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Português Pages [184] Year 2023
No vestígio: negridade e existência Christina Sharpe Ubu Editora (Jul 2023)
1
Christina Sharpe
NO VESTÍGIO NEGRIDADE E EXISTÊNCIA
TRADUÇÃO Jess Oliveira
2
1. O VESTÍGIO 2. O NAVIO 3. O PORÃO 4. O TEMPO Agradecimentos Referências Sobre a autora
3
Para quem morreu há pouco.
IdaMarie Sharpe Caleb Williams Stephen Wheatley Sharpe *
Para quem morreu no passado que ainda não passou.
Van Buren Sharpe Jr Robert Sharpe Jr Jason Phillip Sharpe Van Buren Sharpe III
.
.
* Para quem permanece.
Karen Sharpe Annette Sharpe Williams Christopher David Sharpe Dianna McFadden * Para todas as pessoas Negras que permanecem insistindo na vida e na existência no vestígio.
* Para minha mãe
Ida Wright Sharpe De novo. E sempre.
4
5
Eu
não
reunião
estava da
lá
quando
Cultural
minha
Studies
irmã
morreu.
Association,
Estava
em
terminando
Chicago,
de
na
escrever
a
apresentação que seria minha primeira tentativa ligada ao trabalho que se transformou neste livro. Meu irmão Christopher ligou naquela quarta-feira de maio e perguntou se eu estava ocupada. Eu disse que estava terminando a apresentação que faria na sexta-feira. Ele me pediu para ligar de volta quando terminasse. Duas horas se passaram e eu ainda não havia ligado, então ele me ligou. Ele disse que gostaria de ter esperado, mas nosso irmão Stephen e nossa irmã Annette haviam insistido para que ele me ligasse outra vez. Disseram-lhe que eu ficaria chateada se ele esperasse. Nossa irmã
mais
velha,
IdaMarie,
tinha
morrido,
Christopher
me
contou.
Não
havia muitos detalhes. Ela morava sozinha e se atrasou para o trabalho. Não mais do que dez minutos, mas ela sempre fora tão pontual que dez minutos pessoal
sem no
uma
seu
apartamento.
ligação,
emprego
Ela
foi
a
mensagem ponto
encontrada
de lá.
de
texto
ou
convencerem
Eu
desliguei
o
e-mail a
alarmaram
polícia
telefone.
a
ir
ao
Liguei
o
seu para
minha companheira e para duas pessoas amigas. Mandei uma mensagem a um dos meus colegas de apresentação para dizer que não estaria no painel e o porquê. Mandei uma mensagem para outro amigo, um ex-aluno que agora é professor da Universidade DePaul, e ele disse que iria me buscar. Ele falou que eu não deveria ficar sozinha. Desliguei o telefone e adormeci. Isso foi em maio de 2013, e, na época, eu não tinha ideia de que mais duas pessoas da minha família morreriam nos dez meses subsequentes. Essa
seria
a
segunda
vez
na
minha
vida
que
três
parentes
próximos
morreriam sucessivamente. Na primeira ocasião, em 2 de fevereiro de 1997, 19 de janeiro de 1998 e 4 de julho de 1999, sobrevivemos à morte de meu sobrinho Jason Phillip Sharpe; de minha mãe, Ida Wright Sharpe; e de meu irmão mais velho, Van Buren Sharpe III. A maneira como essa repetição mortal
aparece
conceitual
incandescentes
slavery
aqui
da/para da
a
é
uma
instanciação
negridade
escravização
viva de
na
do
vestígio
Diáspora
pessoas
como
nos bens
como
quadro
rescaldos móveis
ainda
chattel
[
] no Atlântico.
Ninguém estava com minha irmã quando ela morreu em sua casa. Não fazia nem uma semana que ela, meu irmão Stephen, minha irmã Annette e meu cunhado James haviam voltado de um período de dez dias de férias na
6
Flórida. Sua morte foi repentina e alarmante. Ainda não sabemos o que causou a morte de IdaMarie; o relatório da autópsia foi inconclusivo. IdaMarie
e
eu
não
éramos
próximas.
Tivemos
apenas
momentos
de
proximidade, como no período turbulento após a morte de seu filho, meu sobrinho Jason [fig. 1.1]. Essa falta de proximidade se devia em grande parte, embora não apenas, ao fato de haver quase 22 anos de diferença entre mim e minha irmã mais velha; nunca passamos muito tempo juntas, nunca nos conhecemos verdade,
muito
não
bem,
vivenciei
e
sua
eu
cresci
ausência
acostumada
como
com
ausência
sua
ausência.
porque,
quando
Na eu
nasci, ela já tinha a própria vida, distante de mim, pois sua relação com nosso pai era irrecuperável, por razões que permanecem desconhecidas para mim. Há muitos silêncios em minha família. Eu sou a caçula de seis. Meus pais nasceram na Filadélfia no primeiro quarto do século XX. Meu pai, que frequentou a Overbrook High School, era uma das oito crianças de uma família
de
classe
Washington,
dc;
média três
(sua
irmãos
mãe do
frequentara
meu
pai
a
Normal
estudaram
na
School
em
Universidade
Howard); minha mãe, que frequentou a West Catholic Girls High School, era filha única de uma mãe solteira da classe trabalhadora em situação de pobreza. Minha mãe e meu pai se casaram no 19° aniversário da minha mãe; meu pai tinha 30 anos. Nem ela nem ele fizeram faculdade. Minha mãe sempre quis ser artista, mas as freiras brancas que lecionavam na West 1
Catholic Girls lhe disseram que meninas Negras
não podiam. Então, depois
de se formar, ela fez um curso profissionalizante para se tornar técnica em radiologia. Meu pai trabalhava na sala de triagem da agência do correio da rua 30, na Filadélfia. Minha mãe trabalhava como técnica em radiologia antes de eu nascer e, após ser diagnosticada com câncer e tratada pela primeira
vez,
trabalhou
passou
na
jardinagem
Sears,
e,
mais
a
trabalhar
em
St.
tarde,
na
Davids,
no
TV
revista
Guide
.
Pensilvânia,
departamento
de
no
Depois
disso,
ela
departamento
de
pessoal.
Nós,
crianças,
estudamos na Archbishop John Carroll High School, na St. Katherine of Siena, na Academy of Notre Dame de Namur, na Devon Preparatory, na Valley
Forge
School;
Junior
escolas
High
School
católicas
mais
e
ou
também menos
na
Conestoga
boas
ou
Senior
medíocres,
High
escolas
particulares de elite e boas escolas públicas. Estudamos em todas essas escolas até que acabasse a bolsa e/ou até que o racismo ficasse insuportável demais;
às
vezes,
a
bolsa
acabava
por
causa
do
racismo.
Em
cada
uma
dessas instituições públicas e privadas e ao longo das gerações (minha irmã era 22 anos mais velha que eu; meu irmão, 21), enfrentamos os tipos de racismo, gostam
pessoal
de
e
associar
institucional, ao
Sul
versus Board of Education
2
.
dos
que
muitas
Estados
pessoas,
Unidos
de
de
antes
todas do
as
caso
raças,
Brown
O motor do racismo estadunidense atropelou
as ambições e os desejos de minha família. Ele trespassou nossos encontros
7
sociais e públicos e também nossa sala de estar. Racismo, o motor que move
o
navio
estadunidense
dos do
projetos Estado
nacionais
[…]
a
arca 3
liberdade quanto a escravização”),
e
da
imperiais aliança
do
que
Estado
(“o
autorizou
navio
tanto
a
atropela todas as nossas vidas e mortes
dentro e fora da nação, no vestígio de seu fluxo proposital.
Vestígio: o rastro deixado na superfície da água por um navio; a perturbação causada por um corpo nadando ou sendo movido na água; as correntes de ar atrás de um corpo em voo; uma região de fluxo perturbado 4
.
Em 1948, minha mãe e meu pai se mudaram com minha irmã e meu irmão mais velhos de West Philadelphia para Wayne, Pensilvânia, na Main Line. Uma família Negra, de classe média, trabalhadora e esforçada, pessoas que viviam em uma encruzilhada de quatro vias em uma das extremidades de um pequeno bairro Negro de renda mista chamado Mt. Pleasant, cercado por bairros brancos, em sua maioria de classe média alta e ricos (na mesma rua ficavam o St. Davids Golf Club e a Valley Forge Military Academy). Pelo que sei, minha mãe e meu pai se mudaram para essa região em busca de
oportunidade
; o casal queria o que imaginava e sabia que não tinha e aquilo
a que suas crianças não teriam acesso na Filadélfia: desde um espaço para crescerem (em breve seríamos seis, e a casa era pequena), com um quintal grande o suficiente para caberem árvores frutíferas e horta, até a facilidade
Oportunidade
de obterem uma boa educação. ( “em direção a”, e
portu(m)
: do latim
ob
-, que significa
, que significa “porto”: o que é oportunidade no
vestígio, e como a oportunidade é sempre apresentada?) É óbvio que não se trata de um fenômeno Negro exclusivo dos Estados Unidos. Esse tipo de movimento acontece em toda a Diáspora Negra do/no Caribe e continente até a metrópole, as grandes migrações dentro dos Estados Unidos, desde o início até meados do século XX, que viram milhões de pessoas Negras se movimentando do Sul para o Norte e, na contemporaneidade, as pessoas em movimento por todo o continente africano e também para Alemanha, 5
Grécia, Lampedusa.
Como muitas dessas pessoas Negras em movimento,
meu pai e minha mãe descobriram que as coisas
não
eram muito melhores
nesse “novo mundo”: as sujeições do racismo constante e escancarado e do isolamento continuaram. Depois que meu pai morreu, quando eu tinha dez anos,
nossa
família,
que
era
de
classe
média
baixa
em
circunstâncias
difíceis, passou a ser uma família trabalhadora em situação de pobreza. Mesmo com todo o trabalho que meu pai e minha mãe tiveram para tentar entrar e permanecer na classe média, a precariedade – e mais do que isso – permaneceu. Depois que meu pai morreu, aquela precariedade se via e se sentia nos invernos sem calor, porque não havia dinheiro para manter o aquecedor funcionando; nos buracos no teto, nas paredes e no piso, danos
8
causados pela água e que não tínhamos dinheiro para consertar; no medo e na realidade do corte de eletricidade e de outros serviços públicos por falta de
pagamento;
dinheiro,
ao
no
menos
medo não
de o
a
casa
ser
suficiente,
hipotecada
para
pagar
porque
os
não
impostos
havia
sobre
a
propriedade. No meu caso, o acesso aos refeitórios foi cortado durante o primeiro semestre na faculdade e, depois desse semestre, a Universidade da Pensilvânia quase não permitiu que eu voltasse ao podíamos
pagar
a
(pequena,
mas
muito
alta
campus
para
nós)
porque não
contribuição
parental. Porém, apesar de tudo isso e muito mais, minha mãe tentou abrir um pequeno caminho no vestígio. Ela trazia beleza para aquela casa de todas as maneiras que podia; trabalhava com alegria e forjava momentos, espaços e lugares vivíveis no meio de tudo o que era impossível viver ali, na cidade em que morávamos; nas escolas que frequentávamos; na violência que víamos e sentíamos dentro de casa, enquanto meu pai estava vivo, e fora dela, no mundo branco, antes, durante e depois de sua morte. Em outras
palavras,
vivíamos sujeitadas
a
mesmo
sujeição,
enquanto
não
simplesmente
vivenciávamos,
em
vivíamos
apenas
ou
6
.
sujeição
Embora
ela
reconhecíamos
nem não
como
e
pessoas
fizesse
parte
de
nenhum movimento Negro organizado – exceto pela forma como a vida e a mentalidade de uma pessoa são organizadas pelo mundo através da óptica 7
da porta
e da antinegridade e assim se posicionam para apreendê-lo –,
minha mãe era politicamente e socialmente astuta. Ela estava sintonizada não apenas com nossas circunstâncias individuais mas também com essas circunstâncias, visto que indicavam o mundo antinegro mais amplo que estruturava toda a nossa vida e com ele se relacionavam. Vigília; o estado de
vigilância;
consciência.
Foi
com
essa
ideia
de
vigilância
como
consciência que a maior parte da minha família viveu uma consciência de 8
si mesma como/no vestígio do projeto inacabado de emancipação.
Assim, o mesmo conjunto de perguntas e questões está se apresentando a nós através desses períodos históricos. Ele é a mesma história que está se contando a si própria, mas através das diferentes tecnologias e processos desse período particular [
]
9
.
É um grande salto passar da classe trabalhadora às universidades da Ivy League e, daí, ao cargo de professora titular. E,
parte
como parte
desse salto e
à
de suas especificidades, há o sentido e a consciência da precariedade;
as precariedades das vidas após a morte da escravização (“oportunidades de vida incertas, acesso limitado à saúde e à educação, morte prematura, 10
encarceramento e pobreza”);
as precariedades do desastre em curso das
rupturas da escravização de pessoas como bens móveis. Elas texturizam minhas
práticas
de
leitura,
meus
modos
9
de
ser
no/do
mundo,
minhas
relações com outras pessoas e as formas como me relaciono com/a estas. Segundo Maurice Blanchot:
O
desastre
arruína
tudo,
deixando
tudo
em
perfeito
estado.
[…]
Quando
o
desastre vem sobre nós, ele não acontece. O desastre é sua iminência, mas, uma
vez
que
o
futuro,
como
o
concebemos
na
ordem
do
tempo
vivido,
pertence ao desastre, o desastre sempre já o suprimiu ou dissuadiu; não há futuro
para
o
desastre,
assim
como
não
há
tempo
ou
espaço
para
sua
11
realização.
A
escravização
é
Negra foi e e
é
transatlântica
da
desastre
e 13
presente.
e
é
o
desastre.
O
desastre
da
sujeição 12
profundamente
história
foi
planejado; o terror é o desastre, e “o terror tem uma história” atemporal.
escravização a
escrita
Nesta
do
obra,
de
A
história
pessoas
desastre quero
como
nunca
pensar
do
capital
bens
estão
“o
é
móveis
inextricável no
presentes,
vestígio”
Atlântico.
sempre
como
da
um
O
são
o
problema
do/para o pensamento. Quero pensar o “cuidado” como um problema para o pensamento. Quero pensar o cuidado no vestígio como um
problema 14
para o pensamento e da/para a (não) existência Negra no mundo. outra forma, performa
No vestígio: Negridade e existência
que
o
pensamento 15
pensamento Negro”)
precisa
de
Dito de
é um trabalho que reitera e
cuidado
(“todo
pensamento
é
e que o pensamento e o cuidado precisam ficar no
vestígio. Dezembro
de
2013.
Eu
estava
no
supermercado
quando
meu
irmão
Stephen ligou. Escutei a mensagem e liguei para ele imediatamente. O tom de sua voz e a própria ligação me indicaram que algo estava errado, porque nos últimos anos meu irmão se tornara muito ruim em fazer e retornar ligações, Quando
um ele
fato
pelo
atendeu
o
qual
ele
telefone,
sempre me
se
disse
desculpou
que
tinha
profundamente.
más
notícias
sobre
Annette. Eu congelei. Perguntei: “O quê? Ela está bem?”. Stephen me disse que sim, fisicamente ela estava bem, mas Caleb (que se chamava Trey antes de ser adotado e renomeado), o filho adotivo e distante de Annette e de seu marido,
fora
assassinado
em
Pitsburgo.
Stephen
não
tinha
outras
informações. Caleb
havia
sido
severamente
maltratado
antes
de
ser
adotado
aos
cinco anos. Ele era muito pequeno e quieto para sua idade, e minha irmã e cunhado
no
gravidade
início
da
violência
problemas
de
resposta
uma
a
enfrentando, mesmo”.
No
não
tinham que
adaptação, pergunta
Caleb, fim
então
das
o
plena
sofrera. casal
na
contas,
Mas,
quando
procurou
terapia
com
consciência
sobre
seis
anos,
Caleb
foi
10
a
ajuda
as
da
extensão
Caleb de
não
“Eu
diagnosticado
que
sou
com
da
superou
terapeutas.
dificuldades
respondeu:
ou
estava
só
um
Em
ruim grave
transtorno de apego, o que significava que provavelmente nunca criaria laços
com
a
minha
irmã.
Há
outras
histórias
a
serem
contadas
a
esse
respeito; mas não são minhas para contá-las. Larguei minha cesta e saí da loja. Quando cheguei em casa, pesquisei na internet o nome de Caleb, e as breves notícias que encontrei nos sites do
Pittsburgh Post-Gazette jovem
Negro
de
vinte
e
TribLive
do
anos
no
eram
lado
norte
sobre de
o
assassinato
Pitsburgo;
de
juntas,
um
essas
notícias forneceram todos os detalhes que eu tinha sobre a morte de meu 16
sobrinho.
Caleb
Williams,
um
homem
Negro
de
vinte
anos,
residente
no
distrito
de
Turtle Creek, foi assassinado a tiros no tronco e no pescoço enquanto saía, acompanhado
de
outra
pessoa,
de
um
apartamento
no
bloco
1.700
da
rua
Letsche, no lado norte. Os tiros foram disparados de um apartamento vizinho. Ele
foi
levado
para
o
hospital
geral
Allegheny,
onde
morreu
mais
tarde.
17
Nenhuma pessoa foi acusada; a investigação está em andamento.
Essa não era a primeira vez que eu procurava nos jornais os detalhes do assassinato de alguém da minha família. Em 1994, a polícia da Filadélfia assassinou meu primo Robert, que era esquizofrênico; ele havia se tornado esquizofrênico
após
o
primeiro
ano
como
estudante
de
graduação
na
Universidade da Pensilvânia. O que consegui reconstruir com a ajuda do meu irmão Christopher, da minha companheira, da memória e de arquivos de
notícias
online
é
que
Robert
morava
em
um
apartamento
em
Germantown, não muito longe de meu tio, seu pai, e de minha tia, sua madrasta,
e
que
ele
havia
parado
de
tomar
sua
medicação.
Ele
era
um
homem grande, um metro e noventa. Ao que tudo indica, estava agitado e andando pela vizinhança.
Um homem de Germantown foi alvejado e morto na noite passada, quando encerrou um impasse de oito horas com a polícia ao sair do prédio em que morava apontando uma pistola de partida para os policiais, disse a polícia. Robert
Sharpe,
quarenta
anos,
foi
baleado
várias
vezes
do
lado
de
fora
do
prédio residencial na rua Manheim, perto da avenida Wayne. Ele foi declarado morto pouco tempo depois, no
campus
principal da Faculdade de Medicina do
18
Hospital da Pensilvânia.
O que o jornal não disse é que Robert era conhecido na vizinhança e que ninguém ali o temia; as pessoas estavam preocupadas com ele e queriam ajudá-lo a se acalmar. O que o jornal não disse é que a polícia atirou em Robert, que estava desarmado, ou armado com uma pistola de partida – uma arma de brinquedo –, à queima-roupa onze vezes, ou dezenove, pelas
11
19
costas.
20
Não havia como buscar justiça aqui. O que significaria justiça?
Em “Refusing Blackness-as-Victimization: Trayvon Martin and the Black Cyborgs”, Joy James e João Costa Vargas perguntam:
O que acontece quando, em vez de sentirmos fúria e choque cada vez que uma pessoa Negra é morta nos Estados Unidos, reconhecemos a morte Negra como um
aspecto
então
se,
previsível
em
vez
de
e
constitutivo
exigirmos
desta
justiça,
democracia?
O
reconhecermos
que
(ou
acontecerá
pelo
menos
considerarmos) que a própria noção de justiça […] produz e exige a exclusão e a 21
morte de pessoas Negras como norma?
Os
contínuos
sancionados
assassinatos
pelo
Estado
legais
são
a
e
extralegais
norma
e,
de
para
essa
pessoas assim
Negras
chamada
democracia, necessários; é o chão em que pisamos. E o fato de que esse
é
o
chão estabelece que, e talvez como, poderemos começar a viver em relação a essa exigência de nossa morte. Quais possibilidades de ruptura podem se abrir? O que acontece quando procedemos como se
soubéssemos
isto, ou
seja, que a antinegridade é o chão sobre o qual estamos de pé, a base na qual tentamos falar, por exemplo, um “eu” ou um “nós” que sabe, um “eu” ou um “nós” que se importa? O fato de que essas e outras mortes Negras sejam produzidas como norma ainda deixa lacunas e questões sem resposta para aquelas de nós no 22
vestígio
dessas mortes específicas e cumulativas. Minha sobrinha Dianna
me enviou um vídeo sobre seu primo, meu sobrinho. O vídeo era dedicado ao “Little Nigga Trey”, e o fato de existir diz muito sobre a vida do meu sobrinho depois que ele se mudou e voltou a viver próximo de sua família biológica em Pitsburgo, bem como sobre a família não biológica que ele 23
formou como jovem adulto.
A vida de Caleb foi singular e difícil, mas
também não foi muito diferente da de grande parte da juventude Negra que vive nas (e é produzida pelas) condições contemporâneas da vida Negra vivida no limiar da morte, como mortalidade, no vestígio da escravização. “Agentes federais prenderam um suspeito de homicídio em Pitsburgo esta manhã, em New Kensington, que está foragido desde dezembro.
é
acusado de matar Caleb Williams, vinte anos, de Turtle Creek, em 10 de 24
dezembro.”
Vereda; a linha de recuo de (uma arma)
.
Incluo o que é pessoal aqui para conectar as forças sociais acerca do que é existir no vestígio para uma família específica ao que é existir no vestígio para todas as pessoas Negras; para lamentar e ilustrar as maneiras como
nossas
vidas,
de
maneira
individual,
são
sempre
arrastadas
no
vestígio produzido e determinado, embora não de forma absoluta, pelas vidas após a morte da escravização. Em outras palavras, incluo o que é pessoal aqui a fim de situar este trabalho, e a mim mesma, no vestígio e do
12
vestígio.
O
“exemplo
autobiográfico”,
diz
Saidiya
Hartman,
“não
é
uma
história pessoal que se dobra sobre si mesma; não se trata de olhar para o próprio umbigo, trata-se de realmente tentar olhar o processo histórico e social e a própria formação como uma janela para os processos sociais e 25
históricos, como um exemplo deles”.
Como Hartman, incluo o pessoal
aqui “para contar uma história capaz de produzir envolvimento e de se 26
opor à violência da abstração”.
Final de janeiro de 2014. Eu estava me preparando para ir à Alemanha a fim de ministrar uma palestra, na primeira semana de fevereiro, quando minha sobrinha Dianna, filha do meu irmão mais velho Van Buren, ligou para dizer que Stephen, meu segundo irmão mais velho, havia passado mal e que ela e Karen, minha cunhada, haviam chamado uma ambulância para levá-lo ao hospital [fig. 1.2]. Ela disse que ele não queria ir, mas que estava com dificuldade para respirar. Eu sabia que Stephen não estava bem. No funeral de IdaMarie, ele estava com uma aparência envelhecida e parecia estar sentindo dor. Eu me convenci a acreditar que o que estava vendo em seu rosto e corpo eram “só” (como se isso pudesse ser “só”, em qualquer sentido da palavra) os efeitos de longo prazo da anemia falciforme, sua profunda tristeza pela morte de IdaMarie e a pobreza opressiva – a pobreza que
aflige
quem
trabalha-muito-duro-e-ainda-não-consegue-sobreviver.
Naquele momento também pensei,
mas não queria pensar
, que ele estava
realmente doente. Agora, em pânico, perguntei a Dianna se eu deveria ir até lá.
Quando
ela
respondeu
que
não,
eu
lhe
disse
que
tinha
uma
viagem
marcada para a Alemanha dali a alguns dias, mas que a cancelaria para ficar com minha família. Eu disse a ela que queria ver Stephen, queria estar com ele. No dia seguinte, conversei com Stephen, que estava confiante; assim, viajei
para
Bremen,
Universidade terceira
de
Alemanha,
Bremen,
apresentação
do
uma
onde
eu
palestra
trabalho
que
ministraria
intitulada
se
tornaria
uma
“No este
palestra
vestígio”. livro.
na
Foi
Em
a
nossa
conversa, Stephen me disse que estava fraco e preocupado e que a equipe médica
não
tinha
certeza
do
que
havia
de
errado
com
ele.
Stephen
fez
muitos exames e recebeu diagnósticos múltiplos e conflitantes. Dias após meu retorno de Bremen, a equipe médica finalmente deu a Stephen
um
diagnóstico
provavelmente arrasada.
teria
Ninguém
de
entre
tinha
mesotelioma
seis
e
certeza
nove de
maligno.
meses
como
ele
de
Disseram
vida.
A
que
família
desenvolvera
esse
ele
ficou
câncer
raro, geralmente causado pela exposição ao amianto. A equipe médica nos disse que o período de dormência para mesoteliomas é longo, de dez a cinquenta
anos.
Se
esse
mesotelioma
vinha
do
que
e
de
onde
imaginávamos, era uma surpresa que o dano causado por um trabalho de verão, há 45 anos, em uma empresa de materiais de isolamento térmico em
13
Wayne, na Pensilvânia, quando ele tinha quatorze anos de idade, pudesse aparecer agora, de súbito, fraturando o presente. No vestígio, o passado que não passou reaparece, sempre, para romper o presente.
O Passado – ou, mais precisamente, o que passou − é uma posição. Assim, de forma alguma podemos identificar o passado como passado 27
.
Em um dos momentos em que Stephen ficou sozinho em seu quarto de hospital, antes de ser transferido para um centro de reabilitação, depois de volta para a unidade de terapia intensiva do hospital e, finalmente, para cuidados paliativos, ele me ligou e me pediu um favor. Ele disse que sabia que podia contar comigo. Ele me pediu para não deixá-lo sofrer; para eu ter certeza de que ele estaria medicado o suficiente para não sofrer. Eu disse que sim, que eu cuidaria disso. Sabíamos que, tanto para mim quanto para ele, o final não dito dessa frase era “do jeito que nossa mãe sofreu” quando estava morrendo de câncer [fig. 1.3]. Uma noite, bastante tempo após essa conversa, Dianna me ligou e disse para eu ir rápido para lá. Alugamos um carro e dirigimos de Cambridge, Massachusetts, para Norristown, Pensilvânia. Mas meu irmão não podia mais falar quando chegamos ao hospital. Foi como uma repetição de 1998, quando – vindo de Geneva, Nova York, onde lecionava em meu primeiro emprego enquanto terminava minha tese de doutorado – consegui chegar e ficar
ao
lado
de
minha
mãe.
Desta
vez
também
cheguei.
Ele
percebeu
minha presença. (Eu sou a caçula. Nós sempre nos apoiamos.) Eu pude falar com ele. Pude segurar sua mão, acariciar seu rosto e tocar canções de Stevie Wonder e Bob Marley. Pude lhe dizer o quanto o amava, como ele viveria na minha vida e na de todas as pessoas que havia tocado. 21
de
tinham quando vinham
fevereiro
acabado mais do
de
de
sair
pessoas Texas,
2014. do
Minha quarto
amigas
da
irmã
de
de
meu
Califórnia
Annette
hospital irmão
e
de
e
em
seu que
marido, estava
começaram
outros
a
estados
James,
Stephen
chegar;
elas
distantes
da
Pensilvânia. O mais novo dos meus irmãos, Christopher (cinco anos mais velho
do
que
companheira
e
eu), eu
quarto
de
vinho,
conversamos
reuníamos
hospital.
em
chegaria
compramos Várias
volta
e
dia
vinho
amizades
rimos, da
no
e de
seguinte comida
de
à
Stephen
tudo
chegaram.
sua e
Califórnia.
levamos
Stephen
brindamos
cama
da e
vida.
Minha para
o
Abrimos
o
Enquanto
contávamos
nos
histórias,
tocávamos música, ríamos e dizíamos o quanto o amávamos, de repente Stephen se sentou, olhou para nós, tentou falar, uma lágrima correu em seu
Velório: uma vigília realizada ao lado do corpo de alguém que morreu, às vezes acompanhada por rituais de costume, incluindo comer e beber rosto,
ele
exalou,
deitou-se
novamente
e
morreu.
.
14
Defenda quem morreu
28
.
O que significa defender quem morreu? Cuidar das pessoas Negras mortas ou
à
beira
da
morte:
zelar
vivemos
constantemente
trabalho.
É
exige
trabalho:
atenção
pelas
empurradas
trabalho
vigilante
pessoas
às
Negras,
para
emocional,
necessidades
a
nossa
físico
de
pelo
e
povo
preto,
morte?
intelectual
quem
está
que
Significa
árduo
morrendo,
que para
facilitar seu caminho, e também às necessidades de quem vive. Vigilância, também, porque em todo e qualquer lugar em que estejamos, profissionais da saúde e de outras áreas nos tratam de maneira diferente: muitas vezes não
escutam
as
preocupações
de
pacientes
Negres
e
de
suas
famílias;
racionam remédios paliativos ou simplesmente nos negam acesso a tais 29
medicações. Segundo Stein,
embora existam várias razões para isso, a
experiência e a pesquisa nos dizem que “‘as pessoas presumem que, em relação
às
pessoas
enfrentaram sensíveis
à
mais dor,
brancas,
as
Negras
dificuldades’.
pessoas
[…]
Negras
são
sentem
Por
menos
serem
forçadas
a
dor,
porque
consideradas
menos
suportar
mais
30
dor”.
Tivemos de trabalhar para garantir que Stephen ficasse o mais confortável possível. Ao
estar
com
Stephen,
entre
familiares
amizades, enquanto ele morria, eu
re
de
na
sentar-se
ao
lado
de
alguém
e
pessoas
de
seu
círculo
de
-vivenciei o poder da vigília. O poder hora
de
sua
morte,
o
importante
trabalho de estar ao lado (junto com outras pessoas) na hora da dor e da tristeza
causadas
celebrar
uma
pela
vida.
morte,
Velório;
como
vigília:
uma
luto,
forma
de
celebração,
marcar, memória
lembrar e
e
pessoas
vivas que, por meio do ritual, lamentam a passagem e celebram a vida de alguém, principalmente quando parentes e pessoas amigas velam ao lado do corpo de quem morreu, do momento de sua passagem ao sepultamento, entre comes e bebes e outros rituais incidentais a esse. A vigília continuou após a morte de Stephen, no funeral e na reunião que se seguiu, celebrando sua vida. E, ao passo que o vestígio produz morte e trauma Negros – “a violência 31
[…] precede e excede os Negros”
– nós, povo preto, em todo e qualquer
lugar em que estejamos, ainda produzimos no, para o e através do vestígio uma insistência na existência: ecoamos a vida Negra no vestígio.
DA EXISTÊNCIA NO VESTÍGIO/ENSINANDO N/O VESTÍGIO 15
Eu ministro um curso chamado Memory for Forgetting. O título veio de minha lembrança equivocada de um livro que Judith Butler mencionara em uma
palestra
da
MLA
[Modern
Language
Association
–
Associação
de
Línguas Modernas] em San Diego, em 2004, sobre ativismo e academia. O livro era
Memory for Forgetfulness
, de Mahmoud Darwish. O curso analisa
duas histórias traumáticas (o Holocausto e grande parte da escravização nos Estados Unidos/na América do Norte) e filmes, memórias, narrativas, obras
de
literatura
e
de
arte
que
abordam
esses
traumas.
Descobri
que
tenho de trabalhar muito com estudantes quando se trata de pensar sobre a escravização ordem
e
suas
cronológica,
vidas
após
descobri
a
morte.
que
boa
Quando
parte
da
ministrei
turma,
o
curso
certamente
em
bem-
intencionada, se agarrava em qualquer empatia que pudesse ter para ler sobre
o
Holocausto,
mas
não
fazia
o
mesmo
quando
se
tratava
da
escravização na América do Norte. Depois de dois semestres disso, comecei a ensinar primeiro sobre o Holocausto e depois sobre a escravização de pessoas como bens móveis na América do Norte. Entretanto, mesmo após essa mudança, eu continuava ouvindo comentários do tipo: “Bem, essas pessoas
escravizadas
recebiam
comida
e
roupas;
havia
uma
espécie
de
cuidado ali. Caso contrário, o que elas teriam feito?”. O “caso contrário” aqui significa: que vidas pessoas Negras teriam tido fora da escravização? Como teriam sobrevivido de forma independente de quem as escravizava? Para que a turma enfrente sua incapacidade de pensar a negridade de outra forma
e
de
pensar
determinado
Shoah
a
escravização
momento
do
curso
como
violência
repasso
uma
do
cena
Estado,
do
em
um
documentário
, de Claude Lanzmann. A cena está na parte em que encontramos
Simon
Srebnik
(uma
das
três
pessoas
sobreviventes
do
massacre
de
Chelmno e que morava então em Israel) em seu retorno a Chelmno, na Polônia. Nessa cena, Srebnik é cercado por habitantes da cidade que se lembram dele como o menino de bela voz que era obrigado pelas forças alemãs a cantar próximo ao rio todas as manhãs. No início, o grupo de habitantes da cidade fica feliz em vê-lo, em saber que ele está vivo. Porém, em seguida, a alegria e o espanto rapidamente se transformam em outra coisa, e as pessoas começam a falar sobre como ajudaram a comunidade judaica de Chelmno, logo passando a culpar a própria comunidade judaica de Chelmno pelo genocídio que sofreu. A câmera permanece no rosto de Srebnik, que fica cada vez mais estático em um quase sorriso à medida que essas pessoas o cercam. Algumas delas, chamadas para fora de casa pelo seu canto próximo ao rio – como se ele fosse alguém que voltou da morte –, são
as
mesmas
que,
por
apatia
ou
de
modo
mais
direto,
facilitaram
o
assassinato de milhares de judeus e judias residentes na cidade. A turma de estudantes
ficou
chocada
com
tudo
isso
e
sentiu
empatia
por
ele.
Perguntei, então, se conseguiam imaginar Simon Srebnik, após o fim da guerra,
não
tendo
para
onde
ir
e
precisando
16
voltar
a
esse
país,
a
essa
cidade; a essas pessoas que o teriam visto morrer também; que tinham, de fato, tentado matá-lo, assim como a toda a sua comunidade em Chelmno. Essa
é,
eu
digo,
a
condição
de
pessoas
ex-escravizadas
e
de
sua
plantation
descendência nos Estados Unidos pós-Guerra Civil; ainda na
,
ainda cercadas por quem reivindicou a propriedade sobre elas e que lutou, e ainda luta, para estender esse estado de captura e sujeição de todas as maneiras
legais
e
extralegais
possíveis,
até
hoje.
Os
meios
e
modos
de
sujeição infligidos às pessoas Negras podem ter mudado, mas o fato e a estrutura dessa sujeição permanecem. Aquelas
dentre
escravização
e
nós
suas
que
vidas
ensinam,
após
a
escrevem
morte
e
pensam
encontramos
uma
sobre
miríade
a de
silêncios e rupturas no tempo, espaço, história, ética, pesquisa e método enquanto
fazemos
nosso
trabalho.
Continuamente,
intelectuais
que
estudamos a escravização enfrentamos ausências nos arquivos enquanto tentamos
encontrar
apagamentos, acredito,
“agentes
projeções,
maneiras
32
enterrados
fabulações
específicas
e
debaixo”
nomeações
pelas
quais
do
acúmulo
errôneas.
de
Existem,
intelectuais
Negres
eu
que
estudamos a escravização ficamos imóveis diante das verdades parciais dos arquivos,
enquanto
tentamos
dar
sentido
a
seus
silêncios,
ausências
e
modos de (des)aparecimento. Os métodos mais prontamente disponíveis para nós às vezes, muitas vezes, nos forçam a posições que vão contra o que sabemos. Negra
na
Ou
seja,
nosso
escravização
conhecimento
é
obtido 33
também excede os estudos.
da
através
escravização
de
nossos
e
da
existência
estudos,
sim,
mas
É obtido através dos tipos de conhecimento
do/no cotidiano, a partir do que Dionne Brand chama de “sentar-se no espaço
com
a
desprezemos, conhecer
e
34
história”.
dispensemos,
que
Espera-se
que
abandonemos
encenemos
a
violência
e
descartemos, meçamos
epistêmica,
a
ignoremos,
essas
qual
formas
sabemos
de ser
violência contra outras pessoas e contra nós mesmas. Em outras palavras, para
produzir
trabalhos
legíveis
na
academia,
muitas
vezes
intelectuais
Negres precisamos aderir a métodos de pesquisa “convocados a serviço de 35
uma força destrutiva maior”,
violando assim nossas próprias capacidades
de ler, pensar e imaginar outramente. Apesar de sabermos outramente, somos com frequência disciplinadas a pensar por meio de nossa própria aniquilação e em linhas que a reinscrevem, reforçando e reproduzindo o
status
que Sylvia Wynter chamou de nosso “
36
narrativamente condenado”.
Devemos nos indisciplinar. O trabalho que fazemos requer novos modos e métodos
de
pesquisa
e
ensino;
novas
formas
de
adentrar
e
sair
dos
arquivos da escravização, de desfazer “um cálculo racial e uma aritmética política
que
foram
entrincheirados
séculos
presente. Acho que é isso que Brand descreve em
Não Retorno
37
atrás”
e
que
vivem
até
o
Um mapa para a Porta do
como uma espécie de conhecimento enegrecido, um método
acientífico, forjado na compreensão de que o lugar onde se está tem a ver
17
com a Porta do Não Retorno e com aquele momento de ruptura histórica e contínua.
Com
essa
base,
tenho
tentado
articular
um
método
para
encontrar um passado que não passou. Um método semelhante a sentar-se ao
lado,
um
encontro
e
um
rastreamento
de
fenômenos
que
afetam
desproporcional e devastadoramente os povos pretos em todo e qualquer lugar
em
que
estejamos.
Tenho
pensado
nesse
encontro,
nessa
coleta
e
leitura em direção a um novo modo analítico, como o vestígio e o trabalho de vigília, e estou interessada em tramar, mapear e coletar os arquivos do cotidiano da morte Negra imanente e iminente, bem como em rastrear as maneiras
como
resistimos,
rompemos
e
perturbamos
essa
imanência
e
iminência estética e materialmente. Interessa-me passado,
para
interessada,
saber
além
das
também,
manifestações
dessa
como
imaginamos
ficções
nas
do
arquivo,
maneiras
ficção
e
desse
formas
como
além,
mas
de
conhecer
não
só
isso.
reconhecemos
desse
passado
as
que
esse Estou
muitas
ainda
não
passou, no presente.
NO VESTÍGIO wake
Mantendo cada uma das definições de vestígio [
] em mente, quero
pensar e argumentar a favor de um aspecto da existência Negra no vestígio como consciência e propor que existir pelo
presente
contínuo
resolvidos da escravização.
e
no
mutável
Existir
vestígio é ocupar e estar ocupada
dos
desdobramentos
ainda
não
“no” vestígio e ser o vestígio, ocupar essa
gramática, o infinitivo, pode fornecer outra maneira de teorizar, no/para o/a partir do que Frank Wilderson descreve como “permanece[r] no porão 38
do navio”.
wake
Com cada uma dessas definições de vestígio [
] presentes
ao longo do meu texto, argumento que, em vez de buscar uma solução para a abjeção contínua e insolúvel da negridade, pode-se abordar a existência Negra
no
vestígio
como
uma
forma
consciência
de
.
Intelectuais
de
diferentes áreas, como ciências políticas, história, filosofia, literatura, entre outras,
formularam
desigualdade indagando
racial
sobre
a
como após
questão
a
para
emancipação
associação
direta
da
reflexão jurídica
e
negridade
a os
resistência direitos
como
a
da
civis,
negação
ontológica do ser a pessoas e comunidades Negras. Ou seja, em diversas disciplinas,
a
comunidade
acadêmica
continua
a
se
preocupar
com
a
resistência da antinegridade dentro e fora da contemporaneidade. Dessa forma,
este
livro
junta-se
ao
trabalho
de
intelectuais
que
investigam
o
problema persistente da exclusão Negra do pertencimento social, político e cultural; nosso banimento do reino do humano. Mas o livro se distancia de intelectuais e de obras que buscam respostas políticas, jurídicas ou mesmo
18
filosóficas
para
esse
problema.
Meu
projeto
olha
para
os
desastres
cotidianos atuais no intuito de perguntar o que, se é que algo, sobrevive a essa persistente exclusão das pessoas Negras, a essa negação ontológica, e como a literatura, a performance e a cultura visual observam e medeiam essa (não) sobrevivência. Para fazer esse trabalho de me manter no vestígio e realizar o trabalho de vigília, volto-me também para formas de expressão cultural como
Negras
M.
buscam
(por
NourbeSe
explicar
exemplo, Philip,
nem
as
obras
Dionne
resolver
a
de
Brand
questão
poetas
e
e
Kamau
dessa
poetas-romancistas
Brathwaite)
exclusão
em
que
não
termos
de
assimilação, de inclusão ou de direitos civis ou humanos, mas sim retratar esteticamente
a
impossibilidade
de
tais
resoluções,
representando
os
paradoxos da negridade nos legados da negação da humanidade Negra pela escravização e depois deles. Nomeio esse paradoxo como vestígio, e uso
wake
vestígio [
] em todos os seus significados [vestígio, vigília, vereda] como
um meio de compreender como as violências da escravização emergem nas condições
contemporâneas
de
dimensões
espaciais,
legais,
psíquicas
e
materiais e em outras dimensões da (não) existência Negra, bem como em modos Negros de resistência.
Se a escravização persiste como uma questão na vida política da América negra, não é por causa de uma obsessão antiquada com o passado ou do peso de uma memória muito antiga, mas porque as vidas negras estão ainda sob perigo e ainda são desvalorizadas por um cálculo racial e uma aritmética política que foram entrincheirados séculos atrás. Esta é a vida após a morte da escravização: oportunidades de vida incertas, acesso limitado à saúde e à educação, morte prematura, encarceramento e pobreza. Eu, também, sou a vida após a morte da escravização 39
40
41
.
Viver
(n)o
vestígio
propriedade”
ventrem status
e
da
viver
a
escravização vida
após
a
é
viver
morte
“a
da
vida
ideia
após
de
a
morte
da
partus sequitur
(quem nasce segue o ventre), em que a criança Negra herda o (não)
, a (não) existência de sua mãe. Essa herança de um (não)
aparente em toda parte
agora
status
está
na criminalização contínua de mulheres e
crianças Negras. Viver no vestígio em uma escala global significa viver o tempo
desastroso
desastres
e
os
efeitos
mediterrâneos
transafricana,
ajustes
e
de
migrações
caribenhos,
estruturais
marcadas
migração
impostos
pelo
e
ininterruptas,
transamericana Fundo
e
Monetário
Internacional, que dá sequência a imperialismos/colonialismos etc. E aqui, nos
Estados
Unidos,
significa
viver
e
morrer
em
meio
às
políticas
do
primeiro presidente estadunidense Negro; significa a violência gratuita do 42
baculejo policial e da Operation Clean Halls;
as perturbadoras taxas de
encarceramento da população Negra (pessoas Negras representam 60% da população
encarcerada);
a
imanência
19
da
morte
como
“um
aspecto
previsível
e
constitutivo
dessa
43
democracia”.
Viver
no
vestígio
significa
viver a história e o presente do terror, do período da escravização até os dias
de
hoje,
brutalidade presente passo
e
como
a
base
histórica
e
revigorada
que,
mesmo
de
nossa
existência
Negra
cotidiana;
geograficamente
(des)contínua,
maneira
em/sobre
de
quando
esse
infinita,
terror
é
visitado
mas
nossos
em
nosso
viver
a
sempre
corpos,
ao
corpo,
as
realidades desse terror são apagadas. Em outras palavras, viver no vestígio significa viver no/com terror, considerando que, em grande parte do que passa
por
tornamos
discurso
portadoras
sobre
público
o
terror,
nós,
pessoas
Negras,
nos
do terror, a personificação do terror, e não os objetos
primários das múltiplas encenações do terror; a base da possibilidade do terror, globalmente. Isso se torna bem nítido quando pensamos sobre as pessoas
Negras
nos
Estados
Unidos
que
podem
“usar
calçadas
como
armas” (Trayvon Martin) e atirar em si mesmas enquanto estão algemadas (Victor
White
III, 44
transmigrando
Chavis
Carter,
Jesus
Huerta
etc.),
pessoas
Negras
do continente africano para o Mediterrâneo e então para a
Europa imaginadas como insetos, enxames, vetores de doenças; narrativas familiares de perigo e desastre que se prendem aos nossos corpos Negros sempre já armados (a arma é a negridade). Devemos também, por exemplo, pensar no ex-secretário de imprensa do presidente Obama, Robert Gibbs, que
disse,
ao
comentar
sobre
o
assassinato
por
drone
do
cidadão
estadunidense Abdulrahman Al-Awlaki, de dezesseis anos: “Eu diria que você
deveria
ter
um
pai
muito
mais
responsável, 45
preocupa com o bem-estar de suas crianças”. em
conjunto
dominicanas
com de
o
rastreamento
ascendência
por
haitiana
sem
você
realmente
se
Devemos considerar isso
drones e
se
de
pessoas
documentos 46
limpeza étnica em curso na República Dominicana.
haitianas
e
em
à
meio
Devemos considerar
a declaração de Gibbs ao lado das críticas de Barack Obama aos homens Negros
nos
Estados
responsáveis.
Unidos,
Consideremos,
sua
advertência
também,
o
para
ressurgimento
que de
sejam
pais
narrativas
de
que pessoas Negras viviam melhor durante a escravização. Essa é a vida Negra no vestígio; essa é a carne, esses são os corpos aos quais tudo e qualquer coisa pode ser feita e o é. Imediatamente
após
o
assassinato
de
seis
mulheres
e
três
homens
Negres em 17 de junho de 2015, na Emanuel African Methodist Episcopal Church, publicou
na
Carolina
um
artigo
do de
Sul,
Estados
opinião
no
Unidos,
a
poeta
New York Times
Claudia
Rankine
intitulado
“The
Condition of Black Life Is One of Mourning”, no qual escreve:
Embora a imaginação liberal branca goste de se sentir temporariamente mal com
o
sofrimento
negro,
não
há,
de
fato,
nenhuma
forma
de
empatia
que
possa replicar a tensão cotidiana de saber que, como uma pessoa negra, você
20
pode ser morta por simplesmente ser negra: é proibido ficar com as mãos nos bolsos, ouvir música, fazer movimentos bruscos, dirigir seu carro, caminhar à noite, caminhar durante o dia, virar nesta rua, entrar neste prédio, defender seu território, ficar imóvel aqui, ficar imóvel ali, responder, brincar com armas 47
de brinquedo, viver enquanto pessoa negra.
Existir no vestígio é viver nesses nãos, viver no não espaço que a lei não é obrigada a respeitar, viver na não cidadania, viver nos infindáveis tempos de Dred e Harriet Scott; e é mais do que isso. Existir/no vestígio é ocupar aquele/a tempo/espaço/lugar/construção (existência no vestígio) em todos os sentidos que mencionei. Existir no vestígio é reconhecer as categorias que teorizo neste texto como as localizações contínuas da existência Negra: o
vestígio,
reconhecer
o
navio,
as
o
porão
maneiras
e
pelas
o
tempo.
quais
Existir
somos
no
vestígio
constituídas
também
através
vulnerabilidade contínua à força opressora, embora não seja
é
da/pela
apenas por
48
essa força que nos reconheçamos e sejamos reconhecidas.
Em meio a tanta morte e ao fato da vida Negra como próxima da morte, como dar atenção à morte física, social e figurativa e também à vastidão que
é
a
vida
Negra,
a
vida
Negra
que
insiste
apesar
da
morte?
Minha
49
sugestão é a de que isso pode ser parecido com o trabalho de vigília.
TRABALHO DE VIGÍLIA Quando finalmente cheguei à Porta do Não Retorno, havia um funcionário lá, um guia que ou era um homem com sua vida comum ou um idiota ou um hipócrita. Mas, mesmo que ele fosse um homem com sua vida comum, um idiota ou um hipócrita, ele era autoritário. Violeta exausta, o funcionário exclama. Sim ele era, diz a autora, armadilhas violeta. Por alguma estranha razão, ele queria controlar a história. Arquivos violeta. Química violeta. Unção violeta. Era dezembro, trouxemos uma garrafa de rum, algum ritual antigo que lembrávamos de lugar nenhum e de ninguém. Nós ficamos em fileira, como de costume. O castelo era enorme, opulento, uma empresa em funcionamento em sua época. Fomos como peregrinas. Vocês eram peregrinas. Nós éramos peregrinas. Nunca fomos mais sagradas que isso. Nossos deuses estavam nas celas. Nós os despertamos e os deixamos lá, porque nunca mais precisamos de deuses. Não tínhamos deuses perversos, então entenderam. Deitavam em seus cantos, em seus chãos desintegrados, deitavam em sua parede de poeira de pele. Se levantaram quando entramos, felizes em nos ver. Nosso guia disse, esta era a cela da prisão para os homens, esta era a cela da prisão para as mulheres. Eu quis estrangular o guia como se ele fosse o guia original. Precisei me controlar com todas as minhas forças. Agora nos espaços o guia era irrelevante, os deuses acordaram e sentimos pena deles, carinho e amor; eles ficaram felizes por nós,
21
ainda estávamos vivas. Sim, ainda estamos vivas, dissemos. E retornamos para lhes agradecer. Vocês ainda estão vivas, disseram. Sim, ainda estamos vivas. Eles nos olharam como violetas; como chás de violeta, nos beberam. Dissemos aqui estamos. Disseram, vocês ainda estão vivas. Dissemos, sim, sim, ainda estamos vivas. Como limão, disseram, tão azul como a sorte. Tiramos a garrafa de rum de nossas veias, lavamos seus rostos. Nós éramos peregrinas, eles eram deuses. Costuramos a borda de suas peles com algodão. Isso é o que tínhamos. Disseram com maravilhamento e admiração, vocês ainda estão vivas, como hidrogênio, como oxigênio Ficamos todas paradas lá por um tempo infinito. Choramos, mas em comparação isso não é nada .
.
—
Se,
DIONNE BRAND,
como
sugeri
até
“Verso 55”
agora,
pensarmos
a
metáfora
do
wake
vestígio
[
]
na
totalidade de seus significados (a vigília pelas pessoas mortas, o rastro ou a esteira de um navio, uma consequência de algo, o trajeto de voo e/ou linha de visão, estar em alerta e consciente) e unirmos o vestígio ao trabalho para que
possamos
fazer
do
vestígio
e
trabalho de vigília
do
nossos
modos
analíticos, poderemos continuar a imaginar novas maneiras de viver no vestígio
da
escravização,
nas
vidas
após
a
morte
da
escravização,
para
sobreviver (e mais) à vida após a morte da propriedade. Em suma, quero dizer
que
o
trabalho
de
vigília
é
um
modo
de
habitar
e
romper
essa
episteme com nossas vidas conhecidas vividas e (in)imagináveis. Com esse modo analítico, podemos imaginar outramente a partir do que sabemos
agora
no vestígio da escravização.
Dionne Brand faz esse trabalho de vigília quando imagina outramente no “Verso 55”, no qual não apenas revisita a imaginação em
a Porta do Não Retorno
Um mapa para
acerca da consciência diaspórica em relação àquela
porta como um local mítico e real mas também imagina um encontro entre pessoas retornadas da Diáspora e aquelas que foram detidas nas celas das 50
fortificações.
Ela imagina as pessoas que foram presas, reconfigurando –
reencontrando-se
com
maravilhamento
–
os
traços
de
suas
antigas
existências aflorando em saudação. Aqui ancestrais são como Marie Ursule, que, em que
a
At the Full and Change of the Moon
, reanima as freiras ursulinas
escravizaram
num/no
futuro.
peregrinas,
as
Em
para
que
“Verso
pessoas
que
cuidem
55”,
de
Brand
foram
sua
filha
imagina
capturadas
Bola,
que,
se
com
que a
ela
sonha
entrada
reconstituem
de
das
onde
“deitavam em seus cantos, em seus chãos desintegrados, deitavam em sua parede de poeira de pele”, e se levantam para saudá-las; ancestrais, únicos deuses celas.
que Com
tínhamos, essas
seus
palavras,
traços Brand
de
tanta
elabora
poeira (n)o
e
assombro
vestígio
naquelas
para além
da
“produção a partir do nada: espaços vazios, silêncio e vidas reduzidas a 51
destroços”. Ela imagina outros usos para “os pedaços do arquivo”.
22
Brand,
como Hartman, encontra esses espaços, essa dor do/no arquivo, mas esses espaços não estão vazios, e, embora os pedaços de algodão – a safra escrava do
novo
mundo
–
possam,
na
verdade,
ser
insuficientes
para
as
nossas
necessidades e para as deles, são o que temos a oferecer. E aqueles que habitavam aqueles espaços não pensavam nos grupos de visitantes, não podiam saber, mas talvez imaginassem, que qualquer coisa, qualquer parte de
si
sobreviveria
ao
porão,
ao
tráfico,
à
água
e
ao
tempo,
imaginando
também que beberiam o grupo de visitantes como chá de violeta e aroma de limão. O “Verso 55” está repleto do conhecimento de que essa prisão, essas mortes, aquele tráfico nunca deveriam ter acontecido, e com esse conhecimento e “os pedaços do arquivo” Brand imagina algo que parece completamente novo. Os espaços não estão vazios, e os pedaços são o que temos para oferecer. Mas, mesmo que aquelas pessoas africanas nos porões dos tumbeiros, que deixaram algo de seus eus anteriores naquelas celas, como um traço a ser descoberto, e que passaram pelas portas do não retorno, não tivessem sobrevivido ao aprisionamento e ao mar, elas, como nós, estão vivas no hidrogênio, no oxigênio; no carbono, no fósforo e no ferro; no sódio e no cloro. Isso é o que sabemos sobre aquelas pessoas da África lançadas e 52
jogadas ao mar na Passagem do Meio;
elas ainda estão conosco, no tempo
do vestígio, conhecido como tempo de residência da água.
Disseram com maravilhamento e admiração, vocês ainda estão vivas, como hidrogênio, como oxigênio 53
.
Brand também faz isso em
Um mapa para a Porta do Não Retorno
, mais 54
precisamente com seu “Portulano para pessoas à deriva na Diáspora”, onde
abundam
pertencimento
e
sua
recusa
em
pensar
forte insistência
sua
no
nos
retorno,
fatos
do
seu
desalojo
deslocamento
e
do das
vivências em/como pessoas deslocadas da Diáspora. NourbeSe Philip faz isso em seu livro de poemas
Zong!
através da destruição do arquivo que
opera para contar “a história que não pode ser contada”, mas que ainda 55
deve ser contada. estou
chamando
Devemos nos ater (e já nos atemos) ao trabalho que
de
trabalho
de
vigília
como
uma
teoria
e
práxis
do
vestígio; uma teoria e uma práxis da existência Negra na Diáspora. Estou tentando encontrar as palavras para este trabalho, encontrar a forma para este trabalho. A linguagem e a forma se fraturam mais e mais a cada dia. Estou tentando, também, encontrar as palavras que articularão o cuidado e as palavras para pensar o que Keguro Macharia chama de “nós formações”
we formations
[
56
].
Estou
tentando
entender
como
fazer
o
trabalho delas. Ou o que Tinsley chama de “sentimento e sensação de”
feeling and feeling for
[
] e o que Glissant designa como “nos conhecemos na
23
nous connaissons en foule
multidão” [
57
].
Isso é o que estou chamando de
trabalho de vigília. Com Brand e Philip, eu quero vibrar essa linguagem novamente,
vibrar
uma
linguagem
nova.
Pensando,
ainda
com
Brand
e
Philip, que exigem, sempre, um pensamento novo, quero distinguir o que chamo de existência Negra no vestígio e trabalho de vigília do trabalho de 58
melancolia e luto. parte,
atento
ao
E, embora o trabalho de vigília seja, pelo menos em
luto
e
ao
trabalho
de
luto
que
ocorre
em
níveis
local,
trans*local e global, e mesmo sabendo que o luto de um evento pode não ter fim, como se lamenta o evento interminável? Assim como o trabalho de vigília
perturba
o
luto,
o
vestígio
e
o
trabalho
de
vigília
perturbam
as
maneiras como a maioria dos museus e memoriais tratam de traumas e memórias. reparação público
Ou
seja,
(reparo)
para
experiências
que
e
se
tenha
acerca
museus
encenam
de
uma um
e
memoriais
suas
próprias
experiência
evento
que
é
materializam
pedagogias
específica visto
ou
como
um
ao
tipo
de
posicionar
um
conjunto
passado,
o
de
como
se
preserva a memória da escravização de pessoas como bens móveis e suas vidas
após
a
morte
ainda
incandescentes?
Como
podemos
preservar
a
memória de um evento que ainda está em curso? Poderíamos entender, portanto, a ausência de um Museu Nacional da Escravidão nos Estados Unidos
como
o
reconhecimento
da
continuidade
das
condições
de
captura? Afinal, como se preserva a memória do cotidiano? Como alguém, nas palavras tão frequentemente usadas por tais instituições, “aprende a lidar com” (o que geralmente significa superar) a atrocidade contínua e cotidiana? Dito de outra forma, estou interessada em maneiras de ver e imaginar vidas
respostas
Negras
são
ao
terror
vividas
nas
em
variadas
estado
de
e
várias
sítio;
formas
formas
como
que
nossas
atestam
as
modalidades da vida Negra vivida na/como/sob a/apesar da morte Negra. E quero pensar sobre o que essa imaginação suscita, para pensar sobre o que ela “nos” convoca a fazer, pensar e sentir no vestígio da escravização – ou seja, em um presente contínuo de sujeição e resistência; ou seja, o trabalho de vigília, a teoria do vestígio. Quero, também, distinguir entre o que estou evocando e chamando de cuidado e os regimes de vigilância impostos pelo 59
Estado.
Como
podemos
pensar
(e
repensar,
e
repensar)
o
cuidado
lateralmente, no registro intramuros, em uma relação diferente daquela de violência do Estado? De que forma nos lembramos das pessoas mortas, das perdidas na Passagem do Meio, das que chegaram com relutância e das que ainda estão chegando? Para citar Gaston Bachelard, a quem cheguei através do artigo “Heavy Waters”, de Elizabeth DeLoughrey, “a água é um elemento 60
‘que lembra de quem morreu’”.
Quais são, então, as coordenadas e efeitos contínuos do vestígio, e o que significa
habitar
aquela
“zona
do
não
ser”
fanoniana 61
negação da humanidade Negra pela escravização?
durante
e
após
a
Habitar aqui é o estado
de ser habitada/ocupada e também de estar ou morar [em]. Ao ativar os
24
múltiplos
registros
de
“vestígio”,
voltei-me
para
imagens,
poesia
e
literatura que se apropriam do vestígio como uma forma de compreender como os desdobramentos contínuos da escravização são constitutivos das condições espaciais, legais, psíquicas e materiais contemporâneas da (não) existência
Negra,
bem
como
da
estética
Negra
e
outros
modos
de
deformação e interrupção. Esse conjunto de trabalhos de artistas, poetas e intelectuais
Negres
é
posicionado
contra
um
conjunto
de
eventos
catastróficos do cotidiano e seus relatos que, juntos, compreendem o que estou chamando de ortografia do vestígio. Esta última é uma disgrafia de desastre,
e
esses
desastres
chegam
por
meio
da
circulação
rápida,
deliberada, repetitiva e ampla na televisão e nas redes sociais da morte social,
material
(in)visível
e
e
(não)
psíquica
Negra.
visceral.
Essa
Essa
ortografia
ortografia
é
um
torna
exemplo
a
dominação
do
que
estou
chamando de o Tempo; ela registra e produz as convenções antinegridade no presente e para o futuro.
wakes
Uma retrospectiva e uma elaboração: vigílias [
] são processos; por
meio deles pensamos em quem morreu e em nossas relações com essas pessoas;
são
rituais
por
meio
dos
quais
encenamos
luto
e
memória.
Velórios permitem que pessoas vivas lamentem a passagem das mortas por meio de rituais; trata-se do ato de velar praticado por parentes e pessoas amigas
ao
lado
sepultamento,
do
entre
corpo comes
de e
quem
bebes,
faleceu,
celebração
desde e
a
outras
wakes
vigília realizada como ritual religioso. Mas vigílias [
morte
até
práticas,
o
uma
] também são “o
vestígio deixado na superfície da água por um navio [fig. 1.4]; a perturbação causada por um corpo nadando ou sendo movido na água; as correntes de ar atrás de um corpo em voo; uma região de fluxo perturbado; na linha de visão de (um objeto observado); e (algo) na vereda de recuo de (uma arma)”; por fim, vigília significa estar alerta e, também, consciência. No vestígio, a semiótica do navio tumbeiro continua: dos movimentos forçados de pessoas escravizadas aos movimentos forçados de migrantes e pessoas refugiadas, à vigilância de pessoas Negras nas ruas e bairros da América
do
Norte,
às
travessias
contínuas
e
aos
afogamentos
no
mar
Mediterrâneo, às brutais reimaginações coloniais do tumbeiro e da arca; aos reaparecimentos do tumbeiro na vida cotidiana em forma de prisão, de campos de trabalho forçado e da escola. À medida que avançamos no trabalho de vigília, devemos pensar na contenção, vigilância, punição, captura e cativeiro, e nas maneiras como as representações excelência,
da
múltiplas existência
da
negridade
se
tornam
menos-que-humana
o
símbolo,
condenada
à
por
morte.
Devemos pensar sobre a carne Negra, a lente Negra e as maneiras como produzimos trabalho encarnado; pensar as maneiras como o cativeiro não pode nos conter e não nos contém, mesmo que permaneça na forma da
25
semiótica do porão do tumbeiro, da prisão, do ventre, e em outros lugares na/como
a
tensão
entre
a
existência
e
a
instrumentalidade
que
é
a
existência Negra no vestígio. O que está em jogo é o não reconhecimento da antinegridade
como
clima
total.
Também
está
em
jogo
o
não
reconhecimento de uma resistência visual-sônica Negra insistente a essa imposição de (não) existência. Como podemos ficar no vestígio com/como pessoas que o Estado marca para morrer mortes não passíveis de luto e viver
vidas
destinadas
a
serem
invivíveis?
contenção
do
vestígio.
Em
Essas
longue durée
temporalidade, de longa duração [ jogo,
são
questões
de
], o tempo de residência e de
então,
está
ficar
neste
tempo
de
vigília
rumo à habitação de uma consciência enegrecida que romperia os silêncios estruturais produzidos e facilitados pelas mortes social e física Negras e 62
que as produzem e facilitam.
Pois, se tivermos sorte, vivemos sabendo que o vestígio nos posicionou na
não
63
cidadania.
Se
tivermos
sorte,
saber
desse
posicionamento
nos
trará maneiras específicas de (re)ver, (re)habitar e (re)imaginar o mundo. E poderemos usar essas maneiras de existir no vestígio em nossas respostas ao
terror
e
às
várias
e
variadas
formas
vividas em estado de sítio. Quero que
como
No vestígio
nossas
vidas
Negras
são
declare que somos povos
pretos no vestígio, sem Estado ou nação que nos proteja, sem cidadania vinculada a ser respeitada nem a nos posicionar nas modalidades da vida Negra vivida na/como/sob a/apesar da morte Negra: pensar, ser e agir a partir daí. Minha esperança é que a práxis do vestígio e do trabalho de vigília, a teoria e a performance do vestígio e do trabalho de vigília, como modos
de
cuidar
imaginadas responder
e à
enfrentamos;
da
vida
e
performadas hediondez também
dos
espero
do
sofrimento
aqui
com
múltiplos que
a
das
pessoas
especificidade e
práxis
sobrepostos do
vestígio
Negras,
sejam
suficiente
e
presentes do
para que
trabalho
de
vigília tenha capacidade suficiente para viajar e realizar trabalhos que não fui capaz de imaginar ou antecipar aqui.
26
[1.1] A autora (com dez anos) e seu sobrinho Jason Phillip Sharpe (de aproximadamente um mês).
[1.2] Stephen Wheatley Sharpe (com dezoito anos).
27
[1.3] Ida Wright Sharpe (minha mãe), Van Buren Sharpe Jr. (meu pai), IdaMarie Sharpe (minha irmã), Van Buren Sharpe III (meu irmão) e Stephen Wheatley Sharpe (o bebê, meu irmão) em 1954. Todas as pessoas nessa foto estão mortas agora.
28
[1.4] Vestígio de um navio de cruzeiro em alto-mar, 10 mar. 2011. © Bcbounders, “Cruise Ship Wake Photo”/ dreamstime.com
29
30
O TRANS*ATLÂNTICO quem não consegue ver isso como o Ossuaries Shipping Out
da passagem
continuum
—
DIONNE BRAND,
“Ossuary
(sobre
XI”,
, de Jacob Lawrence, parte de sua série
War
)
The Forgotten Space A Film Essay Seeking to Understand the Contemporary Maritime World in Relation to the Symbolic Legacy of the Sea O
filme
–
, de Allan Sekula e Noël Burch, de 2010, acompanha por terra e mar a
movimentação de contêineres de transporte. Trata-se de um filme sobre o capital global e os destroços que ele deixa em seu vestígio. Os cineastas “visitam fazendeiros e aldeões deslocados nos Países Baixos e na Bélgica, caminhoneiros mal remunerados em Los Angeles, marinheiros a bordo de navios gigantescos entre a Ásia e a Europa e operários de fábrica na China” e,
finalmente,
expressão
o
mais
Museu
Guggenheim
sofisticada
da
crença
em
de
Bilbao,
que 1
próprio mar são, de alguma forma, obsoletos”. revista
New Left Review
:
“O
tema
do
filme
a
onde
“descobrem
economia
marítima
a
e
o
Burch e Sekula escrevem na
é
a
globalização,
e
o
mar,
o
Sua premissa é que os oceanos continuam sendo o espaço crucial da globalização: em nenhum outro lugar a desorientação, a violência e a alienação do capitalismo contemporâneo são mais evidentes ‘espaço esquecido’ da nossa modernidade.
2
”.
sistema. capital,
Com a
tal
Os
cineastas
premissa,
capitalização
da
declaram
certamente miséria
um
humana
que
filme e
os
o
filme
sobre
a
lucros
é
sobre
um
voracidade
do
decorrentes
da
pauperização trataria, ainda que tangencialmente, da Passagem do Meio, dos transportados e daqueles destroços viscerais que o capital produziu.
The Forgotten Space Fish Story intitulado “Middle
Passage”,
nasceu de um trabalho anterior de Sekula, um livro
,
e
que
tem
nove
poderíamos
capítulos.
esperar
que,
O ao
capítulo
3
localizar
é o
intitulado oceano,
a
indústria naval e os portos como temas, as imagens e o texto desse capítulo tratariam da histórica Passagem do Meio e da escravização. E talvez, devido ao seu título, o capítulo 3 também pudesse abordar aquele sempre presente lançar-pular ao mar, assim como os peixes que se alimentavam/alimentam 3
dos corpos no vestígio dos navios.
Embora os longos ensaios mencionem a
escravização, a Passagem do Meio de
Fish Story
31
não estabelece nenhuma
relação
discernível
com
o
desastre
planejado
que
é
conhecido
por
esse
nome nem com seus efeitos longos e contínuos. Não é surpresa, então, que o filme não aborde a história do comércio de pessoas africanas raptadas; não
localize
esse
comércio
como
chave
no
início
do
capital
global.
O
continente africano, o Caribe e toda a Diáspora africana estão ausentes, espaços
esquecidos
The Forgotten Space
de
.
E,
desse
modo,
aquelas
histórias passadas e presentes da escravização e da colonização, do turismo e do estabelecimento de bases militares que a conteinerização incentiva também
deixam
4
de
aparecer.
Estão
ausentes,
no
caso,
salvo
por
uma
exceção reveladora. A seção do filme chamada “Mud and Sun” inicia com o porto de Los Angeles/Long Beach e com a promessa previsivelmente fracassada, após o 11 de Setembro de 2001, de novos empregos em Alameda Corridor. Mas como falar de lama, sol e firmamento, do oceano Atlântico e dos Estados Unidos, sem falar da escravização transatlântica? A equipe filma de um grande
assentamento
de
barracas
localizado
entre
duas
linhas
de 5
contêineres e diretamente no caminho de uma empresa de frete aéreo.
Sekula diz que, após exibições públicas, a audiência frequentemente lhe pergunta o que os residentes do assentamento estão fazendo no filme. Sua resposta é que ele queria que o filme contivesse as percepções de pessoas despejadas do sistema. Dois desses entrevistados despejados são homens brancos de meia-idade. Bruce R. Guthrie, que diz à equipe de filmagem que haverá problemas se eles tiverem de morar no assentamento por um mês, alega não ter dinheiro para se mudar agora, mas diz que, quando sua mãe morrer e ele herdar seus bens, vai comprar um trailer, colocá-lo perto do rio
e
então
empreiteiro.
beber O
e
pescar
segundo
até
homem
morrer. branco,
Ele
é
Robert
identificado W.
Wargo,
como
fala
ex-
sobre
a
escassez de programas destinados a ajudar homens de meia-idade como ele a recomeçar e sobre a falta de dignidade de uma “ajuda” que vem na forma de loteria, a qual só se pode ganhar uma vez e cujo prêmio é um quarto de hotel por três dias. Wargo se distingue dos outros homens no assentamento, a quem chama de “degenerados”, e é identificado no final como ex-mecânico. A audiência do filme deve entender que as dificuldades atuais
de
Wargo
e
Guthrie
resultam
do
fato
de
o
sistema
tê-los
desamparado. Em
seguida,
uma
mulher
Negra
que 6
anteriores aparece na frente da câmera.
vimos
no
fundo
das
tomadas
Ela é a única figura Negra que fala
no filme, a única pessoa Negra que não aparece apenas no fundo ou em cenas
de
arquivo.
O
nome
dela
é
Aereile
Jackson
e,
em
meus
termos
teóricos, ela fala no filme a partir da posição do vestígio: de uma posição de profunda dor e de profundo conhecimento. É doloroso vê-la e ouvi-la. Ela sente dor ao falar sobre suas crianças, que foram tiradas dela, e sobre a crueldade do Estado, que a colocou nessa posição. Ela também fala sobre
32
estar
acima
chumaços
do
de
peso
seu
e
sobre
cabelo
o
estão
cabelo, caindo.
e
diz
Esses
que são
usa os
peruca
porque
sintomas
de
seu
sofrimento. Ela diz aos cineastas que não está mentalmente doente – ela sabe
que
está
segurando
bonecas
nos
braços,
mas
essas
bonecas
estão
guardando o lugar de suas crianças, que foram separadas dela e que ela não vê
há
seis
anos.
Ela
former mother
[
é
identificada
nos
créditos
finais
como
“ex-mãe”
] [figs. 2.1-2.2].
Tive
alguma
esperança
de
que
esse
filme
que
olha
para
a
goela
do
capital não usasse Aereile Jackson para alimentá-lo, não a usasse como representante
de
toda
aquela
história
ignorada,
não
a
usasse
como
asterisco ou reticências para fazer a narrativa avançar. Pensei que a sra. Jackson
não
atravessar;
seria
apenas
passagem
um
ou
Dictionary.com
transit point
jornada
de
(“ato
um
ou
lugar
fato
ou
de
cruzar
ponto
a
ou
outro”,
). Mas, embora ela forneça os termos e a imagem, se não as
palavras exatas que dão nome ao segmento, Aereile Jackson aparece apenas para desaparecer. Ela é uma metáfora. Sua aparição não entra na lógica do filme à medida que ele se desenrola; no entanto, isso faz todo o sentido, pois, como Stefano Harney e Fred Moten escrevem, a “modernidade”, a própria
modernidade
7
porão”.
O
migrantes; Jackson
porão é
a
que
é
o
tema
desse
filme,
“é
suturada
por
esse
é o porão do tumbeiro; é o porão do chamado navio de
prisão;
apareceu
no
é
o
útero
filme,
ela
que
produz
parou
o
negridade.
tempo
para
Quando
mim.
Em
a
sra.
minha
memória, a seção com ela era no final do filme, e não na primeira metade. 8
“O que é o tempo?” No
fim
pessoas
do
filme,
chegamos
entrevistadas
do
aos
créditos,
acampamento
é
quando
cada
identificada
uma
das
novamente
três pelo
nome e ex-profissão: Bruce R. Guthrie é ex-empreiteiro; Robert W. Wargo é 9
ex-mecânico; e Aereile Jackson é “ex-mãe”.
Neste título, “ex-mãe”, com o
qual os cineastas a rotulam, aparentemente não há um sentido de longa duração, como é o caso de
partus sequitur ventrem
e suas vidas após a
morte. Relembremos sua entrevista:
Isso [e pode-se ouvir em seu “isso” sua antecipação e condenação do rótulo que lhe darão no futuro] para mim e para minha família é como um tapa na cara. Eu não estou drogada. […] Sim, essas são minhas bonecas que peguei, então não pense que estou doente da cabeça ou algo parecido. Eu as peguei. Tenho
uma
barraca
cheia
de
bichinhos
de
pelúcia
e
bonecas.
Essas
são
as
únicas coisas que tenho para me segurar e para lembrar das minhas crianças. Perdi muito, estou em situação de rua e não vejo minhas crianças desde que não pude comparecer ao tribunal porque não tive como pegar o transporte. O tribunal era lá em San Bernardino e estou em Ontário e perdi minhas crianças, não as vejo desde 2003 e agora é 2009, então perdi muito. Estou tentando… Estou machucada. Estou tentando descobrir se algum dia terei a chance de ser
33
mãe de novo com as crianças que já tenho. Eu não estou com minhas crianças. Estou aqui na sujeira, ficando mais escura, e mais escura, e mais escura. E minha
peruca
é
porque
meu
cabelo
está
caindo,
sabe,
meu
cabelo
cai
misteriosamente, e não era assim no começo, mas eu chego aqui e vou lavar meu cabelo e tal e ele começa a cair, sabe… tufos de cabelo. Como se alguém estivesse raspando meu cabelo. E eu também engordei muito e, agora, estou começando a lidar com meu peso no sol quente e mal consigo andar até a esquina sem sentir calor e sem ter ondas de calor. Então, estou tentando lidar 10
com meu peso e com minha situação ao mesmo tempo.
Aereile Jackson perdeu muito. Mais do que esse filme pode ou vai contar. A violência contra ela é (nos termos de Wilderson) não contingente, não é a violência que ocorre entre os sujeitos em um conflito; é a violência gratuita que
ocorre
em
uma
estrutura
que
constitui
o
sujeito
Negro
como
o
constitutivo exterior. Dito de outra forma, o fato e o modo de inclusão e exibição do corpo e da fala da sra. Jackson são indicativos de como o filme não consegue entender uma linguagem de violência gratuita implementada contra pessoas Negras. Ou seja, a linguagem analítica dos cineastas parte da violência da ausência da sra. Jackson, e é óbvio que o filme opera dentro de
uma
lógica
que
não
consegue
apreender
seu
sofrimento.
A
maneira
como ela é incluída no filme e a incapacidade de este compreender seu sofrimento fazem parte da ortografia do vestígio. O espaço esquecido é a negridade,
e
quando
a
sra.
Jackson
é
conjurada
para
preenchê-lo
ela
aparece como um espectro. É como se, com sua aparência, o capital fosse subitamente historicizado em/através de seu corpo. Ela é oportuna. Eles veem nela uma
portu m (
),
sistema:
que
ela
é
oportunidade
11
significa a
(do latim
“porto”).
ejeção,
a
ob-
Mas
abjeção,
, que significa “em direção a”, e
a
sra.
Jackson
pela/na/através
não
da
foi
qual
o
ejetada
do
sistema
se
A violência precede e excede os Negros
reimagina e se reconstitui. “
12
.”
O
sofrimento das pessoas Negras não pode ser comparado; “nós” não somos todas reivindicadas pela vida da mesma maneira; “nós” não vivenciamos o sofrimento na mesma planície de conflito, uma vez que a pessoa Negra é 13
caracterizada, como nos diz Wilderson, pela violência gratuita. Sekula parte,
e
Burch
móveis
e
continuam:
anônimos:
“Os
contêineres
‘caixões
de
de
força
carga
de
estão
trabalho
por
toda
remota’,
transportando mercadorias fabricadas pela mão de obra invisível do outro lado
do
globo”
rastreiam
estão
[fig.
2.3].
Como
relacionados
ao
esses
contêineres
aquecimento
que
global
e
Sekula
aos
e
Burch
conflitos
por
água e outros recursos? Como estão conectados às jornadas que pessoas africanas seguida,
fazem através
sobre do
a
mar
terra,
por
exemplo,
Mediterrâneo,
na
da
Somália
tentativa
de
à
Líbia
chegar
a
e,
em
lugares
como Lampedusa? Como estão conectados à conteinerização de pessoas
34
no passado, ao longo e depois daquela perigosa viagem marítima? Essas são questões que o filme de Sekula e Burch não tenta abordar. Essas
são
histórias
asteriscadas
da
escravização,
da
propriedade,
da
coisificação e de suas vidas após a morte. Eu não consigo deixar de ver a palavra
“risco”
asteriscadas
em
aos
“asterisco”.
mares
e
E
aos
ligar
esse
primórdios
risco
do
e
essas
comércio
histórias
de
seguros
subtendido através de um comércio de pessoas africanas.
A história do seguro começa com o mar. Três desenvolvimentos são centrais para
a
estrutura
conceitual
bottomry
acordo
“
”,
emprestado
a
uma
ou taxa
estabelecida
“empréstimo elevada
pelo
seguro
marítimo”,
para
uma
marítimo:
em
viagem,
e
que
o
o
risco
primeiro, dinheiro
recai
o é
sobre
o
credor. Em segundo lugar, o conceito de “média geral”, a ideia de que as perdas ocorridas
para
tempestade,
salvar
por
um
barco
exemplo)
(alijamento
representam
ou
um
corte
risco
de
mastros
compartilhado
em
uma
entre
as
pessoas que investem em uma viagem − geralmente visto como a forma mais antiga de empreendimento por ações. E, terceiro, a noção de “Perigos do Mar” 14
− a forma mais antiga do conceito de risco segurável.
Pode-se dizer que Aereile Jackson é o seguro do filme − uma vez que lhe empresta seu vocabulário e que sua abjeção garante a circulação do filme [fig. 2.4].
O risco no seguro: o humano asteriscado
.
Então, estive pensando sobre a capacidade de transporte, a conteinerização e
o
que
está
além
desses
estados.
Portanto,
o
que
estou
chamando
de
trans*Atlântico é aquele lugar/espaço, condição ou processo que aparece paralelamente e em relação ao Atlântico Negro, mas também excede suas correntes.
Eu
quero
pensar
sobre a
tentam elaborar algo sancionadas
trans*
sobre/por
ou
corpos
em
uma
variedade
em direção à
Negros.
O
de
maneiras
que
gama de trans*formações
asterisco
após
uma
palavra
funciona como curinga, e é assim que estou pensando o trans*; como meio de
marcar
as
formas
como
o
escravo
e
o
Negro 15
Hartman chama de “posição do impensado”.
ocupam
o
que
Saidiya
O asterisco após o prefixo
“trans” mantém o espaço aberto para o pensamento (a partir dessa e nessa posição).
O
asterisco
também
se
refere
a
uma
gama
de
experiências
incorporadas chamadas de gênero e ao desmantelamento do gênero euroocidental,
sua
incapacidade
de
se
manter
na/sobre
a
carne
Negra.
O
asterisco diz sobre uma série de configurações da existência Negra que tomam
a
forma
de
tradução
translation
[
],
transatlântico,
transgressão,
transgênero, transformação, transfiguração, transcontinental, transfixado,
35
transmediterrâneo,
transubstanciação
(processo
pelo
qual
poderíamos
entender a transformação de corpos em carne e depois em mercadorias fungíveis, mantendo a aparência de carne e sangue), transmigração e muito mais.
[2.1–2.2] Aereile Jackson.
36
[2.3] Contêineres de carga. De Allan Sekula e Noël Burch, The Forgotten Space (fotogramas). Amsterdam, 2010. Som, cor. 112 min. Cortesia de Doc. Eye Film.
[2.4] Imagem publicitária de Aereile Jackson em Making Political Cinema. Cortesia de Jerry White e do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Dalhousie, Halifax.
37
Com
o
intenção quando
trans*,
trazer
à
Omise’eke
não
estou
tona
interessada
corpos
Tinsley
em
transgêneros
escreve
em
genealogia;
a
“Black
partir
de
Atlantic,
não
é
minha
arquivos. Queer
Mas,
Atlantic:
Queer Imaginings of the Middle Passage” que “o Atlântico Negro sempre foi
queer
o Atlântico
”, podemos acrescentar que o Atlântico Negro e 16
sempre foi o trans*Atlântico.
17
Negro sempre foi esse excesso.
queer
De fato, a
negridade põe Negro e (hetero)normatividade em crise, se é que nesses lugares é realmente possível pensá-los em conjunto. Ou seja, a vida Negra dentro e fora do “Novo Mundo” é sempre muito
além.
desejos
Podemos
ao
dizer
transformar
que
a
escravização
algumas
pessoas
torna
em
trans*
coisas,
queer
todos
outras
e
os em
compradoras, vendedoras, proprietárias, fodedoras e reprodutoras daquela carne Negra. Esse excesso está aqui em grande escala nos corpos Negros − como acontece com o processo de sujeição. E é nesse ponto, posterior à “ruptura no mundo”, que Dionne Brand nos diz: feito
aquela
única
, quer
nós
tenhamos
passagem ou não, somos “transforma[das] em corpos. Aquela
porta
esvaziados
nós
[a
de
Porta
ser,
do
corpos
Não
Retorno]
esvaziados
nos
de
transformou
autointerpretação,
em
corpos
em
que
se
18
puderam introjetar novas interpretações”.
À medida que nos detemos nos muitos significados de trans*, podemos e devemos pensar e imaginar lateralmente, através de uma série de relações no navio, no porão, no vestígio e no tempo – em vários cotidianos Negros − para
fazer
o
que
Hartman,
em
“Vênus
em
dois
atos”,
descreve
como
“escutar o não dito, traduzir palavras mal interpretadas e remoldar vidas 19
desfiguradas”
e o que NourbeSe Philip chama de necessidade de “contar
uma história que não pode ser contada”. “Eu acho”, diz Philip, “que isso é o que
Zong!
está tentando: encontrar uma forma de carregar essa história 20
que não pode ser contada, que deve ser contada, mas sem contar”. Encontrar
pessoas
de
ascendência
africana
no
vestígio,
tanto
materialmente quanto como um problema para o pensamento, é encontrar aquele * na grande narrativa da história; e, nas condições de vida e morte de pessoas Negras, como as delineadas por Hartman (“oportunidades de vida incertas, acesso limitado à saúde e educação, morte prematura”), e nas formas
como
somos
posicionadas
através
delas
e
por
elas,
as
maneiras
como ocupamos o “eu” em “Eu sou a vida após a morte da escravização”, de 21
Hartman. soluções
Teorizar
disciplinares
o
trabalho
de
vigília
requer
um
afastamento
das
existentes para a abjeção contínua da negridade que
estende a disgrafia do vestígio. Requer teorizar os múltiplos significados dessa
abjeção
por
meio
da
habitação,
ou
seja,
vivenciando-os
na/como
consciência. Vemos esse posicionamento disgráfico de pessoas Negras mediante a abjeção em todos os lugares: desde reações a pessoas Negras abandonadas
38
nos
múltiplos
e
contínuos
desastres
do
furacão
Katrina
até
o
repulsivo
artigo “The Underlying Tragedy”, do colunista conservador David Brooks, no
New York Times
escreveu
que
os
de 15 de janeiro de 2010, sobre o Haiti, no qual ele
problemas
do
Haiti
eram
menos
um
problema
para
o
“desenvolvimento” resolver e mais um apelo para uma mudança cultural radical
imposta
“influências antologia
radicalmente,
culturais
de
surgida,
resistência
What Works in Development?
portanto,
como 22
ao
progresso”.
resultado
de
Baseando-se
na
, Brooks continua:
Todos nós devemos respeitar civilizadamente as culturas uns dos outros. Mas algumas
culturas
são
tragédia
horrível
acaba
mais de
resistentes ser
ao
progresso
exacerbada
por
do
uma
que
outras,
delas.
[…].
É
e
uma
hora
de
promover localmente o paternalismo […] substituir partes da cultura local por uma cultura de realização altamente exigente e intensiva − englobando tudo, desde novas práticas de educação infantil até escolas mais rígidas e melhor desempenho no trabalho.
não é
Esse artigo é mais bem compreendido no contexto do que
dito: sua
recusa em falar, por exemplo, do passado revolucionário do Haiti e dos bilhões de dólares em indenização que o Haiti foi forçado a pagar à França; ou das sucessivas ocupações e golpes militares dos Estados Unidos. Três dias antes de sua publicação, Brooks escreveu um artigo intitulado “The Tel Aviv Cluster”, sobre as realizações do povo judeu em todo o mundo:
A fé judaica incentiva uma crença no progresso e na responsabilidade pessoal. Tel Aviv se tornou um dos principais polos empresariais do mundo. Israel tem, de longe, mais
startups
de alta tecnologia
per capita per capita
do que qualquer outra
nação do mundo. É líder mundial em gastos civis
com pesquisa e
desenvolvimento, ocupando o segundo lugar, atrás dos Estados Unidos, em número de empresas listadas na Nasdaq. Israel, com 7 milhões de habitantes, 23
atrai tanto capital de risco quanto a França e a Alemanha juntas.
Como
aconteceu
Forgetting”,
o
com
minha
desastre
do
turma
de
Holocausto
estudantes
está
em
disponível
“Memory como
for
tragédia
humana de uma forma que a escravização, a revolução e suas vidas após a morte não estão. O asterisco é globalmente evidente. Desde a morte por afogamento de Connor e Brandon (de quatro e dois anos), filhos de Glenda Moore, em Staten Island, Nova York, durante o furacão Sandy em outubro de 2012, passando travessias oceano
pelos e
assassinatos
pelos
Atlântico,
de
afogamentos até
o
Michael
Brown
contínuos
policiamento
39
e
no
e
Miriam
mar
isolamento
Carey,
Mediterrâneo de
pessoas
pelas e
no
Negras
nas/fora
das
ruas
da
América
do
Norte,
o
“problema”
é
o
subdesenvolvimento (moral) Negro. O problema é a negridade. O problema
é
é que a negridade
subdesenvolvimento, o problema é a negridade
como
subdesenvolvimento. Não se podem imaginar proclamações de “cultura da pobreza” semelhantes às de Brooks sendo feitas, por exemplo, no rescaldo dos tornados em comunidades de maioria putativamente branca na região de Tornado Alley, no centro-oeste dos Estados Unidos, em maio de 2013 – mesmo que muitas das pessoas que vivem lá não tomem ou não possam tomar
as
devidas
precauções
a
fim
de
construir
abrigos
contra
tempestades, abandonar a área ou se preparar para o desastre de outras maneiras.
Que
tais
coisas
sejam
ditas,
e
com
tanta
regularidade,
sobre
pessoas Negras e enegrecidas é parte do que significa (existir n)o vestígio.
Não é reconhecidas “
apenas
por
essa força que nos reconhecemos e somos
24
.”
O NAVIO O ZONG O mar parecia cinza morto com o que restava do meu corpo e as ondas brancas… Eu me membro 25
.
—
KAMAU BRATHWAITE,
“Dream Haiti”
Após passar vários meses na costa da África Ocidental, enquanto seu porão era
gradualmente
tumbeiro
preenchido
Zong Zorgue
chamado
originalmente era
com
iniciou
pessoas
sua
africanas
jornada
para
a
sequestradas,
Jamaica.
Seu
um
nome
, e ele pertencia à Holanda antes de ser comprado,
em 1781, em nome de um grupo de comerciantes de Liverpool. Quando o
Zorgue
foi capturado pelos britânicos em 10 de fevereiro de 1781, ele já
levava a bordo 320 pessoas sequestradas da África; a “carga”, então, foi aprovada
após
a
captura,
depois
que
o
navio
zarpou
de
Cabo
26
Corso.
Construído para deter aproximadamente 220 homens, mulheres e crianças africanas,
o
Zong
navegou
com
o
dobro;
havia
442
(ou
470)
pessoas
africanas cativas a bordo. Quando o navio partiu para a Jamaica em 18 de agosto de 1781, tinha provisões para três meses e o conhecimento de que havia diversos portos no Caribe onde poderia parar para reabastecer caso faltassem
água
e
comida.
Os
registros
mostram
que,
devido
a
erros
de
navegação, o navio ultrapassou a Jamaica. O capitão e a tripulação também
40
relataram que decidiram lançar ao mar algumas das pessoas cativas com o intuito de “salvar o resto da carga”. A transcrição de processo
judicial
de
1783)
ecoa
esse
relatório:
Gregson v. Gilbert negros
(o
“Alguns
27
dos
morreram por falta de mantimento, e outros foram lançados ao mar para a 28
preservação do resto”. O
Zong
primeira
foi levado ao conhecimento do grande público britânico pela
vez
(Gregson)
por
jornais
estavam
que
noticiavam
processando
os
que
os
seguradores
proprietários (Gilbert)
do
pelo
navio
valor
do
seguro daquelas 132 (ou 140, ou 142) pessoas africanas assassinadas. Os pedidos de indenização são parte do que Katherine McKittrick chama de 29
“matemática da vida negra”, lançamento
ao
mar.
“O
killability
que inclui essa matabilidade [
capitão
Luke
Collingwood,
], esse
portanto,
converteu
brutalmente uma perda não segurável (mortalidade geral) em perda média 30
geral, um sacrifício de partes de uma carga em benefício do todo.”
A tripulação destituída contou que foi a falta de água e a reivindicação do seguro que motivou os lançamentos ao mar. Eles sabiam que o dinheiro do seguro não seria pago se aquelas pessoas escravizadas morressem “de morte natural”. (Uma morte natural. O que constituiria uma morte natural nesse contexto? Como tais mortes poderiam legalmente
mortas
podem
ser
ser
consideradas
naturais? Como pessoas assassinadas?)
Mas
o
subcomandante revelou, em seu depoimento no tribunal, que a tripulação a bordo do
Zong
nunca sofreu “falta de água”, isto é, em nenhum momento 31
eles recorreram ao racionamento de água. e
em
conjunto
antiescravistas
do
ativista
antiescravista
anteriormente
Apesar dos esforços individuais
Granville
escravizados
Sharp
Olaudah
e
dos
Equiano
e
ativistas Ottobah
Cugoano, os assassinatos não se tornaram uma questão a ser tratada. Os eventos a bordo do
Zong
foram registrados na memória histórica primeiro
como reivindicação de seguro no caso
Gregson v. Gilbert
e somente mais
tarde como assassinatos (danos a “sujeitos”) de 132 pessoas africanas que não foram reconhecidos como assassinatos no tribunal. “Foi decidido – se com prudência ou imprudência não vem ao caso agora – que uma parte de nossos
semelhantes
pode
se
tornar
objeto
de
propriedade.
Portanto,
tratou-se nesse caso do lançamento de mercadorias ao mar, com o intuito 32
de salvar a parte restante.” Pode parecer que o
Zong
, na maioria das vezes, venha à memória não
como o navio em si, mas como um tumbeiro sem nome cuja tripulação lançou ao mar pessoas africanas capturadas. As ações assassinas do capitão e da tripulação daquele navio sem nome são memorializadas na pintura de
Slave Ship – Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying: Typhoon Coming On J. M. W. Turner
, de 1840. No auripigmento turvo e lívido da
pintura de Turner, os mortos são atrelados aos moribundos. O fato de o tumbeiro
de
Turner
carecer
de
um
41
nome
próprio
permite
que
ele
todo
represente
tumbeiro e toda tripulação escravizada, todo tumbeiro e
cada uma das pessoas africanas assassinadas na Passagem do Meio. Como James Walvin escreve:
Todos os envolvidos no comércio escravista – desde o maior comerciante até o mais rude dos marinheiros – sabiam que havia momentos em que a tripulação poderia ter de matar as próprias pessoas que estavam sendo transportadas para
serem
elevadas.
negociadas
Embora
e
pelas
ninguém
quais
admitisse
haviam
pagado
abertamente,
quantias
um
bastante
cálculo
humano
grosseiro evoluíra no cerne do comércio escravista e era aceito por todas as 33
partes envolvidas: para sobreviver, às vezes era necessário matar.
A
pintura
de
condensar
Turner
captura
os
34
uma
singularidade
horrores
em
um
do
comércio
navio
e
se
Zong
chamado
;
recusa
a
isto
o
é,
tumbeiro sem nome de Turner representa todo o empreendimento, uma “empresa
35
em
funcionamento”
do
comércio
de
pessoas
africanas
capturadas: a parte pelo todo. Em estilo e conteúdo, a pintura de Turner torna
visíveis 36
resistência
as
questões
no
centro
do
Zong
–
propriedade,
seguro,
e a questão do lastro. (Pense na recente descoberta de um
navio naufragado na costa da África do Sul que a equipe de arqueologia determinou
ser
um
tumbeiro
por
causa
das
barras
de
ferro
de
lastro
encontradas nos destroços. O lastro havia sido necessário para compensar 37
o peso das pessoas capturadas da África no porão do navio.) A
decisão
do
transubstanciação
tribunal
foi 38
léxico-legal
alcançada que
por
declarou
meio
que
“o
de
caso
um [do
ato
de
]
era
Zong
simplesmente de seguro marítimo”, ou seja, um caso de perda de bens, e não
de
assassinatos.
Apesar
das
diferenças
registradas
no
número
pessoas africanas lançadas ao mar, o que permanece constante é que
aqueles lançamentos ao mar
de
houve
; houve, de fato, aqueles assassinatos de mais
de 130 pessoas africanas sequestradas.
O evento
, isto é, uma versão de uma
parte de um evento de mais de quatrocentos anos, é o seguinte: “29 de novembro,
às
20h00,
‘individualmente escolhida número
para
54
através
coincidir
máximo
de
mulheres
das com
e
janelas a
tripulantes
crianças
da
mudança estaria
foram
cabine’. do
A
turno
disponível.
lançadas
hora de
Em
parece vigia,
1º
mais 42 homens cativos foram lançados do convés ao mar”.
mar sido
quando
de 39
ao ter
o
dezembro, Lemos que
“no dia seguinte choveu, e a tripulação coletou água potável suficiente para adicionar
um
suprimento
de
três
semanas
ao
estoque
do
40
navio”.
No
entanto, contrariando a lógica de que fora a falta de água que motivara esses atos que burlavam as regras do seguro de “morte natural”, “nos dias seguintes,
mais
36
pessoas
cativas
foram
42
lançadas
ao
mar
e
outras
10
pularam na água por conta própria. Kelsall considerou mais tarde que ‘o 41
número total de afogados chegava a 142’”. Quando o
Zong
finalmente alcançou Black River, na Jamaica, em 22 de
dezembro de 1781, havia a bordo 208 pessoas africanas vivas. Quando o jornal jamaicano
Cornwall Chronicle
listou as pessoas africanas à venda,
notou que “a embarcação […] estava em grande aflição por ter descartado 42
cerca de 130 escravos”.
Com essa nota de grande aflição, o jornal não se
referia
se
(nem
pretendia
referir)
às
pessoas
escravizadas.
Tampouco
explicava (ou pretendia explicar) os danos psíquicos e materiais que a longa jornada de sequestro violento, necessidade e terrível brutalidade causou nas
pessoas
escravizadas
(violência
não
marcada
como
violência,
nem
como rapto, nem como necessidade). Era o navio que estava em grande aflição,
não
as
pessoas
escravizadas.
Aqui,
se
não
em
todos
os
lugares,
como veremos, o navio é diferente do escravo. Quando a venda ocorreu, em 9 de janeiro de 1782, as pessoas cativas restantes foram vendidas por uma média de 36 libras cada – acima do preço de 30 libras pelo qual estavam seguradas.
Mas
encontravam
é
óbvio
em
que
grande
pessoas
aquelas
aflição
física
e
escravizadas psíquica;
também
se
testemunhas
e
sobreviventes das absurdas violências do navio, sua atmosfera de morte e seus
assassinatos
em
massa.
Especialmente,
talvez,
aquele
homem
escravizado que, lançado ao mar, conseguiu subir de volta no navio. Como
falar
da
sobrevivência
ao
navio
quando
o
navio
e
a
(não)
sobrevivência se repetem?
ZONG! Cantamos para a morte, cantamos para o nascimento. É isto que fazemos. Nós cantamos .
— apud
M. NOURBESE PHILIP,
“Defending the Dead, Confronting the Archive”
Como é, o que implica e significa amparar, cuidar, confortar e defender aquelas vidas já mortas, aquelas vidas que estão morrendo e aquelas vidas vivas consignadas à possibilidade da morte sempre iminente, a vida vivida na
presença
de
morte;
viver
“vestígio”? Volto-me aqui à obra poemas
numerados
composto
de
na
palavras
essa
Zong!
e
imanência
como/no
, de NourbeSe Philip. Cada um dos
primeira
retiradas
iminência
seção
do
de
processo
Zong!
,
judicial
intitulada
“Os”,
é
Gregson v. Gilbert
.
Abaixo da linha dos poemas nessa seção aparecem as anotações de Philip − nomes
para
as
pessoas
africanas
a
bordo
do
Zong
cujos
nomes 43
sequestradores não foram capazes de reconhecer ou registrar.
43
seus
As pessoas
agora chamadas de africanas em “Os” (“Os” como em marinheiro comum
ordinary seaman Zong!
[
], boca, abertura ou osso) são os ossos do texto de
hauntological
, diz Philip, “é assombrontológico [
Zong!
.
]; é um trabalho
de assombração, uma espécie de vestígio, em que os espectros de mortos44
vivos se fazem presentes”. da
lógica
do
livro-razão,
Os mortos aparecem no
além
da
matemática
do
Zong!
seguro,
de Philip além assinando
os
poemas que compõem “Os”. Philip aspira essas vidas submersas e as traz de volta ao texto do qual foram ejetadas. Do mesmo modo, na estrutura de
Zong!
, o número de nomes das pessoas que assinam o empreendimento da
escravização não coincide com o número de pessoas lançadas ao mar ou que pularam por conta própria, e assim, também através desse gesto, Philip dispensa um tipo particular de fidelidade à invenção do arquivo histórico.
Zong!
“
“defenda
#15”
quem
começa morreu”.
com
a
declaração/o
Reproduzo
nomes.
44
o
poema
imperativo/a a
seguir.
Philip
injunção fornece
45
“Qual é a palavra para trazer corpos de volta d’água? De uma ‘sepultura 45
líquida’?”
A
palavra
a
que
Philip
chega
é
exaqua
.
Mas
não
há
como
recuperar ossos de seu vestígio aquoso. Não há como trazer da água ou de volta à costa os corpos do
Zong
e de tantos outros navios do passado e do
presente. Como Philip sabe, não há ossos para recuperar. Um navio em movimento na água gera um padrão particular de ondas; a onda de proa está à frente do navio, e essa onda se espalha num padrão em v visível em ambos os lados e também atrás do navio. O tamanho da onda de proa dita a amplitude do início do vestígio. As ondas que ocorrem no vestígio do navio movem-se na mesma velocidade que este. Pelo menos desde
o
século
oceânica
dos
xvi
em
navios
diante,
tem
sido
uma
parte
minimizar
a
importante onda
de
da
proa
engenharia e,
portanto,
minimizar o vestígio. Mas o efeito do trauma é o oposto. Ele maximiza o vestígio. As ondas transversais são aquelas que passam por trás; elas são perpendiculares à direção do movimento do navio. As ondas transversais parecem retas, mas na verdade são arcos de um círculo. E toda vez, a cada instante que o barco se move na água, ele tem o potencial de gerar uma 46
nova onda.
Certamente o
Zong
, longe de qualquer massa de terra, esteve em águas
profundas, e qualquer objeto ou pessoa lançada ao mar esteve em ondas de águas
profundas.
Uma
vez
na
água,
a
pessoa
lançada
ao
mar
teria
experimentado o movimento circular ou oscilante do vestígio e teria sido carregada
por
aquele
vestígio
durante
ao
menos
um
curto
período.
É
provável, porém, que, como muitas dessas pessoas escravizadas estavam doentes e possivelmente cadavéricas ou em estado semelhante, tivessem pouquíssima gordura corporal; seu corpo seria mais denso que a água do mar. É provável, então, que aquelas pessoas africanas, lançadas ao mar, tenham flutuado por pouco tempo, apenas por causa das formas de seus corpos.
É
provável,
também,
que
elas
tenham
afundado
com
relativa
rapidez, assim como se afogado com relativa rapidez. E havia os tubarões que sempre viajavam no vestígio dos tumbeiros. Houve estudos feitos com baleias que morreram e afundaram no mar. Esses
estudos
mostram
que,
em
poucos
dias,
o
corpo
das
baleias
é
praticamente limpo por organismos bentônicos – organismos que vivem no fundo do mar. Minha colega Anne Gardulski me disse que é mais provável que
um
corpo
aconteceu
com
humano os
não
corpos?
chegasse
Com
isso
intacto quero
ao
fundo
dizer:
o
do
que
mar.
O
aconteceu
que aos
componentes de seus corpos na água salgada? Anne Gardulski me disse que, devido ao ciclo de nutrientes no oceano (o processo de organismos comendo organismos), os átomos dessas pessoas que foram lançadas ao mar
estão
no
oceano
até
hoje.
Elas
foram
comidas,
processadas
por
organismos, esses organismos foram, por sua vez, comidos e processados, e
46
assim o ciclo continua. Cerca de 90% a 95% dos tecidos das coisas que são comidas na coluna de água são reciclados. “Ninguém morre de velhice no oceano”, Anne me disse. O
tempo
que
uma
substância
leva
para
entrar
e
sair
do
oceano
é
chamado de tempo de residência. O sangue humano é salgado, e o sódio, segundo Gardulski, tem um tempo de residência de 260 milhões de anos. E o
que
acontece
com
a
energia
produzida
nas
águas?
Ela
continua
circulando como átomos em seu tempo de residência. Nós, pessoas Negras, existimos no tempo de residência do vestígio, um tempo em que “tudo é 47
agora, é sempre agora”.
O mar parecia cinza morto com o que restava do meu corpo e as ondas brancas… Eu me membro .
COMO UMA MENINA SE TORNA UM NAVIO Primeiro,
outra
epígrafe
de
“Dream
Haiti”,
de
Kamau
Brathwaite,
e,
em
seguida, uma longa citação do poema “The Difficult Miracle of Black Poetry in
America
or
Something
like
a
Sonnet
for
Phillis
Wheatley”,
de
June
Jordan. Brathwaite: “Não sei por que estou aqui – como vim parar a bordo deste navio, deste umbigo da minha arca”. Jordan:
Isso não era natural. E ela foi a primeira. Vir de um país de muitas línguas torturadas pela ruptura, pelo roubo, pela viagem, como roupas incompatíveis empacotadas no porão de perversos navios que navegam, irreversíveis, para a escravização. Vir a um país para ser dócil e calada, ser grande e reprodutor, facilmente,
ser
peru/cavalo/vaca,
ser
cozinheira/carpinteiro/arado,
ter
1,68
metro e 63,5 quilos, em bom estado, e responder aos nomes de Tom ou Maria: servir
na
cama:
ter
as
pernas
abertas
legalmente
para
o
estupro
pelo
senhor/filho do senhor/capataz do senhor/sobrinho que visita o senhor: ser nada humano de nenhuma família nada de lugar nenhum nada que grita nada que
chora
coração: olhos
nada
viver
que
sonha
forçosamente
abaixados
cabeça
nada no
baixa:
que
guarda
nada/ninguém
analfabetismo, trabalhar
forçosamente
sem
descanso,
no
fundo
errante:
do
viver
trabalhar
sem
remuneração, trabalhar sem agradecimento, trabalhar desde quando nasce o dia
até
o
anoitecer:
ser
três
quintos
de
um
ser
humano,
na
melhor
das
hipóteses: ser essa coisa valiosa/odiosa entre estranhos que compraram sua
47
vida e depois a amaldiçoaram incessantemente: ser escrava: ser escravo. Vir a este país escravizada, e como você poderia cantar?
[…]
Como haveria poetas Negras nos Estados Unidos? Isso não era natural. E ela foi a primeira. Era 1761 – muito antes da revolução que produziu estes Estados Unidos, muito antes de o conceito de liberdade perturbar os crimes insolentes deste continente – em 1761, quando uma Phillis de sete anos se levantou, como deveria, quando ficou de pé quase nua, pequena como uma criança de sete anos, sozinha, finalmente em terra firme, depois dos longos e aniquiladores horrores da Passagem do Meio. Phillis, em pé na plataforma rude do leiloeiro: Phillis à venda. Era um dia bonito? E isso importa? Ela deveria admirar o céu ou se lembrar do mar? Até então, Phillis era filha de alguém. Agora ela estava prestes a se tornar escrava de alguém.
[…]
Quando
os
Wheatleys
chegaram
ao
leilão,
cumprimentaram
seus
vizinhos.
Eles gostavam desse negócio de se misturar com outros moradores da cidade, caminhando
educadamente
pela
plataforma,
ajustando
cortesmente
as
posições para obter uma visão melhor dos corpos à venda. Os Wheatleys eram pessoas
boas.
Eram
gentis,
atenciosos
e
tinham
a
mente
aberta.
Eles
examinaram os corpos à venda. Olharam minuciosamente. Este pode ser útil para isso. Esse pode ser útil para aquilo. Então, olharam para aquela criança, aquela
criança
Negra
quase
nua
e
de
pé,
sozinha.
Sete
ou
oito
anos,
no
máximo, e frágil. Essa foi uma proposta diferente! Não um corpo forte, não um par de ombros crescidos, não um par de quadris largos e promissores, mas um pequeno corpo, um corpo delicado, um rosto jovem, certamente apavorado! John Wheatley concordou com o capricho de sua esposa, Suzannah. Ele fez sua oferta. Ele pegou seu dinheiro. Ele fez os lances. Ele competiu com sucesso. Ele se divertiu. Ele conseguiu o que queria. Ele comprou mais uma escrava. Ele comprou aquela menina Negra que estava lá de pé, quase nua, na plataforma. Ele
deu
essa
nova
escrava
para
sua
esposa,
e
Suzannah
Wheatley
ficou
maravilhada. Ela e o marido foram para casa. Eles foram de carruagem. Eles levaram
aquela
escrava
nova
com
eles.
Um
escravo
velho
comandava
os
cavalos que puxavam a carruagem que levava os Wheatleys para casa, com a nova escrava, aquela garotinha que eles chamaram de Phillis. 48
Por que lhe deram esse nome?
Sabemos
que
os
Wheatleys
homenagem ao tumbeiro (o
nomearam
Phillis
essa
menina
africana
em
) em que seu sequestro transatlântico
48
pela
Passagem
do
Meio
fora
concluído.
Os
Wheatleys
fizeram
dela
um
experimento. Eles permitiram e encorajaram que essa Phillis, filha de um “homem e uma mulher amargamente anônimos”, “se desenvolvesse”, se tornasse letrada, escrevesse poesia, se tornasse “o primeiro ser humano 49
Negro a ser publicado nos Estados Unidos”. Noventa
anos
fundadores
da
depois
de
escola
“Phillis
50
Miracle”,
estadunidense
de
Louis
Agassiz,
etnologia,
um
dos
encomendou
daguerreótipos de sete mulheres e homens escravizados, entre eles dois pais nascidos no continente africano e suas filhas nascidas nos Estados Unidos,
todos
os
quais
deveriam
representar
exemplos
“puros”
e
não
misturados da raça. Sabemos que os daguerreótipos de Renty (Congo) e Jack
(Guiné),
os
homens
nascidos
na
África,
e
suas
filhas
“nascidas
no
país”, Delia e Drana, foram encomendados para revelar como é a negridade e como olhar para ela. Destinam-se a tornar visíveis o desenvolvimento distinto e as espécies distintas. “A esperança de Agassiz [era] contar com o auxílio
da
fotografia
para
provar
suas
afirmações
de
que
nem
todos
os
humanos são da mesma espécie e de que a raça negra é inferior à branca, além de transformar essas pessoas fotografadas em ilustrações para uma 51
alegação científica.”
Dito de outra forma, os daguerreótipos dos pais e das
e no escravo partus sequitur ventrem
filhas têm o objetivo de tornar visível o navio Dado
que
a
lei
da
escravização
era
seu vestígio
.
,
pode-se
perguntar: por que pais e filhas são fotografados aqui, e não pais e filhos, mães e filhos ou mães (por quem a escravização era legalmente passada) e filhas (pelas quais, se dessem à luz, também passaria)? O que a escolha do sujeito
desses
daguerreótipos
pode
nos
dizer
sobre
os
enquadramentos
fotográficos e as sujeições de gênero-raça-sexualidade e acerca dos objetos Negros
resistentes?
O
que
isso
pode
nos
dizer
sobre
como
esse
enquadramento específico alcançará e atravessará o presente e o futuro –
e
para deter
colocar em movimento como todas as imagens Negras serão
vistas em seus vestígios? No movimento nos Estados Unidos, desde a lei
slave law
escravista [
black codes
] aos códigos negros [
], das leis Jim Crow ao
que virá depois, essa projeção para o futuro é uma tentativa de submeter a herança
Negra
apoderar-se negridade
a
após
uma a
ordem
data
da
patriarcal
que,
emancipação
então,
formal, 52
como patologia até as gerações futuras.
virá
a
falhar
marcando
em
assim
a
Apesar de todo o seu
poder transformador, a negridade, aqui, será vista como impossível de ser transformada. Em outras palavras, dentro e fora dos Estados Unidos, esse olhar
etnográfico
processos
será
colocado
administrativos,
colonialismo, etnográfica,
segregação,
e
o
em
prática
trauma
das
linchamento,
encarceramento,
ao
longo
do
tempo
condições
de
escravização,
exibição
justiçamento,
turística,
gentrificação,
e
em
exibição
“campos
de
imigrantes e centros de detenção” e assassinato estatal desembocará em
49
afirmações
sociais
e
outras
afirmações
“científicas”
sobre
a
negridade,
sobre a existência Negra em si. Fiquei impressionada ao ver pela primeira vez aqueles daguerreótipos de
Jack,
Delia,
Renty
e
Drana.
Também
foi
estarrecedor
encontrar
uma
fotografia tirada 160 anos depois, quando entrei nos arquivos de fotos de desastres após o terremoto catastrófico que atingiu o Haiti em 12 de janeiro de 2010. Essas fotos ecoavam as fotos daquele desastre do furacão Katrina na costa do Golfo dos Estados Unidos em 2005, assim como a resposta desastrosa a ele. Não foi a primeira vez que entrei cautelosamente nesse arquivo, mas dessa vez fui parada pela fotografia de uma menina haitiana de no máximo dez anos [fig. 2.5]. Um terço da imagem, o lado esquerdo, está borrado, mas o rosto dela está nítido; é o que está em foco. Ela está viva. Seus olhos estão abertos. Ela está deitada em uma maca preta; sua cabeça está em cima de uma bolsa de gelo, há uma ferida à mostra acima e abaixo de seu olho direito e um pedaço de papel grudado em seu lábio inferior, e ela está usando o que parece ser uma bata hospitalar. Ela está olhando para a câmera ou além dela; seu olhar chega até mim. Colado em sua
testa,
Navio
[
um
pedaço
de
fita
adesiva
transparente
com
a
Ship
palavra
] escrita.
Quem colou essa fita em sua testa? E isso importa?
Que expressão é essa nos olhos dela? O que eu faço com isso? Quando me deparei com
aquela
dessa
imagem
menina com a palavra
Navio
colada em sua testa, foi o seu olhar que me parou primeiro, e então, como também estava em foco, aquela palavra
Navio
ameaçou obliterar tudo e
qualquer coisa que eu pudesse ver. (O que aquilo estava fazendo lá?) Mas voltei para o rosto dela; que expressão era aquela em seus olhos? E ao que eu estava sendo chamada pelo/com seu olhar em minha direção e o meu em sua direção? Ao longo dos anos, retornei várias vezes a essa imagem para tentar explicar o que vi ali ou pensei que possa ter visto. Para onde ela está olhando? Quem e o que ela está procurando? Quem pode olhar para trás? Ela sabe que tem um pedaço de fita adesiva na testa? Ela sabe o que diz aquele pedaço de fita? Ela sabe que foi destinada a um navio? Seus olhos olham para mim, como os olhos de Delia, como os de Drana. Marquei na
memória
sua
juventude,
a
cicatriz
na
ponta
do
nariz
que
parece
continuar por uma de suas sobrancelhas, seus olhos e cílios, as feridas à mostra, um pedaço de papel e uma folha. Nessa composição fotográfica, eu a
vejo
e
processo.
sinto Vejo
com/por essa
ela,
intrusão
à
medida
em
sua
que
vida
ela e
é
em
decomposta seu
mundo
por no
esse
exato
momento em que estão, talvez não pela primeira vez, se desintegrando.
50
Nela eu me reconheço, e com isso quero dizer que reconheço as condições comuns da existência Negra no vestígio.
[2.5] Haiti luta por ajuda e sobrevivência após terremoto. © Joe Raedle/Getty Images
Onde estava a mãe dela? O pai dela? A quem ela recorria quando estava com medo? 53
Vinte
anos
depois
Massachusetts, o
de
Zong
Phillis,
o
navio
e
a
garota,
chegarem
a
Boston,
alcança notoriedade devido aos atos de amarrar e
lançar ao mar 132 (ou 140, ou 142) pessoas africanas a fim de receber o 54
seguro.
Gregson v. Gilbert
O texto do processo judicial
, de 1783, nos diz
que esse não foi um caso de assassinato, nos diz que: “Foi decidido – se com prudência nossos
ou
imprudência
semelhantes
pode
não se
vem
ao
tornar
caso
objeto
agora de
–
que
uma
propriedade.
parte
de
Portanto,
tratou-se nesse caso do lançamento de mercadorias ao mar, com o intuito 55
de salvar a parte restante”.
Originalmente chamado
Zorg Zorgue Zong (ou
significa “cuidado” em neerlandês, o navio se torna
), que
depois de ser
capturado em guerra, comprado por uma empresa escravista de Liverpool e ter
seu
nome
momentânea
Cuidado
repintado
no
que
diz
errado.
Devemos
respeito
ao
fato
fazer de
o
uma
pausa
tumbeiro
ser
ao
menos
nomeado
(cuidado, é preciso registrar aqui, refere-se ao “fornecimento do
que é necessário para a saúde, o bem-estar, a manutenção e a proteção de alguém ou algo”, como apoio e proteção, mas também como luto)
51
antes e ,
enquanto
, tentamos entender aquela única palavra
Navio
afixada àquele
pequeno corpo de uma menina Negra no rescaldo do terremoto de 2010 que
atingiu
imperativo?
o
Navio
Haiti.
Um
significante
é
um
da
nome
próprio?
(im)possibilidade
da
Um
destino?
vida
Negra
Um
sob
as
condições do que, como diz Stephanie Smallwood, “se tornaria um projeto duradouro no mundo ocidental moderno [de] sondar os limites até os quais 56
é possível disciplinar o corpo sem extinguir a vida interior”?
Navio
é um
lembrete e/ou um resto da Passagem do Meio, da diferença entre a vida e a morte?
Daquelas
pessoas
oriundas 57
chamadas de povo do barco?
Ou
do
Navio
Haiti
em
crise,
que
às
vezes
são
é uma lembrança e/ou um resto da
crise em curso de grupos migrantes e refugiados no mar Mediterrâneo e nos oceanos Índico e Atlântico? Dada a forma como as culturas visual e literária evocam e invocam a Passagem do Meio com uma visão disgráfica tão deliberada e reflexiva, não posso deixar de extrapolar. Comparemos essa imagem com a fotografia de outra menina haitiana em 1992 [fig. 2.6]. Ela também tem sete ou oito anos, dez no máximo, e está segurando um navio. Essa fotografia foi tirada durante o auge do êxodo forçado de pessoas refugiadas do Haiti. Essas pessoas à deriva às vezes são capturadas
e
encarceradas,
outras
vezes,
quase
sempre,
rejeitadas
pela
Guarda Costeira dos Estados Unidos e de outras nações. Como nos lembra Kaiama Glover, o “navio” indexa os
centros de detenção flutuantes controlados por agências governamentais dos Estados
Unidos
e
do
Reino
Unido
[…]
onde
“prisioneiros
fantasmas”
–
indivíduos sem ancoragem protetora em nenhuma pátria soberana – definham nas águas internacionais do oceano Índico […] [bem como aqueles] haitianos dos séculos
XX
e
XXI
[…] naufragados e perdidos no mar ou rejeitados em praias 58
hostis na Jamaica, nas Bahamas, na Flórida […].
Também
sabemos
que
“os
Estados
Unidos
interceptaram 59
refugiados haitianos no mar e forçaram seu retorno”.
milhares
de
A menina haitiana
nessa fotografia está em frente a uma mesa e diante de um homem e uma mulher sentados do outro lado da mesa. Eles estão de costas para a câmera e anotam suas informações, preenchendo algum tipo de livro de controle. A
mulher
está
usando
brincos
de
ouro;
parece
haver
uma
dragona
na
camisa do homem. A garotinha está diante deles, na frente da mesa sobre a qual
repousa
um
modelo
de
navio
(um
modelo
de
barco
da
Guarda
Costeira?), e suas mãos estão no navio. Ela parece estar sozinha. Seu rosto
Que expressão é essa nos olhos dela? O que eu faço com isso? Onde estava a mãe dela? O pai dela? A quem ela recorria quando estava com medo? está sério, seu olhar concentrado. “
” O livro-razão que nos torna ilegíveis
como humanos retorna e se repete, assim como o navio. Na fotografia de
52
1992, vemos um navio e uma menina; vemos uma garotinha segurando um navio
e
sabemos
legenda
da
que
fotografia
um é
navio
“povo
deterá
do
essa
barco
garota,
haitiano”,
e
precariamente. a
descrição
que
A a
acompanha diz:
[2.6] Povo do barco haitiano. © Jacques Langevin/Sygma/Corbis Uma
criança
anotadas
em
presidente
pequena
espera
preparação
dos
Estados
para
enquanto a
Unidos,
viagem
Bill
suas do
Clinton,
informações
Haiti
aos
ofereceu
pessoais
Estados
asilo
são
Unidos.
temporário
O
aos
haitianos em fuga que abandonaram a pobreza e a corrupção de sua terra natal.
Milhares
de
refugiados
dirigem-se
às
costas
da
Flórida,
tentando
a
jornada de 500 quilômetros em barcos frágeis feitos de suas antigas casas.
A
expressão
deixam
o
povo do barco
país
,
de
modo
aplicada
forçado,
às
pessoas
reflete
,
oriundas
encena
e
tenta
do
Haiti
apagar
que suas
violências particulares e brutais, e esse navio e essa garota encenam uma
Um barco, mesmo naufragado e destruído, ainda tem todas as possibilidades de se mover instância
anterior
e
contínua
de
60
eponimidade.
“
61
.”
É evidente que, após o choque inicial obliterante de ver a fotografia de 2010, busquemos pistas que nos ajudem a entender, talvez a explicar, a violência do ato de fixar a palavra Negra.
Afastamo-nos
visíveis:
a
bata,
a
para
folha,
que
os
aqueles
Navio
na testa de uma jovem menina
outros
detalhes
grandes
53
olhos
que
descrevi
castanhos
fiquem
de
cílios
longuíssimos e uma ferida à mostra embaixo de sua sobrancelha direita, a maca e a bolsa de gelo. Além de organizar tudo o que Glover nos alerta para manter
em
mente,
podemos
considerar
que
o
Navio
rótulo
seja
conveniente, que as pessoas que o colocaram lá estejam tentando ajudar, que seja um sinalizador de necessidade médica no meio do desastre e da desordem
subsequente.
Alguém
queria
marcar
essa
menina
para
a
evacuação, queria ter certeza de que ela embarcaria naquele navio. Mas, deixando de lado a intenção, uma das maiores questões provocadas pela
para
imagem é como alguém marca outra pessoa quando ela já está marcada Em
Amada
por ele
um espaço – o navio –
?
, Sethe pede à sua mãe: “Me marque também. […] Marque 62
essa marca em mim também”
(trata-se da marca sob o seio que ela mostra
a Sethe para que a filha possa identificá-la caso seu rosto seja desfigurado, se a revolta não tiver sucesso). A marca fora gravada na carne da mãe de Sethe no litoral, antes de ela ser guardada no porão do navio. Mas também é mais do que isso. É a marca que transformaria aquelas pessoas africanas em propriedade e também um cosmograma Kongo que marca quem o porta como alguém iniciado. Em última instância, essa marca conecta quem vive e
quem
morreu,
e
quem
a
porta
“entende
o
sentido
da
vida
como
um 63
processo compartilhado com os mortos debaixo do rio ou do mar”. marca,
Amada
em
,
está
conectada
ao
navio
no
qual
a
mãe
de
A
Sethe
é
forçada a cruzar para a escravização e também ao que era antes e ao que vem em seu vestígio. A resposta ao pedido de Sethe é um tapa, porque a mãe sabe o que essa marca significa e sabe também, e Sethe logo saberá, que ela já está marcada. A mãe também sabe que, para viver no vestígio, Sethe terá de reinventar o sentido da marca, afinal ela também passará a “entender
o
sentido
da
vida
como
um
64
mortos debaixo do rio ou do mar”. Spillers,
se
transfere’
“esse de
fenômeno
uma
de
geração
processo
compartilhado
com
os
Devemos perguntar novamente, com
marcação
para
a
ferro
outra,
e
fogo
realmente
encontrando
suas
‘se
várias
substituições simbólicas em uma eficácia de significados que repetem os 65
momentos iniciais”.
Voltando à imagem da menina com a palavra
Navio
na testa, também
me impressiona que, das 42 fotos na galeria de imagens online do rescaldo do terremoto de 2010 onde a encontrei pela primeira vez, essa seja a única cuja
legenda
não
rotule 66
menino ou menina.
a
pessoa
fotografada
como
homem
ou
mulher,
E isso me parece significativo em uma cultura tão 67
preocupada com essa marcação.
Quando olho para essa fotografia, vejo
uma jovem menina, para citar Jordan sobre Phillis Wheatley, “um corpo 68
delicado, um rosto jovem, certamente apavorado”! palavra
Navio
E me pergunto se é a
que confundiu o fotógrafo e quem criou as legendas. Uma
sincronicidade
(uma
singularidade)
de
pensamento
ocorre que a pessoa que afixou a palavra
54
Navio
emerge
aqui.
E
me
em sua testa surge aqui
como outro tipo de seguradora, e tal nomeação opera dentro da lógica e da aritmética que também a tornariam uma criança magra, como aquela que ocupa menos espaço no porão de um navio [fig. 2.7]. Certamente, a óptica que registra essa menina apenas como “criança” é aquela que indica pelo menos uma certa incapacidade de ver. Porém, o que está em jogo aqui não é uma correção dessa visão nem uma expansão da categoria “menina” para incluir essa criança. Em vez disso, o que indico aqui chega por meio do ensaio “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, de Spillers, segundo o qual “nossa tarefa [é fazer] um lugar para esse sujeito social 69
diferente”. de
Glover enfatiza que devemos lembrar não apenas que a “taxa
mortalidade
na
viagem
transatlântica
para
o
Novo
Mundo
era
incrivelmente alta” mas também que os tumbeiros:
[…] eram mais do que tumbas flutuantes. Eles eram laboratórios flutuantes, oferecendo aos pesquisadores a chance de examinar o curso de doenças em ambientes
em
pesquisadores mortalidade
quarentena
da
para
saúde
razoavelmente
puderam
identificar
um
tirar
controlados.
vantagem
número
das
Médicos
altas
surpreendente
taxas
de
e de
sintomas,
70
classificá-los em doenças e levantar hipóteses sobre suas causas.
Devemos lembrar, também, daquelas pessoas que, no presente, são vistas e ainda assim abandonadas no mar – como aquelas a bordo do que veio a ser 71
chamado de “o barco dos deixados para morrer”. devemos
fazer
novamente
uma
pausa
no
que
E, com isso em mente,
diz
respeito
ao
dos Estados Unidos chamado
“conforto”
e
“medicina
e
à
navio médico
origem do navio ao qual aquela garotinha está destinada – um
militar
nome
Comfort
. “Estados Unidos”, “militar”,
alopática”
–
termos
usados
conjunta
ou
separadamente e que se conectam às vidas e aos corpos de pessoas Negras em todo e qualquer lugar do globo – garantem pelo menos uma profunda suspeita, se não um alarme imediato: daqueles experimentos a bordo do laboratório flutuante dos navios que transportam pessoas escravizadas (e migrantes), aos experimentos cirúrgicos de J. Marion Sims conduzidos sem anestesia
em
mulheres
escravizadas;
aos
surtos
de
cólera
no
Haiti
introduzidos pelas tropas da ONU; aos experimentos com gás mostarda em soldados Negros estadunidenses na Segunda Guerra Mundial para produzir o “soldado químico ideal”; aos experimentos com sífilis em Tuskegee e na Guatemala e seus efeitos em cascata; às origens e respostas duvidosas à crise
do
recentes Unidos
ebola; que
à
prática
mostram
recebem
sentem menos dor. chamado
de
repetidamente
cuidados 72
navio
contínua
de
saúde
esterilização que
pessoas
inferiores
forçada;
aos
estudos
Negras
nos
Estados
porque
se
acredita
que
Podemos fazer uma pausa, também, porque aquele
Comfort
é
muito
próximo
55
em
nome
de
outro
navio
originalmente chamado
Care
Zorgue
, o
Zong
rebatizado como
. Mas nessa
desnomeação, nessa marcação de uma quantidade conhecida apenas como
anulação de gênero oceânica
“criança”, vislumbramos aquela
que Spillers
teorizou em “Mama’s Baby, Papa’s Maybe” como “aquelas pessoas africanas na ‘Passagem do Meio’ […] literalmente suspensas no oceano, se pensarmos neste
[…]
como
Continuamos
uma
com
Spillers:
diferença de gênero tornam
um
analogia
sobre
“Nessas
condições,
no desfecho
73
identidade
indiferenciada”.
perdemos
pelo
menos
a
, e o corpo da mulher e o do homem se
território
de
manobra
cultural
e
política,
nem
um
pouco
74
relacionado ao gênero, específico de gênero”.
A questão para a teoria é como viver no vestígio da escravização, nas vidas após a morte da escravização, na vida após a morte da propriedade. Em resumo, como habitar e romper esta episteme com suas, com nossas vidas conhecíveis. “O que mais há para saber” agora? Além de: “Seu destino 75
é o mesmo de qualquer outra Vênus Negra”?
Eu não queria deixá-la (essa menina com a palavra
Navio
afixada em
sua testa) como a encontrei em um arquivo de dor e morte e destruição que não revela nem seu nome, nem seu sexo, nem quaisquer outros detalhes de sua
vida.
Uma
legenda
da
imprensa
nos
transportada para tratamento no USNS
diz:
“Criança
Comfort
76
”.
ferida
espera
ser
A segunda legenda da
imprensa diz:
Porto Príncipe, Haiti – 21 de janeiro: Criança espera ser evacuada por soldados da 82ª Divisão Aerotransportada do Exército dos Estados Unidos para o
Comfort
USNS
em 21 de janeiro de 2010 em Porto Príncipe, Haiti. Aviões carregados
de equipes de resgate e suprimentos emergenciais chegaram ao Haiti enquanto governos e agências de ajuda humanitária lançavam uma enorme operação de socorro
após
edifícios
um
foram
forte
terremoto
reduzidos
a
que
pode
escombros
pelo
ter
matado
terremoto
milhares.
de
Muitos
magnitude
7
na
77
escala Richter em 12 de janeiro.
voz interrompe: diz ela
Mas uma “ E
assim
78
”.
essa
Menina
dos
arquivos
do
desastre
do
primeiro
mês
da
segunda década do século XXI é evocativa de outras duas meninas a bordo daquele
tumbeiro
escravização
chamado
atlântica
cujos
Recovery
efeitos
em
ainda
meio estão
ao em
longo
desastre
andamento
e
da
cujas
histórias Hartman conta ao contestar em “Vênus em dois atos”. E essas meninas evocam outras meninas contemporâneas, as quais também (não) são vistas e, muitas vezes, são (des) consideradas.
Não é apenas por essa força que nos reconhecemos e somos reconhecidas Uma história magra não é um fracasso. “
79
.”
E
não
fui
atraída
pela
imagem dessa jovem para encenar mais violência. Se eu pudesse evitar, eu
56
não
a
ressujeitaria
dessa
forma.
Ecoando
a
poeta
Claire
Harris,
em
“Policeman Cleared in Jaywalking Case”, penso, “Olhe pra você, criança, eu sinalizo […] a criança era negra e do sexo feminino e, portanto, minha, 80
Ouça”.
O
que
acontece
quando
olhamos
e
ouvimos
essas
e
outras
meninas Negras ao longo do tempo? O que se produz em nossos encontros com
elas?
Esse
olhar
impõe
exigências
éticas
a
quem
observa;
exige
imaginar outramente; considerar o fato de que o arquivo, também, é uma invenção. O poema de Harris leva o título de uma notícia publicada no
Edmonton Journal pela
polícia
por
em 1983. A menina tem quinze anos, é Negra e é parada
atravessar
uma
rua
fora
da
faixa.
Ela
está
“apavorada”
(lembra um transeunte) e é incapaz de mostrar uma identificação com foto que
satisfaça
os
olhares, 81
arreganhada/ revistada”. quinze
anos
sonha
as
regras,
então
ela
é
presa,
“despida/
A segunda garota do poema é a poeta, que aos
acordada
quando
pisa,
sem
pensar,
em
uma
rua
movimentada de Trinidad. “Fui liberada com um sorriso / com compaixão enviada para a manhã quente e verde / Vinte anos depois, para levantar um jornal e ver meu antigo eu de quinze anos / ainda boba / agora em um carro de polícia / ainda tremendo enquanto a manhã passa, mas aqui / nauseada 82
diante de tal intenção tão perversa.” Estado
canadense,
Harris
é
impelida
Diante da “intenção perversa” do
a
imaginar
através
do
tempo
e
do
espaço para rememorar o incidente de sua infância, a fim de colocá-lo ao lado do acontecido contemporâneo, e a fim de falar e escrever para/a partir de
outra
forma
imaginada
e
vivida.
Então,
em
“Vênus
em
dois
atos”,
quando Hartman conclui “Então foi melhor deixá-las como eu as havia encontrado” e, duas páginas depois, pergunta “No final, foi melhor deixálas
como
as
epanalepse: ênfase
ou
encontrei?”,
“a
repetição
clareza,
a
de
assim
afirmação
palavra/s
como
para
e
em
a
pergunta
intervalos
retomar
uma
realizam
regulares,
construção 83
longo parêntese”; uma “ligação entre palavras e frases”.
uma
seja
para
após
um
Entre a afirmação
e a pergunta está o interregno; e nesse intervalo o “algo – qualquer coisa – mais” pode aparecer e realmente aparece. Na
fotografia
de
,
perdemos
qualquer
Navio
2010
da
menina
tentativa
haitiana
de
um
marcada
primeiro
com
nome
a
palavra
que
Phillis
concedeu a Phillis Wheatley, perdemos algo como gênero e individuação.
Entretanto, uma voz interrompe: diz ela
“
Philip,
Hartman
indivíduos, carga
84
.”
mas
marcada
mulher
negro
,
e
outras
colunas no
encontram
nas
quais
livro-razão
idem”.
“Não
os
com
havia”,
a
nos
Lembre-se
geralmente
sujeitos
nos
foram
indicação
de
que
arquivos
do
não
transformados
negro Zong
“homem
manifestos
Spillers,
,
e
de
em
idem, outros
navios, Philip nos diz, “nenhum nome – as listas de escravos no livro eram simplesmente
identificadas
como
‘homem
negro
’
ou
‘mulher
negro
’
no
topo do livro-razão e no livro de contas, seguidos por ‘idem’ em todas as páginas,
com
exceção
de
um
comentário,
57
‘magra’,
permitido
como
negro
referência a ‘menina
’ – ‘menina
negro
magra’.” Ela continua: “E só
naquela única palavra… Paralisei quando vi a palavra e pensei, há toda uma 85
história nesta palavra, ‘magra’”. Phillis
Wheatley, 86
anônimos”,
filha
de
um
“homem
e
uma
mulher
amargamente
era “magra” (uma criança magra e doente, de acordo com
alguns relatos), nunca realmente uma menina; pelo menos não “menina” de
qualquer
culturas
forma
que
opere
euro-ocidentais;
como
nenhuma
um
significante
pessoa
significativo
reconhecível
como
nas
“menina”
sendo inspecionada, vendida e comprada em leilões no “Novo Mundo”. Da mesma forma, para algumas pessoas, Phillis não foi nunca realmente uma poeta.
Abertamente
“Indagação XIV” de
A
infelicidade
poesia.
–
não
Thomas
Jefferson,
que
Notes on the State of Virginia
escreveu
na
comoventes
na
:
costuma
Entre
para
os
ser
negros
a
genitora
há
muita
das
expressões
infelicidade,
mais
Deus
sabe,
mas
nenhuma
poesia. […] A religião, de fato, produziu uma Phillis Wheatley; mas não pôde produzir uma poeta. As composições publicadas com seu nome estão abaixo 87
da dignidade de crítica.
Naquela foto de 2010, a criança magra não é Phillis, mas não
é
uma
navio/criança/garota; fotografia
assim
fotografias Negras
é
específica
embarcação/garota
de
a
que
parte eu
desastres
que,
nelas,
pelo
tenha
chamada
todo.
E,
acontecidos
geralmente
em
são
qualquer
seja
a
única
experiência
Negros
apresentados
mas
essa
minha
espaços
; isto é, ela
Phillis,
embora
encontrado,
Navio
e
com
grupos
de
com
pessoas pessoas
Negras em situação de “dor para o consumo público”, para citar Elizabeth 88
Alexander, em
Los
e tanto faz se esses grupos de pessoas Negras se encontram
Angeles,
Nova
Orleans,
Serra
Leoa,
República
Dominicana,
Lampedusa, Libéria ou Haiti [figs. 2.9-2.13].
Zong!
Philip, em havia
muitas
Então,
por
, e Fred D’Aguiar, em
Feeding the Ghosts
, contam que
meninas magras a bordo daquele tumbeiro chamado
um
lado,
podemos
imaginar
esse
fotógrafo
Zong
.
aumentando
o
enquadramento da foto para revelar não uma menina Negra, mas fileira após fileira após fileira de meninas, meninos, homens e mulheres Negres com a palavra sofrimento
Navio
de
afixada na testa. Alternativamente, em vista de como o
pessoas
Negras
compõe
o
pano
de
fundo
diante
do
qual
outro tipo de “drama humano” (com h maiúsculo) é encenado, também podemos perceber que, se aumentarmos o enquadramento da foto, talvez se
revele
que
aquela
menina
evacuação. Marcada como o
é
a
Navio
única
rotulada
dessa
forma
para
a
/a criança (como Phillis); salva (?) para
ser outra vez subjugada, porque somos apenas ordinariamente singulares, somente a única, numa extraordinariedade que, de certo ponto de vista,
58
obscurece o sofrimento para produzir um “milagre Phillis”, e raramente “singulares” ou “únicas” em nosso sofrimento ou vulnerabilidade que são supostamente visíveis, apesar de serem, para algumas pessoas, tudo o que há para ser visto. Não teria sido melhor deixá-la como a encontrei. Em minhas leituras e práxis de trabalho de vigília, tentei me posicionar com ela, no vestígio. 3 de outubro de 2013. Um navio com 500 pessoas migrantes africanas pegou fogo, virou e afundou a cerca de 800 metros da costa da ilha italiana de Lampedusa. Como o pessoas,
mas
lotado
Zong
com
– construído para transportar no máximo 200
mais
de
440
pessoas
africanas
cativas
–,
esse
navio sem nome fora construído para conter menos da metade do número de gente que levava. Mais de 300 homens, mulheres e crianças a bordo foram mortos.
59
[2.7] Estiva do tumbeiro britânico Brookes sob a lei regulamentada do comércio de escravos de 1788, c. 1788. Gravura (água-forte). Library of Congress Rare Book and Special Collections Division. Mergulhadores de águas profundas “desfizeram uma parede de pessoas” do casco de uma embarcação de contrabandistas no fundo do mar perto dessa ilha italiana na segunda-feira, desemaranhando cuidadosamente os mortos, que seriam migrantes em potencial, na última e mais meticulosa fase de uma 89
operação de recuperação após o incêndio e naufrágio do navio.
Uma
perda
impressionante
descobrimos
com
os
de
vidas
e
contrabandistas,
uma
“valia
“carga
quase
humana”
500
mil
Zong
Duzentos e trinta anos após a tripulação a bordo do tumbeiro ao mar aquelas pessoas africanas vivas, a palavra
carga
que,
euros”. lançar
se repete, assim
como os horrores do cativeiro, do arremesso e do espancamento. Pessoas de
origens
africanas
que
migram
são
vítimas
de
“níveis
desumanos
de
violência”, são esfaqueadas e lançadas ao mar, baleadas e lançadas ao mar, trancafiadas
no
“porão
escuro
e
sufocante”
enquanto
outras
são
amontoadas no convés – de pé na porta do cativeiro. Os perigos não são uniformemente distribuídos agora – e nunca foram. Conforme os jornais relatam
esses
desastres
contemporâneos
e
o
estado
de
angústia
de
migrantes, será que deveríamos imaginar que algum tipo de reparação é feito por esses periódicos, atualmente, pelo reconhecimento do sofrimento físico
e
psíquico
substantivo
carga
dessas
pessoas
e
pela
? A adição da palavra
adição
humana
do a
adjetivo
carga
humana
ao
nada faz, aqui,
para amenizar o efeito fantasmático exercido por esses navios em relação à escravização transatlântica, ou às vidas após a morte da escravização, ou às
O Passado é uma posição. Assim, de forma alguma podemos identificar o passado como passado vidas após a propriedade. “
[…]
90
.”
Sobreviventes
daquele
naufrágio
de
outubro
de
2013
relatam
que
o
contrabandista ateou fogo ao navio para chamar a atenção dos pescadores nas
águas
e
das
autoridades
em
terra;
relatam
que
as
autoridades
marítimas mantiveram a embarcação sob vigilância, mas não prestaram socorro
ao
navio
que
estava
em
péssimas
condições
e,
em
seguida,
se
incendiou. Relatam que o fogo saiu rapidamente do controle e que mais de vinte
minutos
se
passaram
antes
que
qualquer
ajuda
chegasse.
“Iatistas
locais” disseram “que pensaram estar ouvindo um bando de gaivotas, em vez de seres humanos à beira da morte. […] A recusa em acreditar e em saber
ou,
mais
precisamente,
o
desejo
de
não
reconhecer 91
negro, naturalizado há muito como vida selvagem”.
60
o
sofrimento
“Esses corpos estão todos falando”, disse ela [a prefeita Giusi Nicolini] à
BBC
sobre os cadáveres em sacos verdes e azuis lacrados. Se isso for verdade, tratase de uma espécie de ventriloquismo preocupante. E se, da próxima vez, tais vozes não fossem convidadas para a mesa apenas como cadáveres – se suas complexidades fossem ouvidas, digamos, antes que seus gritos pudessem ser 92
interpretados como gritos de gaivotas?
Ouvindo gritos agudos, olharam para o mar para descobrir que a origem do ruído não eram os pássaros (como haviam suposto), mas sim um grupo de migrantes da Eritreia que gritavam por ajuda, seus corpos se debatendo. Uma grande parte era composta por mulheres e crianças fugindo do conflito e da pobreza via Líbia, apenas para se afogar de forma precipitada, à vista da costa 93
italiana, nas mesmas águas que esperavam que reescrevessem sua vida.
“Flutuamos por cinco horas, usando os cadáveres das pessoas que estavam conosco”, disse uma sobrevivente chamada Germani Nagassi, de trinta anos, à CNN
esta semana. “Não há nada pior do que isso. Muitas crianças. Havia uma
mãe com quatro filhos, uma mãe com um bebê, todos perdidos no mar. Minha 94
mente está cheia de cicatrizes e em péssimas condições.”
“Equipes de resgate e pescadores locais descreveram a cena como um ‘mar de cabeças’ com dezenas de pessoas agitando os braços e gritando por socorro na água.” Pelos pescadores, ficamos sabendo que muitos deles não ajudaram as pessoas que se afogavam porque, ao fazê-lo, haveria o risco de ter seus barcos apreendidos
pela
lei
italiana.
Um
pescador
diz:
“Essa
lei
de
imigração
está
matando pessoas”; enquanto outro relata que a “guarda costeira o impediu de salvar mais pessoas” e que “as equipes de resgate se recusaram a tirar pessoas de seu barco cheio para que ele pudesse resgatar mais, porque era contra o 95
protocolo”.
Os detalhes se acumulam como os idem idem nos arquivos
.
Equipes de resgate descrevem seu “choque” ao encontrar entre as centenas de pessoas mortas uma mulher, de aproximadamente vinte anos, com um bebê recém-nascido
ainda
conectado
a
ela
pelo
cordão
umbilical.
Relatam
ter
perdido a indiferença. “Não poderíamos voltar à superfície sem tentar fazer algo por ela. […] Nós a tiramos do barco formando uma corrente humana com nossos braços. Então a levamos ao fundo do mar e, lá, amarramos seu corpo com uma corda a outros corpos e, então […] subimos com eles das profundezas 96
do mar para a luz.”
61
Nós nos deparamos com ela em circunstâncias exorbitantes que não produzem nenhuma imagem da vida cotidiana, nenhum caminho para seus pensamentos, nenhum vislumbre da vulnerabilidade de seu rosto ou do que olhar para tal rosto poderia exigir 97
.
O sentimento dos membros da equipe de resgate italiana, porém, não vai mitigar o fato de que os cuidados com essa jovem se transformarão na
à la partus sequitur ventrem deles
incapacidade dela de maternar (
) e de que essa
chamada incapacidade representará os crimes colonialismo,
da
privatização,
da
extração
(do imperialismo, do
mineral
e
de
recursos,
da
destruição ambiental etc.). A compaixão das equipes de resgate não mitiga as
políticas
lembram:
de
“Há
morte uma
da
Europa-Fortaleza.
proibição
estrutural
Hartman
(em
vez
de
e
Wilderson
uma
mera
nos
recusa
intencional) contra alianças de pessoas brancas com pessoas Negras devido a essa […] divisão de ‘espécies’ entre o que significa ser um sujeito e o que 98
significa ser um objeto: um antagonismo estrutural”.
O mar é história
99
.
Essas
cenas
nos
representação
remetem
de
um
ao
“Dream
“colapso
do
Haiti”,
espaço
e
de do
Brathwaite, tempo
e
que
à
sua
separa
a
interdição contemporânea de pessoas refugiadas do Haiti no mar da longa 100
história de patrulhamento de corpos africanos na Passagem do Meio”. As
energias
do
padrão
do
vestígio
nos
forçam
de
volta
à
epígrafe
de
Não sei por que estou aqui – como vim parar a bordo deste navio, deste umbigo da minha arca I do not know why I am here, how I came to be on board this ship, this navel of my ark naval a navel e ark k arc c Brathwaite, com a qual esta seção começou – “
” [
] –, com seus homófonos
(com dois
, como nas forças marítimas
ou aquáticas, como nas marinhas ou navios de guerra) e no que resta do umbilical);
[arca], com
, com
, gesticula para a embarcação
salvadora de Noé, para a maldição sobre Canaã e, também, para com
(como
[arco],
, que faz referência às rotas percorridas, à circunferência e às ondas
transversais do vestígio. É
quem
sobrevive
a
essa
tormenta,
múltiplas
vezes
por
semana
repetidamente – e não as corporações multinacionais e os governos que a impõem
–,
que
enfrenta
investigação
criminal,
contenção
adicional
e
repatriação.
Se o crime é a negridade, a sentença é o circuito entre o navio e a costa? Navio
Uma garota com o nome de um navio. Uma garota com a palavra
em
sua testa. Uma garota segurando um navio. Uma garota cuja escola é um 101
“navio na tempestade”.
Os barcos naufragados e destruídos continuam
62
Os detalhes se acumulam como os idem idem nos arquivos nem mesmo sabemos todos os seus nomes
em movimento.
;
“
[
]
”.
O MEDITERRÂNEO NEGRO um barco, mesmo naufragado e destruído, ainda tem todas as possibilidades de se mover Inventory —
DIONNE BRAND,
O Mediterrâneo tem uma longa história relacionada à escravização.
O que estamos enfrentando hoje é uma nova declinação de uma questão antiga e
reprimida
que
assombra
e
compõe
o
projeto
europeu
e
a
própria
modernidade: o “Mediterrâneo negro” é uma unidade constituinte de análise para compreender as formas contemporâneas de policiamento das fronteiras 102
da Europa.
“Como você viajou desse jeito? Esse é um barco de fibra de vidro, e você tem uma criança pequena, e seu barco está todo quebrado, e você tem uma criança pequena, e seu barco está todo quebrado.” […] “Como você chegou até aqui? Somente pela graça de Deus…” “Todo mundo disse, quando viu o barco: ‘Não é 103
possível com esse barco, são só destroços’.”
Em 26 de março de 2011, tarde da noite, 72 pessoas africanas, entre mulheres, homens e crianças, deixaram Trípoli em um navio lotado, não, não era um navio, era um bote, rumo a Lampedusa, Itália. Após cerca de quatro horas de viagem, o navio entrou em apuros e enviou sinais. Os sinais foram recebidos, pelo menos um passageiro foi, e, apesar de ter sido avistado por muitas partes, militares e comerciais, o grupo de viajantes do navio não foi resgatado, mas ficou
à
deriva
por
permanecessem
mais
com
de
vida
duas
semanas
quando
aportou
até de
que volta
apenas na
nove
costa
da
viajantes Líbia.
As
equipes de resgate e as pessoas resgatadas relatam que um navio de guerra francês “chegou tão perto que as pessoas migrantes – famintas – puderam ver 104
os marinheiros olhando para elas com binóculos e tirando fotos”.
No rescaldo dessas mortes, desses assassinatos, de 63 pessoas africanas em grande
perigo
a
bordo
do
que
agora
é
conhecido
como
o
“barco
dos
deixados para morrer”, um grupo de “pesquisadores, arquitetos, artistas, cineastas, ativistas e teóricos” iniciou o projeto Arquitetura Forense em Goldsmiths,
Universidade
de
Londres.
63
O
grupo
escreve:
“Nossas
investigações
fornecem
evidências
para
equipes
internacionais
de
acusação, organizações políticas, ONGS e as Nações Unidas. Além disso, o projeto realiza exames críticos da história e da situação atual das práticas forenses na articulação de noções de verdade pública”. Como parte desse trabalho, a equipe do projeto Arquitetura Forense identifica as circunstâncias geopolíticas que obrigam grupos de migrantes a fazer essas viagens. E diz em um relatório de 2012:
Em
resposta
ao
levante
da
Líbia,
uma
coalizão
internacional
lançou
uma
intervenção militar no país. Em 23 de março de 2011, a Otan iniciou a aplicação de um embargo de armas na costa da Líbia. Durante o período dos eventos do caso do “barco dos deixados para morrer”, o mar Mediterrâneo central estava sendo
monitorado
Otan
e
os
migrantes
com
Estados em
um
escrutínio
participantes
perigo
–
e,
sem
precedentes,
tomassem
portanto,
se
ciência
preparassem
de
permitindo qualquer
para
prover
que
sinal
a
de
ajuda.
O
relatório da Oceanografia Forense transformou o conhecimento gerado pelos meios
de
vigilância
em
evidência
de
responsabilidade
pelo
crime
de
não
assistência.
A
crise
contínua
de
capital
na
forma
de
migrantes
fugindo
de
vidas
tornadas impossíveis de viver está se tornando cada vez mais visível ou, talvez, cada vez menos passível de ser ignorada. Pense nos milhares de pessoas migrantes resgatadas e naquelas que foram deixadas para morrer no mar ao longo do ano de 2015. A crise é muitas vezes enquadrada como crise de pessoas refugiadas que fogem de tensões econômicas internas e dos conflitos internos, mas subjacente a ela está a crise do capital e os destroços
oriundos
da
continuação
de
projetos
militares
e
de
outros
projetos coloniais de extração de riqueza e empobrecimento por parte dos Estados Unidos e da Europa. Em 18 de maio de 2015, a União Europeia (UE) votou pela substituição das
patrulhas
humanitárias
do
Mediterrâneo
por
patrulhas
105
militares.
Segundo esse novo plano, e com a cooperação da Líbia – “complicada pelo fato de não haver apenas um governo na Líbia” –, os barcos usados por traficantes
serão
interceptados
e
depois
destruídos”.
A
UE
diz
que
seu
“objetivo é perturbar o modelo de negócios que torna o tráfico de pessoas pelo
Mediterrâneo
intenção
de
um
perturbar
comércio os
outros
tão
106
lucrativo”.
modelos
de
Mas
negócios,
a
UE
não
lucrativos
tem para
empresas multinacionais, que desencadeiam o fluxo dessas pessoas. Marco
em
sobreviventes
e
destaque
o
uso
contranarrativa
de
pelo
mapeamento,
grupo
testemunho
Arquitetura
Forense
de
como
outro tipo de trabalho de vigília que pode contrariar o esquecimento, o apagamento, o descomunal e aqueles idem idem nos arquivos.
64
ARCAS DO RETORNO Já que a partida nunca foi voluntária, o retorno foi, e ainda pode ser, uma intenção, por mais que profundamente enterrada. Não há, como se diz, nenhuma maneira de entrar; não há retorno Um mapa para a Porta do Não Retorno .
—
DIONNE BRAND,
– substantivo: qualquer parte contínua da
circunferência de um círculo ou outra curva ARCO
.
verbo: mover em uma trajetória curva substantivo: a) um barco ou navio considerado semelhante àquele em que Noé e sua família foram preservados do Dilúvio; b) algo que oferece proteção e segurança .
ARCA
–
.
— Dictionary.com
O que significa retornar? O retorno é possível? É desejado? E, se for, em que condições e para quem? O terror do navio envolve a contemporaneidade e nela persiste. O presidente francês François Hollande “retornou” quando iniciou sua viagem às Antilhas, em 10 de maio de 2015, com uma visita a Guadalupe
para
a
cerimônia
de
criação
e
abertura
de
um
“museu
e
monumento para homenagear a memória de escravos e suas lutas na ilha 107
caribenha de Guadalupe”, que
sofreram
construído
durante
onde
guadalupina
de
reconciliação”
antes
o
o “primeiro museu francês a lembrar daqueles comércio
era
uma
Pointe-à-Pitre,
e
descrito
é
como
de
antiga
escravos”. refinaria
chamado “um
de
centro
O
de
“um
Memorial
açúcar
lugar
caribenho
de
de
na
ACTe,
cidade
memória
e
expressão
e
108
memória da escravização e do tráfico de escravos”.
A visita de Hollande ao local destacou, para quem não sabia e nem saberia,
as
reivindicações
em
andamento
de
reparação
feitas
por
descendentes de povos escravizados em Guadalupe, no Haiti, em Cuba e em todo o Caribe. E, enquanto Hollande reconhecia em 2013 a “dívida” da França para com o continente africano devido à escravização e ao “papel funesto
desempenhado
pela
França”,
ele 109
“não pode ser objeto de uma transação”.
acrescentava
que
essa
história
A menos, obviamente, que essa
transação beneficie a França (como no caso da indenização que o Haiti foi forçado
a
pagar)
mediante
comércio
e
outros
tipos
de
contratos
e
“investimentos”. Mas o que é uma dívida moral? Como ela é paga? Será que pessoas Negras só podem ser objeto, e não beneficiárias, de transações, sejam históricas ou de outro tipo? O arco de retorno para o Haiti está muito próximo
de
um
círculo
completo
65
ou,
talvez,
daquele
bumerangue
110
ellisoniano da história,
com a primeira visita oficial de Estado feita por
um presidente francês ao Haiti desde sua revolução bem-sucedida e com Hollande
e
a
França
como
beneficiários
dessa
visita,
e
não
as
nações
empobrecidas pelo roubo legal em curso. Em 25 de março de 2015, no Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Escravos, as Nações Unidas inauguraram
A
A arca do retorno
bravura
de
milhões
de
[fig. 2.8]. O comunicado à imprensa dizia:
vítimas
do
tráfico
transatlântico
escravista,
que
sofreram injustiças indescritíveis e finalmente se levantaram para acabar com a
prática
opressora,
foi
hoje
consagrada
permanentemente
com
o
desvelamento de um memorial na sede das Nações Unidas, em Nova York, no Dia
Internacional
Transatlântico
em
de
Memória
Escravos.
das
Vítimas
Intitulado
da
Escravidão
A arca do retorno
e
e
do
Tráfico
projetado
pelo
arquiteto estadunidense Rodney Leon, de ascendência haitiana, o memorial visa sublinhar o trágico legado do comércio escravista, que por mais de quatro séculos abusou de 15 milhões de africanos, roubando seus direitos humanos e sua
dignidade,
e
inspirar
o
mundo
na
batalha
contra
formas
modernas
de
111
escravização, tais como o trabalho forçado e o tráfico de pessoas.
Leon ativa a linguagem familiar de monumentos e memoriais: a linguagem da injustiça, do sofrimento, da tragédia, da inspiração e da transcendência. Rodney memorial
Leon
no
enterradas,
é
o
arquiteto
Cemitério
no
século
tanto
Africano
XVIII,
entre
de
em 15
A arca do retorno
Lower
mil
e
Manhattan,
20
mil
afrodescendentes, escravizadas e livres. Ele diz que
como
onde
pessoas
do
foram
africanas
A arca do retorno
e
é um
bom contraponto para estabelecer um espaço espiritual de retorno, uma “arca do
retorno”,
uma
contranarrativa
e
embarcação desfazer
onde
parte
podemos
dessa
começar
experiência.
a Não
criar
uma
se
trata
necessariamente de um retorno físico, mas há uma transformação psicológica, espiritual
e
emocional,
bem
como
um
sentimento
de
limpeza
através
do
112
processo de avançar para um lugar de onde a humanidade se aproxima.
O
que
constitui
uma
contranarrativa
aqui?
Qual
é
a
natureza
desse
desfazer? Um contraponto a
A arca do retorno
, de Leon, é o trabalho do artista
visual e sonoro Charles Gaines [fig. 2.14 e 2.15]. Gaines foi contratado para criar uma instalação temporária no rio Mississippi, que é em si mesmo uma porta de entrada para o Destino Manifesto, ou seja, colocado a serviço do projeto colonial, escravocrata e imperial que os Estados Unidos eram e são. Gaines escreveu uma ópera baseada no caso de Dred e Harriet Scott e criou
66
uma instalação chamada
Moving Chains
. Em sua descrição da obra, ele diz
que cada elo das correntes pesa cerca de 4,5 quilos e cada corrente tem aproximadamente 60 metros de comprimento. A obra é composta de dez correntes: quatro correntes prateadas, uma corrente vermelha no centro para
representar
adicionais.
Elas
velocidade
do
o
são
sangue
e,
em
mecanizadas,
Mississippi,
seguida,
as
enquanto
cinco
correntes a
correntes
prateadas
corrente
se
vermelha
prateadas movem
se
move
na na
velocidade de uma balsa no rio. Essas parecer
são
um
as
coordenadas
navio.
Ele 113
“experiência feroz”.
diz
que
da
estrutura
estar
nela
e
temporária caminhar
que
por
Gaines
ela
será
diz
uma
Eu leio o monumento temporário de Gaines como
assentado no conhecimento do vestígio, em um passado que não é passado, um passado que ainda está conosco; um passado que não pode e não deve ser pacificado em sua apresentação. A linguagem afetiva visual-sônica de Gaines não é de passado e reconciliação. Aquele rio, aquele tempo, aquele lugar ainda estão presentes; o ar ao redor daquele navio permanece tão perturbado
como
sempre
esteve.
Gaines
nos
dá
o
tempo
do
navio,
um
contraponto ao tempo monumental.
[2.8] Um close do memorial do legado da escravização. Cortesia de UN Photo/Devra Berkowitz.
67
[2.9] Mare nostrum, jun. 2014. Pessoas refugiadas amontoam-se a bordo de um barco a cerca de 25 quilômetros da costa da Líbia, antes de serem resgatadas por uma fragata naval italiana que trabalhava na Operação Mare Nostrum. Cortesia de Massimo Sestini.
[2.10] Operação Resposta Unificada.
© MC2 (SW) Candice Villarreal/US Navy/Handout/Corbis
68
[2.11] Charge sobre o ebola. Cortesia de André Carrilho.
[2.12] Hew Locke, For Those in Peril on the Sea, 2011. Instalação na igreja de St. Mary & St. Eanswythe, em Folkestone. © Hew Locke. Todos os direitos reservados, DACS, 2015
69
[2.13] Romuald Hazoumè, Lampédouzeans, 2013. Instalação de mídia mista, 220 × 360 × 380 cm. Cortesia de October Gallery. © Artists Rights Society (ARS), Nova York/ADAGP, Paris, 2015
70
[2.14–2.15] Representações de Moving Chains, de Charles Gaines, projeto a ser potencialmente instalado na margem de um rio. Cortesia do artista. © Charles Gaines, 2015
71
72
deixe-me declarar portais cantos, encalço, deixe-me dizer imóvel aqui em cílios, em seios invisíveis, no lago em desaparecimento nas pequenas lojas de lembranças falsas ,
,
a vida frágil e roída que vivemos, eu sou presa, e estou presa —
DIONNE BRAND,
Thirsty
(ênfase minha)
– grande espaço na parte inferior de um navio ou aeronave onde a carga é armazenada (de um navio ou aeronave); continuar a seguir (um curso particular); manter ou deter (alguém); uma fortaleza HOLD [
PORÃO]
.
— Oxford English Dictionary
Não é possível ler as palavras da segunda estrofe do primeiro poema do
Thirsty mapa para a Porta do Não Retorno livro
, de Dionne Brand (publicado em 2002, um ano depois de
Um
), encontrar sua declaração de portais e
não
pensar
nessa(s)
Porta(s)
do
Não
Retorno
em
toda
continente africano. Com esse primeiro poema de
não
a
Thirsty
costa
oeste
do
, não podemos
pensar nas maneiras como nós, pessoas Negras na Diáspora, somos
presas
e
estamos
presas
na/pela
“vida
frágil
e
roída
desprotegidas do terrível, exceto pelos cílios. Sedentas.
que
Sedento
vivemos”, é a palavra
final que a poeta dá a Alan quando ele cai… morto. Quem lê reconhece Alan como
Albert
Avenue,
em
Johnson,
morto
Toronto;
Alan
a
tiros
em
Johnson,
agosto
morto
de
pela
1979, bala
na
de
Manchester
um
1
policial.
Sedento. Com sede na caminhada, no porão, no navio, na costa e no agora… Alan e Albert Johnson caem. Nós habitamos e somos habitadas pelo porão. Em
entrevista
Manthia
Diawara 2
chegada”.
a
Édouard
começa
Glissant
dizendo:
sobre
“Um
suas
barco
é
teorias uma
da
partida
relação, e
uma
Eu tomo essa dualidade, essa duplicação de partidas e chegadas,
como linha de largada para esta seção sobre o que acontece no porão. O livro de memórias de Charlotte Delbo intitulado
Nenhum de nós voltará
começa com “Rua da chegada, rua da partida”. Delbo relata outro tipo de navio, outro tipo de porão, o dos vagões de gado que chegam a Auschwitz ou Buchenwald. Então ela começa com a estação, que não está em lugar
73
nenhum, e a porta que leva à morte. Ela escreve: “Mas existe uma estação em que os que chegam são justamente os que partem / uma estação em que os que chegam nunca chegaram, em que os que partiram nunca voltaram. / 3
É a maior estação do mundo. É a essa estação que eles chegam”. portas
anteriores,
estações
anteriores,
portos
anteriores
de
Houve
chegada
e
partida. Não incluo Delbo aqui para fazer uma analogia entre o Holocausto (Delbo
integrava
a
Resistência
Francesa)
e
a
escravização.
A
aritmética
brutal da escravização é precursora daquela do Holocausto. Inicio daqui
arrivants
por conta das maneiras como Delbo explicita que tais chegantes [
]
(termo usado por mim, com um salve para Brathwaite) de toda a Europa, que nunca partirão nem sabem a língua dos guardas, devem aprender uma nova língua por meio de chutes, socos, coronhadas de rifle e tiros. Uma mãe dá um tapa em uma criança; os guardas gritam, batem e puxam; a linguagem se desintegra.
Zong!
É dentro de/com tal queda, tal dilaceração da língua, que
começa.
A linguagem abandonou a língua sedenta, abandonou as línguas daquelas pessoas
cativas
a
bordo
do
Zong
tumbeiro
,
cuja
aquisição
de
novas
linguagens articula a linguagem da violência no porão; a língua luta para formar
a
nova
linguagem;
consoantes,
vogais
e
sílabas
espalhadas
pela
página. Letras pretas flutuam como aquelas pessoas africanas que foram lançadas e que saltaram do navio e se perderam nos arquivos e no mar. “á á
w w w w a wa / wa a wa t / er…
á á g ág / ág ág u / ua…” [
4
].
A boca tenta
formar as palavras da língua-outra; exceto pelo mar salgado, a água desaparece em todas as suas manifestações: lágrimas, urina, água da chuva e água
potável.
“Água
de
algum
dia,
água
de
querer”,
escreve
5
Philip.
A
linguagem se desintegra. A sede dissolve a linguagem. Se não sabíamos, Delbo nos diz: “Ó vocês que sabem / sabiam que a fome faz brilhar os olhos 6
que a sede ofusca?”.
Se não sabíamos, Morrison nos diz isso em
Amada
:
“os homens sem pele trazem a água da manhã deles para a gente beber a gente
não
bebe
[…]
se
a
gente
bebesse
mais
podia
fazer
lágrimas
não
podemos fazer suor nem água da manhã então os homens sem pele trazem 7
a deles para nós”.
Danticat nos diz isso em “Children of the Sea” por meio
das palavras de um jovem haitiano sonhando com a amada que deixou para trás enquanto enfrenta o conhecimento da morte: “Tentei falar com vocês, 8
mas todas as vezes que abri minha boca saíram bolhas de água. Sem som”; Brand nos diz isso em
Thirsty
. Juntas, essas escritoras elaboram o porão e
seu longo vestígio, o tempo de residência do porão, sua longa duração. A primeira linguagem que os guardas do porão usam com as pessoas cativas é a linguagem da violência: a língua da sede e da fome e da dor e do calor, a língua da arma e da coronhada, o pé e o punho, a faca e o arremesso ao mar. E, no porão, bocas abertas dizem, sedentas.
74
Adolescentes equipes
da
que
ONG
chegaram
Save
the
ao
porto
Children
italiano
sobre
de
como
Lampedusa
pessoas
que
contaram
migravam
às
dos
países da África subsaariana costumavam ser mantidas sob o convés, privadas de água e luz solar.
[…]
“Os líbios que me levaram à Itália não são humanos”, disse ele. “Eles falam com a arma, não com palavras […]. Empurraram oito pessoas da Nigéria ao mar.” […] “E eles jogaram meu amigo no mar. Todos se afogaram.”
[…]
Em julho do ano passado, cerca de cem pessoas migrantes foram massacradas por traficantes depois que tentaram escapar de um porão enquanto a fumaça do motor se espalhava pelo barco. Quando o gás venenoso se espalhou abaixo do convés, o pânico começou e as pessoas conseguiram abrir a porta à força, mas
foram
recebidas
por
traficantes
armados
com
facas
que
começaram
a
massacrá-las e a jogá-las ao mar.
[…]
Cinco homens esfaquearam e agrediram aleatoriamente as pessoas a bordo e as jogaram ao mar, dizendo às outras para não reagirem ou teriam o mesmo destino, disse a polícia. Cerca de sessenta pessoas migrantes foram atacadas, e o corpo delas foi jogado ao mar, enquanto cerca de cinquenta foram jogadas 9
diretamente ao mar para se afogar.
O
capitão
e
um
membro
da
tripulação
estavam
entre
as
28
pessoas
sobreviventes resgatadas das cerca de 950 a bordo da ex-embarcação de pesca 10
de vinte metros.
Um
adolescente
da
Somália
disse
que
queria
ser
chamado
de
Ali
em
11
homenagem a seu amigo que fora lançado ao mar junto de outras pessoas.
De acordo com relatos de testemunhas recolhidos pela polícia, os suspeitos de tráfico – dois líbios, dois argelinos e um tunisiano de 21 a 24 anos – ameaçaram as pessoas migrantes a bordo com facas e espancaram-nas com cintos para controlá-las. Cerca de cem pessoas migrantes oriundas do continente africano, agora consideradas mortas, foram supostamente mantidas no casco do barco 12
condenado, disseram sobreviventes à polícia.
75
Essas narrativas de jornal ressoam o que quem vive no vestígio conhece. Compreendemos
as
compulsões
do
capital
em
nossas
mortes
sempre-
possíveis. Mesmo assim, esses corpos tentam superar as compulsões do capital. Eles, nós, habitamos o conhecimento de que o corpo Negro é o
immi/a/nent
signo da morte imi/a/nente [
]. Esses são relatos do porão na
contemporaneidade. Em
Calais
[fig.
3.1],
os
guardas
do
porão
respondem
com
violência
quando as pessoas refugiadas da contínua financeirização de suas vidas invivíveis e do empobrecimento orquestrados pela Europa tentam chegar ao Reino Unido. O primeiro-ministro britânico David Cameron refere-se a elas como um “enxame de pessoas cruzando o Mediterrâneo em busca de uma vida melhor, querendo vir para a Grã-Bretanha porque a Grã-Bretanha tem empregos, tem uma economia em crescimento, é um lugar incrível para
se
revoltas
13
viver”. na
perseguidos
Cameron
sequência pela
polícia,
insiste
da o
no/recusa
morte então
por
o
“porão”.
eletrocussão
ministro
do
Interior
Em de
2005, dois
Nicolas
após
jovens Sarkozy
referiu-se a jovens em situação de rua como “escória” e “gentalha” e disse que
lavaria
as
periferias
com
uma
máquina
de
alta
pressão.
Cameron
e
Sarkozy instrumentalizam a ortografia do vestígio. Eles instrumentalizam as
convenções
da
língua
brutal
do
porão.
“A
partir
de
amanhã,
vamos 14
limpar a Cité des 4.000 com uma [lavadora de alta pressão] Kärcher.” Alemanha,
em 15
continuam.
Bayreuth,
Berlim
e
Hamburgo,
os
campos
de
Na
refugiados
Lá, pessoas refugiadas são mantidas em aldeias durante anos,
incapazes de sair sem permissão, proibidas de ir para a cidade, proibidas de encontrar emprego ou ir à escola, na morte em vida do campo. “‘Ser um homem
negro
ou
‘refugiado’
em
Brandemburgo
é
como
ser
judeu
ou
homossexual nos anos 1930 na Alemanha’, disse Chu Eben, que fugiu de 16
Camarões em 1998 e vive na Alemanha desde então.”
76
[3.1] Migrantes: França-Grã-Bretanha-Europa. © Philippe Huguen/Getty Images Desde
o
final
de
2012,
o
acampamento
na
Oranienplatz,
em
Berlim
–
um
We
conjunto de cerca de trinta grandes barracas, adornadas com frases como “
are here
Kein Mensch ist ilegal
” [Estamos aqui] e “ 17
tem sido
” [Nenhuma pessoa é ilegal] –,
o lar de mais de duzentas pessoas refugiadas de diferentes partes do
18
mundo.
Em
Nova
Katrina
e
continuam
Orleans,
Louisiana,
mantidas a
em
configurar
pessoas
condições um
Negras
desalojadas
deploráveis
padrão
de
no
cativeiro,
pelo
[estádio]
proibidas
furacão
Superdome de
retornar,
proibidas de “seguir em frente”, enquanto a cidade se refaz sem elas. Na Grécia, na ilha de Kos, a polícia “espancou migrantes com cassetetes e os pulverizou com extintores de incêndio enquanto centenas se reuniam em 19
um estádio de futebol para esperar pelos documentos de imigração”.
Em
um popular programa de TV francês, a escritora senegalesa Fatou Diome disse:
Se
essas
pessoas
cuidadosamente tremendo
agora.
cujos
corpos
minhas Em
estão
palavras
vez
disso,
–
lavando
fossem
são
essas
praias
brancas,
pessoas
a
Negras
–
Terra e
e
eu
escolho
inteira
Árabes
estaria
que
estão
morrendo, e a vida delas é mais barata. A União Europeia, com sua marinha e sua
frota
de
Mediterrâneo
guerra, se
pode
quiser,
mas
resgatar senta
e
migrantes espera
até
no que
Atlântico as
pessoas
e
no
mar
migrantes
morram. É como se deixar que elas se afoguem fosse usado como forma de
77
dissuadi-las
de
chegar
à
Europa.
Mas
deixe-me
dizer
uma
coisa:
isso
não
impede ninguém […], porque o indivíduo que está migrando como um instinto de sobrevivência, que acredita que a vida que está levando não vale muito, não 20
tem medo da morte.
O
Zong
se repete; ele se repete e se repete por meio da lógica e do cálculo
da desumanização iniciada há muito tempo e ainda operante. Os detalhes e as
mortes
se
acumulam;
os
idem
idem
preenchem
os
arquivos
de
um
passado que ainda não é passado. Os porões se multiplicam. E o mesmo acontece com a resistência a eles, a sobrevivência a eles: “a vida frágil e roída que vivemos, / eu sou presa, e estou presa”. Entendemos isso porque estamos “imóveis aqui em cílios”.
O VENTRE DO NAVIO O aterrorizante vem do abismo, três vezes amarrado ao desconhecido. Uma primeira vez, inaugural, quando você cai no ventre da barca. Uma barca, segundo sua poética, não tem ventre, uma barca não engole, não devora, uma barca toma a direção do céu pleno. Mas o ventre dessa barca te dissolve, te atira num não mundo em que você berra. Essa barca é uma matriz, o abismomatriz. Que gera o teu clamor. Que também gera toda unanimidade futura. Pois se você está sozinho nesse sofrimento, você compartilha o desconhecido com algumas pessoas que você ainda não conhece. Esta barca é tua matriz, um molde, que, no entanto, te expulsa. Grávida de tantos mortos quanto de vivos em suspenso Poética da relação .
—
ÉDOUARD GLISSANT,
“Ataquei terroristas negros, havia um bebê negro, eles falaram que um bebê negro, negros em geral, são terroristas. Terror negro, raça branca.” Mordechai Michael Zaretzky, Afula, Israel (indiciado por tentar matar uma bebê eritreia de 18 meses esfaqueando-a na cabeça com uma tesoura na noite de 3 jan. 2014) .
—
EFRAT NEUM,
“Afula Man Indicted for Trying to Kill Black Baby”
Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth Century America Em
, Saidiya Hartman escreve que “observadores do século
XIX”
de uma fileira de pessoas escravizadas descreveram tal grupo (em sua 21
formação e movimento) como “uma passagem do meio doméstica”. “Mama’s
Baby,
Papa’s
Maybe:
An
American
Grammar
Book”,
Em
Hortense
Spillers escreve que as pessoas africanas empilhadas no porão do navio foram
marcadas,
conforme
as
definições
euro-ocidentais,
não
como
homem e mulher, mas como propriedade de tamanhos e pesos diferentes.
78
“Nessas gênero
condições”,
no desfecho
ela
escreve,
“perdemos
pelo
menos
a
diferença
de
, e o corpo da mulher e o do homem se tornam um
território de manobra cultural e política, nem um pouco relacionado ao 22
gênero, específico de gênero”. Lendo
conjuntamente
a
Passagem
do
Meio,
o
grupo
de
pessoas
escravizadas e, acrescento, o canal de parto, podemos ver como cada um funcionou separada e coletivamente ao longo do tempo para (des)figurar a maternidade
Negra,
tornando
o
útero
uma
fábrica
de
produção
de
negridade como abjeção, muito parecido com o porão do tumbeiro e com a prisão,
e
transformando
o
canal
de
parto
em
outra
passagem
do
meio
doméstica com mães Negras, após o fim da hipodescendência legal, ainda
status
conduzindo suas crianças à sua condição, isto é, ao seu não/ 24
não/ser.
23
,
ao seu
Para confirmar isso, não precisamos ir além das ortografias pós-
modernas
do
vestígio
–
transmitidas
por
meio
de
linhas
do
tempo
do
Twitter, feeds do Facebook, sites, Tumblrs, Instagrams e outras mídias e redes
online
sofrimento
e
de
tradicionais,
mães
todas
despossuídas
organizadas
após
os
para
espetacularizar
assassinatos
de
seus
filhos
o e
filhas, cada mãe forçada a mostrar sua dor em público. O canal de parto de mulheres Negras ou de mulheres que dão à luz a negridade, então, é outro tipo de Passagem do Meio doméstica; o canal de parto,
aquela
passagem
desde
o
útero
por
onde
o
feto
passa
durante
o
O ventre do navio gera a negridade; o canal de parto permanece no/como porão parto.
.
O
ventre
do
navio
dá
à
luz
a
negridade
–
como
(não)
relação. Pense agora naquelas mulheres encarceradas nos Estados Unidos que são forçadas a dar à luz enquanto estão acorrentadas, com sua dor ignorada.
Elas
são
forçadas
a
parir
acorrentadas,
mesmo
quando
esse
acorrentamento é contra a lei. Parir no ventre do Estado: nascida no/como corpo do Estado. O tumbeiro, o útero e a fila de pessoas escravizadas, o longo projeto de desumanização; continuamos a sentir e a ser a queda/quem cai. Pode-se apreender muito nitidamente essa desumanização da fileira de pessoas escravizadas e, com ela, o nascimento de novas “formas de vida 25
negra”
em uma descrição feita por Richard Wright, de quatro anos, nas
páginas iniciais de
Black Boy: American Hunger
. Wright não sente aquele
“terror absoluto que ele sentiu quando viu os soldados, pois essas criaturas estranhas estavam se movendo lenta e silenciosamente, sem incitação de ameaça”. Ele continua: “Eu acidentalmente olhei para a estrada e vi o que me
pareceu
ser
uma
manada
de
elefantes
vindo
lentamente
em
minha
direção. […] Os estranhos elefantes estavam a poucos metros de mim agora, 26
e eu vi que o rosto deles era como os de homens!”. seu
“Held
in
“Lembro-me
the
de
Body
ver,
of
the
quando
eu
State” era
com
uma
79
uma
criança
Colin Dayan começa
memória crescendo
semelhante: em
Atlanta,
27
homens vestindo listras de zebras e trabalhando ao longo da rodovia”. Tanto
Wright
quanto
Dayan
elaboram
o
poder
trans*formador
de
desumanização da prisão e da fileira da prisão. Dennis
Childs
tumbeiro, o
articula
barracoon
28
,
totalmente
as
conexões
entre
o
porão
do
a prisão e a prisão-porão de carga. Childs escava o
“tumbeiro terrestre” usado nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX:
Para caber tantos prisioneiros em um espaço tão pequeno, a “jaula” consistia em duas seções paralelas de beliches de três camas, com uma via de acesso que descia
no
centro
e
um
buraco
aberto
no
meio
da
passarela,
por
onde
os
prisioneiros eram forçados a urinar e defecar em um balde colocado no chão, embaixo dessa estrutura. O revestimento externo desse espaço era uma treliça de barras de madeira ou de metal que deixava os prisioneiros à vista sob a vigilância dos guardas do campo e do público. Havia também outra estrutura que consistia em quatro paredes de madeira sem janelas. Essa última versão da jaula
com
rodas
não
permitia
aos
prisioneiros
a
visão
do
mundo
exterior,
deixando-lhes apenas um minúsculo suprimento de ar respirável – uma fenda estreita
ao
longo
imobilizava
seus
da
estrutura.
prisioneiros
Como
no
caso
acorrentados
a
do
tal
tumbeiro, ponto
que
a
jaula
se
móvel
sentar
era
29
impossível.
(Voltarei
a
isso
em
“O
tempo”.)
As
taxas
de
encarceramento
e
a
lógica
carcerária dos Estados Unidos que emergem diretamente da escravatura e no presente continuam a ser os sinais que fazem corpos Negros. Veja uma imagem de prisioneiros no Malauí [fig. 3.2], em 2005, que evoca nada menos do que o porão do tumbeiro transformado em navioprisão.
A
prisão
repete
a
lógica,
arquitetônica
e
outras,
do
tumbeiro
(na/através da Diáspora Negra global). Com essas lógicas em mente, quero sugerir que o que também está
é
nascendo índice
de
o que chamo de
violabilidade
e
negridade anagramatical
, que existe como um
também
de
potencialidade.
J.
Kameron
Carter
chega a algo assim quando, em “Thinking with Hortense Spillers”, escreve que a “‘passagem’, afinal, em ‘Passagem do Meio’ é […] – a própria existência 30
no meio”.
Enquanto continuo pensando na gramática de Spillers, “que é
realmente uma ruptura e um tipo radicalmente diferente de continuação 31
cultural”,
e nas frases iniciais do livro
In the Break
, de Fred Moten, que
dizem que “a história da negridade é um testamento do fato de que objetos podem resistir e resistem” e “negridade – o movimento estendido de uma convulsão específica, uma irrupção contínua que desarranja todas as linhas – é uma tensão que pressiona a suposição da equivalência de personalidade e
32
subjetividade”,
eu
chego
à
negridade
como
–
negridade
é
–
anagramatical. Ou seja, podemos ver os momentos em que a negridade se
80
abre para o anagramatical no sentido literal, como quando “uma palavra, frase ou nome se forma pela reorganização das letras de outra”, segundo o dicionário
Merriam-Webster
. Podemos apreender isso também no sentido
metafórico de como, em relação à negridade, o gênero gramatical se esvai e novos
significados
proliferam;
como
“as
letras
de
um
texto
são
transformadas em uma mensagem secreta quando reorganizadas” ou como uma mensagem secreta é decodificada através da reorganização das letras de
um
tempo,
texto. de
Ana-
,
volta,
negridade
como
de
como
prefixo,
novo,
significa
(a)temporal,
dentro
“para
33
Assim,
e
fora
novamente”.
cima,
no
lugar
negridade
do
lugar
ou
no
novamente,
e
do
tempo,
pressionando o significado e aquilo contra o qual o significado é produzido. Vemos repetidamente como, dentro e fora dos Estados Unidos (meu ponto de
partida
exemplo,
e
de
chegada),
“prostituta” 35
mas “Hulk Hogan” que
mãe
do
terror”,
ou
menina
não 34
“criminosa”,
significa
menino
“menina”,
não
significa
mas,
por
“menino”, 36
ou “atirador”, “bandido” ou “jovem urbano”.
Vemos
não significa “mãe”, mas “criminosa” e “defensora” e/ou “parideira e
não
um
dos
principais 37
cotidianamente implementado.
motivos
Vemos que
do
criança
terror
múltipla
e
não é “criança”, e um
barco, um veleiro da Guarda Costeira, torna-se, nas mãos de Brathwaite, uma vala da Guarda Costeira – não um navio de resgate ou de assistência hospitalar, mas um portador de caixões, portador de fileiras de corpos e assim
por
38
diante.
Conforme
os
significados
das
palavras
se
desfazem,
deparamos repetidamente com a dificuldade de fixar a significação. Essa é a existência Negra no vestígio. Isso é o anagramatical. Essas são vidas Negras, anotadas. (Voltarei ao que estou chamando de anotação Negra no capítulo final deste livro, “O tempo”.)
[3.2] Prisioneiros dormem em uma cela na prisão de Maula, nos arredores de Lilongue, no Malauí, em 29 jun. 2005. “A desumanidade 81
das prisões africanas é uma vergonha que se esconde à vista de todo mundo.” © Joao Silva/The New York Times/Redux Voltemos
a
Aereile
Jackson,
aparece e desaparece em
a
mulher
Negra
que
The Forgotten Space
simultaneamente
, de Sekula e Burch – Aereile
Jackson, identificada como “ex-mãe”. O que significa ser “ex-mãe” e, em particular,
o
que
significa
conseguiu
reivindicar
o
ser
que
uma
mãe
“ex-mãe”
significa
para
no
alguém
mundo?
nunca
que
Quando,
como
Spillers nos disse, a vida Negra é um “estado forçado de violação” e a mãe
visto que pode ser invadida a qualquer momento e de maneira arbitrária pelas relações de propriedade (como a família) é uma relação que perde o significado, “
39
”?
O que a expressão “ex-mãe”, para descrever uma mulher
cujas crianças lhe foram tiradas (e provavelmente colocadas sob “cuidado estatal”),
nos
diz
sobre
as
vidas
após
a
morte
propriedade? Quem, ou talvez o quê, carrega o
da
status
escravização
e
da
de (não)/(ex-)mãe
quando suas crianças são perdidas devido à morte ou porque estão “presas
ex
no corpo do Estado”, e como alguém se torna uma menos
que
a
palavra
mãe
nunca
tenha
se
-mãe? Quer dizer, a
aplicado
às
mulheres
Negras
dentro e fora da escravização no “Novo Mundo”. Somos inundadas com imagens de mulheres Negras sofrendo, de (não) mães Negras em luto por (não) crianças Negras. Em
Laboring Women
, Jennifer Morgan escreve:
O desafio, para os historiadores do início do Atlântico, é relatar, a todo custo, os
igualmente
homens
e
inumeráveis
mulheres
reconfiguraram maternidade,
seu
por
atos
de
humanidade,
apanhados
sentido exemplo,
no
subsequente não
pode
as
turbilhão de
maneiras
da
identidade
permanecer
pelas
ascensão e
quais
colonial
possibilidade.
inalterada
A
quando
entendida no contexto tanto da esmagadora mercantilização dos corpos dos bebês e de suas mães quanto do potencial impulso que as mulheres devem ter 40
sentido para interromper tais cálculos obscenos.
“A maternidade […] não pode permanecer inalterada.”
41
Minha amiga Jemima tuitou os prints de uma série de mensagens de texto com seu filho de onze anos. Ele quer uma camisa à prova de balas. Ela pergunta se ele está bem. Ele diz que não. Ela diz que
está triste por ele
achar que precisa de uma camisa à prova de balas lamenta precisar de uma
; ela se pergunta se algo
aconteceu promete
com
que
ele.
eles
Ele
o
responde
protegerão,
que
que
.
o
manterão
seguro.
Ela
Ela faz
lhe isso
sabendo, antes, ao longo e depois de escrever essas mensagens, que há um limite para o que pode fazer para protegê-lo; que não há espaço seguro e…
82
ainda assim, como Denver, em saia
desse
ventrem
quintal.
42
Vá”.
Nas
Amada
, ele precisa saber disso: “Saiba, e
vidas
após
a
morte
partus sequitur
do
, o que significa, o que pode significar a maternidade para mulheres
Negras,
para
pessoas
Negras?
Que
tipo
de
mãe/maternidade
é
essa,
se
sempre se deve estar preparada com o conhecimento da possibilidade de morte violenta e cotidiana de um filho ou filha? É maternidade saber que seu filho/sua filha pode ser morto/morta a qualquer momento no porão, no vestígio,
pelo
Estado,
não
importa
quem
empunhe
a
arma?
(Todas
as
relações de Spillers são invadidas pelo Estado.) Ser engolidos inteiros pelo Estado,
expurgados
pela
polícia,
parados
e
revistados,
ter
as
costas
quebradas, ser humilhados, ser internadas em “campos” para mulheres e crianças. Minha amiga e seu filho são cativos do Estado, e mãe e criança caem… aos pedaços.
“Ela era mãe, esposa, ela era minha, ela não é mais minha.” Essas são as palavras do marido de Raynetta Turner, Herman, encontrada morta em uma cela na manhã seguinte a ter suas queixas de que se sentia mal ignoradas. Ela era mãe de oito crianças e estava presa pela acusação de furtar comida em uma loja 43
.
Em “Interstices: A Small Drama of Words”, Hortense Spillers escreveu que a escravização
trans
formou a mulher Negra, ela “se tornou a principal ponte 44
de passagem entre o mundo humano e o não humano”.
Joy James nos
lembra de que Thomas Jefferson, que não conseguia ver Phillis Wheatley como poeta, era:
um astuto consumidor da reprodutividade de mulheres negras. Em
the State of Virginia
, Jefferson diferencia entre o selvagem indígena
selvagem africano biológico ou
ontológico
Notes on social
e o
. E ilustra seu argumento com um
bestiário: orangotangos, afirma ele, preferem mulheres negras. Jefferson isenta todas
as
outras
formas
humanas
racialmente
subjugadas
da
sexualidade
animalizada (por exemplo, ele não opina que orangotangos fêmeas prefiram 45
homens negros ou que búfalos desejem mulheres Indígenas).
Em “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, Spillers escreve que pessoas africanas eram
desgenerizadas
na
Passagem
do
Meio,
marcadas
não
como
masculinas/homens e femininas/mulheres, e sim como propriedades de tamanhos diferentes e pesos específicos: “Fêmea/mulher na ‘Passagem do Meio’, devido à massa física aparentemente menor, ocupa ‘menos espaço’ em
uma
entanto,
economia
diretamente
quantificável
pelas 46
contraparte masculina”.
traduzível
mesmas
pelo
regras
de
dinheiro.
Mas
contabilidade,
ela
é,
como
no sua
E, novamente, é Hartman que nos lembra que a
83
fileira
de
pessoas
escravizadas,
que
reaparece
como
a
fileira
de
pessoas
acorrentadas dentro e fora do contexto da escravização, “foi descrita por observadores
do
século
XIX
como
uma
Passagem
do
Meio
doméstica, 47
pirataria, um mal momentâneo e, mais frequentemente, um crime”. Em
muitas
representações
certamente
nos
homem
Afula,
de
Estados
visuais,
Unidos,
Israel,
que
mas
entre
não
começou
só,
esta
outras como
seção,
na
vida
indica
a
vemos
que
pública,
citação
do
pessoas
Negras expulsas do Estado tornam-se símbolos nacionais daqueles seres menos-que-humanos
condenados
à
morte;
alguém
terror, a personificação do terror (
tornam-se
de dentro,
a
as
portadoras
do
ameaça terrorista
interna), e não os principais objetos das múltiplas formas como o terror é implementado, mas o terreno da possibilidade do terror. Há um extenso repertório
representacional
(fotográfico
e
discursivo)
da
confluência
da
negridade e da morte e múltiplas representações de “senso comum” da maternidade Negra – e, portanto, da impossibilidade da infância Negra – como que condenando alguém a uma vida de violência. Traçamos essa história de volta à escravização de pessoas como bens móveis e à lei
sequitur ventrem
que a prole de uma mulher escravizada herdaria o (não) Mulheres e crianças Negras continuam a ser consideradas que-humanas
agentes
e
partus
(novamente, “quem nasce segue o ventre”), a qual ditava
de
desastres
“naturais”,
seja
status vítimas
no
da mãe. menos-
rescaldo
do
terremoto de 2010 no Haiti, seja no de um barco afundando durante uma viagem perigosa, seja no do furacão Katrina. No dia 29 de outubro de 2012, em
Staten
Island,
Nova
York,
durante
o
furacão
Sandy,
Glenda
Moore
buscou abrigo e este lhe foi recusado. Essa recusa particular resultou na morte por afogamento de seus filhos Connor e Brendan, de dois e quatro anos, respectivamente, e em sua condenação pela opinião geral como uma mãe
inadequada.
O
tempestade?
Que
questionado
por
que
tipo
desesperada
que
batia
que, de
perguntam,
mãe
não
ela
abrira
era? a
ela Se
porta
repetidamente
em
estava isso
para sua
não
fazendo bastasse,
aquela
porta
naquela quando
mulher
pedindo
Negra
ajuda,
o
homem branco que lhe negara abrigo disse não ter visto nenhuma mulher Negra, mas um homem Negro GRANDE, de modo que ele foi
forçado
a passar
a noite com as costas contra a porta para impedir sua entrada e, portanto, a 48
própria violação.
“no começo as mulheres estão sempre longe dos homens e os homens longe das mulheres tempestades sacodem a gente e misturam os homens nas mulheres e as mulheres nos homens.” 49
O que é uma criança Negra? Nos Estados Unidos, grupos conservadores simultaneamente
clamam
pelo
fim
84
do
aborto
e
exaltam
as
virtudes
imaginadas dessa proibição. Lembre-se de Bill Bennett, ex-secretário de Educação dos Estados Unidos e “tsar dos valores”: “Se seu único propósito fosse reduzir o crime”, disse Bennett, “você poderia abortar todos os bebês 50
negros neste país, e sua taxa de criminalidade despencaria”.
Essa é uma
aritmética execrável, uma contabilidade violenta. Outro indicativo de que o significado de
criança
, quando apreende a negridade, cai… aos pedaços.
Um exemplo primordial de reconhecimento do que estou chamando de negridade anagramatical aparece nítida e literalmente na transição operada por Frederick Douglass da tia Hester de seu livro de 1845,
de Frederick Douglass and My Freedom
Narrativa da vida My Bondage
, para a tia Esther de seu livro de 1855,
.
meticulosamente
Porque,
as
por
violências,
mais a
que
tirania
Douglass
cotidiana
e
tenha as
elaborado
resistências
de
Hester, bem como sua própria vida em servidão, em que qualquer pessoa branca
tem
Nathaniel
o
direito
Hawthorne
de
exigir
publica
qualquer
coisa
dela
A letra escarlate
,
(e
em
dele),
1850,
quando
Hester
é
conectada à gramática do ser humano que pode violar a lei na sociedade civil; o humano que consegue consentir, mesmo que ela seja punida por fazê-lo. Além disso, em relação ao anagramatical literal (as mesmas letras, reorganizadas) de Hester e Esther em Douglass, penso no excedente de significação
da
negridade:
as
maneiras
significação desliza, quando palavras como
como
o
significado
desliza,
a
criança, menina, mãe menino e
apreendem a negridade. Pensemos novamente nos vários estudos que nos dizem que, embora se saiba que estão sentindo dor, pessoas Negras são “forçadas a suportar mais dor” e que crianças Negras são consistentemente consideradas mais velhas do que são e, portanto, nunca são consideradas, de
fato,
2015
51
crianças.
que
Voltemo-nos,
descreveu
um
jovem
nos
Estados
branco
de
Unidos,
dezoito
a
anos
uma e
notícia
uma
de
menina
branca de treze anos, ambos fugitivos da lei, por roubar carros, falsificar e roubar cheques, cruzar os limites do Estado e estar armados, como “Bonnie e Clyde” e “namoradinhos adolescentes”. O homem não foi descrito como predador nem a menina como prostituta (como provavelmente teriam sido se fossem pessoas Negras). Não foram descritos como criminosos ou como bandidos que estavam armados e eram perigosos. Não. A esse casal branco foi lançada uma corda de salvamento (não a boia daquelas pessoas Negras vistas
em
“Dream
Haiti”,
de
Brathwaite)
que
estendeu
ao
par
uma
gramática coerente dentro e ao redor do humano. Ao casal foi estendida 52
uma narrativa que trabalhou para torná-lo legível e bastante simpático.
Uma narrativa que, primeiro, diminuiu o fato e, mais tarde, a gravidade dos muitos
“atos
criminosos”
que
cometeram;
reorganizou
o
crime,
53
transformando-o em romance.
Pensemos agora no artigo que descreveu Aiyana Stanley-Jones, de
anos
54
, como indivíduo de sete anos adormecido e desarmado.
sete
Stanley-
Jones foi assassinada em 2010 por Joseph Weekley, um policial branco de
85
Detroit
que,
acompanhado
pela
48 horas
televisão
Swat
e
pela
equipe
do
programa
de
, chegou à porta onde Aiyana, de sete anos, morava com
sua avó e demais integrantes de sua família. Com conhecimento prévio de que a pessoa que procuravam morava no andar de cima, a polícia, ainda assim, invadiu sua casa e lançou uma granada de atordoamento. Aiyana estava
dormindo
imediatamente
no
sofá
pegou
da
fogo,
sala; e
a
ela
granada
sofreu
atingiu
queimaduras 55
Weekley disparou sua arma (uma submetralhadora), na
cabeça
e
acusações
a
matou.
contra
Apesar
Weekley
da
confirmação
foram,
por
Adormecida. Sete anos de idade
seu
fim,
cobertor, graves.
que
Então,
a bala atingiu Aiyana
desses
fatos,
todas
as
Desarmada.
descartadas.
. O que devemos fazer com esta conjunção,
sete anos, adormecida, desarmada? Devemos abordar tais termos como se eles fizessem sentido fora da (i)lógica da colonização, fora da (i)lógica da vida
Negra
no
vestígio,
fora
da
(i)lógica
de
se
estar
armada
com
a
negridade? Quando a avó de Aiyana se dirigiu a Weekley, ela disse: “Não consigo
dormir.
Eu
estou
doente.
flashbacks
dormir. Os
Estou
muito
doente.
Eu
não
consigo
. Eu não desejaria isso a ninguém no mundo. Nem
56
mesmo a você”.
Vereda; a linha de recuo de (uma arma). Vigília; o estado de vigilância ou de consciência .
Pensemos em Mikia Hutchings (a quem voltarei mais tarde, em “O tempo”), uma menina Negra de doze anos, pega com sua amiga branca escrevendo na parede de uma escola, prestes a responder por um possível crime porque sua
família
não
pôde
pagar
a
multa
de
indenização
de
cem
dólares.
Escrever na parede de uma escola pode ser visto como um crime ou não, se você
tiver
dinheiro
suficiente.
Eu
poderia
continuar.
Essas
histórias
também se acumulam; os idem idem nos arquivos do presente. Pensemos Brown
–
o
extensão
na
segunda
relatório
de
suas
de
autópsia
autópsia
lesões.
Essas
solicitada
comentado
anotações
pela
[com
família
notas]
necessárias
de
que
foram
Michael
mostra
feitas
a
pelo
médico legista contratado pela família para comprovar que houve lesão, assim
como
a
extensão
delas;
para
mostrar,
em
face
da
linguagem
prontamente utilizada da monstruosidade Negra embutida na linguagem de
“roubo
mostrar
com
que
o
ele
emprego
estava
de
força”,
fugindo
e
que
ele
gravemente
não
estava
ferido.
armado;
Vejamos
para
como
o
testemunho de Darren Wilson salvaguarda seu próprio papel como “braço forte”
da
lei
e
como
o
poder
do
Estado
desaparece
quando
o
policial
armado e treinado é transformado em uma criança de cinco anos por sua proximidade e comparação com a negridade.
86
“Quando o segurei [Michael Brown, o jovem negro desarmado de dezenove 57
anos],
a única maneira que posso descrever é que me senti como um menino
de cinco anos segurando Hulk Hogan. […] Quando ele olhou para mim, soltou tipo um grunhido, tipo um som grave de quem está irritado, e ele começou… ele se virou e veio em minha direção”, lembra Wilson. “Seu primeiro passo foi em minha direção, ele meio que deu um passo vacilante para começar a correr. Quando ele fez isso, sua mão esquerda se fechou formando um punho e foi para
o
lado
esquerdo
de
seu
corpo,
sua
mão
direita
foi
para
baixo
de
sua
camisa, na altura da cintura, e ele começou a correr em minha direção.”
“Ele estava quase ganhando força para correr através dos tiros, como se aquilo o enfurecesse, o fato de eu estar atirando nele”, disse Wilson. “E a cara que ele estava
fazendo,
estava
olhando
como
se
não
me
visse,
como
se
eu
nem
estivesse lá, como se eu não fosse nada em seu caminho.” Wilson mirou na cabeça
de
Brown
e
disparou
o
tiro
que
mataria
o
adolescente
desarmado.
“Quando ele caiu, ele caiu sobre o próprio rosto”, lembrou Wilson. “Lembro58
me dos pés dele subindo… e então eles descansaram.”
Darren
Wilson
tem
uma
imaginação
Eady em seu livro de poemas
mítica
brutal.
Brutal Imagination
Aqui
está
Cornelius
, sobre o caso de Susan
Smith. Smith afogou seus dois filhos (de três e quatorze meses) em 1995 em Union, Carolina do Sul, e depois acusou um homem Negro, um espectro,
o
espectro, de ter cometido tais crimes. Em “How I Got Born”, Eady poderia estar se referindo a Darren Wilson, entre outros:
Embora seja senso comum Que Susan Smith me queria vivo No momento em que seus bebês afundaram no lago. Quando chamado, eu vou Meu trabalho é fazer as coisas.
…………………………….
Susan Smith me inventou porque Ninguém mais nesta cidade fará o que Ela precisa que eu faça. Quer dizer, pular num carro parado E dar a partida com duas crianças Tristes e assustadas no banco de trás. Como uma má amante ela me deu um coração envenenado. Que bate em nossas costelas, preto, furioso, só eficiência. Já que o medo dela é meu sangue
87
E sua necessidade algo mítico, Tudo que ela diz sobre mim é verdade.
Quem é o senhor? Um dos meninos pergunta Do banco de trás eterno, E aqui está a única coisa boa: 59
Se eu estou vivo, então, por enquanto, eles também estão.
Michael Brown é a projeção de Darren Wilson, assim como o homem Negro desconhecido no caso de Susan Smith é a projeção dela. O porão, o meio da 60
rua Canfield Drive,
em Ferguson, Missouri, são iluminados e preenchidos
com/pela imaginação brutal. Assim como o enquadro policial.
O ENQUADRO Na Diáspora, como nos pesadelos, você é constantemente oprimida pela persistência do espectro do cativeiro Um mapa para a Porta do Não Retorno .
—
DIONNE BRAND,
Verificação famílias,
rotineira
centros
de
de
documentos,
detenção,
Lager
baculejo, [campos
centros de
de
detenção
refugiados],
zonas
de de
quarentena… são outros nomes pelos quais se pode reconhecer o porão como ele aparece em Calais, Toronto, Nova York, Haiti, Lampedusa, Trípoli, Serra Leoa, Bayreuth e assim por diante. Em dezembro de 2011, o “Why
is
the
N.Y.P.D.
after
New York Times
me?”,
escrito
publicou um artigo de opinião,
por
Nicholas
K.
Peart.
O
artigo
começa assim:
Quando pânico
eu
se
tinha
um
quatorze
policial
me
anos,
minha
parasse.
E
mãe
ela
me
me
disse
advertiu
para para
não
entrar
carregar
em
meu
documento de identidade e nunca fugir da polícia, do contrário eu poderia levar um tiro. Nos nove anos que se passaram desde que minha mãe me deu esse
conselho,
houve
inúmeras
ocasiões
nas
quais
pude
perceber
sua
61
sabedoria.
Diante dos contínuos assassinatos de pessoas Negras nos Estados Unidos, por dirigir, caminhar, pedir ajuda e respirar sendo uma pessoa Negra, esse é um bom conselho; esse é o conselho necessário de uma mãe Negra para seu filho
Negro,
e
ainda
é,
e
tem
sido,
insuficiente
encontra no mundo.
88
para
as
forças
que
ele
Quando julho
de
o
New York Times
2012,
sobre
publicou
mulheres
posteriormente
Negras
que
estão
um
artigo,
sujeitas
a
em
revistas
aleatórias e baculejos nas ruas da cidade de Nova York, o foco estava em como elas sentiam que, durante essas revistas, eram humilhadas e tocadas indevidamente. O artigo nos diz que “as leis que regem as revistas nas ruas são indiferentes ao gênero” e que, “ao conduzir uma revista, a polícia de Nova York é treinada pelo guia de patrulha para deslizar as mãos sobre a roupa externa, com foco nas áreas da cintura, axila, colarinho e virilha […]. O
treinamento 62
não
feminino”.
Isso
autorizadas
a
faz
distinção
significa
fazê-lo
que
é
a
entre
suspeitos
pessoa
tratada
parada
sem
do
e
sexo
masculino
revistada
distinção
de
por
ou
pessoas
gênero
e
sem
consentimento, podendo ser violada sexualmente.
Recentemente, em uma noite de verão, a bolsa preta de Shari Archibald estava a seus pés na calçada em frente de sua casa no Bronx. Os dois policiais do sexo masculino agacharam-se sobre sua bolsa de couro e a vasculharam, enfiando os braços até os cotovelos. Um policial pescou um tampão menstrual e, em seguida, um absorvente higiênico, amassando a embalagem laranja entre os dedos em busca de drogas. Então, ele puxou uma bandeja de comprimidos cobertos de papel alumínio, lembra Archibald. “O que é isso?”, perguntou o policial,
examinando
a
embalagem
da
pílula
em
que
estava
escrito
“drospirenona/etinilestradiol”. “Anticoncepcional”, lembrou a sra. Archibald. Ela respirou e exalou profundamente, esperando que a lufada de ar esfriasse seu
ânimo
e
contivesse
sua
humilhação
quando
os
policiais
começaram
a
revistá-la.
[…]
Policiais suspeitarem
do
sexo
masculino
razoavelmente
de
têm que
permissão
elas
perigosa que poderia causar-lhes danos.
uma operação de busca
podem
para
revistar
estar
mulheres
portando
uma
se
arma
Uma revista pode se transformar em
se os policiais sentirem uma protuberância suspeita
enquanto revistam a camada externa de roupas das mulheres ou o contorno de sua bolsa.
[…]
“Sim, é intrusivo, mas o policial vai fazer a busca onde quer que uma arma possa estar escondida”, disse a inspetora Royster. Essa busca não é aleatória; é baseada
em
informações
fornecidas
a
um
policial,
como
uma
descrição
detalhada de uma suspeita armada, ou em ações que levantam uma suspeita razoável de que a mulher pode estar armada, acrescentou ela. E, embora as revistas
policiais
de
mulheres
tenham
revelado
pouquíssimas
armas,
produziram 3.993 prisões no ano passado. “Segurança não tem gênero”, disse a
89
inspetora
Royster.
“Quando
você
está
falando
sobre
a
segurança
de
um
63
policial, a primeira coisa que ele ou ela vai fazer é mitigar a ameaça.”
Aqui está a rubrica do enquadro policial:
movimentos
furtivos,
carregar
objetos
suspeitos,
observar
uma
vítima
ou
localização, se encaixar em uma descrição relevante, indivíduo suspeito que age
como
vigia,
semelhante,
ações
ações
de
indicativas
de
envolvimento
uma em
transação
um
crime
de
drogas
violento,
ou
de
tipo
protuberância
64
suspeita, vestir roupas comumente usadas em um crime […].
No
caso
de
“protuberância
suspeita”,
poderíamos
ler
mais
um
policiamento das categorias de gênero, mais uma maneira de aterrorizar pessoas Negras de todos os sexos e gêneros? Os registros revelaram “um 65
adolescente algemado à força por dissimular uma ereção”.
“Crystal Pope,
22 anos, disse que ela e duas amigas foram revistadas por policiais homens no
ano
passado,
no
bairro
Harlem
Heights.
Os
policiais
disseram
que
estavam procurando um estuprador.” Ela relata: “Eles apalparam em torno da cintura do meu jeans. […] Apalparam os bolsos de trás da minha calça jeans, em volta da minha nádega. Foi meio desrespeitoso e degradante. Foi
Por que parar três mulheres quando se está supostamente procurando um estuprador? desnecessário. Não fazia sentido.
66
”
paradas
e
revistadas
por
policiais
à
procura
Grupos
de
de
um
amigas
estuprador;
aterrorizadas em nome da proteção de mulheres (sem ser reconhecidas como mulheres) do terror. Mais uma vez, nesses espaços de terror, relações de gênero euro-heteronormativas desaparecem
no desfecho da situação
.
Em seu artigo, Peart elucida os espaços restritos radical e racialmente nos
quais
e
através
dos
quais
homens,
mulheres,
meninas
e
meninos
Negros – parados e revistados a uma taxa de quase 700 mil em 2011 – podem viver e se mover livremente. O baculejo é um rito de passagem que marca, por um lado, o espaço/a raça/o lugar sem direitos e sem cidadania (como no caso
Dred Scott v. Sandford
[1857]) e, por outro, o espaço através
do qual os direitos à passagem livre são garantidos para pessoas não negras. As cartas de alforria voltam aqui. E se, desde então, constituem um rito de passagem – indicativo de nenhum direito, nenhuma cidadania, como na decisão do caso partir
de,
Dred Scott
através
e
–, devemos perguntar o que marca a passagem a
até.
Peart
continua:
“A
polícia
tem
muito
mais
probabilidade de usar a força para parar pessoas negras ou latinas do que brancas. Em metade das abordagens, a polícia cita o vago ‘movimentos furtivos’
como
motivo
do
67
enquadro”.
E
mais
um
jovem
Negro
relata:
“Quando você é jovem e Negro, não importa sua aparência, você se encaixa 68
na descrição”.
Você “se encaixa na descrição” do não ser, do estar fora do
90
lugar, de quem não é cidadão/cidadã e está sempre disponível e acessível para a morte. A
realidade
“movimentos baculejo, escravos
e
proveniência
furtivos”,
seguem até
a
a
uma
do
utilizada
linha
acusação
de
policiamento
como
direta
critério
desde
insolência
o
feita
e
para
capataz por
da
e
a o
linguagem
de
realização
do
proprietário
qualquer
pessoa
de
branca
como “um dos crimes mais comuns e indefinidos de todo o catálogo de 69
delitos geralmente atribuídos a escravos”.
Mantendo a retórica de que a
abordagem
vidas”,
e
consecutivos
revista de
policial
junho
de
“salvam
2012
o
ex-prefeito
em
de
dois
Nova
domingos
York
Michael
Bloomberg levou essa mensagem para igrejas predominantemente Negras, nas quais disse à congregação: “A cidade não ‘negará a realidade’ com o intuito
de
abordar
diferentes 70
relativas na população”.
grupos
de
acordo
com
suas
proporções
Devemos perguntar de quem são as vidas que
estão sendo salvas, quem de fato está em posse de uma vida que pode ser salva, pois é evidente que, em pelo menos um sentido, vidas Negras estão sendo destruídas. De acordo com Frederick Douglass: “O que quer que seja ou
não
seja
[…]
essa
ofensa
[imprudência]
pode
ser
cometida
de
várias
maneiras; no tom de uma resposta; no simples ato de responder; em não responder; caminhar,
na
expressão
nos
modos
e
do na
semblante; postura
no
do
movimento 71
escravo”.
Da
da
cabeça;
mesma
no
forma,
quaisquer que sejam ou não os movimentos furtivos, quando se é uma pessoa
Negra,
Pensemos
todo
em
movimento
Trayvon
Martin
e
pode
ser
Chavis
interpretado
Carter.
como
Pensemos
furtivo.
também
na
prisão de Monica Jones por estar caminhando, por ser Negra e transgênero, assim como na prisão e acusação das New Jersey Four. Paremos por um momento
no
caso
que
ficou
conhecido
como
New
Jersey
Four.
Quatro
jovens lésbicas Negras, de um grupo de sete, foram acusadas e condenadas por
agressão
de
segundo
grau
em
gangue.
Elas
foram
sentenciadas
e
cumpriram, integral ou parcialmente, entre três anos e meio e onze anos de prisão porque protegeram a si mesmas e umas às outras de um agressor 72
Negro que ameaçou “fodê-las até se tornarem heterossexuais”.
Não nos
esqueçamos da morte de Renisha McBride, de dezenove anos, uma jovem Negra que sofreu um acidente de carro durante a madrugada e foi procurar ajuda em uma casa em um bairro de branco de Detroit. Em vez de ajuda, ela foi recebida com uma bala fatal no rosto. Pensemos novamente em Miriam Carey, Glenda Moore, Jordan Dunn, Tamir Rice, Jonathan Holloway, Sandra Bland, Eric Garner, Jonathan Crawford, Rekia Boyd, Yvette Smith, Laquan McDonald, dentre tantas outras pessoas. Mais homens,
de e
90%
das
os
principalmente
em
pessoas
relatos suas
de
abordadas
em
abordagens
experiências.
O
Nova
York
policiais
NYPD
[New
em
2011
eram
concentram-se York
City
Police
Department – Departamento de Polícia da Cidade de Nova York] tem outro
91
programa de abordagens e revistas conhecido como Operation Clean Halls (“o único de seu tipo em uma grande cidade dos Estados Unidos que dá permissão
permanente 73
privados”),
que
mira
à e
polícia policia
para
vasculhar
mulheres,
corredores
crianças
e
de
homens
edifícios e
que
já
colocou, efetivamente, “centenas de milhares de pessoas nova-iorquinas, principalmente Como
parte
negras
e
latinas,
de seu mandato,
em
estado
de
e como efeito dele
sítio
na
própria
74
casa”.
, esses programas vigiam,
restringem e patologizam expressões e performances da sexualidade e do desejo de pessoas Negras. Um jovem Negro relata que, depois de ser parado e revistado, foi liberado pela polícia com a advertência “Vá em segurança”. 75
“Vá em segurança?”, ele pergunta, “depois de tudo que ele fez?”
“DO BERÇO À SEPULTURA”: DO ÚTERO AO TÚMULO Do berço à sepultura: da criação ao fim; ao longo do ciclo de vida. O termo é usado em uma série de contextos de negócios, porém mais tipicamente no que diz respeito à responsabilidade da empresa em lidar com resíduos perigosos e quanto ao desempenho do produto. Assim como “do útero ao túmulo”. Consulte também “sistema de manifesto de transporte de resíduos” .
— Business Dictionary Online
Eu pergunto novamente, pegando emprestada a frase de Philip: como é “defender quem morreu”? Uma professora do primeiro ano em Paterson, Nova Jersey, posta no Facebook que vê em seus alunos e alunas “futuros 76
criminosos”.
“Futuro criminoso” se junta a “ex-mãe” no anagramatical:
não criança; não mãe; não ser. No vestígio, devemos conectar a indústria do
nascimento
à
indústria
prisional,
a
máquina
que
degrada,
nega
e
eviscera a justiça reprodutiva à máquina que encarcera. Em 6 de fevereiro de
2013,
a
seção
de
Educação
do
New York Times
publicou
um
artigo
intitulado “A Hospital Offers a Grisly Lesson on Gun Violence”. O artigo começa assim:
Em
uma
sala
de
aula
escura,
quinze
alunos
do
oitavo
ano
se
espantaram
quando uma fotografia apareceu na tela na frente deles. Um homem morto cuja mandíbula fora destruída por um tiro de espingarda, deixando a metade 77
inferior de seu rosto uma bagunça sangrenta e disforme.
Os quinze alunos do ensino fundamental presentes nesse dia em particular são, em sua maioria, Negros e participantes de um programa no hospital da
92
Universidade Temple, no norte da Filadélfia, chamado Cradle to Grave [Do berço
à
sepultura],
seguinte
maneira:
envolvendo
ou
C2G.
“Em
jovens,
o
O
programa
resposta hospital
ao
Cradle
aumento
da
to
do
Grave
número
Universidade
experiência altamente interativa de duas horas
se
anuncia
de
da
homicídios
Temple
criou
uma
que confronta intimamente 78
participantes com as realidades da violência juvenil”.
Entendemos “do
berço à sepultura”, aqui, como uma ordem ou como uma descrição da vida Negra vivida, segundo argumentei, sempre no tempo presente da morte? Da mesma forma, “participante” pode ser a palavra correta para descrever as crianças da audiência apenas se ouvirmos e sentirmos nela a descrição de Frederick Douglass de si mesmo como “testemunha e participante” do açoitamento
de
sua
tia
Hester,
a
consciência
dele
de
que
tal
destino
também é o seu, a certeza que tem de que a entrada dele pela violenta “porta
sangrenta”
da
escravização
79
é
iminente.
Lemos
que
o
Cradle
to
Grave
reúne a juventude de toda a Filadélfia na esperança de que um olhar mais aproximado sobre os efeitos que as armas têm em suas comunidades impeça essa juventude de pegar em uma arma para acertar contas pessoais e a ajude a reconhecer
que
a
violência
armada
não
é
o
negócio
glamoroso
às
vezes
80
retratado em programas de televisão e na música rap.
No logotipo do C2G, o numeral 2 aparece como duplicação (in)consciente, uma redobra, um significante de como, para muitas pessoas no vestígio, o berço e a sepultura continuam sendo produzidos como o mesmo espaço. É um lembrete de que ser uma pessoa Negra é ser continuamente produzida pela espera em direção à morte; de que o berço e a sepultura se duplicam no que diz respeito à carne Negra. Ao
contar
a
história
de
Lamont
Adams,
um
adolescente
Negro
assassinado aos dezesseis anos, Cradle to Grave expõe crianças, muitas das quais já estão vivenciando o trauma
vivida
,
a
fotos
e
reimplementações
por meio de sua violência material,
de
violência
visual
como
forma
de
desencorajar mais violência. Lemos: “Enquanto jovens de treze e quatorze anos
se
reuniam
em
torno
de
uma
maca
em
uma
visita
recente,
o
sr.
Charles contou a história de Lamont Adams, de dezesseis anos, que morreu 81
no hospital após ser alvejado quatorze vezes por outro menino”.
Uma
pessoa jovem é convidada a colocar seu corpo no espaço/lugar do corpo de Lamont
Adams,
experiência
na
vicária
maca
que
o
onde
ele
programa
teria
oferece
sido é
colocado
[fig.
bem-sucedida
na
3.3].
“A
criação
desses ‘momentos de ensino’, comparáveis àqueles acionados em pacientes 82
com traumas reais.”
Como devemos entender o trauma aqui? Os corpos
93
desses jovens já estão sempre no espaço do corpo de Lamont Adams; não é esse passo
para dentro do porão
que requer imaginação.
Charles, o coordenador do setor de trauma do hospital, diz que, na história de sete anos e meio do programa, nenhuma mãe ou pai jamais reclamou
de
sua
filha
ou
filho
ter
visto
essas
imagens.
Tal
declaração
funciona mais para retratar a infância Negra e pobre como abandonada do que
para
tranquilizar
o
público
que
lê,
ou
pelo
menos
esta
leitora,
em
relação à correção ou adequação do programa. Aposto que essas mesmas equipes médica e administrativa não gostariam que
seus
filhos ou filhas
adolescentes fossem expostos a semelhante violência visual. Aposto que não considerariam simplesmente “educação” ou um “momento de ensino” o
fato
de
um
sinalizado
filho
com
ou
pontos
filha
ter
laranja
de
ficar
para
de
bruços
marcar
cada
em
um
um
dos
saco
24
vazio
pontos
e
de
entrada e saída das balas que atingiram e, por fim, mataram Lamont Adams aos dezesseis anos. De Phillis em diante, visto que crianças Negras não são consideradas crianças e que o cercadinho da “infância da cidade” as mantém fora da categoria trauma,
criança,
e
Kotlowitz,
não de
a
elas
recebem
terapia
outro
que
a
programa
do
Estado
citação da
a
e
de
agentes
seguir,
Filadélfia,
do
Estado
pronunciada
ilustra
como
por
mais Alex
necessária.
E
certamente não lhes é oferecido o mundo novo nem maneiras de imaginálo que as suas – as nossas – circunstâncias exigem. Alex Kotlowitz escreve no Filadélfia, Social
chamado
Justice 83
Social].
[Curar
Healing Pessoas
New York Times
Hurt
People:
Feridas:
sobre outro programa na
Center
Centro
de
for
Não
Nonviolence
Violência
e
and
Justiça
Pelo menos no nome, Healing Hurt People reconhece “pessoas” e
“feridas” e visa à justiça social e ao fim da violência, incluindo a violência de expor a mais violência quem já vive na/com a violência. Healing Hurt People parece reconhecer que o trauma, a proa do navio, deixa algo em seu vestígio.
94
[3.3] Scott Charles, coordenador do setor de trauma do hospital da Universidade Temple, coloca adesivos vermelhos em Justin Robinson, de treze anos, aluno do 8º ano da escola Kenderton, para mostrar os ferimentos de bala sofridos por Lamont Adams, um adolescente da cidade morto violentamente em 2004. A foto foi tirada durante o programa Cradle to Grave do hospital na Filadélfia, em 10 fev. 2013. O programa reúne jovens na esperança de que olhar para os efeitos de ferimentos de bala estimule a rejeição à violência armada. © Jessica Kourkounis/The New York Times/Redux
Quando o dr. Corbin e colegas começaram a trabalhar com vítimas de tiros na Filadélfia, viram sintomas nítidos de transtorno de estresse pós-traumático. Visitei o programa no verão passado e conheci um jovem que tinha terrores noturnos
tão
reais
que
sua
namorada
temia
pela
própria
segurança.
Outro
jovem me disse que, sempre que passa pelo local onde foi baleado, pensa estar vendo a si mesmo no chão, contorcendo-se de dor, e se aproxima do espectro para se assegurar de que ele ficará bem. Outro, baleado e paralisado em uma discussão por causa de um par de óculos de sol, disse que, sempre que pensa em vingança ou fica com raiva, o que acontece frequentemente, tem dores fantasmas incapacitantes nas pernas. Dois dos jovens com quem falei haviam tentado suicídio. Praticamente todos falaram que se sentem sozinhos, que não 84
confiam em ninguém.
O porão se repete e se repete e se repete no presente, moldando-o, bem como (n)a sala de aula e (n)o hospital. Em dezembro de 2013, o intitulada
“Invisible
Child:
New York Times Dasani’s
95
publicou uma matéria de capa
Homeless
Life
in
the
Shadows”
85
[Criança invisível: A vida de Dasani em situação de rua nas sombras].
Do
jeito que se apresenta, a série é uma exposição da “herança” recebida por Dasani Coates, uma vida de precariedade devida às “más escolhas” de seus pais
(principalmente
de
sua
mãe),
bem
como
das
falhas
maciças
e
sistêmicas de programas implementados para lidar com a pobreza e a falta 86
de moradia. O foco é direcionado a Dasani Coates,
criança Negra de onze
para doze anos, e sua família (sete crianças, sua mãe e seu pai), que vivem em
um
dos
abrigos
familiares
da
cidade
de
87
Nova
York.
família
(A
desmorona, no vestígio da captura e do navio, ela não consegue se manter.) Na primeira parte da série, Dasani é apresentada ao público leitor em casa e no caminho para a Dr. Susan S. McKinney Secondary School of the Arts (“Um lugar onde a esperança começa & os sonhos se realizam”) – escola cujo espaço, já demasiado apertado, como lemos, pode diminuir ainda mais pelo fato iminente de que suas salas para performances, no terceiro andar, serão desalojadas por uma (indesejada e contestada) escola privada. Quando Holmes,
a
narrativa
diretora
da
nos
leva
McKinney,
à
escola,
descrita
somos
como
uma
apresentadas mulher
à
sra.
formidável.
“Mulher imponente, alternadamente firme e doce”, a sra. Holmes
usa
um
fone
de
ouvido
bluetooth
como
se
fosse
um
brinco
permanente
e
comanda o leme a escola como um navio de guerra, espiando por seus corredores reluzentes como se vasculhasse os mares em busca de navios inimigos como um olho gigante que não pisca costuma vestir-se com ternos. Ela
da McKinney há quinze
anos e dirige
[…]. Ela
deixa a porta do escritório permanentemente aberta, 88
.
Metáforas marciais e a linguagem da vigilância subjazem à lógica do porão. A mulher e a escola-como-navio são descritas como santuários 89
vigilância.
e
locais de
A sala de aula de Dasani é repleta de “frases inspiradoras”, 90
como “Não há sucesso sem sacrifício”.
Que imaginação brutal descreve
um local de vigilância como um santuário? Para quem? Mas quem e o que deve ser sacrificado por tal “sucesso”, e em quais termos e segundo quem? Ao ler que a sra. Holmes suspendeu Dasani por uma semana devido a uma briga,
devemos
suspensa
é
entender
estar
que,
para
verdadeiramente
Dasani,
em
já
em
situação
de
situação 91
rua”.
de
São
rua,
“ser
metáforas
marítimas e marciais como navios, sucesso, luta, sacrifício e vigilância que ativam
essa
narrativa
sobre
Dasani
Coates,
criança
invisível.
(Escrevi
criança “inviável” em vez de “invisível”, um erro que não é um erro porque, sem dúvida, ser uma criança invisível é também ser uma criança inviável e, como frases, ambas aparecem ao lado do epíteto de “ex-mãe”, sobre o qual falei anteriormente, atribuído a Aereile Jackson.) Dasani é outra garotinha com a palavra
Navio
na testa.
96
A função do currículo é estruturar o que chamamos de ‘consciência’ e, portanto, determinados comportamentos e atitudes Como Sylvia Wynter nos disse: “
92
”.
E essas certas atitudes curriculares estruturam a nossa – toda
a nossa – consciência. Educação
no
ventre
do
navio.
A
narrativa
sobre
Dasani
é
parte
das
instruções que ela recebe a respeito de como viver em um mundo que exige sua morte, sendo usada como currículo. Ou seja, a série “Criança invisível” não só relata sobre a educação de Dasani mas também é, por si só, destaque na seção de Educação do jornal
The New York Times
, à medida que se torna
parte de um currículo maior como narrativa de resiliência individual e de superação – um “Teaching and Learning with
The New York Times
” que
consiste em atos que traumatizam e retraumatizam crianças Negras para educar outras pessoas. Crianças traumatizadas sendo forçadas a suportar 93
mais traumas; crianças com dor sendo submetidas a mais dor.
Tanto a
escola quanto a mulher em seu comando são descritas como navios, navios na tempestade. Mas nós, no vestígio, devemos reconhecer o navio
como
a
tempestade. Lembremo-nos da personagem Sethe, de Toni Morrison, e da
Navio Como o próprio sistema projetado para desfazê-la e inscrevê-la pode ser o mesmo que a salva? pelo para menina haitiana com a palavra
afixada na testa para que possamos
perguntar novamente:
Como a pessoa marcada
navio [fig. 2.5] pode ser salva sendo marcada
ele?
O artigo de Elliott deu início a uma nova onda de críticas a Michael Bloomberg, já que, durante seus três mandatos como prefeito, as taxas da cidade de Nova York referentes à falta de moradia, principalmente entre famílias e jovens, aumentaram e ultrapassaram números que há décadas não
eram
esses
ultrapassados.
problemas
fossem
O
extrovertido
sistêmicos.
prefeito
“Essa
Bloomberg
criança
[Dasani]
negou
tirou
que
cartas
Não sei bem por quê. É apenas o jeito como Deus trabalha. Às vezes, alguns de nós temos sorte, e outros, não The Guardian ruins [no jogo da vida]”, disse Bloomberg. “
94
.”
Em 1º de janeiro de 2014, o jornal
escrito
por
um
jovem
95
nome, William,
Negro
publicou um artigo
identificado
por
uma
foto
e
pelo
primeiro
na seção “Comment Is Free”. William, que tem dezessete
anos e está no ensino médio, identifica-se como uma das 22 mil crianças em situação de rua na cidade de Nova York e escreve sobre as enormes dificuldades
que
enfrentou
dentro
e
fora
da
escola
devido
aos
danos
materiais e psíquicos de se encontrar cronicamente em situação de rua. No texto, uma resposta direta ao perfil de Dasani escrito por Andrea Elliott no
New York Times
e aos comentários de Michael Bloomberg, William destaca
uma série de falhas: “Eu não acho que recebi cartas ruins na vida, acho que herdei
cartas
ruins
de
minha
mãe.
Mas
está
tudo
bem,
porque
ela
me
passou um ás por debaixo da minha manga e me disse para guardá-lo. Ela é
97
o ás. Enquanto ela estiver aqui, não importa quão horríveis sejam minhas cartas,
nós
96
sobreviveremos”.
William
é
um
jovem
sem
acesso
a
uma
crítica estrutural da pobreza. Apesar de fazer uso da linguagem sobre azar no jogo de Bloomberg, ele também insere outra coisa, outro conhecimento, naquele
espaço.
Ao
contrário
de
Bloomberg,
que
nega
a
existência
do
porão, William diz que essas cartas ruins não foram dadas diretamente a
ele
ele (ou, por extensão, a Dasani). Em outras palavras,
ele
não estava no jogo,
não fez essa escolha; as cartas foram passadas a ele por sua mãe, que
também lhe deu “um ás” (uma salvação, por meio de sua presença e apoio contínuos). Dito de outra forma, William relaciona diretamente sua mãe tanto com a
necessidade
de conhecimento de/para a sobrevivência
quanto
com a aquisição daquele conhecimento necessário para a sobrevivência. Sua educação está no porão e, por isso, ele alega estar preso ao mesmo
vida frágil e roída que vivemos, / eu
tempo pelo Estado e por sua mãe. Na “
sou presa, e estou presa
”.
Para retornar brevemente à Filadélfia e ao programa Cradle to Grave, do hospital da Universidade Temple: enquanto a turma de estudantes ouve sobre a morte horrível de Lamont Adams, o sr. Charles lhes diz que
as feridas que ele acha mais comoventes estavam nas mãos do menino. “Ele levanta as mãos e implora ao menino que pare de atirar […]. Ele [o menino] não tinha
se
história
preparado de
Lamont
para se
tamanha
atrocidade.”
desenrolavam,
uma
Conforme
garota
lutou
os
detalhes
para
da
manter
a
compostura. Outra escondeu o rosto no ombro de sua amiga. Lamont morreu cerca de quinze minutos após chegar ao hospital.
Seguindo esses detalhes visuais, a dra. Goldberg conclui a lição com uma
Quem você acha que tem a melhor chance de salvar sua vida? Você
pergunta: “ A
resposta
”.
dela?
97
“
.”
Nessa
questão,
que
chega
ao
final
de
uma
exibição visual do sofrimento Negro, leio uma condenação narrativa da “juventude urbana”; um abandono em grande escala da vida de crianças Negras à própria sorte; um fazer manifesto sob o pretexto de educação da vida das crianças Negras, que não são vistas como crianças e estão por conta
própria
enquanto
enfrentam
uma
série
de
tinham “se preparado para tamanha atrocidade”.
de (uma arma)
catástrofes,
pois
não
Vereda; a linha de recuo
.
Quando Coates
se
pudesse,
chegamos
imagina
“chamaria
ao
final
projetando o
jogo
de
o
de
“Invisible
próprio
‘Live
or
Child”,
videogame.
Die’,
e
a
lemos
que
Lemos
que,
protagonista
Dasani se
seria
ela
uma
98
menina de onze anos lutando pela própria salvação”.
Em meio aos contínuos desastres deliberados do vestígio, e como parte de sua resistência a eles, em 2013 o Black Youth Project e um grupo de
98
pessoas
ativistas
acadêmicas
Negras
redigiram
e
fizeram
circular
uma
petição a fim de que o presidente Obama fosse a Chicago para discutir a violência da cidade diante
da
100
natal.
e para falar com pessoas Negras Brown
99
e
devastação
em
curso
no
lugar
que
ele
adotou
e
apoiá-las
como
cidade
O grupo de intelectuais e ativistas que escreveu e fez circular a
petição
tinha
a
esperança
(equivocada)
de
que,
se
ele
respondesse
ao
chamado da comunidade Negra que dizia “Venha para casa, sr. Presidente, sua
cidade
precisa
do
senhor”,
ele
manifestaria
também
a
mesma
compaixão, o mesmo sentimento empático, que mostrara em Newtown, Connecticut. O grupo esperava que, ao “vir a Chicago, visitar o sul e o oeste da cidade, [ele] sinalizar[ia] ao país que a perda das famílias em Chicago é tão importante para nós como nação quanto a perda de jovens em áreas 101
nobres”.
Quero
manifesto/manifestar
manter aqui,
os
como
no
múltiplos “simples”
ou
significados “óbvio”
de
manifesto
e
como na lista de carga – chamada de manifesto de carga – de um navio. Com
meu
uso
manifesto/manifestar
de
aqui,
estou
especificamente
sintonizada com o ato de listar pessoas africanas escravizadas como carga, com a impessoalidade do espaço no porão, com o espaço da palavra tomando
o
lugar
dos
intitulada “Os”, em
nomes
Zong!
de
batismo,
com
a
forma
como,
na
idem
seção
, Philip insiste em sua própria versão, fornecendo,
na parte inferior das páginas, nomes para pessoas escravizadas, aquelas que foram lançadas e saltaram no mar. Imediatamente
após
o
assassinato
de
vinte
crianças
e
seis
pessoas
adultas na escola primária Sandy Hook em Newtown, Connecticut, e na vigília
no
local,
em
16
de
dezembro
de
2012,
um
presidente
Obama
visivelmente abalado se aproximou do microfone para proferir palavras de “conforto
e
amor
de
todos
os
Estados
Unidos”
e
a
mensagem
apenas em conjunto ‘nós’ podemos proteger as crianças
“
de
que
”. É com grande
dificuldade e com senso de responsabilidade que, no discurso, o presidente diz o nome de cada criança e de cada adulta assassinada naquela escola. “Esse trabalho”, diz ele,
de manter nossas crianças seguras e ensiná-las bem é algo que só podemos fazer
coletivamente.
[…]
Dessa
forma,
podemos
perceber
que
somos
Podemos dizer honestamente que estamos fazendo o suficiente para manter nossos filhos e filhas, todos eles, protegidos do perigo? responsáveis uns pelos outros. […]
Podemos reivindicar, como nação, que estamos todos juntos na tarefa
de deixá-los saber que são amados e na de ensiná-los a amar? Podemos dizer que estamos de fato fazendo
país
o suficiente para dar a todas as crianças deste
a chance que elas merecem para viver a vida com felicidade e propósito?
Refleti sobre isso nos últimos dias, e, se formos honestos conosco, a resposta é não. Não estamos fazendo o suficiente. E teremos de mudar. […]
menos um passo que possamos dar para salvar outra criança
Se houver pelo
, outra mãe, outro
99
pai ou outra cidade da dor que visitou Tucson, Aurora, Oak Creek, Newtown e comunidades de Columbine a Blacksburg antes disso, então certamente temos a obrigação de tentar. […] Nas próximas semanas, usarei todo o poder que este governo
detém
para
oferecer
aos
meus
concidadãos,
a
famílias
e
a
profissionais da educação, desde a aplicação da lei até o acesso a profissionais de saúde mental, em um esforço voltado à prevenção de mais tragédias como 102
essa, pois que escolha nós temos?
Em 29 de janeiro de 2013, Hadiya Pendleton, uma menina Negra de quinze anos, estudante do ensino médio, foi assassinada em Chicago uma semana após se apresentar na segunda posse de Obama. Em 12 de fevereiro de 2013, o presidente Obama fez seu quinto discurso sobre o Estado da União para 103
uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos. nome
de
contexto
Hadiya das
cometidos,
Pendleton
mortes
em
por
grande
nesse
armas
parte,
discurso
de
por
fogo
e
homens
e
coloca
dos
a
Obama diz o
morte
assassinatos
brancos
nos
dela
em
Estados
no
massa
Unidos,
assim como no da recente remoção de partes da Lei dos Direitos de Voto. Ele diz:
Nos dois meses desde Newtown, mais de mil festas de aniversário, formaturas e
demais
arma.
celebrações
Uma
Pendleton.
das Ela
foram
pessoas
tinha
roubadas
que
quinze
de
perdemos anos
e
Newtons e brilho labial. Ela era uma
nossa foi
vida
uma
adorava
majorette
por
jovem
uma
bala
de
chamada
uma
Hadiya
[o
doce
104
Ela era tão boa com suas
.
industrializado]
Fig
amizades que todo mundo achava que era melhor amigo ou amiga dela. Há apenas
três
semanas,
apresentando-se
por
ela
seu
estava
país
na
aqui, minha
em
Washington,
posse.
E,
uma
com
sua
semana
classe,
depois,
foi
baleada e morta em um parque de Chicago, depois da escola, a apenas um 105
quilômetro da minha casa.
Três dias depois, ele foi a Chicago para fazer outro discurso, dessa vez para estudantes da Hyde Park Academy High School. A “existência do discurso” é, para algumas pessoas, “uma vitória para a juventude e
uma
prova
de
que
Obama
responderá 106
marginalizadas dos Estados Unidos”.
às
of color
vozes
de Chicago
das
pessoas
Por um lado, o presidente Obama
foi à cidade por ter sido chamado lá, ainda que não especificamente para conversar com a comunidade Negra local sobre as preocupações acerca de sua vida e sobre a epidemia de violência que assola a cidade. Ele passou por lá no contexto de sua turnê do Estado da União e, quando chegou à Hyde Park Academy para discursar, não falou a respeito de amor, de lágrimas ou de como todo o país enviava mensagens de esperança e cura, como fizera em
Newtown.
Ele
não
centralizou
seu
discurso
no
horror
da
morte
de
pessoas Negras jovens; não falou do trauma e da resiliência delas. Em vez
100
disso, e sem surpresa, a parte do discurso que se concentrou em Chicago focou nos pais e nas famílias; no casamento, na moral e no trabalho duro; em
“integridade
e
responsabilidade,
na
disciplina
e
na
gratificação
107
adiada”.
Em outras palavras, quando Obama falou em Chicago na Hyde Park Academy, ele ativou a ortografia do vestígio. A escrita do seu tão anunciado discurso
pareceu
sofrer
de
disgrafia:
a
incapacidade
da
língua
de
ser
coerente em torno dos corpos e do sofrimento daquelas pessoas Negras que vivem e morrem no vestígio e cujos atos cotidianos insistem na vida Negra
no
vestígio.
Naquele
discurso
do
dia
15
de
fevereiro
de
2013,
a
linguagem do “nós” e de uma obrigação de empregar todos os esforços para tentar
salvar
toda/qualquer
criança
tornou-se
insustentável.
Enquanto
falava sobre seus anos trabalhando com comunidades no sul de Chicago, Obama disse:
E aqueles de vocês que trabalharam comigo, reverendo Love, você se lembra, não foi fácil. O progresso não veio rápido. Às vezes, eu ficava tão desanimado que pensava em desistir. O que me fazia seguir em frente era a crença de que, com
determinação,
esforço,
se
ajudarmos
possamos
algumas
salvar
todas
isso as
persistência
e
perseverança
talvez não possamos
mudança é sempre possível;
já
terá
crianças
impulsionado da
violência
suficientes,
a
ajudar todas as pessoas, mas o
Talvez não
progresso.
armada,
mas
se
salvarmos
algumas isso já terá começado a mudar a atmosfera em nossas comunidades. (Aplausos.)
Talvez não possamos
conseguir um emprego para todas as pessoas
imediatamente, mas se conseguirmos empregos para algumas a comunidade já terá
começado
encorajada.
a
se
sentir
(Aplausos.)
um
Bairro
pouco por
mais
bairro,
esperançosa quarteirão
e
por
pouco
mais
quarteirão,
um
uma
família de cada vez. […] Se reunirmos o que funciona, podemos estender mais escadas de oportunidade para que quem está trabalhando possa construir uma vida de classe média sólida para si. Porque, nos Estados Unidos, seu destino não deve ser determinado por onde você mora, onde você nasceu. Ele deve ser determinado por quão grande você se dispõe a sonhar, por quanto esforço, 108
suor e lágrimas você se dispõe a investir para realizar esse sonho.
Ele está preso a essa aritmética violenta em que a negridade destrói a figura da criança. Essa disgrafia está agindo aqui, e então todas as advertências de Obama em Chicago e em outros lugares são para nós, pessoas Negras, para nos tornarmos Humanas. O porão é o que é considerado um dado; é o lógico; é a caracterização da relação naquele momento. Obama sucumbiu à lógica do porão. Eu sou, nós estamos, presa e presas.
recuo de (uma arma)
Vereda; a linha de
.
A “agência moral” de Obama estava disposta a aceitar um cálculo que exigia a morte Negra – e, para citar Joy James, isso depende da “triagem das
101
109
demandas negras”.
Voltamos aqui para Hartman:
vidas Negras estão ainda sob perigo e ainda são desvalorizadas por um cálculo racial e uma aritmética política que foram entrincheirados séculos atrás. Esta é a vida após a morte da escravização: oportunidades de vida incertas, acesso 110
limitado à saúde e à educação, morte prematura, encarceramento e pobreza.
De
que
outra
forma
entender
a
ladainha
de
nomes
não
ditos
pelo
presidente, os rios de tristeza ignorados, os traumas deixados no vestígio das mortes Negras demasiado jovens: em Chicago, em Boston, na Filadélfia, em Sanford, na Flórida, em Atlanta, Los Angeles, Ferguson, no Missouri, em todas as cidades dos Estados Unidos? De que outra forma entender 8.063 assassinatos e mais de 36 mil pessoas atingidas por armas de fogo e mais milhares traumatizadas em apenas quinze anos, em uma pequena 111
área de Chicago, de apenas alguns quarteirões de comprimento e largura?
FIXAÇÃO DA RETINA Há um momento na entrevista de Arthur Jafa com Kara Walker no filme
Dreams Are Colder than Death
, dirigido por ele, em que ela diz que o lugar
mais
confortável
ela
localizado entre “descolamento
de
de
e
fazer
seu
sua pele
retina”.
trabalho
é
na
ocupação
de
um
espaço
e que o processo é como uma espécie de
Falando
de
seu
espaço
de
trabalho
mais
produtivo, ela diz:
Quando eu me encontro nessa fenda, nesse tipo de espaço mercurial que não é mediado por gênero nem por raça e que, constantemente, é meio que invadido […], minha pele continua tentando fixar-se novamente. […] Estou trabalhando e, de repente, tomo consciência da pele e de tudo que vem com ela e eu meio que
gosto
de
separar,
um
pouco,
não
totalmente,
isto
não
pertence
a
este
espaço. E recebo uma imagem de descolamento de retina ou algo assim. A pele é literalmente arrancada, e é meio sangrento e grotesco, e é aí onde me sinto em casa. Não é um espaço seguro para se estar, mas é onde você meio que pode 112
olhar um pouco para a face subcutânea da raça.
O
tipo
de
descolamento
de
que
Walker
fala
aqui
permite
que
forças
e
imagens poderosas emerjam e se movam através dela, mas eu penso que isso é possível apenas dentro de uma determinada área de alcance. Leio seu trabalho como produzido a partir de um tipo particular de experiência malligada-a-seu-corpo-Negro
e
às
formas
como
ele
é
aprisionado.
Obviamente, o descolamento de retina também impede a capacidade de
102
ver e, quando não tratado, pode levar à cegueira: os tipos de cegueira, por exemplo, em seu primeiro grande trabalho público encomendado para um
A Subtlety or The Marvelous Sugar Baby, an Homage to the Unpaid and Overworked Artisans Who Have Refined Our Sweet Tastes from the Cane Fields to the Kitchens of the New World on the Occasion of the Demolition of the Domino Sugar Refining Plant Complex local específico,
.
revista
Em
uma
entrevista
à
, citando Sidney Mintz, Walker fala sobre
subtleties
a fabricação medieval do açúcar, chamada de sutilezas [
]. Ele [Mintz]
fala das sutilezas como um prato medieval que aparecia na mesa de pessoas ricas. A sutileza é uma
escultura política de açúcar
. Eram cenas reproduzidas
em pasta de açúcar que a nobreza e os convidados do rei algo
que
tinha
importância
política
ou
religiosa.
Elas
reconheciam
eram
comidas
como como
113
sobremesa ou entre as refeições; havia esse belo gesto poético.
Sobre a questão da brutalidade, C. L. R. James é mais direto. Nas páginas iniciais
de
Os jacobinos negros
,
ele
detalha
algumas
das
brutalidades
cotidianas – o que significa que a qualquer momento você poderia ver esses horrores acontecendo – cometidas pela classe escravocrata. Ele escreve, sobre escravizados, que
seus
senhores
derramavam
cera
quente
em
seus
braços,
mãos
e
ombros;
despejavam o caldo fervente de cana nas suas cabeças; queimavam-nos vivos; assavam-nos em fogo brando; enchiam-nos de pólvora e os explodiam com uma mecha; enterravam-nos até o pescoço e lambuzavam as suas cabeças com 114
açúcar para que as moscas as devorassem.
Açúcar como castigo; açúcar em excesso; açúcar como dor; açúcar como prazer. Ao imaginar a
Subtlety
como um presente, Walker não convoca a
leitura de James aqui, no vestígio. Estamos, no entanto, vivendo a vida após a morte daquela brutalidade que não está no passado: Robert Shelton, um ex-funcionário da fábrica Domino e guia da exposição de Walker, relembra a dificuldade do trabalho, como era difícil para o corpo e para a alma. Ele lembra, também, de
um colega de trabalho que continuou trabalhando na refinaria, apesar de ter sido diagnosticado com câncer de fígado em estágio terminal, na esperança de conseguir que sua esposa recebesse os 20 mil dólares de benefício por morte disponível
para
as
famílias
se
os
trabalhadores
115
realizou seu desejo.
A escultura de Walker é uma “dádiva” e,
103
morressem
no
local.
Ele
ao contrário da venda de uma mercadoria, uma dádiva tende a estabelecer um relacionamento entre as partes envolvidas.* [Esse asterisco aparece no texto, 116
bem aqui.]
[…] Além disso, quando as dádivas circulam dentro de um grupo,
o
deixa
comércio
uma
série
de
relacionamentos
interconectados
em
seu
117
vestígio.
Quais tipos de relacionamentos são estabelecidos nesse ato de dar? E de receber? Depende do que está na retina. Brand também escreve sobre a retina e sua fixação em
Porta do Não Retorno a
centralidade
da
Um mapa para a
quando diz que a Porta do Não Retorno (e, portanto,
escravização)
está
em
sua
retina.
E,
outro lugar, eu leio essa história de Brand como escrita
como
em
escrevi
em
sua carne, como
uma lente que orienta sua maneira de ver, compreender e contabilizar seu lugar no mundo. Ela é, eu acho, para Brand, a moldura que produz corpos Negros como significantes da escravização e de seus excessos, assim como o fundamento que a/nos posiciona para carregar o fardo
dessa
significação,
118
que posiciona algumas de nós para conhecê-la.
Eu retorno à declaração de Brand sobre portais, cantos e encalço e às linhas que se seguem, mirar
(“ver
ou
eu sou presa, e estou presa
, e penso, também, sobre
observar
uma
coisa
ou
pessoa,
especialmente
algo
ou
alguém notável ou impressionante; segurar, manter, observar, considerar,
Oxford English Dictionary
olhar”,
).
aquela/aquele
porta/portal
(caminho)
Comecei
door(way)
[
]
este que
capítulo
está
na
com
retina
de
Brand. O que se contempla do portal? O que se contemplou para declarar portais? Albert Johnson… cai e contempla seu assassino. Oscar Grant, antes de morrer, contemplou o assassino que o alvejara, Johannes Mehserle. Há uma imagem que surgiu no vestígio do assassinato de Grant, no Réveillon de 2009:
uma
foto
recuperada
de
seu
telefone
celular
nos
dias
seguintes.
Trata-se de um registro de seu assassino [fig. 3.4]. A foto foi feita do ângulo do
porão
–
Grant
está
no
porão,
Mehserle
está
policiando-o.
Grant
o
capturou. A lógica do tumbeiro e do porão exemplificou a reiteração, por parte de Obama, daquele terrível cálculo da incapacidade de “salvar todas as vidas negras”:
uma
aritmética
horrível,
uma
violência
de
abstração.
Estamos
posicionadas na consciência de que vivemos (n)as vidas após a morte da escravização, sentadas no espaço com a história, em estado de emergência vivido e não declarado. A base do compromisso, o firmamento, o acesso à liberdade e à democracia, repletos de corpos Negros. Com a lente da Porta do
Não
Retorno
em
nossa
retina,
talvez
possamos
visualizar,
imaginar,
outra coisa – algo como o que Joy James chama de “zona liberada”, mesmo 119
que sitiada.
Através do tempo e do espaço, as linguagens e os aparatos do
104
porão
e
suas
violências
contemplação. entre
nós,
De
que
se
multiplicam;
maneiras
lateralmente?
assim
podemos
“Compromisso:
como
as
implementar
prender
por
o
linguagens
da
compromisso
algum
vínculo
de
Oxford
dever ou obrigação, reter como cliente ou pessoa com obrigação” (
English Dictionary
). Isso é o que Spillers chama de intramuros. Como nos
comprometemos, mudam
através
ou
do
nos
tempo
contemplamos, e
do
espaço
entre
e,
nós
ainda
de
assim,
maneiras
que
permanecem?
Comprometidas no vestígio, como – se tivermos sorte, ao menos – uma
oportunidade
(de volta à porta) em nossos corpos Negros para tentar olhar, 120
tentar ver como é.
[3.4] Foto do policial Johannes Mehserle, da Polícia Metroviária de São Francisco, tirada por Oscar Grant momentos antes de ser assassinado. 10 jan. 2009.
105
106
– a condição atmosférica (em um determinado lugar e período) no que diz respeito a calor ou frio, quantidade de luz solar, presença ou ausência de chuva, granizo, neve, trovão, nevoeiro etc., violência ou gentileza dos ventos. Além disso, a condição atmosférica considerada como sujeita às vicissitudes e em contexto figurativo ( ), aplicado a um clima intelectual, estado de espírito ou psicológico etc Fazer tempo bom, ruim etc. de um navio: comportar-se bem ou mal em uma tempestade. O tempo é descrito por condições variáveis, como temperatura, umidade, velocidade do vento, precipitação e pressão barométrica TEMPO
.
Fig.
; Espec.
lit.
. Náutico.
.
— Oxford English Dictionary
Em todos os tipos de tempo, os navios iam e vinham de Saint Louis, de Bristol,
de
Rhode
Island,
de
Nova
York,
da
Senegâmbia
e
da
costa
do
Atlântico, da África Centro-Ocidental e de Santa Helena, do Sudeste do continente africano e das ilhas do oceano Índico, do golfo do Benin, do golfo do Biafra, de Liverpool e de Lisboa, da Bahia, de Havana, de Marselha, de
Amsterdã,
de
Porto
Antônio,
de
Kingston,
do
Rio
de
Janeiro
e
de
Londres. Os navios partem um no vestígio do outro. Quinhentos anos de viagens apenas
de
roubo,
uma
pilhagem
viagem;
e
outros
escravização.
fizeram
várias,
Alguns com
o
dos
navios
mesmo
fizeram
nome
e
com
nomes diferentes, com os mesmos proprietários e proprietários diferentes, com
as
mesmas
bandeiras
e
bandeiras
diferentes,
com
as
mesmas
seguradoras e seguradoras diferentes. Os navios continuaram indo e vindo, mais de 35 mil viagens registradas. Encontro o nome deles no Banco de
Antelope Formiga The Good Jesus Diligente Black Joke Bonfim Mercúrio The Phillis Alligator Voador Tibério The Amistad Africa Africain Africaine African Gally Africano Constitucional Africano Oriental African Queen Legítimo Africano Vigilante Africano Agreeable Agreement Aleluia da Ressurreição Almas Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos: ,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
,
e
,
2
os nomes não têm fim.
Houve rebeliões a bordo de muitos desses tumbeiros. Outros navios foram interceptados ou reivindicados, em alto-mar ou no porto, por uma jurisdição
ou
outra.
Um
desses
navios
foi
o
Antelope
,
cujo
“objetivo
original”, como consta nos registros – entregar as 259 pessoas africanas sequestradas que sobreviveram a bordo, 64% delas crianças, ao porto onde 3
seriam vendidas –, foi “frustrado”; “razão agência humana”.
107
A partir de
Amada
, de Morrison, traço uma conexão entre a mãe de Sethe, assim como
as pessoas que fizeram aquela travessia da Passagem do Meio com ela, e esse navio, o
Amada
Antelope
. A figura do
Antelope
aparece pela primeira vez em
através da dança que, a distância, Sethe vê sua mãe e as pessoas
que a acompanharam na travessia dançando. Como a figura aparece aqui, eu a leio, uma vez que representa a Passagem do Meio e mais, como outras suspensões da existência Negra entre a vida e a morte e a resistência a essas
suspensões
violentas.
O
antílope
como
cosmologia
africana
e
tumbeiro assombra o romance e se repete na descrição do feto que Sethe está carregando quando ela parte pelo rio Ohio em busca de algo parecido com a liberdade, para longe da fazenda escravocrata chamada Doce Lar, no Kentucky.
Depois
que
o
professor
tenta
fazer
aquele
(lado
esquerdo
humano; lado direito animal) livro-razão de carne, Sethe foge para solo supostamente
livre,
carregando
consigo
memórias
de
outro
voo
pela
liberdade.
Ela esperou o pequeno antílope protestar, e por que pensara num antílope Sethe não sabia, uma vez que nunca tinha visto nenhum. Achava que devia ser uma invenção a que se apegara antes da Doce Lar, quando ainda era muito jovem. Daquele lugar onde nascera (Carolina talvez?, ou seria Louisiana?) ela 4
só lembrava de música e dança.
O texto continua:
Ah, mas quando cantavam. E ah, mas quando dançavam e às vezes dançavam o antílope. Os homens assim como as madames, um dos quais certamente era o dela. Eles mudavam de formas e se transformavam em outra coisa. Outra coisa sem correntes, que exigia outros pés que conhecessem a pulsação dela 5
melhor que ela mesma. Como aquele ali na barriga dela.
O
Antelope
, aqueles outros navios e o que ocorreu antes deles, neles e em
seus vestígios se repetem no texto de Morrison, e eles são o Tempo. Eles assombram enquanto Sethe dá à luz Denver em um barco “naufragado e 6
destruído”, Em 7
(ca)ir”,
no qual ela tem esperança de cruzar o rio Ohio.
Amada
,
ele
é
o
tempo
observado
e
vem,
fecha
esquecido;
e
muda
ele
é.
abruptamente;
No
meu
texto,
o
ele
“deixa
tempo
é
a
totalidade de nossos ambientes; o tempo é o clima total; e esse clima é antinegro. E, mesmo que o ar de liberdade paire ao redor do navio, ele não chega ao porão nem se volta aos corpos ali cativos. Lembremos de Margaret Garner, em quem a personagem Sethe, de Morrison, se baseia. Margaret Garner, que respira pela primeira vez o “ar de liberdade” de Ohio aos sete 8
anos
e que, doze anos depois, na noite de 27 de janeiro de 1856, foge do
108
Kentucky
e
volta
para
Ohio.
Ela
leva
consigo
suas
quatro
crianças,
seu
marido, Robert, e seus pais, Mary e Simon. Obviamente, seis anos após a aprovação da Fugitive Slave Act [Lei de escravos fugitivos], aquele “ar livre” de um “Estado livre” é negado àquelas pessoas no cativeiro que tomariam sua liberdade; a escravização é aplicada como a lei de todos os Estados Unidos.
Sua
densidade
atmosférica
aumentou;
inegavelmente,
a
escravatura tornou-se o ambiente total.
Pouco a pouco todo traço desaparece, e o que é esquecido não são apenas as pegadas, mas a água também e o que há lá embaixo. O resto é o tempo. […] Apenas o tempo 9
.
Lembremos
que
Margaret
Garner
é
recapturada
e,
em
sua
tentativa
de
negar o direito de posse daqueles que reivindicariam ela e suas crianças como
propriedade,
recapturada,
presa,
ela
mata
julgada
e
sua
filha
colocada
Mary.
a
bordo
Após
esse
episódio,
Henry Lewis
do
,
é
aquele
navio que a devolverá à escravização, dessa vez em Nova Orleans, um lugar de onde quase nenhuma pessoa escravizada conseguiu escapar. Margaret Garner marcada para aquele navio, alojada nele com seu marido e sua filha bebê, Cilla.
Henry Lewis
Em sua partida para Gaines’ Landing, Arkansas, o com o barco
Edward Howard
colide
. Margaret Garner, junto com Cilla, é lançada
ou se atira ao mar. Vinte e cinco pessoas morreram naquele acidente, entre elas a bebê Cilla. Cilla era a filha de colo que Garner tentara sem sucesso matar,
no
intuito
escravização.
Commercial
de
Quando cobriram
evitar os o
seu
segundo
The Liberator
jornais
caso,
sequestro
não
falaram
sobre
e e
o
sua
subsequente
Cincinnati Daily
tempo
ou
sobre
a
velocidade dos barcos, tampouco sobre o tráfego no rio, às vezes lotado. Os jornais
relataram
que
uma
colisão
causara
a
morte
de
Cilla
e
contaram
sobre “a expressão de alegria de Margaret Garner” ao saber que a viagem de navio conseguira matar Cilla, algo que ela fracassara em fazer. Mais uma de suas
crianças
seria
poupada
do
inferno
da
10
escravização.
Os
jornais
relataram que
um homem negro, o cozinheiro do
Lewis
, pulou no rio e salvou Margaret, a
qual, disseram, demonstrou uma alegria frenética quando soube que a filha se afogara. Relatou-se também que Garner dissera que ela própria nunca chegaria viva a Gaines’ Landing, Arkansas, o ponto para o qual fora enviada – indicando assim
sua
intenção
de
se
afogar.
[…]
Outro
relato
diz
que,
assim
que
teve
oportunidade, ela jogou a filha no rio e pulou atrás dela. […] É certo que ela 11
estava no rio com sua filha e que a bebê se afogou.
109
As únicas certezas são o rio, aquele tempo (antinegridade como clima total) e
que
Cilla,
“isso”
it
[“
”],
como
os
jornais
a
(i)nominam,
se
afogou.
(A
anulação de gênero oceânica se repete.) No
vestígio,
o
rio,
o
tempo
e
o
afogamento
são
morte,
desastre
e
possibilidade. São algumas das possibilidades impossíveis enfrentadas por aquelas
pessoas
Negras
que
aparecem
na
porta
e
habitam
no
vestígio.
Edwidge Danticat comenta sobre isso: “O passado está cheio de exemplos de quando nossa ancestralidade demonstrou uma confiança tão profunda no mar a ponto de pular dos tumbeiros e deixar-se abraçar pelas ondas. Elas e eles também acreditavam que o mar era o começo e o fim de todas as 12
coisas, o caminho para a liberdade e para a entrada em Guinin”.
São algumas dessas possibilidades impossíveis que Sethe, em
Amada
,
quer manter longe de sua filha Denver. Ela quer manter Denver longe do lugar onde estava, está e estará; quer evitar que Denver seja dominada pelo passado que não é passado. Sethe quer proteger Denver da memória e, mais do que isso, da experiência, materializada, de pessoas e lugares que agora circulam, como o clima. O que Sethe descreve é a vida após a morte da escravização,
e
essa 13
“esperando você”.
é
uma
“imagem
de
pensamento”
que
está
por
aí,
Como Sethe diz a Denver, as memórias reanimam os
lugares e espaços da escravização pós-emancipação nominal. Rememória
re-memory
[
] é a palavra de Sethe para isso, e está por aí, esperando você: “O 14
que eu lembro”, diz ela, “é um quadro flutuando fora da minha cabeça”.
O
que Sethe lembra, rememora e encontra no agora é o clima de estar no vestígio. Esse é o clima, e mesmo que o país, cada país, qualquer país, tente esquecer, e mesmo que “cada árvore, cada haste de grama dela [da fazenda] 15
morra”,
essa
linchamento,
é
a
atmosfera:
transformada
lei
em
de
escravos,
Jim
e
Jane
transformada Crow
e
em
outras
lei
do
lógicas
administrativas que relembram as condições brutais de escravização após o evento da escravização ter supostamente chegado ao fim. Nos
Estados
Unidos,
a
escravatura
é
imaginada
como
um
evento
singular, mesmo que tenha mudado ao longo do tempo, mesmo que sua duração tenha se expandido numa suposta emancipação e mais além. Mas a
escravização
evento
ou
não
era
fenômeno
singular;
climático
ela
que
era,
sim,
uma
provavelmente
singularidade ocorrerá
–
um
próximo
a
determinada hora, data ou conjunto de circunstâncias. A emancipação não tornou a vida Negra livre; ela continua a nos manter naquela singularidade. E a brutalidade não era singular; era a singularidade da antinegridade.
Singularidade: um ponto ou região de densidade de massa infinita em que espaço e tempo são infinitamente distorcidos por forças gravitacionais e que é considerado o estado final da matéria caída em um buraco negro 16
.
110
No que estou chamando de tempo, a antinegridade é tão alastrada
quanto
clima.
condição
O
tempo
exige
mutabilidade
e
improvisação;
ele
é
a
o
atmosférica de tempo e lugar; ele produz novas ecologias. Ecologia: o ramo da
biologia
que
trata
das
relações
dos
organismos
entre
si
e
com
o
ambiente físico; o movimento político que visa proteger o meio ambiente, em especial da poluição. Lemos em
Amada
uma
ecologia
do
navio
que
persiste até o presente: “no começo as mulheres estão sempre longe dos homens e os homens longe das mulheres tempestades sacodem a gente e 17
misturam os homens nas mulheres e as mulheres nos homens”. trans*forma aquelas
no
a
existência
vestígio
Negra.
também
Mas
as
produzem,
que
foram
enviadas,
independentemente
O tempo
detidas
do
e
tempo,
suas próprias ecologias. Quando a única certeza é o tempo que produz um clima alastrado de antinegridade, o que devemos saber para nos movermos por esses ambientes nos quais o impulso é sempre em direção à morte Negra? Um exemplo de conhecimento para sobreviver a tais ecologias vividas e produzidas chega até nós por meio do poema “Portulano para pessoas à
ruttier
deriva na Diáspora”, de Dionne Brand. “O portulano [
] oral”, escreve
ela, “é um longo poema com instruções de navegação que os marinheiros decoravam e recitavam de memória.” O “portulano” (histórico e presente) “continha as rotas e as marés, as estrelas e talvez o gosto e o sabor das 18
águas, a friúra, a salinidade; tudo para se encontrar o caminho no mar”. Aparecendo
no
final
de
Um mapa para a Porta do Não Retorno
,
o
“Portulano” de Brand tomou nota do tempo, e esse poema aparece como uma ferramenta de abertura de caminhos, um presente de conhecimento que indica que – e como – a vida Negra é vivida no vestígio. As pessoas que habitam a Diáspora estão
À deriva, despossuídas, desertificadas. Náufragas em desolação, abandonadas no
mundo.
Elas
foi,
são
vagadas,
vagueiam
como
espíritos
que
mortos
cortaram, baniram, isolaram, recusaram, fecharam a porta, negligenciaram, renunciaram, separaram. Ela deixou mais palavras para elas. Deixadas para trás. […] Todas indisponíveis para si mesmas, abertas ao mundo, cortadas no ar.
[…]
E
não
importa
onde
no
mundo,
esse
espírito
não
é
cidadão,
não
é
nacional, não é batizado, não tem sexo, esse espírito é despido de toda a sua carga, bolsa e bagagem, saco, sacola, mala, mochila e bornal, e só sustenta o seu próprio peso que não é nada, que não tem memória e tem dificuldade de 19
lembrar, pesado de tanta leveza, dolorido de tanto sorriso.
Longo
poema
para
nós
que
estamos
no
vestígio
daqueles
navios,
o
“Portulano” de Brand não contém instruções de navegação convencionais sobre país nem sobre pouso seguro (e poderia ter? nós que estamos no vestígio
não
podemos
usar
tais
meios
111
convencionais);
contém
o
que
migrantes presentes/futuros podem encontrar, recusar e refazer em suas viagens. O “Portulano” toma como terreno aquele primeiro mergulho no despertencimento,
retrata
como
dádiva
essa
ausência
de
país.
Leio
o
“Portulano”, então, como uma ferramenta de abertura de caminhos e uma recusa a nações, países, cidadanias; é um barômetro, uma leitura dessas pressões atmosféricas e uma resposta a elas e às mudanças previsivelmente imprevisíveis nos climas que, não obstante, permanecem antinegros. Os barcos partem de todos os tipos de tempo, de Zlitene e Trípoli e de outros
pontos
ao
longo
da
costa
da
Líbia.
embora possam vir a ser chamados de
Esses
barcos
Left-to-Die
não
[barcos
têm
dos
nome,
deixados
para morrer]. Aquelas pessoas africanas de outros países que viveram e trabalharam
na
Líbia
partem,
agora,
devido
à
guerra
e
à
destruição
contínua da Líbia e a tudo o que ocorreu desde então. A atmosfera mudou radicalmente, em especial em relação a pessoas “africanas Negras”, então elas sobem a bordo daqueles barcos “naufragados e destruídos”.
“Os líbios que me levaram à Itália não são humanos”, disse ele. “Eles falam com a arma, não com palavras […]. Empurraram oito pessoas da Nigéria ao 20
mar.” […] “E eles jogaram meu amigo no mar. Todos se afogaram.”
Adolescentes equipes
da
que
ong
chegaram
Save
the
ao
porto
Children
italiano
sobre
como
de
Lampedusa
pessoas
que
contaram
migravam
às
dos
países da África subsaariana costumavam ser mantidas sob o convés, privadas de água e luz solar. […] O clima era muito ruim. Algumas pessoas tinham medo. 21
Elas não queriam ir, mas não havia caminho de volta.
Os barcos partem um após o outro. E, quando os migrantes chegam à costa, muitas vezes são devolvidos ao porão na forma do campo, do diante.
Também
podem
ser
Lager
, do centro de detenção e assim por
devolvidos
ao
navio.
Deixados
para
trás,
colocados à deriva, mais uma vez.
ASPIRAÇÃO éramos rebentos de amantes condenamos os pobres e tínhamos sido trazidos a esta floresta pelo Comitê de Fábrica onde nascemos ou. em alguns casos. desde a infância. Muitos de nós éramos loucos alguns eram idiotas e alguns poucos sofriam de estaminas histerias, deficiências de vitaminas & alergias que se comportam como mentirosas tubérculos e pressão
112
arterial/doenças sanguíneas. resultam da viciosa reprodução interna de nossos ancestrais impenitentes “The Black Angel”
—
KAMAU BRATHWAITE,
Não foi por ter descoberto uma cultura própria que o indochinês se revoltou. Foi “simplesmente” porque, sob vários aspectos, respirar se havia tornado impossível para ele Pele negra, máscaras brancas .
—
FRANTZ FANON,
Novamente,
Zong!
,
quando
“Qual
‘sepultura
é
a
NourbeSe
palavra
líquida’?”,
a
para
Philip trazer
palavra
que
indaga, corpos
Philip
na
de
seção
volta
encontra
é
“Notanda”,
d’água?
exaqua
De 22
.
de
uma
Então,
perguntamos novamente: O que significaria ficar a salvo e defender quem morreu – nossos e nossas “ancestrais impenitentes”; aquelas pessoas que estão realmente mortas e aquelas a quem o Estado se recusa a conceder a vida; aquelas que o Estado persiste em sufocar até o último suspiro? Tenho pensado
muito
sobre
aspiração.
Não
no
sentido
convencional.
Ou
pelo
menos não no sentido que talvez venha mais facilmente à mente, aquele em que aspiração está ligada a Não
Retorno,
vinculada Unidos,
ao
a
com
o
navio
movimento
articulações
oportunidade
e
de
com
o
classe.
transporte Também
oclusão
daquela
– essa conexão com a Porta do nunca
está
amarrada,
mortal
que
é
longe
nos
–
e
Estados
continuamente
reanimada e chamada de Sonho Americano. (Esse Sonho Americano é um contraponto ao sonho de Brathwaite em suas
Dream Stories
e no “Dream
Haiti”. Sonhar o Haiti é um empreendimento absolutamente diferente. É entrar e habitar o sonho e a realidade da revolução.) Venho pensando no que é necessário, em meio à singularidade, à antinegridade virulenta em todos os lugares, sempre remotivada, para manter o fôlego no corpo Negro. Qual portulano, internalizado, é agora necessário para fazer o que estou chamando de trabalho de vigília como aspiração, para manter a respiração no
corpo
Negro?
Tenho
pensado
em
aspiração
nos
complementares da palavra: a retirada de fluidos do corpo matéria
estranha
respiratória da
fala.
e
(geralmente
como a
Aspiração,
fluido)
respiração audível
aqui,
duplica,
nos
pulmões
e
sentidos
a absorção de
com
a
corrente
que acompanha ou compõe o som
triplica,
da
mesma
forma
que,
com
a
adição de um ponto de exclamação, Philip transforma e quebra o nome próprio
Zong song
canção [
em
Zong!
. Esse ponto de exclamação transforma a palavra em
]/gemido/canto/grito/respiração.
É para a respiração que quero me voltar agora. Para a necessidade de respirar,
para
espaços
onde
respirar
e
para
os
espaços
que
tiram
nosso
fôlego no vestígio em que vivemos; e para as formas como respondemos, “com
maravilhamento
e
admiração,
113
vocês
ainda
estão
vivas,
como
hidrogênio,
23
como
oxigênio”.
Philip
diz
que
a
pausa
no
poema,
a
respiração,
é totalmente subversiva em face do tipo de brutalização generalizada, quando as pessoas são reduzidas a homem
negro
negro
, mulher
e idem, idem, idem.
Você presta atenção a uma pessoa, e é um ato tão incrível – e que transborda para
todos
os
outros
idens
–,
prestar
atenção
apenas
a
essa
uma
e
cuidar
somente dela. Porque tudo o que podemos fazer é cuidar de uma por uma. E é por isso que foi tão importante para mim nomear essas almas perdidas nas 24
notas de rodapé desde os primeiros poemas.
A
falta
de
ar
e
o
arquivo:
os
Zong!
acumulam em
arquivos
da
falta
de
ar.
Os
detalhes
se
, e, para nós, o que pode significar prestar atenção
nesses arquivos? O que podemos descobrir neles? Em
1982,
protestos negros
de
Daryl
organizações
poderiam
porque
as
‘pessoas
Gates,
estar
artérias
normais’”.
em
mais
deles 26
chefe
prol
polícia
dos
abrem
anos
de
Los
direitos
suscetíveis
não
Nove
da
à
tão
depois,
civis
morte rápido
mas
Angeles,
por
quando
disse
que 25
estrangulamento
quanto
apenas
“provocou
as
sete
artérias
meses
de
após
o
espancamento que quase levou Rodney King à morte em 3 de março de 1991,
quando
ficamos
maravilhadas
por
hidrogênio, como oxigênio
ele
ainda
estar
vivo
como
(“
”), “alguns especialistas táticos do Departamento
de Polícia agora veem o vídeo de policiais golpeando o sr. King 56 vezes como uma oportunidade de convencer o público de que o estrangulamento é,
na
verdade, 27
suspeitos”. polícia
Na
tivessem
Revisão
de
últimos
cinco
mais
seguro
cidade sido
Queixas anos
de
uma
Nova
banidos
Civis e
e
York,
há
mais
recebeu
meio,
e
forma
mais
embora de
1.128
os
duas
casos
reclamações
humana
restringir
estrangulamentos
décadas,
de
sobre
de
“o
Comitê
estrangulamento a
prática
da de
nos
‘persistem
e
28
parecem estar aumentando’”.
“Eu não consigo respirar.” Em 17 de julho de 2014, Eric Garner estava na rua em Staten Island quando foi abordado por um policial do NYPD “sob suspeita de venda de cigarros avulsos e não tributados”. O sr. Garner é (e estou lendo/ouvindo ecos de Margaret Garner em tudo isso) abordado pelo NYPD
e responde ao enquadro dizendo:
Por quê? Toda vez que você me vê, você quer mexer comigo. Estou cansado disso. Isso acaba hoje. Por que você está me incomodando? […] Eu não fiz nada. […] Estou apenas parado aqui. Não vendi nada. Porque toda vez que você me vê, você quer me parar, você me atormenta. […] Estou cuidando da minha vida, policial. Estou cuidando da minha vida; por favor, me deixe em paz. Eu te disse 29
da última vez, por favor, me deixe em paz.
114
Então dois outros policiais abordam o sr. Garner, e ele repete seus apelos para não ser tocado: “Não me toquem. Por favor, não me toquem”. E então o primeiro policial, Pantaleo, aplica uma chave de braço no sr. Garner e o leva para o chão. Onze vezes, durante esse ataque, o sr. Garner diz: “Não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não
consigo
respirar,
não
consigo
respirar,
não
consigo
respirar,
não
consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar”, até que ele para de respirar. Embora uma equipe de socorristas tenha
chegado
aspiração.
O
ao
local,
legista
não
da
lhe
cidade
presta
nenhuma
considerou
a
assistência.
morte
do
sr.
Nenhuma
Garner
um
homicídio, e o NYPD, apesar das evidências visuais e sonoras, manteve sua alegação de que a causa desse assassinato (para o qual eles não encontrarão nenhum responsável, com exceção do sr. Garner)
não
foi estrangulamento,
e, como de praxe, o assassino do sr. Garner não foi indiciado. A lista de não acusações no vestígio dos assassinatos de pessoas Negras cometidos pelo Estado continua a crescer: Michael Brown, John Crawford, Aiyana StanleyJones,
Sandra
Bland,
Jonathan
Ferrell,
Miriam
Carey,
Tamir
Rice,
Rekia
Boyd, *. Mais uma vez, a existência Negra aparece no espaço do humano asteriscado
como
garantia
para
a
circulação
branca,
que
se
coloca
na
condição do humano, e como aquilo que subjaz a ela. Sempre, a existência
Vereda; a linha de recuo de (uma arma). Vestígio: o rastro deixado na superfície da água por um navio. Vigília; velar; velório: uma vigília ou velório realizado ao lado do corpo de alguém que faleceu Negra parece alojada entre a carga e o ser.
.
Foi logo após o assassinato de Eric Garner, em 17 de julho de 2014, que o júri do julgamento de Ted Wafer anunciou o veredicto de culpado pelo assassinato
de
Renisha
McBride,
de
dezenove
30
anos.
Em
julho
do
ano
anterior, havíamos visto um júri inteiramente formado por mulheres (não Negras)
anunciar
assassino
de
um
veredicto
Trayvon
Martin,
de
inocente
de
dezessete
a
George 31
anos.
Zimmerman, O
veredicto
o
no
julgamento de Wafer criou, talvez, um pouco de espaço para respirar antes do
próximo
ataque,
da
próxima
puxada
de
ar,
da
respiração
presa.
No
tempo do vestígio, não se pode confiar, apoiar nem tolerar a aplicação, pelo Estado,
de
algo
que
ele
chama
de
justiça,
mas
só
podemos
prender
a
Não foi por ter descoberto uma cultura própria que o indochinês se revoltou. Foi simplesmente porque, sob vários aspectos, respirar se havia tornado impossível para ele respiração por um certo tempo. “
‘
’
32
.”
Dia
após
dia
as 33
porão de um navio;
histórias
chegam.
Cinquenta
pessoas
sufocadas
no
três pessoas sufocadas na prisão ao longo de um fim
de semana nos Estados Unidos. O que explica Fanon não é a especificidade de
um
evento
único
ou
conjunto
de
eventos
infinitamente
repetíveis
e
repetidos, mas a totalidade dos ambientes em que lutamos; as máquinas em que vivemos; o que estou chamando de o tempo.
115
Atlantic
Em uma entrevista na seu
livro
sobre
ciência
racial
e
sobre
sobre
Breathing Race into the Machine
,
a
invenção
e
uso
do
espirômetro,
instrumento que mede a capacidade pulmonar, Lundy Braun diz:
Em
1864,
um
ano
antes
do
fim
da
Guerra
Civil,
foi
lançado
um
estudo
de
grandes proporções para quantificar os corpos dos soldados da União. Uma descoberta importante, no que viria a ser um relatório de 613 páginas, foi que os soldados classificados como “brancos” tinham uma capacidade pulmonar
Full Blacks
maior do que aqueles rotulados “pretos” [ O
estudo
se
baseou
no
espirômetro
Mulattoes
] ou “mulatos” [
–
instrumento
médico
].
que
mede
a
capacidade pulmonar. Esse dispositivo fora usado anteriormente por médicos
plantations
de do
que
para mostrar que escravos negros tinham pulmões mais fracos
cidadãos
brancos.
O
estudo
da
Guerra
Thomas
Jefferson,
pulmonar”
dos
no
qual
negros,
ele
foram
parecia
validar
essa , de
comentou
pulmões
Civil
Notes on the State of Virginia
perspectiva. Já na época do lançamento de
sobre
a
usados
disfunção como
do
um
“aparelho
marcador
de
diferença, um sinal de que corpos negros eram aptos para o campo e nada além
disso.
(O
trabalho
forçado
era
visto
como
uma
forma
de
“vitalizar
o
sangue” da fisiologia negra imperfeita. Dentro dessa lógica, a escravização é o 34
que teria mantido os corpos negros vivos.)
Daryl Gates e as práticas de policiamento contemporâneas são os herdeiros da história do espirômetro, que produziu corpos Negros como defeituosos e monstruosos. Há
também
uma
conexão
entre
os
pulmões
e
o
clima
weather
[
]:
as
propriedades supostamente transformadoras de respirar ar livre – aquilo que retira o manto da escravização – e as propriedades transformadoras de ser
“livre”
para
percorrem
respirar
narrativas
de
ar
puro.
liberdade.
Esses Mas
discursos,
quem
tem
com
acesso
frequência, à
liberdade?
Quem pode respirar livremente? Tais narrativas não amenizam essa falta; essa falta é a atmosfera de antinegridade. Lembremo-nos, também, de que pessoas
africanas
[
] permitisse, para que algum ar fresco entrasse em seus pulmões e
weather
cativas
eram
levadas
para
fora
do
porão,
se
o
clima
para que se exercitassem. (Obviamente, isso se devia ao seu valor como carga e não visava à saúde dessas pessoas. Isso é ser, propriedade, para o outro.) O monitoramento do tempo foi uma parte importante da gestão das
plantations
. A consciência dos sistemas ecológicos era necessária para o
crescimento e cultivo de certas safras (estações de cultivo, colheita etc.) e para a expectativa de vida (ou ausência dela) da população encarregada do trabalho
forçado.
consistente
em
Lemos:
seus
“Fazendeiros
registros
técnicas de contabilidade nas locais
de
trabalho
de
de
anotavam
trabalho
plantations
pessoas
como
35
”.
escravizadas,
116
o
tempo
parte
da
de
maneira
revolução
das
O clima determinava práticas e
essas
práticas
diferiam
de
plantation
para
plantation
pessoas
escravizadas
debaixo
de
nessas
chuva,
plantation
acreditavam
enquanto
condições.
pouquíssimo
e de região para região. Alguns proprietários de
No
outros
geral,
descanso
do
acreditavam
que
lhes
porém,
trabalho,
que
elas
trabalhavam
atribuíam pessoas
mesmo
trabalhar
tarefas
pesado
“mais
escravizadas
quando
debaixo
mais
de
os
leves”
tinham
gestores
chuva
produzia
da um
miasma ou “ar ruim”. Um fazendeiro da Jamaica relata: “nem um único dia de
trabalho
perdido
para
o
tempo
ao
longo
de
dois
36
anos”.
Independentemente das práticas específicas, o trabalho duro e implacável debaixo do sol e da chuva, na umidade e na aridez, o corte da cana, a adubação com esterco, a capinagem e aração do solo, todos tiveram efeitos deletérios e, muitas vezes, mortais para os pulmões e corpos de pessoas escravizadas. A
escravização,
corpos
de
portanto,
pessoas
operacionalizada
exauriu
escravizadas,
como
aquilo
que
simultaneamente ao
passo
mantinha
a
que
os
pulmões
era
respiração
e
os
imaginada
e
e
vitalizava
o
corpo Negro. Nós, agora, estamos vivendo no vestígio de tal pseudociência, vivendo
um
tempo
em
que
nosso
trabalho
não
é
mais
necessário,
mas
nossa carne, nosso corpo, ainda é a matéria com a qual a “democracia” é produzida.
Voltamos
a
Fanon,
que
escreveu:
“Não
há
ocupação
de
território, por um lado, e independência das pessoas, por outro. É o país como
um
todo,
desfigurados
sua
[…].
história,
Sob
essas
sua
pulsação
condições,
a
diária,
respiração
que do
são
contestados,
indivíduo
é
uma
37
respiração observada […]. É uma respiração de combate”.
Qual é a palavra para manter e devolver o fôlego ao corpo? Qual é a palavra para o modo como devemos abordar os arquivos da escravização (para
“contar
a
história
que
não
atualidades da extração violenta calamidades ocupação,
e
catástrofes
colonialismo,
que
pode
na
às
ser
contada”)
escravização vezes
imperialismo,
e
e
respondem
turismo,
as
histórias
e
as
no encarceramento; as pelos
militarismo
nomes ou
de
ajuda
e
intervenção humanitárias? Quais são as palavras e as formas pelas quais devemos continuar a pensar e imaginar lateralmente, através de uma série de
relações
palavra
à
no
qual
porão, cheguei
em
múltiplos
para
tal
cotidianos
imaginação
fôlego no corpo Negro em clima hostil é
e
Negros
para
aspiração
do
manter
e
vestígio? devolver
A o
(e a aspiração é violenta
e salva vidas). Duas formas adicionais de trabalho de vigília como práxis para imaginar chegam aos registros de anotação Negra e revisão Negra.
ANOTAÇÃO NEGRA, REVISÃO NEGRA 117
– adicionar notas a (uma obra literária ou de autoria). Uma anotação é um metadado (por exemplo, comentário, explicação, marcação de apresentação) anexado a texto, imagem ou outros dados. Frequentemente, anotações referem-se a uma parte específica dos dados originais — Oxford English Dictionary ANOTAR
.
– a) a ação de adequar ou colocar em uma forma definida; (agora) trabalhar ou esboçar o material de origem em uma forma distinta, especialmente na forma escrita. b) a ação ou o processo de revisão ou edição textual, principalmente em preparação para publicação; (também) um ato de revisão editorial. Obs. A ação de recuar; resistência, reação — Oxford English Dictionary REVISAR
espec.
.
Aponto para as práticas de anotação Negra e revisão Negra como outros exemplos do trabalho de vigília. As ortografias do vestígio exigem novos modos de escrita, novos modos de tornar sensível. A revisão chega até nós de
maneira
mais
familiar
por
meio
daquelas
“informações
sensíveis”
cobertas de preto em determinados documentos do governo que contêm o que não temos permissão para ler. O filme
End Credits
, de Steve McQueen,
consiste em seis horas de imagens e narração de arquivos revisados do FBI sobre
Paul
Robeson.
Enquanto
eu
assistia
e
escutava,
ficou
novamente
muito óbvio para mim que muito da vida Negra intramuros e do trabalho social
e
político
é
revisado,
subtendido por lógicas da
invisibilizado
plantation
,
por
para lentes
o
presente
isoladas
e
e
o
futuro,
arquiteturas
brutais. Existe, na Diáspora Negra (e eu incluo aqui o Continente, devido às histórias e aos presentes coloniais e da trans*migração), uma longa história da vida Negra, das vidas Negras anotadas e revisadas. Há, também, uma contínua resistência a essas anotações e revisões violentas, bem como uma ruptura delas. Uma conferência de 2015 sobre retratos Negros teve como subtítulo
Imaging the Black Body and Re-staging Histories imagear imaginar
. Toda vez que
leio esta palavra,
imagear
, eu a leio duplamente. Ou seja, como
“representar a forma externa de”, e também como
,
, “formar uma
imagem mental ou conceito de; supor ou presumir; a capacidade de formar imagens mentais de coisas que não estão fisicamente presentes ou nunca 38
foram concebidas ou criadas por outrem”. a
“arte
de
criar
retratos”
(imagem
e
Se entendemos o retrato como
texto)
e
como
“descrição
gráfica
e
detalhada”, de que maneira poderíamos entender uma variedade de formas de criação de imagens Negras públicas contemporâneas em/como recusas de
acesso
às
lentes,
às
disciplinas
e
às
demandas
mortais
dos
mundos
antinegros em que vivemos, trabalhamos e lutamos para tornar visíveis (para
nós
mesmas,
se
não
para
outrem)
118
todos
os
tipos
de
passados,
presentes
e
futuros
Negros
possíveis?
Muito
do
trabalho
da
imageação
Negra e do trabalho que essas imagens fazem no mundo tem sido sobre tais
Cutting a Figure: Fashioning
imaginações da plenitude da vida Negra. Em
Black Portraiture
, Richard Powell escreve que
[4.1] Steve McQueen, End Credits, 2012. Sequência de arquivos digitalizados, som, projeção contínua. Instalação no Art Institute of Chicago, 2013. Cortesia do artista; Marian Goodman Gallery e Thomas Dane Gallery, Londres. uma parcela significativa de retratos de pessoas negras se destaca do resto do gênero, e não apenas por causa das realidades históricas e sociais de racismo. Em vez disso, a diferença muitas vezes está no contrato artístico entre quem faz o retrato e a pessoa retratada; negociações conscientes ou inconscientes 39
que investem sujeitos negros de capital social.
Enquanto Powell fala de imaginações negociadas e recíprocas de artistas Negres e demais pessoas Negras, eu quero pensar nesses retratos fora de nossas
próprias
imageação
e
imaginação,
nas 40
Copeland, parecemos “forçadas a aparecer”.
quais,
como
diria
Huey
Há uma longa história e um
presente de resistência à ruptura e remoldagem de imagens de negridade e de pessoas Negras. Há uma longa história e um presente de imageação e imaginação
da
negridade
e
de
pessoas
Negras
outramente,
além
da
contenção da longa e brutal história das violentas anotações da existência Negra: o que Spillers, por exemplo, chamou de hieróglifos da carne; uma
119
história que é “a crise da referencialidade, as ficções da pessoalidade e a lacuna
ou
incomensurabilidade
entre 41
existência à qual ele dá significado”.
o
nome
próprio
e
a
forma
de
Estou pensando aqui, introduzindo
aqui, na lacuna, a anotação Negra e a revisão Negra não como opostas, mas como modos trans*versais
e
coextensivos de imaginar outramente.
Dito de outra maneira, quero pensar a anotação em relação à disgrafia e à ortografia do vestígio; em relação às fotos de pessoas Negras em risco que aparecem
tão
regularmente
em
nossa
vida,
tenham
elas
origem
no
cotidiano ou em desastres extraordinários; tais imagens de pessoas Negras sofrendo costumam ser esquecidas. Isso acontece mesmo, ou até mesmo de modo
especial,
pretendem presente.
o
pretendem
manifesta
tornar
42
resgatar
quando
a
“humanizar”
“humanidade”
pessoas
Negras,
que
sabemos
já
isto
é,
estar
Para não deixar dúvidas, assim como não estou interessada em
menina
termo
interessada
em
“Humano”,
entendida
linguagens
de
(ver
resgatar
o
a(s)
capítulo
“O
existência(s)
erroneamente
desenvolvimento.
As
navio”),
também
Negra(s)
como
relações
para
“Homem”, entre
esses
não
a
estou
categoria
ou
para
as
significados
e
termos e as condições materiais que (re)produzem continuam a produzir nossas mortes rápidas e lentas. Estou interessada em maneiras de ver e imaginar respostas ao terror vivido pela vida Negra e pelas formas como a habitamos, modos
somos
como
habitadas
vivemos
esse
por
ela
terror
–
e
a
e
como
recusamos.
Interessam-me
vivemos
apesar
dele.
os Ao
considerar essa relação entre imagear e imaginar nos registros de anotação Negra e revisão Negra, quero pensar sobre o que essas imagens suscitam e sobre
o
que
elas
nos
incitam
a
fazer,
pensar
e
sentir
no
vestígio
da
escravização – ou seja, em um presente contínuo de sujeição e resistência. A
anotação
aparece
como
aquele
asterisco,
em
si
uma
marca
de
anotação, que marca a trans*formação para a negridade ontológica. Fotos de pessoas Negras que circulam como retratos em locais públicos diversos são geralmente acompanhadas por algum tipo de nota ou outro metadado. Essa anotação pode estar na própria fotografia ou ser uma resposta a uma fotografia
desumanizadora,
complementares
que
para
marquem
a
que
a
imagem
ferida
e,
então,
viaje
com
mais
do
informações que
a
ferida.
Sabemos que, quando se trata de imagens de pessoas Negras em circulação, elas
muitas
vezes
não
fazem,
de
fato,
o
trabalho
de
imageação
que
esperamos. Existem muitos exemplos disso: o vídeo do espancamento de Rodney
King
pela
polícia
em
1991,
o
assassinato
de
Oscar
Grant,
os
assassinatos brutais de 21 mulheres trans nos Estados Unidos a partir de novembro
de
2015,
todas
as
imagens
em
circulação
do/após
o
furacão
Katrina e o terremoto de 2010 no Haiti, as mortes em curso nas travessias transatlânticas, transmediterrâneas e transcontinentais que se estendem por toda a Diáspora Negra global. Esse é o caso, mesmo que encontremos imagens de pessoas Negras sofrendo em locais públicos diversos sendo
120
apresentadas como convites para a ação ou para a empatia. Na maioria das vezes,
essas
imagens
funcionam
como
interpelação,
no
sentido
althusseriano, para a pessoa não Negra. Ou seja, essas imagens servem para confirmar o
status
, a localização e as opiniões já consolidadas na ideologia
dominante sobre aquelas exibições de corpos Negros espetaculares cujos significados permanecem inalterados. Fomos lembradas por Hartman e por muitas outras pessoas de que a repetição das violências visuais, discursivas e estatais, assim como das violências cotidianas e extraordinárias cruéis e incomuns
implementadas
contra
pessoas
Negras,
não
leva
a
um
cessar
dessas violências nem causa compaixão ou algo parecido com empatia, seja fora ou dentro das comunidades. Essas repetições geralmente funcionam para solidificar e tornar contínuo o projeto colonial de violência. Com esse conhecimento
em
devemos empregar
mente,
agora
que
tipos
de
práticas
éticas
de
olhar
e
de
ler
, em face de tais ataques? O que as práticas de
anotação Negra e de revisão Negra podem oferecer? O que se segue são três exemplos do que estou chamando de anotação e revisão textual/visual Negras. Revisões e anotações que aspiram ver e ler outramente; ler e ver além do que está enquadrado; ver algo além de uma visualidade lógica
é,
como
plantation
da
escreve
que
que
tentou,
Nicholas
Mirzoeff 43
administrada. de
modo
Em
argumenta,
“Home”
consistente,
subtendida
[Lar],
“esculpir
Toni
os
pela
Morrison
acréscimos
de
engano, cegueira, ignorância, paralisia e pura malignidade embutidos na linguagem
usada
tornem-se
não
para
falar
apenas
de
raça
disponíveis
para mas
que
outros
também
tipos
de
percepção 44
inevitáveis”.
Estou
imaginando que o trabalho de anotação e de revisão Negras seja encenar o movimento inevitável para esses outros tipos de percepção – um contraataque ao abandono, outro esforço para tentar olhar, para tentar ver, de 45
verdade.
Retorno palavra
então,
Navio
mais
uma
vez,
para
a
fotografia
da
garotinha
com
a
colada em sua testa [fig. 2.5]. Essa garotinha apareceu no
início deste trabalho e ocupa seu centro. Pouco depois de aquele terremoto catastrófico ter atingido o Haiti em 12 de janeiro de 2010, entrei no arquivo de
fotos
que
emergiu
dele.
Não
era
a
primeira
vez
que
eu
entrava
cautelosamente nesse arquivo, mas nessa ocasião fui parada por aquela fotografia de uma jovem menina Negra, de dez anos no máximo. Um terço da imagem está embaçado. Mas, do lado direito, ainda se pode ver a grama e a lama, algo preto em que ela está deitada e, ao fundo, outras coisas (uma figura? um maço de roupas? um cigarro? algo mais?). O rosto da garotinha se vê com nitidez; é o que está em foco. Ela está viva. Seus olhos estão abertos. Ela está deitada no que parece ser uma maca preta; sua cabeça está sobre uma bolsa de gelo, e é possível decifrar o que está escrito nessa bolsa de gelo e algumas das palavras, como
É
121
instruções de
uso e descarte marca registrada .
É
possível
ler
também
as
enrolar descartar
palavras
,
e
. Há alguns escombros na maca. Há duas feridas à mostra
acima do olho direito da menina e outra menor abaixo dele. Um pedaço de papel está preso em seu lábio inferior. Ela está vestindo o que parece ser uma bata hospitalar, estampada e de algodão. Ela está olhando diretamente para a frente, ou diretamente para a câmera de quem a fotografa, ou além da câmera. Ela parece estar em choque. Seus olhos pretos e grandes, com seus
cílios
exuberantes,
parecem
vidrados.
O
olhar
dela
me
alcança.
Afixado em sua testa está aquele pedaço de fita transparente com a palavra
Navio A
escrita. Que expressão é essa nos olhos dela? O que eu faço com isso?
primeira
anotação
foi
aquela
palavra
Navio
.
O
que
se
pode
ver
além
daquela palavra que ameaça bloquear todo o restante? Quando me deparei com a imagem dessa garotinha com a palavra
Navio
colada na testa, foi o seu olhar que me parou. Então, como se ocupando o foco, a palavra
Navio
ameaçou obliterar tudo e qualquer outra coisa que eu
pudesse ver. O que essa palavra estava fazendo lá, me perguntei? Mas voltei várias vezes àquela foto e àquele rosto para me perguntar sobre a expressão em seus olhos. Ao que eu estava sendo convocada pelo/com o olhar dela em minha direção e com o meu em sua direção? Ao longo dos anos, desde que me deparei pela primeira vez com aquela imagem dessa menina, voltei a ela várias vezes para tentar explicar o que eu estava vendo ou pensava que
poderia
ver.
Para
onde
ela
está
olhando?
Quem
e
o
que
ela
está
olhando ou procurando? Quem pode olhar para trás? Ela sabe que tem um pedaço de fita na testa? Ela sabe o que esse pedaço de fita diz? Ela deve estar com medo. Ela sabe que já está ligada a um navio e que está destinada a mais um? Seus olhos olham para mim, como os olhos de Delia, como os 46
de Drana. Em
um
movimento
contrário
à
forma
como
a
revisão
fotográfica
geralmente funciona – quando os olhos são cobertos com uma tarja e o resto do rosto permanece visível –, aqui incluo apenas os olhos de Delia e de Drana. Eu executei minha própria revisão das/nas imagens etnográficas de Agassiz, a fim de me concentrar nos olhos delas. Eu reviso as imagens para focar em seus olhares individuais e coletivos, fora e além dos brancos que reivindicaram poder sobre elas e também fora e além do instrumento pelo
qual
estão
sendo
sujeitadas
de
maneiras
que
imaginado ou antecipado. Eu quero ver os olhares
nunca
delas
poderiam
ter
fora, além e através
do tempo. Delia e Drana. Em meu olhar para elas, percebo em seus olhos um “eu” e um “nós” que está e estamos segurando algo, está e estamos 47
aguentando, está e estamos presas, ainda, imóveis, silenciosas. Drana
sentadas
silenciosas; protegidas
(ainda;
ainda), apenas
imóveis;
vestidas
por
cílios
e
silenciosas)
despidas
(ainda;
aqui da vida anagramatical da palavra
122
então
(ainda;
imóveis;
still
e
de
pé
imóveis; 48
silenciosos).
Delia e
(imóveis;
silenciosas), Lembro-me
(ainda; imóveis; silenciosas) para
as
pessoas
escravizadas
e
para
todas
as
pessoas
escravatura. Ao longo de um parágrafo, em
still
dois
Amada
Negras
no
vestígio
da
, Morrison elabora o que
significa para Sethe, que, àquela altura de sua gravidez, “andava sobre pés
que
serviam
para
ficar
parada
still
[
].
[…]
Parada,
junto
a
um
caldeirão; parada, junto a um batedor de manteiga; parada na banheira e na 49
tábua de passar”.
Isso me faz lembrar de
ainda still [
], como se repete no
“Verso 55” de Dionne Brand, marcado como está lá, com maravilhamento pela nossa sobrevivência e tempo de residência do vestígio:
sentimos
pena
deles,
carinho
e
amor;
eles
ficaram
felizes
por
nós,
ainda
estávamos vivas. Sim, ainda estamos vivas, dissemos. E retornamos para lhes agradecer. Vocês ainda estão vivas, disseram. Sim, ainda estamos vivas. Eles nos olharam como violetas; como chás de violeta, nos beberam. Dissemos aqui estamos. Disseram, vocês ainda estão vivas. Dissemos, sim, sim, ainda estamos vivas.
Delia e Drana, marcadas, paradas, devido ao longo tempo de exposição do daguerreótipo, que exigia que alguém ficasse imóvel por longos períodos, e porque ainda eram do navio, mas não sairiam imediatamente do navio, assim como seus pais, identificados como Renty (Congo) e Jack (Guiné). A garotinha
que
sobreviveu
ao
terremoto
de
2010
no
Haiti
também
é
descendente do navio e está marcada, ainda, e mais uma vez, para seu porão. Eu olhei de novo para aquela foto e marquei sua juventude, a cicatriz diagonal que corta a ponte de seu nariz em direção à sobrancelha, aqueles cílios exuberantes que se enrolam na pálpebra, as feridas à mostra, aquele
imóvel a vida frágil e roída que vivemos, / eu sou presa, e
pedaço de papel em seu lábio e uma folha em sua bata e no cabelo. “
aqui em cílios, em estou presa
[…]
”.
Eu marquei a violência do terremoto que depositou aquela garotinha lá, ferida, naquele arquivo, e a violência, em nome do cuidado, da colocação daquela palavra escrita na fita e colada em sua testa e continuei olhando,
Eu tive de
porque isso não poderia ser tudo o que havia para ver ou dizer.
tomar cuidado
. (Um tipo diferente de cuidado e uma lente diferente das
que
foram
empregadas
no
vestígio
do
Zorgue
,
aquele
navio
chamado
Cuidado.) Eu estava procurando por mais do que a violência do tumbeiro, do navio de migrantes e de pessoas refugiadas, do navio porta-contêineres e do navio médico. Eu vi aquela folha em seu cabelo e, a partir dela, fiz minha
própria
anotação
que
pode
revelar
embora precária, que sempre esteve lá.
tranças ainda perfeitas o terremoto acontecer
. E eu penso:
essa
imagem
em
uma
vida,
Aquela folha está presa em suas Alguém trançou o cabelo dela antes de 50
.
123
[4.2] Joseph T. Zealy, Delia, nascida no país, de pais africanos, filha de Renty, Congo. Os olhos de Delia. Detalhe. Cortesia do Museu de Arqueologia e Etnologia Peabody, Universidade Harvard, PM # 35–51/053040 (arquivo digital # 60742034)
[4.3] Joseph T. Zealy, Drana, nascida no país, filha de Jack, Guiné, plantation de B. F. Taylor Esq. Os olhos de Drana. Detalhe. Cortesia do Museu de Arqueologia e Etnologia Peabody, Universidade Harvard, PM # 35–5-1/053041 (arquivo digital # 60742035)
A MENININHA QUE ESCREVEU “OI” Ela chegou a nós nas primeiras páginas do
New York Times
do dia 10 de
dezembro de 2014, em um artigo intitulado “Schools’ Discipline for Girls Differs by Race and Hue”, seguido da legenda “Mikia Hutchings, doze anos, cujos escritos na parede da escola levaram a um processo criminal juvenil, e seu advogado, Michael J. Tafelski, à espera de uma reunião realizada no mês passado por um comitê estadual da Geórgia que pesquisa disciplina 51
escolar”.
A escrita é descoberta na parede de um banheiro da escola. Duas
estudantes
do
ensino
fundamental
são
acusadas
de
vandalismo:
Mikia
Hutchings, que é Negra, e sua amiga branca (cujo nome não consta no artigo). difícil
Quando
acreditar
a
família
que
ela
de
Mikia
estava
é
alertada
envolvida
na
sobre
as
degradação
acusações, da
escola
acha e
de
propriedade pessoal. Em seguida, a família relata às autoridades que não pode pagar a multa de “indenização” de cem dólares à escola e à aluna cujos tênis foram danificados.
Apesar de ambas as estudantes terem sido suspensas por alguns dias, Mikia teve
de
enfrentar
uma
audiência
disciplinar
na
escola
e,
algumas
semanas
depois, a visita de um policial uniformizado da delegacia local, que entregou à sua avó papéis que acusavam Mikia de contravenção e, potencialmente, de um 52
crime.
124
Já que sua família não pôde pagar o dinheiro, Mikia teve de pagar um preço muito maior.
Como parte de um acordo com o Estado para que as acusações sejam retiradas no
tribunal
de
menores,
Mikia
admitiu
as
alegações
de
invasão
criminosa.
Mikia, que é negra e estadunidense, passou o verão em liberdade condicional, sob toque de recolher a partir das sete horas da noite, e teve de completar dezesseis
horas
de
serviço
comunitário,
além
de
escrever
uma
carta
de
A amiga dela, que é branca, foi liberada depois que os pais pagaram a restituição desculpas a uma aluna cujos tênis foram danificados no incidente.
53
.
O artigo se solidariza com Mikia e tenta trazê-la para o foco, no entanto ela desaparece na descrição. Lemos no parágrafo introdutório:
É
preciso
inclinar-se
para
ouvir
Mikia
Hutchings
falar,
pois
sua
voz
mais
parece um sussurro. Em boletins escolares, ela é descrita como uma aluna “muito focada”, alguém que segue as regras e cumpre todas as tarefas. Então, foi
uma
surpresa
encrencaram
para
após
sua
terem
avó
quando
escrito
nas
Mikia,
paredes
doze
de
um
anos,
e
uma
banheiro
na
amiga
se
escola
de
54
ensino fundamental Dutchtown, no condado de Henry, no ano passado.
Veja e ouça Mikia Hutchings. Ela é uma criança, uma jovem garota Negra, pequena e de apenas doze anos. Na fotografia ela aparece, capturada, a parte inferior das costas encostada em uma parede e o tronco inclinado para a frente, ao lado da porta de uma sala de aula. Ela está vestindo uma blusa
com
listras
horizontais
cinza
e
pretas,
calças
de
elastano
pretas,
botas pretas com a parte superior dos canos de cor branca, dobrada para fora,
e
uma
jaqueta
leve
azul-clara
isotérmica
com
capuz
e
colarinho
branco, com caimento e punhos brancos que combinam com o cano branco de suas botas. Ela olha para baixo e para o lado, e os dedos de sua mão esquerda seguram um dedo de sua mão direita. (Ela segura a si mesma, se segura em si mesma.) Que olhar é aquele em seu rosto? Como a vemos na foto, ela está fisicamente oprimida por seu representante legal, um homem branco, pelas acusações contra ela e por todas as autoridades convocadas e que
estão
determinadas
a
discipliná-la.
Essas
autoridades,
a
polícia,
os
tribunais, a escola e assim por diante, colocam algemas nela; elas foram convocadas
para
transformar
essa
menina
em
uma
criminosa.
Como
engloba o modificador Negra, “menina”, aqui, novamente, aparece como anagramatical.
“‘Quando
uma
pessoa
do
sexo/gênero
feminino,
estadunidense e Negra de pele escura age, há uma certa preocupação em relação à sua agressividade meio masculina’, disse o dr. Hannon, ‘a elas não conhecerem
seu
lugar
de
sexo/gênero
125
feminino,
de
55
mulher’.”
Mikia
Hutchings está presa, e, nessa detenção, mais uma vez, “menina” está em questão.
[4.4] Mikia Hutchings, de doze anos, e seu advogado, Michael Tafelski, esperam por uma audiência disciplinar no edifício do Conselho de Educação do condado de Henry, em McDonough, Geórgia, em 18 nov. 2014. Hutchings e uma amiga branca enfrentaram ações disciplinares muito diferentes para o mesmo pequeno incidente de vandalismo, parte do que algumas pessoas enxergam como preconceito em um estado onde meninas negras são cinco vezes mais propensas a ser suspensas da escola do que meninas brancas. © Kevin Liles/The New York Times/Redux
Se anotarmos e revisarmos o primeiro parágrafo do artigo do
Times
New York
, podemos talvez encontrar o ponto de vista de Mikia. Por meio da
revisão, podemos ouvir o que ela tem a dizer em sua própria defesa em meio
a
forma,
como com
localizar
um
a
fazem
nossas
aparecer
próprias
contraponto
à
apenas
para
anotações
força
do
e
desaparecer. revisões
Estado
Dito
Negras,
(cuidado
como
de
outra
podemos força;
“o
fornecimento do que é necessário para a saúde, o bem-estar, a manutenção e
a
proteção
jornal
de
alguém
ou
algo”)
The New York Times
.
A
que
partir
a
colocou
desse
na
modo
primeira analítico,
página
do
podemos
começar a ver e ouvir Mikia, cuja única ofensa foi escrever a palavra “Oi” na parede sendo uma garota Negra sem recursos financeiros.
126
O fato de eu estar argumentando no sentido de que Mikia seja vista não deve ser entendido erroneamente como um argumento pró-representação ou política representacional. Em vez disso, a anotação e a revisão Negras são maneiras de tornar visível a vida Negra, mesmo que momentaneamente, através da lente da porta. A anotação e a revisão Negras encontram o anagramatical Negro e o fracasso de palavras e conceitos para se manterem na/sobre a carne Negra. Pensemos,
agora,
solicitadas
pelas
nas
anotações
famílias
de
e
revisões
pessoas
de
segundas
assassinadas,
em
meio
autópsias a
tantos
assassinatos. A segunda autópsia realizada em Michael Brown foi solicitada por sua família e equipe jurídica para comprovar lesão. Em outras palavras, aquela segunda autópsia foi exigida para mostrar o dano causado a Michael Brown, alvejado por pelo menos seis tiros, incluindo dois na cabeça. Tal como no caso de Lamont Adams, as feridas de bala nas mãos de Michel Brown sugerem que ele estava em uma postura de rendição. Ao garantir a segunda autópsia, sua família tentou interromper a disgrafia que escrevera uma versão dos eventos dilacerada pela antinegridade. Não foi o suficiente ver o corpo de Michael Brown à mostra na rua por horas a fio em um dia quente de agosto, fora do alcance de sua mãe e seu padrasto. Não foi o suficiente ver o sofrimento de sua mãe, vê-la e ouvi-la gritar e cair nos braços de sua família. Não foi o suficiente ver seu padrasto perturbado no acostamento da pista com uma placa improvisada com a frase: “A polícia acabou de assassinar meu filho”. Não foi o suficiente. E então sua família acrescentou suas próprias anotações; a família tentou apresentar os danos no
corpo
de
Brown,
corpo
desenhado
assim,
não
recuperar
o
foi
o
vistos
pela
suficiente.
corpo
dele.
por
seus
olhos,
antinegridade
A
Não
[fig.
pode
constante
ser
de
modo
4.5]. o
E,
a
suficiente.
produção
de
contestar
obviamente, Eles
morte
não
Negra
aquele mesmo podem
como
é/
necessária para nos levar de volta à singularidade. Mas, assim como o clima
127
está sempre propício para a morte Negra, a singularidade também produz resistências e recusas Negras.
[4.5] Relatório de autópsia preliminar delineando lesões no corpo de Michael Brown. Cortesia do dr. Michael M. Baden. Revisão
e
anotação
Evoco aqui o filme
Negras
Filhas do pó
são
maneiras
de
imaginar
outramente.
, de Julie Dash. O filme foi produzido ao
longo de dez anos e emanou da política e da estética que tiveram início
128
com
o
trabalho
de
Dash
como
parte
da
la
Rebellion,
juntamente
com
cineastas como Charles Burnett e Haile Gerima. Quando foi lançado em
Filhas do pó
1992,
se
tornou
o
primeiro
filme
dirigido
por
uma
mulher
Negra estadunidense a ser distribuído nos cinemas dos Estados Unidos. O filme
atingiu
imediatamente
uma
audiência
de
mulheres
Negras
e,
ao
mesmo tempo, passou a ser visto por muitos outros públicos como filme estrangeiro, porque não tratava do que lhes era familiar. O objetivo de Dash e do diretor de fotografia Arthur Jafa era desfazer imagens e visões coloniais que ocupam e reproduzem o descolamento de retina que, então, reproduz o porão como posição e destino. Esse objetivo é perceptível desde a primeira cena do filme, que se passa em um barco. Naquela Snead,
cena
de
fotógrafo
abertura, que
ela
somos
apresentadas
contratou
para
a
Viola
documentar
a
Peazant;
migração
ao de
sr. sua
família; à sua prima distante Yellow Mary; e a Trula, amante de Yellow Mary. O sr. Snead mostra a Yellow Mary e Trula o caleidoscópio que trouxe
Kalos
consigo. Ele explica a etimologia das palavras: “
Skopein
56
… [ver]”.
… Bela.
Eidos
… Forma.
Enquanto ele fala, Yellow Mary olha para Trula através
do caleidoscópio, e Viola explica ao sr. Snead que o comércio de pessoas para a escravização, a importação de “pessoas africanas frescas”, continuou 57
“dessas ilhas” por muitos anos após ter sido banido. para
o
público
interroga acabou,
a
entrada
conhecimentos
o
tempo
que
em
uma
cena
estabelecidos:
os
arquivos
não
visual
o
Essa cena estabelece
complexa
tempo
em
registram.
que
O
à
medida
a
que
escravização
fotógrafo
com
seu
equipamento óptico, as conversas que acontecem no barco e a maneira deliberada
como
as
personagens
se
olham
e
desviam
o
olhar
umas
das
outras preparam o público para algo formalmente bonito e que desafia seus hábitos de visualização presumidos. A desaceleração de algumas das cenas de
24
para
formas
de
adicional
16
quadros
ver,
é
e
por
nesses
criado
para
segundo
casos,
o
é
também
quando
público
o
entrar
uma
filme
na
fica
cena.
reconfiguração lento,
Dash
um
conta
das
espaço que
lhe
disseram
repetidamente
que
não
havia
mercado
para
o
filme.
As
distribuidoras
ressaltavam o visual espetacular do filme, assim como as imagens e a história, por
serem
tão
diferentes
e
instigantes,
mas
mesmo
assim
a
resposta
58
consistente era que não havia “mercado” para esse tipo de filme.
Com
esses
espaços
adicionais
e
com
suas
escolhas
visuais
e
estéticas
marcando o longo tempo da escravização, Dash envereda em suas próprias revisões Negras. Ou seja, sua revisão é sua decisão de mostrar os traços da escravização
como
o
azul
índigo
que
permanece
nas
mãos
das
pessoas
anteriormente escravizadas que trabalharam na extração e morreram por
129
causa do veneno dos poços de índigo nas Sea Islands, na costa da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. Embora Dash tivesse pleno conhecimento de que as manchas índigo não seriam mais visíveis quarenta anos após o fim jurídico da escravização de pessoas como bens móveis, ela escolheu essa imagem como traço de escravização, em vez de imagens de costas com cicatrizes de chicoteamento ou de ferro na pele, assim como outras marcas mais
familiares,
que
escravidão
são
muito
visíveis
em,
por
12 anos de
exemplo,
, filme de Steve McQueen (2013). Para Dash, o índigo é o que
permanece como traço, e esse traço posiciona o público espectador de um modo
diferente
em
relação
ao
fato
de
que
as
vidas
após
a
morte
da
escravização são longas e a expectativa de vida das pessoas escravizadas que trabalharam nos poços, ao contrário, era muito baixa.
Cerca de cinquenta a sessenta mãos trabalham na fábrica de índigo; e o efeito do índigo nos pulmões das pessoas que trabalham nessas fábricas é tamanho que elas nunca vivem mais de sete anos. Toda pessoa que foge e é capturada vai parar nos campos de índigo, campos cercados por toda parte, para que elas 59
não possam escapar novamente.
Segundo McQueen, trabalho
nele
“é
12 anos de escravidão
manter
a
tensão”.
Ele
é um filme “sobre amor”, e seu
continua:
“Eu
adoro
a
ideia
de
apenas estar em tempo real, estar presente, estar lá. Eu sou cineasta, então sempre penso: ‘Quando é que o limite é alcançado? Quando chegamos à 60
duração certa?’”.
Se pensarmos no filme
anos
Filhas do pó
em conjunto com
12
, podemos nos perguntar onde e quando está o limite no último filme,
ou
melhor,
na
maioria
dos
filmes
ocidentais
contemporâneos,
em
suas
representações do sofrimento Negro (do vestígio, do porão, do clima, do navio). Onde está o limite, a respiração, a pausa, onde se consideram a circulação, a produção e a recepção de imagens do sofrimento Negro e, mais importante, o prazer nas vidas Negras? O longo tempo/a longa cena, o tempo de residência da vida Negra sempre na morte, ou em seu limiar, continua.
Como
em
12 anos de escravidão
(seja
no
espancamento
viciosamente prolongado de Patsey ou na tomada de quatro minutos de enforcamento forma
de
contínua
Northrup), e
gratuita.
o
sofrimento
Não
é
assim
Negro em
entra
no
cotidiano
Filhas do pó
e
em
de sua
visualização da vida Negra nas décadas após o fim da escravatura, quando uma família está prestes a migrar do Sul ao Norte dos Estados Unidos. Não é assim no belíssimo Abderrahmane
Sissako,
Timbuktu
que
conta
(2014), filme do cineasta mauritano
uma
história
de
vida
vivida
na
imanência e iminência da morte e no meio de mudanças muito violentas.
Timbuktu
torna tangíveis as maneiras como a vida é vivida no vestígio e
sob a pressão de mudanças tremendas. No filme de Sissako, o ano é 2012, e
130
a pressão é a tomada de poder da cidade de Tombuctu, no Mali, pelo grupo Ansar Dine. O grupo baniu a música; obrigou as mulheres a cobrirem o rosto, a cabeça e as mãos; proibiu jogos; e introduziu a lei islâmica rigorosa. Sissako
visualiza
a
vida
em
meio
a
essas
imposições
que
mudam
drasticamente a forma como as pessoas em Tombuctu vivem. Há um grupo de meninos que – quando não estão sendo vigiados por homens e meninos armados, alguns dos quais não são muito mais velhos do que eles – jogam uma partida completa de futebol lindamente imaginada e executada sem futebol,
porque
o
futebol
foi
proibido.
Há
uma
jovem
capturada
e
considerada culpada do crime de fazer música em conjunto em um cômodo com uma amiga e dois amigos. Ela é sentenciada a quarenta chicotadas. Em meio a esse espancamento público cruel, seu choro se torna uma canção. (Do
Zong
song
[que também significa “canção” (
)] para o
Zong!
61
de Philip.)
Esse é, novamente, o tempo do portulano oral, e as canções nos ajudam a encontrar nosso caminho; elas são nossos mapas internalizados no longo
“Cantamos para a morte, cantamos para o nascimento. Isso é o que fazemos. Nós cantamos.” Timbuktu tempo de nosso deslocamento.
Há outra mulher que aparece várias vezes em
vezes
ela
está
incomodada. coloridas
de
Ela
se
movendo
usa
tecido
um
que
pela
vestido
formam
cidade
fantástico uma
longa
, e todas as
sem
ser
feito
de
cauda
perseguida tiras
nem
brilhantes
índigo.
Essa
e
mulher
recusa-se a cobrir a cabeça, as mãos ou o rosto; ela para o trânsito, ela passa por homens e meninos armados, ela se recusa a se acovardar diante deles; ela ri de seus comandos, esses homens que chegaram e tomaram Tombuctu,
os
aplicadores
da
lei
islâmica
que
fumam
escondido
e
têm
longas conversas entre si sobre música e futebol profissional. Dentre as mulheres da cidade, ela não está só em sua recusa; todas as mulheres em
Timbuktu Há
resistem, mas apenas essa não enfrenta represálias.
um
momento
impressionante
no
filme,
quando
essa
mulher
fantasticamente vestida aparece na tela e fala. Tomamos conhecimento de que seu nome é Zabou, e, quando ela fala, o Haiti irrompe no
Timbuktu
de
Sissako. Zabou fala, e as palavras dela nos levam de volta ao “Dream Haiti”, 62
de Brathwaite, e a seu colapso de tempo e espaço. levam
de
volta
ao
sonho,
à
promessa
e
à
As palavras dela nos
centralidade
do
Haiti
nas
imaginações da Diáspora. Zabou diz o seguinte: “Foi no 12º dia de janeiro de 2010, exatamente às 4h53 da tarde, na mesma hora de Miami. Às 4h53 da tarde, hora de Porto Príncipe, a terra tremeu e eu me vi aqui, exatamente às 9h53 da noite”. Zabou pede a um dos homens que foram convocados a Tombuctu, de todas as partes do continente, que confirme o ocorrido. Mas o homem responde que ela estava em Tombuctu muito antes de o terremoto acontecer. Ao que Zabou retruca: “O que é o tempo?”. Ela continua: “O tempo não importa. O
131
terremoto é meu corpo, as rachaduras, sou eu! Rachadura aberta da cabeça aos pés e vice-versa, meus braços, minhas costas e meu rosto, partidos. O que é o tempo? Eu estou partida. Docinho, você e eu somos iguais. Nós dois estamos partidos. Rachados em todos os lugares” [figs. 4.6-4.8]. Tempo. pensava”.
Amada Amada
Em
Em
,
,
o
tempo
Sethe
tem
“nunca
funcionava
dificuldade
em
do
jeito
acreditar
que
nisso 63
“algumas coisas vão embora. Passam. Algumas coisas ficam”.
Seiso
porque
O tempo
aparece aqui rachado. O tempo está rachado como o corpo de Zabou, como a vida de Zabou, e não apenas a vida dela. Ela diz ao jovem armado (que parece
ter
sido
dançarino
em
sua
vida
anterior)
que
ele
também
está
rachado. Zabou não acredita no tempo, pelo menos não no tempo linear. Ela vive no tempo trans*Atlântico, em um tempo oceânico que não passa, um tempo em que o passado e o presente se roçam. “O tempo não importa”, Zabou diz novamente, e eu a ouço falando da longa duração, do tempo de residência, do vestígio. Zabou se move pelo filme de Sissako, arrastando aquela longa cauda índigo, azul como o mar, um v como uma onda; como um vestígio; é uma rachadura que a acompanha, uma rachadura que a precede. Sissako abriu uma fenda em Tombuctu e inseriu o Haiti; Sissako abriu uma fenda em Tombuctu e dela emergiu o Haiti. A cauda azul de Zabou, como o índigo nas mãos das pessoas anteriormente escravizadas em
Filhas do pó
, como os
chás de violeta e a química violeta do “Verso 55” de Brand, como água, como as rupturas do comércio transatlântico e transárabe de pessoas para a escravatura,
surge
e
abre
o
filme
para
dentro
e
para
fora
de
todas
as
violências, e muito mais que isso, como tantos tremores secundários, como tantos vestígios. O trabalho que os filmes
Filhas do pó Timbuktu e
realizam
é trabalho de vigília. E, no discurso de Zabou, ouço uma conexão com o que Beverly Bell
Fault Lines: Views across Haiti’s
descreve, após o terremoto, em seu livro
Divide
.
Escrevendo
primeiros
tremores
sobre
o
pararam
trabalho e
sobre
iniciado
as
no
pessoas
Haiti
pobres
assim
que
que
os
tiveram
de
continuar a viver em meio à destruição contínua, Bell afirma: “Sabia-se que a devastação do país – tanto antes do terremoto como agora – não era 64
inevitável”.
O
trabalho
que
estou
teorizando
como
trabalho
de
vigília
ocorreu no Haiti em meio às buscas por pessoas feridas, ao luto por quem morreu ou estava morrendo e ao amparo às pessoas que pairavam no limiar entre a vida material e a morte. Esse foi um trabalho que o povo haitiano sabia que teria de ser feito, e, para executá-lo, as pessoas se basearam em “princípios e práticas alternativos que a população tem tentado estabelecer 65
há tempos”.
Existem um antes e um depois do terremoto: mas não existe 66
o antes do evento do desastre em curso. tempo?
132
Como, depois de tudo, dividir o
[4.6-4.8] Fotogramas do filme Timbuktu.
© 2014 Les Films du Worso/Dune Vision/Arches Films/ARTE France Cinéma/Orange Studio. Cortesia de LE PACTE Ouço, na indignação de Zabou, um eco da indignação da romancista Fatou Diome
Diome que
lavando
já
essas
em
uma
citei
no
praias
–
entrevista. capítulo e
eu
Repito
3:
“Se
escolho
aqui,
essas
portanto,
pessoas
cuidadosamente
cujos
fossem brancas, a Terra inteira estaria tremendo agora”. capturando
a
insistência
com
que
as
palavras
corpos
minhas 67
Danticat
as
de
estão
palavras
–
Ouço um eco de
mulheres
haitianas
se
cumprimentam no presente. Elas dizem: “Como estamos hoje, irmã?” “Tô 68
feia, mas tô aqui”.
CODA 133
Aspiração
Aspiração.
é
a
palavra
à
qual
cheguei
para
manter
e
colocar
fôlego no corpo Negro. Vivendo, como argumentei que vivemos, no vestígio da escravização, em espaços onde não esperavam que sobrevivêssemos, nos quais somos punidas por sobreviver e por ousar reivindicar ou abrir espaços para algo como a liberdade, ainda reimaginamos e transformamos espaços para uma ética de cuidado (leia-se reparo, manutenção, atenção), assim como para
existir
sua prática, uma ética de ver e de
no vestígio como consciência;
como uma forma de lembrar e observar que começou com a Porta do Não Retorno
e
continuou
no
porão
do
navio
e
na
costa.
Como
alguém
que
sobreviveu ao navio contemporâneo e ao porão diz: “Não podíamos colocálo no meio do barco, porque o barco tinha sido danificado e a água estava entrando.
Se
tomamos
muito
o
deixássemos cuidado
daquele
com
ele.
jeito,
Gosto
ele
de
teria
coisas 69
pessoas se importam. É tudo o que nós temos”. violência
da
abstração,
um
relato
de
splash
ido,
.
assim
–
Então,
quando
as
Esse é um relato contra a
sobrevivência
ao
navio
quando
o
vestígio, o navio, o porão, o clima e suas (não) sobrevivências se repetem e se repetem. Um relato do
cuidado
como risco compartilhado entre pessoas
Negras trans*asteriscadas. Dionne
Brand
trabalhos. Em
nos
oferece
tais
relatos
de
cuidado
em
Um mapa para a Porta do Não Retorno
todos
os
seus
, ela se move de “A
Circumstantial
Account
of
a
State
of
Things”
para
outro
tipo
de
relato
circunstancial tanto em seu “Portulano” para a sobrevivência na Diáspora como no “Verso 55”. No trabalho de Brand, aquela Porta do Não Retorno marcou
o
local
real
e
metafórico
que
“explica
as
formas
como
nós
observamos e somos observadas como pessoas. […] Ela existe como o chão que
pisamos. 70
porta”. ele;
Todo
gesto
de
nosso
corpo
gesticula
em
direção
a
essa
Na elaboração de Brand, a porta existe ao lado do arquivo e contra
existe
justaposicionalmente
como
um
relato
de
“uma
coisa
sobre
a
qual, na verdade, nós não sabemos, um lugar que não conhecemos. Mas ainda assim ela existe como o chão que pisamos”. No primeiro exemplo, Brand mapeia como viemos parar nos lugares que vivemos e aquele “rasgo no
mundo”
que
71
qualidade
de
permitido
por
descartável
e
também
ser”.
um
os
é
Brand arquivo
deposita
“uma
ruptura
mapeia que
aí,
o
na
desejo
de
transforma
traídos.
Brand
história,
uma
dizer
corpos começa
mais
Negros o
ruptura
Mapa
do em
na
que
o
carne
com
essa
ruptura, e o fecha com uma canção; o “Portulano para pessoas à deriva na Diáspora”
é
sua
oferenda
para
nos
guiar
em
relação
a
como
viver
no
vestígio. O “Portulano” é um guia para a indisciplina e para a ilegalidade; um mapa de deserdação e habitação; um guia de como, viajando com pouca bagagem, alguém pode simplesmente viver livre do – “recuse, bata a porta no” – peso da responsabilidade de nossa morte planejada. O “Portulano” de Brand
simplesmente
insiste
em
nós,
134
pessoas
Negras,
em
toda
a
nossa
grandeza contra aquela disgrafia que insistiria na pequenez da existência Negra no vestígio. Ao fazer isso, Brand examina os arquivos do cotidiano que emergem de atos como coletar, pensar justaposicionalmente e “sentar
“Devem, não possuem nada. […] E vagam como se não tivessem século, como se pudessem tecer o tempo, como se pudessem se sentar em um café em Bruges, fumar maconha em Tucson, no Arizona, e mascar coca no alto dos Andes para aplacar o frio.” no espaço com a história”.
72
Viver com a morte imi/a/nente, na sombra daquela porta, no vestígio da
escravização,
verificação após
a
morte
centros
com
constante
de
as de
passagens
do
documentos,
Mediterrâneo os
partus sequitur ventrem Lagers
do
enquadros
,
detenção,
os
,
as
a
prisões
obstruídas, aleatórios,
dificuldade
e
uma
com
as
respiratória,
infinidade
de
a
vidas os
outras
formas de vigilância. “Eu quero fazer mais do que recontar a violência que 73
depositou esses vestígios no arquivo.” foto da linda garota com a palavra imagens
de
Roy
DeCarava
que
Então, volto mais uma vez para a
Navio
colada em sua testa e para duas
parecem
se
relacionar
com/antecipar
a
primeira imagem. As
imagens
vêm
do
livro
de
The Sound I Saw
fotos
.
A
primeira
fotografia é de um garotinho Negro, de cerca de cinco anos. A imagem é cortada num close, e é o rosto dele que vemos; é o rosto dele que está em foco. O rosto dele ocupa a maior parte da imagem. Ele parece estar vestindo uma bata hospitalar; o material da bata parece ser gaze, ela é branca e tem um decote em v. Ele está deitado em um lençol branco ou de cor clara. Ele tem uma pequena marca na sobrancelha direita. Parece preocupado; franze ligeiramente a sobrancelha. O olhar dele, como o da garota, me alcança através do tempo e do espaço. Seus grandes olhos castanhos olham para algo, alguém, nós. Em
No vestígio: Negridade e existência
, eu quis tornar presente a pessoa
que aqueles olhos miram. Eu quis ficar no vestígio para fazer ressoar uma simples nota de cuidado. Eu a chamo de simples nota porque ela considera como clima as condições contemporâneas de vida e morte Negras. Outra cena textual que exemplifica essa nota de cuidado da qual estou falando, esse
corriqueiro
som
de
cuidado
para
além
dos
lugares
chega através do personagem Homem do Hai no romance
onde
estamos,
Amada
, de Toni
Morrison. O Homem do Hai está “na corrente guia” da fileira formada por um grupo de homens acorrentados que trabalham na prisão para a qual Paul
D
é
vendido
em
Alfred,
Geórgia,
Estados
Unidos,
após
ter
sido
capturado durante sua fuga da Doce Lar:
“Haaaiii!” Era o primeiro som, além de “Sim, senhor”, que um negro tinha permissão de falar toda manhã, e a corrente guia dava a esse som tudo o que ele tinha.
135
“Haaaiii!” Nunca ficou claro para Paul D como ele sabia quando gritar aquela bênção. Chamavam-no de Homem do Hai e Paul D pensou, de início, que os guardas lhe diziam quando dar o sinal para os prisioneiros se levantarem dos joelhos e dançarem ao som da música do ferro forjado. Depois, duvidou disso. Até
hoje
vinha
o
acreditava anoitecer
que
eram
o
“Haaaiii!”
a
ao
amanhecer
responsabilidade
que
o
e
o
“Huuuuu!”
Homem
do
Hai
quando assumia
porque só ele sabia o que era o bastante, o que era demais, quando as coisas 74
terminavam, quando a hora chegava.
O Homem do Hai faz soar e segura a nota que afasta os homens com quem está
acorrentado
da
beira
do
precipício.
E,
quando
a
inundação
vem,
a
chuva que quase os mata trancados no subsolo, na lama e no lodo, naquela jaula chamada de tumbeiro em terra – essa nota fornece os meios através dos quais Paul D e os outros 45 homens escapam daquele navio-prisão em Alfred, Geórgia, Estados Unidos. A
segunda
fotografia
de
DeCarava
é
de
uma
mulher
Negra
e
desse
mesmo garotinho. Ela olha na direção contrária à da câmera, e seu rosto está voltado em direção ao menino. Ela segura um termômetro na mão direita. Nessa foto o garotinho está sentado na cama, de pernas cruzadas, na frente dela. Ele está bebendo água em um copo; ela está olhando para ele. A camisa branca dele agora parece ser de um pijama que combina com a calça que desta vez vemos que ele está usando. A legenda da foto nos diz que
a
mulher
é
sua
mãe.
Não
parece
que
eles
estão
em
um
quarto
de
hospital. Parece que ele está em casa. Há uma cômoda encostada à parede, com pertences em cima. Há uma grade na frente da janela. Eu imagino a garotinha
com
Navio
colado
na
testa
ao
lado
desse
garotinho
de
meio
século atrás. As fotografias têm motes semelhantes; o menino e a menina têm uma semelhança notável; ela é uma menina doente, ele é um menino doente, os dois aguardam atendimento. Mas Roy DeCarava tirou as fotos do garotinho e do garotinho com a mulher que é sua mãe: DeCarava, o famoso fotógrafo Negro da vida Negra que recusou um documentário, que recusou que suas imagens de pessoas Negras fossem usadas para enquadrar pessoas
não
vistas,
para
incitar
nossa
coisificação.
Portanto,
as
fotografias
de
DeCarava também são notavelmente diferentes. E é através do cuidado e da luz e sombra do olhar de DeCarava que essa mulher, a mãe do menino, aparece aqui em uma cena que atinge uma nota simples de cuidado. Volto a “Portulano para pessoas à deriva na Diáspora”, de Brand, como uma canção que aponta uma direção e contém misericórdia, uma canção que
contém
todas
as
coisas
que
somos.
O
“Portulano”
dela
escreve
e
contém a existência Negra como esta se desenvolveu no vestígio; existência Negra Negra;
que
excede
existência
conhecimento
e
continuamente
Negra
riqueza.
que E
todas
excede
ela
nos
essa
as
força.
oferece
136
violências
uma
Para
dirigidas
Brand,
música,
um
tudo
à
vida
isso
mapa
é
para
qualquer
lugar,
para
todos
os
lugares,
em
todos
os
lugares
em
que
nos
encontramos. O “Portulano”: um mapa para se segurar; para contemplar. Então, estamos aqui no tempo, aqui na singularidade. Aqui há desastre
sermos constituídas através da/pela vulnerabilidade contínua à força opressora, não é apenas por essa força que nos reconhecemos e somos reconhecidas e
possibilidade.
E,
apesar
de
“
”.
137
AGRADECIMENTOS
Minha licença sabática e minha licença de um semestre para pesquisa pelo programa da reitoria da Universidade Tufts me proporcionaram tempo e espaço longe da sala de aula para que fosse possível terminar este livro. Sou grata
por
isso.
Agradeço
a
ajuda
do
diretor
James
Glaser.
Agradeço
à
diretora Bárbara Brizuela e ao Comitê de Prêmios de Pesquisa do corpo docente por fornecerem os fundos para pagar cada um dos direitos das muitas imagens que aparecem neste texto. Obrigada, também, à ex-diretora Joanne Berger-Sweeney por seu apoio inicial decisivo a este trabalho. Tive a sorte de apresentar partes deste projeto em vários fóruns: na Universidade
Estadual
de
Michigan;
no
Extra(-ordinary)
Presents,
na
Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha; no The Futures of Black Studies,
na
Fleming,
Universidade
da
de
Universidade
Bremen,
de
Alemanha;
Vermont;
na
no
Museu
Afrikan
Black
de
Arte
Coalition
Conference, da Universidade da Califórnia em Irvine; na Universidade de Toronto;
na
Conference;
Universidade no
Vanderbilt;
na
workshop
American
Cornell; Black
na
Folk
Studies
Caribbean
in
Dark
Association
Studies
Times,
da
Association
Universidade
Conference;
na
Modern
Language Association Conference; na Universidade do Sul de Illinois em Edwardsville; no Barnard College; no Instituto Pratt; em seminários dos cursos
Curatorial
Controversies
in
Traumatic
History
e
Pedagogy
and
Commemoration, da Universidade York, em Toronto; no painel The Dark Room:
Race
and
Visual
Culture
da
conferência
Black
Portraiture(s)
II:
Imaging the Black Body and Re-Staging Histories, em Florença, Itália; no Black +
Queer
+ Human Symposium, da Universidade de Toronto; na Black
Studies Race Literacies Series, da Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver, Canadá. Os meus agradecimentos às pessoas que organizaram os
painéis
e
eventos
em
que
apresentei
este
trabalho
e
às
que
estavam
presentes e tão generosamente participaram da obra em construção. Versões
anteriores
e
substancialmente
distintas
de
No vestígio
estão
disponíveis em: a seção sobre os discursos de Barack Obama, do capítulo 4, “O
tempo”,
Scenes”, em
aparece
em
uma
versão
anterior
e
mais
longa
em
“Three
On Marronage: Ethical Confrontations with Anti-Blackness
,
1
organizado por P. Khalil Saucier e Tryon P. Woods.
A seção do capítulo “O
porão” sobre Dasani Coates e William aparece em outra versão no ensaio 2
“Black Studies: In the Wake”.
138
A
lista
listagem
de
quem
desse
tipo,
me
acompanhou
mesmo
trata de um começo.
em
Amada
e
ordem
incentivou
alfabética,
é
é
longa.
Qualquer
incompleta,
mas
se
, Black Lives Matter, Black Youth Project 100,
Nicholas Brady, Sabine Broeck, Kimberly Juanita Brown, Kimberly Nichele Brown,
Kevin
Warren
Crichlow,
“Dream
Browne,
Haiti”,
Tina
Delia,
Lee
Campt,
Mario
Edelman,
Di
David
Chariandy,
Paolantonio,
Andrea
Margo
Martin
Fatona,
Crawford,
Donovan,
Rafael
Fonseca,
Drana,
Donette
Francis, Vivek Freitas, a garotinha cujo nome não sei com a palavra afixada
na
testa,
Charlene
Gilbert,
Saidiya
Hartman,
Kimberly
Navio
Hébert,
Tiffany Willoughby Herard, Molly Hildebrand, Peter Hudson, Vijay Iyer, Aereile
Jackson,
Zakiyyah
Iman
Jackson,
Amber
Rose
Johnson,
Jessica
Marie Johnson, Kima Jones, Aiyana Stanley-Jones, Mariame Kaba, Amor Kohli, Joseph Litvak, Lisa Lowe, Keguro Macharia, David Mann,
para a Porta do Não Retorno: Notas sobre pertencimento
Um mapa
, Egbert Alejandro
Martina,
Dianna
McFadden,
Katherine
McKittrick,
Diego
Millan,
Siddhartha Mitter, Fred Moten, John Murillo, Gee Ngugi, Tamara Nopper, Tavia
Nyong’o,
Abdi
Osman,
Jemima
Pierre,
Modhumita
Roy,
Ashraf
Rushdy, Leslie Sanders, P. Khalil Saucier, Jared Sexton, Christopher Sharpe, Evie
Shockley,
Faith
Smith,
C.
Riley
Snorton,
Eddy
Souffrant,
Hortense
Spillers, Aparna Mishra Tarc, Grete Telander, Selamawit Terrefe, “Vênus em dois
atos”,
“Verso
55”,
Alex
Weheliye,
Williams, Jean Wu, Van Zimmerman e deixei
de
citar
aqui,
não
sou
Frank
Wilderson,
Zong
Jaye
Austin
! A quem eu inadvertidamente
menos
grata
por
causa
de
uma
falha
temporária de memória. Depois do falecimento de minha irmã IdaMarie, Amor Kohli ouviu o não
dito
e
veio
Zimmerman durante
me
esteve
alguns
dos
buscar, lá
e
ele
durante
seus
e
e
Sonya
em
próprios),
e
cozinharam
todos
esses
continuo
para
mim;
Van
vestígios-velórios
profundamente
(e
grata
à
minha colega Anne Gardulski, da Tufts, que generosamente me encontrou para almoçar e conversar sobre vestígios aquáticos e tempo de residência da água; Kate Siklosi transcreveu essa entrevista com Anne e elaborou o índice para
do
livro;
garantir
os
Abbe
Schriber
direitos
de
forneceu
arte
e
de
ajuda
textos;
especializada Anthony
Reed
e
oportuna
me
enviou
partes de “Dream Haiti” enquanto eu esperava meu livro chegar. Obrigada. Na Duke University Press, obrigada a Jade Brooks, Nicole Campbell e Amy
Buchanan.
Mais
especialmente,
obrigada
ao
editor-chefe
da
Duke
University Press, Ken Wissoker, por sua gentileza e compromisso com a obra. Obrigada, também, às duas pessoas que leram o meu manuscrito; que privilégio ser lida com tanta generosidade e tão bem. Dionne Brand e Rinaldo Walcott, obrigada pela leitura, pelas conversas estimulantes e sinceras comigo, por suas percepções e sua existência, no vestígio.
139
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149
Cultural Critique
, v. 77,
SOBRE A AUTORA
CHRISTINA
Canada
SHARPE
é
Research
escritora, Chairs
professora
em
Estudos
e
pesquisadora
Negros
nas
pelo
programa
Humanidades
na
Universidade York, em Toronto. É também pesquisadora associada sênior no
Centro
de
Joanesburgo. 2016
pelo
Estudos
de
Raça,
No vestígio The Guardian
Gênero
e
Classe
na
Universidade
de
foi considerado um dos melhores livros do ano de
jornal
.
dedicando à escrita de três livros:
Atualmente,
Christina
Black. Still. Life
Could a Vessel Be? Been to the End of the World: 25 Essays on Art
Sharpe
vem
se
What To Have
(Duke, no prelo);
(Farrar, Straus and Giroux/Knopf, no prelo); .
OBRAS SELECIONADAS Ordinary Notes
. Toronto: Knopf, 2023 [New York: Farrar, Straus and Giroux,
2023 / London: Daunt, 2023]. “The Abacus of her Eyelids”, in Dionne Brand,
Collected Poems
Nomenclature: New and
. Durham: Duke University Press, 2022.
“Black Gathering: An Assembly in Three Parts”, in S. Anderson e M. O. Wilson (orgs.),
Reconstructions: Architecture and Blackness in America
.
New York: MoMA, 2021. “Jennifer Packer ‘Abundant with Life’”, in M. Blanchflower e N. Grabowska (orgs.), Jennifer Packer:
The Eye Is Not Satisfied With Seeing
. Köln:
Walther König, 2021.
Art in America Monstrous Intimacies: Making Post-Slavery Subjects “Meditations on the History of the Present”.
, 2 mar. 2021.
. Durham: Duke
University Press, 2010. “Alison Saar, Alchemist: ‘The Hand is in the Making of Textures’”, in R. McGrew e I. Tsatsos (orgs.),
Alison Saar: Of Aether and Earthe
.
Claremont: Benton Museum of Art, 2020. “Scale”, in Massimiliano Gioni et al.,
Mourning in America
Grief and Grievance: Art and
. London/New York: Phaidon/New Museum,
2020.
150
Título original:
In the Wake: On Blackness and Being
© Duke University Press, 2016 © Ubu Editora, 2023
IMAGEM DA CAPA
© Grada Kilomba,
O barco The Boat |
, 2021,
BOCA
– Bienal de
Arte Contemporânea de Lisboa. Instalação vista a partir do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de Lisboa. Foto de Bruno Simão. Cortesia da artista.
EDIÇÃO DE TEXTO PREPARAÇÃO REVISÃO DESIGN TRATAMENTO DE IMAGEM PRODUÇÃO GRÁFICA
Bibiana Leme
Bruna Barros
Tatiana Allegro
Elaine Ramos; Júlia Paccola, Nikolas Suguiyama (assistentes) Carlos Mesquita
Marina Ambrasas
EQUIPE UBU DIREÇÃO COORDENAÇÃO GERAL DIREÇÃO DE ARTE EDITORIAL COMERCIAL COMUNICAÇÃO / CIRCUITO UBU DESIGN DE COMUNICAÇÃO GESTÃO CIRCUITO UBU / SITE ATENDIMENTO Florencia Ferrari
Isabela Sanches
Elaine Ramos; Júlia Paccola, Nikolas Suguiyama (assistentes)
Bibiana Leme e Gabriela Naigeborin Luciana Mazolini; Anna Fournier Maria Chiaretti; Walmir Lacerda
Marco Christini Laís Matias
Micaely Silva
UBU EDITORA
Largo do Arouche 161 sobreloja 2
01219 011 São Paulo sp ubueditora.com.br [email protected] /ubueditora
151
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8 / 9410 Sharpe, Christina No vestígio: negridade e existência / Christina Sharpe; Título S532v original: In the Wake: On Blackness and Being; traduzido por Jess Oliveira. São Paulo: Ubu Editora, 2023, 256 p., 30 ils. ISBN 978 85 7126 104 4 1. Racismo. 2. Negritude. 3. Negridade. 4. Política. 5. Arte. 6. Sociologia. 7. Filosofia. 8. Cinema. 9. Sociedade. I. Oliveira, Jess. II. Título. 2023–644 CDD 305.8 CDU 323.14 Índice para catálogo sistemático: 1. Racismo 305.8 2. Racismo 323.14
FONTES Karmina, Euclid Circular B e St Croce
152
ubueditora.com.br
153
Notas 1
A
letra
N
maiúscula
transmutação de
Black
em
Negra,
Negre,
Negro
nesta
tradução
é
a
aparição-
. É vestígio. [N.T.]
2 O caso teve início em 1951, quando o sistema escolar público de Topeka, capital do estado do Kansas, recusou-se a matricular a filha de Oliver Brown, um homem Negro, na escola primária mais próxima de sua casa, exigindo que ela pegasse um ônibus para uma escola Negra segregada mais distante. A família Brown e outras doze
famílias
Negras
locais
em
situação
semelhante
entraram
com
uma
ação
coletiva no tribunal federal dos Estados Unidos contra o Conselho de Educação de Topeka, alegando que sua política de segregação era inconstitucional. A decisão do caso
foi
histórica,
pois
a
Suprema
Corte
dos
Estados
Unidos
declarou
a
inconstitucionalidade das leis estaduais que estabeleciam a segregação racial em escolas públicas do país. Essa decisão da Corte anulou parcialmente sua decisão de 1896
(caso
iguais”
Plessy versus Ferguson
era
),
inconstitucional
para
declarando escolas
que
públicas
a
noção
e
de
“separados
instalações
mas
educacionais
estadunidenses. Foi uma grande vitória do poder civil e do movimento de direitos humanos e abriu caminho para a integração no país. [N.T.] 3 Eric J. Sundquist apud Elizabeth M. DeLoughrey,
Caribbean and Pacific Island Literatures
.
Routes and Roots: Navigating
Honolulu:
University
of
Hawaii
Press,
2007, p. 53. 4 Algumas definições, frases e citações (por exemplo, as definições de
wake
[em
português: vestígio, vigília, velório, velar, vereda]) serão repetidas ao longo do texto deste livro e aparecerão em itálico. Imagino essas repetições em itálico como um lembrete, um refrão e muito mais. 5 Compartilhei isso com um amigo, que respondeu o seguinte: “Tropecei na palavra ‘oportunidade’ [em minha narrativa] por causa de sua onipresença nas narrativas de pessoas
caribenho-neerlandesas.
Tenho
pensado
muito
sobre
o
trabalho
que
a
‘oportunidade’ faz tanto nas narrativas de migração do Caribe Neerlandês quanto na promessa do governo neerlandês de ‘criar oportunidades para todas as pessoas’. Minha
mãe
e
oportunidades’
meu e
pai
também
se
mudaram
vivenciaram
para
os
‘racismo
Países
Baixos
constante
e
‘em
busca
escancarado,
de
bem
como isolamento’. Meu pai foi mantido no mesmo emprego sem perspectiva de promoção por anos a fio; ironicamente, no Caribe Neerlandês, os Países Baixos são imaginados como a ‘terra da oportunidade’ (e não vou entrar no mérito de como essa imaginação foi moldada pelo colonialismo). Os Países Baixos se tornaram um ponto de orientação fixo”. E-mail pessoal citado com a permissão do autor, Egbert Alejandro Martina. 6 Um tempo atrás, quando eu estava procurando por outra coisa nos arquivos do
Philadelphia Inquirer
, encontrei dois dos muitos artigos de opinião que minha mãe
154
escreveu
e
que
foram
publicados
no
jornal
depois
que
ela
leu
sobre,
viu
ou
testemunhou racismo. Compartilho o texto das cartas a seguir.
Cartas ao corpo editorial: Preconceito profundamente arraigado 20 dez. 1986
Se alguém ainda tem dúvidas sérias de que preconceitos arraigados estão vivos e prosperando
Inquirer
de
nos
9
de
Estados
Unidos,
dezembro,
sobre
basta a
ler
garota
o
artigo
de
da
primeira
quatorze
anos
página
que
foi
do
The
vítima
de
estupro, para se desiludir dessa noção ingênua. Temos
aqui
uma
situação
nos
moldes
da
era
pré-direitos
civis.
Uma
jovem
branca é estuprada (por um homem branco que ela conhece), mas, ao descrever seu agressor,
não
inexistente.
É
descreve triste
que
um
homem
essa
branco
criança
de
falso,
quatorze
e
sim
anos
um
tenha
homem
negro
aparentemente
escolhido de modo instintivo um membro (embora fictício) de outra raça para ser sua vítima.
155
Ida Wright Sharpe
156
Wayne
Cartas ao corpo editorial: Racistas à parte 2 mar. 1992
Embora eu lamente a situação do filho de Jack Smith, que recebeu uma multa de trânsito por causa das luzes piscando em seu carro (afinal, seriam elas distrações maiores
do
que
as
placas
que
tentamos
ler
enquanto
passamos?),
estou
mais
preocupada com os comentários gratuitos feitos pelo sr. Smith. Sua
observação
descaradamente
de
que
racista,
o
carro
assim
“parecia
como
sua
ter
acabado
pergunta
de
sobre
sair as
do
barrio
”
luzes
é
serem
“excessivamente […] Latinas”. Devemos acreditar, como Jack Smith aparentemente acredita, que na Main Line apenas falantes de espanhol dirigem carros com outras decorações além de nomes de universidades e iate clubes nas janelas traseiras? Não sei há quanto tempo Jack Smith vive em Wayne, mas eu moro aqui há mais de 38 anos e posso garantir a ele que 90% das pessoas que vi, ao longo dos anos, entrando e saindo de veículos excessivamente enfeitados foram homens brancos de idades variadas. Enquanto outras
isso,
crianças
da
ele
precisa
Main
Line;
reavaliar algumas
suas −
suposições
muitas
delas,
racistas na
a
respeito
verdade
−
não
das são
brancas, e nenhuma delas merece ser rotulada e menosprezada por pessoas como ele.
157
Ida Wright Sharpe
158
Wayne
Um
7 Uso a imagem da porta como referência ao trabalho de Dionne Brand, que, em
mapa para a Porta do Não Retorno
, escreve que a Porta do Não Retorno está em sua
retina. Voltarei a isso mais tarde ao longo do texto. 8
Ver
Rinaldo
Walcott,
The Long Emancipation: Moving toward Black Freedom
.
Durham: Duke University Press, 2021. Walcott chama esse projeto inacabado de longa
emancipação
e
o
define
assim:
“A
interdição
de
uma
liberdade
negra
em
potencial que chamei de longa emancipação”. 9
M.
NourbeSe
Philip
(entrevista
a
Patricia
J.
Saunders),“Defending
the
Dead,
Small Axe
Confronting the Archive: A Conversation with M. NourbeSe Philip”.
, v.
12, n. 2, 2008, p. 67. 10 Saidiya Hartman,
Perder a mãe: Uma jornada pela rota atlântica da escravidão
,
trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 16. 11
Maurice
University
Blanchot, of
The Writing of the Disaster
,
Nebraska
Press,
1995,
pp.
1-2.
trad.
Para
Ann
Blanchot,
Smock. o
Lincoln:
desastre
é
o
Holocausto. Para mim, é o desdobramento contínuo de séculos do comércio de pessoas africanas – um evento que é histórico e que, como escreve Dionne Brand, rompe a história. Toni Morrison escreve: “O evento arrogante e definidor do mundo moderno é o movimento em massa de populações racializadas, cujo início é a maior transferência
forçada
de
pessoas
na
história
do
mundo:
a
escravização.
As
consequências dessa transferência determinaram todas as guerras que se seguiram a ela, bem como as atuais que estão sendo travadas em cada um dos continentes”;
The House That Race Built: Original Essays by Toni Morrison, Angela Y. Davis, Cornel West and Others on Black Americans and Politics in America Today Cultural Critique “Home”, in Wahneema Lubiano (org.),
,
. New York: Vintage, 1998.
12 Paul Youngquist, “The Mothership Connection”.
, v. 77, 2011, p.
7. 13 Ann Smock, a tradutora [para o inglês] de Blanchot, observa que a escrita do desastre “significa não apenas o processo pelo qual algo chamado desastre é escrito – comunicado, atestado ou profetizado – mas também a escrita feita pelo desastre – pelo
desastre
significa
a
que
escrita
‘conhecimento
do
destrói que
o
livros
e
desastre
desastre’
condena –
significa
que
a
linguagem.
liquida
a
conhecimento
‘A
escrita
como
escrita –
é,
do
assim
desastre
e
a
desastre’ como ‘fuga
o
do
pensamento’ [significa] a perda do pensamento, que o pensamento é”; Ann Smock, in M. Blanchot,
The Writing of the Disaster
, op. cit., p. ix.
14 Agradeço a Mario Di Paolantonio por refletir sobre isso comigo depois de minha palestra na Universidade York. 15 Na edição de estreia de
Lateral
, jornal online da Cultural Studies Association,
Jared Sexton escreve o seguinte sobre Lewis Gordon: “Sou guiado na tarefa a seguir por uma ideia dupla derivada dos argumentos de Gordon: 1) todo pensamento, na medida em que é genuíno, pode ser mais bem concebido como pensamento negro e, consequentemente, 2) todas as pesquisas, na medida em que são investigações
159
genuinamente
críticas,
aspiram
Blackness: Afterthoughts.
Lateral
aos
estudos
negros”;
Jared
Sexton,
“Ante-Anti-
, n. 1, 2012.
16 Lexi Belcufine, “Turtle Creek 20-Year-Old Fatally Shot in Fineview”.
Post-Gazette
Pittsburgh
, 10 dez. 2013.
17 Courier Newsroom, “65 of 91 Homicides Black Lives in 2013”.
Pittsburgh Courier
,
8 jan. 2014. 18 Leon Taylor, “Man Killed by Cops after Pointing Gun”.
Philadelphia Daily News
,
22 jun. 1994. 19 Minha memória difere da de meu irmão Christopher aqui. Christopher lembra que Robert foi baleado onze vezes. Van Zimmerman e eu lembramos que Robert foi baleado dezenove vezes. 20 Minha mãe escreveu uma carta ao corpo editorial sobre o assassinato de Robert e sobre como o fato foi relatado no jornal, mas não consegui localizá-la. Incluí aqui duas cartas que estão nos arquivos online do
Philadelphia Inquirer
e que apontam
para algumas das maneiras como minha mãe vivia no mundo. 21 Joy James e João Costa Vargas, “Refusing Blackness-as-Victimization: Trayvon
Pursuing Trayvon: Historical Contexts and Contemporary Manifestations of Racial Dynamics Martin and the Black Cyborgs”, in George Yancy e Janine Jones (orgs.),
.
Latham: Lexington Books, 2012, p. 193. 22 Leia-se: no vestígio, na vigília, no velório, na vereda dessas mortes. [N.T.] 23 “Big Steve – Lil Nigga Trey (lil nigga snupe beat)”. YouTube, 17 dez. 2013. 24
“U.S.
Marshals
Arrest
Pittsburgh Post-Gazette
,
Pittsburgh
28
mar.
Homicide
2014.
Suspect
Revisei/editei
o
in
New
nome
do
Kensington”. jovem
Negro
acusado de assassinar meu sobrinho Caleb. Não adianta nada nomeá-lo aqui. Digo mais sobre o que estou chamando de práticas de anotação Negra e revisão Negra na seção final deste trabalho, “O tempo”. 25
Saidiya
Hartman,
in
Patricia
J.
Conversations with Saidiya Hartman”.
Saunders,
“Fugitive
Dreams
of
Diaspora:
Anthurium: A Caribbean Studies Journal
, v.
6, n. 1, p. 7. 26 Ibid. 27 Michel-Rolph Trouillot,
Silencing the Past: Power and the Production of History
.
Boston: Beacon, 1997, p. 15. 28 M. NourbeSe Philip,
Zong!: As Told to the Author by Setaey Adamu Boateng
.
Hartford: Wesleyan University Press, 2008, p. 26. 29 Rob Stein, “At the End of Life, a Racial Divide”.
Washington Post
, 12 mar. 2007.
No mesmo artigo, lemos: “Após vidas durante as quais, com frequência, lutaram para obter cuidados médicos, pessoas Negras estadunidenses e outras minorias têm maior probabilidade – em relação a pessoas brancas – de desejar e obter cuidados mais agressivos à medida que a morte se aproxima, sendo menos propensas a usar serviços
de
cuidados
paliativos
para
aliviar
seu
sofrimento,
de
acordo
com
um
grande corpo de pesquisas e especialistas célebres. Como resultado, elas têm maior propensão
a
sofrer
mortes
precedidas
de
maior
medicalização,
morrendo
mais
frequentemente no hospital, com dor, com respiradores e tubos de alimentação –
160
muitas
vezes
após
serem
reanimadas
ou
receberem
rodadas
extras
de
quimioterapia, diálise ou outros cuidados, mostram os estudos”. Ver também Cardinale Smith e Otis Brawley, “Disparities in Access to Palliative Care”.
Health Affairs
,
30
jul.
2014.
Eles
escrevem:
“Inclusive
quando
o
status
socioeconômico é o mesmo, pacientes pertencentes a minorias [étnicas] continuam em risco de maior disparidade em tratamentos para a dor. A equipe médica parece compartilhar menos informações e demonstrar menor apoio a pacientes que são pessoas
Negras
e
hispânicas
em
comparação
a
pacientes
brancas
e
brancos,
inclusive nos mesmos ambientes de cuidados. Além disso, pacientes de minorias muitas vezes não recebem tratamento equivalente a seus desejos, mesmo quando se sabe quais são seus desejos”.
Slate
30 Jason Silverstein, “I Don’t Feel Your Pain”.
, 23, jun. 2013. “Quanto maior o
privilégio presumido do alvo, mais dor foi percebida por participantes. Por outro lado, quanto maiores as dificuldades presumidas, menos dor foi percebida”; ibid. 31
Frank
Wilderson,
Antagonisms
Red, White, and Black: Cinema and the Structure of U.S.
. Durham: Duke University Press, 2010, p. 76.
32 Hortense J. Spillers,“Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book”, in
Black, White, and in Color: Essays on American Literature and Culture
. Chicago:
University of Chicago Press, 2003. 33 Ou seja, estudo no âmbito universitário e em sala de aula, e não Estudo Negro como
Fred
Moten
e
Stefano
Planning and Black Study
Harney
definem
em
The Undercommons: Fugitive
. New York: Minor Compositions, 2013.
34 Brand escreve: “Adentramos um espaço e a história nos persegue; adentramos um espaço e a história nos precede. A história já está lá, sentada na cadeira nesse espaço vazio, quando chegamos. Nossa posição social parece sempre se relacionar a essa experiência histórica. Os lugares onde as pessoas podem ser observadas se relacionam
a
essa
história.
Todos
os
esforços
humanos
parecem
emanar
dessa
porta. Como eu sei disso? Apenas por auto-observação, olhando apenas. Apenas sentindo. Apenas por ser uma parte, ali sentada no espaço com a história”;
mapa para a Porta do Não Retorno: Notas sobre pertencimento
Um
, trad. Jess Oliveira e
floresta. Rio de Janeiro: A Bolha, 2022. 35
M.
NourbeSe
Philip
(entrevista
a
P.
J.
Saunders),
“Defending
the
Dead,
Confronting the Archive”, op. cit., p. 67. 36
Sylvia
Wynter,
“‘No
Humans
Involved’:
Forum N.H.I.: Knowledge for the 21st Century Perder a mãe
An
Open
Letter
to
My
Colleagues”.
, v. 1, n. 1, 1994, p. 70.
37 S. Hartman,
, op. cit., p. 17.
38 Wilderson escreve sobre “ajudar o manuscrito a permanecer no porão do navio, apesar de minhas fantasias de fuga”; 39
Optei
pelo
uso
de
América
na
Red, White, and Black
, op. cit., p. 2.
tradução
apenas
quando
o
sentido
(pode)
se
aplica(r) a todo o continente, como no presente caso. Quando “America” trata dos Estados Unidos da América, opto pelo uso do nome do país. [N.T.]
I, too, am the afterlife of slavery
40 Em inglês: “
”. Referência aos versos do célebre
poema “I, too”, de Langston Hughes. [N.T.] 41 S. Hartman,
Perder a mãe
, op. cit. p. 17; trad. modif.
161
42 A respeito da Operation Clean Halls, ver pp. 161-62. [N.E.] 43 J. James e J. C. Vargas, “Refusing Blackness-as-Victimization”, op. cit., p. 193; ênfase minha. 44 Uso “transmigração” aqui no sentido de movimento através, bem como no de movimento de uma forma para outra. 45
Parece,
ainda,
responsabilidade
que
paterna
dentro continua
de a
um ser
determinado
um
pré-requisito
quadro para
a
ideológico vida
(e
a
para
o
direito a ela). Ver Robert Grim, “Robert Gibbs Says Anwar al-Awlaki’s Son, Killed by Drone Strike, Needs ‘Far More Responsible Father’”.
Huffington Post
, 24 out. 2012.
46 “Les dominicains utilisent des drones pour traquer les sans papiers haitiens”.
Rezo Nòdwes
, 18 ago. 2015. O artigo diz: “O ministro da Defesa dominicano, tenente-
general Máximo Williams Muñoz Delgado, anunciou a operacionalização de uma nova modalidade de vigilância de fronteiras a partir da incorporação de drones para detectar migrantes ilegais e traficantes de todos os tipos. Essas novas aeronaves de reconhecimento, equipadas com tecnologia avançada, transmitem um sinal a dois caminhões preparados para o processamento de imagens em tempo real e dos quais partem ordens de saída para caçar pessoas ilegais. A República Dominicana usa drones para capturar pessoas haitianas sem documentos. […] Observe que as Ilhas Turcas e Caicos também anunciaram o uso desses dispositivos em seus esforços para capturar pessoas haitianas em barcos”. 47 Claudia Rankine, “The Condition of Black Life Is One of Mourning”.
York Times
The New
, 22 jun. 2015.
48
Ver
History
C.
Sharpe,
“Blackness,
Sexuality,
and
American Literary
Entertainment”.
, v. 24, n. 4, 2012, p. 828. Conforme o texto: “Constituídas através da/pela
vulnerabilidade à força opressora, embora não seja
apenas por
essa força que se
reconheçam ou sejam reconhecidas”. 49 Em inglês:
wake work
. [N.T.]
50 “Verso 55”, de 2015, não foi publicado; é usado aqui com a permissão da autora. 51
Saidiya
engendrou,
Hartman porque
escreve: ‘o
“Essa
escrita
conhecimento
da
é
pessoal
outra
me
porque
marca’,
essa
por
História
causa
da
me dor
experimentada em meu encontro com os pedaços do arquivo e por causa dos tipos de histórias que construí para unir o passado e o presente e dramatizar a produção a partir do nada: espaços vazios, silêncio e vidas reduzidas a destroços”; “Vênus em dois atos”, trad. Fernanda Silva e Sousa e Marcelo R. S. Ribeiro.
Revista Eco-Pós
, v.
23, n. 3, 2020, p. 18; trad. modif. 52
Middle Passage
, a Passagem do Meio ou Travessia, se refere à rota intermediária
da trajetória triangular que ia da Europa à África, depois às Américas e de volta à Europa. Por meio dessa segunda rota, milhões de pessoas sequestradas e traficadas eram transportadas da África às Américas. Na primeira passagem, os navios saíam da Europa em direção aos mercados na África com produtos manufaturados, que eram trocados por pessoas africanas. Na segunda passagem, ou Passagem do Meio, essas pessoas eram transportadas através do Atlântico para as Américas e para a escravização. Chegando deste lado do Atlântico, eram então trocadas por matériaprima como tabaco, açúcar etc., e os navios retornavam para a Europa, fechando o
162
comércio triangular. As viagens na Passagem do Meio eram financiadas e realizadas por
grandes
investidores,
empresas os
quais
europeias,
geralmente
acumularam
parte
organizadas
considerável
das
por
grupos
riquezas
de
europeias,
americanas e africanas. [N.T.] 53 Dionne Brand, “Verso 55”.
maroon
54 Em inglês: "Ruttier for the Marooned in Diaspora". O verbo
significa:
desembarcar em uma ilha ou costa desolada e ficar à própria sorte. O substantivo
maroon
se refere a pessoas que fugiram da escravização no contexto caribenho.
Seria o equivalente a quilombola no Brasil. [N.T.] 55
M.
NourbeSe
Philip
(entrevista
a
P.
J.
Saunders),
“Defending
the
Dead,
Confronting the Archive”, op. cit., p. 65. 56 Keguro Macharia, “Mbiti and Glissant”.
The New Inquiry
, 9 mar. 2015.
57 Omise’eke Natasha Tinsley, “Black Atlantic, Queer Atlantic: Queer Imaginings of
GLQ,
the Middle Passage”.
relação
Poética da
v. 14, n. 2-3, 2008, p. 191. Édouard Glissant,
[1990], trad. Eduardo Jorge Oliveira e Marcela Vieira. São Paulo: Bazar do
Tempo, 2021, p. 33. 58
R.
M.
Kennedy,
ao
reconhecer
os
poderes
e
perigos
de
pensar
a
melancolia,
escreve que esta, em sua recusa do exterior, sua recusa em trazer para si o objeto externo,
forma
“National
facilmente
Dreams
and
um
alinhamento
Inconsolable
com
Losses:
os
discursos
The
Burden
nacionalistas.
of
Ver
Melancholia
in
Despite This Loss: Essays on Culture, Memory and Identity in Newfoundland and Labrador Newfoundland Culture”, in Ursula A. Kelly e Elizabeth Yeoman (orgs.),
.
Newfoundland: Iser Books, 2010. 59 Do eufemismo de crianças afastadas à força de suas mães e pais para serem
beyond the
“cuidadas” pelo Estado a leis como a “política além da porta da frente” [
front door policy
], nos Países Baixos, que força pessoas, geralmente as que não são
brancas,
a
abrir
as
portas
para
o
monitoramento
e
a
intrusão
do
Estado,
a
experimentos médicos e a alimentação forçada em casos de greve de fome, quando, por exemplo, a recusa da comida é um protesto dessas pessoas contra o fato estarem presas mais
é
e
realizado
de
contra as condições sob as quais estão presas. Tudo isso e muito sob
a
rubrica
do
cuidado.
Ainda
assim,
quero
encontrar
uma
maneira de me apegar à ideia do cuidado como uma maneira de sentir, de sentir por, de sentir junto, uma maneira de cuidar de quem vive e de quem está morrendo. 60 Elizabeth DeLoughrey, “Heavy Waters: Waste and Atlantic Modernity”.
PMLA,
v.
125, n. 3, 2010, p. 704. 61 Lewis Gordon elucida que essa zona inclui o desastre do reconhecimento de “viver
com
a
possibilidade”,
para
não
dizer
a
necessidade,
“da
morte
arbitrária
como uma característica legítima de um sistema”; “Through the Hellish Zone of Nonbeing:
Thinking
through
Fanon,
Disaster,
and
the
Damned
Human Architecture: Journal of the Sociology of Self-Knowledge
of
the
Earth”.
, v. 5, 2007, p. 11.
62
Nesse
parágrafo,
os
termos
hold
diferentes traduções para “
“cativeiro”,
“conter”
e
“contenção”
são
”. [N.T.]
63 Em uma entrevista a Maya Mavjee sobre
Notas sobre pertencimento
“porão”,
Um mapa para a Porta do Não Retorno:
, a poeta, romancista e ensaísta Dionne Brand ativa outra
163
compreensão da sorte, que reproduzo a seguir. Brand diz: “Em
Mapa
, eu falo sobre
todas essas interpretações com as quais você se depara sem saber, quase desde o nascimento. Se você tem sorte, passa o resto da vida lutando contra elas; se não, passa
a
vida
absorvendo
sem
questionar”;
D.
Brand
(entrevista
a
M.
Mavjee),
“Opening the Door: An Interview with Dionne Brand”. penguinrandomhouse.com, 2001.
1
The Forgotten Space
; theforgottenspace.net/static/home.html.
New Left Review
2 Allan Sekula e Noël Burch, “The Forgotten Space”.
, n. 69, mai.-
jun. 2011; ênfase minha. 3 Penso aqui nos peixes e nas partes de corpos de pessoas africanas escravizadas retratados no trabalho de Turner, assim como nas pinturas
Middle Passages
Gallagher, e a
relação
(2000), de Ellen
, de Kara Walker; cada uma dessas obras torna visceral
entre
aquático)”.
Blubber
Ver
pessoas também
Negras Marcus
e
qualquer
Rediker,
Sharks and the Atlantic Slave Trade”.
“história
“History
de
from
peixe
below
(ou
the
mamífero
Water
Atlantic Studies: Global Currents
Line:
, v. 5, n. 2,
2008. 4 Beatriz Llenín-Figueroa, “‘I Believe in the Future of Small Countries’: Édouard Glissant’s Archipelagic Scale in Dialogue with Other Caribbean Writers”.
Discourse
,
v. 36, n. 1, 2014, p. 90. “À primeira vista, o presente imediato mostra uma relação caribenha com o mar mediada pela poderosa máquina do capital global: a indústria do turismo, quer como empresa mais ou menos estabelecida de hotéis e
resorts
que
se apropriou das regiões costeiras, quer como indústria transitória, sob a forma de grandes
navios
de
cruzeiro
que
assumem
rotas
marítimas
interinsulares;
a
mobilidade de mão de obra barata que migra entre as ilhas do Caribe e em direção aos Estados Unidos em
yolas
ou balsas; os nós de uma rede global de negócios
lucrativos, sendo o mais poderoso e mortal, obviamente, o tráfico de drogas; e o local
de
despejo
de
detritos
do
capitalismo,
resíduos,
lixo,
derramamentos
e
os
excessos de seus experimentos nucleares e operações militares”; ibid. 5
Allan
Sekula
e
Noël
Burch,
The Forgotten Space
“
”,
painel
de
discussão,
Tate
Modern Talks_Lectures, 24 abr. 2012. 6 Antes de sua entrevista, nós a vimos no filme, quando ela aparece no fundo de várias fotos do assentamento. É preciso perguntar, e tentar responder, por que, de todas as imagens que poderiam ser usadas para o filme, essa foi a escolhida. Ver: Kunstakademiet
–
Academy
Arts,
Lectures
of
the
The
Academy
of
“28/08/2013:
Fine
Art/Kunsthøgskolen
Screening:
‘The
Forgotten
–
Oslo
Space’”.
National
Academy
, 11 nov. 2013.
7 Stefano Harney e Fred Moten,
Study Timbuktu
The Undercommons: Fugitive Planning and Black
. New York: Minor Compositions, 2013, p. 93.
8
, dir. Abderrahmane Sissako. Cohen Media Group, 2014.
9 Volto à designação “ex-mãe” na seção deste livro chamada “O porão”. Incluo três imagens de Aereile Jackson [figs. 2.1, 2.2 e 2.4] porque quero ler essas fotos/esses textos de sua imagem e o uso que o filme faz delas. Embora ela apareça no filme apenas rapidamente, estou interessada no fato de sua imagem circular como uma
164
das fotos publicitárias do filme. Das imagens incluídas aqui, uma é um fotograma
End Credits
do filme e a outra é dos créditos finais (e nisso há um eco do filme 2012, de Steve McQueen, sobre os arquivos do brevemente
na
seção
intitulada
“O
tempo”).
FBI
A
, de
de Paul Robeson, que discuto
imagem
final
de
Aereile
Jackson
The Forgotten Space Film about the Sea: Notes on Allan Sekula and Noël Burch’s aparece em Darrell Varga, “Making Political Cinema –
”, in
A
The Forgotten Space.
Halifax: Halifax Centre for European Studies, 2012. 10 Transcrição minha.
opportunity
11 Ver “ 12
opportune Red, White, and Black: Cinema and the Structure of U.S.
”, “
Frank
Wilderson,
Antagonisms
”; dictionary.com.
. Durham: Duke University Press, 2010, p. 76.
13 Ibid., p. 126. 14 Tim Armstrong, “Slavery, Insurance, and Sacrifice in the Black Atlantic”, in Klein
Sea Changes: Historicizing the Ocean
Bernhard e Gesa Mackenthun (orgs.),
. New
York: Routledge, 2010, p. 168. 15 Saidiya V. Hartman (entrevista a Frank B. Wilderson
III),
Unthought:
conducted
Wilderson,
An
III”.
Interview
Qui Parle
with
Saidiya
V.
Hartman
“The Position of the by
Frank
B.
, v. 13, n. 2, 2003.
16 Omise’eke Natasha Tinsley, “Black Atlantic, Queer Atlantic: Queer Imaginings of the Middle Passage”. 17
C.
Riley
GLQ, v. 14, n. 2-3, 2008, p. 191.
Snorton
escreve,
em
The Feminist Wire
Antiblackness)” ( que
parece
“What
More
Can
I
Say?
(A
Prose-Poem
on
, 3 set. 2014): “Não ser totalmente humano, o
também
significar
ser
outra
coisa
(outro/Outro?
super?
sub?)
e
sobreviver – o que significa que estar além (ou talvez fora) da vida é um dilema peculiarmente negro”. 18
Dionne
Um mapa para a Porta do Não Retorno: Notas sobre
Brand,
pertencimento
, trad. Jess Oliveira e floresta. Rio de Janeiro: A Bolha, 2022, p. 113;
trad. modif. Baseio-me aqui na formulação e teorização de Dionne Brand sobre a Porta do Não Retorno real e mítica como o local da consciência da Diáspora Negra. Ela escreve: “A porta significa o momento histórico que influencia os momentos da Diáspora. É responsável pelas formas como nós observamos e somos observadas como pessoas, seja pelas lentes da injustiça social ou pelas lentes das realizações humanas. A porta existe como uma ausência. Uma coisa sobre a qual, na verdade, nós não sabemos, um lugar que não conhecemos. Mas ainda assim ela existe como o chão que pisamos. Todo gesto de nosso corpo gesticula em direção a essa porta. O que mais me interessa é sondar a Porta do Não Retorno como consciência. A porta lança um feitiço de assombração na consciência pessoal e coletiva na Diáspora. A experiência Negra em qualquer cidade moderna grande ou pequena das Américas é assombrada. espaço
e
a
Adentramos
história
nos
um
espaço
precede.
A
e
a
história
história
já
nos
está
lá,
persegue;
adentramos
sentada
cadeira
na
um
nesse
espaço vazio, quando chegamos. Nossa posição social parece sempre se relacionar a essa experiência histórica. Os lugares onde as pessoas podem ser observadas se relacionam
a
essa
história.
Todos
os
esforços
humanos
parecem
emanar
dessa
porta. Como eu sei disso? Apenas por auto-observação, olhando apenas. Apenas
165
sentindo. Apenas por ser uma parte, ali sentada no espaço com a história”; ibid., pp. 39-40. Também me baseio no trabalho de Frank Wilderson, especialmente no livro
Red, White, and Black
, de 2010, em que o autor apresenta o argumento de que a
violência contra o Negro é gratuita, e não contingente; não se trata da violência que ocorre entre sujeitos no nível do conflito no mundo, mas da violência no nível de uma estrutura que demandou – na verdade, que inventou – que o Negro fosse o constitutivo exterior para aqueles que se construíam como
o
Humano.
19 Saidiya Hartman, “Vênus em dois atos”, trad. Fernanda Silva e Sousa e Marcelo R. S. Ribeiro. 20
M.
Revista Eco-Pós
, v. 23, n. 3, 2020, p. 15.
NourbeSe
Philip
(entrevista
a
Patricia
J.
Saunders),
“Defending
Confronting the Archive: A Conversation with M. NourbeSe Philip”.
the
Dead,
Small Axe
, v.
12, n. 2, 2008, p. 72.
Perder a mãe: Uma jornada pela rota atlântica da escravidão
21 Saidiya Hartman,
,
trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021; trad. modif.
The New York Times The New York Times American Literary
22 David Brooks, “The Underlying Tragedy”. 23 Id., “The Tel Aviv Cluster”. 24
C.
History
Sharpe,
“Blackness,
, 15 jan. 2010.
, 12 jan. 2010.
Sexuality,
and
Entertainment”.
, v. 24, n. 4, 2012, p. 828.
25 Em inglês:
I memember
. [N.T.]
26 Capital da região central de Gana, a cidade está localizada no Golfo da Guiné. Antes de ser nomeada Cabo Corso (Cape Coast) pelos portugueses e ingleses, um de seus nomes havia sido Oguaa, que significa “mercado” em fânti. [N.T.] 27 Em inglês:
negroes
negro
. Quando esse termo é usado, opto por grafar a palavra
(em inglês) e suas variações em itálico. [N.T.] 28
Apud
Boateng
M.
NourbeSe
Philip,
Zong!: As Told to the Author by Setaey Adamu
. Hartford: Wesleyan University Press, 2008, p. 210.
29 Katherine McKittrick, “Mathematics Black Life”.
The Black Scholar
, v. 44, n. 2,
2014. 30 T. Armstrong, “Slavery, Insurance, and Sacrifice in the Black Atlantic”, op. cit., p. 173. 31 Adam Hochschild,
Bury the Chains: Prophets and Rebels in the Fight to Free an
Empire’s Slaves Enterrem as correntes: Profetas e rebeldes na luta pela libertação dos escravos .
New
York:
Houghton
Mifflin
Harcourt,
2006,
p.
80
[ed.
bras.:
, trad.
Wanda Brant. Rio de Janeiro: Record, 2007].
Zong! The Zong: A Massacre, the Law and the End of Slavery
32 Apud M. NourbeSe Philip, 33
James
Walvin,
, op. cit., p. 211.
. New
Haven: Yale University Press, 2011, p. 107. 34
Volto-me
mais
detalhadamente
para
a
questão
da
singularidade
na
seção
chamada “O tempo”. 35 Dionne Brand, “Verso 55”. 36 Como Marcus Rediker e outros nos disseram, os capitães e a tripulação de todo e qualquer navio negreiro tinham de se preparar para todas as formas de “resistência
166
criativa”
dos
cativos;
M.
Rediker,
The Slave Ship: A Human History
.
New
York:
Penguin, 2007, p. 307. “Todo navio negreiro esperava enfrentar os perigos de seus cativos africanos”; J. Walvin,
The Zong
, op. cit., p. 107.
37 Helene Cooper, “Grim History Traced in Sunken Slave Ship Found off South
The New York Times
Africa”.
, 31 mai. 2015.
38 “‘Se a escravização é o fantasma na máquina do parentesco’, em parte ela o é porque,
sob
escravização,
sistema
e
signo,
ocorrem
atos
léxico-legais
de
transubstanciação em que o sangue se torna propriedade (com todos os direitos inerentes ao uso e gozo da propriedade), por um lado, e família, por outro”; C. Sharpe,
Monstrous Intimacies: Making Post-Slavery Subjects
.
Durham:
Duke
University Press, 2010, p. 29. 39
Gordon
Lewis,
“Through
the
Hellish
Zone
of
Nonbeing:
Thinking
through
Human Architecture: Journal of the Sociology of Self-Knowledge The Reaper’s Garden: Death and Power in the World of Atlantic Slavery Fanon, Disaster, and the Damned of the Earth”. , v. 5, 2007, p. 364.
40 Vincent Brown,
. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 159.
41 G. Lewis, “Through the Hellish Zone of Nonbeing”, op. cit., p. 364. 42 Ibid. 43 M. NourbeSe Philip escreve: “Muito cedo, desenvolvi a necessidade de saber os nomes das pessoas assassinadas, então acabei ligando para James Walvin, autor de
Black Ivory
, na Inglaterra, para perguntar se ele sabia como eu poderia localizá-los.
‘Ah, não’, o tom de sua voz é condoído, ‘eles não guardavam nomes’. Eu não… não consigo acreditar que isso seja verdade, e, mais tarde, me correspondendo com uma colega que está pesquisando e escrevendo um livro sobre o caso
Zong
, recebo a
cópia de um livro-razão mantido por um certo Thomas Case, um agente na Jamaica que fazia negócios com os proprietários do
Zong
. Algo típico dos registros mantidos
naquela época: os compradores são identificados, ao passo que as pessoas africanas são
reduzidas
à
seca
descrição
de
‘homem
negro
’, ‘mulher
negro sic ’ [
]
ou,
mais
frequentemente, ‘homem idem’, ‘mulher idem’. Há uma anotação à margem para a seguinte descrição: ‘Menina
negro
(magra)’. Há muitas meninas ‘magras’, não há
meninos ‘magros’. Os
homens,
as
mulheres
e
as
crianças
africanos
a
bordo
do
Zong
foram
despojados de todas as especificidades, incluindo seus nomes. Seu valor financeiro, no entanto, foi registrado e preservado por questões relacionadas ao seguro. Cada pessoa era avaliada em trinta libras esterlinas”; M. N. Philip,
Zong!
, op. cit., p. 194.
44 Ibid., p. 201. 45 Ibid. 46 Entrevista com a dra. Anne Gardulski; Cambridge, MA, 7 jul. 2014. 47 Toni Morrison,
Amada
[1987], trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007, p. 282. 48 June Jordan, “The Difficult Miracle of Black Poetry in America or Something like a Sonnet for Phillis Wheatley”, in
Some of Us Did Not Die: New and Selected Essays
.
New York: Basic Civitas Books, 2003, pp. 174-76.
167
49 Ibid., p. 176. Reconheço que o título de primeira pessoa Negra publicada no gênero poesia é de Jupiter Hammon. Wheatley é a primeira poeta Negra a publicar no que se tornarão os Estados Unidos. 50 Ibid.
The Civil Contract of Photography
51 Ariella Azoulay,
. New York/Cambridge: Zone
Books/MIT Press, 2008, p. 166. 52 Expando, aqui, o argumento que apresentei em
Monstrous Intimacies
. “Agassiz
foi um dos fundadores (ou um dos pais) da escola estadunidense de etnologia; ele foi
um
abolicionista
acreditava
na
escravização manifestas,
e
colaborador
inferioridade adotaram
seus
mensuráveis
no
africana
e
e
campo na
argumentos legíveis
emergente
superioridade
uma
da
ciência
europeia.
poligenéticos
que
inferioridade
racial,
Políticos
tentavam
Negra
que pró-
tornar
essencial
e
a
monstruosidade Negra, não a monstruosidade da escravização e das complicadas performances
Negras
daguerreótipos
(o
da
escravização
‘espelho
com
nem
a
violência
memória’)
da
lei
encomendados
e
do
olhar.”
pelo
E
“os
abolicionista
Agassiz que seriam usados para apoiar a escravização e para naturalizar e justificar a sujeição contínua de pessoas Negras na escravização e, por fim, fora dela”; C. Sharpe, 53
M.
Monstrous Intimacies
, op. cit., pp. 11-12.
NourbeSe
Philip
(entrevista
a
Patricia
J.
Saunders),
“Defending
the
Dead,
Confronting the Archive”, op. cit., p. 77. 54 Houve alguma controvérsia sobre o número de pessoas lançadas ao mar. Indico a discrepância em números aqui.
Zong! Saltwater Slavery: A Middle Passage from Africa to
55 Apud M. NourbeSe Philip, 56
Stephanie
Smallwood,
American Diaspora
, op. cit., p. 211.
. Cambridge: Harvard University Press, 2008, pp. 35-36.
Haitian boat
57 Pessoas refugiadas do Haiti que saem do país de barco. Em inglês:
people
. [N.T.]
58 Kaiama Glover, “Comments on J. Michael Dash’s ‘Hemispheric Horizons’”.
Caribbean Commons: Caribbean Studies in the Northeast U.S
The
., 20 jan. 2011.
59 Elizabeth M. DeLoughrey, “Heavy Waters: Waste and Atlantic Modernity”.
PMLA,
v. 125, n. 3, 2010, p. 708. 60 “Apesar da mudança na política, o Immigration and Naturalization Service (INS) [Serviço de Imigração e Naturalização] continuou a forçar o retorno de pessoas que haviam
deixado
o
Haiti
em
pequenos
barcos
–
mais
de
1.300
pessoas
foram
deportadas ao Haiti em maio, depois que a mudança na política foi anunciada”; “Clinton Changes us Policy on Haitian Refugees”.
Migration News
, v. 1, n. 5, jun.
1994.
Thirsty Amada
61 Dionne Brand, 62 T. Morrison, 63
Robert
Farris
. Toronto: McClelland and Stewart, 2002, p. 92.
, op. cit., p. 92.
Thompson
apud
Sterling
Stuckey,
“Slavery
and
the
Circle
of
Society and Culture in the Slave South Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy Culture”, in J. William Harris (org.),
. New
York: Routledge, 1992, p. 103; ver também Robert Farris Thompson,
. New York: Vintage, 1984.
168
64 R. F. Thompson apud W. Jeffrey Bolster,
the Age of Sail
Black Jacks: African American Seamen in
. Cambridge: Harvard University Press, 1998, p. 65.
65 Hortense J. Spillers,“Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book”, in
Black, White, and in Color: Essays on American Literature and Culture
. Chicago:
University of Chicago Press, 2003, p. 207. 66 As legendas dizem: “Criança ferida espera ser transportada para tratamento no
USNS
Comfort
”,
“Criança
espera
ser
evacuada
por
soldados
Aerotransportada do Exército dos Estados Unidos para o
da
82ª
Comfort
USNS
Divisão
em Porto
Príncipe, Haiti” e “Porto Príncipe, Haiti − 21 de janeiro: Criança espera ser evacuada por soldados da 82ª Divisão Aerotransportada do Exército dos Estados Unidos para o
usns Comfort
de
equipes
governos
e
de
em 21 de janeiro de 2010 em Porto Príncipe, Haiti. Aviões carregados resgate
agências
e
de
suprimentos ajuda
emergenciais
humanitária
chegaram
lançavam
uma
ao
Haiti
enorme
enquanto
operação
de
socorro após um forte terremoto que pode ter matado milhares. Muitos edifícios foram reduzidos a escombros pelo terremoto de magnitude 7 na escala Richter em 12 de janeiro”. 67 O fotógrafo, Joe Raedle, é dos Estados Unidos. 68 J. Jordan, “The Difficult Miracle of Black Poetry in America or Something like a Sonnet for Phillis Wheatley”, op. cit., p. 176. 69 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 208. 70 K. Glover, “Comments on J. Michael Dash’s ‘Hemispheric Horizons’”, op. cit. 71 Jack Shenker, “Migrants Left to Die after Catalogue of Failures, Says Report into Boat Tragedy”.
The Guardian
, 28 mar. 2012. Voltarei a esse assunto mais tarde nesta
seção e nas seções “O porão” e “O tempo”. 72 Ver, por exemplo, Marie Jenkins Schwartz,
Medicine in the Antebellum South
.
Birthing a Slave: Motherhood and
Cambridge:
Harvard
University
Press,
2010;
Barron H. Lerner, “Scholars Argue over Legacy of Surgeon Who Was Lionized, then Vilified”.
The New York Times
, 28 out. 2003; Caitlin Dickerson, “Secret World War ii
Chemical Experiments Tested Troops by Race”. Sophie
Kleeman,
“One
Powerful
How the West Talks about Ebola”.
Illustration
Mic
Morning Edition
Shows
, npr, 22 jun. 2015;
Exactly
What’s
Wrong
with
, 7 out. 2014; Kathryn Krase, “The History of
Forced Sterilization in the United States”. Our Bodies Ourselves.org, 1° out. 2014. 73 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 214. 74 Ibid., p. 206. 75 S. Hartman, “Vênus em dois atos”, op. cit., p. 2. 76 Michael M. Phillips e Christopher Rhoads, “Government Turns to Long-Term Needs”.
The Wall Street Journal
, 22 jan. 2010.
77 Mary Beth Sheridan e Manuel Roig-Franzia, “Haiti Slows Search for Survivors: Relief Effort Intensifies as Crisis Grinds on”.
Washington Post
, 22 jan. 2010.
78 K. McKittrick, “Mathematics Black Life”, op. cit., p. 17. 79 C. Sharpe, “Blackness, Sexuality, and Entertainment”, op. cit., p. 828. 80
Claire
Harris,
Fables from the Women’s Quarters
.
Editions, 1984, p. 38.
169
Fredericton:
Goose
Lane
81 Ibid., p. 36. 82 Ibid. 83
Bernard
Marie
A Dictionary of Literary Devices (Gradus, A–Z)
Dupriez,
.
Toronto/Buffalo: University of Toronto Press, 1991. 84 K. McKittrick, “Mathematics Black Life”, op. cit., p. 17. 85
M.
NourbeSe
Philip
(entrevista
a
Patricia
J.
Saunders),
“Defending
the
Dead,
Confronting the Archive”, op. cit., p. 77. 86 J. Jordan, “The Difficult Miracle of Black Poetry in America or Something like a Sonnet for Phillis Wheatley”, op. cit., p. 176. 87
Thomas
Jefferson,
Notes on the State of Virginia
[1785].
New
York:
Penguin
Classics, 1998, p. 147. 88 Elizabeth Alexander, “‘Can You Be black and Look at This?’: Reading the Rodney King Video”, in Thelma Golden (org.),
Contemporary Art
Black Male: Representations of Masculinity in
. New York: Whitney Museum of Art, 1995, p. 92.
89 Andrea Rosa e Colleen Barry, “Italy Divers Find ‘Wall’ of Bodies in Migrant Ship”.
Seattle Times
, 8 out. 2013.
90 Michel-Rolph Trouillot,
Silencing the Past: Power and the Production of History
.
Boston: Beacon, 1997, p. 15. 91 P. Khalil Saucier e Tryon P. Woods, “Ex Aqua: The Mediterranean Basin, Africans on the Move, and the Politics of Policing”.
Theoria
, v. 61, n. 141, dez. 2014, p. 18.
92 Sarah Stillman, “Lampedusa’s Migrant Tragedy, and Ours”.
The New Yorker
, 10
out. 2013. 93 Ibid. 94 Matthew Chance, “Lampedusa Boat Sinking: Survivors Recall Awful Ordeal”.
CNN, 9 out. 2013. 95 Gianluca Mezzofiore, “Lampedusa: Italian Fishermen ‘Abandoned’ Hundreds of African Migrants to Drown”. 96
Lizzy
Davies,
Umbilical Cord”.
International Business Times
, 3 out. 2013.
“Lampedusa
The Guardian
Victims
Include
Mother
and
Baby
Attached
by
, 10 out. 2013.
97 S. Hartman, “Vênus em dois atos”, op. cit., p. 14. 98 Id.; F. B. Wilderson
III,
“The Position of the Unthought”, op. cit., pp. 189-90.
99 Derek Walcott apud D. Brand,
Um mapa para a Porta do Não Retorno
, op. cit.
100 E. M. DeLoughrey, “Heavy Waters”, op. cit., p. 708. 101 Referência a Dasani Coates, que apareceu na matéria especial “Invisible Child”, no jornal
The New York Times
. Discuto essa matéria no capítulo 4, “O tempo”.
102 Para uma análise aprofundada do Mediterrâneo Negro, consultar P. K. Saucier e T. P. Woods, “Ex Aqua”, op. cit. 103 Bienal de Veneza. 104 Vivienne Walt, “Migrants Left to Die on the High Seas Continue to Haunt Nato”.
Time
, 17 abr. 2012; ver também Forensic Architecture, “The Left-To-Die Boat”, 2011;
forensic-architecture.org/investigation/the-leftto-die-boat. 105 Ian Traynor, “EU to Launch Military Operations against Migrant-Smugglers in Libya”.
The Guardian
, 20 abr. 2015.
170
106
“EU
Lemos:
to
Back
“Em
18
‘Boat-Destroyer’
de
maio
de
Mission
2015,
a
in
União
Mediterranean”.
Europeia
BBC,
aprovou
a
18
mai.
2015.
substituição
de
patrulhas humanitárias do Mediterrâneo por patrulhas militares”. 107 No momento desta tradução (2021), ainda sob o domínio do Estado francês. [N.T.] 108 Corina Creţu, “Mémorial
ACTe:
A Place of Remembrance and of Reconciliation”.
Comissão Europeia, 8 fev. 2015. 109 “Hollande Honours the Lives of Slaves at Caribbean Museum”.
France 24
, 10
mai. 2015. 110 No prólogo de
Homem invisível
, o narrador diz: “mas é assim que o mundo
caminha: não como uma flecha, mas como um bumerangue (acautelem-se contra aqueles
que
falam
espiral
de
da
história;
estão
preparando
mantenha à mão um capacete de aço)”; Ralph Ellison,
um
bumerangue;
Homem invisível
, trad. Mauro
Gama. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020, pp. 31-32. 111 “Ark of Return:
News
UN
Erects Memorial to Victims of Transatlantic Slave Trade”.
UN
, 25 mar. 2015.
112 Jocelyne Sambira, “Historic ‘Ark of Return’ Monument on Slavery Unveiled at the
UN”.
Africa Renewal
, 25 mar. 2015.
113 Charles Gaines, “Section 1: A Curriculum’s Contents”. Venice Biennale, Creative Time Summit, 2 ago. 2015.
1 “Justice for Albert Johnson”. Pushing Buttons, Pushing Stories, s/d. 2 Manthia Diawara, “One World in Relation: Édouard Glissant in Conversation with Manthia Diawara”. 3 Charlotte Delbo,
Nka, Journal of Contemporary African Art Nenhum de nós voltará Auschwitz e depois
, v. 28, n. 1, 2011, p. 4.
, in
,
trad.
Monica
Stahel. São Paulo: Carambaia, 2021. 4
M.
NourbeSe
Zong!: As Told to the Author by Setaey Adamu Boateng
Philip,
.
Hartford: Wesleyan University Press, 2008, p. 3.
One days water, water of want Nenhum de nós voltará Amada
5 Ibid., pp. 3-4. [N.T.: 6 C. Delbo,
.]
, op. cit.
7 Toni Morrison,
[1987], trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007, pp. 282-83. 8 Edwige Danticat, 9
Lizzie
Dearden,
Hierarchical Who Dies”. 10
Id.,
Krik? Krak! “The
System
New York: Vintage, 1996, p. 12.
Darker
Aboard
Independent
Your
Italy’s
Skin
Migrant
–
The
Boats
Further
That
Down
Governs
You
Who
Go:
Lives
The and
, 22 abr. 2015.
“Migrant
Boat
Disaster:
Ramming Vessel into Ship”.
Captain
Independent
Charged
with
Killing
Passengers
by
, 21 abr. 2015.
11 Id., “The Darker Your Skin”, op. cit. 12
Stephanie
Kirchgaessner,
Drowned in the Med”. 13
Jessica
Elgot
e
“Five
The Guardian
Matthew
Men
Charged
with
Murder
of
200
Migrants
, 7 ago. 2015.
Taylor,
“Calais
‘Dehumanising’ Description of Migrants”.
Crisis:
Cameron
The Guardian
171
Condemned
for
, 30 jul. 2015. Ver também
Jessica
Elgot
e
Patrick
Wintour,
“Calais:
Attempts to Enter Eurotunnel Site”. também
de
que
em
2008
Silvio
Man
Killed
as
The Guardian
Migrants
Make
1,500
, 29 jul. 2015. Lembremo-nos
Berlusconi
se
referiu
a
pessoas
imigrantes
sem
documentos como “exército do mal”; Malcolm Moore, “Silvio Berlusconi Says Illegal Migrants Are ‘Army of Evil’”.
The Telegraph
, 16 abr. 2008.
14 “Quotes from, and about, Nicolas Sarkozy”.
The New York Times
, 7 mai. 2007. A
Kärcher tem uma ressonância particular com as revoltas argelinas na França. [N.E.: Cité
des
4.000
é
um
distrito
da
comuna
francesa
La
Courneuve,
localizada
no
departamento de Seine-Saint-Denis, na região da Ilha de França.] 15 “Planos para abrigar requerentes de asilo em antigo quartel da ss localizado em um campo de concentração nazista estão causando controvérsia na Alemanha”; Justin
Huggler,
“Buchenwald
The Telegraph
Concentration
Camp
Immigration
Plan
Criticised”.
, 13 jan. 2015.
16
Yermi
Brenner,
Jazeera America
“Asylum
Seekers
Face
Increasing
Violence
in
Germany”.
Al
, 15 jun. 2015.
17
No
dia
8
de
abril
de
2014,
o
acampamento
na
Oranienplatz,
que
se
tornou
símbolo do movimento contra as duras leis de asilo e imigração na Alemanha, foi desmanchado. O movimento continua em outros âmbitos da sociedade alemã e europeia.
Em
outubro
de
2022,
comemoraram-se
os
dez
anos
do
movimento.
Angela Davis e Chico César foram algumas das pessoas presentes manifestando apoio ao movimento por direitos para pessoas refugiadas/imigrantes. [N.T.] 18 Daniel Trilling, “In Germany, Refugees Seek Fair Treatment”.
Al Jazeera
, 3 abr.
2014. 19 “Greek Police Spray Migrants with Fire Extinguishers”.
Al Jazeera
, 11 ago. 2015.
20 Fatou Diome apud Oumar Bar, “When Senegalese Writer Fatou Diome Kicked
Africa Is a Country Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America European Union Butt”. 21
Saidiya
, 29 abr. 2015.
Hartman,
. New York: Oxford University Press, 1997, p. 32.
22 Hortense J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book”, in
Black, White, and in Color: Essays on American Literature and Culture
. Chicago:
University of Chicago Press, 2003, p. 206; ênfase do original. 23 Em inglês: 24 Em inglês:
their non/status their non/being-ness
. [N.T.] . [N.T.]
25 Rinaldo Walcott, “Black Life-Forms”, in
Black Freedom
The Long Emancipation: Moving toward
. Durham: Duke University Press, 2021.
26 No encontro de Wright com a fileira desfigurada (ou acorrentada) de homens negros prisioneiros que ele, a princípio, não reconhece como homens, e sim como uma
fileira
de
transformados homens
que
elefantes
em
ele
outra
acorrentados
coisa
reconhece
–
não
como
acorrentados; Richard Wright,
em
uns
aos
homens,
homens
são
os
outros,
mas
em
brancos
tais
homens
elefantes. vigiando
são
Os
únicos
os
negros
Black Boy: A Record of Childhood and Youth
. New
York: Harper Perennial Modern Classics, 2007, pp. 57-58. 27 Joan Dayan, “Held in the Body of the State: Prisons and the Law”, in Austin Sarat e Thomas Kearns (orgs.),
History, Memory, and the Law
. Ann Arbor: University of
172
Michigan Press, 1999, p. 184. 28
Corruptela
do
português.
barraca
empréstimo catalã “
“Barracão”
–
forma
aumentativa
da
palavra
de
barracón
” (“cabana”) por meio da palavra espanhola
–
define um tipo de quartel historicamente usado para internar pessoas escravizadas ou criminosas. No comércio escravista no Atlântico, os indivíduos capturados eram temporariamente
transportados
e
mantidos
em
barracões
ao
longo
da
costa
da
África Ocidental, onde aguardavam o transporte através do oceano Atlântico. Os barracões variavam em tamanho e arquitetura, e a quantidade de tempo que as pessoas capturadas passavam dentro de um barracão dependia principalmente de dois fatores: sua saúde e a disponibilidade dos tumbeiros. [N.T.] 29 “Em novembro de 1994, […] o Departamento de Correção da Carolina do Norte emitiu um comunicado de imprensa anunciando que desenterrara, numa das suas instalações, uma relíquia do passado do sistema carcerário dos Estados Unidos. O comunicado
dizia
Correcional
em
parte:
Alexander
empilhadeira
para
“[O]
Conselho
determinou
retirar
a
jaula
Comunitário
que
da
a
lama
e
Guarda das
de
Recursos
Nacional
videiras.
O
do
Centro
usasse
piso
uma
original
de
aproximadamente 7,5 cm, um pequeno banheiro e barras de metal entrelaçadas são tudo
o
que
resta
da
jaula
de
prisão
onde
dormiam
doze
condenados”;
Dennis
Slaves of the State Black Incarceration from the Chain Gang to the Penitentiary South Atlantic Quarterly Childs,
:
. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2015.
30 J. K. Carter, “Paratheological Blackness”.
, v. 112, n. 4,
2013, p. 593. 31 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 209. 32
Fred
Moten,
In the Break: The Aesthetics of the Black Radical Tradition
.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003, p. 1. 33 “Ana-”,
Oxford English Dictionary
.
34 “12 Yr Old Girl Beaten by Police; Mistaken for a Prostitute”.
Daily Kos
, 11 fev.
2009. 35 Campeão estadunidense de luta livre profissional. [N.T.] 36 “Read Darren Wilson’s Full Grand Jury Testimony”.
The Washington Post
, 25 nov.
2014. 37
Lembremo-nos,
por
exemplo,
de
Tanya
McDowell,
presa
e
condenada
por
“roubar educação” para suas crianças, matriculando-as na escola com um endereço que
não
Prison”. 38
Ver
era
seu.
Daniel
Connecticut Post
Tepfer,
“Tanya
McDowell
Sentenced
to
5
Years
in
, 27 mar. 2012.
Kamau
versões
Ver
do
Brathwaite,
trabalho
de
“Dream
Haiti”.
Brathwaite
As
sempre
inovações apresentam
formais
e
as
dificuldades
diferentes para
sua
reprodução. 39 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 218; ênfase do original. 40
Jennifer
Slavery
Morgan,
Laboring Women: Reproduction and Gender in New World
. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004, p. 200.
41 Ibid. 42 T. Morrison,
Amada
, op. cit., p. 324.
173
43 Taylor Lewis, “Black Mother Found Dead in Jail Cell after Alerting Officials of Her Health Problems”.
Essence
, 29 jul. 2015.
44 Hortense J. Spillers, “Interstices: A Small Drama of Words”, in
in Color: Essays on American Literature and Culture
Black, White, and
. Chicago: University of Chicago
Press, 2003, p. 155. 45 Joy James, “Afrarealism and the Black Matrix: Maroon Philosophy at Democracy’s
The Black Scholar
Border”.
, v. 44, n. 2, p. 127.
46 H. J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe”, op. cit., p. 215.
Scenes of Subjection
47 S. Hartman,
, op. cit., p. 32.
48 Tim Hume, “Young Brothers, ‘Denied Refuge,’ Swept to Death by Sandy”.
CNN,
4
nov. 2021. 49 T. Morrison,
Amada
, op. cit., p. 284.
50 Jake Tapper, “William Bennett Defends Comment on Abortion and Crime”.
News
ABC
, 29 set. 2005.
51
A
American
Psychological
Association
divulgou
um
relatório
em
2014
que
concluiu: “Meninos negros de dez anos não são vistos sob a mesma luz de inocência da infância que seus pares brancos. Ao contrário, com muito mais frequência eles são vistos como mais velhos, são percebidos como culpados e enfrentam violência policial se acusados de um crime. […] Na maior parte das sociedades, crianças são consideradas inocência
e
um
a
grupo
distinto,
necessidade
de
a
elas
proteção.
são
atribuídas
Nossa
pesquisa
características constatou
como
que
a
meninos
negros podem ser vistos como responsáveis por suas ações em uma idade em que os meninos
brancos
ainda
se
beneficiam
da
suposição
de
que
as
crianças
são
essencialmente inocentes. A equipe de pesquisa utilizou questionários para avaliar o preconceito do grupo de participantes e a desumanização dos negros. A pesquisa constatou que participantes que associavam implicitamente pessoas negras com macacos Phillip
pensavam
Atiba
Goff,
Research Finds”.
que
crianças
“Black
Boys
negras Viewed
eram as
mais
Older,
American Psychological Association
velhas Less
e
menos
Innocent
inocentes”;
than
Whites,
, 6 mar. 2014.
52 “Um casal de adolescentes suspeito em uma onda de crimes de roubo de veículos e
cheques
furtados
em
todo
o
sul
do
país
foi
levado
sob
custódia
na
Flórida,
declararam autoridades do Kentucky no último domingo. Policiais da delegacia do condado de Grayson dizem em uma declaração que Dalton Hayes, de dezoito anos, e sua namorada de treze anos, Cheyenne Phillips, foram presos sem incidentes no domingo em Panama City Beach, por volta das 12:10, hora local. O casal escapara da polícia
em
vários
estados,
enquanto
aumentava
a
preocupação
sobre
seu
comportamento cada vez mais ousado. Alguns meios de comunicação descreveram o par como Bonnie e Clyde, os foras da lei da era da Depressão”; Associated Press, “Police Capture Teen ‘Bonnie and Clyde’ Suspected in a Trail of Crime”.
Times
Los Angeles
, 18 jan. 2015.
53 Quando se trata de pessoas Negras, pelo menos nos Estados Unidos, os únicos casos de crimes narrados como romance que vêm à mente são aqueles em que a pessoa criminosa é branca, a pessoa atacada é Negra, e o crime é escravização e estupro
na
escravização.
Nesses
casos,
a
questão
174
do
crime
é
suspensa
por
uma
gramática do amor. Penso em Thomas Jefferson e Sally Hemings como exemplo primordial. Esse caso é tão romantizado que, em um episódio da série
Homeland
, a
personagem Dana assina Sally em mensagens ao filho do vice-presidente, a quem ela chama de Thomas. 54 Charlie LeDuff, “What Killed Aiyana Stanley-Jones?”.
Mother Jones
,
nov.-dez.
2010. 55 “A promotoria observou que até o dedo no gatilho da submetralhadora constituía erro de operação”; Moreh B. D. K./Counter Current News, “Charges Dropped for Cop Who Fatally Shot Sleeping 7-Year-Old Girl”.
MPN News, 1 dez. 2014.
56 Rose Hackman, “‘She Was Only a Baby’: Last Charge Dropped in Police Raid that Killed Sleeping Detroit Child”.
The Guardian
, 31 jan. 2015.
57 Colchetes da autora. [n.e.] 58 “Read Darren Wilson’s Full Grand Jury Testimony”, op. cit. 59 Cornelius Eady,
Brutal Imagination
. New York: G. P. Putnam’s Sons, 2001, p. 5.
60 Rua onde Michael Brown foi assassinado. [N.T.] 61 Nicholas K. Peart, “Why Is the
N.Y.P.D.
After Me?”.
The New York Times
, 17 dez.
2011. 62 Wendy Ruderman, “For Women in Street Stops, Deeper Humiliation”.
York Times
The New
, 6 ago. 2012.
63 Id.; ênfase minha. 64 Ver The New York Civil Liberties Union (NYCLU), “Section 1 – Stop, Question And Frisks”, 1 abr.-30 jun. 2004. 65 “Are Police Going Too Far or Doing Their Job?”.
The Columbus Dispatch
, 2 ago.
2015. 66 W. Ruderman, “For Women in Street Stops, Deeper Humiliation”, op. cit.; ênfase minha. 67 N. Peart, “Why Is the
N.Y.P.D.
After Me?”, op. cit.
68 Julie Dressner e Edwin Martinez, “The Scars of Stop-and-Frisk”.
Times
The New York
, 12 jun. 2012.
69 Frederick Douglass,
My Bondage and My Freedom
[1855]. New York: Penguin
Classics, 2003, p. 92. 70
Kate
Taylor,
“Stop-and-Frisk
The New York Times My Bondage and My Freedom
Congregation”. 71 F. Douglass, 72
Dani
Policy
McClain,
Lives’,
Mayor
Tells
Black
, 10 jun. 2012. , op. cit., p. 92.
“Black
Women
Vilified
The Nation New York Times
Themselves in a New Film”. relata que “o
‘Saves
as
a
‘Lesbian
Wolf
Pack’
, 2 jul. 2015. O artigo da revista
Speak
for
The Nation
soltou uma manchete que implicava que um encontro
benigno dera errado porque uma mulher não conseguira relaxar: ‘Man Is Stabbed in Attack after Admiring a Stranger’”. 73 Colleen Long, “NYPD Program Patrols Inside Private Buildings”.
AP
News
, 11 mar.
2013. 74 Logan Burruss, “New York Police Sued over Residential Building Patrols”. mar. 2012. Ver também o relatório da
NYCLU
CNN, 29
[New York Civil Liberties Union – União
175
de
Liberdades
Challenges
Civis
NYPD
de
Nova
York]
sobre
a
ação
coletiva:
“Class
Action
Lawsuit
Patrols of Private Apartment Buildings”, 28 mar. 2012.
75 Wendy Ruderman, “Rude or Polite, City’s Officers Leave Raw Feelings in Stops”.
The New York Times
, 26 jun. 2012.
76 Helen A. S. Popkin, “On Facebook, Teacher Calls Kids ‘Future Criminals’”.
Today
,
5 abr. 2011. 77 John Hurdle, “A Hospital Offers a Grisly Lesson on Gun Violence”.
Times
The New York
, 2 jun. 2013. “‘Nosso objetivo aqui não é assustar vocês’, disse o sr. Charles.
‘Estamos apenas tentando oferecer educação.’” Apesar das garantias do sr. Charles, parece
que
o
programa,
como
grande
parte
da
educação
dos
Estados
Unidos
dirigida a pessoas negras e enegrecidas, segue precisamente o modelo de educação “do medo” como/no terror. 78
Cradle
to
Grave
Program,
2013.
Temple
University
Health
System,
Inc.;
templesafetynet.org/cradletograve; ênfase minha. 79
Frederick
americano
Narrativa da vida de Frederick Douglass, um escravo Narrativa da vida de Frederick Douglass e outros textos
Douglass,
[1845], in
, trad.
Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 80 J. Hurdle, “A Hospital Offers a Grisly Lesson on Gun Violence”, op. cit. 81 Ibid. 82 Cradle to Grave Program, op. cit. 83 Center for Nonviolence and Social Justice, 2014; drexel.edu/cnsj/. “Healing Hurt People (HHP) é o programa basilar do Center for Nonviolence and Social Justice.
HHP
é um programa centrado na comunidade, com sede em hospitais e projetado para reduzir lesões e retaliações entre jovens de 8 a 30 anos. O programa é afiliado ao setor de emergência do Hospital Universitário de Hahnemann e à Faculdade de Medicina da Universidade Drexel. No outono de 2009, o
HHP
foi expandido para o
Hospital Infantil St. Christopher, a fim de alcançar jovens entre 8 e 21 anos vítimas de violência. O
HHP
trabalha com pacientes que vêm do setor de emergência com ferimentos
intencionais (tiro, facada, agressão etc). O programa foi concebido por uma equipe interdisciplinar constituída por profissionais das áreas de medicina de emergência, clínica geral, psiquiatria, assistência social e psicologia, com ampla experiência na prevenção de violência e trauma. O
HHP
foi projetado para atender as necessidades
– físicas, emocionais e sociais – que as vítimas de violência enfrentam após terem alta do setor de emergência.” 84 Alex Kotlowitz, “The Price of Public Violence”.
The New York Times
, 24 fev. 2013.
85 Andrea Elliott, “Invisible Child: Dasani’s Homeless Life in the Shadows”.
New York Times
The
, 9 dez. 2013.
86 Embora o perfil do
Times
não tenha revelado o sobrenome de Dasani, ela foi
mais tarde identificada como Dasani Coates quando apareceu como convidada no juramento de posse de Leticia James como advogada pública da cidade de Nova York. 87
Desde
viviam
a
em
publicação Auburn
do
foram
artigo
sobre
transferidas
Dasani, e
sua
realocadas
176
família para
e
muitas
outros
outras
lugares.
que
Andrea
Elliott
e
Rebecca
R.
Ruiz,
“New
York
The New York Times
Homeless Shelters”.
is
Removing
over
400
Children
from
2
, 21 fev. 2014.
88 A. Elliott, “Invisible Child”, op. cit., ênfases minhas. 89
Simone
Browne
escreve:
“Se
tomarmos
a
escravatura
transatlântica
como
antecedente das tecnologias e práticas de vigilância contemporâneas, no que se refere a inventários de carga de navios e à criação de ‘desigualdades escaladas’ na
Brookes
identificação biométrica e esquemática do tumbeiro
, por meio da marcação
do corpo com ferros quentes, dos mercados de pessoas escravizadas e dos blocos de leilão como exercícios de poder sinóptico onde muitos assistiam a poucos, do passe de pessoas escravizadas e patrulhas, dos códigos negros e dos avisos de escravos fugitivos,
é
nos
expressivas
e
momentos
de
determinados liberdade
e
arquivos,
nos
textos
recusa atos
de
sugestões
e
nas
narrativas
criativos crítica.
produção de
de O
escravas
origem que
cultural,
alternativas
e,
negra
estou
que
formas
vezes,
podemos
discutindo
podemos
para
muitas
aqui
encontrar de
viver
nas
práticas
procurar é
que,
por com
performances
sob
uma
de
vigilância
rotineira que foi aterrorizante em seus efeitos”; S. Browne, “Everybody’s Got a Little Light under the Sun: Black Luminosity and the Visual Culture of Surveillance”.
Cultural Studies
, v. 26, n. 4, 2012, p. 547.
90 A. Elliott, “Invisible Child”, op. cit. 91 Ibid.
Proud Flesh Afrikan Journal of Culture, Politics and Consciousness 92
Sylvia
Wynter,
“
Inter/Views:
Sylvia
Wynter”.
ProudFlesh: New
, n. 4, 2006; ênfase minha.
93
Ver
Katherine
Schulten
e
Amanda
Christy
Brown,
“Reading
Child’”. The Learning Network: Teaching and Learning with
Club:
‘Invisible
The New York Times
, 12
dez. 2013. “Uma vez por semestre, escolhemos um artigo importante e aprofundado do
New York Times
que consideramos que deva ser lido por jovens e convidamos
qualquer pessoa de treze a dezenove anos para vir ao blog discuti-lo.
Temos
algumas
regras
básicas
para
esse
The Learning Network
evento,
que
chamamos
e
de
Reading Club, mas nosso principal objetivo é inspirar uma conversa reflexiva.” 94 Ver Colin Campbell e Ross Barkan, “Bloomberg Defends Homeless Policies while Calling Dasani Story ‘Extremely Atypical’”.
Observer
, 17 dez. 2013; ênfase minha.
95 William, “I, Too, Am One of the Estimated 22,000 Homeless Children in New York”.
The Guardian
, 1 jan. 2014.
96 Retorno aqui à entrevista de Maya Mavjee com Dionne Brand e à compreensão desta de sorte. Repito: “Se você tem sorte, passa o resto da vida lutando contra elas; se não, passa a vida absorvendo sem questionar”; D. Brand (entrevista a M. Mavjee), “Opening the Door: An Interview with Dionne Brand”. penguinrandomhouse.com, 2001. 97 J. Hurdle, “A Hospital Offers a Grisly Lesson on Gun Violence”, op. cit. 98 A. Elliott, “Invisible Child”, op. cit.
Brown
99 Nos Estados Unidos, o termo “
” se refere a pessoas pertencentes a povos e
etnias oriundos do sul da Ásia e do Oriente Médio (e a suas descendências). [N.T.] 100 Change.Org, Aisha Truss-Miller & Family with the Black Youth Project, 2012.
177
101 Essa citação é atribuída à professora Cathy Cohen. David Boroff, “Petition Urges President Obama to Visit Chicago in Wake of Hadiya Pendleton Murder”.
Daily News
New York
, 7 fev. 2013.
102 Barack Obama, “Obama’s Emotional Speech at Newtown Vigil”. abc News, 6 dez. 2012; ênfase minha. 103 Ver C. Sharpe, “Three Scenes”, in P. Khalil Saucier e Tryon P. Woods (orgs.),
Marronage: Ethical Confrontations with Anti-Blackness
.
Trenton:
Africa
On
World
Press, 2015. Reproduzo aqui parte do que escrevi nesse artigo. Simultaneamente ao evento
televisionado
assassinato
de
do
Estado
Christopher
da
Dorner,
União,
ocorreu
ex-policial
do
o
também [Los
LAPD
televisionado
Angeles
Police
Department – Departamento de Polícia de Los Angeles]. Dorner é acusado de matar três pessoas e, antes de a força total do estado da Califórnia ser mobilizada para caçá-lo
e,
por
fim,
queimá-lo
vivo,
Christopher
Dorner
também
acreditava
na
expressão que Obama usa tantas vezes: “uma união mais perfeita”. Enquanto eu prestava atenção ao Estado da União, esperava que a caça de Christopher Dorner também tomasse conta da programação. Assim como a caça ao carro branco de oj Simpson: uma inserção na parte inferior da tela. Ou que o espetáculo da “luta” para capturar
Dorner
–
embora
o
uso
de
duzentos
policiais
do
LAPD,
de
dez
outras
agências, de um veículo de remoção de neve, de helicópteros, de veículos blindados e de detectores de calor contra um homem dificilmente possa ser considerado uma luta;
trata-se
(para
citar
Baby
Suggs
no
romance
Amada
)
de
uma
debandada
–
substituísse completamente o espetáculo do discurso do presidente Negro. Tal é a ortografia
compulsiva
palimpsesticamente,
o
do
vestígio
fugitivo
que
escravizado
deve sobre
revigorar, a
e
inscrever
(im)possibilidade
de
o
presidente Negro falar. Para mais sobre o caso, ver Christopher Jordan Dorner, “Uncensored Manifesto from Retired
LAPD
Officer Christopher Dorner”.
Davey D’s Hip Hop Corner Gukira
, 7 fev.
2013. Ver também Keguro [Macharia], “Christopher Dorner’s Love Letter”.
With(out) Predicates
, 15 fev. 2013.
104
Dançarina
uniformizada
que
faz
coreografias
com
bastões,
incluindo
acrobacias, ao som de bandas marciais em desfiles. [N.E.] 105 Barack Obama, “Remarks by the President in the State of the Union Address”. The White House – President Barack Obama, 12 fev. 2013. 106
Michael
P.
Jeffries,
Unless It Takes on Race”.
“Obama’s
Chicago
The Atlantic
Speech
Can’t
Address
Gun
Violence
, 15 fev. 2013.
107 Barack Obama, “Text of President Obama’s Chicago Speech”.
NBC
Chicago
, 15
fev. 2013. 108 Id.; ênfases minhas. 109 Joy James, “Killing Mockingbirds: Cultural Memory and the Central Park Case”. Apresentação na Universidade Tufts, 20 fev. 2013. 110 Saidiya Hartman,
Perder a mãe: Uma jornada pela rota atlântica
, trad. José
Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 16; trad. modif. 111 A. Kotlowitz, “The Price of Public Violence”, op. cit.
178
112
Kara
Dreams Are Colder than Death
Walker,
,
dir.
A.
Jafa.
Estados
Unidos:
Pumpernickel Films/Very Special Projects, 2014; transcrição minha. 113 Id. (entrevista a Antwaun Sargent), “Interview: Kara Walker Decodes Her New
Complex Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São
World Sphinx at Domino Sugar Factory”. 114 C. L. R. James,
Domingos
, 13 mai. 2014.
[1938], trad. Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 27.
115 Leigh Raiford e Robin J. Hayes. “Remembering the Workers of the Domino Sugar Factory”.
The Atlantic
, 3 jul. 2014.
116 Colchetes da autora. [N.E.]
The Gift: Creativity and the Artist in the Modern World
117 Lewis Hyde,
. New York:
Knopf Doubleday, 2009. 118
Ver
C.
Sharpe,
Afterthoughts’”.
“Response
Lateral
to
Jared
Sexton’s
‘Ante-Anti-Blackness:
, n. 1, 2012.
119 J. James, “Killing Mockingbirds”, op. cit. 120 Essa é uma represália à exigência de Charlotte Delbo em
Nenhum de nós voltará
(op. cit.): “Tentem olhar. Tentem para ver como é”. Aqui, minha intenção é evocar aquilo que desafia os conhecimentos que nos fizeram aceitar – estruturados, para o povo preto, na recusa de um lugar ontológico da negridade.
1
Em
The weather
inglês:
.
Na
tradução,
optou-se
por
“tempo”
weather
momentos, por “clima”, para contemplar os sentidos de “
e,
em
alguns
”, bem como seus
usos e desdobramentos neste texto. [N.T.] 2 O
Alligator
, o
Voador
e o
Voadora
foram carregados em sua capacidade total com
crianças. Banco de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos; slavevoyages.org. 3 Banco de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos. 4 Toni Morrison,
Amada
[1987], trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007, p. 53. 5 Ibid., p. 54.
Thirsty it ‘let[s] loss
6 Dionne Brand,
. Toronto: McClelland and Stewart, 2002, p. 92.
7 Em inglês: “
’”. [N.E.]
8 Steven Weisenburger, “A Historical Margaret Garner”. “Quando Margaret tinha sete
anos,
a
família
Gaines
a
levou
como
acompanhante
a
uma
maratona
de
compras de dois dias em Cincinnati, uma estada em solo livre que se tornaria um ponto-chave de contenção legal em seu julgamento de pessoa escravizada fugitiva em 1856.” 9 T. Morrison,
Amada Who Speaks for Margaret Garner? , op. cit., p. 363; trad. modif.
10 Mark Reinhardt,
Minneapolis: University of
Minnesota Press, 2010. 11 Ibid., p. 134. 12 Edwidge Danticat, “We Are Ugly, But We Are Here”.
Caribbean Writer
, v. 10, 1996.
[N.E.: De acordo com Danticat, “Quando estavam escravizadas, nossas antepassadas acreditavam que, ao morrer, o espírito delas voltaria à África, mais especificamente a uma terra de paz que chamamos Guinin, onde os deuses e as deusas vivem”; id.]
179
13 T. Morrison,
Amada
, op. cit., p. 60.
14 Ibid. 15 Ibid.
Merriam-Webster Online Amada Um mapa para a Porta do Não Retorno: Notas sobre pertencimento 16
.
17 T. Morrison, 18
Dionne
, op. cit., p. 284.
Brand,
, trad. Jess Oliveira e floresta. Rio de Janeiro: A Bolha, 2022, p. 237.
19 Ibid., pp. 238-39. 20
Lizzie
Dearden,
Hierarchical Who Dies”.
System
“The
Darker
Aboard
Independent
Your
Italy’s
Skin
Migrant
–
The
Boats
Further
That
Down
Governs
You
Who
Go:
The
Lives
and
, 22 abr. 2015.
21 Ibid. 22 M. NourbeSe Philip,
Zong!: As Told to the Author by Setaey Adamu Boateng
.
Hartford: Wesleyan University Press, 2008, p. 201. 23 Dionne Brand, “Verso 55”. 24
M.
NourbeSe
Philip
(entrevista
a
Patricia
J.
Saunders),
“Defending
Confronting the Archive: A Conversation with M. NourbeSe Philip”.
the
Dead,
Small Axe
, v.
12, n. 2, 2008, p. 78. 25 No Brasil, a prática conhecida como chave de braço, chave de pescoço e mataleão também é controversa e espantosamente comum. Em 2019, Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga foi morto dentro do supermercado Extra, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, após ser sufocado por um segurança. [N.T] 26 Associated Press, “Los Angeles Police Reconsider Using Choke Hold”.
York Times
The New
, 2 set. 1991.
27 Ibid. 28 Caroline Bankoff, “The Chokehold Situation in nyc Is Not Good”.
New York
, 28
set. 2014. Ver também New York City Civilian Complaint Review Board, “A Mutated Rule: Lack of Enforcement in the Face of Persistent Chokehold Complaints in New York City (An Evaluation of Chokehold Allegations Against Members of the nypd from January 2009 through June 2014)”. 7 out. 2014. 29 Susanna Capelouto, “Eric Garner: The Haunting Last Words of a Dying Man”.
CNN, 4 dez. 2014. 30
Mary
M.
Chapman,
“Theodore
Shooting of Renisha McBride”.
Wafer
Sentenced
The New York Times
to
17
Years
in
Michigan
, 4 set. 2015.
31 Lizette Alvarez e Cara Buckley, “Zimmerman Is Acquitted in Trayvon Martin Killing”.
The New York Times Pele negra, máscaras brancas , 13 jul. 2013.
32 Frantz Fanon,
[1952], trad. Sebastião Nascimento;
colab. Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p. 238. 33 Owen Galea, “50 Migrants Die of Suffocation in the Hold”.
TVM, 26 ago. 2015.
34 Lundy Braun (entrevista a Hamza Shaban), “How Racism Creeps into Medicine”.
The Atlantic
, 29 ago. 2014.
35 Justin Roberts,
Slavery and the Enlightenment in the British Atlantic, 1750-1807
.
Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 195.
180
36 Ibid., p. 196. 37 Frantz Fanon,
A Dying Colonialism
[1959], trad. Haakon Chevalier. New York:
Grove Press, 1965, p. 65. 38 “Imaging”, 39
Richard
Oxford English Dictionary Cutting a Figure: Fashioning Black Portraiture .
Powell,
.
Chicago:
University of Chicago Press, 2008, p. xv.
Bound to Appear: Art, Slavery, and the Site of Blackness in Multicultural America 40 Huey Copeland,
. Chicago: University of Chicago Press, 2013.
41 Saidiya Hartman, “Human Rights and the Humanities”. National Humanities Center, 20 mar. 2014. 42 Deixo em suspenso aqui uma conversa sobre ética e fotografia. Kimberly Juanita Brown aborda esse assunto excepcionalmente bem em seu poderoso e difícil ensaio “Regarding the Pain of the Other”, de 2014. 43 Nicholas Mirzoeff,
The Right to Look: A Counterhistory of Visuality
. Durham:
Duke University Press, 2011.
The House That Race Built: Original Essays by Toni Morrison, Angela Y. Davis, Cornel West, and Others on Black Americans and Politics in America Today 44
Toni
Morrison,
“Home”,
in
Wahneema
Lubiano
(org.),
. New York: Vintage, 1998, p. 7.
45 Modifiquei esse enquadramento e parafraseei a resposta e a acusação indignadas de
Charlotte
Delbo,
em
Auschwitz e depois
,
para
pessoas
cristãs
e
outras
que
presumem “saber”. 46 Refiro-me aqui obviamente às mulheres escravizadas capturadas pela câmera de Zealy para Agassiz. Delia e Drana são as “nascidas no país” (ou seja, nascidas nos Estados Unidos, e não na Guiné ou no Congo). Elas são filhas de Renty e Jack, dois dos homens escravizados que também são capturados pelo processo fotográfico de Zealy. Desenvolvo esse caso no capítulo chamado “O navio”. 47
Still
,
termo
polissêmico
em
inglês,
é
traduzido
aqui
como
“ainda,
imóveis
e
silenciosas”. [N.T.] 48
Os
sete
Peabody
da
daguerreótipos Universidade
que
foram
Harvard,
na
recuperados década
de
em 1970,
uma
gaveta
incluem
do
Museu
imagens
dos
homens sentados e de pé, seminus e totalmente nus, de frente, de lado, de costas. As imagens das duas mulheres, as filhas, Delia e Drana, são delas de frente, com os vestidos caídos e puxados para o lado, meio escondidos. Nenhuma imagem delas nuas de frente, de lado nem de costas foi recuperada. Há, porém, imagens de uma mulher escravizada no Brasil, encomendadas por Agassiz, em que ela está baleada, capturada, presa, completamente nua, de frente, de costas, de lado. Não há razão para pensar que tais imagens de Delia e Drana não existem. Não há nada que as teria protegido disso. 49 T. Morrison,
Amada
, op. cit., p. 52.
50 Tento descobrir mais. Tento entrar em contato com o fotógrafo. Finalmente, entro em contato, novamente, com o [banco de imagens] Getty Images. Através dele,
pergunto
ao
fotógrafo
se
ele
sabe
o
que
aconteceu
com
aquela
menina.
Pergunto se havia outras pessoas lá esperando por evacuação com a palavra
Navio
afixada na testa. O Getty Images entra em contato com Joe Raedle e lhe transmite
181
minhas perguntas. Esta é a resposta que recebo: “A foto foi tirada perto das ruínas do palácio presidencial. Os militares dos Estados Unidos estavam usando a área como um local provisório para transferir pessoas feridas para o
USNS Comfort
em 21
jan. 2010 em Porto Príncipe, Haiti. Muitas outras pessoas também estavam sendo transportadas para o navio, mas eu não saberia quantas. Não sei onde ela está hoje; é
um
tiro
no
escuro,
mas
talvez
se
Christina
contatar
o
diretor
administrativo
principal da 82ª Divisão Aerotransportada ele possa ajudar”. 51 Tanzina Vega, “Schools’ Discipline for Girls Differs by Race and Hue”.
York Times
The New
, 12 dez. 2014.
52 Ibid. 53 Ibid. 54 Ibid. 55 Ibid. 56 Julie Dash,
Film
Daughters of the Dust: The Making of an African American Woman’s
. New York: New Press, 1992, p. 82.
57 Ibid., p. 84. 58 Ibid., pp. 16 e 25.
The Narrative of James Roberts: A Soldier under Gen. Washington in the Revolutionary War and under Gen. Jackson at the Battle of New Orleans, in the War of 1812: “a Battle Which Cost Me a Limb, Some Blood, and Almost My Life” 59 James Roberts,
,
[1858]. Chapel Hill: University of North Carolina, 2001. 60
John
Telegraph
Hiscock,
“Steve
McQueen:
‘This
Film,
for
Me,
Is
about
Love’”.
The
, 3 mar. 2014.
61 Colchetes da autora. [N.E.] 62 “Zabou, a personagem que ela interpreta, existe de verdade: ela mora em Gao e é uma
ex-dançarina
do
[cabaré
parisiense]
Crazy Horse
dos
anos
1960.
Ela
enlouqueceu e começou se vestir como no filme. Ela sempre tem um galo no ombro e fala um ótimo francês. Quando os jihadistas estavam em Gao, ela era a única que podia andar com a cabeça descoberta, a única que podia cantar, dançar, fumar e dizer-lhes
que
eram
‘cuzões’.
Em
outras
palavras,
tudo
o
que
foi
proibido
é
permitido quando alguém enlouquece. Ela é a personificação das mulheres que suportaram
a
luta;
daquelas
que
ousaram
resistir”;
Abderrahmane
Sissako.
Watershed. Conversations about Cinema: Impact of Conflict, jun. 2015. 63 T. Morrison,
Amada Fault Lines: Views across Haiti’s Divide , op. cit., pp. 41 e 60.
64 Beverly Bell,
. Ithaca: Cornell University
Press, 2013, p. 3. 65 Ibid., p. 4. 66 Estou me referindo, novamente, a Maurice Blanchot. 67 Fatou Diome apud Oumar Bar, “When Senegalese Writer Fatou Diome Kicked European Union Butt”.
Africa Is a Country
, 29 abr. 2015.
68 E. Danticat, “We Are Ugly, But We Are Here”, op. cit. 69 Jornal (sem nome) distribuído no Pavilhão Alemão da Bienal de Veneza de 2015. 70 D. Brand,
Um mapa para a Porta do Não Retorno
, op. cit., p. 39.
182
71 Ibid., p. 19. 72 Ibid., pp. 238-39. 73 Saidiya Hartman, “Vênus em dois atos”, trad. Fernanda Silva e Sousa. 23, n. 3, 2020, p. 15; trad. modif. 74 T. Morrison,
Amada
, op. cit., p. 152.
1 Trenton: Africa World Press, 2015, pp. 131-53. 2
The Black Scholar
, v. 44, n. 2, 2014, pp. 59-69.
183
Eco-Pós
, v.