatria de Godard e Copolla no Brasil- pode ser visto como o avesso do 186

liberalismo decadente estruturado na ambição da moeda, no tráfico da moeda e na escravidão da moeda. O romance Riverão Sussuarana é a sua autobiografia que somente saiu em livro porque um amigo influente, Jorge Amado, deu um toque no proprietário da Editora Record. E daí a declaração lúcida: “Não sou peça da máquina que determina minha morte.” A preferência dos nossos intelectuais pelo “foquismo” ao invés do recado do filme Terra em Transe corresponderá à mistificação écologique do exilado Fernando Gabeira, aplaudido como romancista rebelde pela fina flor da teoria literária da USP. Essa viadagem nutre a ilusão de não fazer parte da merda social brasileira. “Eu já estava descolonizado desde 1959, e não tinha porque render homenagens ao sartrianismo de esquerda, porque o Sartre ficou de esquerda em 59 com a revolução cubana”. O nacionalismo da estética terceiromundista se alimenta menos da Bossa Nova de Tom Jobim e João Gilberto do que do suicídio trágico de Getúlio Vargas em 1954. Por isso diz Glauber: “eu não tinha porque estar ligado a esse sartrianismo do Debray romantizado pelo fidelismo, que nasceu na morte de Che Guevara”. Excetuando Deus e o Diabo na Terra do Sol, a filmografia glauberiana não deixa de ser profundamente afetada pelo golpe contra o João Goulart em 1964, o acontecimento histórico que desabou em cima de sua geração. O filme Terra em Transe é a resposta inteligente do cinema brasileiro aos motivos que levaram à derrubada de João Goulart. Em 1966 Glauber tinha 27 anos, jovem autor de sucesso dentro e fora do Brasil. Diante do transe janguista, o cineasta não se sente culpado pelo esquema que caiu em 1964, mas também não embarca na oposição armada ao regime, assim como não se entusiasma pela “abertura” da sociedade civil a favor da democracia e contrária à permanência dos militares na política nacional. Quanto ao regresso dos exilados pelo golpe de 1964, lembra Glauber na década de 80: “não tinha por que me comprometer moralisticamente ou cristianamente - eu não sou católico - num processo de autocrucificação que hoje a gente viu no que deu: os guerrilheiros voltaram, a maioria está aí fazendo a política da CIA com esse negócio de gay power, ecologia, de revolução do corpo”. Um novo projeto camelo para engabelar os intelectuais que se debatem entre a opção armada e a opção hippie, ou senão o processo 187

de enviadar a inteligência brasileira com objetivo de combater o nacionalismo e liquidar as potencialidades do Terceiro Mundo, eis para Glauber Rocha o objetivo tanto na luta da granada quanto da curtição do rock: “marxistas guerrilheiros e hippies drogados”. Eis a terceira tendência que marcou toda a década de 70: o pornô, cujos efeitos se prolongam na vida política das décadas seguintes. A estética pornô, sob diversas matizes, será o estilo cultural dos presidentes Sarney, Collor, Itamar e FHC. O mais curioso da associação entre o “discurso católicocomunista-Yankee” com a salada “liberal-kennediana” é que o obsceno “pornô” fornecerá munição ao capitalismo videofinanceiro para combater o nacionalismo glauberiano: “a maioria de atores, diretores, roteiristas etc., foi trabalhar na Globo, no auge da ditadura do General Médici. Se corromperam esteticamente, ideologicamente, um desastre. Se venderam ao Roberto Marinho, a preços módicos. A maioria dos cineastas aderia à pornô-chanchada que foi apoiada pelo Partido, pela intelectualidade do Partido que vive ligada ao 4DB, ao Magalhães Pinto.” Segundo Glauber a mesma lógica •ultural e política é que aglutina o PC, o Banco Nacional, o MDB, o Cebrap, o Jornal Opinião, a social-democracia. “O grupo do Cinema Novo aproximado ao PC - não vou dizer os nomes - foi que desenvolveu a política da pornô-chanchada contra os cineastas da esquerda revolucionária.” No início dos anos 80 Glauber Rocha fica sozinho, dentro e fora do cinema. Ideologicamente solitário na defesa do nacionalismo terceiro mundista, cujas origens remontam à Revolução de 30. Não por acaso a direita cinematográfica mantém preconceito contra Getúlio Vargas, ao contrário do que ocorre com os textos e filmes glauberianos, os quais retomam a tradição trabalhista e nacionalista da Carta Testamento. O que lhe interessa, em termos épicos, é menos 68 do que 64. “Na verdade, é o seguinte: o maio francês foi uma operação da CIA para desestabilizar a política nacionalista do general De Gaule que apoiava o Terceiro Mundo e a revolução cubana. E depois de Glauber? É espantoso constatar hoje como ele nercebeu no início da década de 80 que o Cebrap americanizado de fflC através de um episódio banal ligado ao jornal Opw,&. era „

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discurso reacionário em oposição estética e ideológica ao nacionalismo do Cinema Novo. Esse discurso que se tornaria hegemónico com a social-democracia tucana aliada à oligarquia do PFL, cuja ascensão ao poder em 1994 foi aplaudida por Jorge Amado, pela MPB de Gil e Caetano e por muitos de seus amigos do Cinema Novo, dá por suposto que a batalha terceiromundista do autor de Terra em Transe caducou em função da atual globalização da economia ou da modernidade neocapitalista. O discurso comunista, confundindo o desmoronamento da União Soviética com o colapso do socialismo, resolve decretar o anacronismo do PCB, o que revela mais uma vez o caráter colonizado do marxismo entre nós, o qual ficou atónito e baratinado com a queda do muro de Berlim. É impressionante a lucidez do diagnóstico de Glauber sobre a situação da cultura brasileira no início da década de 80, não apenas por retratar sua terrível solidão intelectual e política (rompido inclusive com a patota do Cinema Novo), mas também por prefigurar o que iria acontecer com o país a partir de Sarney, Collor, Itamar e FHC. É nesse depoimento, entre outros textos e entrevistas, que se encontra delineado o conceito de assassinato cultural para além da abordagem moralista ou psicologizante. O cineasta foi buscar oxigénio fora do Brasil na década de 80, coincidindo com o lançamento de A Idade da Terra, o que talvez tenha sido o equívoco fatal, embora autojustificável como recurso para tratar de sua saúde. De qualquer modo ele mesmo formulou a pergunta crucial da nossa época, pergunta essa que um dia terá de ser respondida: quem é o assassino de Glauber Rocha? Evidentemente os principais suspeitos desse assassinato disfarçam a gravidade da acusação, atribuindo ao cineasta o gosto pelo martírio ou a tendência autofágica de sua personalidade drogada (fumo, cocaína, LSD), para com isso desviar ou esconder o objeto da indignação glauberiana contra a miséria do país (económica e psicológica) provocada pela ocupação imperialista. O fato irrecusável é que o seu ódio ao universo contemporâneo brasileiro era extremamente saudável, além de render altos baratos estéticos, porque recusava o câncer da violência pela raiz: a atitude da subalternidade como destino. Esta resignação colonizada, cínica ou ingénua, do conformismo dependente, no decurso dos anos 80, causou estragos na criação cinematográfica

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cujo pior efeito não foi apenas a falta de financiamento, mas sim a consciência de que a nossa existência não tem saída fora da subalternidade imperialista aos países ricos. No ano de 1980 o filme Bye-Bye Brasil era também o adeus à autonomia artística dos autores brasileiros, mas um adeus sem traumatismo psicológico, tal qual sucedeu com o compositor Chico Buarque e suas canções dirigidas às mulheres da telenovela. O sentimento masoquista da decadência. O sambinha bossa nova. A burrice do cinema na década de 80 foi submeter-se à acústica da MPB desnacionalizada que, por sua vez, durante o governo Collor, estará subalterna ao esquema da telenovela, o produto videofinanceiro que comanda o processo eleitoral da democracia liberal. O complexo cultural tucano foi antevisto por Glauber através da estética, embora ele não mistificasse os artistas como o centro da sociedade. A “paranoia” nacionalista glauberiana em relação ao príncipe da moeda estava objetivamente correta do ponto de vista do discurso político. Esta antevisão surpreendente existe mesmo quando se pergunta onde então Glauber pisou na bola, onde é que ele errou: na política? na estética? na vida? Ou mesmo quando não se pergunta nada disso, o nome dele aparece, às vezes compulsivamente, no discurso do poder. Todos estaremos mortos daqui a alguns anos, portanto não é porque se morre que não se tem razão. Enfim, tratase de um mistério anunciado em 1972, através de uma conversa dele com Darcy Ribeiro a propósito dajangarana trágica: o perigo reacionário está em FHC. O anticomunismo deste veio anunciado antes do episódio do jornal Opinião, em que FHC simboliza o Cebrap antinacionalista na luta contra a Embrafilme estatal. O Cebrap e a Embrafilme surgem no mesmo ano de 1969. É neste ano da trombose de Costa e Silva que aparece o filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, ou seja: é a luta do Cebrap contra a Embrafilme. Trata-se de uma antinomia reveladora do conflito ideológico de Glauber Rocha com FHC no final da década de 60, de modo que o sociólogo do Cebrap estava a fim de rasgar a Carta Testamento de Getúlio Vargas para provar o amor a Ford e Rockfeller. O que causa espanto, no raciocínio olauberiano, é que o Cebrap desempenha o papel do Kennedy da sociologia enquanto a Embrafilme é a metáfora estatizante, militar,

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nacionalista, tanto que em 1980 o ator de novela Tarcísio Meira será o militar do filme A Idade da Terra, não obstante o Exército brasileiro ter dado um golpe político contra o povo em 1964. A argúcia analítica de colocar o Cebrap de São Paulo como sociologia do Pentágono, mostrava a preferência do cineasta por uma “abertura política” em que não se descartasse os militares no comando da sociedade brasileira, porque a burguesia civil li­ beral paulista é totalmente submissa ao imperialismo americano, de modo que ideologicamente o triunfo do Cebrap aprofundaria o processo da colonização cultural. Por aí se compreende a pala­ vra de ordem glauberiana: urucum no príncipe FHC! A fábula sertaneja do liberal Cebrap como o Dragão da Guerra do Paraguai representa a passagem do imperialismo inglês para o imperialismo norte-americano. O interessante é que a sociologia do Cebrap (em oposição ao cinema da Embrafilme) recusa qualquer relação com o eros no trato e conhecimento da terra brasileira, pois o Cebrap - segundo Glauber - quer aprender o Brasil pela estatística, mas a miséria não se revela através de número. Daí advém a dimensão anti-erótica do discurso das ciências sociais, que corresponde a uma força permanentemente exógena (a nobreza da referência estrangeira), segundo a qual aquilo que deu certo alhures deve nos servir como modelo. Retrospectivamente não importa se os amigos de Glauber (os cineastas que foram produzidos pela Embrafilme) acabaram em 1994 fazendo propaganda da estabilização neocolonial da moeda, pois haveremos de convir que, do ponto de vista da história das comunicações, Fernando Collor adiantou o lado de FHC ao fechar primeiro a Embrafilme, assim como Itamar Franco iria vender Volta Redonda. A biografia de Glauber Rocha não explica, por si só, sua defesa política da Embrafilme, que pagou o enterro de sua irmã Anecy. O fato é que com a morte do cineasta em 1981, o Cebrap (a “feijoada democrática brasileira”), repercutindo as teses de direita do MDB, ganhou a batalha ideológica contra a Embrafilme. O que vai ficar na história é que a derrocada do nacionalismo de Glauber Rocha implicou no êxito do Cebrap kennediano em 1994. A história dessa derrota tem de ser examinada de frente para trás, assim como no método materialista: do homem para o macaco.

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Em 1996 chegamos ao anagrama pornochique, juntando a canção odara de Caetano Veloso (que Glauber detestava) com a news do repórter Arnaldo Jabor: jaborodara. Tudo o que não é mercância jaborodara é frustração e ressentimento. A acústica pornô da promiscuidade social carnavalizada é o banquete jaborodara. Banquete imoral. O vídeo dominante substitui a fome pela estética do tesão de araque. Afinal, a fome é casta, dizia Nelson Rodrigues. Esta pseudo sensualidade jaborodara (som e imagem) corresponde à propina do hot money multinacional. Com o filme Bye, Bye, Brasil (que Glauber não viu), Cacá Diegues faz a elegia do cinema nacionalista, fracassado e anacrónico, diante da TV vencedora, a qual volatiza o próprio território físico do país. Nasce um novo médium: o adeus ao Brasil se confunde com o adeus ao cinema. Bye, Bye, Brasil. Péssimo título de filme. Esta cómica despedida da década de 80 antecipará o desaparecimento do nacionalismo glauberiano e a vinda da telenovela collorida, embora o simpático Cacá Diegues não pudesse atinar para os efeitos políticos desastrosos da TV. Seu emblemático adeus ao país (o Brasil era Glauber?) é o bye-bye ao povo do país. Com este filme feagaceano fica provado que a dicotomia “arcaico” / “moderno” é sempre a superfície da ciência política. Cacá Diegues descarta a crítica ao colonialismo como sendo a ilusão juvenil inventada por Glauber Rocha. Este gesto sarcás­ tico (a despedida liberal), além de ficar em paz com a TV pós-64, abandona o projeto de tematizar o Brasil como totalidade. A Ida­ de da Terra (Glauber coloca o Brasil na Bíblia mas tira Cristo da cruz) é o anti-Bye, Bye, Brasil de Cacá Diegues, o futuro eleitor do ex-adversário do Cinema Novo.

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10 PsiCOVIDEOPOPFINANZKAPITAL

ou as Bases Eletrónicas da Legitimidade Volátil ão imporia o nome, indústria cultural, mass media, mídia, fábrica de notícia, opinião pública ou de massa. O que im­ porta é sua produção eletrónica durante o século XXI, o século do Kivideo, assim como o século XX foi o do Kinema. O produto dessa indústria eletrónica é uma mercadoria cultural específica, no sentido de que o videoclipe difere em número e grau de uma fábrica de fósforos. O segredo da indústria cultural é produzir uma mercadoria volátil, quase um produto imaterial. Karl Marx nunca ouviu rádio. A vigência do telekapitalismo coloca o marxismo em crise. A produção do capitalismo vídeofinanceiro é a produção de mercadorias (bens, símbolos, opiniões), cujos suportes materiais dissolvem-se no ar; trata-se de um sistema que fabrica produtos abstratos. Por exemplo: é a moral que é vendida pela telenovela, mas o telespectador recebe de graça a moral da telenovela. A obra antropológica de Darcy Ribeiro oferece elementos preciosos à compi eensão do capitalismo vídeofinanceiro em curso no Brasil de 1995, principalmente sua concepção do povo brasileiro com° Povo submetido desde o início ao processo da deculturação (desopeieizan o os europeus, desafricanizando os negros jestnbalizan o’ °^n l0s) para mais tarde realizar a aculturação sob a egide da TV Globo numa sociedade de massa que não

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consegue alfabetizar seu povo. Nenhuma discussão séria sobre democracia poderá prescindir dessa alucinada condição antropológica: uma massa iletrada, marginal, com a cabeça feita por um sistema de comunicação antinacional e antipopular. Dessa deculturação do povo em massa boçal e infra-humana decorre o aflitivo transe de determinados intelectuais dotados de alto nível estético e de consciência nacionalista, tal qual o exemplar caso dramático do cineasta Glauber Rocha, desde o final dos anos 50 pregando no deserto sobre o caráter determinante da comunicação audiovisual na história do Brasil. Esta batalha da comunicação é realizada por um autor de cinema que apresenta uma experiência audiovisual diferente da que se configurou a partir de 1965, um ano depois do filme Deus e o Diabo, censurado esteticamente pelo governador Carlos Lacerda. Os militares de 1964, ao invés de entregarem à Rede Globo a concessão da TV, poderiam ler escolhido outro modelo, ou seja: o Cinema Novo. Este acabou sendo trucidado pela consolidação da TV na década de 80. Em sua curta vida, Glauber Rocha nunca recebeu convite para fazer conferência na Escola Superior de Guerra, e embora tenha estudado o papel dos militares na história do Brasil, conforme se observa no filme Terra em Transe, os militares - desinformados do processo tecnológico e geopolítico cometem o grande equívoco na política da comunicação, entregando ao doutor Roberto Marinho o controle da TV, cuja consequência é a configuração de um poder paralelo ao Estado, com o detalhe significativo de que o domínio da TV cresceu assustadoramente depois dos governos militares, sobretudo durante os cinco anos do governo Sarney, o sócio da TV Globo no Maranhão. Nos últimos 30 anos vivemos dois processos eleitorais de cujas urnas emergiu a consagração das candidaturas da comunicação eletrónica dominante. O povo votou contra si mesmo. Digamos que o povo bobo seguiu a Rede Globo, o que significa dizer que a mídia sabe falar ao povo, ou que ela não é uma tirana odiada pela maioria da população. Nada revela melhor o escárnio pela democracia do que a recusa da Rede Globo em participar dos debates eleitorais. Nesse contexto oligopolizado da comunicação as esquerdas devem Se contentar apenas com a possibilidade de chegar a alguns

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governos de Estado, porém dificilmente alcançarão pelo voto o poder supremo da nação. Karl Marx em O Capital, capítulo sobre a mercadoria, referese ao valor de uso situando-o entre o estômago e a fantasia, o que poderá nos servir como ponto de partida para discutir que tipo de mercadoria é a telenovela. Sem excluir outros programas de enorme sucesso junto ao público, não há dúvida de que a telenovela é o carro chefe da expansão da TV Globo em todas as faixas etárias da população, o que revela a impossibilidade de considerá-la divertimento desprovido de significado político. À luz da duplicidade do valor de uso e do valor de troca contida em toda mercadoria, digamos que a telenovela se reproduz porque é um produto que satisfaz uma necessidade humana vinculada à fantasia, ao imaginário, ao desejo, ainda que seja fundamental mostrar em que ela difere de uma simples mercadoria como a sandália, pois nesta é evidente o valor de uso, ao passo que na telenovela salta aos olhos o primado absoluto do valor de troca, como se fosse uma mercadoria sui-generis - não apenas por ser produto volátil, mas sim porque é difícil estabelecer em que consiste seu valor de uso. Para que serve esta droga? O professor Theodor Adorno dizia que a indústria cultura’ não satisfaz o desejo de ninguém. Quando defendemos neste li vr< a idéia de que o valor de uso da telenovela é nulo - não obstante seu grande poder de persuasão - estamos pensando que nela encontra-se o correspondente audiovisual do capital especulativo na economia. Com o extraordinário desenvolvimento da TV na década de 70, o Brasil entra na fase mundial do capitalismo videofinanceiro, cuja característica é a agonia do trabalho produtivo. Na Alemanha os operários estão mijando no suco que fabricam como reação ao fetichismo absoluto do dinheiro. O domínio da telenovela entre nós é a expressão da mercadoria over valor de troca, como se ela fosse aqui o equivalente geral do dinheiro. Não é senão por causa desse condicionamento financeiro que a mercadoria telenovela é apontada como o veículo por excelência da modernidade de Primeiro Mundo. O dinheiro dispensa a mediação dos bens concretos, logo decai o valor de uso das mercadorias. Não seria descabido considerar a recente história do Brasil - sobretudo depois de 195

Fernando Collor - como um capítulo de telenovela, inclusive o ingresso triunfal de FHC na TV através do Plano Real. Desde a década de 80 estamos vivendo sob a égide do holismo eletrónico videofinanceiro, cujo marco simbólico pode ser considerado a morte do cineasta Glauber Rocha em agosto de 1981, ele, que foi pioneiro em perceber a tremenda gravidade que representa o domínio da TV para um povo crédulo, místico, ágrafo e sem escola. É na mercadoria telenovela que devemos procurar a chave da anatomia da sociedade brasileira. Curiosamente a crítica mais contundente à Rede Globo nasce no ano do nascimento desta: 1965 é a data do manifesto a Estética da Fome. A telenovela vampiriza postumamente o Cinema Novo - como é o caso do telenovel mau Dias Gomes - mas a estética glauberiana é o modelo audiovisual adversário da TV Globo, a qual se compraz em ocultar a fome e enaltecer o misticismo boçal. Atualmente a TV envereda para a interpretação da história do Brasil, a exemplo de Agosto (1993), dirigida por José Henrique Fonseca, filho de Rubem Fonseca e contraparente do compositor Chico Buarque, o qual perde a ótima oportunidade de mostrar que o “estorvo” é a TV Globo. Estorvo porque molda até a representação do romance contemporâneo, o qual abdica de sua autonomia narrativa para melhor adequar-se ao procedimento sub-roteirizante da telenovela, cujo conteúdo é a idéia de que a sociedade brasileira está articulada na série policial, onde o enredo da polícia dispensa a trama épica da história. Este romance videoclipe, ao se amarrar no mercado de audiência, representa o triunfo completo do valor de troca televisivo. É o fim do romance, declarou Susan Sontag em visita ao Rio de Janeiro. O Agosto antigetuliano de Rubem Fonseca é a consagração da heroicidade policial, assim como a crónica decadente do jornalismo insiste que Collor caiu do cavalo impichado por causa de um carro Fiat Elba. A minissérie Agosto converte o criolo Gregório Fortunato em agente da guerra fria. O procedimento minissérie da telenovela incorpora-se ao dia-adia da política como fator decisivo dos resultados eleitorais. A vitória de Fernando Collor de Mello em 1989 já apontava para a hegemonia ideológica da TV: fora da TV não existe cultura moderna. Nesse contexto é que a telenovela aparece como uma mercadoria

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economicamente mais rentável do que a produzida pela indústria automobilística. O presidente FHC está se referindo à proeza societária da mercadoria televisiva quando declara com orgulho que o Brasil é uma das maiores democracias de massa do mundo. Para a consolidação dessa democracia influi certamente a exclusão definitiva do cinema como criador de um projeto audiovisual de desenvolvimento, tal qual estava anunciado no Kinema de Glauber Rocha. O descalabro do cinema brasileiro significa uma derrota diante da concorrência mundial, ou seja, a colónia condenada a um audiovisual espúrio que apresenta a “beleza” na miséria. Dir-se-ia que a fome na tela do cinema não dá IBOPE. A verdade sobre o país não comove o público. Na década de 80 a Estética da Fome de Glauber Rocha é substituída pelo evangelho da fome do sociólogo Betinho, o qual não concebe a fome como produto colonizado, portanto, esteticamente, Betinho aproxima-se da telenovela, cuja característica é não conseguir fazer o retrato do pobre. O pobre da telenovela não tem nada a ver com o pobre real, enquanto o tema do filme Deus e o Diabo da Terra do Sol é a Igreja Católica diante da miséria do povo brasileiro. O padre intermédia o dinheirc dado a Antônio das Mortes para matar o último sertanejo herdeirc de Lampião. Com o sucesso popular da telenovela, a Igreja fica privada de santificar a miséria, justamente no momento em que a nação se confunde com o monopólio do sistema videofinanceiro. Nossa burguesia exibe-se hedonisticamente sem culpa. FHC se preocupa com o discurso da racionalidade e da eficácia na condução do Estado, enquanto Lula parte para a retórica da irrupção do “novo” na organização da sociedade civil a partir de 1979. Assim, os dois candidatos de São Paulo são inexperientes, mas fazem disso sua bandeira de campanha: tudo começaria a partir deles mesmos, do seu ingresso na política como representantes dos proprietários e dos trabalhadores do Brasil rico e internacionalizado: o Brasil-1. Não obstante as diferenças - mais aparentes do que essenciais - Lula e FHC são irmãos siameses de um mesmo modo de vida urbano-industrial, as mesmas festas, os mesmos palanques, os mesmos regabofes na Paulicéia. A diferença entre os dois reside 197

apenas num aspecto secundário: a formação profissional. FHC é a universidade; Lula, o sindicato. Essa diferença no entanto torna-se irrelevante mesmo antes de 1978, pois a disputa eleitoral de 1994 entre FHC e Lula pode ser analisada como um subproduto do curso de ciências sociais da USP, ou seja, é a teoria de autoritarismo de FHC versus a teoria do populismo de Francisco Weffort. Não nos esqueçamos de que essa duas estrelas sociológicas da USP chegaram a trocar elegantes farpas numa polêmica universitária em que FHC punha ênfase na nação e Weffort contrapunha com a noção de classe social. Evidentemente há outras diferenças, inclusive a abordagem de Fernando Henrique Cardoso em relação ao Estado e sua obsessão patológica com o caudilho, o detentor do carisma e do dom da graça, tanto o caudilho civil quanto o militar. Para os dois professores, o mal estaria concentrando em um encontro do caudilho com o populista, como se tal encontro produzisse a irracionalidade do processo político brasileiro contemporâneo. Para Weffort, o tipo populista não organiza a massa. Quem tiver paciência de estudar os textos de FHC, neles encontrará excessiva preocupação com a ideia de golpe, como se a astúcia do golpe definisse a razão de ser do político que alcança o êxito.

Cuidado Com o Golpe!

De onde vem o golpe não se pergunta por razões táticas, inclusive porque o golpe poderá vir da moeda ou de alguma jogada tecnocrática para manipular o povão. Isso é psicanaliticamente intrigante: FHC se origina de uma família de generais, circunstância biográfica que lhe deu um salvo-conduto durante a ditadura. Ao assumir o Ministério da Fazenda do governo Itamar Franco, ele abdica de vez da mediação intelectual. O que conta agora para ele é a mera pragmática do político profissional, eleito a primeira vez pelo Plano Cruzado, portanto de olho atento na taumaturgia monetária e na mídia monopolista.

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A trajetória de FHC à Presidência da República inova apenas por ele ser um sociólogo. Roberto Campos considera-o candidato de “esquerda”. Todavia, a despeito de sua posição contrária às consequências da ditadura de 1964, reconheçamos que ele não se deu mal no regime militar. Sua aposentadoria foi a melhor coisa que lhe aconteceu na vida. Esse deslize do guichê burocrático valeulhe a fama de intelectual de esquerda. O sociólogo alijado da universidade tornar-se-ia empresário num prazo de dez anos. Em 1978 FHC ingressa na política de São Paulo como senador suplente de Franco Montoro. Sua entrada se faz por cima da carne-seca. Os outros professores foram afastados da universidade, porém nenhum como ele virou empresário, senador, ministro, presidente da República. Para fama de político de esquerda veio colaborar o misterioso auto-exílio, mais um componente dessa estranha fábrica de notoriedade. FHC nunca acreditou na dicotomia entre esquerda e direita, tampouco levou a sério a opção socialismo ou capitalismo, assim como nunca deu importância ao conceito de luta de classes. Ele sempre usou salto alto na política nacional. Convenhamos que tem cabimento sua relutância em não ter assumido a posição de anti-Lula, supostamente o representante do trabalho assalariado nas eleições de 1994. Ao negar essa condição, FHC não estava senão dizendo que Lula não é seu adversário politicamente antagónico. A cúpula dirigente do PT declara-se pasma diante da candidatura de FHC em campo oposto ao Lula - e não em aliança. Na verdade Lula se sentiu constrangido em ter que enfrentálo, menos por falta de argumento do que pela identidade ou semelhança de perspectiva ideológicas. É a dialética do mesmo. Tanto nas fileiras do PSDB de Jereissati quanto no comité do PT de Genoíno, existiu um consenso matreiro de que as duas candidaturas eram a mesma coisa, verso e reverso do processo iniciado em 1964. Não há nenhuma contradição antagónica entre FHC e Lula, apesar do exílio estudantil meia oito de José Dirceu. De resto, a simbiose estrutural de FHC com Lula se evidencia nesse alucinado contra-senso: a aliança frustrada em 1994 do PT com o PSDB será incomparavelmente muito mais pranteada do que fora em 1989 199

a impossibilidade de unir Brizola e Lula, a sinfonia Brizula de que falava o saudoso deputado Brandão Monteiro. Um presidente da República doutor em sociologia e especialista em Marx Weber declara em alto e bom som quando chega ao poder que o lema social-democrata de seu governo estará norteado pela recusa do carisma, “o dom da graça” do primitivo cristianismo. A Igreja Católica já percebeu que o carisma do príncipe é a moeda. Sua vocação como político está inteiramente calcada no preço da cesta básica e da estabilização neocolonial. Ela se diverte com o fato de FHC não possuir devotos por um excesso de confiança no determinismo económico da moeda. Resulta daí sua dependência política em relação ao coronel ACM, que colocou pulseirinha do senhor do Bonfim na munheca do candidato a presidente da República. O maior signo da preguiça mental hoje no Brasil é dar por suposto que FHC não tem nada a ver com seus livros e sua inserção do campo das ciências sociais. Afinal, ele foi parceiro de Otávio lanni e discípulo de Florestan Fernandes, que, por sua vez, pegou carona nos estudos de Roger Bastide sobre o negro brasileiro na sociedade de classes, ainda que na formação intelectual de FHC a influência africanista de Roger Bastide seja imperceptível. FHC é o príncipe da moeda que dispensa o carisma nesta maré alta do capitalismo videofinanceiro. Com o ilustre sociólogo no poder assistimos ao paradoxo do fim da autonomia relativa da política em relação à economia. Não é por acaso que na revista Manchete, FHC pousa para os fotógrafos com a nota do real no peito orgulhoso. Esta é a primeira vez em que a moeda se amalgama de corpo e alma ao príncipe, o que revela o estágio de reificação a que chegamos na década de 90. D->D—>D = dinheiro, dinheiro, dinheiro. FHC ficará indelével nas páginas da história do Brasil por conectar o príncipe ao vil metal, dessacralizando por completo a aura do príncipe, ao qual desde Maquiavel não se recomendava pegar em dinheiro. O falecido deputado Eduardo Mascarenhas, assíduo leitor de Freud, de acordo com José Guilherme Merquior, sabe o que significa oara a sociedade quando o ânus sequestra o pênis e a xoxota das relações sociais e simbólicas. O Plano Real é a consolidação do

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travesti cósmico; do ponto de vista religioso, inscreve-se corno a expressão profana do mercado sem pátria, ou a conversão definitiva de Cristo em moeda. A anticruz de José Serra revela que a própria linguagem se reduz a puro valor de troca, o que faz justiça ao princípio formulado por Ezra Pound: mau governo produz necessariamente má linguagem. Não é por acaso que a equipe tucana fala muito mal; e escreve pior ainda, reproduzindo a anacolutia do estilo Collor, ainda que este no início contasse com a colaboração do diplomata José Guilherme Merquior como ghostwriter. Acontece todavia que o Itamaraty, conforme mostrou o físico J. W. Bautista Vidal, torna-se a cada dia o melancólico espelho da decadência cultural desnacionalizada. Estamos vivemos desde Itamar Franco em plena agonia da missão da carreira pública. Debalde o general Andrada Serpa enviou de Barbacena o recado ao embaixador Itamar Franco para que este rompesse com o governo FHC, a fim de que seu futuro arrependimento não viesse a ser encarado como oportunismo eleitoreiro. Os historiadores do futuro dedicarão um capítulo sobre o sadomasoquismo regional a partir da relação Juiz de Fora-São Paulo, com base na amizade instrumental de Itamar Franco e FHC, onde o primeiro aparece como o caipirão - honesto mas boçal - probo mas bronco, enquanto o segundo é tido como o poliglota ilustrado e cosmopolita. Desprovido culturalmente de auto-estima regional, Itamar Franco caiu no conto do vigário da FIESP e do FMI, introjetando o complexo provinciano de inferioridade, com pejo de não ter estudado sociologia na USP, acreditando-se arcaico, tabaréu, estatizante, sendo compelido a abandonar seu passado: o de admirador do nacionalismo de Alberto Pasqualini. Da Universidade de Brasília o físico J. W. Bautista Vidal se insurge contra a tese falaciosa sobre a natureza ilimitada de nossos recursos naturais, advertindo-nos de que o apogeu dos EUA depois da Segunda Guerra se deu por causa da disponibilidade e abundância do combustível. Petróleo é sociedade de consumo. O usado descartável. O penúltimo carro. A geladeira ultrapassada. Segundo J. W. Bautista Vidal, JK está para a gasolina assim como FHC está para o subsolo desnacionalizado. FHC é a internacionalização total do subsolo com o seguinte detalhe: a ilusão 201

que persegue FHC é a do “mulato” que será aceito como um igual no Clube de Roma, frequentando os tapetes do FMI em Washington. E a ilusão de que seu amor pelos EUA não será recusado, porque ele é um feitor peagadê na administração da dívida externa. E preciso sublinhar que FHC como presidente da República não está desligado da história mistificada que se contou sobre as ciências sociais da USP. Basta observar o depoimento do sociólogo francês Daniel Pécault, que escreveu um livro colonialista e paulistocêntrico intitulado Os Intelectuais e a Política no Brasil. com o intuito de ridicularizar o nacionalismo trabalhista pré-1964. Daniel Pécault não cansa dc jogar confete em seus amigos do Cebrap e do Cedec, na razão inversa de sua antipatia por Oliveira Viana e Getúlio Vargas. Antes de 1964 a produção intelectual paulista não é hegemónica, nem tampouco se destaca por pensar a conjuntura política imediata; o que sobressai na USP de 1934 a 1964 é o esforço para testar os prestigiados métodos das ciências sociais. Da renúncia de Jânio Quadros à queda de João Goulart, as ciências sociais em São Paulo boiavam em relação ao que estava acontecendo politicamente. Até hoje João Goulart não faz o menor sucesso no meio dos intelectuais paulistas. Vivendo em sua Paris, Daniel Pécault não viu de perto a performance da Fiesp da avenida Paulista, divulgando a retórica da “sociedade civil” com objetivo de desculpabilizar a burguesia industrial de São Paulo por ter interrompido o processo democrático em 1964. Pouco importa se a Fiesp cacifou ou não a campanha de Fernando Collor em 1989; o fato é que durante a “abertura” de 1974 a burguesia industrial paulista se arrependeu de ter dado o golpe de Estado junto com a CIA, a mídia, a Igreja e o Exército. A imprensa que derrubou Jango em 1964 tornou-se guardiã da abertura democrática em 1974. Cláudio Abramo registrou de maneira elegante em seu livro A Regra de Jogo o cinismo dos proprietários de jornal. Em meados dos anos 70 Glauber Rocha se insurgiu contra a interpretação de FHC, que afirmava a antinomia superficial e abstrata entre autoritarismo e democratização. Em São Paulo qualquer bostinha intelectual se mete falar mal do ISEB, do nacionalismo e do conceito unificador de .. iação” essa abominável categoria escamoteadora da luta de classes.

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De 1964 a 1980, cristaliza-se nas ciências sociais alguma coisa antiSilvio Romero, no sentido que o mestre sergipano foi o regionalizador do pensamento brasileiro. Em São Paulo as ciências sociais cometem o lento suicídio ao trocarem o “desenvolvimento” pelo tema da “modernidade” veiculada pela indústria cultural: dos festivais de música à imagem do sociólogo como cidadão cosmopolita do mundo. A partir de 1967 a interpretação paulista do populismo (o bode expiatório do golpe de 1964) atribuiu ao “aventureirismo” político de Leonel Brizola a causa da derrubada de João Goulart. A ascensão de São Paulo, no campo das ciências sociais, está ancorada na desqualificação do nacionalismo que floresceu até 1964 no Rio de Janeiro. Para a maioria dos professores internacionalizantes da USP, nacionalismo é coisa de tabaréu, arcaico, estatizante, autoritário. Menos reformista, menos janguista e menos nacionalista, São Paulo culturalmente não sofreu tantos estragos na sequência imediata ao golpe de 1964. Os melhores intelectuais da USP não perceberam, e portanto não denunciaram que a burguesia industrial de São Paulo - aliada aos donos de jornal - estava conspirando contra a democracia de João Goulart. Apesar de golpista em 1964 o empresariado industrial não é congenitamente reacionário ou antidemocrático - é essa a mensagem da sociologia da “modernização”, da “dependência”, da “sociedade civil” e do “autoritarismo militar”, num amplo leque de tendências que vai do neoliberal tucano ao PT social-democrata. Apesar da aprontação entreguista do empresariado industrial em 1964, as ciências sociais - mesmo ao tomarem a defesa da “dialética do trabalho” - acabam paparicando o narciso do empresário modernizante e cosmopolita.

USP, Muralha Anti-Brizolista.

De 1950 a 1964, a sociologia da USP - cindindo ciência e engajamento político - permanece indiferente às “reformas de base” de João Goulart, personagem odiado por Paulo Duarte como o filho de Getúlio, na mesma medida em que hoje em dia Leonel Brizola

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não é considerado objeto digno de reflexão histórica, como se ele fosse epifenômeno do “balneário” carioca. A sociologia paulista é avessa ao balanço do janguismo, tanto que a antítese Paulo Duarte e Getúlio Vargas reaparece entre Florestan Femandes e Leonel Brizola. O deputado paulista, refratário à “sobrevivência” ideológica do maragato gaúcho, deixa transparecer o desprezo pela ontologia nacional conteporânea, em detrimento de uma epislemologia internacional desterrada. Pouco a pouco vai se configurando a suspeita terrível de que no interior da USP é que se encontra a muralha antibrizolista de São Paulo. Essa muralha é cimentada pela mídia jornalística, a qual, na década de 70 - segundo depoimento de Cláudio Abramo acoplou-se inteiramente à patota acadêmica da USP, PUC e Unicamp, formando um verdadeiro bloco histórico hostil ao nacionalismo de Darcy Ribeiro, Glauber Rocha e Leonel Brizola. Palmilhando o mesmo caminho do antinacionalismo de São Paulo, o sociólogo francês Daniel Pécault comete o equívoco de repelir que, em relação ao estudo do negro na sociedade de classes, Florestan Fernandes, Octavio lanni e Fernando Henrique Cardoso teriam retomado a reflexão de Roger Bastide na USP. Na verdade, Roger Bastide deixou clara sua preferência pela inserção no transe folclórico, ao invés de conceder excessiva importância à moderna sociologia das classes sociais, cujo desdobramento nas décadas de 70 e 80 desaguou na assessoria ao PT, ao PMDB e ao PSDB. O que o parisiense Daniel Pécault não percebeu é que a história das ciências sociais no Brasil, depois do fim do bipartidarismo em 1979, não pode ser contada sem os imperativos condicionantes dos partidos políticos. A imaginação do sociólogo durante a “abertura” passa a ser guiada peia racionalidade da convivência partidária. Em sua Antropologia Aplicada de 1974, Roger Bastide previu que a sociologia em São Paulo iria ser substituída pela publicidade. Nas ciências sociais da USP, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Doudas Teixeira são os dois sociólogos que mantêm afinidades com°o estilo de Roger Bastide. O problema é que o folclore em São Paulo ficou confinado ao Ibirapuera, enquanto a sociologia conta da USP. A sensibilidadade estética de Roger política tomou Bastide mostrou o caráter problemático da arte em São Paulo. A 204

tendência é considerar o artista boémio, bebum, nefelibata, drogado, porralouca. O negócio do poder - a política como vocação - estaria mais para os cientistas com prestígio reconhecido no estrangeiro. A história das ciências sociais da USP deve ser reexaminada tendo como pano de fundo a Nova República de José Sarney e o Plano Cruzado de Dilson Funaro. O sociólogo francês tomou o lugar de Carlos Guilherme Motta como historiador da intelectualidade universitária paulista. Daniel Pécault embarca na mistificação do Seminário de Marx de 1958, com arroz-doce servido na casa do filósofo Arthur Gianotti, como se os integrantes dessa famoso “seminário” fossem reticentes em relação a João Goulart devido a uma compreensão crítica do nacionalismo trabalhista, ou senão que esses leitores do Seminário de Marx estivessem empenhados em questionar as teses da “esquerda tradicional”. Outra mitologia a respeito desse Seminário de Marx: O Capital jamais havia sido lido e estudado antes com tanta lucidez e profundidade no Brasil. Os exegetas de Marx convertem o marxismo em ideologia colonizadora. Daniel Pécault poderia ter ido fundo na questão de 1964: a intelectualidade paulista universitária não chorou a derrubada de João Goulart, embora tivesse sido contra o regime autoritário. Pouca gente defendeu o presidente deposto. Daí nasce a teoria do autoritarismo (a favor da “sociedade civil”) dos intelectuais educados através da leitura de O Capital. Não fosse o autoritarismo - perguntou Glauber Rocha em 1974 - o governo de Castelo Branco seria engolido numa boa pelos intelectuais antijanguistas de São Paulo? A teoria do autoritarismo, sob a bênção de Dom Evaristo Arns, reduz o imperialismo a um eufemismo chamado “dependência”, assim como atribui gnose à burguesia industrial de São Paulo, que se dá bem no papel de testa de ferro do Primeiro Mundo. Ainda que sem intenção de polemizar com seus coleguinhas, escreve Daniel Pécault que depois da teoria da dependência “a ditadura se separa de suas origens: a memória da polarização de forças sob Goulart vai se apagando e assume o aspecto de expressão política da dependência. Se Daniel Pécault estiver correto, então temos diante de nós uma correspondência ideológica insólita, pois a “teoria da dependência - refratária à memória política de Jango - preparou o terreno para a modernidade de Fernando Collor. 205

Na comilança de gato por lebre que caracteriza a fábrica de notoriedade, Daniel Pécault refere-se ao artigo de 1970 escrito por José Serra e Conceição Tavares - o Além da Estagnação mostrando que haveria crescimento económico sob a ditadura. É a descoberta da pólvora! Conceição, a ex-amazona do PMDB, chora no vídeo do doutor Roberto Marinho defendendo João Manuel e Beluzzo por ocasião do Plano Cruzado. O tucano José Serra é o deputado federal mais votado de São Paulo, de modo que o funeral sociológico do janguismo cumpre a função de incompatibilizar Leonel Brizola com os paulistas, incompatibilidade que pode ter nascido com a Revolução de 30 de Getúlio Vargas, mas que cresce na estufa acadêmica da USP durante os anos 60, sendo mais tarde ventilada cotidianamente pelos “profissionais” da indústria cultural. Por mais louvável que seja a iniciativa de Daniel Pécault em realizar um trabalho sobre os intelectuais brasileiros (digo, paulistas pósM), falta em seu livro a questão subimperialista da intelectualidade aulista. Após 1964, o sistema intelectual brasileiro desloca-se do io de Janeiro para São Paulo, berço do “especialista” em ciências ,ociais e cioso de sua “neutralidade axiológica” - todavia, em 1969 ocorre a cassação dos 27 professores da USP. Recordo o comentário endiabrado do saudoso Cláudio Abramo, conhecedor profundo da vida intelectual paulistana, a respeito do fechamento de O Estadão durante o Estado Novo: Getúlio contribuiu para equilibrar as finanças do jornal... O mesmo seja dito em relação aos professores de ciências sociais da USP banidos pelos militares em 1969: a cassação caiu-lhes como luva machadiana, em termos de prestígio, carreira política e fama heroica. Sob esse ângulo, basta traçar uma homologia “estrutural” (palavra-chave da “teoria da dependência”) entre as obras dos ex-professores da USP e suas incursões parlamentares e palacianas durante a Nova República de José Sarney e o Brasil Novo de Fernando Collor. Resulta daí a indisposição dos historiadores das ciências sociais em relação a João Goulart e Leonel Brizola, os quais são classificados de “esquerda tradicional”, enquanto os participantes “especialistas” do Seminário de Marx (a chamada “galeria dos heróis da razão nensante”) aparecem como os modemizadores catecúmenos da sociologia que lutaram pela redemocratização do país. 206

Buchada de Bode Raitéqui.

A indústria no Brasil não eliminou o coronelismo, tanto na roça quanto na urbis. Capitanias hereditárias, sesmarias, engenhos. Voto de cabresto. Bico de pena. Hoje em dia vivemos a fraude informática. De Adhemar de Barros, passando por Jânio Quadros, até ACM, o velho coronel se adapta ao atual estágio eletrónico, operando a metamorfose no interior da oligarquia: da colónia à telenovela videofinanceira. A essência da superestrutura política da sociedade brasileira na década de 90 é o neocoronelismo eletrónico. O coronel justa­ põe a indústria eletroinformática do capitalismo contemporâneo mundial à estrutura social de cada região, de modo que os donatários da indústria cultural convertem-se em agentes das plantations audiovisuais. São as tais redes de produção simbóli­ ca que fazem a cabeça do eleitorado urbano e rurícola. Não es­ panta que os coronéis rentistas do PFL nordestino sejam a van­ guarda do capitalismo videofinanceiro. 1994. A campanha de FHC à Presidência da República foi feita com buchada de bode raitéqui. Em suas andanças pelo Nordeste, FHC é acompanhado pelo coronel ACM, o peagadê da política pós-64, ou seja, o agente do videofinanzkapital, 1996. Os sucessivos escândalos financeiros do governo FHC testemunham que a superestrutura ideológica é a infra-estrutura economica; daí a fusão da TV com o Banco, mediatizada pela figura do coronel, o líder da jagunçada do PFL. Quase todos os políticos da classe dominante (ACM, Collor, Jereissati, etc) representam interesses sesmeiros do capital videofinanceiro. A base material do neocoronelismo são as sucursais hereditárias da TV Globo, que é responsável pelas idéias dominantes da sociedade brasileira. Nesse contexto eleitoral em que permanece metamorfoseado eletronicamente o antigo ethos oligárquico do coronel, a democracia é a expressão do PFL, que representa a um só tempo os capitalistas rentistas do Nordeste e os interesses do ultramoderno setor videofinanceiro. 207

O historiador Nelson Werneck Sodré, tão maltratado pelos gênios da USP, é um dos autores fundamentais à compreensão do estágio videofinanceiro do capitalismo no Brasil. “Chegamos tarde ao capitalismo e cedo ao primado do capital financeiro”. Aí está retratada a essência da simbiose da TV com o banco. A TV do capitalismo videofinanceiro é o “gigante dos pés de barro”, segundo o general Andrada Serpa; acontece no entanto que a Rede Globo espelha o moderno desenvolvimento da sociedade brasileira nos últimos 30 anos. A propósito da mídia eletrónica e de seu efeito desastroso em nossa história, Nelson Werneck Sodré já chamou a atenção para a cruzada reacionária da imprensa, que sempre imitou a imprensa norte-americana nas crises de 1954 e 1964. Até hoje a grande imprensa é adversária do nacionalismo. Nenhum dono de jornal tolera ouvir o nome de Getúlio Vargas, o qual teve de lidar com gente esperta e malandra como Xatô e Samuel Wainer. A imprensa foi contra a campanha O Petróleo é Nossoy assim como todos os proprietários de jornal ajudaram a derrubar João Goulart em 1964. Evidentemente depois da videoditadura de 64 ficou cada vez mais difícil fazer uma reforma agrária na indústria cultural. Em plena orgia das privatizações, durante os primeiros 12 meses do governo FHC, a TV dominante não está interessada em desestatizar-se; ela continua desde 1995 um aparelho eletrónico atrelado ao poder do Estado. Em 1954 o petróleo era o sangue de Vargas. O imperialismo norte-americano nunca lhe perdoou o monopólio estatal do Petróleo. Dez anos depois os militares deram um golpe de Estado, de que resultou a implantação do monopólio televisivo na sociedade brasileira. Na década de 90 a TV Globo se orgulha de ter um poder maior do que o Exército. A estabilidade do governo depende do capricho da TV. É o caso da ascensão e queda de Fernando Collor, cujo percurso seria inimaginável sem a base eletrónica da política, consagrando pela primeira vez na história do Brasil o estilo pop de dominação. A autocrítica feita por Collor depois da armaçao de seu impiti foi cómica, sobretudo porque abraçou a bandeira nacional. PC 208

Farias mostrou que o Estado não é público, e sim privado. Até hoje Fernando Collor não deu uma interpretação política razoavelmente satisfatória de sua dançada como presidente da República. Sua autocrítica é choramingueira psicológica, vítima do voluntarismo, falta de humildade ou decorrência do péssimo relacionamento com o Congresso; todavia Collor não responde o essencial: por que deixou ele de ser instrumento confiável do neoliberalismo? Por que deixou de sê-lo? A base eletrónica da política é o componente essencial do capitalismo monopolista da indústria cultural, embora nas análises da sociedade brasileira a presença do imperialismo tenha desaparecido. É por isso que a TV dominante aparece como veículo autónomo em relação aos interesses das multinacionais e dos países ricos. Austeridade. Economia de mercado. Modernidade. As palavras de ordem de Collor são as mesmas de Itamar e FHC, portanto não é somente na superestrutura ideológica televisiva que permanecem os efeitos do golpe de 64. A mensagem contida na superestrutura ideológica da sociedade brasileira depois de 1964 é extirpar qualquer veleidade de autonomia. Com FHC no poder o imperialismo não precisa apelar para o dispositivo institucional da ditadura para fazer do Brasil gato e sapato. O Exército é convertido em capitão da favela, enquanto a segurança nacional pertence ao comando dos Estados Unidos.

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1994: Tropicália no Poder

—“Não fale em Cristo. - Cristo, não! - Não fale em Cristo!” O burocrata representante do FMI não suporta ouvir falar em Cristo. Segundo Glauber, A Idade da Terra, no Brasil não há mito mais importante do que Cristo. Mas o que é hoje, na sociedade brasileira, o Anti-Cristo? O nacionalismo carece de Jesus Cristo mais do que imagina nossa vã filosofia. Se não houver a mística persuasão com a Bíblia, dificilmente o povo brasileiro irá se comover com a defesa do património nacional. Petrobrás. Vale do Rio Doce. O imperialismo não está nem aí para aparecimento de líder sindical. Por exemplo: Luiz Inácio Lula da Silva não mete medo em ninguém no Pentágono; tampouco o marxismo-leninismo exerce qualquer tipo de ameaça ou de temor ao FMI. O verdadeiro perigo é pintar no pedaço um nacionalismo messiânico na pele de um Antônio Conselheiro. Burrice da esquerda é deixar o monopólio do sagrado nas mãos argentárias do bispo Edir Macedo. Isso porque Jesus Cristo não está fora da economia política, embora conste que não entendesse de finanças. Por que não uma moeda chamada Cristo? Por que não um plano Cristo? O sociólogo FHC substituiu Cristo pela moeda real. A grande falha da sociologia do desenvolvimento de Celso Furtado foi não incluir Jesus Cristo na questão nacional. Acontece 211

porém que Jesus Cristo começou com uma questão nacional: Cananéia. Então por que não o apelo nacional ao Divino Espírito Santo? Por que não Jesus Cristo delegado do nacionalismo brasileiro? Por que não incorporar ao conceito de soberania nacional a dimensão sociomística? Por que não sincretizar a bioenergética de Bautista Vidal com a loucura da cruz em Glauber Rocha? Até os bispos católicos já perceberam que o catolicismo perde espaço quanto mais aumenta a desnacionalização do país, assim como a Igreja também já atinou que a telenovela é o principal inimigo da Bíblia. De Cruz na Praça à Idade da Terra. Glauber Rocha foi o artista gênio do povo que colocou o Brasil na Bíblia e, em seu último filme rodado em Brasília (1980), tirou Cristo da cruz. Sua teologia popular nacional é humanização divina da pátria através da música de Heitor Villa Lobos, o maestro orfeônico de Getúlio Vargas. A Idade da Terra é o único filme com estética Terceiro Mundo, ou seja: a tentativa de mostrar aos brasileiros a utopia do novo mundo, ainda que através do recado irónico: a história começou na Grécia e acabou nos Estados Unidos... O Cristo amoroso glauberiano, que supera o martírio masoquista da cruz, é do Terceiro Mundo. E mais: trata-se de um Cristo que não almeja mudar de mundo, do Terceiro para o Primeiro Mundo. De Fernando Collor a FHC é a modernidade reflexa que acena ilusoriamente com a possibilidade do Brasil deixar de ser Terceiro Mundo. Fernando Collor e FHC se amam porque se equivalem: em ambos a noção de Terceiro Mundo se reduz à miséria material e ao complexo psicológico de inferioridade, enquanto em Glauber Rocha o Terceiro Mundo - essa magnífica criação geopolítica de Getúlio Vargas - é a simbiose da estética com a mística. Ou Deus ou nada. Terceiro Mundo é Cristo fora da cruz. Segundo Glauber, o Cristo do Terceiro Mundo mora no eu cósmico, de modo que o Terceiro Mundo não é redutível ao esquemão sociológico do Cebrap Ford Foundation. Do cineasta Glauber Rocha ao coitus interruptus de Fernando Collor FHC é o príncipe sem Cristo, dependente, atrelado ao dólar. Tanto faz Fernando I ou Fernando II. O salamaleque topofóbico que os caracteriza é de natureza sexual, como se em ambos o desejo

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estivesse íora daqui. A libido exógena começa dentro de um boeing. Em ambos a volúpia cosmopolita recusa a cópula, plena e integral, com a terra brasileira. Nesse sentido o modesto Itamar Franco não foi diferente, embora tivesse sido prisioneiro do cerco puritano da Fiesp paulista que o impediu de exercer o nobre esporte sexual como o presidente da República, de que resultou a alegoria da calcinha no sambódromo de Darcy Ribeiro. A tendência antiterceiromundista de FHC prende-o ainda mais aos limites eróticos das ciências sociais da USP, tão marcadamente influenciado pelo nevrosíaco Arthur Gianotti. A besta-fera da grana ocupa um espaço enorme no congá profano de FHC, que parece obsessivamente atormentado em livrar-se da pecha de caipira e provinciano. A hipertrofia laica do fator monetário torna-se um fetichismo em seu governo anticarismático. Para além do ateísmo weberiano de FHC, o problema é que sem o dom da graça o Brasil está na desgraça. É arriscado eliminar o carisma da liderança política em função de um crédito depositado exclusivamente na moeda. O ex-petista Weffort nunca foi nacionalista em seu ódio a Getúlio Vargas, portanto nunca viajou em Aleijadinho, José de Alencar, Vi 1 la Lobos, Oscar Niemeyer, Glauber Rocha e Darcy Ribeiro.Em Weffort o intelectual petista (com mania do universal) é a classe social que ganha primazia sob a nação e, nas duas últimas décadas, ninguém aguenta mais ouvir falar de cidadania e democracia. O ministro da cultura faz carreira identificando nacionalismo com populismo, por conseguinte não admite que o Brasil esteja fadado a mudar a face do mundo: a cultura brasileira é apenas repercutora periférica dos núcleos cêntricos da civilização ocidental. O deslumbramento de Weffort por tudo aquilo que é internacional. O professor anti-estatizante e entusiasta da “sociedade civil”. A USP troca o folclore xangô de Roger Bastide pela sociedade de classes de Florestan Fernandes, o qual morreu sem nos legar nada sobre o nacionalismo de Getúlio Vargas a Leonel Brizola. O dândi Luciano Martins deu agora para prognosticar que a revivescência do nacionalismo na sociedade brasileira da década de 90 só poderá vingar com regime fascista. O sofist Luciano, é tragado junto com Celso Furtado pela Wall Street no restaurante Closeridililas de Paris.

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FHC é adversário do ensaio nas ciências humanas. Sua brilhante carreira na sociologia não significa que ele morra de amores pela profissão de professor universitário. Se não fosse presidente da República em 1994, ele seria esquecido mais depressa do que seus livros de sociologia, embora a análise de sua revolta contra o pai, duro e nacionalista, detecte alguma coisa sobre o seu entreguismo desvairado. FHC nunca esteve sob as ordens de mamãe, assim como Arthur Gianotti passou a mil léguas de distância do matriarcado de Pindorama. O paulista Cláudio Abramo dizia, no nosso andar do doutor Frias, que Oswald de Andrade dizia que a caverna de Platão não deixou o filósofo da USP entrar na cirandinha da cunhã indígena. A “macheza” dos intelectuais tucanos tem mais a ver com o modernismo de Mario de Andrade, mas seguramente não tem afinidade alguma com as amazonas de Darcy Ribeiro. O presidente FHC repete a síndrome do mameluco ou do mulato que assassina o ventre da mãe indígena para ser reconhecido pelo gerente das multinacionais. Discípulo de Paulo Emílio Salles Gomes e Antonio Cândido, o crítico Ismail Xavier não chega a pontuar nas Alegorias do Subdesenvolvimento (1993) a questão do nacionalismo, que é a raiz da estética da fome e do sonho. Aliás, Glauber Rocha disse muito bem:” Cinema Novo c 'est moi”! A crítica que privilegia o procedimento alegórico está sempre indisposta com Getúlio Vargas, associando-o de modo pejorativo ao folclore da roça, enquanto a inteligência urbana moderna viajaria nas ruinas alegóricas colhidas por Roberto Schwarz no jardim de Lukács e Walter Benjamim. Ora, acontece que o cinema glauberiano é o Terceiro Mundo de Getúlio Vargas. A idéia de Terceiro Mundo começa com a Revolução de 30, ao passo que a tropicália é paródia de 22, os arlequins reformistas do soneto. Sonoridade da classe média remediada, a tropicália consagra a comédia como eixo da paródia anal e cafona, antes de ser curtida como expressão ágrafa da miséria do povo brasileiro. Nos últimos anos, de Sarney a FHC, a tendência dominante na cultura brasileira é considerar a colagem tropicália exemplo de lucidez, de saúde, de síntese, enfim, o moderno receituário de como se acanalhar no atual capitalismo cósmico, o 214

qual teria liquidado com as teleologias revolucionárias, utópicas e românticas, do nacionalismo brasileiro. A alegria pop da tropicália é a cortesã que se oferece ao mercado, o amavio erótico imperialista da televisão. Estilo e ideologia. O que venceu foi o riso cínico no enterro da quimera de Glauber Rocha: o cinema da heroicidade popular. O rebolado da tropicália se nutre do deboche em relação ao humanismo dos santos populares. A tropicália é o Antônio das Mortes odara, camp, empresarial, com o seu legítimo desejo pequeno burguês de querer to be happy no meio da pobreza generalizada. Este é o motivo de sua sedução junto aos estudantes e professores universitários. A tropicália chega ao poder com FHC em 1994. É impressionante a sedução que a MPB tem exercido nas universidades, principalmente em São Paulo, cí/yem que a tropicália é venerada. Isso evidentemente ganha fôlego depois de Glauber Rocha morto, pois antes, quando vivo, não apareceu a interpretação alegorizante do cinema brasileiro. O sincretismo eletrónico coloca São Paulo nas mãos de ACM, o mestre sensual da tropicália, o sonho acabou dos Beatles. A tropicália entra em êxtase com o enterro de Glauber Rocha no cemitério São João Batista. A crítica glauberiana ao popismo coloca no mesmo saco o modernismo e a contracultura, ideologias antinacionalistas que identificam Getúlio Vargas com o orfeônico autoritarismo pedagógico de Villa Lobos. Este disse também: “o folclore sou eu”. É a paixão pelo folclore villalobiano o motivo do renascimento de Getúlio Vargas no Cinema Novo. Em 1968, Câncer, filmado no Rio de Janeiro, Glauber mostra a violência internacional. Nesse filme sobre a ausência da contraviolência anticangerígena, Cristo é Getúlio, Antônio Conselheiro é Villa Lobos. Em 1968 Glauber Rocha navegava em direção oposta à onda popcontracultural, para quem o nacionalismo terceiromundista de Getúlio Vargas era identificado ao fim do mundo. Sob a paródia da tropicália o que pulsava era o neomazombismo colonial: o desapreço pelo Terceiro Mundo. Resulta daí a fofoca sacana que acusa o cinema glauberiano de autoflagelação. O mártir da fome e da miséria do povo. Um mártir sério, sisudo, grave, solene, edificante profeta. Superego estético do subjetivismo e do formalismo

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irresponsáveis, sobretudo diante dos inimigos externos do país. Em 1968, aos 27 anos, de Rimbaud do Cinema Novo, Glauber passa a ser considerado o avô de São Jorge, o santo megalomártir, o triste cavaleiro andante da revolução socialista, o ogum mórbido da dialética materialista. A tropicália contracultural popista suga esteticamente o sangue do cinema para provar que não há mais santo guerreiro na cultura urbana da década de 70. Nesta estética do pseudo vale tudo anárquico, o julgamento histórico carece de significação moral. A paródia desfronterizada da tropicália é associada ao sexo juvenil liberado, enquanto Glauber é a senzala idealizadora do Terceiro Mundo. A tropicália é a estética jovem (precursora do Collor “candidato jovem”) que converte o folclore do Cinema Novo em cultura do avô rural, quando na verdade Glauber Rocha é vítima de um complô ideológico antinacionalista. A tropicália acaba por dissociar a ques­ tão estética da questão nacional, ainda que não formule coisa algu­ ma sobre a obsolescência do nacionalismo glauberiano. O máximo a que se chega, com base no desfecho do poeta concretista em Terra em Transe, é insinuar que a estética nacionalista é uma al­ ternativa autofágica ou suicida. Curiosamente o Cinema Novo lança a maldição sobre o destino medíocre de uma arte no Brasil sem ambição nacionalista, que no cinema atual é a linguagem subalterna à sonoridade da MPBxéu, genocídio social antevisto no filme Cabeças Cortadas (1970). A salada pop contracultural da tropicália é a paródia de seu próprio cinismo, cujo leão-de-chácara não faz senão gozar a miséria do povo. Estética janízara. O artista é o bacana narciso que opera bem com a técnica, mas o povo é feio, grosso, arcaico, inculto, gordo, violento. Com essa justaposição superficial, típica do mulato iupi e do mameluco parvenu, a cultura popular é reduzida a um kitsch da indústria cultural, embora a tropicália tenha da expansão moderna da TV uma visão reacionária: a culpa é do povo. O que vemos hoje, quase 30 anos depois, é a preguiçosa sociologia do desenvolvimento (a concepção dos Dois Brasis de Jacques Lambert) ser utilizada pela crítica paulista à compreensão do cinema glauberiano, através do binómio simplista entre o “nrmiro” e o “moderno”, binómio que comete o equívoco de 216

conceber o folclore (e a inteligência glauberiana) como sinónimo de raízes rurais: o cinema boiada. Desse equívoco com a antinomia entre o urbano e o rural decorre a identificação do folclore com a “pobreza” nos filmes de Glauber Rocha, o cineasta maotzetunguiano atropelado pelo desenvolvimento do supermercado. Embalada pela colagem da tropicália automobilística, em cuja sonoridade encontrarse-ia a suposta “síntese” do arcaico com o moderno, a crítica uspiana considera Glauber Rocha um nefelibata do sertão, um mistificador da moralidade revolucionária sertaneja, um obsecado passadista para quem o locus do sertão é a fonte da dignidade, o verdadeiro Brasil face à modernidade alienada. A desqualificação rurícola de Glauber Rocha se faz acompanhar da paparicação jubilosa pelo compositor da MPBxéu que canta a baby fatal diante da banca de revista, degustando hot dog na avenida São João com radinho de pilha na orelha, se preparando para defender tese nas letras da USP sob orientação de Antonio Cândido. A crítica na década de 80 que se vale da tropicália para classificar levianamente Glauber Rocha como um cineasta “arcaico nunca se pergunta se tal ou qual filme de Jean-Luc Godard é urbano ou rural. Glauber Rocha não é perdoado por ter excluído do filmeA Idade da Terra a cidade de São Paulo, a capital industrial do país, o que seria uma demonstração a mais de sua recusa diante da modernização, como se o folclore fosse o ontem da sociedade brasileira. Nesta leitura acadêmica do cinema glauberiano, a perfídia não deixa no entanto de revelar a feição exógena: São Paulo depois de 1964 é a vanguarda neocolonizadora dos Brasis pobres, não obstante a origem roceira dos aedos eletrónicos da tropicália, os quais encontram na Paulicéia do Mario de Andrade reconhecimento unânime na USP, na mídia, na poesia e no poder. Para manter vivo e lucrativo o totém de São Paulo (a tropicália como dissonância), é mister situar o cinema de Glauber Rocha na esfera do atraso: o cinema sacralizador das tradições respeitosas. Assim, a crítica cinematográfica uspiana incorpora o procedimento da tropicália, apresentando o cineasta como um devoto conformista de Antônio Conselheiro, de Lampião e de Getúlio Vargas, ao passo que a MPB seria a ruptura libertária ou o estilhaçamento bemhumorado das tradições artesanais da cultura popular. Nesta

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inversão surge o elogio da perda da inocência a favor da entrega prostituída ao fetichismo da mercadoria. Glauber Rocha é condenado por defender a idéia de que não há povo sem líder, assim como a transa roqueira da tropicália ridiculariza o artista como herói revolucionário, substituindo Che Guevara por Regina Casé ou Xuxa. A tropicália é o cabotinismo de Oswald de Andrade - só que o Oswald de Andrade sem marxismo e sem Getúlio Vargas, ou seja, o sincretismo do PT com PSDB. A tropicália faz a queimação dos santos populares com o objetivo de abrir conta no City Bank Com a ditadura da indústria cultural de 1980 o professor universitário encontra-se cada vez mais seduzido pela música popular nascida na casa de Tia Ciata em 1917. Da orgíaca tia Ciata à filósofa Marilena Chauí da USP é um longo percurso que inclui o modernismo da Semana de 22 e a ambiguidade de Mario de Andrade em relação ao folclore, o qual é menos vivido do que atrelado à razão ilustrada. Em Mario de Andrade a boca do banquete é modernista, portanto a sabedoria do povo aí não aparece como Espírito Santo, o que propicia a crítica universitária incorrer no equívoco de separar o folclore (identificado erroneamente com coisa rural) da cultura popular urbana. A mistificação universitária da tropicália como alegoria estética mais importante da década de 60 pressupõe a separação do folclore (careta e assexuado) do samba popular urbano do rádio. Para erguer a conta bancária do pastor Caetano Veloso, a crítica literária uspiana esculhamba Vi 1 la Lobos, Getúlio Vargas e Glauber Rocha como representantes do nacionalismo autoritário e paternalista, adversários da música popular comercial. O que causa espanto nesta dialética da malandragem uspiana é que a tropicália (embora badalada em mil teses universitárias) nutre o maior desprezo pelo professor, como se a esfera da didática fosse a castração do sexo e do amor. Luis da Camara Cascudo dizia que Mario de Andrade tinha horror de ser chamado de professor. Não por acaso Mario de Andrade é retomado pela tropicália da USP para se indispor contra o Estado de Villa e Vargas na década de 30 Nessa oposição à virilidade estética do folclore não há afeição mulherófila- a sonoridade da tropicália é misógina. O que há em suas agudas oblações é a desqualificação anímico-espiritual da 218

xoxota, rispidamente tratada coino a baby importada de Bob Dylan, isto é, a fêmea serpente da indústria cultural globalizada. Glauber Rocha denunciou o faz-de-conta sexodrogadito da tropicália como estratégia para conquistar a juventude consumidora da mercadoria fonográfica, cuja publicidade está de olho ciclone no ânus auri sacra fames. Por ter bolado o conceito de assassinato cultural, Glauber Rocha foi considerado o morto-vivo da contemporaneidade brasileira. O thanatos do kinema. Este Zumbi do nacionalismo é vencido pelo mercado da música popular que chega ao Palácio da Alvorada em 1994. FHC é a consagração da Chiquita bacana weberiana quando coloca no pulso a pulseirinha do Senhor do Bonfim. É a irresponsável alegria-alegria do sócio do imperialismo ou o viva a Bahia ya-yá-yo-yô.

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12 Sem Terra e com TV

médium em nosso tempo é o olho clip. 0 ritmo pop. A acús­ tica planetária. A videouniversalidade capitalista engendra um novo ramo do saber: midiologia. Regis Debray considera Jesus Cristo o primeiro mass media. Debray é discípulo de Jean-Luc Godard quando alude aos “ruídos dos olhos “. Na França a videoesfera começa em 1968. O adeus à visão de mundo tipográfica. Revolução é um conceito pré-televisivo. A burguesia está em casa. A TV nasce americana: as idéias dominantes de uma sociedade são os sons e as imagens da TV dominante. Regis Debray cita em seu curso de midiologia Canudos e Glauber Rocha. Do imperialismo audiovisual. No Brasil a videoesfera começa em 1965, um ano depois do golpe meia quatro. A TV em cores data de 1970. A logoesfera é o folclore de Luis da Câmara Cascudo, mas este já se encontrava surdo no Rio Grande do Norte quando se instalou o sistema televisivo. O mestre Cascudo achava a cabeça do povo impermeável ao fluxo determinante da mídia, enquanto a Estética da Fome (1965) denunciava:o audiovisual é a nova droga popular. São 30 anos de videocracia como metamorfose de Roliudi. A vitória da TV é a derrota do marxismo. Com o detalhe apontado por Darcy Ribeiro: nós pulamos a grafoesfera porque a TV substituiu a escola. A telenovela derrotou

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o Cieps. A TV triturou o cinema com a ajuda da ditadura de 1964, não obstante a criação da Embrafilme em 1969. Para usar a tipologia de Regis Debray: nós passamos direto da logoesfera para a videoesfera. Chegamos cedo ao capital finan­ ceiro. Com Fernando Collor em 1989 é a prova de que sonhamos com a TV star. É menos pelo d dólar do que pela tela que a metrópole hipnotiza a colónia através do seriado soap clip. A passagem do cinema para a televisão se faz entre nós com a interrupção do processo democrático. Midiologicamente falando, o olhar roliudiano engendra 64, o qual por sua vez instaura o médium da videoesfera desde 1965, ou seja, a supremacia do capital financeiro: a moeda em troca de moeda. Nesse processo a razão se dá a quem venceu o Exército: a TV Globo. A governabilidade depende do audiovisual. A moeda é a imagem da TV. De Collor a FHC. A TV é quem faz o príncipe da telemoeda. Segundo Regis Debray: “um país pobre pode ter bons poetas, bons romancistas e até mesmo um bom jornal; mas não pode ter uma boa televisão. E ainda menos um cinema competitivo”. É verdade: nem cinema, quanto mais cinema competitivo. Difícil afirmar que temos bom jornal; todavia se diz por aí, e até no exterior, que a TV Globo é uma das melhores do mundo, sobretudo por causa da telenovela consolidadora da superestrutura videoesfera, a qual assumirá entre nós função neocolonial com influência decisiva na mentalidade eleitoral. Segundo Debray, não há televisão nacional. Aqui se impõe, como nenhum outro domínio, a escala planetária. Na guerra do Vietnã os boys americanos lutaram com rock and roll na orelha, enquanto na guerra do Golfo os boys ouviam rap, o mesmo rap reproduzido pela rapaziada da Baixada Fluminense. Debray fala em videoguerra. Guerra invisível que não deixa vestígios. Desaparece o nexo causal das coisas. Para a mentalidade videoclipe, não há relação de causa e efeito entre telenovela e resultado das eleições. Acontece todavia que a telenovela foi a cocaína de Fernando Collor em 1989, o último homem público que correspondeu ao padrão estético e sexual da indústria cultural, tanto que bastou um primeiro encontro seu com o doutor Roberto Marinho 222

para irromper o amor à primeira vista, amor que não se repetiria na mesma intensidade com o coroa FHC em 1994. Nesta preferência da mídia pesa muito a questão da juventude, conforme pode testemunhar o cirurgião plástico Pitangui a respeito da moderna superstição do rosto na política. Talvez tenha sido a contragosto que a minisérie da TV resolveu impichar Collor, pois este representava a telenovela, enquanto a candidatura FHC em 1994 estava em transição para o parâmetro audiovisual da TV. Fernando Collor nunca foi professor universitário, nem consta que tivesse sido devoto do educador Anísio Teixeira, ainda que aceitasse o programa do Ciacs quando presidente da República. A videoesfera é Collor, ao passo que FHC é a expressão grafosociológica de sua juventude escriba. Evidentemente são vasos comunicantes que se interligam entre um e outro modelo midiático, mas é sintomático que, retornando de viagem da França, FHC declare em 1996 sentir-se compelido a ir pousar diante da TV como ator para exercer a demagogia, posto que a coisa pública tornou-se show-business, “placar de resultados”, em que a astúcia de governar passa pela imagem eletrónica. Quer se trate do Collor telegênico, ou do FHC carente de atributos cênicos, o fato inquestionável é que a ditadura de 64 sem alterar a condição analfabeta do país - redimensiona-a sob o fluxo videofinanceiro, em que a TV (substituindo a escola) transformar-se-ia em principal agente de aculturação da massa da população. Os políticos ficam de olho nos dividendos eleitorais da TV. As camadas sociais desfavorecidas perdem sua originária cultura rústica ou folclórica ao entrarem em contato com o arsenal televisivo. O papatudo da Xuxa engole o Sacy Pererê. E, com isso, se esvai a experiência oralmente transmitida pelas camadas populares, portanto a herança do folclore é desfeita ou aculturada sob o prisma videofinanceiro. Assim, a favela ganha mais um atributo: o de favela tela quente, servindo-se de palco pop éxoíique para MaicoJequisô e Madona. O midiólogo Glauber Rocha já havia dito: íelevision or not television that'ts the question.Em 1989 Fernando Collor inaugura o moderno “bios” político de massa, através da seguinte estratégia cínico-pragmática: o que é publicado em jornais não tem tanta

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importância, porque o povão - a maioria dos eleitores - contempla o mundo através da TV. No início da década de 80, José Guilherme Merquior acusou o papel deseducador da MPB na sociedade brasileira. Infelizmente a oposição ao governo FHC fala da necessidade de uma CPI do banco, mas não inclui nessa CPI a acústica da superestrutura ideológica do capitalismo videofinanceiro. A MPB é o ouvido do banco, assim como a telenovela é o capital volátil da especulação financeira. Torno a enfatizar a importância do nível fónico da mídia. Debray referese ao “midio-ritmo” e pergunta: “Não será que o ritmo se tornou o principal agente federador das juventudes e das culturas no mundo?“ Sobre a predominância do auditus, lembremo-nos de que a MPB é um ingrediente da indústria cultural que investe na separação entre o folclore e o popular, assim como se opõe ao espírito musical nacionalista materializado na Revolução de 30 com a estética de Vil la Lobos, o compositor do folclore responsável pelo aparecimento do Cinema Novo de Glauber Rocha no início da década de 60. Esta tradição do folclore foi corroída por outro tipo de sensibilidade que informa a MPB: o internacionalismo pop, em que não há espaço para Villa Lobos e Luis da Câmara Cascudo. O crítico José Guilherme Merquior percebeu que a sensibilidade da MPB não tolerava nem escola nem professor. Na década de 60 a tropicália é droup-out. No Brasil dos últimos 30 anos a repressão à letra e à escola surge como consequência da configuração do sistema televisivo: o médium faz a política. Sem escola, a cultura fónica da MPB é de direita. Esta política é coerente com a oligarquia internacional do dinheiro: hot money e videoesfera caminham juntos no combate à alfabetização do povo brasileiro, o qual permanece condenado à ruidocracia ágrafa. Este combate desigual pode ser observado politicamente através da batalha da TV Globo contra a escola Ciep, de modo que a oralidade videofinanceira mantém sob controle ideológico o substrato analfabeto popular. Na hora de votar o povo se encanta com os produtos da TV e da MPB. Desde a telenovela de Collor em 1989 até a moeda de FHC em 1994, a urna não tem senão consagrado o veredictum da mídia. Nesse sentido o governo de FHC é um instrumento dos interesses económicos da VIdeoesfera 224

globalizada, a qual comanda a erosão internacionalizante do território e a dilapidação do património público. A substituição do cinema pela TV agrava a situação das esquerdas em busca de uma linguagem adequada ao nosso tempo. Isso porque os adeptos e militantes da educação pela letra (o marxismo, segundo Regis Debray, é expressão da grafoesfera) encontram-se despreparados no manejo do médium audiovisual. A mídia do impresso está com os dias contados: os jornais do Rio e São Paulo funcionam cada vez mais como apêndices de pesquisa de opinião pública, abdicando assim das notícias. Um jornalismo sem/iewj. Sob o domínio cósmico da TV, tanto os partidos políticos quanto os jornais dançam. É por isso que cabe aventar a hipótese surrealista dos donos de jornais (aqueles que não são proprietários de TV) fazerem aliança com os adversários históricos da mídia eletrónica. Divertido seria imaginar o jovem Octávio Frias Filho (acossado pelo desenvolvimento tecnológico da telemática) de mãos dadas com Leonel Brizola. ou senão dirigindo programa de auditório. A relação da mídia com a política é o mais importante assunto a ser discutido sobre o processo eleitoral, que apresenta determinadas regularidades desde 1989. Os partidos políticos de esquerda não atinam para o fato de que forma é significado. Regis Debray tem razão ao dizer que o crise do marxismo se deveu à irrupção da TV desde os anos 50. Roliudi {rock, soap, jeans, clip) venceu o socialismo. Eisenstein não foi aproveitado na União Soviética. Ilusão acreditar que haja mídia inocente: a superestrutura cinematográfica, dizia Glauber Rocha, é a infra-estrutura do imperialismo americano. Um médium sempre está em guerra contra outro médium. Por exemplo: TV contra escola. No tocante ao processo eleitoral, é sempre bom indagar de que maneira uma simples palavra marajá tornou-se acontecimento. Debalde, 15 anos antes, o cineasta Glauber Rocha cansou de alertar que uma telenovela no ar tinha mais persuassão política do que 500 comícios na Praça da Sé. O cineasta sublinhou a necessidade de pensar a história do Brasil de 1930 a 1980 sob o prisma das pictures midiáticas. Sob esse ângulo, o golpe de 64 é um golpe roliudiano para implantar a videocracia com capital nacional e tecnologias internacionais. O resultado é o seguinte: o médium TV torna-se-ia

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mais forle do que o Exército, sendo que este deu um golpe contra si mesmo, numa atitude autofágica decorrente da lamentável falta de cultura audiovisual dos militares. Ou seja: generais colonizados e negligentes em relação a uma política nacional de sons e imagens. O olho de Umberto Mauro e o ouvido de Vi 11a Lobos não fizeram tanto sucesso nas Forças Armadas quanto os galãs e síars do cinema americano. Durante o Estado Novo faltou um bom cineasta (por que não Lima Barreto?) para dirigir o Dip. Glauber Rocha se destaca por ser o único com interpretação positiva e simpática do Estado Novo. Antes de 1964, o liberalismo informava a área das comunicações com Dutra e JK; e, mesmo na época de Getúlio Vargas, não se cuidou de um Cinebrás, assim o trabalhismo de 30 até João Goulart fica desprovido de canal de comunicação. De 1964 a 1994 persiste - em nível muito mais profundo - o mesmo problema (a verdade que não persuade) com Leonel Brizola: a falta de uma estética trabalhista audiovisual. Este problema não é só de Leonel Brizola no programa eleitoral do TRE, tentando diferenciarse da visualidade de direita; a verdade é que não é fácil topar com gente entendida em som e lente que se insurja contra a videocracia contemporânea.

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13 A Alternativa da Biomassa Energética

professor J. W. Bautista Vida! da UnB é um lúcido cientista da biomassa tropical. A lamentável lacuna dos partidos de esquerda é carecer de uma política tecnológica e energética para o país tornar-se nação soberana. De que adiantou, é o que eu me pergunto, o ministro Francisco Weffort ter passado a vida inteira discorrendo sobre democracia? Democracia sem energia nacional é conversa de urubu com bode. Com FHC no poder estamos vivendo a morte da nação brasileira, ou seja: a pátria sem património e, conseqúentemente, um Brasil-mercado sem alma e, por fim, sem língua. Não por acaso o governo tucano é uma excrescência na profusão de má linguagem. Basta reparar a sintaxe sub-Simão Bacamarte de FHC, a anacolutia mameluca cafajeste de José Serra, o léxico pornô do Serjão Moita. É o que dá identificar a pátria com o fetiche do mercado e do dinheiro. Que governo feio! J -W. Bautista Vidal é baiano-galaico, a síntese do pensamento de Ortega e Unamuno: o gênio nacionalista da biotecnologia. Trata-se da maior autoridade mundial em solo, subsolo e biosfera. Cientista descolonizado que conhece tudo de energia. Energeia, Autor de um ensaio estupendo, O Esfacelamento da Nação (1994), a autópsia do estreguismo feagaceano à Dutra. É escondido

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pela mídia safada, enquanto o deputado verde Fernando Gabeira - a quem Glauber chamava de Gabéria - deita e rola nas páginas dos jornais, ostentando seu voto a favor da limousine do FMI. Ecólogo de butique, Fernando Gabeira em seu currículo político será lembrado por querer tacar fogo no filme Terra em Transe, e por ser o exu “candidato jovem” de tanguinha de croché derrotando Darcy Ribeiro, além de entregar o petróleo às multinacionais: o petróleo é vosso! Estou convencido de que o pensamento geo-energético de Bautista Vidal tornar-se-á força material e ideológica na batalha em defesa da soberania do Brasil. Isto por causa de sua lucidez científica e de seu fervor místico à Antônio Conselheiro. O recado do cientista é incisivo: agora é a hora e a vez da terra do sol. do maior país tropical do planeta, no momento em que o sol é o reator da economia política. O sol é a salvação tecnológica do Terceiro Mundo porque o ciclo industrial do Primeiro Mundo, baseado em combustíveis fósseis (petróleo e carvão mineral) encontra-se em processo de extinção. Diante desse quadro energético mundial, o único caminho a ser trilhado pelo Brasil é a alternativa da biomassa tropical úmida. Nossa fonte de energia está no uso tecnológico da mandioca, do bagaço de cana, da mamona, do coco de babaçu e do dendê. Com Bautista Vidal a ciência brasileira se descoloniza completamente, atingindo um patamar só comparável ao do Kinema, em que o Brasil começa onde a terra acaba. Nova economia política da energia. Temos de arrumar uma alternativa energética ao petróleo, senão nos converteremos em escravos neoliberais. Essa alternativa chama-se biomassa. As multinacionais dos países ricos, em aliança com os falsos brasileiros, oligarcas e tecnocratas, não querem que o Brasil se utilize da biomassa como estratégia tecnológica. O petróleo é uma energia não-renovável em vias de se acabar no mundo inteiro. Durante a próxima guerra entre as nações, por causa do petróleo, o Brasil poderia se dar bem com o aproveitamento tecnológico da biomassa energética, junto com a utilização da matéria-prima da terceira revolução industrial, a saber: o nióbio, o molibdênio, o tântalo, o titânio. Acontece todavia que se a biomassa

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é Deus na Terra do Sol, o governo neoliberal de FHC é o diabo inimigo de uma política tecnológica autónoma. FHC é a dependência automobilística à maneira de JK: a importação de petróleo para aumentar a dívida externa. A condição neocolonial do país continua com o rodoviarismo insano da gasolina cantada pela MPB. A Bossa Nova (1959) de Jobim e João Gilberto caminha numa direção oposta à biomassa sonora de VillaLobos. Musicalmente a Bossa Nova é a celebração internacionalizante dos produtos derivados do petróleo. Tristeza é constatar que o roteiro energético de Bautista Vidal está sendo barrado na prática pelos governos impatrióticos submetidos aos pacotes tecnológicos externos: caixas pretas e arsenal eletrónico obsoleto. E, o pior de tudo nesta tragédia: não há esperança de uma reação patriótica da parle da sociedade civil dirigida pela telenovela. A sociedade civil está doente, inepta, abúlica, abobalhada. A Igreja Católica não é nacionalista em termos de energia mística. Todas as Igrejas no Brasil são abstratamente universais. A única esperança volta-se para o Exército. Este é a única força organizada capaz de dar um basta na privatização multinacional e na internacionalização da Amazônia. O problema é que o plano diabólico do neoliberalismo não consiste senão em desmoralizar as Forças Armadas, convertendoas em caçadoras de traficantes de droga. Bautista Vidal está com 60 anos. Ele só poderá morrer aos 90, depois de liberar o povo brasileiro, cuidando da política energética anticolonialista. Afinal, se é possível, como ele diz, mudar as leis da termodinâmica, então ao Brasil caberá implementar a alternativa energética do Terceiro Mundo ao petróleo. Esta alternativa chamase biomassa, a cópula do sol com a água. Bautista Vidal é o Rimbaud da Física, cuja economia-política supera em estilo e gnose a de Celso Furtado. De uma simplicidade impressionante, humilde, desreprimido, desprovido de empáfia, Bautista é um baiano além de qualquer vinculação clânica, tanto que desceu o sarrafo na atitude burguesa e desnacionalizada dos compositores baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil. Aproveitei a ocasião para dizer que Chico Buarque é o Kissinger da Mpb. 229

- “Bautista Vidal, nosso Glauber tinha razão: o lance é Vi 1 la Lobos e o povo contra o resto." Ele concordou. Elaboramos juntos uma teoria energética sobre a MPB, cuja essência é a gasolina desde os anos 50: gasolina e automóvel. MPB é petróleo. Bossa Nova. Jovem Guarda. Tropicália. Culmina com o eros petrolífero dos Paralamas do Sucesso. Enquanto o eros da MPB Xéu é gasolina, Villa Lobos representa a sonoridade da biomassa. A música da biosfera. A sinfonia biótica. VillaLobos morre em 1959. A partir daí a MPB irá sabotá-lo para atrelar a música popular à gasolina, fazendo o jogo dos países ricos. Do ponto de vista energético, a MPB é entreguista. Com FHC em 1994 a tropicália chega ao poder: é o petróleo sem Petrobrás. VillaLobos é Gelúlio, Tom Jobim é Jotaká. Com a morte de Villa Lobos a audição neocolonial tomou conta do país através do culto aos sobas da MPB Xéu, perversamente comprometidos com a reprodução acústica do capitalismo videofinanceiro. Todos eles são cantadores da Globo Way of Life e produtores de um som carente de significado estético, em que é impossível distinguir a estridente cantoria da vida que leva o compositor na bajulação servil à oligarquia dominante. Glauber Rocha chamava Gilberto Gil de mico de circo da rede Globo. Eis que outro dia, entrevistado. Gilberto Gil declara: “ O Estado acabou". Essa sua frase é um primor de imbecilidade e oportunismo. Há 30 anos os jornalistas entrevistam esses compositores da gasolina como se fossem intelectuais, estudiosos, pesquisadores. Uma mistificação completa. O saudoso José Merquior estava certo quando disse que Caetano Veloso tinha raiva de quem estuda. É uma pena que Glauber Rocha tenha morrido sem ler os livros de Bautista Vidal, publicados a partir da década de 80, pois neles encontraria a científica fundamentação energética de suas formulações nacionalistas sobre o Terceiro Mundo. A Aids psicológica é denunciada por Bautista em seu ensaio O Esfacelamento da Nação (1994). Em 1995 a sociologia misógina no Palácio do Planalto existe para impedir a cópula da biomassa nos trópicos. A biotecnologia 230

de Bautista Vidal é o Gilberto Freyre da revolução termonuclear do ano 2000. Nesse contexto o petróleo surge como o sangue ruim inoculador: a vinda para cá das poluentes missangas industriais. O novo tratado de Methuem. A entrega da Vale do Rio Doce. José Serra nos prescreve a receita da depressão para patentear nosso espermatozóide. A economia de mercado torna descartável a ideia de soberania nacional. O ministro Francisco Weffort não se pergunta nunca qual é a estética do Plano Real, tendo em vista a falsa euforia que acompanhou o Plano Cruzado de José Sarney. É a semana de 22? Poesia concreta? Bossa nova? Tropicália? A contracultura? A estética tucana mistura neoliberalismo com economicismo marxista, em que se dá de comer ao povo cesta básica com música de Tom Jobim, ainda que isso não elimine a morbidez do Plano Real e os seus conceitos depressivos sobre o Brasil, incluindo aí o propósito de desmoralizar as Forças Armadas. E aqui reside o grande paradoxo da história contemporânea revelado pelo escrito Nelson Werneck Sodré: o golpe militar de 1964, encomendado pelo imperialismo norte-americano, visava destruir as Forças Armadas. Em 1964 o Exército foi usado pela reação antinacionalista, de que resultou uma ditadura impatriótica. Equívoco terrível o das Forças Armadas, irrecuperável talvez, pelo menos a curto prazo, responsável pelo abismo entre Exército e povo, fruto de um preconceito militar sobre o monopólio do patriotismo no Brasil. Em 1995 FHC aprofunda a política antinacionalista de 1964, embo­ ra Bautista Vidal escolha o ano de 1979 como marco cronológico importante: o momento em que ficou claro ao mundo que os países ricos precisam dos países pobres, sobretudo em função da escas­ sez do petróleo nos países ricos e sua substituição pela energia da biomassa nos países pobres. Bautista Vidal me contou que já havia conversado com alguns ministros cubanos sobre a política da biomassa em Cuba, se bem que ainda faltava conversar com Fidel Castro. Aproveitamos a ocasião para comentar o vexame neo-socialista do sociólogo Octávio lanni e sua globalização, mas na verdade silenciando sobre a

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trajetória de seu ex-parceiro sociólogo: o entreguismo energético e a doação da mais-valia vital aos países ricos. A palavra Brasil, reiteradamente pronunciada pelo presidente FHC, não convence como retórica: o governo tucano está imerso em conceitos depressivos sobre o país. O que realmente pesa na balança é o colonialismo renovado. FHC, o anti-Alberto Torres, erige os Estados Unidos como modelo e sócio. Segundo Alberto Torres, o colonialismo mórbido sempre pede “ ajuda” aos países ricos. O ex- presidente Itamar Franco deu as costas para Aleijadinho a fim de ser paparicado pela Fiesp. Ao privatizar a CSN, Itamar Franco profanou a tumba de Alberto Pasqualini, que foi o mito intelectual de sua juventude nacionalista Segundo J. W. Bautista Vidal, a renegociação da dívida externa está na base da criação do real. Ainda que não haja economicamente diferenças substanciais entre a gestão de Itamar (que vendeu a Usiminas pelo preço de um automóvel Gol usado) e FHC. Octávio lanni, ex-parceiro de FHC na USP, embarcou na onda da globalização da economia. Embora metodologicamente entusiasta do ponto de vista histórico, Octávio lanni não escreve uma sociologia com a história do Brasil na cabeça. Sua referência à globalização, da qual pretende extrair alguma coisa positiva - a “sociedade civil internacional” ou o “neo-socialismo” - está calcada na queda do muro de Berlim. O colapso do comunismo, o fim da guerra fria. E, nesse aspecto, Octávio lanni, à semelhança de outros medalhões da sociologia paulista, reproduz (consciente ou inconscientemente) a condição recolonizadora dos Brasis pobres. A sociologia dessa globalização deveria começar pelo doutor Fukuyama de Osasco, ou seja, através do ódio à história do Brasil, que avulta tanto em Weffort quanto em Roberto Campos, o ministro do plano de metas de Jotaká, sendo que nesses dois teóricos da globalização não existe a percepção de como a siderurgia de Volta Redonda produziu aço barato para a indústria automobilística de São Paulo vender automóvel caro e ruim. A sociologia da globalização é uma ideologia do neocolonialismo: entrega da nossa energia a outrem, isto é : o desejo de ser enrabado pelos vencedores da história. Nesse sentido a inteligência sociológica paulista oferece seu ânus para fora e, internamente, enfia o pau 232

colonizado! nos Brasis pobres, o que acaba por revelar simbolicamente a existência bissexual dessa sociologia: metade ativa e metade passiva. Sem querer abusar do trocadilho, estamos vivendo sob o signo da Kulturanal. Infelizmente Hélio Pelegrino não está mais neste mundo para fazer a psicanálise do poder e da cultura no Brasil. Eis o lema do Brasil na década de 90: tudo pelo neo-socioanal. Esta reprodução endogâmica da pecúnia é acompanhada por uma atitude simpática em relação a determinados valores da cultura popular, tais como o futebol, o carnaval, as crenças sincréticas. Nossa classe dominante cai no samba, entra em transe no candomblé, frequenta Senhor do Bonfim e pendura a figa no pescoço. Um dos méritos do escritor Oswald de Andrade foi tentar converter esses dualismos mestiços numa antropologia matriarcal, porém o que aconteceu com a vida espiritual depois de 1964 não fez senão acentuar a pulsão retensiva das nossas elites culturais. Origina-se da Bahia o paradigma dessa acumulação anal, que reafirma o mito Quibungo e sua insaciável bocarra papa-tudo, não obstante a dificuldade em identificar etnicamente a classe dominante baiana. Seria por exemplo ACM branco? Mulato? Cafuso? Mameluco?

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O Peagadê da Flórida

adicado em Miami depois do impiti de 1992, o ex-presidente Fernando Collor diz cobras e lagartos sobre Itamar Franco, o Silvério dos Reis. Malgrado ter sido o personagem mais envolvido no episódio do impiti - a principal vítima -, isso não confere a Colloi a condição de intérprete lúcido de seu próprio infortúnio político, tampouco seu depoimento necessariamente atinge o âmago do que aconteceu no país em 1992. Itamar no papel de Brutus de Collor não convence como sendo a causa do impiti; todavia resta a acusação de felonia, corpo mole, sonso, detraqué, arredio, nubívoco. Todas as conjecturas são possíveis em se tratando de um evento marcado pela anomalia e exceção, como é o caso do impiti realizado pela primeira vez na história, justamente por ocasião do primeiro presidente eleito, depois do prolongado jejum de 1964. Ninguém poderia antever a queda repentina e abrupta de Collor, embora a certa altura da campanha de 1989, Leonel Brizola tivesse levantado a hipótese da renúncia, cotejando Collor com Jânio Quadros. O golpe não faz parte da cultura de esquerda. As forças de direita (Veja, Globo ) fizeram a saga do “caçador de marajá”, investindo no fácies jovem e cheio de garra. Por mais frágil e inconsistente que seja a tentativa de autocrítica de Collor (político que não abdicou de seu futuro), ela nos remete à verdadeira questão: por onde se deve começar? Por que foi esco­ lhido pela direita e, em menos de dois anos, derrubado por quem o

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apoiou? Esta pergunta reporta-se às invectivas de Collor contra Itamar. Não é plausível que entre ambos tivesse ocorrido um idílio logo desfeito à medida que vieram à tona os deslizes éticos do tesoureiro PC Farias, dos quais o candidato a vice-presidente não poderia deixar de estar ciente, mercê de sua fama de probo, de nefelibata, de aluado, pois ninguém aceita participar de uma chapa presidencial desconhecendo as fontes de seu financiamento. Inge­ nuidade imaginar a existência de um hiato entre a campanha e o exercício do poder, além de supor que um político tarimbado como Itamar Franco pudesse embarcar como companheiro de viagem de Collor sem inquirir sobre o passado deste, o que nos leva a suspei­ tar que o ex-alcaide de Juiz de Fora pouco se incomodou com a inserção de Collor no esquema institucional da ditadura pós-64, mesmo porque Itamar Franco não se comoveu com a derrubada de João Goulart, malgrado sua fama juvenil de admirador do naciona­ lismo de Alberto Pasqualini, fama desprovida de qualquer susten­ tação concreta depois da privatização de Volta Redonda durante seu governo entreguista e neoliberal. Se a análise do governo-tampão de Itamar Franco for concebida além da enganosa aparência da moralidade, não há como negar sua continuidade em relação ao Collor antinacionalista, acrescentando contudo que Itamar Franco não teve o menor prurido em ceder a direção de seu governo aos interesses das multinacionais e seus apaniguados de São Paulo, culminando com a humilhação intelectual infligida a Minas Gerais como locus do caipirismo, defasado e anacrónico, diante das exigências da modernidade globalizada. Sob esse ângulo, o impiti de Collor teve como meta (sabendo da dúbia mineiridade de Itamar) colocar o poder da nação nas mãos das classes dominantes de São Paulo, em sua fase de transição do capitalismo industrial para o primado do capital financeiro, sob a égide dos gerentes multinacionais. O sociólogo FHC foi o grande beneficiado pelo impiti de Collor, tornando-se logo no início o manda-chuva do governo Itamar Franco, o qual topou o jogo em função de sua ingênita pusilanimidade, sendo incapaz de garantir a govcrncibilidudc sem submeter-se ao diktcik do FMI, e quiçá por uma esperteza realpolitik: a de largar o governo referendado por um plano monetário que lhe proporcionasse bom índice nas pesquisas de opinião pública. Disso o resultado foi a 236

acoplagem da mão de FHC à luva de Itamar. O honesto marasmo de Itamar salvo por um choque anti-inflacionário by Washington, em que FHC é o Ecce Homo. É incontestável a cumplicidade de Itamar e FHC, de modo que soa desconcertante a repulsa de Collor ao político de Juiz de Fora, na razão inversa de seu deslumbramento por FHC, em cujo governo a corrupção financeira converte PC Farias num Robin Hood das Alagoas. Assim, do ponto de vista psicológico, Collor acaba introjetando a punição por ter arranhado a moralidade, fornecendo direta ou indiretamente subsídios à problemática legitimidade dos governos de Itamar Franco e FHC. É patética a situação política de Collor. Não sabe até hoje por que caiu. E nós sabemos? Difícil acreditar que o impiti, pegando PC como bode expiatório, tenha sido decorrência do pedágio cobrado às grandes empreiteiras, ou que o governo Collor tivesse tomado medidas económicas que ferissem os interesses do empresariado paulista multinacionalizado. ou que enfrentasse a UDR terratenente e o todo poderoso FMI, ou que ensaiasse demolir o monopólio televisivo da Globo. A verdade é que durante os primeiros meses de seu governo nada disso ocorreu no plano concreto; mas houve o espectro de sua aproximação com o governador Leonel Brizola, através da Linha Vermelha no Rio de Janeiro e dos Ciacs, o que deve ter desencadeado um surto paranoico nos proprietários dos meios de comunicação, ou seja, o temor (difundido em escala internacional) de que Collor pudesse fazer de Leonel Brizola seu sucessor em 1994, embora reconheçamos que tal interpretação possa incorrer no vício de considerar o ex-governador do Rio de Janeiro a força motriz da história contemporânea do Brasil. Em todo caso, é extremamente lacunar a autocrítica de Collor, que nem sequer menciona os agentes do capitalismo videofinanceiro na deflagração de seu impiti, não obstante os carapintadas movidos pelo frenesi televisivo das minisséries. Diante do inegável marasmo do atual governo, cujo grande trunfo é a estabilização CTI da moeda, vem à tona o ostracismo de Fernando Collor e sua punição justa ou injusta. Eis que o próprio ex-presidente está convencido de que tem diante de si um verdadeiro desafio intelectual: o de explicar (para além das aparências

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enganosas e superficiais) o processo político que o levou a despencar do poder. Que se confronte por exemplo sua tumultuaria fragilidade com as mansas águas feagaceanas. Há muito mais mistérios sobre Collor do que deduz nossa vã e leviana sociologia sobre a falta de humildade no trato com o Congresso, tido como reduto de “marajás”; sua veleidade de montar empresa jornalística (incluindo rádio e TV) que iria romper o status quo da Rede Globo e Veja; a famigerada intervenção de PC Farias junto aos empresários e empreiteiros; sua aproximação com Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, através dos Ciacs, Eco, Linha Vermelha; o episódio endogâmico-crematístico do casal alagoano Thereza/ Pedro Collor; enfim, ainda não se conhece a interpretação totalizante (a verdade é o todo) acerca da retirada de Collor do poder. É lugar comum da psicanálise sublinhar que o êxito precoce antes prejudica do que favorece a pessoa. No caso de Collor é ter chegado ao poder sem cabelos brancos, irresponsável, jovem demais, carente de leitura dos clássicos da cultura brasileira, tanto que é visto como sintomático seu percurso do hedonismo do poder ao castigo jesuítico na biblioteca de seu pai, Arnon de Mello, que foi amigo do mestre Luis da Câmara Cascudo. Em síntese: à juventude de Collor contrapõe-se a maturidade de FHC, o intelectual das ciências sociais que ocupou o lugar do jovem culturalmente despreparado para dirigir a nação com estabilidade política. Todavia, psicologicamente, foi por causa do Collor ter chegado lá que FHC quis tornar-se presidente da República. As forças que o colocaram no poder são as mesmas que lhe deram o tombo fulminante. Collor nunca menciona o fator da ingerência externa para explicar seu infortúnio político. Homem viajado e afeito ao cosmopolitismo, o ex-presidente tem de seu afastamento político abordagem endógena: um acontecimento gerado intramuros. Sabor local. Esta sua versão coincide com a versão dos vencedores para quem o impeachement - ao invés de golpe político - foi um prodígio da nossa vocação ordeira e pacífica, exemplo espetacular de democracia. Arrancado do poder em curtíssimo espaço de tempo (menor do que o de João Goulart), graças ao plástico dispositivo de um Congresso sob a autoridade jurídica do doutor Paulo Brossard e ao embalo carapintada da/nass 238

media. A festa da cidadania. Revive-se o sentimento catártico e coletivo das Diretas já. Se tudo neste inundo tem causa, então há que se dar o nome apropriado à casca de banana que o fez cair do cavalo por ter recebido de presente um automóvel Fiat Elba, a partir do qual teria desencadeado o estranhíssimo ympyty, grafado assim com ipisilon tupiguarani. A vantagem da palavra impiti é que ela está em sintonia com a fonética falada do povo. De resto, a feia e grandona palavra inglesa - impeachement - ainda não foi assimilada pelo repertório linguístico popular, ao contrário do que milagrosamente sucedeu à palavra-talismã: marajá. De certo alguma coisa cómica há em torno da saga marajá, ainda que seu desfecho tenha sido dramático, sobretudo porque Collor atribui responsabilidade do impiti ao comportamento do vice Itamar Franco. O epílogo do impiti culmina com a fortuna maqueaveliana de FHC. O ponto fraco da democracia feagaceana é a punição eleitoral do politicamente banido Fernando Collor. Na abordagem de Collor sobre o impiti o fator externo e internacional nunca é levado em cogitação. Nesta abordagen seguramente não medra a “paranoia” imperialista, como se durante a complicada travessia institucional de Collor-Itamar o dragão do capitalismo globalizado tivesse recolhido suas patas, alheio e indiferente ao que estava acontecendo. A ênfase posta na abordagem de Collor se justifica porque seu futuro depende da interpretação que venha a produzir do processo que o alijou do poder. Dir-se-ia que, antes de qualquer outra coisa, é dessa interpretação (falsa ou verdadeira) que decorre a possibilidade de seu retorno à vida política nacional. Collor tem apenas 47 anos de idade. Não dá para imaginá-lo pendurando definitivamente as chuteiras ou cuidando das couves na Suíça. Todos se lembram de que FHC estava doidinho para ser ministro das Relações Exteriores de Collor, desejo esse realizado mais tarde com Itamar Franco. Já em 1993 FHC era o “legítimo” sucessor (escolhido aqui e alhures) do ex-presidente deposto por um impiti à maneira da velha UDN: a corrupção elevada a fator determinante da história do Brasil. De “herói” combatente contra a corrupção do governo Sarney, passou Collor a ser o vilão

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excomungado da corrupção, seguindo a trilha da americanização da política, onde o tema da moralidade tornar-se-ia inseparável da vida pública e privada. Em 1992 a voluntariosa personalidade do presidente da República hesitou politicamente entre dois diferentes tipos de interlocutores: de um lado, ACM e Roberto Marinho; de outro lado, Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Com certeza o primeiro interlocutor, já instalado no poder desde 64, não tolerou a possibilidade de um Collor seduzido pelos Cieps de Darcy e Brizola. O transe de Collor não poderia encaminhar-se nessa direção sob hipótese alguma. No momento crucial em que mais carecia de dispor do audiovisual para se defender, o presidente da República vacila em Brasília e não requisita a presença da TV com objetivo de preservar seu mandato até 1994. Hipótese irrespondível é conjecturar se a musa venal da reeleição iria ou não fasciná-lo agora tal qual o príncipe da sociologia; todavia o fato concreto é que uma das principais características sociológicas do governo da era Collor é a existência simultânea de Estado fraco e mídia forte. A TV convence a todos que Collor é um playboy curtidor no poder, ou o que dá no mesmo: nenhum segmento social vem a público protestar contra o afastamento do presidente da República. A mídia explorou o hedonismo exibicionista de seus fins de semana desportivos, contribuindo para a banalização de sua visibilidade. A necessidade intelectual que Collor deve estar agora sentindo na pele é a de elaborar a explicação de sua derrota política, a qual transcorreu sob a égide da ordem democrática e da lei, tendo como miolo as denúncias contra Paulo Cesar Farias, o tesoureiro nordestino de sua campanha eleitoral que agia empresarialmente de acordo com o comércio do dinheiro. Para a compreensão deste capitalismo financeiro, basta imaginar a seguinte justaposição cênica: o paulista Luiz Bresser Pereira no papel de diretor de Fernando Collor e o empresário Paulo Cesar Farias encarregado de administrar a campanha de FHC. Por aí se percebe que o julgamento moral do impiti é de natureza abstrata, pois tende a condenar o mesmo sintoma de carência pública do Estado: PC Farias é estigmatizado de apropriação privada da esfera estatal, todavia a privatização tucana do Estado é aplaudida como racionalidade

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idónea e competente. Em termos prosaicos, a explicação da atitude hostil do empresariado de São Paulo em relação a Collor incide na reação de um pedágio pecuniário cobrado por PC Farias, o qual oficialmente não pertencia no entanto ao quadro administrativo do governo. Autor de um livro sobre a “Modernidade Heróica” de Collor, o ministro Luiz Bresser Pereira sustenta a tese da impossibilidade de se governar o Brasil sem apoio do empresariado industrial de São Paulo, realçando assim o exdrúxulo acontecimento: Collor ter sido eleito no primeiro turno de 89 à revelia dos empresários paulistas. Assim, somente no segundo turno eleitoral, PC Farias teria tido contacto financeiro com os executivos nacionais e multinacionais de São Paulo. Este enfoque economicista de Bresser Pereira (deslocando o foco do Congresso para a burguesia paulista) está longe de apontar a causa política do impiti. A esse respeito vale cotejar a campanha de Collor concebida inade in Brasil, e a de FHC que nasceu internacionalizada, ou seja, de cabo a rabo sob o signo da globalização económica. O Consenso de Washington é a mediação entre o impiti de Collor e o Plano Real. Esta mediação é tida como a plataforma que bancou FHC, o candidato detentor (aos olhos do FMI) de maior taxa de confiabilidade, embora a política do governo Collor não tivesse esboçado qualquer sinal de veleidade anti-imperialista. Houve inegável descenso de qualidade no processo de legitimidade democrática durante a sucessão “parabólica” de Itamar Franco. A transição de Sarney a Collor foi menos viciada. O candidato Collor não contou com a máquina do governo Sarney, ao contrário do favorecimento vexatório de FHC, o qual saiu direto do Ministério da Fazenda para ocupar o cargo de presidente da República. Malgrado a inglória batalha de seus 5 anos no poder, José Sarney adverte sobre o perigo da “tentação totalitária” em FHC, cuja meta é conseguir a proeza da reeleição sem eleição, permanecendo na Presidência da República 10 anos, conforme o pacotaço do FMI. É bem provável que o desejo de FHC em tornar-se presidente da República tenha nascido no momento em que contemplou o rosto jovem de Collor no poder, como se o filho antecipasse o lugar do pai. Não obstante tal recorte oscarwildeano na área da telegenia havemos de convir que a juventude de Collor exerce fascínio nò

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meio político. A importância do rosto na atual videopolítica se mede pela cirurgia plástica rejuvenecedora tentada por FHC e Paulo Maluf, assim como deve preocupar a Cesar Maia sua cacogenia facial no ano 2002, onde será talvez tarde demais para dar o salto à Presidência da República no lugar do filho de ACM. O discurso da posse de Collor, escrito por José Guilherme Merquior, deixou FHC enlouquecido com vontade de brilhar, imaginando-se chanceler daquele primeiro governo eleito pelo povo desde João Goulart. Em 1992 FHC titubeou, logo no início, em concordar com a cabeça cortada de Collor, embora Leonel Brizola tenha sido mais eloquente na recusa do impiti, quiçá intuindo que isso não iria contribuir em coisa alguma para fortalecer nossa democracia. A reeleição de FHC, o novo golpe de 64, coloca em reexame o afastamento político de Collor, exigindo do Congresso Nacional a discussão sobre o ostracismo do ex-presidente. A anistia de Collor para a próxima eleição presidencial de 1998 é assunto tabu para a ambição continuista de FHC. Certamente a pretensão vitalícia de FHC provocará rompimento com Itamar Franco, se bem que rompimento tardio, teatral e inócuo. Em seu foro íntimo, prefere FHC o adversário Itamar Franco do que enfrentar Fernando Collor nas urnas.

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15 Fascismo Honoris Causa ou a Nêmesis de Itamar Franco

discurso de posse de Collor foi incomparavelmente superior ao de FHC porque ofereceu a caneta ao diplomata José Gui­ lherme Merquior. Pelo discurso de posse Já dava para antever que no governo FHC não haveria lugar para a filosofia da história, nem tampouco projeto histórico algum. Eis a dura verdade: para FHC, a linguagem brasileira nada significa em si mesma — a não ser quando reflete o esquema “universal” dos países ricos. Desde a década de 60 FHC tinha tesão pela dependência. Não foi senão por isso que ele foi escolhido para ser o paladino da globalização imperialista em 1994. FHC e Itamar Franco foram colegas no Senado: um por São Paulo, outro por Minas Gerais. Esta casa, o Senado, opera verdadeiros milagres, tanto que até então Itamar nunca houvera lido nenhum texto acadêmico produzido por FHC, assim como este também ignorava a existência do ex-prefeito da província de Juiz de Fora. Acontece rém um fato de extrema importância no ano de 1989: o convite para ser vice-presidente da República na chapa de Fernando Collor. Por sua vez, em 1992 Collor é impichado e Itamar assume a Presidência da República, o único homem na face da terra que chegou ao poder sem fazer o menor esforço. Tampouco a afinidade de Collor com Itamar deixa de aparecer como outro mistério, porque foi uma re|açao bastante efémera e surpreendente

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tanto que dois anos depois do impiti, Collor acusa publicamente seu vice-presidente da República. Nisso tudo há o curioso fato: Collor não precisou da ajuda de Itamar para alcançar o poder em 1989. Canseira na certa seria analisar o logos do imprevisível Itamar Franco, pois este é um político que não se preocupa em fazer auto-reflexão sobre o que está sendo, ou o que poderéí vir a ser no futuro. Sem querer abusar do chavão acerca da mineiridade, dir-se-ia um sonso do ponto de vista de seu desempenho na história, ou seja: mais uma manifestação psicológica da “dubiedade” típica das Minas Gerais. Quanto ao confronto entre um e outro, há que dialetizar a identidade que inclui a diferença e a diferença que inclui a identidade; pois, afinal, ambos se articularam numa mesma chapa e foram ao poder juntos em 1989. No decurso do impiti surgiu a questão sempre superficial - da moralidade, como se esta fosse a diferença específica de um para o outro. Logo no início, Itamar ensaiou timidamente a crítica - se bem que de caráter retórico - à modernidade entreguista de Collor, o que deixou o empresariado de São Paulo ouriçado diante do que poderia vir da República “Pãode-Queijo”. A “cosmopolita” mídia de São Paulo e Rio de Janeiro bombardeou o governo de Itamar (sua rusticitas não lhe permite falar inglês nem francês...) rasgando seda e confete para o único ministro confiável e bem preparado intelectualmente: o chanceler Fernando Henrique Cardoso, “cidadão do mundo”. Por mais nefelibata e bisonho que seja, Itamar deve ter percebido, durante os primeiros meses de governo, que Minas Gerais era carta fora do baralho político diante da hegemonia económica de São Paulo, a qual se mostrava cada vez mais interessada em fazer no pós-impiti o ministro da Fazenda. Ao confabular com FHC, o presidente Itamar prepara a ascensão da São Paulo multinacional ao poder, cuja duração não pretende ser passageira, de modo que a história julgará a atitude de Itamar, o instrumento do poder político dos paulistas, os quais exigem privatização do património público.

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16 Masoquismo Romanceado

cineasta Glauber Rocha tinha razão quando disse que a cul­ tura brasileira estava condenada a buscar o perdão do padre. A cordialidade conchavada do açúcar plus afetum se encarrega de aparar as arestas ideológicas e banir as diferenças políticas. Esta indefectível presença conciliatória é fruto sofisticado da nossa miséria, que acaba por interferir no mais sublime soneto, ou atra­ vés do encontro literário de dois ilustres mineiros do primeiro time intelectual: o antropólogo Darcy Ribeiro e o crítico Antonio Cândido. Nesse encontro esquisito, se observada a inserção de cada um na sociedade brasileira a partir do Estado Novo, está em jogo a situação das esquerdas na década de 90. Darcy Ribeiro e Antonio Cândido são politicamente diversos mas não adversos. A favor desse argumento existe o senso comum da mídia: o fato de serem politicamente separados - cada um em partido político diferente. Darcy Ribeiro convidou em 1995 Antonio Cândido para escrever a contracapa de seu livro O Povo Brasileiro. Darcy Ribeiro considera seu fazer romanesco superior à sua militância política e seus ensaios de antropologia. Muita gente boa em São Paulo põe ênfase menos na questão política do que na estética, cujo desdobramento é o elogio ao Darcy namorador e desbundado. Um sujeito cheio de vitalidade (“eterno

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adolescente”) que, em sua errância erótica, não se submete aos convencionalismos burgueses, sendo por isso um grego antigo, dizia dele Anísio Teixeira. Antonio Cândido é detentor de um passaporte político: a entrada espiritual em São Paulo. Seu elogio hedonista a Darcy convive no entanto com a atitude de não conceder-lhe o voto para vicepresidente na chapa de Leonel Brizola, de modo que este voto negado ao brizolismo em São Paulo passa pela mediação do pajé da mídia literária paulista. De Antonio Cândido os nacionalistas desejavam menos sua elogiosa apresentação ao livro O Povo Brasileiro do que seu voto em Darcy Ribeiro como homem público, ou em que consistiria a divergência política que separa um do outro? A explicação do fracasso eleitoral do brizolismo em São Paulo nos leva a indagar como terá sido a reação do crítico literário diante do suicídio de Getúlio Vargas em 1954, ou mesmo antes em 1945. Em 1996 Darcy Ribeiro e FHC almoçaram em Brasília. Este acontecimento virou notícia. Deu na TV. Meu Deus, que terá dito Darcy a FHC e vice-versa? Será que Darcy lhe propôs o programa dos Ciacs? Fernando Collor caiu do cavalo por causa dos programas do Ciacs. Que diálogo aconteceu naquele almoço em Brasília? FHC disse-lhe que Ciep é titica em matéria de educação. FHC aprecia menos a escola do que a mídia ou o banco. O objetivo político de FHC, depois de enterrar a era Vargas, é extirpar definitivamente o brizolismo da vida pública. E então? - Meu caro FHC, você foi belo e gostoso quando jovem, mas agora ficou velho, feio, careta e de direita, que nem o Serra. FHC: - Politicamente, Darcy, você é um morto que se esqueceu de deitar no caixão. Darcy parou na década de 50. Anacronismo histórico. Darcy contesta o atestado de óbito feagaceano, retrucando que sua obra antropológica e literária permanecerá na eternidade, enquanto os livros de FHC são livros que não serão lidos no futuro. Quem se lembra de um pensamento sociológico de FHC?

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17 Darcy Ribeiro, Rei de Janeiro

C^om os portugueses em Porto Seguro chegou a moeda. O ruim aqui são os ricos, os bonitos, os educados Não somos o ontem da Inglaterra nem os Esteites serão nosso amanhã. O Brasil é país exportador de capital. Nós somos um país maduro ameaçado de apodrecer. O espectro Calcutá ronda São Paulo e Rio de Janeiro no ano 2000. Gente nascendo e morrendo na rua sem nunca ter tido casa para morar. O tema do intelectual é o Brasil e o destino de seu povo. As ciências sociais floresceram como nunca durante a ditadura de 1964. O homem brasileiro é uma mão-de-obra querendo ser explorada por algum patrão que não aparece. Não sabemos nem queremos saber quem realmente somos. Ao nos civilizarmos, ficamos parvos. Os entrevistadores de Darcy Ribeiro são pessoas que nunca o leram, nem votaram nele, assim como fizeram acirrada campanha contia seu candidato nas eleições de 1994. No entanto, essas pessoas, diante do câncer, mostram-se agora solidárias. trabalhismo (recorde-se o episódio de Samuel Weiner na crise

morte de Glaubed ^borar uma estética, sobretudo depois da er Rocha em 1981. 247

De Darcy Ribeiro sempre fui leitor e eleitor, mas não seu amigo de convívio e conversa, embora tenha tentado algumas vezes. É claro que gostaria de ter sido seu amigo, porém não deu, não privei de sua amizade e sabedoria. Desde a segunda metade da década de 70, em São Paulo, o jornalista Cláudio Abramo insistia para que eu procurasse Darcy Ribeiro. -"Ninguém sabe sobre o Brasil se não conversar com Darcy", dizia-me Cláudio Abramo. Darcy tinha caído com o esquema de Jango em 1964, de quem foi chefe da Casa Civil, e isto era o motivo principal alegado para deixá-lo no esquecimento. Darcy Ribeiro e FHC seguiram caminhos ideologicamente opostos nas ciências sociais. O primeiro ciente de que 64 foi a grande tragédia nacional; o segundo eufemizando a dominação imperialista através de uma “teoria da dependência", deslocando o eixo principal da história recente do Brasil de 64 para 1968 ou 1969, tal qual o PT de Weffort, que incutiu o clima anti-Jango na cuca do Lula, de cujas implicações os atuais líderes do PT ainda não se libertaram; tanto que eles apreciam intelectualmente menos Darcy Ribeiro do que FHC, Antonio Cândido e Sérgio Buarque de Holanda. Darcy Ribeiro costumava dizer que a produção sociológica da USP não tinha feito a crítica do Marx europeu. Ao invés de “formação asiática" (Marx), Darcy propõe Império Teocrático de Regadio. Do ponto de vista das ciências sociais, o PT e o PSDB se originam de um mesmo berço ideológico: a oposição uspiana ao ISEB e à antropologia dialética de Darcy Ribeiro. Antropologia dialética no sentido de que ela é a única na América Latina de inspiração marxista, tendo por parâmetro aquilo que Karl Marx gostaria de ter feito em relação a uma história crítica da tecnologia, ou seja, a tecnologia como fator de dominação. A comparação com FHC se impõe para estabelecer os constrates e confrontos nas ciências sociais. Darcy, homem fracassado pela história; FHC, homem exitoso. De uma lado, o belo fracasso; de outro lado, o êxito, onde o julgamento histórico (vide o episódio da reeleição) carece de significação moral. O que lhe interessa é vencer, o sucesso a qualquer preço, seja como for. Inclusive entregando o país ao estrangeiro para a gerência do negócio. Não é à toa que, à luz da sociologia de FHC, o ex-presidente

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João Goulart é visto (mas seu nome nunca é citado) sob o prisma dos defeitos. Em Darcy é o contrário: a queda de Jango é explicada em função de suas virtudes, pois o ex-presidente estava no caminho da ruptura com a direção colonizada. A universidade brasileira ainda não assimilou a obra de Darcy Ribeiro. E nisso pesa o suicídio de Getúlio Vargas em 1954, quando Darcy linha 32 anos, desbundando com a leitura da Cana Testamento de Vargas, o que o fez abandonar a perspectiva trotskisla pela posição trabalhista e nacionalista. A partir daí, criou a Universidade de Brasília no governo JK e foi peça-chave durante o período Jango, candidatando-se 30 anos depois a vice-presidente da República em 1994. Estamos diante de quem escreve e fala o que pensa. Trata-se de um belo exemplo de união entre ação e pensamento, teoria e práxis. Em Darcy não há trapaça do texto com a vida, ou vice-versa. Nele vale o escrito: a unidade de sua pedagogia com a política. Darcy não poderia ter sido o gênio da educação se não fosse um intelectual nacionalista. Avis rara. Foi um dos únicos de sua geração que conviveu durante dez anos com os índios. Em sua biografia, escrita por ele mesmo em várias ocasiões, o acontecimento fundamental é ter sido filho de professora primária em Montes Claros, sendo praticamente órfão de pai. Onipresença da mulher. O aspecto genético da sua antropologia afirmará que o “branco” é mestiço de pai europeu com mãe indígena, portanto é mais mulher do que homem. A população brasileira é mais

indígena do que caucasóide. Sociólogo dos empresários, FHC é resignado diante da subordinação do país e conformista com os resultados medíocres e excludentes da modernização reflexa, um produto da classe dominante consular e submissa. Seu lema é: dependência ou morte! Para FHC, não há solução fora do roteiro prescrito pelo FMI e G7. Estilisticamente (e o estilo é o homem), FHC desde a década de 60 (dando trela ao “padrão científico” exigido por Florestan Fernandes) é hostil ao ensaio e a favor da linguagem do especialista, atitude anti-estética que não deixa de reproduzir os limites eróticos das ciências sociais. O golpe de 64 é o sequestro cultural da xoxota ao alijar do poder o macho Darcy Ribeiro. Em abril de 64 saiu a vulva dos lábios de 249

mel de José de Alencar e entrou a boneca anal de Roberto Campos com sua lanterna na popa. Nunca me esquecerei do sociólogo Florestan Fernandes em 1989 a estigmatizar de “machão” o nacionalismo de Leonel Brizola, de modo que Glauber Rocha tinha razão: tanto o liberalismo burguês quanto o marxismo colonizado odeiam o “coito danado” da Casa Grande com a Senzala. O signo fodível é onipresente na prosa de Darcy Ribeiro. Em contraste com a erótica do nacionalismo brasileiro, que se observe a gestuália tucana no poder. Basta um close no contorno da boquinha do porta-voz Amaral ou do senador Serra. A virilidade em pânico está em sintonia com o caráter draguiquim da moeda e o câmbio travesti. Parece mas não é. A gramática tucana é patriarcal, todavia está para baixo e não alça viaja além do bank. Darcy Ribeiro curte o estilo ao escrever ciências sociais, a exemplo da frase brilhante: “hoje doentes doemos em dólares”. A estética do ensaio. A bela gnose. O delírio libertário. De resto, em Darcy gnose é tesão. Tesão pela pátria grande, em que a mulher surge como mediação para atingir o todo. A xoxota é metonímia telúrica. Darcy trepa a terra e seu povo, tal qual Guimarães Rosa trepara o sertão. Resulta desse tesão o traço pagão-orgiástico-hedonista de sua antropologia que se entusiasma pela existência popular de Yemanjá, única deusa depois da Grécia que faz amor. Sua utopia Brasil é diferente do custo Brasil feagaceano, porque nela está inscrito o emprego para cada adulto: toda criança na escola. Ao prefaciar Casa Grande Senzala, Darcy Ribeiro criticou Gilberto Freyre, o discípulo do patriarca Joaquim Nabuco, por ter esquecido a cunhã ameraba. O José Guilherme Merquior quarentão dirá, durante seu sarampão niuliberal, que a antropologia indianista (e o trabalhismo brasileiro é indianista) revela-se patrofóbia com antipatia pelo pai colonizador: o pai com o pau sem ternura, conforme a denúncia de Octavio Paz no México estuprado. Mas não há dúvida de que diante da falta de pai no povo brasileiro (um povo feito de mães solteiras) a resposta educacional foi dada com a criação dos Brizolões. A arquitetura de Oscar Niemeyer. A beleza da curva femeeira dos Cieps. A estética da cunhã. A mãe do primeiro mameluco. Psicanálise do mameluco, sacada sublime. De quem esteve 250

e assistiu ao nascimento do primeiro brasileiro em Porto Seguro no mês de janeii o de 1501.0 começo é o mameluco, o misturado, nascido do ventre indígena com o branco português. Um século depois importa-se negro da África. Assim a protocécula é fruto do conúbio branco e mulher indígena, de modo que o mameluco é o “outro”, diferente do índio tribalizado. O mameluco rejeita a mãe ameraba com vergonha do útero materno; quer identificar-se com o pai, mas é por este rechaçado, assim o mameluco cresce sendo rejeitado, assumindo a condição de brasileiro para deixar de ser ninguém, para escapar à condição da niguendade. Mais tarde o sertanejo será o feitor do índio. O mameluco nasce como pária com objetivo de enriquecer os centros longínquos. O caboclo sertanejo não se casará com a índia da maloca. O nome de Darcy Ribeiro está associado à criança e à mulher, as duas paixões de sua vida, embora não tivesse tido filhos. Lembro Luis da Câmara Cascudo: toda a trama da sociedade brasileira encontra-se no jogo da boneca com a peteca. Boneca da menina. Peteca do menino. A televisão substitui a escola e esculhamba a mãe e a dona-de-casa. Darcy Ribeiro percebeu que a TV é antimãe, assim como a prostituição infantil é um componente intrínseco ao sistema videofinanceiro. Em termos de educação pública, somos piores do que o Paraguai e a Bolívia. Acrescente-se: menor abandonado é menor desescolarizado. O pai desse menino sem escola é o caboclo ou o caipira desaculturado que sonha em ter a Xuxagirl na cama porque sua pulsão sexual é refeita pela telenovela, onde a burguesia brasileira é apresentada com imagem pornô e fogosa. Burguesia gostosa. O cabaré televisivo das crianças, que corresponde à matança de pivetes nas ruas, é revelador da economia política maquiada a partir da década de 80 com o Édipo Xuxa, embora a mãe da criança pobre não seja a Xuxa in vídeo. O complexo de inferioridade do brasileiro está relacionado à rebeldia mameluca contra o últero indígena. No inconsciente do mameluco a mãe é puta, ser desprezível perto do pai branco e superior. A ninguendade psicológica do mestiço, apontada por Darcy Ribeiro, continua sob a vigência do cabaré das crianças na TV, embora seja impossível a prostituição feliz para todos.

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O mesmo complexo de rejeição ocorrerá com o mulato, a mistura de negro e branco, o mulato rejeita a condição servil da mãe negra, mas é também rechaçado pelo pai branco, oscilando entre esses dois mundos diferentes, como se fosse um vazio, ou seja, etnicamente um zé-ninguém. Esta psicanálise delirante do mameluco feita por Darcy Ribeiro ajuda a compreender o potencial destrutivo que o povo brasileiro, colonizado de corpo e alma, dirige contra si mesmo. É por isso que o moderno índio civilizado hostiliza o índio tribal como bugre bravo. O mameluco é o fragelo do gentio materno. O mameluco é o tropa de choque de seu próprio povo. O mameluco é o personagem Antonio das Mortes do cinema de Glauber Rocha. O Antonio das Mortes atira a esmo contra seus irmãos miseráveis e famintos. Até o presente momento o mameluco não conseguiu, tornandose mestiço, se libertar de sua consciência alienada. Ele é sádico em relação à mãe e seus irmãos, porém é masoquista diante do colonizador. Eis o conteúdo do sadomasoquismo colonial. Somos um povo formado de três etnias desfeitas: o índio, o negro e o branco. Povo no entanto que não é nenhuma das três matrizes. Nossa origem é a desaculturação, mas desta é que resulta um tipo novo, um povo novo: o brasileiro. É por isso que no Brasil, segundo Darcy Ribeiro, em virtude dessa modalidade nova de aculturação, não se repetirá nenhuma história passada. Daí a ilusão, insuflada pela mídia escrota, de sermos um dia Primeiro Mundo, pois não somos o ontem da Inglaterra, nem tampouco seremos o futuro do EUA. Impossível reviver a história alheia. Eis o desafio posto por Darcy Ribeiro: temos de inventar nosso próprio destino. “Darcy és íhe Ginius da Raça”, disse Glauber muito bem, mas a esquerda desinformada não associou FHC a Golbery depois da derrubada de Jango. Todo mundo já esqueceu o que Golbery escreveu, mas Oscar Niemayer será lembrado no ano 3.000, enquanto FHC está dançado na posteridade porque falta-lhe a arquitetura do monumento. Dinheiro é papel pintado. J. W. Bautista Vidal cita Ortega y Gasset: o estadista almeja a glória, não o êxito. O problema, meu caro Bautista, é que o PT e seus intelectuais nunca produziram antropologia, portanto eles não entendem o fundamento etnológico profundo dos Brizolões na cultura brasileira. 252

Foi por ter feito com engenho e arte a psicanálise do mameluco que Darcy Ribeiro mentalizou os Cieps do Rio de Janeiro. Dói muito lembrar que em 1994 o povo brasileiro votou no vice Marco Maciel. A violência burra colonizada do brasileiro mestiço, rechaçado pelo pai, fode sua própria gente e escraviza seus irmãos. A indignação de Darcy Ribeiro faz sentido: os Cieps dos órfãos. Não foi senão por esse motivo que as mulheres do povo disputaram seu caixão, chorando no enterro apoteótico e surreal do Rei de Janeiro, onde seu amigo Leonel Brizola torceu o braço do ex-líder estudantil José Dirceu, conversando sobre a dificuldade de unificar a esquerda no ano 2.000. Antes de morrer, lembrando Rondon, Hermes Lima, Anísio Teixeira e Glauber Rocha, comemorou Darcy Ribeiro o privilégio de assistir a seu se//necrológico em vida. Nos últimos dois anos antes de sua morte ele se referia constantemente à aparência física de FHC, tão cheia de charme, pessoa tão agradável, mas tão ruim presidente. Às vezes Darcy tinha abordagem à Oscar Wilde. Olhai o belo jovem FHC ficou feio, velho, de direita. Depois de 1964 Darcy não conseguiu a tomada científica do poder político. Ele reconhece o luxo do Brasil ter um sociólogo de renome na Presidência da República, embora não o inveje por causa do exercício de crueldade do PFL. Durante a campanha eleitoral de 1994 Darcy Ribeiro registra o aparecimento do Cebrap com patrocínio da Ford e Rockfeller, designando as primeiras fontes norte-americanas sedutoras do futuro Príncipe da Moeda. Nem São Paulo, cidade em que Darcy estudou antropologia com Baldus, levou a sério sua contribuição científica e artística. Nem a USP de Florestan Femandes aplaudiu o aparecimento do livro Processo Civilizatório. Darcy Ribeiro fazia naquele momento pela primeira vez a moderna antropologia de nós mesmos, superando abarbarologia uspianados estudos sobre os seres primitivos. O olho gordo já havia baixado nele anteriormente, porque casou-se com Bertha, antropóloga, paulista, judia, bela e inteligente. Conhecido no exterior como “antropólogo das civilizações”, porém livre da ilusão europocêntria. O único antropólogo que escreveu páginas e páginas acerca do povo russo, do norte-americano, do alemão, do japonês, do francês, do holandês,

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do uruguaio etc. Em 1970 veio a público o ensaio A América e as Civilizações, cujo objeto é o processo de formação das causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos, sem incorrer no equívoco de tantos marxistas em considerar que a nação seja entidade irracional ou meramente burguesa. Darcy Ribeiro não mistificou a luta de classes, tanto que profetizou o século XXI como o século das rebeliões étnicas. Neste final do milénio a Europa já era. Passou a hora da Europa. Para Darcy Ribeiro, a última façanha eurocêntrica foi Hitler. Agora chegou a hora dos povos extra-europeus, mais lamentavelmente o venerando ministro Lamprea (o Itamaratyzão recusa a encarar o Brasil com possibilidade de ser protagonista da história universal) viaja sem política exterior independente. Leitor do filósofo Hegel e amigo do mexicano Leopoldo Zea, Darcy Ribeiro avisou FHC: “cuidado que seu amor pelos EUA será recusado!” Libido formada pela Roliudi de Marlon Brandon e Gary Cooper, FHC nutre a certeza de que Clinton ficou louquinho nele, como se somente com o Plano Real o Brasil tivesse um presidente da República à altura do padrão norte-americano. A advertência de Leopoldo Zea quanto à amizade impossível entre norte e sul, no sentido de que o irmão neo-britânico do norte não dará força para o irmão neo-latino do sul se arrumar na vida. De Darcy Ribeiro o traço mais comovente de sua personalidade é a indignação. Segundo ele, a dor e a miséria do povo são desnecessárias.

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18 Recuerdos del Paraguai: ao Perdedor as Baratas

oincidência deparar-me por acaso com Roberto Schwarz numa confeitaria em Assunción, no dia 13 de janeiro de 1991, hora aberta, mais ou menos 15 minutos de conversa. Nada além disso. No momento em que eu o avistei - olha só quem está ali - fui logo cumprimentá-lo - “Paraguaiando heim!” Solícito, afável, sempre com aquele riso de “rara sagesse”, como dizia Glauber Rocha, Roberto estava com o jornal O Estado de São Paido debaixo do braço e vestido de bermuda no extemporâneo Paraguai, lugar em que ele aproveita para ler, pensar e escrever. Bom lugar para botar as idéias em ordem. Nunca fomos íntimos. Não pela diferença de idade. Isso de idade não é documento. Ninguém o procura em Assunción, cidade em que é inteiramente desconhecido, refúgio intelectual de São Paulo. Houve um momento na década de 70 em que Roberto vira poeta marginal, autor do verso escatológico “pau no cu do papa.” Quando ainda morava em Paris (não sei se auto-exilado mais do que propriamente exilado pela ditadura), meu amigo Leomar Wolfgang, catarinense filho de pais alemães, sugeriu-me através do jornal Movimento que o entrevistássemos por carta. Até então nunca tínhamos visto pessoalmente o autor de As Idéias Fora do Lugar (1973), ensaio publicado pelo Cebrap sobre o liberalismo do século XIX no Brasil.

C

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Não é preciso dizer da nossa admiração - antes da “abertura” de 1974 - pelo discípulo de Antonio Cândido que até hoje não abando­ nou a dialética, segundo Carlos Nelson Coutinho. Roberto lá na distante Paris, transando Sartre e Simone, com pinta de bolchevique internacionalista que lia em alemão Marx e Thomas Mann, e nós cá em São Paulo, levando a sério nosso guru em história das idéias. Para a estudantada boémia de São Paulo, o mito Roberto Schwarz era repercutido pelo epíteto engraçado de caboclo Bob Preto, o crítico desconfiado diante da sereia polissêmica. Antenados na ressalva de que a vida intelectual paulista costuma fazer ao tipo ingénuo, o otário de pátio de estação, como dizia Oswald de Andrade, passamos então a desconfiar da relação entre texto e contexto, entre consciência e existência, questionando até que ponto as idéias e as ideologias estariam ou não adequadas ao lugar em que se vive, sobretudo para quem não havia saído nunca do Brasil após 1964 e 1969, ou seja, pessoas que foram obrigadas a conviver no dia-a-dia com a oposição armada à ditadura. Houve até polêmica do Roberto com historiadora Maria Sylvia de Carvalho sobre o caráter tópico das idéias na sociedade brasileira. Se determinadas idéias aparecem por aqui é porque elas couberam em algum lugar. Decerto não há nenhum lugar dono das idéias: o espírito sopra onde quer. Roberto jamais foi nacionalista pequeno-burguês-visionário. Seu alterego intelectual é Anatol Rosenfeld, o crítico do cabotinismo de Mário de Andrade. Roberto maneja com sarcasmo a demarcação entre o locus tropical e outras literaturas, retomando o esquema analítico binário de Antonio Cândido a respeito do modernismo brasileiro. Roberto apenas imprime um toque “marxista” à dialética cultural do localismo versus cosmopolitismo de Antonio Cândido: relações de produção, desenvolvimento das forças produtivas, capitalismo centralperiférico, enfim, sociologia da dependência com marxismo weberiano à Fernando Henrique Cardoso. Onde havia combinação ou desajuste entre as idéias e o lugar, era preciso assumir a atitude desconfiada em relação à autoctonia do pensamento. Por isso mesmo Roberto enfatizava menos a questão das idéias do que o movimento do capital. Machado de

Assis em detrimento do romântico José de Alencar. 256

Somente na visita ao peabiru paraguaio, com a perspectiva do vencido (ou será o genocídio da Guerra do Paraguai mitologia anti-imperialista?), é que pude atinar para a lógica de Glauber Rocha, dizendo que Roberto não era brasileiro em sua crítica. Enquanto Glauber viveu, Roberto não respondeu. Depois da morte de Glauber, atribui-lhe (como também a Oswald de Andrade) o "triunfalismo do atraso”, como se Glauber (que odiava sociologia) fosse sociólogo da Cepal.

O Jabaculê das Liminares

São Paulo. 1996. Com a ressaca da reeleição de FHC, o professor de filosofia Paulo Arantes encontra-se (se bem que não esteja sozinho) em situação inteletualmente embaraçosa, depois que FHC conseguiu eleger-se presidente da República: “um dos nossos chegou à Presidência da República.” Paulo Arantes reconhece a necessidade da autocrítica para as ciências sociais, filosofia e letras da USP, ao conceder entrevista às professoras filósofas de “fino trato literário”, reunindo-as em um livro subintitulado “Filosofia e Vida Nacional”( 1996). O título do livro é O Fio Da Meada, o que dá ao leitor a impressão (pelo menos a mim deu) de que aí estaria a explicação sobre a proeza de um filho ilustre da USP - discípulo ou colega de Arthur Giannoti, considerado por Arantes “nosso filósofo público número um” - ter alcançado o poder supremo da nação em 1994, quase 150 anos depois da publicação do manifestação do Partido Comunista de Marx e Engels em 1948. Extremamente bandeiroso mas bem-vindo, esse livro é rasgação de seda em cima de Antonio Cândido e Roberto Schwarz, os dois dioscuros complementares do saber uspiano, aos quais Arantes recorre com frequência, embora deixe o diabo escapar pelo rabo, ou seja, dissociando-os da força material e espiritual que conduziu FHC ao Palácio da Alvorada. Professor de “marxismo ocidental”, Arantes adora mencionar como chave de explicação da cultura brasileira a perspectiva “bifronte”, típica do dandismo de Joaquim Nabuco, hesitando entre

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as delícias da Europa e o imperativo de “pensar em brasileiro”, expressão essa de um mal-gosto a toda prova, mesmo que não consideremos Joaquim Nabuco o precussor do PFL de Pernambuco, ou que o “Sartre do Bento Prado”não trocasse o fumacê de seu restaurante de Paris pelos ares bucólicos de Itaperica da Serra. Há muito mais coisas além desse dualismo sarcástico modernista no itinerário feagaceano. o qual complicou como ninguém a produção intelectual dos professores de filosofia e letras, obrigando a se repensar absolutamente tudo o que aconteceu na USP desde 1934, pois não se trata apenas de uma singular “ambição pessoal” que sincronizou o ébano de Florestan Fernandes à dialética do dendê de ACM. Para Arantes, o presidente FFIC “é decorativo não porque lhe faltem as virtudes de um estadista, mas porque é o resultado milagroso do fetiche da moeda estável”. Isso é dito na cara dura por um autor que se proclama marxista. Ó ditosa moeda! Marx achava ignomia exportar dinheiro, mas com FHC temos um “estadista” dos meios de circulação. Convenhamos que basta a simples presença do fetichismo monetário para afastar qualquer virtude psicológica, ou que nome tenha, de um “estadista”. Num momento de desbunde maiêutico, Arantes (que defendeu tese sobre Hegel em Paris) diz que votou três vezes em FHC: “votei até no Serra uma vez”. Votou e, ao que tudo indica, não serrou os pulsos de vergonha, nem ajoelhouse no milho da hacienda de Roberto Abreu Sodré. O argumento da filosofia como ganha pão é por demais prosaico; todavia, o complexo colonial do “marxismo ocidental uspiano”, em sua vertente filosófica, se vangloria de manter o alheamento em relação à realidade próxima do país, ao contrário dos pensadores nacionalistas Cruz Costa e Álvaro Vieira Pinto, tripudiados de modo pedante por Bento Prado e Gerard Lebrun. Com base nas últimas notícias internacionais envolvendo Lebrun como o Descartes da pedofilia transatlântica, seria fácil peio viés biográfico afirmar que no ataque ao ensaismo do ISEB estava contida a repulsa à virilidade do nacionalismo, mas em todo caso o ISEB foi considerado uma reflexão que não se encaixava nos rigorosos parâmetros da lógica do filósofo Arthur Giannoti. Ora, como toda filosofia é passível de uma leitura sexual, convém assinalar que a falta de virilidade é muitas vezes indício de falta de vontade. Acomodado diante da mundialização 258

do capital, o filósofo Paulo Arantes - depois de queimar a mufa estudando a ‘teoria da dependência“ de FHC - chega a ponto de sugerir que não adianta nada eleger presidente da República de esquerda, o que é uma maneira sutil de justificar a reeleição de FHC, o presidente simulado, “faz de conta”, para quem, segundo Arantes, “é fácil governar, pois não há mesmo nada a fazer”. Este convite à brochada política é o paroxismo de uma atitude que não acredita no país e em seu povo. A minerva de Arantes coloca melancolicamente a viola no saco, ou seja, abdicando de pensar a tradição uspiana e o poder. Enfim, água ruim, peixe ruim. Corporativismo na acepção patoleira do termo: FHC é “um dos nossos”. Tudo, menos abrir o jogo sobre a desnacionalização imperialista do país, tanto que diante do fato político consumado, Arantes conclui que Roberto Schwarz, o leitor perspicaz da “dialética da malandragem”, matou a charada, recomendando que agora é a hora e a vez da torre de marfim. Porém, acrescenta Arantes, “torre de marfim materialista” e, se possível, sem problemas materiais. Torre de Marfim abonada. Nesse colóquio de filósofos aposentados observa-se o mesmo estilo afrescalhado de O Banquete de Mario de Andrade, a exemplo do tal “engajamento mitigado” de Arthur Giannoti. Disso a única voz distoante é a da professora Iná Camargo Costa, que, a certa altura, pergunta o seguinte: “Por que viaja tanto o nosso primeiro mandatário? Por razões de política interna, é evidente. Assim, inibe qualquer veleidade sucessória que não a dele por ele mesmo. Semana sim, semana não, mostra na televisão que é insubstituível com os homens lá fora, que está lá fora o freio da inflação interna. Enfim, que não governa quem não dispõe do mesmo raio de ação multinacional de sua diplomacia estritamente pessoal. Numa palavra, que a política nacional é externa, que a casa cai se algum chefão multinacional torcer o nariz para o primeiro caipira (ou caiçara, dá na mesma) que mandarmos no lugar do atual titular do circuito Elizabeth Arden”. O filósofo aposentado Paulo Arantes, que é o equivalente catártico do general de pijama, não consegue perceber a magnitude da regressão ideológica colonial de seus ex-professores. Isso porque seu passado estudantil mimado o impede de colocar as coisas em

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pratos limpos: do Seminário de Marx ao projeto neocamelô do Cebrap. Em Arantes falta o saudável clima de Sob as Ordens de Mamãe de Oswald de Andrade, no sentido de romper os laços orgânicos e castradores dos profissionais de filosofia, os quais aplaudem a chamada “política do possível” de FHC, isto é, a política que torna impossível a autonomia individual e coletiva, como se a filosofia da USP servisse para institucionalizar a dependência e fazer pensar que a subordinação do país é um fato normal, corriqueiro e, portanto, ineliminável. Petrópolis, abril de 1997

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dos dois últimos governos (ministérios de Erundina e Weffort). É que PT e PSDB integram o projeto de tomada do poder por São Paulo, sucessivamente frustrado pelo getulismo desde o fim do café-comleite. São Paulo vai â forra e da melhor forma, polarizando o debate político entre dois partidos com origem nas mesmas portas de fábrica e salas de aula paulistas.

A nova versão do bipartidarismo brasileiro: um bipartidarismo de segundo turno, que faz com que aquelas duas legendas, desqualificando o trabalhismo histórico, canalizem o sentimento situacionista e oposicionista. Aparecem então as aporias do PT: como questionar o governo, se o partido poupa o real? Como questionar o sistema financeiro e as multinacionais que empregam o pessoal de seus dois principais sindicatos? Como questionar o ensino privado sem dar prejuízo à igreja aliada? Como questionar o monopólio da Globo se estrelas do PT renovam a TV? Não é novidade sociológica a existência no Brasil de um enraizado complexo de inferioridade na relação da senzala com a casa-grande. O que parece novo no livro de Gilberto Vasconcellos é a sugestão de que PT e PSDB atualizam esta relação em meio urbano, é o alerta de que o segundo turno está se transformando em um mero pedido de audiência ao Príncipe, é a leitura do processo eleitoral como uma nova versão da velha história do Príncipe e do Sapo.

RICARDO OITICICA