O lado sombrio da medicalização da infância: possibilidades de enfrentamento 9788581280714

SUMÁRIO Apresentação I Medicalização, uma história antiga: recuperando asrelações com o higienismo e a eugenia na socied

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SUMÁRIO
Apresentação
I
Medicalização, uma história antiga: recuperando asrelações com o higienismo e a eugenia na sociedade e educação
Nadia Mara Eidt
Damily Rodrigues Martins
II
O TDAH e a medicalização da aprendizagem:
enfrentamentos necessários à formação humana
Andreia Cristina Conegero Sanches
Elvenice Tatiana Zoia
Neide da Silveira Duarte de Matos
Rejane Teixeira Coelho
III
De que é feita a Ritalina e o Concerta?
conhecendo o metilfenidato, sua ação, riscos e benefícios
Carla Betânia Huf Ferraz Campos
Débora de Mello Gonçales Sant ́Ana
IV
O outro lado da medicalização
Felipe Pinheiro de Figueiredo
V
Medicalização da infância nas pesquisas científicas:
o que dizem os estudos na área da Medicina, Educação e
Psicologia na Universidade de São Paulo (USP)?
Lorena Carrillo Colaço
VI
O problema da medicalização na faixa etária de
0 a 10 anos: correlação de dados nos municípios de
Rio Bom, Ponta Grossa, Cambé e Cascavel
Fernando W. Mendonça
Cleudet de Assis Scherer
Rejane Teixeira Coelho
Silvana Calvo Tuleski
Adriana de Fátima Franco
Marcelo Ubiali Ferracioli
Rogério de Leon Pereira
VII
O diagnóstico de TDAH e desenvolvimento da
atenção: reflexões a partir da psicologia histórico-cultural
Bárbara Cristina Niero
Adriana de Fátima Franco
VIII
Medicalização entre os professores: formas de
enfrentamento aos dilemas do trabalho na educação?
Diana Priscilla de Souza Mezzari
Marilda Gonçalves Dias Facci
Nilza Sanches Tessaro Leonardo
IX
Medicalização na e da educação: processos de
produção e ações de enfrentamento
Marisa Eugênia Melillo Meira
X
Movimentos de resistência à medicalização
da infância: Brasil e França
Andreia Mutarelli
Marilene Proença Rebello de Souza
XI
Para além da crítica à medicalização: em busca
de práticas educativas voltadas a formação da
atenção voluntária na educação infantil
Jéssica Elise Echs Lucena
XII
Dispersão da atenção: um problema apenas
da criança? Reflexões sobre a organização do ensino
Marta Sueli de Faria Sforni
XIII
Pela defesa de uma infância “tarja branca”:
a arte cinematográfica e a formação de
professores frente à medicalização na infância
Beatriz Moreira Bezerra Vieira
Silvana Calvo Tuleski
XIV
Sem efeitos colaterais: atendimento psicoeducacional a
crianças com problemas de escolarização e transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade
Rosana Aparecida Albuquerque Bonadio
Luiz Donadon Leal
Raíssa Paschoalin Palmieri
Paola Lingiardi Altoé
Glaucia Rodrigues da Silva
Daiane de Oliveira Neves
Rafael Barbosa da Silva de Oliveira
Débora Lopes de Castro dos Santos
XV
Diretrizes histórico-culturais para o estudo
da atenção voluntária em contexto escolar
Marcelo Ubiali Ferracioli
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O lado sombrio da medicalização da infância: possibilidades de enfrentamento
 9788581280714

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SUMÁRIO Apresentação I Medicalização, uma história antiga: recuperando as

relações com o higienismo e a eugenia na sociedade e educação Nadia Mara Eidt Damily Rodrigues Martins II O TDAH e a medicalização da aprendizagem: enfrentamentos necessários à formação humana Andreia Cristina Conegero Sanches Elvenice Tatiana Zoia Neide da Silveira Duarte de Matos Rejane Teixeira Coelho III De que é feita a Ritalina e o Concerta? conhecendo o metilfenidato, sua ação, riscos e benefícios Carla Betânia Huf Ferraz Campos Débora de Mello Gonçales Sant´Ana IV O outro lado da medicalização Felipe Pinheiro de Figueiredo V Medicalização da infância nas pesquisas científicas: o que dizem os estudos na área da Medicina, Educação e Psicologia na Universidade de São Paulo (USP)? Lorena Carrillo Colaço VI O problema da medicalização na faixa etária de 0 a 10 anos: correlação de dados nos municípios de Rio Bom, Ponta Grossa, Cambé e Cascavel Fernando W. Mendonça

Cleudet de Assis Scherer Rejane Teixeira Coelho Silvana Calvo Tuleski Adriana de Fátima Franco Marcelo Ubiali Ferracioli Rogério de Leon Pereira VII O diagnóstico de TDAH e desenvolvimento da atenção: reflexões a partir da psicologia histórico-cultural Bárbara Cristina Niero Adriana de Fátima Franco VIII Medicalização entre os professores: formas de enfrentamento aos dilemas do trabalho na educação? Diana Priscilla de Souza Mezzari Marilda Gonçalves Dias Facci Nilza Sanches Tessaro Leonardo IX Medicalização na e da educação: processos de produção e ações de enfrentamento Marisa Eugênia Melillo Meira X Movimentos de resistência à medicalização da infância: Brasil e França Andreia Mutarelli Marilene Proença Rebello de Souza XI Para além da crítica à medicalização: em busca

de práticas educativas voltadas a formação da atenção voluntária na educação infantil Jéssica Elise Echs Lucena XII Dispersão da atenção: um problema apenas da criança? Reflexões sobre a organização do ensino Marta Sueli de Faria Sforni XIII Pela defesa de uma infância “tarja branca”: a arte cinematográfica e a formação de professores frente à medicalização na infância Beatriz Moreira Bezerra Vieira Silvana Calvo Tuleski XIV Sem efeitos colaterais: atendimento psicoeducacional a crianças com problemas de escolarização e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade Rosana Aparecida Albuquerque Bonadio Luiz Donadon Leal Raíssa Paschoalin Palmieri Paola Lingiardi Altoé Glaucia Rodrigues da Silva Daiane de Oliveira Neves Rafael Barbosa da Silva de Oliveira Débora Lopes de Castro dos Santos XV Diretrizes histórico-culturais para o estudo da atenção voluntária em contexto escolar

Marcelo Ubiali Ferracioli APRESENTAÇÃO Este livro é resultado de um trabalho coletivo de profissionais e pesquisadores que atuam no campo da saúde e da educação. Nele, será possível encontrar problematizações sobre o fenômeno da medicalização da infância, mas não somente desta, como também da medicalização da vida humana. Os mais diversos autores estarão apontando contradições existentes nas concepções que endossam uma prática medicalizante, na qual muitas vezes nem a saúde nem o desenvolvimento humano são a finalidade última. Tratando dessa discussão em distintos campos do saber, neste livro estão reunidos autores da Medicina, da Farmácia, da Psicologia e da Educação, cujo ponto de convergência é dado pelas preocupações com as crianças e os adolescentes, bem como com os adultos que os educam, que muitas vezes veem em uma pílula a solução rápida e imediata para seus problemas. Em nenhum momento pretendemos afirmar que os medicamentos são em si perigosos, negando-os para quaisquer enfermidades ou situações. Ao contrário, reconhecem-se os avanços da ciência médica e da farmacologia, que em muitos casos têm propiciado alívio às pessoas, tratando doenças e promovendo a saúde e o bem-estar. A discussão deste livro tem como eixo norteador a necessidade de se pesar as contradições que permeiam o uso de medicamentos como única forma de tratamento e muitas vezes a primeira, principalmente no interior de uma sociedade na qual tudo se transforma em mercadoria para a obtenção de lucro. Nesse jogo, no qual a saúde do usuário é relativizada, predominam a produção, a distribuição e o consumo desenfreados, induzindo os indivíduos a pensarem que os males do mundo se resolvem com uma boa dose de medicamentos ou outras substâncias. Pensar o sofrimento como algo mais complexo, que envolve múltiplas determinações, entre elas a biológica, significa olhar o sujeito que sofre como ser social e não somente a doença ou patologia que ele expressa. Quando se trata ainda de formas de sofrimento relacionadas a aspectos comportamentais, cognitivos ou afetivos, não se pode reduzi-las a causas unicamente biológicas. Pesquisas sérias em farmacologia e medicina sabem perfeitamente que para se mensurar a eficácia de um medicamento é necessário excluir aquilo que se denomina “efeito placebo”, ou seja, o efeito psicológico do remédio. O que queremos dizer com isso? Queremos dizer que se o efeito do medicamento se resume ao efeito psicológico, não seria realmente necessário ministrar um medicamento que traz invariavelmente efeitos adversos ou colaterais. Pode-se usar uma pílula de farinha e alcançar o mesmo resultado, pois o que está em jogo é o fato de esse sujeito delegar a algo externo a capacidade de solucionar uma dada situação que o aflige. A pílula seria um signo, indicando que com ela o sujeito seja capaz de agir de modo mais adequado, e, sem ela, a capacidade de autocontrole se esvai. A maioria dos capítulos deste livro oferece recursos teóricos importantes para pensarmos até que ponto todos que hoje tomam medicamentos psicotrópicos – crianças, adolescente e adultos – realmente precisam de seus princípios ativos. Será que parte desses indivíduos não poderia encontrar

outras formas de desenvolver seu pensamento, sua atenção, sua percepção, o controle de seus impulsos, sua memória sem a necessidade de dispositivos químicos? Quando procuramos no Dicionário Michaelis on-line o significado da palavra educação , temos: “desenvolvimento das faculdades físicas, morais e intelectuais do ser humano”. É interessante pensarmos sobre esta afirmação: educar é desenvolver faculdades, aquelas que inexistem em nós, por não serem produto de nosso organismo biológico. Por outro lado, quando buscamos o significado de tratamento , encontramos: “Ato ou efeito de tratar; Conjunto de meios terapêuticos, postos para cura ou alívio do doente”. Verificamos, portanto, que tratamento não se restringe ao emprego de medicamento, mas a um conjunto de meios, que podem ser inclusive educativos, objetivando o alívio do sofrimento. Seguindo essa perspectiva, o livro foi organizado em quinze capítulos, iniciando com um breve detour histórico, demonstrando que a medicalização tem vínculos com o movimento higienista e a eugenia. O segundo capítulo, elaborado por pesquisadores da educação e da farmácia, discute o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), apresentando suas contradições no âmbito escolar. Na mesma esteira, o terceiro capítulo trará informações sobre o metilfenidato, medicamento mais prescrito para TDAH, sua ação, seus riscos e benefícios. O quarto capítulo, elaborado por um médico psiquiatra, procurará ponderar o outro lado da medicalização e os desafios postos à prática médica, cuja finalidade é uma compreensão integral do sujeito que adoece. O segundo bloco de capítulos, que abarca do quinto ao oitavo, revela dados de pesquisa sobre o fenômeno da medicalização: um deles apresenta o mapeamento da produção científica sobre essa temática em três programas de pós-graduação na USP – Medicina, Educação e Psicologia (quinto capítulo), buscando evidenciar como ela é tratada; outro mostrará e problematizará a incidência de crianças da Educação Infantil e de séries iniciais do Ensino Fundamental medicadas com psicotrópicos em quatro municípios do estado do Paraná (sexto capítulo); na sequência serão apresentados dados sobre diagnósticos de TDAH em outro município do Paraná (sétimo capítulo); e, por fim, será abordada a outra face da medicalização da e na educação, aquela que afeta os educadores e suas consequências. Um terceiro bloco de capítulos, composto dos capítulos IX e X, dará destaque às alternativas coletivas já existentes, não só no Brasil mas também na França, referente à medicalização da infância, expondo sua gênese, sua constituição, seu desenvolvimento e os resultados já alcançados. O quarto bloco que compõe o livro (do capítulo XI ao XV) dedica-se a apresentar caminhos de superação, focalizando intervenções que partem do chão da escola: o primeiro oferece pistas para a educação dos pequenos na Educação Infantil; em seguida tratamos da organização do ensino nas séries iniciais do Fundamental como ferramenta de desenvolvimento; depois, a arte cinematográfica é discutida como instrumento de formação de professores, fortalecendo um movimento que se opõe à medicalização indiscriminada; na

sequência, destacamos as possibilidades do trabalho psicoeducacional grupal com crianças com queixa escolar, entre elas o TDAH; e, por fim, apresentamos a síntese oriunda de pesquisa em contexto escolar, que objetivou promover o desenvolvimento atencional, tomando como base a Psicologia Histórico-Cultural. Esperamos que este livro contribua para as reflexões, trazendo embasamentos teóricos e perspectivas práticas àqueles que, assim como nós, se preocupam com a saúde e a educação de nossas crianças. Silvana Calvo Tuleski Adriana de Fátima Franco (Organizadoras) I MEDICALIZAÇÃO, UMA HISTÓRIA ANTIGA: RECUPERANDO AS RELAÇÕES COM O HIGIENISMO E A EUGENIA NA SOCIEDADE E EDUCAÇÃO Nadia Mara Eidt Damily Rodrigues Martins Introdução É comum para os psicólogos, principalmente aqueles que trabalham nos serviços de saúde mental pública, receber grande demanda da escola com as queixas de “problemas de aprendizagem” e “problemas de comportamento”, com destaque para a indisciplina escolar. O mais interessante é que mesmo considerando que a avaliação do aluno é de responsabilidade do psicólogo, os educadores que o encaminham já têm, em muitos casos, definidas as explicações para tais quadros: “o aluno é assim porque tem muito piolho e o piolho dá anemia”; “porque os pais são separados”; “porque o pai bebe”; “porque é negro” etc. (BOARINI & YAMAMOTO, 2004). As justificativas para o insucesso escolar são centradas quase exclusivamente em características pessoais e/ou biológicas do indivíduo, em sua família ou em sua raça. Como procuramos mostrar ao longo deste capítulo, essas justificativas mitificam o problema e não se mantêm diante de análises mais aprofundadas. Nas palavras de Boarini e Yamamoto (2004, p. 60), “[…] são encaminhamentos que, em sua maioria, já estão historicamente comprovados como uma forma de deslocar o eixo da preocupação do social para o individual”. A esse processo dá-se o nome de medicalização ou patologização. Mais recentemente, temos observado a expansão do diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) em escolares de idade cada vez mais precoce (FERRACIOLI et al., 2014). Não há, no interior da ciência médica, consenso sobre a etiologia do referido quadro e tampouco acerca da prescrição de psicoestimulantes (Ritalina e Concerta)

como tratamento essencial e mais adequado (EIDT, 2004). A vertente teórica mais difundida defende que o TDAH é um dos transtornos neurológicos do comportamento mais comuns na infância e a principal causa de encaminhamento para hospitais e clínicas. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2010), o TDAH afeta entre 8% e 12% das crianças no mundo. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos revelou, em 2007, que aproximadamente 9,5% (5,4 milhões) de crianças e adolescentes americanos de 4 a 17 anos têm o diagnóstico de TDAH. A prevalência desse transtorno em crianças e adolescentes é discordante no Brasil, com valores de 0,9% a 26,8%. Para Ortega (2010), a Ritalina é, na atualidade, o medicamento mais usado para o tratamento do transtorno, não somente em crianças. Houve uma ampliação dos critérios diagnósticos para adolescentes e adultos, e o quadro é considerado incurável. Segundo Cambricoli (2014), o número de caixas de Metilfenidato vendidas no Brasil passou de 2,1 milhões em 2010 para 2,6 milhões em 2013. O número de prescrições tem aumentado a ponto de esse processo ser chamado de “farmacologização” – o uso de psicotrópicos para tratamento de problemas de atenção e impulsividade na escola (BOARINI, 2006) – , a despeito da clareza dos mecanismos de ação do medicamento, como consta na bula da Ritalina: Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado, mas acredita-se que seu efeito estimulante é devido a uma estimulação cortical e possivelmente a uma estimulação do sistema de excitação reticular. O mecanismo pelo qual ele exerce seus efeitos psíquicos e comportamentais em crianças não está claramente estabelecido, nem há evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central. (RITALINA, NOVARTIS, 2015) Boarini e Yamamoto (2004) assinalam que essa maneira de encaminhar as dificuldades de aprendizagem e de comportamento (seja na forma de indisciplina seja na de TDAH) não é específica do nosso tempo. Ao retornarmos à história, vemos que a medicalização é o centro do pensamento eugenista e higienista. Vestígios do pensamento eugênico são encontrados desde a Idade Antiga na forma de controle social. Como exemplo: Platão, almejando a manutenção da organização espartana, aconselhava aos magistrados que procurassem estabelecer união matrimonial junto aos melhores cidadãos, sustentando o ideal de equilíbrio entre o percentual de nascimento e de morte para a felicidade da população (BOARINI, 2003). O termo eugenia surgiu em 1869 com Francis Galton (1822-1911), tendo por base os estudos realizados por seu primo Robert Charles Darwin (1809-1882). Galton procurou demonstrar que a genialidade individual ocorria com grande frequência em famílias de intelectuais. Congressos foram realizados para discutir o assunto (entre os quais o de Londres, em 1912, e o de Nova Iorque, em 1922), resultando em duas produções: “ Eugenics Genetics, and the Family ” e “ Eugenics in race and State ”. Pesquisadores europeus e americanos deram continuidade aos estudos iniciados por Galton, procurando explorar cientificamente os efeitos físicos e

culturais decorrentes da miscigenação das raças. Algumas dessas produções carregam conteúdos extremamente racistas, repercutindo sobre os intelectuais brasileiros nas primeiras décadas do século XX (MANSANERA & SILVA, 2000). Nessa direção, Patto (1993, p. 33) enuncia que Comte, […] o autor da filosofia positivista reconhecia somente três raças distintas: a branca, à qual atribuía a inteligência, a amarela, portadora dos dons da atividade, e a negra, movida principalmente pela afetividade. Saint-Simon, em 1803, opunha-se ao princípio da igualdade entre os homens e preconizava que Os revolucionários aplicaram aos negros os princípios de igualdade: se tivessem consultado os fisiólogos teriam aprendido que o negro, de acordo com sua organização, não é susceptível, em igual condição de educação, de ser elevado a mesma altura de inteligência dos europeus. (PATTO, 1993, p. 31) O racismo foi, em muitos casos, uma forma de justificar as diferenças entre as classes sociais, isentando de análise a lógica de funcionamento excludente da sociedade capitalista nascente. De acordo com os eugenistas, o brasileiro não pôde assegurar o desenvolvimento harmônico do país “[…] porque o calor e a mistura com raças inferiores tinham-no tornado preguiçoso, ocioso, indisciplinado e pouco inteligente” (COSTA, 1989, p. 82 apud MANSANERA & SILVA, 2000, p. 121). Acreditavam que era necessário usar todos os conhecimentos visando à melhora física, mental e racial das futuras gerações. Para tanto, a eugenia propunha estimular os nascimentos desejáveis (eugenia positiva) e desencorajar deliberadamente a união de tarados e degenerados, quais sejam, os tuberculosos, os sifilíticos, os alcoolistas, os epilépticos, os alienados etc. (BOARINI, 2003). Moysés (2001) assinala que a lei de esterilização compulsória foi aprovada em muitos estados americanos a partir de 1907. Em 1927, a Suprema Corte declarou essas leis constitucionais, fundamentada no pressuposto de que se pautavam em “[…] evidências científicas de que essas características eram transmitidas por genes” (LEWONTIN et alii apud MOYSÉS, 2001, p. 101). Os eugenistas […] acreditavam que a solução para as misérias da sociedade estava no domínio da seleção natural e, mais ainda, acreditavam que a causa das misérias sociais estava no fato de o homem não tomar sob suas rédeas o controle científico daquilo que é feito pela natureza. Concebiam, como Kehl (1932), que havia excesso de gente de baixa categoria física, psíquica e intelectual, que comia e não produzia, e que, sem trabalhar, agitava-se nocivamente, perturbando o equilíbrio social. (MANSANERA & SILVA, 2000, p. 121)

Disseminou-se a ideia de que a grandiosidade e o fortalecimento de uma nação estavam diretamente vinculados à perfeição física e moral de seu povo. Nessa perspectiva, as contradições sociais deveriam ser controladas à semelhança de qualquer outro fenômeno da natureza. Como consequência, foi se configurando uma nítida confusão entre determinação biológica e a construção histórico-social da humanidade (BOARINI, 2003). O movimento higienista surge no final do século XIX e início do século XX, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, em meio à expansão industrial e ao êxodo do campo para a cidade. A combinação de uma elevada concentração populacional com uma precariedade de infraestrutura e ausência de disponibilidade de água potável e saneamento básico provocou o surgimento de uma série de doenças. Os dados de mortalidade em São Paulo eram altíssimos: por exemplo, em 1924, faleceram 1893 do total de 3896 crianças por causa de diarreia e enterite (48,58%); no ano seguinte, foram 2279 do total de 4221 crianças com as mesmas doenças (54%) (PASCARELLI, 1926 apud BOARINI, 2012). No período que antecede ao surgimento da bacteriologia e da microbiologia, acreditava-se que a origem biológica das doenças era decorrente do ar frio, quente, seco e/ou úmido, bem como dos cheiros fétidos que surgiam da terra em consequência da decomposição de materiais orgânicos, criando um ambiente propício à doença. De acordo com Girolamo Fracastoro (apud BOARINI, 2003), o pensamento comum era que o contágio que ocorria por meio de sementes ou seminarias também era uma forma de adoecer. Essa ideia se manteve até o final do século XVIII, quando foi descoberta a existência dos micróbios (que nada têm a ver com as seminarias). Vale salientar que os recursos terapêuticos disponíveis à época se limitavam ao saneamento ambiental – de forma precária –, a quarentenas (ao isolamento do doente ou suspeito por quarenta dias, mantido sob observação e exposto à luz solar) e exclusão dos doentes (recolhimento do doente em hospitais, visando proteger a população do perigo por ele representado). É importante mencionar que os hospitais, até o século XVIII, não tinham caráter terapêutico – limitavam-se a assistir material e espiritualmente o pobre doente (BOARINI, 2003). No final do século XIX, Pasteur explicitou a existência de micróbios transmissores de infecções e elucidou os modos de preveni-los. Tais descobertas contribuíram para a superação da ideia de que as doenças eram transmitidas pelo ar. Isso não desqualificou a necessidade da higiene no combate às doenças; ao contrário, delimitou com mais clareza as causas dos males que afetavam a população. Apesar de algumas conquistas importantes no campo da saúde ocorreram a partir da revolução de 1848, a maior parte da população continuava vivendo em condições extremamente miseráveis, com longas jornadas de trabalho, elevado número de acidentes de trabalho e insalubridade. Nesse contexto, as precárias condições de saúde precisam ser entendidas em estreita relação com o processo de precarização das condições de vida. Entretanto, ressaltamos que a combinação doença/pobreza abre espaço para o surgimento de um mito: “a pobreza e a falta de higiene daí decorrente passam a ser a causa da doença” (BOARINI, 2003, p. 35).

Nessa maneira de pensar o processo Saúde/Doença, não há espaço para determinantes como políticas públicas, condições de vida, classe social. A ignorância seria a grande responsável pelas altas prevalências de doença. Daí, a solução só poderia ser pelo ensino. A medicina exercerá seu papel normatizador com grande eficiência, difundindo ideias que perduram até hoje, inclusive na formação de profissionais. (MOYSÉS, 2008, p. 2) Naquele contexto, o movimento higienista ganhava força. A higiene, segundo Peixoto (1921 apud BOARINI, 2012), pode ser entendida como “a nova medicina”. Enquanto a velha medicina procura sarar as doenças, às vezes sem obtenção de êxito, a nova procura agir de forma a evitar a doença, ou seja, visando à prevenção da doença mental, das mazelas de caráter social e à melhoria da raça (BOARINI, 2012). Os profissionais adeptos do higienismo e da eugenia criaram, em 1923, no Rio de Janeiro, a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), cujo objetivo era a elaboração de programas de higiene mental a partir da ideia de prevenção eugênica. A Liga intencionava: a) a prevenção de doenças nervosas e mentais; b) a proteção e o amparo no meio social aos egressos dos manicômios e aos deficientes mentais passíveis de internação; c) a melhoria no tratamento dos doentes nervosos em asilos públicos, particulares ou fora deles; e d) a realização de um programa de higiene mental no campo das atividades individuais, escolares, profissionais e sociais (MANSANERA & SILVA, 2000). A escola, naquele período, deveria estar voltada não só para o ensino de conteúdos escolares, mas também para o ensino da higiene. Desse modo, deveria centrar-se no combate às patologias, à pobreza e ao vício que se espalhava pelo país (MANSANERA & SILVA, 2000). Wanderbroock Junior (2009) acentua que um dos objetivos da Liga no trato com a criança era bastante claro: higienizar para conter. Uma das preocupações centrais desse grupo de intelectuais direcionava-se para a tentativa de responder à seguinte questão: como prevenir a nação de futuros conflitos sociais? A meta, portanto, era “[…] prevenir a pátria de futuros ‘agitadores sociais’, hoje escondidos atrás da infância, que precisava ser submetida ao rigoroso procedimento de aplicação da higiene mental” (WANDERBROOCK JUNIOR, 2009, p. 108). Nessa mesma direção, Boarini (2006, p. 6.522) afirma que […] os higienistas dedicaram-se com determinação à prevenção e adequação do comportamento dos indivíduos, ainda na infância, a fim de evitar a “anarquia social” materializada através das greves e demais movimentos reivindicatórios da classe operária dessa época. Movimentos grevistas eram frequentes ante a condição miserável da classe trabalhadora no final do século XIX e início do século XX. Entretanto, a ciência médica explicava a “rebeldia” dos trabalhadores como “reações de defesa de inadaptáveis” (LOPES, 1930 apud BOARINI, 2006, p. 6.522). Desse modo, as contradições sociais passam a ser compreendidas como decorrentes das diferenças de aptidão dos indivíduos para dar conta de sua saúde física e mental.

A criança foi o principal alvo de aplicação dos princípios da higiene mental, pois defendia-se a tese de que não era um adulto em miniatura. A diferenciação entre a criança e o adulto permitia pensar que os efeitos da higiene mental sobre as crianças poderiam produzir respostas diferentes daquelas dos adultos. Assim, “Aquilo que nos adultos provocaria resultados negativos, na criança poderia aparecer de forma positiva, ou vice-versa” (WANDERBROOCK JUNIOR, 2009, p. 108). Assim, Não se trata de acariciar e proteger os pequenitos para simples satisfação dos nossos instintos simpáticos. Não se trata de piedade nem de caridade, fórmulas cômodas de fundo um tanto egoísta e que a nada obrigam. Exigeno – a criança, para seu amparo e sua proteção – a raça, para seu aperfeiçoamento; a sociedade, para sua defesa e melhor organização; – as três, para um remoto ideal de humanidade feliz. (VIANNA, 1925, p. 180 apud WANDERBROOCK JUNIOR, 2009, p. 110) Esse ideal era, de fato, bastante remoto, uma vez que o problema real pelo qual a criança passava não era de ordem racial, biológica ou hereditária, mas de ordem social. O grande “mal” que afetava a vida da criança oriunda da classe trabalhadora era proveniente das fábricas, e não de sua hereditariedade, ainda que não fosse desprezada esta última. O fator que determinava a vida da criança era histórico e não natural. (WANDERBROOCK JUNIOR, 2009, p. 110) A escola oferecia pelo menos quatro vantagens fundamentais para a realização da higienização das crianças. Em primeiro lugar, pela concentração social; em segundo, pela maior acessibilidade; em terceiro, pela demanda, e, em último lugar, pela fácil observação para a atuação dos médicos. Em consonância com Boarini e Yamamoto (2004), a entrada na escola era considerada o momento ideal para a formação de hábitos higiênicos. Nesse sentido, no Terceiro Congresso Brasileiro de Higiene, realizado em São Paulo, em 1926, que teve como temática central a “Formação de hábitos sadios nas creanças: estudo psychologico, pedagógico e hygienico”, o médico Carlos Sá, participante do evento, sugeriu um verso que deveria ser recitado diariamente por todas as crianças, visando ao estabelecimento de hábitos saudáveis: Hoje escovei os dentes; Hoje tomei banho; Hoje fui à latrina e depois lavei as mãos com sabão; Hontem me deitei cedo e dormi com janellas abertas; De hontem e para hoje já bebi mais de 4 copos d’agua; Hontem comi ervas ou frutas, e bebi leite; Hontem mastiguei devagar tudo quanto comi; Hontem e hoje andei sempre limpo; Hontem e hoje não tive medo; Hontem e hoje não menti. (SÁ, 1926 apud BOARINI & YAMAMOTO, 2004, p. 65) A preservação da saúde é entendida por Sá como algo essencialmente individual, que pode ser alcançada por meio dos ensinamentos da educação higiênica e eugênica (BOARINI & YAMAMOTO, 2004). Boarini (2003, p. 39) aponta, de modo bastante claro e enfático, os limites dessa tarefa atribuída à educação pelo movimento higienista:

Entendendo-se que os novos hábitos de higiene aprendidos através da educação, por si só, remediarão a população de sua situação de pobreza e de todas as precariedades daí advindas é, no mínimo, um equívoco. E mais que isso: em disfunção, a credibilidade da educação fragiliza-se. Não obstante, foram esses os encaminhamentos que se multiplicaram no Brasil no final do século XIX e início do século XX, nos países industrializados ou em vias de industrialização. […] Entendia-se que para promover a saúde e prevenir a doença era preciso combater a ignorância, o que precisava ser realizado principalmente junto às famílias (a mãe, especialmente) e à escola. A tese de que o sucesso na escola dependia, em grande medida, das atitudes da família na educação da criança é bastante atual e tem sua origem nos ideais do higienismo. A Liga (1925, p. 195 apud BOARINI, 2003, p. 40) ainda preconizava que […] para facilitar e preparar a adaptação individual é necessário instituir o trabalho educativo das mães, amas e professoras, no sentido de criar bons hábitos de vida mental, desde o nascimento, já evitando-se as violências emocionais, os excessos de autoritarismo ou de tolerância e os exageros da imaginação, já procurando formar nos indivíduos uma personalidade confiante, capaz, resistente e devotada à atividade da vida real, que reconheça, desde cedo, as restrições socais e direitos de outras pessoas. Enfatizamos o forte componente moralizante, na medida em que se prescreviam normas de comportamentos tidas como mais adequadas às populações mais pobres, para que uma sociedade “moderna” se formasse no país (MANSANERA & SILVA, 2000). A escola tinha como uma de suas principais tarefas cuidar da saúde mental de seus componentes. Bittencourt (1941 apud WANDERBROOCK JUNIOR, 2009) entendia a educação como crescimento, e assim sendo, como um fenômeno natural. O fator mais importante no campo da educação era o psicológico, pois por meio dele se dava a “adaptação social” da criança. Nessa concepção, a escola converte-se em um espaço natural, “vítima apenas das determinações naturais e, portanto, arredia às intempéries da história” (WANDERBROOCK JUNIOR, 2009, p. 114). Para a Liga, a alfabetização era questão central, pois dificilmente uma criança analfabeta seria capaz de compreender os pressupostos defendidos por ela. Assim, alfabetizar e higienizar eram processos combinados. Além disso, fazia-se necessário preparar mão de obra para o processo produtivo. O educador assumia papel central na disseminação dos ideários da Liga e sua tarefa consistia em “modificar os seres humanos”. Para tanto, precisava conhecê-los muito bem, tornando-se capaz de influenciar a vida afetiva da criança. Qual a finalidade do trabalho docente? Tornar úteis as crianças, ou seja, “almejar pouco e trabalhar muito” (OLINTO, 1934, p. 122 apud WANDERBROOCK JUNIOR, 2009, p. 121). Em 1934, Arthur Ramos instalou o primeiro serviço oficial de higiene mental infantil em escolas do Rio de Janeiro. O serviço recebeu o nome de secção de Ortrofenia e Higiene Mental e incluía

[…] a higiene mental preventiva de escolares, a educação de pais, professores e visitadores, clínicas de hábitos e de direção da infância, exame médico-psicológico do escolar, orientação dos psiquicamente sãos, reajustamento dos mal-ajustados, formação mental do educador, formação do educador especializado, educação do público através de conferências, divulgação através do radio, cinema, boletim, publicações, trabalhos de experimentação, originais e contraprova de experiências estrangeiras, entre outros trabalhos. (RAMOS, 1939 apud MENDONÇA, 2006, p. 56) Nessas clínicas, a equipe técnica era composta de psiquiatras, psicólogos e visitadores psiquiátricos. O método de trabalho era a psicanálise, mais especificamente as contribuições de Freud, Adler e Jung. Ramos propunha que as crianças consideradas difíceis eram vítimas de circunstâncias adversas, e destacava as condições de desajustamento de seus ambientes social e familiar (MENDONÇA, 2006). Ramos preconizava, por conseguinte, que o não aprender não deveria mais ser explicado pela constituição cerebral do aluno, mas sim pelo ambiente vivenciado pela criança. O foco, então, desloca-se “da herança para o meio, de anormal para anormalizado” (GUALTIERI & LUGLI, 2012, p. 26). Ramos discute a questão da criança turbulenta, agressiva, instável, impulsiva, etc e sua associação com a desobediência, a indisciplina, a teimosia, as fugas escolares, os problemas sexuais, o medo e a angústia, a mentira e os furtos. Todas essas manifestações são vistas sob a ótica que Ramos concebe como sendo a Psicanálise, pois leva em consideração a formação da personalidade a partir dos processos psicológicos como a identificação, a formação do superego (formação moral) e o estabelecimento de relações afetivas de amor e ódio entre pais e filhos e entre irmãos. (MENDONÇA, 2006, p. 60) Segundo Arthur Ramos (1903-1949), nem todas as crianças poderiam ser denominadas “anormais” somente porque não acompanhavam o ritmo de aprendizagem das ditas “normais”. Em sua acepção, apenas uma pequena parte das crianças merecia ser chamada de “anormal”, aquelas não educáveis no ambiente da escola comum devido a defeitos constitucionais, hereditários ou outros que pudessem provocar desequilíbrio das funções neuropsíquicas (GUALTIERI & LUGLI, 2012). Para as demais, a denominação considerada adequada passou a ser criança-problema . Mendonça (2006, p. 72) assevera que a Psicanálise objetiva “ajustar” a criança tida como “desajustada”, o que significa “[…] impedi-la de tornar-se criminosa e encontrar um lugar para ela na sociedade do trabalho livre”. Arthur Ramos estabelece uma relação de causa e efeito entre miséria e máformação do caráter, permeada pelo sofrimento orgânico. Ramos (1933) constrói uma ideia de Psicanálise que comporta contradições de várias ordens. Extrapola o conceito de relação transferencial analítica para relação transferencial professor-aluno, desrespeitando critérios clínicos existentes para a definição desse tipo de relação. Inclui conceitos estranhos ao campo psicanalítico como, por exemplo, “falha”, “defeito”, “desajustamento”, conceitos esses que remetem ao campo conceitual da psicologia comportamental e experimental. Também inclui objetivos

estranhos, como ‘[…] livrar a alma da criança de obstáculos […]” ou “[…] preparar terreno purificado para o desenvolvimento harmonioso […]” (RAMOS, 1933, p. 201), mais adequado a um discutir positivista religioso. (MENDONÇA, 2006, p. 78) A Medicina fez uso da Psicanálise, permitindo uma reinterpretação dos problemas nacionais. O foco deixou, assim, de ser o coletivo para centrar-se no individual. Além disso, houve um deslocamento dos aspectos biológicos para o âmbito mental, propondo medidas educativo-civilizadoras (MENDONÇA, 2006). Foram os intelectuais adeptos do higienismo que fizeram a entrada, no Brasil, da profissão de psicólogo (BOARINI & YAMAMOTO, 2004). Conforme Wanderbroock Junior e Boarini (2007), entre 1914 e 1945 o Brasil passou por um processo de “educação sob medida”, utilizando-se testes psicológicos para seleção dos mais aptos e sua separação social dos não aptos, a fim de garantir uma nação saudável. Em decorrência da adoção do princípio do determinismo genético – que define a capacidade de adaptação ou não do indivíduo ao meio –, o problema deixa de ser a identificação da causa do desvio social e passa a ser a quantificação dessa incapacidade. Verificamos a ampliação de grande quantidade de instrumentos de avaliação de diferentes naturezas: testes psicológicos, de mensuração física (por exemplo, o de crânio) (BOARINI, 2003). Galton, considerado o pai da psicologia escolar, era primo de Darwin e desenvolveu o projeto de aprimoramento da espécie humana por meio da seleção dos indivíduos mais capazes. Em sua perspectiva, por capacidade entende-se “[…] a posse das aptidões e traços de personalidade compatíveis com a manutenção da ordem social em vigor” (PATTO, 1993, p. 96). Galton atuou no laboratório de Psicometria, em Londres, e desenvolveu testes psicológicos para mensurar as diferenças individuais. Moysés (2001, p. 98) explica que o termo “diferenças individuais” não expressa a desejável pluralidade entre os homens, mas diz respeito às “[…] diferenças decorrentes de indesejável miscigenação/degradação genética. Dedica-se a identificar os incapazes para, eugenicamente, defender o aprimoramento da espécie humana”. […] esses instrumentos, via de regra, são pautados em artifícios matemáticos e desarticulados de todos os complexos processos econômicos, políticos e sociais, engendrado por e para esse homem. Desse modo, adotando-se esses instrumentos e desconsiderando-se a complexidade social, corre-se o risco de não se levar em conta o livre-arbítrio do indivíduo. Normaliza-se o fenômeno, absolutizando o conceito, o qual pode ser associado a qualquer coisa, desde acidentes geográficos até diferenças raciais. A diversidade, a complexidade de toda a ordem, enfim, toda a turbulência gerada pelas necessidades de organização produtivo-social são justificadas pela silenciosa e, aparente, imutável lei da natureza. São essas ponderações que pareciam estar ausentes nessas avaliações. Sob a égide da objetividade, da neutralidade e da positividade acredita-se prever o futuro dos indivíduos e, nessas circunstâncias, mudar o destino das nações. (BOARINI, 2003, p. 31)

Na concepção de Fernando de Azevedo (1894-1974), a aprendizagem e a continuação da escolarização dependiam das tais “aptidões naturais”, e isso elucidava o ideal da pirâmide educacional: “pouca escolarização para muitos e muita escolarização para poucos” (GUALTIERI & LUGLI, 2012, p. 18). Nesse contexto, a escola seletiva se consolidou e os testes psicológicos foram usados para medir as diferenças individuais a fim de classificar os alunos – uma condição necessária para realizar uma educação sob medida, oportunizando o ensino conforme a capacidade dos alunos. Apoiando-se na ideologia meritocrática, a inteligência era considerada inata e imutável (MOYSÉS, 2001, p. 99). A reforma escolar realizada no Rio de Janeiro (1927-1930), Distrito Federal da época, por Fernando de Azevedo, então diretor da instrução pública, pode ser citada como exemplo de seletividade. Seus artigos 446 e 447 estabeleciam a formação das salas de aula de acordo com as aptidões, condições e necessidades físicas. Por meio da reforma foram criados quatro tipos de classes: “comuns ou principais, para normais; diferenciais ou fracas para alunos débeis de espírito, instáveis ou retardados; e especiais ou de auxílio, para anormais psíquicos verdadeiros” (AZEVEDO, 1931 apud GUALTIERI & LUGLI, 2012, pp. 19-20). Ademais, os professores eram orientados a identificar “os doentes, os desnutridos, os tuberculosos, os deficientes físicos, os pobres” (AZEVEDO, 1931 apud GUALTIERI & LUGLI, 2012, p. 20), para que fossem encaminhados a clínicas escolares. A reforma objetivava a formação de classes homogêneas, com alunos com níveis de inteligência semelhantes. Essa era considerada uma das maneiras de enfrentar o problema da repetência e de dar a cada um o que sua competência permitia. A escola deveria encontrar aqueles com “dom” para o trabalho manual e os inclinados para o trabalho intelectual. A seleção era realizada por meio de uma “ficha médico-psicológica”, que consistia na classificação dos alunos em classes conforme suas capacidades intelectuais e também no melhor emprego em outras atividades para aqueles que não eram bons para o estudo (ROXO, 1925 apud WANDERBROOCK JUNIOR & BOARINI, 2007). A escola tinha, portanto, o objetivo de preparar a força de trabalho; além disso, deveria garantir a ordem social. Devemos entender a culpabilização da criança pelo fracasso escolar por causa de pretensas características biológicas, nesse quadro em que as ciências (especialmente, as da hereditariedade) sustentavam explicações pessimistas de que a não aprendizagem era resultado da condição do indivíduo, sobre a qual a escola não poderia intervir. Mas se o problema orgânico derivasse de problemas de saúde ou má nutrição, o poder público poderia interferir para minimizá-los, pois eram entendidos como limitadores da aprendizagem. Outro aspecto muito valorizado na época era o esforço pessoal condizente com o ideário liberal. Esse esforço era visto como elemento determinante para o sucesso ou insucesso na vida escolar, combinado com as “aptidões naturais”. Segundo Gualtieri e Lugli (2012, p. 22), “[…] a combinação entre capacidade, dote intelectual e esforço definia o mérito”. Com essa ideia, a sociedade e a escola eram isentas de responder pela desigualdade de resultados, porque a própria criança ou o jovem seria responsabilizado por

atingir as expectativas da escola, por ser incapaz (do ponto de vista biológico) ou por não se esforçar o bastante, ou os dois ao mesmo tempo. Podemos observar esse pressuposto nas ideias de Henry Goddard (1866-1957), psicólogo que levou para os Estados Unidos o teste de QI. Goddard proferiu uma palestra a um grupo de universitários da Universidade de Princeton, em 1919, na qual argumentou que as massas trabalhadoras ocupavam a posição social que realmente lhes cabia pelo seu grau de inteligência. Ora, a verdade é que os operários provavelmente têm uma inteligência de 10 anos, enquanto vocês têm uma de 20. Exigir para eles uma casa como a que vocês possuem é tão absurdo quanto exigir que cada operário receba um diploma de graduação. Como pensar em igualdade social se a capacidade mental apresenta uma variação tão ampla? (GOULD, 1999, p. 166) As desigualdades sociais passam, assim, a ser justificadas pelas diferenças individuais. Patto (1993, p. 39) explicita o caráter ideológico da apologia das diferenças individuais ao afirmar que […] numa ordem social em que o acesso aos bens materiais e culturais não é o mesmo para todos, o “talento” é muito menos uma questão de aptidão natural do que de dinheiro e prestígio; mais do que isto, numa sociedade em que a discriminação e a exploração incidem predominantemente sobre determinados grupos étnicos, a definição da superioridade de uma linhagem a partir da notoriedade de seus membros só pode resultar num grande malentendido: acreditar que é natural o que, na verdade, é socialmente determinado. De acordo com Moysés (2001, p. 101), os testes de QI foram aplicados pelas forças armadas americanas a todos os soldados na primeira Guerra Mundial, […] comprovando que imigrantes do Leste e Sudeste da Europa eram intelectualmente inferiores, por uma determinação genética, aos nórdicos. A partir dos resultados de QI foi determinado, cientificamente, quais soldados deveriam ser alocados em postos de comando e quais os que deveriam ser enviados para a morte quase certa das frentes de batalha. A autora aponta ainda algumas tarefas contidas no teste e propostas aos recrutas: Para os alfabetizados e que falavam inglês, o teste era o Army Alfha Test, que solicitava a imigrantes poloneses, italianos e judeus que identificassem produtos manufaturados típicos da cultura americana (armas da Smith e Wesson, por exemplo) e elencar os nomes dos jogadores de determinado time profissional de beisebol. Aos imigrantes que não dominavam a língua inglesa, aplicava-se o Army Beta Test, destinado a medir a inteligência inata não verbal, solicitando, por exemplo, que apontassem o item que faltava no desenho apresentado. O teste incluía um desenho de uma quadra de tênis, em que faltava a rede. O imigrante que não conseguisse responder tal questão era, portanto, geneticamente inferior aos psicólogos jogadores de tênis, que desenvolveram tal teste para adultos. (MOYSÉS, 2001, p. 101)

Essa assertiva levanta uma questão central, qual seja, os testes referidos não mensuram a inteligência – até porque, como entidade abstrata, ela não existe. O que é avaliado pelos testes são os conhecimentos prévios adquiridos (ou não) pelos indivíduos ao longo de sua história de vida. Em meados de 1960, houve a intensificação de interpretações que assinalavam estreita afinidade entre desempenho escolar insuficiente e o baixo nível socioeconômico. Assim, mais uma teoria foi elaborada para explicar o fracasso escolar (GUALTIERI & LUGLI, 2012). A Teoria da Carência Cultural surgiu nos Estados Unidos e ganhou força por meio de pesquisas com crianças de classe econômica inferior. Em 1960, havia abundância de estudos visando comparar o rendimento intelectual e escolar dos alunos das diferentes classes sociais. Esses defendiam que crianças advindas de famílias de baixa renda aprendiam lentamente e eram desinteressadas dentro das salas de aula, tinham dificuldade de abstração, verbalização, de adequação às regras e à disciplina da escola, além de apresentarem problemas de saúde que intervinham na aprendizagem, gerando, como consequência, atraso escolar. Novas categorias foram construídas: “[…] os culturalmente desfavorecidos, os linguisticamente deficientes, os socialmente prejudicados” (GUALTIERI & LUGLI, 2012, p. 29). As explicações genéticas foram substituídas pela compreensão que centra nas circunstâncias de vida do homem a responsabilidade pelo seu destino. Nessa perspectiva, não é o negro que é inferior, são as circunstâncias que o fazem inferior (MOYSÉS, 2001). Segundo Gualtieri e Lugli (2012), os programas de educação compensatória eram, nesse contexto, uma tática para fazer frente a esses possíveis “déficits” das crianças, prevenindo ou suavizando seus efeitos, dependendo do momento em que fossem inseridos. No caso dos pré-escolares, o objetivo era melhorar a “prontidão” da criança para a aprendizagem escolar e aproximá-las daqueles que não sofreram “privação cultural”. No caso dos que estavam na escola, o objetivo era estimular os alunos a melhorar a atenção, a criatividade, o interesse, a disciplina e as habilidades que o mundo escolar requeria.

Vale destacar que o discurso biologizante não foi superado com o advento da Teoria da Carência Cultural. Podemos verificar esse fato no artigo publicado em 1969 por Artur Jensen, no qual o autor defende que as diferenças encontradas entre brancos e negros nos testes de QI poderiam ser explicadas pela genética. Gastos governamentais destinados à educação das crianças negras eram considerados inviáveis, pois era impossível anular ou mesmo minimizar a determinação genética (RYAN, 1976 apud MOYSÉS, 2001). Ainda na década de 1960, foram divulgadas várias pesquisas defendendo que as diferenças sociais entre homens e mulheres decorriam de diferenças intelectuais, que, por sua vez, eram geneticamente determinadas. Essas ideias existem no senso comum até hoje, enfatizando que nos homens as áreas cerebrais mais desenvolvidas estão relacionadas com o raciocínio matemático e a abstração, enquanto que nas mulheres as áreas mais desenvolvidas seriam o domínio linguístico e as emoções. Nessa mesma época, a violência passa a ser explicada por “cérebros disfuncionais” e a alternativa para o problema dos conflitos sociais (especialmente nos guetos) passa a ser a psicocirurgia – denominação atualizada para lobotomia frontal (MOYSÉS, 2001). Em 1962, é realizado um workshop internacional em Oxford, agrupando equipes de pesquisa que trabalhavam com a hipótese de que a dificuldade das crianças na escola poderia ser explicada pela existência de Lesão Cerebral Mínima. O resultado unânime encontrado foi que usando todos os recursos disponíveis, mediante procedimento de abertura do crânio de pessoas mortas, nenhum grupo conseguiu encontrar a tal lesão nas inúmeras pessoas a quem havia sido atribuído o referido diagnóstico. Chegaram, portanto, à conclusão óbvia de que não existia lesão mínima; entretanto, essa constatação não foi suficiente para alterar o princípio que estava por trás dessa ideia: a causa do não aprender continuava sendo buscada no organismo do indivíduo, mas era preciso mudar a denominação: de lesão cerebral mínima para Disfunção Cerebral Mínima (DCM), apresentando as seguintes características: a) acometer exclusivamente comportamento e aprendizagem; b) critérios subjetivos, imprecisos e sem número mínimo de sinais, de modo que um critério apenas já bastava para fazer o diagnóstico; c) falta de sinais ao exame físico e neurológico; d) falta de alterações em qualquer exame de laboratório, incluindo a radiografia e o eletroencefalograma (MOYSÉS & COLLARES, 2012). É possível identificar a mudança de terminologia (lesão cerebral mínima, disfunção cerebral mínima, transtorno de déficit de atenção, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), mas a essência permanece a mesma – a existência de uma causa biológica que justifique problemas de atenção e impulsividade e que repercutem no aprendizado escolar –, sem nenhuma comprovação científica. Trata-se de […] um falso discurso científico para encobrir uma determinada pretensão ideológica, ou seja, a biologização de aspectos eminentemente sociais, com isso isentando a estrutura social, política e econômica de suas responsabilidades, bem como as instituições, seus dirigentes e executores. (SPAZZIANI, 2001 p. 50) Considerações finais

Os movimentos eugenista e higienista estiveram presentes na vida dos brasileiros no início do século XX e difundiram concepções que ainda orientam práticas escolares, como a ideia de que as disposições hereditárias definem a capacidade de inteligência dos alunos, que têm nos testes psicométricos a principal e mais adequada forma de avaliação; a ideia de que as crianças não aprendem na escola porque não se esforçam ou porque não são brancas; a ainda confusa e conflituosa ideia da relação família/ escola, na qual ainda se acredita que a criança fracassa na escola porque o pai bebe, a mãe trabalha fora (ou não trabalha?); a ideia de que problemas escolares podem ser resolvidos mediante a análise única e exclusiva da dinâmica psíquica ou cerebral da criança, desconsiderando, em grande medida, os contextos social e escolar em que ela se encontra inserida. Todos esses fenômenos expressam a medicalização da educação. Seu enfrentamento depende, em grande medida, da compreensão de seu fundamento ideológico: a manutenção das desigualdades sociais. Nadia Mara Eidt Psicóloga, professora doutora no Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina. Damily Rodrigues Martins Pedagoga pela Universidade Estadual de Londrina. Referências: Brasil. ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Relatório de Atividades de 2009. Disponível em http://www.anvisa.gov.br/sngpc/ relatorio_2009.pdf. Acesso em: 20 fev. 2018. BOARINI, M. L. A infância higienizada. In: __. Higiene mental : ideias que atravessaram o século XX. Maringá: Eduem, 2012. v. 1, p. 25-48. BOARINI, M. L. Higienismo, Eugenia e a naturalização do social. In: __. Higiene e raça como projetos : higienismo e eugenismo no Brasil. Maringá: Eduem, 2003. v. 1, p. 19-43. BOARINI, M. L. O higienismo na educação escolar. In: CONGRESSO LUSOBRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 6, 2006, Uberlândia. Anais … Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2006. BOARINI, M. L.; YAMAMOTO, O. H. Higienismo e eugenia: discursos que não envelhecem. Psicologia Revista , São Paulo, v. 13, n. 1, p. 59-72, 2004. CAMBRICOLI, F. Brasil registra aumento de 775% no consumo de Ritalina em dez anos. O Estado de São Paulo , São Paulo, 11 ago. 2014. Disponível em: < http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-registra-aumentode-775-no-consumo-de-ritalina-em-dez-anos,1541952 >. Acesso em: 20 fev. 2018.

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Diante desses aspectos, este texto foi organizado com o intuito de apresentar uma análise que possibilite pensar o fenômeno em sua complexidade, historicidade e multideterminação, para oferecer fundamentos teóricos ao trabalho pedagógico, que permitam a compreensão acerca do desenvolvimento do psiquismo. A atenção voluntária, enquanto Função Psicológica Superior (FPS), é aqui destacada como um processo que depende de diferentes mediações para se configurar. A gênese dessa relação é de natureza educativa e ocorre com base em experiências e vivências do indivíduo na família, na escola e na sociedade; assim, o papel da educação escolar constitui-se em um recurso essencial à humanização. Para isso, na primeira seção, é realizada uma discussão para definição do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e da terapia farmacológica adotada para o tratamento, os impactos de seu uso para a saúde, bem como o crescimento vertiginoso do consumo. Na segunda seção, são problematizados os comportamentos atípicos da impulsividade, da desatenção e da agitação produzidos na escola, com base em uma análise da relação saúde-doença, em que são reveladas as determinações sociais imbricadas na concepção de doença do TDAH. Na terceira e última seção, são apresentadas as contribuições da Psicologia Histórico-Cultural no papel que o ensino tem sobre o desenvolvimento do psiquismo, em especial no desenvolvimento da atenção voluntária, principalmente no que se refere à intervenção intencional e planejada do educador. O TDAH e os impactos do consumo de medicamentos para a saúde A literatura mundial denuncia que a cada nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) o número de diagnósticos psiquiátricos tem aumento exponencial. Vários autores alertam ainda que os sintomas de déficit de atenção, hiperatividade e impulsividade evoluem de acordo com sinais clínicos bastante ambíguos, possibilitando o surgimento de novas terapêuticas, que podem ou não ser farmacológicas. A literatura atual tem se dedicado aos estudos intrínsecos aos limites e às dificuldades dessa proliferação de diagnósticos que redefinem diversos sofrimentos e condutas em termos médicos (HORWITZ & WAKEFIELD, 2007; CAPONI, 2012; MOYNIHAN & CASSELS, 2006). O certo é que a existência, inevitável, de uma linha tênue entre o normal e o patológico, no campo da saúde mental, parece ter possibilitado o crescente processo de medicalização de condutas consideradas socialmente indesejáveis, que passaram a ser classificadas como anormais. O que se presencia então é o fortalecimento desta estratégia, de tratar acontecimentos cotidianos, que levou ao aumento no número de desordens mentais, denominada por Michel Foucault como medicina do não patológico (CAPONI, 2012). Sanvito (2012) defende que gerar novas doenças, ou renomear doenças antigas, é uma ação realizada frequentemente com o incentivo da indústria farmacêutica, com auxílio de profissionais da saúde e divulgada pela imprensa. Assim, as fronteiras entre o normal e o patológico se misturam. Nesse contexto, a sociedade contemporânea estabeleceu dispositivos reguladores da vida e da saúde, com a função de controlar a vida por meio da criação de desejos, de formas idealizadas de identidade subjetiva de ser

saudável; isso se denomina biopoder ¹ , em que há uma exigência de autoconsciência em torno da saúde, com a qual se cria o modelo ideal de vida, com “[…] novos valores com base em regras de higiene e regimes de ocupação de tempo” (ORTEGA, 2004, p. 15). O TDAH está incluído no DSM-IV ² como categoria de distúrbio psiquiátrico, apresentando como principal característica um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade, todavia mais frequente e severo que o esperado em indivíduos em nível equivalente de desenvolvimento (APA, 2003). De acordo com os dados de prevalência, estima-se que entre 3,4% e 7,2% de crianças e adolescentes e aproximadamente 2,5% dos adultos sejam acometidos por esse transtorno (SIMON, 2009; POLANCZYK, 2015). No Brasil, estimativas de prevalência de TDAH em crianças e adolescentes bastante discordantes foram encontradas, com valores de 0,9% a 26,8%. Existem subtipos de TDAH, entre eles: inatento (31% a 37%), que são caracterizados por comportamentos predominantes de desatenção; hiperativo/impulsivo (2% a 7%), que apresentam em geral sintomas de hiperatividade/impulsividade; e subtipo combinado, cujos pacientes apresentam sintomas de desatenção e hiperatividade/impulsividade, sendo o subtipo mais prevalente (56% a 62%) (MILLSTEIN, 1997; WILENS, 2009; BRATS, 2014). As comorbidades associadas ao TDAH, como dificuldades de aprendizagem, transtornos de conduta e de ansiedade, dificultam seu diagnóstico. Outro fator importante é que este depende de forma significativa dos relatos dos pais e dos professores, considerando que nenhum exame laboratorial é capaz de diagnosticá-lo. As crianças com TDAH têm dificuldade de prestar atenção, controlar comportamentos impulsivos e, em alguns casos, são hiperativas (CDC, 2017). A recomendação atual é que o tratamento do TDAH envolva uma abordagem múltipla, englobando intervenções psicossociais e psicofarmacológicas (ROHDE & HALPERN, 2004; AAP, 2011). De acordo com as Diretrizes do NICE (2009), preconiza-se que os programas baseados em educação e treinamento com os pais e as terapias comportamentais sejam indicados como primeira linha de tratamento. O uso de medicamentos deve acontecer para o controle de sintomas graves. Entre os tratamentos farmacológicos, os psicoestimulantes são os de primeira escolha. No Brasil, o fármaco disponível dessa classe é o metilfenidato (conhecido com o nome comercial de Ritalina). Esse fármaco, que tem meia-vida curta (3 a 4 horas), necessita posologia de três tomadas ao dia (manhã, tarde e noite). A Ritalina é um estimulante do sistema nervoso central, que tem como princípio ativo o metilfenidato e pertence à família das anfetaminas. Ainda como psicoestimulantes, temos a Lisdexanfetamina, que é um pró-fármaco. Após sua administração oral, a molécula é convertida em l-lisina e posteriormente em d-anfetamina, substância ativa que promove o efeito terapêutico esperado. Todavia, é uma segunda linha de tratamento para pacientes que não responderam bem ao metilfenidato (OLIVEIRA & GUERRERO, 2016).

A Ritalina, como um estimulante do sistema nervoso central, que tem como princípio ativo o metilfenidato, pertencente à família das anfetaminas, aumenta a concentração de dopaminas (neurotransmissor associado ao prazer) nas sinapses, mas não em níveis fisiológicos. O metilfenidato também compartilha o potencial de uso abusivo das anfetaminas, sendo considerado substância controlada da classe II nos Estados Unidos (BRUNTON, 2012). Em um estudo realizado por Carlini et al (2003), foram relatados por médicos como eventos adversos ao metilfenidato: dor de cabeça (170 médicos; 27,7%), emagrecimento (163 médicos; 26,6%), inapetência (163 médicos; 26,6%), hiperexcitabilidade (128 médicos; 20,6%), azia/náusea (102 médicos; 16,7%), taquicardia (91 médicos; 14,7%) e parada de crescimento (12 médicos; 1,9%)10. No início do tratamento observa-se dor abdominal, náusea e vômito, aliviados mediante a ingestão concomitante de alimentos. Esses efeitos são confirmados pela base de dados Micromedex e ainda são acrescentados distúrbios do crescimento, rash cutâneo, priapismo entre outros (MICROMEDEX, 2017). Atomoxetina é um medicamento não estimulante que, em estudos, demonstrou diminuição de escores tanto relacionados com a desatenção/ hiperatividade quanto com a depressão em crianças com TDAH, em comorbidade com transtornos depressivos; porém, também pode estar relacionada a eventos adversos cardiovasculares, alteração no crescimento, rash cutâneo, ganho de peso, hiponatremia (MICROMEDEX, 2017). Os antidepressivos tricíclicos (Imipramina, Desipramina, Amitriptilina, Clomipramina), os agonistas de receptores do tipo a2 (Clonidina, Guanfacina), o agonista de noradrenalina e Atomoxetina, Modafinil e Bupropiona também são utilizados no tratamento de TDAH, embora não sejam as medicações de primeira linha (ABDA, 2017). Os antidepressivos tricíclicos foram pesquisados e avaliou-se o efeito da Imipramina em associação com Clordiazepóxido (ansiolítico) no tratamento do TDAH, concluindo-se que essa opção pode ser eficaz, uma vez que 100 (71,4%) pacientes apresentaram redução dos sintomas como ansiedade, padrão de sono, desatenção e hiperatividade, sendo que 40 pacientes (28,6%) apresentaram controle parcial de desatenção e hiperatividade (TOPCZEWSKI, 2014). Outros antidepressivos, como Reboxetina, Seleginina, Venlafaxina e Bupropiona, também estão sendo utilizados, apresentando eventos adversos, como boca seca, tontura, ganho de peso e sonolência (MICROMEDEX, 2017). Medicamentos como anti-histamínicos, agonistas adrenérgicos, como a Clonidina, Metadoxina, Mecamilamina, Modafinil, são alternativas terapêuticas para o tratamento do TDAH, porém, nenhuma terapia farmacológica é isenta de eventos adversos, enquanto evidências sobre o melhor tratamento ainda são escassas (OLIVEIRA, 2016). Diante desse cenário, é importante alertar sobre o aumento no consumo de medicamentos para o tratamento desse transtorno, como observado no boletim publicado pela Anvisa, sendo que o gasto direto total estimado das famílias brasileiras com a aquisição de metilfenidato, no ano de 2011, foi de

aproximadamente R$ 28,5 milhões. No Brasil, o perfil de utilização traçado entre os anos de 2009 e 2011 mostrou um crescimento no consumo de metilfenidato com um comportamento aparentemente variável, com destaque para a redução do consumo nos meses de férias e o aumento no segundo semestre dos anos estudados (ANVISA, 2012). Dados mostram que entre 2007 e 2012 houve um crescimento significativo no consumo de Ritalina. No ano de 2013 houve uma queda no consumo devido à dificuldade de importação do princípio ativo, o que gerou desabastecimento do produto no Brasil, ocasionando um aumento na venda de outras alternativas terapêuticas mais caras, como o Concerta® e o Venvanse®. A não exigência de prescrição especial para a aquisição de Strattera® (atomoxetina) é um problema, já que dificulta a investigação de seu perfil de consumo (FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE, 2015). O Relatório do Conselho Internacional de Controle de Narcóticos para 2014, publicado pela ONU em 2015, indicou os principais fatores que contribuem para o cenário de consumo de medicamentos para o tratamento do TDAH, a saber: a) aumento crescente de pacientes diagnosticados com TDAH; b) a faixa etária dos pacientes que são susceptíveis a receber a prescrição de metilfenidato ter sido ampliada; c) o aumento do uso em adultos; d) erro no diagnóstico de TDAH e prescrição indevida de metilfenidato; e) a falta de diretrizes médicas adequadas relativas à prescrição de metilfenidato; f) a oferta do mercado cada vez maior em muitos países; g) as práticas comerciais influentes, ou de marketing agressivo por parte de fabricantes de preparados farmacêuticos que contêm metilfenidato; h) a pressão da opinião pública, como a exercida por associações de pais, para garantir o direito das crianças à medicação para o tratamento de TDAH (ONU, 2015). Após a publicação do boletim da Anvisa, o Ministério da Saúde emitiu as recomendações para adoção de práticas não medicalizantes mediadas por protocolos municipais e estaduais de dispensação de metilfenidato para prevenir a excessiva medicalização de crianças e adolescentes. Além disso, reafirmou o risco do uso abusivo desses psicoestimulantes por meio de dados, de revisões sistemáticas com metanálises, alertando para o diagnóstico excessivo e o abuso nas prescrições (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017). Alguns pesquisadores atribuem o elevado número de prescrições do metilfenidato para TDAH ao aumento de diagnósticos imprecisos (ITABORAHY & ORTEGA, 2013), alertando ainda para a participação dos laboratórios no financiamento das pesquisas sobre TDAH. Os dados encontrados pelos autores supracitados indicam que a combinação do uso do medicamento com psicoterapias, a dependência do medicamento e a ideia de que existe excesso de prescrição no Brasil são temas controversos nas publicações analisadas (ITABORAHY & ORTEGA, 2013). Com base nesse diagnóstico, no contexto da educação escolar, expressa-se a necessidade de compreender o fenômeno da falta de atenção concentrada, da impulsividade e da hiperatividade para além da sua aparência. É fato que esses aspectos dificultam o processo de aprendizagem de crianças e

adolescentes, entretanto, faz-se necessário, como expressa Kosik (1976), compreender que o fenômeno se manifesta de forma imediata, diferentemente da essência, o que requer a descoberta do seu fundamento oculto. Para isso, torna-se indispensável problematizar e aprofundar as determinações históricas e sociais que envolvem o fenômeno do TDAH, com vistas a superar as explicações biológicas, que têm se disseminado no discurso hegemônico. Da preponderância das explicações organicistas à gênese causal e históricosocial Almeida e Gomes (2014, p. 157) apontam que, cada vez mais, verifica-se uma tendência à transferência de problemas oriundos do contexto social para o campo da relação saúde-doença. Esse processo foi denominado, a partir de meados do século XX, medicalização social e trata-se de um termo que se configura como “processo de apropriação e normatização de crescentes aspectos da vida social pela medicina”. De acordo com Boarini (2006), isso significa a reatualização de um processo que tem base no movimento higienista, como tratado no capítulo anterior, cuja característica relevante pode ser apontada na parceria entre educação, medicina e psicologia. Nesse contexto, os saberes médicos e psicológicos serviram para construir um corpo explicativo de conhecimentos que balizaram o trabalho pedagógico com um claro objetivo, qual seja, o de promover a regeneração da raça e a preparação de mão de obra que sustentasse o início do desenvolvimento industrial, em curso no país. […] o espaço escolar, tanto quanto as cidades, deveria ser esquadrinhado para atender ao projeto político de moralização e regeneração da população brasileira, que trazia os velhos e inadequados costumes do Brasil Colônia. Imbuídos dos padrões de racionalidade técnica e eficiência, do universo escolar nada escapou aos higienistas. Desde a arquitetura, o mobiliário, o ensino propriamente dito até o controle da saúde física, do comportamento social, intelectual e psíquico de cada aluno, tudo foi alvo de preocupações médicas de caráter higienista. (BOARINI, 2006, p. 6.520) Fundamentalmente, os problemas sociais e históricos ficaram subsumidos às explicações de natureza individual e biológica, produzindo uma responsabilização do indivíduo por sua capacidade de adaptação ou inadaptação ao contexto escolar. Isso significa que “[…] tomar o aspecto biológico do homem como responsável direto pelas contradições sociais inerentes a uma sociedade de classes tal qual a que vivemos é negar o processo histórico produzido e gerido pelo conjunto dos homens” (Idem, p. 6.523). Conforme Boarini (2006), uma das questões que diferenciam esse momento histórico daquilo que foi o Movimento de Medicalização no início do século XX no Brasil é que, naquele momento, o discurso científico estava associado ao caráter moral que fundamentava as explicações acerca das crianças que apresentassem diferenças quanto à aprendizagem ou ao controle do comportamento. Sob a égide da explicação do defeito ou desvio, esses comportamentos deveriam ser prevenidos por meio de uma educação higiênica.

Pouco a pouco, está caminhando, em nosso meio, a idéia de cuidar-se da saúde das crianças das escolas, de fazer-se-lhes a educação higiênica, de examinar-se-lhes sistematicamente o corpo e o espírito e de corrigirem-selhes os “defeitos e desvios” afirmava o Dr. J. P. Fontenelle (1925) […]. Nesta batalha pela correção, bem como pela prevenção dos “defeitos e desvios”, condição sine qua non para a construção da Nação brasileira, onde se realizaria o lema positivista da “Ordem e Progresso”, o professor era considerado um importante parceiro. (BOARINI, 2006, p. 6.520) Na atualidade, de acordo com Almeida e Gomes (2014, p. 161), este processo, denominado de medicalização, pode ser caracterizado por aquilo que os autores explicam como “ampliação dos limites do patológico”, no qual se verifica um fortalecimento do monopólio médico no final do século XIX, apoiado no avanço tecnológico, possibilitando à medicina uma perspicácia nos diferentes espaços da vida, sustentada pelo paradigma biomédico. Para explicar tal expansão são evidenciados três aspectos relevantes: o primeiro identifica que há uma elasticidade nos critérios da classificação diagnóstica já estabelecida, o que faz com que o que antes era considerado um comportamento regular, hoje, com base na ampliação dos critérios, possa ser visto como patológico; o segundo refere-se à criação de novas categorias nosológicas, exemplo que pode ser encontrado no DSM-5, nos novos tipos de transtorno, tais como o transtorno disruptivo de regulação de humor, o transtorno de interesse e excitação sexual feminino e a desordem disfórica pré-menstrual; e por último, o que é por eles denominado de prevenção à gestão individual de “risco” à saúde. Neste, é incorporada à racionalidade médica a ideia de multicausalidade referente aos fatores que influenciam na relação saúde-doença, que compreendem aspectos biológicos e não biológicos. É possível observar que “[…] através do conceito de hábitos/estilo de vida, os serviços de saúde culpabilizam os indivíduos pelos efeitos das determinações sociais sobre suas condições de vida e saúde, normatizando-os por meio […] de toda sorte de prescrições para uma vida saudável” (ALMEIDA & GOMES, 2014, p. 161). Na atualidade é preciso dimensionar o progresso da medicalização social com as novas configurações imbricadas no mundo do trabalho, dadas as características do capitalismo e as exigências postas ao perfil do trabalhador. Visto serem as relações sociais engendradas nas formas de vida e trabalho, que produzem sofrimento em graus crescentes e estimulam os indivíduos a serem cada vez mais resistentes para a vida produtiva, “[…] essa modelação farmacológica e genética de corpos e mentes voltada a eficácia capitalista conferirá à medicalização ares de um neo-eugenismo contemporâneo” (Idem, p. 169). Esse processo tem ocorrido de forma cada vez mais precoce visando a atingir crianças e adolescentes, com o objetivo de formar sujeitos adaptados, no sentido de serem funcionais e ativos, para responder às exigências do mundo do trabalho. Assim, “[…] exige-se que os sujeitos sejam atentos, dedicados e produtivos, para aqueles indivíduos que não conseguem atingir esse patamar resta o diagnóstico e a intervenção farmacológica” (Idem, p. 171). Nessa direção, a educação, que deveria ser um fundamento essencial para a formação humana, reproduz comportamentos construídos nas

relações do sistema capitalista, como afirma Mészaros (2005, p. 15), a educação se converte em “peça no processo de acumulação de capital e de estabelecimento de um consenso que torna possível a reprodução do injusto sistema de classe”. Na prática social o sujeito que não se adapta a essa realidade, acaba sendo rotulado e medicado para se adequar ao novo padrão. Como alternativa contra-hegemônica, outra concepção de educação se faz necessária, no sentido de compreender as multideterminações, a complexidade e a historicidade na formação do psiquismo. Em defesa de uma teoria norteadora da práxis pedagógica Apresentar uma concepção teórica, para explicar o processo de ensinoaprendizagem em busca de uma escolarização que possibilite o desenvolvimento de crianças e adolescentes, é basilar, visto que impacta diretamente na forma de organização das práticas pedagógicas. Para tanto, foi apresentada anteriormente uma discussão sobre os problemas no processo de escolarização, que tratou de abordar o modelo biomédico dominante na explicação de tais fenômenos e suas relações com as transformações que vêm ocorrendo na maneira em que as pessoas produzem a sua existência sob o modo de produção capitalista. Na perspectiva de se contrapor a tais explicações, faz-se necessário compreender o desenvolvimento do psiquismo na relação com a apropriação dos conteúdos produzidos e transformados pelo homem. As concepções e ideias ora discutidas se fundamentam no que Mukhina (1996) apresenta em seus estudos, ao constatar que as crianças com acentuadas anormalidades no desenvolvimento não são a regra, mas a exceção. Quando um fenômeno que deveria ser a exceção vai se transformando gradativamente em regra, é o momento de refletir profundamente sobre o processo educacional, pensar sobre o entorno social, as relações familiares e as instituições educativas formais. A compreensão do indivíduo como ser social, cujo processo de desenvolvimento está sujeito à condição social e histórica que se manifesta diante dos processos educativos nos quais está envolvido desde o nascimento, explica que, ao nascer, não estão dadas as qualidades psíquicas que o caracterizam enquanto ser humano. Dessa forma, ele carece dos transmissores da cultura legada por gerações precedentes, sobre condições de orientação e interação social para que a aprendizagem da cultura se converta em um comportamento humano. Assim, as relações do indivíduo com a cultura constituem condição essencial para que a criança possa se desenvolver como membro da espécie humana. Em outras palavras, na ausência de uma relação educativa que possibilite a apropriação da cultura, o desenvolvimento humano fica condicionado aos processos instintivos do aparato biológico, condição dada a todos os animais. Quanto a essa compreensão, Leontiev (1978, p. 285) explicita que “[…] cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá não basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana”.

A natureza a que Leontiev (1978) faz referência remete à estrutura e ao funcionamento do organismo, visto que, ao nascer, a criança apresenta um sistema nervoso com capacidade para se transformar em um órgão de complexa atividade psíquica. Entretanto, somente esse aparato biológico não garante as qualidades psíquicas humanas. Além disso, condições de vida e educação adequadas são, sobretudo, fundamentais para o desenvolvimento do homem. Esse processo está, portanto, relacionado ao desenvolvimento cultural e social, sendo um aspecto eminentemente ativo e protagônico, pois implica que a aprendizagem se converta em apropriação dos conhecimentos que a humanidade produziu. Ao apropriar-se da cultura produzida histórica e socialmente, por meio de objetos e procedimentos, o indivíduo aproxima-se das formas de pensar e atuar do contexto histórico-social que se desenvolve, cujo processo constitui as capacidades ou faculdades que são específicas do homem, como: a memória lógica, a capacidade de planejamento, a criatividade, a imaginação, a volição, o raciocínio, o pensamento abstrato, a atenção concentrada, entre outras. Essas capacidades, nominadas por Vygotsky (2000) de funções psicológicas superiores, não são biológicas, mas desenvolvem-se coletivamente, necessitando, portanto, da mediação de ferramentas auxiliares, como os instrumentos e os signos, criações da humanidade. As criações da humanidade que constituem a cultura, a herança social, não são apropriadas de forma espontânea. A criança “[…] consegue-o com a ajuda contínua e a orientação do adulto no processo de educação e de ensino” (MUKHINA, 1996, p. 40). A discussão sobre os problemas de atenção ou desatenção implica em compreender o processo de formação das funções psicológicas superiores, ou seja, das capacidades intelectuais, sociais e culturais, que se desenvolvem especificamente no contexto educativo e aludem às condições, estratégias e procedimentos que vão permitir o desenvolvimento da atenção concentrada, habilidade fundamental para que adquiramos conhecimentos elaborados pela humanidade e esses se convertam em mecanismos impulsores da constituição do homem. O propósito sinalizado exige aprofundar o conceito de atenção, destacando que o desenvolvimento das funções psíquicas superiores não se caracteriza por ações segmentadas, mas resulta de um processo de desenvolvimento da personalidade, mediatizado pelas interações sociais.

Nesse sentido, os estudos desenvolvidos por Luria (1979) explicitam que constantemente o ser humano recebe uma diversidade de estímulos, entretanto, ele seleciona aqueles que, no momento, são mais relevantes e ignora os outros. A essa capacidade de selecionar a informação, de assegurar os programas seletivos de ação e manter um determinado controle sobre a ação, Luria denominou atenção. Pode-se afirmar, então, que o caráter seletivo da atenção permite organizar a quantidade de informação recebida, tornando exequível uma atividade consciente. É verossímil atestar esse entendimento nas palavras de Luria (1979, p. 1-2): “Se não houvesse inibição de todas as associações que afloram descontroladamente, seria inacessível o pensamento organizado”, pensamento este que possibilita a solução de grandes problemáticas que permeiam a humanidade. A Psicologia Histórico-Cultural, mais especificamente os estudos lurianos, apontam cientificamente dois fatores que determinam ou asseguram o caráter de seletividade dos processos psíquicos. Destacam, ainda, a importância da compreensão de tais fatores para aprender e direcionar a atenção do ser humano de maneira científica. Inicialmente, apresentam-se então os fatores que se referem à estrutura dos estímulos externos que chegam até o ser humano. Tais fatores, considerados estímulos exteriormente perceptíveis ao homem, determinam de alguma forma o objeto, o sentido e a estabilidade da atenção. Ao considerar os fatores da atenção relacionados ao meio externo, Luria aborda os aspectos referentes ao próprio sujeito e à estrutura de sua atividade. Destaca a influência que exerce a necessidade, o interesse e o objetivo que o sujeito apresenta sobre a sua percepção e o processo de sua atividade. Para tanto, ressalta que as necessidades humanas, em sua grande maioria, não têm caráter instintivo, como no comportamento dos animais, mas apresentam caráter motivacional de grande complexidade, que se formaram no processo de história social. A atividade humana é condicionada por necessidades ou motivos que almejam determinados objetivos. Mesmo que em algumas situações o motivo esteja inconsciente, o objeto e o objetivo da atividade são sempre conscientes. Essa circunstância distingue o objetivo de uma ação dos seus meios e operações pelos quais é atingido. Enquanto as operações isoladas não se automatizam, a execução de cada uma delas constitui o objetivo de certa parte da atividade e atrai para si a atenção. […] Quando a atividade se automatiza, certas operações que a compõem deixam de atrair a atenção e passam a desenvolver-se sem conscientização, ao passo que o objetivo fundamental continua a ser conscientizado. […] o sentido da atenção é determinado pela estrutura psicológica da atividade e depende essencialmente do grau de sua automatização. (LURIA, 1979, p. 5) Essas considerações de Luria (1979) indicam que quando uma determinada atividade, cujas ações chamavam a atenção, converte-se em operações automáticas, o foco da atenção desloca-se para os objetivos finais, deixando de ser atraída por operações que já se consolidaram. Assim como os animais, o homem também apresenta uma atenção ligada aos instintos, a atenção involuntária, que é necessária para a sua sobrevivência

enquanto espécie. Podemos citar como exemplo o fato de que quando encostamos a mão em uma chapa quente, imediatamente a retiramos do local para, a posteriori , tomar consciência do ocorrido. Entretanto, esse tipo de atenção, denominada de involuntária, não é suficiente para expressar o gênero humano. Luria (1979) exemplifica que a atenção involuntária está presente desde a tenra idade, apresentando um caráter instável e um volume relativamente pequeno. Ou seja, “a criança de idade tenra e préescolar perde muito rapidamente a atenção pelo estímulo que acaba de surgir, seu reflexo orientado se extingue rapidamente ou se inibe com o surgimento de qualquer outro estímulo” (LURIA, 1979, p. 22). Isso ocorre porque a criança não tem a atividade dirigida para um fim. Sua atenção está dirigida, sobretudo, para o que naquele momento lhe resulta interessante, ao que se destaca por seu brilho, som etc. Quando ingressa na escola, as condições do trabalho escolar exigem, desde os primeiros dias, que a criança siga objetos e assimile informações que neste momento talvez não lhe interessem. Essas ações provocam pouco a pouco condições para que se oriente e mantenha sua atenção em objetos necessários e não somente aqueles que lhe atraem por suas cores, sons e/ou outras características. A voluntariedade da atenção, a atitude de dirigi-la intencionalmente para uma ou outra tarefa necessita de uma organização externa. A experiência tem nos mostrado que a auto-organização se forma na relação com os adultos, quando estes lhe transmitem modelos e indicam os meios externos, os quais estão condicionados aos processos interpessoais, para que, posteriormente, a criança possa dirigir sua própria atenção. Resulta importante reiterar que, por essa razão, concebe-se a atenção voluntária ou arbitrária como uma capacidade específica do homem. Entretanto, vale sinalizar que existiram outras explicações, e a atenção, tradicionalmente, foi concebida pela Psicologia Naturalista Clássica como um processo primário, que sempre existiu na vida espiritual do indivíduo. Já a Teoria Histórico-Cultural (THC) compreende as funções psíquicas superiores como produto de um complexo desenvolvimento histórico-social, mediatizado pelas interações sociais nas diferentes atividades, nas interações e nas formas de comunicação a que estão submetidos os seres humanos. Ou seja, as funções psíquicas superiores se constituem em um produto da transformação cultural incidida no processo de construção da humanidade, o qual criou novas formas de atividades psíquicas, tais como: […] os processos de domínio dos meios externos do desenvolvimento cultural do pensamento: o idioma (linguagem), a escrita, o cálculo, o desenho (VYGOTSKY, 1997, p. 32). Entendemos que o arcabouço teórico da THC explica o salto qualitativo que o ser humano realizou em seu desenvolvimento ontogenético, tornando possível garantir a vida por meio do intercâmbio com a natureza e não mais se adaptando a ela. O homem, como uma força ativa do desenvolvimento histórico e social, não só muda sua atividade no ambiente natural e social em torno dele, mas sua própria natureza física e espiritual, quer dizer, formação psíquica de sua personalidade. No curso de sua atividade não somente aperfeiçoam e refinam as sensações, percepções humanas, se desenvolvem a capacidade de observação, o pensamento e a imaginação, mas também se formam os sentimentos, a voluntariedade, os hábitos e os

costumes, se desenvolvem várias capacidades, surgem o ouvido musical e o gosto artístico, se despertam os interesses e as tendências e se forma o caráter. (RUBINSTEIN, 1969, p. 19) Conforme também expõe Leontiev (1978), Luria (1979) e Vygotsky (2000), desde que nasce a criança está inserida no mundo dos adultos, desenvolvendo-se em um processo vivo de comunicação com eles. A comunicação que se processa por meio da fala, dos atos e gestos do adulto influencia a organização dos processos psíquicos da criança. Para enfatizar que se trata de um processo não natural, Luria (1979, p. 24) relata que: A criança de idade tenra contempla o ambiente costumeiro que a cerca e seu olhar corre pelos objetos presentes sem se deter em nenhum deles nem distinguir esse ou aquele objeto dos demais. A mãe diz para a criança: –isto aqui é uma xícara! E aponta o dedo para ela. A palavra e o gesto indicador da mãe distinguem incontinenti esse objeto dos demais, a criança fixa a xícara com o olhar e estende o braço para pegá-la. Neste caso, a atenção da criança continua a ter caráter involuntário e exteriormente determinado, com a única diferença de que aos fatores naturais do meio exterior incorporam-se os fatores da organização social do seu comportamento e o controle da atenção da criança por meio de um gesto indicador e da palavra. Neste caso, a organização da atenção está dividida entre duas pessoas: a mãe orienta a atenção e a criança se subordina ao seu gesto indicador e à palavra. (LURIA, 1979, p. 24) A situação ilustrada indica a primeira etapa de constituição ou de formação da atenção voluntária, revelando-se uma etapa mediatizada pelas relações externas, considerada essencialmente social por sua natureza. À medida que a criança vai se desenvolvendo, começa a compreender e a dominar a linguagem, o que lhe possibilita fazer sozinha a nomeação e a indicação dos objetos. Isso significa que o processo de evolução da linguagem da criança introduz uma transformação radical na direção de sua atenção, tendo ela capacidade de deslocar com autonomia essa função psíquica, ou seja, uma precisa organização externa da ação dos adultos indicando os meios exteriores, possibilita à criança dirigir sua própria atenção e autorregularse. Portanto, aquela atenção, que antes estava dividida entre duas pessoas (no exemplo acima, a mãe e a criança), torna-se, em um segundo momento, uma nova forma de organização interior. Essa etapa, que representa o nascimento de uma nova forma de atenção arbitrária, social em sua origem, simboliza o produto do complexo desenvolvimento histórico e social mediatizado, superando aquela concepção de que a atenção seria a manifestação do espírito livre, primariamente próprio do ser humano. Luria (1979) compreende ainda que, à medida que a linguagem da criança se desenvolve, novas estruturas intelectuais complexas e dinâmicas vão sendo criadas, e sua atenção adquire novas características, convertendo-se em esquemas intelectuais internos dirigíveis, evidenciando ser produto da complexidade social de formação dos processos psíquicos. Gradativamente, […] os processos de linguagem internos e intelectuais da criança vão se tornando mais complexos e automatizados que a transferência da sua atenção de um objeto para outro passa a dispensar esforços especiais e

assume o caráter da facilidade e, careceria da involuntariedade que todos nós sentimos quando em pensamento passamos facilmente de um objeto a outro ou quando somos capazes de manter por muito tempo a atenção tensa numa atividade que nos interessa. (LURIA, 1979, p. 26) Luria cita os experimentos realizados por Wundt, que mostraram não ser possível ao ser humano concentrar a sua atenção em dois estímulos apresentados simultaneamente; o que significa que distribuir a atenção entre dois estímulos simultâneos implica na substituição da atenção, que precisa ser transferida de um estímulo para o outro. Nas primeiras semanas de vida, a criança apresenta indícios do desenvolvimento da atenção involuntária estável. Isso pode ser observado por meio dos primeiros sintomas de manifestação do reflexo orientado, ou seja, “[…] a fixação do objeto pelo olhar e a interrupção dos movimentos de sucção à primeira vista dos objetos ou com a manipulação destes” (LURIA, 1979, p. 29). Ainda nos primeiros meses de vida, a atenção involuntária da criança tem um caráter de simples reflexo orientado de estímulos fortes ou novos, sendo que mais tarde adquire características mais complexas, começando pela manipulação de objetos. A criança apresenta uma atenção instável, pois basta aparecer outro objeto para que ignore o anterior e passe a manipular o novo objeto. As influências externas evidenciam o quanto a atenção da criança tem um caráter esgotante e momentâneo nos primeiros meses e anos de vida. […] o problema mais importante é o desenvolvimento das formas superiores de atenção arbitrariamente reguláveis. Essas formas de atenção se manifestam antes de tudo no surgimento de formas estáveis de subordinação do comportamento de instruções verbais do adulto que regulam a atenção e, bem mais tarde, na formação das formas estáveis da atenção arbitrária auto-reguladora da criança. (LURIA,1979, p. 30) Entretanto, e ainda de forma muito instável, somente ao final do primeiro ano de vida, início do segundo, é que a fala do adulto passa a ter influência orientadora e reguladora sobre a atenção da criança. É possível observar, em meados do segundo ano de vida, uma estabilidade na capacidade de atenção seletiva da criança em cumprir uma instrução verbal apresentada por um adulto. Mas, apenas a partir da metade do segundo ano é que a criança consegue, de maneira mais sólida, direcionar a sua atenção em função da instrução verbal do adulto. Somente no processo de sucessivo desenvolvimento, no segundo e no terceiro ano de vida, a instrução do adulto, completada posteriormente pela participação da própria linguagem da criança, converte-se em fator que orienta solidamente a atenção. Mas essa influência sólida da instrução verbal, que orienta a atenção da criança, forma-se com a íntima participação da atividade da criança e, por isso, para organizar a sua atenção estável, a criança não só deve dar ouvido à instrução verbal do adulto como ela mesma deve distinguir as ordens necessárias, reforçando-as em sua ação prática (LURIA, 1979).

Trabalhos desenvolvidos por Vygotsky e Leontiev (apud Luria, 1979) com crianças de idade pré-escolar, entre 3 e 4 anos, evidenciaram que, após a idade citada, era possível observar o processo de formação da atenção voluntária, com ênfase em meios auxiliares externos para direcionar a atenção. Já com crianças em idade escolar, era perceptível uma transição direcionada a formas superiores de organização interna da atenção. Em síntese, Luria conclui que a atenção voluntária é resultado de um processo de desenvolvimento extremamente complexo, compreendendo que a origem desse desenvolvimento encontra-se nas formas de comunicação entre a criança e o adulto, […] sendo o fator fundamental que assegura a formação da atenção arbitrária representada pela fala, que é inicialmente reforçada por uma ampla atividade prática da criança e em seguida diminui paulatinamente e adquire o caráter de ação interior, que media o comportamento da criança e assegura a regulação e o controle deste. (LURIA, 1979, p. 35) Nessa perspectiva, o processo de formação da atenção voluntária, estudado por Luria, possibilita compreender os mecanismos internos das formas de organização da atividade consciente do ser humano, que influenciam decisivamente em seu psiquismo, e refletir sobre o papel do ensino escolar como potencializador do desenvolvimento dessa função psicológica superior. Pode-se assim dizer que, a concepção de desenvolvimento das funções psíquicas superiores, explicadas pela THC, constituem-se em princípios pedagógicos. Mediante o conhecimento da realidade, o professor encontra as bases explicativas de como seus alunos se desenvolvem, com que recursos contam para aprender e desenvolver suas potencialidades. Isso porque o aluno por si só não pode definir racionalmente os objetivos ou metas de sua aprendizagem e, dessa forma, necessita de auxílio para compreender a realidade, os objetos, os fenômenos, estabelecer relações e concatenações. Esse processo é essencialmente provocado pelo ensino quando o professor, na condição de protagonista, guia, dirige, promove e acelera o desenvolvimento de cada aluno, buscando os recursos necessários para promover o crescimento individual e conduzir-lhe a novos progressos. Esses aspectos dizem respeito aos aportes de instrumentação pedagógica que os conhecimentos da psicologia sobre o desenvolvimento humano oferecem à pedagogia, ou seja, um caráter explicativo do processo de aprendizagem que nos permite considerar uma relação dialética entre o social e o individual, um processo ativo de reconstrução da cultura e do significado pessoal que tem o conhecimento para o sujeito. Isso quer dizer que, em um primeiro nível interpsíquico, o aluno está incluído em uma atividade social, de comunicação, de inter-relação, na qual realiza ações externas com o professor e os colegas, com ajuda de diferentes meios e materiais. Quando essas ações são assimiladas, atuam em um plano intelectual, individual, demonstram um desenvolvimento correspondente ao plano intrapsíquico. Para Vygotsky (1997), essa é a base e a importância do ensino, ou seja, o aspecto internamente necessário e universal no processo de desenvolvimento.

Os aspectos anteriormente sinalizados permitem considerar a aprendizagem um processo de mediação social, que se constitui, em sua vez, em aspecto individual, que cada sujeito coloca em função ao se apropriar da cultura e a converte em orientação do próprio comportamento. Disso deriva a necessidade de que o professor conheça o desenvolvimento individual alcançado por cada aluno, bem como as características psicológicas dos diferentes momentos do desenvolvimento para traçar as ações pedagógicas. Ademais, que o compreenda como um ser dinâmico, com vivências que constituem a base para a participação ativa no processo de apropriação do conhecimento. É válido esclarecer que, no trabalho pedagógico, o professor ocupa a função de protagonista, sem desconsiderar o papel ativo do aluno e todas as suas possibilidades. Nesse sentido, cabe destacar que a medicina aporta à pedagogia com dados e influências, porém, a pedagogia tem sua especificidade como ciência, e, ainda que tenham inevitáveis vínculos, a concepção educativa deve ser o centro e a razão essencial de todo o trabalho pedagógico. De forma alguma se nega a intervenção de outros profissionais, entretanto, reconhece-se o papel fundamental do professor na relação ensino-aprendizagem, na qual as ações pedagógicas são dirigidas e contam com os auxílios necessários, objetivando potencializar o desenvolvimento. Resulta, pois, depositar um valor essencial à função da mediação, principalmente ao considerar os conteúdos externos ao sujeito, os objetos e instrumentos da cultura e a presença do professor como mediador nesse processo de formação. Por sua vez, quando o trabalho pedagógico logra que o aluno se aproprie da linguagem, da escrita, do cálculo e do desenho, possibilita que em um momento superior de sua formação isso se converta em mecanismo promotor de seu próprio desenvolvimento, ou seja, se produzam processos específicos, como a formação de conceitos, atenção voluntária, imaginação, criatividade, entre outras. Vygotsky, depois de explicar a gênese das FPS, trata de esclarecer o papel imprescindível da mediação relacionando educação, aprendizagem e desenvolvimento à categoria Zona de Desenvolvimento Próximo (ZDP). Essa categoria é considerada um dos elementos imprescindíveis quando se fala da relação ensino-aprendizagem. Por ZDP se compreende o espaço de interação entre os sujeitos, que, como parte do desenvolvimento de uma atividade, permite ao professor atuar nas potencialidades que demonstra ter o aluno, em um plano de ações externas, de comunicação, que se convertem em condição de mediadores culturais e favorecem as ações internas individuais (um processo interpsíquico que passa ao nível intrapsicológico). Nesse processo estabelecido pelo ensino, o sujeito, além de apropriar-se das ações executivas, que se dirigem a transformar o objeto do conhecimento, também se apropria das ações de orientação. Primeiro ele externa, em um plano material, a exploração do objeto, o conhecimento de suas qualidades, suas relações e determinações, para, posteriormente, por meio da assimilação das ações de orientação, o aluno, em sua atividade de aprendizagem, passa a interiorizá-la, ou seja, ações internas que se convertem em desenvolvimento psíquico.

A essência do conceito ZDP, como se pode observar, expressa a relação entre ensino e desenvolvimento, em que o ensino atua fundamentalmente como condicionante do desenvolvimento, “uma ideia que na ZDP tem uma parte de colaboração, outra de trabalho independente, e outra parte de consolidação desse desenvolvimento” (BEATÓN, 2005, p. 240). Por conseguinte, é com base nesse fundamento que deriva a necessidade de que o professor conheça o desenvolvimento individual alcançado por cada aluno e sua ZDP, a fim de oportunizar a ajuda adequada para cada momento, acercando-se com profundidade da maneira como os alunos pensam, qual a compreensão do conteúdo, conhecendo quais recursos utilizam para resolver as situações de aprendizagem e utilizando-o, também, como um instrumento, para que possa promover uma avaliação sobre o seu trabalho pedagógico. Considerações finais Ante as considerações apresentadas, objetivou-se, neste texto, desenvolver alguns conceitos a fim de refletir sobre as possibilidades logradas por meio do trabalho educativo, além de desmitificar o fato de que a atenção voluntária seja tratada/compreendida como um processo biológico que carece de controle medicamentoso. Finalmente, os diferentes aspectos abordados permitem chamar a atenção para o fato de que, quando o sujeito tem o desenvolvimento das funções psíquicas superiores comprometido é preciso buscar, em sua história de vida ou no histórico de sua educação, elementos para compreender as relações interpessoais das diferentes formas de influência: família, escola e sociedade e o quanto essas lhe possibilitaram ou não, conteúdos para formação de significados e sentidos, configurando sua concepção acerca do mundo, da sociedade e do ser humano. Andreia Cristina Conegero Sanches Farmacêutica, doutora em Ciências Farmacêuticas e professora no curso de Farmácia da Unioeste/Cascavel. Elvenice Tatiana Zoia Pedagoga, doutoranda em Educação e professora no curso de Pedagogia da Unioeste/Cascavel. Neide da Silveira Duarte de Matos Pedagoga, doutora em Psicologia e professora no Curso de Pedagogia da Unioeste/Cascavel. Rejane Teixeira Coelho Psicóloga, doutora em Psicologia social e professora no curso de Pedagogia da Unioeste/Cascavel.

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cartelas e caixas de medicamentos. Ou seja, parece que os estes permeiam cada vez mais nossa vida. Mas raramente paramos para pensar no significado disso e nos riscos de vivermos em uma sociedade cada vez mais “ medicalizada ” ¹ e “ farmaceuticalizada ” ² . Como reflexo da atual organização da sociedade, as crianças também têm contato com medicamentos mais cedo, e, em maior quantidade do que em tempos passados. Em alguns casos, os medicamentos utilizados têm relação com a educação, pois visam a atender demandas educativas e/ou comportamentais ou contribuir na resolução de “problemas de aprendizagem”. Neste contexto, o objetivo deste capítulo é trazer informações sobre um dos medicamentos mais presentes no ambiente escolar, o metilfenidato, que será tratado aqui pela sigla MFD. Acreditamos que é preciso que toda a sociedade compreenda elementos básicos da farmacologia desse medicamento e também de seus efeitos terapêuticos e adversos. Combater a medicalização excessiva envolve certamente discutir e conhecer mais a respeito. No Brasil, poucos são os estudos que apresentam amplos levantamentos do uso de medicamentos pela população. Esses levantamentos são ainda mais raros quando pensamos em crianças. Até 2016 não havia nenhum estudo de âmbito nacional representativo dessa faixa etária (PIZZOL et al., 2016). Pizzol et al. (2016) afirmam que se deve olhar com mais atenção para o uso de medicamentos por crianças, pois “a incerteza em relação à eficácia e segurança” é maior, já que os estudos normalmente não envolvem esse subgrupo. Estudos recentes têm evidenciado o aumento do uso de medicamentos entre estudantes, dos quais, merece destaque o metilfenidato (MFD), comercializado com os nomes Ritalina ® e Concerta ® . Estima-se que, no Brasil, 3% das crianças em idade escolar (6 a 12 anos) fazem uso de metilfenidato (PIZZOL et al, 2016). Esse fármaco se tornou a medicação psicoestimulante mais prescrita às crianças diagnosticadas com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Seu maior consumo está intimamente relacionado com o aumento de diagnóstico de TDAH. Não há consenso no Brasil nem em outros países do mundo sobre o percentual de crianças ou da população em geral que seja portadora do TDAH, porém, é notório o aumento desse diagnóstico entre crianças e adolescentes na última década. Neste texto, não temos a intenção de abordar diagnóstico e prevalência do TDAH, mas, sim, do fármaco usado especialmente para seu tratamento. Todavia, convidamos os leitores a questionarem se os crescentes casos de diagnóstico estão realmente vinculados a problemas de origem neurológica, ou poderiam ser questões educacionais e sociais. Não temos essa resposta, aliás, ela não existe no momento. Carecemos de mais estudos sobre isso, mas precisamos nos manter alerta e sempre utilizar todas as ferramentas possíveis para que o menor número de crianças seja exposto a uso contínuo de medicamento de ação sobre o Sistema Nervoso Central (SNC). Ter os medicamentos como um dos recursos de tratamento, e não o primeiro nem muito menos o único.

É preciso preparar o leitor também para a controvérsia científica. É natural que pesquisadores apresentem divergências em ponto de vista, forma de realização de estudos etc., o que chamamos de controvérsia. Apesar de, em alguns casos, poderem existir fatores não científicos envolvidos (como econômicos e políticos), normalmente a ciência deve apresentar os diferentes pontos de vista. Por isso, neste texto, procuramos evidenciar as controvérsias, mostrar as dúvidas e as lacunas de conhecimento, por acreditarmos que esses fatos aumentam as responsabilidades de todos os envolvidos no processo do uso do MFD por crianças em idade escolar. Metilfenidato O metilfenidato (MFD) é um medicamento estimulante do Sistema Nervoso Central (SNC), da classe das fenilaminas (BUSARDO et al., 2016)which belongs to the phenethylamine group and is mainly used in the treatment of attention deficit hyperactive disorder (ADHD, disponibilizado no mercado farmacêutico do Brasil com nomes comerciais Ritalina® (NOVARTIS, 2008), Ritalina® LA (NOVARTIS, 2008) e Concerta® (Cloridrato de Metilfenidato – Janssen-Cilag Farmacêutica Ltda.). No Brasil, esse fármaco ainda não é comercializado como medicamento similar ou genérico (BRANT & CARVALHO, 2012; CHALLMAN & LIPSKY, 2000). Quimicamente, o MFD é um metil-2-fenil-2 (piperidina-2-yl) acetato, ou seja, uma estrutura química semelhante às anfetaminas (ZIMMER, 2017; Figura 1). É prescrito como medicamento para potencializar performances escolares e laborais (BRANT & CARVALHO, 2012), sendo o medicamento de primeira escolha para o tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) (ANVISA, 2012; DE CRESCENZO et al., 2017; GERLACH et al., 2017).

Figura 1 – Estrutura molecular do Metilfenidato. Contexto histórico O MFD foi sintetizado na Suíça, por Leandro Panizzon em 1944, farmacêutico da antiga Companhia Farmacêutica Ciba-Geigy (atualmente Novartis), sendo patenteado com o nome de Ritalina em 1954. Foi licenciado pela FDA (Food and Drug Administration) nos Estados Unidos em 1955 como um psicoestimulante leve, para o tratamento de letargia, narcolepsia, fadiga crônica, desordens associadas a depressão e hiperatividade (CHALLMAN & LIPSKY, 2000; ORTEGA et al., 2010). Entretanto, nesse período já era empregado para emagrecimento, melhoria da performance

atlética e como automedicação para aprimorar o desempenho intelectual. Nesse contexto, a medicação começou a ser produzida na Suíça e na Alemanha, países que não exigiam, à época, prescrição médica para seu uso, chegando aos Estados Unidos em 1956, ao Canadá em 1979 (BUSARDO et al., 2016)which belongs to the phenethylamine group and is mainly used in the treatment of attention deficit hyperactive disorder (ADHD e ao Brasil em 1998 como Ritalina e em 2002 como Concerta (ANVISA, 2012). A partir de 1990, com o aumento do diagnóstico de TDAH, o MFD tornou-se a droga amplamente aceita para o tratamento desse transtorno em todo o mundo (ITABORAHY & ORTEGA, 2013; LANGE et al., 2010; MORTON & STOCK, 2000). Controvérsias sobre o uso do metilfenidato Itaborahy & Ortega (2013) divulgaram uma revisão bibliográfica sobre as publicações nacionais a respeito do MFD entre os anos de 1998 e 2008. Depois da análise de 31 artigos científicos, observaram que 27 deles foram direta ou indiretamente patrocinados pelos laboratórios fabricantes dessa medicação, inferindo possíveis conflitos de interesse na realização de estudos e na interpretação dos resultados. Alguns dados encontrados são controversos e questionáveis, como o caso da possível dependência química, que, segundo a Associação Médica Brasileira, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a bula do medicamento, afirmam que o MFD é uma anfetamina e que pode causar dependência (NOVARTIS, 2008). Opondo-se a isso, Szobot & Romano (2007), afirmam que essa medicação é segura e com efeito de “antidependência”, ou seja, concluem que o tratamento com psicoestimulantes desde a infância proporciona efeito protetor para uso de outras substâncias psicoativas. Novamente em artigo publicado em 2013, Itaborahy e Ortega afirmam que os autores deste segundo artigo são palestrantes e consultores do laboratório fabricante de MFD de ação prolongada e poderiam ter conflito de interesse (ITABORAHY & ORTEGA, 2013). O mecanismo de ação desse medicamento, assim como de outros estimulantes (inclusive a cocaína), utiliza alterações sinápticas dopaminérgicas. Diante disso, alguns pesquisadores afirmam que existe um risco potencial de que, após o uso prolongado desse fármaco, ocorra a substituição da droga legal por outras ilícitas de mecanismos similares (SAÚDE, 2014). Entendemos que é preciso olhar com cautela para a controvérsia e procurar proteger as crianças de riscos potenciais sempre que possível. Compreender esse fenômeno de forma final ainda não é possível, e apenas daqui a algumas décadas poderemos olhar de maneira retrospectiva e responder com segurança essas questões. Outro ponto bastante discutido é que sendo o TDAH a principal indicação do MFD, e apresentando-se como uma patologia crônica, qual seria o tempo indicado da utilização da medicação, já que seus efeitos acontecem apenas durante sua administração? Esse assunto é pouco discutido e analisado na literatura, e também não se encontram dados publicados sobre a segurança do uso prolongado da droga (ITABORAHY & ORTEGA, 2013). Como já discutido neste capítulo, existem autores que apresentam a possibilidade de

alterações permanentes em circuitos cerebrais com o uso, o que poderia ser benéfico para pessoas com TDAH, já que elas poderiam usufruir de alguns de seus benefícios após a interrupção do uso. Porém, ainda há grande carência de estudos que evidenciem essas possíveis alterações. Outros pesquisadores da área associam o efeito sintomático, ou seja, restrito ao período de uso. Questionamos se todos os envolvidos (pais, prescritores, educadores, familiares e até as próprias crianças e demais usuários do MFD) entendem que seu uso não é a cura para o TDAH, mas, sim, um recurso auxiliar para consolidação da atenção enquanto dura o efeito do medicamento? Para os defensores de seu uso, no período em que a criança consome MFD ela poderá ultrapassar períodos escolares mais críticos e aprender outras estratégias para enfrentamento do TDAH. A Anvisa aponta o MFD como um dos cinco principais medicamentos que deverão receber os holofotes da investigação científica e discussão na atualidade, pois se trata de um fármaco passível de múltiplas controvérsias e interpretações acerca de sua real eficácia, além de ter grande difusão no Brasil (ANVISA, 2012). Outro ponto divergente aparece no uso de terapias não medicamentosas combinadas com o tratamento medicamentoso do TDAH no Brasil (ITABORAHY & ORTEGA, 2013). A literatura mundial apresenta uma grande listagem de terapias não medicamentosas que vão desde mudanças na alimentação, inclusão de ômega 3 na dieta, acompanhamento psicossocial adequado, treinamento cognitivo, neurofeedback e mudanças pedagógicas, quando necessárias. As intervenções alimentares para crianças portadores de TDAH podem ocorrer pela restrição alimentar, como as dietas antigênicas ou oligoantigênicas, que evitam alimentos alérgenos e focam em alimentos hipoalergênicos. Também pode ser realizada excluindo alimentos com corante alimentar em sua composição ou ainda pela suplementação de ômega 3 (nutriente necessário para a função cerebral). A vantagem desses tratamentos é que praticamente não apresentam contraindicações e efeitos adversos, sendo ainda benéficos na redução dos efeitos do TDAH (SONUGABARKE & BRANDEIS, 2013). Porém, outros autores discordam da eficácia das intervenções alimentares (CATALÁ-LÓPEZ et al., 2015). Já as terapias de neurofeedback (tratamento não invasivo com ondas de ativação cerebral), treinamento cognitivo (treinamento cerebral para exercitar as estruturas cerebrais associadas ao TDAH) e de restrição alimentar, embora apresentem dados positivos, necessitam de maiores pesquisas para serem apoiadas como tratamento para o TDAH (SONUGABARKE & BRANDEIS, 2013). A terapia comportamental é a mais eficiente das terapias não medicamentosas, conforme dados estatísticos, principalmente quando realizada com os pais, juntamente com o envolvimento ativo das crianças e dos professores. Porém, quando comparada ao uso de estimulantes, apresenta resultado melhor do que a psicoterapia isolada (CATALÁ-LÓPEZ et al., 2015). Assim, a terapia comportamental deve ser utilizada associada à medicamentosa (DE CRESCENZO et al., 2017), pois apresenta melhor perfil

de aceitabilidade e menor índice de descontinuação, além dos resultados serem mais eficientes, pois diminui a resposta impulsiva, podendo levar a redução da dosagem e duração do tratamento medicamentoso (CATALÁLÓPEZ et al., 2015), diminuindo, assim, o tempo de exposição da criança à medicação. Em outros capítulos deste livro serão encontradas propostas e relatos de enfrentamentos não medicalizados para condições de distúrbios de atenção. Uso mundial de metilfenidato A utilização de fármacos psicoativos tem crescido nas últimas décadas em países de todo o mundo e pode ser atribuída ao aumento de diagnósticos de transtornos psiquiátricos, à introdução de novos psicofármacos e às novas indicações terapêuticas de fármacos já existentes. O MFD passou a ser largamente usado para tratamento de TDAH também a partir da década de 1990 em outras regiões do mundo, mostrando um aumento progressivo desde então (DALSGAARD, SKYT & SIMONSEN, 2014). Dados da ONU demonstram que, em 1990, o volume total produzido mundialmente do medicamento era de 2,8 toneladas/ano, passando, no ano 2000, para a produção de 16 toneladas/ano, e, em 2010, para 43 toneladas/ ano, tornando-se o psicoestimulante mais utilizado no mundo. Em 2001 a produção de MFD era responsável por 22,5% do volume total de estimulantes fabricados no planeta, passando para 56% nove anos depois, em 2010 (ONU, 2011). Poucos são os países que apresentam dados sistematizados da produção ou do uso desse medicamento. Na Argentina, a importação anual de MFD em 2003 foi de 23,7 kg, chegando a 100,5 kg dez anos depois (BIANCHI et al., 2016). Nos Estados Unidos, em 1970, o MFD era consumido por cerca de 150 mil crianças em idade escolar, apresentou um aumento de cinco vezes em seu consumo em 1987 (750 mil crianças), e, em 1995, era usado por 2,5 milhões de crianças (ONU, 2011). Uso de metilfenidato no Brasil No Brasil, a medicação passou a ser comercializada somente em 1998, mas, já em 2011, eram consumidas 1.212.850 caixas do medicamento por ano (ANVISA, 2012), verificando-se também uma elevação no uso, à semelhança de outros países. A produção brasileira de MFD entre os anos de 2002 e 2006 aumentou de 40 kg/ano para 226 kg/ano, colocando o país em segundo lugar mundial na prescrição desse fármaco naquela época (FINGER, DA SILVA, & FALAVIGNA, 2013). Conforme descrito pelo Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), o Brasil apresentou um aumento médio mensal de 28,2% no consumo de MFD no período de 2009 a 2011 para crianças de 6 a 16 anos, especialmente nos segundos semestre de cada ano (ANVISA, 2012). O incremento no consumo pode ser explicado tanto pelo aumento no número de prescrições para TDAH, quanto pelo possível uso não prescrito com finalidades de aprimoramento cognitivo ou recreação.

No estado do Paraná, pode-se observar que o aumento do consumo de caixas de MFD entre 2009 e 2011 correspondeu a 118,04% (ANVISA, 2012). Não foram encontrados dados mais atualizados sobre o uso. Mecanismo de ação do MFD Seu mecanismo de ação ainda não está completamente elucidado (CZERNIAK et al., 2013; JABOINSKI et al, 2015)a psychostimulant with a mechanism of action similar to that of cocaine. Previous studies show that repeated use of psychostimulants during childhood or adolescence may sensitize subjects, making them more prone to later abuse of psychostimulant drugs such as cocaine and methamphetamine. OBJECTIVE: To review experimental studies in non-human models (rodents and monkeys, como acontece com outros medicamentos utilizados atualmente. A complexidade do cérebro e de seus componentes neurais e as dificuldades na realização de pesquisa, especialmente com mamíferos, limitam a compreensão dos detalhes das funções desse e de outros fármacos. Deste modo, em diferentes situações, o uso de medicamentos se dá pela análise indireta, ou com base na observação da resposta obtida por seus usuários. Neste caso, o entendimento é que o MFD atue sobre o Sistema Nervoso Central (SNC), especificamente nas sinapses químicas entre neurônios. Normalmente, quando ocorre uma sinapse química, o neurotransmissor liberado na fenda sináptica deve ser retirado pouco tempo depois de ter sido liberado por diferentes mecanismos, interrompendo sua função. Quando as sinapses são dopaminérgicas e noradrenérgicas, o mecanismo de remoção dos neurotransmissores dopamina e noradrenalina respectivamente depende principalmente da ação de transportadores pré-sinápticos específicos (VOLKOW et al., 2001). Sabe-se atualmente que o MFD atua sobre os transportadores pré-sinápticos de noradrenalina e dopamina, bloqueando-os (LUETHI et al., 2017). Estimase que uma dose de MFD é capaz de bloquear temporariamente 50% desses transportadores de dopamina em seres humanos (VOLKOW & SWANSON, 2003)the most common treatment for attention deficit hyperactivity disorder (ADHD, resultando no aumento momentâneo das concentrações desses neurotransmissores na fenda sináptica (COMMUNICATION, 2012). Com a recaptação desse neurotransmissor ocorrendo de forma mais lenta, sua ação torna-se aumentada (LENT, 2010), o que resulta numa estimulação, sendo provavelmente a justificativa para os efeitos do MFD. O MFD atua em diferentes regiões do cérebro, principalmente no córtex frontal, núcleos da base e cerebelo. Primeiramente, ativa o lobo frontal (especialmente, os giros inferior e médio) (CZERNIAK et al., 2013)(2, fazendo aí principalmente modulação noradrenérgica (WILENS et al, 2008) e contribuindo para o aprimoramento cognitivo na memória funcional e na aprendizagem associativa (MEHTA et al., 2000). Já nos núcleos da base, especialmente no núcleo estriado, sua ação seria relacionada com melhora da atenção e diminuição da distração (VOLKOW et al., 2001), por meio da menor recaptação da dopamina (LEONARD et al., 2004). No núcleo accumbens , sua atuação parece estar relacionada com o aumento da dopamina e consequentemente com o desempenho de tarefas cognitivas

(VOLKOW & SWANSON, 2003). Também já se sabe que o MFD atua nos lobos parietal e occipital (CZERNIAK Et al., 2013). Farmacocinética O MFD é usado por via oral e absorvido no trato gastrointestinal. Sofre metabolismo hepático (efeito de primeira passagem) e cerca de 50% do que é absorvido é degradado no fígado, levando a uma biodisponibilidade sanguínea de cerca de 30%. No sangue, liga-se fortemente às proteínas plasmáticas (VOLKOW & SWANSON, 2003)the most common treatment for attention deficit hyperactivity disorder (ADHD. No fígado, onde é metabolizado, o MFD se transforma em ácido ritalínico, como resultado da ação da carboxilesterase-1, e sua excreção é principalmente urinária (NOVARTIS, 2008; VOLKOW et al., 2001). A Ritalina® atinge o pico de concentração plasmática cerca de 1 a 2 horas após a administração. Sua dose máxima é de 60 mg/dia, podendo ser partilhada em duas a três ingestões por dia (SAÚDE, 2014). A dose é considerada baixa quando equivale a 0,3 mg/kg ou dose fixa de 10 mg/dia e alta quando igual a 0,6 mg/kg ou fixada entre 17,5 e 20 mg/dia. (PRASAD, BROGAN & MULVANEY, 2013). A duração do efeito é relativamente curta o que pode fazer com que seja necessário o uso de duas doses para o efeito diário. Já a Ritalina® LA apresenta um princípio ativo de liberação mais lenta, pois a cápsula que envolve a medicação possui microfuros que permitem que a medicação seja liberada aos poucos. Apresentando dois picos distintos, com intervalo de quatro horas entre eles. A dose máxima diária também não deve passar de 60 mg/dia (NOVARTIS, 2008; SAÚDE, 2014). Neste caso, usualmente utiliza-se dose única no dia. No medicamento Concerta®, o MFD atinge seu pico inicial 1 a 2 horas após a ingestão do medicamento, que continua a aumentar sua concentração ao longo do tempo, atingindo a concentração plasmática máxima cerca de 6 a 8 horas após a administração do medicamento, sendo a dose máxima diária de 54 mg/dia (JANSSEN-CILAG FARMACÊUTICA LTDA.; SAÚDE, 2014). O uso do MFD geralmente se concentra no período escolar, ou seja, durante as férias escolares também ocorrem as férias medicamentosas. No Boletim de Farmacovigilância foi observada, durante os anos de 2009 a 2012, a redução do uso dessa medicação nos meses de julho, dezembro e janeiro, que correspondem às férias escolares (SAÚDE, 2014). Dependendo da sintomatologia, esse intervalo do medicamento pode durar semanas ou meses e é monitorado pelo médico para aparição de sinais ou sintomas adversos, sendo importante para diminuir os efeitos adversos da medicação para alguns autores (SANTOSH, 2017). Todavia, poucos estudos analisaram os efeitos de retirada do medicamento, e não há consenso na literatura sobre essa prática. Uso terapêutico Entende-se como o uso terapêutico do MFD a redução da inquietação motora, o aumento de concentração, atenção e memória (BPR, 2016), e seu

principal uso, como já apontado, está relacionado à sintomatologia de TDAH (ANVISA, 2012; NOVARTIS, 2008; OJ et al., 2016), sendo o picoestimulante que apresenta a maior redução da sintomatologia desse transtorno (RIERA et al., 2017)placebo-controlled\nclinical trials (RPCCTs. É consistente com a disfunção do córtex pré-frontal e a redução do comportamento impulsivo (Novartis, 2008), culminando na melhora do desempenho acadêmico e funcionamento social, da qualidade do sono e do desempenho em testes de processamento auditivo em crianças com TDAH após o uso do medicamento (ITABORAHY & ORTEGA, 2013). Em crianças com TDAH, o MFD melhorou também o processamento auditivo central, a integração binaural e a ordenação temporal (LANZETTA-VALDO et al., 2017). Efeitos adversos Todos os fármacos apresentam efeitos adversos, pois ainda não existem no mercado farmacêutico medicamentos que tenham ação específica sobre um único alvo (um órgão ou um tipo celular). Sendo assim, os medicamentos, quando chegam ao sangue, são distribuídos para todas as partes do corpo, entre eles, o local onde terá ação esperada. A ação que o fármaco exerce nos demais órgãos é chamada de efeito colateral ou adverso. Aqui são apresentados efeitos adversos ao uso do MFD citados nas próprias bulas dos medicamentos, bem como em estudos realizados especialmente com crianças. Deve-se atentar para a ampla lista e alta incidência de efeitos colaterais. Portanto, a decisão terapêutica de usar ou não o medicamento deve levar em consideração os riscos de apresentação dos efeitos adversos, o esgotamento de medidas não medicamentosas e a certeza do diagnóstico. Os efeitos adversos comumente encontrados são: diminuição do apetite, insônia, dores de cabeça e dores abdominais (ITABORAHY & ORTEGA, 2013; CLAVENNA & BONATI, 2014), sendo estes observados entre 58% e 78% dos pacientes em uso de MFD (CLAVENNA & BONATI, 2014). Esses efeitos adversos surgiram independentemente das doses e da duração do tratamento, apesar de não existir estudos de longa duração (HOLMSKOV et al., 2017). Há relatos de hepatoxicidade e insuficiência hepática relacionadas ao uso de MFD, que se recuperaram após a cessação do tratamento e também em que foi necessário o transplante de fígado (TONG et al., 2015). No Sistema Cardiovascular, o uso de MFD em altas doses ou por longos períodos pode levar a hipertensão (pressão alta) e taquicardia (coração disparado) (NOVARTIS, 2008; ITABORAHY & ORTEGA, 2013). Merece destaque um estudo com crianças com TDAH medicadas com MFD, em que foi verificado aumento da frequência cardíaca transitória sem provocar hipertensão arterial duradoura (LANDGREN et al., 2017; VITIELLO, ELLIOTT & SWANSON, 2012). A bula do MFD relata que algumas crianças apresentam crescimento mais lento que o normal durante o uso do estimulante, mas geralmente o recuperam quando o tratamento é interrompido (FARAONE & BIEDERMAN, 2008; NOVARTIS, 2008) Uma pesquisa observou a estatura das crianças antes e depois do tratamento com essa medicação e verificou que, antes do

início do tratamento, elas apresentavam uma estatura acima da média esperada, mas que, depois do tratamento, tiveram uma redução na estatura, sem evidências de recuperação do crescimento por três anos (VITIELLO, ELLIOTT & SWANSON, 2012). Por outro lado, BIEDERMAN et al (2012), não encontraram evidências de alteração de altura e peso relacionadas a efeitos adversos da medicação estimulante. Outro efeito adverso que apresenta divergência de opiniões se dá em relação ao abuso do medicamento ou à dependência. Existem alertas de que o uso abusivo prolongado pode conduzir a tolerância acentuada e dependência psicológica e que crianças apresentam mais probabilidade de dependência do que adultos (NOVARTIS, 2008; FARAONE & BIEDERMAN, 2008). Quanto à vinculação do uso do MFD ao uso drogas de abuso também há controvérsias. Alguns autores relatam que após o uso prolongado do MFD pode ser observado uso compulsivo de drogas e reações de dependência e abstinência (ITABORAHY & ORTEGA, 2013). Por outro lado, outros afirmam que o uso de MFD é um fator de proteção para o risco de uso de drogas no futuro, especificamente em crianças com TDAH (ROMANOS & SZOBOT, 2007). Os efeitos psíquicos podem se manifestar como comportamentos agressivos, tendência suicida e tiques, assim como a psicose, quando usado em doses elevadas (NOVARTIS, 2008). Observa-se que há poucos estudos que avaliam a segurança de seu uso a longo prazo, e, por isso, o uso prolongado do medicamento precisa ser sistematicamente monitorado por médicos por meio de exames clínicos e laboratoriais (CLAVENNA & BONATI, 2014). Devido a isso, as recomendações para atendimento das crianças com uso de MFD, é que devem ser regularmente coletados os parâmetros de Frequência Cardíaca e medidas antropométricas e monitorados clinicamente de três a quatro vezes ao ano (INGLIS et al., 2016; LANDGREN et al., 2017). Portanto, mesmo que tenhamos certeza do diagnóstico e esgotadas as demais opções de tratamento, possamos ofertar apoio psicossocial à criança e à família durante o uso do fármaco, é ainda preciso acompanhamento médico visando verificar sua eficácia e toxicidade, fazendo exames de funções do coração, fígado e rins pelo menos três vezes por ano enquanto durar o uso. Convidamos os leitores para observar se esse cuidado tem sido tomado com os usuários de MFD a seu redor. Custo financeiro da medicação A Anvisa calculou que o custo anual médio do uso de MFD variaria entre 1.126 reais a 4.955 reais por ano e por pessoa, dependendo do tipo de liberação e laboratório do medicamento, comparando com a mesma dosagem. Muitos dos usuários dependem do Sistema Único de Saúde (SUS) para fornecer o medicamento para uso, diante de seu alto custo. O Ministério de Saúde (MS) do Brasil não inclui o MFD nas listas de dispensa de medicamentos via Sistema Único de Saúde (SUS), e ele também não está na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (BRASIL. MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2017). Neste contexto, cada Secretaria de Saúde Estadual e Municipal tem relativa autonomia para definir as listas próprias de medicamentos por meio das publicações da Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME, 2011-2012) e baseado em suas peculiaridades (CALIMAN & DOMITROVIC, 2013). Todavia, não foram encontrados relatórios nem estudos que avaliam o custo financeiro para os municípios ou sistemas de saúde. No Paraná, encontram-se diversos municípios que inseririam o MFD na Remume, lista de medicamentos adquiridos e dispensados pelo município a cada intervalo de tempo (REMUME, 2011-2012). Questiona-se se a inserção desse medicamento na lista poderia ser um facilitador ao acesso a essa medicação e contribuir para os altos índices de seu consumo nesse estado? Neste caso, são necessários estudos adicionais para verificação. Carla Betânia Huf Ferraz Campos Fisioterapeuta. Especialista em Neurologia. Mestre em Biociências e Fisiopatologia pela PBF/UEM. Professora de neurociência na Faculdade Adventista Paranaense (FAP). Débora de Mello Gonçales Sant´Ana Farmacêutica e Pedagoga. Especialista em Bioética. Mestre e Doutora em Biologia Celular. Pesquisadora e professora na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Referências: ANVISA. Prescrição e consumo de Metilfenidato no Brasil: identificando riscos para o monitoramento e controle sanitário. SNGPC: Boletim de Farmacoepidemiologia, v. 2, n. 2, p. 1–14, 2012. BIANCHI, E.; ORTEGA, F.; FARAONE, S.; GONÇALVES, V. P.; ZORZANELLI, R. T. Medicalización más allá de los médicos: marketing farmacéutico en torno al trastorno por déficit de atención e hiperactividad en Argentina y Brasil (1998-2014). Saúde E Sociedade, v. 25, n. 2, p. 452–462, 2016. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S0104-12902016153981 >. Acesso em: 7 ago. 2019. BIEDERMAN, J., FRIED, R., PETTY, C., HENIN, A., WOZNIAK, J., CORKUM, L., STEPHEN, V. (2012). Examining the Association Between Stimulant Treatment and Cognitive Outcomes Across the Life Cycle of Adults With Attention-Deficit / Hyperactivity Disorder A Controlled Cross-Sectional Study, 200 (1), 69–75. Disponível em: < https://doi.org/10.1097/NMD. 0b013e31823e55ef >. Acesso em: 9 nov. 2019. BPR. Guia de Remédios – edição 2016/2017. 10. ed. São Paulo: Escala, 2016.

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médica têm lidado com certos problemas corriqueiros da vida moderna. Neste capítulo, tentaremos refletir sobre esse lado negativo da chamada “medicalização”, buscando trazer à tona aspectos da prática clínica que podem tornar o ato de medicalizar uma ação envolta em fatoes benignos à sociedade. Uma medicalização que ultrapassa a questão farmacológica Atualmente, apesar de o termo estar muito envolto à questão medicamentosa, o dicionário Michaelis (2014) online define o verbo “medicalizar” como a “transformação de algo em uma preocupação médica” (MICHAELIS, 2014). Por meio desta definição, defronta-se com a amplitude que o termo e o tema podem alcançar. Nesse sentido, poder-se-ia chamar de “medicalizar”, por exemplo, o estudo e a implantação de vacinas que preveniriam, a posteriori , a febre amarela ou as campanhas de prevenção ao mosquito Aedes Aegypti . Da mesma forma, buscando-se o ato em momentos anteriores da humanidade, constata-se que grandes invenções que transformaram o tratamento de afecções humanas também poderiam ser formas de medicalização, entre elas o tratamento de doenças bacterianas com a penicilina, a descoberta da assepsia de mãos como forma de diminuir a infecção em centros cirúrgicos ou até mesmo a introdução da anestesia, permitindo o acesso dos bisturis a locais anteriormente impossíveis. Esses são alguns dos exemplos de “coisas” do passado que, ao se tornarem objetos da preocupação médica, transformaram-se em atos de uso corriqueiro. Assim, ao olharmos para o “medicalizar” por meio do que a sua etimologia realmente remete, passamos a falar sobre o ato de tornar um problema previamente distante da Medicina em algo de interesse e estudo pelas ciências médicas. Além disso, dentro dessa mesma definição, há que se perceber que as transformações trazidas pelas descobertas da ciência também trouxeram consequências para a própria ciência médica. A princípio, a Medicina se ocupava primordialmente de estudar problemas que poderiam levar à morte. Entretanto, com o aumento da expectativa de vida da população e o controle da mortalidade infantil, da subnutrição e de doenças infectocontagiosas, as doenças crônico-degenerativas passaram a se tornar cada vez mais o objeto de estudo das Ciências Médicas. Ante a todo esse cenário de transformações, o objetivo da Medicina, hoje, não é apenas permitir a vida, mas também que seja vivida com bem-estar. Nesse ponto, o comportamento humano é eleito como um importante objeto atual de estudo da Medicina moderna. E, para tal finalidade, a Psiquiatria desenvolve-se como um ramo da ciência médica embasada em evidência, responsável por essa área. Assim, problemas relacionados ao humor, à cognição, às emoções e aos comportamentos humanos passam a ser detectados tomando-se como medida os comportamentos que possam estar em excesso ou déficit e que, por isso, geram disfuncionalidades e sofrimento Partindo do objetivo da Medicina, de vivermos com bem-estar, podemos (e devemos) estudar mais os fenômenos comportamentais, peças-chave no equilíbrio do indivíduo. Olhando por essa ótica, podemos medicalizar, no sentido amplo do termo, buscando que a Medicina como ciência aprofunde o

conhecimento de certas questões humanas. O homem tem aspectos biológicos, psicológicos e sociais em sua constituição, e estes são primordiais para a definição de seus comportamentos. Qual o problema em ver a ciência evoluindo? O que não podemos é reduzir excessivamente, biologizando fenômenos e atribuindo tratamentos puramente farmacológicos a fenômenos bem mais complexos que isso. Portanto, qual seria o problema em “medicalizar”, se isso, como exposto acima, não significa reduzir comportamentos a causas biológicas nem a tratamentos unicamente farmacológicos? Entretanto, os fundamentos primordiais da Ciência Médica trouxeram consigo certas características ainda presentes na forma de constituir-se. Por nascer tendo como objetivo primordial a preservação da própria espécie que a exerce, a Medicina sempre teve, em si, uma característica fundamental: a utilização de práticas que mostraram evidências em experiências anteriores e o abandono de práticas que se mostraram ineficazes. Assim, ela tem na ciência natural os seus primórdios, buscando isolar, categorizar e investigar fenômenos humanos (STARLING, (2004), ampliando o objeto de estudo da Ciência Médica, sem, no entanto, perder de vista o método de estudo – a Ciência Natural. Acontece que, para se ter um método natural de estudo de um fenômeno, é primordial que se isole e descreva detalhadamente o fenômeno. E daí vem um dos problemas: como descrever comportamentos humanos dentro de uma infinitude de formas de agir das pessoas? E, desta forma, a Psiquiatria (e, portanto, a Medicina) toma emprestado alguns conceitos e métodos da psicopatologia descritiva. Objetiva-se, com isso, a descrição de comportamentos que de alguma forma sejam disfuncionais para os sujeitos e para a sociedade em que vivem. Porém, embora esse ramo da Medicina enfoque o que há de patológico, na definição de fenômenos tão contínuos e dimensionais como comportamentos humanos, há que se ter uma definição mínima de uma normalidade. Buscando-se definições de normalidade, pode-se caminhar por diversos conceitos, como uma média populacional, a capacidade de se restabelecer um equilíbrio, um referencial de normalidade estipulado ou mesmo a excepcionalidade (MARCELLI & COHEN, 2016). Assim, utilizando-se esses diferentes conceitos, mais uns do que outros, os profissionais médicos acabam por definir seus objetos de estudo na linha comportamental. Nesse contexto, surge um dos grandes entraves da “medicalização”: o conceito de normal pode (ou não) se aproximar de conceitos despóticos ou autoritários, sem levar em consideração diferenças individuais ou coletivas próprias da normalidade do comportamento humano? Grandes erros já foram cometidos quando questões éticas e humanas não foram levadas em consideração para essas definições; por esse motivo, devemos estar sempre atentos a riscos potenciais. Tais excessos têm sido discutidos de forma reiterada na área do comportamento infantil, extrapolando também para a área educacional. Além das percepções de normalidade já mencionadas, o profissional que lida com qualquer tipo de comportamento na criança deve atentar-se que a criança é um ser em desenvolvimento, e que, por essa razão,

comportamentos aparentemente disfuncionais podem ser transitórios e úteis para o desenvolvimento maturacional. Além disso, deve-se ter o conhecimento de que a criança é um ser extremamente dependente do ambiente que a circunda e, portanto, não se pode perder de vista o ambiente ao qual ela está inserida no processo avaliativo. Assim, destaca-se que a Psiquiatria da Infância e da Adolescência exige conhecimentos acerca de neurobiologia desenvolvimental, da psicologia, da farmacologia, da epidemiologia e de outras ciências sociais. A farmacologização do comportamento Toda essa questão da definição do objeto de estudo da Medicina e, mais especificamente, da Psiquiatria da Infância e da Adolescência é, sim, uma questão primordial; entretanto, atualmente, não é exatamente sobre isso a que se remete a maioria dos artigos sobre medicalização. A definição da Infopedia (2003-2018) aproxima-se um pouco mais da forma em que o termo é utilizado de forma corriqueira. O dicionário online define medicalizar como: Tratar um problema social ou cultural como sendo um problema médico, transformando questões coletivas, que requerem uma abordagem sistêmica e multidisciplinar, em problemas individuais do foro psiquiátrico, cuja solução passa pela prescrição de medicamentos. Destaca-se, com essa definição, o ato de “tratar”, utilizando, muitas vezes, a medicação. Além disso, palavras como “abordagem sistêmica”, “multidisciplinar” e uma dicotomização entre questões “sociais” versus questões “individuais” são trazidas e posicionam a Psiquiatria próxima à individualidade e à prescrição medicamentosa. Tal definição, realmente, descreve um pensamento corrente de grande parte da população. Haja vista um grande incômodo das pessoas em sofrimento mental ao perceberem-se ou ao ser-lhes indicados um tratamento que exige uma consulta psiquiátrica, convido-os a analisar algumas dessas questões. Uma das principais dificuldades da prática médica (e psiquiátrica) é a individualização dos planos terapêuticos. Utilizando uma famosa frase de Willian Osler, “A Medicina é uma ciência, a prática dela, é uma arte”. A prática médica é uma ciência avaliativa e experimental que permite diagnosticar problemas com evidência (isolar fenômenos), tratá-los (buscar soluções) e predizer consequências (encontrando previsibilidade aos fenômenos estudados). Desta forma, a Medicina busca um mínimo de predição por meio do isolamento, da categorização e da busca de padrões nos diferentes fenômenos. Entretanto, no dia a dia, a prática médica exige uma arte que prescinde da relação entre o profissional e o paciente, em busca de um cuidado colaborativo em todos os momentos desse processo. Assim, na prática, utiliza-se muito (ou dever-se-ia utilizar) das ciências humanas para compreender-se adequadamente o que vem do outro. Outra proposição fundamental à prática médica é o entendimento de que os sujeitos estão inseridos em sistemas. Assim, são as células inseridas em órgãos, os órgãos inseridos em sistemas, as pessoas inseridas em contextos locorregionais, e assim sucessivamente. Desta forma, para a formulação de uma hipótese diagnóstica, deve-se dar relevância não apenas aos aspectos

biológicos, mas também aos psicológicos e sociais (ambientais). A observação de apenas um desses aspectos, em detrimento de outros, pode ser o desencadeador de muitas iatrogenias. Por outro lado, prolongar-se muito em um ato avaliativo, abordando aspectos irrelevantes para o desencadeamento de sintomas, pode tornar a entrevista demorada e desconfortável, e a dor do sujeito que busca ajuda, ainda maior. Um diagnóstico psiquiátrico envolve não apenas a delimitação e a mensuração dos sintomas no paciente, mas também a avaliação do contexto de vida de sua família, além do ambiente escolar, de trabalho e social. Deve-se, assim, ter um olhar sistêmico aos problemas que se apresentam, sem perder de vista a objetividade de uma avaliação (KUTCHER, 1997; ASSUMPÇÃO, 2014). Seguindo o raciocíno clínico, com base na proposição de um diagnóstico, parte-se para a formulação terapêutica. Neste ato, o conhecimento psicopatológico é fundamental, permitindo a compreensão do desencadeamento de dado fenômeno comportamental, tanto em linhas biológicas, quanto em psicoambientais. Deve-se estar atento a fatores predisponentes, precipitantes, mantenedores e protetores de um dado problema. Ao final, para a proposição de um plano terapêutico com um bom nível de eficácia, todos os aspectos devem ser explorados Diante do exposto, torna-se claro que a prática médica deve levar em consideração não apenas hipóteses etiológicas num âmbito biológico e, portanto, as proposições terapêuticas não devem basear-se apenas na farmacologia. Assim, com o problema delimitado, nem sempre o tratamento deve-se ater às questões psicofarmacológicas, assim como nem sempre o médico é o melhor profissional para lidar com essa questão. O profissional médico deve estar atento a potenciais imperícias e imprudências ao propor um tratamento para o qual não tem conhecimento, preparo ou prática. Portanto, para além dos conhecimentos teóricos, práticos e do interesse em ajudar, a prática médica deve estar balizada pela ética profissional. Em alguns casos, o médico deve ser um gerenciador de diferentes tratamentos, buscando eficácia na utilização de recursos para a resolução de dados problemas. Assim, a multiprofissionalidade e uma visão sistêmica dos sujeitos devem ser preceitos cotidianos a todo profissional médico. Ressaltados os aspectos acima mencionados, a Farmacologia é, sim, uma opção plausível em muitos casos, configurando-se como uma excelente ferramenta à amenização de problemas comportamentais. Contudo, para a intervenção farmacológica ser proposta, deve-se ter em mente que a melhora de comportamentos-alvo deve preferencialmente estar associada a outras abordagens não farmacológicas propostas. Ao contrário do que se possa imaginar, deve-se entender a intervenção farmacológica também como uma opção que agirá não apenas em aspectos biológicos do indivíduo, mas, por tratar-se de coisas indissociáveis, a medicação também age em aspectos psicológicos e sociais (CORCHS, 2010). Assim, é possível – e frequentemente é o que acontece – que a medicação, quando prescrita, desencadeie diversas mudanças em contextos psicológicos e ambientais, levando a uma melhora significativa e (pasmem) duradoura para os problemas que levaram a sua prescrição. Para isso, médicos precisam conhecer as ações das medicações

para além do biológico. A ação do médico não se deve resumir apenas à resolução da dúvida a respeito de que medicação prescrever e como prescrever, mas também quando prescrever e para quem prescrever. Outro ponto-chave constitui-se em como intervir com aspectos não farmacológicos na relação médico-paciente e no contexto de vida do paciente para potencializar o tratamento preconizado. Além disso, mesmo após a proposição de um tratamento, não se pode perder a crítica em relação a sua eficácia. Lembremos que, como toda Ciência Natural, a Medicina é baseada em uma teoria, porém, não dirigida por uma. Assim, os testes das hipóteses formuladas são delineados a fim de refutá-las, e não de provar que são corretas (STARLING, 2004). Assim, críticas são bem-vindas, se bem formuladas com base em dados empíricos. O médico deve sempre revisitar sua proposição terapêutica, lembrando sempre de considerar a ação esperada da intervenção e o tempo esperado entre a proposição do ato até a minimização dos problemas. Caso a proposta não seja resolutiva, nem ao menos amenize os sintomas-alvo, deve-se rever a necessidade de sua manutenção. Como regra geral, deve-se optar, preferencialmente, pelo mínimo de intervenções possível. Isso serve para intervenções tanto farmacológicas, quanto multiprofissionais. Enfim, a polifarmácia deve ser exceção, e não a regra (KUTCHER, 1997; KATZUNG & TREVOR, 2017). Considerações Finais Na realidade, o problema principal ressaltado quando se utiliza o termo “medicalização” é talvez a “medicamentalizaçao” ou a “psicofarmacologizaçao”, ou seja, os problemas advindos ao se propor uma abordagem farmacológica sem a devida atenção aos aspectos complexos apontados. Quando tentamos entender o motivo desse problema, extrapolase para outras questões. Uma delas é a excessiva precarização da profissão médica. Sem levar em consideração as condições de trabalho e a remuneração do profissional, propõe-se em uma única profissão a resolução de problemas cujas soluções vão muito além do que ela é capaz de resolver. Busca-se, também, no profissional médico uma eficiência trajada de rapidez na proposição diagnóstica e terapêutica, o que vai de encontro a todos os fundamentos da boa prática médica aqui apontada. Além disso, sem levar em consideração reais necessidades da população, a excessiva formação médica carece de preceitos norteadores que façam força ante a grandes interesses políticos e econômicos. Desta forma, preceitos éticos e técnicos balizadores de uma boa prática profissional passam a ser deixados em segundo plano. Medicalizar, então, talvez tenha a ver com uma sociedade mais rápida, que busca respostas precisas quanto a causas e tratamentos de fenômenos observados. Medicalizar talvez tenha a ver com esquivar-se de responsabilidades, amenizando intempéries com explicações puramente biológicas. O fato é que, infelizmente, na área do comportamento humano, a Medicina ainda tem muito a descobrir e evoluir. Ainda temos dificuldade em definir claramente síndromes (conjunto de observações), a ponto de os atuais manuais diagnósticos serem reconhecidamente transitórios (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). Ainda há muito a

aprender (e incorporar) das ciências humanas e sociais, mas não podemos nos esquecer que a Medicina em si, além de natural, também se propõe a ser uma ciência humana, com um forte viés social. Desta forma, ainda é precipitado falarmos de quadros estanques, de pouca modificação ao longo da vida, e com tratamentos únicos. Falar de causalidades unicamente biológicas, portanto, ainda é algo extremamente difícil. Talvez então a “psicofarmacologizaçao” na infância possa ter a ver com uma visão reducionista dos fenômenos proposta pela modernidade, minimizando causas, tratamentos e pessoas, a fim de ter terapêuticas aplicadas a massas e com baixos custos. Esquece-se, assim a eficiência, a humanidade, as incertezas, a Medicina em sua origem e essência. Neste sentido, deve-se ter em conta que a ação terapêutica deve estar imbuída não apenas de um saber técnico, mas também de preceitos éticos e humanos fortes, que façam jus à força mercantilizadora que pode desvirtuar o ato de ser médico (ou qualquer profissional de saúde). Felipe Pinheiro de Figueiredo Médico pela Universidade Federal do Maranhão, com especialidade em Psiquiatria e sub-especialidade em Psiquiatria da Infância e da Adolescência pelo hospital das clínicas de Ribeirão Preto. Doutor em Medicina com área de concentração na Saúde Mental. Atualmente é professor de Medicina na Unicesumar. Atua em clínica como médico psiquiatra da infância e da adolescência. Referências: AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION et al. DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais . Porto Alegre: Artmed Editora, 2014. ASSUMPÇÃO JR, Francisco B. Psiquiatria da infância e da adolescência : casos clínicos. Porto Alegre: Artmed Editora, 2014. CORCHS, Felipe. É possível ser um psiquiatra behaviorista radical? Primeiras reflexões. In: Perspectivas em análise do comportamento . 1.1, p. 55-66, 2010. INFOPÉDIA. Dicionário da Língua Portuguesa . Porto: Porto Editora, 2003-2018. Disponível em: < https://www.infopedia.pt/dicionarios/linguaportuguesa/medicalizar>. Acesso em: 2 out. 2018. KATZUNG, Bertram G.; TREVOR, Anthony J. Farmacologia Básica e Clínica . 13 ed. Porto Alegre: McGraw Hill Brasil, 2017. KUTCHER, Stanley P. Child and adolescent psychopharmacology . Philadelphia: WB Saunders Company, 1997. MARCELLI, Daniel; COHEN, David. Infância e Psicopatologia . 8ª Edição. Porto Alegre: Artmed Editora, 2010. MICHAELIS. Dicionário brasileiro da língua portuguesa online . 2014. Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/busca?id=dNo2k >. Acesso em: 7 ago. 2019.

STARLING, R. R. Produção de Conhecimento e ciência natural – tudo que é sólido pode se desmanchar no ar. In: BRANDÃO, M. Z. & cols. (orgs.). Sobre Comportamento e Cognição. v. 14, p. 84-119. Santo André: Esetec, 2004. V MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA NAS PESQUISAS CIENTÍFICAS: O QUE DIZEM OS ESTUDOS NA ÁREA DA MEDICINA, EDUCAÇÃO E PSICOLOGIA NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)? Lorena Carrillo Colaço Introdução Este capítulo tem como objetivo principal investigar e compreender a produção de conhecimento sobre diagnósticos da infância nas áreas da Medicina, Educação e Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), com base no referencial teórico da Psicologia Histórico-Cultural. Parte-se do entendimento de que, com a banalização de diagnósticos de transtornos (como o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade/ TDAH) e de prescrições de medicamentos para seu tratamento, não são compreendidas as funções psíquicas envolvidas nesses supostos problemas e como elas se constituem em seu desenvolvimento, o que pode acarretar no fenômeno conhecido como Medicalização. O termo Medicalização “refere-se ao processo de transformar questões não médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas” (COLLARES & MOYSÉS, 1994, p. 25). E essa conduta acaba pautando o entendimento de desenvolvimento humano sob a ótica organicista. O sociólogo australiano Peter Conrad já utilizava a terminologia “medicalização” na década de 1970 e, segundo ele, esse termo […] descreve um processo onde questões não médicas se tornam e são tratadas como problemas médicos, geralmente como doenças ou distúrbios [e que] durante os anos de 1970 o termo Medicalização rastejou para dentro da literatura científica. (CONRAD, 1992, p. 209-10, tradução da autora) Ao longo do capítulo, serão apresentados alguns transtornos que são diagnosticados na infância, destacando o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), por ser o mais frequente. O TDAH tem suas características e critérios diagnósticos apresentados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), atualmente em sua 5ª edição e publicado pela American Psiquiatrist Association. O TDAH, no DSM-V, traz uma incidência do transtorno de 5% em crianças e 2,5% em adultos, e o tratamento mais frequente é, atualmente, o uso do metilfenidato, mais conhecido pelo nome comercial Ritalina®. Como os diagnósticos de transtornos de comportamento e aprendizagem são realizados mais frequentemente em crianças, será dado destaque neste

capítulo ao ambiente escolar – local onde grande parte desses diagnósticos acontecem. Em geral, para os agentes da escola, a causa desse fracasso é extraescolar, veem a criança como doente quando ela não se apresenta como a escola deseja. Segundo Collares e Moysés (1994, p. 26), esse sistema é tão eficiente “ao ponto de terminar pela culpabilização da vítima […] e de conseguir que ela própria se sinta culpada”. Como afirma Bonadio (2013, p. 25), é preciso “compreender como as crianças e adolescentes estão sendo diagnosticados com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”. Assim, entendendo o processo diagnóstico será possível o enfrentamento desse fenômeno. Um parágrafo apresentando ao leitor o percurso do capítulo é importante. Apresentação das teses e dissertações da USP A procura por pesquisas produzidas na Universidade de São Paulo (USP) ¹ foi realizada em três programas: Faculdade de Educação, Faculdade de Medicina e Instituto de Psicologia. No entanto, não foi possível utilizar palavras-chave para a pesquisa, pois houve alguns impasses na hora da busca. Mesmo com a possibilidade de pesquisas nos três programas separadamente, ao digitar qualquer palavra-chave no campo de buscas, a página não encontrava nenhum resultado e, além disso, não havia também a possibilidade de pesquisas aplicando a opção de Teses e Dissertações (descartando-se Livre-Docência) e a opção de pesquisas realizadas entre 2005 e 2014 – intervalo de dez anos. Assim, para que fosse possível ter acesso a essas pesquisas, foram acessados os bancos de cada área e, primeiramente, descartadas especialidades que não interessavam a este estudo, como Cardiologia e Urologia (no caso da Medicina) e Administração Escolar (no caso da Educação). Após a exclusão das especialidades ² que não seriam exploradas, os trabalhos foram sendo incluídos e excluídos da pesquisa com base na leitura dos títulos e dos resumos. Para que isso acontecesse, foram elaborados critérios de inclusão para os trabalhos (com base na leitura de títulos e resumos): elaborado entre 2005 e 2014 e textos que tratassem de questões como dificuldades de aprendizagem, TDAH, dislexia, fracasso escolar, medicalização e o uso de várias vertentes teóricas para explicar fenômenos educacionais. Ao selecionar as teses e dissertações para análise, com base na leitura dos trabalhos na íntegra, foram identificados: Tema, Fundamentação Teórica, Método e Conclusões de cada trabalho produzido para que, posteriormente, pudessem ser identificados itens para a discussão. Nas pesquisas produzidas na Faculdade de Medicina, todos os autores da área médica trouxeram algum dado sobre a prevalência do TDAH na população (em geral e no Brasil). O que chamou a atenção foi a discrepância entre esses dados e a falta de discussão sobre a grande diferença percentual existente entre eles. Em ordem cronológica, os trabalhos apresentaram os seguintes dados com relação à prevalência do Transtorno (em %): QUADRO 1 . P REVALÊNCIA DO TDAH NA POPULAÇÃO (entre as pesquisas da área da Medicina)

Fonte : Elaborado pela autora (2015). • Sem citar fonte da prevalência de TDAH. ** Dados referentes apenas aos Estados Unidos. Mesmo com os critérios diagnósticos e outras informações do DSM-IV aparecendo em todos os trabalhos na área da Medicina, foi possível observar que a prevalência que consta no manual não é a utilizada pela maioria dos pesquisadores. É importante ressaltar o fato de que, pela variação nos percentuais, existem muitos pesquisadores se debruçando sobre o tema e que, por algum motivo, estão chegando a resultados muito diferentes. Sobre o modelo de pesquisas realizadas na área da Medicina, é possível afirmar que esse tem um nível de abrangência pequeno. Do total de 12 pesquisas encontradas, todas foram realizadas com grupos de pacientes com diagnóstico de TDAH, sendo que dez delas foram conduzidas com grupos de pacientes em atendimento no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Uma foi conduzida com grupo de pacientes de um ambulatório em Joinville – SC, e uma foi realizada com crianças selecionadas em escolas da rede municipal de ensino de Maringá – PR. Entre os profissionais que conduziram a pesquisa, sete deles são neurologistas, quatro psiquiatras e um é neuropediatra. Existe também uma fragilidade muito marcante nas pesquisas, chegando alguns autores a afirmar, como o próprio DSM reconhece, que não existem marcadores biológicos para o transtorno (GOULARDINS, 2010), que a palavra final no diagnóstico deve ser sempre do psiquiatra (SILVA, 2013), que os manuais (como o DSM) são inquestionáveis (KLEINMAN, 2013) e que a negação de causas ambientais em todas as pesquisas são alguns exemplos dessa fragilidade, uma vez que tomam para si toda a responsabilidade e capacidade para realizar o diagnóstico. Não se pensa no que as outras ciências podem contribuir, ou até mesmo na falta de evidências científicas que sustentem o próprio transtorno. Para a realização dos diagnósticos nessas pesquisas, o DSM esteve presente em todas elas, acompanhado do SNAP-IV. O SNAP-IV é um questionário utilizado no diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade e consiste em duas partes: o diagnóstico pode ser feito se atingir os critérios em uma parte ou em ambas: Primeira parte – Seis (ou mais) dos seguintes sintomas de desatenção persistiram pelo período mínimo de seis meses, em grau mal adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento: Desatenção : a) Frequentemente não presta atenção a detalhes ou comete erros por omissão em atividades escolares, de trabalho ou outras; b) Com frequência tem dificuldade para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas;

c) Com frequência parece não ouvir quando lhe dirigem a palavra; d) Com frequência não segue instruções e não termina seus deveres escolares, tarefas domésticas ou deveres profissionais (não devido a comportamento de oposição ou incapacidade de compreender instruções); e) Com frequência tem dificuldade para organizar tarefas e atividades; f) Com frequência evita, demonstra ojeriza ou reluta em envolver-se em tarefas que exijam esforço mental constante (como tarefas escolares ou deveres de casa); g) Com frequência perde coisas necessárias para tarefas ou atividades (por exemplo, brinquedos, tarefas escolares, lápis ou outros materiais); h) É facilmente distraído por estímulos alheios à tarefa; i) Com frequência apresenta esquecimento em atividades diárias; Segunda parte – Seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperatividade persistiram pelo período mínimo de seis meses, em grau mal adaptativo e inconsistente com o nível de desenvolvimento: Hiperatividade a) Frequentemente agita as mãos ou os pés ou se remexe na cadeira; b) Frequentemente abandona sua cadeira na sala de aula ou em outras situações nas quais se espera que permaneça sentado; c) Frequentemente corre ou escala em demasia, em situações impróprias (em adolescentes e adultos pode estar limitado a sensações subjetivas de inquietação); d) Com frequência tem dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividades de lazer; e) Está frequentemente “a mil” ou muitas vezes age como se estivesse “a todo vapor”; f) Frequentemente fala em demasia. Impulsividade g) Frequentemente dá respostas precipitadas antes de as perguntas terem sido completamente formuladas; h) Com frequência tem dificuldade para aguardar sua vez; i) Frequentemente interrompe ou se intromete em assuntos alheios (por exemplo, em conversas ou brincadeiras). Com o diagnóstico feito, tomando-se como base o Manual, o tratamento indicado é o medicamentoso, associado ou não a algum tipo de terapia

psicológica, com pesquisas destacando que a terapia não é suficiente para a diminuição dos sintomas e para o tratamento do “transtorno” (BILHAR, 2010). Com todas as fragilidades e críticas feitas a estudos como esses, segue a Figura 1, que ilustra o número de pesquisas realizadas com base em uma perspectiva crítica ou uma perspectiva biológica e orgânica: Figura 1. Pesquisas com uma perspectiva crítica ou organicista/biológica – Faculdade de Medicina

Fonte : Elaborada pela autora (2015). Das 12 pesquisas (entre teses e dissertações) encontradas, todas adotam um referencial biologicista. Essas pesquisas estão, infelizmente, fortemente ligadas a uma perspectiva organicista e que encontra apenas no sujeito e no seu suposto transtorno uma explicação para os vários fenômenos cotidianos. A concepção de desenvolvimento humano é, aqui, baseada exclusivamente na maturação biológica. As áreas onde se concentraram essas pesquisas, como foi possível observar, foram a Psiquiatria, Pediatria e Neurologia, e o método amplamente utilizado foi a realização de testes físicos e psicológicos. Com o uso exclusivo desses testes, o que acaba acontecendo é a confirmação dos supostos transtornos dessas crianças e adolescentes, justificando, de forma simplista, as dificuldades escolares. Já na área da Educação, com base nas pesquisas encontradas, foi elaborado um novo gráfico, semelhante ao da área médica, para apresentar o número de pesquisas realizadas sob uma perspectiva crítica. Segue a Figura 2. Figura 2. Pesquisas com uma perspectiva crítica ou organicista/biológica – Faculdade de Educação

Fonte : Elaborada pela autora (2015). Já na Faculdade de Educação, o cenário foi um pouco diferente, pois as pesquisas (TATIT, 2013; BERNARDES, 2008; MORAES, 2008; DALSAN, 2007; entre outras), ou a maioria delas, traziam críticas ao alto número de diagnósticos, à forte presença do saber médico na educação e ao número de crianças usando algum medicamento controlado (n. 14). Com base na análise dos referenciais teóricos utilizados pelos autores, observou-se que, entre os 18 trabalhos encontrados, seis deles utilizaram pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural (sendo que quatro se basearam fielmente em autores dessa linha teórica e em dois deles há uma combinação de autores da Psicologia Histórico-Cultural com autores construtivistas). As pesquisas que utilizaram a Psicologia Histórico-Cultural como referencial teórico foram: Ciboto (2006), Miranda (2012), Dalsan (2007), Moraes (2008), Ferreira (2009), e Tatit (2013), mas apenas as quatro últimas utilizaram fielmente autores da Psicologia Histórico-Cultural, sem a articulação com outras teorias de bases epistemológicas distintas. Sobre os referenciais teóricos do restante das pesquisas (n. 12), a Psicanálise está presente em cinco deles, Foucault em três, Construtivismo em um e referenciais diferentes (como Psicanálise e Construtivismo combinados ou Psicanálise e Foucault combinados) em três trabalhos. Ainda entre as pesquisas da área da Educação, não foram encontrados dados referentes à prevalência do transtorno na população, o que é possível devido à presença quase total de pesquisas realizadas sob um olhar crítico a respeito dos fenômenos referentes à medicalização e ao consumo exagerado de medicamentos controlados. Também não foram encontrados dados sobre quem é o responsável pelo diagnóstico. As metodologias dos trabalhos também foram as mais variadas: nove trabalhos foram realizados em escolas ³ , cinco foram pesquisas documentais ⁴ , duas foram pesquisas exclusivamente teóricas ⁵ e as outras duas foram pesquisas clínicas ⁶ . Aqui, será dado destaque às pesquisas que, utilizando a Psicologia HistóricoCultural, criticaram o fenômeno da Medicalização e a existência do TDAH (n. 4): Dalsan (2007), Moraes (2008), Ferreira (2009) e Tatit (2013).

Em Dalsan (2007), fizeram parte da metodologia procedimentos como estudo de caso, entrevista com professoras, coordenadora e crianças, de forma que a proposta é fazer uma análise aprofundada das queixas escolares e das dificuldades dos alunos. Apresenta-se também uma crítica ao Construtivismo, argumentando-se que, por meio desse referencial, culpabiliza-se exclusivamente o aluno pelo seu fracasso, devido aos pressupostos construtivistas serem biologicistas. Moraes (2008) optou, em sua metodologia, por um grupo de formação de professoras, composto de 13 docentes, em que foram realizadas discussões sobre a Teoria da Atividade, para que, segundo a autora, as professoras “analisem as aprendizagens dos alunos pautadas nas suas ações de aprendizagem, de modo a revelar as mudanças que promovem no seu desenvolvimento no plano psicológico” (p. 238). Em Ferreira (2009), foi estudada a inserção dos conceitos da Psicologia Histórico-Cultural e do Construtivismo no Brasil com base em um estudo de caso. Foram realizadas entrevistas com professoras e coordenadoras de três escolas (com a intenção clara de não culpabilizar as professoras pelo fracasso escolar dos alunos). Baseando-se nisso, a autora pôde afirmar que entre as professoras não havia uma articulação entre a teoria que dizem adotar e suas práticas. Segundo ela, “muitas educadoras são estudiosas […], fazem leituras e cursos, sabem articular seus saberes como premissas teóricas, mas, na hora de validá-los na prática, podem mencionar, por exemplo, que não sabem como o menino aprendeu a ler e escrever. Dizem que foi um ‘estalinho’” (p. 269). Finalmente, em Tatit (2013), houve a observação durante dois anos em uma escola e a entrevista com professoras. Segundo a autora, a escola se ausentava do seu papel na socialização das crianças e acabava “terceirizando a solução dos problemas” (p. 93). No entanto, a autora ainda ressalta que isso pode ser o resultado da falta de amparo ao professor “na sua formação e no seu meio profissional para lidar com esses difíceis percalços” (p. 96). As áreas em que foram encontradas as pesquisas foram: Educação Especial; Psicologia e Educação; Ensino de Ciências e Matemática; Educação; Linguagem e Educação; Sociologia da Educação; sendo que as pesquisas críticas se concentraram na área de Psicologia e Educação. Nas pesquisas encontradas no Instituto de Psicologia, o cenário foi o inverso do detectado na Faculdade de Educação: aqui, predominaram as pesquisas que culpabilizam o sujeito pelo seu fracasso escolar, atribuindo-lhe um diagnóstico/rótulo, como é possível ver na Figura 3. Figura 3. Pesquisas com uma perspectiva crítica ou organicista/biológica – Instituto de Psicologia

Fonte : Elaborada pela autora (2015). De um total de 15 pesquisas encontradas, seis apresentaram referenciais teóricos e práticos críticos, enquanto nove se voltaram para a culpabilização dos sujeitos, com base na visão orgânica do problema. As áreas em que foram encontradas as pesquisas no campo da Psicologia foram: Neurociências e Comportamento Humano; Psicologia Clínica; Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano. Nesta última, concentraram-se os seis trabalhos críticos detectados. Ao contrário dos trabalhos encontrados na área da Educação, alguns trabalhos da Psicologia, assim como os da Medicina, apresentaram dados sobre a prevalência do transtorno e utilizaram testes padronizados como parte de suas metodologias (Quadro 2). É possível observar que quase todos os trabalhos que defendem a veracidade desses transtornos utilizaram testes padronizados como parte de suas metodologias, com relação aos limites desses instrumentos para diagnóstico. As pesquisas defendem, ainda, o uso do metilfenidato como o tratamento eficaz para o TDAH, apresentando também dados de prevalência e/ou a utilização de testes padronizados. Com relação às pesquisas que apresentaram críticas ao fenômeno da Medicalização, foram encontradas seis: Asbahr (2011), Braga (2011), Gomes (2012), Lopes (2013), Lessa (2014) e Mendoza (2014). Todas essas pesquisas, exceto Lopes (2013) foram realizadas em escolas, seja com professoras, coordenadoras, alunos e/ou pais. Asbahr (2011) e Braga (2011) destacam ao longo dos trabalhos a importância do papel do professor no processo de escolarização, com base em estudos de caso e da observação no contexto escolar, criticando fortemente a presença do discurso médico no local. Lacet (2014) traz um dado preocupante no que diz respeito ao uso do metilfenidato. A autora, que reconhece a existência do transtorno, mas critica o número muito elevado de diagnósticos, alertando para o uso combinado do metilfenidato com a Risperidona ⁷ para o tratamento do TDAH, destaca os perigos para a

criança/adolescente no que diz respeito ao seu desenvolvimento e também questiona a necessidade da prescrição desse antipsicótico. A autora também dispara críticas às parcerias entre psiquiatras e laboratórios que produzem esses medicamentos, afirmando que é uma aproximação perigosa, uma vez que os conflitos de interesse podem trazer consequências graves para quem recebe o diagnóstico e a prescrição do medicamento (que pode não ser necessário). QUADRO 2 . C ARACTERÍSTICAS DAS PESQUISAS QUE RECONHECERAM A VERACIDADE DE TDAH E D ISLEXIA COMO T RANSTORNOS BIOLÓGICOS Fonte : Elaborada pela autora (2015). • Esta é a prevalência na população em geral. A pesquisa também apresenta prevalências em vários países do mundo. ** Lacet (2014), Luccia (2014) e Silva (2014) utilizaram entrevistas, e não testes. Aliás, Lacet (2014) faz uma discussão sobre o fenômeno da Medicalização e ao exagero dos diagnósticos. * Carvalho (2013), Folquitto (2013), Araújo (2011) e Silva (2014) não apresentaram dados referentes à prevalência. ** Silva (2014), apesar de defender a existência do TDAH, critica a “epidemia” da doença. Lessa (2014), que também realizou seu trabalho na escola, acompanhando o andamento das aulas, organizando grupos de professores e pais, também alerta para os interesses da indústria farmacêutica no processo de diagnóstico e prescrição de medicamentos e nas suas consequências. Mendoza (2014) alerta para a “epidemia” de TDAH e afirma, com base em um estudo de caso, que há “o descaso por parte de médicos, psicólogos e docentes com o contexto de relações sociais” (Mendoza, 2014, p. 168) de quem recebe um diagnóstico. Com base na leitura das pesquisas, é preciso destacar que aquelas que se respaldaram num modelo de desenvolvimento humano hegemônico (organicista, pautado apenas em princípios neurofisiológicos) nas três áreas – Medicina, Educação e Psicologia – acabaram centrando suas explicações para os transtornos exclusivamente no indivíduo, negando seu processo de escolarização e encontrando a solução para esses “males” no uso do medicamento controlado. Já aquelas que se respaldaram em modelos teóricos de desenvolvimento humano e aprendizagem como frutos de relações sociais mais amplas (incluindo nelas as relações escolares, familiares etc.), ampliaram as discussões sobre os transtornos e sua existência, trazendo para a análise os fatores que as pesquisas com uma vertente mais organicista acabaram deixando de lado.

As pesquisas encontradas nas áreas da Medicina, Psicologia e Educação, como já expostas anteriormente, apresentaram algumas características gerais, conforme a Figura 4. Figura 4. Pesquisas com uma perspectiva crítica ou organicista/biológica – dados gerais das 3 áreas

Fonte : Elaborada pela autora (2015). Sobre o uso dos testes psicométricos nas pesquisas, é necessário lembrar a crítica de Luria (1957) quanto às baterias de testes e escalas. Antes, porém, será realizada a exposição dos testes mais empregados para os diagnósticos nas pesquisas analisadas, que se propunham a “medir” a atenção/ hiperatividade: SNAP-IV ⁸ (atenção/hiperatividade), Escala de Conners (hiperatividade), Escala Waldrop, que conta com uma versão modificada chamada de ASRS-18 (pequenas anomalias físicas aplicadas ao TDAH) e Tavis 3 (atenção). Sobre as metodologias quantitativas que foram observadas em muitos trabalhos, é possível afirmar que “uma abordagem puramente quantitativa como medida para distúrbios cerebrais do comportamento, que usa uma bateria de testes com notas de corte como critério de desempenho, é insuficiente para permitir dados abundantes para uma interpretação neuropsicológica” (LURIA & MAJOVSKI, 1977, p. 967, tradução da autora). Então, não é possível “medir”, com base em resultados de baterias de testes, as funções psíquicas humanas isoladas.

Luria também afirma que rejeita completamente o uso dos testes psicométricos formais e outras formas superficiais de investigação para o diagnóstico, alertando para o perigo que uma simples descrição de sintomas pode ter, levando a sérios erros clínicos (LURIA, 1957). A fim de evitar tais erros, o autor defende uma análise de como as funções se constituem (a atenção, por exemplo, em que dificuldades acabam resultando em diagnósticos de TDAH) ao longo do desenvolvimento. Tal análise deve ser cuidadosa, explorando os estágios pelos quais a função passa, para que se compreenda, efetivamente, sob que circunstâncias ocorreram os sintomas (LURIA, 1957). De acordo com Patto (1997), os testes psicométricos acabam sendo utilizados, em muitos casos, para justificar a exclusão escolar dos que são examinados, “reduzindo-os a coisas portadoras de defeitos de funcionamento em algum componente da máquina psíquica” (PATTO, 1997, p. 49). A autora ainda reitera que professores e psicólogos acabam partindo do pressuposto de que a criança examinada tem algum tipo de transtorno e que a aplicação do teste serve apenas para descobrir qual é. Sobre o uso destes testes, Patto (1997) afirma que: Como técnicas de exame psicológico que fundamentam as conclusões, esses laudos mencionam testes de avaliação da inteligência, da personalidade e das chamadas habilidades especiais. Muitas vezes um teste de inteligência construído nos Estados Unidos da América para testar recrutas durante a Primeira Guerra Mundial é suficiente para a emissão de veredictos, desde os mais esdrúxulos, até os mais conformes aos conceitos da Psicologia (PATTO, 1997, p. 50). Patto (1997), como foi possível observar no trecho acima, alerta para os perigos de simplesmente transpor e utilizar em outra realidade testes produzidos para a população de um determinado local e uma determinada cultura e contexto, como no caso dos testes utilizados por alguns trabalhos encontrados durante a pesquisa, como o WISC-III, o SNAP-IV e o TAVIS III, por exemplo. Além disso, os testes abstraem os “comportamentos” ou “respostas” das condições sociais que as produzem ou produziram. Questionamentos sobre o uso indiscriminado dos testes esteve presente, principalmente, nos trabalhos que se pautaram em conceitos e autores da Psicologia Histórico-Cultural. Foi evidenciado, com base na discussão das pesquisas que, se por um lado a área da Medicina é aquela em que predomina a explicação biologizante e a defesa do tratamento medicamentoso, na direção oposta se tem a área da Educação, com o predomínio das análises mais críticas e problematizadoras sobre o fenômeno, enquanto a área da Psicologia divide-se entre concepções biologizantes/reducionistas e críticas. Esse dado refere-se aos programas compreendidos em uma universidade específica (USP) e, portanto, para fins de generalização para todo o Brasil, essa mesma análise deve ser realizada abrangendo outros programas de outras regiões do país. Mesmo assim, podemos afirmar que se apresenta uma tendência e evidencia a necessidade de a Psicologia, em suas vertentes mais críticas, ganhar maior representatividade no campo científico.

A título de finalização, serão destacados a seguir alguns aspectos que consideramos fundamentais das pesquisas na área da Psicologia e que apresentaram práticas críticas em relação à educação e ao desenvolvimento humano, que muito podem contribuir para a formação de professores (inicial e continuada) ⁹ . Focalizaremos somente nas pesquisas da Psicologia, tendo em vista a área de formação da autora deste trabalho e do programa de pósgraduação a que esta pesquisa está inserida. Asbahr (2011), por exemplo, em sua pesquisa sobre o sentido que os alunos atribuíam às próprias atividades de estudo, aponta para a importância da compreensão dos períodos do desenvolvimento infantil, em especial a compreensão das “novas formações que surgem em cada idade” (ASBAHR, 2011, p. 44). É indispensável entender, portanto, a periodização do desenvolvimento infantil, a fim de pensar uma atuação pedagógica que seja compatível com esse desenvolvimento, para que, de fato, seja possível oferecer um ensino que o promoverá. Asbahr (2011) também reconhece a importância da investigação da formação dos educadores e destaca alguns pontos negativos dessa formação, como, por exemplo, a fundamentação teórica, que sustentam o entendimento de desenvolvimento humano e que “pautam-se em concepções maturacionistas ou ambientalistas, que não só não auxiliam na compreensão do desenvolvimento infantil como ainda atrapalham o professor na compreensão da produção do fracasso escolar e dos resultados educacionais” (ASBAHR, 2011, p. 36). Ou seja, entender a dificuldade escolar apenas com base no aparato biológico da criança se torna inútil, uma vez que não abre a possibilidade de uma intervenção mais pontual, culpabilizando exclusivamente seu aluno. Braga (2011) apresenta uma discussão importante sobre quando uma “criança-problema” vira uma “criança-distúrbio”, alertando para o perigo das avaliações individuais – os testes psicométricos – aplicadas em crianças em idade escolar. A autora ainda afirma que “é no processo de escolarização que a queixa se constitui e exatamente este processo é ignorado pelos profissionais que realizam o diagnóstico” (BRAGA, 2011, p. 12-13). Até aqui, já temos dois problemas: o desconhecimento do desenvolvimento infantil e as particularidades de cada etapa e o contexto escolar sendo totalmente desconsiderado por esses profissionais no processo diagnóstico. Sendo assim, não há outro caminho esperado senão o da medicalização dos comportamentos, do não aprendizado e do cotidiano escolar. Também com base no estudo sobre o diagnóstico de Dislexia, Braga (2011) afirma que a concepção biologizante é evidente na fala de professoras, “que concebem as funções superiores como inatas” (BRAGA, 2011, p. 131), contribuindo para o crescimento na atribuição de diagnósticos no ambiente escolar. No entanto, a autora tem o cuidado de também não culpabilizar professores e coordenadores pedagógicos (assim como acontece com as crianças), uma vez que é necessário investigar a formação desses profissionais e que fundamentação teórica eles têm, ou tiveram em sua formação inicial, para lidar com as dificuldades escolares. Sobre esse processo de medicalização, Gomes (2012) afirma que “embora a Psicometria tenha sido largamente criticada nos últimos anos, observamos o retorno das explicações biológicas representadas principalmente por rótulos

como disléxico e hiperativo, apoiados em ‘avanços’ da Neurociência e da indústria farmacêutica” (GOMES, 2012, p. 69). Nesse ponto, é necessário lembrar que, por mais que os avanços na área médica tenham sido importantes, o próprio DSM reconhece que, para o TDAH, não há nenhum exame laboratorial que comprove a sua existência. Gomes (2012) encontrou em sua pesquisa em uma escola pública uma demanda por diagnósticos por parte de professores das séries iniciais, acreditando que se as crianças recebessem diagnóstico e tratamento medicamentoso, poderiam apresentar uma futura melhora em sala de aula. Defende-se, assim como Gomes (2012, p. 70) que “os problemas apresentados pelas crianças são sintomas do funcionamento das relações em que elas vivem” e que a demanda por um diagnóstico atrapalha, e muito, o processo de escolarização. É preciso se libertar desse desejo pelo diagnóstico e pela medicação, já que acaba “prendendo” o profissional (seja professor, seja coordenador etc.), impedindo-o de investigar e/ou procurar outra solução para o problema. A respeito das consequências dessa demanda por diagnósticos, a autora afirma que os laudos produzidos por profissionais médicos a que ela teve acesso “permitem enxergar somente fragmentos da história de vida dessas crianças, apresentando concepções muito próximas ao senso comum e que em pouco auxiliam na compreensão dos motivos do encaminhamento e das dificuldades desenvolvidas” (GOMES, 2012, p. 71). Gomes (2012) ainda destaca a formação de psicólogos e as contribuições que esses profissionais podem trazer para a atuação docente e até para a formação continuada dos educadores. No entanto, “a formação dos psicólogos é muito restrita, fragmentada e influenciada por teorias psicológicas individualizantes […], preocupando-se com padrões gerais de comportamento medidos estatisticamente” (GOMES, 2012, p. 75). Assim, o desafio para a formação desses profissionais, educadores e psicólogos, é se “desvincular desta ideologia” (GOMES, 2012, p. 76), para que não sejam naturalizadas as dificuldades escolares. Vemos, então, que concomitantemente à problemática da formação de professores, temos a precariedade ou parcialidade também na formação dos demais profissionais como Psicólogos, Médicos, entre outros, que contribuem para a reprodução de práticas patologizantes e medicalizantes. Já de acordo com Lopes (2013, p. 102), “em relação ao desafio representado pelo fracasso escolar, os autores brasileiros que produzem nesta área de saber têm assegurado que o ato de biologizar as vicissitudes da escolarização reduz questões sociais a doenças de indivíduos”. O autor ainda alerta para a “invasão das concepções medicalizantes no campo educacional” (LOPES, 2013, p. 26), o que tem consequências sérias, principalmente para as crianças, uma vez que o cérebro e seus componentes biológicos são vistos como os únicos elementos formadores da identidade/ personalidade da criança, descartando a contribuição da historicidade para o processo de desenvolvimento psíquico humano (LOPES, 2013). Segundo Mendoza (2014, p. 71), “a educação na sociedade neoliberal se constitui como qualquer outro produto do sistema capitalista, contribuindo para a alienação dos sujeitos e pouca reflexividade do ser humano pensado a

partir de si mesmo e na relação com os demais”. Com base nessa afirmação, questiona-se: há relação entre a educação pensada como uma mercadoria e a dificuldade em propor outra forma de prática educativa que não sirva aos interesses do Capital (como o consumo de medicamentos, por exemplo)? Destacamos a necessidade da produção de mais pesquisas que sigam esse caminho, a fim de responder a essa pergunta. Por fim, Lessa (2014), que traz importantes contribuições sobre o processo de escolarização, apresenta críticas sobre o uso da Psicometria para a avaliação das dificuldades de aprendizagem. A autora faz o alerta para o risco da “elaboração de provas psicológicas por países mais desenvolvidos e utilizados diretamente em outros países sem um prévio estudo e reestruturação de acordo com os aspectos culturais e sociais da região”. Lessa (2014), também destaca a importância da formação continuada para os educadores, para que seja possível “provocar o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores de seus alunos em áreas concretas para aprendizagem, como escrita, leitura, gramática, ou seja, por meio da sua intervenção pedagógica” (LESSA, 2014, p. 593). Com base no que foi encontrado nas pesquisas, pode-se perguntar, então, se a vertente crítica apresentada no campo da pesquisa em Educação e também da Psicologia tem ressonância no interior da escola, nas práticas pedagógicas, ou seja, em ações efetivas que impliquem na redução dos encaminhamentos, dos diagnósticos e da medicalização? Ou, ao contrário, por que ainda no interior da escola, em seu cotidiano, as práticas médicas e psicológicas em seu viés tradicional (medicalizante e psicologizante) são determinantes na manutenção da patologização e suas consequências? Essas indagações deverão ser abordadas em futuras pesquisas, a fim de investigar porque esse fenômeno acontece. Considerações Finais A pergunta que guiou o estudo aqui apresentado era: como os estudos críticos sobre a medicalização da infância, produzidos numa Universidade Pública de referência nacional e internacional como a Universidade Estadual de São Paulo, podem reverberar no interior das escolas e auxiliar os profissionais que atuam no “chão da escola” a modificar suas práticas de encaminhamentos a médicos? Entre as contribuições do estudo desenvolvido está justamente o destaque desse problema. Utilizamos aqui o termo problema tal como Saviani (2004) utiliza. Problema, no sentido filosófico, não se refere à ideia do senso comum de “algo que não se sabe”, mas sim “algo que não se sabe, mas precisamos saber”. Por isso, ele indica que o conceito de necessidade é fundamental para se compreender a essência do conceito filosófico de problema. Que problema esta pesquisa aponta? Aponta que necessitamos estreitar os vínculos entre a produção científico-acadêmica e a prática escolar e isso é tarefa urgente, caso contrário, ambas seguirão como dois rios em paralelo e sem comunicação.

Fica evidente que, longe de obtermos respostas prontas e acabadas, esta investigação destaca um nó a ser desatado por futuras investigações. Por exemplo, que elos de intersecção há entre as produções acadêmicas e científicas e as práticas escolares? Como foi destacado nesta pesquisa, parte dos estudos críticos sobre a medicalização, realizados nas áreas da Educação e Psicologia tomaram como referencial teórico a Psicologia Histórico-Cultural e/ou a Pedagogia Histórico-Crítica. Entendemos que ambas trazem uma contribuição importante ao enfrentamento do fenômeno da medicalização por tratarem o sujeito como inseparável da história, sendo produzido por e produtor dela. Além de entender a constituição do homem enquanto sujeito histórico, é importante também fazer com que esse homem seja o agente transformador da sociedade, indo contra a concepção de que o homem é determinado apenas biologicamente e que nada se pode fazer por ele (TULESKI, 2008). Ao atentarmos para o movimento dos fenômenos, podemos entendê-los com maior profundidade. Por exemplo, no diagnóstico do TDAH, o foco permanece na aparência do fenômeno, em que a criança que não consegue dirigir sua atenção ou a criança que é considerada agitada demais é vista como única detentora de um problema – fixa-se, portanto, apenas na aparência do fenômeno, uma vez que não se busca identificar e compreender como se deu o desenvolvimento da atenção voluntária para essa criança ¹⁰ e em que contextos a falta de atenção ou a hiperatividade se manifestam, por exemplo. Segundo Lefebvre (1983, p. 238), “nada é isolado. Isolar um fato, um fenômeno, e depois conservá-lo pelo entendimento nesse isolamento, é privá-lo de sentido, de explicação, de conteúdo”. Não é possível, portanto, isolar a criança do mundo que a cerca, com o qual se relaciona e se desenvolve, e simplesmente identificá-la como portadora e culpada pelo seu não aprendizado. Para isso, no entanto, para uma mudança radical na forma de se analisar o fenômeno do real, torna-se fundamental uma formação que produza o “pensar dialético” nos educadores. Sem essa condição, os trabalhos não críticos que se pautam numa visão fragmentária do real terão mais penetração do que aqueles que se colocam na contramão, pela incompreensão da lógica interna de problematização existente no próprio trabalho que se alinha com o viés crítico. A formação de professores parece ser o cerne da falta de ressonância das produções críticas no interior das escolas, mas não o único. No interior da própria produção do conhecimento científico há campos de tensão, ou seja, como vimos ao longo da pesquisa, os estudos críticos referentes à medicalização da infância não podem ser considerados hegemônicos ou predominantes. Essa situação também tensiona o campo da formação de professores, colocando-a como um espaço de luta hegemônica (visão organicista) e contra-hegemônica (não organicista). Por exemplo, os trabalhos encontrados no campo da Medicina da Universidade de São Paulo, na totalidade, adotaram práticas e referenciais não críticos com relação ao fenômeno do TDAH. É preciso deixar claro, porém, que nessa Instituição, especificamente, quando se trata do TDAH, o predomínio foi da concepção biologizante, mas que não é objetivo deste capítulo fazer uma generalização das pesquisas produzidas na área médica,

uma vez que existem trabalhos críticos que questionam a prática que resulta na medicalização da vida. Autores como Bonfim (2015) ¹¹ , da USP ¹² , e Moysés (1985; 1992; 2012; 2013), da Unicamp, são alguns exemplos. No entanto, se consideramos o impacto do “saber médico”, a predominância de investigações que apresentam como consensuais questões não consensuais como a origem e prevalência do TDAH, bem como o tratamento, vão produzir ainda mais contradições no interior da escola. Soma-se a isso o investimento da indústria farmacêutica, tanto na produção de pesquisas como em sua divulgação, que se alia à lógica aligeirada que hoje se institucionalizou nas escolas, promovendo-se a medicação como a solução rápida a todos os problemas e chancelada pelo saber médico. Mais uma vez, somente uma sólida formação de professores em um viés crítico poderia ser capaz de torná-los impermeáveis a tais mecanismos de sedução. Outro ponto é a necessidade de que mais profissionais médicos se dediquem ao estudo do tema de forma crítica, problematizando, assim, a temática da medicalização e somando esforços com os campos da Educação e da Psicologia. Como exposto, na área da Educação houve o predomínio de uma perspectiva crítica, mas nos deparamos com a contradição: se é uma área que está produzindo mais trabalhos críticos sobre o fenômeno da medicalização, destacando o desenvolvimento como um processo dialético, por que ainda existe na escola a alta demanda por encaminhamentos para serviços de saúde (como médicos e psicólogos) para o atendimento das queixas escolares? O que é observado na realidade educativa, atualmente, é que essa discussão parece não penetrar no ambiente escolar, restringindo-se ao ambiente acadêmico, quando deveria estar fortemente presente tanto na formação inicial dos educadores como na formação em serviço (ou formação continuada) para que pudesse, de fato, ter efeito na prática educativa. Para elucidar de modo mais aprofundado essa questão, caberia uma ampla investigação sobre a formação em Pedagogia e também sobre como os municípios organizam as formações continuadas, identificar quais conteúdos são tratados, como se articulam com a prática pedagógica em sala de aula e como tangenciam a temática da medicalização da infância. Nesse sentido, vemos que esta pesquisa abre caminho a inúmeras investigações futuras, de forma a tornar-se possível captar as múltiplas relações que cercam o fenômeno da não reverberação das pesquisas críticas, problematizando as práticas de encaminhamento no interior das escolas e alterando o curso da crescente medicalização da infância. Para finalizar, portanto, destaca-se a importância de que os espaços de formação de professores possam tratar de questões relacionadas ao ensino, à aprendizagem, à periodização do desenvolvimento etc., de modo a aproximar a produção de conhecimento crítico sobre a medicalização da infância mediante a atuação desses profissionais, a fim de diminuir o número de encaminhamentos e, consequentemente, da medicalização. Sobre os desafios para a formação de educadores, Martins (2009) afirma que a atenção dada a essa formação, atualmente, “se revela proporcional à sua desvalorização e esvaziamento” (MARTINS, 2009, p. 449). Ou seja, é dada atenção a sua existência, mas desvalorizado o seu conteúdo. Há que se investigar o que essa formação (tanto inicial quando continuada) está oferecendo atualmente para o professor, para ajudar o educador a lidar com

as dificuldades no processo educativo e, principalmente, que as pesquisas pautadas pela Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica, cujos elementos conceituais propiciam o enfrentamento à banalização dos diagnósticos e ao consumo de medicamentos, sejam a base da formação inicial e continuada de educadores. Além disso, que essas teorias Psicológica e Pedagógica também integrem a formação de psicólogos e médicos que atendem queixas escolares, pois há que se compreender a criança que se desenvolve como uma criança que se educa em sociedade e não como mero produto da maturação biológica, apartada das relações que as constituem como ser humano. Lorena Carrillo Colaço Psicóloga pela Unicentro, mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Referências: ABREU, J. N. S. Memória e transtorno do déficit de atenção e hiperatividade . 134f. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. ANACLETO, J. M. B. O papel do Outro na aquisição da escrita pela criança – o construtivismo na alfabetização e a psicanálise . 116f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. ARAÚJO, R. S. Teste de Atenção Concentrada Toulouse-Pierón : Atualização dos estudos de padronização, validade e precisão. 88f. Dissertação (Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. ASBAHR, F. S. F. Por que aprender isso, professora? Sentido pessoal e atividade de estudo na Psicologia Histórico-Cultural. 2011. 220f. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. BAUTHENEY, K. C. S. F. Transtornos de aprendizagem : quando “ir mal da escola” torna-se um problema médico e/ou psicológico. 279f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. BERNARDES, M. G. P. Inventariando a produção do “aluno-problema” : a queixa escolar em questão. 150f. Dissertação (mestrado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. BILHAR, J. C. F. A. Qualidade de vida de crianças com transtorno de déficit de atenção/hiperatividade . 2010. 132f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

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Neurociências e Comportamento; Psicologia Clínica; Psicologia Escolar; Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano; Psicologia Experimental e Psicologia Social. ³ Ciboto (2006), Dalsan (2007), Moraes (2008), Cirilo (2008), Ferreira (2009), Souza (2010), Miranda (2012), Tatit (2013) e Campagnucci (2014). ⁴ Guarido (2008), Bernardes (2008), Bautheney (2011), Galhardo (2014) e Silva (2014). ⁵ Lins (2009) e Anacleto (2013). ⁶ Fragelli (2011) e Brockington (2011). ⁷ A Risperidona, segundo sua bula, é um antipsicótico indicado no tratamento de uma ampla gama de pacientes esquizofrênicos, de transtornos do comportamento em pacientes com demência, com sintomas como agressividade, transtornos psicomotores ou sintomas psicóticos proeminentes. Maiores informações, na bula: http:// www.medicinanet.com.br/bula/8315/risperidona.htm. ⁸ O questionário SNAP-IV já foi apresentado no início do capítulo. ⁹ Entre os seis trabalhos críticos encontrados na área da Psicologia, quatro deles apresentaram contribuições para a formação dos educadores (ASBAHR, 2011; BRAGA, 2011; MENDOZA, 2014; LESSA, 2014), um para a formação de psicólogos e educadores (GOMES, 2012) e um para a formação de profissionais de saúde que trabalham nos serviços públicos de saúde (LOPES, 2013). ¹⁰ Sobre o desenvolvimento da atenção, ver a pesquisa O desenvolvimento da atenção voluntária na compreensão da Psicologia Histórico-Cultural: uma contribuição para o estudo da desatenção e dos processos hiperativos , de autoria de Hilusca Alves Leite. ¹¹ Bonfim, J. R. A. Análise da prescrição de fármacos não constantes da Relação Municipal de medicamentos essenciais do município de São Paulo (2008-2013) . 2015. Tese (Doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015. ¹² Bonfim (2015) não apareceu no levantamento realizado neste capítulo por estar fora do intervalo de tempo escolhido para a pesquisa, que foi de 2005 até 2014. VI O PROBLEMA DA MEDICALIZAÇÃO NA FAIXA ETÁRIA DE 0 A 10 ANOS: CORRELAÇÃO DE DADOS NOS MUNICÍPIOS DE RIO BOM, PONTA GROSSA, CAMBÉ E CASCAVEL

Fernando W. Mendonça Cleudet de Assis Scherer Rejane Teixeira Coelho Silvana Calvo Tuleski Adriana de Fátima Franco Marcelo Ubiali Ferracioli Rogério de Leon Pereira Introdução O texto objetiva discutir os dados de uma pesquisa institucional em andamento, a qual tem por finalidade coletar, sistematizar e analisar qualitativamente dados referentes à quantidade de crianças de 0 a dez 10, matriculadas na rede pública municipal do estado do Paraná, diagnosticadas e medicadas devido a transtornos de aprendizagem (TDAH, Dislexia, entre outros). O projeto de pesquisa ¹ busca por meio de seus estudos propiciar situações para a implementação de ações voltadas para instrumentalizar os profissionais das diferentes áreas que atuam com crianças portadoras de transtornos de aprendizagem de 36 núcleos regionais de ensino do estado do Paraná. Ao longo dos últimos cinco anos, as pesquisas já atingiram 12 municípios e os dados que vêm sendo apresentados mostram a necessidade da preocupação com essa temática. Esta discussão é relevante no presente momento devido ao grande embate existente entre os campos biológicos e culturais que enfrentam de diferentes pontos de vista a problemática de crianças no contexto escolar que são encaminhadas para avaliação e tratamento, com queixas de agitação, desatenção, impulsividade e dificuldades de aprendizagem. Diferentes estudos que se fundamentam em uma perspectiva crítica têm revelado o predomínio de uma concepção hegemônica biologicista, naturalizante e a-histórica para responder a essa demanda clínica advinda da escola, delegada aos profissionais da saúde, em especial os profissionais da área médica. Questões como a atenção e o controle do comportamento não são fenômenos isolados no psiquismo, mas se relacionam de modo interfuncional, a partir do desenvolvimento histórico das Funções Psicológicas Superiores, produzidas por meio da atividade mediada dos homens e oportunizada pela vida em sociedade e pelo acesso à educação. Neste processo, destacam-se as condições objetivas imbricadas na impossibilidade da aprendizagem e do desenvolvimento do autocontrole do comportamento (EIDT, TULESKI & FRANCO (2014); LUCENA (2016); LEITE & REBELLO (2014); ALMEIDA & GOMES (2014); BONADIO (2013); MEIRA (2012).

A atribuição de patologia às diferentes manifestações do não se “comportar adequadamente” e do “não aprender” no ambiente escolar têm assumindo predominantemente o status de doença neurobiológica denominado: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Trata-se de um tipo de transtorno, justificado pela causalidade genética, que cresceu no Brasil nos últimos anos, quanto aos índices de prevalência em crianças e adolescente, que variam entre 0,9% e 26,8%, conforme aponta o Boletim de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ANVISA, 2014). Como forma de tratamento tem sido adotada a terapia medicamentosa do psicotrópico metilfenidato, denominado comercialmente por Ritalina, cujos dados revelam um crescimento exponencial do medicamento no mundo e no país. O Brasil, entre os anos de 2009 e 2013, aumentou em 180% a venda de caixas do produto, enquanto em outubro de 2009 foram vendidas no país, 58.719caixas de Ritalina, em outubro de 2013, foram vendidas 108.609 caixas. Destaca-se ainda, o fato de o consumo do psicotrópico ocorrer predominantemente durante o período de aulas e apresentar quedas no padrão de consumo durante os meses das férias escolares. (FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE, 2015). Lucena (2014), que analisou os resultados do recorte da pesquisa “Retratos da medicalização da nfância no estado do Paraná”, nos municípios de Maringá, Campo Mourão, Mandaguari e Paiçandu, das crianças da educação infantil, constatou que na faixa etária de 0 a 5 anos, o medicamento mais utilizado nessas cidades do Paraná tem sido a Risperidona, considerando que o diagnóstico mais realizado é o TDAH. Outro aspecto importante da análise foi que em todos os municípios pesquisados pela autora, o diagnóstico era feito em sua maioria pelos médicos neurologistas ou pediatras, e as crianças medicadas não faziam tratamentos auxiliares. Essas análises revelam o uso de outras terapêuticas medicamentosas adotadas nas crianças menores para o tratamento do TDAH, que ampliam o risco do uso de substâncias não indicadas para serem administradas em crianças e reafirmam que a lógica hegemônica biológica se mantém nas práticas de encaminhamentos e formas de intervenção. Mas que fatores estariam relacionados a essa expansão vertiginosa de diagnósticos e medicamentos? Almeida & Gomes (2014, p. 169), ao analisarem o processo de medicalização da infância e suas imbricações no capitalismo, afirmam que a tendência a formar o indivíduo tendo como centralidade a divisão social do trabalho está no cerne desse debate, pois o aumento do espectro de categorias nosológicas como parâmetro do comportamento “normatiza a infância, a fim de constituir sujeitos cada vez mais concentrados e disciplinados, menos dispersos, e ao mesmo tempo multifuncionais, cuja produtividade, ainda que farmacologicamente produzida, deve ser maior desde a escola”. Para aqueles que fogem ao padrão estabelecido, restaria o recurso diagnóstico e farmacológico. Nessa perspectiva, verifica-se o papel desempenhado pela escola, incorporado pela direção, coordenação e professores, nos encaminhamentos rotineiros dos estudantes à área da saúde. À medida que esses profissionais passam a delegar à área médica uma parcela significativa de dificuldades que emergem no interior da escola, como objeto de intervenção da saúde,

corroboram com a lógica do capital, da educação como adestramento e, ao mesmo tempo, desresponsabilizam-se do papel de educadores. As questões pertinentes à educação, ao conhecimento, aos métodos pedagógicos adotados, aos processos de desenvolvimento relacionados ao ensino/ aprendizagem e aos recursos disponibilizados tornam-se fragmentadas ou são desconsideradas, excluídas como determinações do não aprender/não se comportar do estudante, e, consequentemente, esses comportamentos passam a ser naturalizados e abordados como um problema individual do sujeito. Esse contexto exposto reafirma a necessidade de discussões como esta que apresentaremos a seguir. Como forma de apresentação do texto, na primeira parte são discutidos os princípios norteadores da teoria histórico-cultural sobre o desenvolvimento humano, com base em Vygotsky, Luria e Leontiev, para avançar na compreensão do fenômeno para além da dimensão quantitativa, problematizando os impactos da educação escolar no capitalismo, especialmente no Brasil, à formação humana. Adota-se, portanto, o materialismo histórico dialético como alternativa de método, que possibilita substituir a lógica formal pela lógica dialética, no intuito de superar as ideias patologizantes e biologizantes, que explicam as condições de vida pela herança genética. Conforme destaca Kosik (1976), é preciso superar o concreto visível e caótico dos dados, da aparência, para então, por meio de mediações cada vez mais abstratas, chegar ao concreto pensado, síntese de múltiplas relações. Na segunda parte, são apresentados e analisados os dados dos municípios de Ponta Grossa, Cambé, Rio Bom e Cascavel, as ações e encaminhamentos em processo, que resultaram das discussões realizadas em parceria com as prefeituras e secretarias de educação, com base no diagnostico da realidade revelado pela pesquisa. As relações ensino/aprendizagem para a Psicologia Histórico-Cultural: dimensões constitutivas e indissociáveis do desenvolvimento Para a Psicologia Histórico-Cultural, o desenvolvimento não é natural nem espontâneo, mas cultural e socialmente mediado. Esse entendimento nos leva à compreensão de que entre o ensino e a aprendizagem existem vários elementos importantes para a apropriação das máximas criações humanas e também para o modo de elaborar novos conhecimentos. Vygotsky (2012) defende a tese de que a formação individual é um processo histórico e cultural estruturado no bojo da atividade social. Ao afirmar o cunho social e material dos fenômenos psíquicos, argumenta que as características humanas, isto é, as funções psicológicas superiores não são unicamente biológicas ou inatas, mas produzidas na relação histórica do homem com a cultura. O aparato biológico é importante; no entanto, são as condições sócio-históricas tais como: inserção de classe, dinâmica familiar (cultura, valores, hábitos) e condições de acesso ao conhecimento sistematizado que promoverão ou não a apropriação de signos e instrumentos importantes para a complexificação de funções verdadeiramente humanas. Nesse sentido, a escola tem um papel fundamental por ser a mediadora dos signos (linguagem oral, escrita, matemática, entre outras) e instrumentos

culturais (objetos sociais elaborados por meio do trabalho humano) que apresentarão o mundo à criança, e também, a portadora dos modos socialmente desenvolvidos de ação com os objetos e sua utilização social. Como explica Vygotsky (2012, p.114) “todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento, ou seja, como funções psíquicas”. Desse modo, as funções complexas do pensamento – atenção, percepção, memória, raciocínio, imaginação – são desenvolvidas nas interações entre as condições sociais (históricas e em movimento) e a base biológica do comportamento humano. Nesse processo, o biológico historicamente é transformado, adquirindo novas características humanizadas pelo trabalho. E assim, as novas gerações apropriam-se dos instrumentos e do resultado do trabalho coletivo de outros homens, formando a sua consciência, que primeiro é coletiva, ou seja, produzida no social, nas relações com outros homens, para, por fim, tornar-se consciência individual. Em tal processo, a criança apreende formas de ser, pensar e agir socialmente produzidas. Nesse sentido, a educação escolar é fundamental ao desenvolvimento do autodomínio da conduta dos indivíduos, sendo necessário organizá-la de forma a se tornar um instrumento que de fato produza a humanidade nas crianças mediante a internalização dos signos da cultura. Por meio da atividade coletiva de ensino, o ser humano terá a possiblidade de apropriação dos objetos materiais e não materiais que promoverão condições para que as capacidades complexas sejam reequipadas e desenvolvidas. Como aponta Vygotsky (2012, p. 114), “o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento”. Assim, cabe à escola organizar o ensino de forma adequada, de maneira a formar na criança aquilo que não está formado. produzindo novas necessidades e motivos, com vistas ao desenvolvimento que reestruturará o seu psiquismo. Ainda é importante ressaltar que na perspectiva Histórico-Cultural, para explicitar a relação entre o desenvolvimento e a capacidade de aprender, temos de entender os conceitos elaborados por Vygotsky de zona de desenvolvimento imediato e nível de desenvolvimento atual, Porque na escola a criança não aprende o que sabe fazer sozinha mas o que ainda não sabe e lhe vem a ser acessível em colaboração com o professor e sob sua orientação. O fundamental na aprendizagem é justamente o fato de que a criança aprende o novo. Por isso a zona de desenvolvimento imediato, quem determina esse campo das transições acessíveis à criança, é a que representa o momento mais determinante na relação da aprendizagem com o desenvolvimento. (VYGOTSKY, 2000, p. 331) O autor deixa claro que ensino e desenvolvimento na escola devem incidir na zona de desenvolvimento imediato, porque no nível de desenvolvimento real encontram-se as funções psicológicas já desenvolvidas, nas quais estão presentes todos os conteúdos e conceitos já apropriados, quando o educando consegue desempenhar atividades de forma autônoma. Por outro lado, a zona de desenvolvimento imediato, na qual a educação escolar precisa atuar,

refere-se a tarefas que a criança somente conseguirá realizar com a instrução de outras pessoas, pois os significados e conceitos já existem em potencial e necessitam de adultos ou crianças mais experientes para realizálos sozinha. Assim, fica claro que desenvolvimento e aprendizagem são fatores que não coincidem, ou seja, o processo de aprendizagem é dependente da instrução e antecede o processo de desenvolvimento. Entendimento importante porque define o trabalho pedagógico escolar com base no desenvolvimento já produzido pela criança como ponto de partida para novas aprendizagens e neoformações. Portanto, o desenvolvimento iminente é o germe por meio do qual as mediações simbólicas e culturais se transformam em desenvolvimento real. Diante do exposto, evidencia-se o papel preponderante que a educação assume em termos do desenvolvimento. Consideramos aqui que a formação humana e o seu campo de possibilidades estão circunscritos às determinações do campo social dadas pela educação, configuradas na e pelas condições históricas. Esse processo revela, por um lado, a existência de um vasto campo de possibilidades e liberdades, considerando que a educação é uma produção do campo social e, por outro, demonstra as contradições que emergem da objetividade e historicidade do campo social. Nessa direção, não podemos deixar de analisar criticamente as implicações do modo de produção capitalista sobre a educação e o impacto que esta tem na formação dos sujeitos. A formação educativa no capitalismo e o contexto educacional brasileiro O processo educativo não é espontâneo, nem dirigido por fatores inatos, mas intencionalmente organizado; no entanto, é determinado pelo modo de produção e pela divisão dos bens produzidos em sociedade – classes sociais. A sociedade capitalista tem promovido diversas formas de ensinar e aprender. Algumas, por vezes, são sustentadoras e reprodutoras do modelo de produção vigente, tirando do sujeito o acesso pleno aos bens culturais produzidos socialmente. O capitalismo, por meio do sistema de educação assegura que “cada indivíduo adote como suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema. […] eles devem ser induzidos a uma aceitação ativa (ou mais ou menos resignada) dos princípios reprodutivos orientadores dominantes na própria sociedade […]”. (MÉSZAROS, 2005, p. 44). Assim, a educação, que poderia ser um elemento essencial de transformação humana nessa sociedade, torna-se um instrumento de reprodução do capital ao “fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão no sistema capitalista, mas também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes” (SADER, 2005, p. 15). As consequências produzidas da legitimação desse modelo recaem sobre o processo de formação das novas gerações. Formá-las para quê? Para o acesso pleno aos bens culturais produzidos socialmente, na perspectiva de um desenvolvimento omnilateral? Ou para se adaptarem às necessidades preconizadas pelo capital?

Segundo Martins (2006, p. 57), é função da educação, especialmente a educação escolar, promover o desenvolvimento das máximas possibilidades humanas “[…] os instrumentos culturais, com destaque especial à escrita, à aritmética, os saberes escolares, expandir as possibilidades humanas, superando os processos cognitivos elementares na direção dos processos superiores”. Muitas vezes, esse rol de conhecimentos considerados fontes de desenvolvimento são substituídos por “competências e habilidades” para responder a demandas do mercado, tirando da escola a sua função precípua de transmissão e apropriação do conhecimento elaborado produzido socialmente e, desta forma, dos sujeitos o direito ao pleno desenvolvimento. Mas tal processo não é unilateral em termos de determinação direta, é um processo contraditório que revela, por um lado, o desenvolvimento como intrínseco à relação ensino/aprendizagem e, por outro, a subordinação da educação como mercadoria, na qual o sujeito se torna objeto do mercado. Neste embate, abre-se um campo de possibilidades e também de entraves, que implica pensar na elaboração e existência de mediações que possam fazer resistência à conformação das consciências. Segundo aponta Mészaros (2005), a educação precisa ser pensada na perspectiva da emancipação humana e da criação de outra forma de relação com o trabalho e com a sociabilidade. A Pedagogia Histórico-Crítica, em consonância com os fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural, destaca que a educação escolar é um espaço social privilegiado para desenvolver e formar a consciência humana para superar as formas de dominação no capitalismo. Ambas defendem que a escola tem o papel central de transmitir os conhecimentos historicamente sistematizados, por meio do ensino dos conceitos científicos. Nesse sentido, Martins (2013, p. 278), com base nos estudos vigotskianos, destaca a importância da formação de professores para pensarmos a relação entre o ensino e a aprendizagem, pois “[…] nem toda a aprendizagem é, de fato, promotora de desenvolvimento”, por isso deve-se priorizar a seleção de conteúdos e a forma organizativa da aprendizagem. Enfim, se pensarmos na relação entre ensino e aprendizagem, apenas uma “sólida formação de professores poderá assegurar o domínio da cultura teórico-técnica requerida ao trabalho docente, bem como o reconhecimento desse trabalho na trama das relações que produzem a vida social” (MARTINS, p. 314). No entanto, o contexto do sistema educacional brasileiro atual inviabiliza as condições necessárias ao desenvolvimento pleno dos estudantes por ele assistidos. O que temos presenciado na formação básica e continuada é a precarização da formação do professor, seu aligeiramento e o depósito das responsabilidades do ensino basicamente sobre o trabalho docente. Mendonça (2017, p. 86) destaca que nas últimas três décadas as políticas de constituição do professor da educação básica são marcadas pela expectativa de ele formar-se ao “longo da vida”, mobilizado pelo seu interesse em “aprender a aprender” e por suas condições reais de vida, a saber, sua renda, seus papéis sociais, suas obrigações coletivas além de planejar, atuar e realizar uma formação de alunos, também inseridos em condições semelhantes. Mendonça (2017, p. 86) ressalta: “Deixar para o professor ter de abstrair as ‘suas incursões pela teoria’ e solicitar que ele reflexione sobre

as atividades inviabiliza o acesso ao que tem de ser conhecido para efetuar os processos de alfabetização com qualidade”. No que se refere aos aspectos teóricos metodológicos do ensino, dois estudos contribuem para o entendimento da relação do professor sobre as suas escolhas, os de Carvalho (2008) e Oliveira (2014). Em ambos ressaltase que há falta de objetividade didático metodológica, o que acaba por desorientar a prática do professor. Uma vez que a prática esteja desorientada, o professor não possui elementos para refletir sobre ela e direciona sua ação para a solução do imediato, estando privado, assim, de constituir seu pensamento teórico. Essas condições na formação do professor são contraditórias àquelas premissas trazidas pela Pedagogia Histórico-Crítica e pela Psicologia Histórico-Cultural. As proposições de Saviani (2015) e de Kuenzer (2007) sobre uma formação emancipatória do professor, fundada na possibilidade de ele exercer suas plenas potencialidades de formação humana, encontramse com as premissas trazidas por Vygotsky (2000), Davidov (1986) e Leontiev (1978). No que se expressa na formação docente, Mendonça (2017) afirma que o que se deseja para o ato de formar professores é que essa atividade ultrapasse a dimensão do imediato, da experiência sensível, de uma reflexão sobre a aparência do fenômeno. Busca-se no ato de formar professores a constituição de um pensamento que compreenda os significados das conquistas humanas como um repertório de pensamento teórico, pensamento fundamentado em conhecimentos científicos, que proporciona aos envolvidos condições de abstrair a essência dos fenômenos culturais. Nas condições apontadas, a realidade da relação de ensino e aprendizagem que evidencia-se nas escolas está caracterizada por alunos em intensa atividade de desenvolvimento de suas habilidades mentais ante a condições de ensino que não dialogam com essas características. E o professor, nessa situação de ensino, estando fragilizado em sua formação, condições de vida e de trabalho, não dispõe de ferramentas teóricas e instrumentais adequadas para organizar um ensino que promova o desenvolvimento mental de seus alunos. Vemos aí um campo fértil para a patologização e medicalização dos problemas escolares. Como vimos, é nesta inter-relação ensinar e aprender que as funções superiores são produzidas, em atividades significativas e mobilizadoras das funções psíquicas. Quando essa atividade carece de significação, não há mobilização da criança para a atividade e ela torna-se uma ação desprovida de intencionalidade. Desta forma, a criança busca em atividades outras, geralmente aquelas que a mobilizem à brincadeira, a atividade guia principal do desenvolvimento no ensino pré-escolar e em fases iniciais do ensino fundamental. E, quando o fazem, muitas vezes são consideradas desatentas, impulsivas, opositoras.

Definidas as bases conceituais nas quais serão analisados os dados que se seguem, apresentaremos o resultado das coletas executadas em quatro municípios do estado do Paraná nos anos de 2015 e 2106. As coletas foram controladas pela atuação conjunta das secretarias municipais e de equipe de professores e acadêmicos das universidades envolvidas. As faces da medicalização nos municípios de Ponta Grossa, Cambé, Rio Bom e Cascavel A apresentação e a discussão dos dados deste tópico será realizada mediante um recorte das coletas sobre diagnósticos e medicamentos mais utilizados por estudantes da Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental de quatro municípios paranaenses: Rio Bom, Ponta Grossa, Cambé e Cascavel. Cabe destacar que a proposta é subsidiada pelos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural e busca identificar o percentual de crianças que fazem uso de medicação controlada nos anos iniciais da educação básica. Também foram alvo de análise observar por quais transtornos essas crianças vêm sendo medicadas, os profissionais envolvidos no processo, em que idade/ série se verifica o maior índice, com vistas a elucidar se estamos diante de hiperdiagnósticos de crianças dessa faixa etária. Para tanto, foi aplicado um questionário estruturado e informatizado, respondido por pais ou responsáveis, nas redes municipais de ensino dos referidos municípios durante o ato da matrícula. A coleta, o tratamento e a análise dos dados foram realizados com a colaboração de alunos de graduação e pós-graduação das universidades envolvidas e de equipes das secretarias de educação. Os estudos realizados pelo conjunto de participantes do projeto têm por base a compreensão de desenvolvimento humano dos autores Vygotsky, Luria e Leontiev, em seguida, são problematizados os dados e propostas as ações conjuntas entre secretarias de educação e saúde, com vistas à diminuição de encaminhamentos, diagnósticos e prescrições de fórmulas medicamentosas, no que diz respeito ao tratamento das queixas escolares e comportamentais. Procedimentos para a realização da coleta de dados No intuito de caracterizar a amostra são apresentadas a seguir algumas informações pertinentes aos procedimentos adotados para coleta de dados em cada munícipio objeto da pesquisa. Dos quatro municípios pesquisados, dois deles, Ponta Grossa e Cascavel, podem ser considerados de grande porte, com população em torno de 340 mil habitantes; um, de médio porte (Cambé), com 102 mil habitantes e; um de pequeno porte (Rio Bom), com cerca de 3.542 habitantes, segundo dados do IBGE. A coleta no Ensino Fundamental (EF) em Ponta Grossa foi realizada no final do ano de 2015, e, na Educação Infantil (EI), em meados de 2016. Em ambos os casos via censo, por meio de questionários impressos encaminhados pelas escolas às famílias e recolhidos posteriormente pelos pesquisadores. A Prefeitura de Ponta Grossa contava com 56 Centros Municipais de Educação Infantil (CEMEIs) com 10.232 alunos matriculados, e 84 Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEFs) com 21.402 alunos matriculados.

Com relação à Cambé, a rede municipal tinha 13 Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) e 17 Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEFs), sendo 15 urbanas e duas rurais. Obtivemos retorno dos questionários da pesquisa em dez (10) CMEI’s e 14 escolas de Ensino Fundamental. Em 2016, época da coleta dos dados, o município possuía 1.832 crianças matriculadas nos Centros de Educação Infantil e 6.369 na rede municipal de Ensino Fundamental, totalizando 8.201 crianças matriculadas. A rede municipal de Rio Bom possuía um (1) CMEI – Centro Municipal de Educação Infantil e duas (2) escolas de Ensino Fundamental que foram abrangidas pela pesquisa. A coleta de dados ocorreu no final de 2015, para a matrícula na rede em 2016. Neste ano o total de alunos matriculados na Educação Infantil foi de 94 e no Ensino Fundamental foi de 192. Conforme dados do IBGE, a população estimada de Cascavel é de 319.608 pessoas. No final de 2015, ocasião em que foi realizada a coleta de dados, o Município possuía 51 Centros Municipais de Ensino Infantil e 61 escolas de Ensino Fundamental. Para viabilizar o acesso dos pais/responsáveis aos questionários, a escola encaminhou um envelope contendo o questionário e um informe que orientava quanto ao preenchimento e estabelecia uma data para a devolutiva, a ser realizada no dia da pré-matrícula escolar. O número total de crianças matriculadas no final do ano de 2015 era de 9.073 nos Centros Municipais de Educação Infantil e 18.648 nas escolas de Ensino Fundamental, configurando um total de 27.721 crianças matriculadas na Rede Pública Municipal de Ensino. Esses municípios envolvidos na coleta expressam a representatividade dos dados coletados, visto que, tanto o modo de coleta por censo, como sua densidade demográfica possibilitam a significação estatística desses dados. O que os dados apontam Apresentaremos, na sequência, (Tabela 1) os dados encontrados nesses municípios e suas características comuns. Poderão ser evidenciados que os números apontam para uma eminente preocupação e necessidade de atenção sobre o problema. Inicialmente, podemos depreender dos dados que esses municípios são bastante semelhantes em seu percurso educacional. Dadas as diferenças populacionais, trazem altos índices de matrícula e escolarização. Nas avaliações promovidas pelos Índices de Desempenho na Educação Básica, possuem resultados expressivos e condizentes com as metas estabelecidas pelos gestores políticos. Dados da Educação Infantil

As análises dos dados dos questionários foram divididas em dois momentos: em primeiro lugar, a Educação Infantil, que atende as faixas de idade de 0 até 5 anos de idade. Neste recorte, destacamos que estamos falando em um período escolar em que a criança encontra-se em pleno desenvolvimento biológico, psicológico e social, e que, neste segmento, os parâmetros curriculares da educação enfatizam a necessidade de promover o desenvolvimento de suas habilidades cognitivas e sociais. É uma etapa de ensino que ainda sofre com a necessidade de formação docente mais qualificada e que, em sua parte mais expressiva, os professores não têm uma formação própria para o trabalho com essas crianças, em conformidade com seu momento de desenvolvimento psíquico (ARCE & MARTINS, 2010). Desta forma, as questões relativas ao cuidar e educar não são devidamente tratadas, e as atividades voltadas para a educação infantil são pouco estruturadas. Devido a essas questões, por vezes o professor apresenta dificuldades em estabelecer o que vem a ser o desenvolvimento psíquico e de que forma suas atividades são desenvolvidas para a formação de habilidades mentais. TABELA 1 . P ERFIL DE ESCOLARIZAÇÃO DOS MUNICÍPIOS Assim, é constante que nas observações sobre o desenvolvimento, as queixas de aprendizagem são produzidas com base na experiência imediata dos professores e comparadas à formação de hábitos e comportamentos baseados em informações advindas do senso comum. Questões sobre limites, obediência a regras, atenção e permanência nas atividades assumem destaque quando o professor enfrenta dificuldades na sua organização da atividade de ensino. Com isto, a busca de alternativas para o enfrentamento tem com maior constância surgido na Educação Infantil como explicação para o comportamento infantil. Na Tabela 2 notamos a forma com a qual as queixas se representam em processos de medicalização. TABELA 2 . Q UANTIDADE DE CRIANÇAS QUE USAM MEDICAÇÃO CONTROLADA NA E DUCAÇÃO I NFANTIL Esses dados trazem a discussão sobre o gradual incremento da utilização do medicamento em populações onde as prescrições são contraindicadas em bula do produto. Se compararmos com a Tabela 3, em que podemos ver os medicamentos receitados para cada diagnóstico, ressalta-se a necessidade de reflexão. Afinal, no documento da Anvisa (2014) não há recomendação para o uso desse tipo de princípio ativo nem para essa faixa etária e muito menos para o diagnóstico em questão. Ao contrário, a bula do produto faz ressalva clara sobre o uso inadequado para os pequenos e para a questão da característica do desenvolvimento ainda não estabelecido na formação da criança. Ressalta-se que muitos profissionais entendem que esses princípios ativos têm respaldo para o tratamento adjuvante a situações típicas e esse levantamento busca estabelecer a relação direta entre o aumento da queixa e o uso de medicamentos para o atendimento de problemas comportamentais. TABELA 3. DIAGNÓSTICOS MAIS FREQUENTES E REMÉDIOS MAIS PRESCRITOS NA EDUCAÇÃO INFANTI L

Ressalta-se que no levantamento realizado pelos instrumentos de coleta tem-se como queixa principal o comportamento agitado e o fato de que a criança não presta atenção nas atividades escolares. Esse tipo de queixa, na perspectiva evidenciada neste trabalho, é oriundo das relações interpessoais e do papel que o adulto exerce na atividade formadora, não apenas nas características biológicas de saúde/transtorno/doença. Ensino Fundamental Com o avanço do processo de escolarização sobre as séries iniciais e com as mudanças das características das atividades escolares aumenta-se a demanda de autocontrole sobre o comportamento. Com o início do período de estudo mais sistematizado na Educação Fundamental, faz-se necessário que a criança venha sendo trabalhada ao longo da Educação Infantil para que apreenda a controlar sua atenção na atividade escolar. Quando isso não ocorre, encontramos seus efeitos na dificuldade de compreensão dos significados da atividade, que levam a criança a uma atividade sem significação. Esse comportamento reflete o incremento das queixas e o uso de medicalização para o diagnóstico da atenção. As tabelas 4 e 5 vão ajudar a nossa compreensão. TABELA 4 . Q UANTIDADE DE CRIANÇAS QUE USAM MEDICAÇÃO CONTROLADA NO E NSINO F UNDAMENTAL Consideramos que na Educação Infantil chegávamos ao final do ciclo com um índice de medicalização de 1,5% de crianças matriculadas. Na Educação Fundamental, em suas séries iniciais, vemos um incremento de até 200% de crianças que passam a fazer uso dos produtos psicoativos. Existem muitos aspectos pertinentes para buscar os motivos, não circunscritos somente à criança. Temos de ressaltar que esses alunos estão espalhados por diferentes municípios do Brasil. No Paraná, um estado que tem um IDEB de destaque positivo, passa-se a exigir que os municípios mantenham esses resultados e, como os repasses de recursos federais estão relacionados a esses números, aumenta-se a pressão sobre o sucesso da criança em séries iniciais. Essa pressão reflete em municípios pela obtenção de resultados favoráveis no processo alfabetizador e nas provas de desempenho. Com este contexto, o professor, que historicamente vem sendo precarizado nas suas condições de trabalho, que encontra dificuldades para organizar adequadamente seu trabalho, busca mecanismos de controle de desempenho e comportamento produtivo da criança ao perceber sua desatenção e desmotivação. Em uma “corrida contra o tempo” e, ao mesmo tempo, sem recursos educativos para tal, o medicamento pode se tornar uma solução rápida e a curto prazo. O processo de atenção da criança, que nesse período da vida ainda é centrado na atividade da brincadeira, não tendo autocontrole sobre seu comportamento cognitivo, expressando sua atividade voltada para seus interesses imediatos e não os do ensino (que exige projetar-se ao futuro), coloca em cheque o processo de aprendizado esperado pelo docente. Este último, por não ter elementos teóricos necessários para a compreensão do fenômeno em seus vários determinantes, busca na queixa sobre a deficiência, na queixa sobre a criança a justificativa para os problemas na

aprendizagem, que muitas vezes encobrem deficiências em sua formação, ou seja, de ensinagem. Como consequência disso, a Tabela 4 evidencia o incremento da queixa de TDAH e a demanda crescente pela medicalização. Para corroborar essa afirmativa, temos a Tabela 6, em que ressalta-se a demanda da medicalização exatamente em momentos cruciais de avaliação do processo de ensino-aprendizagem, a saber, o momento de julgar o processo de alfabetização inicial (final da educação infantil) e o final do ciclo alfabetizador no Ensino Fundamental (terceiro ano), em que o aumento do uso da medicação psicoativa atenua os sintomas da dificuldade no processo de ensino aprendizagem. Chama-se a atenção para a transição do Infantil 4 para o Infantil 5, que abruptamente manifesta o sintoma do comportamento da criança. Ressalta-se que esses períodos são aqueles que sofreram grandes mudanças com o processo de gestão da escolarização e da alfabetização, períodos que exigem professores habilitados e qualificados. TABELA 5 . D IAGNÓSTICOS MAIS FREQUENTES E REMÉDIOS MAIS PRESCRITOS NO E NSINO F UNDAMENTAL Evidencia-se, também, na Tabela 6, que o terceiro ano de escolarização no ensino fundamental apresenta o maior índice de crianças medicadas, salvo exceção de Rio Bom. Habitualmente, os programas de ensino caracterizam esse período como o período que encerra o ciclo alfabetizador e em que é aplicada a Prova Brasil, que avalia o processo desse primeiro ciclo. A necessidade de resultados e de justificativa para o sucesso/fracasso da relação de ensino-aprendizagem gera uma demanda muito grande de se avaliar pedagogicamente, psicopedagogicamente e clinicamente a criança, e os encaminhamentos para esses procedimentos resultam, dependendo da abordagem efetuada pelo profissional responsável, no aumento da queixa sobre o Transtorno do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade. Aspectos relacionados à organização do ensino nas séries iniciais como determinantes da dispersão ou concentração da atenção serão melhor aprofundados no capítulo XII deste livro. TABELA 6 . N ÚMERO DE CRIANÇAS MEDICADAS POR SÉRIE EM CADA MUNICÍPIO Apresentada a dimensão desses dados, a pesquisa em foco tem trabalhado com as redes municipais e estaduais de educação com o objetivo de aprimorar os conhecimentos sobre o desenvolvimento do psiquismo infantil, tendo como base a concepção da Psicologia Histórico-Cultural, tem formado professores e debatido com essas redes de ensino em busca de uma maior compreensão sobre a infância, suas características e seus processos desenvolvimentais. Estão em fase final de elaboração materiais formativos para os pais e para as redes de ensino, que buscam ampliar o acesso à informação e ao modo de ação com as crianças, tendo em vista que esta deve ser tomada como um ser essencialmente social e não somente natural. Considerações Finais. Neste trabalho, buscamos compreender o que está acontecendo com a produção das queixas escolares na sociedade produtivista e competitiva em que vivemos na contemporaneidade. A busca constante de resultados

educacionais e eficiência nos modos de produção da escolarização acabam por incidir sobre as crianças, que muitas vezes arcam com o ônus de políticas públicas descontínuas, aligeiradas, de uma má gestão de recursos para formação dos professores e pedagogos. Resgatar a função essencial do ensino e, portanto, do educador no processo de formação das novas gerações, implica em pensá-lo como pedra angular para o desenvolvimento psíquico de nossas crianças. Sabemos que não só as crianças sofrem ante as contradições dessa sociedade que incidem sobre a escola, sofre também o educador, sendo ele também alvo da medicalização, como será tratado no capítulo VIII deste livro. As condições atuais de formação docente, precarizadas e distantes das possibilidades de atender a infância, associadas à crescente demanda de investigação sobre o comportamento infantil, leva o professor a não possuir nem ferramentas materiais para seu trabalho nem conceitos científicos adequados para compreender o momento do desenvolvimento psicossocial da criança, que cada dia mais cedo chega ao espaço escolar. Associados a isto, uma crescente demanda de identificação e diagnóstico precoce de transtornos de desenvolvimento, facilitada pelas inúmeras atividades clínicoterapêuticas produzidas na sociedade moderna que lucram com a ineficiência escolar, vinculada ao modo de produção do trabalho aligeirado e precário, produz transtornos e fabrica em série diagnoses e tratamentos. É uma busca desenfreada por soluções sintomáticas imediatas, pautada na descrição de sintomas que desemboca, como vimos, na medicalização de comportamentos ainda pouco compreendidos, com desconhecimento dos efeitos colaterais a médio e longo prazo desses medicamentos psicotrópicos e suas consequências para o desenvolvimento infantil. Um contexto em que se perde o ser histórico e social que apresenta aqueles comprotamentos, para ver nele apenas uma determinada “doença”, um determinado “transtorno”. Buscamos aqui alertar que o indicativo de uso de medicamentos psicoativos como controladores do comportamento psíquico ainda não estabelecido pela criança poderá criar marcas profundas ao longo da vida adulta desses indivíduos. Assim sendo, faz-se necessário investir na formação adequada de professores, de agentes de saúde e no controle social do encaminhamento da criança, restringindo ao máximo o uso indiscriminado do recurso medicamentoso. Proporcionar à criança condições de apropriação das ferramentas sociais e simbólicas, trabalhadas de modo efetivo pela prática docente, a organização de uma formação plena do professor, para que este possa promover com seu ensino o desenvolvimento psíquico das crianças são conclusões que emergem destes dados apresentados. Isto se faz necessário! Fernando W. Mendonça Fonoaudiólogo, pedagogo, docente no departamento de Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutor em Educação pela mesma instituição.

Cleudet de Assis Scherer Pedagoga, docente no departamento de Educação da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), doutora em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Rejane Teixeira Coelho Psicóloga, doutora em Psicologia social e professora no curso de Pedagogia da Unioeste/Cascavel. Silvana Calvo Tuleski Psicóloga, doutora e pós-doutora em Educação pela Unesp/ Campus Araraquara, pós-doutoranda em Educação pela mesma instituição. Docente de graduação e pós-graduação no curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Adriana de Fátima Franco Psicóloga, doutora em Educação pela PUC-SP. Pós-doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Araraquara. Docente de graduação e pós-graduação no curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Marcelo Ubiali Ferracioli Psicólogo, doutor em Educação Escolar pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Araraquara. Professor adjunto no Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Rogério de Leon Pereira Department of Computer Science, University of Manitoba, CA, [email protected]. Referências: AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Metilfenidato no tratamento de crianças com transtorno de déficit de atenção e

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HISTÓRICO–CULTURAL Bárbara Cristina Niero Adriana de Fátima Franco Introdução A popularização do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) tem se tornado cada dia mais visível. Seja no consultório médico, seja na escola, no círculo familiar ou até mesmo na mídia, o transtorno tem se feito presente cada vez mais cedo no diagnóstico de crianças. Com base em pesquisas realizadas por Collares & Moysés (2009), Leite e Tuleski (2011) e Bonadio (2013), é possível perceber que profissionais da saúde e educação consideram que as causas principais dos problemas de aprendizagem e do fracasso escolar têm suas bases em fatores biológicos. Tais explicações são frequentemente legitimadas pelo discurso científico, justificando a prescrição e o uso de medicamentos, o que pode conduzir à medicalização. Para Moysés (2013), o termo “medicalização” caracteriza o processo que consiste em deslocar os problemas do cotidiano dos indivíduos, inerentes à vida diária e que não seriam patológicos para o campo médico. Desta maneira, os fenômenos de origem social e política tornam-se questões biológicas e individuais. Ainda, Meira (2012) explica que a medicalização da vida cotidiana, que interpreta sensações físicas ou psicológicas do dia a dia como sintomas de doenças, por exemplo, insônia e tristeza, distúrbios do sono e depressão, conduz a uma “epidemia” de diagnósticos. A preocupação com a falta de atenção e/ou comportamentos inadequados não é recente e explicações centradas no biológico, mais especificamente no cérebro da criança ocorrem desde o final do século XIX, conforme indicam Eidt e Tuleski (2007). Na década de 1970, o TDAH despertou maior interesse dos pesquisadores. Na década de 1990, o TDAH se transformou em um dos principais motivos do encaminhamento infantil para tratamento médico e psicológico, porém, tais tratamentos auxiliam na “confirmação” da existência de um transtorno (EIDT & TULESKI, 2007). De modo a fundamentar a crítica ao grande número de diagnósticos de TDAH, é necessário um retorno a alguns conceitos da Psicologia HistóricoCultural, buscando contrapor as justificativas de cunho organicista que sustentam esses diagnósticos, embasando a ideia de que o comportamento voluntário é proveniente de fatores biológicos e poderiam ser tratados por via medicamentosa. Lev S. Vygotsky (1896–1934), A. R. Luria (1902–1977) e A. N. Leontiev (1896–1934) contribuíram para o entendimento do desenvolvimento psiquismo como unidade material/ideal, apresentando-o enquanto um sistema interfuncional, processual, construído com base na materialidade. As funções tipicamente humanas, sensação, percepção, atenção, memorial, linguagem, pensamento, imaginação, emoção e sentimento, são construídas na atividade e com base em mediações. Esse sistema se constitui enquanto um amálgama, sendo assim, nenhuma função pode ser tomada para análise isoladamente.

Vygotsky (1996), na obra História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores , dedica-se a uma explanação do desenvolvimento das funções psicológicas superiores e a transição das funções elementares às superiores. De acordo com o autor, o indivíduo possui desde o seu desenvolvimento primitivo uma complexa estrutura que lhe permite o desenvolvimento das funções atinentes à apropriação cultural. De modo a questionar as teorias de base organicistas que atribuem o desenvolvimento e o comportamento humano somente a aspectos biológicos, no capitulo “Método de investigação”, Vygotsky (1996) coloca que o homem, na gênese de sua conduta, exibe uma estrutura complexa de desenvolvimento já acabada. Essa estrutura fornece subsídios para a união de aspectos de sua conduta primordial na ontogênese e filogênese. Neste sentido, podemos compreender que o ser humano apresenta, nos modos mais primitivos de seu desenvolvimento, uma estrutura complexa de fundamental importância para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, permitindo a realização de modificações no ambiente de acordo com as necessidades socioculturais. Essas adaptações, para o autor, não são possibilitadas aos animais, somente ao ser humano, uma vez que estão diretamente ligadas às funções psíquicas superiores, como a memória, típicas do homem (Vygotsky, 1996). De modo oposto ao que é pressuposto pelas correntes de cunho organicista, o controle voluntário do comportamento não é proveniente do desenvolvimento biológico. Para a Psicologia Histórico-Cultural, essa função tem seu desenvolvimento inserido no contexto das relações sociais do indivíduo por meio do aprendizado. Desta maneira, buscar saídas em medicamentos não colaborará para o desenvolvimento da atenção voluntária. Por outra via, tornam-se necessárias modificações nas práticas pedagógicas que regem o processo de ensino e aprendizagem, processo este capaz de proporcionar o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Nosso propósito ao conhecer os caminhos do desenvolvimento da atenção voluntária não se limita a apresentar tais caminhos, mas, sim, a compreendê-los com base em uma orientação crítica e revolucionária da construção de um conhecimento, isto é, o estudo não se esgota nas possibilidades de conhecimento do percurso do desenvolvimento da atenção voluntária, mas busca desvendar as múltiplas determinações desse fenômeno e, desta forma, orientar uma prática educativa transformadora. Assim sendo, esta pesquisa teve o objetivo de, em um primeiro momento, apresentar um recorte dos dados obtidos pelo projeto de pesquisa “O Retrato da Medicalização da Infância no Estado do Paraná”. Buscamos estabelecer um diálogo com os pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural. Apresentação dos dados Os dados analisados nesta pesquisa são fruto de um projeto de pesquisa interinstitucional intitulado “O retrato da medicalização no Estado do Paraná”, que mapeia em escolas municipais de diversas cidades do estado do Paraná a quantidade de alunos e alunas do Ensino Infantil e dos

primeiros anos do Ensino Fundamental que utilizam medicamentos controlados. Serão analisados os resultados referentes à cidade de Paiçandu – PR. Para a sistematização estatística dos dados obtidos, utilizou-se o software QlikView® , uma ferramenta que auxilia na organização e análise dos dados, possibilitando o acesso às informações depositadas no banco de dados de maneira organizada, gerando uma rápida visualização. O QlikView® permite carregar dados de uma ou mais fontes, em arquivos com formatos como Excel, TXT ou XML ( QlikView , 2011). Uma breve caracterização de Paiçandu Paiçandu recebeu o título de município em 25 de julho de 1960, com território desmembrado de Maringá. Seu nome de origem tinha a grafia “Paissandu”, porém, em 1970, passou a ser denominada com a grafia atual. É considerada cidade dormitório do município de Maringá, por ser o local em que a maioria de sua população trabalha e estuda, embora tenha um fluxo comercial próprio (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE). O município de Paiçandu conta com uma população de 39.291 habitantes, em uma área de 171,379 km². Sobre a educação, o município soma 14 escolas que atendem o Ensino Pré-escolar (10 escolas municipais e 4 da rede privada), 14 escolas que atendem o Ensino Fundamental (7 escolas municipais, 5 escolas municipais e 2 da rede privada) e 4 escolas que atendem o Ensino Médio (todas pertencentes à rede estadual) (IBGE, 2015). Considerando que o Projeto de Pesquisa obteve dados referentes às escolas municipais, a seguir, daremos maior prioridade na caracterização de tais escolas. Em 2015, o número geral de matrículas no Ensino Pré-Escolar foi de 1.070, sendo que 82% foram na rede municipal (878 matrículas) e 18% na rede privada (192 matrículas). Já as matrículas no Ensino Fundamental resultaram em 4.657, das quais aproximadamente 55% foram na rede municipal (2.597 matrículas), 41% na rede estadual (1.936 matrículas) e aproximadamente 4% na rede privada (192 matrículas). Sobre as escolas Federais, estas não atendem o ensino pré-escolar ou as séries iniciais do Ensino Fundamental (IBGE, 2015). Podemos ressaltar que os dados coletados pelo Projeto de Pesquisa demonstram a realidade da maioria das crianças dentro das séries analisadas, considerando que a grande maioria das crianças em idade préescolar (82%) e mais da metade do Ensino Fundamental (55%) frequentam escolas pertencentes à rede municipal. Tal montante corresponde a 9% da população do município. Desta maneira, é possível nos aproximar dos índices reais de diagnósticos e do uso de medicamento controlado. Em seguida, analisaremos cruzamentos de dados sistematizados sobre aspectos que julgamos relevantes para o debate levantado neste trabalho. Resultados e análise dos dados

Os cruzamentos eleitos para análise foram: uso de medicamento X série da criança, diagnóstico X número de crianças, medicamento X diagnóstico, medicamento X profissional que o receitou, e acompanhamento realizado X número de crianças. Tais dados se referem à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental, e serão dispostos em quadros. O total de questionários respondidos na Educação Infantil foi 359, enquanto nas séries iniciais do Ensino Fundamental, coletou-se 897 questionários, somando um total geral de 1.256 questionários, que fornecem os dados para os quadros apresentados aqui. QUADRO 1 . Q UANTIDADE DE CRIANÇAS POR SÉRIE QUE USAM MEDICAMENTO As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, propostas pelo Ministério da Educação (MEC) postulam que a Educação Infantil integra a primeira etapa da educação básica, oferecida em creches ou préescolas, públicas ou privadas, atendendo crianças nas idades entre 0 e 5 anos (MEC, 2010). Na figura 1, verificamos a correspondência de idade e série para o Ensino Fundamental de nove anos: Figura 1 – Correspondência de idade-série, referente à divisão entre o primeiro e segundo semestres do ano de nascimento. Fonte: Ministério da Educação (2013). As séries nas quais se detectaram a maior quantidade de crianças que fazem uso de medicamento foram o primeiro, o segundo e o terceiro ano do Ensino Fundamental, com maior concentração no segundo ano, com 15 crianças. Essas crianças se encontram na faixa etária compreendida entre 6 e 9 anos. Ao estudarmos a periodização do desenvolvimento infantil proposta por Vygotsky (1996b), compreendemos que a idade escolar e a crise dos sete anos são descritas como um momento difícil na educação da criança, pois é nesta fase que ocorre a transição da atividade principal, que na criança préescolar corresponde ao brincar, e, com o ingresso na escola, gradativamente a atividade que impulsiona o desenvolvimento torna-se a atividade de estudo. Porém, esse é um processo que depende da mediação, da orientação do professor em sala de aula e do auxílio dos pares mais desenvolvidos nesta caminhada. Por isso, Leontiev (1988) postulou que a idade não é o único fator determinante dos estágios do desenvolvimento. As condições sóciohistóricas são fundamentais. Entretanto, o espaço escolar está permeado de pressupostos maturacionistas sobre o desenvolvimento, considerando apenas a idade cronológica da criança. Desta forma, quando a criança não consegue “amadurecer” dentro do que é estipulado pelas práticas pedagógicas da escola, as dificuldades do processo de ensino e aprendizagem são direcionadas para outras instâncias, normalmente de caráter individualista, conduzindo a saídas como a patologização e medicalização. O MEC analisa que, até o fim do 3º ano do Ensino Fundamental, o processo de alfabetização se encerra e a criança deveria ser capaz de ler, escrever e compreender textos. Contudo, os dados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), publicada por esse órgão em 2014, mostram que uma

em cada cinco crianças do 3º ano do Ensino Fundamental sabia ler apenas palavras isoladas, e 11,64% dos estudantes avaliados não são capazes de escrever textos legíveis ou formar frases completas. É sabido pela Psicologia Histórico-Cultural que a apropriação de signos transforma o psiquismo da criança. Se nos primeiros anos de vida o aprendizado da linguagem oral possibilita um salto qualitativo no desenvolvimento, possibilitando que a criança seja capaz de abstrair e generalizar, será o domínio da escrita, enquanto instrumento psicológico, que gerará a segunda revolução no psiquismo, possibilitando o desenvolvimento de conceitos científicos. Entretanto, a necessidade dessa linguagem não está posta para a criança no início do processo de escolarização. A escrita é uma linguagem arbitrária e abstrata, o que exigirá muito da criança em desenvolvimento. Nesta direção, é importante conhecer quais os diagnósticos principais fornecidos às crianças no início de sua trajetória escolar, uma vez que eles nos propiciam pistas acerca das dificuldades enfrentadas no processo de escolarização. No quadro abaixo, examinaremos os principais diagnósticos encontrados: QUADRO 2 . N ÚMERO DE CRIANÇAS POR DIAGNÓSTICO Como podemos verificar, o diagnóstico prevalente na Educação Infantil e no Ensino Fundamental é o de Transtorno de Déficit de Atenção, com ou sem Hiperatividade, totalizando 40 crianças e representando 74% dos diagnósticos. Esse diagnóstico é bastante comum atualmente, e, conforme Collares & Moysés (2009a), os critérios estabelecidos para o diagnóstico não estão delineados, dando margem à muitas interpretações dos comportamentos considerados problemáticos e das dificuldades na aprendizagem, individualizando em uma receita médica todo o espectro de condições educacionais e culturais. O medicamento popularmente eleito no tratamento de TDAH é o metilfenidato, que, segundo a Anvisa (2013), movimentou aproximadamente R$ 28,5 milhões no Brasil apenas no ano de 2011. No Quadro 3, analisamos os medicamentos receitados para crianças diagnosticadas com TDAH. QUADRO 3 . N ÚMERO DE CRIANÇAS POR MEDICAMENTO RECEITADO Na Educação Infantil encontramos 3 crianças medicadas, 2 tomam risperidona e 1 o metilfenidato. No Ensino Fundamental, 31 crianças utilizam o metilfenidato e 6 a Risperidona. Percebe-se que na Educação Infantil a Risperidona é mais prescrita, enquanto que no Ensino Fundamental encontramos o metilfenidato.

Resultados semelhantes a estes foram encontrados por Franco, Tuleski e Eidt (2016) ao pesquisarem o uso de medicamentos controlados na Educação Infantil no terceiro maior município do Paraná. Segundo as autoras, nossa preocupação não deve ser somente com o uso do metilfenidato para tratar o TDAH, mas também com fármacos como os antipsicóticos atípicos também utilizados, ainda que não sejam específicos para este fim e tampouco recomendado para a faixa etária compreendida nesta pesquisa. O metilfenidato é diretamente indicado para o TDAH, para o tratamento de adultos ou crianças maiores de 6 anos de idade. Na bula, encontramos a explicação de que esse medicamento age como um leve estimulante do Sistema Nervoso Central, de modo a melhorar a atividade de áreas cerebrais que aparentam estar com níveis abaixo do esperado, maximizando a atenção e reduzindo o comportamento impulsivo (ANVISA, 2013). Contudo, a lista dos efeitos colaterais possíveis é extensa. Incluem dor de garganta, cefaleia, nervosismo, diminuição no apetite, náusea, angústia emocional em excesso, inquietação, distúrbios do sono, exaltação emocional, agitação, sonolência, tremores involuntários, palpitação, transpiração excessiva, dores nas articulações, perda de peso, entre outros (ANVISA, 2013). Na Educação Infantil, encontramos majoritariamente a utilização de Risperidona, um antipsicótico que foi incluído na rede pública de saúde por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), em 2014, indicado para “auxiliar na diminuição das crises de irritação, agressividade e agitação, sintomas comuns em pacientes com o diagnóstico de autismo” (BRASIL, 2011). A prescrição encontrada na bula da Risperidona atesta que esse fármaco é indicado para o tratamento de esquizofrenia e outros distúrbios de ordem psicótica, uma vez que atua em sintomas como alucinações, delírios, distúrbios do pensamento, hostilidade, desconfiança, isolamento emocional e social. Pode auxiliar no controle de ansiedade e tensão. O medicamento é contraindicado para crianças e adolescentes menores de 15 anos de idade. No campo dos efeitos colaterais pode englobar falta de sono, agitação, ansiedade, cefaleia, sonolência, cansaço, dificuldades de atenção, visão embaçada, tontura, náusea, enurese, estado de confusão mental, ganho de peso e contrações musculares involuntárias (ANVISA, 2013). Considerando a bula desse medicamento, em um comparativo com a idade das crianças que o utilizam, percebemos que a Risperidona é receitada em uma faixa etária muito anterior à mínima recomendada. Ainda, sua indicação é para o tratamento de sintomas psicóticos, o que certamente não se encaixa nas queixas comportamentais do TDAH. A gama de efeitos colaterais abarcam comportamentos agitados, ansiedade e dificuldades de atenção, muito semelhantes aos comportamentos encontrados na queixa do TDAH, o que causaria uma confusão entre transtorno e tratamento. As autoras Franco, Tuleski e Eidt (2016) realizam uma pontuação sobre a prescrição de medicamentos para crianças cada vez mais jovens, ainda que existam diversos estudos que demonstrem controvérsias entre TDAH e a psicose infantil. Sendo este fenômeno complexo, não permite uma

justificativa simplista, necessitando de uma compreensão de diversas relações que o produzem. Tais relações envolvem “processos educativos intra e extraescolares, formação de profissionais na esfera da saúde e da educação, interesses políticos e econômicos que colocam a infância como um grande filão lucrativo, para todo tipo de produtos, inclusive os produtos farmacêuticos” (FRANCO, TULESKI E EIDT, 2016, p. 220). Outro medicamento indicado para o tratamento de TDAH é o Venvanse© (Dimesilato de Lisdexanfetamina), que também não é recomendado para crianças menores de 6 anos. Seus efeitos colaterais também englobam redução do apetite, cefaleia, aumento da atividade psicológica e motora, agressividade, tontura, irritabilidade, vômito, diarreia, agitação, alucinações, euforia, entre outros (ANVISA, 2013). Novamente, é contraditório que seja ministrado um medicamento cujos efeitos colaterais muito se assemelham aos sintomas que este se propõe a tratar. Efeitos colaterais sérios são muitas vezes ignorados em prol de um tratamento que pode não demonstrar grande eficácia, o que certamente prejudica a saúde dos usuários desses medicamentos. Para ambos os medicamentos, por meio desta pesquisa, foram registradas receitas para crianças com idade inferior à indicada pela bula. Os outros medicamentos receitados (Sertralina, Depakote©, Tegrezin©, Cloridrato de Imipramina, Neuleptil© e Tofranil©) possuem indicações na bula para tratamento de ansiedade, crises de ausência (breve perda de consciência), epilepsia, depressão, transtorno de bipolaridade, autismo e enurese (ANVISA, 2011, 2012a, 2012b, 2012c, 2014, 2014b). Os efeitos colaterais são extensos, e deveriam ser alertados antes de iniciado seu uso. QUADRO 4 . M EDICAMENTOS RECEITADOS POR CADA PROFISSIONAL Se considerarmos que é um dos papéis do profissional responsável pela prescrição de um medicamento analisar e acompanhar a evolução do tratamento, e que muitos desses medicamentos receitados apresentam efeitos colaterais severos, julgamos importante conhecer quais profissionais receitam cada fármaco. Guarido (2010) assinala que o discurso científico, representado pela Medicina, apoia-se na Biologia para determinar o que é próprio do ser humano, partindo de suas bases genéticas e neurofisiológicas para compreender o funcionamento cerebral. Pesquisas acerca das ações dos neurotransmissores contribuíram para a elaboração de hipóteses causais sobre como eles atuariam no comportamento humano, em variações de conduta, pensamento e humor dos indivíduos. Deste modo, todas as alterações no campo do comportamento, psiquismo e desenvolvimento do seres humanos passam a ser atribuídas ao âmbito biológico. As especialidades que receitaram medicamentos para o tratamento de TDAH foram Neurologista, Neuropediatra, Psiquiatra e Pediatra. No total, 15 receitas foram feitas por neurologistas, 13 por neuropediatras, 9 por psiquiatras e 1 por pediatra. Aqui se confirmam os pressupostos discutidos

anteriormente por Collares & Moysés (2009) e Guarido (2009) acerca da supremacia médica e da formação nas faculdades de Medicina no Brasil, voltadas para o diagnóstico, patologização e o uso de medicamentos como única forma de tratamento. A seguir, apresentaremos quais outros acompanhamentos são realizados pelas crianças com diagnóstico de TDAH. QUADRO 5 . N ÚMERO DE CRIANÇAS QUE FAZEM ACOMPANHAMENTO Conforme é possível analisar no quadro acima, a maioria dos atendimentos indicados é de ordem individual, e, muitas vezes, clínica. Acompanhamentos com profissionais como fonoaudiólogo e psicólogo podem ser de grande auxílio em questões que sejam, de fato, do universo pessoal da criança, como no caso de dificuldades na fala e dicção ou em questões afetivas. Porém, quando ocorre o encaminhamento para tais profissionais buscando solucionar dificuldades relacionadas ao desempenho escolar, é reforçada a ideia de que o motivo do fracasso escolar reside somente naquela criança, desconsiderando os diversos fatores que o produzem. Um dos encaminhamentos comuns é a sala de recursos multifuncionais. De acordo com a resolução que a formaliza, ela tem a função de “identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem barreiras […]” (BRASIL, 2011, p. 10). Seu público-alvo são “alunos com deficiência física, intelectual e sensorial, transtornos globais do desenvolvimento, alterações no desenvolvimento neuropsicomotor, síndrome de Asperger, síndrome de Rett, psicoses e transtornos invasivos sem outra especificidade e altas habilidades” (BRASIL apud Maringá, 2013, sem paginação). No que tange àa função dos professores nesta sala: a) produzir e organizar serviços e recursos de acessibilidade e estratégias, de acordo com as necessidades específicas dos alunos; b) elaborar e executar plano de atendimento educacional especializado; c) organizar o cronograma de atendimento dos alunos da sala; d) acompanhar os recursos pedagógicos e de acessibilidade nas salas regulares e em outros ambientes da escola; e) estabelecer parcerias com áreas intersetoriais de modo a elaborar estratégias; f) orientar professores e famílias sobre recursos pedagógicos e de acessibilidade; g) ensinar e utilizar a tecnologia assistiva; h) estabelecer articulação com professores da sala comum; i) realizar o atendimento como forma complementar ou suplementar a escolarização regular; j) identificar, organizar e produzir recursos acessíveis; k) ensinar e desenvolver atividades do AEE como, por exemplo, Libras, Braile, orientação e mobilidade, língua portuguesa para alunos surdos, informática acessível; l) trabalhar com alunos da educação infantil e do ensino fundamental (MARINGÁ, 2013). Já a classe especial deve ter caráter transitório para alunos que, segundo o MEC, apresentem “dificuldades acentuadas de aprendizagem ou condições de comunicação e sinalização diferenciadas dos demais alunos e demandem ajudas e apoios intensos e contínuos” (BRASIL, 2001, p. 24). A classe especial é uma sala de aula, dentro da escola de ensino regular, com espaço adequado. O professor da educação especial usa métodos, técnicas e recursos pedagógicos especializados, e ainda, equipamentos e materiais

didáticos específicos, de acordo com a série da educação básica, para que o aluno tenha acesso ao mesmo currículo da base nacional comum (Brasil, 2001). Os alunos a serem atendidos pela classe especial deveriam ser “alunos cegos, alunos surdos, crianças que tenham condutas típicas de síndromes e quadros psicológicos, neurológicos ou psiquiátricos e de alunos que apresentam casos graves de deficiência mental ou múltipla” (BRASIL, 2011, p. 25). Porém, a classe especial não deve ser composta de alunos que “apresentem dificuldades de aprendizagem não vinculadas a uma causa orgânica específica , tampouco se deve agrupar alunos com necessidades especiais relacionadas a diferentes deficiências” (BRASIL, 2011, p. 25, grifos nossos). Compreendemos que o TDAH não configura um transtorno comprovadamente biológico, portanto, não deveria encaixar-se nos requisitos da classe especial. As autoras Lucena (2016) e Colaço (2016), que realizaram pesquisas utilizando recortes do mesmo Projeto de Pesquisa aqui abarcado, obtiveram resultados similares em outros municípios. Lucena (2016) dedicou-se a explorar os dados referentes à Educação Infantil nos municípios de Maringá, Campo Mourão, Mandaguari e Paiçandu, encontrando o uso da Risperidona como principal medicamento e índices similares aos aqui expostos. Já Colaço (2016) analisou os dados das séries inicias do Ensino Fundamental de Maringá, obtendo também o uso majoritário do metilfenidato, além do TDAH como principal diagnóstico. Todos esses dados e análises nos permitem observar o modo como a medicalização se consolida como um fenômeno na materialidade, presente desde o início da vida escolar da criança. Uma vez que essa é uma realidade observável, procuramos conhecer como as produções científicas, que devem se ocupar em compreender e debater os fatos da vida humana, exploram essa temática. Importante ressaltar que a atenção voluntária e o controle do comportamento, funções necessárias para o processo de alfabetização, são formadas na atividade, pois é na vida que a criança forja a sua humanidade. O momento em que a criança ingressa na escola, em conjunto com todas as alterações do meio que acompanham essa etapa, deve ser considerado ao analisar seu comportamento e sua aprendizagem. Considerações Finais Este trabalho apresentou uma investigação acerca do diagnóstico e do uso de medicamento controlado em crianças da Educação Infantil e de séries iniciais do Ensino Fundamental em um município do interior do Paraná. Buscou compreender o fenômeno da medicalização e, por meio da Psicologia Histórico-Cultural, apresentar o ensino enquanto ferramenta fundamental para o enfrentamento desta questão. Os dados do município de Paiçandu nos mostram que o número de crianças que utilizam medicamento controlado é de 55 crianças, e entre estas, 7 estavam matriculadas na Educação Infantil e 48 nas séries iniciais do Ensino Fundamental. O diagnóstico mais encontrado em ambos os ciclos foi o

Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade, em um total geral de 40 crianças. Esse diagnóstico superou quaisquer outros, integrando 74% do total da amostra. Para o diagnóstico de TDAH ocupar tamanho destaque, procuramos entender os critérios diagnósticos. Bonadio e Mori (2014) exploram a forma como esse diagnóstico ocorre, pautado principalmente em sintomas clínicos, entre eles a desatenção, a hiperatividade e a impulsividade apresentada pelo indivíduo no ciclo de seu desenvolvimento. Collares & Moysés (2009), conforme anteriormente explanado, apontam um aumento no uso de metilfenidato após os anos 1990, sem questionamentos ou análises profundas sobre as consequências de seu uso no desenvolvimento infantil. Assumimos que a periodização do desenvolvimento proposta por Vygotsky (1996) é um aporte teórico que nos possibilita a compreensão do processo de desenvolvimento por uma ótica que excede as justificativas organicistas para o comportamento infantil. O autor debate acerca das origens sociais, históricas e culturais do comportamento humano, além da organização mediada das funções psíquicas superiores, exclusivas dos seres humanos, ampliando o entendimento das dificuldades na apropriação de novas habilidades, como a atenção voluntária e o controle do comportamento. Por fim, consideramos de grande importância o debate dos processos medicalizantes vistos na atualidade. Por meio de teorias que busquem conhecer o desenvolvimento real, e não o ideal, do ser humano, é possível a construção de práticas pedagógicas que auxiliem na superação dos obstáculos na consolidação das funções psíquicas superiores da criança, como a atenção voluntária, colocando a figura do professor como um agente ativo no ensino, como um mediador que possibilita à criança a apropriação dos conteúdos ensinados em sala de aula, contribuindo significativamente com o seu crescimento e aprendizagem. Bárbara Cristina Niero Psicóloga, mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutoranda em Psicologia pela USP. Adriana de Fátima Franco Psicóloga, doutora em Educação pela PUC-SP. Pós-doutora em educação pela Unesp-Campus Araraquara. Docente de graduação e pós-graduação no curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Referências: ANVISA (2011). Cloridrato de Sertralina. Alberto Jorge Garcia Guimarães. São Paulo: Biosintética Farmacêutica Ltda. 2011. Bula de remédio.

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MEDICALIZAÇÃO ENTRE OS PROFESSORES: FORMAS DE ENFRENTAMENTO DOS DILEMAS DO TRABALHO NA EDUCAÇÃO? Diana Priscilla de Souza Mezzari Marilda Gonçalves Dias Facci Nilza Sanches Tessaro Leonardo Introdução O uso de medicamento entre os alunos vem sendo objeto de estudo de vários pesquisadores no meio acadêmico e científico, entre os quais destacamos Moysés e Collares (2012) e Franco, Tuleski e Eidt (2016). As autoras aqui citadas discutem, principalmente, a utilização indiscriminada de remédios para resolver problemas que não se localizam no âmbito da Medicina, mas que são resultantes de questões sociais, políticas, econômicas envoltas no cotidiano dos indivíduos. E, assim, nos deparamos com o que hoje denominamos medicalização da vida, em que problemas, que são visivelmente decorrentes do modo de vida da sociedade capitalista, estão sendo compreendidos e analisados no campo da Biologia. Esse processo de medicalização também adentrou de forma violenta nos espaços escolares, e muitos alunos estão fazendo uso de medicamentos para solucionar problemas de aprendizagem e comportamento. O Brasil é o segundo país que mais utiliza o medicamento Ritalina (nome comercial do metilfenitado) para resolver dificuldades no contexto escolar (SUZUKI & LEONARDO, 2016). Uma compreensão dos problemas de escolarização num viés biologizante desconsidera aspectos fundamentais na concretização do processo educacional como, por exemplo, as condições objetivas do trabalho do professor que, de modo geral, não são as mais adequadas. Temos constantemente nos deparado com noticiários, em jornais e programas televisivos de caráter jornalístico, relatando que têm aumentado significativamente, nos últimos anos, as faltas constantes de professores que exercem sua atividade, sobretudo em escolas públicas.

Vale citar que em 2005, por exemplo, os afastamentos recorrentes de professores ganharam espaço em manchetes jornalísticas, com destaque, entre outros, no jornal Folha de São Paulo , em um dos programas da emissora televisiva mais assistida no país e no município de São Paulo, a Rede Globo de Televisão, no programa SPTV . Uma das reportagens veiculadas no programa discutia que a prefeitura percebeu que muitos professores justificam suas faltas devido a problemas de saúde. Em 2002, um decreto municipal autorizou todos os servidores públicos a tirar até sete dias de licença médica sem a necessidade de uma perícia feita no departamento médico da própria prefeitura. Qualquer atestado justificaria a ausência. O número de licenças médicas passou de 18 mil, em 2002, para 132 mil em 2004. Segundo a prefeitura, 90% das licenças foram utilizadas por funcionários de escolas e de unidades de saúde (SILVA, 2007). Nesta mesma direção, Antunes (2014) apresenta dados quantitativos sobre a evolução do número de professores readaptados no quadro de magistério, fornecidos pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, números que compreendem de 2011 a abril de 2013, fornecidos pela Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeosp). Professores readaptados são aqueles que não conseguem mais realizar a sua função dentro da escola e são realocados para desenvolver outras atividades, passando muitas vezes a realizar trabalhos na secretaria, biblioteca da escola ou auxílio na coordenação pedagógica. De acordo com Antunes (2014), a readaptação consiste na recolocação do profissional docente em outra função com atribuições de cargo em nível inferior de esforço para o qual foi admitido. O processo de readaptação é longo e complexo, amparado pela Lei nº 10.261/1968, art. 51 do Estatuto do Servidor Público Estadual, em conjunto com procedimentos regulamentados pelo Departamento de Perícias Médicas do Estado de São Paulo. No ano de 2011 havia 11.872 professores readaptados; no ano de 2012, 13.925; o que indica aumento de 17,3% em relação ao ano anterior. Em 2013, esse número subiu para 14.268 no primeiro quadrimestre, o que significa aumento de 2,5% em relação a 2012, evidenciando a tendência de crescimento ao longo do período compreendido pelos dados. Esses dados demonstram o intenso sofrimento e adoecimento que vem afetando vários professores. Uma discussão atual sobre o adoecimento do professor, neste caso no ensino superior, pode ser encontrado no Informativo n. 7 do InformANDES , do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior – Andes. O texto aborda o quanto os ataques aos direitos sociais, a precarização do trabalho, o produtivismo, a mercantilização do ensino, entre outros problemas presentes nesse nível de ensino, têm provocado o adoecimento do professor. (ANDES, 2017).

Assim, parece-nos claro que muitos profissionais da educação vêm cada vez mais adoecendo. As condições adversas da prática docente, a sobrecarga de trabalho, a indisciplina e outros problemas que ocorrem no cotidiano da escola levam os professores ao adoecimento e a buscarem em uma “pílula mágica” forças para se manterem em condições de dar aula. A solução apresentada aos docentes como resolução dessas doenças se encontra, muitas vezes, no uso do medicamento e/ou o processo de readaptação, conforme vimos nas pesquisas anteriores. Esses são, portanto, alguns dilemas a serem superados no trabalho na educação. Levando em conta os aspectos introdutoriamente apresentados, o objetivo deste capítulo é problematizar a medicalização dos professores na escola, apresentando dados de uma pesquisa realizada por Mezzari (2016) com 223 professores de escolas públicas do estado do Paraná. O estudo teve como finalidade identificar o uso do medicamento por professores, e o procedimento adotado para isso foi o questionário. A investigação foi aprovada pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Grande parte dos docentes que responderam ao questionário tinha idade acima de 30 anos, sendo que 21,5% tinham entre 45 e 50 anos; 13,5%, entre 40 e 45 anos; 15,2%, entre 30 e 40 anos; e 15,7%, entre 30 e 35 anos. A maioria dos professores (27,4%) tinha menos de cinco anos de formação; 23,3%, até dez anos de formação; e 18,8%, de dez a 15 anos de formação. No tocante ao tempo de trabalho, a maioria dos professores, 21,1%, tinha de cinco a dez anos de tempo de docência; 18,8%, menos de cinco anos; 14,3%, de dez a 15 anos; 13,5%, de 15 a 20 anos; e 14,3%, de 20 a 25 anos. Inicialmente, iremos explanar sobre o uso de medicamentos e a medicalização na sociedade e no professor; na sequência, discutiremos a relação entre o uso de medicamentos pelo professor e as condições de trabalho; finalizando, discorreremos sobre a educação e o sentido do trabalho para o professor. “Os remédios me deixam mais calma, mais tranquila, menos ansiosa”. Professor medicado ou medicalizado? O uso de medicamentos está cada vez maior na sociedade e, em especial no contexto escolar, atingindo alunos e professores. Em relação aos professores, a pesquisa desenvolvida por Mezzari (2016) aponta que 47% utilizavam algum medicamento. Dados estes que denunciam a precariedade do trabalho docente, visto que quase metade dos professores que participou da pesquisa fazia uso de remédios. O estudo apresenta, ainda, os medicamentos usados pelos participantes: anticonvulsivo (1%), antidepressivo (16%), ansiolítico (9%) e outros tipos de medicamentos (58%). Alguns professores ingeriam mais de um tipo de medicamento: ansiolítico e antidepressivo (6%), ansiolítico e outros (3%), antidepressivo e outros (3%), e antidepressivo, ansiolítico e outros (4%). Utilizando, ainda, medicamentos diversos, como foi relatado por 58% dos participantes da pesquisa, tais como remédios para hipertensão, enxaqueca, tireoide, estômago e diversos outros remédios.

Consideramos relevante destacar que, na bula dos remédios especificados pelos professores, foi possível verificar que grande parte é para tratamento de doenças relacionadas à saúde mental, como depressão, pânico, ansiedade, transtorno bipolar, esquizofrenia. Outros remédios são indicados para problemas como hipertensão e enxaqueca. Portanto, se levarmos em consideração os dados expostos acima e o Gráfico 1 (a seguir), que apresenta o diagnótico prescrito pelo médico, confirma-se que, em sua maioria, esses diagnósticos são para ansiedade e depressão (25%), cansaço mental e estresse (5%), transtorno de pânico (1%), distúrbio bipolar (3%) e insônia (2%). GRÁFICO 1 - D IAGNÓSTICO DO MÉDICO

Fonte: elaborado pela autora, com dados extraídos de pesquisa realizada com 223 professores da região norte do estado do Paraná (2016). Com os dados apresentado no Gráfico 1, podemos visualizar que os problemas de saúde apresentados pelos professores são, em sua maioria, de ordem psíquica. Ansiedade e depressão, distúrbio bipolar, cansaço mental, estresse e transtorno de pânico são exemplos de doenças que, em sua maioria, envolvem problemas psicológicos e não orgânicos, e essas condições são apresentadas pelos professores como diagnóstico do adoecimento. Dados próximos ao apresentado por Mezzari (2016) também foram obtidos em uma pesquisa realizada por Diefenthaeler e Segat (2013) nas redes de ensino do perímetro urbano do município de Erechim/RS, com 106 professores. Os autores constataram que o uso de medicamentos antidepressivos foi relatado por 37 (34,9%) dos entrevistados, e a classe dos Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS) é utilizada por 75,68% (DIEFENTHAELER & SEGAT, 2013).

Nesta mesma direção, Facci (2017), ao entrevistar 20 professores da educação básica, que se encontravam readaptados, constatou que 16 tomavam algum tipo de medicamento. Destes, quatro consideravam que o remédio utilizado os deixava mais calmos e outros quatro viam efeitos positivos do remédio. Seis professores não identificaram nenhum efeito negativo do medicamento. Com base nesses dados, observamos que problemas escolares e pedagógicos estão sendo alvo da Medicina, atingindo também os professores, muitas vezes sem nenhum questionamento dos efeitos negativos do uso exacerbado dos medicamentos. Neste aspecto, Moysés e Collares (2012, p. 135) afirmam o seguinte: A vida está sendo medicalizada pelo sistema médico, que se apropria dos saberes e da própria vida das pessoas e apresenta-se como competente para solucionar todo e qualquer problema. […] A Medicina afirma que os graves – e crônicos – problemas do sistema educacional seriam decorrentes de doenças que ela, Medicina, seria capaz de resolver; cria, assim, a demanda por seus serviços, ampliando a medicalização. Ante ao exposto, entendemos por bem informar que não somos contrários ao uso de medicamentos para tratar/curar doenças orgânicas, todavia nosso questionamento segue na direção de analisar se o que está ocorrendo não se trata de um processo de medicalização, isto é, questões de ordem sociais estão sendo tratadas apenas como orgânicas/biológicas. Para Zorzanelli, Ortega e Bezerra (2014, p. 1860), os pesquisadores, ao analisarem as trajetórias e os diferentes debates de estudiosos da área, chegaram à conclusão de que vários sentidos são dados ao termo medicalização e que estes nem sempre são excludentes. Os autores destacam ainda os seguintes entendimentos: “a) práticas massivas de intervenção sobre o espaço público; b) transformação de comportamentos transgressivos e desviantes em transtornos médicos; 3) controle social e imperialismo médico; 4) processo irregular que envolve agentes externos à profissão médica”. A ideia de que problemas cotidianos possam ser diagnosticados e tratados com a utilização de remédios é uma tendência antiga, mas ainda presente na atualidade, em que o mito cientifico é considerado universal. Tem-se remédio para tudo, e é comum tomar algum medicamento para buscar sentir-se melhor. Desta forma, os professores também vêm, em larga escala, sendo medicalizados, como uma forma de controlar os variados sentimentos que têm em relação às suas vidas e ao ambiente de trabalho, sentimentos que os fazem adoecer. O processo de biologizaçao é visível nesta situação e é bem antigo na história da humanidade. A origem da medicalização se encontra motivada por interesses financeiros, já que mais diagnósticos significam mais dinheiro para a indústria farmacêutica, hospitais e advogados. Até porque pesquisadores e organizações federais de medicina asseguram suas posições e financiamentos promovendo descobertas de suas doenças. Dessa forma, doenças são descobertas para que mais medicamentos sejam vendidos. Essa é uma prova de que estamos vivendo em um mundo onde absolutamente tudo está sendo entregue à lógica do capital.

A indústria farmacêutica tem ocupado atualmente lugar central na economia capitalista porque tem sido capaz de utilizar de forma eficiente concepções equivocadas amplamente enraizadas no senso comum sobre doença e doença mental, alimentando o “sonho” de resolução de todos os problemas por meio do controle psicofarmacológico dos comportamentos humanos. (MEIRA, 2012, p. 90) O problema é que, em nossa sociedade, a Medicina – que tem poder muito grande – atribui a determinados comportamentos o caráter de doenças mesmo quando não o são. Para tanto, basta que haja um diagnóstico médico considerado um parecer científico para que se passe a conceber que determinados comportamentos constituem-se em desvios ou patologias. Isso ficou evidente no levantamento apresentado por Mezzari (2016). Em meio à lógica do capital de querer vender cada vez mais e responsabilizar o indivíduo por suas dificuldades – sempre reafirmando a lógica liberal –, mais e mais medicamentos são produzidos e vendidos como quaisquer outros produtos e consumidos em escala cada vez maior. Obviamente que esse crescimento se deu à custa de uma reorganização nas formas de sociabilidade, impulsionada pelas transformações observadas nas últimas décadas no modo de produzir e reproduzir a vida humana, se inserindo, diretamente, nas condições de trabalho, conforme veremos a seguir. Precarização do trabalho e adoecimento: uma relação tão simples? Neste mesmo levantamento realizado por Mezzari (2016), 59% dos 233 professores relataram que consideram que o adoecimento tem relação com o processo de trabalho e 7% que têm relação parcial com o processo de trabalho. Com base nos dados apresentados no estudo de Mezzari, parece-nos claro que muitos professores vêm utilizando o remédio como forma de enfrentamento das condições degradantes e alienadoras do trabalho no modo de produção capitalista. Esse resultado nos direciona ao seguinte questionamento: por que isso acontece? Se partirmos do pressuposto de que é o trabalho que constitui o homem, é a atividade principal na vida adulta, quando ele não contribui para a formação humana pode levar ao adoecimento. Para Marx e Engels (2007) É o trabalho, portanto, que constitui o ser humano como um ser social e histórico; um ser cujas capacidades materiais e intelectuais não são dadas de antemão, mas desenvolvidas por meio da apropriação das objetivações sociais, dos produtos da atividade coletiva. Por meio do trabalho, cria-se uma realidade humanizada e, com isso, novas formas de se relacionar com o mundo, expandindo as potencialidades humanas para além dos limites do organismo. (RIOS, 2015, p. 22) GRÁFICO 2 - F ORMAS DE RELAÇÃO ENTRE ATIVIDADE PROFISSIONAL E ADOECIMENTO DO PROFESSOR

Fonte: elaborado por Mezzari (2016) com dados extraídos de pesquisa realizada com 223 professores da região norte do estado do Paraná (2016). Tonet (2011) corrobora com essas ideias apresentadas e compreende que quando o homem passa a produzir os meios para a sua satisfação, nas descobertas para a satisfação de suas necessidades é que ele vai se distanciando do reino animal. Assim, o trabalho é, antes de tudo, caracterizado por dois elementos independentes. Um deles é o uso e a fabricação de instrumentos, e o segundo é que o trabalho se realiza em condições de atividade comum coletiva, de modo que o homem, no seio desse processo, não entra apenas em uma relação determinada com a natureza, mas com outros homens membros de uma sociedade. O trabalho é, portanto, desde a origem mediatizado pelo instrumento e pela sociedade (LEONTIEV, 1978). O homem, para Marx e Engels (2004), é um ser social, histórico e coletivo, e o é dessa forma porque tem como atividade vital o trabalho, que implica em produzir meios para satisfazer as necessidades humanas, necessidades que se ampliam por meio da apropriação e da objetivação. Todo esse processo só é possível porque o homem vive com outros homens e é essa a condição para que o homem se individualize e se torne ente genérico. O trabalho emerge como elemento essencial na medida em que medeia a relação entre homem e natureza, tornando possível o processo de humanização do ser humano. O trabalho como atividade mediadora do processo de humanização é aqui entendido como primado ontológico e não como atividade produtora de mais valia. Assim, concebe-se que é na execução do trabalho como atividade vital que o homem toma para si os bens elaborados pelo conjunto dos homens (gênero humano) e os fenômenos da natureza, fazendo deles órgãos de sua individualidade (ZAGO, 2013). Portanto, o trabalho é a categoria fundante do ser social. Por meio da atividade, especificamente o trabalho, o homem conseguiu romper com seus

limites biológicos, reproduzindo-se socialmente, construindo uma nova realidade, tanto objetiva quanto subjetiva. Assim, quaisquer modificações das condições objetivas e materiais dos homens implicarão em transformações em suas condições subjetivas. De acordo com Antunes (2002), na década de 1970, o capitalismo passa por uma reestruturação produtiva em nível mundial que impõe mudanças marcadas pela intensificação das jornadas de trabalho a partir dos incrementos tecnológicos, da flexibilização e da precarização do trabalho e, também, do aumento nas taxas de desemprego. Tudo isso causa impacto na constituição da subjetividade do trabalhador. Cambaúva e Eidt (2012) analisam que o modo de produção capitalista se divide em era moderna e pós-moderna, sendo que a primeira caracteriza-se pelo intenso processo de industrialização centrada na revolução das máquinas, e o trabalho organiza-se mediante a rotina e as metas vistas em longo prazo, com tendências universalizantes, aplicáveis a tudo e a todos. Já a era pós-moderna caracteriza-se como uma era pós-industrial, fundamentada na revolução da informática, na produção de informações, no consumo de serviços. O trabalho nesse modelo é baseado na flexibilidade e em metas de curto prazo. Coroa-se, assim, a consolidação da globalização, multiplicidade e pluralismo, descaracterizando o trabalho como forma de desenvolvimento das potencialidades e comprometido com a formação humana de forma genérica. No século XX, de acordo com Pereira (2015), no capitalismo concorrencial global, a partir da década de 1980, as características do sistema de produção têm gerado efeitos sociais catastróficos que descambam em problemas de ordem global e rebatem negativamente sobre a educação escolar brasileira. Dentre esses, destaca-se o neoliberalismo, a adesão ao Estado mínimo e a economia de mercado, a acumulação flexível do capital, as rápidas mudanças técnico-científicas, a ordem econômica determinada pelas corporações mundiais e por instituições financeiras internacionais e, principalmente, a globalização (PEREIRA, 2015). O fordismo perdura até 1973, mas já em 1960 começa a mostrar sua decadência. O modelo japonês de gestão, o toyotismo, se apresenta como a possibilidade de resolver, na superficialidade, as relações de trabalho. Começa-se a implantação de uma política de trabalho flexível, com mudanças na organização do trabalho que “[…] referem-se às formas de emprego, às transformações tecnológicas, às políticas financeiras, às ideologias predominantes, à organização do trabalho e, logicamente, ao Estado” (HELOANI, 2003, p. 97). A produção, segundo Antunes (2011), é conduzida pela demanda, com fabricação diversificada para suprir o consumo. Antunes (2011) analisa essa forma de trabalho que provoca a flexibilização do trabalhador, na medida em que as atividades passam a ser desenvolvidas cada vez mais com um mínimo de trabalhadores, que têm de trabalhar horas extras, contratam-se empregados temporários ou com vinculação parcial, subcontratados, terceirizados e os trabalhadores da “economia informal”.

O toyotismo é coerente com o pensamento pós-moderno e com a ideologia neoliberal, na qual termos como […] empregabilidade, desregulamentação, privatização, mercado, downsizing, terceirização, flexibilização dos contratos de trabalho e administração pública gerencial tornam-se recorrentes em todos os níveis hierárquicos […]. (HELOANI, 2003, p. 100, grifos do autor) Para Pereira (2015), a produção global flexível produz a aceleração do ritmo da inovação dos produtos e a criação das novas necessidades de consumo, individualizado e adequado às necessidades do cliente. Os efeitos decorrentes desse novo mercado produzirão as novas exigências que levam à precarização e pauperização do trabalho em si, atingindo também o setor educacional, em cujas instituições refletirão essas características gerais, provenientes do mercado globalizado, que são demandas por elevação da qualificação do trabalhador, organização mais horizontalizada de trabalho, tarefas múltiplas, necessidade de treinamento e aprendizagem permanente, ênfase na corresponsabilidade do trabalhador, criação de regimes e contratos mais flexíveis com trabalho em tempo parcial, temporário, ou subcontratado, entre outros. Essas tendências são alguns dos resultados do adoecimento do docente, visto que as condições de trabalho, 41% (Gráfico 2), exemplificadas pelos professores de acordo com Mezzari (2016), são geradoras do seu sofrimento, voltam-se para estresse do dia a dia, desvalorização do trabalho, excesso de trabalho; marcas do novo regime pautado no neoliberalismo. Vale ressaltar que as tendências orientadoras do capitalismo pregam a liberdade econômica, a eficiência e a qualidade como elementos fundamentais para a manutenção da competitividade e, portanto, da lucratividade no mercado. Dessa forma, o fator qualidade, dentro da ótica do capital, configura-se como elemento fundamental em qualquer instituição que se pretenda competitiva. Esse paradigma, de acordo com Pereira (2015), vem também reordenar as ações do Estado, com rebatimento nas políticas públicas, inclusive nas educacionais, cuja eficiência seria colocada nas instituições privadas em detrimento da ineficiência das públicas, principalmente com o objetivo da intensa privatização dos órgãos públicos, fazendo com que a responsabilidade do Estado ante as instituições seja cada vez menor e, com isso, a educação se tornamais uma mercadoria que pode ser comprada e vendida, e se fomentam ações educacionais cada vez mais fragmentadas, que culminam na formação parcial e ineficiente dos alunos e dos professores. As novas necessidades criadas pelo âmbito da produção, de acordo com Pereira (2015), fomentam a competitividade que implica em várias mudanças na capacitação requerida pelos recursos humanos, passando, obrigatoriamente, pela modificação das questões relacionadas à aprendizagem e à difusão do conhecimento, ou seja, à educação de modo geral. Palavras como modernização, competitividade, excelência, eficiência, autonomia etc., provindas do modelo toyotista de produção, passam a fazer parte das propostas pedagógicas, dos parâmetros curriculares nacionais (PCN), dos projetos políticos pedagógicos (PPP) e de praticamente todos os documentos e orientações relevantes para um ensino que se quer atual;

diga-se, adequado às novas tendências capitalistas na forma do neoliberalismo. Os organismos multilaterais assumem, a seu modo, a tarefa de gerir a educação calcada em interesses do capital. De acordo com Assunção e Oliveira (2009), as reformas educacionais que o Brasil passou a viver a partir de 1990 ocorrem em um contexto de reforma do Estado, em que novas formas de gestão pública são adotadas. A descentralização administrativa e financeira passa a ser um imperativo na gestão pública, o que resulta em maior desregulamentação e no repasse de obrigações e responsabilidades do âmbito central para o local. Ocorre a massificação do ensino, que acarreta modificações profundas no perfil social e na imagem da profissão docente. Com efeito, a expansão da forma escolar correspondeu também a uma ampliação numérica de um dos principais protagonistas da educação escolarizada: o professor. Após a Segunda Guerra Mundial, as transformações impostas aos docentes no que diz respeito ao padrão de seu recrutamento, às modalidades de seleção, à sua remuneração, à carreira e à sua própria imagem social alteraram profundamente a própria noção de profissão e conduziram os professores a uma degradação das condições materiais e simbólicas de seu exercício profissional sem precedentes, que motivaram alguns autores a falar em uma “crise da profissão docente”, em “proletarização da docência”, em uma “desclassificação da profissão” em uma pauperização docente e, mais recentemente, falou-se de uma “profanação da docência”. Pereira (2015) contribui com a reflexão expondo que essa configuração educacional, na perspectiva do capital, apresenta imensos desafios baseados na lógica da concorrência global e na liberdade econômica, passando pela eficiência de qualidade e pela flexibilidade de diversas dimensões do trabalho; o que se configura em um painel de precarização do trabalho docente e nas exigências cada vez maiores pela produção de trabalhadores competentes para o novo modelo societário. O discurso do banco mundial reproduz a perspectiva neoliberal, um incentivo à competitividade, à descentralização e à privatização do ensino, eliminando a gratuidade; ou seja, retirando da educação o caráter de bem público, tornando-a apenas uma mercadoria, consumida via mercado. As transformações propostas, em razão dos novos modelos de produção, atingem a educação, que se vê às voltas com uma crise de função em seus diversos níveis. O discurso neoliberal usurpa a relevância social da educação, reverte seu objetivo ontológico e engendra uma vinculação mercadológica e privatizante como únicas formas de se alcançar qualidade, competitividade e eficiência. Assim, o trabalho docente encontra-se perpassado pelas contradições do sistema capitalista, que coisifica o homem e suas relações, fazendo com que essas relações sejam vistas no âmbito mercadológico, retirando delas a condição social que lhes é inerente. O processo de alienação é evidente. Marx (2004) situa alienação em um duplo plano: objetivo e subjetivo. Ele considera que o trabalho alienado converte a natureza em algo alheio ao homem, ou seja, aliena o homem de sua própria função, de sua atividade vital e também o aliena do gênero humano. No aspecto subjetivo, de acordo com Saviani (2012), a alienação consiste no não reconhecimento, pelo homem, de si mesmo, seja em seus produtos, seja em sua atividade, seja

ainda em outros homens. Portanto, o trabalho, apesar de ser sua própria atividade, é considerado algo externo no qual ele não encontra a sua realização, mas a sua perdição, revertendo esse processo em fator de sofrimento e não de sua satisfação. Isso pode ser reiterado quando 66% dos docentes, do levantamento realizado na pesquisa de Mezzari (2016), apresentam que o trabalho tem relação com o processo de adoecimento e sofrimento onde vivem, e isso é mantido por uma lógica que aliena o trabalhador de seu próprio processo de trabalho e até mesmo da própria vida. Mas o trabalho alienado não se reduz a esse aspecto subjetivo, apresentando também um conteúdo objetivo cujas características independem do modo subjetivo de senti-las, como ocorre com a pauperização material e espiritual do trabalhador, cujo mundo se desvaloriza na proporção direta da valorização do mundo das coisas por ele produzidas. (SAVIANI, 2012, p. 31) Ao mesmo tempo em que a produção global se diversifica e se enriquece, a individual se empobrece cada vez mais. A sociedade é marcada pelas contradições do capital. Para Pereira (2015), a educação formal adquire a essencialidade quanto à formação humana, mas dela tem sido usurpado o caráter de promotora do desenvolvimento do potencial humano e atribuído o de produtora de cidadãos consumidores, que atendam às necessidades fundamentais do sistema capitalista em sua manutenção. Contradições e acirramento do trabalho levam ao adoecimento do professor e podem gerar intensa e maciça necessidade de utilização de medicamentos para resolução de problemas de ordem social. E o professor adoece … Ele é o culpado? Os dados apresentados na pesquisa de Mezzari (2016) nos faz questionar as condições de trabalho nesse modo de produção, condições estas que na atualidade se refletem na perda de direitos já conquistados, perda das minímas garantias da previdência e das minímas condições de trabalho. São reflexos do modo de produção capitalista que, como já discutimos, resultam em alienação tanto objetiva quanto subjetiva. Na ordem subjetiva, podemos considerar, no caso específico da educação, problemas de ordem fisíca, recursos financeiros, formação do professor, formação continuada, perda de garantias conquistadas, e, no plano objetivo, a massificação e a pauperização da educação como um todo, que refletem e repercutem no processo de adoecimento dos docentes. Isso fica evidente quando visualizamos os resultados obtidos na pesquisa de Mezzari (2016), que revelam que esses profissionais vêm adoecendo, vêm utilizando medicamentos, em geral associados a problemas de ordem psicológica, e que estes têm relação com o trabalho. Portanto, muitos professores, para permanecer nos bancos das escolas, ministrando suas aulas, precisam constantemente estar medicados. Vivemos em um mundo intensamente medicalizado, que se utiliza da Medicina como um saber que controla e determina doenças e diagnósticos, que culpabilizam o sujeito, aqui, especificamente, o docente . Assim, a atividade principal na vida adulta, que é o trabalho, não possibilita ao homem o processo de humanização. A atividade, de acordo com Leontiev

(1978), está relacionada ao motivo e é a forma de relação que o homem estabelece com a realidade. A atividade tem um sentido para o sujeito que sempre se liga a um motivo, e que tem ligação com o significado social. Em geral, no modo de produção capitalista, o trabalho aliena o sujeito e o faz adoecer. De acordo com Leontiev (1978, p. 94), o significado é uma generalização das produções culturais da humanidade. A significação é a generalização da realidade que é cristalizada ou fixada num vetor sensível, ordinariamente a palavra ou a locução. É a forma ideal, espiritual da cristalização da experiência e da prática sociais da humanidade. A sua esfera das representações de uma sociedade, a sua ciência, a sua língua existem enquanto sistema de significações correspondentes. A significação pertence, portanto, antes de mais nada, ao mundo dos fenômenos objetivamente. É deste fato que devemos partir. (LEONTIEV, 1978, p. 94) No decurso de sua vida, o homem assimila as experiências das gerações precedentes; esse processo realiza-se sob a forma de aquisições das significações e na medida dessa aquisição. A significação é, portanto, a forma sob a qual o homem assimila a experiência humana generalizada e refletida. Há duas formas de expressões do significado: na primeira forma os significados evidenciam as práticas sócio-históricas (conhecimento religioso, ideologias, culturas e comportamentos) que constituem o reflexo psíquico da realidade; a segunda forma revela como todo esse conteúdo apropriado pelo reflexo se materializa para o sujeito singular. Isto quer dizer que, ao mesmo tempo em que o significado constitui a consciência social, também determina a consciência individual, pois, apesar da objetividade da realidade, essa se apresenta ao indivíduo de maneira particular (SILVA, 2007). O sentido pessoal, por sua vez, se dá pela relação do motivo da atividade com os fins da sua ação: “[…] para encontrar o sentido pessoal devemos descobrir o motivo que lhe corresponde” (LEONTIEV, 1978, p. 97). Assim, só se compreende o sentido mediante a relação estabelecida entre o motivo e o objetivo da atividade, ou, dito de outro modo, “o sentido consciente traduz a relação do motivo com o fim” (LEONTIEV, 1978, p. 97). O sentido é então, o conteúdo subjetivo. A individualização dos significados por meio do sentido pessoal não o torna geneticamente diferente do primeiro, pois “o sentido é antes de mais uma relação que se cria na vida, na atividade do sujeito” (LEONTIEV, 1978, p. 97). Essa relação é mediada pelo motivo, ou seja, para encontrar o sentido pessoal, deve-se descobrir o motivo que o corresponde. É por isso que o motivo e consequentemente o sentido pessoal é único entre os sujeitos, mesmo quando eles estão inseridos em uma mesma atividade. O significado, então, corresponde às objetivações, aos objetos e fenômenos culturais. É aquilo que está disponível no mundo para que os indivíduos se apropriem, tomem parte dele. Dessa forma, o significado tem um caráter

constante, porém não imutável. Leva-se certo tempo e depende do desenvolvimento da sociedade para que sua significação se transforme ou se aprimore, ganhando outras características. Ao seu turno, o sentido é conteúdo subjetivo porque corresponde à relação que cada sujeito estabelece com determinado objeto cultural. Dentro da relação entre significação e sentido pessoal, há ainda um terceiro componente, a saber: o conteúdo sensível (sensações, imagens da percepção, representações). É ele que cria a base e as condições de toda a consciência. Ele é aquilo que cria diretamente a transformação da energia do estímulo exterior em fato de consciência (LEONTIEV, 1978). Já os sentidos, para Silva (2007), só podem conferir à consciência do sujeito a singularidade por serem constituídos, fundamentalmente, por emoções, afetos e sentimentos. Nos sentidos há o predomínio dessas esferas do psiquismo, que vão se constituindo conforme o desenvolvimento da atividade, da personalidade e da própria consciência. As emoções (sensação que revela uma determinada relação do sujeito com o objeto, mas de forma temporária) e os afetos (estados emocionais de maior intensidade, tendo como uma das características o contágio), que têm as dimensões elementares e superiores, são sinais internos que regulam a conduta do sujeito, e promovem o desenvolvimento do psiquismo. Já o sentimento (constituído por emoções) evidencia uma relação mais estável do sujeito com o objeto, de modo a refletir a atitude diante do objeto e de uma necessidade também estável. Ao contrário, das emoções e dos afetos, que têm raízes inatas, mas que são transformados histórica e socialmente, os sentimentos são necessariamente de ordem ontogenética, pois refletem o modo de vida dos indivíduos por meio de normas, valores e exigências. (SILVA, 2007, p. 62-63) Desse modo, o sentido pode se materializar nas mais diferentes formas, alterando-se de acordo com o contexto onde o sujeito está inserido e sendo, portanto, mais dinâmico do que o significado. O sentido pessoal é aquilo que motiva, impulsiona, incita o sujeito a realizar sua atividade. O sentido é uma relação que se cria na atividade do sujeito; o sentido consciente é criado por uma relação objetiva entre aquilo que o faz agir e aquilo para o qual sua ação se orienta. Assim, o sentido consciente traduz a relação do motivo ao fim. Tal fato é comprometido no caso de uma patologia. Como nos diz Zeigarnik (1981), em um processo psicopatológico ocorrem alterações das motivações do indivíduo, na estrutura da organização hierárquica de seus sentidos pessoais, que ocasionam significativas mudanças na personalidade do indivíduo, modificando seus interesses, valores e opiniões. Assim sendo, pode-se concluir que ocorre uma desintegração na hierarquia dos motivos e suas vinculações com as necessidades objetivas do indivíduo. No Gráfico 2, desenvolvido por Mezzari (2016), anteriormente apresentado, percebe-se que as condições do trabalho e os problemas físicos decorrentes do processo de trabalho são os principais fatores que acarretam adoecimento, e denotam não só falta de recursos financeiros e físicos das escolas, como também falta de formação desse professor, tanto acadêmica

quanto continuada, e que geram sofrimento de ordem física e psicológica. A falta de valorização profissional, o excesso de trabalho, o estresse do dia a dia são fatores que fazem com que o docente perca o sentido do processo de trabalho e que seja alienado ante a essas condições. Dentro do meio educacional, o professor, enquanto sujeito condutor da atividade pedagógica é o responsável por essa transmissão do saber historicamente acumulado. No caso dos professores, o significado do seu trabalho é formado pela finalidade da ação de ensinar, isto é, pelo seu objetivo, e pelo conteúdo concreto efetivado através das operações realizadas conscientemente pelo professor, considerando as condições reais, objetivas na condução do processo de apropriação do conhecimento do aluno. (BASSO, 1994, p. 27) Diante da precarização do trabalho, há uma ruptura entre sentido e significado, provocando um processo de alienação e não a humanização dos professores. Tal alienação nos demonstra que, ao mesmo tempo em que a produção global se diversifica e se enriquece, a produção/desenvolvimento pessoal do trabalhador se empobrece cada vez mais, fazendo com que na prática pedagógica, especificamente, no caso do professor, haja uma cisão entre o sentido/significado do trabalho docente, e esta é resultado não só das condições de trabalho, da desestrutura familiar, da indisciplina dos alunos, dos problemas físicos desses docentes, mas também do modo de produção capitalista onde estamos inseridos e das consequências que este gera. O trabalho se apresenta como um processo gerador de sofrimentos e isso ocorre, principalmente, porque suas ações, que deveriam gerar satisfação, geram sofrimento; o trabalho se torna sua “perdição”, como nos diz Saviani (2012). O trabalhador adoece. Hoje, apesar dos avanços significativos no campo conceitual, que apontam para um novo enfoque e novas práticas para lidar com a relação trabalho e saúde, consubstanciados sob a denominação de “saúde do trabalhador”, deparamos, no cotidiano das lutas sociais do trabalho, com as hegemonias da medicina do trabalho e da saúde ocupacional. Tal fato coloca em questão a já identificada distância entre os interesses antagônicos da sociedade capitalista, sobretudo num campo potencialmente ameaçador, em que a busca de soluções quase sempre se confronta com interesses econômicos arraigados e imediatistas, que não contemplam os investimentos indispensáveis à garantia de uma política em defesa do trabalho.

Com base nessa constatação, cabe aproximar o debate sobre as alterações nas condições e relações de trabalho que intensificaram as doenças do trabalho na contemporaneidade. De uma forma geral, conforme apresenta Lara (2011), as principais doenças do trabalho são a lesão por esforço repetitivo (LER), os distúrbios mentais provocados pelo estresse, as lombalgias, as perdas auditivas e os problemas oculares. As “novas” gestões da força de trabalho, a desregulamentação e a precarização das relações sob a reestruturação produtiva e o neoliberalismo estão limitando os trabalhadores pelo medo do desemprego. A competitividade por um posto de trabalho é acirrada, o que interfere na constituição da “consciência de classe” e no reconhecimento que constrói as subjetividades que se nutrem pela lógica do trabalho. Diante desse quadro, a intensificação do trabalho, a polivalência e a submissão impõem-se de forma ululante, o que origina uma situação propícia à mudanças do perfil patológico dos trabalhadores. Ao mesmo tempo em que é anunciado o “fim do trabalho”, observa-se o surgimento de patologias decorrentes da cada vez maior sobrecarga: Burnout, as LER, as alterações cognitivas, as tentativas de suicídio nos locais de trabalho, os indicadores de estresse no trabalho. Assim, no modo de produção capitalista, a interseção do trabalho e da saúde passa a ter uma relação contraditória, na qual, quanto mais o trabalhador vende sua força de trabalho, menos saúde possui, culminando no denominado processo de medicalização, visto que este é resultado do intenso sofrimento do trabalhador e dos modos de exploração que esse trabalho adquire nesse sistema. Caminhando para as considerações finais Os dados aqui expostos e as reflexões realizadas se apoiam na concepção de que a Psicologia assume papel educativo quando desvenda como os homens se constituem como tais e desenvolvem a humanidade. Abordamos neste texto um problema que tem sido alvo de atenção e que deve continuar a ser investigado, o processo de medicalização, sobretudo a do professor, processo este que vem se instaurando na sociedade de forma violenta e perversa. Não entendemos que esse fenômeno seja decorrente de famílias e professores incapazes e desinteressados, mas que são partícipes de um processo próprio ao atual modo de reprodução da existência. Nesse processo, sempre fomos marcados por um respaldo de uma ciência de matriz positivista, cujos interesses coincidem com os de uma determinada classe social. Pois ao deslocar para o eixo biológico, problemas que são ocasionados em nível social, a Medicina, como mais uma área específica do saber que apreende os processos do desenvolvimento do homem e da sociedade, passa a reorganizá-los sob o seu prisma e a nortear a vida das pessoas por meio dos diagnósticos impostos como “verdades” absolutas. Tal entendimento faz com que a sociedade veicule fatos que deixam de ser históricos e frutos da história para assumir a condição daquilo que está prescrito pelo médico. E essa prescrição tem o poder de invadir todos os âmbitos da vida da pessoa, desde o lazer e o trabalho, sendo, atualmente, o mais impactado, o âmbito educativo.

Nesse sentido, abordar a medicalização na educação implica em estabelecer uma relação com o contexto social mais amplo: em que tipo de sociedade vivemos e que ideal de homem desejamos alcançar. Quando se analisa um fenômeno de maneira particular, corre-se o risco de chegar a conclusões calcadas na aparência, e, por isso, torna-se de extrema importância estudar esse objeto numa visão de totalidade. Com a crescente medicalização no contexto escolar, tanto por parte dos alunos quanto de professores, busca-se refletir sobre quais os reais motivos que influenciam esse fenômeno. A significação social da atividade pedagógica do professor é justamente proporcionar condições para que os alunos aprendam, ou melhor, engajemse em atividades de aprendizagem. Portanto, é o professor o mediador entre o conhecimento e o aluno. Tanto Vygotsky (2000) como Leontiev (1978) enfatizam o caráter mediador do trabalho do professor (adulto responsável ou criança mais experiente) no processo de apropriação dos produtos culturais. Compreender a significação social da atividade pedagógica é fundamental para investigar o que motiva o professor a realizar tal atividade, ou seja, qual é o sentido pessoal da atividade pedagógica do professor. Leontiev (1978) aponta que na sociedade de classes há uma ruptura entre a significação social e o sentido pessoal, o que caracteriza a consciência humana, nesta particularidade, como alienada. Estendendo essa análise para o trabalho do professor, Basso (1994, p. 38-39) postula que a atividade pedagógica será alienada sempre que o sentido pessoal não corresponder ao significado social dessa atividade. Se o sentido do trabalho docente atribuído pelo professor que o realiza for apenas o de garantir a sua sobrevivência, trabalhando só pelo salário, haverá a cisão com o significado fixado socialmente, entendido como função mediadora entre o aluno e os instrumentos culturais que serão apropriados, visando ampliar e sistematizar a compreensão da realidade e possibilitar objetivações em esferas não cotidianas. Nesse caso, o trabalho alienado do docente pode descaracterizar a prática educativa escolar. A cisão entre o significado social e o sentido pessoal no trabalho docente compromete o produto do trabalho do educador e interfere diretamente na qualidade do ensino ministrado. Para Basso (1994), os professores, ao sentirem essa cisão entre o significado e o sentido de seus trabalhos, avaliam suas condições de trabalho como limitadoras e expressam desânimo e frustração ao falarem sobre sua profissão. A desvalorização do trabalho escolar vem sendo mascarada pela necessidade de eficiência e produtividade, com suas propostas de tecnologia educacional, ou por propostas pedagógicas consideradas modernas e inovadoras, mas entendidas, segundo Saviani (2009), como não críticas porque servem para manter a ordem, os privilégios, as desigualdades sociais e a hegemonia burguesa, delegando ao indivíduo e não ao sistema a responsabilidade por sua capacidade de trabalho. O trabalho, especificamente o trabalho docente, que foi discutido neste capítulo, mas considerando neste interim o trabalho em geral, e a saúde do trabalhador, no modo de produção capitalista, adquire uma nova

configuração, passa a ser estranho aos sujeitos, concebido enquanto uma atividade social dotada de sofrimento, exploração e destruição das capacidades emancipatórias do indivíduo. Todavia, temos que pensar formas de enfrentamento dos dilemas posto no trabalho, sobretudo na educação, não podemos deixar de lutar em prol de um trabalho não alienante, que tenha por finalidade a humanização e a emancipação do homem. Outro aspecto relevante que merece atenção quando discutimos o adoecimento do trabalhador é o que nos diz Zeigarnik (1981). Para essa autora, é preciso considerar os aspectos saudáveis do indivíduo. Ao visualizarmos aspectos adoecidos do sujeito, devemos partir daquilo que se encontra intacto, que se encontra saudável. Ao reabilitar ou tratar indivíduos com certas enfermidades, devemos considerar não somente os aspectos comprometidos de determinadas funções, mas, sobretudo, o que há de intacto, as esferas que se mantêm saudáveis. Nesse caso, ao estudarmos o adoecimento dos professores, temos de ter em conta não apenas os sintomas e suas queixas que se apresentam nas variadas patologias psicológicas que os atingem, mas também considerar, de igual forma, os aspectos sadios presentes nesses sujeitos. Quando retratamos o fenômeno do adoecimento e da medicalização do professor, um dos pontos principais a que devemos nos ater não são os aspectos de desintegração da personalidade ou aqueles que se encontram em estado de adoecimento, mas devemos focar em aspectos que se encontram saudáveis e intactos na psique do sujeito que sofre. Esses docentes adoecidos e intensamente medicados, e todos os trabalhadores que nesse modo de produção adoecem e fazem uso de remédios, como forma principal de mascarar as reais contradições desse modo de produção, precisam buscar nos aspectos que ainda se encontram saudáveis e sãos, níveis e formas de lidar e suportar as condições degradantes e alienadoras do trabalho na sociabilidade capitalista. O que nos permite dizer, ainda mais neste momento histórico que estamos vivendo, de perda de direitos garantidos, de privatização intensa de órgãos desde a saúde, a educação e diversos outros órgãos públicos, que o trabalhador, em sua totalidade, vem sofrendo as consequências desse modo de produção e vem, sim, adoecendo. Há de se promover a necessidade de envolvimento de todos os profissionais abarcados no processo educativo e nas diversas áreas de saber na discussão e no engajamento desse tema, a fim de contribuir para a legitimação da importância do professor no processo de mediação no sistema educacional vigente, resultando assim na humanização e emancipação dos sujeitos. Nesse contexto, apresenta-se a importância de um espaço para fortalecer um debate que objetive a organização de uma classe trabalhadora capaz e articulada em suas tarefas de construção de uma nova sociedade, em que a saúde do trabalhador seja plena em todas as suas dimensões e que os sujeitos possam ter espaço para um desenvolvimento pleno de todas as suas funções, um desenvolvimento omnilateral. Diana Priscilla de Souza Mezzari Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual do

Centro-Oeste (2013) com mestrado em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (2017). Atualmente na Universidade Estadual de Maringá. Marilda Gonçalves Dias Facci Psicóloga, doutora em Educação Escolar pela faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - Unesp (2003) e pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da USP. Atualmente pós-Doutora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Docente do Departamento de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. Nilza Sanches Tessaro Leonardo Psicóloga, doutora em Psicologia pela PUC-Campinas. Docente do Departamento de Psicologia e da Pósgraduação em Psicologia da UEM. Referências: ANDES. Ataques aos direitos sociais intensificam adoecimento docente. InformANDES . Informativo n. 70. Brasília, maio de 2017. ANTUNES, R. Adeus ao trabalho : ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 15. ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2011. ANTUNES, R. Os exercícios da subjetividade: as reificações inocentes e as reificações estranhadas. Caderno CRH , Salvador, n. 37, p. 119-129, 2002. ANTUNES, S. Mal-estar e adoecimento docente na escola pública paulista : um panorama preocupante. Convenit Internacional, Universidade do Porto, 2014. ANTUNES, R. & PRAUM, L. A sociedade dos adoecimentos no trabalho . Serv. Soc., São Paulo, n. 123, p. 407-427, 2015. ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Prescrição e Consumo de Metilfenidato no Brasil: identificando riscos para o monitoramento e controle sanitário. Boletim de Farmacoepidemiologia . Ano 2, n. 2, julho a dezembro, 2012.

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Marisa Eugênia Melillo Meira Introdução Este capítulo tem por objetivo analisar criticamente a crescente medicalização da vida cotidiana e suas expressões contemporâneas no campo da educação escolar, buscando desvelar o processo de transformação de comportamentos e aprendizagens consideradas inadequadas e insatisfatórias em sintomas de doenças e transtornos. A expressão “medicalização” foi utilizada na década de 1970 por Ivan Illich no livro A expropriação da saúde: nêmesis da medicina , no qual alertava que a ampliação e extensão do poder médico estaria cada vez mais transformando as dores da vida em doenças. A medicalização não deve ser confundida com medicação (a prescrição e o tratamento de doenças com medicamentos) nem com medicamentalização (o uso abusivo de medicamentos). Trata-se de um processo por meio do qual fenômenos complexos de origem social e política, marcados pela cultura e um dado tempo histórico, são convertidos em objetos da saúde e deslocados para os domínios da ordem médica e práticas afins (AMARANTE & FREITAS, 2015; MOYSÉS, 2001). A exacerbação da medicalização da vida cotidiana, capaz de transformar sensações físicas ou psicológicas normais em sintomas de doenças, vem provocando “epidemias” de diagnósticos e tratamentos (WELCH e cols, 2008), altamente vantajosas para a indústria farmacêutica, que ocupam lugar cada vez mais central na economia capitalista. Como analisam Amarante e Freitas (2015), a aliança entre a Medicina e a indústria farmacêutica se estabelece pelo princípio de que as drogas seriam capazes de corrigir os desequilíbrios químicos do cérebro responsáveis pela produção dos sintomas psicopatológicos. Essa é a base de um grande negócio que envolve lucros espetaculares, investimentos pesados em propaganda e, principalmente, a criação contínua de novas doenças que possam abrir o mercado consumidor para novas drogas (ANGELL, 2010). No campo educacional, a medicalização tem se expressado de duas formas mutuamente articuladas: a medicalização dos processos de ensino e aprendizagem, que dissemina e consolida a concepção de que dificuldades de aprendizagem e comportamento são produtos de doenças e/ou deficiências ou transtornos dos alunos (que denominamos de medicalização da educação), e a prática de encaminhamentos dessas crianças e jovens “problemáticos” para a realização de diagnósticos e tratamentos (a medicalização na educação).

A escola não cumpre sua função social de socialização do saber e produz problemas que serão tratados como demandas para a saúde. Neste sentido, a medicalização constitui-se em um desdobramento inevitável do processo de patologização dos problemas educacionais, o qual tem servido como justificativa para a manutenção da exclusão de grandes contingentes de crianças pobres que, embora permaneçam nas escolas por longos períodos de tempo, nunca chegam a se apropriar de fato dos conteúdos escolares (MEIRA, 2012). Iniciamos tratando dos processos de biologização e psicologização, duas formas importantes e atuais de patologização em nosso contexto e, em seguida, apontamos algumas possibilidades de enfrentamento da medicalização nos campos da educação, psicologia e movimentos sociais e políticas públicas. Patologização e medicalização na e da educação Vivemos a Era dos transtornos. Uma época em que as pessoas são despossuídas de si mesmas e capturadas-submetidas na teia de diagnósticosrótulos-etiquetas, antigos e novos, cosmeticamente rejuvenescidos ou reinventados . ¹ Destacamos duas formas importantes e atuais de patologização em nosso contexto: a biologização e a psicologização. Patologização e Biologização Entendemos por biologização o processo por meio do qual fenômenos produzidos socialmente são explicados como resultado de determinações biológicas, orgânicas, próprias dos indivíduos (COLLARES & MOYSÉS, 1994, 1996). Pesquisas realizadas por Collares e Moysés evidenciam que profissionais da saúde e da educação referem-se frequentemente à desnutrição e a disfunções neurológicas como causas determinantes do não aprender na escola. Em várias obras as autoras dedicaram-se ao desvelamento dos mitos que estabelecem relações causais entre a desnutrição e as dificuldades de escolarização, esclarecendo que crianças que frequentam a rede pública de ensino comumente rotuladas como desnutridas são na verdade portadoras de desnutrição leve, de 1º grau, ² que não traz nenhum tipo de alteração para o sistema nervoso central. Além disso, as funções neurológicas que poderiam ser afetadas pela desnutrição nem sequer estariam presentes por volta de 7 anos, não podendo, portanto, serem admitidas como explicações plausíveis para o não aprender. Notadamente, a partir da década de 1990, o discurso da conexão entre problemas neurológicos e o não aprender, ou não se comportar de forma considerada adequada pela escola, ganhou força e consolidou-se nos meios

educacionais. Nesta perspectiva, considera-se que crianças apresentam dificuldades escolares por causa de disfunções ou transtornos neurológicos (congênitas ou provocadas por lesões ou agentes químicos), que interferem em campos considerados pré-requisitos para aprendizagens, tais como percepção, atenção, habilidades motoras, linguagem etc. Dentre as muitas disfunções comumente associadas ao desempenho escolar de crianças destacaremos o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e o Transtorno de Oposição e Desafio (TOD). O Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) define que o TDAH é caracterizado por um padrão persistente de comportamentos de desatenção e/ou hiperatividade. No site da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA) ³ o TDAH é definido como um transtorno neurobiológico de causas genéticas que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a vida. O diagnóstico usualmente é realizado com a utilização de um questionário de 18 questões denominado SNAP-IV ⁴ , cujo objetivo é auxiliar a identificação de possíveis sintomas do TDAH em alunos. As nove primeiras relacionam-se à atenção e as seguintes à hiperatividade e representam um verdadeiro atentado contra a ciência. Questões como “evita, não gosta ou se envolve contra a vontade em tarefas que exigem esforço mental prolongado” ou “sai do lugar na sala de aula ou em outras situações em que se espera que fique sentado” ⁵ , as quais retratam parte do cotidiano de qualquer criança saudável, podem ser consideradas indicativos de um transtorno mental, que será tratado com substâncias químicas que atuam como estimulantes do sistema nervoso central. Os medicamentos mais utilizados são Ritalina®, RitalinaLA® e Concerta® cujo princípio ativo é o metilfenidato, e Venvanse®, que tem a Lis-dexanfetamina como princípio ativo. O diagnóstico do TDAH é feito com base em relatos dos adultos (familiares e professores) sobre os comportamentos das crianças. Não são considerados os contextos nos quais são produzidos, muito menos questionadas a qualidade e adequação do processo de ensino às condições de aprendizagem dos alunos. Embora profissionais de saúde e educação afirmem categoricamente que determinadas crianças são desatentas e hiperativas, não há uma definição clara dos conceitos de bases que deveriam sustentar o diagnóstico, ou seja, a atenção e a hiperatividade. Simplesmente se espera que as crianças sejam naturalmente atentas e disciplinadas na escola, independentemente dos conteúdos, da qualidade do trabalho pedagógico e das necessidades e possibilidades do desenvolvimento infantil. À luz da Psicologia Histórico-Cultural, compreendemos que a atenção é uma função psicológica que deve ser constituída ao longo de processos educativos na infância, cujo desenvolvimento depende da qualidade dos mediadores culturais oferecidos pelos adultos (LURIA, 1991). Isto significa que a escola deve auxiliar as crianças a desenvolverem cada vez mais a consciência e o controle sobre seu próprio comportamento, de tal forma que possam se propor, de modo intencional e deliberado, a focalizarem a atenção no processo de apropriação dos conteúdos escolares.

No caso da hiperatividade, é preciso estar atento ainda para o fato de que existem óbvias semelhanças nas descrições dos comportamentos de crianças e adolescentes com diagnóstico de TDAH e aqueles considerados indisciplinados. Em uma visão tradicional, o sentido da disciplina é o da obediência e, dependendo das escolas e dos professores, um mesmo comportamento pode ou não ser considerado indisciplinado. Ou ainda, pode ser visto como sintoma de TDAH. Apesar da complexidade do diagnóstico, da imprecisão na própria definição do transtorno, do desconhecimento sobre todos os fatores envolvidos na ação do medicamento sobre o sistema nervoso central e das advertências feitas pelos próprios fabricantes (registradas claramente nas bulas) acerca de reações adversas e riscos de dependência, o consumo do metilfenidato aumenta em velocidade crescente (BOARINI & BORGES, 2009; COLLARES & MOYSÉS, 2011, 2013; CRPSP/GIQE, 2016; EIDT & TULESKI, 2007, 2010; MEIRA, 2011, 2012; VIÉGAS, 2014; SOUZA, VIEGAS, HARAYAMA, 2015). Destacamos ainda o TOD (Transtorno de Oposição e Desafio), suposto transtorno disruptivo que, segundo alguns autores, pode ser diagnosticado em até 60% das crianças com TDAH (GREVET e col., 2007). De acordo com o DSM, este transtorno pode ser identificado por um padrão recorrente de comportamento negativista, desafiador, desobediente e hostil para com figuras de autoridade, que persiste por pelo menos seis meses. Para o diagnóstico recomenda-se a observância de pelo menos quatro sintomas entre os que se seguem: encoleriza-se frequentemente; discute com adultos ou figuras de autoridade; costuma desafiar as regras dos adultos ; faz coisas deliberadamente para aborrecer a terceiros; culpa os outros pelos seus próprios erros; sente-se ofendido com facilidade; tem respostas coléricas quando contrariado; é rancoroso e vingativo quando desafiado ou contrariado (grifos nossos). Não há questionamentos acerca das origens de tais comportamentos nem tampouco sobre as relações assimétricas de poder entre adultos e crianças ou o tipo de regras que estariam sendo desafiadas. Na ausência desta reflexão, possíveis movimentos de resistência são compreendidos como confrontação patológica que devem ser tratados com o uso de medicamentos antidepressivos e antipsicóticos para diminuir a irritabilidade e a raiva e “melhorar” o controle dos impulsos das crianças. Patologização e Psicologização

Entendemos por psicologização o processo por meio do qual fenômenos produzidos socialmente são explicados como resultado de determinações psicológicas internas, próprias dos indivíduos. Costa (1984) localiza as origens desse processo de psicologização da educação no Brasil no movimento higiênico-pedagógico dos séculos XVIII e XIX, o qual introduziu as ideias da medicina social com o objetivo de normatizar o modo de vida das massas populares por meio do controle de seus corpos e costumes, bem como da repressão de comportamentos considerados socialmente nocivos e inadequados. Essa política higienista plantou a ideia de que a educação poderia se constituir em um meio eficiente de prevenção de doenças mentais, a qual foi posteriormente incorporada e ampliada pela Psiquiatria e Psicologia. Na educação, a psicologização está presente tanto nos ideários pedagógicos quanto nas práticas educativas cotidianas e se expressa de forma mais contundente em três premissas fundamentais bastante difundidas: as emoções prejudicam a aprendizagem, crianças que apresentam dificuldades no processo de escolarização ou não se adaptam à escola são necessariamente portadoras de distúrbios emocionais e é preciso desenvolver a inteligência emocional dos alunos. A premissa de que as emoções são prejudiciais para as aprendizagens escolares assenta-se tanto em uma tradição subjetivista de Psicologia, quanto em uma concepção humanista tradicional de educação. O subjetivismo idealista coloca a dimensão afetiva como um campo que pode ser isolado de outras esferas da vida humana, enquanto a concepção tradicional enfatiza os aspectos lógicos dos conteúdos em detrimento dos aspectos psicológicos e interesses dos alunos. Destaca-se ainda a tendência de pensarmos as emoções pelo prisma da negatividade, como algo irracional e ameaçador, herança da concepção kantiana da afetividade como “câncer da razão” (SAWAYA, 2000). Na conjugação de todas essas influências temos a conclusão “lógica e natural”: as emoções não podem ter lugar na escola, a não ser na qualidade de sintomas psicopatológicos. É preciso excluí-las porque podem prejudicar o envolvimento e a concentração dos alunos na execução das atividades de estudo. Refutamos tal premissa, defendendo a necessidade de uma compreensão crítica dos fenômenos psicológicos e dos processos que os sustentam, como mediações entre a história social e a vida concreta dos indivíduos. Para a Psicologia Histórico-Cultural, existe uma relação intrínseca e de mútua determinação entre pensamentos e emoções. Os pensamentos são orientados por determinados motivos e interesses e, ao mesmo tempo, provocam reflexos na dimensão afetiva da vida psíquica (VYGOTSKY, 2003; LEONTIEV, 1978). A mediação da unidade afetivo-cognitiva está sempre presente em todas as atividades que o homem realiza e se constitui ao mesmo tempo em objeto de pensamentos e fonte de sentimentos (MARTINS, 2013). A segunda premissa, a de que as crianças que de algum modo não se adaptam à escola são portadoras de distúrbios psicológicos, é praticamente

unânime e se assenta em um conceito de normalidade muito bem definido, em relação ao qual os alunos identificados como problemáticos divergem no todo ou parcialmente. Como analisa Costa (1984), a sociedade decide pela normalidade ou anormalidade dos indivíduos tendo como parâmetro uma “norma psicológica” constituída por um conjunto de características previamente definidas como saudáveis. Esta norma social fornece os elementos que configuram o “tipo psicológico ordinário”, em outras palavras, o sujeito que pode ser considerado normal. Para que exista o normal, faz-se necessário demarcar com clareza os comportamentos desviantes. Ao nos depararmos com a anormalidade e a imperfeição do outro, estamos confirmando nossa normalidade. Como indica Goffman (1982), esse processo de “confirmação” da normalidade por meio da exposição do que não é normal já ocorria na Grécia antiga. Os gregos costumavam marcar o corpo dos escravos, criminosos ou traidores com sinais feitos com cortes ou fogo. Esses sinais corporais depreciativos foram denominados “estigmas” e tinham a função de identificar publicamente indivíduos que deveriam ser evitados. Na sociedade moderna, as marcas corporais foram substituídas por outros tipos de estigmas que indicam que indivíduos ou grupos de indivíduos não podem obter plena aceitação social. Essa identificação entre normalidade social e modelos desejáveis de saúde mental é particularmente visível nos meios educacionais. Diariamente alunos são “diagnosticados” como “difíceis”, “desequilibrados”, “depressivos”, “maníacos”, “bi-polares”, “agressivos”, “introvertidos”, e muitos passam a engrossar a fila de espera para atendimento em serviços públicos de saúde em todo o país. Essas práticas, que pretensamente visam identificar e tratar alunos com problemas emocionais, fazem parte de um processo de enquadramento de comportamentos considerados desviantes, alimentado por valores excludentes e preconceituosos. Com base em extensa pesquisa empírica, Collares e Moysés (1996) evidenciaram a existência de uma ampla rede de preconceitos firmemente arraigados entre profissionais da educação e da saúde em relação aos alunos e suas famílias, especialmente os pobres e negros. Mas não são apenas essas crianças que são vítimas de preconceito. As práticas de exclusão têm se voltado também para outros grupos nas escolas públicas e privadas: os homossexuais, os gordos, os muito magros, os que apresentam alguma deficiência física ou mental, os que usam óculos, os que não se vestem com as roupas da moda etc. Enfim, todos aqueles que de algum modo não correspondem aos modelos tidos como ideais e que, por isso, são considerados diferentes ou inferiores.

Enquanto a escola reluta em incorporar as emoções, a violência explode de vários modos. Nos últimos anos, temos assistido a intensificação de práticas de intimidação entre os próprios alunos, as quais têm sido denominadas de bullying . Esse fenômeno começa a despertar atenção e deveria tornar-se objeto de estudos em uma perspectiva crítica para que não seja “incorporado” como uma expressão de tendências agressivas individuais, que levariam alguns alunos a se autoafirmarem pelo terror e pelo medo. É preciso analisar tais práticas, que provocam intenso sofrimento em suas vítimas, como produtos de um sistema educacional que possibilita a emergência e o desenvolvimento de valores desumanizadores. Crianças que não se adaptam não são necessariamente portadoras de distúrbios emocionais. Boa parte das queixas escolares poderia ser resolvida pelos próprios professores com transformações mais ou menos complexas de suas práticas em sala de aula. Obviamente, determinados conflitos psíquicos podem afetar de modo significativamente negativo a vida escolar das crianças e algumas até podem necessitar de algum tipo de atendimento psicológico. Mas é preciso analisar a relação entre a subjetividade e os mecanismos escolares com novos olhares. Com isto, queremos afirmar que a relação da escola com seus alunos pode tanto produzir ou agravar sofrimentos quanto ajudá-los a superar dificuldades. A terceira premissa assenta-se na ideia de que as escolas deveriam aprender a “administrar” as emoções com vista ao desenvolvimento da inteligência emocional dos alunos. O indivíduo inteligente emocionalmente seria aquele capaz de “adiar a satisfação, ser socialmente responsável de forma apropriada, manter controle sobre as emoções e ter uma perspectiva otimista” (GOLEMAN, 1998, p. 289). Patto (2000) desenvolve uma análise crítica desse conceito e de vários programas de “alfabetização emocional” desenvolvidos por pesquisadores americanos, evidenciando que, ao contrário do que parece, não se trata de um elogio da emoção, mas sim do elogio da razão como instrumento de adaptação das pessoas às normas sociais. Para os defensores dessa teoria, caberia à escola desempenhar um papel central: o treinamento dos “analfabetos emocionais”. Com base no ideal de uma criança alegre, extrovertida e socialmente popular, propõe-se a elaboração de programas com o objetivo de levar os alunos a desenvolverem aptidões emocionais específicas que os tornem capazes de conter emoções, controlar os impulsos e livrar-se da raiva, da preocupação e da tristeza, sentimentos vistos como negativos e improdutivos (PATTO, 2000). Os processos de biologização e psicologização na educação, embora aparentemente diversos, cumprem a mesma função ideológica: normatizar e controlar a conduta dos alunos e dar uma aparência pretensamente científica à exclusão dos que não se adaptam de algum modo. O enfrentamento do processo de medicalização Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente . ⁶

Neste texto destacamos campos nos quais o enfrentamento da medicalização tem se revelado necessário e possível: educação, psicologia, movimentos sociais e políticas públicas. Como já evidenciamos, a origem da medicalização na educação é a patologização da aprendizagem e do comportamento dos alunos, processo que só se torna possível porque temos um sistema educacional de baixa qualidade, que reproduz naquilo que lhe é próprio as injustiças e desigualdades sociais. A educação brasileira tem excluído sistematicamente crianças e jovens pobres. A falta de oportunidades de acesso, característica dos primeiros tempos, deu lugar, mais adiante, a elevados níveis de evasão e repetência, expressivos da desigualdade de condições de permanência em nossas escolas. Atualmente, a mesma exclusão se revela de modo bastante perverso: a permanência nos bancos escolares por longos períodos de tempo, de crianças e jovens que nunca chegam a se apropriar de fato dos conteúdos escolares. (MEIRA, 2011). Esse processo de “exclusão do interior” garante a manutenção da exclusão dos mais pobres e se apresenta como uma das formas contemporâneas importantes de produção da miséria social (BOURDIEU, 1997). Assim, o efetivo enfrentamento da medicalização exige a garantia do direito universal à educação de qualidade, pública, laica, gratuita em escolas capazes de ensinar bem e respeitar a diversidade humana. É preciso lutar para que as escolas tenham plenas condições de cumprir sua finalidade social, qual seja, produzir em cada indivíduo singular de forma direta e intencional a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens (SAVIANI, 2003). Essa é uma tarefa complexa, que requer a garantia das condições objetivas adequadas, a articulação de projetos políticos pedagógicos consistentes por meio de processos de gestão democrática e coletiva e gestados em um ambiente de relações sociais humanizadoras, e a valorização do trabalho dos professores. Os professores são os elementos mediadores fundamentais desse encontro entre os indivíduos e os conhecimentos historicamente acumulados convertidos em saberes escolares e precisam estar preparados para compreenderem que o ensino determina o desenvolvimento psíquico dos alunos e que seu papel é o de ensinar o que eles não são capazes de aprender por si mesmos, intervindo principalmente na formação dos processos psicológicos superiores (FACCI, 2004). Professores que mantêm uma relação consciente e reflexiva quanto aos processos e fundamentos educacionais, pedagógicos e psicológicos envolvidos em seu trabalho, utilizando as teorias como “ferramentas prático-intelectuais” (ROSLLER, 2003, p. 269) são os verdadeiros protagonistas na luta contra a medicalização. Além de práticas pedagógicas não excludentes, de alta qualidade e eficiência, eles podem trazer respostas para questões cruciais: quais os efeitos da medicalização na vida escolar de uma criança? Quando uma criança é tratada com medicamentos por causa de dificuldades escolares algo melhora? O que e quanto melhora? Como a escola pode acompanhar o tratamento de alunos que já estão medicalizados, atuando em parceria com profissionais da saúde? De que maneira os diagnósticos de transtornos auxiliam o trabalho do professor? Quais os efeitos nocivos desse

tipo de tratamento? Como a escola pode garantir que os alunos de fato aprendam e superem o rótulo de incapazes? Como a escola se coloca a favor da retirada da questão do não aprender do campo da saúde e da doença para trazê-la para o campo da educação e da vida? A Psicologia também pode ter um papel relevante para a desmedicalização, especialmente no que se refere à contribuição dos conhecimentos psicológicos para a melhoria do trabalho educativo. Conforme aponta Antunes (2003), a Psicologia tornou-se parte constitutiva do pensamento educacional brasileiro. Por isto, é possível localizar com maior ou menor grau de clareza a presença de variados conceitos psicológicos em todos os ideários pedagógicos que vêm orientando práticas e propostas educacionais ao longo da história. Entretanto, essa relação estreita nem sempre produziu efeitos positivos. Ao contrário, contribuiu de modos diretos e indiretos para a disseminação de análises psicologizantes dos fenômenos educacionais. Em meados da década de 1980, o trabalho de Maria Helena de Souza Patto deu início a um movimento de crítica a esse modelo tradicional. As produções do início da década de 1990 (PATTO, 1990, 1992) estabeleceram as bases necessárias à problematização das condições sociais e escolares implicadas na produção e manutenção do fracasso escolar. Embora essa nova concepção não tenha se estendido para o conjunto dos psicólogos e nem tenha até hoje se tornado hegemônica, representou um avanço significativo e orientou inúmeros estudos e pesquisas. Já temos acumulado muitas reflexões interessantes provenientes de diferentes correntes teóricas. Neste trabalho destacaremos alguns estudos críticos acerca do processo de formação dos indivíduos e das relações entre ensino, desenvolvimento e aprendizagem orientados pela Psicologia HistóricoCultural de L. S. Vygotsky. Tais estudos tratam de temas importantes para a educação escolar: relações entre desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar (DUARTE, 1993; MARTINS, 2013; FACCI, TULESKI, BARROCO, 2009; MEIRA, 2007; TANAMACHI, 2007; FACCI, 2007); relações entre motivos e sentido pessoal (ASBAHR & MEIRA, 2014; PASQUALINI, 2010); desenvolvimento da atenção (LEITE, 2010, 2015; LEITE & SOUZA, 2014; LEITE & TULESKI, 2011; EIDT, TULESKI, FRANCO, 2014; LUCENA, 2016); atividade de estudo e atividade pedagógica (ASBAHR, 2005, 2011, 2016; MAGALHÃES & MESQUITA, 2014); periodização do ensino (PASQUALINI, 2009; FACCI, 2004; LAZARETTI, 2011; MARTINS, ABRANTES, FACCI, 2016).

Fundamentados nos pressupostos de que o desenvolvimento humano é um processo histórico-social que ocorre por meio de processos de objetivação e apropriação da cultura acumulada pelo gênero humano e que as funções psicológicas superiores se constituem no seio da atividade social dos indivíduos (VYGOTSKY, 1977, 1995, 1997, 2000, 2001; LEONTIEV, 1978; LURIA, 1991; DAVIDOV, 1988; ELKONIN, 1987), estes estudos evidenciam que, para oferecer as mediações adequadas que garantam aprendizagens efetivas, as práticas pedagógicas devem se voltar para a zona de desenvolvimento próximo, proximal ou imediato dos alunos, considerando a estrutura da atividade principal de cada período, de forma a possibilitar que os alunos construam permanentemente motivos e necessidades de aprendizagem e desenvolvam funções psicológicas superiores. Destacamos especialmente os estudos que esclarecem que a atenção voluntária não é uma função meramente biológica, mas uma função psicológica superior a ser desenvolvida. Essas produções contribuem de forma muito direta para trazermos o desafio do enfrentamento da medicalização, especialmente no que se refere ao tratamento de crianças com diagnóstico de TDAH para o seu lócus verdadeiro: o campo da educação escolar e das práticas pedagógicas comprometidas com a socialização do saber historicamente acumulado (ASBAHR & MEIRA, 2014; SOUZA, 2014). No município de Bauru, a parceria de docentes do curso de Psicologia da Unesp com a Secretaria da Educação de Bauru produziu duas propostas pedagógicas para a rede pública municipal, inteiramente fundamentadas na Psicologia Histórico-Cultural e na Pedagogia Histórico-Crítica: Proposta Pedagógica da Educação Infantil (PASQUALINI & TSUHARO, 2016) ⁷ e o Currículo Comum para o Ensino Fundamental Municipal (ASBAHR, FANTIN, MESQUITA, 2016). ⁸ Para finalizar, trataremos dos movimentos sociais e das políticas públicas No Brasil, a mobilização social com vistas à crítica da medicalização vem sendo conduzida por dois movimentos sociais organizados: o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e o Despatologiza – Movimento pela Despatologização, os quais congregam conselhos, associações, sindicatos e entidades representativas de várias categorias profissionais, escolas e universidades, associações científicas, profissionais de várias áreas, políticos e pessoas interessadas na desmedicalização. O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, de atuação permanente, foi lançado durante o I Seminário Internacional “A Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e outros supostos transtornos”, realizado na cidade de São Paulo no período de 11 a 13 de novembro de 2010. Nesta ocasião, foi aprovado um Manifesto que apresenta os princípios fundantes do Fórum: posicionamento contrário aos processos de medicalização da vida, defesa das pessoas que vivenciam processos de medicalização; defesa dos Direitos Humanos, do Estatuto da Criança e Adolescente, do direito à educação pública, gratuita, democrática, laica, de qualidade e socialmente referenciada para todas e todos, do direito à saúde e ao Sistema Único de Saúde (SUS) e seus princípios; respeito à diversidade e à singularidade, em especial, nos processos de aprendizagem; valorização da compreensão do

fenômeno medicalização em abordagem interdisciplinar e da participação popular. ⁹ Em 2017, militantes do Despatologiza de vários estados do país reunidos em Campinas lançaram o documento Por Vidas Despatologizadas – Carta de Campinas , reafirmando os seguintes princípios que norteiam o movimento: combater a patologização e a judicialização da vida; enfrentar desigualdades, preconceitos e discriminações; afirmar as diferenças entre as pessoas como um valor essencial da vida; defender os direitos humanos, a democracia, a equidade e a justiça social; produzir e divulgar conhecimentos e ações despatologizantes. ¹⁰ Esses movimentos têm buscado importantes parcerias com gestores públicos em nível municipal, estadual e federal nas áreas da educação e saúde. Os resultados dessa mobilização já se fazem sentir. De acordo com levantamento feito pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade entre os anos 2015 e 2016, foram produzidos cinco documentos importantes que se inscrevem nessa direção não medicalizante: ¹¹ • Recomendação nº 19 do Conselho Nacional de Saúde de 2015 , que recomenda ao Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais por meio do Conselho Nacional das Secretarias Estaduais de Saúde e Secretarias Municipais, por meio do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde, a promoção de práticas não medicalizantes por profissionais e serviços de saúde, bem como recomenda a publicação de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para prescrição de metilfenidato, de modo a prevenir a excessiva medicalização de crianças e adolescentes. ¹² • Recomendações do Ministério da Saúde para adoção de práticas não medicalizantes e para publicação de protocolos municipais e estaduais de dispensação de metilfenidato para prevenir a excessiva medicalização de crianças e adolescentes (2015) . Nesse documento, as Coordenações Gerais de Saúde da Criança e Aleitamento Materno, Saúde dos Adolescentes e dos Jovens e a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde recomendam que estados e municípios publiquem protocolos de dispensação de metilfenidato, seguindo recomendações nacionais e internacionais para prevenir a excessiva medicalização de crianças e adolescentes. ¹³ • Ofício Circular nº 01/2016 , de 17 de fevereiro de 2016. A Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão), por meio desse ofício, encaminhou aos secretários estaduais/municipais de Educação de todo o país as Recomendações do Ministério da Saúde para adoção de práticas não medicalizantes e para a adoção de protocolos estaduais e municipais de dispensação do metilfenidato na perspectiva de prevenir e combater a excessiva medicalização de crianças e adolescentes . O documento destaca que situações de natureza pedagógica e/ou social não devem ser confundidas com distúrbios, transtornos ou doenças. ¹⁴ • Resolução nº 177, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, de 11 de dezembro de 2015 . Dispõe sobre o direito da criança

e do adolescente de não serem submetidos à excessiva medicalização, assegurando-lhes o direito à proteção integral, particularmente ao acesso a alternativas não medicalizantes para seus problemas de aprendizagem, comportamento e disciplina que levem em conta aspectos pedagógicos, sociais, culturais, emocionais e étnicos, e que envolvam a família, profissionais responsáveis pelos cuidados de crianças e adolescentes e a comunidade. ¹⁵ • Relatório 2016 – Subcomissão Medicalização (Câmara Municipal de São Paulo), 2016. A instalação da “Subcomissão de Medicalização da Vida Cotidiana no Campo da Educação e Sociedade” da Comissão de Saúde, Promoção Social, Trabalho e Mulher da Câmara Municipal de São Paulo decorreu de manifestações de várias entidades das áreas de Educação, Psicologia e Fonoaudiologia, que compõem o Fórum sobre Medicalização da Educação e que se posicionaram contrariamente à criação do “Programa de Identificação e Tratamento da Dislexia na Rede Municipal de Ensino” (o projeto de lei que criaria tal programa estava em tramitação em 2015). Este documento relata as oito reuniões técnicas organizadas pela Subcomissão da Medicalização com o apoio do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, do Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo e do Grupo Interinstitucional Queixa Escolar e das Secretarias Municipais de Saúde e Educação de São Paulo. • Destacamos ainda a Ata da XXVI Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos (RAADH – MERCOSUL/XXVI RAADH/P. REC. No 01/15 (Brasília, 6 de julho de 2015). Nesta reunião, foram indicadas duas importantes medidas: a articulação entre as autoridades para o estabelecimento de diretrizes comuns capazes de prevenir a excessiva medicalização de crianças e adolescentes e a construção de protocolos nacionais sobre o tema, com a participação de instâncias multidisciplinares, interministeriais, acadêmicas e da sociedade organizada, sob liderança dos respectivos Ministérios da Saúde, em conformidade com a perspectiva de garantia de direitos de crianças e adolescentes. ¹⁶ Em atendimento à recomendação presente em todos esses documentos, vários municípios implementaram protocolos de dispensação de metilfenidato, entre os quais Campinas/SP (município pioneiro) e São Paulo/ SP. ¹⁷ Esses protocolos são importantes porque exigem processos de avaliação e diagnósticos mais rigorosos e definem idades mínimas (8 anos, no caso de Campinas, e 7, no caso de São Paulo); doses e duração do tratamento, fluxo de dispensação (após indicação de uma equipe multidisciplinar, a dispensação do medicamento é autorizada pelo prazo máximo de seis meses) e fluxo de acompanhamento (existe a exigência do acompanhamento do paciente por equipe multiprofissional com apresentação regular de relatórios e laudos). Antes do início do tratamento são solicitados vários exames médicos e, o mais importante, são estabelecidos critérios um pouco mais claros de inclusão e exclusão. No caso do município de Campinas, são considerados critérios de exclusão: dificuldade de aprendizagem exclusiva, dificuldades de escolarização decorrentes de má adaptação escolar, projeto pedagógico não singularizado, relação professor(a)-aluno(a) inadequada, propostas de reforço de atividades que expõem a dificuldade criança/adolescente diante dos demais colegas,

gerando discriminação e maus tratos entre pares , ansiedade, depressão e/ ou antecedente familiar de depressão grave, hipertensão arterial sistêmica, doença cardiovascular, transtorno afetivo bipolar ou outros transtornos psiquiátricos primários, transtorno mental orgânico, psicose e/ou antecedente familiar de psicose, alterações da tireoide, glaucoma e/ou antecedente familiar de glaucoma, dependência de álcool e substâncias psicoativas, ou sintomas secundários a fatores ambientais, crianças e adolescentes em uso de medicações que interagem com a farmacocinética do metilfenidato, ausência de benefício após três meses do início do tratamento (grifos nossos). Embora existam muitas limitações nos protocolos, especialmente no que diz respeito a definições mais precisas em relação ao acompanhamento da vida escolar das crianças e jovens, neste momento, eles representam uma possibilidade concreta de redução significativa da administração de medicamentos como Ritalina®, RitalinaLA® e Concerta®. Destacamos ainda que, nos últimos anos, pelo menos sete municípios brasileiros instituíram o dia municipal contra a medicalização da educação e da sociedade: São Paulo-SP (2012), Santos-SP (2012), Campinas-SP (2013), Varginha-SP (2014), Salvador-BA (2015), Sorocaba-SP (2015) e Montes Claros-MG (2016). Em 2015 o estado de São Paulo instituiu o Dia Estadual de Luta contra a Medicalização. Os movimentos brasileiros estão se expandindo e conquistado parcerias importantes com movimentos de outros países, como o argentino Forumadd ¹⁸ e o Coletivo Pasde0deConduit ¹⁹ , com sede em Paris, ambos formados por médicos, psicólogos e outros profissionais da área da saúde. Em 2011, o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e o Forumadd elaboraram em conjunto a Carta sobre Medicalização da Vida ²⁰ durante o II Seminário Internacional A Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e Outros Supostos Transtornos. ²¹ Esse documento reafirma a crítica acerca da multiplicidade de rótulos psicopatológicos e de terapêuticas medicamentosas sustentados na utilização ilegítima dos avanços das neurociências e defende a produção de diagnósticos fundados em análises detalhadas do que o sujeito diz, de suas produções e de sua história. Outro importante movimento é a Luta Antimanicomial, que foi articulada durante o I Encontro de Trabalhadores de Saúde Mental ocorrido em Bauru em dezembro de 1997. Neste evento, foi elaborada a Carta de Bauru , ²² a qual questionava de modo contundente a política manicomial hegemônica até aquele momento. As pressões para que o Estado desenhasse uma nova política de saúde mental produziram importantes avanços, como o projeto de lei proposto pelo deputado federal Paulo Delgado (PT-MG) visando o impedimento de construção de novos hospícios e o fim das internações compulsórias; a Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216/2001), aprovada em 2001, que serviu para construir um novo modelo de tratamento de pacientes criando Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência, Centros de Atenção Psicossocial (os Caps); a Lei 10.708/2003, que inaugurou o Programa De Volta Para Casa (PVC), que busca acompanhar e reintegrar pacientes à vida social. Além disso, foram desenvolvidos inúmeros

projetos de arte, cultura, economia solidária, geração de trabalho e renda e protagonismo com usuários de serviços de saúde mental. Em dezembro de 2017 um novo grande encontro foi realizado em Bauru. Participaram entidades, movimentos, militantes, profissionais de saúde, usuários e familiares. Uma das principais atividades realizadas foram as rodas de conversa, cujo objetivo era avaliar e refletir sobre desafios e estratégias de luta e resistência. Foram discutidos muitos temas, entre eles a medicalização da sociedade. A Carta Bauru – 30 anos ²³ posiciona o movimento em favor do fortalecimento das políticas públicas, do SUS e da luta antimanicomial e esclarece que para construirmos uma sociedade sem manicômios é preciso combater a lógica manicomial que invade todos os espaços do viver. Muitas são as frentes de luta destacadas, entre elas o cuidado com a infância e a juventude e o devido enfrentamento da medicalização das crianças e da criminalização dos jovens (grifos nossos). Também é possível observar avanços na produção de conhecimentos voltados para a crítica da medicalização. Entre os documentos já produzidos destacamos os seguintes: as Referências teóricas e práticas (incorpora todos os trabalhos apresentados durante o VI Encontro Despatologiza promovido pelo Despatologiza – Movimento pela despatologização em 2016 ²⁴ ); o Dossiê sobre Medicalização da Educação e da Sociedadedicalização da Educação e da Sociedade (produzido pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade para sensibilizar o Legislativo, o Executivo e gestores públicos e privados ²⁵ ; e a Nota Técnica: O Consumo de Psicofármacos no Brasil. Dados Do Sistema Nacional De Gerenciamento De Produtos Controlados Anvisa (2007-2014) (documento elaborado pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade que demonstra a tendência crescente tanto da venda em farmácias, quanto da compra e dispensação do medicamento Cloridrato de Metilfenidato pelo sistema público de saúde em todas as regiões do país) ²⁶ . Um aspecto extremamente importante nesses movimentos é a participação de médicos que refutam o papel normatizador da medicina sobre a vida das pessoas e as alianças com a indústria farmacêutica e defendem a necessidade de garantir a qualidade da atenção à saúde para toda a população. Médicos como Maria Aparecida Affonso Moysés ²⁷ , Paulo Amarante ²⁸ , Roberto Tykanori ²⁹ e Pedro Tourinho ³⁰ são exemplos da possibilidade da parceria imprescindível com a medicina na luta contra a medicalização da educação e da sociedade. Nas universidades de todo o país também tem aumentado o número de estudos críticos sobre a medicalização, notadamente nas áreas da Educação e Psicologia. Destacamos o trabalho desenvolvido na Universidade Estadual de Maringá (UEM) no projeto de pesquisa O Retrato da Medicalização da infância no Estado do Paraná , coordenado pela professora doutora Silvana Calvo Tuleski, que objetiva o levantamento de dados sobre a quantidade de crianças de 0 a 10 anos, matriculadas na rede pública municipal de ensino no estado do Paraná (Educação Infantil e Primeiro Ciclo do Ensino Fundamental), que tenham algum diagnóstico de transtorno de

aprendizagem e que façam uso de medicamentos. O projeto conta com a participação de pesquisadores de diversas instituições de ensino superior (UEM, UEL, UEPG, Unespar, Unioeste), além de discentes de graduação e pós-graduação. Participam vários municípios do estado do Paraná. Além da necessária socialização dos resultados da pesquisa nos meios científicos, o projeto prevê a devolução dos resultados das pesquisas aos Núcleos e Municípios envolvidos e a organização de Fóruns nos municípios participantes, objetivando a promoção de um espaço de reflexão e instrumentalização dos profissionais de educação, saúde e assistência social, além da elaboração de materiais didáticos e informativos (COLAÇO, 2016). Na contramão desse processo, o Observatório de Políticas Públicas do Fórum sobre Medicalização ³¹ detectou a existência de 18 proposições com viés medicalizante no período de 2003 a 2011 na Câmara Federal, no Senado Federal, na Câmara Municipal de São Paulo e na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, oriundas de diferentes legendas partidárias, que visam à criação de serviços, convênios ou programas de diagnóstico e tratamento de supostos transtornos, com destaque para a dislexia e o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Tais projetos buscam inserir no campo da educação ações que são prerrogativa da área da saúde ou de políticas intersetoriais. Deste modo, não contribuem para a melhoria da educação e abrem ainda mais espaços para a expansão da medicalização. Apesar das conquistas, é preciso ter claro que o golpe político de 2016 provocou, entre outras consequências danosas, a redução de recursos para as políticas públicas sociais, a perda de direitos e a exacerbação da privatização. Por isso, é fundamental manter viva a força dos movimentos sociais porque eles são capazes de levar essas reflexões para toda a sociedade. A participação coletiva é condição fundamental para a articulação permanente de políticas públicas capazes de conter o processo de medicalização, colocar em discussão novas práticas profissionais no campo da educação e da saúde e contribuir para a melhoria da educação escolar. Considerações finais A educação não apenas influi em alguns processos de desenvolvimento, mas reestrutura as funções do comportamento em toda sua amplitude . ³² Enfrentar a medicalização da e na educação com vigor, lucidez e firmeza é um imperativo. É preciso construir conhecimentos teóricos críticos e práticas profissionais contextualizadas nas áreas da educação e saúde, fortalecer os movimentos sociais e articular políticas públicas desmedicalizantes, mas, acima de tudo, é preciso um esforço de toda a sociedade na direção da construção de um sistema educacional de qualidade. A educação escolar é condição fundamental para que as novas gerações se apropriem das expressões mais desenvolvidas da cultura humana que são

decisivas para o desenvolvimento intelectual, já que o antecipa, atuando em áreas nas quais as possibilidades da criança ainda não estão inteiramente organizadas. A medicalização aprisiona essas possibilidades de desenvolvimento e representa uma ameaça concreta para crianças e jovens. Uma escola não excludente é o verdadeiro antídoto para a medicalização porque não patologiza, não busca eliminar a diversidade, ensina a todos e a cada um de acordo com suas possibilidades, sempre com vista ao máximo desenvolvimento possível, propicia vivências capazes de produzir novos sentidos, socializa conhecimentos que fazem parte do patrimônio humano genérico e potencializa o desenvolvimento de valores éticos. Em tempos sombrios de cinismo, desesperança, retrocessos e regressão a formas inaceitáveis de censura, intolerância e exclusão, não podemos abrir mão de lutar pela formação de homens capazes de pensar criticamente, sentir humanamente e agir eticamente. Marisa Eugênia Melillo Meira Psicóloga, doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Docente aposentada do curso de graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Bauru. Referências: AMARANTE, P.; FREITAS, F.. Medicalização em Psiquiatria . Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015. ANGELL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos . Rio de Janeiro: Record, 2010. ANTUNES, M. A. M. Psicologia e Educação no Brasil: um olhar históricocrítico. In: MEIRA, M. E. M.; ANTUNES, M. A. M. Psicologia Escolar: Teorias Críticas . São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 139-178. ASBAHR, F. S. F. A pesquisa sobre a atividade pedagógica: contribuições da teoria da atividade. Revista Brasileira de Educação , Rio de Janeiro, RJ, n. 29, p. 108-118, mai/jun/jul., 2005. ASBAHR, F. S. F. “Por que aprender isso, professora?” Sentido pessoal e atividade de estudo na Psicologia Histórico-Cultural. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. ASBAHR, F. S. F.; FANTIN, F. C. B.; MESQUITA, A. M.. Currículo Comum para o Ensino Fundamental Municipal . Bauru: Secretaria Municipal de Educação de Bauru, 2016.

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⁹ Disponível em < http://medicalizacao.org.br/manifesto-do-forum-sobremedicalizacao-da-educacao-e-da-sociedade/ >. Acesso em 11 out 2019. ¹⁰ Disponível em < https://docs.wixstatic.com/ugd/ f07548_172e626c1ffb468ab6752a869b12885b.pdf >. Acesso em 11 out 2019. ¹¹ Disponível em < http://medicalizacao.org.br/oficios-e-legislacoes-naomedicalizantes/ >. Acesso em 11 out 2019. ¹² Disponível em: < http://medicalizacao.org.br/resolucao-do-conselhonacional-da-saude-csn-para-a-promocao-de-praticas-nao-medicalizantes/ >. Acesso em 11 out 2019. ¹³ Disponível em: < http://medicalizacao.org.br/ministerio-da-saude-publicarecomendacoes-sobre-o-uso-abus0ivo-de-medicamentos-na-infancia/ >. Acesso em 11 out 2019. ¹⁴ Disponível em: < http://medicalizacao.org.br/mec-envia-recomendacoesdo-ms-para-adocao-de-praticas-nao-medicalizantes/ >. Acesso em 11 out 2019. ¹⁵ Disponível em: < http://medicalizacao.org.br/conanda-publica-resolucaoalertando-os-perigos-da-medicalizacao-na-infancia-e-adolescencia/ >. Acesso em 11 out 2019. ¹⁶ Disponível em: < http://compromissoconsciente.blogspot.com.br/2015/07/ medicalizacao-de-criancas-mercosul-ata.html >. Acesso em 11 out 2019. ¹⁷ Os protocolos de Campinas e São Paulo estão disponíveis respectivamente em < http://www.saude.campinas.sp.gov.br/assistfarmaceutica/ ProtocoloMetilfenidato.pdf>; e < http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/ secretarias/negocios_juridicos/cadlem/integra.asp? alt=12062014P%20009862014SMS >. ¹⁸ < http://www.forumadd.org.br>. ¹⁹ < http://www.pasde0deconduite.org>. ²⁰ Disponível em: < http://medicalizacao.com.br/carta-sobre-medicalizacaoda-vida >. ²¹ O seminário encontra-se na íntegra no site http://medicalizacao.com.br ²² Disponível em < http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/ manifesto-de-bauru.pdf >. ²³ Disponível em: < http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/ manifesto-de-bauru.pdf >. ²⁴ Disponível em: https://www.despatologiza.com.br/referencias-teoricas-epraticas.

²⁵ Disponível em: http://medicalizacao.org.br/dossie-sobre-medicalizacao-daeducacao-e-da-sociedade /. ²⁶ Disponível em: < http://medicalizacao.org.br/book-review/nota-tecnica-oconsumo-de-psicofarmacos-no-brasil-dados-do-sistema-nacional-degerenciamento-de-produtos-controlados-anvisa-20 >. ²⁷ Maria Aparecida Affonso Moysés é professora titular no Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e militante do Despatologiza. ²⁸ Paulo Amarante é médico psiquiatra, professor-titular no Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da UNSP/ Fiocruz. ²⁹ Roberto Tykanori foi secretário de Saúde de Santos (a primeira cidade do país sem manicômio), coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde. Militante da Luta Antimanicomial, atualmente, é médico da Prefeitura Municipal de Santos e professor adjunto na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). ³⁰ Pedro Tourinho é médico com residência em Medicina Preventiva e Social, pós-graduado pela Unicamp. Atuou como médico da família, está no segundo mandato como vereador no município de Campinas e é militante do Despatologiza. ³¹ O objetivo desse observatório é listar, monitorar e sensibilizar a opinião pública em relação aos Projetos de Lei e iniciativas do setor público que tenham viés medicalizante e reducionista e que não respeitem a pluralidade nos processos de aprendizagem e da vida. Disponível em: http:// medicalizacao.org.br/observatorio-de-politicas-publicas />. ³² Vygotsky (2004, p. 99). X MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA À MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA: BRASIL E FRANÇA Andreia Mutarelli Marilene Proença Rebello de Souza Sozinho, é difícil de lutar em todas estas frentes, e tudo é feito para que cada um fique isolado na massa anônima. A única resposta é construir o “coletivo” e desenvolver todas as formas possíveis de resistência às normas no momento em que elas

pervertem as finalidades das profissões e as transformam em instrumentos de controle social ou em moléculas de propaganda, e que elas modificam suas significações antropológicas. É em um coletivo, qualquer que seja ele, que se deve insistir em construir essas formas de resistência . ¹ Introdução Este capítulo toma por objeto de estudo movimentos sociais que se organizaram no Brasil e na França visando a crítica e o enfrentamento dos processos de medicalização, com ênfase nas questões de comportamento e de aprendizagem. Esse enfrentamento centra-se na constituição de coletivos, com formatos específicos em cada um dos países. Cada um dos coletivos tem uma história de organização e de proposta de enfrentamento à medicalização da infância, com reconhecimento nacional e internacional. Apresentaremos cada um desses coletivos, com destaque para a origem, o modo de organização, as publicações, os principais pontos de discussão e reflexão e a análise do manifesto de cada um desses grupos. Consideramos que se tratam de importantes dispositivos políticos de mobilização, denúncia, apresentação de propostas de enfrentamento e que têm instaurado de maneira ampla o debate sobre o tema, principalmente nas áreas de saúde, educação e serviço social. A medicalização e a patologização da educação e da sociedade inserem-se em um conjunto de práticas sociais nas quais questões humanas, sociais, culturais e políticas são transformadas em patologias, doenças, distúrbios ou em transtornos cujos diagnósticos têm origem no campo “psi” ou médico, centrados em hipóteses meramente biológicas ou orgânicas, reduzindo a esses campos situações complexas, multideterminadas, de diversas matizes e origens. (Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Socieade, 2010). Mas, ao mesmo tempo em que temos essa compreensão sobre o processo de medicalização e de patologização da infância, vemos, diariamente, boa parte da população encaminhando seus filhos a atendimentos médicos e/ou psicológicos, com vista a atender à solicitação dos professores, desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental, em virtude de comportamentos considerados inadequados ou insuficientes para a aprendizagem da leitura, da escrita, do cálculo apresentados por esses estudantes nas escolas. Tendo essa definição como referência, consideramos que nenhum pai/mãe se verá como alguém que medicaliza uma criança desatenta ou agitada ao levar seu filho ao médico e receber do médico uma prescrição de metilfenidato. Esses pais procedem dessa forma e desconhecem o fato de que, ao pensar na medicação como alternativa para a escolarização de seu filho, estão tornando uma problemática multideterminada em uma explicação exclusivamente biológica. Para esses pais, eles estão fazendo o movimento de cuidar de seu filho: esse é o sentido de levá-lo ao médico, para buscar ajuda para o seu comportamento na escola. No entanto, a situação descrita

pode ser considerada uma situação de medicalização. Assim, há a possibilidade de haver medicalização em uma mesma circunstância em que o objetivo seja o cuidado. Portanto, também podemos pensar a medicalização enquanto uma forma de cuidado que algumas vezes restringe as possibilidades de realização da condição humana e, em outras vezes, pode ampliar suas possibilidades. Um exemplo desse fato pode ser verificado quando houve a Lepra e posteriormente Peste Negra, no século XVIII, em que as cidades foram reorganizadas de acordo com o saber médico com o objetivo de diminuir o contágio da população, controlando a epidemia; ou seja, a medicalização da cidade ampliou o limite da vida de seus habitantes (FOUCAULT, 1988). Então, como entender movimentos de resistência à medicalização? Que aspectos deveremos considerar para compreender esse fenômeno social, a medicalização, e buscar estratégias de superação? Desse modo, as diversas resistências à medicalização são complexas e focaremos, neste capítulo, na resistência realizada por meio da constituição do que se denomina “coletivos”, isto é, grupos de estudiosos, militantes, interessados no tema, que se propõem a tomar para si o compromisso com a discussão da medicalização, com o objetivo de melhor entender esse fenômeno social, propondo estratégias para seu enfrentamento e alternativas para sua superação. A medicalização tem como uma de suas principais características o processo de individualização das problemáticas coletivamente produzidas. Assim, a constituição de coletivos é um dispositivo de resistência que faz questões consideradas individuais serem pensadas politicamente, ou seja, as práticas sociais propostas pelos coletivos são o oposto da lógica da medicalização, que centra-se nas explicações para as dificuldades escolares e das relações sociais como sendo questões individuais ou biológicas. Veremos, neste capítulo, alguns movimentos que se organizaram no Brasil e na França visando a crítica e o enfrentamento dos processos de medicalização vigente. No caso brasileiro, apresentamos as ações do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, coletivo formado por entidades, movimentos e pessoas que têm interesse no tema e afinidade com os objetivos do Fórum, congregando em torno de 40 entidades de cunho internacional, nacional e regional, com 24 núcleos em cidades brasileiras, cobrindo todas as regiões: Norte, Sul, Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste. No caso francês, centramonos em três grupos organizados que se destacam, a saber: Pas de Zéro de Conduite pour les enfants de trois ans ² ; L’Appel des Appels ³ e Stop DSM ⁴ . Cada um dos coletivos tem propostas de enfrentamento à medicalização da infância, formando uma rede nacional e internacional. Destacamos a origem, o modo de organização, as publicações, os principais pontos de discussão e reflexão e os modos de enfrentamento à medicalização que se tornaram possíveis nesses coletivos. Origem e manifestos Os quatro coletivos foram originados entre 2006 e 2011 e nasceram da busca por uma mudança de curso dos acontecimentos que tinham a tendência a uma padronização e objetificação dos fenômenos humanos.

Todos eles possuem um manifesto fundador, no qual se posicionam contra uma determinada situação, sendo esta uma forma de enfrentamento opositiva, e também realizam uma resistência positiva afirmativa, revelada nas suas proposições e criações que fortalecem outras tendências que não a que se estava realizando hegemonicamente. O coletivo Pas de Zéro de Conduite (PDC) foi originado por um grupo de profissionais da saúde infantil em 2006, tendo como objetivo barrar um projeto de lei que previa a detecção precoce do transtorno de conduta em crianças, a partir de 3 anos de idade, a fim de prevenir o risco de delinquência juvenil a posteriori (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2011). Tal projeto se fundamentou em uma pesquisa promovida pelo Institut National de la Santé et de la Recherche Médical ⁵ (INSERM) publicada no ano de 2005 sobre o Transtorno de Conduta em crianças. Trata-se de uma metanálise que apresenta como resultado a presença de uma correlação entre as “dificuldades psíquicas da criança e uma evolução em direção à delinquência” (SUESSER, 2011, p. 7, tradução nossa). Com base nessas conclusões, o Transtorno de Conduta deveria, então, ser prevenido por meio da detecção precoce de seus sinais e sintomas comportamentais como a frieza emocional, impulsividade, intolerância à frustração etc., de modo que a delinquência na adolescência fosse prevenida (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2011) . Os profissionais designados para realizar essa detecção foram os que se mobilizaram para formar o coletivo de resistência. O grupo denunciou a deturpação da prática e da ética que esse projeto de lei acarretava para os profissionais da infância (DELION, 2012a). As crianças selecionadas em uma primeira avaliação seriam submetidas a “uma bateria de testes elaborados sob a base das teorias da neuropsicologia comportamentalista, as quais permitiriam identificar todo desvio de uma norma estabelecida de acordo com os critérios da literatura científica anglo-saxônica” (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2011, p. 18, tradução nossa). Com a confirmação dos testes, o tratamento poderia ser iniciado: terapias de abordagem comportamental e tratamento médico adequado para o quadro estariam assegurados, tendo em vista a prevenção do Transtorno de Conduta e a delinquência juvenil. Em seu manifesto, o coletivo centra seus argumentos contra o projeto de lei na crítica a essa pesquisa que o sustenta teoricamente e amplia essa crítica em suas publicações posteriores, elucidando os fundamentos com os quais não concordam. De maneira geral, o grupo critica uma compreensão determinista e reducionista dos fenômenos humanos, que tem como princípio a linearidade e a causalidade, e aponta que é por meio desse tipo de compreensão que se funda o modelo preditivo, que prevê e pressagia ao invés de prevenir. (MUTARELLI, 2017, p. 102) Os iniciadores desse movimento de resistência são profissionais da saúde que trabalham em serviços primários, secundários e terciários gratuitos (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2011). Em apenas dois meses, o manifesto contou com mais de 175 mil assinaturas. O grupo apresentou dois objetivos principais para o manifesto lançado: a contestação no campo científico e

profissional das premissas e dos resultados dessa metanálise realizada pelo INSERM e a denúncia da utilização dessa pesquisa pelos políticos para propor políticas públicas que se desviam de sua finalidade medicalizando problemas educativos e sociais por meio de abordagens securitárias (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2011). O manifesto desse coletivo foi direcionado à população em geral, de modo que a linguagem é forte e acessível aos cidadãos que não trabalham no campo da saúde. Os iniciadores do movimento avaliam que conseguiram tantas assinaturas em um curto período de tempo porque trataram dessa questão como uma problemática da sociedade como um todo (MUTARELLI, 2017). A notoriedade dos assinantes e das instituições que sustentaram as críticas feitas no manifesto é uma das principais forças deste para a rápida difusão de suas ideias na sociedade e tamanha adesão. Com a pressão popular do manifesto, conseguiram que o artigo sobre a detecção precoce do projeto de lei “Prevenção da delinquência” fosse retirado, que houvesse a renúncia da ideia de uma caderneta de comportamento desde o maternal e a renúncia da proposta de detecção para crianças consideradas agitadas desde 36 meses, e a promoção de um colóquio pelo INSERM para debater as questões metodológicas suscitadas por essa pesquisa (GIAMPINO, 2008). Assim como o Pas de Zéro de Conduite , o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade foi organizado, inicialmente, por um grupo de psicólogos, educadores e médicos que se reuniu para barrar um projeto de lei que propunha a contratação de equipes especialistas no diagnóstico e tratamento da dislexia para atuar nas escolas municipais diagnosticando a dislexia e dando formação a professores que também seriam responsáveis por identificar a dislexia em seus alunos (ANGELUCCI & SOUZA, 2011). Em 2007, esses profissionais escreveram um Manifesto que foi assinado por 2 mil pessoas em três meses. A mobilização se ampliou com a participação de profissionais de várias áreas, educadores, entidades acadêmicas e da sociedade civil e direcionou-se para a realização do I Seminário Internacional Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e Outros Supostos Transtornos, em novembro de 2010, em que foi fundado o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, cujo texto do manifesto foi escrito por muitas mãos e encontra-se disponível no site < www.medicalizacao.org.br>. Rapidamente o Fórum foi ampliando a participação, articulando-se nacional e internacionalmente, atuando junto com o poder público, realizando eventos, documentos e ações formativas, de esclarecimento, ocupando espaços nas mídias, em congressos, eventos em municípios, formações de profissionais, entre outros espaços. Em 2012, o Conselho Federal de Psicologia, membro do Fórum, articulou a campanha nacional “Não há medicalização da Vida” e, em seu documento de apresentação, destaca os seguintes desafios para o Fórum:

1- intervir na formulação de políticas públicas, subsidiando o embasamento em novas concepções de ser humano e de sociedade; 2- apoiar iniciativas de acolhimento e o fortalecimento das famílias, desmitificando pretensos benefícios da medicalização; 3-ampliar a compreensão sobre a diversidade e historicidade dos processos de aprendizagem e de desenvolvimento humano; 4- ampliar a produção teórica no campo da crítica à medicalização; 5- apoiar ações intersetoriais que enfrentem os processos de medicalização da vida. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2012, p. 14) Diferentemente, os coletivos Stop DSM e L’Appel des Appels lançaram seus manifestos para reivindicar condições de trabalho éticas e não em oposição a um evento específico. Esses dois grupos se focam no contexto em que esses projetos de lei surgem, de modo que as críticas dos quatro grupos convergem. Todos eles identificam o pensamento determinista e linear para pensar os fenômenos humanos, o qual está presente na imposição da utilização do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) – principal problemática tratada pelo Stop DSM – e nas relações de trabalho no neoliberalismo, que é tema de pensamento do L’Appel des Appels . O movimento Stop-DSM partiu de alguns psiquiatras psicanalistas franceses, que se uniram para escrever um manifesto reivindicando a liberdade de pensamento em seu ofício, considerando que esta é uma condição para a ética na profissão de psiquiatra. Após uma reunião nacional dos psiquiatras franceses, eles se sentiram incomodados com o crescimento da univocidade do modelo diagnóstico do DSM, que havia ganhado força quando a Organização Mundial da Saúde considerou o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) um avanço científico. “A obrigação a uma referência diagnóstica ao DSM prejudica a cientificidade; opera à revelia do tratamento psíquico; tem custo altíssimo para os Estados; e paralisa a pesquisa e o ensino” (STOP-DSM, 2016). Alertam também para a possibilidade de as instituições utilizarem esse manual como um instrumento de orçamento para os serviços em saúde mental. Em seu manifesto o grupo questiona o valor científico e clínico do DSM e expõe os efeitos do domínio deste manual no campo da saúde mental. Por fim, o grupo propõe uma abordagem voltada para o sujeito singular. O grupo foca sua luta em dar sustentação científica para a contestação da utilização do DSM, expõe as falhas de construção científica do manual e aponta que a noção de homem utilizada por ele é a de homem-máquina. Eles enfatizam que o maior benefício de se utilizar o DSM é financeiro, considerando que ele pode auxiliar no sistema de reembolso dos convênios garantindo maior reembolso para os pacientes, no entanto, a prioridade diagnóstica deixa de ser o adoecimento do paciente. Além disso, o DSM busca cumprir a função de unificar a linguagem dos psiquiatras pelo mundo para facilitar as discussões de caso e garantir uma construção de conhecimento comum. No entanto, o grupo compreende que o DSM passou a ser um instrumento de exclusão no envio de trabalhos para publicação, pois, caso o referencial utilizado não fosse o DSM, muitas vezes o trabalho era rejeitado. Desse modo a base no manual, ao invés de promover maior circulação e trocas do ponto de vista científico, bloqueia o intercâmbio entre os profissionais da saúde.

O manifesto, difundido em 2011, foi dirigido a um grupo bastante específico: os psiquiatras, de modo que o texto é grande comparativamente aos dos outros grupos e tem uma linguagem mais acadêmica e rebuscada. O grupo compreende que esse é um fenômeno global e a resistência a ele deve ocorrer também globalmente. Assim, o texto foi traduzido para oito línguas, todas as versões encontram-se no seu site. Ademais, os redatores e membros do grupo afirmam que visam a não adotar uma postura anticientífica, anticlassificatória, antimédica, anti outras abordagens que não sejam a Psicanálise. Defendem a coexistência de métodos e práticas em saúde mental, assim como os outros grupos apresentados neste capítulo. Dessa forma, contagiam o maior número de pessoas para apoiar sua causa. Eles conseguiram 3.111 assinaturas de apoio. O manifesto do coletivo L’Appel des Appels publicado em 2009 foi direcionado a todos os trabalhadores da sociedade, dando voz ao sofrimento advindo das decisões políticas centradas na produtividade e no lucro, que desconsideram as necessidades e o sofrimento dos trabalhadores, vistos como meios de produção (GORI, CASSIN, LAVAL, 2009). Roland Gori e Stefan Chedri, psicanalistas e autores do manifesto, convidam os trabalhadores a se unir pelos seus direitos e para defender o laço social que está em perigo com a concepção de homem como um ser “neuroeconômico”. Eles reivindicam melhores condições de trabalho e de vida e denunciam uma crise da civilização, em que a dimensão política está sendo desconsiderada e substituída pela tecnocratização das relações humanas. O texto do manifesto é curto e com palavras fortes. Aproximadamente 90 mil trabalhadores de diversas áreas assinaram o manifesto do L’Appel des Appels . Esse é um movimento que congrega muitos grupos de resistência difundindo suas reivindicações com mesmo direcionamento. Os manifestos que originaram cada um dos coletivos marcam o posicionamento de oposição desses movimentos e soma-se a esse posicionamento a afirmação de outro caminho possível para o que está se instituindo na realidade. A resistência é uma força que mantém uma porção constituída e outra constituinte, sendo a porção constituinte as proposições de novos caminhos dos coletivos que não deixam o movimento ser capturado e cristalizar (ROQUE, 2001). Os quatro grupos apresentam novas proposições e alguns propõem conceitos que disputarão espaço com os conceitos que criticam. Todos eles apresentam fundamentos e reflexões que respeitam o múltiplo e, desse modo, eles se afirmam também como criadores do novo, constituindo uma força que, pela existência, é resistência e varia do hegemônico. Proposições de reflexões e publicações A proposta de novos conceitos abre uma resistência no âmbito da prática profissional e também da linguagem (LIMA, 2012). O Pas de Zéro de Conduite propõe o conceito de “prevenção preveniente” para diferenciar as prevenções precoces que predizem e rotulam uma criança dos trabalhos que promovem saúde e, por isso, previnem sem que se predestine um diagnóstico. A noção de prevenção é central nas reflexões do coletivo, considerando que é neste campo que o projeto de lei se situa. O grupo de profissionais denuncia a deformação da concepção de prevenção que

observa não apenas na pesquisa do INSERM, como também em diversos outros serviços de saúde mental. A ideia de “prevenção precoce” deixa de designar uma abordagem de cuidado para um futuro sofrimento ou patologia e passa a ser sinônimo de uma preparação da criança para atingir um desenvolvimento cognitivo que permita a adaptação ao mercado de trabalho (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2013). Eles denunciam que, com esse conceito desviado dos fins de cuidado, funda-se um novo mercado lucrativo que padroniza as crianças ao invés de promover saúde (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2013). Tendo em vista a distorção da noção de prevenção, o Pas de Zéro de Conduite sugere um novo conceito que denomina “prevenção precoce preveniente”, a qual não é preditiva, e, sim, humanizante e eficaz. Esse é o principal conceito formulado pelo coletivo. Por isso, a prevenção precoce, longe de uma perspectiva utilitarista ou economista, deve trazer respostas individualizadas, respeitosas das histórias e das escolhas de vida das famílias, abertas aos efeitos do encontro e da surpresa que deixam “ lugar ao transbordamento, ao inesperado, ao projeto de liberdade para a criança” ⁶ . Portanto, visando ao desenvolvimento do pensamento e do emocional de cada criança para que ele possa inscrever livremente seus próprios desafios na sociedade de amanhã. (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2013, p. 8, tradução nossa) Diferentemente da linearidade da prevenção preditiva, o conceito de prevenção preveniente se apoia em uma perspectiva que historiciza a pessoa, sendo o desenvolvimento infantil um movimento descontínuo e composto de momentos complexos e impossíveis de serem previstos (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2012b). O coletivo desenvolve esse conceito e promove reflexão sobre a questão da prevenção e das políticas públicas para as crianças em suas publicações. Existem quatro livros publicados pelo grupo que cumprem o papel de difundir e aprofundar as ideias construídas pelos profissionais que inauguraram o coletivo que se direcionam para a prevenção preveniente. Os três primeiros livros organizados pelo coletivo apresentam diversos pontos de vista resistentes a uma prevenção preditiva e ao modo de realizar pesquisas como a do INSERM, que sustentou o projeto de lei da “prevenção da delinquência”. A primeira publicação, Pas de Zéro de Conduite pour les enfants de 3 ans! , ⁷ aconteceu no ano em que o manifesto foi lançado e que conseguiram barrar o projeto de lei, em 2006. No ano seguinte, em seu segundo colóquio Enfants Turbulents: l’enfer est-il pavé de bonne prévention? ⁸ , o tema da prevenção na infância e os desdobramentos dessa ideia foi central e originou o segundo livro do grupo, publicado em 2008, que recebeu o mesmo título do colóquio. Em 2011, o coletivo publicou seu terceiro livro, Les Enfants au carré? Une prévention qui ne tourne pas rond! ⁹ . Nessas obras, eles apresentam as diversas nuances da proposta de prevenção que vêm sendo indicadas para as crianças em políticas públicas e no campo da saúde. A quarta publicação La prévention prévenante en action , ¹⁰ lançada em 2012, dá foco às proposições práticas. Nela, 40 serviços provenientes de diferentes setores associativo, público ou privado se apresentaram com um breve texto indicando seus objetivos e o direcionamento para uma prevenção preveniente na primeira infância (PAS DE ZÉRO DE CONDUITE, 2012b). Esse foi um marco importante para o Pas

de Zéro de Conduite , pois fortaleceu a rede entre os serviços que haviam assinado o manifesto, favorecendo a troca entre as organizações. Na sua produção, o grupo explicita os fundamentos que dão sustentação para uma prevenção intrusiva que não considera a criança como um ser em construção e afirma positivamente os fundamentos, nos quais acreditam que direcionam as políticas públicas da infância para uma prevenção preveniente dando voz às crianças ao invés de silenciá-las. A visão de mundo que sustenta as práticas de aprendizagens precoces que promovem comportamentos adaptativos, consideradas “modo de prevenção não pertinente” (GIAMPINO, 2008, p. 10, tradução nossa), diverge das práticas de promoção de saúde mental com um acompanhamento que vise à socialização, nas quais o grupo aposta. O Pas de Zéro de Conduite tem o objetivo de congregar as diversas disciplinas para pensar sobre a prevenção e construir conhecimento sobre esse tema apresentando novas proposições (GIAMPINO, 2008, p. 10). O Stop-DSM propõe um dispositivo clínico para fazer resistência à utilização do Manual DSM na clínica psiquiátrica, que eles denominam a clínica da subjetividade (STOP DSM, 2011). Para amparar essa clínica, eles buscam produzir uma psicopatologia mais fiel à clínica do sujeito e sugerem que a Classificação Francesa de Transtornos Mentais da Criança e do Adolescente ¹¹ (CFTMEA) (MISÉS, 2012) está mais de acordo com seus princípios de comprometimento com o paciente como sujeito, tornando-se uma referência mais indicada. O grupo indica que um próximo passo seria formular uma classificação de transtornos mentais partindo dos fundamentos que defendem (STOP DSM, 2011). A única publicação desse grupo é um livreto no qual apresentam seu manifesto e textos complementares que criticam o modelo diagnóstico baseado no DSM no âmbito acadêmico, de pesquisa e ensino, na clínica e na saúde infantil. As reflexões do L’Appel des Appels sobre o campo político econômico atual colocam luz nas possibilidades de resistência à mercantilização das relações humanas. A produção desse coletivo é o estabelecimento um espaço de análise e discussão política. Para tanto, buscam repercutir as ideias críticas de diversas organizações de resistência ao modelo neoliberal de gestão da vida humana. O grupo compreende que suas publicações cumprem o papel de emancipação política. Eles organizaram três publicações próprias e indicam diversas outras leituras, assim como o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade em seus respectivos sites. O primeiro livro L’Appel des Appels – pour une insurection des consciences ¹² (2009) apresenta o manifesto do grupo e delimita as críticas do coletivo em seus capítulos. Em seguida, publicaram La folie évaluation. Les nouvelles fabriques de servitude ¹³ (2011), que focou os modos de avaliação que moldam a sociedade para uma produtividade que desconsidera a ética das profissões. Por último, publicaram um pequeno livro manifesto: Politiques des métiers – manifeste ¹⁴ (2011), no qual continuam a dar legitimidade para o sofrimento dos trabalhadores no contexto do mercado atual. Nessas publicações eles convocam todos a reconquistar o espaço democrático da palavra e da responsabilidade. Eles descrevem e criticam processos em que, em nome de uma racionalidade técnica que busca prevenir e calcular a

rentabilidade e a eficácia a curto prazo, desconsidera-se a humanidade do homem no modo como vivemos (GORI, 2009). A especialização cada vez maior dos profissionais exigida pelo mercado de trabalho é reflexo dessa busca pela tecnocratização (L’APPEL DES APPELS, 2011). A avaliação quantitativa é destacada como um dispositivo de normalização que se apresenta como científico e objetivo, mas que no entanto tem como efeito o descarte dos menos produtivos, destruindo a autonomia e aumentando a hierarquia nos serviços. O L’Appel des Appels federa diversos movimentos, dando sustentação teórica e promovendo reflexões para os profissionais que estão em sofrimento, traduzindo e dando significação para esse sofrimento nos âmbitos político e coletivo. Com base nessa legitimação, buscam apresentar alternativas à submissão dos trabalhadores fortalecendo a resistência deles. A produção do Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade está alocada no espaço de pensamento político que ele instaura ao debater temas na atualidade. Esse grupo atua na vigilância de projetos de lei e de políticas públicas que possam apresentar um funcionamento de medicalização e também dá visibilidade para intervenções comprometidas com a ruptura da lógica medicalizante. Desde a sua fundação, o Fórum é um movimento agregador de pessoas e articulador de propostas e ações, que busca discutir e socializar conhecimentos acadêmicos que apresentam as críticas à medicalização (COLLARES et. al., 2013). O Fórum brasileiro organizou três publicações: Medicalização de Crianças e Adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões a doenças de indivíduos (2011), Era dos transtornos – Novas capturas, antigos diagnósticos (2013) e Medicalização da Educação e da Sociedade: ciência ou mito? (2014). O primeiro deles foi lançado no I Simpósio Internacional Educação Medicalizada: “Dislexia, TDAH e outros supostos transtornos”. Nesse primeiro livro, o grupo explicita os princípios epistemológicos e políticos do debate sobre a medicalização, delineando “os sentidos presentes na operação que reduz os processos sociais a doenças do indivíduo” (ANGELUCCI, 2011, p. 12). Eles apresentam a lógica da produção dos diagnósticos e tratamentos, que tem seu fundamento em uma concepção de ciência que aliena (ANGELUCCI, 2011), além das diferentes formas de medicalização no processo educacional e suas implicações para os alunos, professores e na produção de políticas públicas. Afirmam-se como movimento de resistência ao processo de medicalização que também produz saber na tarefa de resistir: As diversas entidades envolvidas com a produção deste livro esperam, desta maneira, marcar um posicionamento ético-político sobre o tema da medicalização, subsidiando teórica e praticamente, auxiliando, assim, na formulação de práticas profissionais e de políticas públicas. (ANGELUCCI, 2011, p. 13) As publicações dos quatro grupos e as reflexões produzidas por eles resistem no campo na linguagem e do pensamento. Todos eles enfatizam a produção de conhecimento como um importante meio de resistência, que no coletivo dá subsídios para a compreensão de problemáticas antes tidas como individuais que passam a ser pensadas e enfrentadas no campo político.

Modo de organização e rede formada pelos coletivos O modo de organização de cada um dos coletivos é coerente com as ideias e práticas que eles defendem. Os quatro coletivos têm em comum a valorização pela pluralidade de práticas e abordagens. Um outro simplismo seria de acreditar que, no Pas de Zéro de Conduite, nós estaríamos todos de acordo pois todos nós assinamos. Dentro do grupo que coordena o coletivo, e dentre os assinantes, o debate existe, é isso que traz a riqueza do coletivo. (GIAMPINO, 2008, p. 19, tradução nossa) Enfatiza-se a importância da preservação do debate dentro do grupo e da possibilidade de discordarem entre si. Assim, todos eles buscam agregar diferentes visões entre seus membros sobre os temas debatidos. O fundamento comum a todos os participantes dos coletivos é a ética na profissão, ou seja, o compromisso prioritário com o benefício da pessoa que procure um profissional da saúde ou da educação, ou que participe de uma política pública. Os quatro coletivos afirmam que o único elo de aliança entre os componentes dos grupos é a luta em comum. Nos quatro casos, esta luta aponta para a defesa de um espaço em que a pluralidade de pensamentos possa prevalecer. Além disso, os grupos se afirmam à margem de partidos políticos. O L’Appel des Appels afirma essa ideia com veemência. Esse coletivo se apresenta como um movimento de profissionais com valores republicanos e humanistas que não quer se tornar um partido político ou uma associação protetora dos trabalhadores em sofrimento. Para garantir a pluralidade, o Pas de Zéro de Conduite e o Stop DSM escolheram uma estrutura sem hierarquia, em que todos os membros podem falar em nome do coletivo do mesmo lugar hierárquico. O Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade e o L’Appel des Appels tem uma estrutura delimitada formalmente, com comitês em diversas regiões dos seus respectivos países e uma definição da organização na coordenação. O L’Appel des Appels tem um presidente, 17 comitês na França e dois no Canadá. O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, por meio de seu Estatuto, prevê a constituição de uma Comissão Executiva, formada por quatro entidades filiadas para coordenar e organizar as atividades nacionalmente propostas. Além disso, conta com 23 núcleos pelo Brasil, com coordenações locais a eles. A partir de 2015, o Fórum constituiu uma modalidade horizontal de organização, envolvendo representantes de vários desses Núcleos em um grupo de trabalho denominado Comissão de Articulação do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Nos dois casos, os núcleos regionais têm uma estrutura própria e singular e o que os une é a luta contra os funcionamentos que reduzem o humano a apenas seu aspecto biológico ou produtivo. O Fórum defende que a vida é múltipla e diversa, e por isso, não determinam um único tipo de funcionamento. Em cada núcleo pode haver um tipo de funcionamento e de atuação. As reuniões que ocorrem entre os membros de cada núcleo não precisam ser realizadas em nenhuma instituição formal, podem ocorrer em parques, praias, bibliotecas, salas de universidade, ou na sala da sua casa. O que

prezamos é a potência do encontro de pessoas que dividam conosco os anseios e pautas para criar estratégias e compartilhar experiências de enfrentamento da medicalização. (FORUM SOBRE A MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE, 2016) Esse é também o funcionamento do Pas de Zéro de Conduite , não existe uma sede física, os encontros podem ser combinados informalmente. No início, as reuniões eram realizadas por teleconferência. Os quatro grupos atuam em rede e seu modo de organização se propõe a facilitar as alianças e trocas entre os grupos. Eles têm como parceiros associações, movimentos sociais e coletivos. Dessa forma, o enfrentamento à medicalização e a outros processos que têm a mesma lógica de naturalização pautadas pelos coletivos acontece em rede e no espaço político. O espaço público é o lugar onde esses coletivos vão atuar e criar espaços de debate, buscando ocupá-lo com responsabilidade e crítica. O meio de comunicação eletrônico tem função importante na luta dos coletivos. A internet é um meio de comunicação eficaz para mobilizar rapidamente outros cidadãos e promover a discussão sobre determinados temas. Em seus respectivos sites eles promovem as lutas dos coletivos, difundem seus posicionamentos em relação a acontecimentos atuais e divulgam os materiais produzidos pelos grupos. Os manifestos estão disponíveis para serem assinados até o presente momento. Foi com base nos manifestos publicados que os iniciadores dos movimentos constataram a potência de enfrentar as situações que ameaçam a liberdade do homem no espaço público e coletivamente. A experiência mostrou que os atores da saúde podem fazer recuar a ideologia do DSM. Por exemplo, o sucesso do abaixo-assinado “Pas de Zéro de Conduitepour les enfantas de trois ans”, assinado por mais de 200.000 pessoas, em seguida à pesquisa feita pelo INSERM sobre os “transtornos de conduta”, fez o INSERM relativizar os trabalhos que estavam sendo considerados dados científicos. Da mesma forma, o “Appel des appels” capitalizou as críticas a respeito das nomenclaturas utilizadas na saúde, no ensino, ou na pesquisa, abarcando também a iniciativa “Sauvons la clinique”. Outras respostas às ameaças atuais já tiveram lugar, ou estão em curso, como o “Le collectif des 39 contre la nuit securitaire”, que reuniu recentemente (outubro 2010) mais de mil pessoas em Villejuif. (AGUERRE et al., 2011, p. 13, tradução nossa) Atualmente, os coletivos apresentados ocupam um lugar importante nas sociedades francesa e brasileira, sendo um dos protagonistas da resistência a movimentos de judicialização e de medicalização. A função desses grupos é se manter vigilantes para as possíveis ameaças aos direitos humanos. Como analisa Almeida (2015, p. 93), sobre a experiência brasileira: O Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade ergueu sua metodologia de trabalho ao longo de seu percurso, de sorte que suas experiências são as ferramentas de trabalho dos seus membros e é através de seu itinerário que é possível analisar a sua trajetória, avaliando avanços e dificuldades, devido possuir uma história própria, um trabalho singular no

Brasil, onde, especificamente nesse conteúdo, é o único a desempenhar. Isso posto, reitero que não existem experiências anteriores nas quais se basear, pois sua prática é construída, montada e remontada, sendo esta uma das características de instituições calcadas na educação não formal. As formas de articulação constituídas nos movimentos dessa natureza são desafiadas a cada momento, em função da maior ou menor urgência das pautas ou das tarefas a serem executadas. O modus operandi dos Fóruns e movimentos de luta pela dignidade e direitos sociais revelam a importância de se trabalhar para que as práticas do movimento sejam coerentes com seus princípios e objetivos, em uma perspectiva participativa de seus membros, colaborativa e democrática. Considerações finais Os coletivos apresentados debatem o tema da medicalização no âmbito político. Dentro dos coletivos coexistem pontos de vista diversos sobre os tratamentos a serem seguidos pelos pacientes. O espaço de discussão, gerado pelas diferenças, é apresentado pelo Pas de Zéro de Conduite como uma virtude para o favorecimento da pluralidade de práticas. Nas suas publicações, há o questionamento sobre quando conseguiremos transpor a barreira da disciplina de cada profissão e manter uma discussão aberta entre todos. O espaço de diálogo plural é o objetivo dos grupos e, ao mesmo tempo, seu caminho para a conquista do enfrentamento à medicalização entre outros temas. Os grupos desenvolvem estratégias para contagiar seus interlocutores, sensibilizando as pessoas em geral para suas causas. Cada grupo apresenta estratégias específicas para atingir um público-alvo que varia de acordo com o seu tema de resistência. No caso do Stop-DSM , eles buscam atingir os psiquiatras de todo o mundo para um tema do fazer ético dessa profissão. Assim, optam por enfatizar as falhas científicas do DSM, sabendo que esse fator é o que será escutado e terá impacto no seu interlocutor. O grupo não dá ênfase à dimensão política dessa luta, sabendo que não será por esse caminho que conseguirá afetar os psiquiatras. De modo que, para se fazer escutar, utiliza argumentos que são importantes para o interlocutor. Em contrapartida, o L’Appel des Appels se afirma firmemente político e busca restaurar o significado dessa palavra no meio científico. Eles retomam a definição de política de Hannah Arendt e sua tarefa é politizar o sofrimento social atual, restituindo o espaço da palavra entre os homens, chamando as pessoas para a ocupação desse espaço de responsabilidade. Da mesma forma, o Pas de Zéro de Conduite expressa que deixar a política aos políticos é uma forma de se desresponsabilizar que equivale a não suportar discutir casos com profissionais de outras áreas. O Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade se faz presente formalmente, sempre buscando o debate e reconhecendo projetos que tramitam e podem ter o efeito da medicalização. A construção de coletivos em torno de um direcionamento é uma forma importante de resistência à medicalização, que ajuda a preservar a ética das profissões e manter aberto o questionamento no âmbito do coletivo, pois, dessa forma, as críticas se localizam na esfera política. A coletivização e a

politização da resistência à medicalização são um aspecto importante de enfrentamento, pois o processo de medicalização é, principalmente, caracterizado pela individualização de problemáticas coletivas e despolitização de questões políticas, tornando-as patologia individual. As organizações coletivas dão força para a visão de que os fenômenos humanos não são naturais, podendo sempre ser pensados e questionados. A resistência à lógica da naturalização dos fenômenos humanos apenas pode se realizar quando há a compreensão de que a realidade é polissêmica (CHAUÍ, 2014), ou seja, não é puramente natural, podendo sempre variar do modo como se viabilizou. Os coletivos lutam pela variação do que se estabeleceu como vigente e hegemônico. Como foi dito no manifesto do Stop - DSM quando cita os outros dois grupos aqui tratados, é possível conseguir efeitos, sim, no recuo da lógica medicalizante, por isso é importante a dimensão coletiva e política dessa luta. A existência dos coletivos e suas reflexões indicam que a compreensão medicalizante não é a única possível e, sim, apenas uma entre muitas outras formas de cuidar e compreender os fenômenos humanos. A resistência ao processo de medicalização, enquanto oposição ou presença/ existência, aponta para o sentido desse processo e para o que sustenta esse processo ao destacar o que não é hegemônico, e, sim, o que varia do convencional e da norma. Os coletivos indicam por si mesmos a possibilidade de mudança e da existência da pluralidade. A resistência à medicalização se encontra na possibilidade de manter em aberto a pergunta sobre como se dão os fenômenos humanos, sem buscar uma única resposta absoluta. Andreia Mutarelli Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, Brasil (2017). Psicóloga do Hospital Infantil Sabará, Brasil. Marilene Proença Rebello de Souza Psicóloga, doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, Brasil(1996). Diretora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Brasil. Docente da graduação e pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo-USP. Referências:

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⁴ Pare DSM. ⁵ Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica. ⁶ Nota de rodapé da citação de: LENOBLE, E. Pour une clinique de la surprise. In: PAS DE ZÉRO DE CONDUITE. Enfants turbulents, l’enfer est-il pavé de bonnes préventions? 1 ed. França, Toulouse: Érès, 2008. ⁷ “Não ao zero de conduta para as crianças de três anos.” ⁸ Crianças turbulentas: o inferno é cheio de boa prevenção? ⁹ As crianças ao quadrado? Uma prevenção que não vira! ¹⁰ “A prevenção preveniente em ação.” Utilizamos “prevenção preveniente” para traduzir “ prévention prévenant ” – conforme foi traduzido no manifesto do coletivo em português disponível no site do Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade. Lá há uma nota do tradutor: “Preveniente ( prévenante ), termo pouco usado em português, significa “que chega antes” N.T.” (FORUM SOBRE A MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE, 2013). ¹¹ Trata-se de uma classificação diagnóstica produzida por psiquiatras franceses que dá ênfase a um entendimento psicossocial e encoraja o clínico a identificar os fatores psicológicos e sociais que contribuem para a doença mental (VALLÉE, 2011). ¹² L’appel des appels: por uma insurreição das consciências. ¹³ A loucura da avaliação. As novas fábricas da servidão. ¹⁴ Política das profissões – Manifesto. XI PARA ALÉM DA CRÍTICA À MEDICALIZAÇÃO: EM BUSCA DE PRÁTICAS EDUCATIVAS VOLTADAS A FORMAÇÃO DA ATENÇÃO VOLUNTÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Jéssica Elise Echs Lucena Introdução Na última década, uma das discussões que têm se apresentado com frequência no âmbito da educação diz respeito ao diagnóstico relativo às dificuldades de aprendizagem. Diversos autores (SOUZA & CHECCHIA, 2003; BONADIO, 2013; LEITE & REBELLO, 2014) têm realizado pesquisas nas quais buscam discutir a gênese sócio-histórica dessa queixa.

No cerne dessa questão, um dos diagnósticos que mais têm sido realizados é o de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, também conhecido por TDAH. Em relação aos critérios diagnósticos para esse transtorno, temse como referência o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais , que está em sua 5ª edição (DSM-V), publicada em 2014 pela American Psiquiatrist Association (APA) ¹ . Este caracteriza TDAH por um padrão de comportamento, presente em várias configurações (por exemplo, escola e casa), que pode resultar em problemas de desempenho em ambientes sociais, educacionais, ou de trabalho. Os sintomas são divididos em duas categorias: desatenção e impulsividade/hiperatividade, que incluem tanto comportamentos como incapacidade de prestar atenção aos detalhes, dificuldade para organizar tarefas e atividades, fala excessiva ou incapacidade de permanecer sentado em situações apropriadas. De acordo com o Boletim de Avaliação de Tecnologias em Saúde, publicado pela Anvisa em março de 2014, no Brasil, as estimativas de prevalência do TDAH em crianças e adolescentes varia entre 0,9% e 26,8%, considerando como referência cada unidade federativa (ANVISA, 2014). Esse número de diagnósticos estaria aumentando nos últimos anos e poderia ser notado principalmente ao se avaliar o aumento no número de prescrições do principal medicamento indicado para seu tratamento: o metilfenidato. Conforme o documento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa (2012), o metilfenidato é um agente estimulante moderado do sistema nervoso central (SNC) indicado como adjuvante a intervenções psicológicas, educacionais e sociais no tratamento de distúrbios de hiperatividade. Entre os anos de 2002 e 2006 a produção brasileira do metilfenidato aumentou de 40 kg para 226 kg, colocando o país na posição de segundo maior produtor mundial do fármaco. Outro dado divulgado no boletim é que houve um aumento de 75% nos números de venda do metilfenidato entre os anos 2009 e 2011. Os dados quantitativos parecem ilustrar uma realidade objetiva estatisticamente inegável: há um aumento expressivo no número de diagnóstico de TDAH nas crianças brasileiras na última década, aumento este que pode ser ainda correlacionado a uma opção de um tratamento de escolha medicamentosa (principalmente com uso do metilfenidato). Restanos questionar que concepções estariam por trás desses fatos e quais as consequências do uso massivo dessas substâncias para as crianças. No diagnóstico do TDAH, como o próprio nome expressa, entende-se haver uma falta no desenvolvimento da função denominada atenção. Nesse sentido, entende-se que haja a expectativa de que as crianças desenvolvam essa atenção com o passar da idade. Assim, uma criança de 2 ou 3 anos que tem dificuldade em focar em uma atividade ainda não é vista como um problema. Todavia, a partir de 4 ou 5 anos esse (não) comportamento tende a ser visto como um desvio do padrão, por isso o diagnóstico de déficit. O que não é discutido apenas com o diagnóstico é a razão pela qual essa criança não foi capaz de desenvolver sua capacidade de focar na atividade. Neste ponto, a retomada dos estudos de Luria (1961) pode ser esclarecedora. O autor respalda o fato de que a orientação da atividade com

base na fala é uma função psíquica em desenvolvimento na idade de Educação Infantil. A criança de 2 ou 3 anos de fato ainda não seria capaz de dirigir seu comportamento apenas com base no do discurso. Porém, com a vinculação do pensamento à linguagem e com o desenvolvimento da função reguladora do pensamento, esse processo poderia ser desenvolvido. Tudo isso não ocorre espontaneamente, mas somente na atividade prática mediada pelos signos e instrumentos, disponibilizados pelo meio social. Caberia, portanto, ao adulto (com a mediação da linguagem), auxiliar a criança a fixar sua atenção nas diferentes facetas dos fenômenos. Primeiramente, a criança desenvolverá a capacidade de subordinar sua atenção à fala do adulto, para, depois, submeter-se ao seu próprio pensamento (autorregulação) (ELKONIN, 1960). Isso significa que não podemos esperar que a criança subitamente apresente um comportamento social (seja este a atenção deliberada ou o autodomínio da conduta) se não for ensinada. Longe de discutir as questões farmacológicas aqui envolvidas, aponta-se para o fato de que o tratamento do sintoma (impulsividade ou agressividade) não levaria ao desenvolvimento de mecanismos capazes de desenvolver uma Função Psíquica Superior ² . Vigotski ³ (1996) é claro quando estabelece a relação aprendizagem-desenvolvimento: para o autor, o desenvolvimento não é algo puramente orgânico e/ou maturacional, que poderia ser alcançado de modo espontâneo e, cabe aqui dizer no nosso contexto, também químico. Assim, não se pode esperar que um medicamento seja capaz de desenvolver as funções psíquicas superiores na criança. Se o número de diagnósticos de TDAH aumenta, talvez haja o fenômeno aparente do não desenvolvimento da atenção voluntária das crianças. O que estaria por trás desse aspecto e o que poderia ser feito para que essas crianças se encontrassem em condições diferentes? Um caminho pode ser apontado com base nas discussões a respeito das práticas pedagógicas. Assim, a função do adulto demanda uma intervenção pedagógica específica que leve à constituição de um campo no contexto escolar, no qual se efetive plenamente a transmissão e apropriação dos processos humanos. A organização do meio social no processo de formação da criança No decorrer da discussão traçada anteriormente, ficou evidente a importância do papel do entorno social da criança para que ela se aproprie dos instrumentos culturais necessários à sua formação. Vigotski destaca que a maior particularidade do desenvolvimento infantil seria o fato de ele ocorrer em condições de interação com o meio social , onde a forma ideal (que deve aparecer ao final do desenvolvimento), encontra-se presente no adulto, permitindo o desenvolvimento da forma primária (biológica) já existente na criança (VIGOTSKI, 2010). Assim, em cada período do desenvolvimento é necessário verificar como o meio social está organizado de modo a possibilitar o desenvolvimento de determinados aspectos na formação da criança. A fala das pessoas, a quantidade de palavras que a criança percebe, o caráter da linguagem do entorno, os instrumentos materiais disponibilizados (brinquedos, utensílios,

roupas…), a forma como as pessoas utilizam e apresentam esses instrumentos, entre outras coisas, seriam alguns dos fatores fundamentais para possibilitar o desenvolvimento do psiquismo, ou, na ausência deles, dificultá-lo. Em relação ao desenvolvimento da atenção , Vygotsky (1996) aponta que o entendimento deste estaria na inter-relação e interdependência dessa função com outras, principalmente com o pensamento. Se na primeira idade infantil o mais característico da atenção é sua dependência com o pensamento, posteriormente essa relação se inverte pelo predomínio da atenção voluntária, ativa. Eidt e Ferracioli (2007) ressaltam que essa transformação de atenção involuntária para voluntária seria realizada no contexto de educação e socialização, por meio da linguagem do adulto. Assim, em um primeiro momento (nos primeiros meses de vida) seria o adulto quem orienta a atenção da criança por meio de mediações concretas (indicação com o dedo) e depois abstratas (por meio da linguagem). A criança torna-se então capaz de subordinar sua atenção à fala do adulto e depois à sua própria vontade. Outro aspecto que precisa ser explicitado em uma discussão sobre TDAH é o desenvolvimento da regulação do comportamento infantil pela fala, ou seja, a capacidade de a criança orientar-se com base no discurso. De acordo com Luria (1961), o momento inicial do desenvolvimento dessa função se dá quando a fala ainda não é capaz de atuar como um regulador das reações motoras da criança. Nessa etapa, o papel da regulação é realizado pela separação da ação e pelos sistemas práticos. Assim, a criança desenvolve uma prática de agir de acordo com os feedbacks dados na própria ação, ou seja, a ação motora produz um sinal externo indicando o seu efeito. (Exemplo: a criança aperta um botão e este permite acender uma lâmpada.) Na segunda etapa desse desenvolvimento, o papel desses feedbacks é assumido pelo próprio discurso (assim, tomando o mesmo exemplo da lâmpada que se acende ao apertar o botão, a criança poderia ser instruída a dizer ‘vai’ quando a lâmpada acender, e observaríamos que as crianças de 3 anos não teriam dificuldade em executar a tarefa de apertar o botão coordenadamente com o sinal ‘vai’). Somente na terceira fase, quando há um enriquecimento da fala da criança, que essa ação iniciadora do discurso recua e o sistema de conexões dos significados do discurso assume o papel dominante. Neste momento, a análise verbal das situações se torna possível e começa a desempenhar um importante papel no estabelecimento de novas conexões de significados: a criança orienta-se aos sinais dados com a ajuda das regras verbais que ela tem formuladas para si. Ela se tornará capaz, por exemplo, de responder adequadamente a uma instrução como “aperte um botão para um sinal e não aperte para outro” (Luria, 1961). Essa concepção histórico-cultural de desenvolvimento apresentada se opõe radicalmente aos modelos que se orientam pelas demandas espontaneístas do sujeito, sobretudo deixando-se à espera de uma maturidade biológica que possibilite à criança aprender (MARSIGLIA, 2010). De forma oposta, o que se apresenta no modelo vigotskiano é o retrato da criança ativa na constituição das relações em seu meio social, rica de possibilidades por ser

capaz de estabelecer vínculos com o mundo que a rodeia, com a realidade humano-social. Assim, para que tais relações se estabeleçam, o meio deve contemplar uma experiência diversificada com a cultura e a história, o que afeta diretamente a concepção de criança para a Educação Infantil e as práticas educativas nesse nível de ensino (MELLO, 2010). Organização da atividade de ensino na educação infantil: em busca de direcionamentos O caminho percorrido até este momento evidenciou a importância do papel do adulto no processo de desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores da criança, tendo por base ações culturais organizadas. Destacou-se, ainda, que nessa organização é necessário que haja não apenas a exposição da criança a determinados conteúdos ou modos de ação, mas também o caráter ativo do adulto no ensino mediatizado de determinados processos culturais. Neste ponto da análise, vale destacar que os conteúdos selecionados para as atividades educativas e os meios utilizados para ensiná-los determinam o tipo de consciência e de pensamento que será formado nas crianças. Entende-se assim que, com o ingresso na escola, não se deve almejar a formação de conceitos empíricos, mas, sim, científicos e teóricos nas crianças, conhecimentos com os quais estas não se confrontaram até então. A mesma discussão é válida quando se pensa no ambiente da Educação Infantil. Como apontado por Martins (2011), a aprendizagem dos processos científicos da contagem, leitura e escrita almejados na idade escolar requer o ensino e o domínio de determinadas técnicas que necessitam ser aprendidas ainda na primeira infância. Considerando que os domínios sobre os processos de leitura, escrita e contagem pressupõem um longo transcurso de desenvolvimento, é compreensível que, quanto mais tardia a inserção da criança em atividades que os impliquem, maiores os desafios que lhe serão impostos, no que se inclui a possível supressão dos estágios necessários para um desenvolvimento efetivo. (MARTINS, 2007, p. 90) Tais constatações servem de reforço ao princípio defendido por Vigotski segundo o qual o homem é um ser social e que, se precariamente inserido nessa relação com a sociedade, terá dificuldade em desenvolver as formas máximas de elaboração do raciocínio, desenvolvidas pela humanidade. Outro autor elencado para esta análise em razão de sua proposta de metodologia de ensino ⁴ é Zankov (1984). Com base em uma investigação experimental realizada, o autor buscou direcionar um método cujo objetivo é despertar o pensamento independente do escolar ligado a emoções vivas. Tal processo se daria com um papel ativo do tipo de metodologia que deve se relacionar com a esfera da emoção e volição. De acordo com o autor, a emoção se caracteriza enquanto uma atitude do homem ante o mundo, em relação àquilo que ele experimenta e realiza, seria um estado do sujeito e sua atitude ante o objeto. A riqueza das emoções surge e desenvolve-se no contato direto com as artes plásticas, a natureza e a música. Em matérias como gramática e matemática também é possível que se desenvolvam

emoções positivas, principalmente quando o professor auxilia o aluno a buscar novas interpretações e compreensões a respeito dos fenômenos estudados (ZANKOV, 1984). Uma diferença apontada pelo autor quanto a sua metodologia experimental se dá na questão do desenvolvimento da fala nos escolares, a qual deveria ser explorada pelo professor. Assim, há uma distinção entre vocabulário passivo e ativo da criança, ou seja, as palavras que a criança entende e quais ela utiliza efetivamente. Como há uma constante passagem do vocabulário passivo para o ativo, é importante que o professor trabalhe no sentido de ampliar o vocabulário ativo. De tal modo, o trabalho do professor no desenvolvimento da fala seria qualitativamente diferente do empregado no ensino da gramática. Um dos aspectos evidenciados consiste na seleção adequada do material, das situações que contribuem para elevar o vocabulário da criança. O autor dá um exemplo dessa situação com a experiência de um passeio no bosque direcionado pelo professor. Nesse passeio, o professor poderia pedir que seus alunos identificassem e relatassem oralmente determinadas ocorrências, sentimentos e observações (exemplo: Qual a planta mais diferente vista? Qual é a árvore mais alta? Quais exemplos de seres vivos observamos?). O professor pode aproveitar a situação para ampliar e explicar os relatos orais dos escolares, questionando por novos conceitos e auxiliando em novas relações (exemplo: Se a criança relata ter visto uma planta diferente, podemos pensar se é uma árvore frutífera). O professor questiona e explica sobre o nome da árvore, quais as diferenças da planta com as demais e a importância das frutas para a sobrevivência da espécie. Outra situação exemplificada é a escolha de ilustrações para serem descritas verbalmente pelas crianças. “O relato à base da ilustração cria condições mais vantajosas e orienta o processo natural de desenvolvimento da fala dos escolares” (ZANKOV, 1984, p. 68). Nesse caso, não se deve esperar que a criança responda de acordo com um modelo preestabelecido pelo professor. Deve-se considerar que ela possua um processo de percepção diferente do adulto (no caso das crianças de Educação Infantil, uma percepção que está passando pelo processo de generalização). Dessa forma, o professor deve auxiliar quando as crianças não indicarem alguns detalhes específicos das imagens, bem como ajudá-las a relacionar esses detalhes de forma abstrata e generalizada (exemplo: em uma imagem com uma cordilheira, uma criança relata perceber um ‘monte de terra’. O professor pode auxiliá-la a notar que existem vários ‘montes de terra’, que cada um é chamado de montanha e que o conjunto dessas montanhas forma uma cordilheira). Na utilização do vocabulário deve-se evitar a explicação de palavras desconhecidas pela criança com o uso de sinônimos, pois isso faz com que se perca a riqueza do idioma, perdendo-se a oportunidade de ampliar o vocabulário da criança ao definir o novo significado da palavra. Assim, podemos pensar, por exemplo, que se uma criança pergunta o significado da palavra ‘linda’, o professor não deveria dizer um sinônimo como ‘bonita’ ou ‘bela’, mas explicar o novo significado, contrapondo a intensidade de cada palavra e ressaltando suas diferenças (exemplo: ‘linda’ caracteriza algo mais que ‘bonita’ ou ‘bela’) (ZANKOV, 1984).

Outra metodologia de trabalho proposta por Zankov (1984) são as classes de trabalhos manuais. Estas seriam organizadas de acordo com o ensino experimental, visando otimizar o desenvolvimento das crianças. Desse modo, a liberdade criadora dos alunos é considerada um princípio norteador e as ações mediadas pelo professor despertariam e formariam nas crianças a atenção voltada para as experiências de seus colegas. Há assim, a apreciação crítica da atividade do outro, gerando sentimento de coletividade. Para o autor, esse tipo de atividade permite o surgimento do autocontrole e do planejamento das operações a serem desenvolvidas para a execução da atividade. Tais processos se desenvolveriam não apenas pelo fato de a criança vencer os desafios e as dificuldades impostas pela tarefa, mas porque se entrelaçam com a compreensão das causas desse êxito ou fracasso e da reflexão sobre as etapas do objetivo, a qual deve ser conduzida pelo professor (ZANKOV, 1984). Embora a proposta de Zankov (1984) seja direcionada a crianças escolares, alguns princípios norteadores podem ser pensados para a organização do ensino na Educação Infantil. O modo de condução do ensino pelo professor com base na seleção de atividades que exijam novas habilidades à criança, a utilização de um novo vocabulário, o planejamento da ação ou domínio de novos hábitos motores podem ser pensados como organizadores da atividade infantil. Assim, ressalta-se a importância do cuidado da fala e da exploração do vocabulário das crianças para que estas possam se apropriar corretamente de novos conceitos. Em relação à atividade em oficinas, nota-se o caráter mediador da atividade que é orientada pelo educador, auxiliando na apropriação de novas técnicas e no domínio da conduta em direção a um objetivo. De tal modo, é a necessidade surgida na atividade proposta pelo professor que demanda a utilização dessas novas habilidades. Tendo esse aspecto em vista, entende-se que em sua discussão a respeito do desenvolvimento da motricidade na criança, Zaporoshets (1960a) apresenta uma argumentação consonante com a de Zankov (1984). Assim sendo, o primeiro aponta: Na criança, a formação dos movimentos depende do caráter da tarefa que se sugere. No entanto, sua atitude até ela, o que ela aceita ou não depende, por sua vez, dos motivos da atividade infantil. Para que a tarefa seja aceita e provoque na criança a disposição para resolvê-la, devem surgir motivos que a impulsionem a atuar. (ZAPOROSHETS, 1960a, p. 76) Além do caráter da tarefa, que deve demandar a necessidade de uma determinada habilidade motora, Zaporoshets (1960b) indica ainda a importância da esfera dos motivos que conduzem a criança a ter disposição para realizar a atividade. De acordo com o autor, em geral, o desenvolvimento da esfera motora da criança ocorre dentro da atividade do jogo. Assim, são os motivos do jogo que criam estímulos para a criança executar determinado movimento, criando condições específicas para seu desenvolvimento. No desenvolvimento do jogo há um papel fundamental do adulto na organização da atividade vinculada à atuação com os objetos que serão

apropriados pela criança. Assim, no início do desenvolvimento da atividade com objetos, a criança não apenas observa, mas aprende a alcançar e atuar com cada coisa. Essa atuação é ensinada pelos adultos que utilizam esses objetos para satisfazer suas necessidades, fixando as funções que os representam. Na etapa inicial deste aprendizado, o adulto pode demonstrar, por exemplo, como utiliza uma colher para comer e, em seguida, dá de comer a uma boneca, e a criança faz o mesmo. Posteriormente, no jogo, as ações se generalizam e passam a ser executadas também com outros objetos semelhantes (a criança dá de comer à boneca, ao cavalinho e ao cachorro) e em outras situações (a criança não apenas dá de comer à boneca, mas insere essa ação no enredo de brincar de mamãe e filhinha – e a boneca representa a filha, com a qual a criança executa ações de dar de comer, beber, dar banho, passear…) (ELKONIN, 1960). Elkonin (1960) destaca ainda que o desenvolvimento do assunto do jogo tem relação direta com a ampliação do círculo de conhecimentos da criança. Por isso, a passagem de um nível de jogo para outro se dá embasada no direcionamento do adulto, que, sem alterar a atividade, independente da criança, a ajuda a descobrir novas facetas da realidade social que se refletem no jogo. O conteúdo dos jogos de argumento tem uma significação educativa importante. Por isso, há que se observar com cuidado a forma como as crianças brincam. Há que dar-lhes a possibilidade de conhecer aquelas facetas da realidade cuja reprodução nos jogos pode exercer influência educativa positiva e distraí-los da representação daquilo que pode desenvolver qualidades negativas. (ELKONIN, 1960, p. 513) Essa discussão é importante quando se considera a necessidade de que o professor seja capaz de dirigir o ensino. Quando se pensa no contexto da Educação Infantil, considera-se fundamental que o educador seja capaz de auxiliar a criança a estabelecer o vínculo entre a atividade e seu objetivo. Com isso, o que se busca não é apenas a disposição (motivação) da criança para essa atividade, mas a possibilidade de um vínculo direcionado de todas as funções psíquicas (sejam estas a atenção, a percepção, a memória, o pensamento) com o objeto da atividade. Nessa perspectiva, Talízina (1988) faz alguns apontamentos referentes às etapas que o professor deve seguir no direcionamento do ensino. A autora denomina sua proposta como princípio da “caixa branca” ( caja blanca) , o qual permitiria uma direção cíclica do ensino, proporcionando as informações sobre o processo de obtenção do produto final. Em oposição a esse princípio, o ensino com a “caixa preta” permitiria ao professor apenas ter contato com o produto final do processo, e a via que conduz ao processo ficaria desconhecida (TALÍZINA, 1988, pp. 46-47). Para a realização do princípio da caixa branca, seriam necessárias as seguintes exigências: a) Indicação do objetivo: o ensino deve sempre ser orientado para um objetivo determinado. Este depende de fatores sócio-históricos, das possibilidades do aluno e do caráter da tarefa. Deve-se, assim, determinar os tipos concretos de atividades cognitivas que se pretende formar e suas características (TALÍZINA, 1988). Por exemplo, se o objetivo é formar a

atividade de leitura, considera-se que ele é adequado para determinada idade, a partir da qual a criança já teve a possibilidade de desenvolver (ou esteja em processo de desenvolvimento), entre outras habilidades, a atenção e percepção voluntária; b) Estabelecimento do ponto de partida do processo: o estado de preparação dos alunos abarca não apenas os aspectos intelectuais e cognitivos, mas toda a personalidade. Assim, deve-se estabelecer a correspondência do desenvolvimento psíquico do estudante com os objetivos elencados e a exigência dos conhecimentos concretos e das ações cognitivas necessárias para a formação de uma dada atividade. Ao verificar a existência de conhecimentos e hábitos prévios, deve-se investigar se estão presentes, ou não, sendo necessária sua formação (TALÍZINA, 1988). Considerando ainda o exemplo da atividade de leitura, é preciso que os alunos conheçam antes os símbolos gráficos (letras) e sua representação fonética (sons); c) Determinação do programa de influências que prevê os principais estados transitórios: deve-se determinar quais são os estados que se pretende alcançar em sequência no decorrer da atividade. O êxito depende do conhecimento dos estados intermediários e de sua sucessão (TALÍZINA, 1988). Assim sendo, no ensino da atividade de leitura, o aluno deverá primeiro aprender a reconhecer as letras e associá-las a determinados sons, para depois aprender a associação desses sons a sílabas e, por fim, realizar a leitura de palavras curtas e frases para depois passar à leitura de parágrafos e textos maiores; d) Assegurar a recepção da informação, o feedback (“enlace del retorno”) (TALÍZINA, 1988, p. 50): no decorrer da atividade, é importante que o professor busque um feedback da compreensão dos alunos. Assim, deve-se fazer perguntas ou propor problemas que visem informar o professor do nível de apropriação do objetivo pela turma; e e) Garantir o tratamento da informação (correção) obtida pelo canal do feedback: as informações obtidas mediante o feedback permitem introduzir as correções necessárias. Essa correção não necessita se dar apenas com a existência de erros, mas também com a ausência de sinais de sua aparição (TALÍZINA, 1988). Desse modo, com base em uma pergunta realizada na etapa anterior, cuja resposta foi errônea (CASA se escreve com “K”, por exemplo), o professor pode corrigir o aluno (CASA não se escreve com K porque…). No caso da ausência desse erro esperado, o professor pode discutir com a classe a possibilidade do erro (por que CASA não se escreve com K? Ou Por que GENTE não se escreve com J?). Feita a exposição da proposta de Talízina (1988), considera-se importante ressaltar o caráter ativo do professor durante todo o processo de ensino. Ele direciona o ensino no decorrer do processo, com base em um objetivo previamente determinado. Esse aspecto ficou evidente também nas outras propostas elencadas, de modo a reafirmar a tese aqui defendida quanto à necessidade de um planejamento consciente e orientado da atividade de ensino. Outro relato de pesquisa interessante é o realizado por Solovieva; Quintanar; Bonilla, (2004) em uma proposta de intervenção com crianças em

idade de Educação Infantil e diagnosticadas por outros profissionais com Transtorno de Déficit de Atenção. Após avaliação neuropsicológica do desenvolvimento psíquico das crianças ⁵ , os autores elaboraram um programa de intervenção a partir da mediatização externa do psicólogo (por intermédio da linguagem), com a ajuda de ações concretas e dos objetos na atividade do jogo. O programa teria por fundamento, entre outros aspectos, as ideias da Zona de Desenvolvimento Próximo de Vygotsky, a teoria da atividade de Leontiev e os estudos de Elkonin, Galperin, Talizina e Akutina (a maioria dos autores aqui já apresentados). De acordo com o relato (SOLOVIEVA; QUINTANAR; BONILLA, 2004), os psicólogos utilizaram tarefas de classificação de objetos (classificação quanto à cor, à forma, ao tamanho), análise e identificação das características dos objetos e de seus semelhantes; classificação e comentários sobre as características dos objetos em diferentes contextos (no jardim, em casa, na rua). Essas tarefas foram realizadas primeiramente no plano material e depois no plano perceptivo. Embora os autores não citem um exemplo específico no artigo em questão, podemos simular de forma simplificada essa descrição com o exemplo a seguir: primeiramente, expõese às crianças diferentes imagens ou miniaturas de diversos tipos de meios de transporte (carro, caminhão, bicicleta…). Em seguida, discutem-se as características de cada objeto (quanto à cor, à forma, ao tamanho). O adulto auxilia a criança a identificar as semelhanças e diferenças, buscando, sobretudo, perceber aquelas características que distinguem os objetos e atribuem-lhes diferentes funções (exemplo: o caminhão parece com o carro por ter rodas e transitar na rua, porém, o caminhão possui um compartimento de carga grande destinado ao transporte de objetos. Esse compartimento será diferente de acordo com a carga a ser transportada). A utilização de jogos também foi citada pelos autores como outra metodologia utilizada no programa, sendo sempre relacionados aos resultados obtidos em outros momentos. Assim, se a criança aprendia a classificar um objeto de acordo com a cor em uma atividade, em um jogo posterior com uma bola, ao tomar posse dela, a criança deveria identificar a cor da bola e denominar algum objeto de mesma cor (SOLOVIEVA; QUINTANAR; BONILLA, 2004). Os resultados apontados na pesquisa de Solovieva, Quintanar; Bonilla, (2004) indicaram uma melhora considerável nos níveis de programação, controle e organização sequencial motora das crianças após a execução do programa de intervenção. Apesar de alguns aspectos dessa melhora serem mensurados pelos autores como modestos (como o caso das funções espaciais), a avaliação final foi positiva quanto à possibilidade de considerar a intervenção neuropsicológica uma opção de análise e tratamento dessas crianças.

Após a exposição e análise de algumas metodologias de organização da atividade de ensino, considera-se importante indicar o caráter inicial das discussões aqui apresentadas. Distante de considerar como encerradas outras possibilidades de análise e execução dessa organização e planejamento do ensino, aponta-se a identificação de alguns princípios organizativos dessas atividades, os quais contemplam, sobretudo, o caráter ativo do aluno e do educador no processo. Sistematização de princípios educativos que promovam o desenvolvimento do psiquismo na educação infantil Dos estudos atuais empreendidos e que tomam como objeto o cenário da educação brasileira, considerou-se proveitoso tomar como referência para este tópico as sistematizações desenvolvidas por Pasqualini (2010a) em sua tese de doutorado, proposta esta que nos permite analisar o direcionamento das atividades pedagógicas baseando-nos nos fundamentos teóricos e epistemológicos da abordagem que nos dirige a Psicologia HistóricoCultural. Pasqualini (2010a) propõe que a análise das atividades pedagógicas seja feita considerando três tipos de relações: criança-conteúdo ; criança-recurso e criança-condições . A autora destaca que, embora o ‘modelo padrão’ de prática pedagógica sistematizado pelos professores de sua pesquisa percorra o caminho: avaliação inicial – planejamento – ação pedagógica sequenciada – avaliação dos resultados – replanejamento, é possível demonstrar que essas ferramentas metodológicas são instrumentos para confrontar as relações acima postas. Assim, destaca-se abaixo uma breve sistematização do que seriam tais relações: Relação criança-conteúdo A organização adequada do ensino implicaria, antes de tudo, a garantia de que a intervenção pedagógica estivesse de acordo com as particularidades de cada período do desenvolvimento (PASQUALINI, 2010b). Nesse sentido, a avaliação do diagnóstico atual da criança seria um aspecto fundamental da relação criança-conteúdo , de modo que, para sua determinação, seriam importantes, principalmente, dois aspectos: nível de desenvolvimento intelectual atingido e faixa etária ou período do desenvolvimento (o que se tem e o que se quer alcançar). Nas palavras da autora: Assim, em síntese, conhecer o estado atual da (s) criança (s) implica conhecer o período do desenvolvimento em que se encontra(m) a(s) criança(s), o que indica o que é esperado em termos de seu funcionamento psíquico e comportamental . Esse conhecimento orienta a seleção de CONTEÚDOS de ensino e definição de objetivos pedagógicos de acordo com a faixa etária ou, mais precisamente, com o período do desenvolvimento da CRIANÇA. (PASQUALINI, 2010a, p. 120, grifo do autor) Como destaca Pasqualini (2010a), não é a idade cronológica que determina o conteúdo do estágio de desenvolvimento, e, por isso, o professor deve realizar essa etapa de avaliação selecionando conteúdos que visem

promover o desenvolvimento da criança em suas máximas possibilidades. Em cada etapa do desenvolvimento da criança pode-se elencar uma atividade-guia (atividade-principal) que se sobressai como aquela que dirige o desenvolvimento de suas funções psicológicas (LEONTIEV, 2010). Na idade de Educação Infantil, aqui compreendida como o período que vai de 0 a 5 anos, teríamos as atividades da comunicação emocional com adultos (0 a 12 meses), atividade objetal manipulatória (1 a 3 anos) e a atividade do jogo (3 a 6 anos) como atividades principais. Dentre estas, a atividade do jogo é destacada por compreender o período final da Educação Infantil, quando a maior parte das crianças deveria se encontrar, obrigatoriamente, matriculada em instituições de ensino ⁶ . É nesse sentido que Pasqualini (2010b) defende que a organização das atividades de ensino na Educação Infantil esteja voltada para as brincadeiras. Todavia, a organização dessas brincadeiras (ou jogo) requer uma análise específica quanto à existência de um trabalho pedagógico orientado e direcionado. Liublinskaia (1973) faz uma análise a respeito das diversas compreensões sobre a atividade lúdica da criança, destacando algumas particularidades do jogo enquanto atividade. Nele, a criança reflete a vida que a rodeia, de modo que a atividade lúdica seria um meio para a assimilação de conhecimentos. Todavia, essa assimilação só ocorre quando precedida de conhecimentos prévios, sensoriais e diretos dos fenômenos da vida social (LIUBLINSKAIA, 1973). Assim, o jogo só se tornaria uma atividade pensante se estivesse dirigido para a solução de um problema determinado, por isso o enredo das brincadeiras poderia surgir como consequência do estabelecimento de associações causais. No momento prévio do jogo, a criança se vê obrigada a analisar os objetos envolvidos de acordo com suas características e funções (assim, um lápis, por ser fino e duro, poderá ser utilizado como seringa em uma brincadeira de médico). A autora destaca que as formas de análise variam de acordo com as possibilidades alcançadas pela criança e estas dependem da condição de ser dirigidas pelo educador. Dirigir o jogo significa assegurar a seleção do conteúdo da sua análise sensorial real e mental, da sua assimilação através da reprodução de variantes criadoras que se reptem e que se formam durante o processo, na coletividade de crianças […]. (LIUBLINSKAIA, 1973, p. 55-56) É nessa perspectiva que o papel do educador na Educação Infantil é defendido enquanto aquele que irá organizar e dirigir a atividade da criança, promovendo seu desenvolvimento psíquico. É importante ressaltar o entendimento aqui presente, de que a Psicologia Histórico-Cultural, enquanto teoria do desenvolvimento, possa aliar-se com uma teoria pedagógica que faça a mediação com a Educação Escolar. Neste contexto, apresenta-se a teoria pedagógica da Pedagogia Histórico-Crítica enquanto uma proposta pedagógica que realize essa mediação de forma coerente (DUARTE, 2013). De acordo com Duarte:

Essa pedagogia defende a tese de que a maneira específica da educação escolar participar da luta pela revolução socialista é por meio da socialização do conhecimento científico, artístico e filosófico em suas formas mais desenvolvidas. (DUARTE, 2013, p. 20) ⁷ Relação criança-recurso Tal como destaca Pasqualini (2010a), o processo de seleção do conteúdo de ensino está intimamente ligado à seleção dos recursos, ou seja, dos instrumentos que atuarão como meio na apropriação do conteúdo. A escolha deles deve considerar a adequação às características etárias e ao estado atual do desenvolvimento da criança. A autora exemplifica um caso a fim de esclarecer essa relação: uma professora utiliza uma régua e uma fita métrica como recursos para ensinar o conteúdo medidas . Considerando as contribuições de Leontiev, Pasqualini (2010a) aponta que, para se apropriar de tais instrumentos da cultura (a fita métrica e a régua), é preciso que a criança realize, em relação aos objetos, uma atividade que reproduza seus traços essenciais, ou seja, as operações motoras e mentais neles materializadas. Nas palavras da autora: Assim, entendemos que o significado e a função de determinados instrumentos da cultura, bem como os procedimentos sociais de ação com tais objetos, figuram como CONTEÚDO de ensino, ou seja, o conteúdo de ensino é a atividade humana plasmada, cristalizada nos objetos da cultura (ex: ação de medir, operações necessárias ao manuseio e utilização de instrumentos de medida, unidades de medida, etc.). O objeto ou instrumento em si (ex: régua de madeira, régua de plástico, metro, fita métrica, etc.) é um RECURSO para o ensino desse CONTEÚDO. (PASQUALINI, 2010a, p. 165) De tal modo, entende-se que a criança precisaria medir por ela mesma utilizando tais instrumentos. Todavia, não basta o simples contato imediato e espontâneo da criança com a régua ou fita métrica para que ela realize a ação de medir. É preciso, antes, que o professor organize a atividade, criando condições para que a criança reproduza a atividade adequada ao instrumento. No caso do objeto régua, a criança necessita aprender a manusear o objeto, apropriar-se do sistema de medidas expresso na régua, compreender as representações de cada unidade. Relação criança-condições A disponibilização dos recursos às crianças é outro fator fundamental na organização da atividade. Dessa forma, a organização do espaço escolar deve ser pensada considerando a possibilidade de que as crianças tenham alcance a todos os recursos disponibilizados. Pasqualini (2010a) aponta que tal relação dependeria da natureza do recurso e do estado atual da criança (que indica o provável modo como ela se relacionará com o recurso). Os professores teriam como objetivo o estabelecimento de uma relação autônoma da criança com o recurso, de modo que essa autonomia seria um ponto norteador das ações. Para que isso ocorra, destaca a autora, são necessárias determinadas condições físicas do espaço (ambiente de sala que possibilite livre acesso aos recursos) e a compreensão de que o acesso livre/

autônomo das crianças aos recursos é um tipo específico de conteúdo que necessita ser aprendido: as regras e os procedimentos de ação social. Considerações finais Com base nas discussões apresentadas, considera-se importante destacar alguns aspectos centrais presentes nas discussões trazidas pelos autores continuadores citados. O primeiro, refere-se à relação determinante da educação e do ensino, ou seja, do papel mediador do adulto nesse processo de desenvolvimento. De tal modo, entende-se que a formação da consciência na criança é um processo determinado pelas relações sociais que são estabelecidas com ela por aqueles que a educam. Como bem resume Elkonin, A consciência da criança, a consciência do lugar que ocupa entre os demais, assim como de suas possibilidade e habilidades, se forma no processo de relações com os adultos e com as demais crianças, como resultado da generalização das valorizações que estes fazem de suas possibilidades e habilidades, e da valorização que ela mesma faz de seus atos e normas de conduta. (ELKONIN, 1960, p. 522, tradução da autora) Assim sendo, enfatiza-se a necessidade de que a ação de ensino dirigida à criança seja planejada pelo adulto, que deve contemplar na organização dela o princípio segundo o qual o ensino gera o desenvolvimento. Nesse sentido, entende-se que a tarefa do educador enquanto responsável socialmente pela transmissão dos conhecimentos históricos da humanidade é a de adiantar o desenvolvimento psíquico das crianças, formando o novo em seu desenvolvimento. Quando parte da concepção do desenvolvimento ocorre apartada do ensino (de modo espontâneo), o educador acaba por limitar-se somente ao nível de desenvolvimento já existente, deixando de promover de fato o desenvolvimento das potencialidades humanas na criança, o que pode favorecer os processos de patologização e medicalização da infância. Considerando, então, nosso objeto de discussão, a saber, o desenvolvimento da atenção voluntária e o autodomínio da conduta, aqui entendidos como Função Psicológica Superior, não poderíamos compreendê-los como processos apartados do ensino organizado. De acordo com Martins (2011): A atenção superior, isso é, voluntária, forma-se necessariamente sob condições de ensino. Para tanto, é necessário oportunizar ao indivíduo, desde os primeiros anos de vida, a apropriação do conhecimento acerca do mundo que o rodeia, organizando sua percepção sobre ele e dirigindo sua atenção, tendo em vista a análise, a discriminação, a síntese, enfim, ativando formas de pensamento nas quais a atenção corrobora a identificação do essencial, do fundamental, para além do mais atrativo e aparente. (MARTINS, 2011, p. 235, grifo nosso) Dessa forma, a autora defende a centralidade do processo de ensino, o qual deve considerar na sua organização a qualidade do aporte sensório perceptual que operará em unidade ao desenvolvimento da atenção. Em outras palavras, a atenção voluntária seria entendida como uma atenção dirigida a um fim específico e, por isso, tem seu desenvolvimento dependente do caráter das ações a serem realizadas. Isso implica pensar

que o trabalho de ensino na Educação Infantil deva se esforçar na direção de oferecer atividades lúdicas e educativas que considerem na sua execução a superação da atenção espontânea, enriquecendo práticas cotidianas e oferecendo novos conhecimentos e modos de ação. Em relação ao domínio da conduta, reitera-se a dimensão sistêmica do psiquismo, o qual se desenvolve, sobretudo, com a dimensão do pensamento conceitual (MARTINS, 2011). Como já dito, a base do desenvolvimento desse pensamento é o domínio da linguagem, segundo os conceitos que serão formados ao longo do desenvolvimento escolar. Quando se considera a idade de Educação Infantil, a linguagem adquire papel fundamental, uma vez que é durante esse período, ainda na tenra infância, que se entrelaçará ao pensamento, possibilitando que o pensamento verbal adquira caráter retor na ação da criança. As atividades desse período devem, portanto, focar a aquisição e o enriquecimento dessa linguagem que possibilitará direcionar as ações da criança no futuro. Jéssica Elise Echs Lucena Psicóloga, mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (2016). Atualmente é professora de Psicologia na Unicesumar e atende em Clínica de Psicologia com base na abordagem da Psicologia Histórico Cultural. Referências: AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Prescrição e consumo de metilfenidato no Brasil: identificando riscos para o monitoramento e controle sanitário. Boletim de Farmacoepidemiologia , Ano. 2, n. 2. 2012. Disponível em: < http://www.anvisa.gov.br/sngpc/boletins/ 2012/boletimsngpc22012corrigido_2.pdf>. Acesso em: 7 ago. 2019. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Metilfenidato no tratamento de crianças com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde , v. 23. 2014. ARCE, A., & MARTINS, L. M. Quem tem medo de ensinar na educação infantil? : em defesa do ato de ensinar. Campinas: Alínea, 2007. __. Ensinando aos pequenos de zero a três anos . Campinas: Alínea, 2009. AMERICAN PSIQUIATRIST ASSOCIATION (APA). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais . 5. ed. [s.l.] 2014. Disponível em: < http://www.dsm5.org/Pages/Default.aspx>. Acesso em: 7 ago. 2019. BONADIO, R. A. A. Problemas de atenção : implicações do diagnóstico de TDAH na prática pedagógica. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós-graduação em Educação, Maringá, PR, 2013.

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² Quando Vygotsky (1996) toma como objeto de estudo o desenvolvimento da criança, este propõe duas linhas de desenvolvimento: das funções psíquicas elementares e das funções psíquicas superiores. Estas não são simples continuação das funções elementares, mas produto do desenvolvimento histórico da humanidade. À medida que se desenvolvem as estruturas superiores (como a atenção voluntária, a memória lógica, o autodomínio da conduta), as estruturas inferiores cedem parte essencial de suas antigas funções às formações novas. ³ Devido às diferentes traduções do nome do autor, várias grafias são encontradas na literatura. Assim, o nome de Vygotski será citado conforme a grafia presente da referência em questão. ⁴ De acordo com o autor, “o termo ‘metodologia do ensino’ significa o conjunto de regras e indicações que se referem à prática do ensino de uma ou outra matéria escolar e também à ciência pedagógica que investiga o ensino de uma matéria dada em sua relação com as leis gerais que regulam o ensino” (ZANKOV, 1984, p. 61). ⁵ A avaliação foi realizada com base na prova “ Evaluación neuropsicológica breve ” (QUINTANAR & SOLOVIEVA, 2003). ⁶ Desde o ano de 2016, a matrícula de crianças de 4 e 5 anos em instituições de ensino passou a ser obrigatória. Essa mudança tem por base a Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013, cuja regulamentação oficializa a mudança feita na Constituição por meio da Emenda Constitucional nº 59/2009. A partir da publicação desta lei, os municípios e os estados tiveram até o ano de 2016 para fazer adequações nas redes de ensino a fim de garantir a inclusão dessas crianças na escola pública. ⁷ Uma vez que o objetivo deste trabalho não seja o de discutir especificamente essa relação, considera-se importante mencioná-la enquanto possibilidade de pesquisas futuras. Para tais aprofundamentos sugere-se a leitura e pesquisa das obras: ARCE, A., & MARTINS, L. M. (2007); ARCE, A., & MARTINS, L. M. (2009); MARSIGLIA, A. C. G. (2011). XII DISPERSÃO DA ATENÇÃO: UM PROBLEMA APENAS DA CRIANÇA? REFLEXÕES SOBRE A ORGANIZAÇÃO DO ENSINO Marta Sueli de Faria Sforni Introdução Dados produzidos por meio da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), realizada em 2016 (BRASIL, 2017), indicam que, em relação à leitura, 54,73% dos estudantes que estão concluindo o terceiro ano do Ensino Fundamental apresentam desempenho insuficiente em leitura para esse nível de escolaridade, 32,63%, desempenho considerado adequado, e apenas

11,20% apresentam desempenho desejável. Na escrita, 33,86% apresentam desempenho insuficiente, 57,87%, nível adequado, e 8,28% apresentam nível desejável. Entendemos que esses dados devem ser considerados com parcimônia, pois muitas são as limitações de se avaliar, em larga escala, crianças nessa faixa etária, momento em que estão iniciando o contato com a cultura escolar, sem terem ainda o domínio de seus ritos e procedimentos. Além disso, a dificuldade de apreender todos os aspectos envolvidos na aprendizagem inicial da escrita, leva-nos a reconhecer esses dados como reveladores apenas de alguns aspectos desse processo e não de sua totalidade. Todavia, apesar de sabermos desses limites, bem como da vinculação das avaliações em larga escala com as políticas neoliberais, cujo projeto educacional distancia-se da perspectiva de formação integral dos estudantes com a qual compactuamos, não há como deixar de reconhecer que os dados produzidos aproximam-se do nível de aprendizagem que observamos in loco nas escolas e que, de certa forma, têm sido denunciados pela comunidade escolar antes mesmo de serem mensurados por esse tipo de avaliação. Recorremos aos dados estatísticos, tão somente, por eles desnudarem o problema que há tempos tem acompanhado as discussões acadêmicas no campo da alfabetização (MORTATTI, 2011). Qual é a razão de apresentarmos esses dados numa obra que está voltada para a discussão sobre a medicalização de crianças por déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)? Os dados coletados pela pesquisa realizada por Mendonça et al. (2019), expostos no sexto capítulo desta obra, mostram que o maior número de crianças medicadas encontram-se no segundo e no terceiro ano do Ensino Fundamental, revelando que justamente o período destinado à alfabetização não tem sido de êxito para grande parte delas. Diante desses dados, passamos a refletir: por que nesse momento da escolarização aparecem mais comportamentos considerados como TDAH? Seria mero acaso a concomitância desses dois fenômenos – o baixo desempenho no domínio da linguagem escrita e a maior incidência de diagnósticos de TDAH? Aceitando-se a existência de uma relação entre esses fenômenos, a interpretação mais corriqueira é a de que o comportamento desatento ou agitado da criança é o que leva à não aprendizagem. Nessa linha de raciocínio, a criança não aprende porque não apresenta um comportamento adequado e, por apatia ou agitação, falta a ela a atenção necessária para se apropriar do conteúdo trabalhado em sala de aula. Assim, se o fenômeno é interpretado dessa maneira, resta agir sobre o comportamento da criança, buscando formas disciplinares mais rígidas e, na insuficiência delas, recorre-se à medicalização como forma de controle e de criação do comportamento necessário aos rituais de sala de aula. Esse é um tipo de interpretação centrada na criança, exclusivamente, já que entende-se ser ela o problema e, portanto, nela mesma procura-se encontrar a solução, por meio de mecanismos de controle do comportamento. Nesse sentido, sem desconsiderar causas orgânicas, que podem afetar o comportamento dos sujeitos, o grande número de crianças medicadas nesse momento do seu percurso escolar faz com que pensemos sobre a especificidade da aprendizagem central que ocorre ou deveria ocorrer nessa

etapa – a aprendizagem da escrita – como um fator relevante a ser considerado na análise desse fenômeno. Consideramos, portanto, necessário não olharmos apenas para a criança e seu comportamento, mas também para as condições sociais de seu desenvolvimento, de modo especial aquelas que propiciam ou deveriam propiciar o desenvolvimento da atenção voluntária e da sua capacidade de leitor e de escritor, elementos que estão em jogo nesse período da vida escolar. Isso significa analisar as situações de ensino em que as crianças estão envolvidas para que consigam dominar a escrita e avançar com sucesso em seu percurso de escolarização. Smirnov (1960) afirma algo que é de conhecimento de todos os professores: para que a atenção das crianças mantenha-se presente em uma atividade, é importante que o trabalho realizado corresponda às suas possibilidades, que não seja demasiadamente fácil, nem muito difícil. Se for muito simples, as crianças “deixam de prestar atenção e não fazem o esforço indispensável para o trabalho”; se for muito difícil, “o estudante se distrai do trabalho ao convencer-se de que são infrutuosos os seus esforços” (SMIRNOV, 1960, p. 198). Dessa forma, em ambas as situações, aliadas ao incipiente autodomínio da conduta ¹ , próprio das crianças no início da escolarização, elas passam a ocupar o tempo em sala de aula com outras ações não voltadas para o conteúdo de ensino, rompendo com os rituais próprios do espaço escolar. Reconhecer, então, o que é fácil ou difícil para as crianças, de modo a mobilizar a atenção delas, exige a análise das características do conteúdo a ser ensinado, o repertório que as crianças já dispõem, bem como as particularidades da própria atenção, sua relação com a linguagem e com outras funções psíquicas. Para refletirmos acerca da organização do ensino nos anos iniciais da escolarização e seu impacto sobre a atenção e a aprendizagem dos estudantes, procurando identificar a relação desses fatores com comportamentos que eles apresentam, analisaremos conteúdos e atividades realizadas durante um semestre no primeiro ano do Ensino Fundamental de escolas públicas de um município localizado no noroeste do Paraná. A realização dessa análise requer conhecimentos acerca do conteúdo que deve ser dominado nesse período de estudos – o sistema de escrita alfabético –, bem como das propriedades da atenção e de seus vínculos com as operações racionais e com a memória. Por essa razão, esses dois temas serão apresentados, brevemente, antes da análise das tarefas escolares. Sobre o conteúdo de ensino: a faceta linguística da alfabetização De acordo com Soares (2016), a aprendizagem inicial da escrita envolve três objetos de conhecimento: o sistema alfabético-ortográfico e as convenções da escrita (a faceta linguística); a compreensão e produção de textos (faceta interativa) e os eventos sociais e culturais que envolvem a escrita, levando à compreensão de diferentes situações e contextos de uso da escrita (faceta sociocultural). Cada um desses objetos demanda “processos cognitivos e linguísticos específicos” e “outras e diferentes estratégias de aprendizagem e de ensino” (SOARES, 2016, p. 29).

A prioridade do trabalho com uma dessas facetas em detrimento de outra tem marcado a história dos métodos de alfabetização no Brasil, chegando à desmetodização do ensino da língua materna (MORTATTI, 2000, 2006). Nas últimas décadas do século XX, em documentos que regulam a construção dos currículos, emergiu e fortaleceu um discurso apoiado no construtivismo, que criticava a artificialidade das práticas tradicionais de ensino da linguagem escrita, centradas nos métodos sintéticos, analíticos ou mistos. Sob essa influência, os livros didáticos foram reestruturados e neles o trabalho sistematizado com a faceta linguística deixou de existir, sob a alegação de que esse conteúdo deveria ser disponibilizado conforme demandado pela criança. Críticas às práticas de ensino que se atêm a “ensinar as letras” também foram feitas por Vygotsky (1995). Para ele, esse ensino leva à aquisição de uma escrita mecânica e não ao desenvolvimento cultural da criança, por meio da aquisição dessa linguagem. Com uma aprendizagem desse modo “tem-se a impressão de que são crianças que aprenderam a tocar as teclas, mas que são surdos à música que nasce debaixo de seus dedos”. ² De fato, não se forma um músico ensinando a ele notas musicais isoladas, é preciso que o sujeito esteja inserido num contexto cultural em que a música esteja presente e seja valorizada, somente assim essa aprendizagem fará sentido para ele. A formação do músico, portanto, envolve, necessariamente, sua inserção na cultura musical. No entanto, assim como não se forma um músico somente ensinando as notas musicais, tampouco ele é formado sem domínio desse conhecimento básico. Assim, para ler e escrever com autonomia em uma determinada língua é necessário dominar o seu sistema de escrita, ou seja, os sinais e as combinações entre esses sinais, que foram convencionados para representar graficamente a língua falada, no caso dos sistemas alfabético ortográficos de escrita. Trata-se do conhecimento básico para se tornar leitor e escritor, porém, não único, tendo em vista que a inserção na cultura escrita, de modo mais amplo, também é fundamental nesse processo. O domínio desse conhecimento básico, todavia, não tem sido assegurado a todas as crianças, por isso, a razão de nos voltarmos à análise desse conteúdo. Que conteúdo é esse? O sistema de escrita da Língua Portuguesa é alfabético ortográfico, ou seja, os sinais usados para registrar essa língua representam, entre outras dimensões dessa língua, os seus fonemas, unidades mínimas significativas ³ . Por isso, o domínio das relações fonemagrafema é condição para ler e escrever nessa língua. Segundo Soares (2016), uma série de estudos realizados em diferentes países europeus acerca das características ortográficas concluíram que os aspectos que têm mais efeito sobre a aprendizagem da escrita são a natureza da estrutura silábica da língua, sua correspondente representação na escrita e as relações entre fonemas e grafemas. Em relação à estrutura silábica da nossa língua, há as sílabas mais simples, denominadas canônicas: CV (consoante/vogal – pa-to ), e outras mais complexas, as não canônicas: V (vogal – a-ba-ca-te ); VC (vogal/consoante – ar-co ); CCV (consoante/consoante/vogal – bra-ço ); CVC (consoante/vogal/

consoante – por-ta ); CVV (consoante/vogal/vogal – lei-te ); CCVC (consoante/ consoante/vogal/consoante – plás-ti-co ) etc. No que se refere ao padrão silábico, Matzenauer e Miranda (apud SOARES, 2016) afirmam que a vinculação entre a emergência gradual da estrutura silábica e certa ordem de aquisição são plenamente aceitas em estudos sobre a aquisição de línguas. Essa ordem é exposta por Miranda: “estudos sobre a aquisição da linguagem […] mostram que há uma ordem obedecida pelas crianças relativamente à aquisição do padrão silábico, e são unânimes em atestar a seguinte sequência: CV, V >> CVV >> CVC >> CCV, CCVC” (MIRANDA apud SOARES, 2016, p. 314). Soares (2016) complementa: Assim, identifica-se, no processo de alfabetização, inicialmente o domínio de leitura e escrita de palavras com sílabas CV, podendo-se mesmo considerar um momento em que a criança está já alfabetizada em sílabas CV, e só posteriormente, após atingido o domínio de leitura e escrita de sílabas mais complexas, pode-se considerar que esteja plenamente alfabetizada” (SOARES, 2016, p. 314). Os padrões silábicos CCV e CVC são mais complexos e mais difíceis no processo de aprendizagem, por isso, são adquiridos mais tardiamente, destaca a autora, porém, ela mesma afirma ao se referir ao padrão CCV: “o ensino pode facilitar a aquisição desse padrão” (SOARES, 2016, p. 315) à medida que explicita as situações em que ele ocorre, o que vale também para os demais padrões. Além do padrão silábico indicar um caminho gradativo de aquisições pelo qual se pode conduzir a alfabetização, também as relações entre fonemas e grafemas podem orientar as decisões acerca do percurso a trilhar, já que elas podem ser agrupadas de acordo com uma complexidade crescente. As correspondências entre fonema e grafema são, geralmente, classificadas como: regulares (ou biunívocas), regulares contextuais e irregulares. As relações regulares (ou biunívocas) são aquelas em que um fonema é representado por um grafema, independentemente de sua posição na palavra (/p/, /b/, /t/, /d/, /f/, /v/, /a/) (LEMLE, 2004). As escritas desses fonemas, normalmente, “não oferecem dificuldade para a criança que já se tornou alfabética” (SOARES, 2016, p. 297). Ademais, as relações regulares contextuais podem ser consideradas em dois sentidos: quando um fonema é representado por diferentes grafemas a depender da posição (contexto) em que aparece na palavra ([k], [g], [i], [u], [R]); quando uma letra representa diferentes fonemas, segundo a sua posição na palavra (letras s, r, m, n, l). Nesse caso, é preciso que essas regras contextuais sejam explicitadas para a criança, pois elas “demandam ensino de regras ortográficas: a explicitação dos contextos em que deve ser usado um ou outro grafema” (SOARES, 2016, p. 300). Tal explicitação tornase necessária, tendo em vista que, como bem alerta a autora, as relações regulares contextuais interferem na compreensão que a criança já formou na aprendizagem das relações biunívocas. As relações grafema-fonema irregulares ou relações arbitrárias ([z], [s], [š], [ž], [u]) ⁴ correspondem a situações em que o fonema pode ser representado

por diferentes grafemas “sem que haja regra que defina a relação correta segundo a norma ortográfica” (SOARES, 2016, p. 300). Conhecer a distinção entre as relações fonema-grafema irregulares pode levar o professor a priorizar atividades que facilitem a aprendizagem de certas relações, dirigindo a atenção dos alunos para os sufixos e os tempos verbais, noções básicas que, segundo Morais (1998), desenvolvem a consciência morfológica e são acessíveis às crianças em fase de alfabetização. Também Lemle (2004) e Soares (2016) destacam que, no trabalho com as relações irregulares, a análise morfológica é importante aliada da aprendizagem dos estudantes. Apesar de Cagliari (1999) considerar que, para quem está aprendendo uma língua, tudo é difícil e que não há lógica a obedecer ao percurso “[…] dos elementos mais fáceis para os mais difíceis”, Lemle (2004) destaca que a gradação das relações existentes entre os sons da fala e as letras do alfabeto “determina uma gradação de facilidade na aprendizagem das letras” (LEMLE, 2004, p. 25-26) e, em seguida, questiona sobre a razão de não começarmos o ensino seguindo essas etapas. As consoantes p, b, t, d, f, v e a vogal a representam sempre o mesmo som, o que gera confiança no aluno ao fazer uso delas. Na segunda etapa, viriam as relações grafema-fonema contextuais, tanto nas situações em que uma letra representa vários sons, segundo a sua posição na palavra, quanto no caso de um som ser representado por diferentes grafemas, conforme a sua posição. Na terceira etapa, seriam introduzidas as relações fonema-grafema irregulares ou arbitrárias apenas com palavras mais usuais da língua. Assim, ao se levar em consideração o padrão silábico e as relações fonemagrafema da Língua Portuguesa é possível reconhecer que há sílabas mais constantes na escrita, bem como fonemas e grafemas que são mais regulares e que podem ser aprendidos com mais facilidade pela criança. Ao se considerar esses dois aspectos, torna-se possível conferir certa lógica ao percurso de ensino ⁵ , o que facilita a aprendizagem do sistema de escrita pela criança. Até aqui analisamos um dos principais objetos de aprendizagem nos anos iniciais da alfabetização: o sistema de escrita alfabético. Entretanto, na organização do ensino, é também necessário levar em conta o sujeito da aprendizagem e seus processos afetivos-cognitivos. Considerando a temática deste livro, daremos ênfase à relação entre atenção e aprendizagem. Sobre as propriedades da atenção e seus vínculos com as operações racionais e com a memória A importância atribuída à atenção no processo de aprendizagem não ocorre por acaso. Conforme Luria (1981), em psicologia, é denominado de atenção “O caráter direcional e a seletividade dos processos mentais , base sobre a qual se organizam” (LURIA, 1981, p. 223, destaques do autor), e sua vinculação com a atividade mental é ressaltada pelo autor quando diz ser a atenção “o fator responsável pela escolha dos elementos essenciais para a atividade mental, ou o processo que mantém uma severa vigilância sobre o curso preciso e organizado da atividade mental” (LURIA, 1981, p. 223). Conforme exposto por Martins, “a atenção é uma função de importância ímpar, da qual depende em alto grau a qualidade da percepção e a

organização do comportamento” (MARTINS, 2013, p. 141). Para abordar esse tema, faz-se necessário diferenciar a atenção que é comum aos animais de modo geral, incluindo os seres humanos, – a atenção involuntária – daquela que é própria da espécie humana – a atenção voluntária. A atenção involuntária, subjugada à intensidade dos estímulos do campo perceptual, é comum aos homens e animais, limitando-se ao atendimento dos determinantes naturais da percepção, no que se incluem seus mecanismos neurofisiológicos. Seu cunho natural compreende, para ambos, procedimentos requeridos à adaptação do organismo ao meio. Diferentemente, a atenção voluntária é específica dos seres humanos, possibilitando-lhes concentrar a atenção, intencionalmente, sobre determinados estímulos em detrimento de outros. (MARTINS, 2013, p. 149) A atenção, quando submetida aos estímulos imediatos captados pela percepção, não depende da vontade do sujeito, seu comportamento é guiado externamente pela incidência do estímulo, sem o seu controle consciente. Quando o sujeito tem esse controle, ou seja, quando ele passa a ser interno, pode dominar sua conduta. A atenção voluntária, como afirma Vygotsky (1995), “não é simples resultado do desenvolvimento natural, orgânico”, mas é desenvolvida socialmente, por meio da “influência dos estímulos-meios externos” (VYGOTSKY, 1995, p. 215). Desse modo, assim como as demais funções psicológicas superiores, a atenção aparece em dois planos: primeiro no plano social e depois internamente. […] toda função no desenvolvimento cultural da criança entra em cena duas vezes, em dois planos, primeiro no plano social e depois no psicológico, ao princípio entre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica. Esse fato se refere igualmente à atenção voluntária, à memória lógica, à formação de conceitos, e ao desenvolvimento da vontade. (VYGOTSKY, 1995, p. 150) Se a atenção, antes de ser uma função do sujeito, faz-se presente nas relações externas, na análise dos casos considerados transtorno de déficit de atenção e hiperatividade devem ser incluídas todas as situações sociais das quais a criança participa, entre elas as situações de ensino. O contexto escolar faz parte desse “plano social” em que a atenção voluntária faz-se presente nas relações interpsíquicas para, posteriormente, tornar-se intrapsíquica. Logo, quando a criança ingressa no ensino fundamental, apesar de as atividades escolares exigirem a atenção voluntária, ela ainda não está formada na criança. Na atividade de estudo, por suas características próprias, a atenção voluntária é requerida e, assim, gradativamente, é desenvolvida. Nas palavras de Smirnov: A atenção voluntária é antes de tudo uma atenção organizada, e como o estudo é uma atividade consciente, organizada e com um fim determinado, resulta que o ensino nas escolas é o melhor meio para educar a atenção voluntária. (SMIRNOV, 1960, p. 197) A aprendizagem de conteúdos sistematizados requer da criança a atenção dirigida ao sistema de conceitos, o que exige dela o controle de outros

estímulos presentes no mesmo tempo e espaço em que esses conteúdos são apresentados. Como nesse período, porém, essa função está em processo de desenvolvimento, o estudante: […] pode deixar passar inadvertido o fundamental e fixar a atenção no secundário, somente porque este último lhe atrai por algumas particularidades interessantes para ele. Assim quando contam objetos representados em um desenho, as crianças podem fixar sua atenção não em sua quantidade, mas em seu colorido e em seu aspecto exterior, ou seja, em coisas sem importância para a contagem. (SMIRNOV, 1960, p. 194) Também o volume de atenção da criança em fase inicial de escolarização é pequeno, pois ela ainda não sabe “repartir” (SMIRNOV, 1960) sua atenção. Exemplifica o autor: se a criança concentra-se na escrita, com frequência não se dá conta de que está mal sentada, de que pegou o lápis de modo errado, de que colocou o caderno inclinado etc. Nesse sentido, algumas propriedades da atenção devem ser levadas em consideração para que os meios externos, de fato, favoreçam o seu desenvolvimento. Smirnov (1960) destaca algumas dessas propriedades: grau de concentração , intensidade , distribuição e constância . A concentração da atenção é determinada pela seleção de um círculo limitado de objetos a que ela se dirige, “quanto mais reduzido é o círculo limitado de objetos, mais concentrada é a atenção” (SMIRNOV, 1960, p. 185). A intensidade da atenção caracteriza-se pelo grau de direção para os objetos dados e a desconsideração dos demais, ou seja, pelo foco em um aspecto específico. A intensidade e a concentração da atenção estão ligadas entre si: Quanto menor é o círculo de estímulos objetivos aos quais está dirigida, maior é a possibilidade de uma atenção para eles e, pelo contrário, quanto maior é o número de objetos que abarca a atenção, mais difícil é alcançar um nível alto de sua intensidade. (SMIRNOV, 1960, p. 188) Em relação à distribuição , o autor explica que se refere ao estado correspondente à ação simultânea de duas ou várias ações, ou seja, à capacidade de ter atenção dirigida para mais de um objeto ao mesmo tempo. Sobre esse aspecto, afirma: Para a distribuição da atenção, a característica é que somente uma das ações se efetua com plena consciência do que ela exige para sua execução, enquanto que as outras se efetuam com um reflexo incompleto do que exigem. (SMIRNOV, 1960, p. 188)

É possível realizar várias ações ao mesmo tempo quando parte delas já está automatizada e não exige atenção deliberada à sua realização, no entanto, quando duas ou mais exigem tal consciência, a tendência é a de que a atenção se volte apenas para uma delas ou que ocorra a dispersão de um modo geral. Luria (1991) também alerta que, quando dois estímulos atuam no campo perceptivo, a atenção torna-se instável e ocorrem oscilações da atenção. Para que a atenção, portanto, mantenha-se focada em uma ação, é preciso que as demais ações já estejam automatizadas, isto é, sejam operações, de modo que não requeiram atenção deliberada (SFORNI, 2016). Vale ressaltar que a constância da atenção refere-se à fixação prolongada sobre algo e, para manter a atenção, é necessário que as impressões recebidas ou as ações executadas com o objeto sejam variadas: “Para conservar a atenção durante muito tempo sobre uma mesma coisa é necessário descobrir nela novos detalhes, plantear-se distintos problemas, executar diferentes ações, ainda que todo ele submetido ao fim geral que se persegue” (SMIRNOV, 1960, p. 190). Por essa razão, completa o autor: é muito importante o caráter da atividade em que se fixa a atenção. As ações devem ser variadas, mas devem estar no interior de uma atividade com uma finalidade específica. Luria (1991) afirma que os fatores que determinam a atenção estão vinculados às “peculiaridades dos estímulos externos que atuam sobre o homem, noutros termos, situam-se na estrutura da informação que chega do meio exterior” (LURIA, 1991, p. 4). Esse aspecto – a estrutura da informação – parece-nos fundamental para refletirmos acerca da estrutura da informação que chega ao sujeito quando estamos tratando de situações formais de transmissão cultural, como o ensino em contexto escolar. A percepção dos estímulos que chegam do meio exterior ao homem depende da sua organização estrutural. É fácil ver que não podemos perceber com êxito um grande número de estímulos desordenadamente dispersos embora possamos fazê-lo facilmente se eles estiverem organizados em determinadas estruturas. (LURIA, 1991, p. 3-4) De acordo com Luria (1991), a atividade que o próprio sujeito realiza com os estímulos externos depende de como eles chegam ao indivíduo. Assim, as informações recebidas por ele em situações cotidianas tendem a ser desordenadamente dispersas ; já em situações escolares, está em jogo o ensino de sistemas de conceitos, nesse caso, a organização da informação é fundamental para que a atenção esteja voltada para o essencial a ser apropriado. Para isso, é preciso que o objeto de ensino seja explicitado de modo que a atenção não se disperse em meio a outros estímulos ou que não se mantenha na situação particular apresentada pelo professor, mas que se volte para o conceito ensinado. Essa preocupação é manifestada por Smirnov (1960) ao abordar a relação entre o pensamento dos estudantes e o uso, pelo professor, de exemplos ou ilustrações para ensinar conceitos. O aluno sempre compreende melhor as explicações do professor quando este mostra exemplos e casos concretos nos quais se manifesta aquilo sobre o que fala em termos gerais.

Entretanto, a concretização não deve nos separar do pensamento sobre o geral […]. Quando o professor apresenta um exemplo, mostra como neste caso particular se manifesta o geral que se ilustra com o exemplo. Somente esses exemplos são vantajosos. Somente nessas condições o particular ajuda a compreender o geral. (SMIRNOV, 1960, p. 241) Nesse caso, é imprescindível o uso da palavra, que sinaliza e destaca o estímulo principal em meio aos demais. Dessa forma, a exposição do professor, seja via oral ou escrita, orienta a atenção do estudante, de modo que, entre os vários estímulos captados pela percepção, sejam selecionados aqueles que são essenciais à compreensão do conceito em pauta, isto é, a linguagem do professor permite que o estudante foque sua atenção no que é essencial entre todo o campo perceptivo. Logo, a preocupação com o foco da atenção justifica-se em razão do que expõe Luria: “[…] a orientação da atenção se encontra em dependência direta do êxito ou do insucesso da atividade” (LURIA, 1991, p. 6). Referindo-se ao papel do adulto e da palavra na orientação da atenção dos bebês, diz Vygotsky: “A princípio, é o adulto quem orienta a atenção da criança com suas palavras, criando uma espécie de indicações suplementares, algo assim como flechas, sobre os objetos de seu entorno, elaborando com elas poderosos estímulos indicadores” (VYGOTSKY, 1995, p. 232). Convém destacar que esse papel do adulto que, por meio da palavra, dirige a atenção da criança, mantém-se fundamental também na aprendizagem escolar. Retornando à situação exposta por Smirnov sobre o uso de exemplos para ensinar conceitos, a possibilidade de, diante da ilustração ou de modelos usados, reconhecer o geral e não se ater ao caso particular está no uso da palavra, pelo professor, na explicitação clara do conceito, que atua como “flecha”, que indica o objeto da aprendizagem em meio aos demais estímulos presentes na ilustração ou no exemplo. A atenção voluntária e a linguagem estão, portanto, na base dos processos de abstração e de generalização, que são operações lógicas do raciocínio, necessárias à aprendizagem conceitual: “A generalização é a separação mental do geral nos objetos e fenômenos da realidade, e, baseando-se nela, é a sua unificação mental” (SMIRNOV, 1960, p. 239), então, para poder separar o que é geral e desconsiderar outras qualidades dos objetos e fenômenos, a atenção voluntária é fundamental.

Essas operações são guiadas pela palavra, ou seja, a generalização e a abstração estão ligadas, inseparavelmente, à palavra: “Unicamente por meio da palavra se pode pensar algo desconsiderando a imagem total do objeto determinado” (SMIRNOV, 1960, p. 240). A palavra, no caso escolar, os conceitos a serem ensinados, orienta o comportamento do estudante para que, diante do contexto geral apresentado, sua atenção foque o que é essencial, podendo reconhecer, posteriormente, esse geral em todos os casos particulares em que ele se aplica. Sem o concurso da palavra que orienta a atenção do estudante, ficam comprometidos os processos de abstração e de generalização. Desse modo, corre-se o risco de haver um descompasso entre o que o professor considera estar ensinando e aquilo que é objeto da consciência do estudante enquanto realiza as tarefas de estudo (SFORNI, 2016). Organização do ensino do sistema de escrita em um bimestre de trabalho Após uma breve análise de um conteúdo essencial a ser ensinado nos anos iniciais do ensino fundamental e dos processos cognitivos requeridos no processo de aprendizagem, é possível refletir: Como tem sido ensinada a linguagem escrita às crianças brasileiras? A afirmação de uma professora alfabetizadora expressa como esse caminho tem sido tortuoso: A gente não sabe mais para que lado que vai, como é que vai alfabetizar, são os gêneros textuais, não vamos mais falar em grafemas, em fonemas, nós vamos falar só em quê? E como é que a criança vai aprender? Nós só vamos dando coisas e elas vão aprendendo sozinhas? […] Não se têm critérios, as crianças, uns aprendem porque vão sozinhos, outros não aprendem e vão ficando e vão indo e vão sendo empurrados. (BROTTO, 2008, p. 105) As afirmações da professora, portanto, revelam que a prática do alfabetizador tem se constituído na apresentação de uma série de tarefas envolvendo a leitura e a escrita, e não um percurso sistematizado cuja lógica é evidente aos professores e aos estudantes. Por outro lado, a própria professora afirma que, atualmente, com as discussões sobre alfabetização e letramento como processos distintos, porém, indissociáveis, há uma direção metodológica para o trabalho com a escrita nos anos iniciais, diferentemente do que ocorria quando a alfabetização, supostamente, era pautada em pressupostos construtivistas e negava a necessidade de um método de ensino: Essa é que é a diferença hoje. Nós temos que dar conhecimento [ ]. O texto, nós temos que apresentar o texto para a criança, e trabalhar com ele as palavras menores e até tirar os fonemas e os grafemas pra que ele possa aprender as palavras, mas com sentido, não solto. (BROTTO, 2008, p. 117) Como isso ocorre? Trata-se de um percurso que considera a complexidade do sistema alfabético e as propriedades da atenção das crianças nessa etapa do desenvolvimento? Em outras palavras, leva em conta as particularidades do objeto e do sujeito da aprendizagem? Para responder a essas perguntas, analisaremos uma sequência de trabalho que corresponde ao que foi desenvolvido durante um bimestre em turmas do primeiro ano do Ensino Fundamental, em 2015, em um município do

noroeste do Paraná. Vale destacar que a sequência é semelhante ao apresentado por grande parte dos livros didáticos recomendados pelo Ministério da Educação para turmas de alfabetização ⁶ (BRASIL, 2015), portanto, pode ser considerada como reveladora de práticas de alfabetização que ocorrem em grande parte das escolas públicas brasileiras. Apresentaremos, então, um relato pormenorizado das atividades bimestrais para que leitores menos familiarizados com essas práticas possam compreender melhor o exposto pela professora na citação anterior, bem como entender nossos argumentos ao responder às questões formuladas no início deste subitem. Em cada bimestre é trabalhado um gênero textual com a intenção de propiciar aos estudantes o contato com diferentes gêneros, para que eles possam compreender e dominar os diferentes usos sociais da escrita, promovendo, assim, uma interação dinâmica com essa linguagem. Na proposta de ensino analisada, esse conteúdo é decidido previamente e explicitado no planejamento. Já as informações sobre a dimensão sistêmica da escrita são apresentadas conforme as possibilidades oferecidas pelo texto, sem que essa decisão seja claramente explicitada no rol de conteúdos. Nos objetivos gerais da disciplina de Língua Portuguesa, é destacado que, no trabalho com a escrita, objetiva-se a alfabetização e o letramento como um processo contínuo e indissociável, como recomendado pelos documentos oficiais (BRASIL, 2015) e por grande parte da produção acadêmica desde a década de 1990. No bimestre em análise, o gênero escolhido foi cantigas de roda e os objetivos a serem atingidos foram os seguintes: • Produzir e compreender textos orais envolvendo o gênero textual em estudo, a fim de utilizá-lo de acordo com o propósito comunicativo. • Compreender a função dos gêneros textuais no uso do seu cotidiano. • Ler textos diversificados com o auxílio do professor, visando compreender o seu sentido global. • Reconhecer o gênero cantiga de roda pelo seu uso social, finalidade, assunto e característica, no sentido de perceber seu modo particular de ser lido, interpretado e produzido. • Produzir textos buscando adequá-los ao gênero em estudo. • Realizar reescrita de palavras, a fim de refletir sobre a língua e sistematizar o conhecimento (PLANEJAMENTO DE LÍNGUA PORTUGUESA DO MUNICÍPIO, 2º bimestre, 2015). Podemos observar que nos objetivos específicos predominam o trabalho com o gênero textual ou discursivo. Somente o último objetivo faz menção ao sistema de escrita, mas não define qual aspecto da língua será objeto de reflexão, nem quais conhecimentos (conceitos) devem ser sistematizados. Foram trabalhadas as seguintes cantigas: O cravo e a rosa, A barata, Terezinha de Jesus, Atirei o pau no gato, Não atire o pau no gato, Cirandacirandinha, Sapo-cururu e Nesta rua . Depois de cada cantiga, seguiu-se uma rotina de trabalho compreendendo três ações denominadas:

interpretação e compreensão do texto; caracterização do gênero e sistematização e consciência fonológica. Considerando que o nosso interesse está voltado para o trabalho com a faceta linguística da aprendizagem inicial da escrita, desconsideraremos as duas primeiras ações e focaremos nossa atenção nas atividades consideradas de sistematização e de desenvolvimento da consciência fonológica. Assim, é válido pontuar que, das canções trabalhadas, fez-se a seleção de algumas palavras e com elas a realização sequencial de atividades, que também segue uma rotina, a qual envolve o trabalho com sílabas, grafemas e fonemas. O professor, então, escreve na lousa uma palavra do texto e cabe à criança montar essa palavra no alfabeto móvel, contar as letras, escrever no caderno a primeira e a última letra ou as sílabas, circular determinada letra e escrever outras palavras com a letra circulada. Além disso, deve montar um acróstico com a palavra, trocando algumas letras, de modo que permita a formação de outras, bem como escrever cruzadinha com a palavra, completar aquelas com sons parecidos, que estão faltando no texto, e ainda realizar tentativas de escrita de algumas palavras. Da cantiga O cravo brigou com a rosa , foram destacadas as palavras: roda, rosa, cravo, sacada, visitar . Em seguida, foi enfatizada a letra R, a família silábica dessa letra e o som que ela assume no início das palavras. Nesse momento, o trabalho com a palavra roda e com a letra R coloca o aluno em contato com um sinal gráfico cujo fonema se altera conforme o contexto em que aparece na palavra: rato, carta, carro, fera . Contudo, essa distinção não é explicitada aos estudantes. Na sequência, ao solicitar que os alunos grifem no texto as palavras rosa, cravo, sacada, visitar , eles são colocados em contato com grafemas cujos fonemas apresentam relações regulares contextuais ( rosa ) e irregulares ( rosa, sacada, visitar ), palavras nas quais a letra S aparece representando fonemas diferentes [z] e [s]. Do ponto de vista do padrão silábico, predominam sílabas canônicas e uma não canônica (CCV – cra-vo ). Isso significa que, se essa atividade não se restringir à mera identificação das palavras ou cópia mecânica pelas crianças, exigiria delas uma consciência metalinguística bastante avançada para quem está iniciando o contato com a escrita. Por isso, não fica claro, do ponto de vista do sistema de escrita, o motivo da escolha dessas palavras, ou seja, não é possível reconhecer qual conteúdo tem-se a intenção de trabalhar ao selecioná-las na cantiga. Além disso, em um determinado momento, a atenção do estudante é orientada para essas palavras, ou seja, diante do texto integral da cantiga, ele deve focalizá-las; todavia, nenhuma atividade passa a ser realizada com essas palavras, de modo a fixar a atenção deles sobre algum conteúdo que se expressa por meio delas, com isso, não há como haver constância na atenção dos estudantes. Ademais, ao término do trabalho com essa cantiga, é realizada a exposição da família silábica da consoante R. Com base na segunda cantiga trabalhada no bimestre – A barata –, pede-se à criança que escreva um acróstico com as letras da palavra barata . Nesse momento, a letra R, que anteriormente foi trabalhada ligada ao fonema [r] (som inicial do r na palavra roda), aparece em uma palavra representando o

fonema [ɾ] entre vogais. No entanto, não é seguida de nenhuma atividade que sistematize essa diferença de modo que a atenção dos alunos volte-se para as correspondências regulares contextuais. Ao contrário, a atividade seguinte exige que a criança escreva palavras que comecem com a letra B, por ser a primeira letra da palavra barata . Na sequência, há uma cruzadinha com essa palavra e a criança deve escrever o nome dos objetos representados ( boca, bala, borboleta, abacate, bota, buzina ), então, a escrita deles envolve diferentes padrões silábicos (CV, VCV, VCV), além de um caso de uma relação regular contextual ( abacate ) e uma relação irregular entre fonema-grafema ( buzina ). Seguindo o cronograma bimestral, a próxima cantiga é Terezinha de Jesus . E, nesse contexto, o trabalho com a faceta linguística da alfabetização é composto das seguintes atividades: recorte das letras da palavra Terezinha , mistura das letras e montagem dessa palavra, seguida de tentativa de montagem de outras, com base nas letras presentes no nome. O próprio vocábulo Terezinha traz vários conteúdos a serem explorados: o R intervocálico (relação regular contextual), o fonema [z] (relação irregular) e o padrão silábico CCV. A palavra derivada da letra R, que no título da canção representa o fonema [ɾ], ao ser colocada no início do vocábulo representa o fonema [r]. Contudo, nenhum desses conteúdos é formalmente explicitado e sistematizado, ou seja, há apenas a escrita das palavras. Em seguida, solicita-se à criança que escreva palavras com T, letra inicial do título da cantiga. A intenção do trabalho parece ser ensinar a letra T (fonema e família silábica), mas há um contexto tão amplo de exposição desse conteúdo que pode levar os alunos a ter dificuldade de se concentrar nele especificamente, afetando a intensidade da atenção. Da quarta cantiga trabalhada no bimestre letivo – Atirei o pau no gato – retira-se a palavra gato e é feita a identificação das primeiras e últimas letras e sílabas, bem como a contagem das letras. É realizado o trabalho com a letra G acompanhado de todas as vogais, dando ênfase à mudança do som quando está com as vogais E e I. Tal atividade coloca a criança em contato com uma relação irregular do fonema [Ʒ], que pode ser grafado com J ou G ( jeito, gesto, jiló, girafa ), porém, essa distinção não é explicitada e segue-se fazendo troca da letra inicial da palavra gato: mato, jato, pato . É importante observar como as mudanças de conteúdo são frequentes. Assim, o aluno está sempre em situação de leitura e de escrita, no entanto, cada uma das tarefas exige que o foco da atenção seja mudado, tornando mínimo o contato com cada conteúdo, apesar de resultar em caderno cheio de atividades escritas. A constância da atenção da criança, ou seja, a fixação prolongada sobre algo, necessária para que um conteúdo possa ser consolidado e retomado pela memória, fica, desse modo, comprometida. Na sequência, são apresentadas figuras de objetos que começam com a família silábica da letra G e pede-se que a criança complete a escrita de palavras com a sílaba dessa família que está faltando (exemplo: (ge)ladeira ). É proposto um jogo no qual a criança deve falar uma palavra que inicie com a última sílaba da palavra dita pelo colega que o antecedeu, depois, o

professor escolhe três entre as palavras ditas, conta as sílabas e pede que a criança desenhe o que representam e tente escrever essas palavras. A cantiga seguinte é Ciranda cirandinha e, após a exploração do seu conteúdo, a criança deve preencher lacunas com palavras que estão faltando na música e que rimam: cirandar/dar, quebrou/acabou . Tratam-se de vocábulos com padrão silábico complexo, e pede-se que a criança escreva outros que rimam com esses. Considerando-se que essas crianças estão em fase inicial de aprendizagem da escrita, essa tarefa tende a fazer com que a atenção fique distribuída entre a face fonético-fonológica e a face semântica, podendo fazer com que a atenção volte-se apenas para uma delas e a outra se efetive como “um reflexo incompleto do que exigem” (SMIRNOV, 1960, p. 188). O percurso repete-se no trabalho com a cantiga Sapo Cururu . Com ela é proposto o destaque das palavras que rimam ( rio/frio, dentro/casamento ), vocábulos com padrões silábicos complexos e relação grafema-fonema irregular, seguido da solicitação de escrita de novas palavras que rimam com: borboletinha, cozinha, madrinha e papel, quartel, carretel , também palavras complexas do ponto de vista silábico e fônico. Pede-se, então, que a criança localize no texto palavras que começam com a vogal A, depois com as consoantes C e V. Depois, devem escrever outras palavras que começam com a letra V. Algumas dúvidas, porém, surgem diante dessa atividade: se as crianças ainda estão num momento de reconhecimento das letras A, C e V, como poderiam realizar as atividades com escrita de palavras com padrão silábico e fonemas bem mais complexos como as já expostas? Ainda, se já estão em condições de serem inseridas em uma atividade de consciência metalinguística ⁷ que seria exigida nas atividades anteriores, qual é o sentido de, nesse momento, realizar essas atividades elementares de reconhecimento visual de letras, como as propostas nessa cantiga? Enfim, podemos considerar que as atividades realizadas com as primeiras cantigas estão além das possibilidades das crianças ou estas estão aquém. Tal reflexão, portanto, faz com que lembremos da afirmação de Smirnov (1960) sobre a relação entre as possibilidades da criança e a atenção, ao afirmar que, tanto em trabalhos muito fáceis para a criança como em muito difíceis, a atenção na atividade se esvai. A última cantiga apresentada no bimestre é Nesta rua , e pede-se que a criança ilustre o assunto tratado nela e faça uma “tentativa de escrita” do que desenhou. Novamente, fica a dúvida: se as crianças estão na fase de “tentar escrever”, como foi exigido delas, anteriormente, a escrita de palavras que, do ponto de vista grafofônico, são complexas? E assim encerra-se essa sequência que ocupou um bimestre de trabalho da disciplina de Língua Portuguesa, em um ano que tem por compromisso alfabetizar os alunos. Nesse sentido, ao observamos o trabalho bimestral, perguntamo-nos: Por que foram essas as letras e fonemas eleitos para o trabalho com crianças que estão iniciando a aprendizagem da leitura e da escrita?

Observa-se, com isso, que há preocupação com o ensino da faceta linguística, há atividades voltadas para rimas, letras e sílabas; no entanto, os fonemas não são introduzidos de maneira explícita, sistematizada e em uma sequência planejada com complexidade crescente. Em alguns momentos, são fornecidas informações sobre os fonemas, letras e sílabas na medida em que eles aparecem no texto; em outros momentos, há apenas a escrita das palavras, sem a sistematização de qualquer conteúdo. Não se pode negar que estamos diante de um ensino organizado, em que há intervenção e direção por parte do professor, com orientações explícitas sobre as letras, sílabas e fonemas, o que se distancia das práticas sob inspiração construtivista que marcaram a década de 1990. Todavia, trata-se de uma organização que não está pautada na lógica do conteúdo do sistema alfabético-ortográfico, e que fica a reboque do gênero textual apresentado, ou seja, o conteúdo trabalhado depende das possibilidades oferecidas pelo texto. A prioridade, portanto, é o trabalho com o gênero textual, o qual é escolhido e distribuído ao longo do ano. Diante das evidências, não resta dúvida de que há uma preocupação em aproximar o gênero ao que teria mais sentido para o aluno em cada ano da escolarização, daí a razão de, nesse bimestre, serem trabalhadas cantigas de roda, considerando ser esse gênero apropriado à idade dos estudantes, o que é bastante positivo. No entanto, não se elege um caminho próprio e explícito para a aquisição do sistema de escrita, como se faz com as chamadas atividades de letramento. E, então, ao observarmos as atividades realizadas, é possível reconhecer que, nesse modo de organização do ensino, não se espera que a criança “construa” o seu próprio conhecimento sobre a escrita, pois há orientações explícitas relativas ao modo de grafar as palavras, mas isso é feito de modo isolado, com palavras aleatórias. Nesse sentido, o fato de não haver uma lógica ⁸ nessas orientações, que gradativamente insira a criança no conhecimento sobre o sistema da escrita e suas convenções, faz com que esse conhecimento tenha que ser “descoberto” por ela, conforme for lidando com partes dele em meio aos textos trabalhados. É fato que a dificuldade em “descobrir” esse sistema está ligada à organização estrutural com que ele é apresentado, já que é desordenadamente disperso nas atividades de ensino. De maneira geral, procura-se inserir os conhecimentos sobre a escrita num contexto que faça sentido para o estudante, mas, com isso, ele não tem um “círculo limitado de objetos” para concentrar a sua atenção, e, assim, torna-se difícil saber o que é central e o que desconsiderar nesse contexto amplo apresentado, o que afeta a intensidade da atenção. Em tal organização, portanto, as ações exigidas, por não levarem em conta um processo gradativo de aquisições, acabam concorrendo entre si na distribuição da atenção da criança. Ainda, vale elencar que a sequência de atividades aqui apresentada evidencia a dificuldade de se ter constância da atenção em algum objeto específico, pois a cada tarefa muda-se o objeto de ensino. Considerando-se que a constância da atenção tem estreita relação com a memória, pouco se retém das atividades realizadas. Tomemos um exemplo: uma das atividades do bimestre foi distinguir a diferença do som da letra G quando acompanhada da vogal E e I. Essa relação grafema-fonema não foi mais

trabalhada ao longo do bimestre. Quando será novamente retomada? Quando serão observadas outras palavras com essa correspondência grafofônica? Quando será comparada com outra letra que representa o mesmo fonema e sistematizadas as semelhanças e diferenças entre elas? O fato de em um momento ter sido apresentada essa relação grafema-fonema não garante que ela tenha sido objeto de atenção do aluno, razão pela qual não é raro que, ao escrever essa palavra em outro momento, ele a escreva como se nunca a tivesse visto. Para que essa correspondência grafofônica seja objeto de apropriação, é necessário que a atenção seja constante. Não se trata de repetir várias vezes a escrita dessas palavras, até porque isso pode resultar em um ato mecânico, o que também dispersa a atenção, tratase da necessidade de realização de várias atividades diferenciadas, mas que mantêm o mesmo objetivo: explicitar a relação grafema-fonema G e J, fixando a atenção sobre esse ponto. Várias atividades com o mesmo foco (diferentes palavras em jogos, cruzadinhas, ditados etc.), além de favorecerem a constância da atenção sobre o mesmo objeto, contribuem para que se reconheça o que é singular de cada atividade e o que é o geral, já que o geral se mantém constante, enquanto as demais partes da atividade são alteradas, o que facilita o processo de abstração e de generalização. A possibilidade de o conteúdo manter-se na memória é, dessa forma, ampliada, então, sem que isso ocorra, a criança pode memorizar a escrita de algumas palavras específicas, mantendo-se no campo perceptivo, ou seja, no “desenho da palavra”, não formando a correspondente relação grafema-fonema no campo simbólico. É pertinente dizer que, nas tarefas de ensino analisadas, além da sequência aleatória em que os grafemas e fonemas são apresentados e da rapidez com que se muda de uns para outros, chama a atenção o fato de não haver momentos de sistematização do conteúdo que a tarefa exigiu, isto é, não há enunciados escritos que sugiram ao professor que explicite o conceito trabalhado. Assim, a criança escreve, mas parece estar aprendendo a escrever palavras isoladas, nomes dos objetos, e não um sistema de signos que permita a ela escrever qualquer palavra. Desse modo, para abstrair e generalizar com base nas atividades realizadas, é fundamental a explicitação verbal, por parte do professor, dos conceitos próprios desse campo do conhecimento, pelo motivo de os conceitos atuarem como “flechas” sinalizadoras do que é essencial na tarefa, para que o aluno se atente à face fonética-fonológica do que escreve e não apenas à face semântica. Mediante o trabalho bimestral realizado, percebe-se que a criança lida com a leitura e a escrita de palavras, mas não com o conhecimento sobre elas, ou seja, não é estimulada a consciência metalinguística. Com isso, a criança escreve, mas tem dificuldades para abstrair da atividade conhecimentos sobre o sistema da escrita, o que a impede de ir caminhando para a generalização desse sistema. Por isso, é comum que, ao aparecerem outras palavras com o mesmo padrão silábico e a mesma correspondência grafemafonema, a criança não reconheça a semelhança com a atividade já realizada. Pelo exposto, podemos considerar que o processo de alfabetização apresentado não considera a complexidade do sistema de escrita e as propriedades da atenção de modo geral, muito menos as particularidades da

atenção das crianças nessa etapa do desenvolvimento, o que tende a resultar numa aprendizagem mais lenta e, em muitos casos, no fracasso na aprendizagem. Não estamos defendendo que nos anos iniciais o trabalho seja restrito à alfabetização e que ela deva seguir um percurso rígido é árido, sem a preocupação com o letramento, já que entendemos que a aprendizagem da escrita só tem sentido para o sujeito quando ele está envolvido em práticas culturais nas quais ela é requerida. Defendemos, porém, a necessidade de não se deixar a alfabetização a reboque do trabalho com os gêneros textuais e que ela possa ser feita de uma maneira sistematizada, considerando seus conteúdos próprios e os processos afetivo-cognitivos dos estudantes nessa etapa do desenvolvimento. Concordamos com Lemle (2004), quando afirma: É claro que não podemos nos agarrar com rigidez ao intuito de manter o alfabetizando resguardado por algum tempo das complicações da escrita. As palavras vão jorrar de todos os lados, as crianças vão trazê-las, e não seria sensato exagerar o peneiramento de dados. Se as letras indesejadas forçarem sua entrada, será preciso adiantar a explicação de que essas letras podem, às vezes, ter outros sons, quando colocadas em outras posições. (LEMLE, 2004, p. 27) De fato, palavras aparecem de todos os lados, principalmente, se em situações de letramento são apresentados textos reais que circulam socialmente. Esses textos não são produzidos com finalidades didáticas, portanto, não são organizados do ponto de vista do processo de aprendizagem da criança. Sua importância no meio escolar está em propiciar aos estudantes o contato com a língua viva, podendo ser gerador de uma relação afetiva com a cultura escrita. Uma situação, porém, é usá-los nesse sentido; outra, é que eles sejam o critério para a escolha de palavras, letras, sílabas e fonemas a serem trabalhados. Uma situação é o professor fazer a leitura desses textos, explorar seu conteúdo e formas de uso; outra, é elegê-los como desencadeadores para o trabalho com a escrita. É pertinente destacar que o desenvolvimento da linguagem escrita requer uma ação arbitrária, intencional e consciente sobre a própria língua e não uma atenção voltada basicamente para seu contexto de uso e de comunicação, como ocorre na aprendizagem da linguagem oral (VYGOTSKY, 2001). Tomar consciência do sistema de escrita e da sua apreensão são “faces da mesma moeda”, desse modo, a apropriação está ligada à tomada de consciência do sistema de escrita e não à constante escrita de palavras, como parece ser a finalidade da sequência analisada. Assim, a afirmação da necessidade de um trabalho voltado para fonemas, letras, sílabas e palavras não significa a defesa de atividades de cópias de palavras com dificuldades ortográficas ou preenchimento de lacunas no interior da palavra, sejam elas em forma de cruzadinhas, acrósticos ou outras. Não basta a escrita, mesmo que correta, da palavra, sem que essa ação seja acompanhada de conhecimentos que levem à compreensão do sistema de escrita. Concordamos com Morais quando afirma: Se o sistema de escrita alfabético é um objeto de conhecimento em si, é necessário desenvolver metodologias de ensino que levem o aprendiz a,

quotidianamente, refletir sobre as propriedades do sistema e, progressivamente, aprender e automatizar suas convenções. (MORAIS, 2006, p. 12) Em síntese, esses conhecimentos levam à tomada de consciência da escrita pelo estudante, propiciando a ele autonomia para escrever qualquer palavra da nossa língua. Considerações finais Iniciamos este texto refletindo sobre as razões de nos segundos e terceiros anos do Ensino Fundamental aparecerem mais comportamentos considerados de TDAH. Em virtude disso, considerando que a atenção voluntária, exigida na atividade de estudo, é uma função cujo desenvolvimento é promovido socialmente, e que a educação escolar tem papel relevante nesse processo, voltamos nosso olhar para a situação de ensino e de aprendizagem nesse momento da escolarização. E, diante do que observamos nas atividades realizadas, cabe o questionamento: como fica a atenção dos estudantes com o ensino assim organizado? Alguns alunos, mesmo com informações desordenadamente dispersas acerca do sistema de escrita, acabam estabelecendo a relação entre as atividades realizadas e esse sistema, extraindo relações lógicas que permitem a eles acompanhar o percurso escolar. Outros, quando começam a enfrentar as primeiras dificuldades, recebem de membros familiares orientações explícitas sobre essa relação. Outros, porém, mesmo realizando as atividades cotidianas de leitura e de escrita, são meros copistas. Com essa ação, às vezes camuflam a não aprendizagem, mas logo ficam evidenciados os seus limites, distanciando-os cada vez mais do desempenho esperado para o período de escolarização. Há também aqueles que realizam algumas atividades, mas não conseguem manter-se por muito tempo no “comportamento de estudante” ante a rotina estabelecida na realização desse trabalho. Como isso ocorre? As atividades propostas são amplas, começam com a leitura do gênero textual e seguem com a realização de práticas de interpretação de texto, que envolve leitura e escrita. Quando, no decorrer da aula, tem início o trabalho com o sistema alfabético ortográfico e as convenções da escrita, essas crianças estão atrasadas, ocupadas com o término das atividades anteriores, ou simplesmente já não conseguem aterse ao conteúdo seguinte, por já terem ficado um longo tempo na realização desse tipo de tarefa. Aos poucos, algumas dessas crianças recusam-se a fazer as atividades porque elas tornam-se totalmente sem sentido. Mas, se a não aprendizagem está presente em todas as etapas da escolarização, inclusive no ensino superior, por que nos anos iniciais é tão maior o número de crianças medicalizadas por TDHA? Provavelmente porque nessa etapa da escolarização a não aprendizagem torna-se muito evidente, já que a apropriação do sistema alfabético ortográfico e das convenções que governam o uso desse sistema é basilar para a realização da maior parte das ações que ocorrem em sala de aula. Assim, não dominar esse conhecimento marca negativamente o desempenho escolar em todas as áreas do conhecimento. A percepção desse quadro, portanto, afeta a autoestima das crianças e provoca, por parte delas, reações

comportamentais diversas. Ademais, alia-se o fato de que, nesse momento da vida da criança, ainda está em desenvolvimento o autodomínio da conduta. Por essa razão, dificilmente conseguem manter o “comportamento de estudante” se há um vácuo na sua relação com o conhecimento, o que torna possível o aparecimento de comportamentos que se assemelham a transtornos. Desse modo, é comum que incomodem em sala de aula mais do que um adulto em condição de não aprendizagem. Dessa forma, entre os apáticos copistas e aqueles que agitam a sala de aula, alguns recebem o diagnóstico de déficit de atenção e de hiperatividade. Sem desconsiderar, então, a existência de causas orgânicas para esse transtorno, não podemos deixar de analisar os fatores sociais que podem produzi-lo. Normalmente, incluímos nas causas sociais a educação familiar, a cultura contemporânea e outros aspectos externos à escola. Estamos, por meio da análise apresentada neste texto, sugerindo que, entre as causas sociais, seja incluída também a análise da cultura escolar e dos seus modos de organizar o ensino, pois são observações necessárias que podem indicar outros caminhos para o enfrentamento do aumento acentuado da medicalização de crianças nesse período da vida. Que medidas pedagógicas podem ser tomadas com base nessa análise? Consideramos fundamental rever o conteúdo e a forma de ensinar a ler e a escrever. Essa, porém, não é uma tarefa exclusiva do professor, como, às vezes, parece ser. Na maioria dos municípios e escolas, os professores não têm autonomia para definir os conteúdos e as atividades para alfabetizar. Desse modo, a revisão de formas de ensinar a ler e a escrever envolve a revisão de políticas públicas de formação docente e de elaboração de material didático, já que elas têm contribuído para a produção desse quadro de fracasso. Como demarcado ao longo do texto, consideramos necessário que o ensino insira, de modo consciente, explícito e gradativo, os conhecimentos sobre a escrita, levando-se em conta o objeto de ensino e os aspectos cognitivosafetivos do sujeito da aprendizagem, possibilitando ao estudante adquirir confiança no processo de codificação e decodificação e, com isso, desenvolver um sentimento positivo em relação à cultura escrita. No âmbito escolar, algumas ações podem ser realizadas com aqueles que não estão acompanhando o percurso escolar e que tendem à dispersão ou à agitação: tornar o conteúdo mais explícito; orientar a atenção para os aspectos essenciais da atividade selecionada; organizar o tempo, de modo que os conteúdos essenciais não sejam trabalhados ao final de uma exaustiva rotina de exploração textual, bem como retornar ao ponto do processo de alfabetização que a criança deixou de acompanhar, para poder refazer com ela, gradativamente, os elos perdidos. Marta Sueli de Faria Sforni Pedagoga, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo – USP (2003) e pós-doutora pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp

(2014). Atualmente, é professora associada na Universidade Estadual de Maringá e membro do corpo docente do Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação. Referências: BARRERA, S. D.; MALUF, M. R.. Consciência Metalinguística e Alfabetização: Um Estudo com Crianças da Primeira Série do Ensino Fundamental. Psicologia: Reflexão e Crítica , Porto Alegre. v. 16, n. 3, p. 491-502. 2003. BRASIL, Ministério da Educação. Programa Nacional do Livro Didático PNLD 2016. Guia de livros didáticos : Alfabetização e Letramento e Língua Portuguesa: ensino fundamental anos iniciais. Brasília: MEC, Secretária de Educação Básica, 2015. BRASIL. Ministério da Educação. Resultado Final da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) . 2016. Brasília: Inep, 2017. Disponível em < http:// ana.inep.gov.br/ANA />. Acesso em: 27 nov. 2017. BROTTO, I. J. O. Alfabetização : um tema, muitos sentidos. 238f. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2008. CAGLIARI, L. C. Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu . São Paulo: Scipione, 1999. DAVÍDOV, V. V. La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico : investigación teórica y experimental. Moscú: Progreso, 1988. FARACO, C. A. Linguagem escrita e alfabetização . São Paulo: Contexto, 2012. LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador . São Paulo: Ática, 2004. LEONTIEV, A. A. O desenvolvimento do psiquismo . Lisboa: Livros Horizonte, 1978. LURIA, A. R. Fundamentos de Neuropsicologia . Rio de Janeiro: LTC, 1981. __. Curso de Psicologia Geral : Atenção e memória. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, v. III. MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar : contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia históricocrítica. Campinas: Autores Associados, 2013. MENDONÇA, F. W. et al. O problema da medicalização na faixa etária de 0 a 10 anos: correlação de dados nos municípios de Rio Bom, Ponta Grossa, Cambé e Cascavel. In: TULESKI, S. C.; FRANCO, A. (org.). O lado sombrio

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o desenvolvimento cultural da conduta e as interações sociais das quais o sujeito participa (VYGOSTKY, 1995). ² Vygotsky (1995, p. 203) refere-se, especificamente, ao método criado por Maria Montessori, por meio do qual, crianças de 4 anos de idade são ensinadas a ler e a escrever. Sua crítica dirige-se ao trabalho com as letras, pautado, exclusivamente, no aspecto motor. Não se trata de uma crítica ao ensino de fonemas e grafemas nos anos iniciais de escolarização. Em escolas experimentais russas que visavam ofertar um ensino promotor do desenvolvimento dos estudantes, com base em pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, o conceito de fonema constituía-se em nuclear para a aprendizagem inicial da linguagem escrita (DAVÍDOV, 1988). ³ Os sistemas de escrita dividem-se em dois grandes grupos: aqueles em que os sinais representam as palavras, as ideias – sistemas ideográficos (como o sistema de escrita chinês) –, e os que representam os sons das palavras no nível da sílaba – sistemas silábicos – ou no nível dos fonemas – sistemas alfabéticos. ⁴ Há algumas diferenças na classificação de quais relações fonema-grafema compõem esse grupo, ver Lemle (2004), Faraco (2012), Morais (1998, 2012). ⁵ Davídov (1988) critica o ensino organizado sob influência da lógica formal que, entre outras características, prevê ações didático-pedagógicas numa sequência do mais simples para o mais complexo. Todavia, a superação dessa lógica não está na negação total desse percurso, como bem expõe Leontiev (1978) ao tratar dos conceitos de ação e operação nos processos de aprendizagem. Em sua exposição acerca da formação das operações conscientes fica evidente um processo gradativo de aprendizagem (SFORNI, 2016). ⁶ Conforme exposto no Guia do Livro Didático elaborado pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), vinculado ao Ministério da Educação, a maior parte das coleções de Língua Portuguesa nos anos iniciais do Ensino Fundamental é organizada por gênero e/ou tipos textuais. Nos livros de alfabetização, as “palavras-chave iniciadas pelas diferentes letras do alfabeto, palavras estas extraídas de algum texto proposto para leitura; enquanto os volumes do segundo e terceiro anos se organizam ou por unidades temáticas ou por gêneros textuais” (BRASIL, 2015, p. 22). ⁷ Trata-se da consciência voltada para o funcionamento e a estrutura da língua, diferentemente do que ocorre no uso cotidiano da língua, que tende a ser automático e sem consciência dos processos nela envolvidos. Como afirma Vygotsky, antes de aprender a ler e escrever, a criança, oralmente, conjuga e declina diferentes verbos, “mas não sabe o que conjuga nem declina, essa atividade foi assimilada de forma puramente estrutural, tal como a composição fonética das palavras”, a aprendizagem da escrita exige que a criança tome consciência da própria língua, podendo ter mais domínio sobre ela (VYGOTSKY, 2001, p. 320). Pesquisas recentes, citados por Barrera e Maluf (2003), têm se dedicado ao seu estudo, segundo essas autoras: “a consciência metalinguística é um termo genérico que envolve diferentes tipos de habilidades, tais como: segmentar e manipular a fala em suas diversas unidades (palavras, sílabas, fonemas); separar as palavras de seus

referentes (ou seja, estabelecer diferenças entre significados e significantes); perceber semelhanças sonoras entre palavras; julgar a coerência semântica e sintática de enunciados” (BARRERA & MALUF, 2003, p. 492). ⁸ A ideia de se buscar no conteúdo uma lógica para sua exposição é criticada pelo Guia do Livro Didático elaborado pelo Ministério da Educação. Observa-se no guia a defesa de uma metodologia, denominada construtivoreflexiva, que visa reproduzir “o movimento ‘natural’ da aprendizagem, e não uma pretensa ‘lógica da matéria’ estabelecida a priori ” (BRASIL, 2015, p. 24). XIII PELA DEFESA DE UMA INFÂNCIA “TARJA BRANCA”: A ARTE CINEMATOGRÁFICA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES FRENTE À MEDICALIZAÇÃO NA INFÂNCIA Beatriz Moreira Bezerra Vieira Silvana Calvo Tuleski Introdução No presente capítulo, buscamos discutir o emprego da arte cinematográfica como instrumento para a formação de professores, no intuito de problematizar o fenômeno da medicalização na infância e seus impactos no âmbito educacional na atualidade. Tendo como referencial teórico os autores da Psicologia Histórico-Cultural, partimos da explicitação das bases culturais do domínio da atenção voluntária e do controle do comportamento, que fundamentou a proposta didático-pedagógica realizada num encontro de formação de professores do Ensino Fundamental, num município do estado do Paraná, no ano de 2015, utilizando o documentário Tarja Branca (2014) como escopo da discussão. Com o recurso cinematográfico, foi possível investigar suas contribuições como instrumento de discussão do fenômeno da medicalização da vida, com foco no caso do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Baseado no documentário Tarja Branca (2014) ¹ , o norte do encontro de formação foi a relação entre atividade dominante no período pré-escolar, a brincadeira e o desenvolvimento das funções psíquicas superiores na criança, focalizando a atenção voluntária e o controle do comportamento, o que permitiu reflexões a respeito do atual fenômeno da medicalização e como ele se insere no cotidiano escolar e pedagógico. Partimos da compreensão histórico-cultural do desenvolvimento das funções psíquicas superiores, as quais diferenciam radicalmente os homens dos animais. Para Vygotsky (2000), entender a concepção de desenvolvimento das funções psíquicas superiores é fundamental para apreender os processos de formação da personalidade da criança. O papel determinante

da cultura para tal não era compreendido pela Psicologia Tradicional da época, segundo o autor, incapaz de apreender a totalidade dos processos de desenvolvimento, uma vez que confundia o que era cultural com o que era natural, o que era biológico com o que era social. Além disso, a vertente tradicional da Psicologia tratava-se de uma concepção que entendia o desenvolvimento como um processo passível de decomposição em partes constituintes, como era a base do método de investigação das ciências naturais (VYGOTSKY, 2000). Dessa forma, a integralidade desse processo não era considerada e se reduziam as formações psíquicas mais complexas a processos elementares, configurando uma metodologia não dialética da Psicologia. O que a Psicologia Tradicional não se dava conta era do fato de que a tenra infância, a idade do bebê, resguarda as raízes genéticas das mais fundamentais formas culturais do comportamento humano: o emprego de ferramentas e a linguagem. Vygotsky (2000) considerava que até início do século XX, as teorias psicológicas não se davam conta dessa idade enquanto centro da pré-história do desenvolvimento cultural humano. Preocupavam-se somente com o nível inferior do desenvolvimento, e não com o potencial superior, foco das investigações do autor russo (VYGOTSKY, 2000). Este autor russo, principal expoente da psicologia marxista, propõe um novo ponto de vista no desenvolvimento da criança: uma visão histórica e cultural. Essa concepção revolucionária sobre o desenvolvimento dá base a toda uma nova concepção metodológica sobre os processos de desenvolvimento e da formação da conduta e da personalidade da criança. A seguir, abarcaremos a compreensão dos autores da Psicologia Histórico-Cultural a respeito do desenvolvimento do controle do comportamento e da atenção voluntária, enquanto processos cuja gênese cultural, e não somente derivada de fatores biológicos ou genéticos. Desenvolvimento do controle do comportamento e da atenção voluntária Rompendo definitivamente com a compreensão associal do desenvolvimento humano, Vygotsky (2000) compreendia que era preciso captar o movimento real desse processo em toda a sua complexidade, o que significa atentar ao que era positivo e negativo no desenvolvimento da criança. Enquanto muitos autores se concentravam no que a criança não tinha, ou era insuficiente em relação ao adulto, Vygtsoky (2000) e seus colaboradores buscaram se atentar às particularidades de cada etapa da infância, seus saltos e retrocessos. Pretendiam assim, a superação da compreensão evolucionista a respeito de como ocorre o desenvolvimento como um processo meramente quantitativo. O autor conceitua então qual é o significado de se debruçar no estudo do desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Trata-se, em primeiro lugar, de processos de domínio dos meios externos de desenvolvimento cultural e do pensamento: a linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho; e, em segundo, dos processos de desenvolvimento de funções psíquicas superiores especiais, não limitadas nem determinadas com exatidão, que na psicologia tradicional se denominam atenção voluntária , memória lógica , formação de conceitos , etc. Tanto um quanto outro, tomados em conjunto, formam o que qualificamos convencionalmente como

processos de desenvolvimento das formas superiores da conduta da criança. (VYGOTSKY, p. 29, 2000 – tradução e grifos nossos) Dessa passagem, temos que os processos de desenvolvimento das formas superiores de conduta, com base no domínio dos meios externos disponíveis na cultura, abarcam a unidade existente entre as duas linhas de desenvolvimento humano: o desenvolvimento biológico, responsável pela evolução da espécie, e o desenvolvimento histórico, que permitiu que o homem primitivo ascendesse a um nível cultural de comportamento regido por leis sócio-históricas e não somente naturais. A diferença principal entre o desenvolvimento cultural e o biológico é o desenvolvimento dos órgãos artificiais, isto é, das ferramentas técnicas produzidas pelo próprio homem com base em suas necessidades concretas, o que torna possível todo um novo patamar de desenvolvimento do psiquismo humano, que supera o desenvolvimento puramente orgânico do sistema nervoso. Tais ferramentas, ou instrumentos técnicos, permitem a mediação direta do homem sobre a natureza, com o intuito de utilizar as leis naturais a favor do homem e a favor do avanço da humanidade enquanto espécie (VYGOTSKY, 1999). A elaboração dessas ferramentas possibilitou aos homens desenvolver novos tipos de comportamentos e atividades práticas. Ao elaborar e usar essas ferramentas, o homem não interferiu somente sobre a natureza, mas transformou a si próprio. E passa, assim, a desenvolver uma forma de mediação indireta: sobre ele mesmo. O homem age sobre o próprio homem e, dessa forma, também transforma a realidade humana, pois interfere no comportamento alheio e em seu próprio comportamento. A linguagem simbólica é a forma fundamental de mediação entre o homem e ele mesmo e sobre a natureza. O domínio das funções psicológicas superiores, dimensão dos instrumentos psicológicos (VYGOTSKY, 1999), só é possível graças ao processo dialético de produção de novos instrumentos técnicos, com vistas à satisfação de necessidades concretas, como foi com a linguagem simbólica, que nasceu de uma necessidade real de comunicação entre os homens. As necessidades, nesse sentido, vão se sofisticando, não se reduzem somente a fins biológicos de sobrevivência (comer, procriar, dormir etc.). […] A cultura origina formas especiais de conduta, modifica a atividade das funções psíquicas, edifica novos níveis no sistema de comportamento humano em desenvolvimento. […] No processo de desenvolvimento histórico, o homem social modifica os modos e procedimentos de sua conduta, transforma suas inclinações naturais e funções, elabora e cria novas formas de comportamento especificamente culturais. (VYGOTSKY, 2000, p. 34 – tradução nossa) O salto dialético da compreensão de Vygotsky (2000), contrário à adoção do esquema fundamental estímulo-resposta, está na compreensão de que o uso de ferramentas modifica qualitativamente a conduta humana, produz adaptação ativa e não passiva sobre a natureza. Portanto, o estudo do desenvolvimento da conduta humana deve partir do estudo da história da conduta, sendo que esta depende da situação em que surge habitualmente, na história da espécie e na história do indivíduo. O comportamento humano

estará condicionado à situação social de desenvolvimento, isto é, ao sistema de relações no qual o indivíduo está inserido, o que já foi consolidado em termos de desenvolvimento e aquele nível que está em vias de ser alcançado. A compreensão de Vygotsky (2000) sobre o comportamento humano se fundamenta na importância da atividade humana para o desenvolvimento de suas formas superiores de conduta. A criação e o emprego de motivos auxiliares, chamados de signos, constitui o início do autocontrole do comportamento do homem, ou seja, de uma forma cultural de desenvolvimento da conduta. Isso significa que o homem é o único animal capaz de criar estímulos artificiais, isto é, de criar motivos auxiliares à conduta, a fim de controlar a si mesmo e a conduta alheia. Pois é o próprio homem quem, ativamente, cria uma situação artificial, introduzindo esses estímulos complementares. Diferentemente dos animais, que estão à mercê de esquemas adaptativos, o homem intervém ativamente nas situações postas a ele, determinando de antemão sua conduta e sua escolha com a ajuda dos estímulos-meios que ele mesmo introduz e que dão significado às coisas ao seu redor (VYGOTSKY, 2000). A superação das formas inferiores de conduta pelos processos culturais de domínio evidencia a natureza social do homem e do seu modo de adaptação, em última análise, de sua personalidade. Com base na introdução desses estímulos artificiais, é possível que o homem se adapte ativamente à natureza, opere ativamente com esses ou aqueles vínculos entre os estímulos, externamente, para assim regular-se internamente. Esse processo consiste que uma forma de conduta – a inferior – passa a outra, que chamamos convencionalmente de superior como mais complexa no sentido genético e funcional. A linha que separa ambas formas é a relação entre o estímulo e a resposta. Para uma das formas, o traço essencial seria a completa – em princípio – determinação da conduta pela estimulação. Para a outra, o traço, igualmente essencial, seria a autoestimulação, a criação e o emprego de estímulos-meios artificiais e a determinação da própria conduta com sua ajuda. (VYGOTSKY, 2000, p. 82 – tradução nossa) O emprego de signos auxiliares como meio de controle do comportamento não surgiu espontaneamente na história dos homens. A vida em sociedade cria a necessidade de que a conduta dos indivíduos seja subordinada às exigências sociais, o que permite a formação de complexos sistemas de significação. Isso só é possível graças à linguagem simbólica, o mais fundamental sistema de relação social entre os homens, que permite que influam uns sobre os outros. Interessa então, investigar o momento em que a linguagem, enquanto influência social transforma-se em meio regulador da própria conduta, uma vez que entendemos que esse processo não se dá de forma natural, mas deriva da própria atividade humana e de como os indivíduos se organizaram socialmente ao longo da filogênese, da história da espécie (VYGOTSKY, 2000). Ao se debruçar na ontogênese, na história do indivíduo, Vygotsky considera que são as relações sociais com os adultos que condicionam desde o início o

desenvolvimento da atividade mental da criança, é fundamentada nelas que ela passa a adquirir novos conhecimentos e novas formas de conduta. Como acertadamente aponta Leontiev (2010), ao nascer, o bebê é mero candidato a ser humano. É baseada no outro, nos adultos e no meio social como um todo que a criança se humaniza. As relações sociais que são estabelecidas entre criança e os adultos que a circundam dão a base para o desenvolvimento de novos sistemas funcionais ² . Por exemplo, no caso do bebê pequeno, que já está imerso num sistema linguístico, mas ainda não possui as formas de comunicação superior com os adultos, a apropriação destas vai depender de maneira decisiva da relação que o adulto estabelece entre ele o meio. O elo entre o mundo e o bebê se dá na mediação do adulto. Nomear objetos circundantes, dar ordens e instruções à criança são maneiras que os adultos, mães e pais, principalmente, modelam sua conduta já em tenra infância. Essas instruções permitem que a criança conheça o mundo a sua volta e dão molde para que futuramente formule seus próprios desejos e intenções. Segundo Luria (1966), a capacidade do homem de focar sua atenção em determinado objeto ou estímulo tem raízes no momento em que a mãe mostra ao bebê determinado objeto e lhe dá um nome. A palavra que designa o objeto configura suas propriedades funcionais essenciais e o põe dentro da categoria de objetos que possuem propriedades similares; contribui para a complexa tarefa de análise e síntese da criança, e logo se funde ao complexo sistema de conexões que atuam sobre ela e condicionam sua conduta. (LURIA, 1966, p. 10 – tradução nossa) Baseada nisso, a criança começa também a ser capaz de designar os objetos, tal como aprendeu com os adultos, e põe-se ativamente nessa ação, o que é fator fundamental para o desenvolvimento de seus processos mentais superiores. Isso se explica tomando como base a chamada lei da internalização , desenvolvida por Vygotsky (2007), na qual explicita a essência social das funções psicológicas superiores, que, ao longo do desenvolvimento aparecem duas vezes: primeiramente, enquanto funções interpsíquicas , expressas nas atividades coletivas e sociais e, num segundo momento, como processos internos do pensamento, as funções intrapsíquicas (VYGOTSKY, 2007). Ao internalizar as formas culturais de comportamento por meio de uma longa série de eventos (imitação, aprendizagem dos sistemas de signos e significados sociais etc.), a criança pode reconstruir toda a sua atividade psicológica (VYGOTSKY, 2007). Ao agir ativamente no seu meio, como faz ao brincar – manipulando objetos, imitando comportamentos socialmente estabelecidos, operando com a imaginação –, a criança o modifica, e é capaz de adaptar sua conduta a esse meio modificado bem como suas influências, o que configura os primeiros passos rumo à regulação interna de sua atividade e de seu comportamento (LURIA, 1966). VYgotskY (2000; 2007) e Luria (1966) evidenciam a importância da atividade prática da criança para o processo de desenvolvimento do controle do comportamento. A relação da linguagem com a atividade prática da criança permite que posteriormente a primeira comece a guiar a última, que a

criança consiga inibir seus impulsos diretos, formulando verbalmente o que quer fazer (LURIA, 1966). Ou seja, na sua atividade prática, a criança começa a se utilizar da linguagem para controlar suas ações e organizar-se internamente. Quando a criança brinca, mesmo que na aparência corresponda a uma atividade completamente livre, na qual a criança se deixa guiar por desejos, em sua essência, trata-se de uma atividade na qual a criança está diretamente tendo que lidar com o controle de seus impulsos e, principalmente, com as regras estabelecidas na própria brincadeira (ELKONIN, 2009). É preciso que a criança se organize, que se submeta a um determinado conjunto de regras, que espere a vez do outro, no caso de brincadeiras coletivas etc. Por isso, é tão importante que sua atividade seja organizada, tanto dentro quanto fora do ambiente de aprendizagem escolar. Cabe aos adultos do entorno social da criança contribuir para o desenvolvimento e aprimoramento dessas novas formações mentais e reguladoras, preparando e incluindo novos tipos de relações entre os objetos e as palavras, entre a brincadeira e as ações requeridas, entre a realidade da criança e o que é de ordem teórica. O papel da linguagem para o controle do comportamento tem relação com o que Luria (1966) denominou de conexões temporárias, isto é, as conexões cerebrais baseadas na linguagem, que diferem do tipo de aprendizagem animal baseada no reforçamento e repetição. Essas conexões são incorporadas ao sistema de orientação do indivíduo e inibem as reações impulsivas diretas. Diferentemente dos animais, que necessitam de reforçamento para o estabelecimento gradual de um comportamento, na conduta complexa do homem esse processo ocorre por meio do estabelecimento de uma nova regra e da consequente apropriação de seu significado. Esse fato atesta para a importância da experiência previamente sistematizada, da riqueza qualitativa de estímulos e experiências para o desenvolvimento do psiquismo da criança (LURIA, 1966), bem como das emoções carregadas por elas. Para o autor, as emoções envolvidas nas instruções verbais dos adultos, por exemplo, auxiliam a moldar as funções inibitórias da linguagem da criança que inexistem no início, essenciais para a superação de suas reações motrizes involuntárias. Destacamos como, para Luria, era interessante não somente o momento que a criança começa a ação, mas também os mecanismos que tornam possível que ela a interrompa de modo voluntário. Esse momento indica o caráter autorregulador da conduta. Por isso, é importante não só o conteúdo da instrução, mas também da forma como essa instrução é dada, o que nos faz pensar em como tem sido exigido o controle da atenção da criança, como os adultos esperam e ensinam a criança a controlar sua conduta nas mais diversas situações, escolares ou cotidianas. Com base nisso, Luria (1966) afirma que o mecanismo que determina a influência reguladora da linguagem sobre a criança é composto de dois momentos: o impulso verbal enervador, correspondente à inervação dos órgãos da linguagem, isto é, a excitação da área motora da linguagem no córtex cerebral; e o sistema de conexões seletivas significativas, que são requeridas pela linguagem, que transforma a instrução num sinal complexo para a criança (LURIA, 1966). Esses dois momentos regulam a organização do comportamento da criança e indicam a unidade entre a matéria (o cérebro) e as relações sociais (linguagem) no desenvolvimento psíquico.

Portanto, para o autor, era imprescindível analisar a atividade humana com base na relação dialética entre o psiquismo e o substrato orgânico. Ao se debruçar no estudo da função reguladora da linguagem, entende-se que ela é progressivamente transformada ao longo da história e das aprendizagens pelo qual a criança se apropria. Primeiramente, a linguagem tem caráter impulsivo, seu uso permite o estabelecimento de conexões eletivas e significativas, isto é, permite que a criança inicie a ação por meio do uso da linguagem. A etapa final é marcada pela redução das formas externas de linguagem, a linguagem exterior, e a ascensão de formas mais complexas de linguagem, a linguagem interior, que constitui um componente tanto do pensamento quanto da ação volitiva. Essa estreita relação entre linguagem interior e pensamento leva a criança a um novo patamar de desenvolvimento tipicamente humano, para o domínio das funções psicológicas superiores (LURIA, 1966). Nesse nível superior, afirma-se que as operações mentais têm caráter mediado, qualidade que altera toda a estrutura dos processos de conduta e manifestam o componente ativo da personalidade humana (VYGOTSKY, 2000). Assim, o controle da conduta expressa o domínio dos signos externos para fins de autorregulação e o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, alterando todo o curso de desenvolvimento das capacidades da criança em termos de aprendizagem. Por mais que saibamos que o estudo das funções psíquicas superiores leve em conta a unidade desses processos, didaticamente, focamos o desenvolvimento da atenção voluntária, uma vez que é a função que está no centro das discussões sobre o TDAH e sua relação com a medicalização na infância. Segundo Vygotsky (2000), só é possível compreender a história da atenção da criança se a compreendermos em conjunto com a história do desenvolvimento de sua conduta organizada. Sabemos que a criança pequena é totalmente regulada por suas necessidades orgânicas, os chamados determinantes biológicos, que dizem respeito principalmente à alimentação e posição espacial do bebê no ambiente. Ao longo da maturação orgânica, os determinantes visual e acústico vão também se formando, correspondendo à fase de maturação natural dos dominantes, a que diz respeito à base natural ou primitiva do desenvolvimento da atenção (VYGOTSKY, 2000). Ao longo do crescimento do bebê e de suas capacidades concretas de agir e intervir no mundo, o crescente domínio da linguagem ao longo do desenvolvimento cultural permite que um tipo qualitativamente distinto de atenção se forme. A criança passa a subordinar cada vez mais sua atenção, e cada vez menos sendo subordinada ao seu funcionamento orgânico. Mas esse processo não ocorre de forma espontânea ou linear; o desenvolvimento voluntário da atenção também tem sua raiz social (VYGOTSKY, 2000). A atenção voluntária é um processo de atenção mediada enraizada interiormente e que o próprio processo está inteiramente subordinado às leis gerais do desenvolvimento cultural e da formação de formas superiores da conduta. Isso significa que a atenção voluntária, tanto por sua composição, como por sua estrutura e função, não é simples resultado do

desenvolvimento natural, orgânico da atenção, e sim o resultado de sua transformação e reestruturação através da influência de estímulos-médios e externos. (VYGOTSKY, 2000, p. 224 – tradução nossa) Vygotsky (2000) aponta o ato de indicação como o princípio do desenvolvimento da atenção voluntária. O gesto indicativo do bebê, que inicialmente é uma tentativa de alcançar o objeto, e significado pelos adultos ao redor como uma forma de a criança ter uma necessidade a ser satisfeita, serve como estímulo complementar da operação a ser realizada pela criança. A criança primeiramente tenta agarrar o objeto, o adulto responde ao ato de apontar, pegando o objeto etc., não somente satisfazendo sua necessidade no momento, mas antecipando uma etapa do desenvolvimento, ao falar com o bebê e interagir com ele. Tendo esse momento como marco, a atenção voluntária diz respeito à superação das operações imediatas para o funcionamento mediado dessa função. Isto é, como a criança se torna capaz de captar o objeto conforme sua necessidade e não somente sendo atraída por ele. Denominamos atenção voluntária aquela que consiste na etapa superior da atenção involuntária (ou natural), que surge desta última em certas condições específicas de adaptação do homem ao seu meio mais complexo. A atenção voluntária, em conjunto com o desenvolvimento das demais funções psicológicas superiores, no geral, possibilitou ao homem dedicar-se a uma atividade inicialmente pouco atraente (porém necessária à sua sobrevivência como espécie), como é o trabalho que, por sua vez, permitiu que o desenvolvimento cultural da sociedade se tornasse radicalmente mais complexo (VYGOTSKY, 2000). Nas diversas fases do desenvolvimento histórico e da vida do indivíduo, a atenção voluntária desempenhou papel fundamental para a realização de cada atividade dominante: a atividade objetal manipulatória, na primeira infância; a brincadeira, na criança préescolar; o estudo, na criança escolar e na idade de transição; e o trabalho, na vida adulta. A base natural da influência dos signos sobre a atenção não radica na formação de nossas vias como signos da memória, mas na mudança das relações intercentrais na catálise dos processos correspondentes, dos reflexos complementares do tipo “o que é?”. Supomos que assim que se desenvolve na criança a atenção voluntária. Precisamente as primeiras palavras que dirigimos às crianças cumprem função indicadora. (VYGOTSKY, 2000, p. 231-232 – tradução nossa) Na compreensão de Vygotsky (2000), o efeito de atrair a atenção da criança significa nada mais que reativar de maneira indireta conexões cerebrais antigas, além de estruturar novos procedimentos de abstração. A linguagem simbólica, nesse sentido, assume o papel de meio de orientação da atenção no processo de desenvolvimento do pensamento abstrato. Mais que isso, a atenção voluntária se relaciona também com a atividade de escolha na criança. A capacidade de escolha assinala aquele momento crucial em que a atenção passiva (natural) se converte em atenção ativa. Nessa etapa é possível que ações volitivas e atos eletivos estejam relacionados, no verdadeiro sentido da palavra.

Ao operar com a linguagem, utilizando signos auxiliares, a fusão entre o campo sensorial e o sistema motor é rompida, isto é, a criança não necessita mais do contato imediato com o objeto para operar com ele, pode fazê-lo indiretamente, o que torna possível novos tipos de comportamento. A criança que anteriormente solucionava o problema impulsivamente, resolve-o, agora, através de uma conexão estabelecida internamente entre o estímulo e o signo. O movimento, que era anteriormente a própria escolha, é usado agora para realizar a operação já preparada. O sistema de signos reestrutura a totalidade do processo psicológico, tornando a criança capaz de dominar o seu movimento. Ela reconstrói o processo de escolha em bases totalmente novas. (VYGOTSKY, 2007, p. 27) Vygotsky (2007) atribui grande importância à atenção quando se refere ao uso de instrumentos. Primeiramente, focar a atenção ou ser incapaz de fazêlo é determinante para a realização de qualquer atividade prática. O grande salto qualitativo entre os homens em relação aos demais animais superiores é a possibilidade de essa atenção, ligada ao campo perceptivo, ser ao mesmo tempo libertada deste último. Enquanto que os animais precisam ver para prestar atenção a algo, os homens prestam atenção para ver algo. Com o auxílio da linguagem, a criança opera com a atenção na situação de maneira muito mais dinâmica, para além da situação imediata, transitando entre o passado e o presente da atividade até traçando perspectivas futuras (VYGOTSKY, 2007). Por isso, destacamos novamente a mediação fundamental do adulto, no que tange ao direcionamento dos estímulos para a realização de uma atividade. Não basta somente fornecer os instrumentos, é preciso guiar o processo de conhecimento, de manipulação, enfatizar sua função, estimular a palavra etc. A atenção voluntária, em conjunto com as outras funções psíquicas superiores, permite que a criança desenvolva novas relações entre suas ações no mundo e suas necessidades e motivações, que estão socialmente enraizadas. Isso compreende uma verdadeira revolução no sistema voluntário e afetivo da criança, que não mais se guia somente para a preocupação do resultado, mas se empenha para a natureza da solução da situação proposta (VYGOTSKY, 2007). Assim, a relação entre a atenção voluntária e o controle da conduta reside no desenvolvimento do comportamento voluntário, na escolha consciente, um ato tipicamente humano. Na concepção materialista, compreende-se que nenhuma escolha é livre em absoluto, pois os motivos não são livres, mas socialmente engendrados. A liberdade de escolha, o livre-arbítrio, consiste na tomada de consciência do indivíduo ante a situação imposta, e isso só é possível graças ao conhecimento historicamente acumulado e apropriado na história individual. A lei fundamental do comportamento diz que nossa conduta está determinada pelas situações, que são os estímulos que produzem a reação e que, portanto, a chave para dominar a conduta radica no domínio dos estímulos. Somente através dos estímulos correspondentes podemos dominar nosso comportamento. (VYGOTSKY, 2000, p. 289 – tradução nossa)

O ato volitivo, nesse sentido, exprime o momento de maior liberdade do indivíduo, quando ele toma consciência das determinações da situação. A atividade voluntária e o controle do comportamento, apoiados no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como a atenção, a percepção e a memória mediada, por meio do advento da linguagem, nada mais são do que produtos do desenvolvimento histórico e cultural do comportamento humano. A imensa peculiaridade da vontade consiste em que o homem não tem poder sobre sua própria conduta, a exceção do poder que as coisas têm sobre ela. O homem, no entanto, condiciona o poder das coisas sobre sua conduta, o põe a serviço de seus objetivos e o orienta a seu modo. Com sua atividade externa modifica o meio circundante e influi assim sobre seu próprio comportamento, o subordina a seu poder. (VYGOTSKY, 2000, p. 292 – tradução nossa) Pensando nas possibilidades de desenvolvimento das funções psíquicas superiores e do controle da conduta disponíveis atualmente, é necessário refletir sobre o processo de inserção da criança na cultura, qual o papel dos mecanismos educativos nesse processo, em contraste com os processos puramente biológicos e evolutivos, para o desenvolvimento de seu psiquismo. Pois, consideramos que a própria cultura reelabora profundamente o desenvolvimento natural da conduta da criança, orienta de forma histórica e cultural o curso de seu desenvolvimento (VYGOTSKY, 2000). Para Vygotsky, a educação deve se antecipar e se adaptar a cada etapa do desenvolvimento, isto é, não se podem desprezar as etapas inferiores ou primitivas da criança, por exemplo, da idade escolar, pois são o ponto de apoio para o salto adiante, para as formas superiores de intelecto. O desenvolvimento da conduta da criança tem múltiplas determinações, perpassadas principalmente pelas apropriações dos produtos da cultura, por meio dos signos da linguagem, a grande propulsora do desenvolvimento do psiquismo. Nesse sentido, dispor de instrumentos que permitam disparar discussões a respeito da infância e de como a criança se desenvolve torna-se importante ferramenta de formação dos profissionais da educação, em tempos de crescimento exponencial de diagnósticos de distúrbios da atenção e da consequente medicalização na infância. O próximo item se concentra na discussão do documentário Tarja Branca (2014) e suas possibilidades de reflexão e análise do desenvolvimento da conduta da criança e de sua atenção voluntária por meio da brincadeira, atividade principal da idade pré-escolar. O documentário Tarja Branca (2014) e a medicalização na infância Com base nos estudos de Vygotsky, primordialmente em sua obra Psicologia da Arte (1972), buscamos, a seguir, enfatizar sua compreensão sobre o papel que a arte, enquanto produto histórico produzido pelos homens e não apartada da totalidade das relações de produção, tem para a formação humana. Não só compartilhamos dessa definição, como também compreendemos a arte em suas múltiplas expressões como dotada da possibilidade de se constituir instrumento de transformação da realidade.

O cinema, como forma de arte produzida dentro da sociedade capitalista, também pode dotar-se como instrumento para o desenvolvimento das potencialidades humanas e transformações qualitativas entre os homens e produtos sociais. Embora Vygotsky não tenha trabalhado diretamente em seus estudos com o cinema, enfatizamos aqui a natureza social da arte cinematográfica e destacamos também sua natureza psicológica, relação possível por meio da obra vigotskiana. Por essa perspectiva, a arte é considerada muito mais que um adorno na vida dos homens e representa o centro de todos os processos biológicos e sociais dos indivíduos, uma tentativa de equilíbrio entre estes e o meio que os circunda (VYGOTSKY, 1972). Esse posicionamento faz pensar no importante papel que a arte desempenha para a construção da realidade e do futuro, uma vez que surge da realidade e está direcionada a ela, sendo determinada e determinando a estrutura que desempenhará na vida dos homens. De forma breve, consideramos o processo artístico analisado por Vygotsky (1972) como baseado na unidade entre forma e conteúdo , e que leva em conta tanto o processo de criação da obra como o efeito causado no fruidor, como é almejado também por meio de obras fílmicas. O conteúdo da obra compreende todos os materiais dispostos pelo artista no momento da criação, como palavras, sons, imagens, fábulas. Como o artista distribui esses materiais designa a forma da obra de arte. Segundo o autor, esses aspectos são fundamentais para se compreender o efeito da obra de arte e seu valor como produto histórico da humanidade. Um verso não é a simples soma de sons que o formam, mas um sucessão dos elementos, ou das palavras que, ao disporem-se uma atrás da outra, formam uma certa relação, a qual está completamente determinada pela ordem de sucessão dos elementos, deste modo, dois acontecimentos ou ações ao se unirem, constituem uma certa correlação dinâmica completamente determinada pela ordem e disposição desses acontecimentos. (VYGOTSKY, 1972, p. 189 – tradução nossa) Tendo como premissa que a obra de arte não é produto do acaso, ou de um dom ou intuição do artista somente, mas, sim, um sistema organizado de estímulos, que o artista prepara de maneira consciente e deliberada, a arte expressa a voluntariedade da atividade humana, uma vez que com ela busca sempre como objetivo final a reação estética. A obra artística busca uma intencionalidade, um efeito no fruidor, que tanto pode ser de ordem subjetiva quanto se desdobrar em uma ação objetiva na realidade (VYGOTSKY, 1972). Para compreender o impacto da arte é preciso incluir na discussão o conceito de catarse estética . A maneira como o artista trabalha os diferentes materiais, dispondo-os de determinada maneira resguarda sempre uma relação de oposição entre a forma e o conteúdo. Um exemplo disso é a própria narrativa fílmica, que nem sempre precisa seguir uma ordem cronológica linear para expor os acontecimentos. Essa disposição é fundamental para se alcançar o objetivo desejado com a obra. Assim, os conteúdos expressos na obra artística transformam as percepções do fruidor em expressões completamente diferentes. E essa transformação denota sempre um movimento dinâmico da arte, está sempre transmutando, subordinando e deformando os conteúdos

que a compõem. Para Vygotsky (1972), a catarse estética é o verdadeiro sentido da obra de arte, é o momento de total transmutação dos sentimentos que ela desencadeia no fruidor. Outro aspecto salientado pelo autor a respeito da obra de arte é sua unidade afetivo-cognitiva. Por meio dela que acontece o desvendamento das relações entre a essência e a aparência da obra, o que põe o fruidor em contato e na mesma posição que o artista, permite a experiência com base nos afetos e emoções passados por meio da obra, dos personagens, como no caso da literatura (VYGOTSKY, 1972). É possível fazer correspondência entre a arte cinematográfica e o momento de desvendamento dessas intenções e possibilidades de vivência das emoções postas no filme. Emocionar-se, indignar-se com alguma situação a que são expostos os personagens, conhecer fatos históricos, bem como refletir e suscitar a discussão de algum tema ou polêmica permite que o espectador se coloque em posição horizontal com o artista, pois o caminho entre ambos foi percorrido por meio da capacidade de o fruidor apreender o sentido interno da obra de arte. Compreendendo a arte cinematográfica como arte produzida pelos homens num dado momento histórico e em certas condições sociais e materiais, entende-se que o cinema, tanto o ficcional quanto o documentário, apoia-se na realidade e é produzido para a realidade. Como aponta Rodrigues (2010, p. 62), “a subjetividade é indissociável de qualquer arte. E o documentário, como arte cinematográfica, é uma obra pessoal de seu realizador. O documentarista não deve ser visto apenas como um meio para transmitir determinada realidade”. Nichols (2005, p. 47) sintetiza que o cinema documentário “[…] não é uma reprodução da realidade, é uma representação do mundo em que vivemos”. O documentário representa uma determinada visão de mundo, portanto, parte da realidade e dos sujeitos que o produzem. Dessas considerações que embasaram a análise do documentário Tarja Branca (2014), tomamos essa obra fílmica como contribuição para a reflexão de conceitos referentes ao desenvolvimento infantil e uma posterior crítica à medicalização de comportamentos ocorridos nesse período da vida na sociedade atual. O documentário Tarja Branca (2014) pretende, por meio de depoimentos de artistas, músicos, psicólogos e diferentes profissionais, discutir e refletir sobre um dos atos mais ancestrais desenvolvidos pelo homem: o brincar. O documentário inicia com relatos de diferentes pessoas descrevendo quais eram suas brincadeiras favoritas e principais durante a infância. Mas essa não é uma mera descrição: nos relatos temos contato com os sentimentos e emoções que essas lembranças suscitam nos entrevistados, de nostalgia, alegria, orgulho, às vezes tristeza. É impossível não se colocar no lugar do outro e começar a recordar das próprias brincadeiras e como isso contribuiu para moldar quem hoje somos, nossa personalidade. Os relatos dos entrevistados exprimem uma experiência vivida e sentida sobre o ato de brincar e sua importância para o desenvolvimento e para a formação geral da pessoa. A pluralidade desse ato transita desde a concepção de que o brincar é uma atividade natural da criança até a ideia

de que brincar é a primeira ligação do sujeito com o mundo social. Ao longo dos depoimentos de diferentes e instigantes enfoques, percebemos que têm algo em comum: a ideia de que brincar é um ato que expressa toda a liberdade, criatividade e expansão do sujeito, é a unidade de suas potencialidades . Indo na direção do que afirma Vygotsky (2009) a respeito da natureza social do ato de brincar, percebemos por meio do documentário, tanto pelos relatos quanto pelas imagens de diversas brincadeiras (com brinquedos, instrumentos construídos pelas próprias crianças, cantigas etc.), que não é uma atividade inata da criança, tampouco natural. Pelo contrário, a gênese da brincadeira da criança é social, pois está vinculada ao meio em que está posta e às condições objetivas que lhe permitem se expressar, bem como às suas necessidades e motivações. Segundo Elkonin (2009), a brincadeira é a atividade principal da idade préescolar, cujo cerne está na reprodução das atividades humanas. Sobre o conceito de atividade dominante ou principal, partimos da concepção de Leontiev (2010): A atividade principal é aquela cujo desenvolvimento governa as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e traços psicológicos da personalidade da criança em cada estágio de seu desenvolvimento: devemos, por isso, falar da dependência do desenvolvimento psíquico em relação à atividade principal e não à atividade em geral. (LEONTIEV, 2010, p. 63) Ou seja, a atividade principal não é uma atividade que surge espontaneamente no curso do desenvolvimento da criança, mas é condicionada pelas relações sociais estabelecidas, sua situação social de desenvolvimento. A transição de um estágio do desenvolvimento infantil para outro ocorre por conta das mudanças na atividade principal, ocasionadas pela contradição entre as potencialidades da criança e o seu modo de vida atual. Assim, a atividade é não só reorganizada, como propicia o surgimento de diferentes tipos de novas atividades, dando continuidade a um novo estágio no processo de desenvolvimento psíquico da criança. Patente ao tema da medicalização é a relação entre a atividade desempenhada pelos indivíduos e a realidade a qual produzem e estão inseridos. No caso da brincadeira, refletimos a respeito do seu papel em nossa sociedade contemporânea – para crianças e adultos –, estimulando-nos a pensar nos condicionantes sociais que ao longo dos anos nos fizeram substituir o prazer do “brincar” pelo imperativo do “se ocupar” e como essas circunstâncias históricas e sociais produzem crianças que não aprendem mais a brincar e adultos que não sabem mais desfrutar das atividades diárias, de sua atividade principal, o trabalho. Vivemos tempos de crise do capitalismo, suas contradições mais tensionadas do que nunca. Nesse contexto, um dos grandes trunfos do mercado é a consolidação da cultura do consumo, das necessidades efêmeras, que se confundem com a necessidade de vender. Essa cultura do consumo, não é surpresa, já começa a produzir essas falsas necessidades muitas vezes na infância. As crianças não aprendem a conscientizar uma necessidade, pois o desejo e a criação (materializada no brinquedo comprado) já estão dados.

Com o que nos deparamos hoje é uma generalização de um quadro preocupante: nem crianças nem adultos são capazes de levar suas atividades até as últimas consequências, isto é, concentrarem-se tanto na atividade quanto no sentido daquela atividade, não são capazes de captar a contribuição daquela atividade para sua formação geral, a brincadeira e o trabalho são atividades apenas para “passar o tempo”, se ocupar, ou garantir o sustento no fim do mês. Nesse contexto mais amplo, a infância, em particular, a brincadeira, atividade complexa e fundamental para o desenvolvimento da criança, também se transforma em mercadoria a ser consumida imediatamente e logo deixada de lado para dar lugar ao próximo produto visto nos comerciais de televisão. E isso não afeta só as crianças, mas toda a dinâmica entre os pais, o círculo social primeiro que deveria orientar a atividade da criança pequena. Para os pais, a riqueza de experiência da criança se traduz em riqueza de recursos. Quanto mais brinquedos, melhor: a quantidade substitui a qualidade. Tendo em vista que a situação social de desenvolvimento da criança condiciona sua atividade principal em determinado momento da vida, refletimos a respeito de como as relações sociais e aprendizagens estabelecidas no cotidiano da criança têm impacto na sua formação e na sua brincadeira. No atual imediatismo e consumo excessivo de produtos e satisfações imediatas de necessidades, indagamos quais são os impactos para o desenvolvimento da capacidade de controle do comportamento das crianças em idade pré-escolar. Será que esse mundo está ensinando-as a esperar, a controlar seus impulsos, ou demanda que elas sejam imediatamente controladas, muitas vezes por via medicamentosa? Como um dos resultados, vivemos a expansão da medicalização como promessa de cura para essas angústias de pais, professores e profissionais que lidam com essas crianças: é a medicalização do cotidiano, o boom dos “tarja preta”. Souza (2015) considera a medicalização derivada da renovação das explicações organicistas centradas nos distúrbios de aprendizagem, que, antes de considerar as dimensões sociopolíticas dos processos de ensino-aprendizagem, afirmam as origens neurológicas e neuroquímicas para o não aprender, a dificuldade de focar a atenção e controlar o comportamento etc. Enfatizamos positivamente os avanços da ciência para a compreensão do cérebro, porém, destacamos que o funcionamento biológico é uma das partes constituintes do comportamento humano, a base dos processos socialmente mediados. Numa perspectiva materialista, não é possível considerar o saber biomédico como explicação exclusiva da complexidade dos processos psíquicos, como é a tarefa de controlar os impulsos, por exemplo. Pois da explicação biológica que se aceita como a única a ser adotada, como no caso do TDAH enquanto uma disfunção cerebral ³ , deriva os diagnósticos realizados cada vez mais precocemente, quando o desenvolvimento do controle da atenção está em vias de se formar e depende da mediação dos adultos do entorno da criança, dos métodos de ensino e das condições de escolarização, muitas vezes sequer consideradas condicionantes no processo. Assim, reduz-se o processo eminentemente social que é a

autorregulação da conduta a uma defasagem numa área específica do cérebro em formação. A experiência humana é reduzida, já em tenra infância, a um conjunto de sintomas, cabendo ao indivíduo ser “encaixado” em determinada categoria. No caso do TDAH, busca-se de fato encaixar a criança num rol de comportamentos indesejáveis – hiperatividade, desatenção ou combinando essas duas características, principalmente em contexto escolar, que supostamente estariam comprometendo sua aprendizagem. Segundo Bonadio e Mori (2013), o TDAH é descrito de forma sucinta como uma condição neurológica que compromete a aprendizagem e prejudica o desempenho escolar. É impossível não destacar os atuais índices de diagnósticos precoces de TDAH em crianças e como isso se reflete em todo o desenvolvimento, social e neurológico. Em termos mundiais e nacionais, vivenciamos uma verdadeira epidemia do processo de medicalização, sendo o Brasil o segundo país que mais comercializa o metilfenidato ⁴ , sendo que, em 2009. o número de caixas desse medicamento chegou ao número de 1.700.000. Esse quadro expressa o que Souza (2015) aponta a respeito do processo de se atribuir um fundamento puramente biológico a questões que são de ordem social, política e culturais. Assim, o contexto escolar se torna um terreno fértil para a proliferação desse fenômeno, sem levar em conta o planejamento pedagógico, a organização do ensino, as aprendizagens anteriores do alunado, as condições concretas para a efetivação do trabalho docente etc. Dessa “fórmula mágica” para educar, como é difundida a medicalização na infância, compreendemos que os modos artificiais de controlar o comportamento da criança substituem o desenvolvimento de seu autocontrole por vias de sua própria atividade e interação com o mundo social. Deve-se entender que esse fenômeno é fruto de circunstâncias históricas e sociais, em que a substituição da brincadeira autêntica pelo consumo é um dos desdobramentos do ápice das contradições do capitalismo. A criança é posta numa posição passiva, vista como incapaz de desenvolver-se ativamente por meio das ações educativas, ou de transformar-se criativamente e dominar sua atenção e comportamento, reduzindo-se a mera refém de uma pílula. Com o documentário Tarja Branca (2014), foi possível problematizar essas questões com profissionais que lidam diretamente com esse problema, bem como refletir as possibilidades da brincadeira e do lúdico em produzir e resgatar a autonomia dos indivíduos, tanto a criança que brinca como o adulto que trabalha e estuda. Responder a esses questionamentos postos começa no imperativo: brincar é urgente. A narrativa do filme brinca com os significados expressos na palavra “brincar” e, nesse processo, conduz o fruidor a resgatar suas vivências infantis e pensar sobre sua atividade de trabalho. Nesse sentido, entendemos que o documentário atende à unidade afetivo-cognitiva e também à contradição “forma e conteúdo”, almejados na obra de arte e expostas anteriormente. Levando em conta que a solução não se dá numa nostalgia desmedida, como se as condições atuais de existência nada oferecessem a essa geração para

superar as consequências da desumanização dos indivíduos, resgatar o prazer nas atividades plenamente humanas seria um remédio “tarja branca”. Pois, como pontua Vygotsky, o capitalismo atual e a divisão do trabalho “contêm dentro de si mesmos possibilidades infinitas para o desenvolvimento da personalidade humana” (VYGOTSKY, 1930/2004). Tendo em vista que a realidade é construída pelos homens e nunca está dada, é verdadeiro que as mudanças também devem partir de construções coletivas. Mais uma vez, usamo-nos de Vygotsky (1930/2004) para sinalizar a determinação da educação para esse processo de mudança, rumo a uma nova ordem social, focada no coletivismo, na unidade entre o trabalho físico e intelectual, em suma, na humanização plena dos indivíduos. A educação deve desempenhar o papel central na transformação do homem, nesta estrada de formação social consciente de gerações novas, a educação deve ser a base para alteração do tipo humano histórico. As novas gerações e suas novas formas de educação representam a rota principal que a história seguirá para criar o novo tipo de homem. (VYGOTSKY, 1930/2004, s/n) Pensando no aspecto primordial da educação no processo de transformação do homem, partimos para os resultados elencados com a experiência de formação de professores e de como as discussões suscitadas pelo documentário Tarja Branca possibilitou reflexões acerca dos processos envolvidos no desenvolvimento infantil, tomando como base o cinema como instrumento de formação de conceitos. Formação de professores: um remédio “tarja branca” A intervenção prática foi proposta à Secretaria Municipal de um município do estado do Paraná, que integra o projeto de pesquisa “Retrato da Medicalização da Infância no Estado do Paraná”, tendo como foco os professores da rede municipal de Ensino Fundamental. Para a realização do trabalho, foi elaborado um texto base contendo as categorias/conceitos a serem discutidos na atividade e os aspectos referentes ao documentário. No encontro, foram inicialmente discutidas as categorias atenção voluntária e controle do comportamento, com base na Psicologia Histórico-Cultural, para em seguida, com a exibição do documentário, traçar relações entre a atividade dominante da brincadeira e problematizar as questões atuais sobre a medicalização na infância e seus impactos no âmbito educacional. Os aspectos elencados nos relatos das professoras permitiram enfatizar a importância da atividade prática da criança na brincadeira e como, por meio desta, é possível ela desenvolver a autonomia e o controle do comportamento, destacando como a linguagem é fundamental nesse processo. Muitas professoras presentes concordaram que, na atualidade, a criança já não se apropria desse processo de forma ativa, e simplesmente toma conhecimento do produto pronto, do brinquedo que prontamente já não quer mais ou quer substituir por outro. Nesse ponto destacamos como esse fenômeno se relaciona com o desenvolvimento da atenção voluntária que, segundo Vygotsky (2000), num estágio mais básico é direcionada pela novidade do estímulo e por aspectos externos, que são mais atraentes para a criança pequena. Somente quando a criança desenvolve de forma voluntária sua atenção, é possível que se concentre em determinada atividade,

independentemente dos estímulos a sua volta, ou mesmo quando aquela atividade ou objeto não exercem uma atração tão forte. Foi discutido, com base nisso, como esse quadro contribui para a produção de pessoas que não regulam seus desejos e suas necessidades, principalmente na infância. Sobre o papel da brincadeira para o desenvolvimento da criança, destacouse como essa atividade possibilita o desenvolvimento da capacidade de resolver problemas, conflitos e situações complicadas. A responsabilidade e a organização também apareceram como fatores que permeiam a brincadeira e perduram até a vida adulta, auxiliando na realização das atividades do trabalho, como é apontado por Vygotsky (2007) ao se referir à brincadeira como um meio pelo qual a criança estabelece novas relações entre suas ações no mundo. Quando é destacado que ao brincar a criança aprende a se relacionar com o mundo e as pessoas a sua volta, a resolver problemas, traçar soluções e pô-las em prática a fim de atingir seus objetivos e satisfazer suas necessidades, estamos diante da plena revolução que se estabelece no sistema voluntário e afetivo da criança. Por meio de sua atividade prática e do brincar, ela passa agora a estender suas ações não só para a satisfação imediata de suas necessidades, mas também para centralizar seus impulsos em direção a como solucionar a situação proposta (VYGOTSKY, 2007). Sobre a importância da brincadeira na vida adulta, foi mencionado que, muitas vezes, no contexto da atual organização do trabalho, nem sempre é possível resgatar a afetividade, o lúdico e a criatividade em nossas funções e, nessa direção, poder usar da brincadeira e relacioná-la aos diferentes contextos da vida abre possibilidades para que nossas potencialidades se expressem, tal como se expressavam quando em nossa infância nas brincadeiras. No caso das professoras que participaram da atividade, com base nas respostas escritas e no momento da discussão em sala, pudemos perceber que existe um esforço em relacionar as brincadeiras ao trabalho docente, uma vez que se lida diretamente com diferentes crianças. Como expressa uma das respostas ao questionário sobre a necessidade de se integrar o brincar ao trabalho docente, “brincar faz com que os momentos de aprendizagem se tornem mais prazerosos”, o que possibilita a reflexão sobre a unidade afetivo-cognitiva discutida por Vygotsky (1972).

Desse destaque, concordamos com Facci (2004) ao considerar a centralidade do papel do professor nos processos de ensino-aprendizagem, ao enfatizar que a formação docente deve estar orientada para a transmissão dos conhecimentos elaborados ao longo da história, promover o processo de humanização, visando à superação da mera reprodução da cultura dominante. Assim, investir na formação do professor significa, em última análise, investir na formação geral do indivíduo, uma vez que a organização dos processos educativos é determinante para o desenvolvimento da criança. Toda e qualquer atividade referente ao processo educativo deve ser planejada pelo professor e, como apontam Leite e Souza (2017), deve se levar em conta o diagnóstico de desenvolvimento da criança; o conteúdo a ser trabalhado; a organização dos recursos simbólicos e materiais da atividade; a estrutura da atividade na etapa de desenvolvimento da criança. Em síntese, o planejamento pedagógico deve ser embasado por uma concepção de desenvolvimento que leve em conta a atividade principal da criança. Novamente, salientamos as condições concretas de existência e como elas condicionam a atividade principal ao longo do desenvolvimento e da formação da personalidade. Algumas respostas apontaram como muitas vezes esse desenvolvimento é, de certa forma, “podado” pela família, pelos pais, que, por conta de responsabilidades, falta de tempo, múltiplas jornadas de trabalho, condições materiais insuficientes e outros fatores, não acompanham as brincadeiras nem podem vivenciar essas experiências com os filhos. Disso refletimos a respeito da organização material e das relações sociais estabelecidas atualmente e como elas impactam o desenvolvimento dessa atividade na criança. Ou seja, das discussões suscitadas pelo documentário, foi possível atentar como a arte cinematográfica, aliada ao conhecimento teórico a respeito do desenvolvimento das funções psíquicas superiores, transforma-se em importante instrumento de formação de professores, diante das principais questões que permeiam o cotidiano escolar na atualidade, como é o fenômeno da medicalização na infância. Pois, ao passo que o adulto é o centro da relação entre a criança pequena e o mundo, o professor é o centro do processo de apropriação do conhecimento científico pela criança em idade escolar. A formação docente, nesse sentido, é não só necessária mas também indispensável para a superação das dificuldades enfrentadas em sala de aula pelas crianças diagnosticadas com supostos distúrbios de aprendizagem e pelo professor que necessita de instrumentalização para a efetivação de sua atividade de ensino. A criança, ao brincar, busca sempre se superar, conseguir realizar determinada atividade, seja pulando corda, jogando um jogo, construindo um brinquedo; na atividade docente assim também deve ser, isto é, cabe ao professor, dadas as condições plenas de trabalho, buscar que a criança se supere cada vez mais na aprendizagem daquele conteúdo. Considerações finais Com a realização da proposta didático-pedagógica, confirmou-se a possibilidade de o recurso cinematográfico, quando utilizado de maneira

planejada e adequada junto com o referencial teórico, ser dotado de caráter instrumental, não só disparador de novas reflexões a respeito do tema da infância e suas abrangências mas também aliado ao processo de formação de conceitos científicos pelo professor. Para a atividade, o documentário Tarja Branca foi essencial para a apresentação das categorias de análise “atenção voluntária” e “controle do comportamento” e permitiu que as professoras fizessem novas relações entre o conteúdo do documentário, os conceitos teóricos elencados no texto de apoio e as discussões posteriores. Com o material previamente elaborado e o conteúdo do documentário, foi possível discutido o papel que os signos da cultura possuem no desenvolvimento das funções psíquicas superiores, como reestruturam radicalmente a totalidade dos processos psicológicos, uma vez que novas conexões entre os objetos, a realidade e os homens são criadas (VYGOTSKY, 2010). Esse processo de formação científica permitiu que novos níveis de entendimento sobre o desenvolvimento da criança e o papel de sua atividade prática, sintetizado na brincadeira, fossem alcançados pelas professoras, culminando nas discussões acerca do atual fenômeno da medicalização e quais são suas consequências para a infância. Esse aspecto vai ao encontro da concepção do desenvolvimento dos conceitos científicos, um dos objetivos da atividade, o qual parte do mais elaborado, no caso, os enunciados formais e abstratos sobre os conceitos discutidos (controle do comportamento, atenção voluntária, atividade principal etc.), para chegar até a prática, a realidade do trabalho direto em sala de aula com alunos, sejam eles com ou sem problemas de aprendizagem. O conceito científico, nesse sentido, abre caminho para desenvolvimento de novos conceitos científicos e também espontâneos, permitindo que se amplie a apreensão das propriedades do fenômeno discutido, relacionando-o às vivências das professoras (VYGOTSKY, 2010). Nesse sentido, faz-se necessário enfatizar a relação entre o trabalho docente e as condições concretas de trabalho, nas quais inclui a formação deste profissional, tais como os recursos físicos da escola, materiais didáticos, possibilidades de troca de experiências em sala e fora dela, dinâmica da instituição, planejamento, salário etc. Pois o professor, enquanto integrante do gênero humano compromissado com a transmissão e apropriação dos saberes historicamente acumulados, não é descolado da realidade. Como aponta Facci (2008), o professor, quando não consegue se realizar psicológica e concretamente em sua prática docente, pratica uma atividade alienada e/ou sofre as consequências físicas e psicológicas desse desgaste, o que impacta diretamente em sua prática em sala de aula e na aprendizagem dos alunos. Portanto, não podemos nos esquecer que o processo de desenvolvimento das funções psíquicas superiores não depende do aluno somente, e que a escola e a sociedade não podem exigir um desenvolvimento espontâneo de qualquer uma delas, seja da atenção voluntária, seja da memória mediada, do pensamento lógico etc. (BOCCATO; LUCENA; FRANCO, 2017). Como sinaliza Facci (2008), a Psicologia também deve estar atenta e comprometida em sua prática com a promoção da humanização do professor, para além dos saberes do senso comum e rumo aos conhecimentos científicos e domínio das ferramentas metodológicas dessa

atividade. Enquanto membro ativo da sociedade, cabe ao professor estar apto a colaborar com a transformação social e a transformação de sua própria consciência, e, para isso, ter uma formação teoricamente sólida e voltada para a emancipação dos indivíduos. Concluímos que a atividade teórico-prática forneceu subsídios conceituais às professoras a respeito dos processos sócio-históricos do desenvolvimento infantil, das possibilidades de salto qualitativo desse desenvolvimento por meio da brincadeira, e de como explorar o recurso cinematográfico enquanto instrumento planejado auxiliou no momento da discussão. Permitiu-nos vislumbrar como a atividade de formação docente possibilitou uma tomada de consciência por parte das professoras quanto à a instrumentalização teórica ante o fenômeno da medicalização por meio da relação entre os conceitos e as próprias vivências. Em suma, a reestruturação de suas percepções acerca da infância e seus fenômenos, por meio de bases totalmente novas, buscando uma reconfiguração da sua prática docente com os alunos. Beatriz Moreira Bezerra Vieira Psicóloga, especialista em teoria Histórico-Cultural, mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Silvana Calvo Tuleski Psicóloga, doutora e pós-doutora em Educação pela Unesp – Campus Araraquara, pós-doutoranda pela mesma instituição. Docente da graduação e pósgraduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Referências: BENCZIK, E. B. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade : atualização diagnóstica e terapêutica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. BOCCATO, T. N. A.; LUCENA, J. E. E.; FRANCO, A. F. (2017). Da medicalização ao processo educativo: a necessidade de uma teoria do desenvolvimento da atenção. In: LEONARDO, N. S. T. et. al. (org.). Medicalização da educação e Psicologia Histórico-Cultural : em defesa da emancipação humana. Maringá: Eduem, 2017. p. 193-214. BONADIO, R. A.; MORI, N. N. Transtorno de déficit de atenção/ hiperatividade : diagnóstico e prática pedagógica. Maringá: Eduem, 2013. ELKONIN, D. B. Psicologia do Jogo . São Paulo: Martins Fontes, 2009.

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Glaucia Rodrigues da Silva Daiane de Oliveira Neves Rafael Barbosa da Silva de Oliveira Débora Lopes de Castro dos Santos Introdução Este capítulo tem por objetivo a apresentação do projeto de extensão intitulado “Atendimento Psicoeducacional a crianças com problemas de escolarização e diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH”, da Universidade Estadual de Maringá (UEM). A Constituição Federal estabelece que a universidade brasileira seja fundamentada pelo princípio da indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão (BRASIL, 1988). Sendo assim, é importante apontar que para além da extensão, é preciso destacar, também, o ensino e a pesquisa como constituintes do tripé que, em conjunto, embasam as atividades deste projeto. Tradicionalmente, compreende-se o ensino como a transmissão de conhecimentos. Em relação à pesquisa, trata-se da produção de novos conhecimentos, caracterizada pelos trabalhos de iniciação científica na graduação e os trabalhos de programas de pós-graduação. No que tange à extensão, esta se volta para a aplicação desse conhecimento, produzido e transmitido na universidade, contextualizado à comunidade. Considera-se um ponto importante demarcar, já inicialmente, a síntese desses três elementos, pois, como aponta Martins (2015), defende-se, aqui, a indissociabilidade do ensino-pesquisa-extensão e a superação da visão dicotômica entre teoria e prática no ensino superior. Não sendo, então, este capítulo apenas um relato de prática. A característica principal deste projeto é o atendimento a alunos do ensino básico com problemas de aprendizagem e com diagnóstico de TDAH. São realizadas intervenções em grupos, por estagiários do curso de psicologia da UEM, sob orientação de profissionais da área. De modo concomitante aos encontros com o público atendido, ocorrem, também, outras atividades entre os estagiários, psicólogo e docentes, como os grupos de estudos com base na Psicologia Histórico-Cultural e a participação no projeto de pesquisa “Retrato da medicalização da infância no estado do Paraná”. Ocorrendo, assim, esse atravessamento, trocas e sínteses entre pesquisa, ensino e extensão. Para organizar a exposição deste capítulo, serão discutidos nas seções subsequentes os problemas de escolarização, a contextualização do fenômeno da medicalização, a apresentação do projeto, a organização e realização das intervenções na crianças, assim como os aspectos da mediação. Os problemas de escolarização e a medicalização das crianças No final do século XIX, as ciências médicas e humanas, incluindo a psicologia, utilizaram seus conhecimentos e recursos para legitimar o sistema capitalista, embasadas no positivismo. Em síntese, nesse contexto, a

biologia passou a ser a ciência que dominava todos os saberes, em virtude das contribuições do evolucionismo: a luta pela existência e a sobrevivência do mais apto (HOBSBAWN, 2013). Destaca-se que essa associação da evolução biológica para as questões sociais levou ao início das justificativas do fracasso escolar. Segundo Bonadio e Mori (2013) as crises da educação e do sistema social ocorrem ao mesmo tempo, com a aplicação de testes por parte da psicologia, começaram a separar os alunos bons daqueles que tinham dificuldades de aprendizado, ou seja, “[…] reafirmar as diferenças e legitimar as questões individuais e biológicas como fatores determinantes das desigualdades sociais” (p. 94). A educação foi naturalizada e aqueles alunos que não se adequavam ao contexto escolar foram considerados alunos problemas e, uma das medidas para sanar as dificuldades, foi à inserção do medicamento, por consequência, um uso indiscriminado de medicamentos; uma questão que deveria ser política e social passa a ser questão médica (medicalização). Ainda hoje busca-se uma relação entre fracasso escolar e problemas psicológicos ou biológicos. Alunos com problemas familiares, emocionais e orgânicos teriam poucas possibilidades de alcançar desempenho escolar satisfatório, a menos que se recorra a alternativas intraescolares, próprias à medicina, psicologia e as demais especialidade. (BONADIO & MORI, 2013, p. 98) Neste viés, a maioria dos diagnósticos realizados por essas ciências […] servem de justificativas para as dificuldades de aprendizagem, amenizam a responsabilidade do Estado em oferecer uma educação de qualidade, da escola em rever suas práticas instituídas e minimizam a culpa dos pais em relação à educação escolar dos filhos. (Ibidem, p. 98) Uma das dificuldades de aprendizagem em destaque hoje é o suposto Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Bonadio e Mori (2013) questionam se ele seria um fenômeno que oculta a baixa qualidade do ensino nas escolas e se o consumo do remédio para sanar o transtorno não é mais um fenômeno para ampliar o consumo de medicamento. As perguntas surgem porque nota-se que, historicamente, a escola cumpre “[…] a função de manter os mecanismos do capital, oferecendo, por causa de interesses políticos e econômicos, educação elementar que desenvolva traços socioculturais, políticos e ideológicos, favorecendo o funcionamento das empresas” (p. 98). E, além disso, as indústrias farmacêuticas patrocinam pesquisas voltadas para estudos desse transtorno e de outros. Nesse sentido, o discurso médico aparece como possibilidade de solução – intervir no indivíduo e não na coletividade – à medida que a sociedade é entendida como um corpo doente (SCHWARCZ, 1983). Em outras palavras, o caminho adotado foi enfatizar aspectos individuais como forma de explicação do fenômeno e do sujeito, almejando a normalidade. No universo escolar, por exemplo, as crianças que não conseguiam aprender como as outras eram tachadas de anormais e supostamente tinham algum distúrbio orgânico (PATTO, 2010).

Segundo Patto (2010), nesse período, as dificuldades de aprendizagem eram, inicialmente, decifradas pela medicina e pela psicologia como anormalidades genéticas e orgânicas. A psicologia clínica, de inspiração psicanalítica, buscava no ambiente sócio-familiar as causas dos desajustes infantis. O peso da hereditariedade da determinação do comportamento foi migrando das explicações baseadas no indivíduo para as explicações de ordem cultural, assim, eram os grupos familiares patológicos e os ambientes que produziriam crianças desajustadas (SCHNEIDER, 1985). O posicionamento dessa psicologia tradicional é fruto das relações com uma sociedade burguesa que compactua com a cisão desse sujeito e com explicações de caráter biológico para descrever e analisar fenômenos que não se encontram no âmbito da biologia, como causas determinantes do não aprender na escola (desnutrição e as disfunções neurológicas), bem como a validação de práticas que mantêm o capital, como a indústria farmacêutica. Uma compreensão naturalizada dos problemas escolares é notada nos dias atuais, como no caso do TDAH, que se apresenta como justificativa para o fracasso escolar. Os critérios desse diagnóstico são listados no DSM-V ( Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ): desatenção; hiperatividade e impulsividade. Eles são avaliados pela observação dos pais e professores, quando solicitados pelo neurologista. Essa avaliação, a partir do DSM-V, não considera o processo de desenvolvimento da criança; por essa razão, muitas vezes, propõe-se como intervenção o uso de medicamentos para o tratamento (EIDT & FERRACIOLI, 2010). O diagnóstico, em sua maioria, vem acompanhado pela prescrição do metilfenidato, conhecido, comercialmente, por Ritalina®, utilizado para minimizar os danos causados por falta de atenção e comportamentos inadequados. Trata-se de um medicamento que pode produzir reações adversas graves, que ainda não foram comprovadas cientificamente (MOYSÉS; COLLARES, 2010). O princípio ativo do metilfenidato, do grupo das anfetaminas, atua como um estimulante do sistema nervoso central, potencializando a ação das substâncias cerebrais noradrenalina e dopamina (BARROCO; FACCI; MORAES, 2017). Nota-se, até aqui, que neste processo do diagnóstico não há uma avaliação psicoeducacional qualitativa que volte para a origem dos comportamentos (como a desatenção, a hiperatividade, a impulsividade). Estudos atuais como os de Bonadio (2013), Moysés e Collares (2010) e Suzuki (2012) demonstram a predominância da concepção biologizante como hegemônica na explicação da origem do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), o que traz implicações para o diagnóstico e tratamento. Neste viés, as práticas diagnósticas se limitam a testes quantitativos e descritivos, focados nos déficits apresentados pelas crianças e nas intervenções em prescrições de medicamentos de uso controlado. Conforme os dados da pesquisa de Bonadio (2013), a administração do medicamento como tratamento dos problemas escolares se apresenta como alternativa às angústias vivenciadas pelos professores e pelos pais por não saber lidar com a criança que não aprende. Segundo Facci, Silva e Ribeiro (2012, p. 157) a sociedade, atualmente, está fortemente medicalizada, “[…]

os remédios estão sendo a garantia de felicidade e de melhor desempenho. Medicamentos como Prozac, Ritalina e Concerta saíram dos consultórios médicos e estão povoando o universo escolar”. Atualmente, há um exacerbado uso de drogas lícitas nas mais variadas áreas da vida (FRANCO; TULESKI;EIDT, 2016). O Brasil é o segundo país que mais vende a droga Ritalina®, ficando atrás somente dos Estados Unidos. A medicalização reflete o próprio modo como nos organizamos na sociedade burguesa e estabelecemos padrões de normalidade. Nesse sentido, a indústria farmacêutica tem ocupado atualmente lugar central na economia capitalista e tem sido capaz de utilizar de forma eficiente concepções equivocadas amplamente enraizadas no senso comum sobre doença, alimentando o “sonho” de resolução de todos os problemas por meio do controle psicofarmacológico dos comportamentos humanos. Buchianeri (2009), em relato sobre sua experiência com o TDAH, expõe que o tema tem mobilizado serviços especializados para o atendimento de crianças que apresentam o transtorno. Mas indaga se nesses serviços têm ocorrido o questionamento da veracidade de tal diagnóstico, como também um conhecimento prévio a respeito do desenvolvimento do psiquismo infantil. O Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta, em seu 11º Artigo, que é: […] assegurado acesso integral às linhas de cuidado voltadas à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, observado o princípio da equidade no acesso a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. (BRASIL, 2002) O SUS fará o intermédio no cuidado à saúde da criança, mas em que esta política tem se embasado quando distribui Ritalina gratuitamente e muitas vezes sem um controle e acompanhamento rígido? O DSM-V mostra que o déficit de atenção e a hiperatividade são padrões de comportamentos persistentes que caracterizam o TDAH, de modo a interferir no funcionamento ou no desenvolvimento do sujeito. Mas, durante a leitura desse manual, não há questionamentos sobre como se dá o desenvolvimento psíquico, nem o que tange ao desenvolvimento da atenção, apenas expressões do comportamento passíveis de classificação. Aparentemente, as questões propostas pelo DSM-V para diagnosticar o Transtorno partem da premissa de que o indivíduo deve se apresentar naturalmente organizado, prestar atenção, ter disposição para se concentrar nos estudos, em detrimento da ideia de que tais características são estruturadas psiquicamente à medida que a criança se desenvolve, como se fossem ações/ comportamentos inatos. Sendo assim, a organização dos serviços de atendimento à criança e ao adolescente, quando seguem manuais como esse, tem como base o entendimento de que alguns comportamentos, ao serem enquadrados em critérios diagnósticos, tornam-se uma doença psiquiátrica, sendo, então, encaminhados e tratados como tal. Existem, no entanto, muitas pesquisas em oposição a essa perspectiva. Como podemos citar em Leite (2010), que, com um viés crítico, estuda como se dá o desenvolvimento da atenção nos sujeitos, compreendendo o contexto sócio-político-econômico como um cenário facilitador do desenvolvimento de

comportamentos ditos hiperativos e desatentos, refutando, assim, o foco organicista e determinista do TDAH. Ainda, a autora aprofunda seus estudos nessa área e evidencia que o comportamento dos sujeitos está relacionado a uma base orgânica, o cérebro, e ao funcionamento deste, e, de modo mais ou menos organizado, está atrelado às apropriações culturais que os indivíduos fazem ao longo de seu desenvolvimento. É neste âmbito que este projeto estrutura seu atendimento no conhecimento a respeito do desenvolvimento infantil, considerando o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como a atenção voluntária. Entende-se, com base em Vygotsky e Luria (1996), que a atenção, inicialmente, é instintiva-reflexiva. Os fortes sinais como luz e fome, por exemplo, chamam a atenção de uma criança e organizam seu comportamento enquanto esse sinal estiver proeminente. Esse tipo de atenção não gera comportamentos estáveis e não é suficiente diante de tarefas mais organizadas e com exigências específicas. É preciso que se desenvolva, então, a atenção artificial/voluntária/cultural. E esse processo se dará por meio do desenvolvimento cultural, no qual a criança desenvolve estímulos culturais e os utiliza na organização de seu comportamento. Os sujeitos, então, podem desenvolver sua atenção voluntária. Não marcar uma criança como “portadora” de um déficit de atenção irreversível e inato, mas compreender seu desenvolvimento e intervir na promoção de suas potencialidades é, antes de tudo, um compromisso com a emancipação humana. Entende-se que esse compromisso social precisa estar presente na psicologia desde sua grade curricular, desde os anos iniciais de formação. Nesta sociedade altamente marcada pela patologização e biologização, espera-se uma psicologia que rompa com esses determinismos teóricos. Defende-se que a superação dessa psicologia tradicional (biologizante) aconteça por meio do método inverso de Marx, que rompe com a lógica abstrata e se baseia no estudo histórico das formas concretas que a ciência foi adotando. Atendimento a crianças com problemas de escolarização É na direção oposta a uma visão biologizante, produto de uma psicologia burguesa, que se apresenta o Projeto de Extensão “Atendimento Psicoeducacional a crianças com problemas de escolarização e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH”. Esse projeto é realizado na Unidade de Psicologia Aplicada (UPA), clínica-escola do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, e como já pontuado, articula em sua prática a tríade científica: ensino, pesquisa e extensão. Esse projeto insere-se no amplo debate da medicalização da infância, especificamente no contexto escolar, e se apresenta como uma alternativa de intervenção que substitua o medicamento. Por meio de instrumentos diagnósticos e de intervenção na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, esse projeto há 13 anos oferece atendimento a crianças já diagnosticadas com TDAH ou que estão aguardando a consulta com o neurologista e a crianças com queixas de dificuldades de aprendizagem. A equipe é composta de estagiários de Psicologia da UEM e conta com a supervisão direta de um psicólogo escolar, dois docentes da

área de psicologia escolar, duas fonoaudiólogas, um psicólogo clínico, uma secretária, além da equipe pedagógica e de professores das escolas das crianças atendidas. Para a realização do atendimento são formados grupos com base em uma lista de espera da UPA e do contato com as escolas públicas do município de Maringá. Em 2016, foram formados dois grupos na faixa etária de 7 a 12 anos, sendo um no período da manhã e outro no período da tarde, em contraturno ao período escolar. Cabe destacar que é orientado ao pais e/ou responsável que a criança, caso faça uso de medicamentos, não venha medicada aos atendimentos. Os grupos com as crianças ocorrem uma vez por semana e tem a duração de 1 hora e 30 minutos, sendo que cada encontro é dividido em três momentos de 30 minutos: conversas iniciais; realização da atividade ou exercício proposto e/ou realização de jogos direcionados e atividades livres. No primeiro momento, é realizada uma conversa com o objetivo de apresentação e integração dos participantes, por exemplo, sobre a semana das crianças: o que mais gostam, as dificuldades, os conteúdos trabalhados na escola, a rotina familiar etc. Já no segundo momento, verifica-se, por meio de atividades direcionadas, o conhecimento das crianças em relação a escrita, leitura, vocabulário, cores, noção de tempo e espaço, números e quantidades, operações matemáticas. Por fim, no terceiro momento utiliza-se de atividades livres que estimulem a leitura, a escrita, o raciocínio lógico, a matemática, a atenção, a concentração, a memória e a organização de ideias, conforme as necessidades apresentadas pelos alunos e as queixas indicadas pelos professores. Em síntese, nos grupos são exploradas a trajetória escolar e familiar, assim como as relações entre os participantes para conhecê-los, a fim de trabalhar na Zona de Desenvolvimento Potencial (ZDP) de cada um deles, ou seja, naquilo que está em vias de aprendizagem. Por isso, sempre há um desenvolvimento em potencial, a depender do que a criança ainda não sabe fazer, mas pode vir a aprender, por meio da mediação de um adulto (VYGOTSKY, [s.d.]). Considerando esse pressuposto, o grupo deve atuar na ZDP como mediador da aprendizagem. A respeito da ZDP deve-se levar em conta as funções psicológicas que estão em processo, as quais a criança, com ajuda e mediação de um adulto ou de pares mais experientes, ou seja, em cooperação (por meio de pistas, exemplos, perguntas guias), consegue resolver. Nesse sentido, espaços de atendimento a queixas escolares, como o oferecido na UPA por meio da mediação e de atividades organizadas e intencionais, possibilita o desenvolvimento das funções psíquicas superiores sem os efeitos colaterais da medicação. Entretanto, o atendimento às dificuldades de aprendizagem tem sua especificidade e requer do profissional que o realiza um amplo conhecimento em educação e psicologia. Para realizá-lo satisfatoriamente, deve-se ter conhecimentos que envolvam as Políticas Educacionais mais amplas, que regem e determinam as práticas escolares, bem como o entendimento aprofundado do processo de desenvolvimento e aprendizagem em sua inter-relação com as metodologias de ensino. No que tange ao ensino, expressa-se a necessidade de uma base teórica sólida que possibilite

o desenvolvimento e a utilização de instrumentos mais eficientes para o diagnóstico, o encaminhamento e as intervenções psicoeducacioanais que favoreçam o processo de ensino e aprendizagem. Mediante essa preocupação, o projeto da UPA, além da extensão e da pesquisa, está articulado com o ensino, por meio da realização de grupos de estudos, com o objetivo de possibilitar a apropriação de uma base teórico-metodológica que forneça um direcionamento, para os graduandos do curso de psicologia, nos trabalhos com as crianças. Os grupos de estudos acontecem uma vez por mês e busca-se um aporte teórico na Perspectiva Histórico-Cultural com base nos estudos de Lev Semiónovitch Vygotsky (1896-1934), Alexander Romanovich Luria (1902-1977) e Alexis Nicholaevich Leontiev (1903-1979), conjugados a pesquisadores atuais que tratam de temas como desenvolvimento das funções psicológicas superiores, aprendizagem, desenvolvimento, periodização do desenvolvimento infantil e avaliação psicoeducacional. Um novo olhar se mostra quando voltamos à Psicologia Histórico-Cultural e ao método materialista histórico dialético, que, ao romper com concepções biologizantes, compreende o sujeito concreto como síntese de múltiplas determinações. Desta perspectiva, o sujeito é entendido, historicamente, em sua totalidade e essência (VIGOTSKI, 1995). Do mesmo modo, os problemas de escolarização e o TDAH, devem ser entendidos com base em uma análise criteriosa, considerando os multideterminantes envolvidos em sua constituição, com vista a alcançar a essência do fenômeno. Por considerar que as ações não se encerram nessas intervenções e sentindo a necessidade da troca de informações sobre como se apresenta o TDAH no estado, esse projeto mantém um vínculo com a pesquisa intitulada “Retrato da medicalização no estado do Paraná”. Em Maringá, crianças e adolescentes que enfrentam problemas de escolarização, entre eles, o TDAH, são, em sua maioria, encaminhados para o atendimento psicoterápico nas Unidades Básicas de Saúde e línicas-escolas de psicologia, como no caso da UPA, o que aumenta o compromisso da psicologia com o enfrentamento da medicalização e patologização das dificuldades escolares. É imprescindível destacar que esse projeto defende o máximo de desenvolvimento do potencial humano por meio de mudanças na educação e em Políticas Públicas que visem ao aperfeiçoamento da sociedade, a fim de torná-la mais justa e comprometida com o ser humano. Quando a mediação é o melhor remédio O projeto de extensão desenvolvido pela Psicologia Escolar se opõe ao processo de medicalização da infância, realizando uma análise que busca compreender a essência dos problemas de escolarização, e, assim, elaborar intervenções que visem à superação de dificuldades escolares, consideradas em sua maioria uma disfunção orgânica. Ao adotar o referencial teórico da Psicologia Histórico-Cultural, compreende-se que as funções psicológicas superiores não se desenvolvem espontaneamente, mas, sim, por meio das mediações. Portanto, a criança deve ter auxílio do outro para se apropriar dos conteúdos, isto porque a aprendizagem é um processo que se dá inicialmente a nível interpessoal para só em seguida se tornar intrapessoal.

Expõe-se sobre a mediação instrumental como componente fundamental para a avaliação. A respeito disso, Vygotsky apresenta que os dispositivos artificiais (ferramentas ou instrumentos psicológicos) são dirigidos para o domínio dos próprios processos psíquicos, pois modificam de forma global a evolução e a estrutura das funções psíquicas. Diante disso, o método instrumental estabelece um novo ponto de vista sobre a relação entre o comportamento e o fenômeno externo. Destaca-se que a inclusão do instrumento no comportamento provoca a atividade de toda uma série de funções novas e modifica o curso e as características (intensidade, duração, sequência) de todos os processos psíquicos. No ano de 2015, os grupos foram organizados levando em consideração alunos com queixa de TDAH que estavam sem diagnóstico, mas que haviam sido encaminhados ao neurologista e esperavam pela consulta, ou seja, não estavam ainda medicados. Esses alunos foram selecionados mediante uma lista de espera da UPA. Assim, foi formado um grupo com crianças na faixa etária de 6 a 10 anos, no período da manhã, de acordo com o contraturno do período escolar. A coordenação do projeto e as estagiárias entraram em contato com os pais e/ ou responsáveis das crianças selecionadas e agendaram um encontro com os psicólogos da UPA para a realização de anamnese, assinatura do termo de consentimento livre esclarecido e o estabelecimento do compromisso de trazer a criança nos dias e horários definidos previamente. O objetivo maior era ir além da queixa inicial, conhecer a experiência escolar de cada criança e realizar uma avaliação que fosse voltada não apenas para as dificuldades, mas também para as suas potencialidades. Durante os encontros, verificou-se que os participantes tinham dificuldades escolares, que seriam trabalhadas no primeiro semestre do ano de 2016; no entanto, os participantes não retornaram ao grupo. Com isso, deu-se uma nova seleção, com os mesmos procedimentos utilizados no primeiro grupo. Foi formado um grupo de quatro crianças na faixa etária de 8 a 12 anos, no período da manhã, de acordo com o contraturno do período escolar. Nesse grupo, foram trabalhados os mesmos elementos do grupo anterior, e houve um maior tempo para a investigação quanto às dificuldades escolares de cada participante, sendo que dois continuaram o atendimento no ano seguinte e os outros dois foram desligados e encaminhados para o atendimento psicoterápico. Com base em discussões e análises dos materiais coletados nos encontros em 2015, foi possível observar que as duas crianças tinham dificuldades de aprendizagem e precisavam de atendimento no ano seguinte, com o intuito de promover atividades voltadas para aprendizagem e desenvolvimento de leitura, escrita, raciocínio lógico e matemático, memória, atenção, concentração e autocontrole para superação das dificuldades. No entanto, as crianças não retornaram ao projeto. Em relação ao grupo de 2016, com base nas atividades realizadas nos encontros, foi possível notar que duas das crianças apresentavam algumas dificuldades escolares que podiam ser superadas no ambiente escolar, além disso, foi observado que existia alguns conflitos internos relacionados à

família que precisavam ser trabalhados. Com isso, foi feito o encaminhamento de ambas para atendimento clínico na UPA. Além disso, uma das crianças apresentava dificuldades na fala, logo, foi feito um encaminhamento para a fonoaudióloga. Nas duas outras crianças participantes do grupo, foram observadas dificuldades de aprendizagem, com isso, no decorrer dos encontros, foram propostas várias atividades de leitura, escrita, raciocínio lógico, abstração, adição, subtração, divisão, multiplicação, atenção, concentração, memória e organização de ideias. As atividades eram as mesmas para todos os integrantes, porém, com as mediações, era possível trabalhar para alcançar a superação das dificuldades individuais. Os estagiários de cada grupo se reuniam semanalmente com o psicólogo escolar responsável por planejar cada encontro e discutir o encontro anterior. Tais atividades eram organizadas de modo a tornarem-se desafiadoras às crianças, ou seja, com o intuito de produzir necessidades, sentido e significado para a escrita, a leitura e o cálculo. Esse trabalho está em andamento, mas já é possível verificar alguns avanços, como, por exemplo, um dos participantes apresentava muitas dificuldades em matemática e, com o decorrer dos encontros, conseguiu avançar e superar algumas de suas limitações; outro participante tinha problemas com a leitura e se recusava a fazê-la, depois de algumas intervenções, a criança começou a pedir para ler, dessa forma, foi observado que uma atividade antes considerada um peso, depois da mediação passou a ter outro significado. Como os grupos eram e são formados por crianças de idades, séries e interesses diferentes, por vezes, houve a necessidade de trabalhar as relações interpessoais para promover um relacionamento mais agradável entre os participantes. O fato de haver crianças com diferentes idades foi positivo para o desenvolvimento do grupo, isto porque as crianças mais velhas acabavam ensinando aquilo que já sabiam às mais novas, e as mais novas também tinham algo a ensinar, por exemplo, um dos participantes mais novos sempre ganhava um determinado jogo, então ensinou a técnica aos mais velhos. Essa colaboração entre os participantes os leva a ampliar seu aprendizado, além disso, contribui para a elevação de sua autoestima, pois, muitas vezes, na escola, são vistos como aqueles que não sabem nada; por outro lado, no grupo, eles percebem que sabem e, ainda, que são capazes de ensinar. Portanto, a interação entre os participantes contribui para alcançar o objetivo do grupo. Nesse trabalho com profissionais e estagiários de psicologia, que tem em vista a formação do psiquismo humano, por meio de mediações objetiva do que estava na zona de desenvolvimento proximal, observou-se um progresso no desenvolvimento e na superação de algumas dificuldades das crianças. Uma das crianças que apresentou progresso no seu desenvolvimento foi o integrante A., que iniciou no grupo no mês de outubro de 2015 e no final no ano letivo contava com 6 anos. A. trocava as letras R pelo L e B pelo V, sabia o nome das letras e copiava-as, mas não sabia ler e escrever as palavras. Em relação ao seu comportamento, A. sempre estava mexendo em algo enquanto os estagiários dirigiam as conversas e orientações para as

atividades. Houve vezes que ficava embaixo da mesa, puxando a cortina, e quando os estagiários não permitiam que fizesse algo tentava mordê-los. Sempre que percebia que teria que iniciar uma atividade, buscava postergar, puxando conversa com as pessoas do grupo, contando histórias da escola, de filmes e de desenhos. Também se desentendia com os colegas em algumas situações, principalmente quando estava jogando. No início de cada encontro, durante as conversas inicias eram realizados acordos com A., explicados os motivos de estar participando do grupo, era enfatizado o sentido do estudo e a importância da aprendizagem, assim como o quanto ele e os integrantes eram capazes de aprender, tendo em vista que, na maioria das vezes, os integrantes diziam que não eram inteligentes e não sabiam ler, escrever, fazer contas, entre outros, como era o caso de A.. Também havia conversas sobre amizades, respeito, por exemplo, o momento de cada participante falar, de fazer as atividades e o dos jogos. Por meio dessas conversas, da realização das atividades propostas, as quais foram destacadas acima, e com as mediações necessárias para a apropriação do conhecimento e do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, foi observado que A. começou a aprender a ler e a escrever, contudo, as dificuldades que tinha na fala se refletiam na escrita, dessa forma, foi necessário realizar um encaminhamento ao atendimento fonoaudiológico. Após um ano participando do grupo, A. apresentou melhoras no comportamento, na relação com os colegas, além de melhora na pronúncia das palavras e, consequentemente, na leitura e escrita, e também não se esquivava mais das atividades e apresentou um desenvolvimento da atenção voluntária. Pontua-se que, além do atendimento psicoeducacional e fonoaudiológico, durante esse período ocorreram mudanças na dinâmica familiar e escolar que também contribuíram para esse salto qualitativo no desenvolvimento dessa criança. O processo foi lento, porém progressivo, em que mudanças microscópicas no psiquismo foram ocorrendo, até o momento em que essas mudanças se acumularam e se mostraram uma mudança macroscópica, apresentando uma revolução no seu desenvolvimento psíquico e na formação da sua personalidade. Pasqualini (2016) explica que, em uma perspectiva dialética, o momento da realidade se apresenta com mudanças quantitativas (evolutivas) e qualitativas (revolutivas), evidenciando que o desenvolvimento do psiquismo é evolutivo e revolucionário, e não linear, pois a formação das capacidades culturais ocorrem em primeiro lugar no plano interpsicológico, e, em segundo lugar, no plano intrapsicológico. Posto isto, defende-se que sobre a compreensão da formação das FPS, cada indivíduo, quando nasce, possui somente as Funções Psicológicas Elementares (FPE), próprias da evolução da espécie que proporcionam a sobrevivência. À medida que esse indivíduo se desenvolve, se apropriando da cultura por meio dos instrumentos e signos culturais produzidos historicamente pelos precedentes, também desenvolve as FPS. O desenvolvimento dessas funções (atenção voluntária, memória lógica, desenvolvimento da vontade, formação de conceitos) acontece em três estágios, sendo eles: o interpsíquico, quando a relação do indivíduo com o

mundo é mediada pelo outro; extrapsíquico, quando o indivíduo começa a se diferenciar do outro; e por último, pelo intrapsíquico, quando o indivíduo internaliza os signos e instrumentos, tornando seu comportamento intencional e controlado. Nesse sentido, com relação ao desenvolvimento da atenção voluntária, autores que se respaldam na Psicologia Histórico-Cultural como Eidt e Ferracioli (2010), Leite (2010), Martins (2015) e Bonadio (2013) compreendem que a atenção voluntária se desenvolve por meio da apropriação de instrumentos e signos no interior das relações sociais ao longo do desenvolvimento. Enfatizam, ainda, a importância de se sistematizar procedimentos psicoeducativos promotores do desenvolvimento atencional e do autocontrole nas crianças, hoje compreendidas como portadoras de TDAH. Segundo Luria (1979), a atenção é a seleção da informação necessária e controle permanente dela, que se manifesta pela percepção, pelos processos motores e o pensamento. Para o autor, a atenção é caracterizada pelo volume de sinais recebidos, pela estabilidade da duração e oscilações, pois o foco atencional varia conforme a qualidade, o sentido e o motivo. Assim como deve-se levar em consideração os fatores internos do sujeito ao realizar a atividade, por exemplo, as necessidades, os interesses e os objetivos. Com frequência a escola recorre a profissionais que estão fora do âmbito escolar e se esquece de que as funções psicológicas superiores, como a atenção voluntária, a abstração e a memória desenvolvem-se no contato com o outro, em mediações significativas em sala de aula, e não simplesmente na ingestão de uma pílula milagrosa (BONADIO, 2013). Vygotsky (1995) defende que as mudanças na sociedade, nas relações sociais e na vida material produzem alterações na consciência e no comportamento do sujeito. Estas consistem no processo de desenvolvimento do psiquismo humano que ocorre por meio da atividade social, tendo por mediação instrumentos que se interpõem entre o sujeito e o objeto de sua atividade. O desenvolvimento do psiquismo orienta o progressivo autocontrole do comportamento, conforme as FPE (inatas) vão sendo superadas pelas Funções Psicológicas Superiores (atenção voluntária, memória lógica, desenvolvimento da vontade, formação de conceitos). Destaca-se que essa superação envolve o processo educativo e a inserção social, desde o desenvolvimento dos conceitos básicos até a aquisição de conceitos mais abstratos mediante o ensino sistematizado. É nesse processo, mediado pela linguagem, que a criança desenvolve suas funções psicológicas superiores tornando-se capaz de controlar seu comportamento. Considerações finais A articulação entre pesquisa, ensino e extensão tem proporcionado reflexões acerca da problemática atual da medicalização da infância. Com o projeto de extensão da UPA, não buscamos somente uma conscientização sobre a medicalização e seus efeitos, mas também como a psicologia pode contribuir com intervenções que superem um olhar puramente orgânico para funções psicológicas desenvolvidas socialmente, como no acaso da atenção voluntária e do autocontrole da conduta. Um dos objetivos do projeto é a

busca constante da articulação entre o conhecimento científico e a prática do psicólogo escolar a fim de engendrar ações transformadoras na sociedade. Acreditamos que espaços de atendimento psicoeducacional que fujam de um olhar clínico às queixas escolares são necessários quando se busca evitar que crianças façam uso indevido de medicamentos com os mais diversos efeitos colaterais. Defendemos no nosso projeto de extensão mais intervenções potencializadoras e menos medicações. Rosana Aparecida Albuquerque Bonadio Psicóloga, doutora em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atuou como psicóloga escolar na Unidade de Psicologia Aplicada da UEM até (2015). Atualmente docente do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá Luiz Donadon Leal Psicólogo, mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atua como psicólogo na Universidade Estadual de Maringá, como psicólogo escolar na Unidade de Psicologia Aplicada e é pesquisador no Observatório das Metrópoles, Núcleo Maringá – UEM. Raíssa Paschoalin Palmieri Psicóloga e mestranda pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Paola Lingiardi Altoé Psicóloga pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Glaucia Rodrigues da Silva Psicóloga, mestranda pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Daiane de Oliveira Neves

Psicóloga, mestranda pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Rafael Barbosa da Silva de Oliveira Psicólogo, mestrando pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Referências: BARROCO, S. M. S.; FACCI, M. G. D.; MORAES, R. J. S. de. Posicionamento da Psicologia ante o crescimento da medicalização: considerações educacionais. In: LEONARDO, N. S. T.; LEAL, Z. F. de R. G.; FRANCO, A. de F. (Orgs.). Medicalização da educação e psicologia histórico-cultural : em defesa da emancipação humana. Maringá: Eduem, 2017. p. 17-42. BONADIO, R. A. A. Problemas de atenção : implicações do diagnóstico de TDAH na prática pedagógica. 2013. p. 253. Tese de Doutorado em Educação. Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2013. BONADIO, R. A. A.; MORI, N. N. R. Transtornos de Déficit de Atenção/ Hiperatividade : diagnóstico da prática pedagógica. Maringá: Eduem, 2013. p. 251. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil . 1988. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente . Lei Federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2002. BUCHIANERI, L. G. C. Hiperatividade, Higiene Mental, Psicotrópicos: enigmas da caixa de pandora . Maringá (PR): Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2009 (Prefácio, Pósfacio/Prefácio). DUARTE, N. As Pedagogias do “Aprender a Aprender” e Algumas Ilusões da Assim Chamada Sociedade do Conhecimento. In: __ Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? Quatro ensaios crítico-dialéticos em filosofia da educação. Campinas: Autores Associados, 2008. p. 5-16 EIDT, N. M.; FERRACIOLI, M. F. O ensino escolar e o desenvolvimento da atenção e da vontade: superando a concepção organicista do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). In: MARTINS, L. M.; ARCE, A. (Orgs.). Quem tem medo de ensinar na educação infantil? : em defesa do ato de ensinar. 2. ed. São Paulo: Alínea, 2010. p. 93-123. FACCI, M. G. D.; SILVA, S. M. C.; RIBEIRO, M. J. L. Medicalização na escola e fracasso escolar: novamente a culpa é do aluno? In: FACCI, M. G. D.; MEIRA, M. E. M.; TULESKI, S. C. A exclusão dos “incluídos” : uma crítica da Psicologia da Educação à patologização e medicalização dos processos educativos. Prefácio Maria Lucia Boarini. 2. ed. Maringá: Eduem, 2012. p. 157-186.

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Essa afirmação, porém, levou às seguintes questões de método, cujas respostas compuseram a teorização em pauta: Se se tratam de diretrizes gerais para o estudo sobre atenção voluntária, não deveriam se aplicar a quaisquer contextos? Por que a preocupação em enunciá-las tão fortemente associadas ao contexto escolar? As respostas a essas perguntas estão na própria concepção de psicologia concreta almejada por Vygotski (1997) ¹ , possível apenas por meio dos fundamentos materialistas dialéticos. Na relação indissociável entre as dimensões universal, particular e singular de um determinado fenômeno, sua expressão concreta guarda na essência aspectos universais alcançáveis pelo pensamento teórico-conceitual que podem iluminar outras circunstâncias particulares que tiverem similaridades essenciais com a primeira (MARTINS & PASQUALINI, 2015), mesmo que com adequações acessórias a cada caso. Aplicando-se esse preceito à pesquisa em questão, os resultados do estudo de determinações essenciais do processo funcional da atenção trarão luz a todas as circunstâncias em que esse for objeto cognoscível. A universalidade de um objeto é alcançável pelo pensamento conceitual, todavia, o fenômeno necessariamente se expressará na realidade de forma particular, estado que não se manifesta de maneira imediata àquele que o investiga. Segundo Marx (1982), tal expressão é caótica ao pensamento, exigindo análise e síntese de múltiplos determinantes para que seja concretamente conhecida. No caso dos fenômenos psíquicos, Vigotski (2000) é claro em afirmar que assim como não há pessoa sem contexto sóciohistórico, não há processo mental sem a pessoa. Em termos de método, isso quer dizer que o estudo da atenção, por exemplo, deve situar quem são os sujeitos que atentam e quais condições sociais exigem deles atenção, caso contrário, incorreria-se no equívoco abstracionista da psicologia tradicional. Como se verá ao longo do texto, entender a maneira pela qual as funções psíquicas se comportam sistemicamente na organização da atividade do sujeito só é possível quando se conhece a atividade que socialmente se espera dele e como ela efetivamente transcorre, em termos objetivos/ subjetivos. Sendo assim, entender atenção numa atividade de lazer não é o mesmo que entendê-la na atividade de estudo, mesmo que em ambos os casos existam aspectos universais do fenômeno. Não são “atenções distintas”, mas os motivos e condições de sua realização mudam drasticamente, alterando a forma como ela se realiza voluntariamente na atividade da pessoa, especialmente em função da qualidade das relações interpsíquicas que existirem em cada caso, como se explica melhor adiante. Isto posto, as diretrizes histórico-culturais para o estudo do desenvolvimento da atenção voluntária que seguem foram pensadas para o contexto escolar, ou seja, na forma como essa função colabora especificamente na organização da atividade de crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental, ao mesmo tempo em que é demandada por ela, modificandose em situações sociais de desenvolvimento sob controle da ação pedagógica do professor. Em termos dialéticos, tais diretrizes guardam elementos universais da atenção voluntária, ao mesmo tempo em que contraditoriamente existem e são especialmente aplicáveis ao contexto

particular no qual foram pensadas. Seu uso para circunstâncias distintas dessa é possível, mas demandará parcimônia e adequações bem fundamentadas por parte do pesquisador/professor. Ainda sobre método, fez-se necessário mais um esclarecimento preliminar. A discussão desses princípios teóricos se situa dentro do debate científico e político acerca do enfrentamento da medicalização infantil, uma vez que queixas de não aprendizagem envolvendo desatenção e hiperatividade são as mais comuns justificativas que levam crianças em escolarização a serem medicalizadas (FERRACIOLI et. al, 2016). Não foi o intento deste texto discutir medicalização ou sua crítica em sentido amplo. Contudo, vale marcar posição com base na Psicologia Histórico-Cultural diante do problema, uma vez que as diretrizes que seguem podem colaborar diretamente com pesquisadores e professores que investigam a questão, sobretudo aqueles que procuram elaborar instrumental didático-conceitual para o ensino desenvolvente em sala de aula. Eidt e Tuleski (2007) explicaram que em sua maioria não são pessoas individualmente que têm determinados problemas orgânicos que afetam suas capacidades de se concentrar e de autocontrolar suas condutas, como preconiza a concepção organicista medicalizante, mas, sim, as atividades desumanizadas, que se realizam em uma sociedade de exploração do trabalho cada vez mais intensa e rápida, e que limitam as possibilidades de desenvolvimento individual para a maioria das pessoas, o que implicaria em um precário autocontrole de suas capacidades psicofísicas, incluindo as atencionais. Isso não significa minimizar, como salientaram Eidt e Ferracioli (2007), o fato de que determinados sujeitos enfrentam dificuldades pedagógicas na escola e que essas situações não demandam soluções; significa apenas que essas dificuldades muito provavelmente não advêm de doenças/transtornos orgânicos, mas, em verdade, derivam de um desenvolvimento apenas inicial de funções psíquicas superiores, que ainda não possibilitaram um determinado autocontrole da conduta, o que poderá ocorrer desde que o ensino qualitativo volte a promovê-las na atividade desses sujeitos, sem se ignorar os limites objetivos impostos pelas circunstâncias de suas vidas e de seu tempo histórico. Aqui duas situações diferentes podem ocorrer, de maneira combinada ou não: por um lado, um conhecimento equivocado ou insuficiente sobre o desenvolvimento que faz com que o educador espere de seus alunos um desempenho atencional além de suas possibilidades atuais e iminentes; e/ou, por outro lado, um verdadeiro atraso no volume atencional voluntário de um ou mais alunos em comparação ao que já poderiam ter conquistado, que demandaria intervenção interpsíquica adequada para uma retomada do processo desenvolvimental.

Em quaisquer dos casos, a alternativa histórico-cultural concreta à medicalização e às possíveis dificuldades enfrentadas por professores e estudantes nas escolas reside justamente na possibilidade de gerar desenvolvimento por meio de processos de ensino, ou seja, pela apropriação/ objetivação de signos da cultura que mediarão conscientemente a conduta pelos sujeitos que aprendem (EIDT & FERRACIOLI, 2007; MEIRA, 2011; FERRACIOLI & TULESKI, 2013; CHAVES et. al, 2014; LEITE, 2015; RABATINI, 2016). Com base em tal posicionamento, seguiu-se à apresentação das referidas diretrizes articuladas a alguns fundamentos que as embasaram. Fundamentos e diretrizes histórico-culturais para o estudo da atenção voluntária em contexto escolar Na concepção marxiana, o ser humano é compreendido como ser históricosocial, cujo ato fundante é o trabalho. Marx (1985) definiu o trabalho como atividade que articula teleologia e causalidade com o propósito de saciar necessidades. Foi em sua realização que o ser humano tornou-se capaz de planejar em pensamento o que faria em ato, transformando a si mesmo na medida em que se apropriava dos resultados dessa atividade em intercâmbio orgânico com a natureza por ele transformada. Assim como o trabalho resultou de certas necessidades e condições materiais, nele e por meio dele surgiram outras possibilidades, como a linguagem, a criação de instrumentos e a transmissão destes às futuras gerações. Sob essa premissa ontológica, Leontiev (1978) localizou na filogênese fases pelas quais a transição ao ser social ocorreu, demonstrando que o desenvolvimento do trabalho passou a interferir cada vez mais na evolução biológica da espécie, ou seja, as forças produtivas passaram a afetar a seleção e transmissão hereditária de características ² ; até que, na última fase, o homo sapiens já não estava mais determinado majoritariamente pelas leis da hereditariedade, mas, sim, por fatores sócio-históricos. Isso não significou dizer que ele transcendeu sua existência como organismo biológico. Deve-se sempre considerar as condições biológicas de manutenção da vida. Contudo, ao ser social tais condições são garantidas sobretudo por meio das forças produtivas de seu tempo histórico. Como desdobramento da concepção de trabalho, Leontiev (1978; 1982) demonstrou que o estudo da atividade é central para uma compreensão concreta de fenômenos como a consciência e a personalidade. Segundo explicou Martins (2013), a atividade humana poderia ser definida como relação objetiva/subjetiva da pessoa com o mundo, com outras pessoas e com ela mesma; um vínculo prático teleológico que constitui imagem subjetiva da realidade objetiva que, por sua vez, permite a orientação cada vez mais autocontrolada/voluntária do sujeito sobre essa realidade, tendo em vista produzir as condições necessárias aos seus modos de vida. Se “[…] a estrutura da consciência se transforma com a estrutura de sua atividade” (LEONTIEV, 1978, p. 92), apreender tal estrutura, seus elementos, como se inter-relacionam e transformam-se foi a forma pela qual este autor contribuiu para o entendimento do desenvolvimento do psiquismo.

Na base de qualquer atividade humana há uma necessidade biológica e/ou social que, ao encontrar objetos de saciação, mobiliza o sujeito em sua direção. Em linhas gerais, a relação entre necessidade e objeto de saciação dará origem e rumo à atividade, colocando em movimento recursos objetivos e subjetivos no sentindo de atingir determinado propósito projetado previamente em pensamento, mas que para se concretizar demandará ação organizada a um fim e sob determinadas condições. Leontiev (1978; 1982) chamou esse fenômeno de motivo, a força motriz da atividade. O que caracteriza uma atividade, dando-lhe identidade, duração e importância para uma pessoa, são seus motivos. Não há atividade sem motivos (mesmo que estes não sejam plenamente consciente para quem atua), assim como mudanças hierárquicas e criação de novos motivos transformam e cunham novas atividades. Os componentes de uma atividade são as ações. Como sumarizou Mesquita (2010, p. 58), a atividade “[…] não se constitui por adição de ações, mas é um todo organizado das mesmas”, ou seja, são cadeias integrais de ações que dão substrato concreto e observável à atividade, organizadas segundo os resultados que produzem. Se é pela atividade que o desenvolvimento psíquico ocorre, será pelo estudo das ações que a constituem e dos produtos que geram que se compreenderá objetivamente os processos subjetivos por ela demandados e que a regulam. Ainda em um movimento analítico, Leontiev denominou de operações as partes mais simples de uma ação, seus elementos psicomotores mínimos que em si não têm propósito, mas que no contexto são condições para que a ação seja bem-sucedida, mesmo que já estejam automatizadas na atividade da pessoa. No entanto, também como desdobramento do trabalho e sua expressão histórica alienada explicada por Marx (1985), Leontiev (1978; 1982) identificou que, apesar de haver nexos possíveis entre os motivos de uma atividade e os fins das ações que a compõem, esta relação não é necessariamente coerente/coincidente. É possível que os frutos das ações mantenham vínculos com os motivos de fazê-lo, tornando essa atividade geradora de sentido para quem a realiza; por outro lado, pode não existir em uma atividade convergência entre os fins das ações e os motivos daquela atuação sobre o mundo, fazendo dela uma fonte de sofrimento psíquico. Nenhum dos elementos da estrutura da atividade é estanque ou funciona isolado. Pelo contrário, estão em constante movimento a depender das condições de vida de alguém e do período de seu desenvolvimento. Ações e seus resultados na atividade transformam motivos, alteram a hierarquia deles e mudam a atividade, desde que existam situações sociais de desenvolvimento adequadas. Operações, outrora, foram cada uma delas ações com fins próprios quando o sujeito ainda estava em momento inicial da aprendizagem de algo que lhe era inédito. Atividades que se iniciaram por motivos estranhos aos fins das ações que a compunham podem produzir novos motivos que lhe trarão sentido, assim como atividades a princípio interessantes para quem as realizavam podem se cindir e tornarem-se sofríveis ao longo do processo. Enfim, conhecer a estrutura da atividade demanda entender que ela é dinâmica, mutável, contextualizada e contraditória. Em consonância com o dito na introdução, explicar a atividade é sempre conceber que aquela é a atividade de alguém em determinadas

condições; este é um dos alicerces do estudo concreto do desenvolvimento do psiquismo. Leontiev (2001) esclareceu também que entre as diversas atividades realizadas por alguém, sempre há uma que desempenha papel predominante no desenvolvimento. Para cada “momento da vida” do sujeito que se desenvolve existe uma atividade que ocupa papel hierarquicamente decisivo em suas neoformações psíquicas, em relação a qual as demais se subordinam e se reorganizam, chamada atividade-guia ³ . Ao notar que existiam diferentes atividades-guia ao longo do desenvolvimento e que as passagens de uma a outra caracterizavam saltos psíquicos qualitativos, esse autor lançou bases para uma teoria da periodização, distante de concepções etapistas naturalizantes e universalistas, em direção a uma elaboração que buscasse captar o movimento sócio-histórico de períodos que se distinguiriam pelas atividades-guia que lhes dariam identidade, estrutura e conteúdo. Foi Elkonin (1987) que posteriormente avançou na criação de uma teoria da periodização do desenvolvimento com base nas premissas leontievianas. Se a atividade é fenômeno objetivo/subjetivo de relação do sujeito com o mundo, com outros sujeitos e consigo mesmo, então as formas como uma cultura socialmente se organiza determinam as atividades-guia dos indivíduos inseridos nela. Seria inviável apresentar neste texto a complexa sistematização teórica feita por Elkonin ⁴ , por isso se procurou apenas identificar e conceituar a atividade de estudo como a guia do período em questão nesta pesquisa, articulando-a ao desenvolvimento da atenção voluntária em contexto escolar. Davidov (1988) explicou que a atividade de estudo norteia o desenvolvimento no período dos anos inicias do Ensino Fundamental (cerca de 6 anos a 10 anos de idade), porque nesta etapa a escola torna-se potencialmente o centro da vida da criança, exigindo dela uma mudança de sua posição social perante os adultos/professores, perante outras crianças e, consequentemente, perante ela mesma, com obrigações inéditas, sistematização de tarefas e aquisição de novos direitos e deveres. Os conhecimentos teóricos veiculados sobretudo pela escola se tornarão o conteúdo principal dessa atividade-guia, de cunho majoritariamente intelectual-cognitivo, engendrados na realização das próprias tarefas de estudo. Isso quer dizer que: A atividade de estudo não se forma de maneira natural. É preciso preparar a criança para a organização de sua atividade cognoscitiva, e esse é um dos papéis da escola em seus anos iniciais, ou seja, formar uma postura de estudante. A formação da atividade de estudo é necessária para que a criança possa assimilar o conhecimento de maneira sistemática e voluntária. E neste processo um dos elementos centrais é a formação de motivos para o estudo. (ASBAHR, 2016, p. 174, grifo da autora) Em vista disso, ao se investigar o desenvolvimento da atenção voluntária em contexto escolar, deve-se entender que a realização dessa função estará preponderantemente articulada à atividade-guia, especialmente em relação aos motivos para o estudo que mobilizarão internamente a atenção ao que

será aprendido. Se não há atividade sem motivo e este pode não ser gerador de sentido, uma atividade movida por motivos alheios aos resultados das tarefas escolares não formará tal postura de estudante, afetando as capacidades atencionais de uma criança. Essa preocupação deve ocupar pesquisadores ou professores que procuram entender porque e como estudantes são capazes de se atentar a tarefas escolares, tendo como indicadores objetivos de suas capacidades subjetivas as ações/operações que realizam nessas mesmas tarefas. Se esse dado for ignorado ou de alguma forma secundarizado no processo de ensino, provavelmente se encontrarão severos limites para promover a atenção voluntária neste contexto. Tais conhecimentos sobre a atividade elaborados por Leontiev e Elkonin tiveram em Vygotski (1995) os fundamentos conceituais/metodológicos de como o desenvolvimento psíquico ocorre. Esse autor, ao criar uma ciência psicológica com base nos pressupostos marxistas, estabeleceu como objeto de estudo a consciência, entendendo-a como fenômeno complexo e concreto por meio do qual a psicologia poderia contribuir para a compreensão do ser social e sua emancipação. Foi ele quem concluiu que, como lei genética geral do desenvolvimento, são os processos interpsíquicos que permitem, pela apropriação de signos da cultura, a superação ontogenética de capacidades elementares inatas em direção às funções propriamente humanas, que possibilitam o autocontrole consciente e voluntário da conduta na forma de processos intrapsíquicos. Esse é o pilar psicofísico que sustenta a constituição da consciência por meio da atividade. Os signos são representações simbólicas/abstratas de objetos cognoscíveis, que por definição carregam consigo significados socialmente compartilhados e internalizados no bojo dessas mesmas relações, compondo um sistema de comunicação mediado que orienta a atividade do sujeito no mundo. Em vista disso, o conceito vigotskiano de internalização ocupa lugar central na constituição das capacidades conscientes do psiquismo. Tal categoria vem no lastro da concepção filosófica marxiana de que as características humanas próprias e tão identitárias de uma pessoa foram antes apropriadas das/nas suas relações com o mundo. […] Cada uma das relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, […] são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana […]. (MARX, 2006, p. 108, grifo do autor) Sentir, pensar, querer, amar são possíveis a alguém apenas porque já existiam na “efetividade humana ”, ou seja, nas relações sociais/coletivas que processualmente passaram a compor quem é a pessoa, agora inseparáveis de sua forma de ser; enfim, para todos os efeitos, tornaram-se “órgãos da sua individualidade”. Com base nesse fundamento, a internalização caracteriza-se, em linhas gerais, como momento fulcral da lei genética geral do desenvolvimento proposta por Vygotski (1995), pois os signos mediadores do sistema interfuncional, como a base da atividade

autocontrolada, eram inicialmente externos ao sujeito que se desenvolve, na forma de significados socialmente compartilhados. Estes foram internalizados na relação com outros mais desenvolvidos, tornando-se agora parte inseparável de quem deles se apropriou. Nas palavras do próprio autor, “[…] as relações entre as funções psíquicas superiores foram em tempos passados relações reais entre os homens. Relaciono-me comigo mesmo como as pessoas se relacionaram comigo” (VYGOTSKI, 1995, p. 147). Martins (2013) sintetizou bem a questão quando usou o conceito de transmutação para explicar a essência do processo de internalização. Referindo-se a Vigotski, ela esclareceu: O autor evidenciou a indissolúvel unidade entre atividade individual, externa e interna, e atividade social (ou coletiva), postulando a dinâmica de internalização como processo de transmutação dos processos interpsíquicos em processos intrapsíquicos. A internalização, por sua vez, ocorre por meio da apropriação dos signos, que são, segundo Vigotski, os mediadores semióticos das relações dos homens com a cultura humana e, consequentemente, constituintes centrais do desenvolvimento psíquico. (MARTINS, 2013, p. 30, grifo da autora) A passagem de processos externos sociais a processos internos mediados é nada mais que a transmutação de signos/significados sociais em ferramentas psíquicas que promoverão desenvolvimento e ampliarão as capacidades autocontroladas de quem os internalizar, utilizando-os cada vez mais voluntariamente em suas condutas. Se a atenção voluntária envolve intencionalidade, atentar requer em qualquer circunstância que signos/ significados sejam internalizados e possam se tornar as ferramentas psíquicas do por teleológico. Não há qualquer caminho de estudo da relação entre o ensino escolar e o desenvolvimento da atenção voluntária que possa pospor a questão da internalização. Mas antes de se discutir o processo funcional da atenção em específico, é preciso tratar das funções psíquicas como um todo. Com base nos pressupostos apresentados, Vygotski (1995) distinguiu as chamadas Funções Psíquicas Elementares (FPE) das Funções Psíquicas Superiores (FPS). As primeiras foram definidas como capacidades inatas, que existem sem a mediação de signos da cultura, limitadas às possibilidades biológicas reflexas dos organismos. São importantes no período ontogenético inicial do desenvolvimento, mas estão muito aquém daquelas próprias do gênero humano. Já as FPS caracterizam-se por serem essencialmente mediadas pelos signos que, ao efetivamente cumprirem seu papel volitivo, tornam-se ato instrumental na atividade do sujeito. A capacidade do indivíduo de controlar de forma consciente e intencional aptidões psicofísicas propriamente humanas abarca o desenvolvimento das FPS. Sobre o aspecto mediado das FPS são necessárias algumas considerações complementares. Elas não são um estado em si, que se conclui ao ser atingido. Determinada função superior pode continuar a se desenvolver, ampliando cada vez mais suas possibilidades. Além disso, a conquista de uma função superior não significa que as elementares desapareceram; estas

ainda existem, contudo são superadas por incorporação àquelas. Por fim, as funções não agem isoladas. Segundo Luria (1979), o psiquismo é um sistema essencialmente interfuncional, ou seja, deve ser compreendido em sua totalidade e integralidade de fenômenos e processos, em que o todo é resultado autêntico da intervinculação/permeação entre seus aspectos constituintes. Isso não significa dizer que as funções se identificam; elas podem ser captadas em suas especificidades desde que se tenha em vista que concretamente atuam em concerto. Agora, em se tratando nomeadamente da atenção, Martins (2013) esclareceu que, em inter-relação com a percepção, essa função é responsável pela seletividade de estímulos externos e pelo foco e manutenção da vigilância no desempenho de uma atividade. Em sua forma voluntária (ou seja, como FPS) ela se caracteriza pela conscientização da percepção e colabora decisivamente para a realização de atividades voltadas para um fim em específico, sob organização do pensamento; capacidade psíquica, portanto, exigida pelo trabalho e por outras atividades propriamente humanas. Por esse motivo é que ela tem grande importância no sistema psíquico interfuncional, sem a qual o controle voluntário da conduta seria impossível. Vygotski (1996) explicou a natureza social do desenvolvimento dessa função ao afirmar que a atenção imediata (FPE) diferencia-se da atenção mediada (FPS) por meio da apropriação de signos que possibilitam o estabelecimento de imagem focal não mais sob o controle exclusivo de fatores externos (intensidade, contraste, movimento etc.), mas, sim, conscientemente orientada pelos motivos da atividade. Portanto, essa função superior colocase a serviço das finalidades conscientes da atividade, capaz de ignorar estímulos que não envolvam a tarefa diretamente. Concordando com a afirmação de Vigotski e ao mesmo tempo procurando articulá-la à questão da atividade-guia, no caso da atenção às tarefas escolares, a voluntariedade interna dessa função precisa ser aquela orientada não por qualquer motivo, mas, sim, por aqueles ligados diretamente ou mesmo indiretamente à atividade de estudo (ou então composta de ações e operações que a engendrem, no caso de ainda não efetivamente existir para o estudante). Motivos não ligados direta ou indiretamente à atividade de estudo até podem orientar voluntariamente a atenção das crianças, mas eles provavelmente prejudicariam os objetivos de uma aula por desviarem o foco das situações de ensino conduzidas pelo professor, podendo inclusive criar situações interpretadas superficialmente como “falta de atenção”. Por exemplo, o que pensar de um estudante que durante a aula estava o tempo todo focado em um colega de sala que visitaria no final de semana, mesmo que esse colega estivesse quieto, sem chamar-lhe a atenção diretamente? Haveria aí um fator interno afetivo-cognitivo que motivou de forma mediada a atenção dessa criança e que provavelmente era de total desconhecimento do professor. Tal capacidade atencional voluntária, em sentido estrito, não colaboraria para que o estudante em questão se concentrasse na aula e seu professor poderia julgar-lo desatento por isso. No entanto, não se tratava de incapacidade atencional em si, mas, sim, de

atenção voluntária não ligada direta ou indiretamente à atividade de estudo em curso ⁵ , prejudicando-a. Pode parecer um detalhe, mas é uma circunstância comum que reforça o caráter social da atenção, pois crianças não chegarão aos bancos escolares com motivos de estudo já internalizados ou prevalentes todo o tempo, o que interferirá em suas atenções às tarefas de ensino, como dito anteriormente. Além disso, ainda sobre o caráter social da atenção voluntária e sua relação com as demais funções superiores, Martins sumarizou: Diferentemente da atenção involuntária; mobilizada pelas propriedades dos objetos e, portanto, subjugada nos ditames de condições externas; a atenção voluntária tem origem em motivos e finalidades estabelecidas conscientemente pelo indivíduo em face das exigências das atividades empreendidas. Por conseguinte, seu desenvolvimento se realiza não a partir da atenção em si mesma, mas do lugar que a atenção passa a ocupar em relação ao pensamento, à memória, aos afetos etc., ou seja, das interrelações e interdependências funcionais requeridas pela atividade cultural […]. (MARTINS, 2013, p. 154) A colocação da autora reforçou o argumento anteriormente citado, de que o estudo da atenção voluntária não é algo que se faz diretamente e em si mesmo, mas, sim, que compreender e engendrar atenção como função superior significa fazê-lo na atividade cultural, envolvendo diversas funções em relação sistêmica. No caso, é mister promovê-la e avaliá-la na atividade de estudo, tendo como signos mediadores principais os conteúdos teóricos, que mobilizarão todo o sistema interfuncional do aprendiz nas tarefas de ensino. Um olhar pormenorizado sobre esse processo funcional desvendou nele diferentes propriedades. Ao contrário do que vigora no senso comum, atenção não é somente focar em algo. A literatura sobre o assunto e suas controversas traduções trazem diferentes terminologias e abordagens que criam certa confusão acerca deste assunto e não caberia esclarecê-las uma a uma aqui. Por isso se fez um apanhado inicial e propositivo entre diferentes estudos (VYGOTSKI, 1995; LURIA, 1979; SMIRNOV et. al., 1960; BALLONE & MOURA, 2008; MARTINS, 2013), simplificando o subtema e atendendo ao intuito desta breve teorização. Identificou-se nessa literatura quatro propriedades atencionais: tenacidade, vigilância, amplitude e distribuição. A tenacidade é a capacidade propriamente dita de se estabelecer um determinado foco, dando relevo a um estímulo interno ou externo em detrimento de outros que, mesmo percebidos, não são relevantes no momento. A vigilância é inversamente proporcional à tenacidade, em que não se está atento a nenhum ponto em específico, mas, sim, a um padrão previamente estabelecido que se busca de modo panorâmico; aplica-se comumente a situações em que se procura algo em um todo complexo e/ou dinâmico, no qual a pessoa não está atenta a nada em especial e a tudo ao mesmo tempo, até encontrar o que precisa. A amplitude vai além do estabelecimento de um único ponto de concentração e envolve demandas atencionais com dois ou mais focos; não se trata apenas da capacidade de “prestar atenção a mais de uma coisa ao mesmo tempo”,

mas, sim, de ampliar a atenção a muitos focos por demanda de uma determinada atividade, caso contrário, esta dificilmente será bem-sucedida (o que ocorrerá na educação escolar, por exemplo). A distribuição tem relação com a dinâmica e fluidez de focos, a capacidade de ir de um a outro não por controle externo, mas pelas necessidades da atividade em curso; às vezes, a “falta de atenção” não ocorre por dificuldade de estabelecimento de foco, mas, sim, porque a pessoa não se move de um para outro adequadamente. Assim como o sistema interfuncional, as propriedades da atenção não existem sozinhas ou estanques. Em determinado momento uma delas pode predominar, mas elas constantemente se alternam e interpenetram-se de acordo com a dinâmica e complexidade da própria atividade, sempre dentro das possibilidades do indivíduo que atenta em determinadas condições sociais interpsíquicas. Tal condição dinâmica denomina-se volume atencional. Desta maneira, quando se acusa alguém de desatento, isso não significa que essa pessoa enfrente limitações em todas as propriedades da atenção, assim como um sujeito com uma dessas propriedades satisfatoriamente desenvolvida não poderá simplesmente preterir das demais sem gerar consequências nocivas a atividades longas e complexas, como no caso do estudo. Em suma, avaliar se alguém foi ou não atento em determinada circunstância requer considerar o volume atencional como um todo, assim como engendrar atenção voluntária exige transitar de forma premeditada e sistemática por todas essas propriedades por meio de tarefas de ensino. Por fim, seguiu-se ao último componente das diretrizes em pauta. O aspecto social inicialmente interpsíquico do desenvolvimento das FPS, para Vigotski (2010, p. 267), expressou-se também em sua teoria sobre o papel do outro no que considerou o “duplo nível de desenvolvimento infantil”. Para esse autor, avaliar o desenvolvimento de um indivíduo observando apenas aquilo que ele é capaz de saber/fazer sozinho, no sentido de algo que já foi efetivamente aprendido (como uma capacidade intrapsíquica), não expressa todo o seu desenvolvimento, mas apenas o chamado Nível de Desenvolvimento Atual (NDA). Existe “outro nível”, denominado por Vigotski de Zona de Desenvolvimento Iminente (ZDI) ⁶ , que se caracteriza justamente pelo aspecto colaborativo e processual do desenvolvimento. Por meio do ensino por parte de outros mais desenvolvidos que sabem o que ensinam e conhecem o objetivo educativo a atingir, o sujeito aprendiz é capaz de saber/fazer aquilo que não teria plenas condições de compreender ou realizar sozinho, mas que estava na iminência de atingir. Ou seja, o NDA já é o produto de avanços anteriores que se consolidaram, enquanto a ZDI é o próprio processo de desenvolvimento se realizando; por isso o entendimento de que o ensino deve incidir no processo de desenvolvimento, fazendo existir na/para a pessoa aquilo que ainda não existia como produto. O processo de ensino deve se adiantar ao NDA e agir na ZDI para assim promover aprendizagens que vão, caso culminem em ato instrumental para o aprendiz, fazer avançar seu desenvolvimento atual e, ao mesmo tempo, ampliar ainda mais as possibilidades de compreensão e ação iminente. Ora, esta não é justamente a especificidade da atividade docente? Por isso Vigotski conclui, pensando no papel do professor e da educação escolar:

Durante o processo de instrução, o professor cria uma série de embriões, ou seja, incita à vida processos de desenvolvimento que devem perfazer o seu ciclo para dar frutos. […] Para criar a zona de desenvolvimento iminente, ou seja, para gerar uma série de processos internos de desenvolvimento, são necessários processos de instrução escolar corretamente estruturados. (VIGOTSKI, 2010, p. 283). As totais possibilidades psicofísicas de alguém vão além do NDA e é preciso levar isso em consideração caso se pretenda avaliar as capacidades concretas daquele que aprende, incluindo as atencionais. Ou seja, a atenção voluntária tem suas possibilidades intrapsíquicas como produtos consolidados e mais estáveis do modo de ser de alguém (NDA), assim como tem alcances ainda em processo de aquisição e que dependem da qualidade das relações interpsíquicas do aprendiz para existirem concretamente em sua atividade (ZDI). O ato de incitar à vida processos de desenvolvimento, como demarcou Vigotski na citação, significa que os alcances atencionais voluntários iminentes, caso sejam efetivamente promovidos pelo ensino, tornar-se-ão também produtos consolidados para o aprendiz, abrindo caminho para possibilidades ainda maiores e autocontroladas, sem com isso se esquecer que essa dinâmica só faz sentido quando se sabe quem atenta, por qual motivo e em quais circunstâncias. Nesse breve percurso teórico se reuniram conhecimentos baseados na Psicologia Histórico-Cultural, que colaboram na compreensão da relação entre o processo de ensino escolar e o desenvolvimento da atenção voluntária, contextualizado nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Como forma de finalização desse empenho, fez-se uma apresentação tópica dos pontos principais das diretrizes anteriormente discutidas. Porém, vale frisar que a esquematização a seguir tem caráter didático e de maneira alguma substituiria a leitura teórico-conceitual precedente. O estudo histórico-cultural acerca do desenvolvimento da atenção voluntária em contexto escolar deve sempre considerar que: • não há pessoa sem contexto sócio-histórico, assim como não há função psíquica sem a pessoa, portanto, a investigação do processo atencional deve situar quem são os sujeitos que atentam, em que condições agem e quais tarefas exigem deles atenção; • as funções, entre elas a atenção, podem ser investigadas em suas especificidades se houver clareza de que elas concretamente atuam em concerto no sistema interfuncional; • investiga-se sistematicamente a atividade (estrutura, dinâmica e conteúdo) e não a função psíquica em si (em abstrato), pois essa se realiza e se revela por demanda daquela; • a base da atividade autocontrolada está na internalização de signos da cultura que, na forma de significados socialmente compartilhados, possam se tornar as ferramentas psíquicas mediadoras do por teleológico;

• atenção voluntária em contexto escolar é aquela que está sob controle de motivos ligados direta ou indiretamente à atividade de estudo, sendo os conteúdos sistemáticos/científicos seus principais signos mediadores; • investiga-se o volume atencional como um todo, transitando e permeando suas propriedades na atividade de estudo ou em ações que a engendrem; • avaliar a atenção de estudantes envolve verificar aquilo que já é produto intrapsíquico do desenvolvimento (NDA) e, sobretudo, seu processo interpsíquico propriamente dito (ZDI); Considerações finais Realizado o objetivo de apresentar essas diretrizes, coube aqui um último esforço de síntese que as articulassem, tendo em conta que são parte de um mesmo todo teórico. Em oposição à verborrágica cisão entre “teoria e prática”, as elaborações feitas até aqui não encerraram seu sentido em mero exercício lógicoabstrato. Ao mesmo tempo em que foram formuladas com base no movimento do real por todos os autores citados, na busca dos nexos causais que o explicassem, essas elaborações ganharão seu verdadeiro sentido quando se tornarem efetivos instrumentos para uma atuação mais sistemática, consequente e humana sobre esse mesmo real. Dizendo de outra maneira, o que já foi explicitado desde o início, o sentido de elaborar tais diretrizes não foi outro senão propor recursos teórico-práticos sobre “como fazer” para melhor desenvolver a atenção voluntária de crianças em contexto escolar. Na tentativa de enunciar uma chave conceitual que dê unidade ao “como fazer” das diretrizes, elaborou-se a seguinte proposição sintética: o desenvolvimento da atenção voluntária em contexto escolar é engendrado por demanda da própria atividade, por meio da internalização pelo educando de conteúdos sistemáticos/científicos que se tornem mediadores conscientes desta, fazendo-a crescentemente autocontrolada por motivos/finalidades ligados ao estudo, em movimento inicialmente interpsíquico e sob condução pedagógica do professor, na direção de um volume atencional intrapsíquico cada vez mais volitivo. Essa chave conceitual apenas reuniu numa única formulação o já dito, procurando estabelecer uma linha condutora consistente de investigações científicas propositivas e instrumentalizadoras sobre o tema com base na Psicologia Histórico-Cultural. Marcelo Ubiali Ferracioli Psicólogo, doutor em Educação Escolar pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Araraquara. Professor adjunto no Departamento de Educação da

Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Referências: ASBAHR, F. S. F. “Por que aprender isso, professora?” : Sentido pessoal e atividade de estudo na Psicologia Histórico-Cultural. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 2011. ASBAHR, F. S. F. Idade escolar e atividade de estudo: educação, ensino e apropriação dos sistemas conceituais. In: MARTINS, L. M.; ABRANTES, A. A.; FACCI, M. G. D. (Orgs.). Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico : do nascimento à velhice. Campinas: Autores Associados, 2016. p. 171-192. BALLONE, G. J.; MOURA, E. C. Curso de psicopatologia : atenção e memória, 2008. Disponível em: < http://www.psiqweb.med.br/site/? area=NO/LerNoticia&idNoticia=201>. Acesso em: 18 jun. 2017. CHAVES, M. et al. Teoria histórico-cultural e intervenções pedagógicas: possibilidade e realizações do bom ensino. Educação , v. 39, n. 1, p. 129-142, 2014. Disponível em: < http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/ reveducacao/article/view/4210/pdf >. Acesso em: 27 fev. 2014. DAVIDOV, V. La enseñansa escolar y el desarrollo psíquico . Moscú: Editora Progresso, 1988. EIDT, N. M.; FERRACIOLI, M. U. O ensino escolar e o desenvolvimento da atenção e da vontade: superando a concepção organicista do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). In: ARCE, A.; MARTINS, L. M. (Orgs.). Quem tem medo de ensinar na educação infantil? : em defesa do ato de ensinar. Campinas: Alínea, 2007. p. 93-123. EIDT, N. M.; TULESKI, S. C. Discutindo a medicalização brutal em uma sociedade hiperativa. In: MEIRA, M. E. M.; FACCI, M. G. D. (Orgs.). Psicologia Histórico-Cultural : contribuições para o encontro entre subjetividade e a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. p. 221-248. ELKONIN, D. Sobre el problema de la periodizacion del desarrollo psíquico em la infância. In: SHUARE. M. (Org.). La Psicologia evolutiva y pedagogica en la URSS . Moscú: Editorial Progreso, 1987. p. 104-124. FERRACIOLI, M. U.; FRANCO, A. F.; MENDONÇA, F. W.; PEREIRA, R. L.; TULESKI, S. C. Medicalização de crianças de escolas municipais de cinco cidades paranaenses: dados quantitativos e desdobramentos teóricos a partir da Psicologia Histórico-Cultural. In: Evento do método e metodologia em pesquisa na abordagem do Materialismo Histórico-Dialético e da Psicologia Histórico-Cultural, 3., Maringá. Anais … Maringá: UEM, 2016. p. 1-15. Disponível em: < http://www.eventos.uem.br/index.php/emmp/ IIIemhdphc/paper/view/2788>. Acesso em: 7 nov. 2017. FERRACIOLI, M. U.; TULESKI, S. C. A centralidade do ensino como proposição crítica às concepções naturalizantes de indisciplina escolar e dos déficits de comportamento regrado. In: MARSIGLIA, A. C. G. (Org.). Infância

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³ Denominada também de atividade dominante ou atividade principal em outras traduções encontradas na literatura. ⁴ Para leitores que tiverem interesse em se aprofundar na teoria históricocultural da periodização do desenvolvimento psíquico, além dos textos de Leontiev e Elkonin supracitados, recomenda-se a leitura de Pasqualini (2013) e Martins, Abrantes e Facci (2016). ⁵ Quando se fala em motivos não ligados direta ou indiretamente à atividade de estudo, não se está referindo a situações em que professores usam de motivos/objetos que já tem algum sentido pessoal aos seus alunos como meios para se chegar aos objetivos de ensino propriamente ditos, (re)incluindo esses estudantes ao processo pedagógico, como Asbahr (2011) demonstrou ser psicologicamente adequado e pedagogicamente desejável. ⁶ Assim como outros conceitos vigotskianos, o NDA e a ZDI possuem traduções diferentes e bastante conhecidas no Brasil, tais como Nível de Desenvolvimento Real, Zona de Desenvolvimento Próximo, Zona de Desenvolvimento Proximal, entre outras. Aqui se assumiu a tradução feita por Prestes (2010) como a mais precisa, em sua tese intitulada “Quando não é quase a mesma coisa – Análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil: repercussões no campo educacional”. © NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP: 21042-235 - Rio de Janeiro (RJ) Tel.: (21) 3546-2838 www.naueditora.com.br [email protected] Coordenação editorial: Simone Rodrigues Revisão de textos: Vânia Baptista Valente e Júlia Vilhena Rodrigues Projeto gráfico e editoração: Estúdio Arteônica Imagem Capa: Shutterstock Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte (UFRRJ) Claudia Saldanha (Paço Imperial) Francisco Portugal (UFRJ) Ivana Stolze Lima (Casa de Rui Barbosa) Maria Cristina Louro Berbara (UERJ)

Pedro Hussak (UFRRJ) Rita Marisa Ribes Pereira (UERJ) Roberta Barros (UCAM) Vladimir Menezes Vieira (UFF) CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE T917l     Tuleski, Silvana Calvo (org.) O lado sombrio da medicalização da Infância: possibilidades de enfrentamento / Organizadores: Silvana Calvo Tuleski e Adriana de Fátima Franco. 1. ed. – Rio de Janeiro: NAU Editora, 2019. 440 p.; fotografias; 14x21 cm. Inclui bibliografia. 978-85-8128-071-4 [Ebook] 1. Drogas Lícitas 2. Medicina 3. Medicalização Infantil 2. Tratamentos Alternativos 5. TDAH I. Título II. Assunto III. Organizadores CDD 618.92 CDU 616-053.2 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. 1a. edição – 2019 Sumário Capa Folha de rosto Sumário Apresentação

I Medicalização, uma história antiga: recuperando as relações com o higienismo e a eugenia na sociedade e educação II O TDAH e a medicalização da aprendizagem: enfrentamentos necessários à formação humana III De que é feita a Ritalina e o Concerta? conhecendo o metilfenidato, sua ação, riscos e benefícios IV O outro lado da medicalização V Medicalização da infância nas pesquisas científicas: o que dizem os estudos na área da Medicina, Educação e Psicologia na Universidade de São Paulo (USP)? VI O problema da medicalização na faixa etária de 0 a 10 anos: correlação de dados nos municípios de Rio Bom, Ponta Grossa, Cambé e Cascavel VII O diagnóstico de TDAH e desenvolvimento da atenção: reflexões a partir da psicologia histórico-cultural VIII Medicalização entre os professores: formas de enfrentamento aos dilemas do trabalho na educação? IX Medicalização na e da educação: processos de produção e ações de enfrentamento X Movimentos de resistência à medicalização da infância: Brasil e França XI Para além da crítica à medicalização: em busca de práticas educativas voltadas a formação da atenção voluntária na educação infantil XII Dispersão da atenção: um problema apenas da criança? Reflexões sobre a organização do ensino XIII Pela defesa de uma infância “tarja branca”: a arte cinematográfica e a formação de professores frente à medicalização na infância XIV Sem efeitos colaterais: atendimento psicoeducacional a crianças com problemas de escolarização e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade XV Diretrizes histórico-culturais para o estudo da atenção voluntária em contexto escolar Créditos Landmarks Cover