No Vestígio: Negridade E Existência

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No vestígio: negridade e existência Christina Sharpe Ubu Editora (Jul 2023)

1

Christina Sharpe

NO VESTÍGIO NEGRIDADE E EXISTÊNCIA

TRADUÇÃO Jess Oliveira

2

1. O VESTÍGIO 2. O NAVIO 3. O PORÃO 4. O TEMPO Agradecimentos Referências Sobre a autora

3

Para quem morreu há pouco.

IdaMarie Sharpe Caleb Williams Stephen Wheatley Sharpe *

Para quem morreu no passado que ainda não passou.

Van Buren Sharpe Jr Robert Sharpe Jr Jason Phillip Sharpe Van Buren Sharpe III

.

.

* Para quem permanece.

Karen Sharpe Annette Sharpe Williams Christopher David Sharpe Dianna McFadden * Para todas as pessoas Negras que permanecem insistindo na vida e na existência no vestígio.

* Para minha mãe

Ida Wright Sharpe De novo. E sempre.

4

5

Eu

não

reunião

estava da



quando

Cultural

minha

Studies

irmã

morreu.

Association,

Estava

em

terminando

Chicago,

de

na

escrever

a

apresentação que seria minha primeira tentativa ligada ao trabalho que se transformou neste livro. Meu irmão Christopher ligou naquela quarta-feira de maio e perguntou se eu estava ocupada. Eu disse que estava terminando a apresentação que faria na sexta-feira. Ele me pediu para ligar de volta quando terminasse. Duas horas se passaram e eu ainda não havia ligado, então ele me ligou. Ele disse que gostaria de ter esperado, mas nosso irmão Stephen e nossa irmã Annette haviam insistido para que ele me ligasse outra vez. Disseram-lhe que eu ficaria chateada se ele esperasse. Nossa irmã

mais

velha,

IdaMarie,

tinha

morrido,

Christopher

me

contou.

Não

havia muitos detalhes. Ela morava sozinha e se atrasou para o trabalho. Não mais do que dez minutos, mas ela sempre fora tão pontual que dez minutos pessoal

sem no

uma

seu

apartamento.

ligação,

emprego

Ela

foi

a

mensagem ponto

encontrada

de lá.

de

texto

ou

convencerem

Eu

desliguei

o

e-mail a

alarmaram

polícia

telefone.

a

ir

ao

Liguei

o

seu para

minha companheira e para duas pessoas amigas. Mandei uma mensagem a um dos meus colegas de apresentação para dizer que não estaria no painel e o porquê. Mandei uma mensagem para outro amigo, um ex-aluno que agora é professor da Universidade DePaul, e ele disse que iria me buscar. Ele falou que eu não deveria ficar sozinha. Desliguei o telefone e adormeci. Isso foi em maio de 2013, e, na época, eu não tinha ideia de que mais duas pessoas da minha família morreriam nos dez meses subsequentes. Essa

seria

a

segunda

vez

na

minha

vida

que

três

parentes

próximos

morreriam sucessivamente. Na primeira ocasião, em 2 de fevereiro de 1997, 19 de janeiro de 1998 e 4 de julho de 1999, sobrevivemos à morte de meu sobrinho Jason Phillip Sharpe; de minha mãe, Ida Wright Sharpe; e de meu irmão mais velho, Van Buren Sharpe III. A maneira como essa repetição mortal

aparece

conceitual

incandescentes

slavery

aqui

da/para da

a

é

uma

instanciação

negridade

escravização

viva de

na

do

vestígio

Diáspora

pessoas

como

nos bens

como

quadro

rescaldos móveis

ainda

chattel

[

] no Atlântico.

Ninguém estava com minha irmã quando ela morreu em sua casa. Não fazia nem uma semana que ela, meu irmão Stephen, minha irmã Annette e meu cunhado James haviam voltado de um período de dez dias de férias na

6

Flórida. Sua morte foi repentina e alarmante. Ainda não sabemos o que causou a morte de IdaMarie; o relatório da autópsia foi inconclusivo. IdaMarie

e

eu

não

éramos

próximas.

Tivemos

apenas

momentos

de

proximidade, como no período turbulento após a morte de seu filho, meu sobrinho Jason [fig. 1.1]. Essa falta de proximidade se devia em grande parte, embora não apenas, ao fato de haver quase 22 anos de diferença entre mim e minha irmã mais velha; nunca passamos muito tempo juntas, nunca nos conhecemos verdade,

muito

não

bem,

vivenciei

e

sua

eu

cresci

ausência

acostumada

como

com

ausência

sua

ausência.

porque,

quando

Na eu

nasci, ela já tinha a própria vida, distante de mim, pois sua relação com nosso pai era irrecuperável, por razões que permanecem desconhecidas para mim. Há muitos silêncios em minha família. Eu sou a caçula de seis. Meus pais nasceram na Filadélfia no primeiro quarto do século XX. Meu pai, que frequentou a Overbrook High School, era uma das oito crianças de uma família

de

classe

Washington,

dc;

média três

(sua

irmãos

mãe do

frequentara

meu

pai

a

Normal

estudaram

na

School

em

Universidade

Howard); minha mãe, que frequentou a West Catholic Girls High School, era filha única de uma mãe solteira da classe trabalhadora em situação de pobreza. Minha mãe e meu pai se casaram no 19° aniversário da minha mãe; meu pai tinha 30 anos. Nem ela nem ele fizeram faculdade. Minha mãe sempre quis ser artista, mas as freiras brancas que lecionavam na West 1

Catholic Girls lhe disseram que meninas Negras

não podiam. Então, depois

de se formar, ela fez um curso profissionalizante para se tornar técnica em radiologia. Meu pai trabalhava na sala de triagem da agência do correio da rua 30, na Filadélfia. Minha mãe trabalhava como técnica em radiologia antes de eu nascer e, após ser diagnosticada com câncer e tratada pela primeira

vez,

trabalhou

passou

na

jardinagem

Sears,

e,

mais

a

trabalhar

em

St.

tarde,

na

Davids,

no

TV

revista

Guide

.

Pensilvânia,

departamento

de

no

Depois

disso,

ela

departamento

de

pessoal.

Nós,

crianças,

estudamos na Archbishop John Carroll High School, na St. Katherine of Siena, na Academy of Notre Dame de Namur, na Devon Preparatory, na Valley

Forge

School;

Junior

escolas

High

School

católicas

mais

e

ou

também menos

na

Conestoga

boas

ou

Senior

medíocres,

High

escolas

particulares de elite e boas escolas públicas. Estudamos em todas essas escolas até que acabasse a bolsa e/ou até que o racismo ficasse insuportável demais;

às

vezes,

a

bolsa

acabava

por

causa

do

racismo.

Em

cada

uma

dessas instituições públicas e privadas e ao longo das gerações (minha irmã era 22 anos mais velha que eu; meu irmão, 21), enfrentamos os tipos de racismo, gostam

pessoal

de

e

associar

institucional, ao

Sul

versus Board of Education

2

.

dos

que

muitas

Estados

pessoas,

Unidos

de

de

antes

todas do

as

caso

raças,

Brown

O motor do racismo estadunidense atropelou

as ambições e os desejos de minha família. Ele trespassou nossos encontros

7

sociais e públicos e também nossa sala de estar. Racismo, o motor que move

o

navio

estadunidense

dos do

projetos Estado

nacionais

[…]

a

arca 3

liberdade quanto a escravização”),

e

da

imperiais aliança

do

que

Estado

(“o

autorizou

navio

tanto

a

atropela todas as nossas vidas e mortes

dentro e fora da nação, no vestígio de seu fluxo proposital.

Vestígio: o rastro deixado na superfície da água por um navio; a perturbação causada por um corpo nadando ou sendo movido na água; as correntes de ar atrás de um corpo em voo; uma região de fluxo perturbado 4

.

Em 1948, minha mãe e meu pai se mudaram com minha irmã e meu irmão mais velhos de West Philadelphia para Wayne, Pensilvânia, na Main Line. Uma família Negra, de classe média, trabalhadora e esforçada, pessoas que viviam em uma encruzilhada de quatro vias em uma das extremidades de um pequeno bairro Negro de renda mista chamado Mt. Pleasant, cercado por bairros brancos, em sua maioria de classe média alta e ricos (na mesma rua ficavam o St. Davids Golf Club e a Valley Forge Military Academy). Pelo que sei, minha mãe e meu pai se mudaram para essa região em busca de

oportunidade

; o casal queria o que imaginava e sabia que não tinha e aquilo

a que suas crianças não teriam acesso na Filadélfia: desde um espaço para crescerem (em breve seríamos seis, e a casa era pequena), com um quintal grande o suficiente para caberem árvores frutíferas e horta, até a facilidade

Oportunidade

de obterem uma boa educação. ( “em direção a”, e

portu(m)

: do latim

ob

-, que significa

, que significa “porto”: o que é oportunidade no

vestígio, e como a oportunidade é sempre apresentada?) É óbvio que não se trata de um fenômeno Negro exclusivo dos Estados Unidos. Esse tipo de movimento acontece em toda a Diáspora Negra do/no Caribe e continente até a metrópole, as grandes migrações dentro dos Estados Unidos, desde o início até meados do século XX, que viram milhões de pessoas Negras se movimentando do Sul para o Norte e, na contemporaneidade, as pessoas em movimento por todo o continente africano e também para Alemanha, 5

Grécia, Lampedusa.

Como muitas dessas pessoas Negras em movimento,

meu pai e minha mãe descobriram que as coisas

não

eram muito melhores

nesse “novo mundo”: as sujeições do racismo constante e escancarado e do isolamento continuaram. Depois que meu pai morreu, quando eu tinha dez anos,

nossa

família,

que

era

de

classe

média

baixa

em

circunstâncias

difíceis, passou a ser uma família trabalhadora em situação de pobreza. Mesmo com todo o trabalho que meu pai e minha mãe tiveram para tentar entrar e permanecer na classe média, a precariedade – e mais do que isso – permaneceu. Depois que meu pai morreu, aquela precariedade se via e se sentia nos invernos sem calor, porque não havia dinheiro para manter o aquecedor funcionando; nos buracos no teto, nas paredes e no piso, danos

8

causados pela água e que não tínhamos dinheiro para consertar; no medo e na realidade do corte de eletricidade e de outros serviços públicos por falta de

pagamento;

dinheiro,

ao

no

menos

medo não

de o

a

casa

ser

suficiente,

hipotecada

para

pagar

porque

os

não

impostos

havia

sobre

a

propriedade. No meu caso, o acesso aos refeitórios foi cortado durante o primeiro semestre na faculdade e, depois desse semestre, a Universidade da Pensilvânia quase não permitiu que eu voltasse ao podíamos

pagar

a

(pequena,

mas

muito

alta

campus

para

nós)

porque não

contribuição

parental. Porém, apesar de tudo isso e muito mais, minha mãe tentou abrir um pequeno caminho no vestígio. Ela trazia beleza para aquela casa de todas as maneiras que podia; trabalhava com alegria e forjava momentos, espaços e lugares vivíveis no meio de tudo o que era impossível viver ali, na cidade em que morávamos; nas escolas que frequentávamos; na violência que víamos e sentíamos dentro de casa, enquanto meu pai estava vivo, e fora dela, no mundo branco, antes, durante e depois de sua morte. Em outras

palavras,

vivíamos sujeitadas

a

mesmo

sujeição,

enquanto

não

simplesmente

vivenciávamos,

em

vivíamos

apenas

ou

6

.

sujeição

Embora

ela

reconhecíamos

nem não

como

e

pessoas

fizesse

parte

de

nenhum movimento Negro organizado – exceto pela forma como a vida e a mentalidade de uma pessoa são organizadas pelo mundo através da óptica 7

da porta

e da antinegridade e assim se posicionam para apreendê-lo –,

minha mãe era politicamente e socialmente astuta. Ela estava sintonizada não apenas com nossas circunstâncias individuais mas também com essas circunstâncias, visto que indicavam o mundo antinegro mais amplo que estruturava toda a nossa vida e com ele se relacionavam. Vigília; o estado de

vigilância;

consciência.

Foi

com

essa

ideia

de

vigilância

como

consciência que a maior parte da minha família viveu uma consciência de 8

si mesma como/no vestígio do projeto inacabado de emancipação.

Assim, o mesmo conjunto de perguntas e questões está se apresentando a nós através desses períodos históricos. Ele é a mesma história que está se contando a si própria, mas através das diferentes tecnologias e processos desse período particular [

]

9

.

É um grande salto passar da classe trabalhadora às universidades da Ivy League e, daí, ao cargo de professora titular. E,

parte

como parte

desse salto e

à

de suas especificidades, há o sentido e a consciência da precariedade;

as precariedades das vidas após a morte da escravização (“oportunidades de vida incertas, acesso limitado à saúde e à educação, morte prematura, 10

encarceramento e pobreza”);

as precariedades do desastre em curso das

rupturas da escravização de pessoas como bens móveis. Elas texturizam minhas

práticas

de

leitura,

meus

modos

9

de

ser

no/do

mundo,

minhas

relações com outras pessoas e as formas como me relaciono com/a estas. Segundo Maurice Blanchot:

O

desastre

arruína

tudo,

deixando

tudo

em

perfeito

estado.

[…]

Quando

o

desastre vem sobre nós, ele não acontece. O desastre é sua iminência, mas, uma

vez

que

o

futuro,

como

o

concebemos

na

ordem

do

tempo

vivido,

pertence ao desastre, o desastre sempre já o suprimiu ou dissuadiu; não há futuro

para

o

desastre,

assim

como

não



tempo

ou

espaço

para

sua

11

realização.

A

escravização

é

Negra foi e e

é

transatlântica

da

desastre

e 13

presente.

e

é

o

desastre.

O

desastre

da

sujeição 12

profundamente

história

foi

planejado; o terror é o desastre, e “o terror tem uma história” atemporal.

escravização a

escrita

Nesta

do

obra,

de

A

história

pessoas

desastre quero

como

nunca

pensar

do

capital

bens

estão

“o

é

móveis

inextricável no

presentes,

vestígio”

Atlântico.

sempre

como

da

um

O

são

o

problema

do/para o pensamento. Quero pensar o “cuidado” como um problema para o pensamento. Quero pensar o cuidado no vestígio como um

problema 14

para o pensamento e da/para a (não) existência Negra no mundo. outra forma, performa

No vestígio: Negridade e existência

que

o

pensamento 15

pensamento Negro”)

precisa

de

Dito de

é um trabalho que reitera e

cuidado

(“todo

pensamento

é

e que o pensamento e o cuidado precisam ficar no

vestígio. Dezembro

de

2013.

Eu

estava

no

supermercado

quando

meu

irmão

Stephen ligou. Escutei a mensagem e liguei para ele imediatamente. O tom de sua voz e a própria ligação me indicaram que algo estava errado, porque nos últimos anos meu irmão se tornara muito ruim em fazer e retornar ligações, Quando

um ele

fato

pelo

atendeu

o

qual

ele

telefone,

sempre me

se

disse

desculpou

que

tinha

profundamente.

más

notícias

sobre

Annette. Eu congelei. Perguntei: “O quê? Ela está bem?”. Stephen me disse que sim, fisicamente ela estava bem, mas Caleb (que se chamava Trey antes de ser adotado e renomeado), o filho adotivo e distante de Annette e de seu marido,

fora

assassinado

em

Pitsburgo.

Stephen

não

tinha

outras

informações. Caleb

havia

sido

severamente

maltratado

antes

de

ser

adotado

aos

cinco anos. Ele era muito pequeno e quieto para sua idade, e minha irmã e cunhado

no

gravidade

início

da

violência

problemas

de

resposta

uma

a

enfrentando, mesmo”.

No

não

tinham que

adaptação, pergunta

Caleb, fim

então

das

o

plena

sofrera. casal

na

contas,

Mas,

quando

procurou

terapia

com

consciência

sobre

seis

anos,

Caleb

foi

10

a

ajuda

as

da

extensão

Caleb de

não

“Eu

diagnosticado

que

sou

com

da

superou

terapeutas.

dificuldades

respondeu:

ou

estava



um

Em

ruim grave

transtorno de apego, o que significava que provavelmente nunca criaria laços

com

a

minha

irmã.



outras

histórias

a

serem

contadas

a

esse

respeito; mas não são minhas para contá-las. Larguei minha cesta e saí da loja. Quando cheguei em casa, pesquisei na internet o nome de Caleb, e as breves notícias que encontrei nos sites do

Pittsburgh Post-Gazette jovem

Negro

de

vinte

e

TribLive

do

anos

no

eram

lado

norte

sobre de

o

assassinato

Pitsburgo;

de

juntas,

um

essas

notícias forneceram todos os detalhes que eu tinha sobre a morte de meu 16

sobrinho.

Caleb

Williams,

um

homem

Negro

de

vinte

anos,

residente

no

distrito

de

Turtle Creek, foi assassinado a tiros no tronco e no pescoço enquanto saía, acompanhado

de

outra

pessoa,

de

um

apartamento

no

bloco

1.700

da

rua

Letsche, no lado norte. Os tiros foram disparados de um apartamento vizinho. Ele

foi

levado

para

o

hospital

geral

Allegheny,

onde

morreu

mais

tarde.

17

Nenhuma pessoa foi acusada; a investigação está em andamento.

Essa não era a primeira vez que eu procurava nos jornais os detalhes do assassinato de alguém da minha família. Em 1994, a polícia da Filadélfia assassinou meu primo Robert, que era esquizofrênico; ele havia se tornado esquizofrênico

após

o

primeiro

ano

como

estudante

de

graduação

na

Universidade da Pensilvânia. O que consegui reconstruir com a ajuda do meu irmão Christopher, da minha companheira, da memória e de arquivos de

notícias

online

é

que

Robert

morava

em

um

apartamento

em

Germantown, não muito longe de meu tio, seu pai, e de minha tia, sua madrasta,

e

que

ele

havia

parado

de

tomar

sua

medicação.

Ele

era

um

homem grande, um metro e noventa. Ao que tudo indica, estava agitado e andando pela vizinhança.

Um homem de Germantown foi alvejado e morto na noite passada, quando encerrou um impasse de oito horas com a polícia ao sair do prédio em que morava apontando uma pistola de partida para os policiais, disse a polícia. Robert

Sharpe,

quarenta

anos,

foi

baleado

várias

vezes

do

lado

de

fora

do

prédio residencial na rua Manheim, perto da avenida Wayne. Ele foi declarado morto pouco tempo depois, no

campus

principal da Faculdade de Medicina do

18

Hospital da Pensilvânia.

O que o jornal não disse é que Robert era conhecido na vizinhança e que ninguém ali o temia; as pessoas estavam preocupadas com ele e queriam ajudá-lo a se acalmar. O que o jornal não disse é que a polícia atirou em Robert, que estava desarmado, ou armado com uma pistola de partida – uma arma de brinquedo –, à queima-roupa onze vezes, ou dezenove, pelas

11

19

costas.

20

Não havia como buscar justiça aqui. O que significaria justiça?

Em “Refusing Blackness-as-Victimization: Trayvon Martin and the Black Cyborgs”, Joy James e João Costa Vargas perguntam:

O que acontece quando, em vez de sentirmos fúria e choque cada vez que uma pessoa Negra é morta nos Estados Unidos, reconhecemos a morte Negra como um

aspecto

então

se,

previsível

em

vez

de

e

constitutivo

exigirmos

desta

justiça,

democracia?

O

reconhecermos

que

(ou

acontecerá

pelo

menos

considerarmos) que a própria noção de justiça […] produz e exige a exclusão e a 21

morte de pessoas Negras como norma?

Os

contínuos

sancionados

assassinatos

pelo

Estado

legais

são

a

e

extralegais

norma

e,

de

para

essa

pessoas assim

Negras

chamada

democracia, necessários; é o chão em que pisamos. E o fato de que esse

é

o

chão estabelece que, e talvez como, poderemos começar a viver em relação a essa exigência de nossa morte. Quais possibilidades de ruptura podem se abrir? O que acontece quando procedemos como se

soubéssemos

isto, ou

seja, que a antinegridade é o chão sobre o qual estamos de pé, a base na qual tentamos falar, por exemplo, um “eu” ou um “nós” que sabe, um “eu” ou um “nós” que se importa? O fato de que essas e outras mortes Negras sejam produzidas como norma ainda deixa lacunas e questões sem resposta para aquelas de nós no 22

vestígio

dessas mortes específicas e cumulativas. Minha sobrinha Dianna

me enviou um vídeo sobre seu primo, meu sobrinho. O vídeo era dedicado ao “Little Nigga Trey”, e o fato de existir diz muito sobre a vida do meu sobrinho depois que ele se mudou e voltou a viver próximo de sua família biológica em Pitsburgo, bem como sobre a família não biológica que ele 23

formou como jovem adulto.

A vida de Caleb foi singular e difícil, mas

também não foi muito diferente da de grande parte da juventude Negra que vive nas (e é produzida pelas) condições contemporâneas da vida Negra vivida no limiar da morte, como mortalidade, no vestígio da escravização. “Agentes federais prenderam um suspeito de homicídio em Pitsburgo esta manhã, em New Kensington, que está foragido desde dezembro.

é

acusado de matar Caleb Williams, vinte anos, de Turtle Creek, em 10 de 24

dezembro.”

Vereda; a linha de recuo de (uma arma)

.

Incluo o que é pessoal aqui para conectar as forças sociais acerca do que é existir no vestígio para uma família específica ao que é existir no vestígio para todas as pessoas Negras; para lamentar e ilustrar as maneiras como

nossas

vidas,

de

maneira

individual,

são

sempre

arrastadas

no

vestígio produzido e determinado, embora não de forma absoluta, pelas vidas após a morte da escravização. Em outras palavras, incluo o que é pessoal aqui a fim de situar este trabalho, e a mim mesma, no vestígio e do

12

vestígio.

O

“exemplo

autobiográfico”,

diz

Saidiya

Hartman,

“não

é

uma

história pessoal que se dobra sobre si mesma; não se trata de olhar para o próprio umbigo, trata-se de realmente tentar olhar o processo histórico e social e a própria formação como uma janela para os processos sociais e 25

históricos, como um exemplo deles”.

Como Hartman, incluo o pessoal

aqui “para contar uma história capaz de produzir envolvimento e de se 26

opor à violência da abstração”.

Final de janeiro de 2014. Eu estava me preparando para ir à Alemanha a fim de ministrar uma palestra, na primeira semana de fevereiro, quando minha sobrinha Dianna, filha do meu irmão mais velho Van Buren, ligou para dizer que Stephen, meu segundo irmão mais velho, havia passado mal e que ela e Karen, minha cunhada, haviam chamado uma ambulância para levá-lo ao hospital [fig. 1.2]. Ela disse que ele não queria ir, mas que estava com dificuldade para respirar. Eu sabia que Stephen não estava bem. No funeral de IdaMarie, ele estava com uma aparência envelhecida e parecia estar sentindo dor. Eu me convenci a acreditar que o que estava vendo em seu rosto e corpo eram “só” (como se isso pudesse ser “só”, em qualquer sentido da palavra) os efeitos de longo prazo da anemia falciforme, sua profunda tristeza pela morte de IdaMarie e a pobreza opressiva – a pobreza que

aflige

quem

trabalha-muito-duro-e-ainda-não-consegue-sobreviver.

Naquele momento também pensei,

mas não queria pensar

, que ele estava

realmente doente. Agora, em pânico, perguntei a Dianna se eu deveria ir até lá.

Quando

ela

respondeu

que

não,

eu

lhe

disse

que

tinha

uma

viagem

marcada para a Alemanha dali a alguns dias, mas que a cancelaria para ficar com minha família. Eu disse a ela que queria ver Stephen, queria estar com ele. No dia seguinte, conversei com Stephen, que estava confiante; assim, viajei

para

Bremen,

Universidade terceira

de

Alemanha,

Bremen,

apresentação

do

uma

onde

eu

palestra

trabalho

que

ministraria

intitulada

se

tornaria

uma

“No este

palestra

vestígio”. livro.

na

Foi

Em

a

nossa

conversa, Stephen me disse que estava fraco e preocupado e que a equipe médica

não

tinha

certeza

do

que

havia

de

errado

com

ele.

Stephen

fez

muitos exames e recebeu diagnósticos múltiplos e conflitantes. Dias após meu retorno de Bremen, a equipe médica finalmente deu a Stephen

um

diagnóstico

provavelmente arrasada.

teria

Ninguém

de

entre

tinha

mesotelioma

seis

e

certeza

nove de

maligno.

meses

como

ele

de

Disseram

vida.

A

que

família

desenvolvera

esse

ele

ficou

câncer

raro, geralmente causado pela exposição ao amianto. A equipe médica nos disse que o período de dormência para mesoteliomas é longo, de dez a cinquenta

anos.

Se

esse

mesotelioma

vinha

do

que

e

de

onde

imaginávamos, era uma surpresa que o dano causado por um trabalho de verão, há 45 anos, em uma empresa de materiais de isolamento térmico em

13

Wayne, na Pensilvânia, quando ele tinha quatorze anos de idade, pudesse aparecer agora, de súbito, fraturando o presente. No vestígio, o passado que não passou reaparece, sempre, para romper o presente.

O Passado – ou, mais precisamente, o que passou − é uma posição. Assim, de forma alguma podemos identificar o passado como passado 27

.

Em um dos momentos em que Stephen ficou sozinho em seu quarto de hospital, antes de ser transferido para um centro de reabilitação, depois de volta para a unidade de terapia intensiva do hospital e, finalmente, para cuidados paliativos, ele me ligou e me pediu um favor. Ele disse que sabia que podia contar comigo. Ele me pediu para não deixá-lo sofrer; para eu ter certeza de que ele estaria medicado o suficiente para não sofrer. Eu disse que sim, que eu cuidaria disso. Sabíamos que, tanto para mim quanto para ele, o final não dito dessa frase era “do jeito que nossa mãe sofreu” quando estava morrendo de câncer [fig. 1.3]. Uma noite, bastante tempo após essa conversa, Dianna me ligou e disse para eu ir rápido para lá. Alugamos um carro e dirigimos de Cambridge, Massachusetts, para Norristown, Pensilvânia. Mas meu irmão não podia mais falar quando chegamos ao hospital. Foi como uma repetição de 1998, quando – vindo de Geneva, Nova York, onde lecionava em meu primeiro emprego enquanto terminava minha tese de doutorado – consegui chegar e ficar

ao

lado

de

minha

mãe.

Desta

vez

também

cheguei.

Ele

percebeu

minha presença. (Eu sou a caçula. Nós sempre nos apoiamos.) Eu pude falar com ele. Pude segurar sua mão, acariciar seu rosto e tocar canções de Stevie Wonder e Bob Marley. Pude lhe dizer o quanto o amava, como ele viveria na minha vida e na de todas as pessoas que havia tocado. 21

de

tinham quando vinham

fevereiro

acabado mais do

de

de

sair

pessoas Texas,

2014. do

Minha quarto

amigas

da

irmã

de

de

meu

Califórnia

Annette

hospital irmão

e

de

e

em

seu que

marido, estava

começaram

outros

a

estados

James,

Stephen

chegar;

elas

distantes

da

Pensilvânia. O mais novo dos meus irmãos, Christopher (cinco anos mais velho

do

que

companheira

e

eu), eu

quarto

de

vinho,

conversamos

reuníamos

hospital.

em

chegaria

compramos Várias

volta

e

dia

vinho

amizades

rimos, da

no

e de

seguinte comida

de

à

Stephen

tudo

chegaram.

sua e

Califórnia.

levamos

Stephen

brindamos

cama

da e

vida.

Minha para

o

Abrimos

o

Enquanto

contávamos

nos

histórias,

tocávamos música, ríamos e dizíamos o quanto o amávamos, de repente Stephen se sentou, olhou para nós, tentou falar, uma lágrima correu em seu

Velório: uma vigília realizada ao lado do corpo de alguém que morreu, às vezes acompanhada por rituais de costume, incluindo comer e beber rosto,

ele

exalou,

deitou-se

novamente

e

morreu.

.

14

Defenda quem morreu

28

.

O que significa defender quem morreu? Cuidar das pessoas Negras mortas ou

à

beira

da

morte:

zelar

vivemos

constantemente

trabalho.

É

exige

trabalho:

atenção

pelas

empurradas

trabalho

vigilante

pessoas

às

Negras,

para

emocional,

necessidades

a

nossa

físico

de

pelo

e

povo

preto,

morte?

intelectual

quem

está

que

Significa

árduo

morrendo,

que para

facilitar seu caminho, e também às necessidades de quem vive. Vigilância, também, porque em todo e qualquer lugar em que estejamos, profissionais da saúde e de outras áreas nos tratam de maneira diferente: muitas vezes não

escutam

as

preocupações

de

pacientes

Negres

e

de

suas

famílias;

racionam remédios paliativos ou simplesmente nos negam acesso a tais 29

medicações. Segundo Stein,

embora existam várias razões para isso, a

experiência e a pesquisa nos dizem que “‘as pessoas presumem que, em relação

às

pessoas

enfrentaram sensíveis

à

mais dor,

brancas,

as

Negras

dificuldades’.

pessoas

[…]

Negras

são

sentem

Por

menos

serem

forçadas

a

dor,

porque

consideradas

menos

suportar

mais

30

dor”.

Tivemos de trabalhar para garantir que Stephen ficasse o mais confortável possível. Ao

estar

com

Stephen,

entre

familiares

amizades, enquanto ele morria, eu

re

de

na

sentar-se

ao

lado

de

alguém

e

pessoas

de

seu

círculo

de

-vivenciei o poder da vigília. O poder hora

de

sua

morte,

o

importante

trabalho de estar ao lado (junto com outras pessoas) na hora da dor e da tristeza

causadas

celebrar

uma

pela

vida.

morte,

Velório;

como

vigília:

uma

luto,

forma

de

celebração,

marcar, memória

lembrar e

e

pessoas

vivas que, por meio do ritual, lamentam a passagem e celebram a vida de alguém, principalmente quando parentes e pessoas amigas velam ao lado do corpo de quem morreu, do momento de sua passagem ao sepultamento, entre comes e bebes e outros rituais incidentais a esse. A vigília continuou após a morte de Stephen, no funeral e na reunião que se seguiu, celebrando sua vida. E, ao passo que o vestígio produz morte e trauma Negros – “a violência 31

[…] precede e excede os Negros”

– nós, povo preto, em todo e qualquer

lugar em que estejamos, ainda produzimos no, para o e através do vestígio uma insistência na existência: ecoamos a vida Negra no vestígio.

DA EXISTÊNCIA NO VESTÍGIO/ENSINANDO N/O VESTÍGIO 15

Eu ministro um curso chamado Memory for Forgetting. O título veio de minha lembrança equivocada de um livro que Judith Butler mencionara em uma

palestra

da

MLA

[Modern

Language

Association



Associação

de

Línguas Modernas] em San Diego, em 2004, sobre ativismo e academia. O livro era

Memory for Forgetfulness

, de Mahmoud Darwish. O curso analisa

duas histórias traumáticas (o Holocausto e grande parte da escravização nos Estados Unidos/na América do Norte) e filmes, memórias, narrativas, obras

de

literatura

e

de

arte

que

abordam

esses

traumas.

Descobri

que

tenho de trabalhar muito com estudantes quando se trata de pensar sobre a escravização ordem

e

suas

cronológica,

vidas

após

descobri

a

morte.

que

boa

Quando

parte

da

ministrei

turma,

o

curso

certamente

em

bem-

intencionada, se agarrava em qualquer empatia que pudesse ter para ler sobre

o

Holocausto,

mas

não

fazia

o

mesmo

quando

se

tratava

da

escravização na América do Norte. Depois de dois semestres disso, comecei a ensinar primeiro sobre o Holocausto e depois sobre a escravização de pessoas como bens móveis na América do Norte. Entretanto, mesmo após essa mudança, eu continuava ouvindo comentários do tipo: “Bem, essas pessoas

escravizadas

recebiam

comida

e

roupas;

havia

uma

espécie

de

cuidado ali. Caso contrário, o que elas teriam feito?”. O “caso contrário” aqui significa: que vidas pessoas Negras teriam tido fora da escravização? Como teriam sobrevivido de forma independente de quem as escravizava? Para que a turma enfrente sua incapacidade de pensar a negridade de outra forma

e

de

pensar

determinado

Shoah

a

escravização

momento

do

curso

como

violência

repasso

uma

do

cena

Estado,

do

em

um

documentário

, de Claude Lanzmann. A cena está na parte em que encontramos

Simon

Srebnik

(uma

das

três

pessoas

sobreviventes

do

massacre

de

Chelmno e que morava então em Israel) em seu retorno a Chelmno, na Polônia. Nessa cena, Srebnik é cercado por habitantes da cidade que se lembram dele como o menino de bela voz que era obrigado pelas forças alemãs a cantar próximo ao rio todas as manhãs. No início, o grupo de habitantes da cidade fica feliz em vê-lo, em saber que ele está vivo. Porém, em seguida, a alegria e o espanto rapidamente se transformam em outra coisa, e as pessoas começam a falar sobre como ajudaram a comunidade judaica de Chelmno, logo passando a culpar a própria comunidade judaica de Chelmno pelo genocídio que sofreu. A câmera permanece no rosto de Srebnik, que fica cada vez mais estático em um quase sorriso à medida que essas pessoas o cercam. Algumas delas, chamadas para fora de casa pelo seu canto próximo ao rio – como se ele fosse alguém que voltou da morte –, são

as

mesmas

que,

por

apatia

ou

de

modo

mais

direto,

facilitaram

o

assassinato de milhares de judeus e judias residentes na cidade. A turma de estudantes

ficou

chocada

com

tudo

isso

e

sentiu

empatia

por

ele.

Perguntei, então, se conseguiam imaginar Simon Srebnik, após o fim da guerra,

não

tendo

para

onde

ir

e

precisando

16

voltar

a

esse

país,

a

essa

cidade; a essas pessoas que o teriam visto morrer também; que tinham, de fato, tentado matá-lo, assim como a toda a sua comunidade em Chelmno. Essa

é,

eu

digo,

a

condição

de

pessoas

ex-escravizadas

e

de

sua

plantation

descendência nos Estados Unidos pós-Guerra Civil; ainda na

,

ainda cercadas por quem reivindicou a propriedade sobre elas e que lutou, e ainda luta, para estender esse estado de captura e sujeição de todas as maneiras

legais

e

extralegais

possíveis,

até

hoje.

Os

meios

e

modos

de

sujeição infligidos às pessoas Negras podem ter mudado, mas o fato e a estrutura dessa sujeição permanecem. Aquelas

dentre

escravização

e

nós

suas

que

vidas

ensinam,

após

a

escrevem

morte

e

pensam

encontramos

uma

sobre

miríade

a de

silêncios e rupturas no tempo, espaço, história, ética, pesquisa e método enquanto

fazemos

nosso

trabalho.

Continuamente,

intelectuais

que

estudamos a escravização enfrentamos ausências nos arquivos enquanto tentamos

encontrar

apagamentos, acredito,

“agentes

projeções,

maneiras

32

enterrados

fabulações

específicas

e

debaixo”

nomeações

pelas

quais

do

acúmulo

errôneas.

de

Existem,

intelectuais

Negres

eu

que

estudamos a escravização ficamos imóveis diante das verdades parciais dos arquivos,

enquanto

tentamos

dar

sentido

a

seus

silêncios,

ausências

e

modos de (des)aparecimento. Os métodos mais prontamente disponíveis para nós às vezes, muitas vezes, nos forçam a posições que vão contra o que sabemos. Negra

na

Ou

seja,

nosso

escravização

conhecimento

é

obtido 33

também excede os estudos.

da

através

escravização

de

nossos

e

da

existência

estudos,

sim,

mas

É obtido através dos tipos de conhecimento

do/no cotidiano, a partir do que Dionne Brand chama de “sentar-se no espaço

com

a

desprezemos, conhecer

e

34

história”.

dispensemos,

que

Espera-se

que

abandonemos

encenemos

a

violência

e

descartemos, meçamos

epistêmica,

a

ignoremos,

essas

qual

formas

sabemos

de ser

violência contra outras pessoas e contra nós mesmas. Em outras palavras, para

produzir

trabalhos

legíveis

na

academia,

muitas

vezes

intelectuais

Negres precisamos aderir a métodos de pesquisa “convocados a serviço de 35

uma força destrutiva maior”,

violando assim nossas próprias capacidades

de ler, pensar e imaginar outramente. Apesar de sabermos outramente, somos com frequência disciplinadas a pensar por meio de nossa própria aniquilação e em linhas que a reinscrevem, reforçando e reproduzindo o

status

que Sylvia Wynter chamou de nosso “

36

narrativamente condenado”.

Devemos nos indisciplinar. O trabalho que fazemos requer novos modos e métodos

de

pesquisa

e

ensino;

novas

formas

de

adentrar

e

sair

dos

arquivos da escravização, de desfazer “um cálculo racial e uma aritmética política

que

foram

entrincheirados

séculos

presente. Acho que é isso que Brand descreve em

Não Retorno

37

atrás”

e

que

vivem

até

o

Um mapa para a Porta do

como uma espécie de conhecimento enegrecido, um método

acientífico, forjado na compreensão de que o lugar onde se está tem a ver

17

com a Porta do Não Retorno e com aquele momento de ruptura histórica e contínua.

Com

essa

base,

tenho

tentado

articular

um

método

para

encontrar um passado que não passou. Um método semelhante a sentar-se ao

lado,

um

encontro

e

um

rastreamento

de

fenômenos

que

afetam

desproporcional e devastadoramente os povos pretos em todo e qualquer lugar

em

que

estejamos.

Tenho

pensado

nesse

encontro,

nessa

coleta

e

leitura em direção a um novo modo analítico, como o vestígio e o trabalho de vigília, e estou interessada em tramar, mapear e coletar os arquivos do cotidiano da morte Negra imanente e iminente, bem como em rastrear as maneiras

como

resistimos,

rompemos

e

perturbamos

essa

imanência

e

iminência estética e materialmente. Interessa-me passado,

para

interessada,

saber

além

das

também,

manifestações

dessa

como

imaginamos

ficções

nas

do

arquivo,

maneiras

ficção

e

desse

formas

como

além,

mas

de

conhecer

não



isso.

reconhecemos

desse

passado

as

que

esse Estou

muitas

ainda

não

passou, no presente.

NO VESTÍGIO wake

Mantendo cada uma das definições de vestígio [

] em mente, quero

pensar e argumentar a favor de um aspecto da existência Negra no vestígio como consciência e propor que existir pelo

presente

contínuo

resolvidos da escravização.

e

no

mutável

Existir

vestígio é ocupar e estar ocupada

dos

desdobramentos

ainda

não

“no” vestígio e ser o vestígio, ocupar essa

gramática, o infinitivo, pode fornecer outra maneira de teorizar, no/para o/a partir do que Frank Wilderson descreve como “permanece[r] no porão 38

do navio”.

wake

Com cada uma dessas definições de vestígio [

] presentes

ao longo do meu texto, argumento que, em vez de buscar uma solução para a abjeção contínua e insolúvel da negridade, pode-se abordar a existência Negra

no

vestígio

como

uma

forma

consciência

de

.

Intelectuais

de

diferentes áreas, como ciências políticas, história, filosofia, literatura, entre outras,

formularam

desigualdade indagando

racial

sobre

a

como após

questão

a

para

emancipação

associação

direta

da

reflexão jurídica

e

negridade

a os

resistência direitos

como

a

da

civis,

negação

ontológica do ser a pessoas e comunidades Negras. Ou seja, em diversas disciplinas,

a

comunidade

acadêmica

continua

a

se

preocupar

com

a

resistência da antinegridade dentro e fora da contemporaneidade. Dessa forma,

este

livro

junta-se

ao

trabalho

de

intelectuais

que

investigam

o

problema persistente da exclusão Negra do pertencimento social, político e cultural; nosso banimento do reino do humano. Mas o livro se distancia de intelectuais e de obras que buscam respostas políticas, jurídicas ou mesmo

18

filosóficas

para

esse

problema.

Meu

projeto

olha

para

os

desastres

cotidianos atuais no intuito de perguntar o que, se é que algo, sobrevive a essa persistente exclusão das pessoas Negras, a essa negação ontológica, e como a literatura, a performance e a cultura visual observam e medeiam essa (não) sobrevivência. Para fazer esse trabalho de me manter no vestígio e realizar o trabalho de vigília, volto-me também para formas de expressão cultural como

Negras

M.

buscam

(por

NourbeSe

explicar

exemplo, Philip,

nem

as

obras

Dionne

resolver

a

de

Brand

questão

poetas

e

e

Kamau

dessa

poetas-romancistas

Brathwaite)

exclusão

em

que

não

termos

de

assimilação, de inclusão ou de direitos civis ou humanos, mas sim retratar esteticamente

a

impossibilidade

de

tais

resoluções,

representando

os

paradoxos da negridade nos legados da negação da humanidade Negra pela escravização e depois deles. Nomeio esse paradoxo como vestígio, e uso

wake

vestígio [

] em todos os seus significados [vestígio, vigília, vereda] como

um meio de compreender como as violências da escravização emergem nas condições

contemporâneas

de

dimensões

espaciais,

legais,

psíquicas

e

materiais e em outras dimensões da (não) existência Negra, bem como em modos Negros de resistência.

Se a escravização persiste como uma questão na vida política da América negra, não é por causa de uma obsessão antiquada com o passado ou do peso de uma memória muito antiga, mas porque as vidas negras estão ainda sob perigo e ainda são desvalorizadas por um cálculo racial e uma aritmética política que foram entrincheirados séculos atrás. Esta é a vida após a morte da escravização: oportunidades de vida incertas, acesso limitado à saúde e à educação, morte prematura, encarceramento e pobreza. Eu, também, sou a vida após a morte da escravização 39

40

41

.

Viver

(n)o

vestígio

propriedade”

ventrem status

e

da

viver

a

escravização vida

após

a

é

viver

morte

“a

da

vida

ideia

após

de

a

morte

da

partus sequitur

(quem nasce segue o ventre), em que a criança Negra herda o (não)

, a (não) existência de sua mãe. Essa herança de um (não)

aparente em toda parte

agora

status

está

na criminalização contínua de mulheres e

crianças Negras. Viver no vestígio em uma escala global significa viver o tempo

desastroso

desastres

e

os

efeitos

mediterrâneos

transafricana,

ajustes

e

de

migrações

caribenhos,

estruturais

marcadas

migração

impostos

pelo

e

ininterruptas,

transamericana Fundo

e

Monetário

Internacional, que dá sequência a imperialismos/colonialismos etc. E aqui, nos

Estados

Unidos,

significa

viver

e

morrer

em

meio

às

políticas

do

primeiro presidente estadunidense Negro; significa a violência gratuita do 42

baculejo policial e da Operation Clean Halls;

as perturbadoras taxas de

encarceramento da população Negra (pessoas Negras representam 60% da população

encarcerada);

a

imanência

19

da

morte

como

“um

aspecto

previsível

e

constitutivo

dessa

43

democracia”.

Viver

no

vestígio

significa

viver a história e o presente do terror, do período da escravização até os dias

de

hoje,

brutalidade presente passo

e

como

a

base

histórica

e

revigorada

que,

mesmo

de

nossa

existência

Negra

cotidiana;

geograficamente

(des)contínua,

maneira

em/sobre

de

quando

esse

infinita,

terror

é

visitado

mas

nossos

em

nosso

viver

a

sempre

corpos,

ao

corpo,

as

realidades desse terror são apagadas. Em outras palavras, viver no vestígio significa viver no/com terror, considerando que, em grande parte do que passa

por

tornamos

discurso

portadoras

sobre

público

o

terror,

nós,

pessoas

Negras,

nos

do terror, a personificação do terror, e não os objetos

primários das múltiplas encenações do terror; a base da possibilidade do terror, globalmente. Isso se torna bem nítido quando pensamos sobre as pessoas

Negras

nos

Estados

Unidos

que

podem

“usar

calçadas

como

armas” (Trayvon Martin) e atirar em si mesmas enquanto estão algemadas (Victor

White

III, 44

transmigrando

Chavis

Carter,

Jesus

Huerta

etc.),

pessoas

Negras

do continente africano para o Mediterrâneo e então para a

Europa imaginadas como insetos, enxames, vetores de doenças; narrativas familiares de perigo e desastre que se prendem aos nossos corpos Negros sempre já armados (a arma é a negridade). Devemos também, por exemplo, pensar no ex-secretário de imprensa do presidente Obama, Robert Gibbs, que

disse,

ao

comentar

sobre

o

assassinato

por

drone

do

cidadão

estadunidense Abdulrahman Al-Awlaki, de dezesseis anos: “Eu diria que você

deveria

ter

um

pai

muito

mais

responsável, 45

preocupa com o bem-estar de suas crianças”. em

conjunto

dominicanas

com de

o

rastreamento

ascendência

por

haitiana

sem

você

realmente

se

Devemos considerar isso

drones e

se

de

pessoas

documentos 46

limpeza étnica em curso na República Dominicana.

haitianas

e

em

à

meio

Devemos considerar

a declaração de Gibbs ao lado das críticas de Barack Obama aos homens Negros

nos

Estados

responsáveis.

Unidos,

Consideremos,

sua

advertência

também,

o

para

ressurgimento

que de

sejam

pais

narrativas

de

que pessoas Negras viviam melhor durante a escravização. Essa é a vida Negra no vestígio; essa é a carne, esses são os corpos aos quais tudo e qualquer coisa pode ser feita e o é. Imediatamente

após

o

assassinato

de

seis

mulheres

e

três

homens

Negres em 17 de junho de 2015, na Emanuel African Methodist Episcopal Church, publicou

na

Carolina

um

artigo

do de

Sul,

Estados

opinião

no

Unidos,

a

poeta

New York Times

Claudia

Rankine

intitulado

“The

Condition of Black Life Is One of Mourning”, no qual escreve:

Embora a imaginação liberal branca goste de se sentir temporariamente mal com

o

sofrimento

negro,

não

há,

de

fato,

nenhuma

forma

de

empatia

que

possa replicar a tensão cotidiana de saber que, como uma pessoa negra, você

20

pode ser morta por simplesmente ser negra: é proibido ficar com as mãos nos bolsos, ouvir música, fazer movimentos bruscos, dirigir seu carro, caminhar à noite, caminhar durante o dia, virar nesta rua, entrar neste prédio, defender seu território, ficar imóvel aqui, ficar imóvel ali, responder, brincar com armas 47

de brinquedo, viver enquanto pessoa negra.

Existir no vestígio é viver nesses nãos, viver no não espaço que a lei não é obrigada a respeitar, viver na não cidadania, viver nos infindáveis tempos de Dred e Harriet Scott; e é mais do que isso. Existir/no vestígio é ocupar aquele/a tempo/espaço/lugar/construção (existência no vestígio) em todos os sentidos que mencionei. Existir no vestígio é reconhecer as categorias que teorizo neste texto como as localizações contínuas da existência Negra: o

vestígio,

reconhecer

o

navio,

as

o

porão

maneiras

e

pelas

o

tempo.

quais

Existir

somos

no

vestígio

constituídas

também

através

vulnerabilidade contínua à força opressora, embora não seja

é

da/pela

apenas por

48

essa força que nos reconheçamos e sejamos reconhecidas.

Em meio a tanta morte e ao fato da vida Negra como próxima da morte, como dar atenção à morte física, social e figurativa e também à vastidão que

é

a

vida

Negra,

a

vida

Negra

que

insiste

apesar

da

morte?

Minha

49

sugestão é a de que isso pode ser parecido com o trabalho de vigília.

TRABALHO DE VIGÍLIA Quando finalmente cheguei à Porta do Não Retorno, havia um funcionário lá, um guia que ou era um homem com sua vida comum ou um idiota ou um hipócrita. Mas, mesmo que ele fosse um homem com sua vida comum, um idiota ou um hipócrita, ele era autoritário. Violeta exausta, o funcionário exclama. Sim ele era, diz a autora, armadilhas violeta. Por alguma estranha razão, ele queria controlar a história. Arquivos violeta. Química violeta. Unção violeta. Era dezembro, trouxemos uma garrafa de rum, algum ritual antigo que lembrávamos de lugar nenhum e de ninguém. Nós ficamos em fileira, como de costume. O castelo era enorme, opulento, uma empresa em funcionamento em sua época. Fomos como peregrinas. Vocês eram peregrinas. Nós éramos peregrinas. Nunca fomos mais sagradas que isso. Nossos deuses estavam nas celas. Nós os despertamos e os deixamos lá, porque nunca mais precisamos de deuses. Não tínhamos deuses perversos, então entenderam. Deitavam em seus cantos, em seus chãos desintegrados, deitavam em sua parede de poeira de pele. Se levantaram quando entramos, felizes em nos ver. Nosso guia disse, esta era a cela da prisão para os homens, esta era a cela da prisão para as mulheres. Eu quis estrangular o guia como se ele fosse o guia original. Precisei me controlar com todas as minhas forças. Agora nos espaços o guia era irrelevante, os deuses acordaram e sentimos pena deles, carinho e amor; eles ficaram felizes por nós,

21

ainda estávamos vivas. Sim, ainda estamos vivas, dissemos. E retornamos para lhes agradecer. Vocês ainda estão vivas, disseram. Sim, ainda estamos vivas. Eles nos olharam como violetas; como chás de violeta, nos beberam. Dissemos aqui estamos. Disseram, vocês ainda estão vivas. Dissemos, sim, sim, ainda estamos vivas. Como limão, disseram, tão azul como a sorte. Tiramos a garrafa de rum de nossas veias, lavamos seus rostos. Nós éramos peregrinas, eles eram deuses. Costuramos a borda de suas peles com algodão. Isso é o que tínhamos. Disseram com maravilhamento e admiração, vocês ainda estão vivas, como hidrogênio, como oxigênio Ficamos todas paradas lá por um tempo infinito. Choramos, mas em comparação isso não é nada .

.



Se,

DIONNE BRAND,

como

sugeri

até

“Verso 55”

agora,

pensarmos

a

metáfora

do

wake

vestígio

[

]

na

totalidade de seus significados (a vigília pelas pessoas mortas, o rastro ou a esteira de um navio, uma consequência de algo, o trajeto de voo e/ou linha de visão, estar em alerta e consciente) e unirmos o vestígio ao trabalho para que

possamos

fazer

do

vestígio

e

trabalho de vigília

do

nossos

modos

analíticos, poderemos continuar a imaginar novas maneiras de viver no vestígio

da

escravização,

nas

vidas

após

a

morte

da

escravização,

para

sobreviver (e mais) à vida após a morte da propriedade. Em suma, quero dizer

que

o

trabalho

de

vigília

é

um

modo

de

habitar

e

romper

essa

episteme com nossas vidas conhecidas vividas e (in)imagináveis. Com esse modo analítico, podemos imaginar outramente a partir do que sabemos

agora

no vestígio da escravização.

Dionne Brand faz esse trabalho de vigília quando imagina outramente no “Verso 55”, no qual não apenas revisita a imaginação em

a Porta do Não Retorno

Um mapa para

acerca da consciência diaspórica em relação àquela

porta como um local mítico e real mas também imagina um encontro entre pessoas retornadas da Diáspora e aquelas que foram detidas nas celas das 50

fortificações.

Ela imagina as pessoas que foram presas, reconfigurando –

reencontrando-se

com

maravilhamento



os

traços

de

suas

antigas

existências aflorando em saudação. Aqui ancestrais são como Marie Ursule, que, em que

a

At the Full and Change of the Moon

, reanima as freiras ursulinas

escravizaram

num/no

futuro.

peregrinas,

as

Em

para

que

“Verso

pessoas

que

cuidem

55”,

de

Brand

foram

sua

filha

imagina

capturadas

Bola,

que,

se

com

que a

ela

sonha

entrada

reconstituem

de

das

onde

“deitavam em seus cantos, em seus chãos desintegrados, deitavam em sua parede de poeira de pele”, e se levantam para saudá-las; ancestrais, únicos deuses celas.

que Com

tínhamos, essas

seus

palavras,

traços Brand

de

tanta

elabora

poeira (n)o

e

assombro

vestígio

naquelas

para além

da

“produção a partir do nada: espaços vazios, silêncio e vidas reduzidas a 51

destroços”. Ela imagina outros usos para “os pedaços do arquivo”.

22

Brand,

como Hartman, encontra esses espaços, essa dor do/no arquivo, mas esses espaços não estão vazios, e, embora os pedaços de algodão – a safra escrava do

novo

mundo



possam,

na

verdade,

ser

insuficientes

para

as

nossas

necessidades e para as deles, são o que temos a oferecer. E aqueles que habitavam aqueles espaços não pensavam nos grupos de visitantes, não podiam saber, mas talvez imaginassem, que qualquer coisa, qualquer parte de

si

sobreviveria

ao

porão,

ao

tráfico,

à

água

e

ao

tempo,

imaginando

também que beberiam o grupo de visitantes como chá de violeta e aroma de limão. O “Verso 55” está repleto do conhecimento de que essa prisão, essas mortes, aquele tráfico nunca deveriam ter acontecido, e com esse conhecimento e “os pedaços do arquivo” Brand imagina algo que parece completamente novo. Os espaços não estão vazios, e os pedaços são o que temos para oferecer. Mas, mesmo que aquelas pessoas africanas nos porões dos tumbeiros, que deixaram algo de seus eus anteriores naquelas celas, como um traço a ser descoberto, e que passaram pelas portas do não retorno, não tivessem sobrevivido ao aprisionamento e ao mar, elas, como nós, estão vivas no hidrogênio, no oxigênio; no carbono, no fósforo e no ferro; no sódio e no cloro. Isso é o que sabemos sobre aquelas pessoas da África lançadas e 52

jogadas ao mar na Passagem do Meio;

elas ainda estão conosco, no tempo

do vestígio, conhecido como tempo de residência da água.

Disseram com maravilhamento e admiração, vocês ainda estão vivas, como hidrogênio, como oxigênio 53

.

Brand também faz isso em

Um mapa para a Porta do Não Retorno

, mais 54

precisamente com seu “Portulano para pessoas à deriva na Diáspora”, onde

abundam

pertencimento

e

sua

recusa

em

pensar

forte insistência

sua

no

nos

retorno,

fatos

do

seu

desalojo

deslocamento

e

do das

vivências em/como pessoas deslocadas da Diáspora. NourbeSe Philip faz isso em seu livro de poemas

Zong!

através da destruição do arquivo que

opera para contar “a história que não pode ser contada”, mas que ainda 55

deve ser contada. estou

chamando

Devemos nos ater (e já nos atemos) ao trabalho que

de

trabalho

de

vigília

como

uma

teoria

e

práxis

do

vestígio; uma teoria e uma práxis da existência Negra na Diáspora. Estou tentando encontrar as palavras para este trabalho, encontrar a forma para este trabalho. A linguagem e a forma se fraturam mais e mais a cada dia. Estou tentando, também, encontrar as palavras que articularão o cuidado e as palavras para pensar o que Keguro Macharia chama de “nós formações”

we formations

[

56

].

Estou

tentando

entender

como

fazer

o

trabalho delas. Ou o que Tinsley chama de “sentimento e sensação de”

feeling and feeling for

[

] e o que Glissant designa como “nos conhecemos na

23

nous connaissons en foule

multidão” [

57

].

Isso é o que estou chamando de

trabalho de vigília. Com Brand e Philip, eu quero vibrar essa linguagem novamente,

vibrar

uma

linguagem

nova.

Pensando,

ainda

com

Brand

e

Philip, que exigem, sempre, um pensamento novo, quero distinguir o que chamo de existência Negra no vestígio e trabalho de vigília do trabalho de 58

melancolia e luto. parte,

atento

ao

E, embora o trabalho de vigília seja, pelo menos em

luto

e

ao

trabalho

de

luto

que

ocorre

em

níveis

local,

trans*local e global, e mesmo sabendo que o luto de um evento pode não ter fim, como se lamenta o evento interminável? Assim como o trabalho de vigília

perturba

o

luto,

o

vestígio

e

o

trabalho

de

vigília

perturbam

as

maneiras como a maioria dos museus e memoriais tratam de traumas e memórias. reparação público

Ou

seja,

(reparo)

para

experiências

que

e

se

tenha

acerca

museus

encenam

de

uma um

e

memoriais

suas

próprias

experiência

evento

que

é

materializam

pedagogias

específica visto

ou

como

um

ao

tipo

de

posicionar

um

conjunto

passado,

o

de

como

se

preserva a memória da escravização de pessoas como bens móveis e suas vidas

após

a

morte

ainda

incandescentes?

Como

podemos

preservar

a

memória de um evento que ainda está em curso? Poderíamos entender, portanto, a ausência de um Museu Nacional da Escravidão nos Estados Unidos

como

o

reconhecimento

da

continuidade

das

condições

de

captura? Afinal, como se preserva a memória do cotidiano? Como alguém, nas palavras tão frequentemente usadas por tais instituições, “aprende a lidar com” (o que geralmente significa superar) a atrocidade contínua e cotidiana? Dito de outra forma, estou interessada em maneiras de ver e imaginar vidas

respostas

Negras

são

ao

terror

vividas

nas

em

variadas

estado

de

e

várias

sítio;

formas

formas

como

que

nossas

atestam

as

modalidades da vida Negra vivida na/como/sob a/apesar da morte Negra. E quero pensar sobre o que essa imaginação suscita, para pensar sobre o que ela “nos” convoca a fazer, pensar e sentir no vestígio da escravização – ou seja, em um presente contínuo de sujeição e resistência; ou seja, o trabalho de vigília, a teoria do vestígio. Quero, também, distinguir entre o que estou evocando e chamando de cuidado e os regimes de vigilância impostos pelo 59

Estado.

Como

podemos

pensar

(e

repensar,

e

repensar)

o

cuidado

lateralmente, no registro intramuros, em uma relação diferente daquela de violência do Estado? De que forma nos lembramos das pessoas mortas, das perdidas na Passagem do Meio, das que chegaram com relutância e das que ainda estão chegando? Para citar Gaston Bachelard, a quem cheguei através do artigo “Heavy Waters”, de Elizabeth DeLoughrey, “a água é um elemento 60

‘que lembra de quem morreu’”.

Quais são, então, as coordenadas e efeitos contínuos do vestígio, e o que significa

habitar

aquela

“zona

do

não

ser”

fanoniana 61

negação da humanidade Negra pela escravização?

durante

e

após

a

Habitar aqui é o estado

de ser habitada/ocupada e também de estar ou morar [em]. Ao ativar os

24

múltiplos

registros

de

“vestígio”,

voltei-me

para

imagens,

poesia

e

literatura que se apropriam do vestígio como uma forma de compreender como os desdobramentos contínuos da escravização são constitutivos das condições espaciais, legais, psíquicas e materiais contemporâneas da (não) existência

Negra,

bem

como

da

estética

Negra

e

outros

modos

de

deformação e interrupção. Esse conjunto de trabalhos de artistas, poetas e intelectuais

Negres

é

posicionado

contra

um

conjunto

de

eventos

catastróficos do cotidiano e seus relatos que, juntos, compreendem o que estou chamando de ortografia do vestígio. Esta última é uma disgrafia de desastre,

e

esses

desastres

chegam

por

meio

da

circulação

rápida,

deliberada, repetitiva e ampla na televisão e nas redes sociais da morte social,

material

(in)visível

e

e

(não)

psíquica

Negra.

visceral.

Essa

Essa

ortografia

ortografia

é

um

torna

exemplo

a

dominação

do

que

estou

chamando de o Tempo; ela registra e produz as convenções antinegridade no presente e para o futuro.

wakes

Uma retrospectiva e uma elaboração: vigílias [

] são processos; por

meio deles pensamos em quem morreu e em nossas relações com essas pessoas;

são

rituais

por

meio

dos

quais

encenamos

luto

e

memória.

Velórios permitem que pessoas vivas lamentem a passagem das mortas por meio de rituais; trata-se do ato de velar praticado por parentes e pessoas amigas

ao

lado

sepultamento,

do

entre

corpo comes

de e

quem

bebes,

faleceu,

celebração

desde e

a

outras

wakes

vigília realizada como ritual religioso. Mas vigílias [

morte

até

práticas,

o

uma

] também são “o

vestígio deixado na superfície da água por um navio [fig. 1.4]; a perturbação causada por um corpo nadando ou sendo movido na água; as correntes de ar atrás de um corpo em voo; uma região de fluxo perturbado; na linha de visão de (um objeto observado); e (algo) na vereda de recuo de (uma arma)”; por fim, vigília significa estar alerta e, também, consciência. No vestígio, a semiótica do navio tumbeiro continua: dos movimentos forçados de pessoas escravizadas aos movimentos forçados de migrantes e pessoas refugiadas, à vigilância de pessoas Negras nas ruas e bairros da América

do

Norte,

às

travessias

contínuas

e

aos

afogamentos

no

mar

Mediterrâneo, às brutais reimaginações coloniais do tumbeiro e da arca; aos reaparecimentos do tumbeiro na vida cotidiana em forma de prisão, de campos de trabalho forçado e da escola. À medida que avançamos no trabalho de vigília, devemos pensar na contenção, vigilância, punição, captura e cativeiro, e nas maneiras como as representações excelência,

da

múltiplas existência

da

negridade

se

tornam

menos-que-humana

o

símbolo,

condenada

à

por

morte.

Devemos pensar sobre a carne Negra, a lente Negra e as maneiras como produzimos trabalho encarnado; pensar as maneiras como o cativeiro não pode nos conter e não nos contém, mesmo que permaneça na forma da

25

semiótica do porão do tumbeiro, da prisão, do ventre, e em outros lugares na/como

a

tensão

entre

a

existência

e

a

instrumentalidade

que

é

a

existência Negra no vestígio. O que está em jogo é o não reconhecimento da antinegridade

como

clima

total.

Também

está

em

jogo

o

não

reconhecimento de uma resistência visual-sônica Negra insistente a essa imposição de (não) existência. Como podemos ficar no vestígio com/como pessoas que o Estado marca para morrer mortes não passíveis de luto e viver

vidas

destinadas

a

serem

invivíveis?

contenção

do

vestígio.

Em

Essas

longue durée

temporalidade, de longa duração [ jogo,

são

questões

de

], o tempo de residência e de

então,

está

ficar

neste

tempo

de

vigília

rumo à habitação de uma consciência enegrecida que romperia os silêncios estruturais produzidos e facilitados pelas mortes social e física Negras e 62

que as produzem e facilitam.

Pois, se tivermos sorte, vivemos sabendo que o vestígio nos posicionou na

não

63

cidadania.

Se

tivermos

sorte,

saber

desse

posicionamento

nos

trará maneiras específicas de (re)ver, (re)habitar e (re)imaginar o mundo. E poderemos usar essas maneiras de existir no vestígio em nossas respostas ao

terror

e

às

várias

e

variadas

formas

vividas em estado de sítio. Quero que

como

No vestígio

nossas

vidas

Negras

são

declare que somos povos

pretos no vestígio, sem Estado ou nação que nos proteja, sem cidadania vinculada a ser respeitada nem a nos posicionar nas modalidades da vida Negra vivida na/como/sob a/apesar da morte Negra: pensar, ser e agir a partir daí. Minha esperança é que a práxis do vestígio e do trabalho de vigília, a teoria e a performance do vestígio e do trabalho de vigília, como modos

de

cuidar

imaginadas responder

e à

enfrentamos;

da

vida

e

performadas hediondez também

dos

espero

do

sofrimento

aqui

com

múltiplos que

a

das

pessoas

especificidade e

práxis

sobrepostos do

vestígio

Negras,

sejam

suficiente

e

presentes do

para que

trabalho

de

vigília tenha capacidade suficiente para viajar e realizar trabalhos que não fui capaz de imaginar ou antecipar aqui.

26

[1.1] A autora (com dez anos) e seu sobrinho Jason Phillip Sharpe (de aproximadamente um mês).

[1.2] Stephen Wheatley Sharpe (com dezoito anos).

27

[1.3] Ida Wright Sharpe (minha mãe), Van Buren Sharpe Jr. (meu pai), IdaMarie Sharpe (minha irmã), Van Buren Sharpe III (meu irmão) e Stephen Wheatley Sharpe (o bebê, meu irmão) em 1954. Todas as pessoas nessa foto estão mortas agora.

28

[1.4] Vestígio de um navio de cruzeiro em alto-mar, 10 mar. 2011. © Bcbounders, “Cruise Ship Wake Photo”/ dreamstime.com

29

30

O TRANS*ATLÂNTICO quem não consegue ver isso como o Ossuaries Shipping Out

da passagem

continuum



DIONNE BRAND,

“Ossuary

(sobre

XI”,



, de Jacob Lawrence, parte de sua série

War

)

The Forgotten Space A Film Essay Seeking to Understand the Contemporary Maritime World in Relation to the Symbolic Legacy of the Sea O

filme



, de Allan Sekula e Noël Burch, de 2010, acompanha por terra e mar a

movimentação de contêineres de transporte. Trata-se de um filme sobre o capital global e os destroços que ele deixa em seu vestígio. Os cineastas “visitam fazendeiros e aldeões deslocados nos Países Baixos e na Bélgica, caminhoneiros mal remunerados em Los Angeles, marinheiros a bordo de navios gigantescos entre a Ásia e a Europa e operários de fábrica na China” e,

finalmente,

expressão

o

mais

Museu

Guggenheim

sofisticada

da

crença

em

de

Bilbao,

que 1

próprio mar são, de alguma forma, obsoletos”. revista

New Left Review

:

“O

tema

do

filme

a

onde

“descobrem

economia

marítima

a

e

o

Burch e Sekula escrevem na

é

a

globalização,

e

o

mar,

o

Sua premissa é que os oceanos continuam sendo o espaço crucial da globalização: em nenhum outro lugar a desorientação, a violência e a alienação do capitalismo contemporâneo são mais evidentes ‘espaço esquecido’ da nossa modernidade.

2

”.

sistema. capital,

Com a

tal

Os

cineastas

premissa,

capitalização

da

declaram

certamente miséria

um

humana

que

filme e

os

o

filme

sobre

a

lucros

é

sobre

um

voracidade

do

decorrentes

da

pauperização trataria, ainda que tangencialmente, da Passagem do Meio, dos transportados e daqueles destroços viscerais que o capital produziu.

The Forgotten Space Fish Story intitulado “Middle

Passage”,

nasceu de um trabalho anterior de Sekula, um livro

,

e

que

tem

nove

poderíamos

capítulos.

esperar

que,

O ao

capítulo

3

localizar

é o

intitulado oceano,

a

indústria naval e os portos como temas, as imagens e o texto desse capítulo tratariam da histórica Passagem do Meio e da escravização. E talvez, devido ao seu título, o capítulo 3 também pudesse abordar aquele sempre presente lançar-pular ao mar, assim como os peixes que se alimentavam/alimentam 3

dos corpos no vestígio dos navios.

Embora os longos ensaios mencionem a

escravização, a Passagem do Meio de

Fish Story

31

não estabelece nenhuma

relação

discernível

com

o

desastre

planejado

que

é

conhecido

por

esse

nome nem com seus efeitos longos e contínuos. Não é surpresa, então, que o filme não aborde a história do comércio de pessoas africanas raptadas; não

localize

esse

comércio

como

chave

no

início

do

capital

global.

O

continente africano, o Caribe e toda a Diáspora africana estão ausentes, espaços

esquecidos

The Forgotten Space

de

.

E,

desse

modo,

aquelas

histórias passadas e presentes da escravização e da colonização, do turismo e do estabelecimento de bases militares que a conteinerização incentiva também

deixam

4

de

aparecer.

Estão

ausentes,

no

caso,

salvo

por

uma

exceção reveladora. A seção do filme chamada “Mud and Sun” inicia com o porto de Los Angeles/Long Beach e com a promessa previsivelmente fracassada, após o 11 de Setembro de 2001, de novos empregos em Alameda Corridor. Mas como falar de lama, sol e firmamento, do oceano Atlântico e dos Estados Unidos, sem falar da escravização transatlântica? A equipe filma de um grande

assentamento

de

barracas

localizado

entre

duas

linhas

de 5

contêineres e diretamente no caminho de uma empresa de frete aéreo.

Sekula diz que, após exibições públicas, a audiência frequentemente lhe pergunta o que os residentes do assentamento estão fazendo no filme. Sua resposta é que ele queria que o filme contivesse as percepções de pessoas despejadas do sistema. Dois desses entrevistados despejados são homens brancos de meia-idade. Bruce R. Guthrie, que diz à equipe de filmagem que haverá problemas se eles tiverem de morar no assentamento por um mês, alega não ter dinheiro para se mudar agora, mas diz que, quando sua mãe morrer e ele herdar seus bens, vai comprar um trailer, colocá-lo perto do rio

e

então

empreiteiro.

beber O

e

pescar

segundo

até

homem

morrer. branco,

Ele

é

Robert

identificado W.

Wargo,

como

fala

ex-

sobre

a

escassez de programas destinados a ajudar homens de meia-idade como ele a recomeçar e sobre a falta de dignidade de uma “ajuda” que vem na forma de loteria, a qual só se pode ganhar uma vez e cujo prêmio é um quarto de hotel por três dias. Wargo se distingue dos outros homens no assentamento, a quem chama de “degenerados”, e é identificado no final como ex-mecânico. A audiência do filme deve entender que as dificuldades atuais

de

Wargo

e

Guthrie

resultam

do

fato

de

o

sistema

tê-los

desamparado. Em

seguida,

uma

mulher

Negra

que 6

anteriores aparece na frente da câmera.

vimos

no

fundo

das

tomadas

Ela é a única figura Negra que fala

no filme, a única pessoa Negra que não aparece apenas no fundo ou em cenas

de

arquivo.

O

nome

dela

é

Aereile

Jackson

e,

em

meus

termos

teóricos, ela fala no filme a partir da posição do vestígio: de uma posição de profunda dor e de profundo conhecimento. É doloroso vê-la e ouvi-la. Ela sente dor ao falar sobre suas crianças, que foram tiradas dela, e sobre a crueldade do Estado, que a colocou nessa posição. Ela também fala sobre

32

estar

acima

chumaços

do

de

peso

seu

e

sobre

cabelo

o

estão

cabelo, caindo.

e

diz

Esses

que são

usa os

peruca

porque

sintomas

de

seu

sofrimento. Ela diz aos cineastas que não está mentalmente doente – ela sabe

que

está

segurando

bonecas

nos

braços,

mas

essas

bonecas

estão

guardando o lugar de suas crianças, que foram separadas dela e que ela não vê



seis

anos.

Ela

former mother

[

é

identificada

nos

créditos

finais

como

“ex-mãe”

] [figs. 2.1-2.2].

Tive

alguma

esperança

de

que

esse

filme

que

olha

para

a

goela

do

capital não usasse Aereile Jackson para alimentá-lo, não a usasse como representante

de

toda

aquela

história

ignorada,

não

a

usasse

como

asterisco ou reticências para fazer a narrativa avançar. Pensei que a sra. Jackson

não

atravessar;

seria

apenas

passagem

um

ou

Dictionary.com

transit point

jornada

de

(“ato

um

ou

lugar

fato

ou

de

cruzar

ponto

a

ou

outro”,

). Mas, embora ela forneça os termos e a imagem, se não as

palavras exatas que dão nome ao segmento, Aereile Jackson aparece apenas para desaparecer. Ela é uma metáfora. Sua aparição não entra na lógica do filme à medida que ele se desenrola; no entanto, isso faz todo o sentido, pois, como Stefano Harney e Fred Moten escrevem, a “modernidade”, a própria

modernidade

7

porão”.

O

migrantes; Jackson

porão é

a

que

é

o

tema

desse

filme,

“é

suturada

por

esse

é o porão do tumbeiro; é o porão do chamado navio de

prisão;

apareceu

no

é

o

útero

filme,

ela

que

produz

parou

o

negridade.

tempo

para

Quando

mim.

Em

a

sra.

minha

memória, a seção com ela era no final do filme, e não na primeira metade. 8

“O que é o tempo?” No

fim

pessoas

do

filme,

chegamos

entrevistadas

do

aos

créditos,

acampamento

é

quando

cada

identificada

uma

das

novamente

três pelo

nome e ex-profissão: Bruce R. Guthrie é ex-empreiteiro; Robert W. Wargo é 9

ex-mecânico; e Aereile Jackson é “ex-mãe”.

Neste título, “ex-mãe”, com o

qual os cineastas a rotulam, aparentemente não há um sentido de longa duração, como é o caso de

partus sequitur ventrem

e suas vidas após a

morte. Relembremos sua entrevista:

Isso [e pode-se ouvir em seu “isso” sua antecipação e condenação do rótulo que lhe darão no futuro] para mim e para minha família é como um tapa na cara. Eu não estou drogada. […] Sim, essas são minhas bonecas que peguei, então não pense que estou doente da cabeça ou algo parecido. Eu as peguei. Tenho

uma

barraca

cheia

de

bichinhos

de

pelúcia

e

bonecas.

Essas

são

as

únicas coisas que tenho para me segurar e para lembrar das minhas crianças. Perdi muito, estou em situação de rua e não vejo minhas crianças desde que não pude comparecer ao tribunal porque não tive como pegar o transporte. O tribunal era lá em San Bernardino e estou em Ontário e perdi minhas crianças, não as vejo desde 2003 e agora é 2009, então perdi muito. Estou tentando… Estou machucada. Estou tentando descobrir se algum dia terei a chance de ser

33

mãe de novo com as crianças que já tenho. Eu não estou com minhas crianças. Estou aqui na sujeira, ficando mais escura, e mais escura, e mais escura. E minha

peruca

é

porque

meu

cabelo

está

caindo,

sabe,

meu

cabelo

cai

misteriosamente, e não era assim no começo, mas eu chego aqui e vou lavar meu cabelo e tal e ele começa a cair, sabe… tufos de cabelo. Como se alguém estivesse raspando meu cabelo. E eu também engordei muito e, agora, estou começando a lidar com meu peso no sol quente e mal consigo andar até a esquina sem sentir calor e sem ter ondas de calor. Então, estou tentando lidar 10

com meu peso e com minha situação ao mesmo tempo.

Aereile Jackson perdeu muito. Mais do que esse filme pode ou vai contar. A violência contra ela é (nos termos de Wilderson) não contingente, não é a violência que ocorre entre os sujeitos em um conflito; é a violência gratuita que

ocorre

em

uma

estrutura

que

constitui

o

sujeito

Negro

como

o

constitutivo exterior. Dito de outra forma, o fato e o modo de inclusão e exibição do corpo e da fala da sra. Jackson são indicativos de como o filme não consegue entender uma linguagem de violência gratuita implementada contra pessoas Negras. Ou seja, a linguagem analítica dos cineastas parte da violência da ausência da sra. Jackson, e é óbvio que o filme opera dentro de

uma

lógica

que

não

consegue

apreender

seu

sofrimento.

A

maneira

como ela é incluída no filme e a incapacidade de este compreender seu sofrimento fazem parte da ortografia do vestígio. O espaço esquecido é a negridade,

e

quando

a

sra.

Jackson

é

conjurada

para

preenchê-lo

ela

aparece como um espectro. É como se, com sua aparência, o capital fosse subitamente historicizado em/através de seu corpo. Ela é oportuna. Eles veem nela uma

portu m (

),

sistema:

que

ela

é

oportunidade

11

significa a

(do latim

“porto”).

ejeção,

a

ob-

Mas

abjeção,

, que significa “em direção a”, e

a

sra.

Jackson

pela/na/através

não

da

foi

qual

o

ejetada

do

sistema

se

A violência precede e excede os Negros

reimagina e se reconstitui. “

12

.”

O

sofrimento das pessoas Negras não pode ser comparado; “nós” não somos todas reivindicadas pela vida da mesma maneira; “nós” não vivenciamos o sofrimento na mesma planície de conflito, uma vez que a pessoa Negra é 13

caracterizada, como nos diz Wilderson, pela violência gratuita. Sekula parte,

e

Burch

móveis

e

continuam:

anônimos:

“Os

contêineres

‘caixões

de

de

força

carga

de

estão

trabalho

por

toda

remota’,

transportando mercadorias fabricadas pela mão de obra invisível do outro lado

do

globo”

rastreiam

estão

[fig.

2.3].

Como

relacionados

ao

esses

contêineres

aquecimento

que

global

e

Sekula

aos

e

Burch

conflitos

por

água e outros recursos? Como estão conectados às jornadas que pessoas africanas seguida,

fazem através

sobre do

a

mar

terra,

por

exemplo,

Mediterrâneo,

na

da

Somália

tentativa

de

à

Líbia

chegar

a

e,

em

lugares

como Lampedusa? Como estão conectados à conteinerização de pessoas

34

no passado, ao longo e depois daquela perigosa viagem marítima? Essas são questões que o filme de Sekula e Burch não tenta abordar. Essas

são

histórias

asteriscadas

da

escravização,

da

propriedade,

da

coisificação e de suas vidas após a morte. Eu não consigo deixar de ver a palavra

“risco”

asteriscadas

em

aos

“asterisco”.

mares

e

E

aos

ligar

esse

primórdios

risco

do

e

essas

comércio

histórias

de

seguros

subtendido através de um comércio de pessoas africanas.

A história do seguro começa com o mar. Três desenvolvimentos são centrais para

a

estrutura

conceitual

bottomry

acordo



”,

emprestado

a

uma

ou taxa

estabelecida

“empréstimo elevada

pelo

seguro

marítimo”,

para

uma

marítimo:

em

viagem,

e

que

o

o

risco

primeiro, dinheiro

recai

o é

sobre

o

credor. Em segundo lugar, o conceito de “média geral”, a ideia de que as perdas ocorridas

para

tempestade,

salvar

por

um

barco

exemplo)

(alijamento

representam

ou

um

corte

risco

de

mastros

compartilhado

em

uma

entre

as

pessoas que investem em uma viagem − geralmente visto como a forma mais antiga de empreendimento por ações. E, terceiro, a noção de “Perigos do Mar” 14

− a forma mais antiga do conceito de risco segurável.

Pode-se dizer que Aereile Jackson é o seguro do filme − uma vez que lhe empresta seu vocabulário e que sua abjeção garante a circulação do filme [fig. 2.4].

O risco no seguro: o humano asteriscado

.

Então, estive pensando sobre a capacidade de transporte, a conteinerização e

o

que

está

além

desses

estados.

Portanto,

o

que

estou

chamando

de

trans*Atlântico é aquele lugar/espaço, condição ou processo que aparece paralelamente e em relação ao Atlântico Negro, mas também excede suas correntes.

Eu

quero

pensar

sobre a

tentam elaborar algo sancionadas

trans*

sobre/por

ou

corpos

em

uma

variedade

em direção à

Negros.

O

de

maneiras

que

gama de trans*formações

asterisco

após

uma

palavra

funciona como curinga, e é assim que estou pensando o trans*; como meio de

marcar

as

formas

como

o

escravo

e

o

Negro 15

Hartman chama de “posição do impensado”.

ocupam

o

que

Saidiya

O asterisco após o prefixo

“trans” mantém o espaço aberto para o pensamento (a partir dessa e nessa posição).

O

asterisco

também

se

refere

a

uma

gama

de

experiências

incorporadas chamadas de gênero e ao desmantelamento do gênero euroocidental,

sua

incapacidade

de

se

manter

na/sobre

a

carne

Negra.

O

asterisco diz sobre uma série de configurações da existência Negra que tomam

a

forma

de

tradução

translation

[

],

transatlântico,

transgressão,

transgênero, transformação, transfiguração, transcontinental, transfixado,

35

transmediterrâneo,

transubstanciação

(processo

pelo

qual

poderíamos

entender a transformação de corpos em carne e depois em mercadorias fungíveis, mantendo a aparência de carne e sangue), transmigração e muito mais.

[2.1–2.2] Aereile Jackson.

36

[2.3] Contêineres de carga. De Allan Sekula e Noël Burch, The Forgotten Space (fotogramas). Amsterdam, 2010. Som, cor. 112 min. Cortesia de Doc. Eye Film.

[2.4] Imagem publicitária de Aereile Jackson em Making Political Cinema. Cortesia de Jerry White e do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Dalhousie, Halifax.

37

Com

o

intenção quando

trans*,

trazer

à

Omise’eke

não

estou

tona

interessada

corpos

Tinsley

em

transgêneros

escreve

em

genealogia;

a

“Black

partir

de

Atlantic,

não

é

minha

arquivos. Queer

Mas,

Atlantic:

Queer Imaginings of the Middle Passage” que “o Atlântico Negro sempre foi

queer

o Atlântico

”, podemos acrescentar que o Atlântico Negro e 16

sempre foi o trans*Atlântico.

17

Negro sempre foi esse excesso.

queer

De fato, a

negridade põe Negro e (hetero)normatividade em crise, se é que nesses lugares é realmente possível pensá-los em conjunto. Ou seja, a vida Negra dentro e fora do “Novo Mundo” é sempre muito

além.

desejos

Podemos

ao

dizer

transformar

que

a

escravização

algumas

pessoas

torna

em

trans*

coisas,

queer

todos

outras

e

os em

compradoras, vendedoras, proprietárias, fodedoras e reprodutoras daquela carne Negra. Esse excesso está aqui em grande escala nos corpos Negros − como acontece com o processo de sujeição. E é nesse ponto, posterior à “ruptura no mundo”, que Dionne Brand nos diz: feito

aquela

única

, quer

nós

tenhamos

passagem ou não, somos “transforma[das] em corpos. Aquela

porta

esvaziados

nós

[a

de

Porta

ser,

do

corpos

Não

Retorno]

esvaziados

nos

de

transformou

autointerpretação,

em

corpos

em

que

se

18

puderam introjetar novas interpretações”.

À medida que nos detemos nos muitos significados de trans*, podemos e devemos pensar e imaginar lateralmente, através de uma série de relações no navio, no porão, no vestígio e no tempo – em vários cotidianos Negros − para

fazer

o

que

Hartman,

em

“Vênus

em

dois

atos”,

descreve

como

“escutar o não dito, traduzir palavras mal interpretadas e remoldar vidas 19

desfiguradas”

e o que NourbeSe Philip chama de necessidade de “contar

uma história que não pode ser contada”. “Eu acho”, diz Philip, “que isso é o que

Zong!

está tentando: encontrar uma forma de carregar essa história 20

que não pode ser contada, que deve ser contada, mas sem contar”. Encontrar

pessoas

de

ascendência

africana

no

vestígio,

tanto

materialmente quanto como um problema para o pensamento, é encontrar aquele * na grande narrativa da história; e, nas condições de vida e morte de pessoas Negras, como as delineadas por Hartman (“oportunidades de vida incertas, acesso limitado à saúde e educação, morte prematura”), e nas formas

como

somos

posicionadas

através

delas

e

por

elas,

as

maneiras

como ocupamos o “eu” em “Eu sou a vida após a morte da escravização”, de 21

Hartman. soluções

Teorizar

disciplinares

o

trabalho

de

vigília

requer

um

afastamento

das

existentes para a abjeção contínua da negridade que

estende a disgrafia do vestígio. Requer teorizar os múltiplos significados dessa

abjeção

por

meio

da

habitação,

ou

seja,

vivenciando-os

na/como

consciência. Vemos esse posicionamento disgráfico de pessoas Negras mediante a abjeção em todos os lugares: desde reações a pessoas Negras abandonadas

38

nos

múltiplos

e

contínuos

desastres

do

furacão

Katrina

até

o

repulsivo

artigo “The Underlying Tragedy”, do colunista conservador David Brooks, no

New York Times

escreveu

que

os

de 15 de janeiro de 2010, sobre o Haiti, no qual ele

problemas

do

Haiti

eram

menos

um

problema

para

o

“desenvolvimento” resolver e mais um apelo para uma mudança cultural radical

imposta

“influências antologia

radicalmente,

culturais

de

surgida,

resistência

What Works in Development?

portanto,

como 22

ao

progresso”.

resultado

de

Baseando-se

na

, Brooks continua:

Todos nós devemos respeitar civilizadamente as culturas uns dos outros. Mas algumas

culturas

são

tragédia

horrível

acaba

mais de

resistentes ser

ao

progresso

exacerbada

por

do

uma

que

outras,

delas.

[…].

É

e

uma

hora

de

promover localmente o paternalismo […] substituir partes da cultura local por uma cultura de realização altamente exigente e intensiva − englobando tudo, desde novas práticas de educação infantil até escolas mais rígidas e melhor desempenho no trabalho.

não é

Esse artigo é mais bem compreendido no contexto do que

dito: sua

recusa em falar, por exemplo, do passado revolucionário do Haiti e dos bilhões de dólares em indenização que o Haiti foi forçado a pagar à França; ou das sucessivas ocupações e golpes militares dos Estados Unidos. Três dias antes de sua publicação, Brooks escreveu um artigo intitulado “The Tel Aviv Cluster”, sobre as realizações do povo judeu em todo o mundo:

A fé judaica incentiva uma crença no progresso e na responsabilidade pessoal. Tel Aviv se tornou um dos principais polos empresariais do mundo. Israel tem, de longe, mais

startups

de alta tecnologia

per capita per capita

do que qualquer outra

nação do mundo. É líder mundial em gastos civis

com pesquisa e

desenvolvimento, ocupando o segundo lugar, atrás dos Estados Unidos, em número de empresas listadas na Nasdaq. Israel, com 7 milhões de habitantes, 23

atrai tanto capital de risco quanto a França e a Alemanha juntas.

Como

aconteceu

Forgetting”,

o

com

minha

desastre

do

turma

de

Holocausto

estudantes

está

em

disponível

“Memory como

for

tragédia

humana de uma forma que a escravização, a revolução e suas vidas após a morte não estão. O asterisco é globalmente evidente. Desde a morte por afogamento de Connor e Brandon (de quatro e dois anos), filhos de Glenda Moore, em Staten Island, Nova York, durante o furacão Sandy em outubro de 2012, passando travessias oceano

pelos e

assassinatos

pelos

Atlântico,

de

afogamentos até

o

Michael

Brown

contínuos

policiamento

39

e

no

e

Miriam

mar

isolamento

Carey,

Mediterrâneo de

pessoas

pelas e

no

Negras

nas/fora

das

ruas

da

América

do

Norte,

o

“problema”

é

o

subdesenvolvimento (moral) Negro. O problema é a negridade. O problema

é

é que a negridade

subdesenvolvimento, o problema é a negridade

como

subdesenvolvimento. Não se podem imaginar proclamações de “cultura da pobreza” semelhantes às de Brooks sendo feitas, por exemplo, no rescaldo dos tornados em comunidades de maioria putativamente branca na região de Tornado Alley, no centro-oeste dos Estados Unidos, em maio de 2013 – mesmo que muitas das pessoas que vivem lá não tomem ou não possam tomar

as

devidas

precauções

a

fim

de

construir

abrigos

contra

tempestades, abandonar a área ou se preparar para o desastre de outras maneiras.

Que

tais

coisas

sejam

ditas,

e

com

tanta

regularidade,

sobre

pessoas Negras e enegrecidas é parte do que significa (existir n)o vestígio.

Não é reconhecidas “

apenas

por

essa força que nos reconhecemos e somos

24

.”

O NAVIO O ZONG O mar parecia cinza morto com o que restava do meu corpo e as ondas brancas… Eu me membro 25

.



KAMAU BRATHWAITE,

“Dream Haiti”

Após passar vários meses na costa da África Ocidental, enquanto seu porão era

gradualmente

tumbeiro

preenchido

Zong Zorgue

chamado

originalmente era

com

iniciou

pessoas

sua

africanas

jornada

para

a

sequestradas,

Jamaica.

Seu

um

nome

, e ele pertencia à Holanda antes de ser comprado,

em 1781, em nome de um grupo de comerciantes de Liverpool. Quando o

Zorgue

foi capturado pelos britânicos em 10 de fevereiro de 1781, ele já

levava a bordo 320 pessoas sequestradas da África; a “carga”, então, foi aprovada

após

a

captura,

depois

que

o

navio

zarpou

de

Cabo

26

Corso.

Construído para deter aproximadamente 220 homens, mulheres e crianças africanas,

o

Zong

navegou

com

o

dobro;

havia

442

(ou

470)

pessoas

africanas cativas a bordo. Quando o navio partiu para a Jamaica em 18 de agosto de 1781, tinha provisões para três meses e o conhecimento de que havia diversos portos no Caribe onde poderia parar para reabastecer caso faltassem

água

e

comida.

Os

registros

mostram

que,

devido

a

erros

de

navegação, o navio ultrapassou a Jamaica. O capitão e a tripulação também

40

relataram que decidiram lançar ao mar algumas das pessoas cativas com o intuito de “salvar o resto da carga”. A transcrição de processo

judicial

de

1783)

ecoa

esse

relatório:

Gregson v. Gilbert negros

(o

“Alguns

27

dos

morreram por falta de mantimento, e outros foram lançados ao mar para a 28

preservação do resto”. O

Zong

primeira

foi levado ao conhecimento do grande público britânico pela

vez

(Gregson)

por

jornais

estavam

que

noticiavam

processando

os

que

os

seguradores

proprietários (Gilbert)

do

pelo

navio

valor

do

seguro daquelas 132 (ou 140, ou 142) pessoas africanas assassinadas. Os pedidos de indenização são parte do que Katherine McKittrick chama de 29

“matemática da vida negra”, lançamento

ao

mar.

“O

killability

que inclui essa matabilidade [

capitão

Luke

Collingwood,

], esse

portanto,

converteu

brutalmente uma perda não segurável (mortalidade geral) em perda média 30

geral, um sacrifício de partes de uma carga em benefício do todo.”

A tripulação destituída contou que foi a falta de água e a reivindicação do seguro que motivou os lançamentos ao mar. Eles sabiam que o dinheiro do seguro não seria pago se aquelas pessoas escravizadas morressem “de morte natural”. (Uma morte natural. O que constituiria uma morte natural nesse contexto? Como tais mortes poderiam legalmente

mortas

podem

ser

ser

consideradas

naturais? Como pessoas assassinadas?)

Mas

o

subcomandante revelou, em seu depoimento no tribunal, que a tripulação a bordo do

Zong

nunca sofreu “falta de água”, isto é, em nenhum momento 31

eles recorreram ao racionamento de água. e

em

conjunto

antiescravistas

do

ativista

antiescravista

anteriormente

Apesar dos esforços individuais

Granville

escravizados

Sharp

Olaudah

e

dos

Equiano

e

ativistas Ottobah

Cugoano, os assassinatos não se tornaram uma questão a ser tratada. Os eventos a bordo do

Zong

foram registrados na memória histórica primeiro

como reivindicação de seguro no caso

Gregson v. Gilbert

e somente mais

tarde como assassinatos (danos a “sujeitos”) de 132 pessoas africanas que não foram reconhecidos como assassinatos no tribunal. “Foi decidido – se com prudência ou imprudência não vem ao caso agora – que uma parte de nossos

semelhantes

pode

se

tornar

objeto

de

propriedade.

Portanto,

tratou-se nesse caso do lançamento de mercadorias ao mar, com o intuito 32

de salvar a parte restante.” Pode parecer que o

Zong

, na maioria das vezes, venha à memória não

como o navio em si, mas como um tumbeiro sem nome cuja tripulação lançou ao mar pessoas africanas capturadas. As ações assassinas do capitão e da tripulação daquele navio sem nome são memorializadas na pintura de

Slave Ship – Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying: Typhoon Coming On J. M. W. Turner

, de 1840. No auripigmento turvo e lívido da

pintura de Turner, os mortos são atrelados aos moribundos. O fato de o tumbeiro

de

Turner

carecer

de

um

41

nome

próprio

permite

que

ele

todo

represente

tumbeiro e toda tripulação escravizada, todo tumbeiro e

cada uma das pessoas africanas assassinadas na Passagem do Meio. Como James Walvin escreve:

Todos os envolvidos no comércio escravista – desde o maior comerciante até o mais rude dos marinheiros – sabiam que havia momentos em que a tripulação poderia ter de matar as próprias pessoas que estavam sendo transportadas para

serem

elevadas.

negociadas

Embora

e

pelas

ninguém

quais

admitisse

haviam

pagado

abertamente,

quantias

um

bastante

cálculo

humano

grosseiro evoluíra no cerne do comércio escravista e era aceito por todas as 33

partes envolvidas: para sobreviver, às vezes era necessário matar.

A

pintura

de

condensar

Turner

captura

os

34

uma

singularidade

horrores

em

um

do

comércio

navio

e

se

Zong

chamado

;

recusa

a

isto

o

é,

tumbeiro sem nome de Turner representa todo o empreendimento, uma “empresa

35

em

funcionamento”

do

comércio

de

pessoas

africanas

capturadas: a parte pelo todo. Em estilo e conteúdo, a pintura de Turner torna

visíveis 36

resistência

as

questões

no

centro

do

Zong



propriedade,

seguro,

e a questão do lastro. (Pense na recente descoberta de um

navio naufragado na costa da África do Sul que a equipe de arqueologia determinou

ser

um

tumbeiro

por

causa

das

barras

de

ferro

de

lastro

encontradas nos destroços. O lastro havia sido necessário para compensar 37

o peso das pessoas capturadas da África no porão do navio.) A

decisão

do

transubstanciação

tribunal

foi 38

léxico-legal

alcançada que

por

declarou

meio

que

“o

de

caso

um [do

ato

de

]

era

Zong

simplesmente de seguro marítimo”, ou seja, um caso de perda de bens, e não

de

assassinatos.

Apesar

das

diferenças

registradas

no

número

pessoas africanas lançadas ao mar, o que permanece constante é que

aqueles lançamentos ao mar

de

houve

; houve, de fato, aqueles assassinatos de mais

de 130 pessoas africanas sequestradas.

O evento

, isto é, uma versão de uma

parte de um evento de mais de quatrocentos anos, é o seguinte: “29 de novembro,

às

20h00,

‘individualmente escolhida número

para

54

através

coincidir

máximo

de

mulheres

das com

e

janelas a

tripulantes

crianças

da

mudança estaria

foram

cabine’. do

A

turno

disponível.

lançadas

hora de

Em

parece vigia,



mais 42 homens cativos foram lançados do convés ao mar”.

mar sido

quando

de 39

ao ter

o

dezembro, Lemos que

“no dia seguinte choveu, e a tripulação coletou água potável suficiente para adicionar

um

suprimento

de

três

semanas

ao

estoque

do

40

navio”.

No

entanto, contrariando a lógica de que fora a falta de água que motivara esses atos que burlavam as regras do seguro de “morte natural”, “nos dias seguintes,

mais

36

pessoas

cativas

foram

42

lançadas

ao

mar

e

outras

10

pularam na água por conta própria. Kelsall considerou mais tarde que ‘o 41

número total de afogados chegava a 142’”. Quando o

Zong

finalmente alcançou Black River, na Jamaica, em 22 de

dezembro de 1781, havia a bordo 208 pessoas africanas vivas. Quando o jornal jamaicano

Cornwall Chronicle

listou as pessoas africanas à venda,

notou que “a embarcação […] estava em grande aflição por ter descartado 42

cerca de 130 escravos”.

Com essa nota de grande aflição, o jornal não se

referia

se

(nem

pretendia

referir)

às

pessoas

escravizadas.

Tampouco

explicava (ou pretendia explicar) os danos psíquicos e materiais que a longa jornada de sequestro violento, necessidade e terrível brutalidade causou nas

pessoas

escravizadas

(violência

não

marcada

como

violência,

nem

como rapto, nem como necessidade). Era o navio que estava em grande aflição,

não

as

pessoas

escravizadas.

Aqui,

se

não

em

todos

os

lugares,

como veremos, o navio é diferente do escravo. Quando a venda ocorreu, em 9 de janeiro de 1782, as pessoas cativas restantes foram vendidas por uma média de 36 libras cada – acima do preço de 30 libras pelo qual estavam seguradas.

Mas

encontravam

é

óbvio

em

que

grande

pessoas

aquelas

aflição

física

e

escravizadas psíquica;

também

se

testemunhas

e

sobreviventes das absurdas violências do navio, sua atmosfera de morte e seus

assassinatos

em

massa.

Especialmente,

talvez,

aquele

homem

escravizado que, lançado ao mar, conseguiu subir de volta no navio. Como

falar

da

sobrevivência

ao

navio

quando

o

navio

e

a

(não)

sobrevivência se repetem?

ZONG! Cantamos para a morte, cantamos para o nascimento. É isto que fazemos. Nós cantamos .

— apud

M. NOURBESE PHILIP,

“Defending the Dead, Confronting the Archive”

Como é, o que implica e significa amparar, cuidar, confortar e defender aquelas vidas já mortas, aquelas vidas que estão morrendo e aquelas vidas vivas consignadas à possibilidade da morte sempre iminente, a vida vivida na

presença

de

morte;

viver

“vestígio”? Volto-me aqui à obra poemas

numerados

composto

de

na

palavras

essa

Zong!

e

imanência

como/no

, de NourbeSe Philip. Cada um dos

primeira

retiradas

iminência

seção

do

de

processo

Zong!

,

judicial

intitulada

“Os”,

é

Gregson v. Gilbert

.

Abaixo da linha dos poemas nessa seção aparecem as anotações de Philip − nomes

para

as

pessoas

africanas

a

bordo

do

Zong

cujos

nomes 43

sequestradores não foram capazes de reconhecer ou registrar.

43

seus

As pessoas

agora chamadas de africanas em “Os” (“Os” como em marinheiro comum

ordinary seaman Zong!

[

], boca, abertura ou osso) são os ossos do texto de

hauntological

, diz Philip, “é assombrontológico [

Zong!

.

]; é um trabalho

de assombração, uma espécie de vestígio, em que os espectros de mortos44

vivos se fazem presentes”. da

lógica

do

livro-razão,

Os mortos aparecem no

além

da

matemática

do

Zong!

seguro,

de Philip além assinando

os

poemas que compõem “Os”. Philip aspira essas vidas submersas e as traz de volta ao texto do qual foram ejetadas. Do mesmo modo, na estrutura de

Zong!

, o número de nomes das pessoas que assinam o empreendimento da

escravização não coincide com o número de pessoas lançadas ao mar ou que pularam por conta própria, e assim, também através desse gesto, Philip dispensa um tipo particular de fidelidade à invenção do arquivo histórico.

Zong!



“defenda

#15”

quem

começa morreu”.

com

a

declaração/o

Reproduzo

nomes.

44

o

poema

imperativo/a a

seguir.

Philip

injunção fornece

45

“Qual é a palavra para trazer corpos de volta d’água? De uma ‘sepultura 45

líquida’?”

A

palavra

a

que

Philip

chega

é

exaqua

.

Mas

não



como

recuperar ossos de seu vestígio aquoso. Não há como trazer da água ou de volta à costa os corpos do

Zong

e de tantos outros navios do passado e do

presente. Como Philip sabe, não há ossos para recuperar. Um navio em movimento na água gera um padrão particular de ondas; a onda de proa está à frente do navio, e essa onda se espalha num padrão em v visível em ambos os lados e também atrás do navio. O tamanho da onda de proa dita a amplitude do início do vestígio. As ondas que ocorrem no vestígio do navio movem-se na mesma velocidade que este. Pelo menos desde

o

século

oceânica

dos

xvi

em

navios

diante,

tem

sido

uma

parte

minimizar

a

importante onda

de

da

proa

engenharia e,

portanto,

minimizar o vestígio. Mas o efeito do trauma é o oposto. Ele maximiza o vestígio. As ondas transversais são aquelas que passam por trás; elas são perpendiculares à direção do movimento do navio. As ondas transversais parecem retas, mas na verdade são arcos de um círculo. E toda vez, a cada instante que o barco se move na água, ele tem o potencial de gerar uma 46

nova onda.

Certamente o

Zong

, longe de qualquer massa de terra, esteve em águas

profundas, e qualquer objeto ou pessoa lançada ao mar esteve em ondas de águas

profundas.

Uma

vez

na

água,

a

pessoa

lançada

ao

mar

teria

experimentado o movimento circular ou oscilante do vestígio e teria sido carregada

por

aquele

vestígio

durante

ao

menos

um

curto

período.

É

provável, porém, que, como muitas dessas pessoas escravizadas estavam doentes e possivelmente cadavéricas ou em estado semelhante, tivessem pouquíssima gordura corporal; seu corpo seria mais denso que a água do mar. É provável, então, que aquelas pessoas africanas, lançadas ao mar, tenham flutuado por pouco tempo, apenas por causa das formas de seus corpos.

É

provável,

também,

que

elas

tenham

afundado

com

relativa

rapidez, assim como se afogado com relativa rapidez. E havia os tubarões que sempre viajavam no vestígio dos tumbeiros. Houve estudos feitos com baleias que morreram e afundaram no mar. Esses

estudos

mostram

que,

em

poucos

dias,

o

corpo

das

baleias

é

praticamente limpo por organismos bentônicos – organismos que vivem no fundo do mar. Minha colega Anne Gardulski me disse que é mais provável que

um

corpo

aconteceu

com

humano os

não

corpos?

chegasse

Com

isso

intacto quero

ao

fundo

dizer:

o

do

que

mar.

O

aconteceu

que aos

componentes de seus corpos na água salgada? Anne Gardulski me disse que, devido ao ciclo de nutrientes no oceano (o processo de organismos comendo organismos), os átomos dessas pessoas que foram lançadas ao mar

estão

no

oceano

até

hoje.

Elas

foram

comidas,

processadas

por

organismos, esses organismos foram, por sua vez, comidos e processados, e

46

assim o ciclo continua. Cerca de 90% a 95% dos tecidos das coisas que são comidas na coluna de água são reciclados. “Ninguém morre de velhice no oceano”, Anne me disse. O

tempo

que

uma

substância

leva

para

entrar

e

sair

do

oceano

é

chamado de tempo de residência. O sangue humano é salgado, e o sódio, segundo Gardulski, tem um tempo de residência de 260 milhões de anos. E o

que

acontece

com

a

energia

produzida

nas

águas?

Ela

continua

circulando como átomos em seu tempo de residência. Nós, pessoas Negras, existimos no tempo de residência do vestígio, um tempo em que “tudo é 47

agora, é sempre agora”.

O mar parecia cinza morto com o que restava do meu corpo e as ondas brancas… Eu me membro .

COMO UMA MENINA SE TORNA UM NAVIO Primeiro,

outra

epígrafe

de

“Dream

Haiti”,

de

Kamau

Brathwaite,

e,

em

seguida, uma longa citação do poema “The Difficult Miracle of Black Poetry in

America

or

Something

like

a

Sonnet

for

Phillis

Wheatley”,

de

June

Jordan. Brathwaite: “Não sei por que estou aqui – como vim parar a bordo deste navio, deste umbigo da minha arca”. Jordan:

Isso não era natural. E ela foi a primeira. Vir de um país de muitas línguas torturadas pela ruptura, pelo roubo, pela viagem, como roupas incompatíveis empacotadas no porão de perversos navios que navegam, irreversíveis, para a escravização. Vir a um país para ser dócil e calada, ser grande e reprodutor, facilmente,

ser

peru/cavalo/vaca,

ser

cozinheira/carpinteiro/arado,

ter

1,68

metro e 63,5 quilos, em bom estado, e responder aos nomes de Tom ou Maria: servir

na

cama:

ter

as

pernas

abertas

legalmente

para

o

estupro

pelo

senhor/filho do senhor/capataz do senhor/sobrinho que visita o senhor: ser nada humano de nenhuma família nada de lugar nenhum nada que grita nada que

chora

coração: olhos

nada

viver

que

sonha

forçosamente

abaixados

cabeça

nada no

baixa:

que

guarda

nada/ninguém

analfabetismo, trabalhar

forçosamente

sem

descanso,

no

fundo

errante:

do

viver

trabalhar

sem

remuneração, trabalhar sem agradecimento, trabalhar desde quando nasce o dia

até

o

anoitecer:

ser

três

quintos

de

um

ser

humano,

na

melhor

das

hipóteses: ser essa coisa valiosa/odiosa entre estranhos que compraram sua

47

vida e depois a amaldiçoaram incessantemente: ser escrava: ser escravo. Vir a este país escravizada, e como você poderia cantar?

[…]

Como haveria poetas Negras nos Estados Unidos? Isso não era natural. E ela foi a primeira. Era 1761 – muito antes da revolução que produziu estes Estados Unidos, muito antes de o conceito de liberdade perturbar os crimes insolentes deste continente – em 1761, quando uma Phillis de sete anos se levantou, como deveria, quando ficou de pé quase nua, pequena como uma criança de sete anos, sozinha, finalmente em terra firme, depois dos longos e aniquiladores horrores da Passagem do Meio. Phillis, em pé na plataforma rude do leiloeiro: Phillis à venda. Era um dia bonito? E isso importa? Ela deveria admirar o céu ou se lembrar do mar? Até então, Phillis era filha de alguém. Agora ela estava prestes a se tornar escrava de alguém.

[…]

Quando

os

Wheatleys

chegaram

ao

leilão,

cumprimentaram

seus

vizinhos.

Eles gostavam desse negócio de se misturar com outros moradores da cidade, caminhando

educadamente

pela

plataforma,

ajustando

cortesmente

as

posições para obter uma visão melhor dos corpos à venda. Os Wheatleys eram pessoas

boas.

Eram

gentis,

atenciosos

e

tinham

a

mente

aberta.

Eles

examinaram os corpos à venda. Olharam minuciosamente. Este pode ser útil para isso. Esse pode ser útil para aquilo. Então, olharam para aquela criança, aquela

criança

Negra

quase

nua

e

de

pé,

sozinha.

Sete

ou

oito

anos,

no

máximo, e frágil. Essa foi uma proposta diferente! Não um corpo forte, não um par de ombros crescidos, não um par de quadris largos e promissores, mas um pequeno corpo, um corpo delicado, um rosto jovem, certamente apavorado! John Wheatley concordou com o capricho de sua esposa, Suzannah. Ele fez sua oferta. Ele pegou seu dinheiro. Ele fez os lances. Ele competiu com sucesso. Ele se divertiu. Ele conseguiu o que queria. Ele comprou mais uma escrava. Ele comprou aquela menina Negra que estava lá de pé, quase nua, na plataforma. Ele

deu

essa

nova

escrava

para

sua

esposa,

e

Suzannah

Wheatley

ficou

maravilhada. Ela e o marido foram para casa. Eles foram de carruagem. Eles levaram

aquela

escrava

nova

com

eles.

Um

escravo

velho

comandava

os

cavalos que puxavam a carruagem que levava os Wheatleys para casa, com a nova escrava, aquela garotinha que eles chamaram de Phillis. 48

Por que lhe deram esse nome?

Sabemos

que

os

Wheatleys

homenagem ao tumbeiro (o

nomearam

Phillis

essa

menina

africana

em

) em que seu sequestro transatlântico

48

pela

Passagem

do

Meio

fora

concluído.

Os

Wheatleys

fizeram

dela

um

experimento. Eles permitiram e encorajaram que essa Phillis, filha de um “homem e uma mulher amargamente anônimos”, “se desenvolvesse”, se tornasse letrada, escrevesse poesia, se tornasse “o primeiro ser humano 49

Negro a ser publicado nos Estados Unidos”. Noventa

anos

fundadores

da

depois

de

escola

“Phillis

50

Miracle”,

estadunidense

de

Louis

Agassiz,

etnologia,

um

dos

encomendou

daguerreótipos de sete mulheres e homens escravizados, entre eles dois pais nascidos no continente africano e suas filhas nascidas nos Estados Unidos,

todos

os

quais

deveriam

representar

exemplos

“puros”

e

não

misturados da raça. Sabemos que os daguerreótipos de Renty (Congo) e Jack

(Guiné),

os

homens

nascidos

na

África,

e

suas

filhas

“nascidas

no

país”, Delia e Drana, foram encomendados para revelar como é a negridade e como olhar para ela. Destinam-se a tornar visíveis o desenvolvimento distinto e as espécies distintas. “A esperança de Agassiz [era] contar com o auxílio

da

fotografia

para

provar

suas

afirmações

de

que

nem

todos

os

humanos são da mesma espécie e de que a raça negra é inferior à branca, além de transformar essas pessoas fotografadas em ilustrações para uma 51

alegação científica.”

Dito de outra forma, os daguerreótipos dos pais e das

e no escravo partus sequitur ventrem

filhas têm o objetivo de tornar visível o navio Dado

que

a

lei

da

escravização

era

seu vestígio

.

,

pode-se

perguntar: por que pais e filhas são fotografados aqui, e não pais e filhos, mães e filhos ou mães (por quem a escravização era legalmente passada) e filhas (pelas quais, se dessem à luz, também passaria)? O que a escolha do sujeito

desses

daguerreótipos

pode

nos

dizer

sobre

os

enquadramentos

fotográficos e as sujeições de gênero-raça-sexualidade e acerca dos objetos Negros

resistentes?

O

que

isso

pode

nos

dizer

sobre

como

esse

enquadramento específico alcançará e atravessará o presente e o futuro –

e

para deter

colocar em movimento como todas as imagens Negras serão

vistas em seus vestígios? No movimento nos Estados Unidos, desde a lei

slave law

escravista [

black codes

] aos códigos negros [

], das leis Jim Crow ao

que virá depois, essa projeção para o futuro é uma tentativa de submeter a herança

Negra

apoderar-se negridade

a

após

uma a

ordem

data

da

patriarcal

que,

emancipação

então,

formal, 52

como patologia até as gerações futuras.

virá

a

falhar

marcando

em

assim

a

Apesar de todo o seu

poder transformador, a negridade, aqui, será vista como impossível de ser transformada. Em outras palavras, dentro e fora dos Estados Unidos, esse olhar

etnográfico

processos

será

colocado

administrativos,

colonialismo, etnográfica,

segregação,

e

o

em

prática

trauma

das

linchamento,

encarceramento,

ao

longo

do

tempo

condições

de

escravização,

exibição

justiçamento,

turística,

gentrificação,

e

em

exibição

“campos

de

imigrantes e centros de detenção” e assassinato estatal desembocará em

49

afirmações

sociais

e

outras

afirmações

“científicas”

sobre

a

negridade,

sobre a existência Negra em si. Fiquei impressionada ao ver pela primeira vez aqueles daguerreótipos de

Jack,

Delia,

Renty

e

Drana.

Também

foi

estarrecedor

encontrar

uma

fotografia tirada 160 anos depois, quando entrei nos arquivos de fotos de desastres após o terremoto catastrófico que atingiu o Haiti em 12 de janeiro de 2010. Essas fotos ecoavam as fotos daquele desastre do furacão Katrina na costa do Golfo dos Estados Unidos em 2005, assim como a resposta desastrosa a ele. Não foi a primeira vez que entrei cautelosamente nesse arquivo, mas dessa vez fui parada pela fotografia de uma menina haitiana de no máximo dez anos [fig. 2.5]. Um terço da imagem, o lado esquerdo, está borrado, mas o rosto dela está nítido; é o que está em foco. Ela está viva. Seus olhos estão abertos. Ela está deitada em uma maca preta; sua cabeça está em cima de uma bolsa de gelo, há uma ferida à mostra acima e abaixo de seu olho direito e um pedaço de papel grudado em seu lábio inferior, e ela está usando o que parece ser uma bata hospitalar. Ela está olhando para a câmera ou além dela; seu olhar chega até mim. Colado em sua

testa,

Navio

[

um

pedaço

de

fita

adesiva

transparente

com

a

Ship

palavra

] escrita.

Quem colou essa fita em sua testa? E isso importa?

Que expressão é essa nos olhos dela? O que eu faço com isso? Quando me deparei com

aquela

dessa

imagem

menina com a palavra

Navio

colada em sua testa, foi o seu olhar que me parou primeiro, e então, como também estava em foco, aquela palavra

Navio

ameaçou obliterar tudo e

qualquer coisa que eu pudesse ver. (O que aquilo estava fazendo lá?) Mas voltei para o rosto dela; que expressão era aquela em seus olhos? E ao que eu estava sendo chamada pelo/com seu olhar em minha direção e o meu em sua direção? Ao longo dos anos, retornei várias vezes a essa imagem para tentar explicar o que vi ali ou pensei que possa ter visto. Para onde ela está olhando? Quem e o que ela está procurando? Quem pode olhar para trás? Ela sabe que tem um pedaço de fita adesiva na testa? Ela sabe o que diz aquele pedaço de fita? Ela sabe que foi destinada a um navio? Seus olhos olham para mim, como os olhos de Delia, como os de Drana. Marquei na

memória

sua

juventude,

a

cicatriz

na

ponta

do

nariz

que

parece

continuar por uma de suas sobrancelhas, seus olhos e cílios, as feridas à mostra, um pedaço de papel e uma folha. Nessa composição fotográfica, eu a

vejo

e

processo.

sinto Vejo

com/por essa

ela,

intrusão

à

medida

em

sua

que

vida

ela e

é

em

decomposta seu

mundo

por no

esse

exato

momento em que estão, talvez não pela primeira vez, se desintegrando.

50

Nela eu me reconheço, e com isso quero dizer que reconheço as condições comuns da existência Negra no vestígio.

[2.5] Haiti luta por ajuda e sobrevivência após terremoto. © Joe Raedle/Getty Images

Onde estava a mãe dela? O pai dela? A quem ela recorria quando estava com medo? 53

Vinte

anos

depois

Massachusetts, o

de

Zong

Phillis,

o

navio

e

a

garota,

chegarem

a

Boston,

alcança notoriedade devido aos atos de amarrar e

lançar ao mar 132 (ou 140, ou 142) pessoas africanas a fim de receber o 54

seguro.

Gregson v. Gilbert

O texto do processo judicial

, de 1783, nos diz

que esse não foi um caso de assassinato, nos diz que: “Foi decidido – se com prudência nossos

ou

imprudência

semelhantes

pode

não se

vem

ao

tornar

caso

objeto

agora de



que

uma

propriedade.

parte

de

Portanto,

tratou-se nesse caso do lançamento de mercadorias ao mar, com o intuito 55

de salvar a parte restante”.

Originalmente chamado

Zorg Zorgue Zong (ou

significa “cuidado” em neerlandês, o navio se torna

), que

depois de ser

capturado em guerra, comprado por uma empresa escravista de Liverpool e ter

seu

nome

momentânea

Cuidado

repintado

no

que

diz

errado.

Devemos

respeito

ao

fato

fazer de

o

uma

pausa

tumbeiro

ser

ao

menos

nomeado

(cuidado, é preciso registrar aqui, refere-se ao “fornecimento do

que é necessário para a saúde, o bem-estar, a manutenção e a proteção de alguém ou algo”, como apoio e proteção, mas também como luto)

51

antes e ,

enquanto

, tentamos entender aquela única palavra

Navio

afixada àquele

pequeno corpo de uma menina Negra no rescaldo do terremoto de 2010 que

atingiu

imperativo?

o

Navio

Haiti.

Um

significante

é

um

da

nome

próprio?

(im)possibilidade

da

Um

destino?

vida

Negra

Um

sob

as

condições do que, como diz Stephanie Smallwood, “se tornaria um projeto duradouro no mundo ocidental moderno [de] sondar os limites até os quais 56

é possível disciplinar o corpo sem extinguir a vida interior”?

Navio

é um

lembrete e/ou um resto da Passagem do Meio, da diferença entre a vida e a morte?

Daquelas

pessoas

oriundas 57

chamadas de povo do barco?

Ou

do

Navio

Haiti

em

crise,

que

às

vezes

são

é uma lembrança e/ou um resto da

crise em curso de grupos migrantes e refugiados no mar Mediterrâneo e nos oceanos Índico e Atlântico? Dada a forma como as culturas visual e literária evocam e invocam a Passagem do Meio com uma visão disgráfica tão deliberada e reflexiva, não posso deixar de extrapolar. Comparemos essa imagem com a fotografia de outra menina haitiana em 1992 [fig. 2.6]. Ela também tem sete ou oito anos, dez no máximo, e está segurando um navio. Essa fotografia foi tirada durante o auge do êxodo forçado de pessoas refugiadas do Haiti. Essas pessoas à deriva às vezes são capturadas

e

encarceradas,

outras

vezes,

quase

sempre,

rejeitadas

pela

Guarda Costeira dos Estados Unidos e de outras nações. Como nos lembra Kaiama Glover, o “navio” indexa os

centros de detenção flutuantes controlados por agências governamentais dos Estados

Unidos

e

do

Reino

Unido

[…]

onde

“prisioneiros

fantasmas”



indivíduos sem ancoragem protetora em nenhuma pátria soberana – definham nas águas internacionais do oceano Índico […] [bem como aqueles] haitianos dos séculos

XX

e

XXI

[…] naufragados e perdidos no mar ou rejeitados em praias 58

hostis na Jamaica, nas Bahamas, na Flórida […].

Também

sabemos

que

“os

Estados

Unidos

interceptaram 59

refugiados haitianos no mar e forçaram seu retorno”.

milhares

de

A menina haitiana

nessa fotografia está em frente a uma mesa e diante de um homem e uma mulher sentados do outro lado da mesa. Eles estão de costas para a câmera e anotam suas informações, preenchendo algum tipo de livro de controle. A

mulher

está

usando

brincos

de

ouro;

parece

haver

uma

dragona

na

camisa do homem. A garotinha está diante deles, na frente da mesa sobre a qual

repousa

um

modelo

de

navio

(um

modelo

de

barco

da

Guarda

Costeira?), e suas mãos estão no navio. Ela parece estar sozinha. Seu rosto

Que expressão é essa nos olhos dela? O que eu faço com isso? Onde estava a mãe dela? O pai dela? A quem ela recorria quando estava com medo? está sério, seu olhar concentrado. “

” O livro-razão que nos torna ilegíveis

como humanos retorna e se repete, assim como o navio. Na fotografia de

52

1992, vemos um navio e uma menina; vemos uma garotinha segurando um navio

e

sabemos

legenda

da

que

fotografia

um é

navio

“povo

deterá

do

essa

barco

garota,

haitiano”,

e

precariamente. a

descrição

que

A a

acompanha diz:

[2.6] Povo do barco haitiano. © Jacques Langevin/Sygma/Corbis Uma

criança

anotadas

em

presidente

pequena

espera

preparação

dos

Estados

para

enquanto a

Unidos,

viagem

Bill

suas do

Clinton,

informações

Haiti

aos

ofereceu

pessoais

Estados

asilo

são

Unidos.

temporário

O

aos

haitianos em fuga que abandonaram a pobreza e a corrupção de sua terra natal.

Milhares

de

refugiados

dirigem-se

às

costas

da

Flórida,

tentando

a

jornada de 500 quilômetros em barcos frágeis feitos de suas antigas casas.

A

expressão

deixam

o

povo do barco

país

,

de

modo

aplicada

forçado,

às

pessoas

reflete

,

oriundas

encena

e

tenta

do

Haiti

apagar

que suas

violências particulares e brutais, e esse navio e essa garota encenam uma

Um barco, mesmo naufragado e destruído, ainda tem todas as possibilidades de se mover instância

anterior

e

contínua

de

60

eponimidade.



61

.”

É evidente que, após o choque inicial obliterante de ver a fotografia de 2010, busquemos pistas que nos ajudem a entender, talvez a explicar, a violência do ato de fixar a palavra Negra.

Afastamo-nos

visíveis:

a

bata,

a

para

folha,

que

os

aqueles

Navio

na testa de uma jovem menina

outros

detalhes

grandes

53

olhos

que

descrevi

castanhos

fiquem

de

cílios

longuíssimos e uma ferida à mostra embaixo de sua sobrancelha direita, a maca e a bolsa de gelo. Além de organizar tudo o que Glover nos alerta para manter

em

mente,

podemos

considerar

que

o

Navio

rótulo

seja

conveniente, que as pessoas que o colocaram lá estejam tentando ajudar, que seja um sinalizador de necessidade médica no meio do desastre e da desordem

subsequente.

Alguém

queria

marcar

essa

menina

para

a

evacuação, queria ter certeza de que ela embarcaria naquele navio. Mas, deixando de lado a intenção, uma das maiores questões provocadas pela

para

imagem é como alguém marca outra pessoa quando ela já está marcada Em

Amada

por ele

um espaço – o navio –

?

, Sethe pede à sua mãe: “Me marque também. […] Marque 62

essa marca em mim também”

(trata-se da marca sob o seio que ela mostra

a Sethe para que a filha possa identificá-la caso seu rosto seja desfigurado, se a revolta não tiver sucesso). A marca fora gravada na carne da mãe de Sethe no litoral, antes de ela ser guardada no porão do navio. Mas também é mais do que isso. É a marca que transformaria aquelas pessoas africanas em propriedade e também um cosmograma Kongo que marca quem o porta como alguém iniciado. Em última instância, essa marca conecta quem vive e

quem

morreu,

e

quem

a

porta

“entende

o

sentido

da

vida

como

um 63

processo compartilhado com os mortos debaixo do rio ou do mar”. marca,

Amada

em

,

está

conectada

ao

navio

no

qual

a

mãe

de

A

Sethe

é

forçada a cruzar para a escravização e também ao que era antes e ao que vem em seu vestígio. A resposta ao pedido de Sethe é um tapa, porque a mãe sabe o que essa marca significa e sabe também, e Sethe logo saberá, que ela já está marcada. A mãe também sabe que, para viver no vestígio, Sethe terá de reinventar o sentido da marca, afinal ela também passará a “entender

o

sentido

da

vida

como

um

64

mortos debaixo do rio ou do mar”. Spillers,

se

transfere’

“esse de

fenômeno

uma

de

geração

processo

compartilhado

com

os

Devemos perguntar novamente, com

marcação

para

a

ferro

outra,

e

fogo

realmente

encontrando

suas

‘se

várias

substituições simbólicas em uma eficácia de significados que repetem os 65

momentos iniciais”.

Voltando à imagem da menina com a palavra

Navio

na testa, também

me impressiona que, das 42 fotos na galeria de imagens online do rescaldo do terremoto de 2010 onde a encontrei pela primeira vez, essa seja a única cuja

legenda

não

rotule 66

menino ou menina.

a

pessoa

fotografada

como

homem

ou

mulher,

E isso me parece significativo em uma cultura tão 67

preocupada com essa marcação.

Quando olho para essa fotografia, vejo

uma jovem menina, para citar Jordan sobre Phillis Wheatley, “um corpo 68

delicado, um rosto jovem, certamente apavorado”! palavra

Navio

E me pergunto se é a

que confundiu o fotógrafo e quem criou as legendas. Uma

sincronicidade

(uma

singularidade)

de

pensamento

ocorre que a pessoa que afixou a palavra

54

Navio

emerge

aqui.

E

me

em sua testa surge aqui

como outro tipo de seguradora, e tal nomeação opera dentro da lógica e da aritmética que também a tornariam uma criança magra, como aquela que ocupa menos espaço no porão de um navio [fig. 2.7]. Certamente, a óptica que registra essa menina apenas como “criança” é aquela que indica pelo menos uma certa incapacidade de ver. Porém, o que está em jogo aqui não é uma correção dessa visão nem uma expansão da categoria “menina” para incluir essa criança. Em vez disso, o que indico aqui chega por meio do ensaio “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, de Spillers, segundo o qual “nossa tarefa [é fazer] um lugar para esse sujeito social 69

diferente”. de

Glover enfatiza que devemos lembrar não apenas que a “taxa

mortalidade

na

viagem

transatlântica

para

o

Novo

Mundo

era

incrivelmente alta” mas também que os tumbeiros:

[…] eram mais do que tumbas flutuantes. Eles eram laboratórios flutuantes, oferecendo aos pesquisadores a chance de examinar o curso de doenças em ambientes

em

pesquisadores mortalidade

quarentena

da

para

saúde

razoavelmente

puderam

identificar

um

tirar

controlados.

vantagem

número

das

Médicos

altas

surpreendente

taxas

de

e de

sintomas,

70

classificá-los em doenças e levantar hipóteses sobre suas causas.

Devemos lembrar, também, daquelas pessoas que, no presente, são vistas e ainda assim abandonadas no mar – como aquelas a bordo do que veio a ser 71

chamado de “o barco dos deixados para morrer”. devemos

fazer

novamente

uma

pausa

no

que

E, com isso em mente,

diz

respeito

ao

dos Estados Unidos chamado

“conforto”

e

“medicina

e

à

navio médico

origem do navio ao qual aquela garotinha está destinada – um

militar

nome

Comfort

. “Estados Unidos”, “militar”,

alopática”



termos

usados

conjunta

ou

separadamente e que se conectam às vidas e aos corpos de pessoas Negras em todo e qualquer lugar do globo – garantem pelo menos uma profunda suspeita, se não um alarme imediato: daqueles experimentos a bordo do laboratório flutuante dos navios que transportam pessoas escravizadas (e migrantes), aos experimentos cirúrgicos de J. Marion Sims conduzidos sem anestesia

em

mulheres

escravizadas;

aos

surtos

de

cólera

no

Haiti

introduzidos pelas tropas da ONU; aos experimentos com gás mostarda em soldados Negros estadunidenses na Segunda Guerra Mundial para produzir o “soldado químico ideal”; aos experimentos com sífilis em Tuskegee e na Guatemala e seus efeitos em cascata; às origens e respostas duvidosas à crise

do

recentes Unidos

ebola; que

à

prática

mostram

recebem

sentem menos dor. chamado

de

repetidamente

cuidados 72

navio

contínua

de

saúde

esterilização que

pessoas

inferiores

forçada;

aos

estudos

Negras

nos

Estados

porque

se

acredita

que

Podemos fazer uma pausa, também, porque aquele

Comfort

é

muito

próximo

55

em

nome

de

outro

navio

originalmente chamado

Care

Zorgue

, o

Zong

rebatizado como

. Mas nessa

desnomeação, nessa marcação de uma quantidade conhecida apenas como

anulação de gênero oceânica

“criança”, vislumbramos aquela

que Spillers

teorizou em “Mama’s Baby, Papa’s Maybe” como “aquelas pessoas africanas na ‘Passagem do Meio’ […] literalmente suspensas no oceano, se pensarmos neste

[…]

como

Continuamos

uma

com

Spillers:

diferença de gênero tornam

um

analogia

sobre

“Nessas

condições,

no desfecho

73

identidade

indiferenciada”.

perdemos

pelo

menos

a

, e o corpo da mulher e o do homem se

território

de

manobra

cultural

e

política,

nem

um

pouco

74

relacionado ao gênero, específico de gênero”.

A questão para a teoria é como viver no vestígio da escravização, nas vidas após a morte da escravização, na vida após a morte da propriedade. Em resumo, como habitar e romper esta episteme com suas, com nossas vidas conhecíveis. “O que mais há para saber” agora? Além de: “Seu destino 75

é o mesmo de qualquer outra Vênus Negra”?

Eu não queria deixá-la (essa menina com a palavra

Navio

afixada em

sua testa) como a encontrei em um arquivo de dor e morte e destruição que não revela nem seu nome, nem seu sexo, nem quaisquer outros detalhes de sua

vida.

Uma

legenda

da

imprensa

nos

transportada para tratamento no USNS

diz:

“Criança

Comfort

76

”.

ferida

espera

ser

A segunda legenda da

imprensa diz:

Porto Príncipe, Haiti – 21 de janeiro: Criança espera ser evacuada por soldados da 82ª Divisão Aerotransportada do Exército dos Estados Unidos para o

Comfort

USNS

em 21 de janeiro de 2010 em Porto Príncipe, Haiti. Aviões carregados

de equipes de resgate e suprimentos emergenciais chegaram ao Haiti enquanto governos e agências de ajuda humanitária lançavam uma enorme operação de socorro

após

edifícios

um

foram

forte

terremoto

reduzidos

a

que

pode

escombros

pelo

ter

matado

terremoto

milhares.

de

Muitos

magnitude

7

na

77

escala Richter em 12 de janeiro.

voz interrompe: diz ela

Mas uma “ E

assim

78

”.

essa

Menina

dos

arquivos

do

desastre

do

primeiro

mês

da

segunda década do século XXI é evocativa de outras duas meninas a bordo daquele

tumbeiro

escravização

chamado

atlântica

cujos

Recovery

efeitos

em

ainda

meio estão

ao em

longo

desastre

andamento

e

da

cujas

histórias Hartman conta ao contestar em “Vênus em dois atos”. E essas meninas evocam outras meninas contemporâneas, as quais também (não) são vistas e, muitas vezes, são (des) consideradas.

Não é apenas por essa força que nos reconhecemos e somos reconhecidas Uma história magra não é um fracasso. “

79

.”

E

não

fui

atraída

pela

imagem dessa jovem para encenar mais violência. Se eu pudesse evitar, eu

56

não

a

ressujeitaria

dessa

forma.

Ecoando

a

poeta

Claire

Harris,

em

“Policeman Cleared in Jaywalking Case”, penso, “Olhe pra você, criança, eu sinalizo […] a criança era negra e do sexo feminino e, portanto, minha, 80

Ouça”.

O

que

acontece

quando

olhamos

e

ouvimos

essas

e

outras

meninas Negras ao longo do tempo? O que se produz em nossos encontros com

elas?

Esse

olhar

impõe

exigências

éticas

a

quem

observa;

exige

imaginar outramente; considerar o fato de que o arquivo, também, é uma invenção. O poema de Harris leva o título de uma notícia publicada no

Edmonton Journal pela

polícia

por

em 1983. A menina tem quinze anos, é Negra e é parada

atravessar

uma

rua

fora

da

faixa.

Ela

está

“apavorada”

(lembra um transeunte) e é incapaz de mostrar uma identificação com foto que

satisfaça

os

olhares, 81

arreganhada/ revistada”. quinze

anos

sonha

as

regras,

então

ela

é

presa,

“despida/

A segunda garota do poema é a poeta, que aos

acordada

quando

pisa,

sem

pensar,

em

uma

rua

movimentada de Trinidad. “Fui liberada com um sorriso / com compaixão enviada para a manhã quente e verde / Vinte anos depois, para levantar um jornal e ver meu antigo eu de quinze anos / ainda boba / agora em um carro de polícia / ainda tremendo enquanto a manhã passa, mas aqui / nauseada 82

diante de tal intenção tão perversa.” Estado

canadense,

Harris

é

impelida

Diante da “intenção perversa” do

a

imaginar

através

do

tempo

e

do

espaço para rememorar o incidente de sua infância, a fim de colocá-lo ao lado do acontecido contemporâneo, e a fim de falar e escrever para/a partir de

outra

forma

imaginada

e

vivida.

Então,

em

“Vênus

em

dois

atos”,

quando Hartman conclui “Então foi melhor deixá-las como eu as havia encontrado” e, duas páginas depois, pergunta “No final, foi melhor deixálas

como

as

epanalepse: ênfase

ou

encontrei?”,

“a

repetição

clareza,

a

de

assim

afirmação

palavra/s

como

para

e

em

a

pergunta

intervalos

retomar

uma

realizam

regulares,

construção 83

longo parêntese”; uma “ligação entre palavras e frases”.

uma

seja

para

após

um

Entre a afirmação

e a pergunta está o interregno; e nesse intervalo o “algo – qualquer coisa – mais” pode aparecer e realmente aparece. Na

fotografia

de

,

perdemos

qualquer

Navio

2010

da

menina

tentativa

haitiana

de

um

marcada

primeiro

com

nome

a

palavra

que

Phillis

concedeu a Phillis Wheatley, perdemos algo como gênero e individuação.

Entretanto, uma voz interrompe: diz ela



Philip,

Hartman

indivíduos, carga

84

.”

mas

marcada

mulher

negro

,

e

outras

colunas no

encontram

nas

quais

livro-razão

idem”.

“Não

os

com

havia”,

a

nos

Lembre-se

geralmente

sujeitos

nos

foram

indicação

de

que

arquivos

do

não

transformados

negro Zong

“homem

manifestos

Spillers,

,

e

de

em

idem, outros

navios, Philip nos diz, “nenhum nome – as listas de escravos no livro eram simplesmente

identificadas

como

‘homem

negro



ou

‘mulher

negro



no

topo do livro-razão e no livro de contas, seguidos por ‘idem’ em todas as páginas,

com

exceção

de

um

comentário,

57

‘magra’,

permitido

como

negro

referência a ‘menina

’ – ‘menina

negro

magra’.” Ela continua: “E só

naquela única palavra… Paralisei quando vi a palavra e pensei, há toda uma 85

história nesta palavra, ‘magra’”. Phillis

Wheatley, 86

anônimos”,

filha

de

um

“homem

e

uma

mulher

amargamente

era “magra” (uma criança magra e doente, de acordo com

alguns relatos), nunca realmente uma menina; pelo menos não “menina” de

qualquer

culturas

forma

que

opere

euro-ocidentais;

como

nenhuma

um

significante

pessoa

significativo

reconhecível

como

nas

“menina”

sendo inspecionada, vendida e comprada em leilões no “Novo Mundo”. Da mesma forma, para algumas pessoas, Phillis não foi nunca realmente uma poeta.

Abertamente

“Indagação XIV” de

A

infelicidade

poesia.



não

Thomas

Jefferson,

que

Notes on the State of Virginia

escreveu

na

comoventes

na

:

costuma

Entre

para

os

ser

negros

a

genitora



muita

das

expressões

infelicidade,

mais

Deus

sabe,

mas

nenhuma

poesia. […] A religião, de fato, produziu uma Phillis Wheatley; mas não pôde produzir uma poeta. As composições publicadas com seu nome estão abaixo 87

da dignidade de crítica.

Naquela foto de 2010, a criança magra não é Phillis, mas não

é

uma

navio/criança/garota; fotografia

assim

fotografias Negras

é

específica

embarcação/garota

de

a

que

parte eu

desastres

que,

nelas,

pelo

tenha

chamada

todo.

E,

acontecidos

geralmente

em

são

qualquer

seja

a

única

experiência

Negros

apresentados

mas

essa

minha

espaços

; isto é, ela

Phillis,

embora

encontrado,

Navio

e

com

grupos

de

com

pessoas pessoas

Negras em situação de “dor para o consumo público”, para citar Elizabeth 88

Alexander, em

Los

e tanto faz se esses grupos de pessoas Negras se encontram

Angeles,

Nova

Orleans,

Serra

Leoa,

República

Dominicana,

Lampedusa, Libéria ou Haiti [figs. 2.9-2.13].

Zong!

Philip, em havia

muitas

Então,

por

, e Fred D’Aguiar, em

Feeding the Ghosts

, contam que

meninas magras a bordo daquele tumbeiro chamado

um

lado,

podemos

imaginar

esse

fotógrafo

Zong

.

aumentando

o

enquadramento da foto para revelar não uma menina Negra, mas fileira após fileira após fileira de meninas, meninos, homens e mulheres Negres com a palavra sofrimento

Navio

de

afixada na testa. Alternativamente, em vista de como o

pessoas

Negras

compõe

o

pano

de

fundo

diante

do

qual

outro tipo de “drama humano” (com h maiúsculo) é encenado, também podemos perceber que, se aumentarmos o enquadramento da foto, talvez se

revele

que

aquela

menina

evacuação. Marcada como o

é

a

Navio

única

rotulada

dessa

forma

para

a

/a criança (como Phillis); salva (?) para

ser outra vez subjugada, porque somos apenas ordinariamente singulares, somente a única, numa extraordinariedade que, de certo ponto de vista,

58

obscurece o sofrimento para produzir um “milagre Phillis”, e raramente “singulares” ou “únicas” em nosso sofrimento ou vulnerabilidade que são supostamente visíveis, apesar de serem, para algumas pessoas, tudo o que há para ser visto. Não teria sido melhor deixá-la como a encontrei. Em minhas leituras e práxis de trabalho de vigília, tentei me posicionar com ela, no vestígio. 3 de outubro de 2013. Um navio com 500 pessoas migrantes africanas pegou fogo, virou e afundou a cerca de 800 metros da costa da ilha italiana de Lampedusa. Como o pessoas,

mas

lotado

Zong

com

– construído para transportar no máximo 200

mais

de

440

pessoas

africanas

cativas

–,

esse

navio sem nome fora construído para conter menos da metade do número de gente que levava. Mais de 300 homens, mulheres e crianças a bordo foram mortos.

59

[2.7] Estiva do tumbeiro britânico Brookes sob a lei regulamentada do comércio de escravos de 1788, c. 1788. Gravura (água-forte). Library of Congress Rare Book and Special Collections Division. Mergulhadores de águas profundas “desfizeram uma parede de pessoas” do casco de uma embarcação de contrabandistas no fundo do mar perto dessa ilha italiana na segunda-feira, desemaranhando cuidadosamente os mortos, que seriam migrantes em potencial, na última e mais meticulosa fase de uma 89

operação de recuperação após o incêndio e naufrágio do navio.

Uma

perda

impressionante

descobrimos

com

os

de

vidas

e

contrabandistas,

uma

“valia

“carga

quase

humana”

500

mil

Zong

Duzentos e trinta anos após a tripulação a bordo do tumbeiro ao mar aquelas pessoas africanas vivas, a palavra

carga

que,

euros”. lançar

se repete, assim

como os horrores do cativeiro, do arremesso e do espancamento. Pessoas de

origens

africanas

que

migram

são

vítimas

de

“níveis

desumanos

de

violência”, são esfaqueadas e lançadas ao mar, baleadas e lançadas ao mar, trancafiadas

no

“porão

escuro

e

sufocante”

enquanto

outras

são

amontoadas no convés – de pé na porta do cativeiro. Os perigos não são uniformemente distribuídos agora – e nunca foram. Conforme os jornais relatam

esses

desastres

contemporâneos

e

o

estado

de

angústia

de

migrantes, será que deveríamos imaginar que algum tipo de reparação é feito por esses periódicos, atualmente, pelo reconhecimento do sofrimento físico

e

psíquico

substantivo

carga

dessas

pessoas

e

pela

? A adição da palavra

adição

humana

do a

adjetivo

carga

humana

ao

nada faz, aqui,

para amenizar o efeito fantasmático exercido por esses navios em relação à escravização transatlântica, ou às vidas após a morte da escravização, ou às

O Passado é uma posição. Assim, de forma alguma podemos identificar o passado como passado vidas após a propriedade. “

[…]

90

.”

Sobreviventes

daquele

naufrágio

de

outubro

de

2013

relatam

que

o

contrabandista ateou fogo ao navio para chamar a atenção dos pescadores nas

águas

e

das

autoridades

em

terra;

relatam

que

as

autoridades

marítimas mantiveram a embarcação sob vigilância, mas não prestaram socorro

ao

navio

que

estava

em

péssimas

condições

e,

em

seguida,

se

incendiou. Relatam que o fogo saiu rapidamente do controle e que mais de vinte

minutos

se

passaram

antes

que

qualquer

ajuda

chegasse.

“Iatistas

locais” disseram “que pensaram estar ouvindo um bando de gaivotas, em vez de seres humanos à beira da morte. […] A recusa em acreditar e em saber

ou,

mais

precisamente,

o

desejo

de

não

reconhecer 91

negro, naturalizado há muito como vida selvagem”.

60

o

sofrimento

“Esses corpos estão todos falando”, disse ela [a prefeita Giusi Nicolini] à

BBC

sobre os cadáveres em sacos verdes e azuis lacrados. Se isso for verdade, tratase de uma espécie de ventriloquismo preocupante. E se, da próxima vez, tais vozes não fossem convidadas para a mesa apenas como cadáveres – se suas complexidades fossem ouvidas, digamos, antes que seus gritos pudessem ser 92

interpretados como gritos de gaivotas?

Ouvindo gritos agudos, olharam para o mar para descobrir que a origem do ruído não eram os pássaros (como haviam suposto), mas sim um grupo de migrantes da Eritreia que gritavam por ajuda, seus corpos se debatendo. Uma grande parte era composta por mulheres e crianças fugindo do conflito e da pobreza via Líbia, apenas para se afogar de forma precipitada, à vista da costa 93

italiana, nas mesmas águas que esperavam que reescrevessem sua vida.

“Flutuamos por cinco horas, usando os cadáveres das pessoas que estavam conosco”, disse uma sobrevivente chamada Germani Nagassi, de trinta anos, à CNN

esta semana. “Não há nada pior do que isso. Muitas crianças. Havia uma

mãe com quatro filhos, uma mãe com um bebê, todos perdidos no mar. Minha 94

mente está cheia de cicatrizes e em péssimas condições.”

“Equipes de resgate e pescadores locais descreveram a cena como um ‘mar de cabeças’ com dezenas de pessoas agitando os braços e gritando por socorro na água.” Pelos pescadores, ficamos sabendo que muitos deles não ajudaram as pessoas que se afogavam porque, ao fazê-lo, haveria o risco de ter seus barcos apreendidos

pela

lei

italiana.

Um

pescador

diz:

“Essa

lei

de

imigração

está

matando pessoas”; enquanto outro relata que a “guarda costeira o impediu de salvar mais pessoas” e que “as equipes de resgate se recusaram a tirar pessoas de seu barco cheio para que ele pudesse resgatar mais, porque era contra o 95

protocolo”.

Os detalhes se acumulam como os idem idem nos arquivos

.

Equipes de resgate descrevem seu “choque” ao encontrar entre as centenas de pessoas mortas uma mulher, de aproximadamente vinte anos, com um bebê recém-nascido

ainda

conectado

a

ela

pelo

cordão

umbilical.

Relatam

ter

perdido a indiferença. “Não poderíamos voltar à superfície sem tentar fazer algo por ela. […] Nós a tiramos do barco formando uma corrente humana com nossos braços. Então a levamos ao fundo do mar e, lá, amarramos seu corpo com uma corda a outros corpos e, então […] subimos com eles das profundezas 96

do mar para a luz.”

61

Nós nos deparamos com ela em circunstâncias exorbitantes que não produzem nenhuma imagem da vida cotidiana, nenhum caminho para seus pensamentos, nenhum vislumbre da vulnerabilidade de seu rosto ou do que olhar para tal rosto poderia exigir 97

.

O sentimento dos membros da equipe de resgate italiana, porém, não vai mitigar o fato de que os cuidados com essa jovem se transformarão na

à la partus sequitur ventrem deles

incapacidade dela de maternar (

) e de que essa

chamada incapacidade representará os crimes colonialismo,

da

privatização,

da

extração

(do imperialismo, do

mineral

e

de

recursos,

da

destruição ambiental etc.). A compaixão das equipes de resgate não mitiga as

políticas

lembram:

de

“Há

morte uma

da

Europa-Fortaleza.

proibição

estrutural

Hartman

(em

vez

de

e

Wilderson

uma

mera

nos

recusa

intencional) contra alianças de pessoas brancas com pessoas Negras devido a essa […] divisão de ‘espécies’ entre o que significa ser um sujeito e o que 98

significa ser um objeto: um antagonismo estrutural”.

O mar é história

99

.

Essas

cenas

nos

representação

remetem

de

um

ao

“Dream

“colapso

do

Haiti”,

espaço

e

de do

Brathwaite, tempo

e

que

à

sua

separa

a

interdição contemporânea de pessoas refugiadas do Haiti no mar da longa 100

história de patrulhamento de corpos africanos na Passagem do Meio”. As

energias

do

padrão

do

vestígio

nos

forçam

de

volta

à

epígrafe

de

Não sei por que estou aqui – como vim parar a bordo deste navio, deste umbigo da minha arca I do not know why I am here, how I came to be on board this ship, this navel of my ark naval a navel e ark k arc c Brathwaite, com a qual esta seção começou – “

” [

] –, com seus homófonos

(com dois

, como nas forças marítimas

ou aquáticas, como nas marinhas ou navios de guerra) e no que resta do umbilical);

[arca], com

, com

, gesticula para a embarcação

salvadora de Noé, para a maldição sobre Canaã e, também, para com

(como

[arco],

, que faz referência às rotas percorridas, à circunferência e às ondas

transversais do vestígio. É

quem

sobrevive

a

essa

tormenta,

múltiplas

vezes

por

semana

repetidamente – e não as corporações multinacionais e os governos que a impõem

–,

que

enfrenta

investigação

criminal,

contenção

adicional

e

repatriação.

Se o crime é a negridade, a sentença é o circuito entre o navio e a costa? Navio

Uma garota com o nome de um navio. Uma garota com a palavra

em

sua testa. Uma garota segurando um navio. Uma garota cuja escola é um 101

“navio na tempestade”.

Os barcos naufragados e destruídos continuam

62

Os detalhes se acumulam como os idem idem nos arquivos nem mesmo sabemos todos os seus nomes

em movimento.

;



[

]

”.

O MEDITERRÂNEO NEGRO um barco, mesmo naufragado e destruído, ainda tem todas as possibilidades de se mover Inventory —

DIONNE BRAND,

O Mediterrâneo tem uma longa história relacionada à escravização.

O que estamos enfrentando hoje é uma nova declinação de uma questão antiga e

reprimida

que

assombra

e

compõe

o

projeto

europeu

e

a

própria

modernidade: o “Mediterrâneo negro” é uma unidade constituinte de análise para compreender as formas contemporâneas de policiamento das fronteiras 102

da Europa.

“Como você viajou desse jeito? Esse é um barco de fibra de vidro, e você tem uma criança pequena, e seu barco está todo quebrado, e você tem uma criança pequena, e seu barco está todo quebrado.” […] “Como você chegou até aqui? Somente pela graça de Deus…” “Todo mundo disse, quando viu o barco: ‘Não é 103

possível com esse barco, são só destroços’.”

Em 26 de março de 2011, tarde da noite, 72 pessoas africanas, entre mulheres, homens e crianças, deixaram Trípoli em um navio lotado, não, não era um navio, era um bote, rumo a Lampedusa, Itália. Após cerca de quatro horas de viagem, o navio entrou em apuros e enviou sinais. Os sinais foram recebidos, pelo menos um passageiro foi, e, apesar de ter sido avistado por muitas partes, militares e comerciais, o grupo de viajantes do navio não foi resgatado, mas ficou

à

deriva

por

permanecessem

mais

com

de

vida

duas

semanas

quando

aportou

até de

que volta

apenas na

nove

costa

da

viajantes Líbia.

As

equipes de resgate e as pessoas resgatadas relatam que um navio de guerra francês “chegou tão perto que as pessoas migrantes – famintas – puderam ver 104

os marinheiros olhando para elas com binóculos e tirando fotos”.

No rescaldo dessas mortes, desses assassinatos, de 63 pessoas africanas em grande

perigo

a

bordo

do

que

agora

é

conhecido

como

o

“barco

dos

deixados para morrer”, um grupo de “pesquisadores, arquitetos, artistas, cineastas, ativistas e teóricos” iniciou o projeto Arquitetura Forense em Goldsmiths,

Universidade

de

Londres.

63

O

grupo

escreve:

“Nossas

investigações

fornecem

evidências

para

equipes

internacionais

de

acusação, organizações políticas, ONGS e as Nações Unidas. Além disso, o projeto realiza exames críticos da história e da situação atual das práticas forenses na articulação de noções de verdade pública”. Como parte desse trabalho, a equipe do projeto Arquitetura Forense identifica as circunstâncias geopolíticas que obrigam grupos de migrantes a fazer essas viagens. E diz em um relatório de 2012:

Em

resposta

ao

levante

da

Líbia,

uma

coalizão

internacional

lançou

uma

intervenção militar no país. Em 23 de março de 2011, a Otan iniciou a aplicação de um embargo de armas na costa da Líbia. Durante o período dos eventos do caso do “barco dos deixados para morrer”, o mar Mediterrâneo central estava sendo

monitorado

Otan

e

os

migrantes

com

Estados em

um

escrutínio

participantes

perigo



e,

sem

precedentes,

tomassem

portanto,

se

ciência

preparassem

de

permitindo qualquer

para

prover

que

sinal

a

de

ajuda.

O

relatório da Oceanografia Forense transformou o conhecimento gerado pelos meios

de

vigilância

em

evidência

de

responsabilidade

pelo

crime

de

não

assistência.

A

crise

contínua

de

capital

na

forma

de

migrantes

fugindo

de

vidas

tornadas impossíveis de viver está se tornando cada vez mais visível ou, talvez, cada vez menos passível de ser ignorada. Pense nos milhares de pessoas migrantes resgatadas e naquelas que foram deixadas para morrer no mar ao longo do ano de 2015. A crise é muitas vezes enquadrada como crise de pessoas refugiadas que fogem de tensões econômicas internas e dos conflitos internos, mas subjacente a ela está a crise do capital e os destroços

oriundos

da

continuação

de

projetos

militares

e

de

outros

projetos coloniais de extração de riqueza e empobrecimento por parte dos Estados Unidos e da Europa. Em 18 de maio de 2015, a União Europeia (UE) votou pela substituição das

patrulhas

humanitárias

do

Mediterrâneo

por

patrulhas

105

militares.

Segundo esse novo plano, e com a cooperação da Líbia – “complicada pelo fato de não haver apenas um governo na Líbia” –, os barcos usados por traficantes

serão

interceptados

e

depois

destruídos”.

A

UE

diz

que

seu

“objetivo é perturbar o modelo de negócios que torna o tráfico de pessoas pelo

Mediterrâneo

intenção

de

um

perturbar

comércio os

outros

tão

106

lucrativo”.

modelos

de

Mas

negócios,

a

UE

não

lucrativos

tem para

empresas multinacionais, que desencadeiam o fluxo dessas pessoas. Marco

em

sobreviventes

e

destaque

o

uso

contranarrativa

de

pelo

mapeamento,

grupo

testemunho

Arquitetura

Forense

de

como

outro tipo de trabalho de vigília que pode contrariar o esquecimento, o apagamento, o descomunal e aqueles idem idem nos arquivos.

64

ARCAS DO RETORNO Já que a partida nunca foi voluntária, o retorno foi, e ainda pode ser, uma intenção, por mais que profundamente enterrada. Não há, como se diz, nenhuma maneira de entrar; não há retorno Um mapa para a Porta do Não Retorno .



DIONNE BRAND,

– substantivo: qualquer parte contínua da

circunferência de um círculo ou outra curva ARCO

.

verbo: mover em uma trajetória curva substantivo: a) um barco ou navio considerado semelhante àquele em que Noé e sua família foram preservados do Dilúvio; b) algo que oferece proteção e segurança .

ARCA



.

— Dictionary.com

O que significa retornar? O retorno é possível? É desejado? E, se for, em que condições e para quem? O terror do navio envolve a contemporaneidade e nela persiste. O presidente francês François Hollande “retornou” quando iniciou sua viagem às Antilhas, em 10 de maio de 2015, com uma visita a Guadalupe

para

a

cerimônia

de

criação

e

abertura

de

um

“museu

e

monumento para homenagear a memória de escravos e suas lutas na ilha 107

caribenha de Guadalupe”, que

sofreram

construído

durante

onde

guadalupina

de

reconciliação”

antes

o

o “primeiro museu francês a lembrar daqueles comércio

era

uma

Pointe-à-Pitre,

e

descrito

é

como

de

antiga

escravos”. refinaria

chamado “um

de

centro

O

de

“um

Memorial

açúcar

lugar

caribenho

de

de

na

ACTe,

cidade

memória

e

expressão

e

108

memória da escravização e do tráfico de escravos”.

A visita de Hollande ao local destacou, para quem não sabia e nem saberia,

as

reivindicações

em

andamento

de

reparação

feitas

por

descendentes de povos escravizados em Guadalupe, no Haiti, em Cuba e em todo o Caribe. E, enquanto Hollande reconhecia em 2013 a “dívida” da França para com o continente africano devido à escravização e ao “papel funesto

desempenhado

pela

França”,

ele 109

“não pode ser objeto de uma transação”.

acrescentava

que

essa

história

A menos, obviamente, que essa

transação beneficie a França (como no caso da indenização que o Haiti foi forçado

a

pagar)

mediante

comércio

e

outros

tipos

de

contratos

e

“investimentos”. Mas o que é uma dívida moral? Como ela é paga? Será que pessoas Negras só podem ser objeto, e não beneficiárias, de transações, sejam históricas ou de outro tipo? O arco de retorno para o Haiti está muito próximo

de

um

círculo

completo

65

ou,

talvez,

daquele

bumerangue

110

ellisoniano da história,

com a primeira visita oficial de Estado feita por

um presidente francês ao Haiti desde sua revolução bem-sucedida e com Hollande

e

a

França

como

beneficiários

dessa

visita,

e

não

as

nações

empobrecidas pelo roubo legal em curso. Em 25 de março de 2015, no Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Escravos, as Nações Unidas inauguraram

A

A arca do retorno

bravura

de

milhões

de

[fig. 2.8]. O comunicado à imprensa dizia:

vítimas

do

tráfico

transatlântico

escravista,

que

sofreram injustiças indescritíveis e finalmente se levantaram para acabar com a

prática

opressora,

foi

hoje

consagrada

permanentemente

com

o

desvelamento de um memorial na sede das Nações Unidas, em Nova York, no Dia

Internacional

Transatlântico

em

de

Memória

Escravos.

das

Vítimas

Intitulado

da

Escravidão

A arca do retorno

e

e

do

Tráfico

projetado

pelo

arquiteto estadunidense Rodney Leon, de ascendência haitiana, o memorial visa sublinhar o trágico legado do comércio escravista, que por mais de quatro séculos abusou de 15 milhões de africanos, roubando seus direitos humanos e sua

dignidade,

e

inspirar

o

mundo

na

batalha

contra

formas

modernas

de

111

escravização, tais como o trabalho forçado e o tráfico de pessoas.

Leon ativa a linguagem familiar de monumentos e memoriais: a linguagem da injustiça, do sofrimento, da tragédia, da inspiração e da transcendência. Rodney memorial

Leon

no

enterradas,

é

o

arquiteto

Cemitério

no

século

tanto

Africano

XVIII,

entre

de

em 15

A arca do retorno

Lower

mil

e

Manhattan,

20

mil

afrodescendentes, escravizadas e livres. Ele diz que

como

onde

pessoas

do

foram

africanas

A arca do retorno

e

é um

bom contraponto para estabelecer um espaço espiritual de retorno, uma “arca do

retorno”,

uma

contranarrativa

e

embarcação desfazer

onde

parte

podemos

dessa

começar

experiência.

a Não

criar

uma

se

trata

necessariamente de um retorno físico, mas há uma transformação psicológica, espiritual

e

emocional,

bem

como

um

sentimento

de

limpeza

através

do

112

processo de avançar para um lugar de onde a humanidade se aproxima.

O

que

constitui

uma

contranarrativa

aqui?

Qual

é

a

natureza

desse

desfazer? Um contraponto a

A arca do retorno

, de Leon, é o trabalho do artista

visual e sonoro Charles Gaines [fig. 2.14 e 2.15]. Gaines foi contratado para criar uma instalação temporária no rio Mississippi, que é em si mesmo uma porta de entrada para o Destino Manifesto, ou seja, colocado a serviço do projeto colonial, escravocrata e imperial que os Estados Unidos eram e são. Gaines escreveu uma ópera baseada no caso de Dred e Harriet Scott e criou

66

uma instalação chamada

Moving Chains

. Em sua descrição da obra, ele diz

que cada elo das correntes pesa cerca de 4,5 quilos e cada corrente tem aproximadamente 60 metros de comprimento. A obra é composta de dez correntes: quatro correntes prateadas, uma corrente vermelha no centro para

representar

adicionais.

Elas

velocidade

do

o

são

sangue

e,

em

mecanizadas,

Mississippi,

seguida,

as

enquanto

cinco

correntes a

correntes

prateadas

corrente

se

vermelha

prateadas movem

se

move

na na

velocidade de uma balsa no rio. Essas parecer

são

um

as

coordenadas

navio.

Ele 113

“experiência feroz”.

diz

que

da

estrutura

estar

nela

e

temporária caminhar

que

por

Gaines

ela

será

diz

uma

Eu leio o monumento temporário de Gaines como

assentado no conhecimento do vestígio, em um passado que não é passado, um passado que ainda está conosco; um passado que não pode e não deve ser pacificado em sua apresentação. A linguagem afetiva visual-sônica de Gaines não é de passado e reconciliação. Aquele rio, aquele tempo, aquele lugar ainda estão presentes; o ar ao redor daquele navio permanece tão perturbado

como

sempre

esteve.

Gaines

nos



o

tempo

do

navio,

um

contraponto ao tempo monumental.

[2.8] Um close do memorial do legado da escravização. Cortesia de UN Photo/Devra Berkowitz.

67

[2.9] Mare nostrum, jun. 2014. Pessoas refugiadas amontoam-se a bordo de um barco a cerca de 25 quilômetros da costa da Líbia, antes de serem resgatadas por uma fragata naval italiana que trabalhava na Operação Mare Nostrum. Cortesia de Massimo Sestini.

[2.10] Operação Resposta Unificada.

© MC2 (SW) Candice Villarreal/US Navy/Handout/Corbis

68

[2.11] Charge sobre o ebola. Cortesia de André Carrilho.

[2.12] Hew Locke, For Those in Peril on the Sea, 2011. Instalação na igreja de St. Mary & St. Eanswythe, em Folkestone. © Hew Locke. Todos os direitos reservados, DACS, 2015

69

[2.13] Romuald Hazoumè, Lampédouzeans, 2013. Instalação de mídia mista, 220 × 360 × 380 cm. Cortesia de October Gallery. © Artists Rights Society (ARS), Nova York/ADAGP, Paris, 2015

70

[2.14–2.15] Representações de Moving Chains, de Charles Gaines, projeto a ser potencialmente instalado na margem de um rio. Cortesia do artista. © Charles Gaines, 2015

71

72

deixe-me declarar portais cantos, encalço, deixe-me dizer imóvel aqui em cílios, em seios invisíveis, no lago em desaparecimento nas pequenas lojas de lembranças falsas ,

,

a vida frágil e roída que vivemos, eu sou presa, e estou presa —

DIONNE BRAND,

Thirsty



(ênfase minha)

– grande espaço na parte inferior de um navio ou aeronave onde a carga é armazenada (de um navio ou aeronave); continuar a seguir (um curso particular); manter ou deter (alguém); uma fortaleza HOLD [

PORÃO]

.

— Oxford English Dictionary

Não é possível ler as palavras da segunda estrofe do primeiro poema do

Thirsty mapa para a Porta do Não Retorno livro

, de Dionne Brand (publicado em 2002, um ano depois de

Um

), encontrar sua declaração de portais e

não

pensar

nessa(s)

Porta(s)

do

Não

Retorno

em

toda

continente africano. Com esse primeiro poema de

não

a

Thirsty

costa

oeste

do

, não podemos

pensar nas maneiras como nós, pessoas Negras na Diáspora, somos

presas

e

estamos

presas

na/pela

“vida

frágil

e

roída

desprotegidas do terrível, exceto pelos cílios. Sedentas.

que

Sedento

vivemos”, é a palavra

final que a poeta dá a Alan quando ele cai… morto. Quem lê reconhece Alan como

Albert

Avenue,

em

Johnson,

morto

Toronto;

Alan

a

tiros

em

Johnson,

agosto

morto

de

pela

1979, bala

na

de

Manchester

um

1

policial.

Sedento. Com sede na caminhada, no porão, no navio, na costa e no agora… Alan e Albert Johnson caem. Nós habitamos e somos habitadas pelo porão. Em

entrevista

Manthia

Diawara 2

chegada”.

a

Édouard

começa

Glissant

dizendo:

sobre

“Um

suas

barco

é

teorias uma

da

partida

relação, e

uma

Eu tomo essa dualidade, essa duplicação de partidas e chegadas,

como linha de largada para esta seção sobre o que acontece no porão. O livro de memórias de Charlotte Delbo intitulado

Nenhum de nós voltará

começa com “Rua da chegada, rua da partida”. Delbo relata outro tipo de navio, outro tipo de porão, o dos vagões de gado que chegam a Auschwitz ou Buchenwald. Então ela começa com a estação, que não está em lugar

73

nenhum, e a porta que leva à morte. Ela escreve: “Mas existe uma estação em que os que chegam são justamente os que partem / uma estação em que os que chegam nunca chegaram, em que os que partiram nunca voltaram. / 3

É a maior estação do mundo. É a essa estação que eles chegam”. portas

anteriores,

estações

anteriores,

portos

anteriores

de

Houve

chegada

e

partida. Não incluo Delbo aqui para fazer uma analogia entre o Holocausto (Delbo

integrava

a

Resistência

Francesa)

e

a

escravização.

A

aritmética

brutal da escravização é precursora daquela do Holocausto. Inicio daqui

arrivants

por conta das maneiras como Delbo explicita que tais chegantes [

]

(termo usado por mim, com um salve para Brathwaite) de toda a Europa, que nunca partirão nem sabem a língua dos guardas, devem aprender uma nova língua por meio de chutes, socos, coronhadas de rifle e tiros. Uma mãe dá um tapa em uma criança; os guardas gritam, batem e puxam; a linguagem se desintegra.

Zong!

É dentro de/com tal queda, tal dilaceração da língua, que

começa.

A linguagem abandonou a língua sedenta, abandonou as línguas daquelas pessoas

cativas

a

bordo

do

Zong

tumbeiro

,

cuja

aquisição

de

novas

linguagens articula a linguagem da violência no porão; a língua luta para formar

a

nova

linguagem;

consoantes,

vogais

e

sílabas

espalhadas

pela

página. Letras pretas flutuam como aquelas pessoas africanas que foram lançadas e que saltaram do navio e se perderam nos arquivos e no mar. “á á

w w w w a wa / wa a wa t / er…

á á g ág / ág ág u / ua…” [

4

].

A boca tenta

formar as palavras da língua-outra; exceto pelo mar salgado, a água desaparece em todas as suas manifestações: lágrimas, urina, água da chuva e água

potável.

“Água

de

algum

dia,

água

de

querer”,

escreve

5

Philip.

A

linguagem se desintegra. A sede dissolve a linguagem. Se não sabíamos, Delbo nos diz: “Ó vocês que sabem / sabiam que a fome faz brilhar os olhos 6

que a sede ofusca?”.

Se não sabíamos, Morrison nos diz isso em

Amada

:

“os homens sem pele trazem a água da manhã deles para a gente beber a gente

não

bebe

[…]

se

a

gente

bebesse

mais

podia

fazer

lágrimas

não

podemos fazer suor nem água da manhã então os homens sem pele trazem 7

a deles para nós”.

Danticat nos diz isso em “Children of the Sea” por meio

das palavras de um jovem haitiano sonhando com a amada que deixou para trás enquanto enfrenta o conhecimento da morte: “Tentei falar com vocês, 8

mas todas as vezes que abri minha boca saíram bolhas de água. Sem som”; Brand nos diz isso em

Thirsty

. Juntas, essas escritoras elaboram o porão e

seu longo vestígio, o tempo de residência do porão, sua longa duração. A primeira linguagem que os guardas do porão usam com as pessoas cativas é a linguagem da violência: a língua da sede e da fome e da dor e do calor, a língua da arma e da coronhada, o pé e o punho, a faca e o arremesso ao mar. E, no porão, bocas abertas dizem, sedentas.

74

Adolescentes equipes

da

que

ONG

chegaram

Save

the

ao

porto

Children

italiano

sobre

de

como

Lampedusa

pessoas

que

contaram

migravam

às

dos

países da África subsaariana costumavam ser mantidas sob o convés, privadas de água e luz solar.

[…]

“Os líbios que me levaram à Itália não são humanos”, disse ele. “Eles falam com a arma, não com palavras […]. Empurraram oito pessoas da Nigéria ao mar.” […] “E eles jogaram meu amigo no mar. Todos se afogaram.”

[…]

Em julho do ano passado, cerca de cem pessoas migrantes foram massacradas por traficantes depois que tentaram escapar de um porão enquanto a fumaça do motor se espalhava pelo barco. Quando o gás venenoso se espalhou abaixo do convés, o pânico começou e as pessoas conseguiram abrir a porta à força, mas

foram

recebidas

por

traficantes

armados

com

facas

que

começaram

a

massacrá-las e a jogá-las ao mar.

[…]

Cinco homens esfaquearam e agrediram aleatoriamente as pessoas a bordo e as jogaram ao mar, dizendo às outras para não reagirem ou teriam o mesmo destino, disse a polícia. Cerca de sessenta pessoas migrantes foram atacadas, e o corpo delas foi jogado ao mar, enquanto cerca de cinquenta foram jogadas 9

diretamente ao mar para se afogar.

O

capitão

e

um

membro

da

tripulação

estavam

entre

as

28

pessoas

sobreviventes resgatadas das cerca de 950 a bordo da ex-embarcação de pesca 10

de vinte metros.

Um

adolescente

da

Somália

disse

que

queria

ser

chamado

de

Ali

em

11

homenagem a seu amigo que fora lançado ao mar junto de outras pessoas.

De acordo com relatos de testemunhas recolhidos pela polícia, os suspeitos de tráfico – dois líbios, dois argelinos e um tunisiano de 21 a 24 anos – ameaçaram as pessoas migrantes a bordo com facas e espancaram-nas com cintos para controlá-las. Cerca de cem pessoas migrantes oriundas do continente africano, agora consideradas mortas, foram supostamente mantidas no casco do barco 12

condenado, disseram sobreviventes à polícia.

75

Essas narrativas de jornal ressoam o que quem vive no vestígio conhece. Compreendemos

as

compulsões

do

capital

em

nossas

mortes

sempre-

possíveis. Mesmo assim, esses corpos tentam superar as compulsões do capital. Eles, nós, habitamos o conhecimento de que o corpo Negro é o

immi/a/nent

signo da morte imi/a/nente [

]. Esses são relatos do porão na

contemporaneidade. Em

Calais

[fig.

3.1],

os

guardas

do

porão

respondem

com

violência

quando as pessoas refugiadas da contínua financeirização de suas vidas invivíveis e do empobrecimento orquestrados pela Europa tentam chegar ao Reino Unido. O primeiro-ministro britânico David Cameron refere-se a elas como um “enxame de pessoas cruzando o Mediterrâneo em busca de uma vida melhor, querendo vir para a Grã-Bretanha porque a Grã-Bretanha tem empregos, tem uma economia em crescimento, é um lugar incrível para

se

revoltas

13

viver”. na

perseguidos

Cameron

sequência pela

polícia,

insiste

da o

no/recusa

morte então

por

o

“porão”.

eletrocussão

ministro

do

Interior

Em de

2005, dois

Nicolas

após

jovens Sarkozy

referiu-se a jovens em situação de rua como “escória” e “gentalha” e disse que

lavaria

as

periferias

com

uma

máquina

de

alta

pressão.

Cameron

e

Sarkozy instrumentalizam a ortografia do vestígio. Eles instrumentalizam as

convenções

da

língua

brutal

do

porão.

“A

partir

de

amanhã,

vamos 14

limpar a Cité des 4.000 com uma [lavadora de alta pressão] Kärcher.” Alemanha,

em 15

continuam.

Bayreuth,

Berlim

e

Hamburgo,

os

campos

de

Na

refugiados

Lá, pessoas refugiadas são mantidas em aldeias durante anos,

incapazes de sair sem permissão, proibidas de ir para a cidade, proibidas de encontrar emprego ou ir à escola, na morte em vida do campo. “‘Ser um homem

negro

ou

‘refugiado’

em

Brandemburgo

é

como

ser

judeu

ou

homossexual nos anos 1930 na Alemanha’, disse Chu Eben, que fugiu de 16

Camarões em 1998 e vive na Alemanha desde então.”

76

[3.1] Migrantes: França-Grã-Bretanha-Europa. © Philippe Huguen/Getty Images Desde

o

final

de

2012,

o

acampamento

na

Oranienplatz,

em

Berlim



um

We

conjunto de cerca de trinta grandes barracas, adornadas com frases como “

are here

Kein Mensch ist ilegal

” [Estamos aqui] e “ 17

tem sido

” [Nenhuma pessoa é ilegal] –,

o lar de mais de duzentas pessoas refugiadas de diferentes partes do

18

mundo.

Em

Nova

Katrina

e

continuam

Orleans,

Louisiana,

mantidas a

em

configurar

pessoas

condições um

Negras

desalojadas

deploráveis

padrão

de

no

cativeiro,

pelo

[estádio]

proibidas

furacão

Superdome de

retornar,

proibidas de “seguir em frente”, enquanto a cidade se refaz sem elas. Na Grécia, na ilha de Kos, a polícia “espancou migrantes com cassetetes e os pulverizou com extintores de incêndio enquanto centenas se reuniam em 19

um estádio de futebol para esperar pelos documentos de imigração”.

Em

um popular programa de TV francês, a escritora senegalesa Fatou Diome disse:

Se

essas

pessoas

cuidadosamente tremendo

agora.

cujos

corpos

minhas Em

estão

palavras

vez

disso,



lavando

fossem

são

essas

praias

brancas,

pessoas

a

Negras



Terra e

e

eu

escolho

inteira

Árabes

estaria

que

estão

morrendo, e a vida delas é mais barata. A União Europeia, com sua marinha e sua

frota

de

Mediterrâneo

guerra, se

pode

quiser,

mas

resgatar senta

e

migrantes espera

até

no que

Atlântico as

pessoas

e

no

mar

migrantes

morram. É como se deixar que elas se afoguem fosse usado como forma de

77

dissuadi-las

de

chegar

à

Europa.

Mas

deixe-me

dizer

uma

coisa:

isso

não

impede ninguém […], porque o indivíduo que está migrando como um instinto de sobrevivência, que acredita que a vida que está levando não vale muito, não 20

tem medo da morte.

O

Zong

se repete; ele se repete e se repete por meio da lógica e do cálculo

da desumanização iniciada há muito tempo e ainda operante. Os detalhes e as

mortes

se

acumulam;

os

idem

idem

preenchem

os

arquivos

de

um

passado que ainda não é passado. Os porões se multiplicam. E o mesmo acontece com a resistência a eles, a sobrevivência a eles: “a vida frágil e roída que vivemos, / eu sou presa, e estou presa”. Entendemos isso porque estamos “imóveis aqui em cílios”.

O VENTRE DO NAVIO O aterrorizante vem do abismo, três vezes amarrado ao desconhecido. Uma primeira vez, inaugural, quando você cai no ventre da barca. Uma barca, segundo sua poética, não tem ventre, uma barca não engole, não devora, uma barca toma a direção do céu pleno. Mas o ventre dessa barca te dissolve, te atira num não mundo em que você berra. Essa barca é uma matriz, o abismomatriz. Que gera o teu clamor. Que também gera toda unanimidade futura. Pois se você está sozinho nesse sofrimento, você compartilha o desconhecido com algumas pessoas que você ainda não conhece. Esta barca é tua matriz, um molde, que, no entanto, te expulsa. Grávida de tantos mortos quanto de vivos em suspenso Poética da relação .



ÉDOUARD GLISSANT,

“Ataquei terroristas negros, havia um bebê negro, eles falaram que um bebê negro, negros em geral, são terroristas. Terror negro, raça branca.” Mordechai Michael Zaretzky, Afula, Israel (indiciado por tentar matar uma bebê eritreia de 18 meses esfaqueando-a na cabeça com uma tesoura na noite de 3 jan. 2014) .



EFRAT NEUM,

“Afula Man Indicted for Trying to Kill Black Baby”

Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth Century America Em

, Saidiya Hartman escreve que “observadores do século

XIX”

de uma fileira de pessoas escravizadas descreveram tal grupo (em sua 21

formação e movimento) como “uma passagem do meio doméstica”. “Mama’s

Baby,

Papa’s

Maybe:

An

American

Grammar

Book”,

Em

Hortense

Spillers escreve que as pessoas africanas empilhadas no porão do navio foram

marcadas,

conforme

as

definições

euro-ocidentais,

não

como

homem e mulher, mas como propriedade de tamanhos e pesos diferentes.

78

“Nessas gênero

condições”,

no desfecho

ela

escreve,

“perdemos

pelo

menos

a

diferença

de

, e o corpo da mulher e o do homem se tornam um

território de manobra cultural e política, nem um pouco relacionado ao 22

gênero, específico de gênero”. Lendo

conjuntamente

a

Passagem

do

Meio,

o

grupo

de

pessoas

escravizadas e, acrescento, o canal de parto, podemos ver como cada um funcionou separada e coletivamente ao longo do tempo para (des)figurar a maternidade

Negra,

tornando

o

útero

uma

fábrica

de

produção

de

negridade como abjeção, muito parecido com o porão do tumbeiro e com a prisão,

e

transformando

o

canal

de

parto

em

outra

passagem

do

meio

doméstica com mães Negras, após o fim da hipodescendência legal, ainda

status

conduzindo suas crianças à sua condição, isto é, ao seu não/ 24

não/ser.

23

,

ao seu

Para confirmar isso, não precisamos ir além das ortografias pós-

modernas

do

vestígio



transmitidas

por

meio

de

linhas

do

tempo

do

Twitter, feeds do Facebook, sites, Tumblrs, Instagrams e outras mídias e redes

online

sofrimento

e

de

tradicionais,

mães

todas

despossuídas

organizadas

após

os

para

espetacularizar

assassinatos

de

seus

filhos

o e

filhas, cada mãe forçada a mostrar sua dor em público. O canal de parto de mulheres Negras ou de mulheres que dão à luz a negridade, então, é outro tipo de Passagem do Meio doméstica; o canal de parto,

aquela

passagem

desde

o

útero

por

onde

o

feto

passa

durante

o

O ventre do navio gera a negridade; o canal de parto permanece no/como porão parto.

.

O

ventre

do

navio



à

luz

a

negridade



como

(não)

relação. Pense agora naquelas mulheres encarceradas nos Estados Unidos que são forçadas a dar à luz enquanto estão acorrentadas, com sua dor ignorada.

Elas

são

forçadas

a

parir

acorrentadas,

mesmo

quando

esse

acorrentamento é contra a lei. Parir no ventre do Estado: nascida no/como corpo do Estado. O tumbeiro, o útero e a fila de pessoas escravizadas, o longo projeto de desumanização; continuamos a sentir e a ser a queda/quem cai. Pode-se apreender muito nitidamente essa desumanização da fileira de pessoas escravizadas e, com ela, o nascimento de novas “formas de vida 25

negra”

em uma descrição feita por Richard Wright, de quatro anos, nas

páginas iniciais de

Black Boy: American Hunger

. Wright não sente aquele

“terror absoluto que ele sentiu quando viu os soldados, pois essas criaturas estranhas estavam se movendo lenta e silenciosamente, sem incitação de ameaça”. Ele continua: “Eu acidentalmente olhei para a estrada e vi o que me

pareceu

ser

uma

manada

de

elefantes

vindo

lentamente

em

minha

direção. […] Os estranhos elefantes estavam a poucos metros de mim agora, 26

e eu vi que o rosto deles era como os de homens!”. seu

“Held

in

“Lembro-me

the

de

Body

ver,

of

the

quando

eu

State” era

com

uma

79

uma

criança

Colin Dayan começa

memória crescendo

semelhante: em

Atlanta,

27

homens vestindo listras de zebras e trabalhando ao longo da rodovia”. Tanto

Wright

quanto

Dayan

elaboram

o

poder

trans*formador

de

desumanização da prisão e da fileira da prisão. Dennis

Childs

tumbeiro, o

articula

barracoon

28

,

totalmente

as

conexões

entre

o

porão

do

a prisão e a prisão-porão de carga. Childs escava o

“tumbeiro terrestre” usado nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX:

Para caber tantos prisioneiros em um espaço tão pequeno, a “jaula” consistia em duas seções paralelas de beliches de três camas, com uma via de acesso que descia

no

centro

e

um

buraco

aberto

no

meio

da

passarela,

por

onde

os

prisioneiros eram forçados a urinar e defecar em um balde colocado no chão, embaixo dessa estrutura. O revestimento externo desse espaço era uma treliça de barras de madeira ou de metal que deixava os prisioneiros à vista sob a vigilância dos guardas do campo e do público. Havia também outra estrutura que consistia em quatro paredes de madeira sem janelas. Essa última versão da jaula

com

rodas

não

permitia

aos

prisioneiros

a

visão

do

mundo

exterior,

deixando-lhes apenas um minúsculo suprimento de ar respirável – uma fenda estreita

ao

longo

imobilizava

seus

da

estrutura.

prisioneiros

Como

no

caso

acorrentados

a

do

tal

tumbeiro, ponto

que

a

jaula

se

móvel

sentar

era

29

impossível.

(Voltarei

a

isso

em

“O

tempo”.)

As

taxas

de

encarceramento

e

a

lógica

carcerária dos Estados Unidos que emergem diretamente da escravatura e no presente continuam a ser os sinais que fazem corpos Negros. Veja uma imagem de prisioneiros no Malauí [fig. 3.2], em 2005, que evoca nada menos do que o porão do tumbeiro transformado em navioprisão.

A

prisão

repete

a

lógica,

arquitetônica

e

outras,

do

tumbeiro

(na/através da Diáspora Negra global). Com essas lógicas em mente, quero sugerir que o que também está

é

nascendo índice

de

o que chamo de

violabilidade

e

negridade anagramatical

, que existe como um

também

de

potencialidade.

J.

Kameron

Carter

chega a algo assim quando, em “Thinking with Hortense Spillers”, escreve que a “‘passagem’, afinal, em ‘Passagem do Meio’ é […] – a própria existência 30

no meio”.

Enquanto continuo pensando na gramática de Spillers, “que é

realmente uma ruptura e um tipo radicalmente diferente de continuação 31

cultural”,

e nas frases iniciais do livro

In the Break

, de Fred Moten, que

dizem que “a história da negridade é um testamento do fato de que objetos podem resistir e resistem” e “negridade – o movimento estendido de uma convulsão específica, uma irrupção contínua que desarranja todas as linhas – é uma tensão que pressiona a suposição da equivalência de personalidade e

32

subjetividade”,

eu

chego

à

negridade

como



negridade

é



anagramatical. Ou seja, podemos ver os momentos em que a negridade se

80

abre para o anagramatical no sentido literal, como quando “uma palavra, frase ou nome se forma pela reorganização das letras de outra”, segundo o dicionário

Merriam-Webster

. Podemos apreender isso também no sentido

metafórico de como, em relação à negridade, o gênero gramatical se esvai e novos

significados

proliferam;

como

“as

letras

de

um

texto

são

transformadas em uma mensagem secreta quando reorganizadas” ou como uma mensagem secreta é decodificada através da reorganização das letras de

um

tempo,

texto. de

Ana-

,

volta,

negridade

como

de

como

prefixo,

novo,

significa

(a)temporal,

dentro

“para

33

Assim,

e

fora

novamente”.

cima,

no

lugar

negridade

do

lugar

ou

no

novamente,

e

do

tempo,

pressionando o significado e aquilo contra o qual o significado é produzido. Vemos repetidamente como, dentro e fora dos Estados Unidos (meu ponto de

partida

exemplo,

e

de

chegada),

“prostituta” 35

mas “Hulk Hogan” que

mãe

do

terror”,

ou

menina

não 34

“criminosa”,

significa

menino

“menina”,

não

significa

mas,

por

“menino”, 36

ou “atirador”, “bandido” ou “jovem urbano”.

Vemos

não significa “mãe”, mas “criminosa” e “defensora” e/ou “parideira e

não

um

dos

principais 37

cotidianamente implementado.

motivos

Vemos que

do

criança

terror

múltipla

e

não é “criança”, e um

barco, um veleiro da Guarda Costeira, torna-se, nas mãos de Brathwaite, uma vala da Guarda Costeira – não um navio de resgate ou de assistência hospitalar, mas um portador de caixões, portador de fileiras de corpos e assim

por

38

diante.

Conforme

os

significados

das

palavras

se

desfazem,

deparamos repetidamente com a dificuldade de fixar a significação. Essa é a existência Negra no vestígio. Isso é o anagramatical. Essas são vidas Negras, anotadas. (Voltarei ao que estou chamando de anotação Negra no capítulo final deste livro, “O tempo”.)

[3.2] Prisioneiros dormem em uma cela na prisão de Maula, nos arredores de Lilongue, no Malauí, em 29 jun. 2005. “A desumanidade 81

das prisões africanas é uma vergonha que se esconde à vista de todo mundo.” © Joao Silva/The New York Times/Redux Voltemos

a

Aereile

Jackson,

aparece e desaparece em

a

mulher

Negra

que

The Forgotten Space

simultaneamente

, de Sekula e Burch – Aereile

Jackson, identificada como “ex-mãe”. O que significa ser “ex-mãe” e, em particular,

o

que

significa

conseguiu

reivindicar

o

ser

que

uma

mãe

“ex-mãe”

significa

para

no

alguém

mundo?

nunca

que

Quando,

como

Spillers nos disse, a vida Negra é um “estado forçado de violação” e a mãe

visto que pode ser invadida a qualquer momento e de maneira arbitrária pelas relações de propriedade (como a família) é uma relação que perde o significado, “

39

”?

O que a expressão “ex-mãe”, para descrever uma mulher

cujas crianças lhe foram tiradas (e provavelmente colocadas sob “cuidado estatal”),

nos

diz

sobre

as

vidas

após

a

morte

propriedade? Quem, ou talvez o quê, carrega o

da

status

escravização

e

da

de (não)/(ex-)mãe

quando suas crianças são perdidas devido à morte ou porque estão “presas

ex

no corpo do Estado”, e como alguém se torna uma menos

que

a

palavra

mãe

nunca

tenha

se

-mãe? Quer dizer, a

aplicado

às

mulheres

Negras

dentro e fora da escravização no “Novo Mundo”. Somos inundadas com imagens de mulheres Negras sofrendo, de (não) mães Negras em luto por (não) crianças Negras. Em

Laboring Women

, Jennifer Morgan escreve:

O desafio, para os historiadores do início do Atlântico, é relatar, a todo custo, os

igualmente

homens

e

inumeráveis

mulheres

reconfiguraram maternidade,

seu

por

atos

de

humanidade,

apanhados

sentido exemplo,

no

subsequente não

pode

as

turbilhão de

maneiras

da

identidade

permanecer

pelas

ascensão e

quais

colonial

possibilidade.

inalterada

A

quando

entendida no contexto tanto da esmagadora mercantilização dos corpos dos bebês e de suas mães quanto do potencial impulso que as mulheres devem ter 40

sentido para interromper tais cálculos obscenos.

“A maternidade […] não pode permanecer inalterada.”

41

Minha amiga Jemima tuitou os prints de uma série de mensagens de texto com seu filho de onze anos. Ele quer uma camisa à prova de balas. Ela pergunta se ele está bem. Ele diz que não. Ela diz que

está triste por ele

achar que precisa de uma camisa à prova de balas lamenta precisar de uma

; ela se pergunta se algo

aconteceu promete

com

que

ele.

eles

Ele

o

responde

protegerão,

que

que

.

o

manterão

seguro.

Ela

Ela faz

lhe isso

sabendo, antes, ao longo e depois de escrever essas mensagens, que há um limite para o que pode fazer para protegê-lo; que não há espaço seguro e…

82

ainda assim, como Denver, em saia

desse

ventrem

quintal.

42

Vá”.

Nas

Amada

, ele precisa saber disso: “Saiba, e

vidas

após

a

morte

partus sequitur

do

, o que significa, o que pode significar a maternidade para mulheres

Negras,

para

pessoas

Negras?

Que

tipo

de

mãe/maternidade

é

essa,

se

sempre se deve estar preparada com o conhecimento da possibilidade de morte violenta e cotidiana de um filho ou filha? É maternidade saber que seu filho/sua filha pode ser morto/morta a qualquer momento no porão, no vestígio,

pelo

Estado,

não

importa

quem

empunhe

a

arma?

(Todas

as

relações de Spillers são invadidas pelo Estado.) Ser engolidos inteiros pelo Estado,

expurgados

pela

polícia,

parados

e

revistados,

ter

as

costas

quebradas, ser humilhados, ser internadas em “campos” para mulheres e crianças. Minha amiga e seu filho são cativos do Estado, e mãe e criança caem… aos pedaços.

“Ela era mãe, esposa, ela era minha, ela não é mais minha.” Essas são as palavras do marido de Raynetta Turner, Herman, encontrada morta em uma cela na manhã seguinte a ter suas queixas de que se sentia mal ignoradas. Ela era mãe de oito crianças e estava presa pela acusação de furtar comida em uma loja 43

.

Em “Interstices: A Small Drama of Words”, Hortense Spillers escreveu que a escravização

trans

formou a mulher Negra, ela “se tornou a principal ponte 44

de passagem entre o mundo humano e o não humano”.

Joy James nos

lembra de que Thomas Jefferson, que não conseguia ver Phillis Wheatley como poeta, era:

um astuto consumidor da reprodutividade de mulheres negras. Em

the State of Virginia

, Jefferson diferencia entre o selvagem indígena

selvagem africano biológico ou

ontológico

Notes on social

e o

. E ilustra seu argumento com um

bestiário: orangotangos, afirma ele, preferem mulheres negras. Jefferson isenta todas

as

outras

formas

humanas

racialmente

subjugadas

da

sexualidade

animalizada (por exemplo, ele não opina que orangotangos fêmeas prefiram 45

homens negros ou que búfalos desejem mulheres Indígenas).

Em “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, Spillers escreve que pessoas africanas eram

desgenerizadas

na

Passagem

do

Meio,

marcadas

não

como

masculinas/homens e femininas/mulheres, e sim como propriedades de tamanhos diferentes e pesos específicos: “Fêmea/mulher na ‘Passagem do Meio’, devido à massa física aparentemente menor, ocupa ‘menos espaço’ em

uma

entanto,

economia

diretamente

quantificável

pelas 46

contraparte masculina”.

traduzível

mesmas

pelo

regras

de

dinheiro.

Mas

contabilidade,

ela

é,

como

no sua

E, novamente, é Hartman que nos lembra que a

83

fileira

de

pessoas

escravizadas,

que

reaparece

como

a

fileira

de

pessoas

acorrentadas dentro e fora do contexto da escravização, “foi descrita por observadores

do

século

XIX

como

uma

Passagem

do

Meio

doméstica, 47

pirataria, um mal momentâneo e, mais frequentemente, um crime”. Em

muitas

representações

certamente

nos

homem

Afula,

de

Estados

visuais,

Unidos,

Israel,

que

mas

entre

não

começou

só,

esta

outras como

seção,

na

vida

indica

a

vemos

que

pública,

citação

do

pessoas

Negras expulsas do Estado tornam-se símbolos nacionais daqueles seres menos-que-humanos

condenados

à

morte;

alguém

terror, a personificação do terror (

tornam-se

de dentro,

a

as

portadoras

do

ameaça terrorista

interna), e não os principais objetos das múltiplas formas como o terror é implementado, mas o terreno da possibilidade do terror. Há um extenso repertório

representacional

(fotográfico

e

discursivo)

da

confluência

da

negridade e da morte e múltiplas representações de “senso comum” da maternidade Negra – e, portanto, da impossibilidade da infância Negra – como que condenando alguém a uma vida de violência. Traçamos essa história de volta à escravização de pessoas como bens móveis e à lei

sequitur ventrem

que a prole de uma mulher escravizada herdaria o (não) Mulheres e crianças Negras continuam a ser consideradas que-humanas

agentes

e

partus

(novamente, “quem nasce segue o ventre”), a qual ditava

de

desastres

“naturais”,

seja

status vítimas

no

da mãe. menos-

rescaldo

do

terremoto de 2010 no Haiti, seja no de um barco afundando durante uma viagem perigosa, seja no do furacão Katrina. No dia 29 de outubro de 2012, em

Staten

Island,

Nova

York,

durante

o

furacão

Sandy,

Glenda

Moore

buscou abrigo e este lhe foi recusado. Essa recusa particular resultou na morte por afogamento de seus filhos Connor e Brendan, de dois e quatro anos, respectivamente, e em sua condenação pela opinião geral como uma mãe

inadequada.

O

tempestade?

Que

questionado

por

que

tipo

desesperada

que

batia

que, de

perguntam,

mãe

não

ela

abrira

era? a

ela Se

porta

repetidamente

em

estava isso

para sua

não

fazendo bastasse,

aquela

porta

naquela quando

mulher

pedindo

Negra

ajuda,

o

homem branco que lhe negara abrigo disse não ter visto nenhuma mulher Negra, mas um homem Negro GRANDE, de modo que ele foi

forçado

a passar

a noite com as costas contra a porta para impedir sua entrada e, portanto, a 48

própria violação.

“no começo as mulheres estão sempre longe dos homens e os homens longe das mulheres tempestades sacodem a gente e misturam os homens nas mulheres e as mulheres nos homens.” 49

O que é uma criança Negra? Nos Estados Unidos, grupos conservadores simultaneamente

clamam

pelo

fim

84

do

aborto

e

exaltam

as

virtudes

imaginadas dessa proibição. Lembre-se de Bill Bennett, ex-secretário de Educação dos Estados Unidos e “tsar dos valores”: “Se seu único propósito fosse reduzir o crime”, disse Bennett, “você poderia abortar todos os bebês 50

negros neste país, e sua taxa de criminalidade despencaria”.

Essa é uma

aritmética execrável, uma contabilidade violenta. Outro indicativo de que o significado de

criança

, quando apreende a negridade, cai… aos pedaços.

Um exemplo primordial de reconhecimento do que estou chamando de negridade anagramatical aparece nítida e literalmente na transição operada por Frederick Douglass da tia Hester de seu livro de 1845,

de Frederick Douglass and My Freedom

Narrativa da vida My Bondage

, para a tia Esther de seu livro de 1855,

.

meticulosamente

Porque,

as

por

violências,

mais a

que

tirania

Douglass

cotidiana

e

tenha as

elaborado

resistências

de

Hester, bem como sua própria vida em servidão, em que qualquer pessoa branca

tem

Nathaniel

o

direito

Hawthorne

de

exigir

publica

qualquer

coisa

dela

A letra escarlate

,

(e

em

dele),

1850,

quando

Hester

é

conectada à gramática do ser humano que pode violar a lei na sociedade civil; o humano que consegue consentir, mesmo que ela seja punida por fazê-lo. Além disso, em relação ao anagramatical literal (as mesmas letras, reorganizadas) de Hester e Esther em Douglass, penso no excedente de significação

da

negridade:

as

maneiras

significação desliza, quando palavras como

como

o

significado

desliza,

a

criança, menina, mãe menino e

apreendem a negridade. Pensemos novamente nos vários estudos que nos dizem que, embora se saiba que estão sentindo dor, pessoas Negras são “forçadas a suportar mais dor” e que crianças Negras são consistentemente consideradas mais velhas do que são e, portanto, nunca são consideradas, de

fato,

2015

51

crianças.

que

Voltemo-nos,

descreveu

um

jovem

nos

Estados

branco

de

Unidos,

dezoito

a

anos

uma e

notícia

uma

de

menina

branca de treze anos, ambos fugitivos da lei, por roubar carros, falsificar e roubar cheques, cruzar os limites do Estado e estar armados, como “Bonnie e Clyde” e “namoradinhos adolescentes”. O homem não foi descrito como predador nem a menina como prostituta (como provavelmente teriam sido se fossem pessoas Negras). Não foram descritos como criminosos ou como bandidos que estavam armados e eram perigosos. Não. A esse casal branco foi lançada uma corda de salvamento (não a boia daquelas pessoas Negras vistas

em

“Dream

Haiti”,

de

Brathwaite)

que

estendeu

ao

par

uma

gramática coerente dentro e ao redor do humano. Ao casal foi estendida 52

uma narrativa que trabalhou para torná-lo legível e bastante simpático.

Uma narrativa que, primeiro, diminuiu o fato e, mais tarde, a gravidade dos muitos

“atos

criminosos”

que

cometeram;

reorganizou

o

crime,

53

transformando-o em romance.

Pensemos agora no artigo que descreveu Aiyana Stanley-Jones, de

anos

54

, como indivíduo de sete anos adormecido e desarmado.

sete

Stanley-

Jones foi assassinada em 2010 por Joseph Weekley, um policial branco de

85

Detroit

que,

acompanhado

pela

48 horas

televisão

Swat

e

pela

equipe

do

programa

de

, chegou à porta onde Aiyana, de sete anos, morava com

sua avó e demais integrantes de sua família. Com conhecimento prévio de que a pessoa que procuravam morava no andar de cima, a polícia, ainda assim, invadiu sua casa e lançou uma granada de atordoamento. Aiyana estava

dormindo

imediatamente

no

sofá

pegou

da

fogo,

sala; e

a

ela

granada

sofreu

atingiu

queimaduras 55

Weekley disparou sua arma (uma submetralhadora), na

cabeça

e

acusações

a

matou.

contra

Apesar

Weekley

da

confirmação

foram,

por

Adormecida. Sete anos de idade

seu

fim,

cobertor, graves.

que

Então,

a bala atingiu Aiyana

desses

fatos,

todas

as

Desarmada.

descartadas.

. O que devemos fazer com esta conjunção,

sete anos, adormecida, desarmada? Devemos abordar tais termos como se eles fizessem sentido fora da (i)lógica da colonização, fora da (i)lógica da vida

Negra

no

vestígio,

fora

da

(i)lógica

de

se

estar

armada

com

a

negridade? Quando a avó de Aiyana se dirigiu a Weekley, ela disse: “Não consigo

dormir.

Eu

estou

doente.

flashbacks

dormir. Os

Estou

muito

doente.

Eu

não

consigo

. Eu não desejaria isso a ninguém no mundo. Nem

56

mesmo a você”.

Vereda; a linha de recuo de (uma arma). Vigília; o estado de vigilância ou de consciência .

Pensemos em Mikia Hutchings (a quem voltarei mais tarde, em “O tempo”), uma menina Negra de doze anos, pega com sua amiga branca escrevendo na parede de uma escola, prestes a responder por um possível crime porque sua

família

não

pôde

pagar

a

multa

de

indenização

de

cem

dólares.

Escrever na parede de uma escola pode ser visto como um crime ou não, se você

tiver

dinheiro

suficiente.

Eu

poderia

continuar.

Essas

histórias

também se acumulam; os idem idem nos arquivos do presente. Pensemos Brown



o

extensão

na

segunda

relatório

de

suas

de

autópsia

autópsia

lesões.

Essas

solicitada

comentado

anotações

pela

[com

família

notas]

necessárias

de

que

foram

Michael

mostra

feitas

a

pelo

médico legista contratado pela família para comprovar que houve lesão, assim

como

a

extensão

delas;

para

mostrar,

em

face

da

linguagem

prontamente utilizada da monstruosidade Negra embutida na linguagem de

“roubo

mostrar

com

que

o

ele

emprego

estava

de

força”,

fugindo

e

que

ele

gravemente

não

estava

ferido.

armado;

Vejamos

para

como

o

testemunho de Darren Wilson salvaguarda seu próprio papel como “braço forte”

da

lei

e

como

o

poder

do

Estado

desaparece

quando

o

policial

armado e treinado é transformado em uma criança de cinco anos por sua proximidade e comparação com a negridade.

86

“Quando o segurei [Michael Brown, o jovem negro desarmado de dezenove 57

anos],

a única maneira que posso descrever é que me senti como um menino

de cinco anos segurando Hulk Hogan. […] Quando ele olhou para mim, soltou tipo um grunhido, tipo um som grave de quem está irritado, e ele começou… ele se virou e veio em minha direção”, lembra Wilson. “Seu primeiro passo foi em minha direção, ele meio que deu um passo vacilante para começar a correr. Quando ele fez isso, sua mão esquerda se fechou formando um punho e foi para

o

lado

esquerdo

de

seu

corpo,

sua

mão

direita

foi

para

baixo

de

sua

camisa, na altura da cintura, e ele começou a correr em minha direção.”

“Ele estava quase ganhando força para correr através dos tiros, como se aquilo o enfurecesse, o fato de eu estar atirando nele”, disse Wilson. “E a cara que ele estava

fazendo,

estava

olhando

como

se

não

me

visse,

como

se

eu

nem

estivesse lá, como se eu não fosse nada em seu caminho.” Wilson mirou na cabeça

de

Brown

e

disparou

o

tiro

que

mataria

o

adolescente

desarmado.

“Quando ele caiu, ele caiu sobre o próprio rosto”, lembrou Wilson. “Lembro58

me dos pés dele subindo… e então eles descansaram.”

Darren

Wilson

tem

uma

imaginação

Eady em seu livro de poemas

mítica

brutal.

Brutal Imagination

Aqui

está

Cornelius

, sobre o caso de Susan

Smith. Smith afogou seus dois filhos (de três e quatorze meses) em 1995 em Union, Carolina do Sul, e depois acusou um homem Negro, um espectro,

o

espectro, de ter cometido tais crimes. Em “How I Got Born”, Eady poderia estar se referindo a Darren Wilson, entre outros:

Embora seja senso comum Que Susan Smith me queria vivo No momento em que seus bebês afundaram no lago. Quando chamado, eu vou Meu trabalho é fazer as coisas.

…………………………….

Susan Smith me inventou porque Ninguém mais nesta cidade fará o que Ela precisa que eu faça. Quer dizer, pular num carro parado E dar a partida com duas crianças Tristes e assustadas no banco de trás. Como uma má amante ela me deu um coração envenenado. Que bate em nossas costelas, preto, furioso, só eficiência. Já que o medo dela é meu sangue

87

E sua necessidade algo mítico, Tudo que ela diz sobre mim é verdade.

Quem é o senhor? Um dos meninos pergunta Do banco de trás eterno, E aqui está a única coisa boa: 59

Se eu estou vivo, então, por enquanto, eles também estão.

Michael Brown é a projeção de Darren Wilson, assim como o homem Negro desconhecido no caso de Susan Smith é a projeção dela. O porão, o meio da 60

rua Canfield Drive,

em Ferguson, Missouri, são iluminados e preenchidos

com/pela imaginação brutal. Assim como o enquadro policial.

O ENQUADRO Na Diáspora, como nos pesadelos, você é constantemente oprimida pela persistência do espectro do cativeiro Um mapa para a Porta do Não Retorno .



DIONNE BRAND,

Verificação famílias,

rotineira

centros

de

de

documentos,

detenção,

Lager

baculejo, [campos

centros de

de

detenção

refugiados],

zonas

de de

quarentena… são outros nomes pelos quais se pode reconhecer o porão como ele aparece em Calais, Toronto, Nova York, Haiti, Lampedusa, Trípoli, Serra Leoa, Bayreuth e assim por diante. Em dezembro de 2011, o “Why

is

the

N.Y.P.D.

after

New York Times

me?”,

escrito

publicou um artigo de opinião,

por

Nicholas

K.

Peart.

O

artigo

começa assim:

Quando pânico

eu

se

tinha

um

quatorze

policial

me

anos,

minha

parasse.

E

mãe

ela

me

me

disse

advertiu

para para

não

entrar

carregar

em

meu

documento de identidade e nunca fugir da polícia, do contrário eu poderia levar um tiro. Nos nove anos que se passaram desde que minha mãe me deu esse

conselho,

houve

inúmeras

ocasiões

nas

quais

pude

perceber

sua

61

sabedoria.

Diante dos contínuos assassinatos de pessoas Negras nos Estados Unidos, por dirigir, caminhar, pedir ajuda e respirar sendo uma pessoa Negra, esse é um bom conselho; esse é o conselho necessário de uma mãe Negra para seu filho

Negro,

e

ainda

é,

e

tem

sido,

insuficiente

encontra no mundo.

88

para

as

forças

que

ele

Quando julho

de

o

New York Times

2012,

sobre

publicou

mulheres

posteriormente

Negras

que

estão

um

artigo,

sujeitas

a

em

revistas

aleatórias e baculejos nas ruas da cidade de Nova York, o foco estava em como elas sentiam que, durante essas revistas, eram humilhadas e tocadas indevidamente. O artigo nos diz que “as leis que regem as revistas nas ruas são indiferentes ao gênero” e que, “ao conduzir uma revista, a polícia de Nova York é treinada pelo guia de patrulha para deslizar as mãos sobre a roupa externa, com foco nas áreas da cintura, axila, colarinho e virilha […]. O

treinamento 62

não

feminino”.

Isso

autorizadas

a

faz

distinção

significa

fazê-lo

que

é

a

entre

suspeitos

pessoa

tratada

parada

sem

do

e

sexo

masculino

revistada

distinção

de

por

ou

pessoas

gênero

e

sem

consentimento, podendo ser violada sexualmente.

Recentemente, em uma noite de verão, a bolsa preta de Shari Archibald estava a seus pés na calçada em frente de sua casa no Bronx. Os dois policiais do sexo masculino agacharam-se sobre sua bolsa de couro e a vasculharam, enfiando os braços até os cotovelos. Um policial pescou um tampão menstrual e, em seguida, um absorvente higiênico, amassando a embalagem laranja entre os dedos em busca de drogas. Então, ele puxou uma bandeja de comprimidos cobertos de papel alumínio, lembra Archibald. “O que é isso?”, perguntou o policial,

examinando

a

embalagem

da

pílula

em

que

estava

escrito

“drospirenona/etinilestradiol”. “Anticoncepcional”, lembrou a sra. Archibald. Ela respirou e exalou profundamente, esperando que a lufada de ar esfriasse seu

ânimo

e

contivesse

sua

humilhação

quando

os

policiais

começaram

a

revistá-la.

[…]

Policiais suspeitarem

do

sexo

masculino

razoavelmente

de

têm que

permissão

elas

perigosa que poderia causar-lhes danos.

uma operação de busca

podem

para

revistar

estar

mulheres

portando

uma

se

arma

Uma revista pode se transformar em

se os policiais sentirem uma protuberância suspeita

enquanto revistam a camada externa de roupas das mulheres ou o contorno de sua bolsa.

[…]

“Sim, é intrusivo, mas o policial vai fazer a busca onde quer que uma arma possa estar escondida”, disse a inspetora Royster. Essa busca não é aleatória; é baseada

em

informações

fornecidas

a

um

policial,

como

uma

descrição

detalhada de uma suspeita armada, ou em ações que levantam uma suspeita razoável de que a mulher pode estar armada, acrescentou ela. E, embora as revistas

policiais

de

mulheres

tenham

revelado

pouquíssimas

armas,

produziram 3.993 prisões no ano passado. “Segurança não tem gênero”, disse a

89

inspetora

Royster.

“Quando

você

está

falando

sobre

a

segurança

de

um

63

policial, a primeira coisa que ele ou ela vai fazer é mitigar a ameaça.”

Aqui está a rubrica do enquadro policial:

movimentos

furtivos,

carregar

objetos

suspeitos,

observar

uma

vítima

ou

localização, se encaixar em uma descrição relevante, indivíduo suspeito que age

como

vigia,

semelhante,

ações

ações

de

indicativas

de

envolvimento

uma em

transação

um

crime

de

drogas

violento,

ou

de

tipo

protuberância

64

suspeita, vestir roupas comumente usadas em um crime […].

No

caso

de

“protuberância

suspeita”,

poderíamos

ler

mais

um

policiamento das categorias de gênero, mais uma maneira de aterrorizar pessoas Negras de todos os sexos e gêneros? Os registros revelaram “um 65

adolescente algemado à força por dissimular uma ereção”.

“Crystal Pope,

22 anos, disse que ela e duas amigas foram revistadas por policiais homens no

ano

passado,

no

bairro

Harlem

Heights.

Os

policiais

disseram

que

estavam procurando um estuprador.” Ela relata: “Eles apalparam em torno da cintura do meu jeans. […] Apalparam os bolsos de trás da minha calça jeans, em volta da minha nádega. Foi meio desrespeitoso e degradante. Foi

Por que parar três mulheres quando se está supostamente procurando um estuprador? desnecessário. Não fazia sentido.

66



paradas

e

revistadas

por

policiais

à

procura

Grupos

de

de

um

amigas

estuprador;

aterrorizadas em nome da proteção de mulheres (sem ser reconhecidas como mulheres) do terror. Mais uma vez, nesses espaços de terror, relações de gênero euro-heteronormativas desaparecem

no desfecho da situação

.

Em seu artigo, Peart elucida os espaços restritos radical e racialmente nos

quais

e

através

dos

quais

homens,

mulheres,

meninas

e

meninos

Negros – parados e revistados a uma taxa de quase 700 mil em 2011 – podem viver e se mover livremente. O baculejo é um rito de passagem que marca, por um lado, o espaço/a raça/o lugar sem direitos e sem cidadania (como no caso

Dred Scott v. Sandford

[1857]) e, por outro, o espaço através

do qual os direitos à passagem livre são garantidos para pessoas não negras. As cartas de alforria voltam aqui. E se, desde então, constituem um rito de passagem – indicativo de nenhum direito, nenhuma cidadania, como na decisão do caso partir

de,

Dred Scott

através

e

–, devemos perguntar o que marca a passagem a

até.

Peart

continua:

“A

polícia

tem

muito

mais

probabilidade de usar a força para parar pessoas negras ou latinas do que brancas. Em metade das abordagens, a polícia cita o vago ‘movimentos furtivos’

como

motivo

do

67

enquadro”.

E

mais

um

jovem

Negro

relata:

“Quando você é jovem e Negro, não importa sua aparência, você se encaixa 68

na descrição”.

Você “se encaixa na descrição” do não ser, do estar fora do

90

lugar, de quem não é cidadão/cidadã e está sempre disponível e acessível para a morte. A

realidade

“movimentos baculejo, escravos

e

proveniência

furtivos”,

seguem até

a

a

uma

do

utilizada

linha

acusação

de

policiamento

como

direta

critério

desde

insolência

o

feita

e

para

capataz por

da

e

a o

linguagem

de

realização

do

proprietário

qualquer

pessoa

de

branca

como “um dos crimes mais comuns e indefinidos de todo o catálogo de 69

delitos geralmente atribuídos a escravos”.

Mantendo a retórica de que a

abordagem

vidas”,

e

consecutivos

revista de

policial

junho

de

“salvam

2012

o

ex-prefeito

em

de

dois

Nova

domingos

York

Michael

Bloomberg levou essa mensagem para igrejas predominantemente Negras, nas quais disse à congregação: “A cidade não ‘negará a realidade’ com o intuito

de

abordar

diferentes 70

relativas na população”.

grupos

de

acordo

com

suas

proporções

Devemos perguntar de quem são as vidas que

estão sendo salvas, quem de fato está em posse de uma vida que pode ser salva, pois é evidente que, em pelo menos um sentido, vidas Negras estão sendo destruídas. De acordo com Frederick Douglass: “O que quer que seja ou

não

seja

[…]

essa

ofensa

[imprudência]

pode

ser

cometida

de

várias

maneiras; no tom de uma resposta; no simples ato de responder; em não responder; caminhar,

na

expressão

nos

modos

e

do na

semblante; postura

no

do

movimento 71

escravo”.

Da

da

cabeça;

mesma

no

forma,

quaisquer que sejam ou não os movimentos furtivos, quando se é uma pessoa

Negra,

Pensemos

todo

em

movimento

Trayvon

Martin

e

pode

ser

Chavis

interpretado

Carter.

como

Pensemos

furtivo.

também

na

prisão de Monica Jones por estar caminhando, por ser Negra e transgênero, assim como na prisão e acusação das New Jersey Four. Paremos por um momento

no

caso

que

ficou

conhecido

como

New

Jersey

Four.

Quatro

jovens lésbicas Negras, de um grupo de sete, foram acusadas e condenadas por

agressão

de

segundo

grau

em

gangue.

Elas

foram

sentenciadas

e

cumpriram, integral ou parcialmente, entre três anos e meio e onze anos de prisão porque protegeram a si mesmas e umas às outras de um agressor 72

Negro que ameaçou “fodê-las até se tornarem heterossexuais”.

Não nos

esqueçamos da morte de Renisha McBride, de dezenove anos, uma jovem Negra que sofreu um acidente de carro durante a madrugada e foi procurar ajuda em uma casa em um bairro de branco de Detroit. Em vez de ajuda, ela foi recebida com uma bala fatal no rosto. Pensemos novamente em Miriam Carey, Glenda Moore, Jordan Dunn, Tamir Rice, Jonathan Holloway, Sandra Bland, Eric Garner, Jonathan Crawford, Rekia Boyd, Yvette Smith, Laquan McDonald, dentre tantas outras pessoas. Mais homens,

de e

90%

das

os

principalmente

em

pessoas

relatos suas

de

abordadas

em

abordagens

experiências.

O

Nova

York

policiais

NYPD

[New

em

2011

eram

concentram-se York

City

Police

Department – Departamento de Polícia da Cidade de Nova York] tem outro

91

programa de abordagens e revistas conhecido como Operation Clean Halls (“o único de seu tipo em uma grande cidade dos Estados Unidos que dá permissão

permanente 73

privados”),

que

mira

à e

polícia policia

para

vasculhar

mulheres,

corredores

crianças

e

de

homens

edifícios e

que



colocou, efetivamente, “centenas de milhares de pessoas nova-iorquinas, principalmente Como

parte

negras

e

latinas,

de seu mandato,

em

estado

de

e como efeito dele

sítio

na

própria

74

casa”.

, esses programas vigiam,

restringem e patologizam expressões e performances da sexualidade e do desejo de pessoas Negras. Um jovem Negro relata que, depois de ser parado e revistado, foi liberado pela polícia com a advertência “Vá em segurança”. 75

“Vá em segurança?”, ele pergunta, “depois de tudo que ele fez?”

“DO BERÇO À SEPULTURA”: DO ÚTERO AO TÚMULO Do berço à sepultura: da criação ao fim; ao longo do ciclo de vida. O termo é usado em uma série de contextos de negócios, porém mais tipicamente no que diz respeito à responsabilidade da empresa em lidar com resíduos perigosos e quanto ao desempenho do produto. Assim como “do útero ao túmulo”. Consulte também “sistema de manifesto de transporte de resíduos” .

— Business Dictionary Online

Eu pergunto novamente, pegando emprestada a frase de Philip: como é “defender quem morreu”? Uma professora do primeiro ano em Paterson, Nova Jersey, posta no Facebook que vê em seus alunos e alunas “futuros 76

criminosos”.

“Futuro criminoso” se junta a “ex-mãe” no anagramatical:

não criança; não mãe; não ser. No vestígio, devemos conectar a indústria do

nascimento

à

indústria

prisional,

a

máquina

que

degrada,

nega

e

eviscera a justiça reprodutiva à máquina que encarcera. Em 6 de fevereiro de

2013,

a

seção

de

Educação

do

New York Times

publicou

um

artigo

intitulado “A Hospital Offers a Grisly Lesson on Gun Violence”. O artigo começa assim:

Em

uma

sala

de

aula

escura,

quinze

alunos

do

oitavo

ano

se

espantaram

quando uma fotografia apareceu na tela na frente deles. Um homem morto cuja mandíbula fora destruída por um tiro de espingarda, deixando a metade 77

inferior de seu rosto uma bagunça sangrenta e disforme.

Os quinze alunos do ensino fundamental presentes nesse dia em particular são, em sua maioria, Negros e participantes de um programa no hospital da

92

Universidade Temple, no norte da Filadélfia, chamado Cradle to Grave [Do berço

à

sepultura],

seguinte

maneira:

envolvendo

ou

C2G.

“Em

jovens,

o

O

programa

resposta hospital

ao

Cradle

aumento

da

to

do

Grave

número

Universidade

experiência altamente interativa de duas horas

se

anuncia

de

da

homicídios

Temple

criou

uma

que confronta intimamente 78

participantes com as realidades da violência juvenil”.

Entendemos “do

berço à sepultura”, aqui, como uma ordem ou como uma descrição da vida Negra vivida, segundo argumentei, sempre no tempo presente da morte? Da mesma forma, “participante” pode ser a palavra correta para descrever as crianças da audiência apenas se ouvirmos e sentirmos nela a descrição de Frederick Douglass de si mesmo como “testemunha e participante” do açoitamento

de

sua

tia

Hester,

a

consciência

dele

de

que

tal

destino

também é o seu, a certeza que tem de que a entrada dele pela violenta “porta

sangrenta”

da

escravização

79

é

iminente.

Lemos

que

o

Cradle

to

Grave

reúne a juventude de toda a Filadélfia na esperança de que um olhar mais aproximado sobre os efeitos que as armas têm em suas comunidades impeça essa juventude de pegar em uma arma para acertar contas pessoais e a ajude a reconhecer

que

a

violência

armada

não

é

o

negócio

glamoroso

às

vezes

80

retratado em programas de televisão e na música rap.

No logotipo do C2G, o numeral 2 aparece como duplicação (in)consciente, uma redobra, um significante de como, para muitas pessoas no vestígio, o berço e a sepultura continuam sendo produzidos como o mesmo espaço. É um lembrete de que ser uma pessoa Negra é ser continuamente produzida pela espera em direção à morte; de que o berço e a sepultura se duplicam no que diz respeito à carne Negra. Ao

contar

a

história

de

Lamont

Adams,

um

adolescente

Negro

assassinado aos dezesseis anos, Cradle to Grave expõe crianças, muitas das quais já estão vivenciando o trauma

vivida

,

a

fotos

e

reimplementações

por meio de sua violência material,

de

violência

visual

como

forma

de

desencorajar mais violência. Lemos: “Enquanto jovens de treze e quatorze anos

se

reuniam

em

torno

de

uma

maca

em

uma

visita

recente,

o

sr.

Charles contou a história de Lamont Adams, de dezesseis anos, que morreu 81

no hospital após ser alvejado quatorze vezes por outro menino”.

Uma

pessoa jovem é convidada a colocar seu corpo no espaço/lugar do corpo de Lamont

Adams,

experiência

na

vicária

maca

que

o

onde

ele

programa

teria

oferece

sido é

colocado

[fig.

bem-sucedida

na

3.3].

“A

criação

desses ‘momentos de ensino’, comparáveis àqueles acionados em pacientes 82

com traumas reais.”

Como devemos entender o trauma aqui? Os corpos

93

desses jovens já estão sempre no espaço do corpo de Lamont Adams; não é esse passo

para dentro do porão

que requer imaginação.

Charles, o coordenador do setor de trauma do hospital, diz que, na história de sete anos e meio do programa, nenhuma mãe ou pai jamais reclamou

de

sua

filha

ou

filho

ter

visto

essas

imagens.

Tal

declaração

funciona mais para retratar a infância Negra e pobre como abandonada do que

para

tranquilizar

o

público

que

lê,

ou

pelo

menos

esta

leitora,

em

relação à correção ou adequação do programa. Aposto que essas mesmas equipes médica e administrativa não gostariam que

seus

filhos ou filhas

adolescentes fossem expostos a semelhante violência visual. Aposto que não considerariam simplesmente “educação” ou um “momento de ensino” o

fato

de

um

sinalizado

filho

com

ou

pontos

filha

ter

laranja

de

ficar

para

de

bruços

marcar

cada

em

um

um

dos

saco

24

vazio

pontos

e

de

entrada e saída das balas que atingiram e, por fim, mataram Lamont Adams aos dezesseis anos. De Phillis em diante, visto que crianças Negras não são consideradas crianças e que o cercadinho da “infância da cidade” as mantém fora da categoria trauma,

criança,

e

Kotlowitz,

não de

a

elas

recebem

terapia

outro

que

a

programa

do

Estado

citação da

a

e

de

agentes

seguir,

Filadélfia,

do

Estado

pronunciada

ilustra

como

por

mais Alex

necessária.

E

certamente não lhes é oferecido o mundo novo nem maneiras de imaginálo que as suas – as nossas – circunstâncias exigem. Alex Kotlowitz escreve no Filadélfia, Social

chamado

Justice 83

Social].

[Curar

Healing Pessoas

New York Times

Hurt

People:

Feridas:

sobre outro programa na

Center

Centro

de

for

Não

Nonviolence

Violência

e

and

Justiça

Pelo menos no nome, Healing Hurt People reconhece “pessoas” e

“feridas” e visa à justiça social e ao fim da violência, incluindo a violência de expor a mais violência quem já vive na/com a violência. Healing Hurt People parece reconhecer que o trauma, a proa do navio, deixa algo em seu vestígio.

94

[3.3] Scott Charles, coordenador do setor de trauma do hospital da Universidade Temple, coloca adesivos vermelhos em Justin Robinson, de treze anos, aluno do 8º ano da escola Kenderton, para mostrar os ferimentos de bala sofridos por Lamont Adams, um adolescente da cidade morto violentamente em 2004. A foto foi tirada durante o programa Cradle to Grave do hospital na Filadélfia, em 10 fev. 2013. O programa reúne jovens na esperança de que olhar para os efeitos de ferimentos de bala estimule a rejeição à violência armada. © Jessica Kourkounis/The New York Times/Redux

Quando o dr. Corbin e colegas começaram a trabalhar com vítimas de tiros na Filadélfia, viram sintomas nítidos de transtorno de estresse pós-traumático. Visitei o programa no verão passado e conheci um jovem que tinha terrores noturnos

tão

reais

que

sua

namorada

temia

pela

própria

segurança.

Outro

jovem me disse que, sempre que passa pelo local onde foi baleado, pensa estar vendo a si mesmo no chão, contorcendo-se de dor, e se aproxima do espectro para se assegurar de que ele ficará bem. Outro, baleado e paralisado em uma discussão por causa de um par de óculos de sol, disse que, sempre que pensa em vingança ou fica com raiva, o que acontece frequentemente, tem dores fantasmas incapacitantes nas pernas. Dois dos jovens com quem falei haviam tentado suicídio. Praticamente todos falaram que se sentem sozinhos, que não 84

confiam em ninguém.

O porão se repete e se repete e se repete no presente, moldando-o, bem como (n)a sala de aula e (n)o hospital. Em dezembro de 2013, o intitulada

“Invisible

Child:

New York Times Dasani’s

95

publicou uma matéria de capa

Homeless

Life

in

the

Shadows”

85

[Criança invisível: A vida de Dasani em situação de rua nas sombras].

Do

jeito que se apresenta, a série é uma exposição da “herança” recebida por Dasani Coates, uma vida de precariedade devida às “más escolhas” de seus pais

(principalmente

de

sua

mãe),

bem

como

das

falhas

maciças

e

sistêmicas de programas implementados para lidar com a pobreza e a falta 86

de moradia. O foco é direcionado a Dasani Coates,

criança Negra de onze

para doze anos, e sua família (sete crianças, sua mãe e seu pai), que vivem em

um

dos

abrigos

familiares

da

cidade

de

87

Nova

York.

família

(A

desmorona, no vestígio da captura e do navio, ela não consegue se manter.) Na primeira parte da série, Dasani é apresentada ao público leitor em casa e no caminho para a Dr. Susan S. McKinney Secondary School of the Arts (“Um lugar onde a esperança começa & os sonhos se realizam”) – escola cujo espaço, já demasiado apertado, como lemos, pode diminuir ainda mais pelo fato iminente de que suas salas para performances, no terceiro andar, serão desalojadas por uma (indesejada e contestada) escola privada. Quando Holmes,

a

narrativa

diretora

da

nos

leva

McKinney,

à

escola,

descrita

somos

como

uma

apresentadas mulher

à

sra.

formidável.

“Mulher imponente, alternadamente firme e doce”, a sra. Holmes

usa

um

fone

de

ouvido

bluetooth

como

se

fosse

um

brinco

permanente

e

comanda o leme a escola como um navio de guerra, espiando por seus corredores reluzentes como se vasculhasse os mares em busca de navios inimigos como um olho gigante que não pisca costuma vestir-se com ternos. Ela

da McKinney há quinze

anos e dirige

[…]. Ela

deixa a porta do escritório permanentemente aberta, 88

.

Metáforas marciais e a linguagem da vigilância subjazem à lógica do porão. A mulher e a escola-como-navio são descritas como santuários 89

vigilância.

e

locais de

A sala de aula de Dasani é repleta de “frases inspiradoras”, 90

como “Não há sucesso sem sacrifício”.

Que imaginação brutal descreve

um local de vigilância como um santuário? Para quem? Mas quem e o que deve ser sacrificado por tal “sucesso”, e em quais termos e segundo quem? Ao ler que a sra. Holmes suspendeu Dasani por uma semana devido a uma briga,

devemos

suspensa

é

entender

estar

que,

para

verdadeiramente

Dasani,

em



em

situação

de

situação 91

rua”.

de

São

rua,

“ser

metáforas

marítimas e marciais como navios, sucesso, luta, sacrifício e vigilância que ativam

essa

narrativa

sobre

Dasani

Coates,

criança

invisível.

(Escrevi

criança “inviável” em vez de “invisível”, um erro que não é um erro porque, sem dúvida, ser uma criança invisível é também ser uma criança inviável e, como frases, ambas aparecem ao lado do epíteto de “ex-mãe”, sobre o qual falei anteriormente, atribuído a Aereile Jackson.) Dasani é outra garotinha com a palavra

Navio

na testa.

96

A função do currículo é estruturar o que chamamos de ‘consciência’ e, portanto, determinados comportamentos e atitudes Como Sylvia Wynter nos disse: “

92

”.

E essas certas atitudes curriculares estruturam a nossa – toda

a nossa – consciência. Educação

no

ventre

do

navio.

A

narrativa

sobre

Dasani

é

parte

das

instruções que ela recebe a respeito de como viver em um mundo que exige sua morte, sendo usada como currículo. Ou seja, a série “Criança invisível” não só relata sobre a educação de Dasani mas também é, por si só, destaque na seção de Educação do jornal

The New York Times

, à medida que se torna

parte de um currículo maior como narrativa de resiliência individual e de superação – um “Teaching and Learning with

The New York Times

” que

consiste em atos que traumatizam e retraumatizam crianças Negras para educar outras pessoas. Crianças traumatizadas sendo forçadas a suportar 93

mais traumas; crianças com dor sendo submetidas a mais dor.

Tanto a

escola quanto a mulher em seu comando são descritas como navios, navios na tempestade. Mas nós, no vestígio, devemos reconhecer o navio

como

a

tempestade. Lembremo-nos da personagem Sethe, de Toni Morrison, e da

Navio Como o próprio sistema projetado para desfazê-la e inscrevê-la pode ser o mesmo que a salva? pelo para menina haitiana com a palavra

afixada na testa para que possamos

perguntar novamente:

Como a pessoa marcada

navio [fig. 2.5] pode ser salva sendo marcada

ele?

O artigo de Elliott deu início a uma nova onda de críticas a Michael Bloomberg, já que, durante seus três mandatos como prefeito, as taxas da cidade de Nova York referentes à falta de moradia, principalmente entre famílias e jovens, aumentaram e ultrapassaram números que há décadas não

eram

esses

ultrapassados.

problemas

fossem

O

extrovertido

sistêmicos.

prefeito

“Essa

Bloomberg

criança

[Dasani]

negou

tirou

que

cartas

Não sei bem por quê. É apenas o jeito como Deus trabalha. Às vezes, alguns de nós temos sorte, e outros, não The Guardian ruins [no jogo da vida]”, disse Bloomberg. “

94

.”

Em 1º de janeiro de 2014, o jornal

escrito

por

um

jovem

95

nome, William,

Negro

publicou um artigo

identificado

por

uma

foto

e

pelo

primeiro

na seção “Comment Is Free”. William, que tem dezessete

anos e está no ensino médio, identifica-se como uma das 22 mil crianças em situação de rua na cidade de Nova York e escreve sobre as enormes dificuldades

que

enfrentou

dentro

e

fora

da

escola

devido

aos

danos

materiais e psíquicos de se encontrar cronicamente em situação de rua. No texto, uma resposta direta ao perfil de Dasani escrito por Andrea Elliott no

New York Times

e aos comentários de Michael Bloomberg, William destaca

uma série de falhas: “Eu não acho que recebi cartas ruins na vida, acho que herdei

cartas

ruins

de

minha

mãe.

Mas

está

tudo

bem,

porque

ela

me

passou um ás por debaixo da minha manga e me disse para guardá-lo. Ela é

97

o ás. Enquanto ela estiver aqui, não importa quão horríveis sejam minhas cartas,

nós

96

sobreviveremos”.

William

é

um

jovem

sem

acesso

a

uma

crítica estrutural da pobreza. Apesar de fazer uso da linguagem sobre azar no jogo de Bloomberg, ele também insere outra coisa, outro conhecimento, naquele

espaço.

Ao

contrário

de

Bloomberg,

que

nega

a

existência

do

porão, William diz que essas cartas ruins não foram dadas diretamente a

ele

ele (ou, por extensão, a Dasani). Em outras palavras,

ele

não estava no jogo,

não fez essa escolha; as cartas foram passadas a ele por sua mãe, que

também lhe deu “um ás” (uma salvação, por meio de sua presença e apoio contínuos). Dito de outra forma, William relaciona diretamente sua mãe tanto com a

necessidade

de conhecimento de/para a sobrevivência

quanto

com a aquisição daquele conhecimento necessário para a sobrevivência. Sua educação está no porão e, por isso, ele alega estar preso ao mesmo

vida frágil e roída que vivemos, / eu

tempo pelo Estado e por sua mãe. Na “

sou presa, e estou presa

”.

Para retornar brevemente à Filadélfia e ao programa Cradle to Grave, do hospital da Universidade Temple: enquanto a turma de estudantes ouve sobre a morte horrível de Lamont Adams, o sr. Charles lhes diz que

as feridas que ele acha mais comoventes estavam nas mãos do menino. “Ele levanta as mãos e implora ao menino que pare de atirar […]. Ele [o menino] não tinha

se

história

preparado de

Lamont

para se

tamanha

atrocidade.”

desenrolavam,

uma

Conforme

garota

lutou

os

detalhes

para

da

manter

a

compostura. Outra escondeu o rosto no ombro de sua amiga. Lamont morreu cerca de quinze minutos após chegar ao hospital.

Seguindo esses detalhes visuais, a dra. Goldberg conclui a lição com uma

Quem você acha que tem a melhor chance de salvar sua vida? Você

pergunta: “ A

resposta

”.

dela?

97



.”

Nessa

questão,

que

chega

ao

final

de

uma

exibição visual do sofrimento Negro, leio uma condenação narrativa da “juventude urbana”; um abandono em grande escala da vida de crianças Negras à própria sorte; um fazer manifesto sob o pretexto de educação da vida das crianças Negras, que não são vistas como crianças e estão por conta

própria

enquanto

enfrentam

uma

série

de

tinham “se preparado para tamanha atrocidade”.

de (uma arma)

catástrofes,

pois

não

Vereda; a linha de recuo

.

Quando Coates

se

pudesse,

chegamos

imagina

“chamaria

ao

final

projetando o

jogo

de

o

de

“Invisible

próprio

‘Live

or

Child”,

videogame.

Die’,

e

a

lemos

que

Lemos

que,

protagonista

Dasani se

seria

ela

uma

98

menina de onze anos lutando pela própria salvação”.

Em meio aos contínuos desastres deliberados do vestígio, e como parte de sua resistência a eles, em 2013 o Black Youth Project e um grupo de

98

pessoas

ativistas

acadêmicas

Negras

redigiram

e

fizeram

circular

uma

petição a fim de que o presidente Obama fosse a Chicago para discutir a violência da cidade diante

da

100

natal.

e para falar com pessoas Negras Brown

99

e

devastação

em

curso

no

lugar

que

ele

adotou

e

apoiá-las

como

cidade

O grupo de intelectuais e ativistas que escreveu e fez circular a

petição

tinha

a

esperança

(equivocada)

de

que,

se

ele

respondesse

ao

chamado da comunidade Negra que dizia “Venha para casa, sr. Presidente, sua

cidade

precisa

do

senhor”,

ele

manifestaria

também

a

mesma

compaixão, o mesmo sentimento empático, que mostrara em Newtown, Connecticut. O grupo esperava que, ao “vir a Chicago, visitar o sul e o oeste da cidade, [ele] sinalizar[ia] ao país que a perda das famílias em Chicago é tão importante para nós como nação quanto a perda de jovens em áreas 101

nobres”.

Quero

manifesto/manifestar

manter aqui,

os

como

no

múltiplos “simples”

ou

significados “óbvio”

de

manifesto

e

como na lista de carga – chamada de manifesto de carga – de um navio. Com

meu

uso

manifesto/manifestar

de

aqui,

estou

especificamente

sintonizada com o ato de listar pessoas africanas escravizadas como carga, com a impessoalidade do espaço no porão, com o espaço da palavra tomando

o

lugar

dos

intitulada “Os”, em

nomes

Zong!

de

batismo,

com

a

forma

como,

na

idem

seção

, Philip insiste em sua própria versão, fornecendo,

na parte inferior das páginas, nomes para pessoas escravizadas, aquelas que foram lançadas e saltaram no mar. Imediatamente

após

o

assassinato

de

vinte

crianças

e

seis

pessoas

adultas na escola primária Sandy Hook em Newtown, Connecticut, e na vigília

no

local,

em

16

de

dezembro

de

2012,

um

presidente

Obama

visivelmente abalado se aproximou do microfone para proferir palavras de “conforto

e

amor

de

todos

os

Estados

Unidos”

e

a

mensagem

apenas em conjunto ‘nós’ podemos proteger as crianças



de

que

”. É com grande

dificuldade e com senso de responsabilidade que, no discurso, o presidente diz o nome de cada criança e de cada adulta assassinada naquela escola. “Esse trabalho”, diz ele,

de manter nossas crianças seguras e ensiná-las bem é algo que só podemos fazer

coletivamente.

[…]

Dessa

forma,

podemos

perceber

que

somos

Podemos dizer honestamente que estamos fazendo o suficiente para manter nossos filhos e filhas, todos eles, protegidos do perigo? responsáveis uns pelos outros. […]

Podemos reivindicar, como nação, que estamos todos juntos na tarefa

de deixá-los saber que são amados e na de ensiná-los a amar? Podemos dizer que estamos de fato fazendo

país

o suficiente para dar a todas as crianças deste

a chance que elas merecem para viver a vida com felicidade e propósito?

Refleti sobre isso nos últimos dias, e, se formos honestos conosco, a resposta é não. Não estamos fazendo o suficiente. E teremos de mudar. […]

menos um passo que possamos dar para salvar outra criança

Se houver pelo

, outra mãe, outro

99

pai ou outra cidade da dor que visitou Tucson, Aurora, Oak Creek, Newtown e comunidades de Columbine a Blacksburg antes disso, então certamente temos a obrigação de tentar. […] Nas próximas semanas, usarei todo o poder que este governo

detém

para

oferecer

aos

meus

concidadãos,

a

famílias

e

a

profissionais da educação, desde a aplicação da lei até o acesso a profissionais de saúde mental, em um esforço voltado à prevenção de mais tragédias como 102

essa, pois que escolha nós temos?

Em 29 de janeiro de 2013, Hadiya Pendleton, uma menina Negra de quinze anos, estudante do ensino médio, foi assassinada em Chicago uma semana após se apresentar na segunda posse de Obama. Em 12 de fevereiro de 2013, o presidente Obama fez seu quinto discurso sobre o Estado da União para 103

uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos. nome

de

contexto

Hadiya das

cometidos,

Pendleton

mortes

em

por

grande

nesse

armas

parte,

discurso

de

por

fogo

e

homens

e

coloca

dos

a

Obama diz o

morte

assassinatos

brancos

nos

dela

em

Estados

no

massa

Unidos,

assim como no da recente remoção de partes da Lei dos Direitos de Voto. Ele diz:

Nos dois meses desde Newtown, mais de mil festas de aniversário, formaturas e

demais

arma.

celebrações

Uma

Pendleton.

das Ela

foram

pessoas

tinha

roubadas

que

quinze

de

perdemos anos

e

Newtons e brilho labial. Ela era uma

nossa foi

vida

uma

adorava

majorette

por

jovem

uma

bala

de

chamada

uma

Hadiya

[o

doce

104

Ela era tão boa com suas

.

industrializado]

Fig

amizades que todo mundo achava que era melhor amigo ou amiga dela. Há apenas

três

semanas,

apresentando-se

por

ela

seu

estava

país

na

aqui, minha

em

Washington,

posse.

E,

uma

com

sua

semana

classe,

depois,

foi

baleada e morta em um parque de Chicago, depois da escola, a apenas um 105

quilômetro da minha casa.

Três dias depois, ele foi a Chicago para fazer outro discurso, dessa vez para estudantes da Hyde Park Academy High School. A “existência do discurso” é, para algumas pessoas, “uma vitória para a juventude e

uma

prova

de

que

Obama

responderá 106

marginalizadas dos Estados Unidos”.

às

of color

vozes

de Chicago

das

pessoas

Por um lado, o presidente Obama

foi à cidade por ter sido chamado lá, ainda que não especificamente para conversar com a comunidade Negra local sobre as preocupações acerca de sua vida e sobre a epidemia de violência que assola a cidade. Ele passou por lá no contexto de sua turnê do Estado da União e, quando chegou à Hyde Park Academy para discursar, não falou a respeito de amor, de lágrimas ou de como todo o país enviava mensagens de esperança e cura, como fizera em

Newtown.

Ele

não

centralizou

seu

discurso

no

horror

da

morte

de

pessoas Negras jovens; não falou do trauma e da resiliência delas. Em vez

100

disso, e sem surpresa, a parte do discurso que se concentrou em Chicago focou nos pais e nas famílias; no casamento, na moral e no trabalho duro; em

“integridade

e

responsabilidade,

na

disciplina

e

na

gratificação

107

adiada”.

Em outras palavras, quando Obama falou em Chicago na Hyde Park Academy, ele ativou a ortografia do vestígio. A escrita do seu tão anunciado discurso

pareceu

sofrer

de

disgrafia:

a

incapacidade

da

língua

de

ser

coerente em torno dos corpos e do sofrimento daquelas pessoas Negras que vivem e morrem no vestígio e cujos atos cotidianos insistem na vida Negra

no

vestígio.

Naquele

discurso

do

dia

15

de

fevereiro

de

2013,

a

linguagem do “nós” e de uma obrigação de empregar todos os esforços para tentar

salvar

toda/qualquer

criança

tornou-se

insustentável.

Enquanto

falava sobre seus anos trabalhando com comunidades no sul de Chicago, Obama disse:

E aqueles de vocês que trabalharam comigo, reverendo Love, você se lembra, não foi fácil. O progresso não veio rápido. Às vezes, eu ficava tão desanimado que pensava em desistir. O que me fazia seguir em frente era a crença de que, com

determinação,

esforço,

se

ajudarmos

possamos

algumas

salvar

todas

isso as

persistência

e

perseverança

talvez não possamos

mudança é sempre possível;



terá

crianças

impulsionado da

violência

suficientes,

a

ajudar todas as pessoas, mas o

Talvez não

progresso.

armada,

mas

se

salvarmos

algumas isso já terá começado a mudar a atmosfera em nossas comunidades. (Aplausos.)

Talvez não possamos

conseguir um emprego para todas as pessoas

imediatamente, mas se conseguirmos empregos para algumas a comunidade já terá

começado

encorajada.

a

se

sentir

(Aplausos.)

um

Bairro

pouco por

mais

bairro,

esperançosa quarteirão

e

por

pouco

mais

quarteirão,

um

uma

família de cada vez. […] Se reunirmos o que funciona, podemos estender mais escadas de oportunidade para que quem está trabalhando possa construir uma vida de classe média sólida para si. Porque, nos Estados Unidos, seu destino não deve ser determinado por onde você mora, onde você nasceu. Ele deve ser determinado por quão grande você se dispõe a sonhar, por quanto esforço, 108

suor e lágrimas você se dispõe a investir para realizar esse sonho.

Ele está preso a essa aritmética violenta em que a negridade destrói a figura da criança. Essa disgrafia está agindo aqui, e então todas as advertências de Obama em Chicago e em outros lugares são para nós, pessoas Negras, para nos tornarmos Humanas. O porão é o que é considerado um dado; é o lógico; é a caracterização da relação naquele momento. Obama sucumbiu à lógica do porão. Eu sou, nós estamos, presa e presas.

recuo de (uma arma)

Vereda; a linha de

.

A “agência moral” de Obama estava disposta a aceitar um cálculo que exigia a morte Negra – e, para citar Joy James, isso depende da “triagem das

101

109

demandas negras”.

Voltamos aqui para Hartman:

vidas Negras estão ainda sob perigo e ainda são desvalorizadas por um cálculo racial e uma aritmética política que foram entrincheirados séculos atrás. Esta é a vida após a morte da escravização: oportunidades de vida incertas, acesso 110

limitado à saúde e à educação, morte prematura, encarceramento e pobreza.

De

que

outra

forma

entender

a

ladainha

de

nomes

não

ditos

pelo

presidente, os rios de tristeza ignorados, os traumas deixados no vestígio das mortes Negras demasiado jovens: em Chicago, em Boston, na Filadélfia, em Sanford, na Flórida, em Atlanta, Los Angeles, Ferguson, no Missouri, em todas as cidades dos Estados Unidos? De que outra forma entender 8.063 assassinatos e mais de 36 mil pessoas atingidas por armas de fogo e mais milhares traumatizadas em apenas quinze anos, em uma pequena 111

área de Chicago, de apenas alguns quarteirões de comprimento e largura?

FIXAÇÃO DA RETINA Há um momento na entrevista de Arthur Jafa com Kara Walker no filme

Dreams Are Colder than Death

, dirigido por ele, em que ela diz que o lugar

mais

confortável

ela

localizado entre “descolamento

de

de

e

fazer

seu

sua pele

retina”.

trabalho

é

na

ocupação

de

um

espaço

e que o processo é como uma espécie de

Falando

de

seu

espaço

de

trabalho

mais

produtivo, ela diz:

Quando eu me encontro nessa fenda, nesse tipo de espaço mercurial que não é mediado por gênero nem por raça e que, constantemente, é meio que invadido […], minha pele continua tentando fixar-se novamente. […] Estou trabalhando e, de repente, tomo consciência da pele e de tudo que vem com ela e eu meio que

gosto

de

separar,

um

pouco,

não

totalmente,

isto

não

pertence

a

este

espaço. E recebo uma imagem de descolamento de retina ou algo assim. A pele é literalmente arrancada, e é meio sangrento e grotesco, e é aí onde me sinto em casa. Não é um espaço seguro para se estar, mas é onde você meio que pode 112

olhar um pouco para a face subcutânea da raça.

O

tipo

de

descolamento

de

que

Walker

fala

aqui

permite

que

forças

e

imagens poderosas emerjam e se movam através dela, mas eu penso que isso é possível apenas dentro de uma determinada área de alcance. Leio seu trabalho como produzido a partir de um tipo particular de experiência malligada-a-seu-corpo-Negro

e

às

formas

como

ele

é

aprisionado.

Obviamente, o descolamento de retina também impede a capacidade de

102

ver e, quando não tratado, pode levar à cegueira: os tipos de cegueira, por exemplo, em seu primeiro grande trabalho público encomendado para um

A Subtlety or The Marvelous Sugar Baby, an Homage to the Unpaid and Overworked Artisans Who Have Refined Our Sweet Tastes from the Cane Fields to the Kitchens of the New World on the Occasion of the Demolition of the Domino Sugar Refining Plant Complex local específico,

.

revista

Em

uma

entrevista

à

, citando Sidney Mintz, Walker fala sobre

subtleties

a fabricação medieval do açúcar, chamada de sutilezas [

]. Ele [Mintz]

fala das sutilezas como um prato medieval que aparecia na mesa de pessoas ricas. A sutileza é uma

escultura política de açúcar

. Eram cenas reproduzidas

em pasta de açúcar que a nobreza e os convidados do rei algo

que

tinha

importância

política

ou

religiosa.

Elas

reconheciam

eram

comidas

como como

113

sobremesa ou entre as refeições; havia esse belo gesto poético.

Sobre a questão da brutalidade, C. L. R. James é mais direto. Nas páginas iniciais

de

Os jacobinos negros

,

ele

detalha

algumas

das

brutalidades

cotidianas – o que significa que a qualquer momento você poderia ver esses horrores acontecendo – cometidas pela classe escravocrata. Ele escreve, sobre escravizados, que

seus

senhores

derramavam

cera

quente

em

seus

braços,

mãos

e

ombros;

despejavam o caldo fervente de cana nas suas cabeças; queimavam-nos vivos; assavam-nos em fogo brando; enchiam-nos de pólvora e os explodiam com uma mecha; enterravam-nos até o pescoço e lambuzavam as suas cabeças com 114

açúcar para que as moscas as devorassem.

Açúcar como castigo; açúcar em excesso; açúcar como dor; açúcar como prazer. Ao imaginar a

Subtlety

como um presente, Walker não convoca a

leitura de James aqui, no vestígio. Estamos, no entanto, vivendo a vida após a morte daquela brutalidade que não está no passado: Robert Shelton, um ex-funcionário da fábrica Domino e guia da exposição de Walker, relembra a dificuldade do trabalho, como era difícil para o corpo e para a alma. Ele lembra, também, de

um colega de trabalho que continuou trabalhando na refinaria, apesar de ter sido diagnosticado com câncer de fígado em estágio terminal, na esperança de conseguir que sua esposa recebesse os 20 mil dólares de benefício por morte disponível

para

as

famílias

se

os

trabalhadores

115

realizou seu desejo.

A escultura de Walker é uma “dádiva” e,

103

morressem

no

local.

Ele

ao contrário da venda de uma mercadoria, uma dádiva tende a estabelecer um relacionamento entre as partes envolvidas.* [Esse asterisco aparece no texto, 116

bem aqui.]

[…] Além disso, quando as dádivas circulam dentro de um grupo,

o

deixa

comércio

uma

série

de

relacionamentos

interconectados

em

seu

117

vestígio.

Quais tipos de relacionamentos são estabelecidos nesse ato de dar? E de receber? Depende do que está na retina. Brand também escreve sobre a retina e sua fixação em

Porta do Não Retorno a

centralidade

da

Um mapa para a

quando diz que a Porta do Não Retorno (e, portanto,

escravização)

está

em

sua

retina.

E,

outro lugar, eu leio essa história de Brand como escrita

como

em

escrevi

em

sua carne, como

uma lente que orienta sua maneira de ver, compreender e contabilizar seu lugar no mundo. Ela é, eu acho, para Brand, a moldura que produz corpos Negros como significantes da escravização e de seus excessos, assim como o fundamento que a/nos posiciona para carregar o fardo

dessa

significação,

118

que posiciona algumas de nós para conhecê-la.

Eu retorno à declaração de Brand sobre portais, cantos e encalço e às linhas que se seguem, mirar

(“ver

ou

eu sou presa, e estou presa

, e penso, também, sobre

observar

uma

coisa

ou

pessoa,

especialmente

algo

ou

alguém notável ou impressionante; segurar, manter, observar, considerar,

Oxford English Dictionary

olhar”,

).

aquela/aquele

porta/portal

(caminho)

Comecei

door(way)

[

]

este que

capítulo

está

na

com

retina

de

Brand. O que se contempla do portal? O que se contemplou para declarar portais? Albert Johnson… cai e contempla seu assassino. Oscar Grant, antes de morrer, contemplou o assassino que o alvejara, Johannes Mehserle. Há uma imagem que surgiu no vestígio do assassinato de Grant, no Réveillon de 2009:

uma

foto

recuperada

de

seu

telefone

celular

nos

dias

seguintes.

Trata-se de um registro de seu assassino [fig. 3.4]. A foto foi feita do ângulo do

porão



Grant

está

no

porão,

Mehserle

está

policiando-o.

Grant

o

capturou. A lógica do tumbeiro e do porão exemplificou a reiteração, por parte de Obama, daquele terrível cálculo da incapacidade de “salvar todas as vidas negras”:

uma

aritmética

horrível,

uma

violência

de

abstração.

Estamos

posicionadas na consciência de que vivemos (n)as vidas após a morte da escravização, sentadas no espaço com a história, em estado de emergência vivido e não declarado. A base do compromisso, o firmamento, o acesso à liberdade e à democracia, repletos de corpos Negros. Com a lente da Porta do

Não

Retorno

em

nossa

retina,

talvez

possamos

visualizar,

imaginar,

outra coisa – algo como o que Joy James chama de “zona liberada”, mesmo 119

que sitiada.

Através do tempo e do espaço, as linguagens e os aparatos do

104

porão

e

suas

violências

contemplação. entre

nós,

De

que

se

multiplicam;

maneiras

lateralmente?

assim

podemos

“Compromisso:

como

as

implementar

prender

por

o

linguagens

da

compromisso

algum

vínculo

de

Oxford

dever ou obrigação, reter como cliente ou pessoa com obrigação” (

English Dictionary

). Isso é o que Spillers chama de intramuros. Como nos

comprometemos, mudam

através

ou

do

nos

tempo

contemplamos, e

do

espaço

entre

e,

nós

ainda

de

assim,

maneiras

que

permanecem?

Comprometidas no vestígio, como – se tivermos sorte, ao menos – uma

oportunidade

(de volta à porta) em nossos corpos Negros para tentar olhar, 120

tentar ver como é.

[3.4] Foto do policial Johannes Mehserle, da Polícia Metroviária de São Francisco, tirada por Oscar Grant momentos antes de ser assassinado. 10 jan. 2009.

105

106

– a condição atmosférica (em um determinado lugar e período) no que diz respeito a calor ou frio, quantidade de luz solar, presença ou ausência de chuva, granizo, neve, trovão, nevoeiro etc., violência ou gentileza dos ventos. Além disso, a condição atmosférica considerada como sujeita às vicissitudes e em contexto figurativo ( ), aplicado a um clima intelectual, estado de espírito ou psicológico etc Fazer tempo bom, ruim etc. de um navio: comportar-se bem ou mal em uma tempestade. O tempo é descrito por condições variáveis, como temperatura, umidade, velocidade do vento, precipitação e pressão barométrica TEMPO

.

Fig.

; Espec.

lit.

. Náutico.

.

— Oxford English Dictionary

Em todos os tipos de tempo, os navios iam e vinham de Saint Louis, de Bristol,

de

Rhode

Island,

de

Nova

York,

da

Senegâmbia

e

da

costa

do

Atlântico, da África Centro-Ocidental e de Santa Helena, do Sudeste do continente africano e das ilhas do oceano Índico, do golfo do Benin, do golfo do Biafra, de Liverpool e de Lisboa, da Bahia, de Havana, de Marselha, de

Amsterdã,

de

Porto

Antônio,

de

Kingston,

do

Rio

de

Janeiro

e

de

Londres. Os navios partem um no vestígio do outro. Quinhentos anos de viagens apenas

de

roubo,

uma

pilhagem

viagem;

e

outros

escravização.

fizeram

várias,

Alguns com

o

dos

navios

mesmo

fizeram

nome

e

com

nomes diferentes, com os mesmos proprietários e proprietários diferentes, com

as

mesmas

bandeiras

e

bandeiras

diferentes,

com

as

mesmas

seguradoras e seguradoras diferentes. Os navios continuaram indo e vindo, mais de 35 mil viagens registradas. Encontro o nome deles no Banco de

Antelope Formiga The Good Jesus Diligente Black Joke Bonfim Mercúrio The Phillis Alligator Voador Tibério The Amistad Africa Africain Africaine African Gally Africano Constitucional Africano Oriental African Queen Legítimo Africano Vigilante Africano Agreeable Agreement Aleluia da Ressurreição Almas Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos: ,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

,

e

,

2

os nomes não têm fim.

Houve rebeliões a bordo de muitos desses tumbeiros. Outros navios foram interceptados ou reivindicados, em alto-mar ou no porto, por uma jurisdição

ou

outra.

Um

desses

navios

foi

o

Antelope

,

cujo

“objetivo

original”, como consta nos registros – entregar as 259 pessoas africanas sequestradas que sobreviveram a bordo, 64% delas crianças, ao porto onde 3

seriam vendidas –, foi “frustrado”; “razão agência humana”.

107

A partir de

Amada

, de Morrison, traço uma conexão entre a mãe de Sethe, assim como

as pessoas que fizeram aquela travessia da Passagem do Meio com ela, e esse navio, o

Amada

Antelope

. A figura do

Antelope

aparece pela primeira vez em

através da dança que, a distância, Sethe vê sua mãe e as pessoas

que a acompanharam na travessia dançando. Como a figura aparece aqui, eu a leio, uma vez que representa a Passagem do Meio e mais, como outras suspensões da existência Negra entre a vida e a morte e a resistência a essas

suspensões

violentas.

O

antílope

como

cosmologia

africana

e

tumbeiro assombra o romance e se repete na descrição do feto que Sethe está carregando quando ela parte pelo rio Ohio em busca de algo parecido com a liberdade, para longe da fazenda escravocrata chamada Doce Lar, no Kentucky.

Depois

que

o

professor

tenta

fazer

aquele

(lado

esquerdo

humano; lado direito animal) livro-razão de carne, Sethe foge para solo supostamente

livre,

carregando

consigo

memórias

de

outro

voo

pela

liberdade.

Ela esperou o pequeno antílope protestar, e por que pensara num antílope Sethe não sabia, uma vez que nunca tinha visto nenhum. Achava que devia ser uma invenção a que se apegara antes da Doce Lar, quando ainda era muito jovem. Daquele lugar onde nascera (Carolina talvez?, ou seria Louisiana?) ela 4

só lembrava de música e dança.

O texto continua:

Ah, mas quando cantavam. E ah, mas quando dançavam e às vezes dançavam o antílope. Os homens assim como as madames, um dos quais certamente era o dela. Eles mudavam de formas e se transformavam em outra coisa. Outra coisa sem correntes, que exigia outros pés que conhecessem a pulsação dela 5

melhor que ela mesma. Como aquele ali na barriga dela.

O

Antelope

, aqueles outros navios e o que ocorreu antes deles, neles e em

seus vestígios se repetem no texto de Morrison, e eles são o Tempo. Eles assombram enquanto Sethe dá à luz Denver em um barco “naufragado e 6

destruído”, Em 7

(ca)ir”,

no qual ela tem esperança de cruzar o rio Ohio.

Amada

,

ele

é

o

tempo

observado

e

vem,

fecha

esquecido;

e

muda

ele

é.

abruptamente;

No

meu

texto,

o

ele

“deixa

tempo

é

a

totalidade de nossos ambientes; o tempo é o clima total; e esse clima é antinegro. E, mesmo que o ar de liberdade paire ao redor do navio, ele não chega ao porão nem se volta aos corpos ali cativos. Lembremos de Margaret Garner, em quem a personagem Sethe, de Morrison, se baseia. Margaret Garner, que respira pela primeira vez o “ar de liberdade” de Ohio aos sete 8

anos

e que, doze anos depois, na noite de 27 de janeiro de 1856, foge do

108

Kentucky

e

volta

para

Ohio.

Ela

leva

consigo

suas

quatro

crianças,

seu

marido, Robert, e seus pais, Mary e Simon. Obviamente, seis anos após a aprovação da Fugitive Slave Act [Lei de escravos fugitivos], aquele “ar livre” de um “Estado livre” é negado àquelas pessoas no cativeiro que tomariam sua liberdade; a escravização é aplicada como a lei de todos os Estados Unidos.

Sua

densidade

atmosférica

aumentou;

inegavelmente,

a

escravatura tornou-se o ambiente total.

Pouco a pouco todo traço desaparece, e o que é esquecido não são apenas as pegadas, mas a água também e o que há lá embaixo. O resto é o tempo. […] Apenas o tempo 9

.

Lembremos

que

Margaret

Garner

é

recapturada

e,

em

sua

tentativa

de

negar o direito de posse daqueles que reivindicariam ela e suas crianças como

propriedade,

recapturada,

presa,

ela

mata

julgada

e

sua

filha

colocada

Mary.

a

bordo

Após

esse

episódio,

Henry Lewis

do

,

é

aquele

navio que a devolverá à escravização, dessa vez em Nova Orleans, um lugar de onde quase nenhuma pessoa escravizada conseguiu escapar. Margaret Garner marcada para aquele navio, alojada nele com seu marido e sua filha bebê, Cilla.

Henry Lewis

Em sua partida para Gaines’ Landing, Arkansas, o com o barco

Edward Howard

colide

. Margaret Garner, junto com Cilla, é lançada

ou se atira ao mar. Vinte e cinco pessoas morreram naquele acidente, entre elas a bebê Cilla. Cilla era a filha de colo que Garner tentara sem sucesso matar,

no

intuito

escravização.

Commercial

de

Quando cobriram

evitar os o

seu

segundo

The Liberator

jornais

caso,

sequestro

não

falaram

sobre

e e

o

sua

subsequente

Cincinnati Daily

tempo

ou

sobre

a

velocidade dos barcos, tampouco sobre o tráfego no rio, às vezes lotado. Os jornais

relataram

que

uma

colisão

causara

a

morte

de

Cilla

e

contaram

sobre “a expressão de alegria de Margaret Garner” ao saber que a viagem de navio conseguira matar Cilla, algo que ela fracassara em fazer. Mais uma de suas

crianças

seria

poupada

do

inferno

da

10

escravização.

Os

jornais

relataram que

um homem negro, o cozinheiro do

Lewis

, pulou no rio e salvou Margaret, a

qual, disseram, demonstrou uma alegria frenética quando soube que a filha se afogara. Relatou-se também que Garner dissera que ela própria nunca chegaria viva a Gaines’ Landing, Arkansas, o ponto para o qual fora enviada – indicando assim

sua

intenção

de

se

afogar.

[…]

Outro

relato

diz

que,

assim

que

teve

oportunidade, ela jogou a filha no rio e pulou atrás dela. […] É certo que ela 11

estava no rio com sua filha e que a bebê se afogou.

109

As únicas certezas são o rio, aquele tempo (antinegridade como clima total) e

que

Cilla,

“isso”

it

[“

”],

como

os

jornais

a

(i)nominam,

se

afogou.

(A

anulação de gênero oceânica se repete.) No

vestígio,

o

rio,

o

tempo

e

o

afogamento

são

morte,

desastre

e

possibilidade. São algumas das possibilidades impossíveis enfrentadas por aquelas

pessoas

Negras

que

aparecem

na

porta

e

habitam

no

vestígio.

Edwidge Danticat comenta sobre isso: “O passado está cheio de exemplos de quando nossa ancestralidade demonstrou uma confiança tão profunda no mar a ponto de pular dos tumbeiros e deixar-se abraçar pelas ondas. Elas e eles também acreditavam que o mar era o começo e o fim de todas as 12

coisas, o caminho para a liberdade e para a entrada em Guinin”.

São algumas dessas possibilidades impossíveis que Sethe, em

Amada

,

quer manter longe de sua filha Denver. Ela quer manter Denver longe do lugar onde estava, está e estará; quer evitar que Denver seja dominada pelo passado que não é passado. Sethe quer proteger Denver da memória e, mais do que isso, da experiência, materializada, de pessoas e lugares que agora circulam, como o clima. O que Sethe descreve é a vida após a morte da escravização,

e

essa 13

“esperando você”.

é

uma

“imagem

de

pensamento”

que

está

por

aí,

Como Sethe diz a Denver, as memórias reanimam os

lugares e espaços da escravização pós-emancipação nominal. Rememória

re-memory

[

] é a palavra de Sethe para isso, e está por aí, esperando você: “O 14

que eu lembro”, diz ela, “é um quadro flutuando fora da minha cabeça”.

O

que Sethe lembra, rememora e encontra no agora é o clima de estar no vestígio. Esse é o clima, e mesmo que o país, cada país, qualquer país, tente esquecer, e mesmo que “cada árvore, cada haste de grama dela [da fazenda] 15

morra”,

essa

linchamento,

é

a

atmosfera:

transformada

lei

em

de

escravos,

Jim

e

Jane

transformada Crow

e

em

outras

lei

do

lógicas

administrativas que relembram as condições brutais de escravização após o evento da escravização ter supostamente chegado ao fim. Nos

Estados

Unidos,

a

escravatura

é

imaginada

como

um

evento

singular, mesmo que tenha mudado ao longo do tempo, mesmo que sua duração tenha se expandido numa suposta emancipação e mais além. Mas a

escravização

evento

ou

não

era

fenômeno

singular;

climático

ela

que

era,

sim,

uma

provavelmente

singularidade ocorrerá



um

próximo

a

determinada hora, data ou conjunto de circunstâncias. A emancipação não tornou a vida Negra livre; ela continua a nos manter naquela singularidade. E a brutalidade não era singular; era a singularidade da antinegridade.

Singularidade: um ponto ou região de densidade de massa infinita em que espaço e tempo são infinitamente distorcidos por forças gravitacionais e que é considerado o estado final da matéria caída em um buraco negro 16

.

110

No que estou chamando de tempo, a antinegridade é tão alastrada

quanto

clima.

condição

O

tempo

exige

mutabilidade

e

improvisação;

ele

é

a

o

atmosférica de tempo e lugar; ele produz novas ecologias. Ecologia: o ramo da

biologia

que

trata

das

relações

dos

organismos

entre

si

e

com

o

ambiente físico; o movimento político que visa proteger o meio ambiente, em especial da poluição. Lemos em

Amada

uma

ecologia

do

navio

que

persiste até o presente: “no começo as mulheres estão sempre longe dos homens e os homens longe das mulheres tempestades sacodem a gente e 17

misturam os homens nas mulheres e as mulheres nos homens”. trans*forma aquelas

no

a

existência

vestígio

Negra.

também

Mas

as

produzem,

que

foram

enviadas,

independentemente

O tempo

detidas

do

e

tempo,

suas próprias ecologias. Quando a única certeza é o tempo que produz um clima alastrado de antinegridade, o que devemos saber para nos movermos por esses ambientes nos quais o impulso é sempre em direção à morte Negra? Um exemplo de conhecimento para sobreviver a tais ecologias vividas e produzidas chega até nós por meio do poema “Portulano para pessoas à

ruttier

deriva na Diáspora”, de Dionne Brand. “O portulano [

] oral”, escreve

ela, “é um longo poema com instruções de navegação que os marinheiros decoravam e recitavam de memória.” O “portulano” (histórico e presente) “continha as rotas e as marés, as estrelas e talvez o gosto e o sabor das 18

águas, a friúra, a salinidade; tudo para se encontrar o caminho no mar”. Aparecendo

no

final

de

Um mapa para a Porta do Não Retorno

,

o

“Portulano” de Brand tomou nota do tempo, e esse poema aparece como uma ferramenta de abertura de caminhos, um presente de conhecimento que indica que – e como – a vida Negra é vivida no vestígio. As pessoas que habitam a Diáspora estão

À deriva, despossuídas, desertificadas. Náufragas em desolação, abandonadas no

mundo.

Elas

foi,

são

vagadas,

vagueiam

como

espíritos

que

mortos

cortaram, baniram, isolaram, recusaram, fecharam a porta, negligenciaram, renunciaram, separaram. Ela deixou mais palavras para elas. Deixadas para trás. […] Todas indisponíveis para si mesmas, abertas ao mundo, cortadas no ar.

[…]

E

não

importa

onde

no

mundo,

esse

espírito

não

é

cidadão,

não

é

nacional, não é batizado, não tem sexo, esse espírito é despido de toda a sua carga, bolsa e bagagem, saco, sacola, mala, mochila e bornal, e só sustenta o seu próprio peso que não é nada, que não tem memória e tem dificuldade de 19

lembrar, pesado de tanta leveza, dolorido de tanto sorriso.

Longo

poema

para

nós

que

estamos

no

vestígio

daqueles

navios,

o

“Portulano” de Brand não contém instruções de navegação convencionais sobre país nem sobre pouso seguro (e poderia ter? nós que estamos no vestígio

não

podemos

usar

tais

meios

111

convencionais);

contém

o

que

migrantes presentes/futuros podem encontrar, recusar e refazer em suas viagens. O “Portulano” toma como terreno aquele primeiro mergulho no despertencimento,

retrata

como

dádiva

essa

ausência

de

país.

Leio

o

“Portulano”, então, como uma ferramenta de abertura de caminhos e uma recusa a nações, países, cidadanias; é um barômetro, uma leitura dessas pressões atmosféricas e uma resposta a elas e às mudanças previsivelmente imprevisíveis nos climas que, não obstante, permanecem antinegros. Os barcos partem de todos os tipos de tempo, de Zlitene e Trípoli e de outros

pontos

ao

longo

da

costa

da

Líbia.

embora possam vir a ser chamados de

Esses

barcos

Left-to-Die

não

[barcos

têm

dos

nome,

deixados

para morrer]. Aquelas pessoas africanas de outros países que viveram e trabalharam

na

Líbia

partem,

agora,

devido

à

guerra

e

à

destruição

contínua da Líbia e a tudo o que ocorreu desde então. A atmosfera mudou radicalmente, em especial em relação a pessoas “africanas Negras”, então elas sobem a bordo daqueles barcos “naufragados e destruídos”.

“Os líbios que me levaram à Itália não são humanos”, disse ele. “Eles falam com a arma, não com palavras […]. Empurraram oito pessoas da Nigéria ao 20

mar.” […] “E eles jogaram meu amigo no mar. Todos se afogaram.”

Adolescentes equipes

da

que

ong

chegaram

Save

the

ao

porto

Children

italiano

sobre

como

de

Lampedusa

pessoas

que

contaram

migravam

às

dos

países da África subsaariana costumavam ser mantidas sob o convés, privadas de água e luz solar. […] O clima era muito ruim. Algumas pessoas tinham medo. 21

Elas não queriam ir, mas não havia caminho de volta.

Os barcos partem um após o outro. E, quando os migrantes chegam à costa, muitas vezes são devolvidos ao porão na forma do campo, do diante.

Também

podem

ser

Lager

, do centro de detenção e assim por

devolvidos

ao

navio.

Deixados

para

trás,

colocados à deriva, mais uma vez.

ASPIRAÇÃO éramos rebentos de amantes condenamos os pobres e tínhamos sido trazidos a esta floresta pelo Comitê de Fábrica onde nascemos ou. em alguns casos. desde a infância. Muitos de nós éramos loucos alguns eram idiotas e alguns poucos sofriam de estaminas histerias, deficiências de vitaminas & alergias que se comportam como mentirosas tubérculos e pressão

112

arterial/doenças sanguíneas. resultam da viciosa reprodução interna de nossos ancestrais impenitentes “The Black Angel”



KAMAU BRATHWAITE,

Não foi por ter descoberto uma cultura própria que o indochinês se revoltou. Foi “simplesmente” porque, sob vários aspectos, respirar se havia tornado impossível para ele Pele negra, máscaras brancas .



FRANTZ FANON,

Novamente,

Zong!

,

quando

“Qual

‘sepultura

é

a

NourbeSe

palavra

líquida’?”,

a

para

Philip trazer

palavra

que

indaga, corpos

Philip

na

de

seção

volta

encontra

é

“Notanda”,

d’água?

exaqua

De 22

.

de

uma

Então,

perguntamos novamente: O que significaria ficar a salvo e defender quem morreu – nossos e nossas “ancestrais impenitentes”; aquelas pessoas que estão realmente mortas e aquelas a quem o Estado se recusa a conceder a vida; aquelas que o Estado persiste em sufocar até o último suspiro? Tenho pensado

muito

sobre

aspiração.

Não

no

sentido

convencional.

Ou

pelo

menos não no sentido que talvez venha mais facilmente à mente, aquele em que aspiração está ligada a Não

Retorno,

vinculada Unidos,

ao

a

com

o

navio

movimento

articulações

oportunidade

e

de

com

o

classe.

transporte Também

oclusão

daquela

– essa conexão com a Porta do nunca

está

amarrada,

mortal

que

é

longe

nos



e

Estados

continuamente

reanimada e chamada de Sonho Americano. (Esse Sonho Americano é um contraponto ao sonho de Brathwaite em suas

Dream Stories

e no “Dream

Haiti”. Sonhar o Haiti é um empreendimento absolutamente diferente. É entrar e habitar o sonho e a realidade da revolução.) Venho pensando no que é necessário, em meio à singularidade, à antinegridade virulenta em todos os lugares, sempre remotivada, para manter o fôlego no corpo Negro. Qual portulano, internalizado, é agora necessário para fazer o que estou chamando de trabalho de vigília como aspiração, para manter a respiração no

corpo

Negro?

Tenho

pensado

em

aspiração

nos

complementares da palavra: a retirada de fluidos do corpo matéria

estranha

respiratória da

fala.

e

(geralmente

como a

Aspiração,

fluido)

respiração audível

aqui,

duplica,

nos

pulmões

e

sentidos

a absorção de

com

a

corrente

que acompanha ou compõe o som

triplica,

da

mesma

forma

que,

com

a

adição de um ponto de exclamação, Philip transforma e quebra o nome próprio

Zong song

canção [

em

Zong!

. Esse ponto de exclamação transforma a palavra em

]/gemido/canto/grito/respiração.

É para a respiração que quero me voltar agora. Para a necessidade de respirar,

para

espaços

onde

respirar

e

para

os

espaços

que

tiram

nosso

fôlego no vestígio em que vivemos; e para as formas como respondemos, “com

maravilhamento

e

admiração,

113

vocês

ainda

estão

vivas,

como

hidrogênio,

23

como

oxigênio”.

Philip

diz

que

a

pausa

no

poema,

a

respiração,

é totalmente subversiva em face do tipo de brutalização generalizada, quando as pessoas são reduzidas a homem

negro

negro

, mulher

e idem, idem, idem.

Você presta atenção a uma pessoa, e é um ato tão incrível – e que transborda para

todos

os

outros

idens

–,

prestar

atenção

apenas

a

essa

uma

e

cuidar

somente dela. Porque tudo o que podemos fazer é cuidar de uma por uma. E é por isso que foi tão importante para mim nomear essas almas perdidas nas 24

notas de rodapé desde os primeiros poemas.

A

falta

de

ar

e

o

arquivo:

os

Zong!

acumulam em

arquivos

da

falta

de

ar.

Os

detalhes

se

, e, para nós, o que pode significar prestar atenção

nesses arquivos? O que podemos descobrir neles? Em

1982,

protestos negros

de

Daryl

organizações

poderiam

porque

as

‘pessoas

Gates,

estar

artérias

normais’”.

em

mais

deles 26

chefe

prol

polícia

dos

abrem

anos

de

Los

direitos

suscetíveis

não

Nove

da

à

tão

depois,

civis

morte rápido

mas

Angeles,

por

quando

disse

que 25

estrangulamento

quanto

apenas

“provocou

as

sete

artérias

meses

de

após

o

espancamento que quase levou Rodney King à morte em 3 de março de 1991,

quando

ficamos

maravilhadas

por

hidrogênio, como oxigênio

ele

ainda

estar

vivo

como

(“

”), “alguns especialistas táticos do Departamento

de Polícia agora veem o vídeo de policiais golpeando o sr. King 56 vezes como uma oportunidade de convencer o público de que o estrangulamento é,

na

verdade, 27

suspeitos”. polícia

Na

tivessem

Revisão

de

últimos

cinco

mais

seguro

cidade sido

Queixas anos

de

uma

Nova

banidos

Civis e

e

York,



mais

recebeu

meio,

e

forma

mais

embora de

1.128

os

duas

casos

reclamações

humana

restringir

estrangulamentos

décadas,

de

sobre

de

“o

Comitê

estrangulamento a

prática

da de

nos

‘persistem

e

28

parecem estar aumentando’”.

“Eu não consigo respirar.” Em 17 de julho de 2014, Eric Garner estava na rua em Staten Island quando foi abordado por um policial do NYPD “sob suspeita de venda de cigarros avulsos e não tributados”. O sr. Garner é (e estou lendo/ouvindo ecos de Margaret Garner em tudo isso) abordado pelo NYPD

e responde ao enquadro dizendo:

Por quê? Toda vez que você me vê, você quer mexer comigo. Estou cansado disso. Isso acaba hoje. Por que você está me incomodando? […] Eu não fiz nada. […] Estou apenas parado aqui. Não vendi nada. Porque toda vez que você me vê, você quer me parar, você me atormenta. […] Estou cuidando da minha vida, policial. Estou cuidando da minha vida; por favor, me deixe em paz. Eu te disse 29

da última vez, por favor, me deixe em paz.

114

Então dois outros policiais abordam o sr. Garner, e ele repete seus apelos para não ser tocado: “Não me toquem. Por favor, não me toquem”. E então o primeiro policial, Pantaleo, aplica uma chave de braço no sr. Garner e o leva para o chão. Onze vezes, durante esse ataque, o sr. Garner diz: “Não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não

consigo

respirar,

não

consigo

respirar,

não

consigo

respirar,

não

consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar”, até que ele para de respirar. Embora uma equipe de socorristas tenha

chegado

aspiração.

O

ao

local,

legista

não

da

lhe

cidade

presta

nenhuma

considerou

a

assistência.

morte

do

sr.

Nenhuma

Garner

um

homicídio, e o NYPD, apesar das evidências visuais e sonoras, manteve sua alegação de que a causa desse assassinato (para o qual eles não encontrarão nenhum responsável, com exceção do sr. Garner)

não

foi estrangulamento,

e, como de praxe, o assassino do sr. Garner não foi indiciado. A lista de não acusações no vestígio dos assassinatos de pessoas Negras cometidos pelo Estado continua a crescer: Michael Brown, John Crawford, Aiyana StanleyJones,

Sandra

Bland,

Jonathan

Ferrell,

Miriam

Carey,

Tamir

Rice,

Rekia

Boyd, *. Mais uma vez, a existência Negra aparece no espaço do humano asteriscado

como

garantia

para

a

circulação

branca,

que

se

coloca

na

condição do humano, e como aquilo que subjaz a ela. Sempre, a existência

Vereda; a linha de recuo de (uma arma). Vestígio: o rastro deixado na superfície da água por um navio. Vigília; velar; velório: uma vigília ou velório realizado ao lado do corpo de alguém que faleceu Negra parece alojada entre a carga e o ser.

.

Foi logo após o assassinato de Eric Garner, em 17 de julho de 2014, que o júri do julgamento de Ted Wafer anunciou o veredicto de culpado pelo assassinato

de

Renisha

McBride,

de

dezenove

30

anos.

Em

julho

do

ano

anterior, havíamos visto um júri inteiramente formado por mulheres (não Negras)

anunciar

assassino

de

um

veredicto

Trayvon

Martin,

de

inocente

de

dezessete

a

George 31

anos.

Zimmerman, O

veredicto

o

no

julgamento de Wafer criou, talvez, um pouco de espaço para respirar antes do

próximo

ataque,

da

próxima

puxada

de

ar,

da

respiração

presa.

No

tempo do vestígio, não se pode confiar, apoiar nem tolerar a aplicação, pelo Estado,

de

algo

que

ele

chama

de

justiça,

mas



podemos

prender

a

Não foi por ter descoberto uma cultura própria que o indochinês se revoltou. Foi simplesmente porque, sob vários aspectos, respirar se havia tornado impossível para ele respiração por um certo tempo. “





32

.”

Dia

após

dia

as 33

porão de um navio;

histórias

chegam.

Cinquenta

pessoas

sufocadas

no

três pessoas sufocadas na prisão ao longo de um fim

de semana nos Estados Unidos. O que explica Fanon não é a especificidade de

um

evento

único

ou

conjunto

de

eventos

infinitamente

repetíveis

e

repetidos, mas a totalidade dos ambientes em que lutamos; as máquinas em que vivemos; o que estou chamando de o tempo.

115

Atlantic

Em uma entrevista na seu

livro

sobre

ciência

racial

e

sobre

sobre

Breathing Race into the Machine

,

a

invenção

e

uso

do

espirômetro,

instrumento que mede a capacidade pulmonar, Lundy Braun diz:

Em

1864,

um

ano

antes

do

fim

da

Guerra

Civil,

foi

lançado

um

estudo

de

grandes proporções para quantificar os corpos dos soldados da União. Uma descoberta importante, no que viria a ser um relatório de 613 páginas, foi que os soldados classificados como “brancos” tinham uma capacidade pulmonar

Full Blacks

maior do que aqueles rotulados “pretos” [ O

estudo

se

baseou

no

espirômetro

Mulattoes

] ou “mulatos” [



instrumento

médico

].

que

mede

a

capacidade pulmonar. Esse dispositivo fora usado anteriormente por médicos

plantations

de do

que

para mostrar que escravos negros tinham pulmões mais fracos

cidadãos

brancos.

O

estudo

da

Guerra

Thomas

Jefferson,

pulmonar”

dos

no

qual

negros,

ele

foram

parecia

validar

essa , de

comentou

pulmões

Civil

Notes on the State of Virginia

perspectiva. Já na época do lançamento de

sobre

a

usados

disfunção como

do

um

“aparelho

marcador

de

diferença, um sinal de que corpos negros eram aptos para o campo e nada além

disso.

(O

trabalho

forçado

era

visto

como

uma

forma

de

“vitalizar

o

sangue” da fisiologia negra imperfeita. Dentro dessa lógica, a escravização é o 34

que teria mantido os corpos negros vivos.)

Daryl Gates e as práticas de policiamento contemporâneas são os herdeiros da história do espirômetro, que produziu corpos Negros como defeituosos e monstruosos. Há

também

uma

conexão

entre

os

pulmões

e

o

clima

weather

[

]:

as

propriedades supostamente transformadoras de respirar ar livre – aquilo que retira o manto da escravização – e as propriedades transformadoras de ser

“livre”

para

percorrem

respirar

narrativas

de

ar

puro.

liberdade.

Esses Mas

discursos,

quem

tem

com

acesso

frequência, à

liberdade?

Quem pode respirar livremente? Tais narrativas não amenizam essa falta; essa falta é a atmosfera de antinegridade. Lembremo-nos, também, de que pessoas

africanas

[

] permitisse, para que algum ar fresco entrasse em seus pulmões e

weather

cativas

eram

levadas

para

fora

do

porão,

se

o

clima

para que se exercitassem. (Obviamente, isso se devia ao seu valor como carga e não visava à saúde dessas pessoas. Isso é ser, propriedade, para o outro.) O monitoramento do tempo foi uma parte importante da gestão das

plantations

. A consciência dos sistemas ecológicos era necessária para o

crescimento e cultivo de certas safras (estações de cultivo, colheita etc.) e para a expectativa de vida (ou ausência dela) da população encarregada do trabalho

forçado.

consistente

em

Lemos:

seus

“Fazendeiros

registros

técnicas de contabilidade nas locais

de

trabalho

de

de

anotavam

trabalho

plantations

pessoas

como

35

”.

escravizadas,

116

o

tempo

parte

da

de

maneira

revolução

das

O clima determinava práticas e

essas

práticas

diferiam

de

plantation

para

plantation

pessoas

escravizadas

debaixo

de

nessas

chuva,

plantation

acreditavam

enquanto

condições.

pouquíssimo

e de região para região. Alguns proprietários de

No

outros

geral,

descanso

do

acreditavam

que

lhes

porém,

trabalho,

que

elas

trabalhavam

atribuíam pessoas

mesmo

trabalhar

tarefas

pesado

“mais

escravizadas

quando

debaixo

mais

de

os

leves”

tinham

gestores

chuva

produzia

da um

miasma ou “ar ruim”. Um fazendeiro da Jamaica relata: “nem um único dia de

trabalho

perdido

para

o

tempo

ao

longo

de

dois

36

anos”.

Independentemente das práticas específicas, o trabalho duro e implacável debaixo do sol e da chuva, na umidade e na aridez, o corte da cana, a adubação com esterco, a capinagem e aração do solo, todos tiveram efeitos deletérios e, muitas vezes, mortais para os pulmões e corpos de pessoas escravizadas. A

escravização,

corpos

de

portanto,

pessoas

operacionalizada

exauriu

escravizadas,

como

aquilo

que

simultaneamente ao

passo

mantinha

a

que

os

pulmões

era

respiração

e

os

imaginada

e

e

vitalizava

o

corpo Negro. Nós, agora, estamos vivendo no vestígio de tal pseudociência, vivendo

um

tempo

em

que

nosso

trabalho

não

é

mais

necessário,

mas

nossa carne, nosso corpo, ainda é a matéria com a qual a “democracia” é produzida.

Voltamos

a

Fanon,

que

escreveu:

“Não



ocupação

de

território, por um lado, e independência das pessoas, por outro. É o país como

um

todo,

desfigurados

sua

[…].

história,

Sob

essas

sua

pulsação

condições,

a

diária,

respiração

que do

são

contestados,

indivíduo

é

uma

37

respiração observada […]. É uma respiração de combate”.

Qual é a palavra para manter e devolver o fôlego ao corpo? Qual é a palavra para o modo como devemos abordar os arquivos da escravização (para

“contar

a

história

que

não

atualidades da extração violenta calamidades ocupação,

e

catástrofes

colonialismo,

que

pode

na

às

ser

contada”)

escravização vezes

imperialismo,

e

e

respondem

turismo,

as

histórias

e

as

no encarceramento; as pelos

militarismo

nomes ou

de

ajuda

e

intervenção humanitárias? Quais são as palavras e as formas pelas quais devemos continuar a pensar e imaginar lateralmente, através de uma série de

relações

palavra

à

no

qual

porão, cheguei

em

múltiplos

para

tal

cotidianos

imaginação

fôlego no corpo Negro em clima hostil é

e

Negros

para

aspiração

do

manter

e

vestígio? devolver

A o

(e a aspiração é violenta

e salva vidas). Duas formas adicionais de trabalho de vigília como práxis para imaginar chegam aos registros de anotação Negra e revisão Negra.

ANOTAÇÃO NEGRA, REVISÃO NEGRA 117

– adicionar notas a (uma obra literária ou de autoria). Uma anotação é um metadado (por exemplo, comentário, explicação, marcação de apresentação) anexado a texto, imagem ou outros dados. Frequentemente, anotações referem-se a uma parte específica dos dados originais — Oxford English Dictionary ANOTAR

.

– a) a ação de adequar ou colocar em uma forma definida; (agora) trabalhar ou esboçar o material de origem em uma forma distinta, especialmente na forma escrita. b) a ação ou o processo de revisão ou edição textual, principalmente em preparação para publicação; (também) um ato de revisão editorial. Obs. A ação de recuar; resistência, reação — Oxford English Dictionary REVISAR

espec.

.

Aponto para as práticas de anotação Negra e revisão Negra como outros exemplos do trabalho de vigília. As ortografias do vestígio exigem novos modos de escrita, novos modos de tornar sensível. A revisão chega até nós de

maneira

mais

familiar

por

meio

daquelas

“informações

sensíveis”

cobertas de preto em determinados documentos do governo que contêm o que não temos permissão para ler. O filme

End Credits

, de Steve McQueen,

consiste em seis horas de imagens e narração de arquivos revisados do FBI sobre

Paul

Robeson.

Enquanto

eu

assistia

e

escutava,

ficou

novamente

muito óbvio para mim que muito da vida Negra intramuros e do trabalho social

e

político

é

revisado,

subtendido por lógicas da

invisibilizado

plantation

,

por

para lentes

o

presente

isoladas

e

e

o

futuro,

arquiteturas

brutais. Existe, na Diáspora Negra (e eu incluo aqui o Continente, devido às histórias e aos presentes coloniais e da trans*migração), uma longa história da vida Negra, das vidas Negras anotadas e revisadas. Há, também, uma contínua resistência a essas anotações e revisões violentas, bem como uma ruptura delas. Uma conferência de 2015 sobre retratos Negros teve como subtítulo

Imaging the Black Body and Re-staging Histories imagear imaginar

. Toda vez que

leio esta palavra,

imagear

, eu a leio duplamente. Ou seja, como

“representar a forma externa de”, e também como

,

, “formar uma

imagem mental ou conceito de; supor ou presumir; a capacidade de formar imagens mentais de coisas que não estão fisicamente presentes ou nunca 38

foram concebidas ou criadas por outrem”. a

“arte

de

criar

retratos”

(imagem

e

Se entendemos o retrato como

texto)

e

como

“descrição

gráfica

e

detalhada”, de que maneira poderíamos entender uma variedade de formas de criação de imagens Negras públicas contemporâneas em/como recusas de

acesso

às

lentes,

às

disciplinas

e

às

demandas

mortais

dos

mundos

antinegros em que vivemos, trabalhamos e lutamos para tornar visíveis (para

nós

mesmas,

se

não

para

outrem)

118

todos

os

tipos

de

passados,

presentes

e

futuros

Negros

possíveis?

Muito

do

trabalho

da

imageação

Negra e do trabalho que essas imagens fazem no mundo tem sido sobre tais

Cutting a Figure: Fashioning

imaginações da plenitude da vida Negra. Em

Black Portraiture

, Richard Powell escreve que

[4.1] Steve McQueen, End Credits, 2012. Sequência de arquivos digitalizados, som, projeção contínua. Instalação no Art Institute of Chicago, 2013. Cortesia do artista; Marian Goodman Gallery e Thomas Dane Gallery, Londres. uma parcela significativa de retratos de pessoas negras se destaca do resto do gênero, e não apenas por causa das realidades históricas e sociais de racismo. Em vez disso, a diferença muitas vezes está no contrato artístico entre quem faz o retrato e a pessoa retratada; negociações conscientes ou inconscientes 39

que investem sujeitos negros de capital social.

Enquanto Powell fala de imaginações negociadas e recíprocas de artistas Negres e demais pessoas Negras, eu quero pensar nesses retratos fora de nossas

próprias

imageação

e

imaginação,

nas 40

Copeland, parecemos “forçadas a aparecer”.

quais,

como

diria

Huey

Há uma longa história e um

presente de resistência à ruptura e remoldagem de imagens de negridade e de pessoas Negras. Há uma longa história e um presente de imageação e imaginação

da

negridade

e

de

pessoas

Negras

outramente,

além

da

contenção da longa e brutal história das violentas anotações da existência Negra: o que Spillers, por exemplo, chamou de hieróglifos da carne; uma

119

história que é “a crise da referencialidade, as ficções da pessoalidade e a lacuna

ou

incomensurabilidade

entre 41

existência à qual ele dá significado”.

o

nome

próprio

e

a

forma

de

Estou pensando aqui, introduzindo

aqui, na lacuna, a anotação Negra e a revisão Negra não como opostas, mas como modos trans*versais

e

coextensivos de imaginar outramente.

Dito de outra maneira, quero pensar a anotação em relação à disgrafia e à ortografia do vestígio; em relação às fotos de pessoas Negras em risco que aparecem

tão

regularmente

em

nossa

vida,

tenham

elas

origem

no

cotidiano ou em desastres extraordinários; tais imagens de pessoas Negras sofrendo costumam ser esquecidas. Isso acontece mesmo, ou até mesmo de modo

especial,

pretendem presente.

o

pretendem

manifesta

tornar

42

resgatar

quando

a

“humanizar”

“humanidade”

pessoas

Negras,

que

sabemos



isto

é,

estar

Para não deixar dúvidas, assim como não estou interessada em

menina

termo

interessada

em

“Humano”,

entendida

linguagens

de

(ver

resgatar

o

a(s)

capítulo

“O

existência(s)

erroneamente

desenvolvimento.

As

navio”),

também

Negra(s)

como

relações

para

“Homem”, entre

esses

não

a

estou

categoria

ou

para

as

significados

e

termos e as condições materiais que (re)produzem continuam a produzir nossas mortes rápidas e lentas. Estou interessada em maneiras de ver e imaginar respostas ao terror vivido pela vida Negra e pelas formas como a habitamos, modos

somos

como

habitadas

vivemos

esse

por

ela

terror



e

a

e

como

recusamos.

Interessam-me

vivemos

apesar

dele.

os Ao

considerar essa relação entre imagear e imaginar nos registros de anotação Negra e revisão Negra, quero pensar sobre o que essas imagens suscitam e sobre

o

que

elas

nos

incitam

a

fazer,

pensar

e

sentir

no

vestígio

da

escravização – ou seja, em um presente contínuo de sujeição e resistência. A

anotação

aparece

como

aquele

asterisco,

em

si

uma

marca

de

anotação, que marca a trans*formação para a negridade ontológica. Fotos de pessoas Negras que circulam como retratos em locais públicos diversos são geralmente acompanhadas por algum tipo de nota ou outro metadado. Essa anotação pode estar na própria fotografia ou ser uma resposta a uma fotografia

desumanizadora,

complementares

que

para

marquem

a

que

a

imagem

ferida

e,

então,

viaje

com

mais

do

informações que

a

ferida.

Sabemos que, quando se trata de imagens de pessoas Negras em circulação, elas

muitas

vezes

não

fazem,

de

fato,

o

trabalho

de

imageação

que

esperamos. Existem muitos exemplos disso: o vídeo do espancamento de Rodney

King

pela

polícia

em

1991,

o

assassinato

de

Oscar

Grant,

os

assassinatos brutais de 21 mulheres trans nos Estados Unidos a partir de novembro

de

2015,

todas

as

imagens

em

circulação

do/após

o

furacão

Katrina e o terremoto de 2010 no Haiti, as mortes em curso nas travessias transatlânticas, transmediterrâneas e transcontinentais que se estendem por toda a Diáspora Negra global. Esse é o caso, mesmo que encontremos imagens de pessoas Negras sofrendo em locais públicos diversos sendo

120

apresentadas como convites para a ação ou para a empatia. Na maioria das vezes,

essas

imagens

funcionam

como

interpelação,

no

sentido

althusseriano, para a pessoa não Negra. Ou seja, essas imagens servem para confirmar o

status

, a localização e as opiniões já consolidadas na ideologia

dominante sobre aquelas exibições de corpos Negros espetaculares cujos significados permanecem inalterados. Fomos lembradas por Hartman e por muitas outras pessoas de que a repetição das violências visuais, discursivas e estatais, assim como das violências cotidianas e extraordinárias cruéis e incomuns

implementadas

contra

pessoas

Negras,

não

leva

a

um

cessar

dessas violências nem causa compaixão ou algo parecido com empatia, seja fora ou dentro das comunidades. Essas repetições geralmente funcionam para solidificar e tornar contínuo o projeto colonial de violência. Com esse conhecimento

em

devemos empregar

mente,

agora

que

tipos

de

práticas

éticas

de

olhar

e

de

ler

, em face de tais ataques? O que as práticas de

anotação Negra e de revisão Negra podem oferecer? O que se segue são três exemplos do que estou chamando de anotação e revisão textual/visual Negras. Revisões e anotações que aspiram ver e ler outramente; ler e ver além do que está enquadrado; ver algo além de uma visualidade lógica

é,

como

plantation

da

escreve

que

que

tentou,

Nicholas

Mirzoeff 43

administrada. de

modo

Em

argumenta,

“Home”

consistente,

subtendida

[Lar],

“esculpir

Toni

os

pela

Morrison

acréscimos

de

engano, cegueira, ignorância, paralisia e pura malignidade embutidos na linguagem

usada

tornem-se

não

para

falar

apenas

de

raça

disponíveis

para mas

que

outros

também

tipos

de

percepção 44

inevitáveis”.

Estou

imaginando que o trabalho de anotação e de revisão Negras seja encenar o movimento inevitável para esses outros tipos de percepção – um contraataque ao abandono, outro esforço para tentar olhar, para tentar ver, de 45

verdade.

Retorno palavra

então,

Navio

mais

uma

vez,

para

a

fotografia

da

garotinha

com

a

colada em sua testa [fig. 2.5]. Essa garotinha apareceu no

início deste trabalho e ocupa seu centro. Pouco depois de aquele terremoto catastrófico ter atingido o Haiti em 12 de janeiro de 2010, entrei no arquivo de

fotos

que

emergiu

dele.

Não

era

a

primeira

vez

que

eu

entrava

cautelosamente nesse arquivo, mas nessa ocasião fui parada por aquela fotografia de uma jovem menina Negra, de dez anos no máximo. Um terço da imagem está embaçado. Mas, do lado direito, ainda se pode ver a grama e a lama, algo preto em que ela está deitada e, ao fundo, outras coisas (uma figura? um maço de roupas? um cigarro? algo mais?). O rosto da garotinha se vê com nitidez; é o que está em foco. Ela está viva. Seus olhos estão abertos. Ela está deitada no que parece ser uma maca preta; sua cabeça está sobre uma bolsa de gelo, e é possível decifrar o que está escrito nessa bolsa de gelo e algumas das palavras, como

É

121

instruções de

uso e descarte marca registrada .

É

possível

ler

também

as

enrolar descartar

palavras

,

e

. Há alguns escombros na maca. Há duas feridas à mostra

acima do olho direito da menina e outra menor abaixo dele. Um pedaço de papel está preso em seu lábio inferior. Ela está vestindo o que parece ser uma bata hospitalar, estampada e de algodão. Ela está olhando diretamente para a frente, ou diretamente para a câmera de quem a fotografa, ou além da câmera. Ela parece estar em choque. Seus olhos pretos e grandes, com seus

cílios

exuberantes,

parecem

vidrados.

O

olhar

dela

me

alcança.

Afixado em sua testa está aquele pedaço de fita transparente com a palavra

Navio A

escrita. Que expressão é essa nos olhos dela? O que eu faço com isso?

primeira

anotação

foi

aquela

palavra

Navio

.

O

que

se

pode

ver

além

daquela palavra que ameaça bloquear todo o restante? Quando me deparei com a imagem dessa garotinha com a palavra

Navio

colada na testa, foi o seu olhar que me parou. Então, como se ocupando o foco, a palavra

Navio

ameaçou obliterar tudo e qualquer outra coisa que eu

pudesse ver. O que essa palavra estava fazendo lá, me perguntei? Mas voltei várias vezes àquela foto e àquele rosto para me perguntar sobre a expressão em seus olhos. Ao que eu estava sendo convocada pelo/com o olhar dela em minha direção e com o meu em sua direção? Ao longo dos anos, desde que me deparei pela primeira vez com aquela imagem dessa menina, voltei a ela várias vezes para tentar explicar o que eu estava vendo ou pensava que

poderia

ver.

Para

onde

ela

está

olhando?

Quem

e

o

que

ela

está

olhando ou procurando? Quem pode olhar para trás? Ela sabe que tem um pedaço de fita na testa? Ela sabe o que esse pedaço de fita diz? Ela deve estar com medo. Ela sabe que já está ligada a um navio e que está destinada a mais um? Seus olhos olham para mim, como os olhos de Delia, como os 46

de Drana. Em

um

movimento

contrário

à

forma

como

a

revisão

fotográfica

geralmente funciona – quando os olhos são cobertos com uma tarja e o resto do rosto permanece visível –, aqui incluo apenas os olhos de Delia e de Drana. Eu executei minha própria revisão das/nas imagens etnográficas de Agassiz, a fim de me concentrar nos olhos delas. Eu reviso as imagens para focar em seus olhares individuais e coletivos, fora e além dos brancos que reivindicaram poder sobre elas e também fora e além do instrumento pelo

qual

estão

sendo

sujeitadas

de

maneiras

que

imaginado ou antecipado. Eu quero ver os olhares

nunca

delas

poderiam

ter

fora, além e através

do tempo. Delia e Drana. Em meu olhar para elas, percebo em seus olhos um “eu” e um “nós” que está e estamos segurando algo, está e estamos 47

aguentando, está e estamos presas, ainda, imóveis, silenciosas. Drana

sentadas

silenciosas; protegidas

(ainda;

ainda), apenas

imóveis;

vestidas

por

cílios

e

silenciosas)

despidas

(ainda;

aqui da vida anagramatical da palavra

122

então

(ainda;

imóveis;

still

e

de



imóveis; 48

silenciosos).

Delia e

(imóveis;

silenciosas), Lembro-me

(ainda; imóveis; silenciosas) para

as

pessoas

escravizadas

e

para

todas

as

pessoas

escravatura. Ao longo de um parágrafo, em

still

dois

Amada

Negras

no

vestígio

da

, Morrison elabora o que

significa para Sethe, que, àquela altura de sua gravidez, “andava sobre pés

que

serviam

para

ficar

parada

still

[

].

[…]

Parada,

junto

a

um

caldeirão; parada, junto a um batedor de manteiga; parada na banheira e na 49

tábua de passar”.

Isso me faz lembrar de

ainda still [

], como se repete no

“Verso 55” de Dionne Brand, marcado como está lá, com maravilhamento pela nossa sobrevivência e tempo de residência do vestígio:

sentimos

pena

deles,

carinho

e

amor;

eles

ficaram

felizes

por

nós,

ainda

estávamos vivas. Sim, ainda estamos vivas, dissemos. E retornamos para lhes agradecer. Vocês ainda estão vivas, disseram. Sim, ainda estamos vivas. Eles nos olharam como violetas; como chás de violeta, nos beberam. Dissemos aqui estamos. Disseram, vocês ainda estão vivas. Dissemos, sim, sim, ainda estamos vivas.

Delia e Drana, marcadas, paradas, devido ao longo tempo de exposição do daguerreótipo, que exigia que alguém ficasse imóvel por longos períodos, e porque ainda eram do navio, mas não sairiam imediatamente do navio, assim como seus pais, identificados como Renty (Congo) e Jack (Guiné). A garotinha

que

sobreviveu

ao

terremoto

de

2010

no

Haiti

também

é

descendente do navio e está marcada, ainda, e mais uma vez, para seu porão. Eu olhei de novo para aquela foto e marquei sua juventude, a cicatriz diagonal que corta a ponte de seu nariz em direção à sobrancelha, aqueles cílios exuberantes que se enrolam na pálpebra, as feridas à mostra, aquele

imóvel a vida frágil e roída que vivemos, / eu sou presa, e

pedaço de papel em seu lábio e uma folha em sua bata e no cabelo. “

aqui em cílios, em estou presa

[…]

”.

Eu marquei a violência do terremoto que depositou aquela garotinha lá, ferida, naquele arquivo, e a violência, em nome do cuidado, da colocação daquela palavra escrita na fita e colada em sua testa e continuei olhando,

Eu tive de

porque isso não poderia ser tudo o que havia para ver ou dizer.

tomar cuidado

. (Um tipo diferente de cuidado e uma lente diferente das

que

foram

empregadas

no

vestígio

do

Zorgue

,

aquele

navio

chamado

Cuidado.) Eu estava procurando por mais do que a violência do tumbeiro, do navio de migrantes e de pessoas refugiadas, do navio porta-contêineres e do navio médico. Eu vi aquela folha em seu cabelo e, a partir dela, fiz minha

própria

anotação

que

pode

revelar

embora precária, que sempre esteve lá.

tranças ainda perfeitas o terremoto acontecer

. E eu penso:

essa

imagem

em

uma

vida,

Aquela folha está presa em suas Alguém trançou o cabelo dela antes de 50

.

123

[4.2] Joseph T. Zealy, Delia, nascida no país, de pais africanos, filha de Renty, Congo. Os olhos de Delia. Detalhe. Cortesia do Museu de Arqueologia e Etnologia Peabody, Universidade Harvard, PM # 35–51/053040 (arquivo digital # 60742034)

[4.3] Joseph T. Zealy, Drana, nascida no país, filha de Jack, Guiné, plantation de B. F. Taylor Esq. Os olhos de Drana. Detalhe. Cortesia do Museu de Arqueologia e Etnologia Peabody, Universidade Harvard, PM # 35–5-1/053041 (arquivo digital # 60742035)

A MENININHA QUE ESCREVEU “OI” Ela chegou a nós nas primeiras páginas do

New York Times

do dia 10 de

dezembro de 2014, em um artigo intitulado “Schools’ Discipline for Girls Differs by Race and Hue”, seguido da legenda “Mikia Hutchings, doze anos, cujos escritos na parede da escola levaram a um processo criminal juvenil, e seu advogado, Michael J. Tafelski, à espera de uma reunião realizada no mês passado por um comitê estadual da Geórgia que pesquisa disciplina 51

escolar”.

A escrita é descoberta na parede de um banheiro da escola. Duas

estudantes

do

ensino

fundamental

são

acusadas

de

vandalismo:

Mikia

Hutchings, que é Negra, e sua amiga branca (cujo nome não consta no artigo). difícil

Quando

acreditar

a

família

que

ela

de

Mikia

estava

é

alertada

envolvida

na

sobre

as

degradação

acusações, da

escola

acha e

de

propriedade pessoal. Em seguida, a família relata às autoridades que não pode pagar a multa de “indenização” de cem dólares à escola e à aluna cujos tênis foram danificados.

Apesar de ambas as estudantes terem sido suspensas por alguns dias, Mikia teve

de

enfrentar

uma

audiência

disciplinar

na

escola

e,

algumas

semanas

depois, a visita de um policial uniformizado da delegacia local, que entregou à sua avó papéis que acusavam Mikia de contravenção e, potencialmente, de um 52

crime.

124

Já que sua família não pôde pagar o dinheiro, Mikia teve de pagar um preço muito maior.

Como parte de um acordo com o Estado para que as acusações sejam retiradas no

tribunal

de

menores,

Mikia

admitiu

as

alegações

de

invasão

criminosa.

Mikia, que é negra e estadunidense, passou o verão em liberdade condicional, sob toque de recolher a partir das sete horas da noite, e teve de completar dezesseis

horas

de

serviço

comunitário,

além

de

escrever

uma

carta

de

A amiga dela, que é branca, foi liberada depois que os pais pagaram a restituição desculpas a uma aluna cujos tênis foram danificados no incidente.

53

.

O artigo se solidariza com Mikia e tenta trazê-la para o foco, no entanto ela desaparece na descrição. Lemos no parágrafo introdutório:

É

preciso

inclinar-se

para

ouvir

Mikia

Hutchings

falar,

pois

sua

voz

mais

parece um sussurro. Em boletins escolares, ela é descrita como uma aluna “muito focada”, alguém que segue as regras e cumpre todas as tarefas. Então, foi

uma

surpresa

encrencaram

para

após

sua

terem

avó

quando

escrito

nas

Mikia,

paredes

doze

de

um

anos,

e

uma

banheiro

na

amiga

se

escola

de

54

ensino fundamental Dutchtown, no condado de Henry, no ano passado.

Veja e ouça Mikia Hutchings. Ela é uma criança, uma jovem garota Negra, pequena e de apenas doze anos. Na fotografia ela aparece, capturada, a parte inferior das costas encostada em uma parede e o tronco inclinado para a frente, ao lado da porta de uma sala de aula. Ela está vestindo uma blusa

com

listras

horizontais

cinza

e

pretas,

calças

de

elastano

pretas,

botas pretas com a parte superior dos canos de cor branca, dobrada para fora,

e

uma

jaqueta

leve

azul-clara

isotérmica

com

capuz

e

colarinho

branco, com caimento e punhos brancos que combinam com o cano branco de suas botas. Ela olha para baixo e para o lado, e os dedos de sua mão esquerda seguram um dedo de sua mão direita. (Ela segura a si mesma, se segura em si mesma.) Que olhar é aquele em seu rosto? Como a vemos na foto, ela está fisicamente oprimida por seu representante legal, um homem branco, pelas acusações contra ela e por todas as autoridades convocadas e que

estão

determinadas

a

discipliná-la.

Essas

autoridades,

a

polícia,

os

tribunais, a escola e assim por diante, colocam algemas nela; elas foram convocadas

para

transformar

essa

menina

em

uma

criminosa.

Como

engloba o modificador Negra, “menina”, aqui, novamente, aparece como anagramatical.

“‘Quando

uma

pessoa

do

sexo/gênero

feminino,

estadunidense e Negra de pele escura age, há uma certa preocupação em relação à sua agressividade meio masculina’, disse o dr. Hannon, ‘a elas não conhecerem

seu

lugar

de

sexo/gênero

125

feminino,

de

55

mulher’.”

Mikia

Hutchings está presa, e, nessa detenção, mais uma vez, “menina” está em questão.

[4.4] Mikia Hutchings, de doze anos, e seu advogado, Michael Tafelski, esperam por uma audiência disciplinar no edifício do Conselho de Educação do condado de Henry, em McDonough, Geórgia, em 18 nov. 2014. Hutchings e uma amiga branca enfrentaram ações disciplinares muito diferentes para o mesmo pequeno incidente de vandalismo, parte do que algumas pessoas enxergam como preconceito em um estado onde meninas negras são cinco vezes mais propensas a ser suspensas da escola do que meninas brancas. © Kevin Liles/The New York Times/Redux

Se anotarmos e revisarmos o primeiro parágrafo do artigo do

Times

New York

, podemos talvez encontrar o ponto de vista de Mikia. Por meio da

revisão, podemos ouvir o que ela tem a dizer em sua própria defesa em meio

a

forma,

como com

localizar

um

a

fazem

nossas

aparecer

próprias

contraponto

à

apenas

para

anotações

força

do

e

desaparecer. revisões

Estado

Dito

Negras,

(cuidado

como

de

outra

podemos força;

“o

fornecimento do que é necessário para a saúde, o bem-estar, a manutenção e

a

proteção

jornal

de

alguém

ou

algo”)

The New York Times

.

A

que

partir

a

colocou

desse

na

modo

primeira analítico,

página

do

podemos

começar a ver e ouvir Mikia, cuja única ofensa foi escrever a palavra “Oi” na parede sendo uma garota Negra sem recursos financeiros.

126

O fato de eu estar argumentando no sentido de que Mikia seja vista não deve ser entendido erroneamente como um argumento pró-representação ou política representacional. Em vez disso, a anotação e a revisão Negras são maneiras de tornar visível a vida Negra, mesmo que momentaneamente, através da lente da porta. A anotação e a revisão Negras encontram o anagramatical Negro e o fracasso de palavras e conceitos para se manterem na/sobre a carne Negra. Pensemos,

agora,

solicitadas

pelas

nas

anotações

famílias

de

e

revisões

pessoas

de

segundas

assassinadas,

em

meio

autópsias a

tantos

assassinatos. A segunda autópsia realizada em Michael Brown foi solicitada por sua família e equipe jurídica para comprovar lesão. Em outras palavras, aquela segunda autópsia foi exigida para mostrar o dano causado a Michael Brown, alvejado por pelo menos seis tiros, incluindo dois na cabeça. Tal como no caso de Lamont Adams, as feridas de bala nas mãos de Michel Brown sugerem que ele estava em uma postura de rendição. Ao garantir a segunda autópsia, sua família tentou interromper a disgrafia que escrevera uma versão dos eventos dilacerada pela antinegridade. Não foi o suficiente ver o corpo de Michael Brown à mostra na rua por horas a fio em um dia quente de agosto, fora do alcance de sua mãe e seu padrasto. Não foi o suficiente ver o sofrimento de sua mãe, vê-la e ouvi-la gritar e cair nos braços de sua família. Não foi o suficiente ver seu padrasto perturbado no acostamento da pista com uma placa improvisada com a frase: “A polícia acabou de assassinar meu filho”. Não foi o suficiente. E então sua família acrescentou suas próprias anotações; a família tentou apresentar os danos no

corpo

de

Brown,

corpo

desenhado

assim,

não

recuperar

o

foi

o

vistos

pela

suficiente.

corpo

dele.

por

seus

olhos,

antinegridade

A

Não

[fig.

pode

constante

ser

de

modo

4.5]. o

E,

a

suficiente.

produção

de

contestar

obviamente, Eles

morte

não

Negra

aquele mesmo podem

como

é/

necessária para nos levar de volta à singularidade. Mas, assim como o clima

127

está sempre propício para a morte Negra, a singularidade também produz resistências e recusas Negras.

[4.5] Relatório de autópsia preliminar delineando lesões no corpo de Michael Brown. Cortesia do dr. Michael M. Baden. Revisão

e

anotação

Evoco aqui o filme

Negras

Filhas do pó

são

maneiras

de

imaginar

outramente.

, de Julie Dash. O filme foi produzido ao

longo de dez anos e emanou da política e da estética que tiveram início

128

com

o

trabalho

de

Dash

como

parte

da

la

Rebellion,

juntamente

com

cineastas como Charles Burnett e Haile Gerima. Quando foi lançado em

Filhas do pó

1992,

se

tornou

o

primeiro

filme

dirigido

por

uma

mulher

Negra estadunidense a ser distribuído nos cinemas dos Estados Unidos. O filme

atingiu

imediatamente

uma

audiência

de

mulheres

Negras

e,

ao

mesmo tempo, passou a ser visto por muitos outros públicos como filme estrangeiro, porque não tratava do que lhes era familiar. O objetivo de Dash e do diretor de fotografia Arthur Jafa era desfazer imagens e visões coloniais que ocupam e reproduzem o descolamento de retina que, então, reproduz o porão como posição e destino. Esse objetivo é perceptível desde a primeira cena do filme, que se passa em um barco. Naquela Snead,

cena

de

fotógrafo

abertura, que

ela

somos

apresentadas

contratou

para

a

Viola

documentar

a

Peazant;

migração

ao de

sr. sua

família; à sua prima distante Yellow Mary; e a Trula, amante de Yellow Mary. O sr. Snead mostra a Yellow Mary e Trula o caleidoscópio que trouxe

Kalos

consigo. Ele explica a etimologia das palavras: “

Skopein

56

… [ver]”.

… Bela.

Eidos

… Forma.

Enquanto ele fala, Yellow Mary olha para Trula através

do caleidoscópio, e Viola explica ao sr. Snead que o comércio de pessoas para a escravização, a importação de “pessoas africanas frescas”, continuou 57

“dessas ilhas” por muitos anos após ter sido banido. para

o

público

interroga acabou,

a

entrada

conhecimentos

o

tempo

que

em

uma

cena

estabelecidos:

os

arquivos

não

visual

o

Essa cena estabelece

complexa

tempo

em

registram.

que

O

à

medida

a

que

escravização

fotógrafo

com

seu

equipamento óptico, as conversas que acontecem no barco e a maneira deliberada

como

as

personagens

se

olham

e

desviam

o

olhar

umas

das

outras preparam o público para algo formalmente bonito e que desafia seus hábitos de visualização presumidos. A desaceleração de algumas das cenas de

24

para

formas

de

adicional

16

quadros

ver,

é

e

por

nesses

criado

para

segundo

casos,

o

é

também

quando

público

o

entrar

uma

filme

na

fica

cena.

reconfiguração lento,

Dash

um

conta

das

espaço que

lhe

disseram

repetidamente

que

não

havia

mercado

para

o

filme.

As

distribuidoras

ressaltavam o visual espetacular do filme, assim como as imagens e a história, por

serem

tão

diferentes

e

instigantes,

mas

mesmo

assim

a

resposta

58

consistente era que não havia “mercado” para esse tipo de filme.

Com

esses

espaços

adicionais

e

com

suas

escolhas

visuais

e

estéticas

marcando o longo tempo da escravização, Dash envereda em suas próprias revisões Negras. Ou seja, sua revisão é sua decisão de mostrar os traços da escravização

como

o

azul

índigo

que

permanece

nas

mãos

das

pessoas

anteriormente escravizadas que trabalharam na extração e morreram por

129

causa do veneno dos poços de índigo nas Sea Islands, na costa da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. Embora Dash tivesse pleno conhecimento de que as manchas índigo não seriam mais visíveis quarenta anos após o fim jurídico da escravização de pessoas como bens móveis, ela escolheu essa imagem como traço de escravização, em vez de imagens de costas com cicatrizes de chicoteamento ou de ferro na pele, assim como outras marcas mais

familiares,

que

escravidão

são

muito

visíveis

em,

por

12 anos de

exemplo,

, filme de Steve McQueen (2013). Para Dash, o índigo é o que

permanece como traço, e esse traço posiciona o público espectador de um modo

diferente

em

relação

ao

fato

de

que

as

vidas

após

a

morte

da

escravização são longas e a expectativa de vida das pessoas escravizadas que trabalharam nos poços, ao contrário, era muito baixa.

Cerca de cinquenta a sessenta mãos trabalham na fábrica de índigo; e o efeito do índigo nos pulmões das pessoas que trabalham nessas fábricas é tamanho que elas nunca vivem mais de sete anos. Toda pessoa que foge e é capturada vai parar nos campos de índigo, campos cercados por toda parte, para que elas 59

não possam escapar novamente.

Segundo McQueen, trabalho

nele

“é

12 anos de escravidão

manter

a

tensão”.

Ele

é um filme “sobre amor”, e seu

continua:

“Eu

adoro

a

ideia

de

apenas estar em tempo real, estar presente, estar lá. Eu sou cineasta, então sempre penso: ‘Quando é que o limite é alcançado? Quando chegamos à 60

duração certa?’”.

Se pensarmos no filme

anos

Filhas do pó

em conjunto com

12

, podemos nos perguntar onde e quando está o limite no último filme,

ou

melhor,

na

maioria

dos

filmes

ocidentais

contemporâneos,

em

suas

representações do sofrimento Negro (do vestígio, do porão, do clima, do navio). Onde está o limite, a respiração, a pausa, onde se consideram a circulação, a produção e a recepção de imagens do sofrimento Negro e, mais importante, o prazer nas vidas Negras? O longo tempo/a longa cena, o tempo de residência da vida Negra sempre na morte, ou em seu limiar, continua.

Como

em

12 anos de escravidão

(seja

no

espancamento

viciosamente prolongado de Patsey ou na tomada de quatro minutos de enforcamento forma

de

contínua

Northrup), e

gratuita.

o

sofrimento

Não

é

assim

Negro em

entra

no

cotidiano

Filhas do pó

e

em

de sua

visualização da vida Negra nas décadas após o fim da escravatura, quando uma família está prestes a migrar do Sul ao Norte dos Estados Unidos. Não é assim no belíssimo Abderrahmane

Sissako,

Timbuktu

que

conta

(2014), filme do cineasta mauritano

uma

história

de

vida

vivida

na

imanência e iminência da morte e no meio de mudanças muito violentas.

Timbuktu

torna tangíveis as maneiras como a vida é vivida no vestígio e

sob a pressão de mudanças tremendas. No filme de Sissako, o ano é 2012, e

130

a pressão é a tomada de poder da cidade de Tombuctu, no Mali, pelo grupo Ansar Dine. O grupo baniu a música; obrigou as mulheres a cobrirem o rosto, a cabeça e as mãos; proibiu jogos; e introduziu a lei islâmica rigorosa. Sissako

visualiza

a

vida

em

meio

a

essas

imposições

que

mudam

drasticamente a forma como as pessoas em Tombuctu vivem. Há um grupo de meninos que – quando não estão sendo vigiados por homens e meninos armados, alguns dos quais não são muito mais velhos do que eles – jogam uma partida completa de futebol lindamente imaginada e executada sem futebol,

porque

o

futebol

foi

proibido.



uma

jovem

capturada

e

considerada culpada do crime de fazer música em conjunto em um cômodo com uma amiga e dois amigos. Ela é sentenciada a quarenta chicotadas. Em meio a esse espancamento público cruel, seu choro se torna uma canção. (Do

Zong

song

[que também significa “canção” (

)] para o

Zong!

61

de Philip.)

Esse é, novamente, o tempo do portulano oral, e as canções nos ajudam a encontrar nosso caminho; elas são nossos mapas internalizados no longo

“Cantamos para a morte, cantamos para o nascimento. Isso é o que fazemos. Nós cantamos.” Timbuktu tempo de nosso deslocamento.

Há outra mulher que aparece várias vezes em

vezes

ela

está

incomodada. coloridas

de

Ela

se

movendo

usa

tecido

um

que

pela

vestido

formam

cidade

fantástico uma

longa

, e todas as

sem

ser

feito

de

cauda

perseguida tiras

nem

brilhantes

índigo.

Essa

e

mulher

recusa-se a cobrir a cabeça, as mãos ou o rosto; ela para o trânsito, ela passa por homens e meninos armados, ela se recusa a se acovardar diante deles; ela ri de seus comandos, esses homens que chegaram e tomaram Tombuctu,

os

aplicadores

da

lei

islâmica

que

fumam

escondido

e

têm

longas conversas entre si sobre música e futebol profissional. Dentre as mulheres da cidade, ela não está só em sua recusa; todas as mulheres em

Timbuktu Há

resistem, mas apenas essa não enfrenta represálias.

um

momento

impressionante

no

filme,

quando

essa

mulher

fantasticamente vestida aparece na tela e fala. Tomamos conhecimento de que seu nome é Zabou, e, quando ela fala, o Haiti irrompe no

Timbuktu

de

Sissako. Zabou fala, e as palavras dela nos levam de volta ao “Dream Haiti”, 62

de Brathwaite, e a seu colapso de tempo e espaço. levam

de

volta

ao

sonho,

à

promessa

e

à

As palavras dela nos

centralidade

do

Haiti

nas

imaginações da Diáspora. Zabou diz o seguinte: “Foi no 12º dia de janeiro de 2010, exatamente às 4h53 da tarde, na mesma hora de Miami. Às 4h53 da tarde, hora de Porto Príncipe, a terra tremeu e eu me vi aqui, exatamente às 9h53 da noite”. Zabou pede a um dos homens que foram convocados a Tombuctu, de todas as partes do continente, que confirme o ocorrido. Mas o homem responde que ela estava em Tombuctu muito antes de o terremoto acontecer. Ao que Zabou retruca: “O que é o tempo?”. Ela continua: “O tempo não importa. O

131

terremoto é meu corpo, as rachaduras, sou eu! Rachadura aberta da cabeça aos pés e vice-versa, meus braços, minhas costas e meu rosto, partidos. O que é o tempo? Eu estou partida. Docinho, você e eu somos iguais. Nós dois estamos partidos. Rachados em todos os lugares” [figs. 4.6-4.8]. Tempo. pensava”.

Amada Amada

Em

Em

,

,

o

tempo

Sethe

tem

“nunca

funcionava

dificuldade

em

do

jeito

acreditar

que

nisso 63

“algumas coisas vão embora. Passam. Algumas coisas ficam”.

Seiso

porque

O tempo

aparece aqui rachado. O tempo está rachado como o corpo de Zabou, como a vida de Zabou, e não apenas a vida dela. Ela diz ao jovem armado (que parece

ter

sido

dançarino

em

sua

vida

anterior)

que

ele

também

está

rachado. Zabou não acredita no tempo, pelo menos não no tempo linear. Ela vive no tempo trans*Atlântico, em um tempo oceânico que não passa, um tempo em que o passado e o presente se roçam. “O tempo não importa”, Zabou diz novamente, e eu a ouço falando da longa duração, do tempo de residência, do vestígio. Zabou se move pelo filme de Sissako, arrastando aquela longa cauda índigo, azul como o mar, um v como uma onda; como um vestígio; é uma rachadura que a acompanha, uma rachadura que a precede. Sissako abriu uma fenda em Tombuctu e inseriu o Haiti; Sissako abriu uma fenda em Tombuctu e dela emergiu o Haiti. A cauda azul de Zabou, como o índigo nas mãos das pessoas anteriormente escravizadas em

Filhas do pó

, como os

chás de violeta e a química violeta do “Verso 55” de Brand, como água, como as rupturas do comércio transatlântico e transárabe de pessoas para a escravatura,

surge

e

abre

o

filme

para

dentro

e

para

fora

de

todas

as

violências, e muito mais que isso, como tantos tremores secundários, como tantos vestígios. O trabalho que os filmes

Filhas do pó Timbuktu e

realizam

é trabalho de vigília. E, no discurso de Zabou, ouço uma conexão com o que Beverly Bell

Fault Lines: Views across Haiti’s

descreve, após o terremoto, em seu livro

Divide

.

Escrevendo

primeiros

tremores

sobre

o

pararam

trabalho e

sobre

iniciado

as

no

pessoas

Haiti

pobres

assim

que

que

os

tiveram

de

continuar a viver em meio à destruição contínua, Bell afirma: “Sabia-se que a devastação do país – tanto antes do terremoto como agora – não era 64

inevitável”.

O

trabalho

que

estou

teorizando

como

trabalho

de

vigília

ocorreu no Haiti em meio às buscas por pessoas feridas, ao luto por quem morreu ou estava morrendo e ao amparo às pessoas que pairavam no limiar entre a vida material e a morte. Esse foi um trabalho que o povo haitiano sabia que teria de ser feito, e, para executá-lo, as pessoas se basearam em “princípios e práticas alternativos que a população tem tentado estabelecer 65

há tempos”.

Existem um antes e um depois do terremoto: mas não existe 66

o antes do evento do desastre em curso. tempo?

132

Como, depois de tudo, dividir o

[4.6-4.8] Fotogramas do filme Timbuktu.

© 2014 Les Films du Worso/Dune Vision/Arches Films/ARTE France Cinéma/Orange Studio. Cortesia de LE PACTE Ouço, na indignação de Zabou, um eco da indignação da romancista Fatou Diome

Diome que

lavando



essas

em

uma

citei

no

praias



entrevista. capítulo e

eu

Repito

3:

“Se

escolho

aqui,

essas

portanto,

pessoas

cuidadosamente

cujos

fossem brancas, a Terra inteira estaria tremendo agora”. capturando

a

insistência

com

que

as

palavras

corpos

minhas 67

Danticat

as

de

estão

palavras



Ouço um eco de

mulheres

haitianas

se

cumprimentam no presente. Elas dizem: “Como estamos hoje, irmã?” “Tô 68

feia, mas tô aqui”.

CODA 133

Aspiração

Aspiração.

é

a

palavra

à

qual

cheguei

para

manter

e

colocar

fôlego no corpo Negro. Vivendo, como argumentei que vivemos, no vestígio da escravização, em espaços onde não esperavam que sobrevivêssemos, nos quais somos punidas por sobreviver e por ousar reivindicar ou abrir espaços para algo como a liberdade, ainda reimaginamos e transformamos espaços para uma ética de cuidado (leia-se reparo, manutenção, atenção), assim como para

existir

sua prática, uma ética de ver e de

no vestígio como consciência;

como uma forma de lembrar e observar que começou com a Porta do Não Retorno

e

continuou

no

porão

do

navio

e

na

costa.

Como

alguém

que

sobreviveu ao navio contemporâneo e ao porão diz: “Não podíamos colocálo no meio do barco, porque o barco tinha sido danificado e a água estava entrando.

Se

tomamos

muito

o

deixássemos cuidado

daquele

com

ele.

jeito,

Gosto

ele

de

teria

coisas 69

pessoas se importam. É tudo o que nós temos”. violência

da

abstração,

um

relato

de

splash

ido,

.

assim



Então,

quando

as

Esse é um relato contra a

sobrevivência

ao

navio

quando

o

vestígio, o navio, o porão, o clima e suas (não) sobrevivências se repetem e se repetem. Um relato do

cuidado

como risco compartilhado entre pessoas

Negras trans*asteriscadas. Dionne

Brand

trabalhos. Em

nos

oferece

tais

relatos

de

cuidado

em

Um mapa para a Porta do Não Retorno

todos

os

seus

, ela se move de “A

Circumstantial

Account

of

a

State

of

Things”

para

outro

tipo

de

relato

circunstancial tanto em seu “Portulano” para a sobrevivência na Diáspora como no “Verso 55”. No trabalho de Brand, aquela Porta do Não Retorno marcou

o

local

real

e

metafórico

que

“explica

as

formas

como

nós

observamos e somos observadas como pessoas. […] Ela existe como o chão que

pisamos. 70

porta”. ele;

Todo

gesto

de

nosso

corpo

gesticula

em

direção

a

essa

Na elaboração de Brand, a porta existe ao lado do arquivo e contra

existe

justaposicionalmente

como

um

relato

de

“uma

coisa

sobre

a

qual, na verdade, nós não sabemos, um lugar que não conhecemos. Mas ainda assim ela existe como o chão que pisamos”. No primeiro exemplo, Brand mapeia como viemos parar nos lugares que vivemos e aquele “rasgo no

mundo”

que

71

qualidade

de

permitido

por

descartável

e

também

ser”.

um

os

é

Brand arquivo

deposita

“uma

ruptura

mapeia que

aí,

o

na

desejo

de

transforma

traídos.

Brand

história,

uma

dizer

corpos começa

mais

Negros o

ruptura

Mapa

do em

na

que

o

carne

com

essa

ruptura, e o fecha com uma canção; o “Portulano para pessoas à deriva na Diáspora”

é

sua

oferenda

para

nos

guiar

em

relação

a

como

viver

no

vestígio. O “Portulano” é um guia para a indisciplina e para a ilegalidade; um mapa de deserdação e habitação; um guia de como, viajando com pouca bagagem, alguém pode simplesmente viver livre do – “recuse, bata a porta no” – peso da responsabilidade de nossa morte planejada. O “Portulano” de Brand

simplesmente

insiste

em

nós,

134

pessoas

Negras,

em

toda

a

nossa

grandeza contra aquela disgrafia que insistiria na pequenez da existência Negra no vestígio. Ao fazer isso, Brand examina os arquivos do cotidiano que emergem de atos como coletar, pensar justaposicionalmente e “sentar

“Devem, não possuem nada. […] E vagam como se não tivessem século, como se pudessem tecer o tempo, como se pudessem se sentar em um café em Bruges, fumar maconha em Tucson, no Arizona, e mascar coca no alto dos Andes para aplacar o frio.” no espaço com a história”.

72

Viver com a morte imi/a/nente, na sombra daquela porta, no vestígio da

escravização,

verificação após

a

morte

centros

com

constante

de

as de

passagens

do

documentos,

Mediterrâneo os

partus sequitur ventrem Lagers

do

enquadros

,

detenção,

os

,

as

a

prisões

obstruídas, aleatórios,

dificuldade

e

uma

com

as

respiratória,

infinidade

de

a

vidas os

outras

formas de vigilância. “Eu quero fazer mais do que recontar a violência que 73

depositou esses vestígios no arquivo.” foto da linda garota com a palavra imagens

de

Roy

DeCarava

que

Então, volto mais uma vez para a

Navio

colada em sua testa e para duas

parecem

se

relacionar

com/antecipar

a

primeira imagem. As

imagens

vêm

do

livro

de

The Sound I Saw

fotos

.

A

primeira

fotografia é de um garotinho Negro, de cerca de cinco anos. A imagem é cortada num close, e é o rosto dele que vemos; é o rosto dele que está em foco. O rosto dele ocupa a maior parte da imagem. Ele parece estar vestindo uma bata hospitalar; o material da bata parece ser gaze, ela é branca e tem um decote em v. Ele está deitado em um lençol branco ou de cor clara. Ele tem uma pequena marca na sobrancelha direita. Parece preocupado; franze ligeiramente a sobrancelha. O olhar dele, como o da garota, me alcança através do tempo e do espaço. Seus grandes olhos castanhos olham para algo, alguém, nós. Em

No vestígio: Negridade e existência

, eu quis tornar presente a pessoa

que aqueles olhos miram. Eu quis ficar no vestígio para fazer ressoar uma simples nota de cuidado. Eu a chamo de simples nota porque ela considera como clima as condições contemporâneas de vida e morte Negras. Outra cena textual que exemplifica essa nota de cuidado da qual estou falando, esse

corriqueiro

som

de

cuidado

para

além

dos

lugares

chega através do personagem Homem do Hai no romance

onde

estamos,

Amada

, de Toni

Morrison. O Homem do Hai está “na corrente guia” da fileira formada por um grupo de homens acorrentados que trabalham na prisão para a qual Paul

D

é

vendido

em

Alfred,

Geórgia,

Estados

Unidos,

após

ter

sido

capturado durante sua fuga da Doce Lar:

“Haaaiii!” Era o primeiro som, além de “Sim, senhor”, que um negro tinha permissão de falar toda manhã, e a corrente guia dava a esse som tudo o que ele tinha.

135

“Haaaiii!” Nunca ficou claro para Paul D como ele sabia quando gritar aquela bênção. Chamavam-no de Homem do Hai e Paul D pensou, de início, que os guardas lhe diziam quando dar o sinal para os prisioneiros se levantarem dos joelhos e dançarem ao som da música do ferro forjado. Depois, duvidou disso. Até

hoje

vinha

o

acreditava anoitecer

que

eram

o

“Haaaiii!”

a

ao

amanhecer

responsabilidade

que

o

e

o

“Huuuuu!”

Homem

do

Hai

quando assumia

porque só ele sabia o que era o bastante, o que era demais, quando as coisas 74

terminavam, quando a hora chegava.

O Homem do Hai faz soar e segura a nota que afasta os homens com quem está

acorrentado

da

beira

do

precipício.

E,

quando

a

inundação

vem,

a

chuva que quase os mata trancados no subsolo, na lama e no lodo, naquela jaula chamada de tumbeiro em terra – essa nota fornece os meios através dos quais Paul D e os outros 45 homens escapam daquele navio-prisão em Alfred, Geórgia, Estados Unidos. A

segunda

fotografia

de

DeCarava

é

de

uma

mulher

Negra

e

desse

mesmo garotinho. Ela olha na direção contrária à da câmera, e seu rosto está voltado em direção ao menino. Ela segura um termômetro na mão direita. Nessa foto o garotinho está sentado na cama, de pernas cruzadas, na frente dela. Ele está bebendo água em um copo; ela está olhando para ele. A camisa branca dele agora parece ser de um pijama que combina com a calça que desta vez vemos que ele está usando. A legenda da foto nos diz que

a

mulher

é

sua

mãe.

Não

parece

que

eles

estão

em

um

quarto

de

hospital. Parece que ele está em casa. Há uma cômoda encostada à parede, com pertences em cima. Há uma grade na frente da janela. Eu imagino a garotinha

com

Navio

colado

na

testa

ao

lado

desse

garotinho

de

meio

século atrás. As fotografias têm motes semelhantes; o menino e a menina têm uma semelhança notável; ela é uma menina doente, ele é um menino doente, os dois aguardam atendimento. Mas Roy DeCarava tirou as fotos do garotinho e do garotinho com a mulher que é sua mãe: DeCarava, o famoso fotógrafo Negro da vida Negra que recusou um documentário, que recusou que suas imagens de pessoas Negras fossem usadas para enquadrar pessoas

não

vistas,

para

incitar

nossa

coisificação.

Portanto,

as

fotografias

de

DeCarava também são notavelmente diferentes. E é através do cuidado e da luz e sombra do olhar de DeCarava que essa mulher, a mãe do menino, aparece aqui em uma cena que atinge uma nota simples de cuidado. Volto a “Portulano para pessoas à deriva na Diáspora”, de Brand, como uma canção que aponta uma direção e contém misericórdia, uma canção que

contém

todas

as

coisas

que

somos.

O

“Portulano”

dela

escreve

e

contém a existência Negra como esta se desenvolveu no vestígio; existência Negra Negra;

que

excede

existência

conhecimento

e

continuamente

Negra

riqueza.

que E

todas

excede

ela

nos

essa

as

força.

oferece

136

violências

uma

Para

dirigidas

Brand,

música,

um

tudo

à

vida

isso

mapa

é

para

qualquer

lugar,

para

todos

os

lugares,

em

todos

os

lugares

em

que

nos

encontramos. O “Portulano”: um mapa para se segurar; para contemplar. Então, estamos aqui no tempo, aqui na singularidade. Aqui há desastre

sermos constituídas através da/pela vulnerabilidade contínua à força opressora, não é apenas por essa força que nos reconhecemos e somos reconhecidas e

possibilidade.

E,

apesar

de



”.

137

AGRADECIMENTOS

Minha licença sabática e minha licença de um semestre para pesquisa pelo programa da reitoria da Universidade Tufts me proporcionaram tempo e espaço longe da sala de aula para que fosse possível terminar este livro. Sou grata

por

isso.

Agradeço

a

ajuda

do

diretor

James

Glaser.

Agradeço

à

diretora Bárbara Brizuela e ao Comitê de Prêmios de Pesquisa do corpo docente por fornecerem os fundos para pagar cada um dos direitos das muitas imagens que aparecem neste texto. Obrigada, também, à ex-diretora Joanne Berger-Sweeney por seu apoio inicial decisivo a este trabalho. Tive a sorte de apresentar partes deste projeto em vários fóruns: na Universidade

Estadual

de

Michigan;

no

Extra(-ordinary)

Presents,

na

Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha; no The Futures of Black Studies,

na

Fleming,

Universidade

da

de

Universidade

Bremen,

de

Alemanha;

Vermont;

na

no

Museu

Afrikan

Black

de

Arte

Coalition

Conference, da Universidade da Califórnia em Irvine; na Universidade de Toronto;

na

Conference;

Universidade no

Vanderbilt;

na

workshop

American

Cornell; Black

na

Folk

Studies

Caribbean

in

Dark

Association

Studies

Times,

da

Association

Universidade

Conference;

na

Modern

Language Association Conference; na Universidade do Sul de Illinois em Edwardsville; no Barnard College; no Instituto Pratt; em seminários dos cursos

Curatorial

Controversies

in

Traumatic

History

e

Pedagogy

and

Commemoration, da Universidade York, em Toronto; no painel The Dark Room:

Race

and

Visual

Culture

da

conferência

Black

Portraiture(s)

II:

Imaging the Black Body and Re-Staging Histories, em Florença, Itália; no Black +

Queer

+ Human Symposium, da Universidade de Toronto; na Black

Studies Race Literacies Series, da Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver, Canadá. Os meus agradecimentos às pessoas que organizaram os

painéis

e

eventos

em

que

apresentei

este

trabalho

e

às

que

estavam

presentes e tão generosamente participaram da obra em construção. Versões

anteriores

e

substancialmente

distintas

de

No vestígio

estão

disponíveis em: a seção sobre os discursos de Barack Obama, do capítulo 4, “O

tempo”,

Scenes”, em

aparece

em

uma

versão

anterior

e

mais

longa

em

“Three

On Marronage: Ethical Confrontations with Anti-Blackness

,

1

organizado por P. Khalil Saucier e Tryon P. Woods.

A seção do capítulo “O

porão” sobre Dasani Coates e William aparece em outra versão no ensaio 2

“Black Studies: In the Wake”.

138

A

lista

listagem

de

quem

desse

tipo,

me

acompanhou

mesmo

trata de um começo.

em

Amada

e

ordem

incentivou

alfabética,

é

é

longa.

Qualquer

incompleta,

mas

se

, Black Lives Matter, Black Youth Project 100,

Nicholas Brady, Sabine Broeck, Kimberly Juanita Brown, Kimberly Nichele Brown,

Kevin

Warren

Crichlow,

“Dream

Browne,

Haiti”,

Tina

Delia,

Lee

Campt,

Mario

Edelman,

Di

David

Chariandy,

Paolantonio,

Andrea

Margo

Martin

Fatona,

Crawford,

Donovan,

Rafael

Fonseca,

Drana,

Donette

Francis, Vivek Freitas, a garotinha cujo nome não sei com a palavra afixada

na

testa,

Charlene

Gilbert,

Saidiya

Hartman,

Kimberly

Navio

Hébert,

Tiffany Willoughby Herard, Molly Hildebrand, Peter Hudson, Vijay Iyer, Aereile

Jackson,

Zakiyyah

Iman

Jackson,

Amber

Rose

Johnson,

Jessica

Marie Johnson, Kima Jones, Aiyana Stanley-Jones, Mariame Kaba, Amor Kohli, Joseph Litvak, Lisa Lowe, Keguro Macharia, David Mann,

para a Porta do Não Retorno: Notas sobre pertencimento

Um mapa

, Egbert Alejandro

Martina,

Dianna

McFadden,

Katherine

McKittrick,

Diego

Millan,

Siddhartha Mitter, Fred Moten, John Murillo, Gee Ngugi, Tamara Nopper, Tavia

Nyong’o,

Abdi

Osman,

Jemima

Pierre,

Modhumita

Roy,

Ashraf

Rushdy, Leslie Sanders, P. Khalil Saucier, Jared Sexton, Christopher Sharpe, Evie

Shockley,

Faith

Smith,

C.

Riley

Snorton,

Eddy

Souffrant,

Hortense

Spillers, Aparna Mishra Tarc, Grete Telander, Selamawit Terrefe, “Vênus em dois

atos”,

“Verso

55”,

Alex

Weheliye,

Williams, Jean Wu, Van Zimmerman e deixei

de

citar

aqui,

não

sou

Frank

Wilderson,

Zong

Jaye

Austin

! A quem eu inadvertidamente

menos

grata

por

causa

de

uma

falha

temporária de memória. Depois do falecimento de minha irmã IdaMarie, Amor Kohli ouviu o não

dito

e

veio

Zimmerman durante

me

esteve

alguns

dos

buscar, lá

e

ele

durante

seus

e

e

Sonya

em

próprios),

e

cozinharam

todos

esses

continuo

para

mim;

Van

vestígios-velórios

profundamente

(e

grata

à

minha colega Anne Gardulski, da Tufts, que generosamente me encontrou para almoçar e conversar sobre vestígios aquáticos e tempo de residência da água; Kate Siklosi transcreveu essa entrevista com Anne e elaborou o índice para

do

livro;

garantir

os

Abbe

Schriber

direitos

de

forneceu

arte

e

de

ajuda

textos;

especializada Anthony

Reed

e

oportuna

me

enviou

partes de “Dream Haiti” enquanto eu esperava meu livro chegar. Obrigada. Na Duke University Press, obrigada a Jade Brooks, Nicole Campbell e Amy

Buchanan.

Mais

especialmente,

obrigada

ao

editor-chefe

da

Duke

University Press, Ken Wissoker, por sua gentileza e compromisso com a obra. Obrigada, também, às duas pessoas que leram o meu manuscrito; que privilégio ser lida com tanta generosidade e tão bem. Dionne Brand e Rinaldo Walcott, obrigada pela leitura, pelas conversas estimulantes e sinceras comigo, por suas percepções e sua existência, no vestígio.

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149

Cultural Critique

, v. 77,

SOBRE A AUTORA

CHRISTINA

Canada

SHARPE

é

Research

escritora, Chairs

professora

em

Estudos

e

pesquisadora

Negros

nas

pelo

programa

Humanidades

na

Universidade York, em Toronto. É também pesquisadora associada sênior no

Centro

de

Joanesburgo. 2016

pelo

Estudos

de

Raça,

No vestígio The Guardian

Gênero

e

Classe

na

Universidade

de

foi considerado um dos melhores livros do ano de

jornal

.

dedicando à escrita de três livros:

Atualmente,

Christina

Black. Still. Life

Could a Vessel Be? Been to the End of the World: 25 Essays on Art

Sharpe

vem

se

What To Have

(Duke, no prelo);

(Farrar, Straus and Giroux/Knopf, no prelo); .

OBRAS SELECIONADAS Ordinary Notes

. Toronto: Knopf, 2023 [New York: Farrar, Straus and Giroux,

2023 / London: Daunt, 2023]. “The Abacus of her Eyelids”, in Dionne Brand,

Collected Poems

Nomenclature: New and

. Durham: Duke University Press, 2022.

“Black Gathering: An Assembly in Three Parts”, in S. Anderson e M. O. Wilson (orgs.),

Reconstructions: Architecture and Blackness in America

.

New York: MoMA, 2021. “Jennifer Packer ‘Abundant with Life’”, in M. Blanchflower e N. Grabowska (orgs.), Jennifer Packer:

The Eye Is Not Satisfied With Seeing

. Köln:

Walther König, 2021.

Art in America Monstrous Intimacies: Making Post-Slavery Subjects “Meditations on the History of the Present”.

, 2 mar. 2021.

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University Press, 2010. “Alison Saar, Alchemist: ‘The Hand is in the Making of Textures’”, in R. McGrew e I. Tsatsos (orgs.),

Alison Saar: Of Aether and Earthe

.

Claremont: Benton Museum of Art, 2020. “Scale”, in Massimiliano Gioni et al.,

Mourning in America

Grief and Grievance: Art and

. London/New York: Phaidon/New Museum,

2020.

150

Título original:

In the Wake: On Blackness and Being

© Duke University Press, 2016 © Ubu Editora, 2023

IMAGEM DA CAPA

© Grada Kilomba,

O barco The Boat |

, 2021,

BOCA

– Bienal de

Arte Contemporânea de Lisboa. Instalação vista a partir do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de Lisboa. Foto de Bruno Simão. Cortesia da artista.

EDIÇÃO DE TEXTO PREPARAÇÃO REVISÃO DESIGN TRATAMENTO DE IMAGEM PRODUÇÃO GRÁFICA

Bibiana Leme

Bruna Barros

Tatiana Allegro

Elaine Ramos; Júlia Paccola, Nikolas Suguiyama (assistentes) Carlos Mesquita

Marina Ambrasas

EQUIPE UBU DIREÇÃO COORDENAÇÃO GERAL DIREÇÃO DE ARTE EDITORIAL COMERCIAL COMUNICAÇÃO / CIRCUITO UBU DESIGN DE COMUNICAÇÃO GESTÃO CIRCUITO UBU / SITE ATENDIMENTO Florencia Ferrari

Isabela Sanches

Elaine Ramos; Júlia Paccola, Nikolas Suguiyama (assistentes)

Bibiana Leme e Gabriela Naigeborin Luciana Mazolini; Anna Fournier Maria Chiaretti; Walmir Lacerda

Marco Christini Laís Matias

Micaely Silva

UBU EDITORA

Largo do Arouche 161 sobreloja 2

01219 011 São Paulo sp ubueditora.com.br [email protected] /ubueditora

151

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8 / 9410 Sharpe, Christina No vestígio: negridade e existência / Christina Sharpe; Título S532v original: In the Wake: On Blackness and Being; traduzido por Jess Oliveira. São Paulo: Ubu Editora, 2023, 256 p., 30 ils. ISBN 978 85 7126 104 4 1. Racismo. 2. Negritude. 3. Negridade. 4. Política. 5. Arte. 6. Sociologia. 7. Filosofia. 8. Cinema. 9. Sociedade. I. Oliveira, Jess. II. Título. 2023–644 CDD 305.8 CDU 323.14 Índice para catálogo sistemático: 1. Racismo 305.8 2. Racismo 323.14  

FONTES Karmina, Euclid Circular B e St Croce

152

ubueditora.com.br

153

Notas 1

A

letra

N

maiúscula

transmutação de

Black

em

Negra,

Negre,

Negro

nesta

tradução

é

a

aparição-

. É vestígio. [N.T.]

2 O caso teve início em 1951, quando o sistema escolar público de Topeka, capital do estado do Kansas, recusou-se a matricular a filha de Oliver Brown, um homem Negro, na escola primária mais próxima de sua casa, exigindo que ela pegasse um ônibus para uma escola Negra segregada mais distante. A família Brown e outras doze

famílias

Negras

locais

em

situação

semelhante

entraram

com

uma

ação

coletiva no tribunal federal dos Estados Unidos contra o Conselho de Educação de Topeka, alegando que sua política de segregação era inconstitucional. A decisão do caso

foi

histórica,

pois

a

Suprema

Corte

dos

Estados

Unidos

declarou

a

inconstitucionalidade das leis estaduais que estabeleciam a segregação racial em escolas públicas do país. Essa decisão da Corte anulou parcialmente sua decisão de 1896

(caso

iguais”

Plessy versus Ferguson

era

),

inconstitucional

para

declarando escolas

que

públicas

a

noção

e

de

“separados

instalações

mas

educacionais

estadunidenses. Foi uma grande vitória do poder civil e do movimento de direitos humanos e abriu caminho para a integração no país. [N.T.] 3 Eric J. Sundquist apud Elizabeth M. DeLoughrey,

Caribbean and Pacific Island Literatures

.

Routes and Roots: Navigating

Honolulu:

University

of

Hawaii

Press,

2007, p. 53. 4 Algumas definições, frases e citações (por exemplo, as definições de

wake

[em

português: vestígio, vigília, velório, velar, vereda]) serão repetidas ao longo do texto deste livro e aparecerão em itálico. Imagino essas repetições em itálico como um lembrete, um refrão e muito mais. 5 Compartilhei isso com um amigo, que respondeu o seguinte: “Tropecei na palavra ‘oportunidade’ [em minha narrativa] por causa de sua onipresença nas narrativas de pessoas

caribenho-neerlandesas.

Tenho

pensado

muito

sobre

o

trabalho

que

a

‘oportunidade’ faz tanto nas narrativas de migração do Caribe Neerlandês quanto na promessa do governo neerlandês de ‘criar oportunidades para todas as pessoas’. Minha

mãe

e

oportunidades’

meu e

pai

também

se

mudaram

vivenciaram

para

os

‘racismo

Países

Baixos

constante

e

‘em

busca

escancarado,

de

bem

como isolamento’. Meu pai foi mantido no mesmo emprego sem perspectiva de promoção por anos a fio; ironicamente, no Caribe Neerlandês, os Países Baixos são imaginados como a ‘terra da oportunidade’ (e não vou entrar no mérito de como essa imaginação foi moldada pelo colonialismo). Os Países Baixos se tornaram um ponto de orientação fixo”. E-mail pessoal citado com a permissão do autor, Egbert Alejandro Martina. 6 Um tempo atrás, quando eu estava procurando por outra coisa nos arquivos do

Philadelphia Inquirer

, encontrei dois dos muitos artigos de opinião que minha mãe

154

escreveu

e

que

foram

publicados

no

jornal

depois

que

ela

leu

sobre,

viu

ou

testemunhou racismo. Compartilho o texto das cartas a seguir.

Cartas ao corpo editorial: Preconceito profundamente arraigado 20 dez. 1986

Se alguém ainda tem dúvidas sérias de que preconceitos arraigados estão vivos e prosperando

Inquirer

de

nos

9

de

Estados

Unidos,

dezembro,

sobre

basta a

ler

garota

o

artigo

de

da

primeira

quatorze

anos

página

que

foi

do

The

vítima

de

estupro, para se desiludir dessa noção ingênua. Temos

aqui

uma

situação

nos

moldes

da

era

pré-direitos

civis.

Uma

jovem

branca é estuprada (por um homem branco que ela conhece), mas, ao descrever seu agressor,

não

inexistente.

É

descreve triste

que

um

homem

essa

branco

criança

de

falso,

quatorze

e

sim

anos

um

tenha

homem

negro

aparentemente

escolhido de modo instintivo um membro (embora fictício) de outra raça para ser sua vítima.

155

Ida Wright Sharpe

156

Wayne

Cartas ao corpo editorial: Racistas à parte 2 mar. 1992

Embora eu lamente a situação do filho de Jack Smith, que recebeu uma multa de trânsito por causa das luzes piscando em seu carro (afinal, seriam elas distrações maiores

do

que

as

placas

que

tentamos

ler

enquanto

passamos?),

estou

mais

preocupada com os comentários gratuitos feitos pelo sr. Smith. Sua

observação

descaradamente

de

que

racista,

o

carro

assim

“parecia

como

sua

ter

acabado

pergunta

de

sobre

sair as

do

barrio



luzes

é

serem

“excessivamente […] Latinas”. Devemos acreditar, como Jack Smith aparentemente acredita, que na Main Line apenas falantes de espanhol dirigem carros com outras decorações além de nomes de universidades e iate clubes nas janelas traseiras? Não sei há quanto tempo Jack Smith vive em Wayne, mas eu moro aqui há mais de 38 anos e posso garantir a ele que 90% das pessoas que vi, ao longo dos anos, entrando e saindo de veículos excessivamente enfeitados foram homens brancos de idades variadas. Enquanto outras

isso,

crianças

da

ele

precisa

Main

Line;

reavaliar algumas

suas −

suposições

muitas

delas,

racistas na

a

respeito

verdade



não

das são

brancas, e nenhuma delas merece ser rotulada e menosprezada por pessoas como ele.

157

Ida Wright Sharpe

158

Wayne

 

Um

7 Uso a imagem da porta como referência ao trabalho de Dionne Brand, que, em

mapa para a Porta do Não Retorno

, escreve que a Porta do Não Retorno está em sua

retina. Voltarei a isso mais tarde ao longo do texto. 8

Ver

Rinaldo

Walcott,

The Long Emancipation: Moving toward Black Freedom

.

Durham: Duke University Press, 2021. Walcott chama esse projeto inacabado de longa

emancipação

e

o

define

assim:

“A

interdição

de

uma

liberdade

negra

em

potencial que chamei de longa emancipação”. 9

M.

NourbeSe

Philip

(entrevista

a

Patricia

J.

Saunders),“Defending

the

Dead,

Small Axe

Confronting the Archive: A Conversation with M. NourbeSe Philip”.

, v.

12, n. 2, 2008, p. 67. 10 Saidiya Hartman,

Perder a mãe: Uma jornada pela rota atlântica da escravidão

,

trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 16. 11

Maurice

University

Blanchot, of

The Writing of the Disaster

,

Nebraska

Press,

1995,

pp.

1-2.

trad.

Para

Ann

Blanchot,

Smock. o

Lincoln:

desastre

é

o

Holocausto. Para mim, é o desdobramento contínuo de séculos do comércio de pessoas africanas – um evento que é histórico e que, como escreve Dionne Brand, rompe a história. Toni Morrison escreve: “O evento arrogante e definidor do mundo moderno é o movimento em massa de populações racializadas, cujo início é a maior transferência

forçada

de

pessoas

na

história

do

mundo:

a

escravização.

As

consequências dessa transferência determinaram todas as guerras que se seguiram a ela, bem como as atuais que estão sendo travadas em cada um dos continentes”;

The House That Race Built: Original Essays by Toni Morrison, Angela Y. Davis, Cornel West and Others on Black Americans and Politics in America Today Cultural Critique “Home”, in Wahneema Lubiano (org.),

,

. New York: Vintage, 1998.

12 Paul Youngquist, “The Mothership Connection”.

, v. 77, 2011, p.

7. 13 Ann Smock, a tradutora [para o inglês] de Blanchot, observa que a escrita do desastre “significa não apenas o processo pelo qual algo chamado desastre é escrito – comunicado, atestado ou profetizado – mas também a escrita feita pelo desastre – pelo

desastre

significa

a

que

escrita

‘conhecimento

do

destrói que

o

livros

e

desastre

desastre’

condena –

significa

que

a

linguagem.

liquida

a

conhecimento

‘A

escrita

como

escrita –

é,

do

assim

desastre

e

a

desastre’ como ‘fuga

o

do

pensamento’ [significa] a perda do pensamento, que o pensamento é”; Ann Smock, in M. Blanchot,

The Writing of the Disaster

, op. cit., p. ix.

14 Agradeço a Mario Di Paolantonio por refletir sobre isso comigo depois de minha palestra na Universidade York. 15 Na edição de estreia de

Lateral

, jornal online da Cultural Studies Association,

Jared Sexton escreve o seguinte sobre Lewis Gordon: “Sou guiado na tarefa a seguir por uma ideia dupla derivada dos argumentos de Gordon: 1) todo pensamento, na medida em que é genuíno, pode ser mais bem concebido como pensamento negro e, consequentemente, 2) todas as pesquisas, na medida em que são investigações

159

genuinamente

críticas,

aspiram

Blackness: Afterthoughts.

Lateral

aos

estudos

negros”;

Jared

Sexton,

“Ante-Anti-

, n. 1, 2012.

16 Lexi Belcufine, “Turtle Creek 20-Year-Old Fatally Shot in Fineview”.

Post-Gazette

Pittsburgh

, 10 dez. 2013.

17 Courier Newsroom, “65 of 91 Homicides Black Lives in 2013”.

Pittsburgh Courier

,

8 jan. 2014. 18 Leon Taylor, “Man Killed by Cops after Pointing Gun”.

Philadelphia Daily News

,

22 jun. 1994. 19 Minha memória difere da de meu irmão Christopher aqui. Christopher lembra que Robert foi baleado onze vezes. Van Zimmerman e eu lembramos que Robert foi baleado dezenove vezes. 20 Minha mãe escreveu uma carta ao corpo editorial sobre o assassinato de Robert e sobre como o fato foi relatado no jornal, mas não consegui localizá-la. Incluí aqui duas cartas que estão nos arquivos online do

Philadelphia Inquirer

e que apontam

para algumas das maneiras como minha mãe vivia no mundo. 21 Joy James e João Costa Vargas, “Refusing Blackness-as-Victimization: Trayvon

Pursuing Trayvon: Historical Contexts and Contemporary Manifestations of Racial Dynamics Martin and the Black Cyborgs”, in George Yancy e Janine Jones (orgs.),

.

Latham: Lexington Books, 2012, p. 193. 22 Leia-se: no vestígio, na vigília, no velório, na vereda dessas mortes. [N.T.] 23 “Big Steve – Lil Nigga Trey (lil nigga snupe beat)”. YouTube, 17 dez. 2013. 24

“U.S.

Marshals

Arrest

Pittsburgh Post-Gazette

,

Pittsburgh

28

mar.

Homicide

2014.

Suspect

Revisei/editei

o

in

New

nome

do

Kensington”. jovem

Negro

acusado de assassinar meu sobrinho Caleb. Não adianta nada nomeá-lo aqui. Digo mais sobre o que estou chamando de práticas de anotação Negra e revisão Negra na seção final deste trabalho, “O tempo”. 25

Saidiya

Hartman,

in

Patricia

J.

Conversations with Saidiya Hartman”.

Saunders,

“Fugitive

Dreams

of

Diaspora:

Anthurium: A Caribbean Studies Journal

, v.

6, n. 1, p. 7. 26 Ibid. 27 Michel-Rolph Trouillot,

Silencing the Past: Power and the Production of History

.

Boston: Beacon, 1997, p. 15. 28 M. NourbeSe Philip,

Zong!: As Told to the Author by Setaey Adamu Boateng

.

Hartford: Wesleyan University Press, 2008, p. 26. 29 Rob Stein, “At the End of Life, a Racial Divide”.

Washington Post

, 12 mar. 2007.

No mesmo artigo, lemos: “Após vidas durante as quais, com frequência, lutaram para obter cuidados médicos, pessoas Negras estadunidenses e outras minorias têm maior probabilidade – em relação a pessoas brancas – de desejar e obter cuidados mais agressivos à medida que a morte se aproxima, sendo menos propensas a usar serviços

de

cuidados

paliativos

para

aliviar

seu

sofrimento,

de

acordo

com

um

grande corpo de pesquisas e especialistas célebres. Como resultado, elas têm maior propensão

a

sofrer

mortes

precedidas

de

maior

medicalização,

morrendo

mais

frequentemente no hospital, com dor, com respiradores e tubos de alimentação –

160

muitas

vezes

após

serem

reanimadas

ou

receberem

rodadas

extras

de

quimioterapia, diálise ou outros cuidados, mostram os estudos”. Ver também Cardinale Smith e Otis Brawley, “Disparities in Access to Palliative Care”.

Health Affairs

,

30

jul.

2014.

Eles

escrevem:

“Inclusive

quando

o

status

socioeconômico é o mesmo, pacientes pertencentes a minorias [étnicas] continuam em risco de maior disparidade em tratamentos para a dor. A equipe médica parece compartilhar menos informações e demonstrar menor apoio a pacientes que são pessoas

Negras

e

hispânicas

em

comparação

a

pacientes

brancas

e

brancos,

inclusive nos mesmos ambientes de cuidados. Além disso, pacientes de minorias muitas vezes não recebem tratamento equivalente a seus desejos, mesmo quando se sabe quais são seus desejos”.

Slate

30 Jason Silverstein, “I Don’t Feel Your Pain”.

, 23, jun. 2013. “Quanto maior o

privilégio presumido do alvo, mais dor foi percebida por participantes. Por outro lado, quanto maiores as dificuldades presumidas, menos dor foi percebida”; ibid. 31

Frank

Wilderson,

Antagonisms

Red, White, and Black: Cinema and the Structure of U.S.

. Durham: Duke University Press, 2010, p. 76.

32 Hortense J. Spillers,“Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book”, in

Black, White, and in Color: Essays on American Literature and Culture

. Chicago:

University of Chicago Press, 2003. 33 Ou seja, estudo no âmbito universitário e em sala de aula, e não Estudo Negro como

Fred

Moten

e

Stefano

Planning and Black Study

Harney

definem

em

The Undercommons: Fugitive

. New York: Minor Compositions, 2013.

34 Brand escreve: “Adentramos um espaço e a história nos persegue; adentramos um espaço e a história nos precede. A história já está lá, sentada na cadeira nesse espaço vazio, quando chegamos. Nossa posição social parece sempre se relacionar a essa experiência histórica. Os lugares onde as pessoas podem ser observadas se relacionam

a

essa

história.

Todos

os

esforços

humanos

parecem

emanar

dessa

porta. Como eu sei disso? Apenas por auto-observação, olhando apenas. Apenas sentindo. Apenas por ser uma parte, ali sentada no espaço com a história”;

mapa para a Porta do Não Retorno: Notas sobre pertencimento

Um

, trad. Jess Oliveira e

floresta. Rio de Janeiro: A Bolha, 2022. 35

M.

NourbeSe

Philip

(entrevista

a

P.

J.

Saunders),

“Defending

the

Dead,

Confronting the Archive”, op. cit., p. 67. 36

Sylvia

Wynter,

“‘No

Humans

Involved’:

Forum N.H.I.: Knowledge for the 21st Century Perder a mãe

An

Open

Letter

to

My

Colleagues”.

, v. 1, n. 1, 1994, p. 70.

37 S. Hartman,

, op. cit., p. 17.

38 Wilderson escreve sobre “ajudar o manuscrito a permanecer no porão do navio, apesar de minhas fantasias de fuga”; 39

Optei

pelo

uso

de

América

na

Red, White, and Black

, op. cit., p. 2.

tradução

apenas

quando

o

sentido

(pode)

se

aplica(r) a todo o continente, como no presente caso. Quando “America” trata dos Estados Unidos da América, opto pelo uso do nome do país. [N.T.]

I, too, am the afterlife of slavery

40 Em inglês: “

”. Referência aos versos do célebre

poema “I, too”, de Langston Hughes. [N.T.] 41 S. Hartman,

Perder a mãe

, op. cit. p. 17; trad. modif.

161

42 A respeito da Operation Clean Halls, ver pp. 161-62. [N.E.] 43 J. James e J. C. Vargas, “Refusing Blackness-as-Victimization”, op. cit., p. 193; ênfase minha. 44 Uso “transmigração” aqui no sentido de movimento através, bem como no de movimento de uma forma para outra. 45

Parece,

ainda,

responsabilidade

que

paterna

dentro continua

de a

um ser

determinado

um

pré-requisito

quadro para

a

ideológico vida

(e

a

para

o

direito a ela). Ver Robert Grim, “Robert Gibbs Says Anwar al-Awlaki’s Son, Killed by Drone Strike, Needs ‘Far More Responsible Father’”.

Huffington Post

, 24 out. 2012.

46 “Les dominicains utilisent des drones pour traquer les sans papiers haitiens”.

Rezo Nòdwes

, 18 ago. 2015. O artigo diz: “O ministro da Defesa dominicano, tenente-

general Máximo Williams Muñoz Delgado, anunciou a operacionalização de uma nova modalidade de vigilância de fronteiras a partir da incorporação de drones para detectar migrantes ilegais e traficantes de todos os tipos. Essas novas aeronaves de reconhecimento, equipadas com tecnologia avançada, transmitem um sinal a dois caminhões preparados para o processamento de imagens em tempo real e dos quais partem ordens de saída para caçar pessoas ilegais. A República Dominicana usa drones para capturar pessoas haitianas sem documentos. […] Observe que as Ilhas Turcas e Caicos também anunciaram o uso desses dispositivos em seus esforços para capturar pessoas haitianas em barcos”. 47 Claudia Rankine, “The Condition of Black Life Is One of Mourning”.

York Times

The New

, 22 jun. 2015.

48

Ver

History

C.

Sharpe,

“Blackness,

Sexuality,

and

American Literary

Entertainment”.

, v. 24, n. 4, 2012, p. 828. Conforme o texto: “Constituídas através da/pela

vulnerabilidade à força opressora, embora não seja

apenas por

essa força que se

reconheçam ou sejam reconhecidas”. 49 Em inglês:

wake work

. [N.T.]

50 “Verso 55”, de 2015, não foi publicado; é usado aqui com a permissão da autora. 51

Saidiya

engendrou,

Hartman porque

escreve: ‘o

“Essa

escrita

conhecimento

da

é

pessoal

outra

me

porque

marca’,

essa

por

História

causa

da

me dor

experimentada em meu encontro com os pedaços do arquivo e por causa dos tipos de histórias que construí para unir o passado e o presente e dramatizar a produção a partir do nada: espaços vazios, silêncio e vidas reduzidas a destroços”; “Vênus em dois atos”, trad. Fernanda Silva e Sousa e Marcelo R. S. Ribeiro.

Revista Eco-Pós

, v.

23, n. 3, 2020, p. 18; trad. modif. 52

Middle Passage

, a Passagem do Meio ou Travessia, se refere à rota intermediária

da trajetória triangular que ia da Europa à África, depois às Américas e de volta à Europa. Por meio dessa segunda rota, milhões de pessoas sequestradas e traficadas eram transportadas da África às Américas. Na primeira passagem, os navios saíam da Europa em direção aos mercados na África com produtos manufaturados, que eram trocados por pessoas africanas. Na segunda passagem, ou Passagem do Meio, essas pessoas eram transportadas através do Atlântico para as Américas e para a escravização. Chegando deste lado do Atlântico, eram então trocadas por matériaprima como tabaco, açúcar etc., e os navios retornavam para a Europa, fechando o

162

comércio triangular. As viagens na Passagem do Meio eram financiadas e realizadas por

grandes

investidores,

empresas os

quais

europeias,

geralmente

acumularam

parte

organizadas

considerável

das

por

grupos

riquezas

de

europeias,

americanas e africanas. [N.T.] 53 Dionne Brand, “Verso 55”.

maroon

54 Em inglês: "Ruttier for the Marooned in Diaspora". O verbo

significa:

desembarcar em uma ilha ou costa desolada e ficar à própria sorte. O substantivo

maroon

se refere a pessoas que fugiram da escravização no contexto caribenho.

Seria o equivalente a quilombola no Brasil. [N.T.] 55

M.

NourbeSe

Philip

(entrevista

a

P.

J.

Saunders),

“Defending

the

Dead,

Confronting the Archive”, op. cit., p. 65. 56 Keguro Macharia, “Mbiti and Glissant”.

The New Inquiry

, 9 mar. 2015.

57 Omise’eke Natasha Tinsley, “Black Atlantic, Queer Atlantic: Queer Imaginings of

GLQ,

the Middle Passage”.

relação

Poética da

v. 14, n. 2-3, 2008, p. 191. Édouard Glissant,

[1990], trad. Eduardo Jorge Oliveira e Marcela Vieira. São Paulo: Bazar do

Tempo, 2021, p. 33. 58

R.

M.

Kennedy,

ao

reconhecer

os

poderes

e

perigos

de

pensar

a

melancolia,

escreve que esta, em sua recusa do exterior, sua recusa em trazer para si o objeto externo,

forma

“National

facilmente

Dreams

and

um

alinhamento

Inconsolable

com

Losses:

os

discursos

The

Burden

nacionalistas.

of

Ver

Melancholia

in

Despite This Loss: Essays on Culture, Memory and Identity in Newfoundland and Labrador Newfoundland Culture”, in Ursula A. Kelly e Elizabeth Yeoman (orgs.),

.

Newfoundland: Iser Books, 2010. 59 Do eufemismo de crianças afastadas à força de suas mães e pais para serem

beyond the

“cuidadas” pelo Estado a leis como a “política além da porta da frente” [

front door policy

], nos Países Baixos, que força pessoas, geralmente as que não são

brancas,

a

abrir

as

portas

para

o

monitoramento

e

a

intrusão

do

Estado,

a

experimentos médicos e a alimentação forçada em casos de greve de fome, quando, por exemplo, a recusa da comida é um protesto dessas pessoas contra o fato estarem presas mais

é

e

realizado

de

contra as condições sob as quais estão presas. Tudo isso e muito sob

a

rubrica

do

cuidado.

Ainda

assim,

quero

encontrar

uma

maneira de me apegar à ideia do cuidado como uma maneira de sentir, de sentir por, de sentir junto, uma maneira de cuidar de quem vive e de quem está morrendo. 60 Elizabeth DeLoughrey, “Heavy Waters: Waste and Atlantic Modernity”.

PMLA,

v.

125, n. 3, 2010, p. 704. 61 Lewis Gordon elucida que essa zona inclui o desastre do reconhecimento de “viver

com

a

possibilidade”,

para

não

dizer

a

necessidade,

“da

morte

arbitrária

como uma característica legítima de um sistema”; “Through the Hellish Zone of Nonbeing:

Thinking

through

Fanon,

Disaster,

and

the

Damned

Human Architecture: Journal of the Sociology of Self-Knowledge

of

the

Earth”.

, v. 5, 2007, p. 11.

62

Nesse

parágrafo,

os

termos

hold

diferentes traduções para “

“cativeiro”,

“conter”

e

“contenção”

são

”. [N.T.]

63 Em uma entrevista a Maya Mavjee sobre

Notas sobre pertencimento

“porão”,

Um mapa para a Porta do Não Retorno:

, a poeta, romancista e ensaísta Dionne Brand ativa outra

163

compreensão da sorte, que reproduzo a seguir. Brand diz: “Em

Mapa

, eu falo sobre

todas essas interpretações com as quais você se depara sem saber, quase desde o nascimento. Se você tem sorte, passa o resto da vida lutando contra elas; se não, passa

a

vida

absorvendo

sem

questionar”;

D.

Brand

(entrevista

a

M.

Mavjee),

“Opening the Door: An Interview with Dionne Brand”. penguinrandomhouse.com, 2001.

  1

The Forgotten Space

; theforgottenspace.net/static/home.html.

New Left Review

2 Allan Sekula e Noël Burch, “The Forgotten Space”.

, n. 69, mai.-

jun. 2011; ênfase minha. 3 Penso aqui nos peixes e nas partes de corpos de pessoas africanas escravizadas retratados no trabalho de Turner, assim como nas pinturas

Middle Passages

Gallagher, e a

relação

(2000), de Ellen

, de Kara Walker; cada uma dessas obras torna visceral

entre

aquático)”.

Blubber

Ver

pessoas também

Negras Marcus

e

qualquer

Rediker,

Sharks and the Atlantic Slave Trade”.

“história

“History

de

from

peixe

below

(ou

the

mamífero

Water

Atlantic Studies: Global Currents

Line:

, v. 5, n. 2,

2008. 4 Beatriz Llenín-Figueroa, “‘I Believe in the Future of Small Countries’: Édouard Glissant’s Archipelagic Scale in Dialogue with Other Caribbean Writers”.

Discourse

,

v. 36, n. 1, 2014, p. 90. “À primeira vista, o presente imediato mostra uma relação caribenha com o mar mediada pela poderosa máquina do capital global: a indústria do turismo, quer como empresa mais ou menos estabelecida de hotéis e

resorts

que

se apropriou das regiões costeiras, quer como indústria transitória, sob a forma de grandes

navios

de

cruzeiro

que

assumem

rotas

marítimas

interinsulares;

a

mobilidade de mão de obra barata que migra entre as ilhas do Caribe e em direção aos Estados Unidos em

yolas

ou balsas; os nós de uma rede global de negócios

lucrativos, sendo o mais poderoso e mortal, obviamente, o tráfico de drogas; e o local

de

despejo

de

detritos

do

capitalismo,

resíduos,

lixo,

derramamentos

e

os

excessos de seus experimentos nucleares e operações militares”; ibid. 5

Allan

Sekula

e

Noël

Burch,

The Forgotten Space



”,

painel

de

discussão,

Tate

Modern Talks_Lectures, 24 abr. 2012. 6 Antes de sua entrevista, nós a vimos no filme, quando ela aparece no fundo de várias fotos do assentamento. É preciso perguntar, e tentar responder, por que, de todas as imagens que poderiam ser usadas para o filme, essa foi a escolhida. Ver: Kunstakademiet



Academy

Arts,

Lectures

of

the

The

Academy

of

“28/08/2013:

Fine

Art/Kunsthøgskolen

Screening:

‘The

Forgotten



Oslo

Space’”.

National

Academy

, 11 nov. 2013.

7 Stefano Harney e Fred Moten,

Study Timbuktu

The Undercommons: Fugitive Planning and Black

. New York: Minor Compositions, 2013, p. 93.

8

, dir. Abderrahmane Sissako. Cohen Media Group, 2014.

9 Volto à designação “ex-mãe” na seção deste livro chamada “O porão”. Incluo três imagens de Aereile Jackson [figs. 2.1, 2.2 e 2.4] porque quero ler essas fotos/esses textos de sua imagem e o uso que o filme faz delas. Embora ela apareça no filme apenas rapidamente, estou interessada no fato de sua imagem circular como uma

164

das fotos publicitárias do filme. Das imagens incluídas aqui, uma é um fotograma

End Credits

do filme e a outra é dos créditos finais (e nisso há um eco do filme 2012, de Steve McQueen, sobre os arquivos do brevemente

na

seção

intitulada

“O

tempo”).

FBI

A

, de

de Paul Robeson, que discuto

imagem

final

de

Aereile

Jackson

The Forgotten Space Film about the Sea: Notes on Allan Sekula and Noël Burch’s aparece em Darrell Varga, “Making Political Cinema –

”, in

A

The Forgotten Space.

Halifax: Halifax Centre for European Studies, 2012. 10 Transcrição minha.

opportunity

11 Ver “ 12

opportune Red, White, and Black: Cinema and the Structure of U.S.

”, “

Frank

Wilderson,

Antagonisms

”; dictionary.com.

. Durham: Duke University Press, 2010, p. 76.

13 Ibid., p. 126. 14 Tim Armstrong, “Slavery, Insurance, and Sacrifice in the Black Atlantic”, in Klein

Sea Changes: Historicizing the Ocean

Bernhard e Gesa Mackenthun (orgs.),

. New

York: Routledge, 2010, p. 168. 15 Saidiya V. Hartman (entrevista a Frank B. Wilderson

III),

Unthought:

conducted

Wilderson,

An

III”.

Interview

Qui Parle

with

Saidiya

V.

Hartman

“The Position of the by

Frank

B.

, v. 13, n. 2, 2003.

16 Omise’eke Natasha Tinsley, “Black Atlantic, Queer Atlantic: Queer Imaginings of the Middle Passage”. 17

C.

Riley

GLQ, v. 14, n. 2-3, 2008, p. 191.

Snorton

escreve,

em

The Feminist Wire

Antiblackness)” ( que

parece

“What

More

Can

I

Say?

(A

Prose-Poem

on

, 3 set. 2014): “Não ser totalmente humano, o

também

significar

ser

outra

coisa

(outro/Outro?

super?

sub?)

e

sobreviver – o que significa que estar além (ou talvez fora) da vida é um dilema peculiarmente negro”. 18

Dionne

Um mapa para a Porta do Não Retorno: Notas sobre

Brand,

pertencimento

, trad. Jess Oliveira e floresta. Rio de Janeiro: A Bolha, 2022, p. 113;

trad. modif. Baseio-me aqui na formulação e teorização de Dionne Brand sobre a Porta do Não Retorno real e mítica como o local da consciência da Diáspora Negra. Ela escreve: “A porta significa o momento histórico que influencia os momentos da Diáspora. É responsável pelas formas como nós observamos e somos observadas como pessoas, seja pelas lentes da injustiça social ou pelas lentes das realizações humanas. A porta existe como uma ausência. Uma coisa sobre a qual, na verdade, nós não sabemos, um lugar que não conhecemos. Mas ainda assim ela existe como o chão que pisamos. Todo gesto de nosso corpo gesticula em direção a essa porta. O que mais me interessa é sondar a Porta do Não Retorno como consciência. A porta lança um feitiço de assombração na consciência pessoal e coletiva na Diáspora. A experiência Negra em qualquer cidade moderna grande ou pequena das Américas é assombrada. espaço

e

a

Adentramos

história

nos

um

espaço

precede.

A

e

a

história

história



nos

está

lá,

persegue;

adentramos

sentada

cadeira

na

um

nesse

espaço vazio, quando chegamos. Nossa posição social parece sempre se relacionar a essa experiência histórica. Os lugares onde as pessoas podem ser observadas se relacionam

a

essa

história.

Todos

os

esforços

humanos

parecem

emanar

dessa

porta. Como eu sei disso? Apenas por auto-observação, olhando apenas. Apenas

165

sentindo. Apenas por ser uma parte, ali sentada no espaço com a história”; ibid., pp. 39-40. Também me baseio no trabalho de Frank Wilderson, especialmente no livro

Red, White, and Black

, de 2010, em que o autor apresenta o argumento de que a

violência contra o Negro é gratuita, e não contingente; não se trata da violência que ocorre entre sujeitos no nível do conflito no mundo, mas da violência no nível de uma estrutura que demandou – na verdade, que inventou – que o Negro fosse o constitutivo exterior para aqueles que se construíam como

o

Humano.

19 Saidiya Hartman, “Vênus em dois atos”, trad. Fernanda Silva e Sousa e Marcelo R. S. Ribeiro. 20

M.

Revista Eco-Pós

, v. 23, n. 3, 2020, p. 15.

NourbeSe

Philip

(entrevista

a

Patricia

J.

Saunders),

“Defending

Confronting the Archive: A Conversation with M. NourbeSe Philip”.

the

Dead,

Small Axe

, v.

12, n. 2, 2008, p. 72.

Perder a mãe: Uma jornada pela rota atlântica da escravidão

21 Saidiya Hartman,

,

trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021; trad. modif.

The New York Times The New York Times American Literary

22 David Brooks, “The Underlying Tragedy”. 23 Id., “The Tel Aviv Cluster”. 24

C.

History

Sharpe,

“Blackness,

, 15 jan. 2010.

, 12 jan. 2010.

Sexuality,

and

Entertainment”.

, v. 24, n. 4, 2012, p. 828.

25 Em inglês:

I memember

. [N.T.]

26 Capital da região central de Gana, a cidade está localizada no Golfo da Guiné. Antes de ser nomeada Cabo Corso (Cape Coast) pelos portugueses e ingleses, um de seus nomes havia sido Oguaa, que significa “mercado” em fânti. [N.T.] 27 Em inglês:

negroes

negro

. Quando esse termo é usado, opto por grafar a palavra

(em inglês) e suas variações em itálico. [N.T.] 28

Apud

Boateng

M.

NourbeSe

Philip,

Zong!: As Told to the Author by Setaey Adamu

. Hartford: Wesleyan University Press, 2008, p. 210.

29 Katherine McKittrick, “Mathematics Black Life”.

The Black Scholar

, v. 44, n. 2,

2014. 30 T. Armstrong, “Slavery, Insurance, and Sacrifice in the Black Atlantic”, op. cit., p. 173. 31 Adam Hochschild,

Bury the Chains: Prophets and Rebels in the Fight to Free an

Empire’s Slaves Enterrem as correntes: Profetas e rebeldes na luta pela libertação dos escravos .

New

York:

Houghton

Mifflin

Harcourt,

2006,

p.

80

[ed.

bras.:

, trad.

Wanda Brant. Rio de Janeiro: Record, 2007].

Zong! The Zong: A Massacre, the Law and the End of Slavery

32 Apud M. NourbeSe Philip, 33

James

Walvin,

, op. cit., p. 211.

. New

Haven: Yale University Press, 2011, p. 107. 34

Volto-me

mais

detalhadamente

para

a

questão

da

singularidade

na

seção

chamada “O tempo”. 35 Dionne Brand, “Verso 55”. 36 Como Marcus Rediker e outros nos disseram, os capitães e a tripulação de todo e qualquer navio negreiro tinham de se preparar para todas as formas de “resistência

166

criativa”

dos

cativos;

M.

Rediker,

The Slave Ship: A Human History

.

New

York:

Penguin, 2007, p. 307. “Todo navio negreiro esperava enfrentar os perigos de seus cativos africanos”; J. Walvin,

The Zong

, op. cit., p. 107.

37 Helene Cooper, “Grim History Traced in Sunken Slave Ship Found off South

The New York Times

Africa”.

, 31 mai. 2015.

38 “‘Se a escravização é o fantasma na máquina do parentesco’, em parte ela o é porque,

sob

escravização,

sistema

e

signo,

ocorrem

atos

léxico-legais

de

transubstanciação em que o sangue se torna propriedade (com todos os direitos inerentes ao uso e gozo da propriedade), por um lado, e família, por outro”; C. Sharpe,

Monstrous Intimacies: Making Post-Slavery Subjects

.

Durham:

Duke

University Press, 2010, p. 29. 39

Gordon

Lewis,

“Through

the

Hellish

Zone

of

Nonbeing:

Thinking

through

Human Architecture: Journal of the Sociology of Self-Knowledge The Reaper’s Garden: Death and Power in the World of Atlantic Slavery Fanon, Disaster, and the Damned of the Earth”. , v. 5, 2007, p. 364.

40 Vincent Brown,

. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 159.

41 G. Lewis, “Through the Hellish Zone of Nonbeing”, op. cit., p. 364. 42 Ibid. 43 M. NourbeSe Philip escreve: “Muito cedo, desenvolvi a necessidade de saber os nomes das pessoas assassinadas, então acabei ligando para James Walvin, autor de

Black Ivory

, na Inglaterra, para perguntar se ele sabia como eu poderia localizá-los.

‘Ah, não’, o tom de sua voz é condoído, ‘eles não guardavam nomes’. Eu não… não consigo acreditar que isso seja verdade, e, mais tarde, me correspondendo com uma colega que está pesquisando e escrevendo um livro sobre o caso

Zong

, recebo a

cópia de um livro-razão mantido por um certo Thomas Case, um agente na Jamaica que fazia negócios com os proprietários do

Zong

. Algo típico dos registros mantidos

naquela época: os compradores são identificados, ao passo que as pessoas africanas são

reduzidas

à

seca

descrição

de

‘homem

negro

’, ‘mulher

negro sic ’ [

]

ou,

mais

frequentemente, ‘homem idem’, ‘mulher idem’. Há uma anotação à margem para a seguinte descrição: ‘Menina

negro

(magra)’. Há muitas meninas ‘magras’, não há

meninos ‘magros’. Os

homens,

as

mulheres

e

as

crianças

africanos

a

bordo

do

Zong

foram

despojados de todas as especificidades, incluindo seus nomes. Seu valor financeiro, no entanto, foi registrado e preservado por questões relacionadas ao seguro. Cada pessoa era avaliada em trinta libras esterlinas”; M. N. Philip,

Zong!

, op. cit., p. 194.

44 Ibid., p. 201. 45 Ibid. 46 Entrevista com a dra. Anne Gardulski; Cambridge, MA, 7 jul. 2014. 47 Toni Morrison,

Amada

[1987], trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia

das Letras, 2007, p. 282. 48 June Jordan, “The Difficult Miracle of Black Poetry in America or Something like a Sonnet for Phillis Wheatley”, in

Some of Us Did Not Die: New and Selected Essays

.

New York: Basic Civitas Books, 2003, pp. 174-76.

167

49 Ibid., p. 176. Reconheço que o título de primeira pessoa Negra publicada no gênero poesia é de Jupiter Hammon. Wheatley é a primeira poeta Negra a publicar no que se tornarão os Estados Unidos. 50 Ibid.

The Civil Contract of Photography

51 Ariella Azoulay,

. New York/Cambridge: Zone

Books/MIT Press, 2008, p. 166. 52 Expando, aqui, o argumento que apresentei em

Monstrous Intimacies

. “Agassiz

foi um dos fundadores (ou um dos pais) da escola estadunidense de etnologia; ele foi

um

abolicionista

acreditava

na

escravização manifestas,

e

colaborador

inferioridade adotaram

seus

mensuráveis

no

africana

e

e

campo na

argumentos legíveis

emergente

superioridade

uma

da

ciência

europeia.

poligenéticos

que

inferioridade

racial,

Políticos

tentavam

Negra

que pró-

tornar

essencial

e

a

monstruosidade Negra, não a monstruosidade da escravização e das complicadas performances

Negras

daguerreótipos

(o

da

escravização

‘espelho

com

nem

a

violência

memória’)

da

lei

encomendados

e

do

olhar.”

pelo

E

“os

abolicionista

Agassiz que seriam usados para apoiar a escravização e para naturalizar e justificar a sujeição contínua de pessoas Negras na escravização e, por fim, fora dela”; C. Sharpe, 53

M.

Monstrous Intimacies

, op. cit., pp. 11-12.

NourbeSe

Philip

(entrevista

a

Patricia

J.

Saunders),

“Defending

the

Dead,

Confronting the Archive”, op. cit., p. 77. 54 Houve alguma controvérsia sobre o número de pessoas lançadas ao mar. Indico a discrepância em números aqui.

Zong! Saltwater Slavery: A Middle Passage from Africa to

55 Apud M. NourbeSe Philip, 56

Stephanie

Smallwood,

American Diaspora

, op. cit., p. 211.

. Cambridge: Harvard University Press, 2008, pp. 35-36.

Haitian boat

57 Pessoas refugiadas do Haiti que saem do país de barco. Em inglês:

people

. [N.T.]

58 Kaiama Glover, “Comments on J. Michael Dash’s ‘Hemispheric Horizons’”.

Caribbean Commons: Caribbean Studies in the Northeast U.S

The

., 20 jan. 2011.

59 Elizabeth M. DeLoughrey, “Heavy Waters: Waste and Atlantic Modernity”.

PMLA,

v. 125, n. 3, 2010, p. 708. 60 “Apesar da mudança na política, o Immigration and Naturalization Service (INS) [Serviço de Imigração e Naturalização] continuou a forçar o retorno de pessoas que haviam

deixado

o

Haiti

em

pequenos

barcos



mais

de

1.300

pessoas

foram

deportadas ao Haiti em maio, depois que a mudança na política foi anunciada”; “Clinton Changes us Policy on Haitian Refugees”.

Migration News

, v. 1, n. 5, jun.

1994.

Thirsty Amada

61 Dionne Brand, 62 T. Morrison, 63

Robert

Farris

. Toronto: McClelland and Stewart, 2002, p. 92.

, op. cit., p. 92.

Thompson

apud

Sterling

Stuckey,

“Slavery

and

the

Circle

of

Society and Culture in the Slave South Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy Culture”, in J. William Harris (org.),

. New

York: Routledge, 1992, p. 103; ver também Robert Farris Thompson,

. New York: Vintage, 1984.

168

64 R. F. Thompson apud W. Jeffrey Bolster,

the Age of Sail

Black Jacks: African American Seamen in

. Cambridge: Harvard University Press, 1998, p. 65.

65 Hortense J. Spillers,“Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book”, in

Black, White, and in Color: Essays on American Literature and Culture

. Chicago:

University of Chicago Press, 2003, p. 207. 66 As legendas dizem: “Criança ferida espera ser transportada para tratamento no

USNS

Comfort

”,

“Criança

espera

ser

evacuada

por

soldados

Aerotransportada do Exército dos Estados Unidos para o

da

82ª

Comfort

USNS

Divisão

em Porto

Príncipe, Haiti” e “Porto Príncipe, Haiti − 21 de janeiro: Criança espera ser evacuada por soldados da 82ª Divisão Aerotransportada do Exército dos Estados Unidos para o

usns Comfort

de

equipes

governos

e

de

em 21 de janeiro de 2010 em Porto Príncipe, Haiti. Aviões carregados resgate

agências

e

de

suprimentos ajuda

emergenciais

humanitária

chegaram

lançavam

uma

ao

Haiti

enorme

enquanto

operação

de

socorro após um forte terremoto que pode ter matado milhares. Muitos edifícios foram reduzidos a escombros pelo terremoto de magnitude 7 na escala Richter em 12 de janeiro”. 67 O fotógrafo, Joe Raedle, é dos Estados Unidos. 68 J. Jordan, “The Difficult Miracle of Black Poetry in America or Something like a Sonnet for Phillis Wheatley”, op. cit., p. 176. 69 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 208. 70 K. Glover, “Comments on J. Michael Dash’s ‘Hemispheric Horizons’”, op. cit. 71 Jack Shenker, “Migrants Left to Die after Catalogue of Failures, Says Report into Boat Tragedy”.

The Guardian

, 28 mar. 2012. Voltarei a esse assunto mais tarde nesta

seção e nas seções “O porão” e “O tempo”. 72 Ver, por exemplo, Marie Jenkins Schwartz,

Medicine in the Antebellum South

.

Birthing a Slave: Motherhood and

Cambridge:

Harvard

University

Press,

2010;

Barron H. Lerner, “Scholars Argue over Legacy of Surgeon Who Was Lionized, then Vilified”.

The New York Times

, 28 out. 2003; Caitlin Dickerson, “Secret World War ii

Chemical Experiments Tested Troops by Race”. Sophie

Kleeman,

“One

Powerful

How the West Talks about Ebola”.

Illustration

Mic

Morning Edition

Shows

, npr, 22 jun. 2015;

Exactly

What’s

Wrong

with

, 7 out. 2014; Kathryn Krase, “The History of

Forced Sterilization in the United States”. Our Bodies Ourselves.org, 1° out. 2014. 73 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 214. 74 Ibid., p. 206. 75 S. Hartman, “Vênus em dois atos”, op. cit., p. 2. 76 Michael M. Phillips e Christopher Rhoads, “Government Turns to Long-Term Needs”.

The Wall Street Journal

, 22 jan. 2010.

77 Mary Beth Sheridan e Manuel Roig-Franzia, “Haiti Slows Search for Survivors: Relief Effort Intensifies as Crisis Grinds on”.

Washington Post

, 22 jan. 2010.

78 K. McKittrick, “Mathematics Black Life”, op. cit., p. 17. 79 C. Sharpe, “Blackness, Sexuality, and Entertainment”, op. cit., p. 828. 80

Claire

Harris,

Fables from the Women’s Quarters

.

Editions, 1984, p. 38.

169

Fredericton:

Goose

Lane

81 Ibid., p. 36. 82 Ibid. 83

Bernard

Marie

A Dictionary of Literary Devices (Gradus, A–Z)

Dupriez,

.

Toronto/Buffalo: University of Toronto Press, 1991. 84 K. McKittrick, “Mathematics Black Life”, op. cit., p. 17. 85

M.

NourbeSe

Philip

(entrevista

a

Patricia

J.

Saunders),

“Defending

the

Dead,

Confronting the Archive”, op. cit., p. 77. 86 J. Jordan, “The Difficult Miracle of Black Poetry in America or Something like a Sonnet for Phillis Wheatley”, op. cit., p. 176. 87

Thomas

Jefferson,

Notes on the State of Virginia

[1785].

New

York:

Penguin

Classics, 1998, p. 147. 88 Elizabeth Alexander, “‘Can You Be black and Look at This?’: Reading the Rodney King Video”, in Thelma Golden (org.),

Contemporary Art

Black Male: Representations of Masculinity in

. New York: Whitney Museum of Art, 1995, p. 92.

89 Andrea Rosa e Colleen Barry, “Italy Divers Find ‘Wall’ of Bodies in Migrant Ship”.

Seattle Times

, 8 out. 2013.

90 Michel-Rolph Trouillot,

Silencing the Past: Power and the Production of History

.

Boston: Beacon, 1997, p. 15. 91 P. Khalil Saucier e Tryon P. Woods, “Ex Aqua: The Mediterranean Basin, Africans on the Move, and the Politics of Policing”.

Theoria

, v. 61, n. 141, dez. 2014, p. 18.

92 Sarah Stillman, “Lampedusa’s Migrant Tragedy, and Ours”.

The New Yorker

, 10

out. 2013. 93 Ibid. 94 Matthew Chance, “Lampedusa Boat Sinking: Survivors Recall Awful Ordeal”.

CNN, 9 out. 2013. 95 Gianluca Mezzofiore, “Lampedusa: Italian Fishermen ‘Abandoned’ Hundreds of African Migrants to Drown”. 96

Lizzy

Davies,

Umbilical Cord”.

International Business Times

, 3 out. 2013.

“Lampedusa

The Guardian

Victims

Include

Mother

and

Baby

Attached

by

, 10 out. 2013.

97 S. Hartman, “Vênus em dois atos”, op. cit., p. 14. 98 Id.; F. B. Wilderson

III,

“The Position of the Unthought”, op. cit., pp. 189-90.

99 Derek Walcott apud D. Brand,

Um mapa para a Porta do Não Retorno

, op. cit.

100 E. M. DeLoughrey, “Heavy Waters”, op. cit., p. 708. 101 Referência a Dasani Coates, que apareceu na matéria especial “Invisible Child”, no jornal

The New York Times

. Discuto essa matéria no capítulo 4, “O tempo”.

102 Para uma análise aprofundada do Mediterrâneo Negro, consultar P. K. Saucier e T. P. Woods, “Ex Aqua”, op. cit. 103 Bienal de Veneza. 104 Vivienne Walt, “Migrants Left to Die on the High Seas Continue to Haunt Nato”.

Time

, 17 abr. 2012; ver também Forensic Architecture, “The Left-To-Die Boat”, 2011;

forensic-architecture.org/investigation/the-leftto-die-boat. 105 Ian Traynor, “EU to Launch Military Operations against Migrant-Smugglers in Libya”.

The Guardian

, 20 abr. 2015.

170

106

“EU

Lemos:

to

Back

“Em

18

‘Boat-Destroyer’

de

maio

de

Mission

2015,

a

in

União

Mediterranean”.

Europeia

BBC,

aprovou

a

18

mai.

2015.

substituição

de

patrulhas humanitárias do Mediterrâneo por patrulhas militares”. 107 No momento desta tradução (2021), ainda sob o domínio do Estado francês. [N.T.] 108 Corina Creţu, “Mémorial

ACTe:

A Place of Remembrance and of Reconciliation”.

Comissão Europeia, 8 fev. 2015. 109 “Hollande Honours the Lives of Slaves at Caribbean Museum”.

France 24

, 10

mai. 2015. 110 No prólogo de

Homem invisível

, o narrador diz: “mas é assim que o mundo

caminha: não como uma flecha, mas como um bumerangue (acautelem-se contra aqueles

que

falam

espiral

de

da

história;

estão

preparando

mantenha à mão um capacete de aço)”; Ralph Ellison,

um

bumerangue;

Homem invisível

, trad. Mauro

Gama. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020, pp. 31-32. 111 “Ark of Return:

News

UN

Erects Memorial to Victims of Transatlantic Slave Trade”.

UN

, 25 mar. 2015.

112 Jocelyne Sambira, “Historic ‘Ark of Return’ Monument on Slavery Unveiled at the

UN”.

Africa Renewal

, 25 mar. 2015.

113 Charles Gaines, “Section 1: A Curriculum’s Contents”. Venice Biennale, Creative Time Summit, 2 ago. 2015.

  1 “Justice for Albert Johnson”. Pushing Buttons, Pushing Stories, s/d. 2 Manthia Diawara, “One World in Relation: Édouard Glissant in Conversation with Manthia Diawara”. 3 Charlotte Delbo,

Nka, Journal of Contemporary African Art Nenhum de nós voltará Auschwitz e depois

, v. 28, n. 1, 2011, p. 4.

, in

,

trad.

Monica

Stahel. São Paulo: Carambaia, 2021. 4

M.

NourbeSe

Zong!: As Told to the Author by Setaey Adamu Boateng

Philip,

.

Hartford: Wesleyan University Press, 2008, p. 3.

One days water, water of want Nenhum de nós voltará Amada

5 Ibid., pp. 3-4. [N.T.: 6 C. Delbo,

.]

, op. cit.

7 Toni Morrison,

[1987], trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia

das Letras, 2007, pp. 282-83. 8 Edwige Danticat, 9

Lizzie

Dearden,

Hierarchical Who Dies”. 10

Id.,

Krik? Krak! “The

System

New York: Vintage, 1996, p. 12.

Darker

Aboard

Independent

Your

Italy’s

Skin

Migrant



The

Boats

Further

That

Down

Governs

You

Who

Go:

Lives

The and

, 22 abr. 2015.

“Migrant

Boat

Disaster:

Ramming Vessel into Ship”.

Captain

Independent

Charged

with

Killing

Passengers

by

, 21 abr. 2015.

11 Id., “The Darker Your Skin”, op. cit. 12

Stephanie

Kirchgaessner,

Drowned in the Med”. 13

Jessica

Elgot

e

“Five

The Guardian

Matthew

Men

Charged

with

Murder

of

200

Migrants

, 7 ago. 2015.

Taylor,

“Calais

‘Dehumanising’ Description of Migrants”.

Crisis:

Cameron

The Guardian

171

Condemned

for

, 30 jul. 2015. Ver também

Jessica

Elgot

e

Patrick

Wintour,

“Calais:

Attempts to Enter Eurotunnel Site”. também

de

que

em

2008

Silvio

Man

Killed

as

The Guardian

Migrants

Make

1,500

, 29 jul. 2015. Lembremo-nos

Berlusconi

se

referiu

a

pessoas

imigrantes

sem

documentos como “exército do mal”; Malcolm Moore, “Silvio Berlusconi Says Illegal Migrants Are ‘Army of Evil’”.

The Telegraph

, 16 abr. 2008.

14 “Quotes from, and about, Nicolas Sarkozy”.

The New York Times

, 7 mai. 2007. A

Kärcher tem uma ressonância particular com as revoltas argelinas na França. [N.E.: Cité

des

4.000

é

um

distrito

da

comuna

francesa

La

Courneuve,

localizada

no

departamento de Seine-Saint-Denis, na região da Ilha de França.] 15 “Planos para abrigar requerentes de asilo em antigo quartel da ss localizado em um campo de concentração nazista estão causando controvérsia na Alemanha”; Justin

Huggler,

“Buchenwald

The Telegraph

Concentration

Camp

Immigration

Plan

Criticised”.

, 13 jan. 2015.

16

Yermi

Brenner,

Jazeera America

“Asylum

Seekers

Face

Increasing

Violence

in

Germany”.

Al

, 15 jun. 2015.

17

No

dia

8

de

abril

de

2014,

o

acampamento

na

Oranienplatz,

que

se

tornou

símbolo do movimento contra as duras leis de asilo e imigração na Alemanha, foi desmanchado. O movimento continua em outros âmbitos da sociedade alemã e europeia.

Em

outubro

de

2022,

comemoraram-se

os

dez

anos

do

movimento.

Angela Davis e Chico César foram algumas das pessoas presentes manifestando apoio ao movimento por direitos para pessoas refugiadas/imigrantes. [N.T.] 18 Daniel Trilling, “In Germany, Refugees Seek Fair Treatment”.

Al Jazeera

, 3 abr.

2014. 19 “Greek Police Spray Migrants with Fire Extinguishers”.

Al Jazeera

, 11 ago. 2015.

20 Fatou Diome apud Oumar Bar, “When Senegalese Writer Fatou Diome Kicked

Africa Is a Country Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America European Union Butt”. 21

Saidiya

, 29 abr. 2015.

Hartman,

. New York: Oxford University Press, 1997, p. 32.

22 Hortense J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book”, in

Black, White, and in Color: Essays on American Literature and Culture

. Chicago:

University of Chicago Press, 2003, p. 206; ênfase do original. 23 Em inglês: 24 Em inglês:

their non/status their non/being-ness

. [N.T.] . [N.T.]

25 Rinaldo Walcott, “Black Life-Forms”, in

Black Freedom

The Long Emancipation: Moving toward

. Durham: Duke University Press, 2021.

26 No encontro de Wright com a fileira desfigurada (ou acorrentada) de homens negros prisioneiros que ele, a princípio, não reconhece como homens, e sim como uma

fileira

de

transformados homens

que

elefantes

em

ele

outra

acorrentados

coisa

reconhece



não

como

acorrentados; Richard Wright,

em

uns

aos

homens,

homens

são

os

outros,

mas

em

brancos

tais

homens

elefantes. vigiando

são

Os

únicos

os

negros

Black Boy: A Record of Childhood and Youth

. New

York: Harper Perennial Modern Classics, 2007, pp. 57-58. 27 Joan Dayan, “Held in the Body of the State: Prisons and the Law”, in Austin Sarat e Thomas Kearns (orgs.),

History, Memory, and the Law

. Ann Arbor: University of

172

Michigan Press, 1999, p. 184. 28

Corruptela

do

português.

barraca

empréstimo catalã “

“Barracão”



forma

aumentativa

da

palavra

de

barracón

” (“cabana”) por meio da palavra espanhola



define um tipo de quartel historicamente usado para internar pessoas escravizadas ou criminosas. No comércio escravista no Atlântico, os indivíduos capturados eram temporariamente

transportados

e

mantidos

em

barracões

ao

longo

da

costa

da

África Ocidental, onde aguardavam o transporte através do oceano Atlântico. Os barracões variavam em tamanho e arquitetura, e a quantidade de tempo que as pessoas capturadas passavam dentro de um barracão dependia principalmente de dois fatores: sua saúde e a disponibilidade dos tumbeiros. [N.T.] 29 “Em novembro de 1994, […] o Departamento de Correção da Carolina do Norte emitiu um comunicado de imprensa anunciando que desenterrara, numa das suas instalações, uma relíquia do passado do sistema carcerário dos Estados Unidos. O comunicado

dizia

Correcional

em

parte:

Alexander

empilhadeira

para

“[O]

Conselho

determinou

retirar

a

jaula

Comunitário

que

da

a

lama

e

Guarda das

de

Recursos

Nacional

videiras.

O

do

Centro

usasse

piso

uma

original

de

aproximadamente 7,5 cm, um pequeno banheiro e barras de metal entrelaçadas são tudo

o

que

resta

da

jaula

de

prisão

onde

dormiam

doze

condenados”;

Dennis

Slaves of the State Black Incarceration from the Chain Gang to the Penitentiary South Atlantic Quarterly Childs,

:

. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2015.

30 J. K. Carter, “Paratheological Blackness”.

, v. 112, n. 4,

2013, p. 593. 31 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 209. 32

Fred

Moten,

In the Break: The Aesthetics of the Black Radical Tradition

.

Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003, p. 1. 33 “Ana-”,

Oxford English Dictionary

.

34 “12 Yr Old Girl Beaten by Police; Mistaken for a Prostitute”.

Daily Kos

, 11 fev.

2009. 35 Campeão estadunidense de luta livre profissional. [N.T.] 36 “Read Darren Wilson’s Full Grand Jury Testimony”.

The Washington Post

, 25 nov.

2014. 37

Lembremo-nos,

por

exemplo,

de

Tanya

McDowell,

presa

e

condenada

por

“roubar educação” para suas crianças, matriculando-as na escola com um endereço que

não

Prison”. 38

Ver

era

seu.

Daniel

Connecticut Post

Tepfer,

“Tanya

McDowell

Sentenced

to

5

Years

in

, 27 mar. 2012.

Kamau

versões

Ver

do

Brathwaite,

trabalho

de

“Dream

Haiti”.

Brathwaite

As

sempre

inovações apresentam

formais

e

as

dificuldades

diferentes para

sua

reprodução. 39 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 218; ênfase do original. 40

Jennifer

Slavery

Morgan,

Laboring Women: Reproduction and Gender in New World

. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004, p. 200.

41 Ibid. 42 T. Morrison,

Amada

, op. cit., p. 324.

173

43 Taylor Lewis, “Black Mother Found Dead in Jail Cell after Alerting Officials of Her Health Problems”.

Essence

, 29 jul. 2015.

44 Hortense J. Spillers, “Interstices: A Small Drama of Words”, in

in Color: Essays on American Literature and Culture

Black, White, and

. Chicago: University of Chicago

Press, 2003, p. 155. 45 Joy James, “Afrarealism and the Black Matrix: Maroon Philosophy at Democracy’s

The Black Scholar

Border”.

, v. 44, n. 2, p. 127.

46 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 215.

Scenes of Subjection

47 S. Hartman,

, op. cit., p. 32.

48 Tim Hume, “Young Brothers, ‘Denied Refuge,’ Swept to Death by Sandy”.

CNN,

4

nov. 2021. 49 T. Morrison,

Amada

, op. cit., p. 284.

50 Jake Tapper, “William Bennett Defends Comment on Abortion and Crime”.

News

ABC

, 29 set. 2005.

51

A

American

Psychological

Association

divulgou

um

relatório

em

2014

que

concluiu: “Meninos negros de dez anos não são vistos sob a mesma luz de inocência da infância que seus pares brancos. Ao contrário, com muito mais frequência eles são vistos como mais velhos, são percebidos como culpados e enfrentam violência policial se acusados de um crime. […] Na maior parte das sociedades, crianças são consideradas inocência

e

um

a

grupo

distinto,

necessidade

de

a

elas

proteção.

são

atribuídas

Nossa

pesquisa

características constatou

como

que

a

meninos

negros podem ser vistos como responsáveis por suas ações em uma idade em que os meninos

brancos

ainda

se

beneficiam

da

suposição

de

que

as

crianças

são

essencialmente inocentes. A equipe de pesquisa utilizou questionários para avaliar o preconceito do grupo de participantes e a desumanização dos negros. A pesquisa constatou que participantes que associavam implicitamente pessoas negras com macacos Phillip

pensavam

Atiba

Goff,

Research Finds”.

que

crianças

“Black

Boys

negras Viewed

eram as

mais

Older,

American Psychological Association

velhas Less

e

menos

Innocent

inocentes”;

than

Whites,

, 6 mar. 2014.

52 “Um casal de adolescentes suspeito em uma onda de crimes de roubo de veículos e

cheques

furtados

em

todo

o

sul

do

país

foi

levado

sob

custódia

na

Flórida,

declararam autoridades do Kentucky no último domingo. Policiais da delegacia do condado de Grayson dizem em uma declaração que Dalton Hayes, de dezoito anos, e sua namorada de treze anos, Cheyenne Phillips, foram presos sem incidentes no domingo em Panama City Beach, por volta das 12:10, hora local. O casal escapara da polícia

em

vários

estados,

enquanto

aumentava

a

preocupação

sobre

seu

comportamento cada vez mais ousado. Alguns meios de comunicação descreveram o par como Bonnie e Clyde, os foras da lei da era da Depressão”; Associated Press, “Police Capture Teen ‘Bonnie and Clyde’ Suspected in a Trail of Crime”.

Times

Los Angeles

, 18 jan. 2015.

53 Quando se trata de pessoas Negras, pelo menos nos Estados Unidos, os únicos casos de crimes narrados como romance que vêm à mente são aqueles em que a pessoa criminosa é branca, a pessoa atacada é Negra, e o crime é escravização e estupro

na

escravização.

Nesses

casos,

a

questão

174

do

crime

é

suspensa

por

uma

gramática do amor. Penso em Thomas Jefferson e Sally Hemings como exemplo primordial. Esse caso é tão romantizado que, em um episódio da série

Homeland

, a

personagem Dana assina Sally em mensagens ao filho do vice-presidente, a quem ela chama de Thomas. 54 Charlie LeDuff, “What Killed Aiyana Stanley-Jones?”.

Mother Jones

,

nov.-dez.

2010. 55 “A promotoria observou que até o dedo no gatilho da submetralhadora constituía erro de operação”; Moreh B. D. K./Counter Current News, “Charges Dropped for Cop Who Fatally Shot Sleeping 7-Year-Old Girl”.

MPN News, 1 dez. 2014.

56 Rose Hackman, “‘She Was Only a Baby’: Last Charge Dropped in Police Raid that Killed Sleeping Detroit Child”.

The Guardian

, 31 jan. 2015.

57 Colchetes da autora. [n.e.] 58 “Read Darren Wilson’s Full Grand Jury Testimony”, op. cit. 59 Cornelius Eady,

Brutal Imagination

. New York: G. P. Putnam’s Sons, 2001, p. 5.

60 Rua onde Michael Brown foi assassinado. [N.T.] 61 Nicholas K. Peart, “Why Is the

N.Y.P.D.

After Me?”.

The New York Times

, 17 dez.

2011. 62 Wendy Ruderman, “For Women in Street Stops, Deeper Humiliation”.

York Times

The New

, 6 ago. 2012.

63 Id.; ênfase minha. 64 Ver The New York Civil Liberties Union (NYCLU), “Section 1 – Stop, Question And Frisks”, 1 abr.-30 jun. 2004. 65 “Are Police Going Too Far or Doing Their Job?”.

The Columbus Dispatch

, 2 ago.

2015. 66 W. Ruderman, “For Women in Street Stops, Deeper Humiliation”, op. cit.; ênfase minha. 67 N. Peart, “Why Is the

N.Y.P.D.

After Me?”, op. cit.

68 Julie Dressner e Edwin Martinez, “The Scars of Stop-and-Frisk”.

Times

The New York

, 12 jun. 2012.

69 Frederick Douglass,

My Bondage and My Freedom

[1855]. New York: Penguin

Classics, 2003, p. 92. 70

Kate

Taylor,

“Stop-and-Frisk

The New York Times My Bondage and My Freedom

Congregation”. 71 F. Douglass, 72

Dani

Policy

McClain,

Lives’,

Mayor

Tells

Black

, 10 jun. 2012. , op. cit., p. 92.

“Black

Women

Vilified

The Nation New York Times

Themselves in a New Film”. relata que “o

‘Saves

as

a

‘Lesbian

Wolf

Pack’

, 2 jul. 2015. O artigo da revista

Speak

for

The Nation

soltou uma manchete que implicava que um encontro

benigno dera errado porque uma mulher não conseguira relaxar: ‘Man Is Stabbed in Attack after Admiring a Stranger’”. 73 Colleen Long, “NYPD Program Patrols Inside Private Buildings”.

AP

News

, 11 mar.

2013. 74 Logan Burruss, “New York Police Sued over Residential Building Patrols”. mar. 2012. Ver também o relatório da

NYCLU

CNN, 29

[New York Civil Liberties Union – União

175

de

Liberdades

Challenges

Civis

NYPD

de

Nova

York]

sobre

a

ação

coletiva:

“Class

Action

Lawsuit

Patrols of Private Apartment Buildings”, 28 mar. 2012.

75 Wendy Ruderman, “Rude or Polite, City’s Officers Leave Raw Feelings in Stops”.

The New York Times

, 26 jun. 2012.

76 Helen A. S. Popkin, “On Facebook, Teacher Calls Kids ‘Future Criminals’”.

Today

,

5 abr. 2011. 77 John Hurdle, “A Hospital Offers a Grisly Lesson on Gun Violence”.

Times

The New York

, 2 jun. 2013. “‘Nosso objetivo aqui não é assustar vocês’, disse o sr. Charles.

‘Estamos apenas tentando oferecer educação.’” Apesar das garantias do sr. Charles, parece

que

o

programa,

como

grande

parte

da

educação

dos

Estados

Unidos

dirigida a pessoas negras e enegrecidas, segue precisamente o modelo de educação “do medo” como/no terror. 78

Cradle

to

Grave

Program,

2013.

Temple

University

Health

System,

Inc.;

templesafetynet.org/cradletograve; ênfase minha. 79

Frederick

americano

Narrativa da vida de Frederick Douglass, um escravo Narrativa da vida de Frederick Douglass e outros textos

Douglass,

[1845], in

, trad.

Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 80 J. Hurdle, “A Hospital Offers a Grisly Lesson on Gun Violence”, op. cit. 81 Ibid. 82 Cradle to Grave Program, op. cit. 83 Center for Nonviolence and Social Justice, 2014; drexel.edu/cnsj/. “Healing Hurt People (HHP) é o programa basilar do Center for Nonviolence and Social Justice.

HHP

é um programa centrado na comunidade, com sede em hospitais e projetado para reduzir lesões e retaliações entre jovens de 8 a 30 anos. O programa é afiliado ao setor de emergência do Hospital Universitário de Hahnemann e à Faculdade de Medicina da Universidade Drexel. No outono de 2009, o

HHP

foi expandido para o

Hospital Infantil St. Christopher, a fim de alcançar jovens entre 8 e 21 anos vítimas de violência. O

HHP

trabalha com pacientes que vêm do setor de emergência com ferimentos

intencionais (tiro, facada, agressão etc). O programa foi concebido por uma equipe interdisciplinar constituída por profissionais das áreas de medicina de emergência, clínica geral, psiquiatria, assistência social e psicologia, com ampla experiência na prevenção de violência e trauma. O

HHP

foi projetado para atender as necessidades

– físicas, emocionais e sociais – que as vítimas de violência enfrentam após terem alta do setor de emergência.” 84 Alex Kotlowitz, “The Price of Public Violence”.

The New York Times

, 24 fev. 2013.

85 Andrea Elliott, “Invisible Child: Dasani’s Homeless Life in the Shadows”.

New York Times

The

, 9 dez. 2013.

86 Embora o perfil do

Times

não tenha revelado o sobrenome de Dasani, ela foi

mais tarde identificada como Dasani Coates quando apareceu como convidada no juramento de posse de Leticia James como advogada pública da cidade de Nova York. 87

Desde

viviam

a

em

publicação Auburn

do

foram

artigo

sobre

transferidas

Dasani, e

sua

realocadas

176

família para

e

muitas

outros

outras

lugares.

que

Andrea

Elliott

e

Rebecca

R.

Ruiz,

“New

York

The New York Times

Homeless Shelters”.

is

Removing

over

400

Children

from

2

, 21 fev. 2014.

88 A. Elliott, “Invisible Child”, op. cit., ênfases minhas. 89

Simone

Browne

escreve:

“Se

tomarmos

a

escravatura

transatlântica

como

antecedente das tecnologias e práticas de vigilância contemporâneas, no que se refere a inventários de carga de navios e à criação de ‘desigualdades escaladas’ na

Brookes

identificação biométrica e esquemática do tumbeiro

, por meio da marcação

do corpo com ferros quentes, dos mercados de pessoas escravizadas e dos blocos de leilão como exercícios de poder sinóptico onde muitos assistiam a poucos, do passe de pessoas escravizadas e patrulhas, dos códigos negros e dos avisos de escravos fugitivos,

é

nos

expressivas

e

momentos

de

determinados liberdade

e

arquivos,

nos

textos

recusa atos

de

sugestões

e

nas

narrativas

criativos crítica.

produção de

de O

escravas

origem que

cultural,

alternativas

e,

negra

estou

que

formas

vezes,

podemos

discutindo

podemos

para

muitas

aqui

encontrar de

viver

nas

práticas

procurar é

que,

por com

performances

sob

uma

de

vigilância

rotineira que foi aterrorizante em seus efeitos”; S. Browne, “Everybody’s Got a Little Light under the Sun: Black Luminosity and the Visual Culture of Surveillance”.

Cultural Studies

, v. 26, n. 4, 2012, p. 547.

90 A. Elliott, “Invisible Child”, op. cit. 91 Ibid.

Proud Flesh Afrikan Journal of Culture, Politics and Consciousness 92

Sylvia

Wynter,



Inter/Views:

Sylvia

Wynter”.

ProudFlesh: New

, n. 4, 2006; ênfase minha.

93

Ver

Katherine

Schulten

e

Amanda

Christy

Brown,

“Reading

Child’”. The Learning Network: Teaching and Learning with

Club:

‘Invisible

The New York Times

, 12

dez. 2013. “Uma vez por semestre, escolhemos um artigo importante e aprofundado do

New York Times

que consideramos que deva ser lido por jovens e convidamos

qualquer pessoa de treze a dezenove anos para vir ao blog discuti-lo.

Temos

algumas

regras

básicas

para

esse

The Learning Network

evento,

que

chamamos

e

de

Reading Club, mas nosso principal objetivo é inspirar uma conversa reflexiva.” 94 Ver Colin Campbell e Ross Barkan, “Bloomberg Defends Homeless Policies while Calling Dasani Story ‘Extremely Atypical’”.

Observer

, 17 dez. 2013; ênfase minha.

95 William, “I, Too, Am One of the Estimated 22,000 Homeless Children in New York”.

The Guardian

, 1 jan. 2014.

96 Retorno aqui à entrevista de Maya Mavjee com Dionne Brand e à compreensão desta de sorte. Repito: “Se você tem sorte, passa o resto da vida lutando contra elas; se não, passa a vida absorvendo sem questionar”; D. Brand (entrevista a M. Mavjee), “Opening the Door: An Interview with Dionne Brand”. penguinrandomhouse.com, 2001. 97 J. Hurdle, “A Hospital Offers a Grisly Lesson on Gun Violence”, op. cit. 98 A. Elliott, “Invisible Child”, op. cit.

Brown

99 Nos Estados Unidos, o termo “

” se refere a pessoas pertencentes a povos e

etnias oriundos do sul da Ásia e do Oriente Médio (e a suas descendências). [N.T.] 100 Change.Org, Aisha Truss-Miller & Family with the Black Youth Project, 2012.

177

101 Essa citação é atribuída à professora Cathy Cohen. David Boroff, “Petition Urges President Obama to Visit Chicago in Wake of Hadiya Pendleton Murder”.

Daily News

New York

, 7 fev. 2013.

102 Barack Obama, “Obama’s Emotional Speech at Newtown Vigil”. abc News, 6 dez. 2012; ênfase minha. 103 Ver C. Sharpe, “Three Scenes”, in P. Khalil Saucier e Tryon P. Woods (orgs.),

Marronage: Ethical Confrontations with Anti-Blackness

.

Trenton:

Africa

On

World

Press, 2015. Reproduzo aqui parte do que escrevi nesse artigo. Simultaneamente ao evento

televisionado

assassinato

de

do

Estado

Christopher

da

Dorner,

União,

ocorreu

ex-policial

do

o

também [Los

LAPD

televisionado

Angeles

Police

Department – Departamento de Polícia de Los Angeles]. Dorner é acusado de matar três pessoas e, antes de a força total do estado da Califórnia ser mobilizada para caçá-lo

e,

por

fim,

queimá-lo

vivo,

Christopher

Dorner

também

acreditava

na

expressão que Obama usa tantas vezes: “uma união mais perfeita”. Enquanto eu prestava atenção ao Estado da União, esperava que a caça de Christopher Dorner também tomasse conta da programação. Assim como a caça ao carro branco de oj Simpson: uma inserção na parte inferior da tela. Ou que o espetáculo da “luta” para capturar

Dorner



embora

o

uso

de

duzentos

policiais

do

LAPD,

de

dez

outras

agências, de um veículo de remoção de neve, de helicópteros, de veículos blindados e de detectores de calor contra um homem dificilmente possa ser considerado uma luta;

trata-se

(para

citar

Baby

Suggs

no

romance

Amada

)

de

uma

debandada



substituísse completamente o espetáculo do discurso do presidente Negro. Tal é a ortografia

compulsiva

palimpsesticamente,

o

do

vestígio

fugitivo

que

escravizado

deve sobre

revigorar, a

e

inscrever

(im)possibilidade

de

o

presidente Negro falar. Para mais sobre o caso, ver Christopher Jordan Dorner, “Uncensored Manifesto from Retired

LAPD

Officer Christopher Dorner”.

Davey D’s Hip Hop Corner Gukira

, 7 fev.

2013. Ver também Keguro [Macharia], “Christopher Dorner’s Love Letter”.

With(out) Predicates

, 15 fev. 2013.

104

Dançarina

uniformizada

que

faz

coreografias

com

bastões,

incluindo

acrobacias, ao som de bandas marciais em desfiles. [N.E.] 105 Barack Obama, “Remarks by the President in the State of the Union Address”. The White House – President Barack Obama, 12 fev. 2013. 106

Michael

P.

Jeffries,

Unless It Takes on Race”.

“Obama’s

Chicago

The Atlantic

Speech

Can’t

Address

Gun

Violence

, 15 fev. 2013.

107 Barack Obama, “Text of President Obama’s Chicago Speech”.

NBC

Chicago

, 15

fev. 2013. 108 Id.; ênfases minhas. 109 Joy James, “Killing Mockingbirds: Cultural Memory and the Central Park Case”. Apresentação na Universidade Tufts, 20 fev. 2013. 110 Saidiya Hartman,

Perder a mãe: Uma jornada pela rota atlântica

, trad. José

Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 16; trad. modif. 111 A. Kotlowitz, “The Price of Public Violence”, op. cit.

178

112

Kara

Dreams Are Colder than Death

Walker,

,

dir.

A.

Jafa.

Estados

Unidos:

Pumpernickel Films/Very Special Projects, 2014; transcrição minha. 113 Id. (entrevista a Antwaun Sargent), “Interview: Kara Walker Decodes Her New

Complex Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São

World Sphinx at Domino Sugar Factory”. 114 C. L. R. James,

Domingos

, 13 mai. 2014.

[1938], trad. Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 27.

115 Leigh Raiford e Robin J. Hayes. “Remembering the Workers of the Domino Sugar Factory”.

The Atlantic

, 3 jul. 2014.

116 Colchetes da autora. [N.E.]

The Gift: Creativity and the Artist in the Modern World

117 Lewis Hyde,

. New York:

Knopf Doubleday, 2009. 118

Ver

C.

Sharpe,

Afterthoughts’”.

“Response

Lateral

to

Jared

Sexton’s

‘Ante-Anti-Blackness:

, n. 1, 2012.

119 J. James, “Killing Mockingbirds”, op. cit. 120 Essa é uma represália à exigência de Charlotte Delbo em

Nenhum de nós voltará

(op. cit.): “Tentem olhar. Tentem para ver como é”. Aqui, minha intenção é evocar aquilo que desafia os conhecimentos que nos fizeram aceitar – estruturados, para o povo preto, na recusa de um lugar ontológico da negridade.

  1

Em

The weather

inglês:

.

Na

tradução,

optou-se

por

“tempo”

weather

momentos, por “clima”, para contemplar os sentidos de “

e,

em

alguns

”, bem como seus

usos e desdobramentos neste texto. [N.T.] 2 O

Alligator

, o

Voador

e o

Voadora

foram carregados em sua capacidade total com

crianças. Banco de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos; slavevoyages.org. 3 Banco de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos. 4 Toni Morrison,

Amada

[1987], trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia

das Letras, 2007, p. 53. 5 Ibid., p. 54.

Thirsty it ‘let[s] loss

6 Dionne Brand,

. Toronto: McClelland and Stewart, 2002, p. 92.

7 Em inglês: “

’”. [N.E.]

8 Steven Weisenburger, “A Historical Margaret Garner”. “Quando Margaret tinha sete

anos,

a

família

Gaines

a

levou

como

acompanhante

a

uma

maratona

de

compras de dois dias em Cincinnati, uma estada em solo livre que se tornaria um ponto-chave de contenção legal em seu julgamento de pessoa escravizada fugitiva em 1856.” 9 T. Morrison,

Amada Who Speaks for Margaret Garner? , op. cit., p. 363; trad. modif.

10 Mark Reinhardt,

Minneapolis: University of

Minnesota Press, 2010. 11 Ibid., p. 134. 12 Edwidge Danticat, “We Are Ugly, But We Are Here”.

Caribbean Writer

, v. 10, 1996.

[N.E.: De acordo com Danticat, “Quando estavam escravizadas, nossas antepassadas acreditavam que, ao morrer, o espírito delas voltaria à África, mais especificamente a uma terra de paz que chamamos Guinin, onde os deuses e as deusas vivem”; id.]

179

13 T. Morrison,

Amada

, op. cit., p. 60.

14 Ibid. 15 Ibid.

Merriam-Webster Online Amada Um mapa para a Porta do Não Retorno: Notas sobre pertencimento 16

.

17 T. Morrison, 18

Dionne

, op. cit., p. 284.

Brand,

, trad. Jess Oliveira e floresta. Rio de Janeiro: A Bolha, 2022, p. 237.

19 Ibid., pp. 238-39. 20

Lizzie

Dearden,

Hierarchical Who Dies”.

System

“The

Darker

Aboard

Independent

Your

Italy’s

Skin

Migrant



The

Boats

Further

That

Down

Governs

You

Who

Go:

The

Lives

and

, 22 abr. 2015.

21 Ibid. 22 M. NourbeSe Philip,

Zong!: As Told to the Author by Setaey Adamu Boateng

.

Hartford: Wesleyan University Press, 2008, p. 201. 23 Dionne Brand, “Verso 55”. 24

M.

NourbeSe

Philip

(entrevista

a

Patricia

J.

Saunders),

“Defending

Confronting the Archive: A Conversation with M. NourbeSe Philip”.

the

Dead,

Small Axe

, v.

12, n. 2, 2008, p. 78. 25 No Brasil, a prática conhecida como chave de braço, chave de pescoço e mataleão também é controversa e espantosamente comum. Em 2019, Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga foi morto dentro do supermercado Extra, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, após ser sufocado por um segurança. [N.T] 26 Associated Press, “Los Angeles Police Reconsider Using Choke Hold”.

York Times

The New

, 2 set. 1991.

27 Ibid. 28 Caroline Bankoff, “The Chokehold Situation in nyc Is Not Good”.

New York

, 28

set. 2014. Ver também New York City Civilian Complaint Review Board, “A Mutated Rule: Lack of Enforcement in the Face of Persistent Chokehold Complaints in New York City (An Evaluation of Chokehold Allegations Against Members of the nypd from January 2009 through June 2014)”. 7 out. 2014. 29 Susanna Capelouto, “Eric Garner: The Haunting Last Words of a Dying Man”.

CNN, 4 dez. 2014. 30

Mary

M.

Chapman,

“Theodore

Shooting of Renisha McBride”.

Wafer

Sentenced

The New York Times

to

17

Years

in

Michigan

, 4 set. 2015.

31 Lizette Alvarez e Cara Buckley, “Zimmerman Is Acquitted in Trayvon Martin Killing”.

The New York Times Pele negra, máscaras brancas , 13 jul. 2013.

32 Frantz Fanon,

[1952], trad. Sebastião Nascimento;

colab. Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p. 238. 33 Owen Galea, “50 Migrants Die of Suffocation in the Hold”.

TVM, 26 ago. 2015.

34 Lundy Braun (entrevista a Hamza Shaban), “How Racism Creeps into Medicine”.

The Atlantic

, 29 ago. 2014.

35 Justin Roberts,

Slavery and the Enlightenment in the British Atlantic, 1750-1807

.

Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 195.

180

36 Ibid., p. 196. 37 Frantz Fanon,

A Dying Colonialism

[1959], trad. Haakon Chevalier. New York:

Grove Press, 1965, p. 65. 38 “Imaging”, 39

Richard

Oxford English Dictionary Cutting a Figure: Fashioning Black Portraiture .

Powell,

.

Chicago:

University of Chicago Press, 2008, p. xv.

Bound to Appear: Art, Slavery, and the Site of Blackness in Multicultural America 40 Huey Copeland,

. Chicago: University of Chicago Press, 2013.

41 Saidiya Hartman, “Human Rights and the Humanities”. National Humanities Center, 20 mar. 2014. 42 Deixo em suspenso aqui uma conversa sobre ética e fotografia. Kimberly Juanita Brown aborda esse assunto excepcionalmente bem em seu poderoso e difícil ensaio “Regarding the Pain of the Other”, de 2014. 43 Nicholas Mirzoeff,

The Right to Look: A Counterhistory of Visuality

. Durham:

Duke University Press, 2011.

The House That Race Built: Original Essays by Toni Morrison, Angela Y. Davis, Cornel West, and Others on Black Americans and Politics in America Today 44

Toni

Morrison,

“Home”,

in

Wahneema

Lubiano

(org.),

. New York: Vintage, 1998, p. 7.

45 Modifiquei esse enquadramento e parafraseei a resposta e a acusação indignadas de

Charlotte

Delbo,

em

Auschwitz e depois

,

para

pessoas

cristãs

e

outras

que

presumem “saber”. 46 Refiro-me aqui obviamente às mulheres escravizadas capturadas pela câmera de Zealy para Agassiz. Delia e Drana são as “nascidas no país” (ou seja, nascidas nos Estados Unidos, e não na Guiné ou no Congo). Elas são filhas de Renty e Jack, dois dos homens escravizados que também são capturados pelo processo fotográfico de Zealy. Desenvolvo esse caso no capítulo chamado “O navio”. 47

Still

,

termo

polissêmico

em

inglês,

é

traduzido

aqui

como

“ainda,

imóveis

e

silenciosas”. [N.T.] 48

Os

sete

Peabody

da

daguerreótipos Universidade

que

foram

Harvard,

na

recuperados década

de

em 1970,

uma

gaveta

incluem

do

Museu

imagens

dos

homens sentados e de pé, seminus e totalmente nus, de frente, de lado, de costas. As imagens das duas mulheres, as filhas, Delia e Drana, são delas de frente, com os vestidos caídos e puxados para o lado, meio escondidos. Nenhuma imagem delas nuas de frente, de lado nem de costas foi recuperada. Há, porém, imagens de uma mulher escravizada no Brasil, encomendadas por Agassiz, em que ela está baleada, capturada, presa, completamente nua, de frente, de costas, de lado. Não há razão para pensar que tais imagens de Delia e Drana não existem. Não há nada que as teria protegido disso. 49 T. Morrison,

Amada

, op. cit., p. 52.

50 Tento descobrir mais. Tento entrar em contato com o fotógrafo. Finalmente, entro em contato, novamente, com o [banco de imagens] Getty Images. Através dele,

pergunto

ao

fotógrafo

se

ele

sabe

o

que

aconteceu

com

aquela

menina.

Pergunto se havia outras pessoas lá esperando por evacuação com a palavra

Navio

afixada na testa. O Getty Images entra em contato com Joe Raedle e lhe transmite

181

minhas perguntas. Esta é a resposta que recebo: “A foto foi tirada perto das ruínas do palácio presidencial. Os militares dos Estados Unidos estavam usando a área como um local provisório para transferir pessoas feridas para o

USNS Comfort

em 21

jan. 2010 em Porto Príncipe, Haiti. Muitas outras pessoas também estavam sendo transportadas para o navio, mas eu não saberia quantas. Não sei onde ela está hoje; é

um

tiro

no

escuro,

mas

talvez

se

Christina

contatar

o

diretor

administrativo

principal da 82ª Divisão Aerotransportada ele possa ajudar”. 51 Tanzina Vega, “Schools’ Discipline for Girls Differs by Race and Hue”.

York Times

The New

, 12 dez. 2014.

52 Ibid. 53 Ibid. 54 Ibid. 55 Ibid. 56 Julie Dash,

Film

Daughters of the Dust: The Making of an African American Woman’s

. New York: New Press, 1992, p. 82.

57 Ibid., p. 84. 58 Ibid., pp. 16 e 25.

The Narrative of James Roberts: A Soldier under Gen. Washington in the Revolutionary War and under Gen. Jackson at the Battle of New Orleans, in the War of 1812: “a Battle Which Cost Me a Limb, Some Blood, and Almost My Life” 59 James Roberts,

,

[1858]. Chapel Hill: University of North Carolina, 2001. 60

John

Telegraph

Hiscock,

“Steve

McQueen:

‘This

Film,

for

Me,

Is

about

Love’”.

The

, 3 mar. 2014.

61 Colchetes da autora. [N.E.] 62 “Zabou, a personagem que ela interpreta, existe de verdade: ela mora em Gao e é uma

ex-dançarina

do

[cabaré

parisiense]

Crazy Horse

dos

anos

1960.

Ela

enlouqueceu e começou se vestir como no filme. Ela sempre tem um galo no ombro e fala um ótimo francês. Quando os jihadistas estavam em Gao, ela era a única que podia andar com a cabeça descoberta, a única que podia cantar, dançar, fumar e dizer-lhes

que

eram

‘cuzões’.

Em

outras

palavras,

tudo

o

que

foi

proibido

é

permitido quando alguém enlouquece. Ela é a personificação das mulheres que suportaram

a

luta;

daquelas

que

ousaram

resistir”;

Abderrahmane

Sissako.

Watershed. Conversations about Cinema: Impact of Conflict, jun. 2015. 63 T. Morrison,

Amada Fault Lines: Views across Haiti’s Divide , op. cit., pp. 41 e 60.

64 Beverly Bell,

. Ithaca: Cornell University

Press, 2013, p. 3. 65 Ibid., p. 4. 66 Estou me referindo, novamente, a Maurice Blanchot. 67 Fatou Diome apud Oumar Bar, “When Senegalese Writer Fatou Diome Kicked European Union Butt”.

Africa Is a Country

, 29 abr. 2015.

68 E. Danticat, “We Are Ugly, But We Are Here”, op. cit. 69 Jornal (sem nome) distribuído no Pavilhão Alemão da Bienal de Veneza de 2015. 70 D. Brand,

Um mapa para a Porta do Não Retorno

, op. cit., p. 39.

182

71 Ibid., p. 19. 72 Ibid., pp. 238-39. 73 Saidiya Hartman, “Vênus em dois atos”, trad. Fernanda Silva e Sousa. 23, n. 3, 2020, p. 15; trad. modif. 74 T. Morrison,

Amada

, op. cit., p. 152.

  1 Trenton: Africa World Press, 2015, pp. 131-53. 2

The Black Scholar

, v. 44, n. 2, 2014, pp. 59-69.

183

Eco-Pós

, v.