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FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia MINISTÉRIO DA CIÉNCIA, TECNOLOGIA E ENSINO SUPERIOR
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nietzsche e pessoa •
ensaios edição
bartholomew ryan marta faustino antonio cardiello
SBD-FFLCH-USP
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LISBOA T I NTA -DA- CHINA
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RESPEITOU-SE A OPÇÃO ORTOGRÁFICA DE CADA AUTOR.
© 2016, Autores
e Edições tinta-da-china, Lda. Rua Francisco Ferrer, 6A 1500-461 Lisboa Tels.: 21 726 90 28/29/30 E-mail: [email protected] www.tintadaclúna.pt Título:
Nietzsche e Pessoa. Ensaios Organização: Bartholomew Ryan, Marta Faustino e Antonio CardielJo Autores: André Boniatti, Antonio Cardiello, Bartholomew Ryan, Eduardo Lourenço, Ernani Chaves, Fabrizio Boscaglia, Fernando Ribeiro, Filipa de Freitas, Gianfranco Ferraro,J oão Constâncio,Jerónimo Pizarro, Maria Filomena Molder, Maria João Mayer Branco, Marta Faustino, Oswaldo GiacóiaJúnior, Pablo Javier Pérez López, Richard Zenith Revi5ão: Tinta-da-china Capa: Tinta-da-china (P. Serpa) Composição: T inta-da-china 1.ª
edição: Fevereiro de 2016
ISBN: 978-989-671-298-3
Depósito Legal n.º 403239/i5
DEDALUS -Acervo - FFLCH
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ÍNDICE
Agradecimentos Siglas eformas de citação
II
13
INTRODUÇÃO
Intervalos, interseccionismos e apluralidade do sujeito
17
ESTROFE Eduardo Lourenço: Nietzsche e Pessoa
31
ANTÍSTROFE INTERVALO I: RAÍZES, REFERÊNCIAS E CONVERSAS
Bartholomew Ryan: Orpheu e osfilhos de Nietzsche: caos e cosmopolitismo Pablo ]avier Pérez López: Nietzsche em Pessoa: quatro referências inéditas e um quadro geral de presenças e leituras Antonio Cardiello: O devir-pagão e o regresso aos deuses Richard Zenith: Uma leitura nietzschiana de Pessoa e os heterónimos Fabrizio Boscaglia: Nietzsche, Pessoa e o is/ão: notas sobre a recepção de Der Antichrist por Fernando Pessoa
51
85 105
129
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INTERVALO II: ENTRE FILOSOFIA E POESIA
João Constâncio: Pessoa r!:t Nietzsche: sobre «não ser nada» 161 Oswaldo GiacóiaJúnior: «Única é a condição do Homem na linguagem» 185 André Boniatti: Apontamentos sobre a presença do pensamento de Nietzsche na poesia de Alberto Caeiro 203 Filipa de Freitas: Nietzsche, Kierkegaard e Pessoa: a existência do poeta 223 Ernani Chaves: Opoeta, a mentira, ofingimento 255 INTERVALO III: A ESTÉTICA DA PLURALIDADE
Maria Filomena Molder: A diferença entre outrar-se e tornar-se naquilo que se é MariaJoão Mayer Branco: Notas sobre a «estética não-aristotélica» de Nietzsche e Pessoa Marta Faustino e Antonio Cardiello: «Ainsi l'a!uvre d'art est la suprême explication de la Vie». O ideal estético de Nietzsche e Pessoa Gianfranco Ferrara: Inter nos. Elementos para uma arqueologia do si em Nietzsche e Pessoa Fernando Ribeiro: Pessoa e Nietzsche: um ensaio sobre a pluralidade do sujeito
269 299
321 353
367
EPODO Jerónimo Pizarro: Nietzsche e Pessoa: doze textos
Bibliografia geral Notas biográficas
42 3 441
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Em memória de Laurence Berry (r981-2015)
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Leave the letter that never hegins togo find the latter that ever comes to end, written in smoke and blurred by mist andsigned ofsolitude, sealed at night. -]AMES]OYCE
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AGRADECIMENTOS
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s editores gostariam de expressar o seu agradecimento às seguintes pessoas e instituições que, directa ou indirectamente, tornaram este livro possível: Ifilnova (Instituto de Filosofia da Nova) e NIL (Nietzsche International Lab), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em especial aos seus directores, António Marques e João Constâncio, respectivamente; FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), financiadora do projecto «A Pluralidade do Sujeito em Nietzsche e Pessoa» (EXPLIMHC-FILII514ho13), no seio do qual este livro surgiu. Um agradecimento especial é devido à equipa da Casa Fernando Pessoa, em particular à Clara Riso, à Inês Cunha e ao Ricardo Belo de Morais, pelo acolhimento e pela ajuda na organização da Conferência Internacional «A Pluralidade do Sujeito e a Crise da Modernidade», que decorreu em Fevereiro de 2015 e da qual resultou a maior parte dos textos presentes nesta colecção. Por último, gostaríamos ainda de agradecer à equipa da Tinta-da-china, em especial à Bárbara Bulhosa, à Inês Hugon e à Rita Matos, pelo apoio e encorajamento à publicação deste livro.
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SIGLAS E FORMAS DE CITAÇÃO I. Friedrich Nietzsche As referências a obras de Nietzsche são feitas a partir das seguintes edições:
KGW: 'Wérke: Kritische Gesamtausgabe, ed. G. Colli e M. Montinari, Berlim/Nova Iorque, de Gruyter, 1967-. KGB: Briefwechsel.· Kritische Gesamtausgabe, ed. G. Colli e M. Montinari, Berlim/Nova Iorque, de Gruyter, 1975-.
KSA: Siimtliche Wérke: Kritische Studienausgabe, ed. G. Colli e M. Montinari, Munique/Berlim/Nova Iorque, de Gruyter, 1980.
KS B: Siimtliche Briefe: Kritische Studienausgabe, ed. G. Colli e M. Montinari, Munique/Berlim/Nova Iorque, de Gruyter, 1986.
As referências são feitas de acordo com a lista de abreviaturas abaixo indicada, seguidas pelo número do capítulo ou ensaio (se existente) e aforismo (ex.: GC, 382 ou GM, III, 24). No caso em que os capítulos são intitulados, a referência é dada na sua forma portuguesa completa (ex.: EH, Porque Sou Tão Perspicaz, 1), regra que também se aplica aos discursos de Assim Falava Zaratustra (ex.: Za, Da Redenção). Os fragmentos póstumos são referidos através da indicação da edição utilizada, seguida pelos números do v_olume, da página e do fragmento (ex.: KSA 12.217, 5(71}). TEXTOS EDITADOS PELO PRÓPRIO NIETZSCHE
NT: O Nascimento da Tragédia (Die Geburt der Tragodie) EA: O Nascimento da Tragédia, Ensaio de Autocrítica (Versuch einer Selbstkritik)
CE: Considerações Extemporâneas (Unzeitgemiisse Betrachtungen) HH I: Humano, demasiado Humano, I (Menschliches allzumenschliches D
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NIETZSCHE E PES S OA
HH II: J-ft1111a110, demasiado 1-Iumrmo, II (Me11schlicbes allzumenschliches II) OS: Huma110, demasiadol-Iumano II: Miscelânea de Opiniões e Sentenças (Vem1ischte Meimmgen and Sprüche) VS: Humano, demasiado Humano II: O Viandante e a Sua Sombra (Der \Vanderer tmd sein Schatten) Au: Aurora (Morgenrote) GC: A Gaia Ciência (Die fró'hliche Wissenschaft)
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ENSAIOS
Za: Assim Falava Zaratustra p lníiio• , 1,cJ1 "Vill,tlit •lir-~e lodos 4Jf nlf'io• ~iolcnli'5 rl' flUIIHlíl.'I ,::1'0&~ini, - ~ por i.v;., 11 l~rtjl'I é dé. ,1u11l,1utr m 11t1,• i~ umo inlituiçüu mai... nol•rt: d~, 11ur o t:i.hulu, . ?\:io ~u 110~:,.M ~ tu palavros. ~Nu oind:1 d..: frl•tll'.ricu Xh•l0,tht-. um r,lõ'\flfo nm lh1 cm11li:11111lu )ll'IU Ji:rrji, c11t1jJi,·u, m,,.., 11ue 1m Ale• mnnha l' rnui.itkr.itlo (l.ll vu 11111i1 ilo IIUl.l rã. viu:-1,c- li' nn cr,n\r1uli('ÍÍO, no in1•~rlnci::a t.: u.- ~turi-
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O DEVIR-PAGÃO E O REGRESSO AOS DEUSES
mente objectivo»4 (BNP/E3, 24-65v; cf. Pessoa, 1968: 88). A estes três pilares, temos de acrescentar um quarto, menos explícito, que não se insinua apenas na chancela neopagã da obra de Pessoa, constituindo um aspecto nuclear de toda a sua estética: o sentimento do trágico que se liga aos três pressupostos, influenciando especialmente o segundo. O paganismo revisitado por Pessoa sacraliza e exalta um mundo de elementos telúricos, exuberantes e trágicos. Aspira a uma apropriação legítima do processo inventivo para aperfeiçoar a existência, pois a vida não basta para consagrar o indivíduo a algo suprapessoal, precisamente como acontecia nas tragédias gregas. A esse respeito, as palavras de Nietzsche, na quarta «Consideração Extemporânea», são uma síntese magistral ainda insuperada: O indivíduo deve ser consagrado a algo suprapessoal - é isto que a tragédia quer dizer; deve desaprender a terrível angústia que a morte e o tempo lhe causam enquanto indivíduo: pois mesmo no mais curto da sua vida pode aparecer-lhe algo sagrado que tenha mais peso do que toda a sua luta e carência - é a isso que se chama o sentido trágico da vida. (CE,
lV, 4 cit. in Constâncio, 2013= 359)
Como argumentaJoão Constâncio, Nietzsche defende que: a tragédia não reduz a natureza, o mundo, a existência, a vida a um nada. A tragédia cria admiração pela consagração da individualidade ao todo, cria até o desejo do sacrifício da individualidade pelo todo, e com isso faz
4 «O que distingue o paganismo greco-romano é o caráct_er firmemente _objectivo_que nele transparece, efeito de uma mentalidade, que, embora_ diferente nos c~01s_p~vos, unha de comum a tendência para colocar na Natureza extenor, ou num prmc1p10, embora abstracto, derivado dela, o critério da Realidade, o ponto da Verdade, a base para a especulação e para a interpretação da vida. [. .. ] Este objcctivismo a~soluto ?ºs gregos : dos romanos, que nos primeiros principalmente floriu na :spc~u~açao e na mte_r~retaça_o c~a vida, e nos segundos na segura experiência e compreensao pratica, ou, como cima um smte. excessivo, · que nos primeiros · · era ·mte t·1genc1a • · e e moça-o nos segundos - este t1co . ' , e vontade ' objcctivismo, >(Pessoa, 2009a: 193). O ~scrit_or,.po_rtugu,ês vinca, aliás, a contraposição entre o apogeu civilizacmnal i~larmco (seculos Ix-:,c111) e a decadência (a seu ver) da cristandade latina, ao escrever sobre o impulso dado pela civilização islâmica ~o ch~ado Renascimento europeu: «O primeiro estimulo resurrec1onal foi o ~os Ai:abes. Por elles primeiro accordou a barbarie medieval para a extS t encia profun, damente verdadeira da cultura grega.» (Pessoa, 2009a: 197). Considerada a importância da Grécia Antiga na formação e no pensamento dos dois autores, sublinhe-se a representação pessoana da civilização islâmica medieval enquanto custódia e transmissora à Europa da mentalidade e da cultura gregas antigas: «[os árabes) trouxeram o spirito grego até a Europa>>(Pessoa, 2009a: 227). Relativamente à civilização islâmica medieval na sua historicamente reconhecida8 obra de salvaguarda, integração e interpretação de elementos culturais de outras e antigas civilizações, Pessoa (2009a: 223) interessou-se particularmente pela actividade dos filósofos islâmicos9 medievais enquanto «transmissor(es} da ideação grega» e comentadores do pensamento de Aristóteles, principalmente na Península Ibérica, outrora al-Andalus, naquela «civilização arabe» peninsular que, segundo o próprio Pessoa (2002: 186), foi «notavel», e a que Nietzsche chamou «maravilhosa» (AC, 60), em Der Antichrist. A dominação islâmica em partes da Península durante a Idade Média (e. 711-1492) foi conotada por períodos de desenvolvimento cívicos e culturais que deixaram uma marca durante séculos na his7 Pessoa utilizou a palavra «~rabe», na maior parte dos casos e seguindo um costume das Letras portuguesas, num sentido abrangente e cientificamente pouco rigoroso para falar dos muç~lmanos e da ci~ilização islâmica em geral, e não apenas dos naturais d; Arábia ou dos r abofonos (Boscaglia, ~o 15: 44). So~re a «designação cómoda e genérica» de «Árabes» ~art s et/rdas JporltSugu:sas(, ve,a-se ª voz «Arabes na Península» no Dicionário de História de o ug~ e oe errao 1984-2000, vol. 1: 166). 8 Existe uma vasta literatura científica b , . cultural d E . so re eS t e tema. No que diz respeito à historia a uropa, ve1a-se ' por exemplo 0 t ra balh O d esenvolvido por Alessandro Aru fc10 ( ). 2007 9
Por volta de 1906, Pessoa escreveu fil , 1· um conto 1 osofico sobre este tema (Boscag ia, 5 9
20 13: 1 I-I o).
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NIETZSCHE, PE S SOA E O ISLÃO
tória e na cultura europeias.1º A este respeito, Pessoa interessou-se pelo al-Andalus, nomeadamente pelo seu legado literário, científico, filosófico e civilizacional, elogiando aquela que chamou a «nossa grande tradição arabe, de tolerancia e de livre civilização» (Pessoa, 2012: 71), numa passagem que parece devedora, já não do pensamento de Nietzsche, mas mais provavelmente das obras dos intelectuais portugueses da chamada Geração de 70, principalmente de Oliveira Martins. Este, na sua Historia da Civilisação Iberica (1880), tinha dedicado especial atenção à convivência entre judeus, cristãos e muçulmanos que se tinha dado no al-Andalus, enquanto aplicação das disposições do islão em matéria de tolerância religiosa. Retomando a nossa proposta de diálogo entre as obras de Nietzsche e Pessoa, considere-se que o apogeu cultural-civilizacional do al-Andalus (sobretudo na época califal omíada, e. 929-1031) é várias vezes elogiado por ambos, numa série de passagens em que novamente emerge o patente confronto, feito pelos autores, entre as virtudes da dominação islâmica e os vícios da sucessiva dominação cristã. Nietzsche elogia as «magnificencias raras e refinadas da vida mourisca», que «devia a sua origem a instinctos nobres, a instinctos de homem, porque affirmava a vida» (AC, 60) sendo que estes elementos são várias vezes retomados na representação nietzschiana da mentalidade muçulmana, constituindo um forte contraponto com a vileza atribuída pelo alemão aos costumes cristãos: 11
12
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No christianismo, os instinctos dos submissos e dos opprimidos collocam-se em primeiro termo[ ... ]. N'elle se despresa o corpo, a hygiene
Para um enquadramento sobre o legado do al-Andalus na Europa, veja-se o t rabalho de Juan Vernet (2006) . 11 Leia-se: «Dispozera este [o Profeta Mu ammad} que todos os sectarios do Livro sagrado - judeus, christãos - tivessem liberdade de culto, mediante pagamento de um imposto. (...} Segundo se vê, a tolerancia para com as religiões estranhas crescia á maneira que avançavam as conquistas [islâmicas].» - (Oliveira Martins, 1880: 65). . . 12 No original: «weil sie M anne r-lnstinkten ihre Entstehung verd~ kte, we1l s1~ zum LcbenJa sagte auch noch mit den seltnen und raffinirten Kostbarke1ten des mau nschen Lcbens!».
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NIETZSCHE E PESSOA
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ENSAIOS
'd ali'dade· a Egre,·a guarda-se até da limpeza (a pri· é repelh a como sensu · . . d'd d 1•5 da expulsão dos Arabes, foi o encerramento dos me1ra me 1 a epo banhos publicas dos quaes só Cordova possuia 270). (AC, 21)
A chamada Reconquista e, mais em geral, as Cruzadas13 são, logo representadas por Nietzsche como marco de opressão na história humanidade e nomeadamente perante a civilização islâmica: «essa civilização foi espesinhada (não digo por que pés;) {...} As cruzadas luctaram {...} contra alguma coisa que teriam feito melhor em adorar no pó, uma civilização que faria parecer até o nosso seculo x1x muito
d;
pobre e muito 'atrazado'» (AC 60). Pessoa aborda a chamada Reconquista cristã, bem como a sucessiva expulsão dos muçulmanos da Península, de uma maneira parecida: «Vinguemos a derrota que os do Norte infligiram aos arabes nossos maiores. Expiemos o crime que commetemos, expulsando da península os arabes que a civilizaram.» (Pessoa, 2012: 74); «(na Península Ibérica} cessou o elemento arabe superior de agir, e entrou a decadencia. Como foi rapida a passagem do scientismo ao proselytismo imperialista catholico-judaico, rapida foi a passagem da gloria á decadencia, do imperio á degeneração» (Pessoa, 2009a: 226). A Reconquista (logo, a sucessiva expulsão dos muçulmanos da Península pelos reis cristãos) é, desta forma, descrita pelos dois autores enquanto opressão e crime civilizacional. Além das palavras de Nietzsche, possivelmente ecoam nas frases citadas de Pessoa também as convicções de Antero de Quental (1871: 22), que em 1871 tinha falado da expulsão dos muçulmanos (e judeus, nomeadamente em Portugal, pelo rei D. Manuel, em finais do século xv) como «calamidade nacional». A proximidade entre Pessoa (1912: 139) e o seu
13 Costuma-se chamar Cruzada cada uma das empresas militares conduzidas pelos cristãos, sob o impulso da Igreja Católica Romana, para reconquistarJerusalém aos muçulmanos ~ para combater heréticos ou não cristãos. O período das Cruzadas é habitualmente considerado entre 1095-1272. Contudo, existiram oficialmente Cruzadas entre os séculos XIV e xv,~,, _principal'.11_ente enquadradas no âmbito da competição geopolítica entreª Europa cmta e o Impeno Otomano (Cardini, 1999).
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NIETZSCHE, PESSOA E O ISLÃO
«precursor» Antero é ainda reforçada se pensarmos que os dois, ao contrário de Nietzsche, falam enquanto pensadores ibéricos. Para eles, o muçulmano do al-Andalus não é ontologicamente outro nem epistemologicamente oriental. Ao invés, os muçulmanos peninsulares são para Pessoa (2012: 74) os «nossos maiores», sendo representados por Antero (1871: 22) enquanto nobres referências culturais endógenas, «a quem a industria e o pensamento peninsulares tanto deveram». Nas referidas passagens de Pessoa e Antero, o elemento arábico-islâmico é considerado mais como o próprio ibérico (logo, português) do que como o outro oriental. Por esta razão, estas suas considerações sobre a civilização islâmica no al-Andalus não se enquadram plenamente, a meu ver, no paradigma orientalista codificado por Edward W Said no seu estudo fundamental, intitulado Orientalism (!979, em que se torna patente que o «Orientalismo é um estilo de pensamento baseado numa diferença ontológica e epistemológica estabelecida entre 'o Oriente' e (na maioria dos casos) 'o Ocidente'» (Said, 2004: 2-3). A este respeito, é interessante notar que, apesar de Nietzsche não ser ibérico, ele também parece ter sentido uma proximidade psíquico-civilizacional com a «maravilhosa civilização arabe de Hespanha», que considerava «mais proxima em summa dos nossos sentidos e dos nossos gestos do que Roma e Grecia» (AC, 60). Aliás, como assinala Almond (2010: 189), o próprio Nietzsche reivindica (numa carta, possivelmente não lida por Pessoa) a vantagem epistemológica de se identificar com a mentalidade e a cultura islâmicas, para olhar e conhecer a Europa de uma perspectiva privilegiada: «Eu quero viver durante um bom tempo entre os muçulmanos, onde a sua fé for mais devota; isso irá aguçar o meu olhar e julgamento sobre tudo o que é europeu»'4 • Este «outramento» civilizacional poderia ser comparado com algumas despersonalizações (quase) heteronímicas
14 Tradução nossa. No original: «Ich will unter Muselmãnnern eine ~te Zeit_leben, u~d zwar dort, wo ihr Glaube jetzt am strengsten ist: so wird sich wohl mem Urthe 1l º nd mem Auge für alies Europiiische schiirfen» (Carta a Kõselitz, 13 de março de i88x, KSB 6 -68),
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NIETZSCHE E PES SO A
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ENSAIOS
de Pessoa (2013: 491-492; 2008): a invenção, por vol~a de 1916, do autor fictício Hadji-Muhrad 15; e, sobretudo, a produçao de Rubaiyat (quadras) à maneira de Omar J(hayyam'6 e dos poetas persas medie, vais, aliás também lidos por Nietzsche 17• O esforço especulativo dos dois pensadores foca-se diversas vezes na tentativa de definir a mentalidade arábico-islâmica. Como vimos, . o alemão descreve e elogia principalmente o refendo elemento viril e vitalista do islão, incorporando esta questão na sua crítica ao cris, tianismo, considerado mórbido. No que diz respeito a Pessoa (2012: 83, 72), este considera o psiquismo «arabe» «intenso» e «rude», consti, tuindo uma síntese entre «subjectivismo» (introspeção e imaginação) e «objectivismo» (observação e atenção ao exterior; este elemento, segundo Pessoa, seria herdado pelos muçulmanos do legado cultural grego, e absorvido e incorporado pela civilização islâmica durante a Idade Média) (Pessoa, 2009a: 225). As perspectivas de diálogo entre as duas teorizações sobre a mentalidade arábico-islâmica abrem-se principalmente ao considerarmos as suas articulações com as ideias de fado e fatalismo, fulcrais no pensamento de ambos (e merecedoras, em si, de uma comparação mais aprofundada, que aqui não será desenvolvida). Com efeito, em Nietzsche, a referida mentalidade viril (comum a muçulmanos e outros povos, mas não aos cristãos, segundo ele) está normalmente ligada à atitude de plena e vitalista aceitação do destino («[ ... ] chamavam-nos fatalistas. A nossa fatalidade - era a plenitude, a tensão[...] » [AC, d) e, portanto, ao amor fati (amor ao destino) enquanto tópico central do pensamento nietzschiano18• A este respeito, note-se que, nos textos de Pessoa sobre o islão 15 Nome de_ militar -~aucásico que viveu entre 1790 e 1 g52 e foi protagonista de urn romance de L1evTolsto1 publicado em 1912. ~ Na biblioteca parti:ular d~ ~cssoa encontram-se algumas edições da obra poética de ªYYªn:1• entre as quais Rubaiyat of Omar Khayyám, na tradução de Edward Fitzgerald (r910 (re1mpr. post março de 1928]) (CFP g_ ) 296 1 7 . Nabbiblioteca particular de Nietzsche enco~tra-se um livro de Friedrich Georg Dau· mcr Sso bre Hafiz (1846) (cf·.Campioni; · · D'Ion·o; Fornari; Fronterotta & Orsucci, 200): 178)· i8 o re este tema em Nietzsche , cf· Han- p 1·Je, 2009: 224-261.
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NIETZS C HE, PESSOA E O IS L ÃO
(Pessoa, 2 oo9a: 225), 0 fatalismo pelo qual os muçulmanos teriam desenvolvido um «conceito da vontade divina como fatalidade> >, é um elemento globalmente valorizado (numa reinterpretação e num distanciamento do estereótipo fatalista-orientalista) enquanto componente (da ~eligiosidade «arabe») «herdada» dos gregos, que Pessoa tanto admirava: O determinismo é apenas a timidez do fatalismo. Todas as civilizações scientificas - que são duas, a grega e a arabe, foram profundamente fatalistas. [ ...} A Grecia e os Arabes foram os maiores astrologos ( ...]. A sciencia culmina na Astrologia. O auge da sciencia é o reconhecimento de que nada existe fora da lei: que tudo < t >vive no Destino. (BNP/E3, 55D-77')'9
Num outro escrito de António Mora, contudo, o «fatalismo pesado, lethal» (ou «fatalismo da decadencia arabe») é indicado como um dos «elemento inferiores» do «spirito arabe» (Pessoa, 2009a: 226). Mora recupera aqui o elemento orientalista, sendo que o fatalismo «arabe» já não é por ele interpretado como o elemento pagão válido herdado pelos gregos, mas sim como um resíduo parcial, longínquo e decadente daquele mesmo elemento. Marcando agora um possível elemento de desencontro entre as teorias da civilização nos dois pensadores, note-se: enquanto a «disposição favorável de Nietzsche perante o islão» º está, segundo Almond (2010 : 153), relacionada com o facto de a civilização islâmica, enquanto não cristã, ser pré ou anti ou não europeia, isto é,pré ou anti ou não moderna, em Pessoa a mesma civilização tem, como se pode intuir pelo que foi acima referido, um alto mérito, pelo próprio facto de ter contribuído, durante a Idade Média, para a formação da cultura europeia e da modernidade, através da salvaguarda e transmissão de mentalidades, ideias e conhecimentos (sobretudo da 2
rr. d ,· nti' t tilado ((Cinco Dialogos», que se 19 1rata-se de uma passagem o texto pessoanO ' 28 encontra no esp ólio de Pessoa (BNP/E3, 55D-76' a 77') (cf. Pessoa, i9So: 3i7-dJ )· , . . N' 1 , e r·ible disposition towar s 1s1am». 20 fradução nossa. No o n gmal: 1etzsc 1c s iavou · (
>(AC, 60). Nos escritos de Pessoa aqui abordados, 0 islão é considerado sobretudo como uma civilização que conseguiu, durante uma fase de decadência medieval da cristandade, impulsionar cultural e civilmente a Europa, na transição entre a Idade Média e O Renascimento 0 que permitiu a formação da Europa moderna - uma Europa qu~ Pessoa desejava que fosse tolerante perante as outras culturas e que considerava, a este respeito, parcialmente devedora da própria civilização islâmica, resgatada por Pessoa enquanto componente fulcral de um discurso identitário e civilizacional em que o al-Andalus tem um papel consistente: «[A] nossa grande tradição arabe, de tolerancia e de livre civilização. E é na proporção em que formos os mantenedores do spirito arabe na Europa que teremos uma individualidade àparte.» (Pessoa, 2012: 71). Os elementos aqui brevemente apresentados evidenciam algumas pistas comparativas particularmente dialogantes (nomeadamente sobre al-Andalus e mentalidade arábico-islâmica) e outras em que se nota um distanciamento de fundo entre os dois autores, sendo que em Pessoa se observa, além da possível presença de Nietzsche, também a continuidade com uma tradição do pensamento português (aqui foi mencionada a Geração de 70, entre outras referências). Relativamente a um autor que foi lido por ambos, poder-se-á pensar comparativamente a presença de Goethe - central em Nietzsche - , nomeadamente do seu West-Ostlicher Diwan (1819), que Pessoa terá parcialmente lido numa tradução francesa (1090: 126-132)2 2 , presente na sua biblioteca particular. Para finalizar, e considerando os elementos apresentados, existem razões para se considerar possível que Der Antichrist de Nietzsche tenha sido parte da bagagem bibliográfica que acompanhou Pessoa na sua escrita filosófica e neopagã sobre o islão, e mais concretamente 22
Livro presente na biblioteca particular de Pessoa (CFP, 8-223). Cf. Anexo.
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pela caneta do (quase) heterónimo António Mora, em 1?16, aquando da primeira publicação do referido livro em P~rtugal. E igualmente possível que Pessoa tenha consultado a mencionada edição portu, guesa. Contudo, não se pode excluir que esta tenha sido apenas uma entre as edições de Der Antichrist que Pessoa poderá ter lid º· O livro do filósofo alemão terá participado, juntamente com livros de pensadores portugueses (e ainda com obras paradigmáticas do orientalismo europeu) 23, das leituras através das quais Pessoa tomou conhecimento acerca da civilização islâmica e que tiveram um papel referencial, directa ou indirectamente, nos caminhos da sua escrita sobre árabes, persas e o islão.
23 Além das referências já mencionadas co . Theodor Nõldeke (Boscaglia, 2 0 12)_ ' nsidere-se a obra do orientalista alemão
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NIETZSCHE, PESSOA E O ISLÃO
C1A.nexo
Lf! l)IVAN OKIENT AL-OCClbENT·AL HÉGIRE Lo Nord, l'Ouest ot Jo Sud éclatont: ]os trônes s'efJondr~-nt-,
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los cmpiros croulent ; fuis, vn. dn.ns le pur Orient rcspi~r l'àir dcs pn.t,riMch es; dans l'mnour, l'ivresse et lo cha.nt, ]a. sonrcc dá Chisor ( 1) t-e rajounira. •· · '
TA dans la pureté ot la justice, jo veux· romontor jusqu'a.u·x ·. origines eles ra.ccs hunÍaines. jusqu'à. ces tomps elles rl'ce- • _ Yaiont, cncoro do Dicu la Véritó célosto do.na les Jangues ter-~ , ·-'.- · rostr(8 ot no RC crousn.ient pas l'f sprit; . . . . '. . -: A ocs temps 0 11 cllcs révérn.ient les aieux, défendaient tout ··, · culto étmngor. Jc voux prenclre pla.isir à ces mafurs pri_niitjves , :·.'· ~es promiors âgcs ;. une vnst_c 'roi, pensée étroite, éta:en__t . . . alors importantes commo la. parolo, parce qu'olle_ était -une. _. -:.,parolo prononcéc. _ · ~ ,· J o vem:: mo mêlor aux bcrgcrs, me rn.fra.ichir ·c1ans 1'o~i1.1? ; ;:· alJant n.,·oc lcs cn.rn,vancs et- foisa.nt lc tra.fic des scha.11s,· du·~ ·_. , '_ ciúé ot d e mnsc; jo veux fouler chaquo son~iey, du dés, in: Natureza Humana, n.º 3(1), jan-jun 2001, pp. 51-59. PESSOA, Fernando, Obra Poética, organização, introdução e notas de MariaAliete Galhoz, Rio de Janeiro, CompanhiaAguilar Editora, 1965. PESSOA, Fernando, Textos Filosóficos, vol. I, Lisboa, Ática, 1968. PESSOA, Fernando, Livro do Desassossego, Lisboa, Ática, 198 2 . PESSOA, Fernando, Correspondência: 1923-1935, org. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999. , . org. Ma na • AI'te te Galhoz • Rio de Janeiro, Nova PESSOA, Fernando, Obra Poettca, Aguilar, 2004. (201]
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NIETZSCHE E PESSOA j ENSAIOS
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APONTAMENTOS SOBRE A PRESENÇA DO PENSAMENTO DE NIETZSCHE NA POESIA DE ALBERTO CAEIRO ANDRÉ BONIATTI
A PRESENÇA DO PENSAMENTO NIETZSCHIANO na obra de Fernando i l Pessoa há muito sofre investigações, direta e indiretamente, desde nomes que trazem o tema para dentro de projetos interpretativos mais gerais - como George Rudolf Lind, na explanação que faz em Teoria Poética de Fernando Pessoa (1970), na qual discorre sobre as diversas vozes que se mensuram na obra do «supra-Camões»; e Américo Enes Monteiro, quando investiga a influência nietzschiana em Portugal em sua tese de doutoramento intitulada A Recepção da
Obra de Friedrich Nietzsche na Vida Intelectual Portuguesa (I832-I939) (1997), a trabalhos mais específicos, que dão nome ao grande tema, anunciando-o e divulgando-o, como o artigo publicado em 1987 pelo professor Eduardo Lourenço (talvez a citação primeira que, com propriedade, suscite a temática como centro), fruto de um colóquio em celebração dos cem anos do projeto de transmutação de todos os valores implementado (ou almejado) pelo filósofo, no qual se denunciam, magistralmente, os principais problemas da inter-relação. Anos mais tarde, António Azevedo, em sua dissertação de mestrado concluída no ano de 2001 e publicada em 2005, com o título
Pessoa e Nietzsche: Subsídios para Uma Leitura Intertextual de Pessoa e Nietzsche, tratará de maneira mais ampla o problema, investigando de forma metodológica desde a biblioteca pessoal de Fernando Pessoa ao seu acervo de leituras escritas pelo filósofo ou que se referem ª ele, clamando vários dos heterônimos e desenvolvendo-os media~te os autores já citados, os quais comenta; incluindo ainda um artigo
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APONTAMENTOS SOBRE A PRESENÇA DO PENSAMENTO DE NIETZSCHE NA POESIA DE ALBERTO CAEIRO ANDRÉ BONIATTI
A PRESENÇA DO PENSAMENTO NIETZSCHIANO na obra de Fernando Il.. Pessoa há muito sofre investigações, direta e indiretamente, desde nomes que trazem o tema para dentro de projetos interpretativos mais gerais - como George Rudolf Lind, na explanação que faz em Teoria Poética de Fernando Pessoa (1970), na qual discorre sobre as diversas vozes que se mensuram na obra do «supra-Camões»; e Américo Enes Monteiro, quando investiga a influência nietzschiana em Portugal em sua tese de doutoramento intitulada A Recepção da Obra de Friedrich Nietzsche na Vida Intelectual Portuguesa (1832-1939) (1997), a trabalhos mais específicos, que dão nome ao grande tema, anunciando-o e divulgando-o, como o artigo publicado em 1987 pelo professor Eduardo Lourenço (talvez a citação primeira que, com propriedade, suscite a temática como centro), fruto de um colóquio em celebração dos cem anos do projeto de transmutação de todos os valores implementado (ou almejado) pelo filósofo, no qual se denunciam, magistralmente, os principais problemas da inter-relação. Anos mais tarde, António Azevedo, em sua dissertação de mestrado concluída no ano de 2001 e publicada em 2005, com o título Pessoa e Nietzsche: Subsídios para Uma Leitura Intertextual de Pessoa e Nietzsche, tratará de maneira mais ampla o problema, investigando de forma metodológica desde a biblioteca pessoal de Fernando Pessoa ao seu acervo de leituras escritas pelo filósofo ou que se referem a ele, clamando vários dos heterônimos e desenvolvendo-os mediante os autores já citados, os quais comenta; incluindo ainda um artigo (203]
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do professor Fernando Segolin, escrito para um congresso de estudos pessoanos, que recorta como tema Caeiro e Nietzsche: Da Crítica da Linguagem à Anti-Filosofia e à Anti-Poesia (!990), interpretando as similitudes existentes entre ambos em relação ao erro da linguagem enquanto suporte para um absoluto, na fé de que esta, em sua logicidade, revele verdade, ou que demonstre efetividade em descrever ou conceituar. Ora, muito resumidamente, ao tempo que Nietzsche percebe que tanto a retórica socrática, a dialética, a organização discursiva argumentativa, quanto a matemática, o mecanicismo contra o qual se levanta, em sua racionalidade, são meros signos de interpretação humana - apontando nessa supravaloração da razão, desde Sócrates, um desvio negativo no desenvolvimento da humanidade, que a levaria à doença e à decadência - , Caeiro sofrerá face à incompatibilidade que se firma entre o real e a sua expressão por meio de signos representativos, ou seja, entre a linguagem e a «natureza natural», incapazes que são as palavras de descreverem-na ou, simplesmente, comunicarem-na, sem deformações, apercebendo-se de que, em vez de anunciarem-na, vesti-la-ão, falsificando-a. Tal o leva, ademais, à insistente recusa do método filosófico e da metafísica e à negação da poesia mística, falsa e envolta em artifícios - é claro que contradito riamente. [... ] embora a linguagem [...] não possa ir além de sua rudeza e continue a falar em oposições, onde há somente degraus e uma sutil gama de gradações; embora a arraigada tartufice da moral, que agora pertence de modo insuperável a «nossa carne e nosso sangue», chegue a nos distorcer as palavras na boca, a nós, homens de saber: de quando em quando nos apercebemos, e rimos, de como justamente a melhor ciência procura nos prender do melhor modo a esse mundo simplificado, completamente artificial, fabricado, falsificado, e de como, involuntariamente ou não, ela ama o erro, porque, viva, ama a vida! (BM, 29) Só a natureza é divina, e ela não é divina ...
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AP O
NTAMENTOS SOBRE A PRESENÇA DO PENSAMENTO DE NIETZSCHE ...
Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens Que dá personalidade às cousas, E impõe nome às cousas. (Pessoa, 1997: 21 8) [...) não há vantagens em pôr nomes errados às cousas, Nem mesmo em lhes pôr nomes alguns. (Pessoa, 2005: 109) Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, A nós, que não sabemos dar por elas. Mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para que vivem Nem saber que o não sabem? (Pessoa, 1997: 207) E há poetas que são artistas E trabalham nos seus versos Como um carpinteiro nas tábuas! ... Que triste não saber florir! Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro E ver se está bem, e tirar se não está!. .. Quando a única casa artística é a Terra toda Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma. (Pessoa, 1997: 222)
As obras supracitadas serão alguns dos principais estudos, atentando-nos apenas à bibliografia escrita em língua portuguesa, até ao momento publicada e por nós alcançada. O suficiente, entretanto, para entendermos a problemática já em certa amplitude (205]
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desenvolvida, não nos deixando dúvidas de que as relações por nós propostas se evidenciam. Acerca de tais evidências, cabe adernais trazer à tona o que nos incita a crer Monteiro (r997), ao afirrnar que a influência filosófica de Nietzsche será percebida não apenas no poeta dos heterônimos, mas mais vastamente na geração do pri~ meiro modernismo, [...J determinada sobretudo pelo seu inconformismo com o actual, pela sua incompatibilidade com o vulgar e pela insuflação do espírito anarquista, libertário e vitalista, que os anima, ou não fosse Nietzsche o arauto da modernidade, por antonomásia. O facto de os primeiros modernistas terem escolhido para título do órgão difusor das novas tendências estéticas o nome de Orpheu é bem revelador das suas opções, visto ele andar frequentemente associado ao deus Dioniso. Segundo alguns, Orfeu seria a encarnação do próprio Dioniso; segundo outros, ele era apenas seu colaborador na fundação dos mistérios de Elêusis, e ainda segundo outros, sacerdote e ministro do culto orgiástico. Após a perda de sua mulher Eurídice, morta pela mordedura duma serpente, nunca mais se interessou por outras mulheres. Por isso mesmo, estas, despeitadas, assassinaram-no durante uma orgia dionisíaca. Orfeu é frequentemente representado como músico exímio, capaz de arrancar da sua lira sons tão maravilhosos, que até os animais ocorriam para o escutar. Em tempos mais modernos foi tomado como símbolo do poeta. Sabemos o lugar que o espírito dionisíaco, o espírito da embriaguez dos sentidos e da vida afirmativa, ocupa no pensamento de Nietzsche. Basta lembrar que no final do seu Gõtzen-Dãmmerung ele próprio se apresenta como «der letzte Junger des Philosophen Dionysos» e resume todo o Ecce Homo numa luta entre a própria divindade dionisíaca, encarnação de todos os valores afirmativos da vida, e com a qual ele próprio se identifica, e o Crucificado, negação desses mesmos valores, «Hat man mich verstanden? - Dionysos gegen den Gekreuzigten ... » (Monteiro, 1997: 336-337)
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ENTOS SOBRE A PRESENÇA DO PENSAMENTO DE NIETZSCH
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itaçáo pode parecer pretensiosa, em face das muitas outras 'folC l'. • d , 1 etações que se raz a respeito o t1tu o atribuído à revista jnterpr d • . traduz o mo errusmo em Portugal e, outrossim no Brasil ue in . , · q do não deixa de ser coerente, frente a que além do mai·s a ContU , . . ' , ,,0 que tem Orfeu, enquanto d1v1ndade, com a música _ seu re1aça , ande dote - , encontra no filosofo transmutador dos valores alta gr . . a1 . . ressonância, pnnc1p mente em seus pnmetros escritos, quando sob forte influência de Arthur Schopenhauer (influência que, conquanto mais tarde seja contravertida pelo discípulo, sabe-se que o acompanhará, de uma maneira ou de outra, ao longo de toda a sua obra). Schopenhauer crê na música como essência de todas as coisas, vontade: {...) a música, como já dito, se diferencia de todas as outras artes, por não ser reprodução do fenômeno, ou mais corretamente, da objetividade adequada da vontade, mas cópia imediata da vontade ela própria, apresentando, portanto, para tudo o que é físico no mundo, o metafísico, para todo fenômeno, a coisa-em-si. Desta forma, poderíamos denominar o mundo tanto música corporificada quanto vontade corporificada {... ). (WWVI,§52)
Assim procedendo, o filósofo formulará sua teoria indicando no universo como que um conjunto de regras musicais, tais quais as que executam nossos instrumentistas, músicos e cantores (com poder mais denso, o de executar a matéria e a atividade humana): [... ] no conjunto das vozes que produzem a harmonia, entre o baixo e a voz condutora, que executa a melodia, reconheço a totalidade da série gradual das ideias em que a vontade se objetiva. As mais próximas do baixo constituem os mais inferiores destes graus, os corpos ainda inorgânicos, mas que já se expressam de várias maneiras; as mais elevadas representam para mim o mundo vegetal e animal. {...) O movimento mais lerdo corresponde ao contrabaixo, representante da mais bruta massa L.. ] na melodia, na voz principal, aguda, que canta, apresentando
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um todo, dirigindo o conjunto e se desenvolvendo ao acaso do começo ao fim, numa conexão contínua da objetivação da vontade, a vida e as aspirações providas de reflexão do homem. (WV/V I, §52)
Para este filósofo, a música adquire uma importância capital na pirâmide das artes, já que, como se demonstra, não usará diretamente uma linguagem sígnica (carregada de pré-conceitos ou cosmovisões) para expressar-se, mas incorruptivelmente transcrever-se-á essencial. Nietzsche, já em O Nascimento da Tragédia, agarrar-se-á a esse pensamento, vendo-nos a nós homens desviados da real essência da vida, por (incapazes de nos alegrarmos na tragédia da existência) reprimirmos a música de soar através de nós, recusando-nos à finalidade estética. Contudo, sendo incapaz da metafísica compassiva e sofrível do mestre, crendo numa vontade pela potência, e não pela dor, e movido por um olhar científico, não metafísico, Nietzsche parece mais preconizar as reviravoltas da física quântica, os anúncios da relatividade e, no que diz respeito às proposições schopenhauerianas, adere ao evolucionismo darwiniano, uma força criadora que se cotejaria com a teoria das supercordas, desenvolvida a partir de Einstein, antecipando-a de certa maneira (como se a ressonância de cordas a vibrar - música, no caso - fosse a diretriz da matéria); desembocando, finalmente, em seu ideal do homem trágico (em quem esse princípio, como música, vibraria livremente). Suposições à parte, O Nascimento da Tragédia é, pois, escrito sob a mais forte influência schopenhaueriana, e Nietzsche será muito claro ao afirmar a essência dionisíaca relacionada com a música, aproximando-nos mais da interpretação, proposta por Monteiro, acerca do título Orpheu para a revista modernista como significativa da menção desse filósofo, que orientará as novas investidas intelectuais d~ ép_oca. Tais asserções, no entanto, podem parecer não nos conduztr dtretamente a nosso tema, não nos levar ao Alberto Caeiro com presteza; podem até parecer nos afastar dele:
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oNTAMENTOS SOBR E A PRESENÇA DO PEN AP
SAMENTO DE NIETZSCHE .. .
Aquela senhora tem um piano Que é agradável mas não é o correr dos rios Nem o murmúrio que as árvores fazem ... Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos E amar a Natureza. (Pessoa, 1997: 213)
Porém, se atentarmos que as mesmas asserções nos podem remeter para um mundo movido por intensa sensação ou sensibilidade (música a tocar-se e a tocar-nos, a envolver-nos e, também, de dentro para fora, a nos relacionar com o mundo) - , desde que, frente ao pensamento de que a essência universal seja expressa como música a executar-se, ou a vibrar, estejamos submersos em uma orquestra que em nós soará sensitiva, irracional (vontade cega), tocante em nós e ao redor de nós, carregando-nos de alegria e tristeza (trágicas), num eterno retorno - , então chegamos ao nosso poeta de análise, conclamando a sua difusão mítica em filosofia pela heteronímia afora, como centro de concepção sensacionista. Talvez seja mesmo para isso que Caeiro nos chame a atenção, ao dissertar acerca da senhora com o piano: não para o mal em executar-se a música mediante instrumentos artificiais nem tão-somente pela razão matemática empreendida forçosamente nas escalas pela mente e mão humanas; mas para o fato de toda a existência ser como uma grande composição, uma orquestra a tocar - a que devíamos, bem como à música de artifício humano, quando a amamos, nos entregar. Sim, a música que toca universalmente, movendo a existência, faz a orquestra de sensações vibrar no corpo humano. Estamos falando de vibrações (ressonâncias?), resquícios de metafísica whitmaniana, em Caeiro - contudo, nele, não metafísica, mas veio científico natural, pulsação telúrica. Não seria essa talvez uma interpretação íntima do essencial trágico nietzschiano? Já que, em consonância, 0 filósofo alerta-nos de que nossa interpretação de mundo só é possível
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mediante nossos sentidos, essenciais elementos de percepção e representação, únicos a nos fazer conhecer as coisas: «Toda credibilidade toda a sã consciência, toda evidência de verdade vem apenas dos sen~ tidos.» (BM, 134). Princípio de individuação apolíneo, a imagética promovida pelo contato de nossa sensibilidade com tudo ao redor é o cerne da vivência humana e, assim, compõe-se a finalidade estética do mundo, sentido real da vida. É nesse ponto que talvez (e só talvez) Caeiro se exacerbe, diferenciando-se do que propõe Nietzsche, eximindo-se de toda a complexidade, resumindo-se à existência apolínea, como buscaremos em conclusão novamente elucidar. Agora, contudo, cabe-nos retornar aos apontamentos relacionais. Segundo Lourenço (1987), enfatizado por Marques (2012), que o busca problematizar, «a presença de Nietzsche far-se-á talvez sentir mais amplamente {em} Alberto Caeiro, {em} cuja poesia é iniludível um conjunto de ideias chave do filósofo» (Marques, 2012: 7). Diante de tal proposição, é-nos concedido interrogar o quanto Caeiro representa uma alma nietzschiana, ou a possibilidade de este ser, como cremos, uma interpretação do ideal de homem para Nietzsche, o Übermensch, o para-além do homem almejado - interpretação efetuada por Pessoa, propriamente, com as devidas correções em relação ao pensamento do filósofo redator do problema. 1 A possibilidade de interrogação de tal tese alarga-se ainda mais em nós ao seguirmos as demais palavras de Lourenço (1987): Se nalgum lado a exigência de Nietzsche de reinventar para o homem moderno a consciência e o sentimento vividos dessa unidade perdida
No tocante a tal interrogação, instiga-nos a provocação feita pelo professor Bartholomew Ryan em mediação à sessão de comunicações no congresso em comemoração dos cem anos da revista Orpheu, na Universidade de São Paulo (USP), no dia 2 6 de m aio de 2015, quando per~ nta ao autor pesquisador do presente artigo, ali primordialmente proposto, sobre a relaçao entre o processo ou a intencionalidade de Pessoa e Nietzsche ao criarem Albert~ Caeiro e Zaratustra, quando ambos recebem a posição de mestres em relação a seus c_nadores ~ _atribuída por eles próprios, mesmo sendo deles produto. Ora, não seria ~ambem O profetico Zaratustra um heterônimo nie tzschiano? E não seria Alberto Caeiro Justamente o Zaratustra pessoano? I
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APONTAMENTOS SOBRE A PRESENÇA DO PENSAMENTO DE NIETZSCHE ...
entre pensamento e vida encontra em Pessoa uma versão análoga, foi nesta ficção capital, para ele mais real que a sua própria Vida, que se encarnou com Alberto Caeiro. (Lourenço, 1987: 260)
Lourenço nos chama, ainda, a atentar que tal interpretação nos é possibilitada por concessão heiddegeriana, na qual a essência da filosofia nietzschiana é clamada pela ideia do eterno retorno, da afirmação da vida, e pela interpretação proposta por Deleuze. Assim, as pistas capazes de serem colhidas em O Guardador de Rebanhos e no Caeiro tout court acerca da relação são diversas, desde o título. Um guardador de rebanhos, em nossa comum representação, traz-nos à mente a imagem do pastor, e não é preciso nos aprofundarmos muito na leitura das obras de nosso filósofo para percebemos o quanto essa figura é desprezível para si, assim como a ideia de rebanhos, que vem representar em seus escritos grupos de indivíduos doentes, os quais se aglomeram em torno de ideologias de coletivo, incapazes que são de criar seus próprios valores. São sanguessugas, escravos, almas escravas. Amam tomar fardos de inquietação alheia sobre suas costas. São o contrário dos almejados super-homens, a quem a sociedade deveria em verdade se dedicar. Entretanto, longe de referir-se a si como um pastor de gente, Caeiro irá assim explicar: «Sou um guardador de rebanhos. / O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos são todos sensações.» (Pessoa, 1997: 212). Se o seu rebanho são sensações mentalizadas, sentidas, ele é um guardador de instantes e um guardador de si mesmo, distanciando-se do coletivo. Não está a arrebanhar discípulos ou parasitas ao seu redor, mas a arrebanhar-se, a deixar-se levar e a abandonar-se a sentir tudo, a todo o momento, ingenuamente, despretensiosamente e, o mais importante, anarquicamente, a se autogovernar. Na verdade, a referência trata-se de uma posição antitética, se relacionada com o deplorável pastor nietzschiano, tal como suspeitamos, trazendo à tona o seu ideal individualista - um modo de desprezar o ideal de massas desde o princípio e afirmar a superioridade do mestre Caeiro (aproximando-o de Zaratustra [2n]
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e sua reclusão em contestação ou repúdio às galeras). Tal o leva a encontrar o sentido das coisas individuadas e sensivelmente no modo como elas o afetam, ou como a vida o afeta: «Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la/ E comer um fruto é saber-lhe o sentido.» · ... T.àlvez la'rtpour fe axar virtuoso de sapos que tremem e desesperam no seu " /~rt· 0 co pan. Tudo Oresto foi criado pelo amor... » (KSA 13.299 _300 14[I2o})
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,,,. STÉTICA NÁO-ARISTOTÉLICA11 DE NIETZSCHE E PESSOA onJlE A (( E r,10
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Gherardo ,
Gtlida alfa lettura della Nascita della Tragedia di Nietzsche
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Editori Laterza, 2007. Roroa-Ba!lL, e" D (hrsg.), Grenzen der Katharsis in den modernen Künsten.
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des aristoteliscben Modells seit Bernays, Nietzsche und Freud,
,/orvrattonen frar ~· l rque Walter de Gruyter, 2009. ·-/ Nova o , 13erl111•
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«AINSI L'CEUVRE D'ART EST LA SUPRÊM~ EXPLICATION DE LA VIE». O IDEAL ESTETICO DE NIETZSCHE E PESSOA MARTA FAUSTINO E ANTONIO CARDIELLO
I /
E
dos múltiplos pontos de contacto entre Pessoa e Nietzsche, Pessoa terá lido muito pouco de Nietzsche, apresentando-se a recepção do filósofo por parte do poeta como essencialmente indirecta. Ao mesmo tempo, há indicadores que nos permitem perceber que as disciplinas filosóficas foram objecto de estudo intenso e recorrente por parte de Pessoa, sobretudo nos biénios 1906-1907 e 1915-1916. A este último filão pertence o livro de De Kant à Nietzsche (1900, lido por Pessoa na sua quarta edição de 1910), da autoria de Jules de Gaultier, filósofo e ensaísta francês, e crítico feroz do academismo filosófico tão em voga na França da sua época. O exemplar do livro de Gaultier conservado na Casa Fernando Pessoa encontra-se muito trabalhado, em termos de passagens sublinhadas e anotações (que terão sido colocadas pouco antes de 1915), sobretudo nas secções III e IV do capítulo dedicado a Nietzsche (pp. 251-332), relativas respectivamente à sua concepção estética n'O Nascimento da Tragédia e a alguns princípios da sua filosofia mais tardia, tal como apresentados em Assim Falava Zaratustra. Pertencendo ao restrito número de textos mais ou menos monográficos dedicados ao pensador alemão que se conserva na biblioteca de Fernando Pessoa, De Kant à Nietzsche deverá ter sido, juntamente com Frédéric Nietzsche (1902), de Eugene de Roberty, e Revalucttions (1909), de Alfred Benn, BEM SABIDO QUE, APESAR
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NIETZSCHE E PESSOA
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ENSAIOS
uma das maiores e mais importantes fontes do pensamento de Nietzsche para Pessoa,1 O presente artigo pretende ex~lorar as ~ela?ões entre os pensamentos de nietzsche e Pessoa relativamente aquilo . a que poderíamos chamar O «ideal estético» de ambos os autores, sal1entando a contiguidade das duas abordagens numa multiplicidade considerável de aspectos, seja no que concerne a sua oposição a um suposto «ideal ascético» seja na sua compreensão da arte como essencialmente transfigurador~ e afirmadora do real, seja pela sua valorização da ilusão em detrimento de uma suposta «verdade», seja ainda pela sua atribuição ao artista da suprema tarefa de dinamização e divinização da vida. Prestando particular atenção às marcas deixadas por Pessoa no livro de Gaultier, apontar-se-á ainda para a hipótese de uma tal semelhança não ser coincidência, mas antes, justamente, fruto desta mesma leitura, atestando assim uma das múltiplas influências que, ainda que indirectamente, nietzsche poderá ter exercido sobre o pensamento de Pessoa.
II Uma das exposições mais claras daquilo que constituía o ideal estético para Fernando Pessoa encontra-se na sua recensão altamente favorável à segunda edição do livro Canções, de António Botto (cf. Botto, 2010). Neste texto, a que dá o título