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Portuguese Pages [159]
DANIELA BUONO CALAINHO
M ETRÓPOLE DAS MANDINGAS RELIGIOSIDADE NE GR A E INQUISIÇÃO PORTUGUESA NO ANTIGO REGIME
Graças à profunda e exitosa pesquisa de Daniela Buono Calainho temos acesso pela prim eira vez, de forma sistem ática e ampla, aos subterrâneos das crenças populares de inspiração africana que proliferaram no Reino de Portugal e encantaram a tantos de nossos ancestrais entre os séculos XVI e XVIII. L u iz M ott
Daniela Buono Calainho METRÓPOLE DAS MANDINGAS
Q uando se fala em m andinga, patuá, sincretism o religioso de m atriz africana, a prim eira lembrança que nos ocorre é a Bahia, São Luís do M aranhão, o Brasil, o H aiti, talvez até mesmo as santerías praticadas em algum as ilhas do C aribe. Q uem im a ginaria que em plena capital do Reino de Portugal, à época da Inquisição, ali pululasse um grande núm ero de m andingueiros, negros e mestiços, em uma época desditosa em que a Santa Madre Igreja e EI Rei tinham plenos poderes de prender, açoitar e até queim ar na fogueira os rebeldes de consciência que ousassem p raticar rituais e crenças contrários aos dogmas e costum es da Religião Católica Apostólica Romana!
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ISBN 978-85-7617-153-9
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É m uito bem -vindo este M etrópole das mandingas, cujo título, por metáfora, resu me a novidade da pesquisa: a demonstração de que os cultos e ritos africanos, m istu rados ao catolicismo, floresceram não só no Brasil, m as no próprio Portugal. E ntre os ritos praticados pelos jam bacousses, o m ais destacado era a m andinga, melhor dizendo, o uso e tráfico d a bolsa de m an dinga. O riginária do reino de M ali, região islamizada, a bolsa era então um saquinho contendo algum versículo do A lcorão. À m edida que o uso da bolsa se expandiu no espaço atlântico, foi aum entando de ta m an h o e diversificando seu conteúdo: lascas de pedras d ’ara, balas de chumbo, olho de gato, osso de defunto. Túdo p ara proteger o corpo, entre outros fins. N ão raro continha tam bém uns papelitos com orações a São M arcos. D aniela C alainho exam ina em detalhe o sincretism o presen te na m andinga e noutros ritos. Em sua pesquisa chegou mesmo a encontrar um a bolsa ao vivo, apensa a um processo da Inquisição. Coisa de arrepiar. A Inquisição, com o é óbvio, perseguiu m uitos m an d in gueiros. A lguns foram queimados. M as o melhor do livro é ver de p erto a circulação de crenças entre Brasil, Portugal e Á frica. U m a prova de que h á séculos os E xus atuavam em vários continentes. Salve! R o n a ld o Vainfas Professor Titular de História Moderna - UFF
METRÓPOLE DAS MANDINGAS
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DANIELA BUONO CALAINHO
C oordenação M aria A lzira Brum Lemos C onselho E d ito ria l Bertha K. Becker Cândido Mendes Cristovam Buarque Ignacy Sachs Jurandir Freire Costa Ladislau Dowbor Pierre Salama
METRÓPOLE DAS MANDINGAS RELIGIOSIDADE NEGRA E INQUISIÇÃO PORTUGUESA NO ANTIGO REGIME
Garamond
C opyright © 2008, D aniela Buono C alainho D ireitos cedidos para esta edição à E ditora G aram on d L tda. Rua da Estrela, 79 - 3o andar CEP 20251-021 - R io de Janeiro - Brasil Telefax: (21) 2504-9211 e-mail: editora@ garamond.com.br website: www.garam ond.com .br P reparação de originais e revisão Carm em Cacciacarro
A. M aria H elena B u o n o C alainho e L u iz C alainho (in m em oriam ), m eu s pais.
Projeto gráfico, capa e editoração E stúdio Garamond / A nderson Leal
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Para L u iza V ainfas, m in h a filha. Capa a partir de N egro fu g itivo , óleo sobre tela de Jean B. D ebret (séc. XIX) .
C IP -B R A S IL . C A T A L O G A Ç Ã O -N A -F O N T E S IN D IC A T O N A C IO N A L D O S E D IT O R E S D E L IV R O S, R J
C143m Calainho, Daniela Buono, 1963Metrópole das mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime / Daniela Buono Calainho. - Rio de Janeiro: Garamond, 2008. 320p.: il., mapas Inclui bibliografia ISBN 978-85-7617-153-9
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I. Negros - Portugal - Religião - História. 2. Inquisição - Portugual - Século XV-XVIII. 3. Portugal - Civilização - Influências africanas. I. Título. II. Título: Religiosidade negra e Inquisição portuguesa no antigo regime. 08-5010.
CDD: 946.902 CDU: 94(469)”14/17”
12.11.08
18.11.08
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í Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, con stitui violação da Lei n" 9.610/98.
SU M Á R IO
A gradecim entos Prefácio In trodução
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I - A frican o s em Portugal
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II - Jabacousses e gangazam bes: feiticeiros negros no reino III - A m andinga de D eus IV - N a ro ta das m andingas V - L u sitânia b ru x a
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VI - N egros hereges, agentes do D iab o Conclusão
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Fontes e bibliografia
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A nexo I - Tabelas e gráficos
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A nexo II - M apas A nexo III - Im agens
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A G R A D E C IM E N T O S
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E ste tra b a lh o foi o rig in a lm e n te m in h a tese de d outoram ento defendida n a U niversidade F ederal F lum inense em 2000, e, no percurso que trilhei na época, algum as pessoas e instituições foram fu n d am entais. Os agradecim entos a elas, renovo-os aqui. À Prof*. D ra. R achel Soihet, agradeço a orientação e a per tin ên cia d e suas sugestões. A os funcionários da Pós-graduação da UFF, pelo profissionalism o, especialm ente a M iriam Schmidt, que aliou a isso delicadeza e carinho. Sem o auxílio financeiro da CAPES, que m e concedeu bolsa de pesquisa nos arquivos p o rtu gueses, e n tre fins de 1997 e inícios de 1998, m eu estudo teria sido inviável. A o Prof. Dr. F ran cisco B ethencourt, da U niversidade Nova d e Lisboa, tam bém m eu reconhecim ento pela orientação do tra b a lh o em Portugal. A o s colegas do D e p a rta m e n to de C iências H u m an as da F aculdade de F orm ação de Professores da UERJ e ao PROCAD, m eus agradecim entos sinceros pelo tem po precioso que me con cederam p a ra fin alizar o trabalho. A pesquisa em Lisboa foi com partilhada com alguns queridos colegas, com o B runo Feitler, com quem dividi ótimos momentos em Lisboa e a alegria de descobrir docum entos na Torre do Tombo. Dos am igos portugueses que tão bem me acolheram, Luiz Frederico foi inesquecível, com o ta m b ém o Prof. José Veiga Torres, pelo m odo am abilíssim o com que m e recebeu em Coimbra.
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A Caio Boschi, meu afeto e gratid ão pelo apoio e carin h o de muitos anos, pela presteza com que por vezes m e trouxe de Portugal livros e docum entos esquecidos, pela leitu ra crítica ap u rad a de uma das versões da tese. L uiz M ott, com o sem pre, indicou-m e docum entos, bibliografia e referências p o r ele en co n trad as n a vastidão dos “Cadernos do P rom otor”. C o m p a rtilh ar da sua a m i zade é para m im um a grande alegria desde que nos conhecem os, há mais de vinte anos, nas ap ertad as m esas do antigo p réd io do Arquivo da Torre do Tombo, ainda em São Bento. Rogério de Oliveira Ribas, com sua inesquecível acolhida em Portugal, sua alegria, força e afeição, to rn o u os m eses de pesquisa no inverno lisboeta extrem am ente calorosos e agradáveis. A N irce de Oliveira Ribas, todo o m eu carin h o p o r com igo d ividir m ais esta vitória. A Iara de Lim a e K léber T ani, p o r m e ensinarem a ver a vida com m ais serenidade e tran q u ilid ad e, m in h a g ratid ão por ter podido lidar melhor com o difícil p ercu rso que os anos do doutorado me im puseram . Alguns amigos muitíssim o queridos, com quem tenho o p riv i légio de partilhar, há vários anos, u m a p razerosa e enriquecedora convivência, meu afeto e reconhecim ento é m ais do que especial pelo apoio ím p ar que deles recebi: a José R o b e rto G óes, p ela força e pela ajuda preciosa na cõnfecção d as tabelas, e a M aria F ernanda Vieira M artin s, pela d ed icação e em p en h o afetu o so da últim a leitura. Pedro P asche d e C am p o s, ta m b ém v ersad o nos estudos da Inquisição, pela le itu ra a te n ta do p rojeto e p o r indicações de bibliografia. A Célia C ristin a Tavares, ag rad eço pela sua incomum generosidade e franqueza, pela paciência, pela contínua disponibilidade em socorrer-m e nas artes do com putador, pelo carinho com que sem pre m e ajudou a “m ira r na lua”, e pelos nossos quase 30 anos de am izade. L em bro tam b ém de T â n ia e Rui Bessone, porque, com sua alegria, fazem tu d o p arecer bem mais fácil do que é.
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A R o naldo V ainfas, que esteve p resen te desde o início da elaboração desta M etrópole das M andingas, da idéia do projeto à redação fin al da tese, m in h a g ratid ão e reconhecim ento pelo estím ulo de sem pre. D e M aria H elena, m in h a m ãe, e de Lula e G abri, m eus m a ninhos, recebi o am or e o incentivo necessários p a ra chegar ao fim . L uiza, felizm ente, conseguiu s u p o rta r m in h a s ausências e hum ores, sobretudo n a fase final da redação. A T itá, onde quer que esteja, n a torcida p o r m im , um obrigado de longe. A Luiz C alainho, m eu pai, que em seu últim o vôo foi exemplo de coragem e d eterm in ação d ia n te da vida, dedico este trabalho.
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PR EFÁ C IO
Q u an d o se fala em m andinga, p atu á, sincretism o religioso de m a triz africana, a p rim eira lem brança que nos ocorre é a Bahia, São Luís do M aranhão, o Brasil, o H aiti, talvez até mesmo as santerías p raticad as em algum as ilhas do C aribe. Q uem im aginaria que em plena cap ital do Reino de Portugal, à época da Inquisição, ali pululasse um grande núm ero de m andingueiros, negros e mestiços, em u m a época desditosa em que a S anta M adre Igreja e EI Rei tinham plenos poderes de prender, açoitar e até queimar na fogueira os rebeldes de consciência que ousassem praticar rituais e crenças contrários aos dogm as e costum es da Religião Católica Apostólica Rom ana! F ora da Igreja não há salvação, repetiam os defensores da orto doxia religiosa, na estrita observância do ensinam ento do Filho de Deus: “um só rebanho e um só pastor!” G raças à p ro fu n d a e exitosa p esq u isa d e D aniela Buono C alainho, docente na U niversidade do E stado do Rio de Janeiro, tem os acesso pela p rim e ira vez, de form a sistem ática e am pla, aos su b terrân eo s das crenças populares de inspiração africana que p ro liferaram no R eino de P ortugal e encantaram a tantos de nossos an ce strais en tre os séculos XVI e XVIII. M etrópole das m andingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regim e realiza a arqueologia profunda da pré-história das religiões afro-luso-brasileiras, revelando suas variegadas manifestações - e repressão! - e o quão significativa foi a crença nos poderes pre-
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ternaturais da ritualística de m atriz africana, não apenas entre os colonos da América Portuguesa, m as no próprio Reino e na mesma capital e m etrópole onde, im ponente e assustadora, se situava a Casa Negra do Rocio, sede do S anto T ribunal da Inquisição. D aí o inspirado título deste livro, M etrópole das m a n d in g a s - orig i nalm ente tese de doutorado, defendida na U niversidade Federal Fluminense em 2000, da qual tivemos o privilégio de fazer p arte da banca exam inadora -, obra tão interessante p o r suas descobertas e revelações, gostosa d e ler, tratan d o de tem as pouco conhecidos e m uito atuais na discussão contem porânea sobre religiosidade e m iscigenação cultural afro-luso-brasileira. E ste é dos tais livros que têm o poder de nos enfeitiçar, e cujo ú nico exorcism o é ter m inar sua prazerosa leitura! C onheci Daniela em 1986, no antigo préd io do A rq u iv o da Torre do Tombo, em Lisboa, quando, ain d a aprendiz de feiticei ra, iniciava suas pesquisas histó ricas, p rim e ira m e n te so b re os fam iliares do Santo Oficio, tem a de sua d issertação de m estrad o - publicada em livro pela E dusc em 2006 com o títu lo A g en tes da fé. Fam iliares da Inquisição portuguesa no B rasil colonial estudo pioneiro e fundam ental p a ra a com preensão de com o fu n cionava a eficaz e temida rede de funcionários-espiões do T ribunal do Santo O ficio da Inquisição na A m érica P ortuguesa, os quais, como pontas-de-lança deste “m onstrum terribilem”, m antiveram os súditos portugueses e estrangeiros sob o perp étu o regim e de m edo e insegurança, posto que até EI Rei p o d eria se to rn a r poten cial m ente réu do Tribunal da Fé, caso proferisse algum a proposição suspeita de heresia ou p raticasse atos heterodoxos, qualificados com o “crim es do conhecim ento do S anto O fício”. D o estudo institucional dessa m ilícia de oficiais responsáveis pela m anutenção do bom funcionam ento do T rib u n al d a S anta Inquisição em todo o vasto im pério lusitano, D aniela C alain h o enveredou pelo “submundo” dos réus envolvidos com heterodoxias
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m arcad as n ão só pela “im p u reza de sangue”, m an ifesta na cor negra ou am u latad a da pele d e seus praticantes, com o pelo “n e grum e” de sua inspiração diabólica, já que no im aginário judaicocristão, e universalm ente em to d a a cristandade, D eus sem pre foi visto e re tra ta d o com o branco, com feições m ais p a ra o fenótipo aria n o que p alestin o , e S ata n ás, p in ta d o p reco n ceitu o sam en te com o negro retinto. Já em 1535, q u ando o tráfico negreiro ainda não co m p leta ra u m a c e n tú ria , u m v isita n te estra n g e iro assim se referiu à presença negra no Reino: “O s escravos pululam por toda a p arte. Todo serviço é feito p o r negros e m ouros cativos. Portugal está a a b a rro ta r com essa raça de gente. M al pus o pé em Évora, julguei-m e tra n sp o rta d o a um a cidade do Inferno: por toda a p arte, topava negros”. D e fato, M etrópole das m andingas revela o quão significativa foi a presença de negros curandeiros, benzedores, m andingueiros, calunduzeiros e adivinhadores no Reino, que com suas orações fortes, patuás, bolsas e panelas de m andinga, pactos com o diabo e o u tras “superstições”, m u itas vezes vendidas p o r altas som as, prom etiam v en tu ra, saúde, vantagens sexuais ou am orosas, “fe chavam o corpo”, faziam adivinhações ou pressagiavam dúvidas e inquietações as m ais diversas e com ezinhas, com o quem roubara objetos pessoais, onde se e sco n d ia o negro fujão, ou a in d a se fulano estava vivo ou m orrera, com o co n q u istar aquela m ulher tão cobiçada etc. etc. Ç om o bem salienta a pesquisadora, escorada n ão apenas em sua prolongada perm anência n a Torre do Tombo, m as tam bém no depoim ento de outros luso-brasileiros e estrangeiros especialistas nas Inquisições, a farta docum entação produzida pelos escribas e n otários do S anto O ficio - m ais de 40 m il longos processos e m i lhares de “cadernos”, como os inexauríveis C adernos do Prom otor - co n stitui riquíssim o m anancial etnográfico, que, pela sua unici dade e riqueza de detalhes, após devidam ente depurados, perm item
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ao pesquisador co n tem porâneo reco n stitu ir b astan te fielm ente o universo e o co tid ian o de certas categorias sociais, sobretudo a “arraia-m iú d a” - sodom itas, feiticeiros, bígam os, blasfem os -, que se não fossem os processos produzidos pela repressão inquisitorial p erm aneceriam no lim bo dos desconhecidos. Se hoje em dia, com as g aran tias constitucionais da liberdade religiosa, persiste fo rte m ente en tre os adeptos do candom blé, um banda e q u im b an d a, a m áxim a de que “o silêncio é a alm a do negócio”, havendo m uitos ritu ais e “ebós” cujo conhecim ento e p articip ação são secretos e privativos apenas de iniciados, im aginem os então, naqueles idos em que as crenças não-católicas eram etnocentricam ente rotuladas e p en aliza d as com o “crim e” de heresia, feitiçaria e diabolism o, q u ão d ifíc il seria re c u p e ra r ta is m a n ifestaç õ es h etero d o x as e clandestinas se não fosse a san h a investigatória (inquisição vem de inquérito) e p ersecu tó ria do T rib u n al da Fé, que, a p e sa r do enorm e sofrim ento causado a suas vítim as, produziu um m aterial riquíssim o, não apenas p a ra o resgate de nossa h istó ria m ulticultu ral, com o p ara m elhor entenderm os certos dilem as, neste caso específico do presente e fu tu ro das religiões de m atriz africana. E c o n statar o q u an to a h istó ria pode ser recorrente, obrigando-nos a p re sta r m ais atenção às lições do passado p ara não rep etirm o s os m esm os erros no presente. Q uem im ag in aria que, nos finais do século XX, um pai-desanto baiano ab riria seu pró p rio terreiro em Portugal, ad quirindo um a bela e espaçosa ch ácara em S intra, a m eia hora de trem de Lisboa, reconstruindo a í toda a infra-estrutura peculiar das nossas casas-de-santo da nação K etu, onde salta aos olhos a m arcan te presença do sincretism o afro-índio-cristão. O g ran d e núm ero de filhos e filhas-de-santo po rtu g u eses reflete o sucesso deste c a n dom blé ketu-baiano-português. Nos últim os anos, contudo, p a ri p a ssu a crescente u n iversa lização e a grande diásp o ra do culto aos orixás, nota-se n a B ahia,
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no Brasil e alhures um a forte tendência à reafricanizaçao da cos m ogonia e ritu alística dessas religiões, censurando, exorcizando e excom ungando todos os elementos híbridos supostamente não afri canos acum ulados ao longo de gerações, como se fossem imposição da catequese cristã ou, esp erta cam uflagem dos escravos em dar nomes de santos católicos a seus orixás, uma espécie de estratégia de sobrevivência p a ra en fren tar a repressão colonizadora. M etrópole das m andingas com prova exatam ente o contrário: assim com o o correu com o cristian ism o e as principais religiões universais, tam bém os africanos e seus descendentes incorporaram livrem ente novos elem entos religiosos de outras culturas em seu panteão, cosm ogonia e ritualística. Insisto, o sincretismo católicoafro processou-se livrem ente, sem im posição dos colonizadores, pois nada obrigava aos calunduzeiros, m andingueiros, jabacousses, gangazam bes, q u im b a n d a s, e o u tras castas de “feiticeiros”, incluir em seus ritu a is secretos ou dentro de seus clandestinos p atu ás elem entos próprios da religião dos dom inadores - como as orações fortes de São M arcos ou o Credo às avessas, a hóstia consagrada, um pedacinho da p e d ra d ’ara dos altares das igrejas, ou arrem ed ar um a san ta m issa nos conventículos diabólicos do Sabá. Se todos esses rituais e “sacram entais” eram realizados longe dos olhos condenatórios dos padres, senhores e inquisidores, por que m anter a presença de ta n to s elem entos cristãos em algo que poderia ter se m an tid o genuinam ente tribal e africano? Nossa crítica a esse rousseauniano retorno às raízes africanas, com a d iscrim in ató ria excom unhão de variados sincretismos já existentes n a p ró p ria Á frica e o rganicam ente incorporados há quando m enos m eio m ilénio pelos africanos e seus descendentes, não só na “m etrópole das m andingas”, m as sobretudo na diáspora do Novo M undo, ta l crítica é ra tifica d a pela venerável Yalorixá O lga de A laketu, de saudosa m em ória, m ãe biológica e de santo do citado B abalorixá de Sintra. A o ser questionada sobre a pre
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IN TR O D U Ç Ã O
sença de divindades cristãs e indígenas em seu fam oso terreiro em Salvador, do alto de sua sapiência, ela deu resposta definitiva: “Com os orixás da Á frica e os san to s de R om a ju n to s, a união faz a força!” M etrópole das m andingas co n sag ra D aniela com o m estre feiticeira”, pois, além do resgate criterio so de u m a h istó ria fan tástica e fascinante das religiosidades african as e seu confronto e sincretism o com o catolicism o luso-brasileiro, desvenda m itos, m entiras e intolerâncias. E so b retu d o nos m o stra, com m uitos episódios dram ático s reco lh id o s nos p ro cesso s in q u isito ria is da Torre do Tombo, o q uanto as religiões, todas elas, podem ser tan to um feliz motor de so lid aried ad e com o um negativo fator de alienação. L u iz M o tt Professor titu la r de A ntropologia, U niversidade F ederal da B ahia
Vários intelectuais brasileiros, após a década de 1930, dedicaram se a com provar a existência ou frouxidão do preconceito racial no Brasil, a exem plo de G ilberto Freyre, gerando a crença num a dem ocracia racial que se estendeu por algumas décadas. Passível de inúm eras críticas que não cabe aqui desenvolver, a tese de Freyre, no entanto, m ostrou a íntim a convivência entre os portugueses e outros povos, p articu larm en te os africanos, em bora sem grande apro fu n dam ento do tem a.1 A n a lisa n d o as bases da colonização p o rtu g u esa no B rasil com o sendo essencialm ente a g rá ria na sua estru tu ra , ao m enos nos dois p rim eiro s séculos, F reyre, a p e sa r de n ão p recisa r em detalhes os term os deste convívio, resgatou a predisposição do p o rtu g u ês p a ra u m a colonização h íb rid a e escravocrata, ju s ti ficada pela g ran d e influência d a cu ltu ra a fric a n a em Portugal. O sucesso d a colonização p o rtu g u e sa em regiões tã o d ísp ares geográfica e culturalm ente, n ão só a Á frica, m as ain d a a Á sia e a A m é ric a , se ju s tific a ria p ela m o b ilid a d e so cial d o p o r tu guês e, sobretudo, pela sua gran d e capacidade de se m iscigenar. A ssim , foi a p a r tir da tendência n a tu ra l à m iscibilidade racial que, segundo G ilberto Freyre, P ortugal com pensou-se da falta de
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FREYRE, G., C asa-grande e sen zala. R io de Janeiro: Círculo do Livro, 1980.
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recursos hum anos p a ra a colonização em larga escala e em áreas extensas. A s idéias de G ilberto Freyre in sp iraram -n o s p a ra u m olhar m ais d etalh ad o sobre essa ap ro x im ação en tre o p o rtu g u ê s e o negro, resg atan d o esse universo flu id o en tre P o rtu g al e Á frica através de um asp ecto específico: aquele que ten ta d a r co n ta da religiosidade n eg ra no p ró p rio R eino e d a repressão que algum as dessas m anifestações sofreram por p a rte da Inquisição portuguesa en tre os séculos XVI a XVIII. O s n eg ro s em P o rtu g a l co m p u se ra m , a p a r ti r d o século XV, um contingente de m ão-de-obra escrava que, em bora q u an titativ am en te n ão fosse significativo, deixou m arcas n a cu ltu ra p o rtu g u e sa . In te g ra ra m o m o v im en to geral de c ris tia n iz a ç ã o im posta às populações pagãs no Im p ério e, em m eio a esse p ro cesso, co n stitu íram e ali im plem entaram um conjunto de crenças e práticas em que ritos originários do continente negro se am alga m aram ao catolicism o e às tradições européias. O que tentarem os reco n stitu ir é o q u ad ro dessas m anifestações, ten tan d o resgatar, quando possível, as raízes african as de algum as dessas crenças e práticas, bem com o os m ecanism os através dos quais elas foram associadas à feitiçaria e, p o rtan to , passíveis de perseguições por p a rte da Inquisição portuguesa. O período que estudam os foi vasto: de m eados do século XV, quando os prim eiros africanos d esem barcaram em Portugal, até fins do século XVIII, quando o R egim ento In q u isito rial de 1774, em meio às transform ações em preendidas p o r Pom bal, n ão m ais associou as cham adas “superstições” e feitiçarias a um pacto com o Diabo, dim inuindo assim o núm ero de incriminados. Essa últim a baliza cronológica se deve à natureza das fontes que elegemos para analisar as m anifestações de religiosidade dos negros em Portugal: a docum entação inquisitorial, p articu larm en te os processos e as denúncias dos réus negros e m ulatos incrim inados p o r feitiçaria.
O h isto riad o r italian o C ario G inzburg dim ensionou m uito bem as p o ssib ilid ad es e tn o g rá fic a s dessas fontes. A p esar de aplicarem m étodos diferentes, inquisidores e antropólogos têm rigorosam ente os m esm os objetivos: desvendar um determ inado universo de crenças, símbolos e valores que em ergiriam m ediante o testem unho de indivíduos incrim inados.2 “E spreitar por cim a dos om bros do inquisidor”, ansiando por u m a confissão revela dora, era a expectativa de G inzburg quando se debruçou sobre os autos processuais do m oleiro italiano M ennochio, condenado com o herege e queim ado pela Inquisição no século XVI.3 A busca de um a “verdade” p ró p ria do S anto Ofício levou à p ro d u ção desta docum entação, d etu rp a d a em vários casos m e d ian te a pressão psicológica e física a que p or vezes os réus eram subm etidos nas sessões de to rtu ra .4 A Inquisição tentava filtrar as falas e atos dos incrim inados objetivando ajustá-los aos seus estereótipos e considerando-os hereges em função dos códigos moralizantes, do ideário e das prerrogativas da instituição. Em bora o discurso dos réus, em m uitos casos, soasse como eco das perguntas dos inquisidores, p o r vezes gerava um real diálogo entre am bos, com o no estudo dos b en n a n d a n ti - indivíduos praticantes de um culto ag rário de fertilidade n a região do F riuli (Itália) entre fins do século XVI e m eados do XVII. N esse sentido, eram descritas as b atalh as n o tu rn as que os cam poneses, em espírito, travavam contra as bruxas para o bom sucesso das colheitas.5 Na concepção 2
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GINZBURG, C., “O inquisidor como antropólogo. Uma analogia e suas im plicações”. In: A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Difel, 1989, p.206. Idem. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Idem. “O inquisidor como antropólogo...”, p.207. D e todos os processos que lemos e analisamos, foram raros os casos em que os negros não foram tortu rados. Idem. O s andarilhos do bem. Feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e
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dos inquisidores tais descrições eram claros indícios de sabats, mas, em term os etnográficos, configuravam -se com o riquíssim os
do arquivo os respectivos processos, passam os à análise dessas fontes.
relatos de práticas m eticulosam ente registradas. Esses “antropólogos m ortos”, p o rtanto, ao tentarem a rran ca r as confissões dos réus, deixavam entrever traç o s significativos da religiosid ad e dos n eg ro s em P o rtu g al. N essa d im en são , e apropriando-se da p ro p o sta in terp retaiiv a de G inzburg, poderse-ia dizer que os “arquivos da repressão”, em bora “fragm entários e deform ados”, são u m a via através da q u al a cu ltu ra p o p u la r
O volum e de denúncias relativas à feitiçaria recebidas pelos diversos trib u n ais era imenso, bem m aio r que o núm ero de réus efetivam ente processados. O s núcleos d ocum entais que u tiliz a mos p a ra le v an tar esses denunciados foram p rin cip alm en te os Livros de visitações e d en ú n cia s e os C adernos d o Prom otor, onde pudem os localizar, d en tre o u tras, v árias referências a n e gros curandeiros, benzedores, calunduzeiros e adivinhadores. A p a rtir dessas acusações, o S anto O fício deliberava sobre aqueles q u e de fa to s e ria m in c rim in a d o s . D o to ta l d e 369 C a d e rn o s do Prom otor, referentes aos trib u n a is in q u isito riais de L isboa, C oim bra e Évora, um a pequena am ostragem foi consultada em função do pouco tem po de pesquisa de que dispúnham os, pois privilegiam os a consulta aos processos já levantados nos autosde-fé.
chega até nós.6 O Tribunal do Santo O fício po rtu g u ês p ro d u ziu fontes b as tante ricas para a análise de sociedades que foram fustigadas pelo seu ím peto persecutório, racial, religioso e m oral. Portugal e seu im pério ultram arino foram vasculhados incessantem ente, orig i nando considerável m assa de processos e denúncias, a p a rtir dos quais se revelaram m últiplos aspectos de u m a h istó ria que pode ser social, política, cultural, da vida p riv ad a e até económ ica. D os porões dos trib u n ais inquisitoriais de Lisboa, C oim bra, Évora e Goa, as narrativas dessas vidas e a docum entação relativa à e stru tu ra organizacional do S anto O fício tra n sfe rira m -se há algum as décadas para o A rquivo N acional da T orre do Tombo, em Lisboa. Lá, procedemos ao levantam ento dos processados nas cham adas “listas de autos-de-fé”, onde se registravam os dados pessoais dos réus e as resp ectiv as sen ten ças, lidas em público nos autos-de-fé.7 Em seguida, ao localizam os no banco de dados
6 7
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Idem. O queijo e os vermes... p.28. O auto-de-fé inquisitorial era evento da maior importância no sentido de explicitar à sociedade o poder repressivo do Santo Ofício. Reunindo os altos dignitários da Inquisição e todos os réus acusados, era um espetáculo público meticulosamente preparado, realizando-se em Igrejas ou praças. Seu clímax era a leitura pública das sentenças dos acusados e a subsequente condenação de alguns deles à fogueira. SARAIVA, A. J., Inquisição e cristãos-novos. Lisboa:
, 8
A lém d a d o c u m en taç ão d o S a n to O fício, consultam os: a legislação portuguesa e inquisitorial; narrativas de viajantes e cro nistas, onde encontram os referências pontuais sobre os negros em Portugal; algum as crónicas descritivas das com unidades africanas no século XVII e, por fim, os volumes da M onum ento M issionário Africana, im portante coletânea de docum entos relativos à presença portuguesa n a Á fric a entre os séculos XV e XVII. D e um m odo geral, a produção historiográfica sobre os a fri canos em Portugal pareceu-nos bastante lim itada. Nos clássicos da história p o rtu g u esa e n a obra dos folcloristas, as cu ltu ras negras aparecem , quando m uito, através de vestígios e traços fragm en-
8
Estampa, 1985, cap. “O que era um auto-de-fé?” A s visitações inquisitoriais eram instrumento fundamental para o vascu lhar de hereges no Império Português, dele originando enormes listagens de confidentes e denunciados. BETHENCOURT, F , H istória das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, p. 167-191.
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tários, em regra atreladas ao m ovim ento de expansão lusitana em direção à Á frica, restringindo-se assim aos séculos XV e XVI. E m relação às m anifestações religiosas dos negros, então, a om issão é o que prevalece. D e s ta c a ría m o s , n o e n ta n to , a lg u n s tra b a lh o s q u e fo ra m fundam entais p a ra situarm os os african o s em Portugal. O estudo m ais sistem ático a respeito da escravidão em terras lusitanas foi publicado n a In g laterra em 1982 p o r A . C. de C. M. Saunders, A Social H isto ry o f B la ck Slaves a n d F reedm en in Portugal - 14411555, posterio rm en te trad u z id o p a ra a língua p o rtu g u esa, onde o autor abord a tem as com o o tráfico negreiro, a dem ografia, as atividades económ icas, a legislação e as alforrias, em bora dedique poucas p ág in as à relação en tre os negros e o cristianism o. O livro de A n tô n io B rásio O s p reto s em Portugal, de 1944, é bem m eno s d enso, em b o ra seja d ig n o de referên cia p o r ser um a das poucas obras específicas sobre o tem a na h isto rio g rafia portuguesa. U tilizam o-nos ainda do trabalho de José Ram os T inhorão, Os negros em Portugal, onde tam bém encontram os um a pan o râm ica geral acerca da presença a fric an a n a sociedade p o rtu g u esa, na literatu ra de cordel, nos textos teatrais e no m ercado de trabalho, em bora tam bém aborde superficialm ente aspectos da religiosidade negra em Portugal. M aria do R osário Pimentel, em trabalho intitulado Coroação do rei d o Congo, apresentado no VIII C ongresso In tern acio n al “A Festa”, organizado pela Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII (novem bro de 1992), destacou um aspecto interessante da religiosidade african a em P ortugal ao e stu d ar a teatralização que os negros de Lisboa realizavam u m a vez p o r ano na capela da igreja de N ossa Senhora do R osário a p a rtir de m eados do século XVI. O rg an izad as p o r irm an d ad es negras, as festas de “coroação de reis congos” em tudo lem bram as congadas da Colónia, festas a
um só tem po expressivas de um catolicism o negro (talvez banto) e d a p ró p ria religiosidade africana. N o caso da feitiçaria e religiosidade p o p u la r em Portugal, os estu d o s m a is com pletos sobre o te m a são os de F rancisco B ethencourt - O im aginário da m agia. Feiticeiras, saludadores e n ig ro m a n tes n o século X V I (1987) - e de José Pedro Paiva B ruxaria e superstição n u m p a ís sem “caça às bruxas”. 1600-1774 (1998) -, que forneceram subsídios fundam entais para as questões que pro cu ram os desenvolver ao longo do trabalho, mesmo sem tr a ta r especificam ente das m anifestações da população africana e seus descendentes. A p o iam o -n o s, p o r fim , em tra b a lh o s referentes ao Brasil, com o O diabo e a terra de Santa C ruz. Feitiçaria e religiosidade p o p u la r no B rasil colonial e O in fern o atlântico, de L aura de M ello e Souza, e os vários artigos de L uiz M ott, que m uito auxi liaram nossas reflexões sobre as crenças e devoções dos africanos em Portugal. E ste trabalho se inscreve no cham ado cam po da história cul tu ral, especialm ente n a vertente desenvolvida por Cario Ginzburg. E m seu O queijo e os verm es, o au to r definiu cultura com o uma “m assa de discu rso s, form as de consciência, crenças e hábitos relacionados a determ inado grupo historicam ente determ inado”.9 C uidou, p o rtanto, inspirado em B ak th in , de distinguir a cham a da “cu ltu ra p o p u la r” ou “oral” da “cu ltu ra eru d ita” ou “letrada”, dim ensionando o intercâm bio que se estabelece entre esses níveis culturais e introduzindo o conceito de circularidade cultural para d efin ir essa dinâm ica. A dotam os essa perspectiva de circularidade cultural de tipo v ertical entre as categorias sociais, m as acrescentarem os a idéia de circu larid ad e h o rizo n tal sugerida pelo p ró p rio G inzburg no 9
GINZBURG, C. O queijo e os vermes..., p.15-33.
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seu História noturna. R eferim o-nos aqui ao seu estu d o sobre a construção do estereótipo do sabbat, que o au to r concebe não com o p u ra invenção dos dem onólogos, n em ta m p o u c o com o expressão de um a autêntica e p u ra “religiosidade p o p u la r”, m as como um resultado h íb rid o de diversas cu ltu ras, espalhadas no espaço e no tempo. A propósito do complexo cu ltu ral do sabbat, co n stru íd o na E uropa a p a rtir da difusão, ju stap o sição e m escla de ingredien tes culturais heterogéneos e, n ão raro , assincrônicos, G inzburg sugeriu o conceito d efo rm a çã o cultural híbrida de com prom isso, que orientou esta pesquisa e a reflexão sobre a cu ltu ra luso-afrobrasileira que se forjou em Portugal no A n tigo Regim e. Além disso, consideramos as ponderações de Edward Thompson quando adverte que o uso indiscrim inado do term o “cultura popular” pode sugerir uma homogeneidade, um consenso entre agentes que a protagonizam . Para Thom pson, o próprio term o “cu ltu ra” deve ser relativizado, pois “com sua evocação confortável de um consenso, pode d istrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes den tro do co n ju n to ”.10 Nessa perspectiva, o trab a lh o de Peter B urke, C ultura p o pular na Idade M oderna, foi im p o rta n te tam bém p a ra en fatizar a diversidade in tern a da c u ltu ra p o p u la r e a hetero g en eid ad e que para ele a caracteriza. B urke cham a a atenção p a ra a tênue fronteira entre as várias cu ltu ras de um a sociedade, sendo m uito mais proveitoso estudar a in teração en tre elas. P ara este autor, a noção de cultura possui um esp ectro am plo, que integra as ações da vida cotidiana, onde se incluem os costum es, com portam entos, conhecim entos e crenças. A ssim , as tradições cu ltu rais de um a sociedade englobariam um a “g ran d e trad ição ”, de u m a m inoria
culta e letrada, e a “pequena trad ição ”, referente aos dem ais, que in terag iam en tre si.11 A s reflexões desses autores foram fu n d am en tais p a ra com preenderm os a com plexidade das relações que se estabeleceram entre as p ráticas e crenças dos negros, a clientela de brancos de todas as condições sociais que faziam uso de suas a rte s de curas e “feitiço s” e a in d a o m odo p elo q u al as ca m a d a s le tra d a s da sociedade, p a rtic u la rm e n te os eclesiásticos, p e rce b eram essas m anifestações. Vale destacar, p o r fim , o fenôm eno de circulação desses saberes pelo Im pério colonial português, envolvendo negros em Portugal, n a Á frica e no Brasil. A lg u n s co n ceito s relativos às a rte s m ágicas, fe itiç a ria s e b ru x aria s precisam aqui se definir. O s trabalhos antropológicos e históricos são inúm eros, e seria im possível nos lim ites do nosso tem a analisá-los adequadam ente. D esse m odo, restringim o-nos a algum as definições e elegemos certos autores que consideram os cen trais p a ra a abordagem pretendida. C aro B aroja entende a m agia com o u m a ação baseada num vínculo de afin id ad e entre certos indivíduos e “certas potências sobrenaturais ou divindades, pela entrega de um a p a rte de seu ser ou a sua totalidade, às m esm as potências, m alignas ou não, m as que sem pre têm um cará ter especificam ente ligado com algum aspecto da ‘psique hum ana’: am or, ódio, desejos em geral”.1112 Tais foram as m otivações que consideram os n o rte a r as p ráticas dos africanos no Reino. A u tores com o N orm an C ohn p reocuparam -se em d istin g u ir os conceitos de b ru x a ria e feitiçaria, co n sid eran d o a p rim e ira com o designadora de p ráticas que induziam ao m al, e a segunda 11
10
THOMPSON, E.P. Costum es em com um. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.17.
12
BURKE, P., Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.21; 51. BAROJA, C., V idas m ágicas y Inquisición. Madrid: 1967, p.24-25. Apud NOGUEIRA, C.R.F., Bruxaria e história. São Paulo: Ática, 1991, p.23.
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com o um fenôm eno cuja p ró p ria p esso a é a fonte do m al. Tal qual L aura de M ello e Souza, an co rad a em autores com o K eith Thom as, utilizarem os ind istin tam en te os dois conceitos, diferen ciando apenas o de feitiçaria da n o ção de práticas m ágicas, onde no prim eiro caso há pacto dem oníaco.13 Por fim , é im p o rtan te en fatizar a lacuna ap o n tad a p o r C ario G inzburg nos estudos sobre a h istó ria da feitiçaria, ressaltando este autor que a m aio ria das pesquisas se voltou sobretudo p ara as perseguições a que a b ru x aria foi subm etida, em d etrim en to das práticas p ro p riam en te ditas, bem com o dos com portam entos dos perseguidos. -a- •
* * *
E ste trab alh o se in icia ao tem po d a expansão u ltra m a rin a por tuguesa, do trá fic o dos negros e de sua chegada com o escravos no Reino. O p rim eiro capítulo, “A frican o s em P o rtu g al”, expõe sum ariam ente o c a m in h a r em d ireção à costa ocidental african a, m as so b retu d o a in serção do a fric a n o nas diversas ativ id ad es económ icas em P ortugal nos séculos XV e XVI. A ausência de bibliografia sobre o tem a referente aos séculos seguintes foi um a lacuna que n ão conseguim os superar. O segundo capítulo, “Jabacousses e gangazam bes: feiticeiros negros no R eino”, tra ta da descrição das crenças e devoções dos escravos e forros em função d as m otivações que os lev aram a praticá-las: cu ras de doenças e “feitiços”; interferências nos rela cionam entos pessoais e busca de proteção. Para tanto, valeram -se de procedim entos diversos, com o o uso de ervas, bebidas, excre m entos, sangue de anim ais, defum ações, fervedouros, adorações
13
SOUZA, L. de M.. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.154155.
a ídolos, orações e uso de patuás, sobretudo as cham adas “bolsas de m an d inga”. N a m edida do possível, tentam os buscar as raízes african as dessas m anifestações. N o terceiro capítulo, “A m andinga de D eus”, faz-se esforço no sentido de entender o processo de cristianização dos africanos n a p ró p ria Á frica e em P ortugal, e das m anifestações desse cato licism o ta n to n a organização de co n frarias religiosas, firm ando so ciabilidades, com o nas p ró p ria s m anifestações de feitiçaria, através de orações, evocação de santos e uso de objetos de culto da Igreja, com o hóstias e p ed ra d’ara. O quarto capítulo, “Na rota das m andingas”, tratou das possí veis transm utações sofridas por certas práticas africanas, a exemplo das bolsas de m andinga, em função dos contatos estabelecidos en tre os negros em m eio ao tráfico interno na Á frica e o tráfico atlântico. O bservam os um notável intercâm bio de saberes entre os negros portadores dessas bolsas em P ortugal e no Brasil. F inalm ente, os dois últim os capítulos, “Lusitânia bruxa” e “N egros hereges, agentes do D iab o ”, ab o rd aram a repressão inqu isito rial às m anifestações dos africanos, tid as por feitiçarias, p o rta n to heréticas, m e d ia n te a p ro jeção d a idéia de pacto d e m oníaco observada nas inquirições aos réus. Nesse contexto, foi n o tório o processo de dem onização dos africanos e de seus cultos e práticas, prom ovendo o Santo O fício um movimento inequívoco de acu ltu ração da população aqui considerada. O títu lo M etrópole d a s m andingas: religiosidade negra e In q u isição no A n tig o R egim e justifica-se porque, de todas as ou tras m anifestações da religiosidade negra e m ulata em Portugal, a que sem dúvida pareceu ter um a origem claram ente africana - ao lado dos calundus - foi a confecção e p o rte das cham adas “bol sas de m andingas”, am uletos de proteção. A lém disso, os term os “m andinga” e “m andingueiro” significavam , p ara as instâncias de poder, em p a rtic u la r o S anto O fício, feitiçaria e feiticeiro.
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C A PÍT U L O I
O título também é um a form a de sugerir que Portugal, longe de estar invulnerável a estas religiosidades, foi cenário im portante de um complexo cultural h íb rid o envolvendo a Á fric a e o Brasil, ou seja, m etrópole das colónias e de suas m andingas, o que nos leva, no lim ite, a su b stitu ir a ex p ressão “afro -b ra sile iro ” pela “luso-afro-brasileiro” p ara ex p rim ir o com plexo religioso-cultural vigente no m undo português e ultram arin o .
A FR IC A N O S EM PORTUGAL
Os escravos pululam por toda a parte. Todo serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Mal pus o pé em Évora, julguei-me transportado a uma cidade do Inferno: por toda a parte, topava negros. Clenardo, 1535.
EM D IR EÇ Ã O À Á FR IC A E m su a H istó ria general d e la s ín d ia s, p u b licad a em 1552, o cro n ista F ran cisco L ópez de G ó m arra, dedicando sua obra ao m onarca espanhol Carlos V, percebe os descobrim entos m arítim os com o “o m aior acontecim ento desde a criação do m undo, depois da en ca rn ação e da m orte d ’A quele que o crio u ”.1 Sem som bra de dúvida, o pioneirism o ibérico na aventura in c erta e corajosa do d esb rav am en to de m ares, o cea n o s e te rra s d esco n h ec id as tran sfo rm o u p ro fu n d a m e n te o c e n á rio de u m a p e n ín su la que vivenciava inúm eras dificuldades, herdadas de um a co n ju n tu ra ex trem am ente problem ática n o século XIV. O s ares do oceano A tlântico tam bém bafejaram outros estados nacionais que, a seu tem po e lugar, desfrutaram do conhecim ento desse novo espaço, l
Charles Boxer. O império colonial português (1415/1825). Lisboa: Edições 70, 1969, p.25.
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tam bém responsável pelo d esco rtin ar de um o utro tem po que se iniciava no quatrocentos. E m baladas pelo im ag in ário fan tá stico europeu, as navega ções fluíram , no d eco rrer do século XV, sob o legado dos hom ens do ocidente m edieval. A s incursões de viajantes, m ercadores e m issionários pela Á sia e pelo oceano índico, ao longo da B aixa Idade M édia, p ro d u zira m relatos e cró n icas onde se m istu rav a às descrições geográficas u m a percepção o nírica, fantasiosa, m a ravilhada daquelas terras, im pregnando a m entalidade medieval. M undo repleto de riquezas variadas, ra ra s especiarias, com ilhas de ouro, governado por reis cobertos de pérolas e pedras preciosas, era local de abu n d ân cia e exotismo. “H om ens com pés voltados p ara trás, cinocéfalos que ladram , vivendo m uito além do tem po norm al p a ra a existência h u m an a e cujo pêlo, n a velhice, escurece em vez de branquear, m onópodes que se abrigam à som bra do único p é levantado, ciclopes, hom ens sem cabeça, com olhos nas espáduas e dois buracos no peito à guisa de n a riz e boca, hom ens que vivem apenas do p erfu m e de um a só espécie de fru to e m orrem q u an d o já o não podem resp i ra r”, são exemplos de seres escandalosos e m onstruosos, hum anos ou anim ais, que povoaram a im aginação dos homens, além ain d a dos m itos do P araíso T errestre, do rein o de Gog e M agog e do Preste João.2
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“V iveiros de to d as as m a ra v ilh a s”, nas palavras de Sérgio B uarque de H olanda, a ín d ia e a E tiópia, e depois o A tlântico e o Novo M undo, foram palco de transm igrações desse universo len d ário e m ístico.4 O m ito indiano, construído desde a A ntiguidade no m undo ocidental, desfez-se paulatinam ente a partir da presença efetiva dos p o rtu g u e se s n a Á sia. D isp ersaram -se p a ra outras regiões lendas com o, por exemplo, a do Preste João - que seria o soberano de um suposto reino cristão no Oriente. Laura de Mello e Souza aponta-a com o bastante ilustrativa no sentido de se perceber a idéia de m igração geográfica do im aginário europeu, e ainda p o r relacionar-se estritam en te às navegações portuguesas e aos descobrim entos. D a ín d ia, o poderoso, rico e populoso reinado desse m onarca cristão teria m igrado para a E tiópia no século XIV, situando-se supostam ente nos lim ites de dom ínios islâmicos, do M arrocos até o M ar N egro.5 E m bora m enos entusiasm ados e fantasiosos do que os espa nhóis no im ag in ário diante do novo, os portugueses viram nessa busca um im p o rtan te estím ulo p a ra o desvendam ento da Á frica. A lcan çar as terras desse governante estava entre as aspirações de navegantes e aventureiros, crentes em tê-lo com o ferrenho aliado co n tra os infiéis.6 D iria ain d a o fam oso cronista dos descobri m entos G om es E anes Z u rara , traduzindo as intenções do Infante D. H enrique, que:
A carto g rafia m edieval descreveu um m undo conhecido p o r algum as regiões bem definidas. A lém d a E uropa, via-se a Á sia e a Á frica, esta últim a circu n scrita ao M agreb e E gito e ligada à índia, levando à crença de um oceano ín d ico fechado, a refletir a concepção ptolom aica de um m ar interior.3 LE GOFF, J. “Ocidente medieval e o oceano Indico: um horizonte onírico”. In: Para um novo conceito de Idade M édia. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1979, p.75. SUTTO, C. “L’image du monde à la fin du Moyen-Age ». In: ALLARD, G.H.
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(Org.), A spects de la marginalité au Moyen-Age. Montreal: L’Aurore, s/d, p.63. Apud. MELLO E SOUZA, L. O D iabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.24. Jacques Le Goff arrola também uma vasta literatura acerca da geografia medieval. Op. cit., p. 263. MELLO E SOUZA, L. de, op. cit., p.26. Idem, p.27. Ver ainda HOLANDA, Sérgio Buarque de, Visão do Paraíso Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Nacional, 1969. BOXER, C.R., op. cit., p.43.
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(...) se dizia que o poderio dos mouros daquela terra de África era muito maior do que se comumente se pensava, e que não havia entre eles cristãos nem outra alguma geração (...). Queria saber se achariam em aquelas partes alguns príncipes cristãos em que a caridade e amor de Cristo fossem tão esforçados que o quisesse ajudar contra aqueles inimigos da fé.7
A expansão m arítim a p o rtu g u esa in sp iro u algum as polêm icas em relação ao complexo rol de suas m otivações. A histo rio g rafia portuguesa, rica nesse debate, oscilou desde a ênfase nos aspectos económ icos até os cien tífico s e relig io so s en q u a n to im p u lsio nadores dos descobrim entos.8 A s versões que tendem p a ra um certo equilíbrio entre esses fatores, a exemplo dos trab alh o s de Jaim e Cortesão e V itorino de M agalhães G odinho, p reponderam nas pesquisas recentes.9 D e um m odo geral, situam a génese da expansão m arítim a não apenas no cen ário p ortuguês, m as ainda no conjunto de tran sfo rm açõ es e u ro p eias o c o rrid a s n a B aixa Idade Média. O pioneirism o lu sitan o nos d esco b rim en to s eu ro p eu s dos séculos XV e XVI configurou-se, p o rtan to , com o u m a prim eira fase de um processo bem m ais am plo da expansão ocidental. M as sua precocidade nesse m ovim ento se situou com o um fenômeno
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ZUR AR A, G. E., Crónica dos descobrimentos e conquista da Guiné (1463/1468). Porto: Livraria Civilização, 1937, cap.VIII. Vitorino de Magalhães Godinho faz um interessante balanço bibliográfico sobre o tema, arrolando autores com o Oliveira Martins, A ntônio Sérgio, Joaquim Bensaúde, Jaime Cortesão e outros. Ver A economia dos descobri mentos henriquinos. Lisboa: Sá da Costa, 1962, p.37-50. “Se o espírito de Cruzada, mais persistente na Península, em consequência da Reconquista, foi o impulso iniciador, a verdade é que os descobrimentos resultaram do complexo de condições económ ico-geográficas e científicoreligiosas”. GODINHO, V. de M., op. cit., p.42; CORTESÀO, J., Os descobrimentos portugueses. Lisboa: Arcádia, 1958-1961, 2 v.
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ap arentem ente atípico. R egião m arginal, pobre, carente de con dições económ icas favoráveis, solos acidentados, de q u alid ad e p re c á ria , clim a irreg u lar, escassez p o p u lacio n al. P ara alguns, Portugal lançar-se-ia ao m a r fugindo de sua pobreza.10* N o entanto, a em preitada em direção ao além -m ar deveu-se a outras circunstâncias, fundam entais para seu sucesso. Remontemonos ao O cidente europeu a p a rtir do século XI, momento im portante de transform ação, quando o crescim ento dem ográfico, o desen volvim ento tecnológico no cam po, a rev italização do com ércio e da vida u rb an a e a em ergência dos interesses cad a vez m ais vivos da burguesia m ercantil redim ensionaram as relações entre as diversas regiões. O litoral e os portos portugueses, sobretudo L isboa, fo ram trag a d o s pelo in c re m en to d o com ércio e n tre o M ed iterrân eo e o M ar do N orte, d irecio n an d o um acúm ulo de capital significativo.11 A in d a nesses tem pos, desenvolveu-se a m a rin h a portuguesa e as técnicas e instrum entos de navegação, legado dos árabes e dos italianos, que com seus saberes aju d aram a im pulsionar as em b arcaçõ es p o rtu g u e sa s p a ra o A tlâ n tico . T arefa fa c ilita d a , inclusive, pelo p ró p rio te rritó rio , p ro jetad o p a ra o oceano. Por fim, a reestru tu ração do E stad o português, com a ascensão dos Avis, en tre 1383 e 1385, viabilizou um q u ad ro político que pôde coordenar e estru tu ra r a expansão. O século XIV tro u x e an o s difíceis, te m p o de p este e alta m ortalidade, tem po de escassez e de p ro cu ra de terras por p a rte da nobreza depauperada, cujos rendim entos decresciam cada vez mais. Tem po em que a burguesia m ercantil portuguesa procurava 10
11
THOMAZ, L. F. R., “Expansão portuguesa e expansão européia: reflexões em torno da génese dos descobrimentos”. In: D e Ceuta a Timor. Rio de Janeiro: Difel, 1994, p.5. MARQUES, A.H. de O., H istória de Portugal. México: Fondo de Cultura Económica, 1983, v. I, p.106/112.
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novos m ercados, assoberbada pelo monopólio veneziano e genovês das esp eciarias asiáticas. A tra íd a pelo b rilho do o u ro sudanês, buscava ain d a os cereais m arro q u in o s de que carecia o Reino. E n tre fin s do século XIII e inícios do XIV, a chegada dos produtos asiáticos ao O cidente pelas m ãos dos m ercadores das cidades italianas se viu progressivam ente dificultada pelo processo de d esin teg ração do Im p ério M ongol, que g a ra n tia não apenas a se g u ra n ç a d as ro tas, com o ta m b é m os p reço s d as m e rc ad o rias. A to m a d a de C o n sta n tin o p la pelos tu rc o s o to m an o s em 1453 agravou sobrem aneira esse com ércio, m ajo ran d o os preços enorm em ente e apontando, assim , p a ra a necessidade de outras opções de acesso aos produtos orientais. D istanciavam -se, pois, os portugueses, das riquezas do Levante, e o progressivo avanço tu rco am eaçava o com ércio ocidental e abalava as estru tu ra s da cristan d ad e européia.12 O peso desse asp ecto económ ico nos d esco b rim en to s p o r tugueses v ario u na h isto rio g rafia, en sejan d o as posições m ais d iscu tív eis, d esd e co n sid erá-lo co m o ú n ic o d e te rm in a n te a té negar-lhe qualquer im portância, com o já o dissem os.13 O s fatores religiosos e ideológicos expressos n a b u sca do reinado do Preste João, na expansão da fé e no esp írito cruzadístico foram traço s relevantes desse processo. O ideal de C ruzada, que tam bém moveu a expansão m a rítim a p o rtu g u esa, enraizado desde os tem p o s d a p resen ça efetiva dos m o u ro s no co n ju n to da Península, aparece alargado qu an to ao seu objeto, gan h an d o 12 13
GODINHO, V. de M., op. cit., p.80. “Nunca, nem no período de D. Henrique, nem no de D. João II, existiu a am bição desregrada das riquezas. Paira, sobre as duas grandes figuras e sobre todos os heróis da epopéia, um ideal superior de abnegação, de aspirações nobres e puras, um fogo sagrado de sacrifício e de sinceridade que ficarão para sempre na história como o traço mais profundo e belo das glórias na cionais.” Ver BENSAÚDE, J., A cruzada do Infante D. Henrique. Lisboa: s/n, 1943. Apud GODINHO, V. de M., op. cit., p.40.
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nova versão: m uito m ais do que a libertação da cidade sagrada de Jerusalém , o com bate ao Islão se generalizava, congregando, sob a noção de “g u erra san ta”, vários estratos da população. A d iscussão sobre a p e rso n a lid a d e e o caráter do Infante D. H enrique foi tam bém tem a largam ente frequentado pela his to rio g rafia p o rtu g u esa. V isto com o u m cru zad o em seu tempo, levado pela fé ou pelo espírito científico, ou então pelos ganhos com erciais e pela cobiça, as intenções do In fan te suscitaram di versas interpretações, atestadas pelas fontes quatrocentistas de cro n istas e viajantes, com o Z u ra ra , D u a rte Pacheco ou Diogo Gomes: curiosidade geográfica, busca do ouro, salvação da alma, com bate ao infiel. Todas estas inspirações, juntas, com puseram , n a verdade, as m otivações não só do Infante, mas tam bém dos m onarcas subsequentes, m ercadores e aventureiros.14A expansão fora fruto de um a pluralidade de iniciativas que convergiram num contexto m ed ieva l e m o d ern o ao m esm o tem po. Servir a D eus pelas arm a s, co m b aten d o o infiel e a in d a articulando ganhos m ercantis eram os im pulsos dos “cavaleiros-m ercadores” de que falou G odinho.15 *** A presença dos portugueses no A tlântico, num prim eiro momento, destacou-se pela ocupação do litoral n o rte m arroquino e ocidental d a Á frica na busca de ouro, especiarias e escravos. A té m eados do século XV, o in teresse pelo M arrocos em detrim en to da Á fric a negra era evidente. A nobreza m ilitar por tuguesa, cerceada nos seus privilégios, enxergava o Magrebe como horizonte de possíveis realizações: enriquecim ento pela pilhagem, dom ínios fu n d iário s, prém ios e h o n ra ria s d ’El-Rei. A s tensões 14 15
Idem, p.42. Idem, p.213.
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sociais emergentes na fidalguia portuguesa, a turbulência latente de sua condição, desviavam -se p a ra aquela região, servindo aos interesses da Coroa. A conquista de Ceuta, situada no extrem o n o rte do M arrocos, m arca o início, em 1415, da travessia p o rtu g u esa em direção ao A tlântico. A rtífice e p rin cip al im pulsionador dos p rim eiros m o mentos das conquistas africanas, o Infante D. H enrique (1394/1460), filho do então m onarca D. João I, m oveu-se inicialm ente m uito mais pelo ardor cruzadístico de com bate ao infiel do que p ro p ria m ente por um projeto m ercan til.16 São discutíveis as m otivações económ icas e estratégicas desse em preendim ento, um a vez que alguns autores relativizaram a im p o rtân cia da região m arro q u i na enquanto produtora de cereais, e a p ró p ria cidade com o zona estratégica de combate à p ira ta ria e p o nto im p o rtan te da ro ta do comércio do ouro tran saarian o .17 N o entanto, o dom ínio de C euta facultou aos portugueses in fo rm açõ es em relação às te rra s do A lto Níger e do Senegal, já an terio rm en te esboçadas num m apa catalão de 1375, onde se tin h a conhecim ento da região ocidental do Sudão e de rotas das caravanas de m ercadores o rig in árias do N orte da Á frica, passando pelo S aara e chegando até a região da G uiné.18 A conquista de algumas ilhas do A tlântico integrou esta etapa inicial de novas descobertas: a M adeira, em 1419, o arquipélago
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“Parece ficar claro que, pelas suas motivações como pelo seu caráter, pela sua continuidade com a Reconquista como pela ideologia que a informa, pelo espaço geográfico em que se desenrola, pela base social, a expansão portuguesa em Marrocos antes de D. João II é muito mais um derradeiro episódio da história medieval que o primeiro episódio da moderna. O seu nexo lógico com a revolução comercial do século XI e com a ascensão da burguesia é mais que tênue.” THOMAZ, L. F., op. cit., p.28. SARAIVA, J. H., História concisa de Portugal. Lisboa: Europa-América, 1996, p. 125-126; BOXER, C., op. cit., p.42. BOXER, C., op. cit., p.40.
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dos A çores, em 1427, colonizados respectivam ente em 1427 e 1439, e p o r fim , já ao té rm in o da década de 50, foi a vez de C abo Verde. A efetiva ocupação dessas ilhas se constituiu com o um verdadeiro ensaio da colonização u ltra m a rin a p o rtu g u esa, in a u g u ra n d o o sistem a da g ra n d e lavoura a ç u c a re ira que no século XVI seria in stituído no Brasil. Prosseguindo o cam inho em direção à costa ocidental africana, ultrapassava-se, em 1435, o tão tem ido C abo do Bojador, supostam ente o lim ite sul do A tlântico no im aginário europeu, região de correntes torm entosas, clim a difícil, certeza de um a viagem sem volta. E n tre 1441 e 1448, a expansão seguiu rápida, já im pulsio nada pela força das caravelas. T ransform ando-se num a em presa m ais elab o rad a, v oltada p a ra o com ércio e co n tato s p acífico s em d etrim en to d o corso violento, inaugurava um novo m odelo de expansão. O navegador N uno T ristão atingia o C abo Branco, nordeste da atu al M au ritân ia, A rg u im , C abo Verde e p o r fim a desem bocadura do Senegal, fronteira que separava os azenegues, ou zan ag as, das te rra s dos negros afric an o s. N esse m om ento, a costa da G u in é tornava-se um foco económ ico lucrativo p o r excelência, adensando-se a p ro cu ra de m ercadores p articu lares a se lançarem nesse negócio, reunindo capital e arm an d o navios.19 N ovam ente foi Z u ra ra quem acentuou a persistência do In fan te n a em p re ita d a a fric a n a n ão ap e n a s pelos asp ecto s religiosos, m as agora tam bém pelas perspectivas de com ercialização.20 Em 1445, a fundação da p raça de A rg u im visava o desvio do com ér cio tra n sa a ria n o do Sudão, que se consolidava, pouco a pouco, co m o e n tre p o sto im p o rta n te o n d e os p o rtu g u e se s tro c a v a m cavalos, tecidos, m a n u fa tu ras de cobre e trig o por o u ro em pó, escravos e m arfim . E sta p raça a fric a n a se to rn o u u m m odelo 19 20
THOMAZ, L.F., op. cit., p.34. ZURARA, G.E., op. cit., cap.VII.
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de feitoria p ara as ta n ta s outras fu n d ad as nas costas d a Á frica e da Á sia.21 Nos anos 50 e 60, os italianos C adam osto e U so d im are e o p o rtu g u ês D iogo G om es exploravam o lito ral desde a G âm bia até o rio G eba, iniciando o com ércio das especiarias, sobretudo a pim enta m alagueta, com excelente m ercado na E uropa. E m 1460, q u ando falecia o obstin ad o Infante, P edro de S intra chegava até S erra Leoa. P ara além dessa região, D. A fonso V concedeu a res ponsabilidade de exploração a particulares, como foi o caso notável de F ern ão G om es, rico m ercad o r lisb o eta de grossos cab ed ais, que a p a rtir de 1469 pôde navegar e co m ercializar naquela área p o r cinco anos, chegando até o golfo d a G uiné, em tro ca de um a renda anual ao rei.22 Foi nessa região, vale lem brar, o u tro achado precioso aos portugueses: a ilha de São Tomé, descoberta em 1471, m as colonizada apenas na década seguinte. D as p rin cip ais ilhas no golfo, São Tom é destacou-se pelo cultivo da cana e fabricação do açúcar, cujas técnicas e o rganização se tran sp lan tariam p ara os engenhos nordestinos brasileiros a p a r tir de m eados do século XVI. Sob o reinado de D. João II (1481/1495) ocorreu a co n stru ção da im portante feitoria fortificada de São Jorge da M ina (1482), na Costa do O uro da Baixa Guiné, representando o esforço inequívoco d a continuidad e do desvio do com ércio do ouro p ara o litoral.23 Sem co nseguirem p e n e tra r no in terio r, fonte do tã o co b içad o produto, perm aneciam os portugueses à espera dos m ercadores 21 22 23
BOXER, C., op. cit., p.48. GODINHO, V. de M., op. cit., p.206. “Mas a luta das caravelas portuguesas contra as caravanas mouras de camelos do Saara teve como resultado a predominância das primeiras no comércio do ouro, por um período de cerca de cem anos, de 1450 a 1550. Durante o reinado de D. Manuel I (1496/1521) importou-se, só de São Jorge da Mina, um valor médio anual de 170000 dobras de ouro e, nalguns anos, a quantia foi ainda superior.” BOXER, C., op. cit., p.51.
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itinerantes africanos p ara concretizarem as transações. A Coroa p ortuguesa exerceu um verdadeiro m onopólio da im portação de ouro, escravos, especiarias e m arfim , embora com o tempo cedesse a alguns p articu lares o com ércio destes três últim os artigos.24* A idéia d e se d o b ra r a p o n ta m e rid io n al da Á fric a p ara a tin g ir a ín d ia g a n h o u co lo raçõ es d efin itiv a s no rein ad o d a quele m o n arca, o b stin ad o pela idéia de tra v a r contatos com o lendário P reste João. Ele confiou a D iogo C ão o prosseguim ento d a exploração, que atingiu a desem bocadura do Z aire em 1483, estabelecendo contatos com o reino do Congo e chegando ao Cabo de S anta M aria, n a atu al A ngola. A conquista do tão alm ejado lim ite sul d a Á frica, p o n ta extrem a do continente, foi obra de B artolom eu D ias: o C abo das Torm entas, transform ado em Boa E sperança, assim cham ado por facu ltar a passagem direta para o índico, façan h a pouco depois reputada a Vasco da G am a em 1498. A b ria -se c a m in h o ao com ércio das especiarias asiáticas pelo A tlântico, m onopolizadas pelos portugueses até a segunda m etade do século XVI. A tr a je tó r ia p o rtu g u e s a n a e ta p a a fric a n a d a expansão desdobrou-se, portanto, em dois mom entos diversos: para o N orte da Á frica, tendendo a se a firm a r com o um a expansão m ilitar e cru zad ística, e depois p ara a costa ocidental, onde os interesses económ icos se evidenciaram m ais fortem ente. C onstruía-se, assim, o im pério colonial português, percebido pela sensibilidade do cronista D am ião de G óis em 1554: Hoje em dia, este mesmo Tejo dá leis e normas através de todas as costas do Oceano, na África e na Ásia. A essas leis, se submeteu,
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Segundo os arquivos de contabilidade do forte, o número de escravos aí negociados quase triplicou entre 1504 e 1522. Ver ALBUQUERQUE, L. de, Dicionário de história dos descobrim entos portugueses. Lisboa: Caminho, 1993, v. I, p.379.
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livremente ou à força, reis e príncipes dessas províncias, os quais prestam vassalagem aos portugueses, e muitos deles em número sempre crescente, vivem na obediência e na fé de Cristo. 25 O COMÉRCIO NEGREIRO PORTUGUÊS
O com ércio de escravos no m undo m e d ite rrâ n ic o era intenso em finais da Idade Média, destacando-se as cidades italianas de Génova e Veneza, articuladoras de um considerável m ercado, e regiões circunvizinhas do m ar Negro. A Península Ib érica era abastecida por cativos m uçulm anos, obtidos através das guerras contra os cristãos, que em crescente aum ento a p a rtir do século XIII eram fonte constante de escravos. M as ex istiam escravos das mais diversas nacionalidades, sobretudo na Espanha: gregos, caucasianos, sardos e russos.26 A s referências que designaram os cativos se atin h am às n a cionalidades, surgindo como “sarracenos”, “m ouros”, “etíopes” ou “esclavos”, oriundos da Esclavonia, feitos prisioneiros do rei O tão, o G rande, rei da G erm ânia no século X. A cabou-se p o r im por e difundir o term o “escravo”, em bora o pró p rio Z u rara, em sua Crónica da G uiné (1463-1468), ofereça-nos palavras com o “servo”, “m ouro”, “mouro-negro”, “cativo” e “alm a”.27 A s sequelas d esastro sas da P este N eg ra n ã o p o u p a ra m , evidentem ente, o m ercado de m ão-de-obra, escasseando-o. Os portugueses e castelhanos valeram -se de incursões p ara o n o rte
da Á frica, objetivando interceptar tam bém a navegação m oura m agrebina-granadina, e o arquipélago das C anárias, conhecido desde fins do século XIII, onde os rendosos resgates de cativos foram intensos, sob a form a de p ira ta ria e corso, fossem para uso nas atividades urbanas, fossem p ara exportar p ara outras regiões. P articu larm en te o estreito de G ib ra lta r e a região do M agrebe eram pontos estratégicos, cruzando sobre si várias rotas mercantis im portantes. Os portugueses, entrando em contato com os mouros do norte da Á frica, com a instalação em C euta em 1415, deram o passo inicial p ara o cam inho em d ireção à costa sul.28 *** D atam do início da década de 40 os prim eiros resgates na região do Rio do O uro, fruto de contatos com erciais pacíficos e alianças locais. Contou-nos Z u rara, em sua Crónica da G uiné (1463-1468), que A n tão G onçalves tro cara alguns jovens azenegues c ap tu ra dos por escravos negros e ouro em pó, dando p a rtid a assim aos sucessivos resgates que daí se seguiram .29 Os prim eiros momentos dessas negociações foram tam bém descritos por outras n a rra ti vas, a exemplo do m ercador veneziano C adam osto, m orador em P ortugal en tre 1454 e 1463, e o navegador D iogo G om es, cujas m em órias foram registradas pelo alem ão M artin B ehaim entre 1484 e 1490.30* Em 1443, o Infante autorizava particulares a p artir do Algarve 28
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GÓIS, D., Descrição da cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizontes, 1988, p.59. VERLINDER, C., L’esclavage dans VEurope médievale. Brugge: D e Tempel, 1949; GODINHO, V. de M., op. cit., p.151-152; HERRS, J., Escravos e servidão doméstica na Idade Média. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983, p.24. PIMENTEL, M. do R., Viagem ao fundo das consciências. O tráfico de escravos na Época Moderna. Lisboa: Colibri, 1995, p.20.
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Já existiam negros em Granada, na Catalunha, em Aragão e em Maiorca desde o século XIII. GODINHO, V. de M., op. cit., p.153-155. ZURARA, G.E., op. cit., cap.XII e XIII. Cadamosto vai assistir à passagem aos novos enlaces comerciais em detri mento das guerras de apresamento quando descreve sua viagem pela terra dos azenegues, mouros nómades habitantes da costa e explorados por ricos mercadores árabes, chefes das caravanas de comércio. Ver CADAMOSTO, L., Navegações. In: GARCIA, J. M., Viagens dos descobrimentos. Lisboa: Presença, 1983, p.73-128.
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para a costa african a e, no ano seguinte, N uno T ristão apresava negros na região do Senegal. A in d a nesse ano, o escudeiro de D. H enrique apan h o u cerca de duzentos de um a só vez, provando as possibilidades lucrativas desse novo em preendim ento, aglutinador de um intenso intercâm bio de produtos. Vindos do interior do continente, o ouro e os escravos eram trocados por cereais, panos e cavalos adquiridos nas praças m arroquinas.31 A rguim foi um ponto im p o rtan te desse comércio, constituindo-se com o entreposto de escam bo com os chefes das com unidades african as e m eréadores locais.32 N a região da A lta Guiné, entre o rio Senegal e o Cabo das Palm as, houve casos de m ercadores reinóis que penetravam nas tribos atu an d o com o interm ediários das negociações, facilitando o com ércio de prisioneiros intertribais e crim inosos, feitos cativos nas com unidades negras. A lguns portugueses, inclusive, integraram -se com pletam ente aos costum es e rituais daquelas sociedades, conhecidos p o r isso com o “tangom ãos” ou “lançados”.33 O b rilh o do ouro, a o fu scar os olhos dos p o rtu g u eses; o exotismo das especiarias e dos anim ais, aguçando a curiosidade e excitando o consum o de artigos com o a pim enta-m alagueta, a pim enta-do-rabo, o m arfim , a m irra , tecidos, algodão, p ed ras preciosas, m adeiras, cestos, couros de anta, m acacos, papagaios, canários, os gatos da A lgália, lobos-m arinhos e, p o r fim , o co-
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O cavalo era especialmente apreciado, particularmente as crinas e os rabos, sendo até medida de preço de escravos. Segundo J. Munzer, passando por Portugal entre 1494 e 1495, até 1460 um cavalo velho valia de 25 a 30 escravos; depois os preços subiram, trocando-se cada escravo por 12 cavalos, e em inícios do XVI, chegava-se a, no máximo, cinco. MUNZER, J. “D o descobrimento da África marítima e ocidental, isto é, da Guiné, pelo Infante D. Henrique de Portugal”. In: BRASIO, A., M onum ento m issionário africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953. AZEVEDO, J.L., Épocas de Portugal económico. Lisboa: Livraria Clássica 1929, p.72. BOXER, C., op. cit., p.53.
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m ércio de negros, enriqueciam cada vez m ais os cofres da Coroa e dos m ercadores particulares. A aparição pública dos etíopes - designação dos africanos encontrados a p artir do rio Senegal - foi emblemática, marcando um novo m om ento da cam inhada pela Á frica, quando as navegações adquiriram um caráter de em presa comercial. Em outubro de 1451, casar-se-iam a in fan ta D. Leonor com Frederico III, m onarca do Sacro Im pério R om ano-G erm ânico, e a corte portuguesa prepa rava cuidadosam ente as comemorações do enlace. Inaugurando as festividades que se desenrolariam p o r alguns dias, um m ajestoso banquete no palácio real. D entre os vários divertim entos que se seg u iram até a m a d ru g a d a, ura espetáculo notável estarreceu os presentes: dançavam , alegres, trajad o s à m oda de seu povo, entoando cantigas em ritm o febril, ao som de seus instrum entos típicos, num erosos negros, a saudar a jovem im peratriz. O tio de D. Leonor era ninguém m enos do que o Infante D. H enrique, que há pouco d esco rtin ara outra porção do continente africano, chegando até a zona setentrional da G uiné, a terra dos negros.34 O com ércio que se estabeleceu era exercido tanto pela coroa quanto pela iniciativa particular, fosse de mercadores ou senhores, desde que pagassem o tributo do quinto ao m onarca para terem o direito de realizar viagens e resgates de alguns produtos. Em fins do século XV, no entanto, o ouro, os escravos e as especiarias da G uiné eram m onopólio da coroa, restringindo-se aos particulares artig o s secundários, em bora m u itas das vezes im perasse uma flexibilidade m ediante concessões ocasionais.35* 34
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Descrição do padre Nicolau Langmann de Falkenstein, reproduzida em SOUSA, A.C., Provas de História Genealógica. Lisboa, 1739, tomo I. Apud TINHORÃO, J. R., Os negros em Portugal. Uma presença silenciosa. Lisboa. Caminho, 1988, p.114. É exemplo o caso do florentino Bartolomeu Marchione, que obteve licença para o tráfico escravista e de marfim, além do monopólio da exportação dos
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O tráfico de escravos em seu prim eiro meio século dirigiu-se sobretudo para o Algarve e p ara a cidade de Lisboa, cujo porto ostentava a pujança das caravelas carregadas de riquezas africa nas, das exóticas especiarias orientais e até do açú car oriundo da Madeira, Cabo Verde e São Tomé em fins do século XV. O total de africanos saídos das principais feitorias fornecedoras ao Reino é difícil de ser quantificado exatamente. Particularm ente em relação a Lisboa, esta contagem se to rn a complexa, pois o terrem oto de 1755 pôs abaixo os registros fiscais e com erciais existentes desde meados do XV, tendo-se p o rtan to um a idéia aproxim ada a p a rtir de outras fontes dispersas.36 E ntre 1441 e 1448, é m ais um a vez Z u ra ra que contabiliza quase mil cativos negros desem barcados. A p a rtir de meados do século, estabelecidos os tratos pacíficos, de 700 a 800 chegavam anualm ente a Portugal, segundo Cadam osto; ao fim do período, entre 1475 a 1495, a m édia elevava-se p ara 3.500 p o r ano só na região da A lta Guiné, m as no início do século XVI esse tráfico declinava, como se observa na Tabela 1 anexa.37 Paralelamente, entretanto, o núm ero de escravos negociados na região das ilhas do Golfo da G uiné só fez au m en tar ao longo do século XVI. D estaque-se especialm ente a ilha de São Tomé e Príncipe como entreposto im portante do comércio de escravos para a A m érica espanhola e o Brasil.38 Sua proxim idade em relação à costa oeste da África, sobretudo das feitorias São Jorge da M ina e
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cativos para a Espanha e Itália. Ver GODINHO, V. de M., op. cit., p.204-207. SAUNDERS, A.C. de C.M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982, p.40. Este trabalho, dentre a bibliografia sobre o tema, foi o que consideramos mais completo, atualizado e documentado sobre os negros em Portugal no período a que se propõe analisar. Idem, p.40-43. Ver também GODINHO, V. de M., op. cit., p.198. BOXER, C., Relações raciais no império colonial português. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.47.
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A xim , fizeram -na atu a r com o aglutinadora do tráfico oriundo da A lta e B aixa G uiné, levando inclusive a C oroa a estabelecer, em 1519, um a regulam entação específica acerca do tráfico destinado a São Tomé. E n tre 1525 e 1527, estim ava-se um a cifra entre dois e três m il indivíduos por ano.39 E m 1554, por exemplo, enquanto a população escrava se com punha de cerca de dois m il, a de b ran cos chegava a seiscentos, sem co n tar os cerca de cinco a seis mil escravos em trânsito, m antidos em galpões.40 A ilha de Santiago, no arquipélago cabo-verdiano, tam bém era foco de um tráfico intenso nesse século, chegando tam bém a um a m édia an u al de cerca de 3.500 originários da M au ritân ia e do Sahel.41 A p a rtir d a segunda m etade do século XVI, os p rin cip ais m ercados do trá fic o foram o rein o d o C ongo, d esco b erto em 1482/83, e A ngola, que por m ais de dois séculos foi a p rin cip al fornecedora de escravos para o im pério português no A tlântico sul, sobretudo o Brasil, e em m enor escala p ara a A m érica espanhola. O com ércio angolano era realizado em m ercados no interior - os “pum bos” -, por interm édio dos “pom beiros”, elementos m ulatos em sua m aioria, negros livres e até escravos de confiança, que traz iam para a costa caravanas de cativos a serem negociados e em barcados da costa africana.42 A s m ercadorias adquiridas na Á frica negra eram freqúente m en te e x p o rta d a s p a ra o u tra s regiões eu ro p éias. A lg u m a s especiarias, com o a pim enta m alagueta, iam p ara F landres; os escravos, para Castela e A m érica, ocasionando um m ovim ento d e su b id a de p reço s p a rtic u la rm e n te d ec o rre n te d o m ercad o am ericano, que não cessava de crescer a p a rtir de m eados dos quinhentos. E m bora não fosse significativo, o m ercado italiano 39 40 41 42
SAUNDERS, A., op. cit., p.41. LOPES, E.C., A escravatura: subsídios para sua história. Lisboa: 1944, p.29. SAUNDERS, A., op. cit., p.41. BOXER, C., O im pério colonial português (1415-1825), p.112.
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cresceu, sobretudo ap ó s 1453, q u an d o os tu rco s bloquearam o fluxo de escravos originários do M ar Negro.43 O com ércio negreiro p a ra fora de Portugal já era p rática desde m eados do século XV. A lucratividade certa e g aran tid a fez o m o n a rc a D. A fo n so V d e sd e n h a r o apelo d as co rte s de 1472/1473 p ara que se restringissem as exportações de escravos berberes e guineenses, necessários à agricultura in tern a, em bora ordenasse a vinda dos cativos da G uiné p ara o R eino antes de seguirem p ara outros portos estrangeiros.44 D e Lisboa seguiam para G uadalquivir, Toledo, Valadolid, M edina del Cam po, Sevilha, Barcelona, Valença.45 E sta últim a, em fins do século XV, tornarase particularm ente um atraente m ercado de escravos negros, mais caros do que em Lisboa, e obtidos p o r pertinazes com erciantes, dentre os quais o florentino Bartolom eu M archionni, arrendatário desse comércio. O segundo q u artel do século XVI m arcou o início de um a d e sp ro p o rç ã o e n tre o n ú m e ro d e cativ o s d e sem b a rcad o s em P ortugal e aqueles que eram repassados ao exterior. C ad a vez m ais o m ercado in te rn o se red u zia d ia n te das altas cifra s de exportação p ara a E sp an h a e suas colónias. Em 1510, a A m érica espanhola recebia seu prim eiro grande carregam ento de cativos, cerca de 250 africanos. A organização desse comércio envolvia mercadores espanhóis acordados a arren d atário s po rtu g u eses que faziam o p ercurso Á fric a - Lisboa - Sevilha p a ra depois, finalm ente, chegarem a seu destino últim o, via A tlântico. D epois de 1530, no entanto, os 43 44
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SAUNDERS, A., op. cit., p.50. “Portugal era, assim, o fornecedor de escravos no despontar do mundo moderno, tal como Veneza e Génova o tinham sido no mundo dos finais da Idade Média.” AZEVEDO, J.L., op. cit., p.76. A s cifras dessa exportação são muito pouco conhecidas, salvo em certos casos, como o de Valença. SAUNDERS, A., op. cit., p. 50.
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escravos p assaram a ser enviados diretam ente de Cabo Verde ou São Tom é p a ra o N ovo M undo, d im in u in d o sobrem aneira seu percurso, bem com o a m ortalidade a bordo dos negreiros.46 O m ercado b rasileiro ad q u iriu , pouco a pouco, um peso expressivo nesse com ércio em finais do século XVI. A transição da m ão-de-obra indígena escravizada p ara a africana se fez gra dativam ente nos engenhos açucareiros nordestinos. Diz-nos Stuart Schw artz que em 1572 o engenho baiano de Sergipe, propriedade do C onde de Linhares, possuía apenas 7% de escravos africanos. Já em 1591, esta p ro p o rção cresceu p a ra 37%, e em inícios do XVII, praticam ente 100%. O volum e do com ércio negreiro para o Brasil ensejou algum as variações de estim ativas. Fréderic M auro contabilizou cerca de cem m il exportados a p a rtir de meados do XVI, num a m édia de m il por ano, incluindo os oriundos da Guiné, que eram a im ensa m aioria nesse período, e ainda os provenientes de São Tom é e Cabo Verde. N as últim as décadas dos quinhentos esse volum e d o brou pelo fluxo de cativos vindos do reino do Congo e de A ngola,47 e ao se iniciar o século XVII esses números não cessaram de crescer, to rn an d o -se A ngola o foco principal das im p ortações coloniais.48 Inaugurava-se a í um m om ento de grande expansão da atividade açucareira brasileira: altos preços 46
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Para o aprofundamento do conhecimento desse comércio, ver os trabalhos de SCELLE, G., Histoire Politique de la traite négrière aux Indes de Castille e BROWSER, F.P., The african slave in colonial Peru (1524/1650). Apud Idem, p.61. D e 1575 a 1591, estima-se que vieram de Angola cerca de 52 mil escravos. Ver SERRÃO, J. (Org.), Dicionário da Historia de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1963/71, v. II, p.78. MAURO, E, Le Portugal et VAtlantique au XVII siecle. Paris, 1960, p. 147-52. Ver ainda os seguintes trabalhos: LOVEJOY, P.E., Transformations in Slavery. Cambridge, 1983; KLEIN, H.S., The M iddle Passage (Comparative Studies in the Atlantic Slave Trade). Princeton: Princeton University Press, 1978; CURTIS, P.D., The A tlantic Slave Trade: a Census. Madison, Wisconsin: University Press, 1969.
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no mercado europeu, aum ento do consum o e utilização m aciça do braço africano nos canaviais pernam bucanos e baianos.49 O comércio africano organizou-se institucionalm ente a p artir de 1486, quando a Vedoria da Fazenda da G uiné, criad a em 1461 no Algarve, foi transform ada em Casa da M ina e Tratos da G uiné e transferida para Lisboa.50 A operacionalização do tráfico dos africanos coube à Casa dos Escravos, repartição da Casa da Guiné, tendo por função o recebim ento dos cativos, a organização das vendas, a concessão de licenças e contratos a particu lares p ara exercerem o tráfico na costa african a e nas ilhas de C abo Verde e São Tomé, e o recolhimento de im postos variados, que incidiam sobre os escravos e outros artigos oriundos da Á frica N egra. D o desem barque à venda, o africano subm etia-se a inspeções físicas, avaliação de preço etc. O escrivão da Casa dos Escravos registrava o núm ero de escravos chegados, seu valor e a em barcação que os trouxera. Infelizmente, não se en co n traram registros da p ro ce dência desses cativos, salvo esporadicam ente, como ocorreu entre 1482 e 1516, quando a im ensa m aioria dos negros que chegaram a Valência vindos de Lisboa eram wolofs da Senegâm bia.51 N ão foi à toa que um largo do b airro da A lfam a, em Lisboa, ganhava o nome de Praça dos Escravos. E ra nesse local - ou ain da no Pelourinho Velho, onde vários crim inosos eram punidos -, que os africanos sacram entavam sua transform ação em cativos, ao serem vendidos ao m odo de cavalos, bois ou quaisquer outros animais domésticos. Os escravos eram adquiridos da Coroa p o rtu guesa ou dos arrendatários do tráfico, que realizavam as revendas.
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SCHWARTZ, S., Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.68. A Z E V E D O , J.L., op. cit., p.73. SAUNDERS, A., op. cit. p.29-31. Ver ALONSO, C., “Procedência de los esclavos negros en Valência (1482/1516)”. Revista espanola de antropologia americana, VII, 1972.
Segundo João B randão, em inícios da década de 50 a cidade de Lisboa prim ava pelo alto núm ero de mercadores de escravos, entre outros artigos, cerca de sessenta a setenta.52 D e um m odo geral, as transações envolviam um a espécie de interm ediário - um corre tor - entre o vendedor e o com prador, ganhando 2% de comissão. Cargo oficial, nom eado pelas diversas câm aras m unicipais, pouco a pouco tais com erciantes foram aum entando em núm ero. Em Lisboa, nos m eados do XVI, estavam em torno de 12, integrando um com ércio im p o rtan te na econom ia do Reino.53 *** A dissem inação da fé cristã foi um argum ento im portante para a anuência da Igreja ante a escravização dos povos pagãos que estivessem sob o dom ínio português. A ssim , entre 1452 e 1456, a pedido da C oroa portuguesa, algum as im portantes bulas papais foram pro m u lg ad as nesse sentido - D u m diversas, R o m a n u s Pontifex e Inter coetera -, estim ulando a expansão e asseguran do ao rei de P o rtu g al um a série de privilégios. P ro p ag an d o o nom e glorioso de C risto nas regiões m ais rem otas, o m onarca era autorizado a subjugar os territó rio s e bens de sarracenos e pagãos, im buído de um espírito cruzadístico, escravizando-os e em penhando-se ao m áxim o em convertê-los ao cristianism o. A obra expansionista do Infante D. H enrique, tido com o soldado de C risto e defensor da fé, foi enaltecida, m encionando-se ainda a exploração da costa ocidental da Á frica e o com ércio de escra vos negros. A ren tab ilid ad e económ ica da m ercan tilização do africano, e a consequente entrada de negros infiéis ou pagãos em Portugal que iriam ser convertidos foram suficientes para a plena 52
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BRANDÃO, J., M ajestade e grandezas de Lisboa em 1552, ed. Anselm o Braamcamp Freire e J. J. Gomes de Brito, Archivo Historico Portuguez, XI, 1917, p.8-241. SERRÃO, J. (Org.), op. cit., p.79.
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aquiescência do papado na concessão do m onopólio a Portugal de um com ércio totalm ente legal nas costas africanas, ju n tam en te com as perspectivas de evangelização.54 P articularm ente a Bula Inter coetera, de 1456, concedeu a jurisdição espiritual “dos cabos do B ojador e Nao, por via da G uiné e m ais além, p a ra o Sul, até as índias,” à O rdem de C risto, dan d o plenos poderes ao Infante, grão-m estre d a O rdem .55 A escravização dos african o s a p a rtir de m eados do século XV esteve ancorada em um a série de discursos legitimadorés dessa prática. A filosofia escolástica de Santo Tomás de A qu in o via a escravidão com o um a punição o riu n d a do pecado original, um a vez que a insurgência h u m a n a em face de D eus fez aflo ra r os instintos agressivos do homem, surgindo daí, em meio à violência e às guerras, aqueles que m andavam e os que eram m andados.56 A passagem bíblica onde C am escarnece da nudez de N oé e tem a si com o aos seus descendentes am aldiçoados pelo pai e condenados ao cativeiro, foi tid a p o r m uitos autores com o legitim adora da escravidão dos negros, p o r verem estes últim os como oriundos da fam ília de C am . O pró p rio Z u ra ra explicitou essa versão ao ju stificar a escravização dos negros pelos azenegues, vèndo-os ain d a como natu ralm en te cativos por viverem...
in d u ziria ao reto cam inho do cristianism o, além de proporcionarlhes m elhores condições m ateriais de existência.58 NOS CAM POS, N A S RUAS, NA S CASAS: O ESCRAVO NEGRO N A ECO NO M IA PORTUGUESA
“E sta cidade é grandíssim a”, diria o com erciante florentino Felipe S asseti em passagem p o r Lisboa no mês de outubro de 1578.59 Porto de chegada das riquezas exóticas do O riente e da Á frica, o im pério português de então se refletia num a Lisboa enriquecida, m ajestosa, alvoroçada p o r festas, procissões religiosas, m uitos edifícios, serviços profissionais e bastante populosa para a época, com o atestaram alguns viajantes estrangeiros que tantos testem u nhos deixaram .60 E ra a cidade “a m aior da Europa, excetuadas Constantinopla e Paris”, segundo o entusiasmado Giovanni Bottero, que recolhia subsídios p a ra sua R ela zio n i Universali em 1595. D esde meados dos quatrocentos, Lisboa era tida como um a das m aiores cidades européias, continuando a crescer sem p arar ao longo do século XVI. Com o relatou D am ião de Góis: Há duas cidades que, nesta mesma época, poderíamos com razão chamar de rainhas do Oceano: pois é sob a sua direção e domínio que hoje em dia se processa a navegação em todo o Oriente e Ocidente. Uma delas é Lisboa, que reivindica para si o domínio sob aquela parte do Oceano que, desde a desembocadura do Tejo, envolve num
(...) assim como bestas, sem alguma ordenança de criaturas razoáveis, que eles não sabiam que era pão, nem vinho, nem cobertura de pano, nem alojamento de casa; e o que pior era, a grande ignorância que em eles havia, pela qual não havia algum conhecimento de bem, somente viver em uma ociosidade bestial. 57
A escravidão, segundo o cro n ista, iria livrá-los do pecado e os 54 55 56 57
SAUNDERS, A.C. de C.M., op. cit., p.66 BOXER, C., O império colonial português (1415-1825), p.43-46. VAINFAS, R., Ideologia e escravidão. Petrópolis: Vozes, 1986, p.94. ZURARA, G.E., op. cit., Cap.XVI, p.85.
mesmo circuito marítimo a África e a Ásia. A outra é Sevilha. 61
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Idem, Cap.XXVI, p.126. Vivendo em Lisboa entre os anos de 1578 e 1582, Felipe Sasseti deixou regis tradas suas impressões sobre Portugal em cartas publicadas pela primeira vez no século XVIII e depois transformadas em livro, As cartas, em 1855. Sua estimativa da população lisboeta em 1578 era de 250 mil habitantes. Ver TINHORÃO, J.R., op. cit., p.102. Ver especialmente as crónicas de BRANDÃO, J. e GÓIS, D., op. cit. GÓIS, D., op. cit., p.29.
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Sua abastança económica e seu desenvolvimento urbano estiveram tam bém nos braços do africano. Lisboa era o cen tro do tráfico negreiro, e os escravos im iscuíam -se nas m ais diversas atividades urbanas. Lá estava sua m aior concentração em todo o Reino, cor rendo pelas ruas e servindo nas casas. Em 1552, graças ao recense am ento realizado por Cristóvão Rodrigues de Oliveira, pôde-se ter a prim eira estim ativa m ais concreta da d istribuição e do volume da força de trabalho em Portugal: os negros eram quase 10% da população lisboeta, que chegava já a cem m il habitantes.62 N ão foram poucos os testem unhos de espanto em relação ao núm ero de escravos nessa cidade, havendo aqueles que, exageradam ente, supunham superarem o total dos brancos. Os dados quantitativos a respeito da população escrava anteriorm ente a essa estim ativa estão dispersos em registros locais difíceis de serem compilados. H ouve um censo populacional em 1527, a prim eira referência oficial relativa ao século XVI, m as os escravos foram deixados de fora. O M apa 1 anexo ap o n ta um esboço de distribuição da população negra en tre 1441 e 1530. A p a rtir da década de 30, no entanto, fontes com o registros p a ro quiais (nascimentos, batism os, casam entos e óbitos) e listas de sepultados pela Santa C asa da M isericórdia de Lisboa aclararam um pouco m ais os dados quan titativ o s da p o p u lação african a, em bora muitos deles estivessem incompletos ou perdidos.63 Nas regiões da Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-M inho, no norte, a presença do africano lim itava-se ao litoral, sendo ir relevante no interior. D estaque-se a cidade do Porto, possuidora de um m ercado de escravos razoável. N o centro-sul, porém , a 62
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OLIVEIRA, C.B. de, Sumario em que brevemente se contém algumas cousas, assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa, 1552. Apud AZEVEDO, J. L. de, op. cit., p.75. SAUNDERS, A., op. cit., p.80. Este autor trabalhou com vários desses registros relativos a Lisboa.
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população negra foi m ais expressiva. N a região da E strem adura e do sul do rio Tejo, centro-oeste de Portugal, os escravos eram em núm ero bem m aior, tan to nas cidades, principalm ente Lisboa, como no cam po, onde atuavam n a produção dos cereais forneci dos à capital portuguesa. Tam bém no A lentejo e no A lgarve, ao sul, eram m uitos os cativos, dedicando-se fundam entalm ente à agricultura.64 N o A lgarve, principal região agrícola abastecedora de cereais, o percentual de escravos era de 10%, com o se pode observar na Tabela 2 anexa.65 D esde as prim eiras capturas os africanos já protagonizavam papel da m aior im portância com vistas ao melhor conhecim ento das novas terras que se abriam aos olhos dos portugueses. Vários conquistadores dirigiram -se p ara a “te rra de negro”, sob a in stru ção do Infante D. H enrique, como foi o caso de A fonso Gonçalves Baldaia em 1434, que chegou ao R io do O u ro para “haver língua” com os nativos, viabilizando uma comunicação, ainda que precária, com seu mundo. Uma década m ais tarde, quando desem barcaram em Portugal os prim eiros negros oriundos do Senegal, o ousado Infante conseguiu “preparar” alguns “especialistas” em línguas afri canas: os “turgim ãos”. Comentou o veneziano Cadam osto em 1445: E deliberamos mandar à terra um dos nossos turgimãos, porque todos os nossos navios tinham turgimãos pretos, trazidos de Portugal, os quais turgimãos são escravos negros vendidos por aquele senhor de Senega aos primeiros cristãos portugueses que Vieram descobrir o país dos Negros, os quais escravos se fizeram cristãos em Portugal, e aprenderam bem a língua hispânica . 66
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Em Évora, no Alentejo, segunda maior cidade portuguesa, eles constituíam 9,4% da população em meados do XVI. Idem, p.87. MAGALHÃES, J.R., Para o estudo do Algarve económico no século XVI. Lisboa: Cosmos, 1970. Apud GARCIA, J.M., op. cit., p.U6.
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In stitu íra -se , p o rta n to , a p rim e ira ativ id ad e dos escravos em Portugal: a de intérpretes. A lugados pelos seus senhores aos ca pitães frequentadores da costa ocidental africana em tro ca de um cativo trazid o do novo lote, tam bém podiam auferir vantagens: quando com pletassem o to tal de q u atro escravos trazidos, eram alforriados. Z u ra ra m encionou ain d a a presença dos “guinéus” a bordo dos navios portugueses nas viagens pela costa african a a p a rtir de 1445.67 A s fontes relativ as à u tiliz a ç ã o d a m ã o -d e -o b ra escrava n a a g ric u ltu ra p a ra os séculos XV e XVI são deveras escassas. A quantificação é ínfim a pela ausência de registros relativos à exata extensão d as p ro p ried ad es e o to tal de escravos existen tes. D e qualquer m odo, Saunders afirm a que, de acordo com o estágio atu a l das pesquisas, o núm ero de cativos african o s era baixo via de regra, m esm o no A lentejo e no A lgarve, principais áreas agrícolas do Reino. Os testam entos deixados pela nobreza fu n d iária alentejana atestam não m ais que 15 escravos em cada propriedade. N a região da E strem adura, onde estas eram ainda menores, atesta-se que raram en te havia m ais de dois escravos nas quintas. Referência interessante dá-nos o senhor de te rra s Diogo Lopes Sequeira, que deixara em testam ento 17 escravos, fru to do enriquecim ento ao tem po em que ocupava o cobiçado cargo de governador da ín d ia, en tre 1518 e 1521.68 D iria o cronista G arcia de Resende: Vimos muito espalhar/portugueses no viver,/Brasil, ilhas povoar,/e às índias povoar,/natureza lhes esquecer/ vemos no Reino meter/ tantos cativos crescer/ e irem-se os naturais,/ que se assim for, serem mais/ eles que nós, a meu ver. 69 67 68 69
TINHORÀO, J. R., op. cit., p.100. SAUNDERS, A., op. cit., p.105. M iscelânea, citada por FARIA, S., em N otícias de Portugal, 1655. Apud
A saída das gentes p ara o além -m ar e o êxodo populacional con sequente às conquistas po rtu g u esas p ara o O riente e a Á frica foi u m a circunstância a justificar, p ara m uitos contemporâneos, a u tiliz a ç ã o do tra b a lh o a fric a n o no R eino. Só p a ra a ín d ia calculou-se em 2.400 hom ens p o r ano no prim eiro quartel do século XVI, e a colonização do B rasil e das ilhas atlânticas levou entre três e cinco m il ao ano, exercendo um im pacto razoável na população. Nos seiscentos e setecentos tal núm ero avolumou-se sobrem aneira, chegando a 120 m il entre 1640 e 1700. A escassez de m ão-de-obra justificaria, portanto, a generalização da escravidão afric an a em certas atividades económ icas.70 Contudo, análises m ais aprofundadas vão dem onstrar que, na verdade, os escravos eram necessários na agricultura só em algumas regiões de Portugal, n ão ap en as pela e s tru tu ra a g rá ria existente no A lentejo e no A lgarve, abastecedoras das cidades, m as por sua baixa densidade populacional.71 N estas regiões, os arrendam entos propostos pelos grandes senhores eram de cu rta duração, não sendo o trabalho livre atrativo e, quando existia, seu preço era elevado, sendo mais com pensador o uso do escravo.72 A econom ia do A lgarve baseava-se na produção de frutas principalm ente figueiras -, vinhas, oliveiras e açúcar.73 De um a form a geral, os escravos executavam tarefas variadas: desbrava-
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GODINHO, V. de M., A estrutura na antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, p.44. Idem, p.42-44; MAGALHÃES, J.R., “A sociedade: os escravos e os emigran tes”. In: MATTOSO, J., História de Portugal. No alvorecer da modernidade - 1480/1620. Lisboa: Estampa, 1997, v. 3, p.472; Historiadores como Costa Lobo e João Lúcio de Azevedo também partilham esta interpretação. Para o período entre 1527 e 1535, Saunders realizou um levantamento da po pulação portuguesa, em que aponta o Alentejo e o Algarve como as regiões de menor densidade demográfica. Op. cit., p.79. SAUNDERS, A., op. cit., p.118. M A G A L H Ã E S , J.R ., o p . c it., p.161.
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mento dos campos, colheitas, g u ard a dos rebanhos, m anejo da prensa de azeitonas na fabricação do azeite. Ao norte do Vale do Tejo os escravos eram escassos, dando lugar aos trabalhadores livres contratados a baixos salários nas regiões de Entre-D ouro e M inho e B eira interior. Exceção era a cidade de Lisboa, congregando um núm ero considerável de cativos mouros, mas sobretudo negros, im iscuídos em variadas tarefas urbanas. A participação dos escravos no cotidiano da cidade foi considerável, tendo aí o tráfico negreiro exercido um g rande im pacto. Vale lembrar que, dentre os negros e m ulatos processados e denunciados em Portugal p o r feitiçaria, cerca de 55% residiam em Lisboa (ver Tabela 13). “Tem cento e cinquenta hom ens negros que tem p o r ofício descarregar no Terreiro trigo de barças e navios e naus, e ganham m uito dinheiro em cada d ia”. O relato m inucioso do escudeiro João Brandão, em 1552, delim itou a presença efetiva dos negros na capital do Reino. No Tratado da m ajestade, grandeza e abas tança da cidade de Lisboa, a divisão das categorias profissionais registra a participação do africano em 2,5% das atividades, e em algum as delas, como nos trabalhos m ais pesados, figurava com o dom inante.74 Brandão viu um a Lisboa cujo cotidiano dependia de serviços realizados q uase que exclusivam ente p o r escravos: aqueles m ais pesados, repulsivos, estigm atizados, rejeitados pela população branca livre. As cidades portuguesas, p articu larm en te Lisboa, ofereciam excelentes oportunidades p a ra a com plem entação da ren d a de vários proprietários de escravos. Os cham ados “negros de ganho”, que futuram ente iriam grassar no B rasil colonial, m uitas vezes eram a única via de sobrevivência do senhor, que recebia p a rte ou a totalidade dos rendim entos obtidos nas diversas atividades
que seus escravos realizavam , fosse n a p ró p ria cid ad e ou até em outras localidades. O aluguel de seus serviços a terceiros e o exercício do com ércio am b u lan te pelas ru a s eram , p o rtan to , práticas b astan te com uns. Senhores de escravos m ais m odestos, que trabalhavam p a ra outros com o jornaleiros, pedreiros e m a rinheiros, por exemplo, levavam tam bém seus escravos, atuando conjuntam ente com eles.75 B randão viu num erosos negros carregando e descarregando navios abarrotados de produtos variados. Circulavam pela cidade a tran sp o rta r cestos repletos de peixe e carn e p ara os m ercados e a vender carvão e palha para as casas; m uitos se dedicavam às construções e obras públicas:76eram tam bém caiadores, ou “negros pincéis”, contribuindo constantem ente p ara o crescim ento e m e lhoram ento de Lisboa e outras cidades. Navegando nos rios e pela costa portuguesa, e até perfazendo percursos longos de Lisboa à Á frica, estavam os escravos tam bém atu an d o nas em barcações. M uitos escravos dedicaram -se ao artesanato, integrando-se em co rp orações de ofícios, inclusive com possibilidades de as censão dentro de algum as delas, evoluindo de m eros aprendizes a mestres, e crian d o lojas próprias. A s associações dos ferreiros, sapateiros e p asteleiros de L isboa n ão im p u n h am qualquer li m ite à sua participação, m as os calceteiros, jubeteiros e ourives restringiam -lhes certas tarefas, em bora fossem um a m inoria. Em finais do século XVI, das 105 corporações da cidade de Lisboa, oito apenas restringiram ou excluíram o escravo negro. Os ourives
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BRANDÃO J., op. cit.
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SAUNDERS, A., op. cit., p.108. A documentação oficial relativa à cidade de Lisboa, tais como posturas municipais e chancelarias, localizada no Arquivo Histórico Municipal, foi também subsídio importante para este autor tecer um quadro bastante completo da presença do negro nessa cidade. Em 1517, D. Manuel proibiu que funcionários da Câmara Municipal de Lisboa pusessem seus próprios escravos a trabalhar nas construções públicas, visando coibir abusos de lucros pessoais à custa da Coroa. Idem, p.109.
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e lapidadores de Lisboa só p erm itiam que os escravos atuassem nas fornalhas, temerosos de possíveis roubos. Saunders pesquisou vários regim entos de corporações de ofício em Lisboa, concluin do que a questão da discrim in ação era m uito m ais em relação à escravidão de um a form a geral do que p ro p riam en te em relação aos negros, a exemplo dos pasteleiros de Lisboa, que restringiram severam ente o ingresso de m ouros.77 A s atividades u rb an as exercidas p o r escravas negras ligavam-se, no m ais das vezes, às funções de lim peza e ao comércio, espalhando-se pelas ruas negociando quitutes e água. A s vendeiras ou “regateiras” instavam a todos a saborear suas com idas, rap i dam ente degustadas: arroz-doce, cuscuz, grão-de-bico, am eixas cozidas, feijão cozido, aletria, azeite, m ariscos, peixes, legumes, frutas. Com o retrato u João B randão, “terça-feira estão vendendo na feira, que lhes não escapa coisa que não vendam ”.78 O b u rb u rin h o no C h a fa riz del Rei ag itav a as “negras do pote”, vendedoras de água que disputavam arduam ente um a das seis bicas desse fontanário, o m ais im p o rtan te de Lisboa. E stas escravas enfrentavam um a verdadeira m ultidão p ara sim plificar o co tid ia n o daqueles que p referiam c o m p ra r ág u a a buscá-la pessoalm ente. O tum ulto era tam an h o que a C âm ara lisboeta, em 1551, segregou as várias categorias que bebiam da m esm a fonte a m esm a água, espelhando desse m odo o profundo segregacionismo português, racial e sexual: a prim eira bica era exclusiva dos escravos e hom ens libertos, fossem negros, m ulatos ou indianos; a segunda, reservada aos galés, deviam suprir as frotas; a terceira e a q u a rta bica cabiam aos brancos livres; a q u in ta era destina da às m ulheres escravas e libertas, e a últim a, p ara as m ulheres brancas. 77 78
Idem, p.123. BRANDÃO, J., op. cit.
“Q u arenta m ulheres velhas e negras e mouras, tem por ofício buscar toda a sem ana trapos velhos e lavá-los, e outras coisas de toda a qualidade”, d iria de novo B randão, referindo-se às lavadei ras escravas. A s cham adas “negras de canastra”, ou calhandreiras, executavam função da m aior im portância, embora profundamente estigm atizada, num tem po em que a lim peza pública era difícil: levavam nos om bros ou na cabeça os dejetos das casas em reci pientes - as “can astras” -, para serem jogados ao mar.79 A p resença d a escrav aria d e n tro das casas foi um a cons tante. M uito caro, o trabalho livre restringia-se às fam ílias mais abastadas, o que não significava, porém , que estas não fizessem uso do escravo com o força de tràbalho. A escravidão doméstica generalizou-se, integrando o leque de atividades do africano em Portugal. N icolau C lenardus, c o n tra ta d o em fins de 1533 para professor do In fan te D. H enrique, observou espantado: Dificilmente se encontrará uma casa onde não haja pelo menos uma escrava destas. É ela que vai comprar as coisas necessárias, que lava a roupa, varre a casa, acarreta a água, faz os despejos à hora conveniente: numa palavra, é uma escrava, não se distinguindo de uma besta de carga senão pela figura . 80*
Símbolo de status e poder, era ainda sinal de abastança e riqueza de seus senhores. Foi ainda Clenardus quem descreveu detalhadamente
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A repulsa ao trabalho das canastrarias foi também retratada por João Brandão, em sua crónica sobre Lisboa, em 1552: “Eram de mais baixo espírito que as que andam à água”. Este humanista flamengo produziu uma série de cartas a partir de 1534, que foram editadas em 1550 e traduzidas para o português em 1926 por CEREJEIRA, M.G., em Clenardo e a sociedade portuguesa do seu tempo. Coimbra: Coimbra, 1949, p.281. Clenardo via que dificilmente pessoas de posses médias obteriam criadas brancas: “Ainda que eu desse a quarta parte do que ganho, não conseguiria arranjar uma para me tratar da minha casa e bens, segundo o uso de nosso país”.
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alguns episódios cujos protagonistas foram grandes senhores e seus escravos. Em Évora, por exemplo, ele viu um g rande fidalgo a cavalo acom panhado de dez negros, cada um com sua função: dois de escolta na frente, outros levavam o chapéu, o capote, as chinelas de seda, a escova e o pano de lim peza do anim al.81 E ntre a dezena e a vintena era a m édia do núm ero de escravos negros que as categorias mais enriquecidas possuíam . “Por am or do Senhor Deus nos faça esmola de um p ar de es cravas que toda nossa pobreza gastam os com m oças de soldadas”, suplicava à rain h a a superiora de um convento lisboeta, sufocada pela im possibilidade de pagar o trab alh o livre. O s africanos esta vam presentes também como escravos domésticos nas instituições religiosas e de caridade. Na década de 1550, em Lisboa, estavam no Mosteiro de Santos, no Convento da M adre de Deus e no M osteiro das Penitentes da Paixão de C risto. O estigm a que pesava sobre o trabalho servil nessas instituições afastava ain d a m ais a m ãode-obra livre, restando a elas os negros. Essa dificuldade fez D. M anuel destinar, anualm ente, um certo núm ero de escravos p ara alguns hospitais do Reino, carentes de serviçais.82 A Coroa portuguesa tam bém utilizou à fa rta a escravaria negra. Trabalhavam em praticam ente todos os palácios reais, desde os maiores em Lisboa e Évora, àté os menores, nas m ais variadas funções, lado a lado aos brancos: eram varredores, carpinteiros, cuidavam dos jardins e dos rebanhos, estavam nas cozinhas, nas cavalariças. O infante D. Luis, em 1555, deixava em testam ento um total de 11 escravos. D en tro das residências, eram criados particulares, alguns de toda a confiança, recebendo tratam en to privilegiado. A s negras in teg ran tes da co m itiv a d a ra in h a D. Leonor e da infanta D. Beatriz, em inícios do XVI, pouco diferiam
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Idem. OLIVEIRA, C.R., op. cit., p.68-71.
de um a d istinta dam a de honra branca: tin h am vários pertences, escoltas, quando necessário, e até arrieiro s.83 Em m uitos dos negócios d’El Rei estavam os negros atuando, e fu n cio n ários régios p ossuíam cativos em q u an tid ad e p a ra a época, a exemplo de Tomé Lopes, guarda-m or da Torre do Tombo, cuja “fazenda”, em 1526, com punha-se d e 14 escravos. Setores im portantes, com o as Casas da G uiné e da ín d ia, as oficinas de arm as e m unições, a fundição naval e os fornos reais, contavam com alguns p ara auxiliarem nas suas atividades. Houve casos de negros hábeis em ofícios especializados. E m 1541, num a c a rta de D. João III, há referência de um tal N icolau M endes, arm eiro de couraças, “hom em preto, n atu ra l de L isboa”, que trabalhou na oficina de Francisco Caceres, arm eiro do infante D. Luis, que ali, quando faleceu, deixou um total de 11 escravos.84 Nas fundições, seu núm ero assustou o viajante M unzer, que em 1494 viu “tantos pretos a tra b a lh a r nas forjas que m ais p arec iam Ciclopes, e a oficina, a caverna de V ulcano”.85 N ão se pode afirm ar que todos eram efetivam ente escravos da Coroa. Os dados levantados até agora m ostram um a lim itação do uso dos próprios escravos de D. M anuel e D. João III em suas oficinas, privilegiando os negros de ganho de outros senhores e sobretudo os brancos livres, que recebiam m elhor rem uneração. A escravidão urbana portuguesa no século XVI era indício de honra p ara a fidalguia, m as tam bém um excelente negócio: o uso de seus serviços e habilidades pelas ruas, nas m ais variadas tarefas, muitas vezes sustentava os respectivos senhores. No entanto, em alguns m unicípios, o trabalho do african o foi regulam entado e restrito em determ inadas atividades que pudessem am eaçar o 83 84 85
SAUNDERS, A., op. cit., p.115. GODINHO, V. de M., O s descobrim entos e a econom ia mundial. Lisboa: Presença, 1971, p.198. SAUNDERS, A., op. cit., p.94.
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senhor ou sua p ropriedade. O conselho m unicipal de C oim bra, em m eados do XVI, proibiu o trab alh o escravo nas prensas dos lagares de azeite e n a vigília n o tu rn a dos rebanhos, tem erosa de negligências, roubos e irresponsabilidades. E m 1521, no Porto, foram proibidos de trab a lh ar nos barcos do D ouro, salvo se esti vessem acom panhados de seus senhores, pois sua im agem era a pior possível, vistos com o ladrões e aproveitadores. N a fervente Lisboa, a p a rtir de 1534, os negros barqueiros foram acusados de auxiliar na fuga de inúm eros escravos mouros, sendo proibidos de trab a lh ar nas em barcações senão m ediante declaração do senhor de que pagariam m ulta caso incitassem tum ultos e tran sp o rta s sem fugitivos.86 *** O s dados relativos ao preço dos escravos carecem de inform ações m ais precisas. A p esquisa de Saunders dem onstrou que no p ri m eiro meio século de tráfico o valor do escravo variou de 3.000 a 4.800 reais. E m inícios do XVI, os preços ten d eram a subir, atingindo sete m il no fim da prim eira década e oito m il no final dos anos 20. N a década de 40 esses valores duplicaram , custando os cativos em m édia 15 m il reais. N a época em que João B randão retratava Lisboa n a sua M ajestade e grandeza, em 1552, os pre ços subiram bastante, chegando a 45 m il reais, em bora em fins dos anos 70 tivessem abaixado p ara um a faixa en tre 15 e 30 m il reais, perm anecendo em to rn o desta m édia até o fim do século. D e fato, praticam ente em todo o Reino, a com pra dos africanos exigia, a p a rtir de m eados do XVI, um poder aquisitivo bastante razoável. Foram poucos os registros até então encontrados referentes às diferenças de preços dos africanos em função do sexo e idade, 86
Idem, op. cit., p.106.
dados não encontrados nos docum entos da C asa dos Escravos. Saunders m enciona, no entanto, u m rol de cativos adquiridos em A rguim , com destino a Lisboa, entre 1519 e 1520, onde estas inform ações são registradas. A queles na faixa de 18 a 27 anos atin g iam os preços m ais elevados, sobretudo os m ais fortes e saudáveis, e os menores preços adquiriram as crianças com menos de sete anos e os adultos acim a de 38 anos. Fossem homens ou mulheres, os valores daqueles referentes à prim eira categoria eram praticam ente iguais, dem onstrando um equilíbrio na procura de am bos os sexos.87* A escravidão em Portugal atendia não apenas a interesses da produção in tern a - fosse na ag ricu ltu ra ou nos serviços urbanos. Em bora estivessem presentes, e em m aior número, nas casas da nobreza e d a realeza, dos funcionários régios e das instituições religiosas, não se restringiam a elas, podendo pela lei usufruir da posse de escravos um leque de categorias sociais menos abastadas ou p ara serviço próprio ou p a ra serem instrum entos de lucros enquanto “negros de ganho”. A legislação vetava, no entanto, a posse de escravos por judeus e m uçulm anos, um a vez que a sub serviência de cristãos a infiéis era proibida por lei. Isso não foi problem a até o fim do século XV, pois até então não havia m o vim ento sistem ático de conversão dos africanos recém-chegados, sendo assim adquiridos à farta. Levando em conta a im portância dos judeus e muçulmanos como mercadores de escravos, o monarca D. A fonso V ordenou que o cativo que se tornasse cristão fosse
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Saunders utilizou diversas fontes para traçar esse quadro geral dos preços. Além da Casa dos Escravos, arrolou dados em Brandão, Damião de Góis e Sasseti. No Algarve, por exemplo, na vila de Loulé, o custo do escravo, em 1505, representava cerca de um décimo do valor total dos bens dos contribuintes, cujo valor ia até 45 mil (maioria da população). Já em 1564, tendo em vista o aumento do preço do escravo, a fração era de cerca de um terço ou mais. Idem, p.45-48.
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liberto seis meses depois da conversão. Porém, com as prim eiras m anifestações antijudaicas, a p a rtir de 1490, a C oroa ordenou a libertação do escravo im ediatam ente após a cristianização. M as os relatos de Munzer, em 1494, vão m o strar um a Lisboa repleta de m ercadores judeus que viviam de seus escravos, su gerindo que estes não eram cristãos, ou que seus senhores burlavam a lei. A pós a o b rig ato ried ad e da co n v ersão ao cristia n ism o em 1497, os antigos judeus, sob a d en o m in ação de cristãos-novos, tiveram o d ireito irre strito à p o sse d e escravos, e a c a b a ria m por se tran sfo rm ar em um im p o rta n te segm ento do g ru p o de traficantes.88 Os séculos XVII e XVIII são lim itad o s em registros e pes quisas específicas em relação à presença dos negros em Portugal, nos seus mais diversos aspectos: estatísticas populacionais, a ti vidades económ icas, influência na cu ltu ra p o rtu g u esa etc. D e qualquer modo, algum as referências ap o n tam p a ra u m a co n ti nuidade em relação ao século XVI, perm anecendo significativa a população escrava e forra nas atividades económ icas em que se inseriam. Eram aproxim adam ente 15 m il negros e mestiços que “infes tavam ” a cidade de Lisboa, observou o duque de Chatelet em 1777, quando de sua passagem por Portugal, embora o tráfico de escravos para o Reino tenha sido abolido pelo M arquês de Pom bal desde os anos 1760.89 Também o sueco C ari Ruders, designado nos anos 90 do século XVIII para ocupar um cargo em Lisboa, verificou a presença dos negros em funções que desde o XVI já ocupavam . Em 1800, espantou-se com as escravas p retas nos dom icílios e nas ruas vendendo com ida,
as quais se compram aos preços de 20, 30 e 40 moedas de ouro. O número delas, porém, começa a diminuir porque todos os negros e mulatos nascidos em Portugal, em virtude de uma lei promul gada há cerca de 30 anos, são livres. Os outros que eram escravos continuam a sê-lo, a não ser que o dono alforrie.90 Entretanto, em função da natural dim inuição do núm ero de negros escravizados decorrente do processo de abolição gradual, é de se supor que se m odificava o perfil de sua atuação nas atividades urbanas e ru rais acim a referidas, em bora não seja possível, no estágio atual das pesquisas, com provar com algum a segurança esse quadro. O tra b a lh o de Á lv aro F. d a Silva, q ue an alisa o sistema escravista em O eiras entre 1738 e 1811, no entanto, vai m ostrar que em bora os escravos dom ésticos estivessem em d e créscimo até fins do XVIII, existia nos arredores de Lisboa um a proporção de cativos análoga a certas regiões m ineiras no início do século XIX.91 E m bora a p reo cu p ação deste trab a lh o n ã o esteja voltada especificam ente p ara a questão do escravismo, há que se registrar, ao menos, a cronologia do processo de abolição em Portugal. A im portação dos negros cessou em 1761, q u an d o o M arquês de Pombal declarou livres todos aqueles que desem barcassem no Reino vindos dos portos da Á frica, A m érica e Á sia, exceto aque les que serviam nos navios que aportavam . M ais tarde, em 1773, os nascidos de escravos foram considerados livres, facultando ainda, aos libertos, habilitações para todos os ofícios. Em 1836
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Idem, p. 96.
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P IM E N T E L , M. d o R., o p . c it., p.58.
RUDERS, C.I., Viagem a Portugal. 1798/1802. Lisboa: Série Portugal e os Estrangeiros/Biblioteca Nacional de Lisboa, 1981, p.204. SILVA, A. F., Propriedade, fam ília e trabalho no “h interland” de Lisboa: Oeiras, 1738/1811. Lisboa: Cosmos, 1993. Apud VENÂNCIO, R.P., “Cativos do Reino: a importação de escravos de Portugal para Minas Gerais colonial”. Ex. mimeo, s/d.
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interditava-se o tráfico negreiro em geral, e p o r fim , p ara que a escravatura fosse efetivam ente abolida em Portugal, postergou-se essa decisão até 1877.92 * * *
O perfil da escravidão p ortuguesa que pudem os aqui apresentar dem onstrou que os escravos negros, além de terem atu ad o em vários setores, estiveram ain d a ao lado da m ão-de-obra livre e bran ca e d a m oura, co n stitu in d o -se com o um prolongam ento destas. A predom inância de um e de outro, da escravidão negra e do trabalho livre, variou conform e as condições económ icas das diversas regiões e as exigências pessoais dos senhores. A falta de estudos e pesquisas recentes sobre salários, preços, m igrações e desem prego obstaculizam , p o r ora, um a avaliação m ais precisa e exata do papel do negro em Portugal nesse período. M as fica pelo menos indicado que a escravidão africana, fosse de “mouros”, fosse de “guinéus”, não foi um fenôm eno exclusivam ente colonial, em plastrando-se, g u ard ad as as devidas proporções, no próprio Reino.
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SERRÃO, J. V., H istó ria d e P ortu gal. Lisboa: Verbo, 1977/90, v. VI, pp.135/138.
C A P Í T U L O II
JABACOUSSES E GANGAZAM BES: FEITICEIROS NEGROS NO REINO
Ele foi pego em Lisboa pelo co rp o da guarda no dia 23 de no vem bro do ano de 1736. N ão escapou, ao contrário de seus com panheiros, de ser entregue a um com issário do Santo Ofício, que iria a p u ra r em detalhes o que ocorrera naquela noite. A ronda, até e n tã o tra n q u ila , o u v iu u m a c a n to ria atro z, nu m a língua ininteligível, acom panhada de uns batuques, no interior de uma casa d e p a lh a n a p ro p rie d a d e do C ónego Feliciano Prates. A súbita entrada dos soldados dispersou os negros ali reunidos, à exceção do forro Jorge M ateus, que não foi ágil o suficiente para correr das garras inquisitoriais e m udar seu destino. Aprisionado, levou consigo um a p arafern ália de objetos que estavam dentro de um a casa: um frasco de vinho, um frango vivo, outro morto, ervas verdes, um a raiz grande, dobrada e retorcida junto a outra, dois paus pequenos, um a toalha de pano de linho branco e um instrum ento musical. Isso tudo, disse ele, foi usado para curar o preto D om ingos, e o sucesso do intento estava sendo largam ente festejado. Jorge M ateus foi preciso na descrição das funções de alguns dos ingredientes: os frangos eram para ser oferecidos aos m ortos e aos vivos; as ervas, para a cura do “quitembo” - mal-estar generalizado decorrente de “m aus ares ou sustos de defuntos” -, que segundo ele acom etera o escravo Domingos; a raiz enroscada com os dois paus era para “com por inim izades e serem todos am i gos”; o pano branco, para lim par as mãos depois de tudo feito; e o
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vinho era para se beber tam bém ao final do “feitiço”, quando bemsucedido.1 Na balbúrdia de um a Lisboa efervescente - e em todo Portugal desde meados do século XV os negros vivenciaram sua religiosi dade de várias formas. M uitos, com o Jorge M ateus, se escondiam pelos matos, nas casas de seus senhores, em encruzilhadas, atrás de igrejas, e dedicavam-se, p ara os fins m ais diversos, aos seus cultos e a certos procedim entos considerados com o feitiçarias e demonizados pela Igreja católica. Com características fu n d am en talm en te afric an as ou a r ti culadas a elementos do cristianism o, algum as p ráticas m ágicoreligiosas dos negros em Portugal, como curandeirismos, sortilégios, benzeduras, p o rte de bolsas de m andingas e adorações de ídolos, sofreram perseguições por p arte da Inquisição, pois foram tidas como feitiçaria e associadas a pactos diabólicos. C riado em 1536 no reinado de D. João III, o Santo O fício português perseguiu in d iv íd u o s cuja co n d u ta se id en tificav a à heresia, so b retu d o os ju d a iz a n te s , m a s ta m b é m b íg a m o s, sodom itas, m ou risco s, clérigos q u e a b o rd av a m m u lh eres no confessionário, falsos funcionários do aparelho buro crático in quisitorial, blasfemadores, luteranos e feiticeiros.2 M uitos negros e mulatos foram efetivam ente p u n id o s p o r alguns desses deli tos heréticos, além da feitiçaria. Todo o a p ara to da Inquisição portuguesa, com sua sólida o rg an ização ad m in istra tiv a e seu séquito de fu n cio n á rio s, fosse n o R ein o , fosse nos re c a n to s 1 2
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor s/n, livro 324. Para a história da implantação e organização da Inquisição em Portugal, destacam-se: HERCULANO, A., H istória da origem e estabelecim ento da Inquisição em Portugal. Lisboa: Europa-América, s/d, 3 v.; SARAIVA, A. J., Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa, 1985, e ainda o completo estudo de BETHENCOURT, F., História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.
m ais longínquos do Im p ério colonial, estava a e sp reitar esses hereges. A E uropa m eridional de m eados do século XVI recebia os ares bafejados pela Reform a Católica. E ste m ovim ento encontrou na Inquisição M oderna um a portentosa aliada, ta n to na versão portuguesa, criada em 1536, com o em sua congénere espanhola, instalada pelos Reis C atólicos em 1478. O C oncílio T ridentino, palco desses novos ânim os, lançou as bases de um a ofensiva da Igreja rom ana em prol da catolicização das m assas na tentativa de deter o avanço protestante, além de reafirm ar os antigos dogm as e sacram entos, a hierarquia e a disciplina eclesiástica. Resquícios de paganismo, superstições, despreparo do clero, com portam entos sexuais vistos com o desviantes, tudo isso foi objeto de um am plo projeto de evangelização e reordenação social e m oral, ancorado nos valores legitim am ente cristãos, depurando-se os costum es e as m oralidades que grassavam alheias aos ditam es de D eus.3 A o longo do século XVI, p o rtan to , pouco a pouco as deci sões de Trento foram sendo difundidas pela E uropa católica. Em Portugal, o A lv ará de 12 de setem bro de 1564 sacram en to u as determ inações trid en tin as, iniciando-se um processo progressi vo de adaptação das constituições da Igreja lusitana através de vários sínodos, publicação de catecism os, m anuais de confessores, intensificação de visitas pastorais e reform ulações das dioceses. Contudo, é im portante salientar que a Igreja portuguesa já vinha, antes de T rento, n u m processo de reform ulação in tern a, um a espécie de “pré-reform a”, continuada após o Concílio.4
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Ver DELUMEAU, J., El catolicismo de Lutero a Voltaire. Barcelona: Labor, 1973, e ainda MULLET, M., A Contra-Reforma. Lisboa: Gradiva, 1984. ALMEIDA, F., História da Igreja em Portugal. Porto: Livraria Civilização, 1968, v. 2, p.511. Sobre a participação dos portugueses no Concílio de Trento, ver p.519-543. Ver ainda PAIVA, J. P., Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”, 1600/1774. Lisboa: Notícias, 1998, p.342/344.
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A o lado dos ideais nascidos da Contra-R eform a, a Inquisição ibérica trato u de debelar hereges p ertu rb ad o res da cristan d ad e e perpetuad o res da presença im p ertin en te do D iabo no Velho M undo, n u m p rim e iro m om ento, e m ais ta rd e na A m éric a, à m edida que avançava o processo de colonização no U ltram ar. Bruxos, mágicos, feiticeiros, benzedores, caludunzeiros, adivinhos, idólatras, curandeiros, enfim , aqueles que supunham ter relações com o m undo sobrenatural, fossem negros ou brancos, eram ar gutam ente inquiridos p ara m uitas vezes se verem dian te de sua p ró p ria confissão de p acto com o D em ónio. A M isericórdia et Justitia, lema do Santo Tribunal, levou m uitos deles a penas hu m ilhantes, a am argarem anos a fio nas galés d ’El Rei, a viverem degredados em algum recan to inóspito de Portugal, da Á frica ou do Brasil. Im placável no vasculhar de culpas, na avidez pela confissão da “verdade” das intenções, o Santo O fício possibilitou enxergar variados aspectos das relações sociais a p a rtir de sua ação repressiva. D e Lisboa, da “negra C asa do Rocio”, sede do m aior de todos os três tribunais inquisitoriais no Reino, saíram 65,5% dos negros e m ulatos denunciados e processados pelo crim e de feitiçaria (ver Tabela 6). Nas salas de audiências dos tribunais, os inquisidores pouco a pouco faziam em ergir descrições do que era a religiosidade vivida pelos africanos em Portugal. O que propom os neste capítulo é traçar, por meio da docu m entação inquisitorial, um quadro geral dessas práticas e desses ritu a is, b u scan d o classificá-los segundo os p ro p ó sito s de seu uso, bem com o descrevê-los morfologicam ente. Além disso, e na m edida em que as fontes o p erm itirem , buscar-se-á ra s tre a r a procedência african a de alguns deles, num esboço de identifica ção etno-histórica, e cotejá-los com alguns elementos ocidentais da m agia européia. * * *
As práticas m ágicas e devoções realizadas seja por brancos, seja por negros e m ulatos em P ortugal aparecem na docum entação inquisitorial - e no próprio banco de dados do A rquivo Nacional da Torre do Tom bo - designadas genericam ente por diferentes term os, com o “feitiç a ria ”, “b ru x a ria ”, “superstições”, “pactos dem oníacos”, “so rtilég io s”, “b e n z e d u ra s”, “crendices” e “ritos gentílicos”, o que dificultou enorm em ente a sistem atização des sas crenças. Tais denom inações aparecem indistintam ente, ora juntas, ora separadas, não p erm itindo um a distinção efetiva do que faziam e acreditavam , tarefa que só foi viável após a leitura m inuciosa da referida docum entação. E m função dos problem as gerados pela docum entação para o entendim ento dessas práticas, dada a sua im precisão vocabular, reclassificam os as fontes tendo com o referência os objetivos e fins que a elas se destinavam ou, dito de outro modo, segundo os propósitos ou m otivações de quem as usava: curas de doenças e malefícios; proteção-, relacionam entos pessoais, na intenção de induzir determ inados desejos ou sentim entos, fossem de amor, ódio ou am izade, relações sexuais, vinganças; adivinhações sobre o p arad eiro de pessoas e/ou coisas e p ara am bições de ganhos m ateriais. A docum entação m ostrou um leque de possibilidades e alternativas encontradas pela sociedade para lidar com questões pertinentes à sua sobrevivência física, m aterial e emocional. O m odo pelo qual esses objetivos te n taram se viabilizar configurou um conjunto variado de práticas vistas como mágicas, um a vez que estariam sob influências sobrenaturais, tornando-se supostam ente eficazes para os fins aos quais se destinavam. Estas práticas se constituíam pelo uso de ingredientes variados (ervas, excrementos corporais, líquidos variados, alimentos), que podiam ser ingeridos ou esfregados no corpo, ou ainda postos em lugares com o encruzilhadas, rios, igrejas, p o rtas de casas. Oferendas e adorações às alm as de m ortos, palavras e orações, evocando os
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nomes de Jesus, M aria, de outros santos e do pró p rio D iabo, e manter patuás junto ao corpo eram condutas comuns que levaram muitos, negros e brancos, a ouvirem resignados suas sentenças nas cerim ónias dos autos-de-fé inquisitória is, tidos todos p o r bruxos e feiticeiros. Cultos coletivos, vistos com o “cerim ónias gentílicas”, onde ídolos e outros objetos eram adorados, em bora não tão co muns, foram significativos p ara a com preensão do universo das crenças que os africanos m antinham vivas já em Portugal. É preciso enfatizar que os objetivos pessoais dos acusados e as práticas m ágicas que d a í decorriam p ara atingi-los por vezes eram variados num mesmo processo, com o se verá adiante. Um indivíduo, por exemplo, poderia receitar determ inado em plastro de ervas e ao mesm o tem po proferir certas palavras ou orações para curas, e até utilizar-se da suposta intervenção diabólica p ara alcançar seu intento e tam bém p o rta r um a bolsa de m andinga. CURAS: O CORPO E O ESPÍR ITO Época de precárias condições sanitárias e de desdém pela higiene corporal - o que propiciava a dissem inação de epidem ias e pestes, cujas práticas de controle eram ínfim as -, a existência física era difícil, também am eaçada a todo m om ento por fomes, guerras ou eventuais calam idades n atu rais.5 Por o utro lado, o conhecim ento médico e científico em Portugal - influenciado na Península Ibérica pelos árabes -, se restringia a discussões acadêmicas, além de cativo da religião em numerosos aspectos, não resultando, pois, num a prática clínica sistem ática que se dissem inasse socialm ente e que abrangesse desse m odo as cam adas menos favorecidas. A m aioria da população, assim, apelava aos curandeiros, que com seu saber em pírico às vezes m ostravam -se eficazes, outras vezes nem tanto. 5
MATTOSO, J., História de Portugal. No alvorecer da Modernidade. Lisboa: Estampa, 1997, v.3, p.200-205.
Essa sociedade, caracterizada por um a extrem a religiosidade e um a m entalidade supersticiosa, acreditava que o co rp o físico estava sujeito às supostas m anifestações de forças sobrenaturais, traduzidas p o r feitiços variados, sortilégios, espíritos m alignos e diabólicos. A doença era vista tam bém como fruto da ação divina, que p unia a m á conduta hum ana diante de suas obrigações em face de D eus, estando o co rp o com pletam ente vulnerável a essa relação.6 A invasão dos corpos p o r doenças n a tu ra is ou so b ren atu rais foi cam po para os vários curandeiros que proliferaram em Portugal e n tre os séculos XVI e XVIII, tam b ém cham ados de “saludadores”, “benzedores” ou “m ezinheiros”.7 N um a época em que o lim ite entre a saúde e a doença era m uito tênue, a cura do corpo tam bém im punha o apelo a indivíduos que acreditavam m anipular o sobrenatural de diversas m aneiras. O trabalho de José Pedro Paiva sobre a b ru x aria em Portugal entre 1600 e 1774 aponta que, em relação às práticas mágicas de um modo geral, 36% dos réus processados pela Inquisição portuguesa pertenciam a essa categoria; 29% eram de feitiços para o m al e para influenciar vontades; 29% eram curandeiros/feiticeiros; 8% de portadores de bolsas de m andinga e 5% por fazerem pacto com o Diabo.8 N o caso dos negros e m ulatos processados e denunciados
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“Subjacente a esta sensibilidade, o corpo é concebido como um microcosmo diretamente ligado ao universo visível e invisível, o que explica a fluidez de fronteiras entre o corpo e o meio que o rodeia, numa palavra, a vulnera bilidade essencial. Daí a necessidade de negociar e manter, sob vigilância permanente, um frágil e delicado equilíbrio entre o corpo e o mundo exterior.” Ver MUCHEMBLED, R., “Le Corps, la culture populaire et la culture des élites en France (XV-XVIII siecle)”. Apud BETHENCOURT, F., O imaginário da magia. Feiticeiras, saludadores e nigromantes no século XVI. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cultura Portuguesa, 1987, p.52. PAIVA, J. P., op. cit., p.104. Idem, p.208.
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pelo Santo Ofício, nossa am ostragem acom panha esse movimento, sendo de praticam ente 50% os percentuais relativos a homens e m ulheres (ver Tabela 13). O te o r das p ráticas curativas exercidas p o r aqueles que não eram m édicos ou “cirurgiões” licenciados foram objeto de refle xão p o r alguns letrados portugueses. D os saludadores foi escrito por M anuel da C osta Pinheiro, Inquisidor de Lisboa, m ostrando que as d u as vias possíveis de cu ras eram as d a m e d ic in a e a dos saludadores, indivíduos que p o r v irtu d e divina tin h am essa habilidade inata, cu ran d o com toque das mãos, saliva, o lh ar ou hálito, m as sem pre com autorização do bispo ou da Inquisição, lim itada a casos como boubas, chagas, fraturas e m ordidas de “cão d anado”. Existiam , no entanto, os em busteiros, que se utilizavam dè artifícios, ingredientes vários, ervas, bênçãos e palavras, e até cobravam , signo de p acto com o D iabo. H ouve m édicos, contudo, que discordavam dessas virtudes n atu rais dos saludadores, com o M anuel de Azevedo, que afirm ava, dentre outros argum entos, que D eus não precisava de instrum entos externos p ara atu ar.9 O m édico B ernando Pereira, nos anos 30 do século XVIII, classificou as curas em três categorias: diabólicas, exercidas por feiticeiras in sp ira d as p o r Satã; m éd ica s, com p ro ced im en to s lícitos da m edicina; e p o r fim divinas, a í inclusos exorcismos, sa cram entos, orações. E ste autor, em seu tratad o médico, apresenta vários pareceres de qualificadores contestando veem entem ente os ilícitos “rem édios diabólicos”.10 Na verdade, o discurso dos letrados portugueses e eclesiásticos acabou p o r condenar as m anifestações de cura que extrapolassem a m edicina” oficial, dem onizando-as e reprim indo-as. L au ra de Mello e Souza, em seu trab alh o sobre a feitiçaria e 9 10
Idem, p.60-61. Idem, p.65.
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a religiosidade p o pular no Brasil colónia, considerou os africanos, junto com os indígenas e mestiços, os grandes curandeiros do Brasil colonial, hábeis m anipuladores das m isturas de ervas e plantas, associadas a ritos e cultos inerentes às suas origens, aliados ainda “ao acervo europeu da cultura p o p u la r”.11 Em Portugal também os negros a tu a ra m nesse sentido, utilizando defumadouros, fer vedouros, lavatórios e orações, fosse para restitu ir a saúde, fosse p a ra c u ra r de feitiços - m u itas vezes doenças com pletam ente desconhecidas, cujos sintom as assum iam um caráter sobrenatu ral. D entre as m otivações que levaram negros e mulatos a serem denunciados e processados pelo S anto Ofício, o curandeirism o ap arece n u m p erce n tu al de 29%, conform e m ostra a Tabela 7. A com panhando o m ovim ento geral da feitiçaria no Reino, 51,8% eram de curandeiros homens (ver Tabela 13). A ssociadas às virtudes das ervas - ou mesmo isoladamente -, outras substâncias de origem an im al ou vegetal eram largamente utilizadas, ta n to p a ra lavar os enferm os com o para serem postas com o em p lastro s nos ferim entos ou p a rte s doloridas. M uitos curandeiros negros utilizavam à fa rta elementos ligados ao culto cristão, como água-benta, orações, hóstias, terços, cruzes, devoções a santos, dentre outros, no sentido de potencializar os efeitos das curas, revelando um evidente sincretism o mágico-religioso de que nos ocuparem os póster iormente. O forro E stevão Luiz fora ato rm en tad o em sonhos que o incitavam a curar, ouvindo vozes que lhe indicavam as ervas e os devidos procedim entos adequados a cada caso. A cidade de Beja, nos inícios de 1680, viu correr-lhe a fama. O unguento composto de azeite fervido com baga de louro, alecrim , arruda, artem ísia e sebo de porco curou achaques do estômago da mulher de seu patrão, 11
SOUZA, L. de M., O Diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 166.
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m as servia para todos os males, “até falta de regras”. D ores nas pernas sum iam com suadouros; dores de estômago, com agriões, erva m ontana e outrego, tu d o p icad o e posto n u m tach o com farinha de centeio fervido no vinagre branco; espinhela caída era tratada com esfregaços de vinagre, hortelã e m ostarda picada nos braços e pernas. Já para a “doença do m iolo”, ele usava um bolo de nozes coberto de coentro seco e b o rrifado com vinho, posto na cabeça, e untava as pálpebras da vítim a com azeite quente. Estevão Luiz curava também o quebranto e o m au-olhado benzendo-se de joelhos nove vezes e fazendo o m esm o com o enferm o, proferindo depois uma oração.12 A c u ra de c ria n ç a s p elo s n e g ro s ta m b é m fo i c o rre n te . Dificuldades de amamentação, cólicas, recém -nascidos raquíticos eram tratad o s com “u n tu ra s ” d e azeite, a rru d a e losna, aco m panhadas de benzeduras e b o rrifaçõ es com vinho. A p a rte ira M aria Tomé, mulata, m oradora em Évora, foi acusada em 1744, no entanto, de provocar a m orte de várias crianças. U m a das mães testem unhou que no seu parto, ao tom ar-lhe o filho dos braços, este “chorou muito, e se fez preto p o r todo o corpo, não querendo m am ar durante três dias”.13 A crença de que as b ru x as podiam secar o leite materno e até a p ró p ria vida do recém -nascido era comum, especialmente as parteiras. Os umbigos que recolhiam , depois de batizados, podiam ser objetos de m alefícios e até de proteção.14 Como veremos adiante, a im agem da feiticeira n a E uropa tradicionalm ente se vinculava tam bém a infanticídios e “em bruxam entos” de crianças. E m Lisboa, nos m eados no século XVI, bruxas foram queimadas pela ju stiça secular, acusadas de m atar
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crianças a m ando do D iabo. L e Roy L ad u rie conta-nos que na França, em inícios do século XVII, os corpos dos bebés sangravam quando as bruxas passavam , e num a certa ocasião um a feiticeira soprou a boca de um que a p a rtir d a í não m ais em itiu qualquer som nem chorou, acabando p o r m orrer.15 A p rática da feitiçaria era am bígua, pois ao mesmo tem po em que atuava positivam ente, curando e prom ovendo encontros amorosos, tam bém perpetrava malefícios, doenças, desencontros, mortes. Se de um lado os feiticeiros angariavam clientes desejo sos de u su fru ir dos resultados benéficos de suas artes, por outro tam bém eram tem idos e perseguidos, causadores de desventuras, desgraças e enferm idades, cujas vítim as acabavam por apelar, novam ente, a eles próprios. Os saberes e práticas de curas populares incorporados pelos cu randeiros de um m odo geral, ta n to negros e m estiços com o brancos, representavam um a alternativa ao que se podia cham ar de “m edicina” d a época, exercidas por “ciru rg iõ es”. O núm ero destes profissionais em Lisboa, por exemplo, era desproporcional à população, ao menos no século XVI, segundo as estatísticas de C ristóvão R odrigues de O liveira, havendo 57 “físicos” e sessenta “cirurgiões” p a ra um a população de cerca de cem m il pessoas.16 A lguns trabalhos dem onstram que os conhecim entos e p ro cedim entos dos m édicos, pelo m enos até o século XVIII, eram análogos aos dos curandeiros. G ilberto Freyre, por exemplo, m en ciona as O bservações doutrinárias do português C urvo Semedo, 15 16
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ANTT, Inquisição de Évora, processo 4.745. ANTT, Inquisição de Évora, processo 6.390. ARAÚJO, M.B., Superstições populares portuguesas. Lisboa: Colibri, 1998, p.58
LADURIE, E. Le R., La sorciere de Jasmim. Paris: Seuil, 1983. Apud. SOUZA, L. de M., op. cit., p.203. OLIVEIRA, C. R., Summario em que brevemente se contem algumas coisas (assi ecclesiasticas como seculares) que ha na cidade de Lisboa (1555), ed. de Augusto Vieira da Silva, Lisboa: Casa do Livro, 1939, p.87 e 95. Apud BETHENCOURT, F., O imaginário da magia. Feiticeiras, saludadores e ni gromantes no século XVI. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cultura Portuguesa, 1987, p.199.
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cujas receitas se assem elhavam às dos africanos e indígenas; na P harm acopéia ulysiponense, de João Vigier, o u tras ta n tas que, com uns em Portugal, eram tam bém adotadas no Brasil: chás de percevejos e de excrem ento de rato p ara desarranjos intestinais; moela de ema para dissolução de cálculos biliares; u rin a de homem ou de burro, cabelos queim ados, pós de esterco de cão, pele, ossos e carn e de sapo, lagartixa, caranguejos etc.17 N ão foi à toa que a reform a educacional prom ovida na época p om balina dedicou um a atenção nada desprezível aos estudos m édicos.18 D e qualquer modo, o que se vê nessa docum entação é m esm o um apelo a esses saberes em píricos e às p ráticas de curandeirism o. A forra Inez do C arm o, em 1754, confessou que conseguiu sarar um a doente de Tavira, que sofria de horríveis dores de cabeça, “sem que lhe abrandassem os rem édios que o m édico lhe aplicara”. A receita com punha-se de v inho m orno defum ado com alecrim e com “uns pós que ela tirava do seio em brulhado em um papel”. E sta m esm a negra, na vila de Loulé, encontrou um a m ulher com dores atrozes na pern a direita, “e que os m édicos cham avam de dor artrérica, a qual não tin h a obedecido aos rem édios da m edi cin a”. A plicou-lhe um em plastro de óleo de arru d a, com algum as ervas e dois ovos, seguindo-se a isso orações no ad ro da igreja com velas acesas.19 A s explicações sobrenaturais, ancoradas num profundo senti mento m ístico e religioso, tom avam o lugar do pouco conhecimento científico em relação às doenças e seus sintomas, ao funcionamento do corpo e aos possíveis rem édios. A ssim , as m oléstias inexplicá veis eram vistas com o feitiços - sobretudo as de c ará ter psíquico 17 18 19
FREYRE, G., Casa-G rande e senzala. 20‘ ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1980, p.282. GUERRA, J. P. M., “A Reforma Pombalina dos estudos médicos”. In: SANTOS, Pombal Revisitado. Lisboa: Estampa, 1984, v.l. ANTT, Inquisição de Évora, processo 5.940.
ou neurológico - e tra ta d a s com o tal, distinguindo-se então os curandeiros que curavam doenças ou malefícios, daqueles que os prom oviam . E m alguns casos, os próprios médicos sugeriam a hipótese de o doente estar enfeitiçado, assum indo sua inaptidão p ara curar. M aria de M endonça, em 1700, teve subitam ente os pés e m ãos paralisados, sentindo m uitas dores no corpo “e por vezes m uito am iúde picadas no coração, garganta, pés, de que dava g ran d es g rito s”. V ários m édicos foram cham ados “e lhe ap licaram m u itas m ed icin as p o r m u ito tem po, sem ter alívio algum, e vendo que não lhe aproveitavam as medicinas, disseram os m édicos que poderiam ser feitiços, que bruxarias alguém que lhos tivesse feito”.20 O reconhecim ento e o diagnóstico do malefício eram fun d a m e n ta is, p o d en d o ser feitos d e d iferen tes m odos. O negro F rancisco A ntônio, m orador em Lisboa, preso pelo Santo Ofício em 1745, reconhecia doenças num a bacia cheia de água que con tin h a u m a enfiada de guizos, dois búzios pequenos, dois dedais e alguns caroços de coco de dendê. C antava várias cantigas em “língua de preto”, b atia palm as e depois retirava um dos dedais a p a rtir do qual descobria a intensidade da doença ou do feitiço, e im ediatam ente procedia à cura. Se o malefício era leve, cantava “p ara esse m al pouco basta e logo o lanço fora”, traduzido da sua língua, m as se era “bravo”, cantava para o dedal “se não hei de vencer este inim igo, p a ra que me serves? Ei de deixar-te no m ar”, b eb en d o depois ag u a rd e n te pelo g ran d e dispêndio de energia. E ste afam ado feiticeiro negro dizia cu rar todo gênero de mazelas. D epois do ritu al do dedal, já sabia exatam ente o que fazer. Dava beberagens com postas de ovos, ag u ard en te e pós de abutica e m irra. Prevenia a volta dos feitiços atando no braço do enfermo um a espécie de p atu á contendo certas raízes, unhas e gotas de 20
ANTT, Inquisição de Évora, Cadernos do Promotor 46, livro 252.
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sangue de pé de elefante. C hupava do corpo do doente m oléstias e malefícios. D e uma mulher, lançou pela boca “um a bochecha de tum or am arelo em um covilhete, que m andou quebrar e b o ta r na rua”.21 Este e outros processos do Santo Ofício m ostraram que um dos mecanismos de expulsão de feitiços e de achaques era, pois, pela via da sucção, sendo lançados fora ou pelo curandeiro, como neste caso, mas tam bém pelo próprio doente, seja defecando, u rin an d o ou vomitando. Esse procedim ento era com um em várias regiões da Á frica, a exemplo de U bangui, onde os cham ados adivinhos médicos curavam sugando do corpo do paciente e cuspindo vários objetos, especialm ente ossinhos.22 Outros exemplos relativos ao Brasil do século XVIII nos narrou Laura de Mello e Souza, como no caso de B ernardo Pereira Brasil, m orador das M inas Gerais, que tom ou sessenta chibatadas de seu senhor por ordem da V isita E piscopal p o r tira r ossos e drogas daqueles que curava, chupando-os.23 Frangos e galinhas foram animais bastante usados pelos negros para variados objetivos, costum e tradicionalm ente estabelecido em praticam ente toda a Á frica n egra.24 A já citad a forra Inês do C arm o confessou que curou u m a pessoa enfeitiçada fazendo-a beber e depois vom itar um co zim en to d e v in h o bran co , u m a galinha preta, um as ervas e um p edaço de cam isa do doente.25 Esta ré tam bém fazia vários unguentos com sangue de galinha, largamente utilizado na confecção de beberagens e em plastros.
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.179. DESCHAMPS, H., Las religiones del África negra. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 1962, p.63. SOUZA, L. de M., op. cit., p. 169. CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., D icionário de símbolos. 12* ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p.457. ANTT, Inquisição de Évora, processo 5.940.
E n tre os povos banto, e entre a m aioria dos povos africanos, as forças vitais, que perpetuavam a vida e proporcionavam energia, eram da m aior im portância, concentrando-se em pontos funda m entais do corpo, com o cérebro, sangue, coração, fígado, m as tam bém em un h as e cabelos, que representavam em anações do espírito; daí a crença na sua energia.26 Veículo da vida, fluido vital, o sangue especialm ente era instrum ento de toda sorte de feitiços, procedim entos terapêuticos e contratuais, fundam ental tam bém para selar o pacto dem oníaco na percepção dos dem onólogos.27 D esse m odo, elem entos com o u rin a , esp erm a, cabelos e unhas eram tidos com o curativos, m as tam bém provocadores de malefícios. O já m encionado m ulato E stevão Luiz, fam oso cu ran deiro de Beja, confessou ter sarado um a m ulher que padecia “de mal do miolo, fúrias, apertos no coração e garganta e visagens de bichos m edonhos, tendo para si que eram feitiços”. A dvertiu-a duram ente depois, ensinando-a com o prevenir-se: (...) era muito tola em deixar os cabelos no lugar aonde se penteava e em deixar água no púcaro, quando bebia, e em não esmiuçar as cascas dos ovos quando os quebrava porque destas coisas se valiam para lhe causarem os males que havia padecido (...) por intermédio de algumas grandes mestras e feiticeiras. 28
O caso de D om ingos A lvares, escravo negro da C osta da M ina e g ran d e c u ran d e iro que atu o u no B rasil e em P ortugal, é um exemplo interessante. E m um a das v árias curas que m inistrou, usou aguardente, raízes m oídas e ervas, benzendo tudo e dando de beber ao doente, que à noite vom itou cabelos “e pela via prepóstera uns ossinhos que pareciam de galinhas, e unhas de gavião”.
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DESCHAMPS, H., op. cit., p .ll. BETHENCOURT, F., op. cit., p.115. ANTT, Inquisição de Évora, processo 4.745.
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E ncontrou na p o rta de um hom em no A lgarve “um boneco com 39 alfinetes, cabelos de gente e de cão, enxofre, ossos de defuntos, pele de cobra, pedaços de vidro e grãos de m ilho”.29 Os negros do R eino deixaram alguns traços de cerim ónias ou ritos próprios das culturas de origem africana, sem pre difíceis de identificar com algum a precisão etnográfica, assim ilados ao catolicism o em m aio r ou m enor grau. A com unicação com as alm as, o culto aos m ortos, era prática corrente entre m uitos povos africanos, sendo u tilizad a tam bém com o form a de identificação de feitiços e n a busca da sua respectiva cura. Os espíritos eram tratad o s e alim entados, ou então eram incorporados pelo cu ran deiro. O tran se acontecia sobretudo quando se supunha estar o enfermo “assombrado” ou “possuído” por algum defunto ou espírito m aligno, que era denunciado ao m esm o tem po em que se dizia o que fazer p ara se livrar da possessão ou enferm idade. D e acordo com as crenças dessas sociedades, a vinculação dos vivos aos seus antepassados se fazia através de oferendas e sacrifícios.30 A com preensão d a prática do culto aos m ortos pelos africa nos em Portugal rem ete-nos tam bém a aspectos interessantes da religiosidade de alguns grupos étnicos específicos, particularm ente dos banto.31 N a cosm ogonia desse grupo, o m undo dividia-se no plano dos vivos e dos m ortos, sendo a relação entre am bos interm ediada por ritos realizados por líderes religiosos que detinham o conhecim ento m ágico p ara tal.32 Os m ortos, que nesse im aginário 29 30
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ANTT, Inquisição de Évora, processo 7.759. PAIVA, J. P., op. cit., p.106. Este autor cita o caso de Braga: Teresa Mendes de Oliveira, moradora de Braga, que realizava sessões onde, em transe, libertava várias mulheres de até cem espíritos. Idem, p.138. SLENES, R., “Malungu, Ngoma vem! África encoberta e descoberta no Brasil”. Cadernos do Museu da Escravatuta, n .l, Luanda: Ministério da Cultura, 1995, p.7. MACGAFFEY, W., Religion and Society in C entral África. Chicago: The University of Chicago Press, 1986, p.199.
possuíam a cor branca, recebendo hom enagens e oferendas, in fluenciavam os vivos, por vezes dando-lhes poder, o que derivava do contato que se estabelecia entre esses dois m undos.33 A p rá tic a de “p ô r a m esa às alm as” - term o corrente nos processos inquisitoriais - norm alm ente em cam inhos ou encruzi lhadas, alim entando-as com pão, bolos, queijo, mel, água e vinho, além de obter curas, dava conta do paradeiro de objetos perdidos, de pessoas vivas e até de pessoas já m ortas. “E ste negro faz curas e evoca anjos e alm as dos defuntos, e tam bém as almas dos que ainda estão vivos”, denunciou Custódio Vicente em 1737 a Sebastião Barbosa, que curava oferecendo ovos e doces aos espíritos.34 A escrava congolesa M aria Crioula foi denunciada à Inquisição de Lisboa em 1790 por ser um a “poderosa feiticeira” e andar com vários negros adivinhadores. Segundo apurações do Comissário do Santo Ofício, um deles dizia que era escravo da alma de um Capitão, para quem fazia pão-de-ló e que o ajudava nas curas que fazia.35 N a p ró p ria cristan d ad e ocidental, a crença de que os mor tos tin h am um a ligação d ireta com a vida terrena foi difundida sobretudo a p a rtir do século XII, com o surgim ento da idéia de Purgatório. Nesse espaço do Além, as almas teriam a oportunidade de p u rg ar seus pecados e ser salvas, inclusive com a ajuda dos vivos, que lhes ofereceriam orações, preces e missas, atenuando-se tam bém a tensão entre céu e inferno.36 Locais com o forcas, pelourinhos e outros eram bastante p ro curados pelo caráter violento das m ortes ali ocorridas. A crença nos espíritos das pessoas que faleciam nessas circunstâncias era especialm ente cara, porque se supunha que elas perm aneceriam
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Idem, p.43 e segs. ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor s/n, livro 324. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 14.975. LE GOFF, J., La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1981.
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ligadas por m uito tempo aos seus corpos e ao m undo terreno.37 O já citado mulato Estevão Luiz procurava os feitiços causadores de um a doença nos olhos de A n a F ern an d es indo a um lu g ar “onde tivesse m orto algum a pessoa com ferro”, pois a violência da m orte fazia-o supor que aquela alm a v iria responder o que se perguntasse em troca de orações. A cerim ónia consistia em an d ar de joelhos em volta da cruz, ap an h an d o três vezes te rra com a mão esquerda e perguntando o que se queria saber. Estevão desfez uns malefícios oferecendo às alm as num a encruzilhada um frango cozido, um bolo de farinha de centeio sem sal e um a tigela de vinho.38 Isso tudo ele confessou ao Inquisidor. A prática de oferendas em muitas regiões da Á frica - Costa da Guiné, por exemplo -, com o alimentos, sangue de anim ais sacrifi cados e bebidas (aguardente ou vinho), foi com um nas cerim ónias de evocação de deuses ou espíritos antepassados. Os objetivos dos ritos determinavam as características dos anim ais imolados (vacas, porcos, cabras e aves), com o a coloração e o tipo da pelagem .39 A s encruzilhadas tin h am um significado privilegiado nas práticas mágicas. Local de convergência de cam inhos, de passa gem, espaço preferido de contato com os espíritos e onde o homem procurava se desvencilhar de forças negativas, lugar onde tam bém se erigiam altares, capelas, inscrições, cruzeiros, em muitos povos exerceu forte influência. Vista como espaço sagrado em co n trap o sição ao profano, a encruzilhada pode ser pensada tam bém com o o lim iar de que fala M ircea Eliade, o p o nto de com unicação com o m undo sagrado ou, simplesmente, lugar de passagem .40
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BETHENCOURT, F., op. cit., p.109. ANTT, Inquisição de Évora, processo 4.745. CARREIRA, A., “Símbolos, ritualistas e ritualismos ânimo-fetichistas na Guiné Portuguesa”. Boletim cultural da Guiné Portuguesa, Separata do n" 63 do ano XVI, Bissau, 1961, p.530. ELIADE, M., O sagrado e o profano. A essência das religiões. Lisboa: Livros
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Para várias com unidades na Á frica Central, G uiné e Nigéria as encruzilhadas tinham um caráter divino, onde ritu ais de fecun didade e sacrifícios de anim ais eram realizados. O ferendas com o os primeiros frutos das colheitas, utensílios domésticos, aves, ossos de anim ais sacrificados, ovos, dentre outros, eram postas pelos bam barras do M ali, por exemplo, p ara os espíritos que intervi nham em seu cotidiano, p rincipalm ente na época da sem eadura. Ao mesmo tem po, tam bém nas encruzilhadas, se abandonavam elementos nocivos e im puros, com o dejetos e crianças m ortas, na crença de que os espíritos aí circulantes transm utariam essas forças em energias positivas p ara os homens. A terra oriu n d a da encru zilhada servia, ainda, de ingrediente para num erosos fins.41 Todas essas tradições foram transm igradas com os negros no processo de escravização que sofreram a partir de meados do século XV, associando-se a elementos do cristianism o e, evidentem ente, assum indo especificidades em função da região de onde vieram e de onde foram se assentar. Os negros em Portugal frequentaram à farta as encruzilhadas. A já citada Inês do C arm o, por exemplo, curou um a crian ça levando-a num a encruzilhada, onde estendeu um pano no chão com fatias de pão depois de passadas por cim a da m enina doente, proferindo depois algum as palavras.42 * *
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Adorações de im agens, individualm ente ou em grupo, e m anifes tações envolvendo danças e batuques puderam ser encontradas entre os negros do Reino com o in tu ito de realizarem cu ras e adivinhações. O já m encionado Jorge M ateus, pego com outros negros num a cerim ónia de cu ra com vários ingredientes e canto-
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do Brasil, s/d, p.35-39. CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., op. cit., p.367-370. ANTT, Inquisição de Évora, processo 5.940.
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rias, deixou a g u ard a perplexa: “p o r ser em língua m uito serrada e lhes pareceu sem dúvida que estavam com coisas am bundas ou de feitiçarias, com o se colhia da form a da cantoria”.43 Vale notar o registro do term o am bunda, etim ologicam ente banto, a confirm ar a im portância desses grupos entre os africanos em Portugal, e a associar suas práticas a feitiçarias (ver Tabela 10). N atural e m oradora da povoação de Cachéu, C osta da Guiné, o caso de C hrespina Peres, de 1668, dem onstra algum as relações interessantes com as práticas de feitiçaria em Portugal. Em com panhia de “negros gentios”, ela fazia “chinas”, que segundo consta em seu processo eram “um as idolatrias que to d a a gente vinda de G uiné ad o ra”. D e acordo com testem unhos, as chinas eram ídolos dos “gentios d a te rra ” (isto é, os african o s n ão c ristian i zados), objetos de devoção dos negros e ain d a dos brancos que habitavam a região.44 A joelhados, sacrificavam galinhas, galos, vacas, bois, cabras e p unham o sangue m isturado a vinho dentro de um a panela p endurada na parede, realizando a cerim ónia em função dos desejos e necessidades: coisas perdidas, m atrim ónios desejados, curas de doenças.45 A carne dos anim ais, dizia Sebastião Vaz, contram estre de um navio e testem unha do caso, “comem-na, 43 44
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ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor s/n, livro 324. ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 2079. D o Senegal a Serra Leoa, a designação de china englobava ao mesmo tempo os locais de cerimónias e os ídolos desses grupos. Ver CARREIRA, A., op. cit., p.54. O Pe. Fernão Guerreiro, em 1604, deparou-se com essa prática, descrevendo-a assim: “Tomam muitos paus, cada um de palmo e meio, todos muito pretos em razão da variedade dos licores que lançam em umas vasilhas, que é san gue de diversos animais com que tingem estes paus; e as vasilhas são umas panelinhas juntas umas das outras, entressachadas com pontas de cabras; destes paus fazem um feixe, que fica parecendo um cepo de talhar carne, de altura de um palmo e meio, do qual estão dependuradas por umas cordinhas delgadas duas ou três caveiras de cachorros. E eis aqui o deus que esta cega e brutal gentilidade adora e mete no coração e isto é o que chamam China”. BRÁSIO, A., Monumenta missionaria africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953, v. IV (1600/1622), p.204.
e têm m uita fé nestes abusos”. E n tre os povos da Costa da Guiné, do mesmo m odo que a força vital do sangue dos bichos imolados ia p ara os deuses, a ingestão da carn e pelos fiéis representava a transm issão dessa energia p a ra eles.46* D isse ainda que havia um lugar cham ado Vila Quente, onde se reuniam “gentios” com cristãos, e que lá “há muitos negros cris tãos e forras que ali dentro de suas casas com o fora da povoação fazem os m esm os ritos em com panhia dos gentios”. C hrespina Peres lutava pela saúde da filha, e num a noite levaram-na “para as choupanas dos seus negros cativos, donde dizem a lavaram e usaram com ela de cerim ónias gentílicas”. Foi tam bém denunciada por realizar o rito em pleno navio onde ia v ia ja r seu m arido, que fazia resgate de negros no rio Bujago: “m an d o u um negro degolar um a vaca e pôs o sangue com v inho de palm a e farin h a de m ilho na bom ba do navio para que fossem bem e trouxessem m uitas riquezas”. Esta prática era comum em Cachéu, segundo o testemunho do piloto Diogo Gaspar, pois quando lá descia traz iam anim ais para sacrificar. Esses negros da G uiné integravam o grupo dos mandingas, designação reconhecida pelos próprios inquisidores, como vere mos adiante, que os associavam explicitam ente a feiticeiros: “os feiticeiros, gentios idólatras, são os m andingas, nos quais eles têm m uita fé, e os tratam com grande veneração como relíquias e coisas d iv in as”. O ca p itã o João N unes, cunhado da ré, “viu algum as vezes negros m a n d in g as gentios tidos por feiticeiros que aqui cham am jabacouces, os quais vinham de noite às dez horas falar com a dita ré em segredo (...) e com eles fazia grandes gastos e os tratava com respeito”. Com plem entando a cura de sua filha, C hrespina Peres tom ou um cordão de algodão am arrado à c in tu ra , à m oda dos m andingas, que servia tam bém de pro46
D E S C H A M P , H ., o p . c i t ., p.43.
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teção, tal qual no século XVIII, já no Reino, m uitos e m uitos o fariam .47 Na G uiné portuguesa, o term o jam bacosse ou jabacosse era utilizado no século XVI p o r g rupos com o os jalofos, m a n d in gas e cassangas, designando adivinhadores e m ágicos em geral, evocadores de espíritos dos antepassados, curandeiros e confeccionadores de amuletos. C orresponde ao q u im b a n d a angolano, embora genericamente os feiticeiros de A ngola fossem cham ados de ganga ou n ’g anga,48 O utra forma de curandeirismo praticada por negros foi através dos cham ados calundus, que p redom inaram sobretudo no Brasil, embora Portugal tivesse conhecido essa m anifestação. Na docum entação inquisitorial e nas devassas eclesiásticas do Brasil colonial a descrição dos calundus aparece im precisa e com variações, mas de um m odo geral era entendida com o reu niões festivas de negros, onde eles dançavam e pulavam ao som de instrum entos de batuque, às vezes com defum ações. A certa altura, um ou outro entrava em transe, ora perdendo os sentidos, ora falando em nom e de esp írito s, v isan d o p ro ced e r a cu ras, adivinhações ou cultuar ídolos. Em bora frequentes na B ahia, foi na região das M inas onde as referências m ais co n stantem ente apareceram na docum entação, generalizando-se no século XVIII em função do grande contingente de escravos, do processo de urbanização local e da produção aurífera.49 A descrição do que fazia a negra angola Luzia Pinta na Sabará de 1739, estudada por Luiz M ott, é notável:
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 2.079. CARREIRA, A., op. cit., p.515. SOUZA, L. de M., op. cit.., p.264. Ver também MOTT, L., “O Calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739”. Revista do IAC, Ouro Preto, v. 2, n .l, 1994, e ainda “Acotundá: raízes setecentistas do sincretismo afro-brasileiro”, In: Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: ícone, 1988.
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Posta em um altarzinho com seu dossel e um alfange na mão, com uma fita larga amarrada na cabeça lançadas as pontas para trás, vestia-se à moda de anjo, e cantando com duas negras também angolas e um preto tocando atabaque (...), e dizem que as pretas e o preto são escravos dela sobredita, e tocando e cantando estão por espaço de uma até duas horas, ficava ela como fora de seu juízo, falando coisas que ninguém entendia, e deitavam as pessoas que curavam no chão, passava por cima delas várias vezes, e nestas ocasiões é que dizia que tinha ventos de adivinhar (...). Tomando uma caixinha ou açafate, tirava deste umas cousinhas que cha mava seus bentinhos, e os cheirava muito bem (...). Metia então certos pós na sua boca e na dos mais participantes, dizendo que os queria curar. 50
D em onizada pelo Santo O fício e pelas autoridades eclesiásticas, essa prática encontrou no Reino poucas referências. Na Lisboa de meados do século XVIII, Luiza F rancisca denunciava que vários “feiticeiros negros andavam a bater em certo sítio, e que estava o dem ónio no meio e que todos o iam b eijar”.51 Tam bém nesse período, em 1771, a crioula forra Teresa de Jesus denunciou M aria, m oradora no C ais do Sodré, em Lisboa, com o “calundunzeira”, e afirm ou que “os mesm os santos que se adoram cá, se adoram também nos calundus da Costa da M ina”. N um a noite, contou que caíra no chão sem fala, “e que foi necessário tocar-lhe tabaques na cabeça para to rn a r a si”.52
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MOTT, L., “O Calundu...”, p.77. Ver também do, mesmo autor, “Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”. In: SOUZA, L. de M. (Org.), História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,
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ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 118, livro 306. ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 129, livro 318.
v.l.
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N ão en co n tram o s d escriçõ es d eta lh a d a s de calu n d u s em Portugal, em bora indícios de sua existência no R eino fossem tam bém atestados pela p ró p ria legislação portuguesa. Um alvará de 1559 proibiu escravos e forros de fazerem “bailos ou ajuntam entos” na cidade de Lisboa e arredores, “nem tangeres seus, de dia, nem de noite, em dias de festa nem pela sem ana”, sob pena de prisão e pagam ento de m ulta.53 E sta m edida faz supor que efetivam ente os encontros noturnos de escravos e forros com tocadores e d an çarinos eram com uns, e ainda nos leva a perceber o dilem a das autoridades em relação ao teor dessas reuniões: meros divertim en tos profanos, reuniões onde poderiam u rd ir fugas e revoltas ou cultos religiosos - ou ca lundus - rem em orados e reeditados em Portugal? N a dúvida, foi m elhor reprim i-los. Essa resolução foi depois incluída nas O rdenações Filipinas de 1603.54 * * *
E ram m uitos aqueles que solicitavam os serviços das feiticeiras e feiticeiros po rtu g u eses, de um m odo geral pessoas de baixa condição social, categoria à qual tam bém p ertenciam .55 A pesar disso, clérigos, nobres e até m édicos procuravam -nos, em geral por não terem conseguido sucesso na m ed icin a d a época e na Igreja. Foi o caso, p o r exemplo, do Dr. F rancisco D ias, ironica m ente F am iliar e m édico do Santo Ofício, que se curou graças a um a feiticeira m ais ad ian te denunciada p o r ele em carta escrita ao T ribunal de Coim bra. C riado “com o leite da igreja”, não via desculpa em seu erro por ter se curado com “pessoas supersticiosas
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Eram tocadores de instrumentos. O rdenações Filipinas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1985, Livro V, Tít. LXX. PAIVA, J. P. menciona um tal Luís de la Penha, que teve seu caderninho de clientes, contendo cerca de quatrocentos nomes, apreendido pela Inquisição. Op. cit., p.173.
e feiticeiras”, obrigado que foi “pelo am or da vida com receio da m orte”.56 E m relação aos africanos e seus descendentes, sua clientela tam bém se com punha em geral de indivíduos de baixo estrato social, e o que as fontes sugerem é que o apelo aos africanos fun cionava com o um a espécie de últim a alternativa de cura. Como foi visto nos processos, p a rte da “clientela” desses curandeiros era com posta de brancos. D epois de tentar vários remédios sem com eles ter experimen tado melhora alguma, o Licenciado José Pessoa de Carvalho apelou p ara “os da Igreja”, vindo um p ad re p ara lhe fazer exorcismos. O clérigo, a certa altu ra, adm itiu a inoperância de suas artes, e sugeriu então, diante do desespero do Licenciado, que mandasse vir à sua casa um a conhecida sua, a m ulata Teresa, que fazia várias curas “e nelas era m uito bem sucedida”, sendo por isso afam ada na cidade do Porto n a altu ra do ano de 1755.57 E m inícios do século XVIII, funcionários do Santo Ofício reg istraram algum as práticas dos negros de Angola em Lisboa, mencionando: [as] várias curas ambundas que não podem efetuarem-se se não por arte mágica, a o q u e o s b ra n c o s d ã o m u ito créd ito , e c o n su lta m o s n e g ro s, para que os curem, e estes, para simularem sua mágica,
usam de algumas coisas naturais impropositadas ao tal efeito, mas sempre com certo número de cerimónias, (grifo meu) 58*
M as evidentem ente que os próprios negros apelavam para os seus iguais. M uitos segredos ainda, quanto à m istura de ervas e ingre dientes, provavelmente eram restritos a eles, sendo os curandeiros 56 57 58
Idem, p.174 ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 2.362. ANTT, Conselho Geral do Santo Ofício, Coleção Manuel da Cunha Pinheiro, tomo XXXI, livro 272. Grifo meu.
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africanos os “médicos” de sua p ró p ria com unidade, não tendo m uitas alternativas nesse sentido e con tan d o m esm o com seus com panheiros de origem na tentativa de m in o rar sua condição. É interessante observar, p o rtan to , a notável circu larid ad e desses saberes no seio da c o m u n id ad e a fric a n a resid en te em Portugal e entre essa população luso-africana e os brancos reinóis, consideradas as inúm eras tra ta tiv a s e negócios com am uletos, filtros e assemelhados que, com frequência, havia entre eles. Vale lembrar, por fim, que os curandeiros africanos in varia velmente cobravam pelos seus serviços em dinheiro ou em gêneros, minorando assim suas precárias condições de existência, por vezes miseráveis. Em bora óbvia, tal constatação m ereceu destaque pelo frei A m ador A rrais em finais do século XVI, p o r sinal opositor da presença dos negros em Portugal: (...) essa conquista foi ocasião de uma grande desventura, qual é a multidão imensa de escravos, que se trouxeram a este Reino por falta de conselho e consideração (...); vivem toda sua vida ociosos, e se perdem uns vivendo mal, e outros mendigando, porque não têm outra vida. Antigamente, antes que esta canalha viesse ao Reino, havendo tanta gente portuguesa como agora, nenhuma mendigava, antes seguia pela maior parte a virtude, porque com isso achava agasalhado. 59
A curiosa denúncia da mulata M adalena, em 1766, m encionou que esta curandeira e adivinhadora de doenças pedia por seus serviços um cruzado novo por cada homem e um cruzado novo e 12 vinténs por mulher, afirm ando que o Santo O fício lhe dera licença p ara as cobranças, estabelecendo, ele próprio, esses preços!60 59 60
GODINHO, V. de M., A estrutura da antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia,1971, p.203. ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 128. Ver MOTT, L., Catálogo dos feiticeiros afro-luso-índio-brasileiros do período colonial, (no prelo)
PROTEÇÕES: AS BOLSAS DE M A N D IN G A S O uso de am uletos tra z id o s ju n to ao co rp o ou co stu rad o s na roupa era corrente desde a A lta Idade M édia, associado a bruxas e feiticeiras, e por isso, em regra, proibidos. N o século IX, por exemplo, São Bonifácio incluía entre as obras diabólicas o p o rte desses objetos. Pedaços de pedra, m adeira, metal, ossos de anim ais, tecido ou pergam inho com dizeres os mais variados eram signos de proteção: contra doenças, contra catástrofes, contra inim igos.61 J. L eite de V asconcelos, em seu a rtig o “S ur les am ulettes portugaises”, fez um estudo onde definiu as características dos amuletos e suas variantes em Portugal desde a A ntiguidade até os dias atuais. Esses objetos deviam ter propriedades inatas ou adquiridas para combaterem o mal ou prevenirem-no, ser portáteis e de tam anho pequeno. Suas virtudes se ligavam ou à substância de que eram com postos, ou então à form a que assum iam ; podiam ser dentes de lobo, dentes hum anos, olhos de anim ais ou figas, que adicionadas a m ateriais valiosos com o ouro e p rata adquiriam mais força. Os am uletos m ais complexos - ou patuás - continham vários elem entos, inclusive divinos, com o, p o r exem plo, u m a imagem da Virgem.62* Em Portugal e no B rasil os am uletos ad quiriram um caráter bastante p articu lar a p a rtir de finais do século XVII, com a deno minação de “bolsas de m andinga”. O próprio term o “mandinga” vai adquirir um a especificidade ím par ao ser exemplo de um processo de am álgam a cultural e religioso entre Á frica, E uropa e Brasil. D e todas as m anifestações tidas por feitiçaria pela Inquisição por p a rte de negros e m ulatos, o uso das bolsas de m andingas
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SOUZA, L. de M., op. cit., p.212. VASCONCELOS, J.L., “Sur les amulettes portugaises”, In: Congrés International des Orientalistes, Lisboa, 1982.
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representou 32,3% dos processados e denunciados (ver Tabela 7), em bora de acordo com o estudo de Pedro Paiva essa p rática tenha atingido 8% do to tal de incrim inados en tre 1600 e 1774. A s primeiras referências ao porte dessas bolsas no Reino datam de fins do século XVII, objetivando o resguardo co n tra perigos, contendas, disputas e até p ara d ar sorte e a tra ir m ulheres.63 Por isso, en tre os african o s, representou u m a p rática fun d am en tal m ente m asculina pela natureza de suas atividades (ver Tabela 13). A tin g iram seu ápice nas prim eiras décadas do XVIII, envolvendo não apenas escravos, m as tam bém hom ens brancos. A difusão de seu uso se fez não só pelos negros que chegaram a Portugal, m as tam b ém pelos escravos que v in h am do Brasil, acom panhando seus senhores que tin h am cargos e negócios na M etrópole. O term o “m andinga” vem dos m andingas ou malinkês,' povo habitante do vale do Níger, no reino de M ali, em to rn o do século XIII, e que tin h a por hábito o uso de am uletos pendurados ao pescoço.64 N a prim eira m etade do século XVIII, os registros apontam p ara o uso corrente das bolsas e p ara um intenso com ércio entre os africanos e seus descendentes em Portugal. “M uita gente em L isboa usava delas”, afirm o u João de S. B oaventura, religioso, denunciando ao S anto O fício em 1700 um negro da vila de Sintra que trazia um a bolsa p ara não ser ferido, e cujo poder fora com provado, segundo ele, nu m a ocasião em que lhe m eteram um a adaga pela garganta com toda a força “sem que esta lhe fizesse ferida ou sinal algum ”. E ste denunciante fez alusão ain d a a um decreto publicado pelo Santo O fício, tra ta n d o especificam ente da obrigatoriedade d a denúncia dos portadores das bolsas e de-
m onstrando que realm ente seu uso era grande.65 O utra referência data de 1692, em Santarém , onde o negro Diogo foi denunciado porque “traz ia um a bolsa das que tratam os editais”. Nas colónias portuguesas, a difusão desses editais tam bém foi intensa já em finais do século XVII: 28 p a ra o Pará, 28 para o M aranhão, 25 p ara C abo Verde, 14 para ilha da M adeira, 24 para A ngra e oito p ara São M iguel.66 Sua quantidade dem onstra sem dúvida tanto a frequência do p o rte dessas bolsas, como ainda a preocupação do Santo O fício em extirpá-las. Em jun h o de 1704, entrou nos cárceres da Inquisição lisboeta o escravo Jacques Viegas. Ele sonhou dois dias seguidos com diabos lhe puxando as pernas e, m uito aflito, acordou “com grandes ânsias” de confessar. N a sala da audiência, retirou de dentro do sapato uma pequena bolsa, enfiada às pressas quando foi preso, e entregou aos inquisidores. Por interm édio de um mulato, com prou um a bolsa do negro M anoel, m orador no B airro A lto e afam ado vendedor. A briga p or causa de um a m ulher ju n to ao Convento do Carm o em Lisboa rendeu-lhe uns tiros, e a sensação de vulnerabilidade o fez p ro cu rar um a m andinga que o protegesse. Esta bolsa pode ser vista hoje no acervo docum ental da Inquisição portuguesa no A rquivo da T orre do Tombo em Lisboa, am arrad a ao processo deste africano n atu ra l da C osta da M ina (ver Figura 5 no anexo). A bolsa de tecido verde, esm aecido pelos séculos, guarda dentro de si alguns carocinhos, talvez sementes, e um chum aço de fios que parecem cabelos, tudo envolto num papel.67 Os conteúdos dessas bolsas e o m aterial de que eram feitas v ariaram m uito. D e couro, veludo, chita, seda, elas envolviam ingredientes com binados de diversas maneiras: ossos de defuntos,
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Para o século XVI, Francisco Bethencourt registrou o uso de amuletos, mas que não tinham as especificidades das bolsas de mandinga. Op. cit., p.52. BASTIDE, R., A s Am éricas negras. Rio de Janeiro: Difel, 1974, p.204.
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ANTT, Inquisição de Lisboa, Correspondência recebida, livro 292. ANTT, Inquisição de Lisboa, Correspondências enviadas, livro 20. Estas indicações me foram gentilmente cedidas por Bruno Feitler. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 2.355.
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olho de gato, desenhos de Cristo crucificado, de escravos, orações de São Marcos, São Cipriano e sementes, dentre outros.68 O negro Francisco, em 1731, encontrou dentro da bolsa de couro que com prou um papel escrito que cheirava m uito a aguardente e tin h a duas cruzes pintadas.69 Sangue de fran g o p reto tam bém po d ia integrar um a bolsa, e, na falta deste, usava-se o sangue daqueles que encom endavam a m andinga.70 A pedra d’ara - pedaço de m árm ore sobre o qual os sacerdotes consagravam a hóstia e o vinho - tam bém era bastante procurada como ingrediente, m isturada a orações e outros elementos. E m se tratando de um altar essencial p ara o ritu al da E ucaristia, tin h a um grande significado p ara os feiticeiros, e pequenas p artes dela eram utilizadas em várias ocasiões e de diversos m odos. Já eram vistas em si mesm as com o objeto de proteção, sendo tam b ém portadas isoladamente, à guisa de am uletos. A força das m andingas ligava-se no m ais das vezes ao tra tam ento que recebiam depois de preparadas. Cozidas dentro de bolsas e usadas penduradas ao pescoço ou am arrad as no braço, eram defum adas com ervas e incensos, benzidas, en terrad as à meia-noite em encruzilhadas ou postas debaixo da ped ra d’ara no altar de um a igreja para em cima delas serem rezadas três missas, adquirindo assim mais potência e eficácia. O largo uso das bolsas de m andinga em Portugal en tre os negros e os brancos im plicou um intenso comércio, visto à farta nos processos que os incrim inaram . P atrício de A ndrade, negro forro natural de Cabo Verde, quando veio p ara Lisboa na altu ra de 1685, “ouviu dizer geralm ente a m uitos negros, lacaios e a ou tras pessoas de ordinária condição”, que as bolsas serviam “p ara 68 69 70
Ver, por exemplo, ANTT, Inquisição de Lisboa, processos 11.774, 254, 724 e Inquisição de Coimbra, processo 1.630. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 16.479. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.774.
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livrar o co rp o de perigos e feridas de facas, espadas e adagas”. G anhando um as “pedras de corisco” de um outro negro, fez sua própria bolsa, m o stran d o em público seus efeitos. U m de seus denunciantes afirm ou ao com issário do Santo O fício que ele as vendia a m uitos “negros e brancos, e destes m enos, tu d o gente de alguma consideração”, tendo visto ainda o negro testá-la ju n to com outros, e nenhum se ferindo. A ntônio de A ndrade, branco, um de seus “clientes” tam bém inquirido, estava inseguro q u an to à su a eficácia, pois a in d a n ão a havia ex p erim en tad o , n ão sabendo se ela forneceria “a segurança que o dito P atrício lhe prom etia”.71 Joseph F ran cisco P ereira, escravo de u m C apitão, vendia m an d in g as a inúm eros afric an o s. M u ito p ro c u ra d a s, ele não possuía estoque suficiente, valendo-se então d e um criad o de servir, um cristão velho e b ran co cham ado A n tô n io Guedes, que por traslad ar várias foi preso pelo Santo O fício em jan eiro de 1731. C opiou orações, desenhos de cruzes e corações, tudo escrito com sangue de frango trazido por Joseph num vidrinho, ao custo de seis vinténs. “Em se tratan d o de um homem preto, sabia ser comum e o rdinário o uso da m andinga”, afirm ou aos inquisidores em sua confissão.72 E m alguns lugares, particularm ente, o uso d a bolsa era visto como indispensável. Em 1713, o forro Joseph de Pina, soldado au xiliar na vila de M azagão, advertiu ao tam bém forro Vicente de M orais que ali era necessário m uita cautela, correndo-se até risco de vida. L ocalizada no litoral atlântico m arroquino, esta praça m ilitar e com ercial portuguesa, que teve no século XV sua fase áurea, ainda vivia rodeada de perigos pelo ir e v ir de m ercadores
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 3.670. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 2.137.
100 cristãos, m ouros e judeus.73 Lá, o intercâm bio das bolsas entre brancos e negros era intenso. O sentim ento de insegurança ta n to física com o esp iritu al gerava um a necessidade generalizada de proteção: das intempéries da natureza, das doenças, da m á sorte, da violência dos núcleos urbanos, dos roubos, das brigas, dos m alefícios de feiticeiros.74 P articu larm en te no caso dos escravos, a n atu reza das relações com os senhores era poten cialm en te violenta, to rn a p d o ainda m ais intensa a necessidade de proteção e de resguardo. SENTIM ENTO S: A M O R ES, ÓDIOS, IN IM IZ A D E S , DESEJOS
A s m an ifestaçõ es tid as p o r feitiçarias v in cu lad as aos relacio nam entos pessoais, am orosos ou de in im izad es e ódios foram inúm eras, exau stiv am en te exploradas e estu d ad as pelos h isto riadores d a b ru x a ria p ortuguesa, colonial e europeia em geral. C ontidas tam bém na docum entação produzida pelo Santo Ofício, ta is m an ifestaçõ es são n a rra d a s com riq u eza de d etalh es nos processos inquisitoriais. C om portam entos relativos aos amores, desejos sexuais, desafetos, ódios e angústias trad u ziram -se num sem -núm ero de procedim entos e práticas m ágicas no sentido de induzir vontades, p erp etrar adivinhações e provocar malefícios, ta n to por brancos com o negros. D iria G ilberto Freyre: O amor foi grande motivo em torno do qual girou a bruxaria em Portugal. Compreende-se aliás a voga dos feiticeiros, das bruxas, das benzedeiras, dos especialistas em sortilégios afrodisíacos, no Portugal desfalcado de gente que, num extraordinário esforço de
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virilidade, pôde ainda colonizar o Brasil. A bruxaria foi um dos estímulos que concorreram, a seu modo, para a superexcitação sexual de que resultou preencherem-se legítima ou ilegitimamente, na escassa população portuguesa, os claros enormes abertos pelas guerras e pelas pestes.75
As estatísticas revelam-nos que p ara Portugal, nos séculos XVII e XVIII, aparecem genericam ente com o um a das mais comuns, e para os negros e m ulatos chegam a um percentual de 38,7% entre os séculos XVI e XVIII (ver Tabela 7); aspectos como o excedente fem inino e as crescentes lim itações de uniões inform ais em prol do sacram ento do m atrim ónio, estim ulado pelo espírito tridentino, cristalizaram as tensões entre m ulheres e homens.76 O universo das relações pessoais, de “inclinação de vontades”, era fundam entalm ente fem inino tam bém entre os negros, corres pondendo a 69,5% dos casos (ver Tabela 13). Induzir os homens ao matrimónio, ao intercurso sexual, prendê-los para sempre aos seus encantos era com um entre as negras, tendo estas ainda inúmeras “clientes” brancas. A s feiticeiras de A ngola - as “gangazambes”“atraíam ódio e am or, e n isto en tra m m uitos brancos da te rra ” através de v ariada gam a de procedim entos e ingredientes.77* A forra C atharina da M aya foi degredada para Angola pelos inquisidores de Lisboa em 1658 pela eficiência de suas receitas no a rra n jo de casam en to s, p o r vezes associadas a elem entos cristãos, com o orações que evocavam santos. Ela usava sangue de criança, sal bento do batism o de um m enino, velas verdes, pó vermelho lançado num a igreja, um coração de galo atravessado 75
VAINFAS, R., Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p.319. ARAÚJO, M.B., Superstições populares portuguesas. Lisboa: Colibri, 1997, p.69-71.
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FREYRE, G., Casa-Grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958, p.450-51. BETHENCOURT, F., op. cit., p.75. ANTT, Conselho Geral do Santo Ofício, Coleção Manuel da Cunha, tomo XXXI, livro 272.
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com alfinetes e um dente de cão incrustado em um a vela de cera, dizendo “quando este cão ladrar, e quando este galo cantar, então há de u n ir fulano comigo falar”, e ain d a um credo a São M ateus para cada alfinete tirado.78 A parda M aria O rtega, residente em Lisboa, ensinava, em 1637, “desconjuros de p alav ras” p a ra u n ir hom ens e m ulheres, gabando-se de ter “grande m ão” p ara essas tarefas. F urava ainda o coração de um frango vivo, fervendo-o em vinagre; utilizava orações e fervedouros de vinagre e enxofre p ara adivinhar o p ara deiro de pessoas, e apelava ainda p ara as almas: quase meia-noite, arrum ava um altar com duas velas acesas em baixo de um painel de fogo do Purgatório e a figura de C risto crucificado, com um pão e um vaso de vinho. D epois de rezar 18 rosários ao longo de três noites seguidas, “pela alm a m ais necessitada”, esta lhe viria falar o que quer que perguntasse ou atender o que pedisse.79 “Com dois te vejo, com três te prendo, o coração te p arto , o sangue te bebo, quando não me vires, por m im suspires, e quando me vires a mim te arrim es pelo pau do lenho de vera cru z p ara sempre, amém, Jesus”, rezava A ntônia Pereira p ara tentar prender o am ante que desaparecera.80 Isabel Furtada, que vivia “de portas a dentro” com um homem, finalm ente conseguira casar èm 1612 g raças às arte s da p reta Dom ingas Fernandes, n atu ral da Guiné. U sou “ossos de fin ad o ” artigo valioso entre as feiticeiras - e um lenço do pretendido, além de pó de pedra d’ara e pó de olhos de cães. U nia homens casados a outras m ulheres, tirava am antes de m arid o s e, p a ra desligar homens, valia-se de fervedouros de u rin a dos mesmos num altar em sua casa, levando em seguida à um a ribeira.81 A filha de outra 78 79 80 81
ANTT, ANTT, ANTT, ANTT,
Inquisição de Lisboa, processo 11.834. Inquisição de Lisboa, processo 834. Cadernos do Promotor 129, livro 318. Inquisição de Évora, processo 10.101.
mulher conseguiu o m esm o feito depois dessa escrava ter posto fervuras de bode num a en cruzilhada à noite, jogando a seguir uns pós na p o rta do fu tu ro m arido da cliente.82 O uso de an im ais peçonhentos era com um , so b retu d o sa pos ressecados e transform ados em pó e m inistrados às vítim as. Catarina M aria, de Évora, em 1750 foi denunciada por ter espetado um sapo para assar, e o que dele pingou colocou num pão, dizendo “assaste sapo, e pingaste pão p a ra cegar os olhos deste cabrão”, para que seu m arido não descobrisse suas traições.83 As secreções hum anas, cabelos e unhas aparecem novam ente como ingredientes poderosos da m agia erótica, usados para ali mentar e desfazer relacionam entos. M arcelina M aria, presa em 1734, aprendeu que se tivesse cópula com um hom em e quisesse prendê-lo, m olhasse o dedo no “vaso n atu ral” e fizesse duas cru zes sobre os olhos; podia tam bém lhe d a r de com er um ovo que tivesse m etido entre suas p ernas d u ran te um a noite. A proveitou a ocasião p ara denunciar que um a tal C atarin a Inácia, branca, am ante de um criado de seu prim eiro senhor, “se tra ta com um a mulata feiticeira cham ada Felícia, e com o u tras m ais, usando de feitiçarias” p a ra que seu m a rid o n ão d escubra seus outros amantes...84 O u tro exemplo: a forra A n a Josefa, vingando-se do marido, deu-lhe de com er um bolo, incluindo nos ingredientes “cabelos de cabeça, sovaco e das p artes pudendas”.85 “C ale-se p a d re , que m e hás de p a g a r”, b ra d o u a escrava 82
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Idem. Pós de várias origens eram muito usados para enlaçar pessoas. A fa mosa feiticeira colonial Maria Gonçalves Cajada, a “Arde-lhe-o-rabo”, uma das várias estudadas por Laura de Mello e Souza, fazia pós sob encomenda, como o que saiu “de um sapo tersado e que lhe custaram muito trabalho para fazê-los, e que fora ao mato falar com os diabos e que vinha moída deles”. O diabo e a terra de Santa Cruz., p.239. ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 108, livro 300. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 631. ANTT, Cadernos do Promotor 118, livro 306.
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G regória de A b reu em Évora, denunciada em 1725. Seu senhor conversava n u m a ro d a de am igos, e u m P adre, M an u el Paes, disse aos presentes: “cá tem vocês esta bruxa”, referindo-se a ela. F uriosa, ela im precou contra ele, que se considerou enfeitiçado pelas v ária s visões n o tu rn a s de h o rren d as fig u ras diabólicas, cabeças disform es - inclusive a dela p ró p ria - e pelas vozes e cam painhas que ouvia.86 A angolana A n tô n ia foi denunciada em 1733 por, enfeitiçar e adoecer seu am ante, que havia deixado de vê-la: inchação no ventre, dores de estôm ago, ânsias no coração, dores de cabeça, tudo isso lhe fora ensinado pela “m estra” M aria de Jesus, afam ada feiticeira negra de Lisboa. “A travessada pelo peito e pelo pescoço, sem poder d o rm ir nem descansar”, a esposa com eçou a sentir as mesm as coisas e, im plorando “pelas chagas de C risto”, desfizeram o feitiço. E n tre m eia-noite e um a hora, a “m estra” queim ou tudo que estava atordoando o casal: dentro de um saco de lã posto em baixo da cam a, um boneco atravessado pela cabeça com alfinetes, um em brulho contendo ossos de defunto, “uns p au zin h o s” e um pano vermelho.87 Interessante cotejar tais costum es com certos ritos am iúde praticados por mulheres brancas que, em pleno ato sexual, diziam as palavras da consagração da E ucaristia em latim , na crença de que o am an te lhes quereria sem pre bem, costum e b astan te difun dido em Portugal e no Brasil a p a rtir do século XVI.88 Tam bém na religiosidade p o p u lar portuguesa nota-se a presença de magias p redom inan tem en te fem ininas, com o propósito de conquistar am an tes ou am ansá-los. M as igualm ente in teressan te seria re 86 87 88
ANTT, Inquisição de Évora, Cadernos do Promotor 54, livro 260. ANTT, Cadernos do Promotor 99, livro 292. VAINFAS, R., “Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista”. In: SOUZA, L. de M. (Org.), História da vida privada no Brasil, p.249-50.
gistrar os contrastes: entre as m ulheres brancas, o proferimento das p alav ras e u ca rístic as em latim , a in d a q ue profanam ente, m isturadas aos gem idos da cópula; entre as mulheres de origem africana, o predom ínio de ritos sacrificatórios, derram am ento de sangue, degola de anim ais. É im p o rta n te c h am ar a atenção, p o r fim , para o caráter ambíguo da figura da feiticeira. A o mesmo tem po solicitada para satisfazer os desejos de seus clientes - curas, amores etc. -, era tam bém bastante tem ida pelas possibilidades perversas inerentes às suas habilidades. A elas im putavam -se desgraças e dissabores: m ortes rep en tin as de adultos ou recém -nascidos; doenças des conhecidas que a m edicina ainda estava longe de decifrar; des truição de bens m ateriais com o colheitas, anim ais, embarcações; im potência sexual; confecção de bonecos compostos de objetos da vítim a.89* * *
*
Mesmo em Portugal os escravos urdiram toda sorte de magias para se livrar da ira de seus senhores, em bora no Reino o escravismo fosse an cilar ou secundário na econom ia portuguesa. M as isso não significa que a resistência e a necessidade de proteção contra a violência senhorial não fizessem p arte do cotidiano dos cativos; nesse sentido, a feitiçaria foi um a alternativa a mais para aliviar as tensões entre senhores e escravos. N ão foi à toa que de todos os negros e m ulatos processados e denunciados p o r feitiçaria 48,4% fossem escravos e 18,3% forros (ver Tabela 12). A resistência ao sistem a escravista no m undo colonial apre sentou-se sob diversas form as, ta n to explícitas - como as fugas individuais e coletivas, revoltas e form ação de quilombos - até as mais sutis, vinculadas ao quotidiano e vivenciadas no interior do 89
PAIVA, J. P., op. cit., p.126.
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próprio sistema - como roubos, suicídios, abortos, assassinatos e atentados à produção senhorial.90 A s p ráticas tidas p o r m agia inseriram -se, pois, nessa segunda categoria. L au ra de M ello e Souza considerou-as como necessárias à formação social escravista colonial, um a vez que eram ao mesm o tem po um a alternativa de luta contra o sistema, “m uitas vezes a única possível”, assim como instrum ento legitimador da repressão e violência.91 Em Portugal, os escravos procuraram se resguardar dos maustratos que por vezes sofriam , valendo-se de to d a sorte de feitiços, tal como aqueles que serviram no Brasil. C onserveiro e copeiro do D uque de Caraval, o escravo A fonso de Melo apresentou-se à mesa inquisitorial de Lisboa p ara confessar em 1738. Seu senhor freqúentemente o destratava e castigava. A aflição era m uita, e um forro seu amigo o aconselhou a p ro cu rar o negro José Francisco, que fez um fervedouro de sangue de fran g o preto, p ed aço s de algodão e aguardente. D epois queim ou o coração do frango e um pano com o qual havia lim pado a sola de sapato do senhor. Tudo isso devia ser posto num p rato e dorm ido ao sereno, m as A fonso assustou-se, pois “não queria fazer m alefício algum a seu senhor, nem coisa que lhe causasse prejuízo, e som ente pretendia que o mesmo o tratasse com aquele agrado que antes fazia”. A prendeu ainda que tam bém o “ab ran d a ria” se jogasse sobre a m esa ou a roupa de seu senhor uns pós de cor cinza que ganhara, o que tentou uma vez “com grande medo, respeito e pouca fé”, m as de nada resultou. Por fim, tentou m ascar um pau pela m an h ã em jejum e 90 91
REIS, J. e SILVA, E., Conflito e negociação. A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. “No Brasil esta crença no poder redentor e purificador da violência física encontrou poderoso aliado na necessidade escravista do castigo exemplar. Escravos podiam ser legitimamente castigados também porque eram feiti ceiros. Enxergá-los como feiticeiros, por sua vez, foi uma das manifestações da paranoia da camada senhorial na colónia.” SOUZA, L. de M. O D iabo e a terra de Santa Cruz., p.205.
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depois cuspir por onde o senhor passasse - “e no dito cuspo havia ele de por o p é esquerdo” -, m as tam bém foi em vão.92 M astigar determ inada erva na crença de que ela acalm aria os humores dos senhores, ou ain d a u tilizar as raspas das solas de seus sapatos com o m aterial de feitiços, era costum e tam bém observado nas denúncias e processos, não só em Portugal, m as também no Brasil. E sta últim a prática, com um à tradição européia, viu-se tem perada pelos africanos, ta n to na colónia, quanto na metrópole. C ausar m oléstias físicas aos senhores tam bém foi p rática corrente por m eio de feitiços. E nraivecida, em 1736, F lorinda de São José foi presa pelo Santo O fício por ter confeccionado um boneco de trapos cravado de alfinetes e enrolado com três cordas de viola. Colocou-o dentro do colchão de sua senhora para adoecêla, procedim ento aprendido com “seus pais na sua te rra e outras pretas” em A ngola, onde havia nascido.93 Tam bém de A ngola viera, em 1729, C atarin a M aria, então com 10 anos. S uspeita de pôr feitiço na com ida de seu segundo senhor, bem com o de suas criadas, foi presa em 1732. A prendeu com seus pais palavras que acreditava terem poder de fazer m ale fícios e curar: carinsca, cafunideque, carisca, cazam friar. Pensou ter q uebrado a cab e ça de seu sen h o r e ter-lhe p ro p o rcio n a d o “torm entos no coração”, insónias, febres, tosses, dores de dentes, ouvidos, olhos, n a riz e estômago.94 A doecer os senhores e provocar-lhes um m al m ais d ireto eram ações que tam bém com punham o leque de m anifestações dos escravos, em bora seja im portante frisar que a feitiçaria p ra ticada por eles em Portugal - e tam bém no Brasil - não visava 92 93 94
ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 112, livro 304. Agradeço a Luiz Mott a indicação deste caso. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 437. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 6.286.
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um a oposição frontal e d ireta ao sistem a escravista, encetando rebeliões ou mesmo libertação, fosse violentam ente, fosse pela via da alforria. Estava em jogo sobretudo uma questão de sobrevivên cia, m uito m ais do que p ro p riam en te um a resistência frontal ao sistema. No entanto, embora não fosse comum, um caso foi registrado nesse sentido. D epois de oito anos servindo, D am ião de A lm eida, preso em 1771, teve em m ãos a possibilidade da liberdade com a alforria deixada em testam ento, m as a avidez do irm ão do senhor falecido o fez perm anecer cativo na casa da sobrinha. Exasperado, conversando com um amigo, o m ulato H enrique da Costa, natural de Pernam buco, recebeu a prom essa da liberdade. E ram duas car tas, que deviam ser enterradas no C am po de S anta C lara e postas em bolsas p a ra em cim a delas serem rezadas m issas no altar do oratório da M arquesa do Lavradio, sua nova senhora. Disse-lhe que esta m andinga era com um no Brasil quando se queria incitar os senhores a alfo rriar seus escravos. D escobertas as bolsas pelo capelão da casa, o escravo foi p ara a Intendência de Polícia e de lá p ara a Inquisição.95 Q uando queriam ser vendidos, os escravos tam bém recorriam aos feitiços. R aspas de sola do sapato, escarro e lixo da casa do senhor, ju n to com um pouco de enxofre, foi o que José Francisco pediu em Lisboa p ara aju d ar um escravo em 1730, e p o r isso foi processado. Essés ingredientes, postos num a bolsa enterrada na p o rta do senhor p o r três dias, lhe g aran tiria a venda.96 O Santo O fício serviu, em certos casos, p ara alguns escravos tentarem se desvencilhar de sua terrível condição. Foi o caso de Rosa Inácia, que em 1742 se disse autora de feitiços e de opiniões blasfemas sobre a hóstia - queim ada num fogareiro -, a imagem
de C risto e o próprio Santo Ofício, am aldiçoado por ela. M as a farsa da escrava foi descoberta, pois de acordo com Francisco Ferreira, seu senhor, ela queria se livrar a todo custo do cativeiro... Ao ten tar fugir, afirm ou, m ereceu o devido castigo com brasas ardentes nos pés”. Rosa Inácia via na Inquisição, ironicamente, a possibilidade de o u tras condições de existência. Teve melhor sorte pela m ão do próprio senhor, que não a acusou e vendeu-a p ara um capitão que m orava no R io de Janeiro. O je su íta A n to n il, em seu C ultura e opulência do Brasil, publicado em inícios do século XVIII, já advertira os senhores de engenho no Brasil p ara que m oderassem os castigos aos escravos, pois do co n trá rio eles p o d eria m fu g ir “p a ra algum m ocam bo no m ato ”, suicidarem -se ou então vingarem -se de seus algozes, enfeitiçando-os.98 A docum entação inquisitorial é farta em m ostrar que m uitos desses escravos de fato apelaram para seus saberes “m ágicos” nas relações com seus senhores. N o caso dos negros escravos e forros, sua difícil condição de sobrevivência era de algum m odo com pensada com a prática da feitiçaria. Detentores de saberes “mágicos”, a fam a pública fazia-os requisitados tam bém por brancos, o que geralm ente elevava seu “status” em sua p rópria com unidade e possibilitava, através das curas, feitiços am orosos e confecção das m andingas, a obtenção de ganhos m ateriais não só em dinheiro, m as ainda em gêneros. Para os senhores, era um grande inconveniente ter seus escravos identificados com o feiticeiros pela Inquisição, uma vez que estes, quando presos, dificilm ente retornavam aos seus ofícios. Negros feiticeiros tam bém se arm a ram com suas bruxarias p ara se de fenderem das agruras do cativeiro, em tentativas variadas para 97
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 724. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.767.
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ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 112, livro 304. Agradeço a Luiz Mott a indicação deste caso. ANDREONI, J. A., Cultura e opulência do Brasil p o r suas drogas e minas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p.64
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110 aplacar a ira senhorial, escapar de castigos e m aus-tratos, dessa forma resistindo cotidianam ente à sua condição. Alguns estudos im portantes perceberam bem a relação entre a feitiçaria e as tensões sociais. O trabalho do antropólogo inglês Evans-Pritchard sobre a b ru x a ria zande do sul do Sudão e nor deste do Congo, publicado em 1937, m ostrou o papel da feitiçaria naquela com unidade como um m ecanism o de escape de tensões e medos, encarnados na figura do b ru x o ." C erca de trin ta anos depois, essa análise foi objeto de reflexões acerca da feitiçaria europeia. A s mazelas traz id as p o r um século XIV difícil, com pestes, fome, crise económica, desesperança, pessimismo, herança abraçada pelo alvorecer da É poca M oderna e acrescida ain d a de conflitos religiosos, fizeram au m en tar cada vez m ais as pressões sociais. A ssim , as desgraças que assolavam os indivíduos eram encarnadas na figura da b ru x a, responsável d ireta p o r m uitas dessas intempéries. Como bem definiu Jean Delum eau: Na estrutura de uma sociedade que ainda permanecia amplamente no estágio mágico, era necessária portanto como bode expiatório, sendo aliás verdade que certos indivíduos realmente procuraram desempenhar esse papel nefasto de enfeitiçador. 100
Vale lembrar que autores do p o rte de Keith Thom as e M acFarlaine viram -se influenciados p o r estas reflexões. N o portentoso estudo de Keith Thom as, A religião e o declínio da m agia, de 1971, a perseguição às bruxas aparece vinculada não apenas às elites, mas também ao crescente descontentam ento do cam p esin ato inglês
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EVANS-PRITCHARD, E., Bruxaria, oráculos e magia entre os A zande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. DELUMEAU, J., História d o m edo no O cidente. 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.376.
diante das m udanças no m undo rural, levando a um aum ento das tensões sociais e, p o rtan to , do núm ero de denunciados.101 * * *
Peter Burke demonstra com brilhantism o o grau de heterogeneidade da cultura popular na E uropa dos Tempos M odernos, apontando a existência de “m uitas culturas populares”; entendida tam bém com o “um m odo d e v id a”. A s categorias que p ro tag o n izaram esse estrato cu ltu ral são variadas, desde o cam p esin ato até os trabalhadores do m undo urbano (sapateiros, ferreiros, m ineiros, soldados, m arinheiros etc.). Nas cidades, Burke distingue ainda as m inorias étnicas, com o judeus e m ouros. A ssim , o conceito de “su b cu ltu ra” a p a re c e nesse contexto p a ra d iferenciar essas cam adas, em bora ressalte a relativa autonom ia desses subgrupos, não separados por com pleto das dem ais m anifestações da cultura popular: “a subcultura é um sistem a d e significados partilhados, m as as pessoas que p articip am dela tam bém p artilh am os signi ficados da cultura em geral”.102 N o caso dos africanos em Portugal, percebem os claram ente essas relações ao constatarm os que m uitos procedim entos de cura e de enfeitiçam ento m anifestados pelos negros e m ulatos m antêm um a fronteira fluida e incerta em relação ao que se praticava por p arte de portugueses brancos e europeus, sendo assim difícil de se resgatar o que era originalm ente africano, em bora se possa fazê-lo pontualm ente. V istos com o um subgrupo cultural, os africanos em Portugal apresentaram como m anifestações mais tipicam ente
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THOMAS, K., A Religião e o declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. BURKE, P., Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.69
112 vinculadas às suas raízes o p o rte e uso das bolsas de m andingas e, em segundo lugar, os calundus, ainda que estes últim os tenham sido pouco registrados entre as “feitiçarias” do Reino.
C A P Í T U L O I II
A M A N D IN G A DE DEUS
U m e tío p e q u e s e la v a n a s á g u a s d o rio Z a ir e f ic a lim p o , m a s n ã o f i c a b ra n c o ; p o r é m n a águ a d o b a tis m o s im , u m a c o is a e o u tra .
Pe. Antônio Vieira, 1662. ESBOÇOS DE U M A Á FR IC A CRISTÃ Aquela cativa, Q ue m e tem cativo, Porque nela vivo Já não quebre que viva. Eu nunca vi rosa Em suaves molhos, Q ue p a ra m eus olhos Fôsse m ais form osa. Pretidão de am or, Tão doce a figura, Q ue na neve lhe ju ra Q ue tro ca ra a côr. Leda m ansidão Q ue o riso acom panha;
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Bem parece estranha, Mas bárbara, não. B á rb a ra e sc ra v a , Luís de Camões.
Ao contrário de um Camões encantado diante de sua am ada negra, apesar da estranheza de sua condição, a sociedade portuguesa do A ntigo Regime viu os negros como “b árb aro s” nos seus costum es, na sua religiosidade e nas suas devoções, sendo estes objeto de um intenso processo aculturador. Lem brem os que o alvorecer dos Tempos M odernos foi um m om ento de intensa reflexão p o r p a rte da Igreja quanto a um novo d irecio n am en to da c rista n d a d e a p a rtir de um amplo projeto de evangelização popular. A am eaça representada pelo avanço do protestantism o fez com que novas perspectivas se co nfigurassem no p la n o religioso, que seg u iu contornos próprios em cada região. Em capítulo precedente dem onstram os que o fator religioso integrou um leque de m otivações que im pulsionaram a expansão de Portugal em direção ao A tlântico e depois ao O riente. O s ide ais missionários cam inharam lado a lado à construção do vasto Im pério colonial português, m aterializando-se na evangelização progressiva das populações de todas as suas colónias n a Á frica, na A m érica e no Oriente. A idéia de Portugal com o nação m issionária no O cidente foi muito bem expressa pelo Pe. A ntônio V ieira, que em 1657 escrevia ao rei D. Afonso VI que o Reino se diferenciava das outras nações por propagar e “estender a fé católica nas terras pagãs, p a ra que Deus o criou e fundou”.1 Nas palavras do cronista Z urara, eram nítidas as intenções de “salvação das almas perdidas, as quais o dito senhor (D. H enrique)
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BOXER, C., O Império colonial português. 1415/1825. Lisboa: Edições 70, 1981, p.226.
queria, por seus trabalhos e despesas, trazer ao verdadeiro caminho, conhecendo que não se podia ao Senhor fazer m aior oferta”.2 A viabilidade desse projeto em relação à Á frica foi b astan te dife renciada nas suas diversas regiões. C o n trarian d o o anúncio do franciscano João de X ira, de que C euta seria a “cabeça da Igreja de toda a T erra”, a evangelização das populações islam izadas do norte da Á frica foi bastante difícil, mesmo com a criação das dio ceses de C euta, em 1420, e Tânger, em 1469. Tam bém nas regiões da G uiné, Senegal e B enin o trab alh o m issionário esbarrou na influência m uçulm ana existente em várias com unidades, em bora de m enor intensidade.3 A região do reino do Congo, no entanto, n ão havia recebido nenhum a influência islâm ica ou hebraica, tornando-se alvo das p ersp ectivas m issio n árias de P ortugal, que acalentavam o tão esperado co n tato com o lendário potentado do P reste João e a possibilidade de form ação de um bloco cristão ao sul da Á frica m uçulm ana.4 O Congo foi exemplo, na p ró p ria Á frica, de um a c ristia n iz a ç ã o p e c u lia r e d e um “a p o rtu g u e sa m e n to ” de suas instituições políticas e sociais.5* 2 3
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ZURARA, G. E., Crónica de Guiné. Porto: Civilização, 1972, p.45. MARQUES, J. F., “A religião na expansão portuguesa. Vectores e itinerários da evangelização ultramarina: o paradigma do Congo”. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 14, 1992, p.123-124. ARAÚJO, J. M. A. de A. e SANTOS, E. J. O., “Os portugueses e o Reino do Congo. Primeiros contatos”. In: M issionação portuguesa e encontro de culturas. Braga: Universidade Católica do Porto/Comissão para os Descobrimentos Portugueses, 1993, v. I, p.638. A documentação que trouxe à luz essa catolização ímpar é diversa. Citemos principalmente os cronistas João de Barros, em Á sia ; Rui de Pina, com a Chronica d ’E l Rei Dom João II; Garcia de Resende, Chronica de Dom João II; a Relatione del Reame di Congo e delle circonvicine contrade, de Filippo Pigafetta e Duarte Lopes; as correspondências régias, as crónicas de missio nários e viajantes, publicadas em coleções como a M onumento Missionária Africana, do Pe. Antônio Brásio; História do Congo - Documentos (1492/1722), de Paiva Manso, e Vancien Congo d ’après les archives romaines, 1518/1640,
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L ocalizado n a Á frica centro-ocidental, o reino do Congo, às vésperas d a chegada dos portugueses, m a n tin h a u m a estru tu ra solidam ente organizada, englobando vários grupos da etnia b an to ag ru p ad o s em “p ro v ín cias” sem i-in d ep en d en tes (Ngoio, M akongo, Ngola, M akam ba, A m bundi, M atam ba, L ulunzenza e Libolo). Reconheciam a soberania do rei, ou M ani, e do grupo que o auxiliava m ed ian te alianças políticas forjadas p o r indivíduos de linhagem ligados entre si por laços de parentesco, e relações com erciais en tre as regiões.6 Os prim eiro s contatos com os portugueses d atam de 1483, quando o navegador Diogo C ão subiu o portentoso rio Z aire. O reconhecim ento da te rra e as d iretrizes da C oroa n a expansão da fé católica fizeram -no deixar na região alguns em issários por tugueses versados em línguas africanas. Voltou a Portugal com alguns negros locais, sendo recebidos pelo m onarca e batizados e instruídos na fé. Esse encontro m arcou os passos iniciais do que m ais tarde seria o p rim eiro reino cristão na Á frica negra. O s interesses económ icos dos portugueses no Congo foram a outra face desse fenôm eno atípico de aculturação e cristian iza ção. Eles se d ep ara ra m com m ercados regionais onde produtos eram com ercializados, m as am bicionavam sobretudo o controle das m inas e o m ercado de escravos. Vale lem brar que o Congo e alguns reinos adjacentes viviam naquele m om ento um a fase de
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de Cuvelier-Jadin; a História da descrição do reino do Congo, M atam ba e Angola, do Pe. Cavazzi de Montecúccolo; a Description de l ’A frique, de Olivier Dapper, a H istória geral das guerras angolanas, de A ntonio de Oliveira Cardonega e a História do reino do Congo, de autor anónimo, pre faciada e editada pelo Pe. Antônio Brasio, provavelmente escrita em 1624. Apud GONÇALVES, A.C., “As influências do cristianismo na organização política do Reino do Congo”. Actas do Congresso Internacional Bartolomeu D ias e sua época. Porto: Universidade do Porto/Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, v. V, p. 523-540. A R A Ú JO , J.M . A . d e A . e S A N T O S , E . J.O ., o p . c it., p .6 4 4 .
franca expansão territorial, prom otora de um expressivo enrique cimento pelo aum ento dos tributos e o fornecimento de um amplo contingente de cativos, cuja origem rem onta, em praticam ente toda a Á fric a centro-ocidental, às guerras locais intertriba is de conquista. A supremacia das cidades em face das aldeias no reinado congolês baseava-se no braço escravo, que prom ovia a riqueza e m antinha o status político das linhagens nobres, articuladoras dos m ecanism os de lealdade pessoal que sustentavam a centralização do poder do M anicongo.7 O retorno de Diogo Cão ao Congo em 1485 trouxe as primeiras orientações do m onarca português para o estreitam ento dos laços entre os dois povos, n arrad as pelo cronista G arcia de Resende: E lhe mandou oferecer sua amizade e descobrir sua vontade, que era desejar sua salvação convidando com razões, a admoestações para a Fé de Jesus Cristo Nosso Senhor, encomendando-lhe que deixasse os ídolos e feitiçarias que tinha e adoravam em seu reino, dando-lhe para isso muitas e boas razões que ele pudesse entender, e dito de maneira que ele não se escandalizasse pela errônia em que vivia . 8
O trab alh o dos em issários portugueses no tem po em que lá per m aneceram facilitou os contatos com o M anicongo para a intro dução d a fé cristã, m as sobretudo o retorno daqueles que tinham sido capturados, como veremos adiante. A disposição do rei para converter-se ao cristianism o era evidente, enviando inclusive uma em b aix ada ao m onarca p o rtu g u ês no in tu ito de legitim ar seu
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T H O R T O N , J.,
África and Africans in the M aking O f the Atlantic World,
1400 - 1680 . C h ic a g o : T h e U n iv e r s ity o f C h ic a g o P re ss , p.108-109. A p u d VAINFAS, R . e S O U Z A , M . d e M ., “ C a t o l i z a ç ã o e p o d e r n o t e m p o d o tr á f ic o : o r e i n o d o C o n g o d a c o n v e r s ã o c o r o a d a a o m o v i m e n t o a n t o n i a n o , s é c u lo s X V -X V III”.
Tempo, R i o d e J a n e ir o : S e t t e L e t r a s , n .6 , d e z .1 9 9 8 , p.105. 8
A L M E ID A , J. M . A . e S A N T O S , E . J. O ., o p . c it., p.641.
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pedido e conseqiientemente a vinda de m issionários e clérigos, e o envio de congoleses a P ortugal p ara serem instruídos na fé, nos costumes e nas letras. Em 1490, outra expedição, sob o comando de Gonçalo de Souza, aportava na província de Nsoyo, cujo governo estava nas mãos de um tio do M anicongo, b astan te respeitado en tre os outros chefes. A recepção foi a melhor possível, e o batism o deste governador, de seu filho e dos mais im portantes do reino iniciou o processo sistem ático de conversão. Essa expedição trouxe de volta os con goleses que haviam ido p ara Portugal. Já com o nom e de M anuel, ele ordenou a destruição de tem plos e ídolos locais, fazendo coro aos clérigos que instigavam a todos a abandonarem superstições e idolatrias. O próximo passo foi um a expedição p ara a cap ital M banza Kongo, com o referido tio já convertido, onde o rei, sua fam ília e seus “fidalgos” ab raçaram a fé cristã pelo batism o em meio a um a grande festa. A perspectiva de um a cristianização em massa levou à construção de um tem plo e ao início dos en sin a mentos dos princípios da fé p a ra a com unidade. A nova religião ganhou ainda mais força pelos sucessos do rei congolês - agora cham ado de D. João I - ao debelar revoltas de alguns povos do reino, atribuindo a vitória à adoção da nova religião.9 No regresso a Portugal, a em baixada enviada pelo M anicongo revelou m uitas intenções: colocavam -se com o súditos do m onarca português; pediam a vinda de m ais clérigos, além dos que ficaram , e sugeriam até uma possível ida a Roma. Estabelecidas, p o rtan to , as relações entre os dois reinos, ancoradas na fé cristã, os interesses comerciais encontraram um am plo espaço p ara se firm arem . A sucessão do rei D. João não se fez sem disputas entre seus dois filhos. D errotando o irm ão que se aliara a nobres fiéis às antigas tradições, D. A fonso é coroado rei em 1506, consagranMARQUES, J.F., op. cit., p.132.
do o catolicism o com o religião oficial do reino. E xtrem am ente dedicado ao cristianism o, ele determ inou a destruição dos cultos e id o latrias a n c e stra is congolesas e prom oveu u m verd ad eiro “aportuguesam ento” das instituições políticas, adm inistrativas e sociais, tornando o reinado ainda m ais centralizado politicamente. Um exemplo interessante foi a c a rta de D. A fonso a D. João III, em 1526, solicitando m édicos e “boticários” que soubessem d a r os “verdadeiros rem édios” p ara que m uitos não m orressem nas mãos daqueles que tentassem cu rar “com ervas e paus, e outras m aneiras de sua antiguidade, os quais se vivem, nas d itas ervas e cerim ónias põem toda a sua crença”.101 A evangelização do Congo recebeu um grande im pulso nesse m om ento, expressa num R egim ento de 1526, que, b asead o em outro datado de 1512, regulou o apostolado cristão e ainda definiu um a organização política, adm inistrativa e judicial, e tratav a de assuntos relativos ao com ércio.11 A in flu ên cia dos p o rtu g u eses n a eco n o m ia congolesa se fez sentir principalm ente em setores com o a extração d e cobre - im p o rtan te meio de obtenção de m ercadorias européias - e no comércio de escravos que, instituído m onopólio real, aum entava progressivam ente a abastança do reino e consolidava o apoio da nobreza, sustentáculo fundam ental do poder real.12 O instigante fenôm eno da catolização do Congo não escapou nem ao poeta L uiz de C am ões, que nos L usíadas diz: Alli o muy reyno estâ de Congo, Por nos já convertido à fee de Christo,
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Carta do Rei do Congo a D. João III (18-10-1526). In: BRASIO, A., Monumenta missionária africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953, v. I (1471/1531), p.489. GONÇALVES, A. C., op. cit., p.532-533. VAINFAS, R. e SOUZA, M. de M., op. cit., p.104.
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Por onde o Zaire passa claro e largo, Rio pellos antigos nunca visto.13 Georges B alandier considera superficial a catolização da maioria dos povos do Congo, im pondo-se efetivam ente apenas na medida em que se mesclou às crenças e costumes tradicionais congoleses.14 D e fato, a aceitação e absorção da religião católica se relacionou fundam entalm ente às próprias tradições bantas, com o m uito bem dem onstraram os autores norte-am ericanos W yatt M acGaffey e John Thornton. A cosm ogonia b an ta separava nitid am en te o universo dos vivos e dos m o rto s, com o já m encionam os. O trâ n s ito en tre am bos se fazia através da água, e eram interm ediados por indi víduos detentores de poderes mágicos. E n q u an to os m ortos, de cor branca, exigiam hom enagens e subm issão, os vivos podiam deles receber m uitos dons através de um contato que se fazia por um a iniciação na qual o indivíduo ficaria tem porariam ente no plano dos m ortos. D esse modo, na visão de M acGaffey, o retorno dos reféns capturados na prim eira expedição portuguesa, sentido com m uita satisfação e regozijo, foi percebido com o símbolo de sua ressurreição, de um a volta do m undo dos m ortos. A ssim , a experiência e os conhecim entos adquiridos em sua passagem por Lisboa foram invejados, na m edida em que sin alizaram poder e sabedoria. Os portugueses, brancos saídos das águas, foram asso ciados a esse complexo sistema de crenças, vistos com o emissários que anunciavam um a nova m aneira de ver o m undo.15
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J.F., op. cit., p.X30. BALANDIER, G., La vie quotidienne au royaume du Kongo du XVIe. au XVIIe. siècle. Paris: Hachette, 1968. MACGAFFEY, W., “Dialogues of the Deaf: Europeans on the Atlantic Coast ° f África . In: SCHWARTZ, S. (Org.), Implicit Understandings. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p.257; MACGAFFEY, W., Religion and M A RQUES,
O batism o rep resen taria a iniciação p a ra um culto ainda mais forte do que até então era vivido e praticado. Usando a ex pressão de M acGaffey, o “diálogo de surdos” que se estabeleceu entre congoleses e portugueses representou a interpretação de mitologias de p a rte a parte, respectivam ente de acordo com seu sistema cultural e de crenças, e surpreendentem ente sem conflitos aparentes. N esse sentido, por exemplo, os objetos utilizados nos rituais cristãos e nos congoleses recebiam a mesma designação (nkisi), com o tam bém os padres portugueses e mágicos locais, executores das m esm as funções.16 O s sím bolos cristãos foram reinterpretados: a cruz - cham ada de kuluzu -, feita com talos de folhas de palm eiras, tam bém era usada com o protetora contra espíritos errantes (ver F igura 3 em anexo).17 A pesar de aceita, a associação entre os dois sistem as religiosos era totalm ente falsa, configurando a “institucionalização de um m al-entendido”, nas palavras do autor. A n tô nio C ustódio Gonçalves destaca a capacidade natural do Congo em se ad ap tar e se m esclar a modelos culturais diversos, assim ilando m uitos aspectos dos grupos com os quais m antinha ligações. G eograficam ente ainda se localizava em meio a diversas correntes m igratórias, suscetíveis, p o rtan to , a contatos vindos tan to da costa atlântica, com o do interior do continente.18 A p a r tir do século XVII, as relações luso-congolesas e o próprio reinado com eçaram a ruir, fru to de um a conjunção de fatores externos e internos, a com eçar pela própria fragilidade da estru tu ra que se estabeleceu. O culto e a doutrina cristã, bem com o o conjunto das instituições portuguesas adotadas, não con seguiram elim inar por com pleto o sistem a político tradicional e
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Society in Central África. Chicago: The University of Chicago Press, 1986. MACGAFFEY, W., “Dialogues of the deaf...”, p.260. BALANDIER, G., op. cit., p.259. GONÇALVES, A. C., op. cit., p. 526.
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122 religioso do Congo, havendo sem pre a oposição daqueles que se m antinham aferrados às chefias tradicionais baseadas nas lin h a gens e às suas crenças religiosas ancestrais.19 D estaque-se nesse contexto o problema da poligam ia, condenada pela Igreja, mas fundamental nas tradições políticas congolesas para a consagração de alianças entre chefias m ediante os casam entos. Foram vãs as queixas de D. A fonso ao rei português an te os desmandos dos m ercadores do tráfico escravista n a região que, utilizando rotas não oficiais, burlavam assim o m onopólio real e os tributos devidos ao rei congolês, escravizando inclusive nobres congoleses, além dos capturados em guerras interprovinciais. Ao mesmo tempo, a região de A ngola - antigo sobado congo lês Ngola, já independente - despontava com o novo atrativo aos portugueses para um com ércio de escravos m ais lucrativo, longe dos monopólios impostos pelo Congo, que não deixou de protestar com veemência ao m onarca lusitano.20 A idéia de reinos irm ãos pouco a pouco tam bém caía por terra, com Portugal m enospre zando cada vez mais os interesses congoleses. Depois do governo de G arcia A fonso II (1641/1663), intensi ficou-se a crise política pelas renhidas disputas sucessórias, mer gulhando o reinado em várias guerras civis até inícios do século XVIII. O enriquecim ento de linhagens, com o a da província de Nsoyo, acirrou ainda m ais as disputas políticas, em pobrecendo a população pelas guerras e aum entando sobrem aneira o contin gente de escravos, oriundos dos povos subjugados. A tendência à descentralização do poder to rn o u as regiões m ais autónom as, embora a disputa pela coroa continuasse, a ponto de em fins do XVII existirem três reis.21 19 20 21
Idem, p.535. Vale relembrar que a partir dos anos 70 do século XVI, Angola tornou-se a principal fornecedora de escravos. ARAÚJO, J., op. cit., p.652-653. VAINFAS, R. e SOUZA, M. de M., op. cit., p.107-108.
O contexto da crise política congolesa p erm ite perceber as m últiplas faces do processo de africanização do catolicism o no Congo em inícios do século XVIII, com o aparecim ento do cham a do “m ovim ento dos antonianos”, protagonizado p o r K im pa Vita, negra de origem nobre, educada no cristianism o. Túdo com eçou em certa ocasião quando, agonizante, teve a visão de um frade capuchinho lhe dizendo ser ela S anto A ntônio. Já m o rta, este santo nela encarnou e a ressuscitou, conclam ando-a, por ordem divina, a pregar no reino. A p a rtir de então, ela “m orria” todas às sextas-feiras e ressuscitava aos sábados com o tal e, nesse in terregno, conversava com D eus sobre vários problem as do Congo, pregando às m ultidões, prom etendo a reunificação do reinado e m uitas riquezas. R eco n stru iu ainda passagens do cristianism o: o Congo era a verdadeira Terra Santa; São Salvador, o local de nascim ento de Cristo, a Belém africana; a Virgem Santíssim a era negra, e São Francisco era filho de um nobre de Venda.22 A n tô n io C ustódio Gonçalves, em seu estudo sobre o Congo, vê o m ovim ento dos an to n ian o s com o u m a espécie de reflexo do d ilaceram en to in te rn o do reino. P ara ele, K im p a V ita foi notável em revigorar sim bolicam ente, através do cristianism o, alguns valores da cultura banto tradicional, desestruturada pela fo rm ação de um novo e sta d o co m p letam en te d is tin to ap ó s a chegada dos portugueses. A ressurreição de Santo A ntônio nela encarnado vinha representar, por exemplo, os ritu ais de iniciação, sendo osjm ais im portantes a m orte - que separava os iniciados de sua personalidade an terio r - e a ressurreição, quando adota vam o u tro nom e.23 E is a í um a outra versão do relacionam ento vivos/m ortos, tão caro aos congoleses, que, com o bem m ostrou
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BALANDIER, G., op. cit., p.264. GONÇALVES, A.C., op. cit., p.536. Ver também, do mesmo autor, Kongo: le lingnage contre 1’Etat. Évora: Universidade de Évora, 1985.
124 McGaffey, abriu as portas para a evangelização do reino em fins do século XV.24
estava hab ituada a m orrer e ressuscitar, desta vez m orreu e não
Essa versão africanizada do cristianism o, entretanto, rejeitou o clero oficial, os m issionários, a cruz de C risto e os sacram entos, p articu larm en te o m atrim ónio, e restitu iu a poligam ia, p rática im portante p ara a m anutenção das relações de poder. K im pa Vita recrio u orações católicas e organizou u m a igreja, tendo com o pregadores os “an to n in h o s”.
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P a ra Jo h n T h o rn to n as tra d iç õ e s b a n ta s, asso ciad a s ao catolicism o, co n fig u raram um “cristianism o african o ”. P ara ele, o antonianism o ancorava-se nas mazelas sociais causadas pelas guerras constantes e pelas perspectivas de escravização, abrindo éspaços para a difusão de um “catolicismo congolizado”, ao mesclar a religiosidade e os mitos congoleses ao cristianism o ortodoxo dos m issionários portugueses.25 O m ovimento adquiriu um caráter p o pular, pondo em xeque a estru tu ra vigente de poder num contexto de extrem a crise política e social e que, em bora de cunho católico, “pulsavam tradições e crenças m ui caras à religiosidade tradicional dos bantos, a saber, a crença no poder dos m ortos”.26 M as ta m an h a heterodoxia não ficou im pune, pois a m o rte n a fogueira em 1706 foi d ecretada pelo Conselho Real, sacram en tando de vez o fim do m ovim ento dos antonianos. “A pobre Santo A n tô n io ”, d iria o capuchinho italiano B ernardo da Gallo, “que
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“Kimpa Vita ancorou seu poder, antes de tudo, na morte. Morrera e ressusci tara, encenando, num só ato, o enredo que levara os reis congoleses a abraçar o cristianismo séculos antes. E Kimpa Vita ‘reatuaI i/.ava o mito’ através do rito de sempre morrer às sextas-feiras para voltar aos sábados, após jantar com Deus”. VAINFAS, R. e SOUZA, M., op. cit., p.117. THORNTON, J., The Kingdom o f Kongo: Civil Wars and Transition, 16411718. Wisconsin: University of Wisconsin, 1983. Idem, África and Africans in the M akin gof the A tlantic World, 1400-1680. Chicago: The University of Chicago Press. VAINFAS, R. e SOUZA, M., op. cit., p.U7.
m ais ressuscitará”.27
A região de A ngola, ao sul do Congo, tam bém passou por um processo de evangelização, apesar de bem menos expressivo que o Congo. O reino do N dongo foi fundado em início do século XVI, tendo com o autoridade m áxim a os ngolas, que se estendendo ter ritorialm ente p a ra outros sobas (senhor africano de um distrito), subm eteram -se ao reino do Congo.28 A pós sua independência, em 1556, o rei angolano enviava um a em baixada a Portugal solicitan do m issionários que instruíssem o reino na fé cristã, vindo, em 1559, Paulo D ias de Novaes im plem entar a catolização. Escrevia o p ad re G asp ar Sim ões, em 1563, dem onstrando a dificuldade do processo de evangelização em A ngola, que “quase toda gente daqui está de acordo em que a conversão destes bárbaros nunca será feita por am or, m as sim depois de subjugados pela força das arm as e tornados vassalos do senhor nosso rei”.29 A s perspectivas de ganhos económicos com as minas de prata e o com ércio escravista atiçaram os portugueses a sistem atizar a ocupação, transform ando-a em capitania e fundando-se São Paulo de L uanda em 1576.30 O avanço te rrito ria l na busca das m inas criou atrito s com o ngola, iniciando-se um a longa e sangrenta guerra entre esse reino e os portugueses até por volta de inícios do século XVII, quando se in iciaram as negociações de paz. A
27 28
BALANDIER, G., op. cit., p.268. MAESTRI, M., História da África pré-colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto,
29 30
1988, p.86. BOXER, C., A Igreja e a expansão ibérica. Lisboa: Ed.70, 1989, p.94. “História da residência dos padres da Companhia de Jesus em Angola e coisas tocantes ao Reino e conquista (1-5-1594)”. In: BRÁSIO, A., op. cit., v.
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então irm ã do ngola, N jinga, liderança dos povos m bundo-jaga localizados nas regiões do N dongo e M atam ba, até então foco im portante de resistência, chegou a L uanda em delegação p ara propor o térm ino dos conflitos. A p esar de ter se convertido ao cristianism o, não se subm eteu aos portugueses, alian d o -se até aos holandeses.31 Coube fundam entalm ente aos jesu ítas a cristian iz ação de Angola num contexto de extrem a dificuldade, pois as tradições locais acabavam muitas vezes por prevalecer.32M as a evangelização dessa região da Á frica O cidental contou tam bém com a presen ça dos capuchinhos, que lá chegaram em 1640, e dos prim eiros carm elitas, a p a rtir de 1659, fu n d an d o o Convento do C arm o em Luanda e depois rum ando p a ra o interior. N ão houve nenhum confronto entre os capuchinhos e as autoridades portuguesas, que, ao contrário, estiveram sem pre a reco n h ecer a atu ação destes missionários, a exemplo do p ró p rio Conselho U ltram arin o , que em 1659 registrou: Deve Vossa Majestade mandar advertir aos prelados das outras religiões que há em Angola e, principalmente às que Vossa Majestade dá ordinárias, que enviem sujeitos úteis para o serviço de Deus, (...) que entrem pelo sertão, como estes (capuchinhos) fazem, e o hão-de continuar.33
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KI-ZERBO, J., História da Á frica negra. Lisboa: Europa-América, 1990, p.426. “Quanto ao que se fez com os naturais, os moradores da ilha de Luanda, das terras de Corimba e Caçange, eram todos gentios, obra de oito mil pessoas, fomos a ensinar-lhes a fé, acabamos com eles que queimassem seus ídolos e feitiços, e depois os batizamos com grande consolação nossa e de todo este reino.” In: BRÁSIO, A., op. cit., p.548. Apud BOSCHI, C., “As missões na África e no Oriente”. In: BETHENCOURT, F. e CHAUDHURI, K., História da expansão portuguesa, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, v. 2, p.408-410.
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NEGROS CATÓLICOS Foi na Bula R om anus Pontifex, de 1455, que encontram os um a das prim eiras referências às tentativas de cristianização dos africanos em Portugal. Esse docum ento explicita que, em função do comércio negreiro já florescente na região, abrir-se-iam as p o rtas p ara que muitos deles entrassem no Reino, fossem batizados e abraçassem a fé católica.34 Infelizm ente, o estágio atual das pesquisas sobre a cristianização dos negros em Portugal ainda é bastante incipiente. Os poucos trabalhos existentes restringem-se sobretudo aos séculos XV e XVI, atendo-se m uito m ais a dados estatísticos do que p ro priam ente a reflexões m ais verticalizadas acerca dos significados do cristianism o no seio da população negra no Reino. O processo de conversão form al dos africanos foi bastante lento, ap esar de todo o ideário evangelizador que norteou a ex pansão portuguesa. E m 1493, por exemplo, os africanos Tanba, Tonba e Baybry, escravos de D. João II, ainda não eram batizados, já d e c o rrid a s m ais de três d écadas d a e n tra d a dos p rim eiro s negros em Portugal.35 A p e n a s n a seg u n d a d éca d a dos q u in h e n to s su rg ira m as p rim eiras referências legais ao batism o dos escravos. E m 1514, as O rd en açõ es M anoelinas d isp u n h am que todos os senhores possu id o res de “escravos d e G u in é” os b atizassem e aos seus descendentes, e os fizessem cristãos até seis meses, a co n tar do dia d a posse, caso c o n trá rio os perd eriam . E xceção era feita para aqueles de idade superior a dez anos, que podiam o p ta r por perm anecer pagãos sem nenhum ônus de m ulta p ara seu senhor. Dois anos depois, o batism o era m inistrado ainda nas em barca-
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BOXER, C., O Império colonial português, p.44. SAUNDERS, A. C. de C. M., História social dos escravos e libertos negros em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982, p.6 8 .
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Ções ou nos locais onde os negros eram recolhidos, evitando-se assim que eventualm ente falecessem sem receber o sacram ento.36 A urgência e a lucratividade do com ércio negreiro im punham ra pidez e eficiência no apresam ento e distribuição das “m ercadorias” ou peças —com o se referiam aos cativos —, sendo os escravos adultos rap id am en te batizados, quase sem dou trin ação , desres peitando p o rtan to as norm as da Igreja. Na prática, era difícil os negociantes de escravos se dedicarem à catequese dos africanos nos locais de em barque.37 Em inícios do século XVII, em meio à ação missionária nas ilhas de C abo Verde e G uiné, reclam ou o p ad re Fernão G uerreiro: Entre os muitos abusos que havia nesta terra, um grande se tinha no batismo dos pretos que vêm da Guiné, que como são muitos, se batizavam, logo trezentos, quatrocentos e setecentos juntos; e como destes os mais são os que vão daqui para as índias, Brasil e Sevilha e outras partes, acontece muitas vezes que pela pressa da embarcação que seus senhores lhes dão por não perderem a ocasião do tempo, o não deixam ter aos pobres para serem catequizados e instruídos na fé como convém para d’alguma maneira entenderem o que recebem; e assim os batizavam sem mais catecismo nem também haver quem este ofício lhes fizesse.38 Essa frouxidão no cum prim ento das norm as prescritas pela Igreja se evidenciou ain d a no século XVII, quando se determ inou, em 36
O rdenações M anuelinas, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984 Tit XCIX p.300.
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PIMENTEL, M. do R., Viagem ao fun do das consciências. A escravatura na Época Moderna. Lisboa: Colibri, 1995, p.171. GUERREIRO, R, Relação anual das coisas que fizeram os padres da Companhia de Jesus nas missões (...) nos anos de 1600 a 1609 e do processo da conversão e cristandade daquelas partes: tirada das cartas que os missionários de lá escreveram, título III, livro IV, Lisboa: 1942, p.268. Apud PIMENTEL, M. do R-, op. cit., p.172.
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1618, que aqueles que tivessem sido batizados sem prévia doutrina fossem instruídos ao longo da viagem, m antendo sempre em cada navio um p ad re responsável pela catequese e que m inistrasse os demais sacram entos quando estes se fizessem necessários, como a confissão, a extrem a-unção e o p róprio batism o.3' A. Saunders, em seu estudo sobre os escravos e libertos ne gros em Portugal nos séculos XV e XVI, pondera que a prática do batism o de crianças escravas ain d a não era generalizada nos meados do XVI, apesar da legislação em vigor e da existência de registros paroquiais. N a Lisboa de 1568, o arcebispo da cidade insistia que os senhores cu id assem p a ra que este sacram ento fosse m inistrado às crianças acim a de sete anos. Uma instrução religiosa m a is g en era liza d a foi tam b ém estim u lad a, a ponto deste eclesiástico enfatizar que nenhum adulto poderia receber o batism o sem antes ter conhecim ento dos preceitos fundam entais da fé, de algum as orações com o Pai-N osso e A ve-M aria, e dos m andam entos.40*Pouco antes, em 1516, foi concedido ao vigário da C onceição de Lisboa receber um cruzado de ouro por batizar os negros chegados à Lisboa oriundos “das p artes da Guiné . E ram escolhidos pelo p ro p rietário o novo nome cristão do escravo e tam bém seus p adrinhos. A função do com padrio na estru tu ra escravista portuguesa ainda é bem pouco conhecida em função da escassa pesquisa sobre o tema. E ntretanto, podem-se vislum brar algum as analogias em relação ao Brasil. E studando a B ahia dos anos oitenta do século XVIII, Stuart Schw artz, a p a rtir de dados arrolados em quatro paróquias no R ecôncavo, a n a liso u alg u n s p a d rõ e s do co m p ad rio na p o p u lação escrava d a região. A p rim e ira evidência foi a ausência
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Idem, p.173. SAUNDERS, A. C. de C. M., op. cit., p.69. BRÁSIO, A., op. cit., v.II (1500-1569), p.129.
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de senhores batizando seus escravos, n ão apenas na região do Recôncavo mas tam bém em Salvador, co n trarian d o o argum ento de alguns autores que v iram no co m p ad rio um m ecanism o de reafirm ação do paternalism o. Sendo a antítese da relação senhor/ escravo, o batismo im punha um com prom etim ento pessoal pela via da espiritualidade, inviabilizando assim elementos inerentes à estrutura escravista, com o o castigo, a disciplina, a venda, a exploração.42 No caso de Portugal, Saunders tam bém afirm a que foram raríssim os os reg istro s de sen h o res que a p a d rin h a ra m seus escravos, e as categorias sociais dos padrinhos eram as m ais baixas da sociedade. A pesquisa de Schw artz m ostrou ain d a que os escravos pertencentes aos senhores de engenho tin h am com o padrinhos outros escravos ou indivíduos de status social inferior ao do senhor, como lavradores e outros.43 No caso dos negros e m ulatos in crim inados p o r feitiçaria pela Inquisição portuguesa, a imensa m aioria era batizada, alguns até crismados, embora inform ações sobre a origem dos padrinhos nem sem pre estivessem registradas nos processos. Reconhecidos pela Igreja Católica, os casamentos entre escravos e entre escravos e libertos constaram nos registros paroquiais de várias localidades portuguesas. É novam ente o estudo de Saunders que esclarece este aspecto da vida da população negra de Portugal. Nos séculos XV e XVI, a m aioria das ligações era fo rtu ita, por
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“O batismo, por representar igualdade, humanidade e libertação do pecado, simbolizava qualidades incompatíveis com a condição de escravo e apresentava uma contradição potencial que era resolvida não com a abolição da escra vidão ou do batismo, mas com a manutenção em separado desses elementos conflitantes. O renascimento do cativo através do batismo não se dava por intermédio de seu próprio senhor. Outros, escravos, livres ou proprietários de outros cativos, serviam-lhe de padrinho.” SCHWARTZ, S., Segredos internos. Engenhos e cativos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.331. Idem, p.332.
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vezes oficializando-se as uniões em bora não necessariam en te por um a cerim ónia religiosa, sendo poucos aqueles que casaram pela igreja. E m 1568, o bispo e o cabildo de Lisboa constatavam não apenas que m uitos escravos desconheciam a possibilidade de casar na igreja, m as sobretudo que os senhores os proibiam de fazê-lo.44 A título de exemplo, algum as estatísticas p a ra o século XVI são interessantes: entre 1570 e 1600, dos 2.080 casam entos registrados na Sé de Évora, apenas 26 eram de escravos. Já em Santa M aria do Bispo, de M ontem or-o-Novo, en tre 1565 e 1569, houve quatro num total de 119, e em Nossa Senhora da G raça do Divor, term o de Évora, de 1567 a 1600 não houve nenhum casa mento de escravos.45 A lém do batism o e do casam ento na Igreja, os negros em Portugal vivenciaram os outros sacram entos, como a confirm ação, a eucaristia e a extrem a-unção. M as acreditam os ser difícil per ceber com precisão a postura dos senhores de um m odo geral em relação à cristianização dos seus escravos, pois a docum entação é dispersa e p raticam en te inexplorada p a ra os séculos XVII e XVIII. A s fontes inquisitória is por vezes ilum inam a questão, a exemplo da denúncia de João, um dos escravos de Gonçalo M artins de C arvalho, acusado de judaísm o em 1739. A interm ediação do confessor deste cativo, que escreveu a denúncia ao S anto Ofício, explicitou a conduta de seu senhor: não deixava seus escravos irem à m issa regularm ente, castigava-os com frequência, deixava-os com fome e considerava-os “cães sem alm a, e que nenhum se sal va, ainda que faça boas obras”. Cheio de feridas, João queria ser vendido a o utro senhor, pedindo o clérigo aos inquisidores que tirasse “dali o dito preto da casa deste homem com um a amigável
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SAUNDERS, A. C. de C. M., op. cit., p.142. FONSECA, J., Os escravos em Évora no século XVI. Évora: Câmara Municipal de Évora, 1997, p.93.
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paz p ara que não tenha o dito preto dissabores nem prejuízo de sua alm a, pois o considero m uito bom p reto e católico”.46 Esse caso nos p erm ite co n jectu rar que tam bém no R eino os senhores poderiam por vezes dificultar o acesso dos escravos aos sa cramentos, queixa repetida fartamente, aliás, pelos jesuítas no Brasil dos séculos 9 e XVIII, a exemplo de Vieira, Benci, A ntonil e outros.47 * * *
A integração dos africanos ao cristianismo também se deu através de outros mecanismos, sobretudo de sua participação em irm andades religiosas que funcionavam com o sociedades de auxílios mútuos, garantindo u m a série de interesses aos seus integrantes. Surgidas n a Baixa Idade M édia, assem elhavam -se às corpo rações de ofício, porém tom ando p ara si os encargos assistenciais e espirituais de seus m em bros.48 Em Portugal, as irm andades es tavam inicialm ente atreladas aos hospitais, congregando tam bém os ofícios e aglutinando interesses específicos de alguns grupos profissionais. Percebendo a im p o rtân cia dessas associações para a legitim ação de seu poder, o E stado português, que não assum iu a função de assistencialism o público, passou a ap o iar e incentivar, ju n to com a Igreja e as ordens religiosas, várias iniciativas nesse sentido, a exem plo da expansão das irm andades da M isericórdia a p a rtir do século XVI. Sob o controle da C oroa, su rg iram em todo o Im pério colonial português.49 46 47 48
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ANTT, Inquisição de Lisboa: Cadernos do Promotor, livro 324. VAINFAS, R., Ideologia e escravidão. Petrópolis: Vozes, 1986. “Deve ficar claro, porém, que confraria não era sinónim o de corporação. Quando muito, poderia ser a face religiosa desta última, para não falar de outras diferenças essenciais, como se verifica no caráter mais democrático das fraternidades, nas quais a ocupação profissional não era conditio sine qua non para a admissão.” BOSCHI, C.C., O s leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986, p 13 Idem, p.51-55.
Impedidos de ingressar nas irm andades de brancos, os negros em Portugal criaram suas próprias confrarias, em geral devotas de Nossa Senhora do Rosário, configurando-se como um im portante m ecanism o de integração social. E stim ulada pela Ordem de São Dom ingos, a devoção ao rosário surgiu em fins da Idade M édia e rapidam ente foi aceita em Portugal, tendo sido assim a prim eira irm andade negra devota da santa em Lisboa, localizada na igreja de São D om ingos, em 1460, de acordo com o com prom isso de 1565. E m m eados do século XVI, seguiram -se outras em Évora, Lagos e São Tomé.50 José Ram os T inhorão oferece-nos algum as versões para expli car o culto a Nossa Senhora do R osário pelos negros (ver Figura 2 em anexo). Ele m enciona o Santuário M ariano do frei A gostinho de S an ta M aria, do século XVIII, onde consta a referência ao resgate de um a im agem de N ossa S enhora em Argel, a quem os negros intitularam “do R osário”. E m 1490, a imagem da Virgem foi erguida na igreja de São D om ingos em agradecimento ao fato de ter livrado o povo da peste que assolou a cidade naquele ano, estim ulando assim o culto. D a rica im agem de prata pendiam vários rosários que, segundo T in h o rão , atra íram os negros. O autor supõe um a associação dessa N ossa Senhora com o orixá africano Ifá, que via o destino dos hom ens através das nozes de um a palm eira (okpê-lifá) jogadas soltas ou unidas em rosário. A lém disso, de acordo com o autor, essa igreja lisboeta oferecia dois outros elementos de identificação p ara os negros, uma enorme im agem de São Jorge - padroeiro dos trabalhadores que lidavam com m etais e fogo - , que já p o d e ria e s ta r associado ao orixá african o O gum pela sua arm ad u ra e espada de guerreiro, e ainda
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SA U N D ER S, A .C . deC.M., op. c it., p.205.
TINHORÃO, J. R., Os negros em Portugal. Uma presença silenciosa. Lisboa. Caminho, 1988, p.126.
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um retábulo, na Capela dos Reis M agos, onde B althazar aparece como negro, em pé de igualdade com Belchior e G aspar.52 A adm issão dos negros à co n fraria na qualidade de irm ãos, entretanto, ocorreu um pouco m ais tarde. A p rim eira referência explícita nesse sentido foi um a c a rta do rei D. M anuel, datada de 1505, onde se autorizavam as pretas forras “da C o n fraria de São D om ingos” a vender artigos em praça pública. N o Relatório e sum ário dos serviços e desserviços da Senhora do Rosário acu sados de haver duas confrarias, infelizm ente sem data, fica clara a pressão dos negros para p articip arem da co n fraria do Rosário, o que culminou na criação de um a própria. Pouco a pouco os negros iam criando uma situação de fato, com sua presença efetiva às portas da igreja, tratando de problem as inerentes ao seu grupo. Esse docum ento explicita n itid am en te a preocupação com a cristianização dos africanos ao colocar como objetivo fundam ental da inclusão dos negros na irm andade: [Tirá-los de] muitas gentilidades e abusos de que estão usando em suas festas feitos sátiros a seu uso de suas terras ao modo gentí lico sem nelas ouvirem missas nem pregações e haver até agora quem os tire disso e encaminhem nem defenda suas diabólicas invenções podendo-lhe evitar e defender que o não usem senão o modo cristão.53 A data provável do ingresso form al dos negros à c o n fraria re52
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“Do ponto de vista dos negros levados a formar uma comunidade marginal e sem direitos pessoais, numa sociedade de brancos de cultura completamente estranha, entrar na Igreja de São Domingos de Lisboa deveria constituir, pois, para tais seres excluídos da sociedade, uma forma de reencontrar, pela sugestão daquelas imagens, um pouco da sua identidade dilacerada pela realidade violenta do despaisamento e da sujeição.” Idem, p.129. ANTT, Relatório sumário dos serviços e desserviços da Sra. do Rosário cau sados de haver duas confrarias. Convento de São Domingos de Lisboa livro 30.
m onta a inícios de 1520, e nos anos 40 já estavam plenam ente constituídos, com o relata C ristóvão R odrigues de O liveira, que no seu Sum ário de 1544/1545 constata sete confrarias no M osteiro de São D om ingos, dentre as quais a dos “pretos forros e escravos de Lisboa”.54 H ierarquizada, a irm andade com punha-se de alguns cargos im portantes: um juiz, dois m ordom os, um escrivão, um procurador-geral, um ju iz conservador - nom eado pelo rei para vigiar o cum prim ento do regulam ento - e por fim um prior, para casos de ortodoxia religiosa. Estes quatro últimos membros deviam ser necessariam ente brancos, e quanto aos negros ocupantes dos outros cargos, tin h am de ser livres.55 A s irm andades negras em regra careciam de subsídios fin an ceiros, diferentem ente das brancas, que contavam com auxílio da Coroa. Exceção, porém , foi a quota de 500 rs de ouro por cada caravela chegada da M ina recebida pela irm andade de Lisboa a p a rtir de 1518, com D. João III. E stas instituições viviam de au xílios indiretos, com o foi o caso, por exemplo, da irm andade de Évora, autorizada por D. M anuel em 1521 a receber doações em gêneros alim entícios de eiras e adegas, e ainda a vender velas aos barcos que rum avam em direção a M ina e G uiné. M ais tarde, em 1549, D. João III autorizava tam bém a co n fraria a p ed ir esmolas na cidade de Lisboa.56 Além dos gastos gerais relativos a cerim ónias, cultos e m anu tenção da igreja, os recursos adquiridos voltavam-se p ara auxílios múltiplos: doença, necessidades várias, enterros, celebrações de
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OLIVEIRA, C. R., Sumário em que brevemente se contém algumas cousas (assim eclesiásticas com o seculares), que há na cidade de Lisboa. Ed. por Germão Galharde, s/d, (1554-1555), 2* ed. em 1755, com anotações de A. Vieira da Silva e pela Casa do Livro, Lisboa, 1939, p.58. SAUNDERS, A. C. de C.M., op. cit., p.206. BRÁSIO, A., Os pretos em Portugal. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca/ Agência Geral das Colónias, 1944, p.84.
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missas para os m ortos, alforrias.57 A s irm andades negras tin h am um papel fundam ental no sentido de zelarem pelos interesses da com unidade de africanos livres e tam bém escravizados. Em 1518, p o r exemplo, depois de alguns pedidos, a c o n fraria conseguiu do Rei um alvará p a ra que os testam entos em que escravos eram alforriados fossem de fato cum pridos, pois m uitos perm aneciam cativos pelos herdeiros.58 O u tra solicitação da irm an d ad e foi refe rente a abusos co n tra negras casadas com “línguas e m areantes”, que tinham m uitas vezes suas casas arrom badas e seus bens fur tados pelas p ró p rias autoridades policiais que, sob o pretexto de buscarem negros fugidos, im punham toda sorte de arbitrariedades. Pediam então que se editasse um alvará “(...) p ara que nem um a pessoa nem pessoas não entrassem p o r força nas ditas casas, nem lhes tom asse o seu, senão p o r m andado de nossa ju stiça”, o que de fato ocorreu em 1521.59 O utras co n frarias de negros surgiram tam bém em Lisboa: a de Nossa Senhora do R osário de São Salvador de Lisboa, criada à época de D. João III; a do convento da G raça, em 1711; a da igreja da Santíssim a T rindade de Lisboa e ainda a localizada no convento de S anta Joana.60 Infelizm ente, os dados quantitativos sobre as irm an d ad es negras em P ortugal, bem com o a origem étn ica de seus m em bros, ain d a são b astan te esp arso s.61*D esse 57
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Mariza de Carvalho Soares chama a atenção para a questão do sofrimento dos escravos presente na documentação relativa às irmandades de escravos e forros no Brasil, como argumento para a criação dessas instituições. SOARES, M. de C. D evotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão. Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. BRÁSIO, A., op. cit., p.79. Idem, p.83 e 88. Idem, p.90-98.
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modo, é d ifícil com provar seu funcionam ento como “fachadas perfeitas p a ra associações étn icas”, nas palavras de João Reis, sendo tam bém centros de produção cultural e de lazer. Em bora a escravidão negra não tivesse marcado tão fortemente a sociedade portuguesa, com o foi o caso do Brasil, os africanos do Reino se organizaram através das irm andades religiosas a fim de g aran tir m inim am ente alguns de seus interesses. Além de cons tru írem laços de solidariedade coletiva, as irm andades de alguma m aneira os integravam à sociedade portuguesa e facilitavam sua evangelização, sendo uma das poucas vias de agremiação facultadas aos negros por p arte do E stad o português.63 A presença dessas instituições foi evidentem ente m arcante no Brasil, mas tam bém em Portugal. O rganizadas sob o m anto do cristianism o, foram espaço de integração social e ain d a veiculadoras do resgate de alguns aspectos da cultura africana, como as congadas. A lguns autores sugerem , até, que ali os negros praticavam às ocultas “ritu ais pagãos” africanos, porém a docum entação até então co nhecida sobre essas instituições não menciona nada nesse sentido.65 62
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No caso do Brasil, por exemplo, a vasta pesquisa de Mariza de Carvalho Soares mostrou as origens étnicas dos grupos que integraram as irmandades de Santo Elesbão e Santa Efigênica no Rio de Janeiro do século XVIII. Op. 65
“Se inicialmente o regime senhorial e sua Igreja imaginaram poder enquadrar culturalmente os membros de irmandades de cor, no final já tinham que admitir o surgimento de uma nova religiosidade, de uma expressão cultural diferente daquela que se tentara impor.” João José Reis, Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos Malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986, p.1 8 5 . Ver também, do mesmo autor, A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.49-72. SOARES, M. de C., op. cit., p.145. Em relação às irmandades negras do Brasil colonial, diria Caio Boschi que, “ao permitir e mesmo estimular a criação de comunidades leigas de negros, Estado e Igreja, ao mesmo tempo em que lhes facilitavam a assimilação da religião cristã, proporcionavam aos negros uma espécie de sincretismo planejado, isto é, dirigiam e determinavam as formas pelas quais seriam norteados os contatos religiosos dos negros com os brancos, no esforço de assimilação e fixação daqueles ao mundo destes”. Op. cit., p.69. AZEVEDO, P., “Superstições portuguesas no século XVI”. Revista Lusitana,
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A presença dos brancos nos cargos p rin cip ais das irm andades im punha ainda uma lim itação n atu ral a supostas m anifestações da religiosidade negra originalm ente africana. Saídos da Á frica, onde quer que se estabelecessem - em fu n ção da lucratividade do tráfico os negros ten taram recriar um a identidade religiosa, social e cultural. N o in terio r das confrarias negras de Nossa Senhora do Rosário em ergiria um a m anifestação significativa da perm anência de algum as tradições dos africanos em Portugal: as coroações dos reis do Congo. D e acordo com R ibeiro G uim arães - que em 1860 publica va O Congo em Lisboa” no Jornal do C om ércio de Lisboa - a encenação do evento rem o n ta a pelo m enos m eados do século XVI. Noticiava, este cronista, a existência, na co n fraria de N ossa Senhora do Rosário da igreja de Santa Joana da cidade de Lisboa, de uma corte do Reino do Congo, com posta p o r um a rain h a, um príncipe e um a princesa, regentes, duques, condessas, aias e um procurador geral da coroa, o m arquês de Revivendo - negro que forneceu oralm en te to d a a descrição do rein a d o e d ato u suas origens.*66 A docum entação relativa aos séculos XVI e XVII é praticam ente inexistente, sendo apenas no XVIII que com eça a aparecer com frequência, não apenas em Portugal, m as tam bém no Brasil.67 Uma das raras referências p ara o R eino data de 1563, na cidade de Colares, ocasião em que o corregedor interrom peu uma festa de negros, onde haviam eleito um rei.68 A té onde se sabe, perpetuou-se até m eados do XIX, pelo m enos em Lisboa e
no Porto, em bora não se tenha nenhum a descrição detalhada e com pleta desse evento em Portugal.69 A necessidade de reafirm ação da identidade a fric an a e dos próprios negros enquanto com unidade se personificou num auto festivo em que era eleito anualm ente um rei Congo, ta l qual na região do reinado do Congo, n a Á frica, onde se realizavam as em baixadas tribais, que escolhiam periodicam ente seu governante. D iferentem ente do reino real, a coroação do reino im aginário se fazia com um a coroa de lata, pelas m ãos de um padre, dem ons tran d o os claros lim ites desse evento, circunscrito ao âm bito do cristianism o e das autoridades régias que, vigilantes, perm itiam sua ocorrência. A recriação de um a identidade a fric an a em P ortugal por interm édio do Congo se deu em circunstâncias específicas, tendo em vista suas relações políticas com a Coroa portuguesa, cujas bases se estabeleceram m ediante a conversão ao catolicismo, como já foi visto. O s escravos oriundos das com unidades que com pu n h am o reinado do Congo, principalm ente aqueles que lá tinham posição de destaque, reeditavam em P ortugal, sim bolicam ente, sua autoridade.70 Em bora tutelados e controlados pela Igreja e pelo poder, eles com pensavam , de algum modo, a d esestru tu ração em ocional e cu ltu ral sofrida com a saída da Á frica. N ão apenas em Portugal e no Brasil, m as tam bém em todas as regiões onde os africanos estiveram presentes houve eleições de reis negros, como na América espanhola e na A m érica do N orte.71 *
V, 1897-99, p.2. 66 67 68
PIMENTEL, M. DO R., “A coroação dos reis do Congo em Portugal”. Comunicação apresentada no V III Congresso Internacional “A Festa”, Lisboa, nov. 1992. Para o Brasil, ver SOUZA, M. de M., Reis negros no Brasil escravista. História da festa da coroação do rei congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. AZEVEDO, P., “Os escravos”. Archivo Histórico Português, 1903, p.306. Apud SAUNDERS, A.C. de C. M., op. cit., p.144.
69 70 71
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Afirmou Pedro de Azevedo que, ainda em 1897, existia em Lisboa uma rainha do Congo com toda a sua corte. Op. cit., p.2. TINHORÀO, J.R., op. cit., p.141. BASTIDE, R., A s Am éricas negras. São Paulo: Difel, 1974, p.85-94.
140 O u tro aspecto representativo da cristianização dos africanos em Portugal foi sua presença em algum as solenidades da Igreja desde fins do século XV, como, p o r exemplo, nas cantigas teatralizadas realizadas em frente aos retábulos das igrejas p o r ocasião da co m em oração do D ia de Reis. T anto as p in tu ras com o os cânticos - denominados de vilancicos - m uitas vezes aludiam explicitamente aos negros e outros povos, com o ciganos e mouros. Eles apareciam adorando o M enino Jesus e eram m encionados nos versos, com o em um datado de 1658, de au to r desconhecido, que justificava a adesão dos escravos àquela comemoração: em bora cativos, quando adoravam o S enhor ad q u iriam u m a igualdade social subjetiva que os fazia se sentirem livres n a escravidão. A im agem do Rei B althazar com o negro instigava ain d a m ais a identificação dos african o s com o retábulo na igreja de São D om ingos, e evidentem ente com o cristianism o. Num dos versos cantava-se que, quando o rei negro chegava, o M enino o cham ava de “p rim o ”, e lhe fazia reverência, desconsiderando qualquer diferença social ou racial. Essa identificação tam bém foi explícita noutro cântico de 1662, no qual se narrav a que, após a chegada dos reis magos, vinham em seguida vários negros dançando à m oda da Guiné. C om eçando com um refrão em “língua de p reto”, um outro, de 1654, im aginou um significativo diálogo entre dois negros. Perguntado aonde ia com o pandeiro e a g uitarra que tin h a em mãos, respondeu o outro que na verdade ia louvar o nascim ento de Jesus em Belém.72 O s negros a in d a tiv eram p a rtic ip a ç ã o efetiva em o u tro s eventos comemorativos do calendário eclesiástico, como procissões e festas de santos, que em P ortugal tin h am um p erfil festivo, de cortejo carnavalesco. Frei Lucas de Santa C atarin a (1660/1740), ao 72
AllT u ,COS seiscentistas’ ed' organizada a partir da Coleção Barbosa Machado, aEhbhoteca Nacional do Rio de Janeiro, por Darcy Damasceno, Divisão de Publicações e Divulgação da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro 1970. Apud, TINHORÃO, J.R., op. cit., p.147-153.
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n a rra r as danças na festa de Nossa Senhora do Cabo em Lisboa, m enciona a d ança das flechas, p ro p o sta pelos negros, que era um a sim ulação de um com bate, aos saltos, ao som de tambores. Tam bém n a procissão do C orpo de D eus estavam presentes, es coltando a im agem de São Jorge, com o tam bém na procissão da festa do próprio santo, abrindo o desfile tocando cornetas, pífaros e tam bores. A lém de N ossa Senhora do R osário e São Jorge, as devoções dos negros voltavam -se p a ra São Benedito, Senhor dos Passos e N ossa Senhora da A talaia.73 José R am os T inhorão vê tais festas religiosas, procissões e ro m arias com o espaços de lazer, diversão e sociabilidade para os negros. E ra a o p o rtu n id a d e .d e an d are m juntos pelas ruas, p ed in d o esm olas em nom e dos san to s de devoção, com o bem observaram alguns viajantes estrangeiros, a exemplo de W illiam Beckford, que em 1787 foi surpreendido por devotos da Irm andade do Sacram ento: Saboreávamos calmamente o chá quando nos despertou atenção uma algazarra na rua e, acorrendo à varanda, demos com uma chusma de bruxas velhas, rapazes e mendigos andrajosos, tendo à frente meia dúzia de tamborileiros e outros tantos pretos com véstias encarnadas, que sopravam suas trombetas com toda a força na direção de minha casa .74
A dev o ção a N ossa S en h o ra d a A ta la ia era p a rtic u la rm e n te especial, dada a grandiosidade do evento, ao menos em fins do século XVIII. V árias co n frarias de Lisboa iam , em rom aria, de barco, até o santuário da Santa, situado do outro lado do Tejo. As irm andades negras acom panhavam o cortejo “com seus pífaros e tam bores, seus trajos carnavalescos, dançando a fofa ou lundum ,
73 74
Idem, p.159-160. Idem, p.163.
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com tal frenesim que, p o r vezes, caíam em estados vizinhos do delírio”. É notável a descrição dessa cerim ó n ia p o r um oficial inglês, residente em Lisboa de 1793 a 1804, e autor de S ketches o f Portugal Life. Ele viu inúm eros negros atravessando o Tejo p ara a cerim ónia e, finda a missa, passavam a d an çar alucinadam ente pelas ruas de Lisboa. À s vésperas do evento, tam bém co rria m as ruas arrecad an d o esm olas p a ra a festa da san ta, levando a imagem de um M enino Jesus n egro sen tad o n u m a ca d e irin h a enfeitada. Dançavam o lundum , associando à cerim ónia católica traços inequívocos da cultura africana: Esta paixão dos filhos da África por tal tipo de exercício, aliás, é até compreensível porque, segundo nos informa um viajante ilustre, tão logo o sol se põe aquele continente se transforma num imenso palco de dança.75 O duque de Châtelet, ao v isitar Lisboa em 1777, com entava, es tarrecido, sobre as m anifestações dos negros na ocasião da festa dessa santa: “é comum ver às vezes um deles dan çar a fofa d ian te de tais objetos de veneração pública, estabelecendo um deprim ente contraste que, no entanto, não p arece chocar ninguém ”. O nobre francês não entendia ainda como esses devotos apresentavam , por exemplo, Santo A ntônio de Lisboa com o sendo preto. C om entou que não foi surpresa ver em Lisboa “um a procissão com posta apenas por negros, levando com grande pom pa imagens de santos de sua cor”.76 A p articip ação dos african o s nas festas da Igreja, d en tro dos limites que a docum entação possibilita explorar em term os cronológicos e qualitativos, é sig n ificativ a. P erm itiram , d e a l gum modo, que eles tivessem um espaço de sociabilidade e con75 76
Idem, p.164-165. Idem, p.164.
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graçam ento pela via do cristianism o, ao m esm o tem po em que serviam com o meio de reconstrução de sua identidade cultural, quase perdida com a diáspora da Á frica: santos negros, danças africanas oferecidas nas devoções, recriação de cortes im periais de seus reis de origem. *
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A relação dos negros com o cristianism o em P ortugal adquiriu contornos peculiares, com alguns deles galgando posições dentro da hierarquia eclesiástica num a sociedade m arcada pela discrim i nação, pelo preconceito racial e pela supervalorização da “pureza de sangue”. Nos percursos pela costa africana desde os prim eiros contatos com os africanos, alguns deles foram levados para Portugal como livres p ara receberem instrução na fé cristã. O in tu ito da Coroa portuguesa era de que voltassem com o m issionários, catequistas e intérpretes. O m édico alem ão M unzer, visitando P ortugal em 1494, v iu em Lisboa m uitos m ancebos negros, filhos das elites africanas aliadas a Portugal, sendo educados em L atim e Teologia. Foi notável o caso do filho do rei congolês, tornado bispo titular em Ú tica em 1518, voltando ao Congo dois anos m ais tarde. No auge das relações entre Portugal e este reinado africano, D. Afonso m andou vários nobres para serem educados e cristianizados em Portugal, particularm ente no Convento de Santo Elói em Lisboa. Vale cham ar a atenção para o fato de que alguns deles, por diversas razões, não retornaram , perm anecendo em P ortugal ao invés de voltarem ao Congo.77 A perspectiva d a form ação de um clero nativo em Portugal se m aterializou, portanto, na prom ulgação de um breve papal em 1518, autorizando a ordenação de “etíopes, indianos e africanos” 77
BOXER, C., A Igreja e a expansão ibérica..., p.16.
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144 pelo capelão real em Lisboa, o que geraria, entretanto, polêm icas futuras. E m 1585, o sem inário São Tomé foi encerrado pelo bispo da ilha, depois de 14 anos de existência, alegando que a form ação dos alunos era precária, sendo melhor estudarem em Coimbra. Dez anos depois, o bispo seguinte propunha a reabertura do sem inário, argum entando ser dispendiosa a ida a Portugal. C onsultado pela C oroa, o ex-bispo de São Tomé, M artin h o de U lhoa, rechaçou a idéia afirm an d o que as com unidades a fric a n a s não qu eriam e n ão respeitavam padres negros. M esm o assim , o sem in ário foi reaberto.78 A o longo do século XVII, as discussões acerca da criação de sem inários na Á frica ocidental ou no R eino perm aneceram . Em 1628, os jesuítas se opuseram à consulta da C oroa sobre a criação destas instituições em Portugal. A região em questão era A ngola, sendo melhor, segundo eles, que se erigissem ou em L uanda ou até em São Salvador do Congo, pois, além dos gastos financeiros, os universitários negros seriam alvo de d iscrim inações no Reino. M as a Coroa nunca patro cin o u efetivamente, nem na Á frica nem em Portugal, sem inários desse porte. D e todo modo, a atu ação desses m issionários negros na Á frica era fundam ental, tendo em vista o alto índice de m o rtalidade dos brancos, dizim ados pelas doenças tropicais, e a relutância dos clérigos portugueses em se aventurarem pelas terras africanas.79
Um aspecto da m aior relevância a se considerar é a influência do processo da cristianização do Congo e de Angola - maiores regiões fornecedoras de escravos -, sobretudo esta última, a partir do século XVII. Sem dúvida m uitos dos cativos que ingressaram em Portugal, em m aior ou m enor g rau já vinham com noções do cristianism o, e talvez já com noções sincréticas articuladas. São escassas as referências quanto à vivência do cristianism o 80 entre escravos e forros que trabalhavam nos campos portugueses. Já no m undo urbano, a dinâm ica das relações entre os negros e a sociedade e suas instituições era bem diferente. A docum entação portuguesa p a ra a escravidão nas cidades é m uito maior, sendo possível tra ç a r um quadro um pouco m ais preciso. O ritm o fre nético das atividades que exerciam , correndo pelas ruas, m ais distantes do senhor e com m ais possibilidades de estabelecerem identidades en tre si, propiciou um o utro tipo de vivência do cris tianism o, concentrada fundam entalm ente nas confrarias, como foi visto.81 O c ará ter u rbano da escravidão em Portugal im prim iu um tip o de in stru ção religiosa que se forjou m uito mais no âm bito dessas instituições, nos rituais, cerim ónias, devoções e procissões públicas do que propriam ente oriunda e estimulada pelos senhores. R eferindo-se ao Brasil, o que tam bém pode ser pensado para o caso português, Bastide com enta que, na cidade: O escravo escapava, pela rua, ao estreito controle de seus senho res; encontrava-se com os membros de sua “nação nos batuques
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C om o vim os, os indícios de um a vivência cristã p o r p a rte dos africanos são evidentes, m as a questão é ainda instigante. A té que ponto os negros em Portugal introjetaram a religião católica? A té que ponto o cristianism o foi por eles assim ilado superficialm ente? 78 79
Idem, p.18. Idem, p.21-23.
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“No Nordeste brasileiro, a religião estava presente no cotidiano. Era doméstica, concentrava-se na capela, local de pregação dos sacerdotes e doutrinação dos escravos, construída geralmente próxima à casa-grande.” MOTT, L„ “Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”. In: SOUZA, L. de M., História da vida privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.168. BASTIDE, R., op. cit., p.170.
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noturnos em que se alimentava de lembranças de sua civilização nativa; o branco da cidade, mais ocupado que o dos campos pelos negócios políticos se era homem, e se mulher, pela vida mundana principalmente, não se interessava nem mesmo por ensinar aos seus empregados de cor o sinal da cruz ou o Padre-Nosso.82 Bastide considera que a introspecção da religião cristã en tre os negros, tanto no cam po com o na cidade, era b astante difícil em função da superficialidade da evangelização e conseqiientem ente da prática de um catolicismo ritual, exterior.83 Ele ilustra com cita ções de Vilhena, que vê com o im possível os africanos abdicarem de seus costum es, crenças e cerim ónias, bebidas “com o leite de sua m ãe”; afirm a que o cristian ism o era im posto de fora, “um simples verniz superficial”.84 Para este autor, o catolicismo se sobrepôs à religião africana, e não a substituiu. Dessa form a, os alicerces da d o u trin ação do africano consistiriam na introdução aos sacram entos e no ap ren dizado de orações, cujo sentido m uitas vezes era incom preendido. D e fato, a m aioria dos negros penitenciados p o r feitiçaria pelo Santo Ofício português, quando perg u n tad o s nas p rim eiras ses sões de inquirições, sabia recitar a A ve-M aria, o Padre-N osso, os m andam entos da Lei de Deus e da Igreja; m as se realm ente eram incompreendidos e superficiais, é difícil de avaliar. O processo do negro liv re B e n to d e Jesus é exem plo de como a evangelização p o r vezes atin g iu graus de in tro sp ecção significativos, ironicam ente levando este african o aos cárceres inquisitoriais e à fogueira em m eados do século XVII, com o aliás 82 83
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Idem, p.188. Ver, por exemplo, BASTIDE, R., A s religiões africanas no Brasil. 3* ed. São Paulo: Pioneira, 1989, p.163, e MATTOSO, K. M. de Q., Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.115. BASTIDE, R., op. cit., p.183.
foi o caso de m uitas visionárias portuguesas estudadas por Laura de Mello e Souza. Bento de Jesus, n atu ral da ilha de São Tiago, em C abo Verde, e m orador em Lisboa, foi preso em 1646.85 E ra um forro de 63 anos, irm ão de um a O rdem Terceira de São Francisco, pregava o cristianism o na ilha, e fundou um recolhim ento, autorizado pelo bispo local.86 Q uando decidiu ir a Lisboa, em bora voltasse p erio dicam ente à ilha, lá deixou a m ulher ensinando a do u trin a cristã através de livros com o Crónica de São Francisco, dentre outros. C erta vez, acometido de forte febre, teve um a visão que jam ais im aginara. E ra um arco enorm e, “de tal resplendor e form osura que excedia todas as m ais perfeitas coisas que a natureza pode form ar”, n arro u aos inquisidores. Tal visão, confessou, era fruto da m editação que fazia com frequência, pois já tin h a visto num livro que D eus podia se an u n ciar nesse estado. N o centro do arco apareceu a Virgem de N ossa Senhora da Conceição, que lhe m ostrou várias coisas, atendendo seus pedidos. Viu o C risto no calvário, cansado, sangrento e depois ressuscitado. As alm as do Purgatório, todas “em grande agonia e m artírio ”, sob form a de corpos hum anos “pretos e feíssim os”, com os joelhos junto ao rosto, pés e m ãos apertados e abraçados por lingotes de fogo. A devoção ao S anto S udário e m uitas orações eram as for mas pelas quais as alm as poderiam se livrar desse estado, o que ele pro n tam ente fez p a ra salvar algum as delas. Pediu p ara ver a situaçãq.“deseus irm ãos terceiros”, aparecendo vários em seguida, cobertos por um “grande esplendor e form osura”, indício da glória,
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 4.806. A s ordens terceiras foram instituídas para dar conta dos muitos fiéis que desejavam ingressar na Ordem de São Francisco, mas que não podiam abraçar a vida religiosa num convento. Em Portugal, existem desde inícios do século XIV, sendo umas regulares e outras seculares. Ver ALMEIDA, F., História da Igreja em Portugal, Porto: Portucalense, 1967, v. I, p.127.
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148 pobreza e bem -aventurança em que viviam . Viu ain d a a represen tação dos casados, viúvos e virgens nas figuras de três mulheres: a prim eira m u ito feia, “negra de co r”, a segunda m enos e a terceira “form osa e resplandecente”. A visão dos sacerdotes virtuosos era de “gran d e m ajestade”, aparecen d o form osos e ilum inados. N o entanto, as dos pecadores eram feias e disform es, vin d o sob a form a de horríveis dem ónios, destacando-se um diabo negro de onde saíam três correntes seguras p o r dem ónios menores. D u ra n te dez d ias a firm o u e s ta r a c o m p a n h a d o de N ossa Senhora, vendo-a p o r vezes tão linda, com rosas n a face, “que se p ersu ad ira de lhe ter arran ca d o a alm a do co rp o ” e, ao lado dela, viu anjos m uito altos, sob a form a hum ana. A im agem da V irgem só desap arecia q u an d o eventualm ente tom ava atitu d es com o beber leite sem benzê-lo, ou segurar o rosário com a m ão esquerda. Foi-lhe dito que pregasse m undo a fora tu d o que lhe tinha sido revelado, e im ediatam ente deu conta de tudo por escrito ao bispo da ilha. A p a r tir d a í com eçou a realizar supostos m ilagres. A um leproso end em o n iad o leu salm os de seu liv ro de exorcism os e jogou-lhe água-benta, livrando-o daquele mal. Fez o mesm o com seis donzelas n a vista de m u itas pessoas, que a trib u íram a ele a interm ediação da salvação divina. Com seu m an to da ordem terceira ap ag o u um g ran d e in cên d io n u m a casa, inv o can d o a Virgem e Jesus, apelando a todos que dessem graças a Deus. U m a noite, rezando, pediu ao C risto que se m anifestasse, e o viu “m ais lastim ado p orque d erram ara de seu corpo m uito sangue, e tin h a mais feridas que a dos arcos”. Foi-lhe dito que tin h a chegado a um alto grau de perfeição e contem plação, e esta vez foi a prim eira das m uitas em que o C risto lhe apareceu. Bento de Jesus foi condenado em abril de 1647 a ser açoitado publicam ente pelas ruas de Lisboa, seis anos de galés e exílio per pétuo da Ilha de São Tiago, porém sua insistência em afirm ar que
os religiosos da terceira ordem de São Francisco eram pecadores e jam ais iriam se salvar, atestada p o r arguições e pareceres dos q u alificadores do S an to O fício, custou-lhe a vida na fogueira inquisitorial. Suas visões inseriram -lhe num contexto de grande vivência m ística em Portugal, que recebia as influências do clima devocional e m ístico da E spanha, onde surgiram não só visionárias, mas ainda toda um a literatu ra resgatando a vida espiritual de santos m edievais e obras gerais dedicadas ao tema. Os ares do visionarism o oriundos da E spanha, na esteira da união entre estas duas coroas (1580/1640), foi cam po propício ao aparecim ento de várias m ulheres visionárias, de origem m odesta e pertencentes a ordens terceiras, algum as das quais presas pela Inquisição entre os anos 1647 e 1664, estudadas por L aura de Mello e Souza.87 O s d etalh es d a v id a p regressa desse visionário africano, de ra ra instrução religiosa, infelizm ente nos são desconhecidos. B ento de Jesus era um dos raríssim os negros letrados, tal qual Rosa Egipcíaca, a negra visionária estudada por Luiz M ott nas M in as G erais do século XVIII. A cu ltu ra religiosa e teológica que esta “san ta a fric a n a ” no Brasil foi adquirindo ao longo do tem po e a sofisticação progressiva de seu im aginário m ístico fazendo-a fundar um recolhim ento no R io de Janeiro e até deixar v árias páginas m an u scritas - foi alim entada por um a série de circunstâncias e fatores: o convívio de anos com sacerdotes, os inúm eros serm ões ouvidos nas igrejas de M inas e Rio de Janeiro, as visões de p in tu ras nas igrejas, onde apareciam em profusão anjos, im agens da Santíssim a T rindade, da Virgem, de santos e santas, apóstolos etc.88 87 88
SOUZA, L. de M., Inferno atlântico. Demonologia e colonização. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.105. MOTT, L., Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993, p.345;78.
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A suposição de que Bento de Jesus ten h a vivido situações semelhantes sugere outras possibilidades de c ristian iz ação dos africanos em Portugal, que ao extrem o resultou em casos como o deste visionário. HÓSTIAS, BÚZIOS, ERVAS: F E IT IÇ A R IA S CRISTÃS A s denúncias e os processos dos african o s e seus descendentes acusados de bruxaria pelo Santo O fício ilum inam a questão da eficiência ou não da evangelização e o grau de introspecção do catolicismo, talvez um pouco m aior do que supôs Bastide. Indícios de um a evangelização podem ser vistos a p a rtir da utilização de elementos cristãos p a ra alcançar diversos objetivos: confecção de patuás, m istu ra de ervas e ingredientes os m ais di versos para cu rar ou fazer alguém adoecer, p ara a tra ir ou separar pessoas, para defesa de perigos. Esses elementos e práticas - como a evocação a Deus, Jesus Cristo, Virgem M aria, diversos santos e o próprio Diabo, o uso de hóstias, terços, imagens, água-benta, pedras d ’ara - eram usados junto a búzios, azeite de dendê, aguardente, sangue, galinhas pretas, bodes, u nhas, ossos de defuntos, contas vindas da Á frica, devoções a alm as de m ortos e ídolos africanos, sons de atabaques e tam bores. A ssim , elem entos considerados sagrados pelo catolicism o eram utilizad o s com o in stru m en to s de práticas n ad a ortodoxas, tid as com o feitiça ria, e com o tal condenadas e punidas pela Igreja (ver Tabela 9). A origem dessas manifestações advinha por vezes de momentos dram áticos da vida pessoal: amores perdidos, m ortes, m aus-tratos, doença, ódios, medos. A s crenças e ações p ara te n tar d a r conta dessas mazelas, no âm bito íntim o e privado, eram espontâneas e só tornadas públicas em função da repressão inquisitorial. De um m odo geral, as m anifestações tid as p o r b ru x aria es tavam também associadas a elementos cristãos, fosse em Portugal, no Brasil, nas ilhas atlânticas, fosse praticada por brancos, negros
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ou mulatos. M as o aspecto p ecu liar relacionado aos africanos é justam ente o fato de m anifestarem p ráticas resultantes de um a conexão de seu sistem a religioso, suas crenças e costum es, p erp e tuados nos espaços possíveis fora da Á frica, com o cristianism o. Vejamos alguns exemplos. O uso de orações evocando D eus, Jesus, santos, o E spírito Santo, a V irgem e o D ia b o fo ram u m a co n stan te. P roferidas, escritas, p o stas em lugares diversos, tin h am inúm eros objetivos. Estevão Luiz, o já m encionado curandeiro de Beja, ganhou fam a em inícios de 1680 pelo sucesso de seus unguentos, rem édios para m uitos m ales. C h am ad o p o r m u ita gente, c e rta ocasião usou um rosário de contas brancas, azeitonas, um a galinha bran ca e bolinhos de farin h a p ara cu ra r o estôm ago da senhora de um a escrava sua conhecida. Curava tam bém de quebranto e mau-olhado, benzendo a si nove vezes e ao enfermo, falando depois um a oração evocatória de um a constelação de santos: Deus que te fez e Deus que te criou, Deus perdoe a quem te mau olhou; dois olhos te olharam mau, três te olharão melhor, que é Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, três pessoas e um só Deus verdadeiro. Santana pariu a Virgem, a Virgem pariu Jesus Cristo, Santa Isabel, São João Batista; assim como isto é verdade, verdade, vós Virgem, tirai este mal deste corpo: se é na cabeça, lhe tire a bem aventurada Santa Helena, se é nos braços, o tire o bem aventurado São Marcos; se é na cintura, o tire a Virgem Pura; se é na barriga, o tire a bem aventurada Santa Margarida, e se é nos pés, o tire o bem aventurado Santo André; tire-o Deus e a Virgem Maria, melhor do que eu o posso tirar, com um Padre Nosso e uma Ave Maria.89* 89
ANTT, Inquisição de Évora, processo 4.745. Ver também SOUZA, L. de M., O D iabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.180.
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N atu ral de A ngola e m oradora em Évora, a negra G rácia M aria foi presa pela Inquisição em 1724 ao realizar várias curas ilícitas. U ntava os doentes com óleo feito de sebo de carneiro, m inhocas cavadas ao p é de um a laran jeira, arru d a, alecrim , erva montão, erva de M arselha, bagas de louro e outras. O s lavatórios de água de feijões fradinhos, pés de bode preto cozidos, alecrim e m urta eram a c o m p an h ad o s d a s p alav ras: “q u a n d o a V irgem N ossa Senhora andou pelo m undo curou, e cu raria com um copo d’água fria, Jesus p ariu Santa A n n a, esta p ariu Jesus em nom e do Pai”, e a água que restava era jogada nos quatro cantos da cam a rezando cinco Pais-Nossos e cinco A ve-M arias à Senhora das B rotas.90 D eus e a hóstia tam bém estavam presentes p ara desligar ho mens e mulheres, a exemplo das habilidades da escrava Domingas Fernandes em 1612. Ela prep arav a unguentos de u rin a, mel e três escarros da pessoa ligada, dizendo ainda “tu que estás ligado, eu te desato com D eus pai e a Virgem M aria sua m adre, e com o o santíssim o sacram ento que é a verdadeira vontade”.91 “A doro-te Santo Erasm o, e quanto de m im te disserem entre pela cabeça e saia pelo rab o ”, ensinava a p reta fo rra C ath arin a da M aya, em 1658, p a ra quem p reten d ia casar. E ain d a, p ara encontrar coisas perdidas, com um osso hum ano e um a vela, que se dissesse “osso tocado foste ia pendurado, p eço-te p o r am izade, que m e tornes o que tem m e sonegado”, oferecendo em seguida três credos ao E spírito Santo.92 O p re to fo rro V icente d e M orais, so ld ad o em serv iço na
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ANTT, Inquisição de Évora, processo 4.333. As combinações de ervas variaram, evidentemente, em função das moléstias. Leonor Menezes, por exemplo, na Lisboa de 1637, recebeu o ensinamento de uma mulata para curar o marido fervendo vinagre, com inho, alfazema e sal. ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 18, livro 219. ANTT, Inquisição de Évora, processo 10.101. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.834.
perigosa praça african a de M azagão em 1716, apegava-se à sua bolsa de m andinga, que continha orações em latim, “um bocado de agnus dei e um a coisa verde que ele não conheceu”.93 A do escravo Luis de L im a, renom ado m andingueiro preso em 1729, continha orações de São M arcos e São Ciprião, pedaços de pedra d ara e ossos de defunto, sendo exemplo p ara m ostrar que outros elementos da religião católica se integravam às ditas feitiçarias dos negros.94 Vimos que as bolsas, p a ra adquirirem m ais força e p oder de proteção, de acordo com os relatos dos processos e denúncias, tin h am de ser postas debaixo da pedra dara para ali esperarem por três m issas para serem retiradas. O angolano A ntônio M ascarenhas, em 1744, confessou aos inquisidores que em certa ocasião evocou o Diabo, que lhe apa receu em form a de hom em com pés de cabra, e recitou algumas palavras que o protegeriam : “Em nom e do D iabo pé de pata de São C ipriano, São M arcos e Justo Juiz esta carta de m andinga o liv rará de lutas, ferro, fogo e de todas as pendências”. E foi o p ró p rio D iabo, segundo sua confissão, que lhe m andou deixar debaixo do altar da igreja para ad q u irir m ais força.95 P ara reconhecer feitiços, nos m eados do século XVIII, a m u lata de C oim bra Teresa M aria usava um copo de vidro pousado em cim a de um a m oeda que tivesse cru z e repleto de água-benta, tirad a de “três igrejas de orago de santos m achos”. Jogava dentro um ovo, fazia três cruzes em cim a em louvor de Santo A nastácio e de Jesus, e observava a posição da clara: se ficasse na borda e a gem a no fundo, era sinal de doença natural; se ficasse no meio, procedia a queixa “de malefício que existia em alguma p arte ex terior do corpo, do qual só se m elhorava com exorcismos e depois
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 5.477. ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 1.630. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 254.
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banhos”, e por fim se am bas precipitassem , o m al “era interno e só se curava bebendo água-benta em que estivesse de infusão a fava de Santo Inácio p ara o ta l m alefício sair do enferm o p o r vóm ito”. O procedim ento de c u ra era um lav ató rio de a rru d a , pericão, veríssimo, alecrim ergibô, salva, acintro, funcho, loureiro, oliveira, folhas de cana, cardo, sylva e ferm ento, tu d o cozido na água-benta e regado a azeite, dizendo “azeite, assim como alum iais a C risto Senhor Nosso, assim alum ia a este enferm o, em v irtu d e do santíssim o nome de Jesus”.96 A m u lata Inês do C arm o , saíd a nu m au to -d e-fé em 1755, d en tre o u tro s expedientes de c u ra de d o en tes e en feitiç ad o s, utilizava o adro das igrejas, pondo-os de joelhos, com velas na mão. Junto aos emplastros que confeccionava com farin h a, mel e aguardente, m isturava água-benta, utilizava u m a galinha p reta e defum adouros.97 A lgum as blasfêmias envolvendo nomes divinos m ereceram denúncias ao Santo Ofício. O caso da negra N atália, acusada em 1771, é exem plar para se perceber as associações que m uitos a fri canos acabavam incorporando no processo de evangelização. Ela foi denunciada por se considerar esposa de C risto, que ordenou a descida dos céus de muitos santos e santas para dizerem a ela seus nomes, tanto na língua portuguesa, quanto “na língua da Costa da M ina”. Punha galinhas e vinho p a ra Santíssim a T rindade, Nossa Senhora e dem ais santos, além de aguardente em frascos e fum o para que as alm as de seus p aren tes e conhecidos desfrutassem de tais mimos. N o âm bito da cham ada “c u ltu ra p o p u la r”, tal qual C ario G inzburg concebeu “o conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprios das classes subalternas num certo período
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ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 2.362. ANTT, Inquisição de Évora, processo 5.940.
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histórico”,989a convivência entre os curas e sacerdotes e as ditas feitiçarias praticadas pelos negros era corrente, dem onstrando um nível de tolerância e até de conivência de certos setores da Igreja d ian te dessas m anifestações. O s exem plos são inúm eros, tan to em Portugal com o no Brasil, onde fracassadas as tentativas dos padres “exorcistas”, eles próprios indicavam os negros curandeiros, tidos com o m ais hábeis nas curas de m azelas físicas, em ocionais e até espirituais. M uitos, inclusive, aca b aram nos cárceres dos trib u n ais inqu isito riais." Citem os apenas um exemplo. N a C oim bra de 1755, o p rim o de B rígida M aria adoecera gravemente e, tendo falhado “os remédios da m edicina”, um padre foi cham ado para lhe fazer exorcismos. M alsucedido, este clérigo, no entanto, sugeriu que se cham asse u m a negra sua conhecida, Teresa M aria, afam ada curandeira, com o que o enferm o - um religioso -, concordou.100 M u ito m ais do que P ortugal, as te rra s coloniais tam bém foram palco de inúm eros casos de práticas m ágicas im iscuídas a elementos do cristianism o, a exemplo dos já citados estudos de Luiz M ott e L aura de M ello e Souza. Foi significativa a violência da escravidão, desagregando as estru tu ras sociais, co m u n itárias, cu ltu rais e religiosas dos a fri canos.101 M as suas crenças e ritos vinham consigo, sobreviventes
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GINZBURG, C., O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. MOTT, L., “Dedo de anjo, osso de defunto: os restos mortais na feitiçaria afro-luso-brasileira”. D iário O ficial Leitura. São Paulo, nov.1989, p.1-3. ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 2.362. “No ponto de partida, o negro africano é um “capturado” extraído de seu meio social, e como tal permanecerá até ser metido na sociedade escravista, e essa inserção será tanto mais difícil porquanto a captura foi violenta, brutal, rompeu todo o seu relacionamento anterior, todas essas ligações que forma o indivíduo social, como os laços familiares, de clã e comunidade”. MATTOSO, K., op. cit., p.101.
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156 que eram do árduo processo de tran sfo rm ação em m ercadoria. Com o afirm o u Roger B astide, não estavam inscritos apenas no seu pensam ento, “m as em seu corpo, com o m ecanism os motores, passos de danças ou gestos ritu ais, capazes, p o r conseguinte, de m ais facilm ente ser avivados no ru fa r lúgubre dos tam bores”.102 A reconstru ção de sua identidade, fundam ental à sua sobrevivên cia em ocional e social, foi tam bém forjada na sociedade branca europeia e cristã, onde novas form as de organização .se criaram p ara ab rig ar e p ro p ag ar as crenças religiosas, os símbolos e os valores dos africanos.103 R efletir sobre a religiosidade dos negros em Portugal é per ceber um universo m u ltifacetad o , sujeito a influências cristãs, m uçulm anas, pagãs e de seus próprios cultos e ritos de origem. R eligiosidade recriad a fora d a Á frica, tais m an ifestaçõ es em P ortugal d esd o b raram -se basicam ente em três form as: aquelas que não se diferenciavam das p ráticas m ágicas realizadas pela população branca, integrando elementos cristãos e pagãos oriundos de tradições europeias; aquelas em que os elementos tipicam ente africanos predom inaram , com o os ritos de adorações de ídolos, tidos p o r “gentílicos”, e os calundus, sendo talvez este g rupo o que m ais se ap ro x im e de u m a religiosidade c ristã superficial, “pseudocatólica”, sim ulando um catolicism o com o meio de evitar a repressão inquisitorial;104 e finalm ente teríam os aquelas em que coexistiram aspectos europeus e tam bém africanos, assum indo um p erfil h íb rid o - seguindo a m esm a perspectiva da análise de C ario G inzburg -, com a fu s ã o de crenças distintas, originando uma “form ação cultural de compromisso”,105não “um a equivalência 102 103 104 105
BASTIDE, R., op. cit., p.219. Idem, p.225. MOTT, L., “Cotidiano e vivência religiosa...”, p.175. GINZBURG, C., História noturna. Decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.22
de term os ou justaposição m ecânica de traços culturais oriundos de duas civilizações diferentes”, com o afirm ou Roger Bastide ao analisar a religiosidade afro-brasileira em vários trabalhos. N a verdade, o catolicism o popular português era um am al gam a de cren ças e p rá tic a s envolvendo curandeiros negros e brancos e padres exorcistas, distan te p o rtan to da ortodoxia das hostes hierarquicam ente superiores da Igreja, cujo instrum ento m aior de repressão - o Santo O fício - estava sempre a rastrear tais m anifestações de heresia.
^
BASTIDE, R ~Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973.
C A P ÍT U L O IV
NA ROTA DAS M ANDINGAS
M e u D e u s , q u e s a n to é a q u e le Q u e v e m v in d o d e c a n o a L o u v a d o se ja J e su s É P a i E le s b ã o q u e v e m d e L is b o a
(Ponto de Pai Elesbão de Angola)
A p a rtir das fontes inquisitoriais, pudem os estabelecer conexões com alg u m as p rá tic a s de certo s g ru p o s afric a n o s n a p ró p ria Á frica, e perceber ainda um a notável circularidade e difusão delas entre os negros m oradores no Reino e en tre estes e os do Brasil. Pudemos vislum brar, então, um verdadeiro am álgam a religioso e cultural, que em m uitos casos não correspondeu às respectivas etnias das quais supostam ente seriam originárias. É im p o rta n te co n sid erar que as cren ças e m an ifestaçõ es religiosas dos negros em Portugal foram b astan te influenciadas pelas estruturas impostas pelo comércio escravista, tanto no tráfico atlântico, quanto no tráfico interno africano. A rrisquem os, então, um a reflexão acerca desse interessante processo de difusão de as pectos da religiosidade africana, tidos pela Igreja como feitiçarias, e as diversas rotas por elas seguidas, utilizando com o exemplo o p o rte das já m encionadas bolsas de m andinga.
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A Á FR IC A ESCRAVISTA
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1606 o je su íta B altasar B arreira sobre o com ércio de negros na Guiné:
O bjeto de am pla bibliografia em língua inglesa e francesa, a es cravidão e o com ércio negreiro na Á frica pré-colonial aparecem raram ente em debates acadêm icos no Brasil.1 E m bora não sendo o tem a específico do presente trabalho, convém tecer algum as considerações im portantes. D iferentem ente d a escrav id ão dom éstica ou de linhagem , de pequen a escala, a ch am ad a escrav id ão am p liad a' foi a que procurou atender ao m ercado in tern o e externo, havendo reinos africanos cuja atividade económ ica prim ordial era a cap tu ra e o com ércio de escravos, sobretudo aqueles de complexa organização política, burocrática, social e m ilitar. A s sociedades africanas que não tin h am um E stad o desenvolvido estiveram fora dos grandes eixos do com ércio de escravos que variaram ao longo dos séculos XV ao XVIII, e estenderam -se da A lta G uiné até a Á frica C entral A tlântica.2 D e u m m odo g eral, a p ro d u ç ã o de escravos vin cu lo u -se a m ecanism os inerentes à p ró p ria e stru tu ra das com unidades africanas. Foram sobretudo os conflitos entre os reinos, oriundos das episódicas expansões territo riais, que geraram povos trib u tários, assim cham ados tam bém porque enviavam escravos como trib u to e prisioneiros que transform avam em cativos. D iria em
Há nestas partes uma nação de negros, a que chamam Bijagós, os quais vivem em umas ilhas que estão perto da terra firme, cada uma das quais tem seu Senhor, sem reconhecer outra cabeça; estes vivem de assaltos contínuos que fazem nos Reinos fronteiros, e por serem grandes marinheiros, mui valentes e destros nas armas, tem assolada e destruída toda aquela costa, por ser retalhada de muitos rios e esteiros em que entram de noite, e chegando a qualquer aldeia de manhã, põem fogo nas casas, que são de palha, e para que não fujam, põe-se um a cada porta com algumas azagaias (...); os que se lhe rendem levam às suas ilhas, aonde acham sempre navios de portugueses que os estão esperando para lhos comprar, o qual trato é um dos principais destas partes.3 Philip C u rtin , p o r exemplo, explicou a larga predom inância dos wolof no segundo quartel do século XVI na A m érica espanhola pela desintegração desse im pério da A lta G uiné, que, envolvido em várias guerras, produziu num erosos prisioneiros vendidos a m ercadores da costa.4 A com petição por recursos naturais, além de outros fatores clim áticos, e a ocorrência de pestes originaram guerras intertribais cujos vencedores, na luta pela sobrevivência, tam bém incorporavam cativos.5*C om enta novam ente o jesuíta B arreira:
Sobre escravidão na África, ver principalmente: LOVEJOY, P., Transformations in Slavery. Cambridge: Cambridge University Press, 1983; MELISSOUX, C. (Org.), Uesclavage en A frique pre-coloniale, Paris: 1975; MIERS, S. e KOPYTOFF, I. (Orgs.), Slavery in África. Madison: Wisconsin, 1977; FISHER, A. e FISHER, H., Slavery and M uslim Society in África. Garden City, New York: Anchor Books, 1972. Apud REIS, J., “Notas sobre a escravidão na África colonial”. Estudos Afro-asiáticos, n” 14, 1987, p.148. FLORENTINO, M., Em costas negras. Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.101.
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BARREIRA, B., “Dos escravos que saem de Cabo Verde (1606)”. In: BRASIO, A., M onumento missionaria africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953, V. IV (1600/1622), p.197. CURTIN, P., The A tla n tic Slave Trade: a Census. Madison, Wisconsin: University Press, 1969, p.96-105. MILLER, J.C. “The Significance of Drought, D isease and Famine in the Agriculturally Marginal Zones of Western Central África”. In: The Journal o f African History, 23, p.17-61. Apud FLORENTINO, M., op. cit., p.97.
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O comércio transaariano fazia dos escravos im portantes bens de troca junto com o ouro, o sal e o m arfim , além de utilizá-los como carregadores. M as foi sobretudo a dem anda do tráfico atlântico que tornou o escravo um a m ercadoria da m aior im p o rtân cia em certas sociedades africanas, possibilitando assim o acesso a a rti gos europeus e am ericanos, p articu larm en te cavalos e arm as de fogo, fundam entais nos conflitos.7 O com ércio negreiro tornava-se, assim, um instrum ento fundam ental de fortalecim ento de poder, ao realim entar o potencial bélico de várias regiões africanas. Foi a p a rtir do século XVII que efetivam ente a dem anda por escravos se intensificou, em função do increm ento dos m ercados açucareiros do Brasil e C aribe. A A lta G uiné cedia seu lugar à Baixa Guiné (Costa do O uro, baías de Benin e Biafra) e às regiões do Congo e Angola com o principais provedoras de escravos. A dem anda do mercado am ericano, cada vez m aior, encontrou ofer ta crescente. A p artir desse período, e ao longo do século XVIII,
grandes reinos interioranos na B aixa G uiné, com o D aom é, Oyo, A rd ra e A shanti, p o r exemplo, fortaleceram -se e dom inaram o comércio negreiro m ediante o controle de im portantes rotas do interior p ara o litoral através da conquista de reinos costeiros e restringindo a ação dos tradicionais mercadores islâmicos.8 Alguns desses reinos se tornaram especialistas na captura de cativos para o tráfico, como Segou, por exemplo. Os jon (escravos) eram obtidos basicam ente através de grandes expedições m ilitares, envolvendo as com unidades subordinadas, e p or ataques repentinos a aldeias, fosse pelos guerreiros profissionais, fosse em rápidas operações com poucos homens. A m aioria dos cativos era vendida, e os que ficavam trabalhavam na produção de alimentos, artesanato e como carregadores. O notável nessa sociedade era a participação dos próprios escravos nas operações de captura: os cham ados ton-jon, escravos-guerreiros, pertenciam ao reino e recebiam privilégios, inclusive de conselheiros do rei. A existência de um exército de escravos com c e rta influência política foi com um nos reinos afri canos organizados e m ilitarizados, em bora tivessem lim itações inerentes à sua condição.9* A segunda m etade do século XVIII assistiu a um a m aior interiorização das buscas de escravos em função dos conflitos religiosos entre Estados islâm icos e pagãos, angariando m ais prisioneiros tornados cativos. A m aioria era vendida a trafican tes que, por algum as rotas terrestres ou fluviais, os conduziam até a costa da Baixa Guiné. Nessa região da Á frica O cidental definiram -se redes específicas do tráfico em fins do século XVIII: to d a a região da savana até a Senegâm bia, m onopolizada pelos m ercadores islâ micos locais; o u tra, m ais ao sul, onde predom inavam os reinos
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Começando, pois, por estes Reinos da Serra Leoa, cujos naturais se chama Sapes, e de obra de 55 anos a esta parte são sujeitos aos Manes ou Cimbas, que os conquistaram vindo de outras partes mui remotas buscar terras em que vivessem por não saberem já nas do seu nascimento. Estes Manes não tendo recebido agravo algum desta nação, nem lhe pertencendo por alguma via, entraram nos seus Reinos, matando e comendo os que lhe resistiam, especialmente os Reis e gente principal, e dos que se lhe rendiam uns comiam, outros escolhiam para soldados, outros vendiam aos portugueses que naquele tempo andavam nestas partes fazendo suas armações, contendo-se com qualquer coisa que lhes davam por eles.6
BARREIRA, B., op. cit., p. 192. DAVIDSON, B., Black Mother, the Years o f Trial. Londres: V. Gollancz, 1961, p.55. Apud idem, p.86.
FLORENTINO, M., op. cit., p.88. BAZIN, J., “War and Servitude in Segou”. In: Economy and society, n.3, 1974, p.115-212. Apud REIS, J., op. cit., p.12.
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ao com ércio negreiro; e, finalm ente, a que se estendia do interior até a C osta do O u ro e a b aía de Benin.10 C om o vim os, a c a to liz a ç ã o do C ongo pelos p o rtu g u eses tornou intensas as relações en tre am bos, e ta n to as guerras como as investidas diretas de ca p tu ra foram as fontes de obtenção de escravos, sob controle da b urocracia congolesa, em bora p o r vezes atuassem traficantes portugueses e africanos independentes. O início do declínio do Congo no tráfico se deu em função de u m a série de co n flito s n o sul de A n g o la e n tre 1575 e 1683, oferecendo essa região m a io r o ferta de escravos. O esboço da colonização iniciada pelos portugueses que a í se estabeleceram possibilitou o controle de im portantes rotas de tráfico negreiro, tiran d o tam bém proveito dos confrontos en tre reinos. A p a rtir dos anos 30 do século XVII, a rede de tráfico se estendeu, com a atuação de interm ediários de M atam ba e K asanje que traziam escravos dos reinos african o s m ais orientais.11 O Bispo de A ngola, D. Luis Simões B randão, escrevia em 1715 ao Rei de P ortugal sobre os “p articu lares do seu bispado”, abordando, além da evangelização dos africanos, a questão do com ércio local de negros. “E sta s gentes”, com entava, “p a ra os cativ eiro s p e rp é tu o s dos n eg ro s que se c o m p ra m e ven d em ”, guerreavam en tre si, sendo u n s exclusivam ente p a ra “ro u b ar e p ren d er gente p a ra venderem aos po m b eiro s (assim ch am am aos prim eiros com pradores que vão ao sertão com erciar ou p ara com erciarem , sendo os capientes daquele gentio que com e carn e hum ana)”.12
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REIS, J., op. cit., p.90. FLORENTINO, M., op. cit., p.93-95. Memorial do Bispo D.Luis Simões Brandão a E l Rei pela Junta das Missões, dando conta dos particulares de seu Bispado, e propondo os remédios às graves necessidades daquelas almas, e miserável estado daquela Igreja, 2 de novembro de 1718. Biblioteca Municipal de Évora, Códice CXVI/2-15, n.15.
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A violência das capturas se dava ainda no cam inho, quando com erciantes e oficiais portugueses, adentrando por aldeias e com unidades p ara resgatar escravos ou executar outros serviços, in v ad iam e roubavam casas, violavam m ulheres e obrigavam m uitos a servirem de carregadores: Quando se amancebavam com alguma negra, o que faziam quase todos, os pais da concubina, irmãos e demais parentes hão de servir grátis ao tal soldado, como se foram seus escravos, e os que não façam levam muita pancada.13 O século XVIII representou o apogeu do tráfico negreiro na África central atlântica, nas regiões do C o n g o e sobretudo de Angola. Se, no século XVI, dessa região p a rtira m p ara a A m érica trin ta mil cativos, já no XVII foram tran sp o rtad o s de 500 a 700 m il,14 e no XVIII, dois m ilhões.15 N os reca n to s m ais inóspitos d o continente african o , em Portugal, m as sobretudo no Novo M undo, os ganhos económicos da escravidão e do tráfico alim entaram a am bição de inúmeros m ercadores e reproduziram de m odo avassalador a força de tra balho. A dem anda desses m ercados, consubstanciada no tráfico atlântico, influenciou estruturalm ente m uitas sociedades africanas, desencadeando, no limite, reinos especializados no fornecimento de escravos.16*A natureza do escravism o n a Á frica perdeu sua feição dom éstica para se to rn ar m ercantil, com enormes movimentações populacionais.
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Idem. CURTIN, F., op. cit., p.119. Vale lembrar que nesse período a África Ocidental ainda liderava as expor tações, chegando a uma cifra de 3,5 milhões. Ver FLORENTINO, M., op. cit., p.97. REIS, J., op. cit., p.12.
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Mas quem era escravizado na Á frica? Além dos prisioneiros oriundos da guerra, indivíduos punidos p o r variados delitos.17 É novamente o M emorial do bispo de A ngola, escrito no início do século XVII, bastante esclarecedor quando trato u da escravidão doméstica, de pequena escala, arro lan d o várias situações em que o cativeiro era legítimo. Os endividados, os adúlteros, os ladrões, os feiticeiros - que se tornavam cativos daqueles que se v iram lesados - e, curiosam ente, se alguém sonhasse com um defunto três vezes, os parentes deste se to rn av am escravos daquele que sonhara. Esse eclesiástico dem onstrou um a g rande preocupação quanto à legitim idade da escravidão, indignado com o fato de os pombeiros e outros com pradores sequer apurarem se o cativeiro era lícito ou não p ara o caso daqueles que perm anecessem em Angola. Observou, no entanto, que, p ara aqueles que em barcassem para fora da Á frica, a n atu reza d a escravidão era exam inada. Depois de certo tem po servindo aos com pradores, eram levados a um clérigo, “perito na língua”, p ara saberem de onde vinham e em quais circunstâncias se to rn ara m cativos.18 O já citado jesuíta B altazar B arreira tam bém m anifestou preocupações acerca da legitim idade da escravidão nos reinos da Guiné, descrevendo a oferta de escravos pelos conflitos entre os reinos, mas tam bém m encionando casos lícitos em que a escravi dão se produzia dentro da com unidade: quando havia agressões e ofensas, tornando o agressor escravo do agredido; quando havia um relacionam ento com a m ulher do rei; quando se provava que
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Idem, p.6. “(...) fica com a dita confissão acabado todo o exame e são julgados escravos perpétuos, e como tais se lhe põe a marca de Vossa Majestade para passarem para o Brasil. Há que se notar que os exames na forma dita se expedem dois ou três dias pouco mais ou menos antes da partida dos navios e naquele breve tempo se julgam 300, 400 ou 500 e às vezes até mais escravos que hão logo de embarcar.” In: Memorial do Bispo D. Luis Simões Brandão...
alguém era feiticeiro e considerado cu lp ad o de algum a m orte, sendo tam bém sua fam ília, além dele, feita escrava. E m alguns grupos, com o os Sena, de M oçam bique, alguns se ofereciam como escravos em circunstâncias de fome e escassez. N ão só a com unidade angariava gêneros alim entícios e sobrevi via, m as tam bém os cativos tin h am m aiores possibilidades de sobreviver nos grupos receptores.19 E m certo s reinos da G uiné, quando o escravo era m altratado pelo senhor e fugia p ara outro reino, ou então era um foragido, punha-se sob cativeiro do rei ou de o utro senhor.20 N o caso do Congo, vim os que foi com um a escravização de elementos da própria aristocracia congolesa, sendo motivo de graves tensões com os portugueses, apesar da m aioria dos cativos nessa região ter se originado nos conflitos e expedições de cap tu ra.21 A lgum as sociedades africanas excluíam os indivíduos con siderados “feiticeiros” e os puniam com a escravidão. Q uestão de difícil análise, porque é fundam ental que se conheça a e stru tu ra social e religiosa da com unidade para se d efin ir o que significa ria, ali, ser “feiticeiro”. E há, ainda, que se perceber que líderes religiosos e curandeiros africanos podiam ser cham ados de feiti ceiros na docum entação, produzida evidentem ente pelos olhos dos portugueses. M as o fato é que muitos indivíduos que lidavam com a religiosidade e a cu ra dos corpos foram escravizados, perm a necendo seus conhecim entos e crenças em seu universo m ental e cultural. A o longo de seus percursos pela Á frica, em direção aos negreiros, depois na travessia m arítim a e finalm ente onde fossem
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REIS, J., op. cit., p.7. BALTAZAR, B., op. cit., p.194. Já desde 1526, em carta a D. João III, o rei do Congo reclamava das capturas de “fidalgos” e seus filhos para serem escravizados, não havendo fiscalização por parte dos portugueses no comércio negreiro. Carta do Rei do Congo a D. João III (18-10-1526). In: A. Brásio, op. cit., p.489.
168 servir, essas crenças se difundiam , foram p artilh ad as, ensinadas e aprendidas, adq u irin d o um novo perfil, diferente do original.22 A articulação que se estabeleceu en tre a escravidão africana de larga escala e o tráfico atlântico a p a rtir do século XV é notória, num m ecanism o inequívoco de m útuas influências. O volum e de africanos que se deslocou foi enorm e, im plicando um processo contínuo de criação de novos laços e alianças com outros grupos e etnias, alguns com pletam ente diferentes dos outros, fosse dentro da Á frica, fosse em Portugal ou na A m érica. João Reis cham a a atenção para o caráter instável do escravo na com unidade, que p o d ia ser revendido v árias vezes, tendo assim novam ente que restabelecer solidariedades e novas inserções sociais den tro do novo grupo.23 A escravidão na Á frica pré-colonial m isturou grupos d istan tes, apresados nas guerras in tertribais, e pôs em contato outros tantos, que cru zaram ju n to s árduos cam inhos, que os levaram aos navios portugueses aportados ao longo da costa africana. O depoim ento de G. Loyer, em 1714, apesar de detrator, m ostra bem a diversidade das crenças entre os grupos: (...) é raro encontrar dois negros, no meio duma multidão tão grande, que estejam de acordo no que se refere ao culto e à forma de cum prir as suas regras. Um considera feitiço um pequeno pedaço de madeira amarela ou vermelha; outro, alguns dentes de 22
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“O africano, com a destruição racial das linhagens, dos clãs, das aldeias ou das realezas, apegava-se tanto mais a seus ritos e seus deuses, a única coisa que lhe restara de seu país natal, o tesouro que pudera trazer consigo. Mitos e deuses esses que não viviam somente em seu pensamento, como imagens mnemónicas sujeitas a perturbações da memória, mas que também estavam inscritos em seu corpo, como mecanismos motores, passos de danças ou gestos rituais, capazes, por conseguinte, de mais facilmente serem avivados ao rufar lúgubre dos tambores.” BASTIDE, R„ A s religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1989, p.219. REIS, J., op. cit., p.5.
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cão, de tigre ou de gato almiscareiro; outro um dente de elefante (...), a ponta dum corno de carneiro cheia de porcaria, pequenos ramos de espinheiro, pequenas cordas feitas de plantas ou qualquer disparate semelhante.24 O efeito d esestruturante da escravidão fez com que mitos, deuses e rep resentações sim bólicas de m u itas com unidades de algum modo se mesclassem, não apenas dentro da Á frica, mas também quando o africano, já transform ado em m ercadoria pela escra vidão, cruzava o A tlântico em direção ao Novo Mundo, ou em d ireção à E u ro p a, com eçando a í tam bém a estabelecer novas relações. Intuitivam ente, ele iniciava um a reestruturação de sua identidade social que se prolongava nos locais onde iria trabalhar, forjando laços entre si, com os negros nascidos fora da Á frica e ainda com os brancos. R obert Slenes, no seu “M alungu, N gom a vem! Á frica enco berta e descoberta no Brasil”, dem onstrou, com grande erudição, que en tre os povos bantos do eixo A ngola-Congo criava-se uma p ro to -id en tid ad e en tre os cativos já no cam inho p ara o p orto de em barque n a Á frica, em função de suas origens linguísticas com uns, possibilitando a com unicação entre eles. E, além da lín gua, eles com partilhavam sim bolism os im portantes, a exemplo do term o m alungu. E m banto, a palavra significa com panheiro de navio ou de travessia, e acab aria associada a com panheiro de sofrim ento e de m orte, de passagem para a kalunga, linha divi sória entre o m undo dos vivos e dos m ortos e que tam bém tem o significado de “m ar”. A ssim , a travessia do oceano - a travessia da kalunga - acabaria ad q u irin d o um a conotação de cam inho p ara a m orte. P ara a m aior p a rte dos povos da região do Congo e A ngola, o branco significava a m orte, o m undo dos espíritos e, 24
LOYER, G., Relation du voyage au royaume d ’Issigny, Paris, 1714, p.242-243.
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por associação, a terra dos portugueses.25 Na costa atlân tica da Á frica central o term o m alungu teve grande ressonância, sendo perceptível para os escravos que vinham de Benguela, de Luanda, da região entre o rio D ande até acim a de Loango e entre o m ar e o rio Kwango. Configurava-se, pois, um exemplo de laços de solidariedade e identidade entre os bantos, não apenas na percepção da possibi lidade de com unicação entre os com panheiros de infortúnio, m as tam bém pela simbologia da travessia m arítim a da Á frica p ara o Novo M undo ou para Portugal. A con tin u id ad e desse processo de reconstrução de identidade iria se fo rjar nos locais onde os cativos desembarcassem, estabelecendo novos laços com outros grupos de diferentes etnias.26 M ariza Soares, estudando alguns g ru p o s de african o s no R io de Janeiro na p rim eira m etade do século XVIII, observou na docum entação dos assentam entos de batism os que os term os “gentio da M ina”, “gentio de G uiné”, “nação A ngola” e outros, que acom panhavam o nome do escravo nos registros, não correspon diam necessariamente a um grupo étnico. Idealizados pelos agentes colonizadores, referiam-se sobretudo ao local ou p o rto de em bar que na Á frica, desconsiderando a real procedência do african o .27 M anoel do Gentio de Guiné ou A n tô n io M ina eram exemplos de 25
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SLENES, R., “Malungo Ngnoma vem! A África encoberta e redescoberta no Brasil”. Cadernos do Museu da Escravatura, n .l, Luanda: M inistério da Cultura, 1995, p.7-10. “Não devemos subestimar as possibilidades dos africanos de manterem vivas suas identidades originais; contudo, na labuta diária, na luta contra os (des) mandos do senhor, na procura de parceiros para a vida afetiva, necessariamente eles haveriam de formar laços com pessoas de outras origens, redesenhando as fronteiras entre etnias.” Idem, p.13. SOARES, M. de C. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão. Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. No original da tese, p.87. Ver também BASTIDE, R., A s Am éricas negras, São Paulo: Difel/ EDUSP, 1974, p.12.
como o escravo era identificado nessa documentação: um nome de batism o e sua procedência, vindo depois o nom e do proprietário. Os cham ados de “m ina”, por exemplo, foram todos aqueles que saíram pelo forte da M ina, fossem ashanti, ewes ou yorubás. Em certos casos, o g rupo étnico coincidia com a procedência, mas em regra era difícil saber a real origem do africano. A nalisando a form ação no R io de Janeiro da Irm andade de Santo Elesbão e Santa Efigênia em 1740, pelo grupo de procedência denom inado “m in a” - englobando os n atu rais d a C osta da M ina, Cabo Verde, Ilha de São Tomé e M oçambique -, esta autora propôs a reflexão sobre os m ecanism os de reorganização desses grupos, privilegiando o ponto de desem barque do africano - no caso, o Rio de Janeiro setecentista -, independentem ente de suas origens sociais e culturais africanas. Essas novas form as de organização relacionar-se-iam m uito m ais às “condições do cativeiro do que com as relações tribais anteriores a ele”, diferenciadas em função da região e da época.28 M ANDINGAS N ’Á FR IC A , M A N D IN G A S LUSITANAS, M ANDINGAS CO LO N IA IS Q uanto às origens étnicas dos cativos negros que se estabeleceram em Portugal, não tivemos acesso a nenhum estudo am plo que de limitasse a procedência dessa população. D e acordo com o estudo de Saunders, referente aos séculos XV e XVI, os registros das Casas da G uiné e da C asa dos Escravos relativos aos desem barcados em Lisboa foram destruídos pelo terrem oto de 1755.29 A pesquisa em livros de assentos de batism os, que seria um a alternativa, esten28
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Na Bahia, por exemplo, os chamados “minas” são apenas os jejês e os mahi, ao passo que no Maranhão, são os fante-ashante. Ver SOARES, M. de C., op. cit., p.95. SAUNDERS, A.C. de C.M., História social dos escravos e libertos negros em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982, p.40.
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deria em m uito os lim ites deste trabalho. N o entanto, a natureza da docum entação p ro d u zid a pelo S anto O fício p e rm ite que se saiba m ais precisam ente a origem desses negros, perg u n tad a a eles nas sessões de inquirição, quan d o o processo já estava em andam ento. M esmo no caso dos recém -chegados que ainda não falavam o português, os inquisidores utilizavam intérpretes. No caso das denúncias, no entanto, a inform ação da origem do de nunciado nem sem pre aparece. Pudem os assim ter a noção das origens desses processados, e ainda que coincidam nesses casos a procedência com a etnia, a reo rg an ização dos african o s de diferentes origens em torno das bolsas de m andinga foi evidente. Essa prática em Portugal n ao espelhou u m a hom ogeneidade étn ica de um d eterm in ad o grupo, e sim envolveu outros, fru to do processo de desarticulação cultural, social e religiosa que se estabeleceu a p a rtir do tráfico, havendo assim um rearran jo de novas form as de sociabilidade e religiosidade.30 É indício, pois, da dinâmica de traços culturais e religiosos que desbravaram longínquas fronteiras, atravessaram oceanos, vindas da Á frica para aportarem na Europa e no Novo Mundo. Os espaços das transform ações são nítidos, pondo negros das m ais diversas origens étnicas em constante processo de trocas culturais: dentro da própria Á frica, em função da m igração populacional im posta pela escravidão e pelo tráfico negreiro africano, nos p o rto s de em barque e depois nos locais onde vão servir e se fixar, articulandose de diversas m aneiras. N o caso do uso das bolsas de m andinga, observam os m ais de p erto essas transform ações, u m a vez que m udou a sua natureza e m esclaram -se os grupos que as portavam .
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O term o “mandinga”, associado ao porte de amuletos, relacionase a um a parcela da história dos m uçulm anos na África. Desde o século VII, a expansão árabe com eçou a penetrar no norte desse continente, configurando ao longo do tem po um comércio relativamente estruturado, com im portantíssim as rotas terrestres e uma intensa tro ca de produtos pelas caravanas de mercadores.31 M as foi só no século XI que o islam ism o penetrou na cham ada Á frica negra, p a ra além do rio Níger, com o avanço da tribo Sanhadja, fundadora do califado árab e alm orávida, saindo dos limites do M arrocos e do Senegal. O século XIII vai assistir à conversão ao islam ism o do reino M ali, cujos habitantes, os malinke, eram tam bém conhecidos p o r m andingas. A s antigas crenças desses g ru p o s a n im ista s n ão d esap arec eram p o r com pleto, havendo um “sin cretism o m u ç u lm an o -fe tich ista” que se dissem inou. L ocalizavam -se no vale do Níger, n a região denom inada C osta da M ina, ou C osta da G uiné, desbravada pelos portugueses em 1444 e onde se configurou nesse período duas grandes areas de exportação de cativos, o Castelo de São Jorge e o Benin. N esse grupo dos m andingas o uso de patuás ou amuletos era característico, a ponto desses objetos serem depois denom inados de “m andinga”, e os feiticeiros de “m andingueiros”.34 Em form a ^
KI-ZERBRO, J., História da África Negra. Lisboa: Europa-América, 1990,
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Idem, p.164-172. Ver também BASTIDE, R., A í religiões africanas no Brasil, p 204. Ver ainda CARREIRA, A., M andingas. Lisboa: Cosmos, Cadernos
p.129-131.
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“Inseridas numa dada situação histórica, as diferentes etnias engendram diferentes respostas às novas condições a que são submetidas.” SOARES M de C., op. cit., p.98.
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Coloniais, n.13, s/d. , Desbravada pelos portugueses em 1444, no atual Senegal, a Gume, chamada de “terra dos negros” pelo cronista Zurara, é referida nas fontes dos séculos XV e XVI como tendo abrangências geográficas diversas. Ver em SOARES, M de C., op. cit., o capítulo “A Ethiópia de Guiné”. Roger Bastide encontra esse termo utilizado em outros países da America Latina, como Argentina e Uruguai, para designar feitiçaria. Ver A í Américas negras, p.100. Ver também RODRIGUES, N., Os africanos no Brasil. Sao Paulo: Companhia Editora Nacional, p.114.
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de bolsas de couro, continham orações e passagens do A lcorão, como bem observou o Padre M anoel Á lvares, da C om panhia de Jesus, estando de passagem pela G uiné em 1607: Há nestas partes certa gentilidade a que chamam Mandingas, que é a pior gente, porque guardam a seita dos mouros e confinam com eles nos costumes e nas terras com os Jalofos. Estes andam metidos com esta gentilidade e os enganam, dando-lhes nominas e uns relicários que trazem ao pescoço, assim como os agnus Dei e outras relíquias. São estas nominas uns pedaços de couros cozidos de diversos modos e neles trazem o que estes mouros lhe dão e semeam a cizânea de sua perversa seita.35 Era com um o uso desses talism ãs na C osta da G uiné, não apenas sob a form a de bolsas, m as tam bém com o objetos avulsos supostam ente dotados de grande força e poder, d a í a necessidade do contato físico do objeto com o co rp o do u suário.36 O espectro da proteção era amplo, abrangendo as am eaças quotidianas, doenças, m aus espíritos. C onfeccionados p o r “m estres” esp iritu ais letra dos, recebiam seus poderes m ísticos e eram fonte significativa de renda para muitos por sua larga com ercialização em várias regiões da Á frica.37 Concentradores da força m ágica, num a conexão d ireta com quem os portava, agiam em todos os planos, representando um a segurança em relação à vida e tam bém em relação à m orte.38 A 35 36 37
38
“Relação das coisas da Guiné, maio de 1607”. In: BRÁSIO, A., op. cit., v. IV (1600-1622), p.274. DESCHAMPS, H., Las religiones del África negra. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires: 1962, p.62. Ver TRIMINGHAM, J.S., Islam in West África. Oxford: Oxford University Press, 1970. Apud REIS, J., Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986, p.123. CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p.49.
175
docum entação inquisitorial m ostra que, p ara Portugal (e tam bém p ara o Brasil), a proteção das m andingas vai assum ir nítidas va riações, não só q u an to ao seu conteúdo e sua form a, com o ainda em relação aos g rupos étnicos que as portavam . E m nenhum dos processos ou denúncias relativas ao p orte dessas bolsas, a té m eados do século XVIII, foram encontradas referências a rezas islâmicas ou outros indícios de islamismo, mas sim traços cristãos, fossem dentro das bolsas ou envolvendo-as de algum a m aneira, com o colocá-las debaixo de um altar onde seriam rezadas missas, objetivando que elas ganhassem m ais força protetora. Vale lem brar que a pesquisa de L aura de Mello e Souza p ara o caso do B rasil dem onstrou esse aspecto, pelo menos até o século XVIII.39 O que a docum entação sugere é a perm anência de um tipo de prática que se reelaborou e ainda se d ifundiu p ara outros grupos. A relação en tre o p o rte das bolsas de m andinga e a origem étnico-cultural dos negros cativos em Portugal é, portanto, cabível. Em bora os m andinga fossem um dos povos guineenses, e portanto inseridos no cham ado grupo iorubá-nagô, e apesar de que muitos portadores das m andingas tivessem essa origem , o fato é que os angolas foram tam bém usuários. N a am ostragem sobre os africa nos denunciados e processados por uso dessas bolsas em Portugal en tre os séculos XVI e XVIII, tem os nove originários da C osta da M ina e cinco de A ngola, num total de 19 casos (ver Tabela 10). Roger B astide fala-nos de um a dupla diáspora: a que se rela ciona à mescla da cu ltu ra e religiosidade africana com as nações que in te g ra ra m o trá fic o escrav ista (anglo-saxões, espanhóis, franceses e portugueses) e àquela associada aos próprios “traços
39
SOUZA, L. de M., O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.210226.
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culturais african o s que transcendem às etn ias”, ou seja, a exis tência por vezes de situações em que h á um a cu ltu ra dom inante em determ inada região que pode “não estar em conexão com a preponderância de tal ou qual etn ia no tráfico desta região”.40 Os exemplos podem ser inúm eros, se levarm os em conta a abrangência da d iásp o ra negra, sobretudo nas A m éricas, onde o sincretism o religioso e cultural foi considerável, ensejando comple xas situações em que ritos religiosos e costum es se im iscuíram de diferentes maneiras, envolvendo etnias diversas. Se entre os malinkê as bolsas de m andinga eram tipicam ente islâm icas, em Portugal e no Brasil colonial, agregaram -se a elas traços cristãos. O que percebem os na pesquisa foi um processo interessantís sim o de circulação de saberes entre os negros habitantes no Brasil e em Portugal, p articu larm en te no século XVIII, período em que essa prática m ais ap arece nas fontes inquisitoriais. N a fase áurea de seu uso - p rim eira m etade do século XVIII (ver Tabela 7) -, a docum entação do S an to O fício vai m o stra r um a articu lação notável nesse sentido. Joseph F rancisco Pereira foi preso no palácio da Inquisição de Lisboa em 1730. D a C osta da M in a, onde nascera, foi p ara o Recife, ain d a novo, onde foi b atizado, lá perm an ecen d o p o r cerca de dez anos. Foi p a ra o R io de Janeiro, depois p ara M inas do R io das M ortes e p o r fim Lisboa, onde estava há quase dois anos. Seu últim o senhor era um capitão-m or das M inas, nascido no Brasil, não havendo nenhum a inform ação no processo sobre seus outros senhores. C ontou aos inquisidores que “nos B rasis”, onde “algum as pessoas m atavam com feitiços”, aprendeu m uitas coisas - a fazer ca rta s de tocar p ara a tra ir mulheres, an d a r com um a raiz de trigo p a ra não o m altratarem , trazer consigo papéis com orações e confeccionar as bolsas de m andingas -, ensinadas 40
Idem, p.15.
por vários escravos em Pernam buco. A inda no Brasil começou a vendê-las, abrindo algumas que com prou no R io de Janeiro e delas fazendo outras. Já em Lisboa, correu a fam a entre os negros de que José Pereira vinha do Brasil, terra onde sabiam ser frequente o uso de m andingas”, prosseguindo então seu comércio no Reino. Os propósitos de seus clientes com a m andinga era a libertação pelos senhores, obter m ulheres, g anhar no jogo e se proteger. Os ingredientes que com punham as bolsas variavam: orações, p ed ras de corisco, enxofre, pólvora, balas de chumbo, olho de gato, ossos de crianças não b atizadas, sangue dos interessados, feijões, aguardente, lixo d a casa dos senhores e raspas de seus sapatos. E le vendeu a vários negros do T erreiro do Paço (hoje P raça do Comércio), da C alçada do Combro, da Rua do O uro etc., e ain d a indicava colegas que tam bém as vendiam quando estava sobrecarregado. Por vezes tam b ém com prava bolsas de outros, com o de um escravo de um negociante que veio do Brasil, e era auxiliado por um criado branco, que copiava orações, e por outro negro, cham ado V entura, que as colocava debaixo dos altares de igrejas p a ra adquirirem m ais força.4142 Este últim o, aliás, voltando com seu senhor p ara o R io de Janeiro em 1735, dera nessa cidade, ao escravo A ntônio M ascarenhas, um a m andinga em forma de c a rta com v árias figuras p in tad as, advertindo-o ainda que pu sesse debaixo de um a p edra d ’a ra com o fito “de ser mais forte e segura”. Q u ando retornou ao Funchal, na Ilha da M adeira, aonde chegou criança, vindo de A ngola, pediu ao estudante A ntônio da Silva que transcrevesse aquilo tudo, provavelmente com o intuito de vender.43
41
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.767.
42 43
Idem. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 254.
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Joseph Francisco Pereira era tam bém auxiliado p o r Joseph Francisco Pedroso (seus respectivos senhores eram irm ãos), em cujo processo m uitos de seus clientes estavam relacionados ao Brasil, em barcando com seus senhores p a ra a colónia ou então sendo vendidos p ara lá.44 O processo do escravo Luiz de L im a, n atu ral da C o sta da M ina e m orador no Porto, é excelente tam bém p ara se perceber a conexão entre Brasil e Portugal em relação ao uso das bolsas. Instigado pelo confessor, ap resen to u -se à In q u isição em 1729. C ontum az vendedor das m andingas, ele trouxe um a “dos B rasis”, de veludo verde, ad q u irid a do escravo F ran cisco em 1722, que continha um pedaço de p ed ra d’ara e um a oração de São M arcos e São Ciprião. Já em Portugal, dividiu o conteúdo dela e vendeu a Joseph da Costa, escravo de um sargento de Massarelos, no Bispado do Porto, e daí não parou mais. Num período de três anos m ais ou menos, fez inúmeros contatos com escravos e forros m oradores do Porto, criando um a verdadeira rede de m andingueiros. Vendeu a vários cativos de senhores m oradores no Brasil, com o D om ingos, Francisco, Nicolau - que sabia “m uito de feitiçarias” - e, a um tal Joseph Luis, uma unha de onça de p ra ta à guisa de m andinga. Diante do Inquisidor, denunciou outros tantos: Pedro, Sebastião, A n tô n io C ria n ça, In ácio (escravo d e u m F a m ilia r d o S a n to Ofício), A ntônio (cujo senhor tam bém n ascera no Brasil), Pedro, que estivera em Pernam buco, F rancisco, depois vendido a um brasileiro, e outros. D enunciou ain d a o negro P urieiro, que no Brasil já as usava e, quando chegou a Portugal, ganhou m u ita fama por ser “grande m andingueiro”, tam bém confeccionando e vendendo-as depois de bentas. Q u an d o conheceu Luis de Lim a em Pernambuco, vendeu-lhe “uma coisa feita p o r m odo de esteira, e pequena, tecida de um a casta de pau tingido de preto, a qual
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coisa servia p ara ad ivinhar”, m as, “por entender que aquela coisa de adivinhar era m uito proibida no Reino, não a trouxe”. Recebeu tam bém do escravo D am ião, que veio do Brasil com seu senhor, um a bolsa que foi vendida depois para outro negro. D enunciou ain d a Félix, m orador em Chaves, o u trora seu com panheiro em Pernam buco, am bos escravos de um desem bargador, que usava em Portugal sua m andinga v in d a do Brasil e ain d a um a conta de C abo Verde. A firm o u que o tal Félix conhecia outros “g ran des m estres” no Recife, tendo presenciado num erosas brigas em que saíram incólum es. O d estin o desse negro, com pletou, fora a venda p ara o R io de Janeiro, b astan te difícil, “p o r ser grande m andingueiro e p or isto ser sabido e bem conhecido (...), ninguém o queria co m p rar”. D isse que ainda lhe ensinaram , em Pernam buco, que para d ar força à m andinga devia ir a um a encruzilhada e cravar duas espadas atravessadas e separadas um a da outra. Logo apareceria um homem, que na verdade era o D iabo, com quem iria brigar, fortalecendo assim a m andinga. A pós sete dias com ela, devia rezar todas as m anhãs, em jejum , o seguinte: “A m igo meu que m e vem p ro cu rar deixa ver, e a m ão sem ti m e não levantava, o pé sem ti m e não alcançava, o olho sem ti m e não via, e o cora ção sem ti m e não ofendera”. O últim o ensinam ento dos “pretos m estres d a m an d in g a” em P ernam buco relacionava-se à força das m andingas do Brasil, que “depois de passarem pelo m ar, que era sagrado, não ficavam tão fortes nem de préstim o tão grande” quando iam p ara Portugal.45 M anuel da Piedade, n a tu ra l da B ahia, escravo do capitão G arcia de Valadares e m orador em Lisboa, foi denunciado também
45 44
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.774.
ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 1.630. Nessa passagem, é clara a idéia do mar como elemento purificador, mais precisamente a travessia marítima como signo de purgação. SOUZA, L. de M., op. cit., p.75.
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180 por Luis de Lim a e pelo negro V entura (que tam bém aparece no processo de Joseph Pedroso) p o r lhe venderem bolsas. Piedade era conhecidíssimo entre os escravos e forros do Porto por p o rtar um a oração do Justo Juiz com o m andinga, ad quirida ain d a na Bahia, e por vender ingredientes p ara fazer as bolsas com o auxílio do D em ónio.46 Foi preso pelo Santo O fício em 1730. Nesses processos inquisitoriais, evidencia-se a d in âm ica da m obilidade g eográfica dos escravos em fu n ção do trâ n sito de funcionários do Reino, da burocracia colonial e dos com erciantes, que ficavam no ir-e-vir entre Brasil e Portugal com seus cativos, perm anecendo determ inados períodos ora num, ora noutro lugar.47 E m uitas vezes, tam bém , com pravam e vendiam escravos, incre m entado m ais ainda essa circulação. A lém de tudo, o cará ter da escravidão urbana em Portugal facilitava enormemente essas trocas culturais, pondo os negros em co n tato perm anente, cruzando-se nas ruas, em meio às suas tarefas quotidianas. Para a região das M inas, no Brasil, entre 1718 e 1738, existem alguns dados q u an titativos que d em on stram a presença desses africanos vindos do Reino, com pondo 21,7% da população escrava nas localidades de Vila R ica, Vila do C arm o e Tejuco. Supõe-se que eram propriedade de portugueses ricos atuando na colónia, e até um a espécie de “reserva de valor” em função dos altos preços que obtinham no Brasil pela sua qualificação profissional ad q u i rida em Portugal, sendo interessante p o rta n to que viessem p ara ser alugados ou até m esm o vendidos.48 O bservam os assim que, em meio ao fluxo contínuo dos senhores entre B rasil e Portugal, 46 47
48
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 9.972. RUSSEL-WOOD, A.J.R., “Governantes e agentes”. In: BETHENCOURT, F. e CHAUDHURI, K., H istória da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, v.3, p.169-192. VENÂNCIO, R. P., “Cativos do Reino: a importação de escravos de Portugal para Minas Gerais colonial”. Ex. mimeo, s/d.
seus escravos e m esm o negros forros partilhavam suas crenças e seus conhecim entos, que iriam circular pelos recantos do lado ocidental do Im pério português. O u tro caso notável p ara se perceber a idéia de circulação de ritos e saberes pela Á frica, Brasil e Portugal foi o de Francisco A ntônio, preso em 1745.49 N ascido na C osta da M ina, foi como escravo p a ra a região das M inas, no Brasil, onde aos 15 anos, c o n h ec eu em O u ro P reto , em 1723, o escravo A n d ré Pereira, curandeiro de grande fam a. C om panheiros nas faíscas do ouro, p asso u a segui-lo p o r onde fosse. D epois de quatro anos, seu “m estre” viria a falecer, m as não sem antes ensiná-lo suas artes e deixando-lhe com o herança seu “m aterial” de trabalho: búzios, guizos, ervas, coquinhos de dendê, raízes, cascavéis. Francisco A n tô n io continuou cu ran d o no Brasil, m as em 1733 seu senhor se m u d o u p a ra L isboa e p a ro u suas atividades de curandeiro q u an d o ficou doente. D ispensado pelo seu senhor, e não tendo meios p ara sobreviver, ele voltou a p raticar suas curas. Em bora b astante enfermo e aleijado, era m uito procurado tanto por negros com o p o r brancos. A judavam -no dois africanos, um de Angola e o u tro da C osta d a M ina, a quem tam bém passou “a ciência que tin h a ”, difundindo assim seus conhecim entos e crenças para outros negros em Portugal. A própria e stru tu ra de repressão do Santo Ofício colaborou p a ra os contatos e os intercâm bios desses saberes. A Inquisição enviava todos os réus coloniais p ara serem julgados no tribunal d e L isboa, e p en aliza v a m uitos com o degredo para algum as regiões de Portugal, da Á frica e do Brasil. Propagaram -se, assim, p o r essa via, m uitos dos valores culturais e religiosos africanos ou, quem sabe, afro-brasileiros.
49
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.179.
182
O estudo de João Reis sobre a rebelião dos negros islamizados - os malês - em Salvador, na B ahia de 1835, é tam bém exemplo notável do processo de reconstrução da identidade étnica do ne gro e da circularidade de saberes e de certas p ráticas religiosas e culturais. Os primeiros africanos islamizados aportaram no Brasil entre fins do XVIII e inícios do XIX, principalm ente os grupos haussá, iorubás, jejês e outros, im pulsionados pela expansão do islã em certas regiões da Á frica O cidental, que p ro d u ziu m ilhares de escravos.50 Muitos dos que vieram tinham , na Á frica, posições de liderança religiosa e tam bém guerreira, com o os iorubás, que em meio à desagregação do império Oyo em inícios do XIX, formaram vários grupos arm ados independentes, hostis en tre si.51 Pierre Verger associa o term o m alê a im ale, que quer dizer islã ou m uçulm ano em iorubá, e na Bahia os m alês eram vistos como todos aqueles que professavam essa religião, sem estarem vinculados a um grupo étnico específico.52 A co n stru ção de um a identidade malê em Salvador foi significativa, e este g ru p o rea lizava reuniões, encontros e com em orações, p erp etu an d o suas
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51 52
“Em 1820-35, os nagôs, jejes, haussás e tapas constituíram 57,3% dos escravos africanos (...). Uma vez na Bahia, esses escravos iriam modificar fundamen talmente a vida da comunidade africana que aí vivia, tanto em termos de sua estrutura interna - hierarquias sócio-culturais, estratégias de alianças e conflito interétnico, reorganização do espaço urbano de trabalho etc. - como em termos de seu relacionamento com a classe senhorial e os habitantes na tivos de um modo geral. Foi nesse período que a cultura jejê-nagô se lançou no ambiente baiano com a força que a tornaria cultura africana dominante.” REIS, J., Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês (1835)..., p.l 10-170. Idem p.171. O islamismo compunha uma dentre outras forças religiosas na Bahia, como os cultos aos orixás, voduns e a espíritos ancestrais, por exemplo. Idem, p.116.
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crenças e costum es, e até u rd in d o revoltas, com o foi o caso do levante de 1835.53 O uso de alguns símbolos da cultura m uçulm ana m ostra bem as transform ações de certas p ráticas, com o p o r exemplo o uso do abadá, que enquanto na Á frica era um a vestim enta colorida usada publicam ente, na B ahia o itocentista era branco e usado privadam ente.54 O p o rte dos am uletos ou talism ãs protetores era p articu larm ente popularizado, difundido até entre os não m uçul manos. M as, diferentem ente das bolsas de m andingas coloniais e reinóis, co ntinham rezas islâm icas e passagens do A lcorão, dese nhos cabalísticos, além de outros ingredientes, tudo posto num a bolsa de couro e largam ente com ercializados por alguns “m estres” malês, especializados na confecção desses am uletos.55 Esse estudo, referente ao distante Brasil monárquico, evidencia o grau de redim ensionam ento das estru tu ra s religiosas, sociais e culturais dos africanos fora da Á frica, adquirindo perfis dife renciados no tem po e no espaço, a julgar pelas m utações sofridas pelas bolsas de m andinga. D e um a origem african a islam izada, d ifu n d iram -se por grupos de origem b an ta, outros grupos a fri canos e cam in h aram para fora da Á frica, m arcando presença já com diferentes conteúdos em P ortugal e no Brasil colonial, e na Salvador de 1835. N o caso específico das m andingas encontradas no Reino, a docum entação evidenciou um a rota que ia do Brasil para Portugal por interm édio sobretudo de africanos originários de A ngola e C osta da M ina, seus m aiores usuários (ver Tabela 10). Sua utili-
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João Reis ressalta que o levante não foi planejado exclusiva mente pelos malês, envolvendo também africanos de outras origens e crenças religiosas. Em termos dos grupos islamizados que estiveram mais presentes na revolta, destacam-se os nagôs, seguidos pelos haussás. Idem, p.l80;150. Idem, p.124. Idem, p.118-122.
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184 zação parece ter sido m ais intensa na colónia brasileira, um a vez que era prática, sobretudo dos negros, que com parativam ente a P ortugal predom inavam no Brasil, obviam ente pelo fato da es cravidão ser o sustentáculo da econom ia colonial, diferentem ente do caso português. L aura de M ello e Souza vê as m andingas coloniais com o “a form a m ais tipicam ente colonial da feitiçaria no B rasil”, pela sua popularidade, por ser usada por brancos e por ser a mais sincrética das práticas m ágicas na colónia. Os casos portugueses de p o rte das bolsas dem onstram , contudo, serem elas igualm ente sincréticas, por conterem traços cristãos, pagãos e africanos, largam ente utilizadas por outras categorias sociais, além dos negros escravos e forros, e tam bém bastan te populares. E ra com um em Portugal, com o já foi dito, o uso das bolsas p o r brancos, representando um outro nível de circularidade p ara além do g ru p o dos negros. A preocupação dos inquisidores em detectar onde esses réus ouviram falar pela prim eira vez em m andingas era explícita, de m onstrando um evidente conhecim ento da relação dessa p rática com o Brasil e atrib u in d o à colónia a origem desse rito.56 Pode ser que acertassem, e, nesse caso, a colónia estaria a recriar na diáspora as tradições e os ritos africanos originais, exportando-os depois para o Reino. M as pode ser que estivessem enganados, atribuindo ao B rasil ritos procedentes d iretam ente da Á frica, quando não recriados no pró p rio Reino. N a realidade, im p o rta m enos saber em que espaço do Im pério colonial português tais práticas foram criadas do que cap tar essa circularidade de fragm entos religiosos entre as regiões articuladas pelo colonialismo português, sugerindo 56
Concepções acerca das bolsas de mandinga e cartas que se colocavam dentro delas circulavam, portanto, no sistema colonial português setecentista; sua paternidade, apesar disto, era sempre atribuída à colónia brasileira.” SOUZA, L. de M., op. cit., p.219. Esta autora narrou, com riqueza de detalhes, vários casos relativos ao Brasil.
algo com o um a circularidade horizontal de culturas de que fala G inzburg. D e qualquer modo, a insistência do Santo Ofício na localização do B rasil com o foco irrad iad o r das m andingas e a existência de um a com plexa rede de m andingueiros envolvendo Á frica, Portugal e sobretudo Brasil são evidências notáveis que convém considerar. O uso das m andingas pelos brancos em Portugal sugere tam bém um outro aspecto dessa circularidade, em se tratando do fato de que o uso das bolsas era um a prática tipicam ente vinculada aos africanos e seus descendentes, com o no caso dos calundus. E m vários processos estão hom ens brancos pedindo bolsas aos negros, com prando-as deles e até vendendo-as aos próprios. Jacques Viegas, o escravo que nos legou, sem querer, um a de suas bolsas, tom ada pelos Inquisidores em 1704 e esquecida em meio ao seu processo, recebeu em sua casa vários brancos interessados nas m andingas. A um deles deu um a, contendo “um bocadinho de lã com um vintém de alm íscar, tudo cozido num paninho roxo”, em tro ca de um a faca e um a garrafa de vinho.57 Por fim, gostaríamos de com entar o caso de Francisco Pedroso (1730), em cujo processo estão anexadas várias orações que foram com ercializadas à guisa de m andingas (ver nas imagens anexas)/8 E ste caso é notável para se perceber, talvez, um a interessante - e distante - analogia em relação aos ritos um bandistas no Brasil. Se com pararm os os desenhos da cruz e do coração, transpassados por flechas, veremos grandes sem elhanças com os cham ados “pontos riscados” da m acum ba carioca, que representam , de acordo com essas crenças, os espíritos e entidades nas suas características e origens (ver figuras 6 a ll).59 Francisco Pedroso, natural da Costa 57 58 59
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 2.355. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.774. Esses desenhos também foram reproduzidos por SOUZA, L. de M., em op. cit., p.370. BASTIDE, R., A s religiões africanas no Brasil..., p.287; 562-565.
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da M ina, foi aos 13 anos p ara o R io de Janeiro, e seu senhor era um ex-sargento-mor nas M inas Gerais. Não sabemos com o chegou a Lisboa, mas o fato é que provavelm ente trouxe esses desenhos do Brasil, com ercializando e circulando essas orações pelo Reino como m andingas, onde apareciam elementos indígenas. Fica, por tanto, o mero registro, ao m odo do “m étodo indiciário” de Cario Ginzburg, dessas possíveis correlações que, por si só, seriam tema de outro trabalho. * *
*
Sob as influências do tráfico africano e atlântico, é notável, portanto, a dinâmica das relações que vão se estabelecer entre a religiosidade e a cultura africana tan to em Portugal com o no Novo M undo. O exemplo das bolsas de m andinga em Portugal dem onstrou que afri canos de diferentes grupos - no caso oriundos da Costa da M ina, de Angola e do Congo principalm ente - acabaram por co m p artilh ar no Reino de práticas que não eram típicas de suas com unidades originárias. As mandingas tam bém representaram um a das várias m aneiras através das quais os african o s bu scaram reco n stru ir sua identidade, criar laços sociais e se reorganizar fora da Á frica, incorporando também, aos resquícios de seu passado cu ltu ral e religioso, elementos da cultura européia.60 Institucionalm ente o
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“Neste ponto concordamos com os antropólogos Richard Price e Sidney Mintz quando sugerem que não obstante a inegável presença da matriz cultural africana - que dá um tom de africanidade a todas as culturas negras do Novo Mundo - as culturas escravas e afro-americanas se constituíram a partir da relação dinâmica entre africanos com experiências culturais diversas e os senhores portadores da cultura européia. Com o tempo esta última foi igualmente transformada. As ‘sobrevivências’ que porventura ficaram (...) nunca foram integrais, e resultaram de escolhas específicas dos africanos, escolhas orientadas por critérios de importância, funcionalidade e eficácia na organização da vida comunitária sob a escravidão”, REIS, J., Rebelião escrava no Brasil..., p.189.
fizeram a p a rtir das várias irm andades e confrarias que criaram , tanto em P ortugal com o no Brasil, e inform alm ente, por meio de práticas tid as por m ágicas e dem oníacas pela Igreja. F eiticeiros reinóis e coloniais in teg raram um só conjunto de práticas que apontaram p ara um a “continuidade” em face da religiosidade e da cultura popular no Brasil colonial e em Portugal no A ntigo Regime. Os casos dos feiticeiros portugueses estudados por Francisco Bethencourt e Pedro Paiva não se diferenciavam em praticam ente nada dos processos analisados por L aura de Mello e Souza, fossem aqueles de magia amorosa, de curandeirismo e outros tantos, em bora a feitiçaria sabática em am bos os casos não tenha se estru tu rad o com o no caso das outras regiões européias.61 E videntem ente que, por integrarem um a estru tu ra socioeconômica e um meio ambiente diverso, tinham um a especificidade de ações, m as em term os do que se fa zia e de com o se fa zia não havia grandes diferenças do que o co rria no Brasil e em Portugal. P articularm ente no caso dos negros e m ulatos, observam os na pesquisa dos processos e nas denúncias inquisitoriais que as práticas m ágicas africanas existentes em Portugal não diferiram em quase nada daquelas da colónia, salvo pela presença do indí gena, que com pôs o quadro de sincretism o colonial. O s africanos, presentes tanto em Portugal quanto no Brasil, tentaram reconstruir uma identidade baseada em suas devoções e ritos, im iscuídos às influências das crenças européias. Fosse sob os auspícios da Igreja, com as irm andades, fosse tran sg red in d o a ortodoxia religiosa, com a feitiçaria, e através desta, defendendo-se dos rigores e da violência do escravism o.62 61 62
SOUZA, L. de M., Inferno A tlântico. Demonologia e colonização. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.53. O uso, por exemplo, de raspas das solas dos sapatos dos senhores em bolsas de mandingas ou isoladamente para acalmarem-lhe a ira foi comum em Portugal. Laura de Mello e Souza, no entanto, vê esse sortilégio com uma
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C A P IT U L O V
N ão foi apenas a feitiçaria colonial que se associou às prá ticas m ágicas africanas. E m P ortugal, a presença do negro fez com que essa relação se estabelecesse nitidam ente, evidentemente com algum as nuances. Em bora existissem no Reino, os calundus eram bem m ais visíveis no Brasil. A liás, todas as m anifestações dos negros aqui eram m ais visíveis: em prim eiro lugar porque o Brasil era u m a colónia, p o rtan to sujeita a vigilância constante; depois p orque era um a sociedade escravista, com u m a quanti dade de negros in fin itam en te su p erio r a Portugal. E ra, pois, a natureza do escravism o que diferenciava a colónia da m etrópole em se tratan d o das supostas feitiçarias praticadas pelos negros habitantes no R eino ou no Brasil.
LUSITÂNIA BRUXA
Com a prisão desta negra se despertou em mim o zelo que por não ter efeito nas denunciações antigas já estava como desesperado do remédio de tantos danos que causám tantas maléficas e feiticeiras e adivinhadeiras e sortilegas, quantas há em esta miserável província do Minho. Frei Boaventura do Espírito Santo, Comissário do Santo Ofício.
TEM PO S M OD ERN O S, PALCO DE SATÃ Inauguravam -se os cham ados Tempos M odernos num contexto de profunda vivência da religiosidade, tem po em que a vida e o universo m ental dos hom ens, em seus m últiplos aspectos, esta vam totalm ente em bebidos pelo cristianism o. Lucien Febvre, em estudo sobre o século XVI, m ostrou que não havia espaço para descrença, estando Deus presente desde o nascim ento até a m orte dos indivíduos.1 Se o C riador era onipresente, a figura do D iabo
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“conotação nova: prevenir contra maus-tratos inerentes ao sistema escravista. Mais uma vez, a colónia refundia práticas mágicas e lhes conferia sentido especificamente colonial”. Idem, p.207.
“Atualmente se escolhe ser cristão ou não. No século XVI não havia escolha. Era-se cristão de fato. Podia-se divagar em pensamento longe de Cristo: jogos de imaginação, sem suporte vivo de realidade. Todavia, não se podia sequer dispensar a prática. Mesmo não querendo, mesmo não entendendo claramente, todos, desde o nascimento, se encontravam imersos num banho de cristianismo.” FEBVRE, L., Le problème de 1’incroyance au XVIe. siecle.
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190 completava a sua existência, partilhando-se esta convivência in dissociável na m entalidade da época, fossem papas, reis, teólogos, filósofos, burgueses, camponeses, homens com uns. N o quotidiano da existência humana, Deus e o Diabo atuavam deixando evidente sua influência e sua intervenção nos fenôm enos m ais variados, de ordem natural ou pessoal. A E uropa do Renascim ento estava convicta da ação de de mónios e bruxas, deixando entrever um universo onde os lim ites entre o real e o im aginário, o possível e o impossível eram tênues. Abarcando todas as categorias socioculturais, a mentalidade mágica fazia supor a crença em indivíduos com poderes de curar, fazer mal, m atar, induzir ao am or, d estru ir colheitas. H om ens com o o francês Jean Bodin, por exemplo, teórico do E stado absolutista e da econom ia política, era tam bém , p o r o u tro lado, créd u lo absoluto das artes das b ru x as, a firm an d o que “d u v id a r que o D iabo tran sp o rta os feiticeiros de um lado p ara o outro, equivale a ridicularizar a história evangélica”.2 Demonólogo, au to r de vo lumoso trabalho sobre o tem a, era, ao m esm o tem po, integrante do pensam ento científico da época e exemplo de um a ap aren te contradição bem percebida por Trevor-Roper, que assinalou essa am biguidade como inerente ao século XVI.3 A Baixa Idade Média foi um momento de grande transformação espiritual no Ocidente e, particu larm en te em relação à feitiçaria, associou as práticas mágicas pagãs, de tempos im emoriais, à ação demoníaca. A influência de São Tomás de A quino encerra de vez
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La réligion de Rabelais. Paris: Albin Michel, 1962, p.362. Apud MOTT, L., “Etnodemonologia: aspectos da vida sexual do Diabo no mundo ibero-americano (séculos XVI ao XVIII)”. In: MOTT, L., Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: ícone, 1988, p.139. ROPER, H.R.T., “A obsessão das bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII”. In: Religião, Reforma e transform ação social. Lisboa: Presença/Martins Fontes, s/d, p.137.
a dúvida acerca da veracidade e autenticidade dos atos mágicos: “A fé católica afirm a que os dem ónios existem, que são capazes de fazer m al”.4 N ascia, pois, a dem onologia, “as ciências o diabo”, que pouco a pouco ganhava força, originando numerosos tratados m arcan tes n a co n figuração de u m a d o u trin a teológica que ao mesmo tem po foi objeto de grandes reflexões, grandes tem ores e inquietações. Sua assim ilação à heresia se consagrou pela Bula Super illius specula, de 1326, que possibilitou à Inquisição realizar as perseguições a p a rtir daí.5 Jean D elum eau, em sua obra sobre o m edo no O cidente, ob serva que o Hum anism o, ao resgatar obras da A ntiguidade clássica, repletas de descrições de feitiços, ritos mágicos e feiticeiras, fez por estim ular “a obsessão e a credibilidade do m undo dem oníaco ao nível da cu ltu ra dirigente”.6 O auge do m o vim ento de v io len ta rep ressão à b ru x a ria européia de um m odo geral ocorreu entre 1560 e 1630, variando os surtos persecutórios ao longo desse período em função das diferentes regiões. E nquanto na Inglaterra e Escócia se deu em inícios do século XVII, na F rança, H olanda, Suíça e A lem anha, por exemplo, a onda repressiva m ais violenta datou de fins do século XVI, destacando-se estas duas últim as, onde os índices de sentenciados foram imensos. N a A lem anha, entre 1561 e 1670, 3.229 pessoas foram condenadas p o r b ruxaria, ao passo que na França, no m esm o período, foram acusados 1.272 e na Inglaterra, em Essex, por exemplo, foram apenas 291 processados, dos quais 74 efetivam ente executados.7
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Apud BAROJA, J.C., A s bruxas e seu mundo. Lisboa: Vega, s/d, p.115. DELUMEAU, J., História do medo no Ocidente. 1300-1800: Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.352. Idem, p.387. As estatísticas das perseguições à feitiçaria na Europa de um modo geral podem ser vistas em DELUMEAU, J., op. cit., p.354-356; MUCHEMBLED,
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A intensa perseguição à b ru x aria na E u ro p a recebeu um grande im pulso em m eados do século XV, com a bula S u m m is disederantes, de 1448, cham ada, inclusive, de “o canto de guerra do infern o ”. O s inquisidores italianos, p o r exemplo, eram pres sionados pelo papado a endurecer cada vez m ais as punições aos feiticeiros, que tam bém eram alvo constante de repressões pelos concílios locais, inclusive nas regiões p ro testan tes d a E uropa. Jean D elum eau percebe o processo de caça às bruxas com o um estím ulo à consolidação do absolutismo, que tam bém p o r sua vez irá reforçar os m ovim entos persecutórios.8
demónios. O utros contem porâneos, com o Johanes Nider, autor de F orm icarium , de 1475, e U. M onitor, de D e lamiis et phitonicis m ulieribus tractatus, de 1489, tam bém foram im portantes, precedendo significativos autores dos séculos XVI e XVII: Jean Bodin (D e la d ém o n o m a n ie des sorciers, 1580); Pierre de Lancre (Tableau de Vinconstance des sorciers, 1602); H. Boguet (Discours exécrable des sorciers, 1602); Perkins (A Discourse o f the D am ned A rt o f Wichcraft, 1608); o m onarca Jaim e VI (Daemonologie, 1597); M artinho Del R io (D isquisitionum m agicarum , 1599/1600); M. de Castanega (Tratado m uy sutil y bien fu n d a d o de las supersticiones
Todo esse m ovim ento foi acom panhado de um a vasta quan tidade de publicações sobre o tem a, com devido destaque p ara o norte e o centro da E uropa.9 Só na França, na segunda m etade do século XVI, foram escritos m ais de trin ta tratad o s por teólogos e ju ristas.10*
y hechizerias, 1529), dentre outros.11 O s surtos persecutórios variaram no tem po e no espaço. Na F rança, os núm eros foram assustadores: entre 1576 e 1606, três mil execuções (quatrocentas só em 1577); nos anos de 1616 e 1619, foi a vez da C atalunha; n a década de 50, a Inglaterra, durante o governo Cromwell; no fim do século, os escandinavos. Já em regiões com o Portugal, Itália e E spanha as perseguições foram m ais tênues, destacando-se esta últim a, no entanto, por surtos
M arco significativo desse processo persecutório foi a publi cação, em 1486, do fam oso M alleus M aleficarum , de autoria dos dom inicanos H enri K ram er e Jacob Sprenger, cuja repercussão e difusão pela E uropa foi significativa ao longo dos séculos XVI e XVII. E ste tratad o enfatizou a ação real das bruxas, vendo-as como integrantes de um a seita, arrolou suas atribuições, instruiu a como combatê-las, como processá-las por heresia e hierarquizou
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R. (Org.), Magie e sorcellerie en Europe du Moyen Age à nos jours. Paris: Armand Collin, 1994; Idem, Le roi et la sorcière. L’Europe des buchers - XVXVIII siècle. Paris: Desclée, 1993. DELUMEAU, J., op. cit., p.356. “E formou-se rapidamente um corpo de doutrina teológica onde a velha bruxa já não aparece como um ser possuído por fantasias e ilusões perversas, ou como a adepta dos velhos cultos idolátricos, mas simplesmente como a serva do Demónio, um Demónio fisicamente semelhante ao das assembleias mais ou menos lendárias, como a de Teófilo, ou mais reais como a de Stendinger.” BA ROJA, J.C., op. cit., p.116. MANDROU, R., M agistrados e feiticeiros na França do século XVII. São Paulo: Perspectiva, 1979.
m ais incisivos contra o País Basco.12 O enfrentamento das feiticeiras seguidoras de Satã foi também um a causa dos E stados absolutistas. Os juízes civis aliaram -se à Igreja na luta contra a bruxaria, a exemplo de Felipe II, que em 1592 im precou contra as “desgraças e abom inações deste m iserá vel tem po”, cheio de “m alefícios, feitiçarias, im posturas, ilusões, prestígios e im piedades”, ordenando perseguições implacáveis p ara o com bate ao inim igo, “que se serve dos homens com o dos cavalos de carga, e após tê-los feito suar de fadiga neste mundo,
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BAROJA, J.C., op. cit., p.159-196. DELUMEAU, J., op. cit., p.354-355.
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não tem nada para refrescá-los no outro senão um tanque de fogo e de enxofre que não se ex tin g u irá jam ais”.13 ♦♦♦ A natureza das práticas m ágicas, cujas pro tag o n istas foram as bruxas da É poca M oderna, têm origem b astan te controvertida, e são consideradas por alguns historiadores com o reais, verídicas, e por outros, meras alucinações, como veremos adiante. Tais práticas se com punham de um conjunto de elementos, presentes em m aior ou menor intensidade nos casos de feitiçaria européia, co n stituin do assim o saber demonológico: o sabbat, o p acto dem oníaco, o vôo noturno, as m etam orfoses em anim ais, as orgias sexuais. As interpretações mais recentes da historiografia m ostram -nas não como m eras criações dos demonólogos, dos teólogos, dos juízes seculares e inquisitoriais, “pesadelo de um a elite apavorada”, mas como fenômenos complexos, m ultifacetados, envolvendo tam bém elementos específicos da cultura e religiosidade popular.14 Foi em meados do século XIV, entre 1330 e 1340, que se regis trou o prim eiro caso de um sabbat na Inquisição de C arcassone e Toulouse, difundindo-se progressivamente, a p a rtir daí, em várias regiões da E uropa.15 Fam osos demonólogos, com o D e L ancre ou M artin Del Rio, descreveram-com riqueza de detalhes os ritu ais sabáticos, ressaltando seu caráter abom inável e herético. O im aginário sobre o ritu al dos sabbats era complexo: reuni ões noturnas em lugares erm os, com o encruzilhadas, m ontanhas, vales, beiradas de rios e clareiras desertas. H om ens e, sobretudo, m ulheres, depois de un tarem -se com unguentos variados, m al
cheirosos, alguns feitos de “sementes de sapo”,16postos nas axilas ou nos pulsos, saíam de suas casas voando em vassouras p ara o esperado encontro, p o r vezes m etam orfoseados em an im ais ou então nus, integralm ente ou da cin tu ra p a ra cima. Já reunidos, em meio a pequenos diabos auxiliares, lançavam -se a toda sorte de folguedos, cantando, dançando, refestelando-se com p rato s ex trav ag antes, sacrifício s hum anos e cald eirad as de crianças. A doravam um grande D iabo, em geral sentado num trono e visto sob form as variáveis: hum ana, meio h um ana, meio anim al, ou como um enorm e bode preto. N o auge dos festins, beijavam -lhe a cauda e o ânus, reverenciavam -no e participavam de prom íscuas orgias. A s relações sexuais com o D em ónio eram descritas com o dolorosas, dado o aspecto frio, áspero, p o r vezes retorcido de seu membro viril, e de esperm a gélido. A o nascer do sol, regressavam às suas casas, prontos para o brar m alefícios, destruindo colhei tas e m atan d o crianças. Bebiam -lhes o sangue, sufocavam -nas, enforcavam -nas e, às vezes, com um simples olhar, faziam seus corpos sangrar.17 A s b ru x as ganhavam m aior liberdade de ação q u an d o se transm utavam em anim ais ou m antinham outros junto a elas. Tidos por espíritos fam iliares, nascidos de suas cópulas com o D iabo, cães, gatos, corujas, ratos e insetos serviam -nas e alim entavam se de seu sangue ou nelas m am avam , com o foram os sapos de feiticeiras penitenciadas no País Basco espanhol. O im aginário da dem onologia criou filhos do D iabo, gerados pelas b ru x as e
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Idem, p.288. SOUZA, L. de M., Inferno atlântico. Demonologia e colonização. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.160. BAROJA, J.C., op. cit., p.121.
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ANTT, Inquisição de Évora, processo 9.221. Apud PAIVA, J. P., Bruxaria e superstição num pais sem “caça às bruxas”. 1600/1774. Lisboa: Notícias, 1998, p.146. BAROJA, J.C., op. cit., p.115-132; Ver HENNINGSEN, G., El abogado de las brujas. Brujeria vasca e Inquisición espanola. Madrid: Alianza Universidad, 1981, p.73-92, e também ARAÚJO, M. B., Superstições populares portuguesas. Lisboa: Colibri, 1998, p.117.
196 de aparência aterradora. A s cópulas dem oníacas da portuguesa C atarin a D ias, que d u raram de 1733 a 1759, p o r exemplo, deram m uitos frutos: “crianças com meio co rp o m onstro e meio corpo hum ano, os quais foram p ara o inferno logo que as p arira, levados lá pelo D em ónio seu p a i”.18 A idéia de p acto dem oníaco foi cru cial na co n stru çã o da feitiçaria com o heresia. E sp ecificid ad e dos Tem pos M odernos, abriu as p o rtas da punição à justiça inquisitorial, obcecada em co n statar o co ntrato diabólico, fonte últim a dos poderes adqui ridos pelos feiticeiros. O s term os desse contrato eram claros: em regra, à noite, o D iabo seduzia o indivíduo com poderes sobrenaturais, riquezas, habilidades curativas ou dotes divinatórios em troca de sua subser viência, de sua alm a, expressando-se o p acto p o r alguns símbolos ' exigidos pelo D em ónio, com o sangue, p artes do corpo, dedos e unhas, e outros ofertados ao futuro servo, como anéis. Ele tam bém era visto sob a form a de vários anim ais, m as principalm ente de um bode, e tam bém de hom em ou m ulher, com algum d etalhe bizarro: caudas, pés de bichos, rosto disform e, olhos de fogo.19 O pânico desenfreado vivido pelas autoridades civis e eclesi ásticas diante de Satã e seus seguidores, no auge das perseguições, era evidente, alardeando-se num a profusão de discursos de toda natureza, em várias regiões. Para Jean Bodin, o ímpeto blasfemador do hom em foi punido com a profusão de m ágicos e bruxas: E do mesmo modo que Deus envia as pestes, guerras e fomes por intermédio dos espíritos malignos, assim faz ele com os feiticeiros, e principalmente quando o nome de Deus é blasfemado, como é agora por toda parte, e com tal impunidade e licença . 20 18 19 20
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 1.194. Apud MOTT, L., op. cit., p.137. PAIVA, J.P., op. cit., p.153-154. BODIN, J, La demonomanie des sorcières. Paris, 1580, p.l22a. Apud DELUMEAU,
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PORTUGAL: SA TÃ D O M ESTIC A D O
O caso português foi bastante atípico no que concerne à história da feitiçaria européia, ta n to em term os da intensidade das m a nifestações e da repressão, com o tam bém em relação à produção lite rá ria sobre o tem a. O problem a da b ru x a ria no Reino não m ereceu, com o no resto da E uropa, um a vastidão de tratados e textos que a discutissem . Enquanto o século XVI não registrou um a só obra, o XVII se lim itou a duas: o M em orial e antídoto contra os pós venenosos que o D em ónio inventou (163Í), de M anuel de Lacerda, e o De incantationibus seu ensalm is (1620), de M anuel Vale de Moura. O século XVIII foi m ais rico, produzindo alguns textos, ainda que de circulação bem lim itada.21 A ausência de um a tradição literá ria dedicada exclusivam ente ao assunto não significou, contudo, que a elite letrada portuguesa não tenha deixado registradas suas reflexões, mesm o que em fontes dispersas. A s práticas m ágicas estiveram na jurisdição de três instân cias repressoras, cujos códices legais abordaram a questão da feitiçaria: os R egim entos inquisitoriais, as Ordenações do Reino e as C onstituições diocesanas. Todos eles foram alvo de comen tário s específicos, nascidos de discussões de casos em particular, considerando-os tam bém com o núcleos de expressão do pensa m ento letrado. O s tratados de teologia m oral continham várias referências à b ru x aria, um a vez que sua prática atentava contra o prim eiro dos M andam entos divinos. O utras fontes im portantes foram os m anuais de confessores, que instruíam os sacerdotes nas devidas perguntas atinentes à m agia ilícita, dentre outros delitos, os catecismos e m anuais de párocos, com reafirmações de doutrina,
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J., op. cit., p.389. PAIVA, J. P., op. cit., p.19.
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que por vezes continham referências a condutas supersticiosas, e os tratados de m edicina, onde m édicos descreviam com detalhes os ritu ais sabáticos, dem onstrando conhecim entos precisos de trabalhos de grandes demonólogos, com o D e L ancre, Sprenger ou Del Rio.22 Nessa docum entação, os com entários e sugestões de cura de doenças supostam ente provocadas p o r ações m ágicas apareciam em profusão. F inalm ente, destacam -se os processos do Santo Ofício, m aterial extrem am ente rico p a ra se desvendar a m entalidade inquisitorial em relação à b ru x a ria , bem com o algum as das práticas a ela relacionadas.23 O im aginário em relação aos sabbats e à dem onologia em geral era, portanto, bem conhecido das elites letradas p o rtu g u e sas, mas a presença de seus elementos integrados não foi comum. O vôo noturno, as transform ações em anim ais, a adoração ao demónio, as orgias sexuais, em pouquíssim os casos apareceram concom itantem ente articulados. Com o bem observou Francisco Bethencourt em seu trabalho sobre a feitiçaria portuguesa no século XVI, os aspectos componentes do complexo sabático aparecem de m aneira avulsa, sem necessariam ente se com binarem .24 O estudo de Pedro Paiva p ara os séculos XVII e XVIII tam bém m ostrou o caráter esporádico das idas às reuniões diabólicas, correspondente a um total de apenas 6% dos processos de b ru x aria, insinuando que essa prática, no seu conjunto, talvez fosse estran h a em algu m as regiões européias.25 A o contrário do resto da E uropa, onde em regra as reuniões
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Idem, p.37. Idem, p.20-21. BETHENCOURT, E, O imaginário da magia. Feiticeiras, saludadores e ni gromantes no século XVI. Lisboa: Centro de História e Cultura Portuguesa, 1987. O reduzido número de casos de práticas sabáticas foi constatado também para a Espanha. Ver PAIVA, J.P., op. cit., p.154.
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de bruxas eram designadas com o nom e de sabbats, em Portugal tais encontros apareciam na docum entação com o “ajuntam entos”, em bora se encontrassem tam bém os term os “assem bléia”, “conventículos” e “sinagoga”. M esm o presentes em pequeno núm ero de processos, os casos de “a ju n tam e n to s” n o tu rn o s ap arecem frag m en tário s, sendo poucos aqueles que co n tin h am u m a des crição com pleta do evento. U m caso do século XVI, n arrad o por F rancisco B ethencourt, m erece destaque pela ra ra presença da m aioria dos traços dos sabbats, podendo ser objeto de reflexão p ara vislum brarm os as especificidades das crenças portuguesas relativas à demonologia. A os 15 anos, a órfã M arg arid a L ourenço foi servir a um a m ulher em Sarzedas, cujas irm ãs eram assíduas frequentadoras desses encontros. Instigaram -na, um dia, a acom panhá-las e, para tanto, se untaram e transform aram -se todas em pássaros negros.26 Saindo “por qualquer buraco da casa”, foram para Vai de Cavalinhos, região p riv ileg iad a em L isboa p a ra os encontros e referência constante nos processos, m esm o aqueles que m encionam apenas pactos demoníacos. Lá, adoraram Belzebu, sentado majestosamente num a cadeira, tendo nas mãos um a barra de ferro, e ofertaram -lhe dinheiro. Prom eteram a um diabo menor, cham ado M azagão, que sem pre voltariam , deixando que ele lhes tirasse sangue dos braços e registrasse seus nomes num livro. Já transm utadas em mulheres, entregaram -se à festa e ao som de pandeiros, comendo, bebendo e dançando com m ais de seiscentas mulheres e outros tantos diabos, transfigurados em homens negros, de rostos horrorosos, trajados de frades, com capas feitas de pêlos de cabra. Por fim , M azagão dorm iu com M argarida, “por diante e p o r detrás, quantas vezes quis”. E ntregando a todas outro unguento, transform aram -se de novo em pássaros para retornarem a seus lares. O dia do retorno 26
PAIVA, J. P., op. cit., p.146.
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200 era periodicam ente com binado em encruzilhadas, onde os dem ó nios lhes diziam dia e hora de voltar.27 E m Portugal, outros elem entos do complexo sabático foram objeto m esm o de descrença, com o o vôo n o tu rn o e a-m etam orfo se das bruxas em anim ais, aparecendo pouco n a docum entação. M anuel d e L acerd a, o já c ita d o a u to r dos «... p ó s ven en o so s distribuídos p e lo dem ónio...”, chegou a a firm a r que o D iabo é que iludia as m ulheres, fazendo-as p en sar que se m oviam de um lugar p a ra o outro.28 A s transform ações em anim ais não apareceram com frequên cia nos processos inquisitoriais portugueses, sendo m ais com um as m ulheres aparecerem nuas da cin tu ra p ara cim a levando nas m ãos u m a candeia. M as os letrados e eclesiásticos a trib u íra m essas m etam orfoses a ilusões dem oníacas. Segundo as pesquisas de Pedro Paiva, foram percebidas um a única vez com o verídica pelos inquisidores num processo em Évora, no ano de 1632, quando um a tal Violante Nunes entrou em casa de um a vizinha com quem havia brigado em form a de g alin h a choca, “por ordem e a rte do D em ónio”, arran h an d o -lh e o rosto e o braço. S o b re os u n g u e n to s, re sp o n sá v e is p e la s m e ta m o rfo se s, Francisco B ethencourt com enta acerca do teor das ervas e plantas que os com punham , com o a m andrágora, p o r exemplo, de caráter alucinógeno, podendo c ria r visões e delírios.29 N o século XVII, houve tam b ém u m dos p o u co s casos de d escrição do com plexo sab ático em P o rtu g al assem elhado aos casos europeus, pelo m enos na docum entação inquisitorial. Foi no processo de L eonor F ern an d es, que, in flu en ciad a p o r um a am iga, passou a frequentar encontros noturnos ju n to com outras 27 28 29
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.642. Apud BETHENCOURT F op cit., p. 165-166. ’ ” PAIVA, J. P., op. cit., p.42. BETHENCOURT, F., op. cit., p.169.
m ulheres. U n tav am -se com unguentos, transform avam -se em an im ais e saíam p o rta afora, na garupa do rabo comprido de um dem ónio em form a de hom em negro, “o qual as levava pelos ares com grande velocidade” até um descam pado, onde as esperavam m ais m ulheres e outros demónios. E ram hom ens de “rostos feios e denegridos, m em bros grossos e todos com rabos com pridos , e depois de dançarem , arrenegarem da Fé cristã, louvarem o D iabo e beijarem -lhe o ânus, tin h am relações sexuais com ele. O ceticism o dos letrados portugueses diante desses aspectos do sabbat se vinculava a um a crença na lim itação dos poderes diabólicos ancorada no pensam ento de Santo Agostinho e prm cip alm ente de São Tom ás de A quino, cuja influência na form açao intelectual das elites portuguesas foi enfatizada no trabalho de P edro Paiva. A d o u trin a tom ista em relação à feitiçaria foi bem m oderada se com parada aos grandes tratadistas e demonólogos dos séculos XV a XVII. Lim itava-se a discorrer sobre o “m au olhado e a capacidade do D iabo de interferir no desempenho sexual dos homens, não m encionando pactos, malefícios ou ritos de veneraçao, e enfatizando a suprem acia de Deus acim a de tudo. Assim, como a criação divina era algo inalterável, não seria possível que o Diabo transform asse hom ens em anim ais, p o r exemplo.31 A cre d ita m o s, n o e n tan to , q ue a m oderação dos letrados po rtu g ueses b asead a nessa influência tom ística foi relativa, se pensarm os n a im p o rtân cia que o pacto dem oníaco adquiriu na configuração da feitiçaria com o heresia. O discurso inquisitorial foi implacável em rastrear malefícios inspirados por Satã, embora p o r vezes fosse tam bém incrédulo em alguns aspectos relativos ao com plexo sabático europeu. A penas um exemplo: em 1692, uma
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MOTT, L., Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: ícone, 1988, p.132-133; Ver também SOUZA, L. de M., op. cit., p.168. PAIVA, J.P., op. cit., p.44; p.336-340.
202 m oradora de Lisboa confessou ter p articip ad o de “aju n tam en to s” noturnos, suscitando dúvidas nos inquisidores acerca da veracidade das inform ações. A sentença final foi inequívoca: E vista a confissão da ré na Mesa do Santo Ofício com a circunspecção que a matéria pedia, se achou nela tais circunstâncias, encontros e enverossimilidades que pareceu se devia prosseguir na mesma com madura atenção, pois tinha a ré afirmado que com verdadeira transformação se tornava em rato, sendo certo que o diabo não tem poder para mudar as formas, mas somente as espécies em que representa a vista o que na realidade não há. 32
Foi novam ente Manuel de Lacerda, autor do M em orial e antídoto contra os p ó s venenosos que o D em ó n io inventou (1631), a ver Satanás lim itado em suas ações. Escreveu este au to r que a devas tação propiciada por uma peste que assolou v árias cidades do norte da Itália nos anos 20 do século XVII era culpa do D iabo. O “Príncipe das Trevas” teria distrib u íd o pós venenosos às bruxas da região que, fiéis a ele, o b raram p ara que a população inalasse os fam igerados pós, obtidos num dos vários encontros noturnos onde adoravam seu Senhor. N o auge do espetáculo, em figura de bode, o D iabo subitam ente se consum ia em fogo e, d as cinzas juntas, com m ais outras ta n tas peçonhas, faziam -se os tais pós, prém io para que suas acolitas dessem prosseguim ento aos seus instintos malévolos, provocando doenças, desgraças, calam idades, terrores e m ortes. O rum oroso caso chegou até Portugal, a ponto das autoridades lisboetas designarem funcionários p ara espreitar no porto possíveis suspeitas que pudessem portá-los. Professor de Coimbra e deputado da Inquisição, o autor ex pressou fielm ente as crenças de seu tem po, com o os sabbats e o pacto demoníaco, embora com ponderações im portantes. Enfatizou 32
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 3.959.
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que a perm issão d iv in a era fundam ental p a ra as artes diabólicas e ain d a que a m o rtan d ad e atrib u íd a ao D em ónio por interm édio das bruxas foi, n a verdade, resultado da natureza venenosa dos próprios pós, ao co n trário de contem porâneos com o Del Rio, que atrib u íam poderes ilim itados ao D iabo.33 V isto tra d ic io n a lm e n te com o g ra n d e sábio, o D iab o , em Portugal, era tido pelos teólogos por m alicioso, tentador, engana dor de espíritos fracos, em bora cerceado pela autoridade divina. E n q u an to D eus governava os céus, o D em ónio tin h a jurisdição sobre a Terra, n a visão do frei B artolom eu dos M ártires, que p u blicou em 1543 o seu C athecism o ou doutrina christã e praticas espirituais, onde via o gênero hum ano “vivendo segundo as leis d a carne, do m undo e do dem ónio, que são, com o diz São João, cobiça de deleites, cobiça de honras, cobiça de riqueza: os quais n u n ca en trarão no reino de D eus”.34 O grau dos poderes do anjo decaído foi, pois, objeto de vasta reflexão, havendo am plo debate teológico no que tange à faculdade efetiva do D iabo de influenciar diretam ente e m udar o curso da v id a do hom em , ou apenas o dom de iludir, seduzir e enganar. E nco n tram os um exem plo interessante n a obra de G il V icente, onde é expressa a polivalência das funções e poderes de Satã: Tentador original por inveja no Auto da História de Deus; tentador eterno no A uto da Alma. Acusador formal na trilogia das barças; acusador-tentador quase moralizando no Auto da Feira; sacerdote dè deuses pagãos e crítico da humanidade no A uto da Lusitânia; responsável pelos possessos no A uto da Cananéia e mensageiro burlesco de feiticeiras e nigromantes no Auto das Fadas, Comédia
de Rubena e Exortação da Guerra.35 33 34 35
PAIVA, J.P., op. cit., p.33-34. BETHENCOURT, F., op. cit., p.147. PIMENTA, A., “O conceito de diabo na Bíblia e em Gil Vicente”. In: Ocidente,
204 O s autores portugueses não dem onstraram um sentim ento de pâ nico e terro r generalizado com o fizeram os grandes demonólogos europeus, a exemplo de D e Lancre, H opkins, Torreblanca, Boguet, Bodin ou Guillandus, m estres nas descrições de complexos rituais sabáticos e obcecados em ex tirp ar as bruxas, na crença em seus poderes e índoles pérfidas, e todas elas integrantes de um a seita m acabra e am eaçadora cujo protagonista, evidentem ente, era o p roprio Demónio. A trad ição portuguesa nesse sentido era m ais serena, expressa na carência de relatos que, de resto, ap esar da consciência dos malefícios e danos causados pelas bruxas, não eram apaixonados, m as confiantes no poder divino e na convicção da subserviência do D iabo a Deus.™ Os serm onários e inquisidores ressaltavam a im p o rtân cia da fé e dos sacram entos eclesiásticos p ara a libertação do dem ónio, expressa nas palavras de ninguém m enos do que o jesu íta A n tô n io V ieira, p a ra quem o poder da Ig reja e d e D eus era rem éd io infalível p a ra a v itó ria so b re o poder de Satã. Isso não quer dizer absolutam ente que a feitiçaria em Portugal não fosse reprim id a, tanto pelo poder secular com o pelo eclesiástico, destacan d o -se a í o T rib u n al do S anto O fício com o instância repressora significativa, ap esar das perseguições a essa heresia terem sido m uito m ais brandas no R eino do que no restan te da Europa. N o conjunto da dem onologia, a noção de p a cto diabólico individual, ao contrário dos outros elementos vistos anteriorm ente, foi de longe a que m arcou um a presença efetiva no pensam ento letrado português, eclesiástico, legal ou secular. O p acto dem oníLXIX, 1965, p.231, 240 e 241.
36
“D e igual modo não se sentem os tratadistas portugueses a exigir a con denação a morte dessas criaturas. Apesar de a pena capital estar prescrita para este tipo de delitos na legislação portuguesa, os textos sobre o assunto nunca a reclamam e a realidade do número de pessoas sentenciadas pelo fogo confirma-o.” PAIVA, J.P., op. cit., p. 55.
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aco com o fundam ento básico de todos os atos mágicos ilícitos era senso com um e m ereceu de alguns autores a diferenciação entre explícito, quando o indivíduo se dirigia ao Demónio pessoalmente, ou im plícito, quando o D iabo era invocado por palavras ou atos significativos.*37 A lógica da Inquisição portuguesa no tocante a perseguição à b ru x aria e às p ráticas m ágicas centrava-se nessa relação, sendo infindáveis os exemplos nesse sentido. N ossa pesquisa sobre os negros feiticeiros em Portugal traz vários casos, com o o da escrava D orotéia da Rosa, presa em 1754. T ran sto rnada pelas m azelas de sua condição, ela confessou que num a noite evocou desesperadam ente o Demónio pedindo que a levasse dali a qualquer custo. Subitamente, viu um vulto negro que disse ser o D iabo e pediu seu sangue p ara consagrarem um pacto. D epois de lhe fu ra r o dedo, escreveu num papel “eu te entrego a m in h a alm a”, fazendo-a renegar a fé católica e tendo com ela relações sexuais duas vezes por sem ana, durante muito tempo. Ja nos cárceres do T ribunal lisboeta, ela foi inquirida, dentre outras coisas, sobre se o D iabo lhe prom etera “bens espirituais ou tem porais”, se lhe m arcara com algum sinal ou se fizera mal a alguma pessoa por meio de feitiços. A negativa indignou os inquisidores, pois não era possível que o D iabo “deixasse de persuadi-la a que fizesse m alefícios sendo este um dos seus principais intentos por ser inim igo com um do gênero hum ano”.38 Ressalte-se aí o caráter sedutor do D iabo, que incitava a o b rar malefícios ruins, como m a tar crianças, e ainda instigava os curandeiros. Aos olhos da Igreja, suas habilidades p ara as curas, em últim a instância, deri vavam da influência e do poder de Satã, configurados no pacto estabelecido.
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Antônio da Anunciação e Gabriel Pereira de Castros são autores setecentistas que fizeram essa diferenciação. Idem, p.38. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 2.632.
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Vale lem brar que, nos processos da Inquisição p o rtu g u esa, o term o m ais corrente que aludia ao an jo decaído era “d ia b o ”, m as ap areciam tam bém S atan ás, B arrab á s, Lúcifer, B elzebu, Caifás e outros menos com uns, com o Tição, Caldeirão, R odilha, T iburro e M esseja, sugerindo tam bém um a h ierarq u ia quan d o apareciam os term os “diabo m enor” ou “m aioral do In fern o ”.39 M uitos teólogos dos séculos XVII e XVIII h ierarquizaram a corte dem oníaca em várias categorias de diabos. R aphael B luteau, no século XVIII, dizia que cada um dos sete diabos m encionados nas Sagradas E scrituras associava-se aos sete pecados capitais: Lúcifer era a soberba; Asm odeu a luxúria; Satanás a im paciência e a ira; Baelphegor a gula; Belzebu a inveja; B ahenit a preguiça e M am m ona a avareza.40 A relação co n tratu al entre os hom ens e o D em ónio, sob a forma do pacto diabólico, é projeção das próprias relações sociais inerentes à É poca M oderna. Essa sociedade era im pregnada, nas palavras de Francisco Bethencourt, de um espírito jurídico, “um a sociedade cujo tradicionalism o de costum es e dependência face à religião implica uma regulam entação geral do com portam ento social do indivíduo no m ais ínfim o p orm enor”.41
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advertências, adm oestações e condenações aos atos m ágicos, a feitiçarias, cu ran d eirism o s, tu d o realizad o p o r in term éd io de Satã. O s espaços e as circunstâncias eram variados: dentro dos confessionários; na escu ta a te n ta aos serm ões dos sacerdotes, proferidos do alto dos púlpitos das igrejas; n a visão chocante da leitura das sentenças dos condenados nos autos-de-fé inquisitoriais; nas devassas das visitas pastorais; nas salas de audiência dos trib u n ais do Santo Ofício. É novam ente a vasta pesquisa de Pedro Paiva, que nos dá um exemplo interessante de o utro espaço de divulgação dos aspectos da dem onologia - o do confessionário -, ain d a que pelo viés da docum entação inquisitorial. O caso se passou em 1749, na cidade de Aveiro, onde um a moça, instigada por seu confessor, delatou à Inquisição de C oim bra relações com o Diabo. A rrependida, disse que a pressão do cura p ara que confessasse “histórias de bruxa e de pacto” era ta n ta, que não resistiu e aquiesceu. A prendeu com o pró p rio sacerdote o que devia confessar: E sempre nas confissões lhe perguntava se era feiticeira, se sabia de bruxas, se o demónio a levava fora de casa pelos ares ou por seu pé, e se tinha trato ilícito com ele, e lhe falava, e se acaso se achava em ajuntamentos com o mesmo demónio onde se achas sem outras mais pessoas e o que faziam neles, e se dançavam e cantavam e outras mais miudezas pertencentes a esta matéria. E respondendo sempre que não, porque assim era verdade, o tal religioso lhe dizia que ela mentia e tais persuasões lhe fez, que ela, vencida como rústica, lhe respondeu que tudo quanto ele lhe perguntava tinha feito.42
LEGISLAÇÃO DAS PERSEGUIÇÕES: NAS M ALHAS DO SANTO O FÍC IO A glória dem oníaca que tanto am eaçava juízes, legisladores, ecle siásticos, inquisidores e tratadistas, ávidos p o r conter a sedução desmedida que m ovia o “P ríncipe das Trevas” a instigar hom ens e mulheres em suas artes perversas, tin h a de ser contida a todo custo. A popu lação p o rtu g u esa foi assolada p o r in fo rm açõ es, 39 40 41
PAIVA, J.P., op. cit., p.154. BLUTEAU, R., Vocabulário portuguez e latino, Lisboa: Oficina Pascoal da Silva, 1716, v. III, p. 199-200. Apud BETHENCOURT, F., op. cit., p.152. BETHENCOURT, F., op. cit., p.158.
Ao mesmo tem po em que am eaçava, o discurso dos letrados ali m entava o im aginário popular, configurando-se um ciclo vicioso 42
ANTT, Inquisição de Coimbra, Cadernos do Promotor, Livro 376.
208 de crenças que se fundiam em com plexas relações de difusão de tradições variadas. No seu H istória noturna, Cario G inzburg introduziu a noção d efo rm a çã o cultural de com prom isso, “resultado h íb rid o de um conflito entre cu ltu ra folclórica e cultura eru d ita”, ao conceber o sabbat como um fenômeno em que as crenças pagãs são recriadas a p a rtir dos elem entos in teg ran tes da dem onologia européia.43 E ste autor foi preciso na percepção de que o sabbat erg um m ito resultante de um “complexo coerente e difuso de crenças e grupo organizado de pessoas que as p raticaram ”.44 A lguns autores, no entanto, vão enfatizar a ideia do sabbat como construções mentais, im aginárias, produzidas unicam en te pelas elites. Trevor-Roper, estu d an d o a feitiçaria na In g laterra nos séculos XVII e XVIII, considerou a existência das bruxas como produto da sanha inquisi torial, associando a figura do D iabo e sua ampla difusão aos medos indefinidos da sociedade, p o stu ra tam bém seguida p o r R obert M uchembled.45 Nessa m esm a linha, N orm an C ohn atribuiu aos inquisidores, teólogos e m agistrados a construção do estereótipo d a bruxa e do sabbat, destacando o papel significativo da to rtu ra dos suspeitos com o form a de p ro d u zir as confissões.46 N o caso específico da repressão inquisitorial à feitiçaria, o m ito do sabbat encontrou pouca ressonância no im aginário dos inquisidores e da p ró p ria p o p u lação p o rtu g u esa, ao co n trário do pacto dem oníaco, firm e obsessão do Tribunal. Im p o rto u ao S anto O fício m u ito m ais a ação q u o tid ian a do D iabo, agindo
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em meio às ervas e instrum entos dos curandeiros, junto de m u lheres, soprando-lhes feitiços am orosos, adivinhando o futuro e en co n trando coisas e personificando-se em patuás de proteção. O p acto co n stru iu -se nas sessões de arguições inquisitoriais a p a rtir das crenças e práticas dos feiticeiros, resultando assim de um com plexo de trocas culturais e religiosas que acabaram por form ular a feitiçaria com o heresia, objeto, portanto, da repressão do S anto T ribunal.47 *
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GINZBURG, C., História noturna. Decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 22. Idem, p. 18-19. ROPER, H. R. T., op. cit.; MUCHEMBLED, R., “L’autre côté du miroir: mythes sataniques et réalités culturelles aux XVIe. et XVIIe siecles”. Annales, E.S.C., 40e. année, n.2, mars/avril, 1985. Ver COHN, N., Los dem onios fam iliares de Europa. Madrid: Alianza, 1983.
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Muitos negros do Reino foram apanhados pelas instâncias de poder eclesiásticas, im buídas que estáVam em defender a cristandade católica e ex tirp ar as superstições e crendices que perm aneciam vivas no conjunto da população portuguesa.48 O olhar atento do Santo O fício arrasto u vários negros escravos e forros para os cár ceres da tem ida “Casa do Rocio” onde, por vezes, muitos perdiam a sanidade m ental e até a própria vida.49 A Inquisição portuguesa 47
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“O sabá não foi criação de demonólogos, pesadelo de uma elite apavorada: a interpretação de cunho mais cultural e antropológico, voltada para a análise do mito, mostra, ao contrário, que ele se construiu a partir de trocas intensas entre universos culturais diversos e socialmente distintos.” SOUZA, L. de M., op. cit., p.161. MOTT, L., “Heréticos e negros da cor do Diabo”. In: Diário do Sul, Porto Alegre, Suplemento Especial “Abolição 100 anos”, 1988. Este autor calcula que em torno de mil negros e mestiços integraram cadernos de denúncia, limitando-se, no entanto, a duzentos ou trezentos aqueles que chegaram a ser processados. Uma das poucas descrições dos cárceres inquisitoriais nos dá ninguém menos do que o Pe. Vieira: “Nestes cárceres estão de ordinário quatro e cinco homens e às vezes mais, conforme o número de presos que há, e a cada um se lhe dá seu cântaro de água para oito dias (...) e outro mais para urina, com um serviço para as necessidades, que também aos oito dias se despejam, e sendo tantos os em que conservam aquela imundície é incrível o que neles padecem estes miseráveis, e no verão são tantos bichos que andam os cárceres cheios, e os fedores tão excessivos, que é benefício de Deus sair dali homem vivo. E bem mostram os rostos de todos quando saem dos autos, o tratamento que lá
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210 devastou vidas m etodicam ente: prisões, processos, inquirições, esperas, incertezas, temores, sentenças e condenações. T ribunal perfeitam ente inserido no ap ara to ju d iciário de seu tem po, im pede que nós, historiadores p o r ofício, direcionem os nosso olhar indignado e parcial para o núm ero de m ortos sentenciados nos apavorantes e festejados autos-de-fé, que ag lu tin aram m ilhares de pessoas no terreiro do Paço ou na Igreja de São D om ingos, em Lisboa. Os que escapavam de arder nas fogueiras m orriam social mente e arrastavam , silenciosos, m azelas físicas e em ocionais. M as deix an d o de lado os d estin o s trág ico s d essas v id as, olhemos para o que o Santo O fício nos legou, p ara um a m elhor com preensão de muitos aspectos da sociedade p o rtu g u esa, ao considerar com o heréticas determ inadas crenças, práticas e com portam entos. Já dissemos o quão ricas são as fontes inquisitoriais nesse sentido. Também já sabemos que as investidas da Inquisição se voltaram sobretudo p ara os cristãos-novos judaizantes, tendo uma ação com parativam ente branda em relação à feitiçaria, fosse de brancos ou negros. A pressão das arguições inquisitoriais fez em ergir, p o r in term édio da fala dos réus, confissões de algum as p ráticas que fornecem pistas ao historiador p ara desvendar um conjunto de crenças e procedim entos m ágicos, em bora sob o filtro do po d er das penas dos notários do Santo O fício e de práticas de to rtu ra que obrigavam o réu, p o r m edo, a confessar m esm o o que não tinha feito. Entretanto, m esm o de m odo indireto, p o r pequenos indícios, é possível, como d iria C ario G inzburg, decifrar aspectos
tiveram, pois vêm em estado que ninguém os conhece”. Apud MENDONÇA, J. L. D. e MOREIRA A.J., História dos principais actos e procedim entos da Inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1980, p.383-386. Apud SOUZA, Laura de Mello, O D iabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.327.
de um a determ inada sociedade, de u m a realidade m ais profunda, tal como fazem os médicos e detetives que, por intuição e erudição, visualizam o geral a p a rtir de sinais p articulares.50 A narrativa acusatória - neste caso, os processos e denúncias inquisitoriais que elegemos com o fonte p rin cip al do trab a lh o - vai fornecer pistas im p o rtan tes sobre o universo das crenças dos negros e, evidentem ente, o p róprio discurso do poder sobre elas.51 A feitiçaria configurou-se em Portugal com o um delito de foro m isto, sendo objeto de repressão e punição, tan to da justiça secular com o da eclesiástica - episcopal e inquisitorial -, não havendo critérios específicos que determ inassem exatam ente as atribuições de cada um a dessas instâncias, cabendo ao tribunal que efetivam ente desse início ao processo o julgam ento dos casos. Em relação particularm ente à justiça eclesiástica, a com provação de heresia dava ao S anto O fício a ju risd ição do delito, em bora fosse difícil e polêm ica a questão do que efetivam ente se confi g u raria enquanto tal.
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“Esta idéia, que constitui o ponto essencial do paradigma indiciário ou semiótico, penetrou nos mais variados âmbitos cognoscitivos, modelando profundamente as ciências humanas. Minúsculas particularidades paleográficas foram empregadas como pistas que permitiam reconstruir trocas e transformações culturais (...). A representação das roupas esvoaçantes nos pintores florentinos do século XV, os neologismos de Rabelais, a cura dos doentes de escrófula pelos reis da França e da Inglaterra são apenas alguns exemplos sobre o modo como, esporadicamente, alguns indícios mínimos eram"assumidos como elementos reveladores de fenômenos mais gerais: a visão de mundo de uma classe social, de um escritor ou de toda uma sociedade.” GINZBURG, C., M itos, em blem as e sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.I78. “Os processos criminais são instrumentos importantes para a construção do saber sobre os “crimes” que supostamente se quer extirpar. Esse saber, ao mesmo tempo construído a partir dos depoimentos e fragmentos do processo, acaba vindo a constituir a própria crença.” MAGGIE, Y., M edo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992, p.87.
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212 A ntes mesmo das ordenações régias, a feitiçaria foi objeto da legislação portuguesa. E m 1385, D. João I determ inava, em carta régia, a proibição de práticas com o adivinhações, encantam entos, “lançar sortes”, evocar o D iabo, dentre outras, e em 1403, um a nova lei foi editada nesse sentido.52 N as ordenações p o rtu g u e sa s, p o u co a p o u co a feitiçaria foi ganhando contornos m ais específicos no que tange a descri ções m ais detalhadas das práticas e penas a elas referidas. Nas O rdenações A fonsinas, de 1446, a feitiçaria já v in h a associada ao pacto diabólico, punível com a m orte a todos que porventura provocassem danos físicos e aos bens de u m a pessoa, além de penas m ais brandas, com o açoites, a adivinhadores e farejadores de tesouros. Já nas O rdenações M anuelinas, de 1512, chegou-se a um a classificação específica de crimes: evocação do demónio, uso de objetos sagrados e feitiços p ara “inclinar vontades”, adivinha ções, uso de objetos e p arte s de corpos de m ortos p ara provocar malefícios, curandeirism os p o r m étodos os m ais variados, fingir visões, benzeduras de gente e anim ais. E m função da gravidade, eram punidos num a escala que ia desde pena de m orte, degredo, pagam ento de m ultas até açoites públicos, prisões e m arcações no corpo com ferro em brasa.53 A legislação m anuelina foi que de fato definiu a postura da coroa portuguesa em relação à feitiçaria, pois o Código Filipino, de 1603, não traz p raticam en te nenhum acréscim o significativo em term os de crim es e penas.54 P articu larm en te n o caso dos negros, o E sta d o p o rtu g u ês atingiu-os diretam ente, rep rim in d o encontros coletivos suposta-
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ALMEIDA, E, H istória da Igreja em Portugal. Porto: Portucalense, 1967, p.403 Ordenações Manuelinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, livro 5, título XXXII. Ordenações Filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, livro V, títulos III e IV.
m ente associados à feitiçaria e até a eventuais revoltas por meio de um alvará de 1559, com o vimos anteriorm ente. M as a docum entação dos tribunais seculares não nos permite vislum brar a sistem ática e o grau efetivo de sua atuação, um a vez que boa p a rte dos processos judiciais se perdeu. Alguns indícios esporádicos confirm am , no entanto, de algum modo, o papel da justiça secular, consagrado nas ordenações régias: devassas rea lizadas por juízes do crim e das com arcas na busca de feiticeiros; cartas de perdão concedidas pela coroa; referências nos processos inquisitoriais de devassas abertas por corregedores de com arcas e até u m rol de b ruxas queim adas em Lisboa no ano de 1559 pelo juízo secular.55 A legislação episcopal em relação à feitiçaria tam bém classi ficou delitos e penas, definidas em sínodos eclesiásticos desde fins do século XIII, quando adivinhações e “arte mágica” foram conde nadas. A p a rtir de então, nas diversas constituições dos bispados, a proibição à feitiçaria aparecia claram ente, como, por exemplo, nas de Coim bra (1521), Évora (1534), Lisboa (1537), A ngra (1560) e G oa (1568), variando seu perfil, com o a do bispado de Évora, que reproduziu praticam ente as Ordenações Manuelinas, e a de Lisboa, que m encionou a feitiçaria de m odo b astan te genérico.56 N o estágio atu al das pesquisas, a Inquisição pode ser con siderada com o um a instância repressiva cuja docum entação é a m ais conhecida em relação a réus condenados por feitiçaria. As fontes relativas aos tribunais civis e episcopais portugueses ain da não estão totalm ente desvendadas, p o rtan to é arriscada uma com paração. M as sem dúvida a ação inquisitorial foi inegável. N o rol dos delitos que constavam da bula papal que instituiu o trib u n al do Santo O fício português em 1536, além do judaísmo,
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PAIVA, J.P., op. cit., p. 196-197. BETHENCOURT, F., op. cit., p.229.
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do luteranism o e do m aom etanism o, estava a feitiçaria, incluída no prim eiro m onitório inquisitorial, expedido no m esm o ano:57 (...) se sabeis vistes ou ouvistes, que algumas pessoas, ou pessoa fizeram ou fazem certas invocações dos Diabos, andando como bruxas de noite em companhia do demónio como os maléficos, feiticeiros, maléficas, feiticeiras acostumam de fazer, e fazem, encomendando-se a Belzebu e a Satanás, e a Barrabás, e arre negando a nossa santa Fé Católica, oferecendo ao Diabo a alma ou algum membro, ou membros de seu corpo, e crendo em ele, e adorando-o e chamando-o para que lhes diga coisas, que estão por vir cujo saber a só Deus todo poderoso pertence (...). Se algumas pessoas ou pessoa tem livros e escrituras para fazer os ditos cercos e invocações dos Diabos, como dito é, ou outros alguns livros, ou livro reprovado pela santa madre igreja.58 A estrutura geral da Inquisição portuguesa, englobando procedimen tos e funcionários, os delitos de sua jurisdição e seus m ecanism os punitivos, foi norm atizada em vários Regimentos. N o que tange à bruxaria, os dois primeiros, datados de 1552 e 1613, são om issos,59 embora Francisco Bethencourt m encione um a provisão de 1546,
do C ardeal D. H enrique, então Inquisidor G eral, que indicava a punição pelo tribunal inquisitorial de Évora daqueles que “usarem de feitiçarias, conjuros e invocações de dem ónios e fizerem outras superstições diabólicas no A rcebispado de Évora”.60 Foi apenas no R egim ento de 1640 que efetivam ente se dispôs e se penalizou aqueles que fossem feiticeiros, adivinhadores, p ra ticassem sortilégios e superstições envolvendo elementos cristãos (hóstias, pedra d’ara, dentre outros), evocassem o Demónio, tendo pacto com ele e fazendo-lhe sacrifícios, e usassem “d a a rte de astrologia ju d iaria”.61 Estabeleceu-se, desse modo, o corpus legis lativo inquisitorial que iria reger em Portugal toda a repressão à feitiçaria pelo Santo O fício até 1774, quando o últim o Regim ento da instituição não m ais viu todas essas p ráticas m ágicas com o in sp ira d as pelo D iab o , e p o rta n to resu lta n te s de um p acto .62 Foram os novos tem pos de transform ações levadas a cabo pelo M arquês de Pombal no Reino, portanto, que fizeram declinar a ação inquisitorial.63 A eficácia das perseguições à bruxaria em Portugal pelo Santo O fício deveu-se tam bém ao apoio da justiça eclesiástica.64 A s vi 60 61
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Os monitórios, afixados nas portas de igrejas, eram relações de práticas e crenças tidas por heréticas, que visavam notificar à população o que devia ser objeto de confissões e/ou denúncias. Ver BETHENCOURT, F., História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália. Lisboa: Temas e Debates, 1996, p.149-150. TAVARES, M.J. P. F., Judaísmo e Inquisição: estudos. Lisboa: Estampa, 1988, p.195-199. “Regimento da Santa Inquisição - 1552”. R evista do In stituto H istórico e G eográfico Brasileiro. R io de Janeiro, n.392, jul/set.1996, p.573-613 e “Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal recopilado por mandado do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Dom Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos de Portugal - 1613”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n.392, jul/set.1996, p.615-691.
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BETHENCOURT, F., O imaginário da magia..., p.231. “Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal ordenado por mandado do Ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo, Dom Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Majestade - 1640, Livro III, Título XIV.” Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, p.854-857. “Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado com o real beneplácito e régio auxílio pelo eminentíssimo e reverendíssimo senhor cardeal da Cunha, dos Conselhos de Estado e do Gabinete de Sua Majestade, e Inquisidor Geral nestes Reinos e em todos os seus domínios 1774, livro III, título XI.” Idem, p.885-972. PAIVA, J.P., op. cit., p.88. Para o século XVI, Francisco Bethencourt insiste nessa articulação, não apenas através dos processos inquisitoriais, mas ainda pelo fato de que, nesse perí odo, tanto a Igreja e a Inquisição abrigaram a notória figura de D. Henrique, dominando “toda a vida política e religiosa portuguesa desde os anos 40
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216 sitas pastorais alim en taram os cárceres inquisitoriais, chegando m uitos réus aos trib u n ais do Santo O fício pelas m ãos dos juízes eclesiásticos.65 A presença efetiva dos bispos e visitadores nas freguesias abrangidas pelas diversas dioceses atestam a frequência dessa prática, co n sag rad a com o fu n d am en tal no co n ju n to das determ inações tridentinas. Feiticeiros e curandeiros constavam ta n to nos editais que anunciavam as visitas com o nos m anuais d e v isitad o res e R eg im en to s dos a u d itó rio s eclesiástico s das dioceses.66 T ribunais com plem entares da Inquisição portuguesa, alguns dados m ostram essa im p o rtan te articulação: nos séculos XVI e XVII, forneceram respectivam ente 25,5% e 23% dos réus processados p o r b ru x aria em Portugal.67 A engrenagem punitiva inquisitorial tam bém se fez valer das confissões sacram entais, que inúm eras vezes foram a ante-sala de processos nos trib u n ais do Santo Ofício. Instigados pelos con fessores, procuravam com issários, fam iliares e as próprias sedes dos T ribunais p ara reco n tar histórias que ficariam nos lim ites dos confessionários. M uitos m anuais de confessores, produzidos com m aior intensidade em Portugal a p a rtir da segunda m etade do século XVI, eram verdadeiros questionários, explicitando per
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aos anos 70 do século XVI, acumulando um enorme poder em setores chave da sociedade da época”. Entre 1534 e 1578, foi arcebispo de Braga, Lisboa e Évora, Inquisidor geral, regente do reino e rei. Ver O imaginário da magia..., p.238. Ver BOSCHI, C., “As visitas diocesanas e a Inquisição na Colónia”. In: SANTOS, M.H.C. (Org.), Inquisição: com unicações apresentadas ao I Congresso Luso-brasileiro sobre Inquisição. Lisboa: Universitária, 1989, v. 2, p.963-996; e Fernando T. Londofto, “Iglesia y transgresion. Las visitas pastorales”. São Paulo: Ex.mimeo, 1982. José Pedro Paiva faz um balanço da atuação dos tribunais episcopais e menciona ainda a existência de algumas devassas exclusivamente dedicadas à feitiçaria, como, por exemplo, a que ocorreu em 1632 no Alentejo. Op. cit., p.205-206. BETHENCOURT, F., O imaginário da magia..., p.239 e PAIVA, J.P., op. cit., p.198.
guntas sobre delitos específicos, com o foi o caso da bruxaria.68 Nos processos e denúncias relativos aos feiticeiros negros em Portugal, encontram os muitos casos remetidos ao Santo Ofício por confessores e trib u n ais episcopais. M as em bora fazendo uso de m ecanism os que a Igreja pôde lhe fornecer para rastrear hereges, a im ensa m aioria dos processados e denunciados caiu na teia do inquisidor por interm édio da p rópria estru tu ra inquisitorial. A s visitações, tan to no Reino com o nas colónias, que, acom panhadas pelos editais da fé afixados nas igrejas, explicitavam os delitos dignos de denúncia ao visitador, instigavam a população a um a avalanche de denúncias e confissões, tom ada pelo medo e pelo terro r que o Santo O fício inspirava. A vasta rede de agentes inqu isito riais q ue a tu a ra m m ais d iretam en te junto da popula ção - os com issários e fam iliares - foi da m aior im portância, rep resen tan d o a ação q u o tid ian a do Tribunal. Os com issários eram encarregados principalm ente de receber denúncias, inquirir testem unhas e fazer diligências necessárias ao andam ento dos processos.69 E n tre 1611 e 1750, das 6.190 denúncias de feitiçaria recebidas pelo trib u n al de C oim bra estudadas por Pedro Paiva, 75% originaram -se desses agentes.70 Os fam iliares tam bém foram de sum a im p o rtân cia no ap arato persecutório inquisitorial: tam bém podiam denunciar suspeitos, efetuavam prisões, espionavam e acom panhavam os presos nos autos-de-fé. Policiando atitudes e idéias, estes agentes tiveram um a ação ím par no acolhim ento de
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Em 1742, por exemplo, uma culpa é remetida ao tribunal de Coimbra por um vigário, dizendo ele que, estando “em ato de confissão com uma penitente, fazendo-lhe o interrogatório se tinha consultado algum feiticeiro”. PAIVA, J.P., op. cit., p.217. Regimento do Santo Ofício... - 1640, Livro I, Título XI. Op. cit., p.739-741. PAIVA, J. P., op. cit., p.198.
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denúncias e na dissem inação do pânico gerado pelo S anto Ofício, instigadores que eram das diversas delações.71 Os cerim oniais dos autos-de-fé da In q u isição ex p u n h am toda a sua fúria persecutória e eram um símbolo inequívoco do poderio do Santo Ofício junto à população. M om ento festivo sem precedentes, eles reuniam os mais altos postos da hierarquia inqui sitorial, eclesiástica e, por vezes, m onárquica, com a presença da nobreza e do Rei, num ritual em que os condenados e suas mazelas eram exemplo do que representava se entregar à heresia. A pós semanas de preparação, finalmente, num domingo, as autoridades e os réus saíam em procissão, da sede local do T ribunal, percor rendo partes da cidade até chegarem a um a praça pública, onde se havia m ontado um grande an fiteatro p ara o evento. M arcados por suas vestimentas - os sam benitos -, determ inadas em função dos delitos cometidos, os condenados ouviam os serm ões dos sa cerdotes, que bradavam contra os atos heréticos e propalavam a salvação propiciada pela Inquisição. Depois escutavam, ajoelhados, a leitura pública de suas sentenças, d ian te de toda a população da cidade e arredores que, depois de horas em pé, assistia ainda ao espetáculo dos “relaxados” ao braço secular, agonizando nas fogueiras, ou então ardendo já m ortos, que pelo arrependim ento de últim a hora ganhavam com o prém io o garrote.72 Através de seus mecanismos intimidatórios, o tribunal do Santo Ofício instigava a delação e inspirava o medo nas sociedades onde atuou, fosse pela ação quotidiana de seus agentes e das visitações
periódicas no R eino e no U ltram ar, fosse pela dem onstração de sua força através de ritu ais, com o os autos-de-fé. A Inquisição portuguesa foi notável pela eficiência com que desarticulou os laços sociais, estim ulando denúncias e vasculhando as vidas pes soais dos indivíduos. E laborou m étodos precisos de atuação que fortaleciam cada vez m ais o tem or que desejava difundir. Foi o que B artolom é B ennassar cham ou de “pedagogia do m edo”, isto é, um a série de práticas que visavam p erp e tu a r o T ribunal como uma instância respeitável e tem ida. Além da to rtu ra e da fogueira, o segredo inquisitorial,73 a m em ória da infâm ia, adquirida pela vivência de sentenças hum ilhantes com o açoites públicos, dentre outras, o sequestro de bens e a m iséria tiveram um a ressonância sem precedentes com o m ecanism os intim idatórios. *
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Sobre os Familiares do Santo Ofício, ver TORRES, J.V., “Da repressão reli giosa para a promoção social. A Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil”. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n.40, out.1994, e CALAINHO, D. B., Agentes da fé. Familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial. Bauru: EDUSC, 2006. SARAIVA, A.J., Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa, 1985, p.101112.
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O crim e de feitiçaria em Portugal, apesar dos problemas de acesso aos dados, já foi devidam ente quantificado. É fundam ental lem brar, no entanto, que o peso da feitiçaria no conjunto dos delitos heréticos da alçada in q u isito rial foi bem pequeno ao longo de toda a existência do Tribunal. Enfatizem os, um a vez mais, que o p rin cip al alvo do S anto O fício p o rtu g u ês foi o cristão-novo judaizante. N a Inquisição de Coim bra, por exemplo, nos séculos XVI e XVII, o crim e de judaísm o correspondeu a 83% dos réus.74
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O segredo era práxis fundamental em todos os passos da saga dos réus: eles desconheciam as razões das prisões, as peças do processo, a presença de denunciantes ou testemunhas, enfim, não tinham a menor noção de sua real situação. Ver BENNASSAR, B., “Modelos de la mentalidad inquisitorial: métodos de su pedagogia del miedo”. In: ALCALÁ, A. (Org.), Inquisición espan olay m entalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984, p.174-181. TORRES, J. V., “Uma longa guerra social. Novas perspectivas para o estudo da Inquisição portuguesa. A Inquisição de Coimbra”. Revista de História das Ideias, Coimbra, n.8, 1996.
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220 E m Évora, no período de 1533 a 1668, esse percentual foi de 84%,75 e em Lisboa, entre 1540 e 1629, de 68%.76 Para o século XVI, F rancisco B ethencourt levantou 94 casos de feitiçaria (ver Tabela 4), correspondendo a 10,3% em relação ao total de processos nesse período. O aum ento significativo na década de 50 é ju stificad o a p a rtir de um a devassa específica sobre a bru x aria em Évora e M ontem or-o-N ovo e ain d a de uma visita pastoral em A lcácer do Sal no ano de 1554.77 José Pedro Paiva, estudando os casos de bruxaria em Portugal nos séculos XVII e XVIII, afirm a que a Inquisição processou respectivam ente 239 e 579 indivíduos (excluindo-se o Tribunal de Goa), totalizando assim 818 réus (ver Tabela 4). E m relação ao volume geral dos processados nos trib u n ais de C oim bra, Évora e Lisboa nesses dois séculos (ver Tabela 3), à feitiçaria coube apenas 3,6% do total. Por T ribunal, estes dados rem ontam respectivam ente 4,2%, 2,3% e 4,2%, considerada to d a a ativ id ad e d a Inquisição portuguesa entre o início do século XVII e meados do XVIII.78 Essa margem dim inuta não foi privilégio do Tribunal lusitano. A s pesquisas de Jaim e C ontreras sobre a Inquisição espanhola dem onstram que entre 1560 e 1599 os processados por superstições no T ribunal da G aliza correspondiam a 1,9% do to tal dos casos, aum entando p ara 10,4% no século XVII.79 Q u an to às Inquisições de A ragão e Castela, os punidos por “superstições e artes mágicas”
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COELHO, A. B., Inquisição de Évora. Dos primórdios a 1688. Lisboa: Caminho 1987, v. 2, p.72. BETHENCOURT, F., O imaginário da magia..., p.279. Idem, p.250. Estes dados foram obtidos consultando-se TORRES, J. V., “Uma longa guerra social...” p.59-70; BETHENCOURT, F., H istória das Inquisições..., p.275 e PAIVA, J.P., op. cit., p.208. CONTRERAS, J., E l Santo Oficio de la Inquisición de Galicia. 1560-1700. Poder, sociedad y cultura. Madrid: Akal, 1982, p.467.
corresponderam a 9,9% e 5,1%, respectivam ente, para o período de 1540 a 1700.80 Q u an to às fases de repressão, a Tabela 4 mostra-nos movi mentos bem específicos para os séculos XVII e XVIII, sendo neste últim o período m ais intensa a repressão à feitiçaria. Nos inícios dos seiscentos, os poucos casos de b ru x aria relacionaram -se a alguns fatores: a Inquisição estava cautelosa em determ inar se, de fato, os casos delatados tin h am cunho herético, recorrendo os tribunais regionais ao Conselho G eral do Santo Ofício antes de iniciar os processos. D o contrário, aqueles que fossem processados e em que se chegasse à conclusão de que não existia heresia, po deriam recorrer da decisão, dem onstrando com isso a fragilidade do Santo Ofício. A Inquisição tam bém estava atenta em relação a possíveis embates com a justiça episcopal, tendo em vista o conflito ocorrido com o arcebispo de Lisboa em 1612, referente à quem caberia a jurisdição dos curandeiros com ensalmos.81 Além de tudo, m ostra-nos José Veiga Torres que, entre os anos 30 e 34, houve um grande pico de perseguição aos cristãos-novos, desviando assim a atenção do Santo O fício de outros delitos.82 Também a suspensão do fun cionam ento da Inquisição portuguesa, entre 1674 e 1681, foi um fator evidente da m anutenção desses padrões estatísticos. O s setecentos foram incom uns em term os de aum ento das perseguições, particu larm en te entre os anos de 1710 e 1760. O núm ero de fam iliares e com issários do Santo Ofício foi espantoso, tan to no R eino com o no Brasil, havendo um a correlação direta com o aum ento dos processados e das fam iliaturas expedidas. M as, efetivam ente, segundo Pedro Paiva, a postura do Tribunal 80 81 82 83 84
BETHENCOURT, F., História das Inquisições..., p.272. PAIVA, J.P., op. cit., p.211. TORRES, J. V., “Uma longa guerra social...”, p.56-57. PAIVA, J. P., op. cit., p.209 TORRES, J. V., Da repressão religiosa..., p.129-130.
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222 modificou-se, com um a am pla perseguição aos casos de curandeirism o, a p a rtir dessa época. D os anos 60 em d iante, há um decréscim o generalizado do núm ero de processados em todos os Tribunais, e da repressão à feitiçaria particularm ente, no sentido de já estar em curso u m a visão m ais racionalizada desse delito. Finalmente, os dados que levantamos sobre os negros e mulatos processados e acusados por feitiçaria em Portugal acom panham esse m ovimento generalizado. E n tre os séculos XVI e XVIII, apu ramos sessenta casos (ver Tabela 5), correspondendo a apenas 6,5% do total dos réus arrolados p o r F rancisco B ethencourt e Pedro Paiva (num total de 912). O núm ero de denunciados, e que não necessariam ente haviam sofrido processo, no entanto, foi bem maior. No Tribunal de C oim bra, p o r exemplo, entre 1611 e 1757, houve 6.190 denúncias p ara 361 processados efetivam ente.85 N o caso dos negros e mulatos, o núm ero de denúncias é inferior em função da pequena am ostragem consultada no A rquivo N acional da Torre do Tombo. A predom inância de casos no século XVIII abarca tam bém o universo dos negros e m ulatos, co rresp o n d en d o a 63,4% do total de processados, com m aior concentração entre 1701 e 1730 (ver Tabela 4). Os casos de feitiçaria oriundos do Brasil, estudados por Laura de Mello e Souza, seguem a m esm a tendência: dos 119 casos ar rolados, 77 (64,7%) ocorreram entre 1725 e 1775. E specificam ente neste caso, o período de 1750 a 1775 é volum oso - 48 casos - em função da extem porânea visitação, ao G rão-Pará e ao M aranhão, ocorrida entre 1763 e 1769, num contexto já de declínio do Santo Ofício. Desses 119 processados, 32,7% são negros e mulatos, índice baixo, por sinal, em se tratan d o de um a colónia escravista.86 85 86
PAIVA, J.P., op. cit., p.208. SOUZA, L. de M„ O Diabo..., p.386.
Diante de todos esses dados, é notória a brandura da Inquisição p o rtu g u esa em relação à b ru x a ria , ju stific a d a p o r F ran cisco Bethencourt pela posição deste delito em relação à hierarquia de heresias articu lad as pelo S anto O fício, e ain d a pelo m odelo de propagação do cristianism o em Portugal nos Tem pos M odernos. O processo da R econquista cristã na Península Ibérica, des de o século XI, integrou o em bate entre religiosidades e culturas diferentes, im pondo-se o cristianism o aos m uçulm anos e depois aos judeus. A criação do Santo O fício português em 1536 buscava o rastream ento de heresias, ocupando-se o T ribunal, sobretudo, da questão judaica, e nesse contexto as p ráticas supersticiosas e mágicas, tidas por feitiçarias, foram tratadas de maneira marginal.87 Pedro Paiva cham a a atenção, ainda, para o ceticism o e o desdém das elites em relação à b ruxaria, abarcando a í os inquisidores e dem ais funcionários do Santo Ofício. Por outro lado, o modelo de evangelização adotado em Portugal foi lento, sem um a d rástica supressão de crenças e p ráticas de origem pagã, já b astan te enraizadas e m uitas vezes im iscuídas a crenças cristãs, com o pudem os constatar em capítulos anteriores. A estratégia consciente da Igreja era ev itar confrontos diretos, optando pela m udança p au latin a e progressiva. Já vim os os es forços em preendidos pela Igreja portuguesa no cum prim ento das disposições de Trento, tendo em vista a ignorância de preceitos básicos do cristianism o por p a rte da população. Os “súditos se achavam com cracíssim as ignorâncias em m a téria tão grave”, dizia em 1682 o bispo de C oim bra D. João de Melo, ao apelar aos clérigos que doutrinassem os paroquianos.88 A pouca preocupação do Santo O fício com a feitiçaria pode ser vista não apenas em relação ao núm ero dos processados, mas
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BETHENCOURT, F., O imaginário da magia..., p.258. PAIVA, J. P., op. cit., p.353.
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C A P ÍT U L O V I
ainda no restan te da docum entação inquisitorial. E m outros p a peis do Santo O fício que consultam os, com o as correspondências m antidas entre os diversos T ribunais e en tre estes e o C onselho G eral - instância suprem a da e stru tu ra inquisitorial as referên cias à feitiçaria em geral, e as relativas aos negros em p articu lar, foram verdadeiram ente raras.
NEGROS HEREGES, AGENTES DO DIABO
R onaldo Vainfas, estudando os cham ados “crim es m orais e sexuais” no Brasil colonial - fornicação, bigam ia, sodom ia e soli citação - a p a rtir das fontes inquisitoriais, constatou um desprezo e até um ceticism o dos inquisidores em face dos negros e índios nas sessões de depoim entos, espelhando a hierarquia social que o colonialism o ensejou.89 A p esar desse delito co n stitu ir um a m in o ria no conjunto do furor persecutório do S anto Ofício, o fu ndam ental é que m uito se pôde resgatar da religiosidade african a em Portugal a p a rtir dessas fontes, e ainda se perceber o discurso inquisitorial em rela ção aos cultos e crenças dos negros e à consequente dem onização dessas práticas.
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VAINFAS, R., Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p.234.
Como podia ele entender que a mandinga era coisa de Deus se ele via que só os pretos usavam dela? Inquisidor Antônio Ribeiro ' de Abreu, 1730, arguição a José Francisco Pedroso.
N a p rim eira m etade do século XIV, por intermédio da bula Super illius specula (1326), a feitiçaria foi consagrada com o heresia, passível p o rta n to de ser objeto das perseguições inquisitoriais. A rejeição à verdadeira fé católica, configurada na adoração e no pacto com o D iabo, transform ava em hereges aqueles que se dedicavam a p ráticas m ágicas envolvendo o Demónio.1 A heresia caracterizav a-se p o r ser um crim e religioso, di ferentem ente dos delitos com uns (assassinatos, roubos, estupros, agressões, crim es de lesa-m ajestade etc.), que na justiça civil do A ntigo Regime eram punidos pública e exemplarmente, levando-se em conta o crim e em si mesmo. N o caso dos hereges, no entanto, o que im portava, sobretudo, era a consciência do delito, a opção deliberada por transgredir a fé católica. No Manual dos Inquisidores (1376), de N icolau Eym erich, a definição de heresia - que vem
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DELUMEAU, J., H istória do m edo no O cidente. 1300-1800. Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.352.
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do verbo grego eligo (eleger) - ap arece com o o ato de escolher uma doutrina falsa. Uma proposição considerada herética seria definida por se opor a qualquer artigo de fé, a qualquer verdade estabelecida pela Igreja ou às E scritu ras Sagradas.2 No capítulo sobre “Indícios exteriores pelos quais se reconhecem os hereges”, o M anual inclui nessa categoria aqueles que fizessem sacrifícios a ídolos, adorassem ou venerassem dem ónios.3 O Santo Ofício português pautou sua ação no rastream en to de hereges e na “decifração das vontades”, vasculhando as inten ções do indivíduo para ao fim afastá-lo ou reconciliá-lo com a Igreja e a sociedade, contrariam ente aos confessores, por exemplo, que visavam antes de tudo a reconciliação com D eus a p a rtir da confissão dos pecados.4 A noção de heresia entendida com o negação da fé católica aparece explicitada em todos os Regimentos inquisitoriais; no caso da feitiçaria, a idéia de evocação e/ou pacto com o D em ó n io é de suma im portância para defini-la como herética, segundo o próprio Título XIV do Regimento de 1640, que considera com o hereges os “feiticeiros, sortilégios, adivinhadores e dos que evocam o demónio, e tem pacto com ele, ou usam a rte de astrologia ju d ia ria ”.5 2 3 4
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EYMERICH, N., Manual dos Inquisidores (1376). Brasília: Universidade de Brasília/Rosa dos Ventos, 1993, p.133. Idem, p.128. “Aos inquisidores, juízes de fé, sempre cabia inquirir sobre as intenções do réu, seu pensar e seu sentir; à diferença do delito comum, a heresia já implicava o julgamento simultâneo e articulado do crime e do próprio indivíduo criminoso. Crime gravíssimo, a heresia somente se construía - e não apenas se provava - na mesa da Inquisição, haja vista a extraordinária importância assumida pela consciência do réu na formação da culpa.” VAINFAS, R., Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p.242. “Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal ordenado por mandado do Ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo, Dom Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Majestade - 1640, livro III, título XIV.” Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
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A s p rá tic a s m á g icas e devoções dos negros em P ortugal, assim iladas à feitiçaria, estiveram ancoradas fundam entalm ente nessa idéia de pacto dem oníaco e na p ró p ria ação generalizada do D iabo. N os processos desses réus, S atã aparecia sob form a hum ana e/ou anim al, firm ava pactos explícitos exigindo sangue ou outros sinais de sujeição, atendia prontam ente às evocações de seu nome, prom etia bens m ateriais e espirituais, com unicava aos seus seguidores as virtudes das curas de doentes e/ou enfeitiçados, reu n ia em torno de si seguidores “da m esm a a rte ” p ara venerálo em cerim ónias, revelava coisas ocultas, adivinhava o futuro, via doenças escondidas dentro dos corpos hum anos e anim ais, induzia ao uso de coisas sagradas nos feitiços, fingia santidade e “palavras santas e religiosas e com boas obras costum a enganar”.6 Essas ações supostam ente perpetradas pelo D em ónio envolvendo os negros eram objeto das perguntas dos inquisidores, revelando a preocupação incansável no rastream ento da ação do D iabo. A ênfase era se o réu: havia se apartado da Fé, adorando o demónio como Deus, tendo para si que era digno de culto e veneração e poderoso para salvar as almas e as levar ao Céu, não crendo no Mistério da Santíssima Trindade nem em Cristo Senhor Nosso, mistérios de nossa Santa Fé católica e juramentos da Igreja.7* Os inquisidores preocupavam -se frequentem ente com a extensão do poder do M aligno. N os casos de curandeirism o, por exemplo, p erg u n ta v am sem pre o n d e esta ria m as “v irtu d e s ” da cu ra. A
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p.854-857. “Exames e sessões de crença para feiticeiros que confessaram pacto com o demónio e também forma da sessão in genere para feiticeiros negativos.” Conselho Geral do Santo Ofício, título XXIV, livro 265. Estas instruções foram elaboradas utilizando-se os vários processos já finalizados. Idem.
228 p ard a M aria Tomé, presa pela Inquisição de Évora em 1744, foi questionada sobre o efeito de suas curas: nas ervas, nas orações ou se p o r influência do D em ónio, ten d o este “lhe com unicado algum a v irtu d e p a ra as cu ras”,8 e até se p o rv en tu ra beberagens e outros procedim entos, aplicados p o r o u tra pessoa que n ão a ré em questão - supostam ente influenciada pelo D iabo -, te riam o m esm o efeito de cura.9 N as sessões inquisitoriais, a p a rtir da consagração do pacto diabólico, a heresia pouco a pouco se co n stru ía, com a p en a dos notários registrando a relutância inicial dos negros incrim inados p ara depois consagrá-los com o hereges pela am izad e im plícita ou explícita com o D iabo nos vários casos tidos p o r “feitiçarias”: curandeirism os, feitiços específicos p ara relacionam entos pessoais, uso de bolsas de m andingas, adivinhações. A lém das influências diabólicas, a Inquisição atentou sem pre p ara a d ifu sã o e a origem das p ráticas e crenças dos negros e m u latos com as quais se deparava em suas arguições, sendo constantes certas indagações: onde aprendeu este ou aquele feitiço ou oração, e se ensinou a m ais alguém e quem foi; se induziu o u tra pessoa a firm ar pacto com o Diabo; quantos e quem foram curados; de onde vieram as m andingas, quem eram seus usuários, no B rasil e em Portugal. A p o stu ra do T ribunal era deter os avanços das práticas heréticas e te n ta r d o m in ar o espaço onde p oderiam atuar. O ato d a confissão tin h a p a ra o S anto O fício um p apel fu n dam ental, desde m inorar a pena até poupar o réu de arder vivo nas fogueiras dos autos-de-fé. O s inquisidores p o r vezes trabalhavam duro p ara finalm ente arran ca r um a confissão de pacto dem oníaco explícito ou m esm o um a simples evocação, co n stru in d o a heresia
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a seu m odo ao fim do processo. Eis um exemplo de parte de uma sentença em que o réu, duram ente adm oestado, não via que: (...) por meio de uma confissão bem feita pusesse a sua alma em estado de salvação e a sua causa em termos de com ele se usar da misericórdia que tantas vezes se lhe havia oferecido, estando certo que se assim o fizesse, experimentava a piedade com que se trata vam os réus que vindos à Mesa do Santo Ofício nela confessavam com sinais de arrependimento de suas culpas.101 A co nstrução m ental do pacto dem oníaco por vezes era imposta violentam ente, e as reações dos réus negros e mulatos eram dife renciadas. P ara alguns, a confissão im ediata de pacto e relações com o D em ónio era estratégica, m ovida pelo medo, para tenta rem sentenças m ais b ran d as ou m esm o se livrarem delas, pois provavelm ente tin h a m algum conhecim ento, mesmo que difuso, do funcionam ento do Tribunal, adquirido nos próprios cárceres ou p o r interm édio de antigos réus que eventualm ente estivessem cu m p rin d o penas de degredo.11 A idéia era confessar o que de fato o inquisidor desejava ouvir, no intuito de obter o perdão e quiçá a liberdade.12 Vejamos alguns casos em que essa conduta por p a rte dos negros foi im ediata e espontânea, talvez obedecendo à 10 11
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ANTT, Inquisição de Évora, processo 6.390. “Exames e sessões de crença para feiticeiros que confessaram pacto com o demónio e também forma da sessão in genere para feiticeiros negativos.” Conselho Geral do Santo Oficio, título XXIV, livro 265.
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.767. Embora fosse proibida qualquer conversa sobre os assuntos do Tribunal, dificilmente isto não ocorria, apesar das medidas tomadas pelo Santo Ofício. Num livro de instruções para a Inquisição de Évora, no item referido aos cárceres, d izia-se que “quando dois presos estão por companheiros nos cárceres e um deles sair no auto e o outro fica, nunca o que sair, quando se tornar a recolher, se há de por com o que há de ficar, por não lhe referir o que passou no auto”. ANTT, Inquisição de Évora, Instruções, livro 105. Pedro Paiva cita o caso de Maria Gomes que, confessando imediatamente um pacto diabólico, ao final revogou sua confissão dizendo que acreditava ser esta a melhor forma de colocarem-na em liberdade. PAIVA, J.P., Bruxaria e superstição num p a ís sem ucaça às bruxas”. 1600/1774. Lisboa: Notícias, 1998, p.200.
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suposição de que assim se livrariam m ais rapidam ente das mazelas da “negra C asa do Rocio”. A cusada de m olestar seus senhores com feitiços, a escrava angolana C atarin a M aria, em 1732, confessou aos inquisidores lisboetas que o Diabo vinha dorm ir com ela todas as noites, pediu seu sangue, e ela “lho deu das p artes pud en tas”, “o qual o aparou em um trapinho e o levou, e sem pre lhe recom endou que fizesse quantos m ales pudesse”. N a relação, o D em ó n io e ra exigente: que ela rezasse e fizesse jejuns apenas na intenção dele e que o adorasse de joelhos e m ãos postas p ara cim a. D epois de presa, no entanto, seu parceiro das Trevas desapareceu.13 A parda M aria O rtega, presa em 1637, dizia orações p ara descobrir o paradeiro de pessoas, com unicava-se com alm as de mortos e confeccionava cartas de tocar. Confessou que cham ava o D iabo com certas palavras, e que, vindo na fig u ra de um hom em jovem, ele lhe pediu que desse o dedo m ínim o, e depois tiveram “ajuntam ento carnal”.14 A escrava negra Esperança confessou à Inquisição de Coimbra, em 1671, que fizera u m p acto o b je tiv a n d o e n fe itiç a r hom ens instigada por um a tal S ebastiana. N a fig u ra de u m hom em , o D iabo lhe disse que à sua alm a d aria “um p araíso m uito bom , e que lhe desse alguma gota de s'eu sangue”, bebendo-o em seguida. Confessou ainda que ele lhe aparecia p o r vezes na fig u ra de um galo preto.15 Em m arço de 1735, apresentava-se à Inquisição de Lisboa a forra M aria de Jesus para dizer que o D iabo lhe aparecia em forma de camelo, cavalo ou homem. A p rim eira vez fora aos 12 anos, deflorando-a, e com ele ela continuou a se relacionar p o r 26 anos
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 6.286. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 834. ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 6.821.
seguidos. Confessou que ele lhe ofereceu feitiços p ara sua senhora dar-lhe a liberdade, recom endando segredo de tudo. D eixando a fé católica, “passou p ara a crença do dem ónio tendo-o e adorando-o com o D eus, oferecendo-lhes rezas e penitências, estando diante dele p o sta de joelhos e batendo nos peitos esposando do m esm o demónio a salvação”. Junto com outras mulheres, encontrava-se com vários dem ónios, todos hom ens, abraçando-se todos, beijando-se “e no fim , cada D em ónio tin h a cópula com sua m ulher”.16 O utros incriminados, porém, perm aneciam até o fim convictos de que seus procedim entos, fossem de cura, fossem feitiços am o rosos ou m andingas, nada tin h am a ver com o D iabo. A sentença da cu ran d e ira Inez do C arm o em 1755 m ostra claram ente a ação satân ica posta com pletam ente à revelia da ré, que em nenhum m om ento se refere ao Diabo: Suas curas não são obradas por efeitos naturais, nem a caveira de defunto de que usou, orações que rezava e o mais que fazia tinham virtude alguma para os fins que pretendia, e que sendo sobrenatural a causa daqueles efeitos não podia de nenhuma sorte proceder de Deus Nosso Senhor por serem aqueles meios vãos, supersticiosos e inúteis, pelo que se presume que os tais efeitos procediam do demónio com que ela ré tem feito algum pacto.17 P ara o S an to O fício, a c u ran d e ira n ão confessou in teiram en te suas culpas, vendo-se o T ribunal fru strad o em decifrar as reais intenções da ré. N ão questionou, inclusive, em nenhum m om ento, a veracidade de suas curas, e sim a origem delas. A lguns réus, por fim, coagidos por fortes pressões psicológicas e físicas, através da to rtu ra , term inavam por confessar o que o Tribunal esperava, mesm o que inicialm ente tivessem negado qual16 17
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 2.279. ANTT, Inquisição de Évora, processo 5.940.
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quer menção ou referência ao D iabo em suas práticas. O tormento, nesses casos, fu n cio n av a com o um elem ento que efetivam ente induzia a confissão. E m 1619, A n tô n io Fernandes foi denunciado em Lisboa p o r te r co m entado sobre os d ram as passados pelos presos da Inquisição que não queriam falar a verdade: Porque os presos levam muito trabalho e levam muitos tormentos ate que lhe fossem dizer o que nunca fizeram, porque na Inquisição costumam os Inquisidores a dar tantos tratos e tormentos aos presos que lá tem até que com eles lhe fazem confessar o que não fizeram.18 Para o século XVI, F rancisco B ethencourt não constatou nenhum caso de to rtu ra en tre os feiticeiros. E n tretan to , nos dois séculos . seguintes, tal p rática se m ostrou com um , estan d o presen te em respectivam ente 53% e 67% dos casos de feitiçaria levantados por Pedro Paiva.19 Na m aio ria dos processos de negros e m ulatos que pesquisam os houve to rtu ra , e alguns acabavam p o r se render ao discurso inquisitorial e assu m ir relações de várias naturezas com o D iabo, desde superficiais até o p acto explícito. O negro forro M iguel de Macedo, apresentando-se à Inquisição d e Coimbra em 1654, confessou que curava doentes com fervedouros, desfazia feitiços usando até água-benta e ensinava m ezinhas p ara g an h ar no jogo. N o en tan to , assum iu-se com o farsan te - com o m uitos, alias, faziam p a ra se liv rar das culpas -, enganando as pessoas para tirar-lhes dinheiro. M as ao afirm ar que não sabia que tudo aquilo era indício de “am izade ilícita” com o D iabo, o que era insistentem ente afirm ad o pelos inquisidores, foi a torm ento e, já despido e prestes a ser atad o às correias, p ediu que fosse levado à M esa p ara confessar. Subitam ente, a figura dem oníaca 18 19
ANTT, Inquisição de Lisboa, Visitações e Denúncias, livro 798. PAIVA, J. P., op. cit., p.202.
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apareceu em várias histórias. Fez curas evocando o Diabo, que lhe dava receitas e se encontrava com ele em encruzilhadas. Uma vez o viu em form a de criança, m as não lhe deu sangue, nao se configurando, assim , um pacto.20 O soldado V icente de M orais caiu nas garras da Inquisição lisboeta em 1717. Saído ileso de u m a briga, disse que sua bolsa de m andinga o protegera por conter a p ed ra d’ara, mas o inquisidor afirm ou que a proteção advinha, sim , do Dem ónio, o que ele ime d iatam ente negou. Já em pleno torm ento, confessou inicialmente que g an h ara a bolsa junto com u m anel do D iabo, m as que nao fez pacto. Insatisfeito, o inquisidor m andou continuar a tortura, e arran cou do réu um pacto em conjunto: vários negros e brancos, todos portadores de bolsas, depararam -se com um vulto alto, perto da igreja do presídio onde trabalhavam , que lhes deu de beber um frasco que iria proteger a todos. E ra o próprio Satã, exigindo-lhes fidelidade e cativeiro por interm édio de “um escrito .21 O negro M anuel da Piedade, n atu ra l da Bahia e m orador em Lisboa, foi denunciado em 1730 p o r porte de um a oração do Justo Juiz, tida por m andinga e fruto de pacto diabólico, o que ele negou inicialm ente. Sob torm ento, confessou que, ju n to com outros, foi v árias vezes ao C am po de S an ta C lara, nos arredores da cidade do Porto, onde o D em ónio ap areceu ora sob form a de cabra, ora de gato, pedindo-lhes o sangue, a alm a e adoração. No entanto, desm entiu tudo depois, alegando que “disse que se ouvira falar em m andinga não fazia caso disso, e o que disse que se passara com o D em ónio foi com o m edo e dores do torm ento”. M andado de volta à “casa do torm ento” pela q u a rta vez, ele reafirm ou tudo o
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ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 7.313. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 5.477.
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que negado havia anteriorm ente em fu n ção da pressão co n stan te dos inquisidores.22 Curandeiro afamado, em 1690, o m ulato Estevão Luiz, também acusado de sodom ita, confessou que o uvia vozes que o in stig a vam a curar com determ inadas ervas. In icialm ente assu m in d o ser a voz do Diabo, depois negou tudo, n ão confessando te r um pacto apesar das to rtu ras que sofreu. E ra cham ado de “C o b ra”, por esse réptil lhe ter aparecido em c e rta ocasião, fato de que os inquisidores se aproveitaram p a ra reiterar o relacionam ento de Estevão com o M aligno. A c o b ra, disseram -lhe, “en g an o u nossa m ãe Eva no Paraíso e m etendo-se nela o D iabo usava dela como instrum ento para a enganar”. Se a cobra vencera Eva, que dirá ele, “homem vil por nascim ento, m al acostum ado e vicioso (...)”, e que por causa das vozes e “im aginações que confessara padecer por alguns anos, o D iabo lhe devia d a r o sobrenom e de cobra...”23 A astúcia discursiva do S a n to O fício era p o r vezes im pressionante, enredando o indivíduo nas m alhas dem oníacas para finalm ente fazê-lo acreditar nisso, depois de torturá-lo física e psicologicamente. De antemão, o próprio inquisidor perg u n tara a Luiz de Lima, o famoso m andingueiro da C oim bra d e 1729, se ele sabia que p ara o uso da m andinga “sem pre concorre ajuda, favor e intervenção do demónio, e só da sua a rte podem p ro ced er aos efeitos dela”.24 O já citado escravo Joseph Francisco Pereira, m andingueiro contumaz e comerciante das bolsas envolvendo negros em Portugal e no Brasil, perm aneceu p o r quase u m an o nos cárceres in q u i sitoriais, entre 1730 e 1731. Nas palavras do Santo O fício, ele foi 22
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 9.972. Ver também SOUZA, L. de M., O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.314-315. ANTT, Inquisição de Évora, processo 4.745. ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 1.630.
“adm oestado” inúm eras vezes nesse período p ara que confessasse a to talidade de suas culpas, sofrendo enorm e pressão e am eaças de to rtu ra física. A certa altu ra confessou seu relacionam ento com o D iabo, dem onstrando um fa rto conhecim ento de elementos da dem onologia e indignando os próprios inquisidores, por se tra ta r de um africano: “(...) E sendo exam inadas as confissões do réu, dá respostas que n ão são de entendim ento de um p reto e rústico, di zendo o mesmo que em casos semelhantes trazem os Doutores (...)”.25 E le e o u tro s negros e n c o n tra v a m -se co m o D em ó n io às q u artas e sextas-feiras, em Vai de C avalinhos, local predileto dos conventículos diabólicos em Lisboa, onde o adoravam , cantavam e brigavam entre si p ara “exercitar a m andinga”. O fereciam -lhe vinho, passas e “certa vez um bode cozido”. C onfessou que fez um p acto explícito com o D iab o dando-lhe seu sangue, com o qual escreveu c a rta s de to c ar e orações de m andinga, e fizeram prom essas m útuas: a alm a, rezas, jejuns e adoração em troca de salvação, liberdade, m elhores condições de sobrevivência e os segredos das m andingas. E m seis ocasiões, n o cam po de Santa C lara, o D iabo lhe deu bolsas, que vendeu a outros. A pareceu-lhe sob diversas formas: hom em , “de m ulher boni ta e feia instantaneam ente” e an im ais variados, com o um bode preto, jum ento, lagarto, cágado, sapo, gato, cobra e até galinha com p in tin h o s. T in h a com ele “tra to ilícito e to rp e ” de várias form as: o D em ónio com o hom em , em atos sodom íticos, sendo ele, Francisco, “paciente várias vezes”, ou então sendo o D em ónio m ulher. O m em bro v iril era frio e áspero, e as relações eram sem pre dolorosas, ficando b astan te debilitado ao fim das cópulas, 25
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.767. Ver também o artigo de MOTT, L., “Etnodemonologia: aspectos da vida sexual do Diabo no mundo iberoamericano (séculos XVI ao XVIII)”. In: MOTT, L., Escravidão, homossexua lidade e demonologia. São Paulo: ícone, 1988, p.119-151, onde este processo é analisado.
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que aconteciam na casa do seu senhor, em Vai de C avalinhos ou em outros locais. O te rro r que o Santo O fício espraiava n a sociedade entreviase nos conselhos que Joseph F ran cisco receb ia de seu m entor das Trevas: n u n ca confessasse n ad a porque “lhe haviam de d ar rigorosos castig o s”. Por o u tro lado, a m á in flu ên cia d iabólica tam bém servia de ju stificativ a p ara confissões tard ias, com o no caso deste processo. Vimos negros que se diziam farsantes e embusteiros, aproveita dores dos ingénuos para deles tirarem bens e dinheiro, justificando, assim , peran te o Santo O fício, possíveis envolvim entos com Satã. O utros, no entanto, apelavam ao cristianism o p ara te n tar escapar ilesos da M esa inquisitorial. Joseph F rancisco Pedroso, escravo que nos anos 30 do século XVIII integrou um a vasta rede de m andingueiros em Lisboa e no Porto, a trib u iu a D eus e não ao D iab o a v irtu d e da m andinga, pois “lhe cham avam oração ” e, com o “m uita gente a trazia, não lhe p arecia ser coisa do dem ónio”. M as a esperteza do inquisidor A ntônio R ibeiro de A breu derrubava-o a toda hora. Por que então foi ele colocar a m andinga debaixo da p ed ra d ’a ra da igreja “às escondidas (...), se ele a tin h a p o r boa”? N ão era possível que ele não soubesse serem os papéis das m andingas “coisa diabólica, vã e supersticiosa . Ele sabia ainda, continuava o inquisidor, que as m andingas eram vendidas e, p o rtan to , “devia saber que a graça e v irtu d e do m esm o D eus não se pode vender”. Joseph confessou que as mandingas mais fortes eram chamadas entre os negros de Lisboa de “m andingas do cam p o ”, preparadas, segundo eles, com a intervenção d ireta do Demónio. Ele e Miguel, escravos em Lisboa p o r volta de 1731, encontraram -se na “cruz de Buenos Ayres pela meia noite” e conversaram com o D em ónio “em m atéria de bolsa e sobre o tem pero dela”. Essa casta de m andinga, confessou Joseph Francisco ao inquisidor depois, era tão forte que
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nem se podia entrar com ela num a igreja, ao contrário das que ele fazia, que eram bem m ais brandas. Conhecendo essa diferença, viu m uitos portadores de m andinga irem à M issa e comungar, “por isso entendia que era a d ita m andinga coisa de Deus”.26 Joseph Pedroso, quase dez meses depois, acabou denunciando a presença do D iabo n a feitura das m andingas, que como mulher aparecia para outros companheiros num a encruzilhada. “Temperava” as m andingas p ara lhes d a r m ais força e, por fim , dava-lhes um a raiz p a ra aplacar a ira dos senhores quando chegassem a casa, já tarde. Finalm ente, não resistindo à pressão inquisitorial, confes sou sua presença nos encontros dem oníacos, na confecção e no “tem pero” das bolsas, m as só por três vezes, vendo-o como mulher e dando-lhe “amplexos e ósculos”.27 A s estatísticas de Pedro Paiva p ara as confissões envolven do p actos diabólicos apontam p a ra um índice de 12,6% no total. D iscordam os, no entanto, da hipótese de que os negros e forros tenderiam a ceder na confissão de pacto logo nas primeiras sessões em com paração aos brancos e cristãos-velhos, tendo em vista um “m enor enraizam ento da crença” por p a rte dos negros. O número de negros e m ulatos que im ediatam ente confessaram o pacto foi bem pequeno em relação ao conjunto dos processados, sendo a m aioria torturados justam ente para que deles fosse arrancada essa confissão; com o vim os em capítulo precedente, a crença católica p o r p a rte desses grupos era relativam ente sólida.28 *
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O saber dem onológico em Portugal transitava não apenas entre as elites letrad as p o rtu g u esas, m as tam bém , filtrado, entre os
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.774. Idem. PAIVA, J.P., op. cit., p.356.
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negros e mulatos, escravos e forros, dem onstrando u m a vez m ais a noção de circularidade cultural. V ários foram os exemplos de processos e denúncias em que os negros externalizavam em suas confissões elementos da dem onologia, com o a tran sm u tação do Diabo em anim ais, o teor das cópulas sexuais e os conventículos demoníacos. A aquisição desses conhecim entos se originava nas próprias instâncias de poder: nos cárceres inquisitoriais, nos editais que incitavam denúncias, ap reg o ad o s n as ig rejas, e nos p ró p rio s autos-de-fé, com leituras públicas das sentenças, fazendo com que estes saberes circulassem en tre os negros e o resto da população. O escravo A fonso de Melo, p o r exemplo, confessou ao inquisidor que vira o negro José Francisco - de quem co n trato u os serviços para “acalm ar a vontade do dito seu sen h o r” - sair em auto-defé como feiticeiro por volta de 1738 e que fu g ira dele p o r m uito tempo, m as influenciado p o r outro com panheiro de cativeiro “se sujeitou a fazer o que tem confessado”.29 A m enção ao Diabo p o r p a rte dos negros era resultante de um conjunto de situações. A ssum indo espontaneam ente ou sob a pressão da tortura, o pacto im plícito ou explícito com o “P ríncipe das Trevas” podia ser um m eio de escap ar das m alhas do Santo Ofício, incorporando, estes réus, o d iscu rso dem onológico in quisitorial que construía a heresia da feitiçaria. N ão esqueçam os também que a idéia de D iabo, sendo fu n dam entalm ente cristã, já integrava o imaginário dos africanos, evangelizados e incorporados à sociedade portuguesa católica. Por outro lado, em alguns casos podem os considerar que o nome do D iabo podia ser dito na verdade p ara dissim ular deuses e entidades genuinamente africanos, consagrando-se dessa form a um sincretism o às avessas, ao ser su p o stam en te evocado pelos 29
ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 112, livro 304.
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negros em situações de m edo ou desespero. P articularm ente nos processos de ritos tidos por “gentílicos”, com o nos calundus, essa associação é nítida. Tal com o no caso dos B en n a n d a n ti estudados por G inzburg, v in h a à baila “um extrato de crenças populares substancialm ente autónom as” em m eio às perguntas dos inquisidores.30 A p esar de p o r vezes assim ilarem o discurso inquisitorial, os réus n arrav am tam bém suas crenças e práticas, que m esm o chegando até nós de form a indireta, “através de filtros e interm ediários que os defor m am ”, davam algum a idéia do seu universo religioso.31 Q u an to aos inquisidores, estavam em constante processo de aprendizagem em relação aos elem entos integrantes das p ráticas m ágicas dos negros e m ulatos. O uvindo confissões e narrativas, de processo em processo iam acum ulando conhecim entos, adqui ridos nas sessões de inquirições e exames. Vimos claram ente, por exemplo, que em relação às bolsas de m andinga a certa altu ra eles já sabiam que vin h am do Brasil e que, em algum as curas, poderia haver cerim ónias, justificando até um dos preceitos do M a n u a l dos Inquisidores: deviam “ser capazes de reconhecer as p articu la ridades rituais, de vestiário etc., dos diferentes grupos de hereges”.32 Evidentem ente que, em relação aos judaizantes, eles se to rn aram exím ios no reconhecim ento de suas práticas. M as no que se refere aos negros essa tarefa era bem m ais difícil, sobretudo quando se tratava de crenças e práticas que tinham origens inequivocam ente african as. Por vezes os inquisidores sim plesm ente desdenhavam essas m anifestações, m ovidos ainda pelo sentim ento de desprezo e discrim in ação racial d ian te dessa população. E m 1767, no caso do forro D om ingos d a Silva de O liveira, 30 31 32
GINZBURG, C., O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.25. Idem, p.18 EYMERICH, N., op. cit., p.128.
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m orador em Pernambuco, é notória a postura do inquisidor diante dos negros. Tendo tira d o a hóstia da boca no ato da confissão, porque tin h a ouvido dizer que era boa p ara “g u ard ar o corpo”, foi perguntado “se ele sabia que som ente os padres po d iam pegar na p artícu la consagrada e ele réu não é p adre, m as senão u m preto então escravo e u m m iserável em todo o sentido, com o se atreveu a p o r as suas m ãos im u n d a s no santíssim o C o rp o de C risto Sr. N osso Sacram entado” (grifo meu).33 O que p o r fim constatam os é a existência dos cham ados n í veis culturais erudito e p o p u lar em constantes trocas e interações, não sendo eles homogéneos. Evidentem ente que havia diferenças no in terio r das elites le trad as p o rtu g u esas e na p ró p ria Igreja, com inquisidores altam ente conhecedores de tratad o s teológicos e clérigos sem i-analfabetos, despreparados e até coniventes com as superstições e m agias que a Inquisição tan to esperava reprim ir, com o o Pe. D om ingos F rancisco, que foi denunciado em 1746 por ter ido consultar um a feiticeira de Braga p ara saber “do paradeiro de um teso u ro ”.34 D em o n stran d o as interações en tre estes níveis culturais na E u ro p a dos Tem pos M odernos e as diversidades de cad a um deles, Peter B u rk e co n stato u , p o r in term éd io de um florentino do século XVI, que um a parcela do clero participava das m anifestações populares, a exemplo do C arnaval, onde fra des “jogam bola, encenam com édia e, vestidos a caráter, cantam , dançam e tocam instru m en to s”.35 I N N O M I N E DEI: NEG ROS E D EM ÓNIOS Em bora levasse muitos negros e mulatos aos cárceres inquisitoriais, o P ríncipe das Trevas” foi evocado espontaneam ente em vários 33 34 35
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 9.813. ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 109, livro 301. BURKE, Peter, Cultura popu lar na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.53.
processos. Com o m ostra a Tabela 9, as alusões ao Diabo estiveram presentes sobretudo nos casos de p ráticas mágicas envolvendo relacionam entos pessoais e afetivos. S atanás também foi consolo e refúgio p ara m uitas agruras vividas pelos escravos. Chamavamno p a ra que os auxiliasse em tarefas dom ésticas e, inspirados por ele, confessavam e assum iam a elaboração de feitiços e mandingas p ara se protegerem da violência senhorial. A escrava M arcelina M aria, presa em Lisboa em 1734, pre cavia-se andando com as raspaduras dos sapatos de sua senhora em brulhadas. C erta vez, com pletamente transtornada e humilhada, não pensou duas vezes em se valer do D iabo para aplacar a ira de seus senhores e a sua própria. O senhor, escrivão da Casa da ín d ia, era violentíssim o. N ão a deixava ir à missa e foi implacável quan d o descobriu o rom ance entre ela e outro escravo da casa. A çoitou-a sem piedade, m as o pior foi ver-se despida e descom p o sta d ian te de sete homens, dentre os quais o senhor e ainda o am ásio, que tam bém apanhou. Incitava os ciúmes da senhora, e o desespero a fazia querer “ser vendida para os Brasis”, onde nascera. Aconselhada pelo escravo Domingos, notório mandingueiro, “amigo do D iabo” - que, segundo ele, lhe proporcionou ótim as relações com seu senhor e ligeireza em suas obrigações domésticas -, teve g rande “ânim o de ser feiticeira”, evocando o Demónio com toda a fé. C erto dia sentiu sua presença quando percebeu que o pão que am assava se fazia com m uita eficiência, e as tarefas da casa realizaram -se sem esforço. O uviu um a voz convidando-a a ir ao C am po G rande p a ra encontrá-lo à m eia-noite, mas quando saía viu u m vulto altíssim o na form a d e bode e não foi, teve medo. Pegou a im agem de Jesus e dorm iu com ela abraçada.36 A s supostas relações com o D iabo eram um refúgio para as m azelas sofridas pelos escravos. C lam avam por ele em momentos 36
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 631.
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de raiva e desespero, o que em alguns casos se configurava com o um pacto explícito. Nas condições em que viviam , a fig u ra do Demónio aparecia como aplacadora de castigos, auxiliar de tarefas e consolo para a inquietação vivificada pelos african o s no Reino. Dorotéia da Rosa, presa em 1754, nu m a noite estava “tã o raivosa e magoada” com seu senhor que “se resolveu desesperadam ente a cham ar pelo Demónio dizendo que viesse e a levasse d ali”.37 M uitos negros ainda clam avam pelo D em ónio em orações e aclam ações que co m p u n h am ritu a is de c u ra e e ra m p o stas dentro de bolsas de mandingas, integrando feitiços que visavam aproxim ar homens de mulheres, acalm ar ou cau sar danos físicos nos senhores. A angolan a L uiza de L a ra foi d e n u n ciad a em 1702 pelo próprio homem que havia pedido sua ajuda p ara ser readm itido ao serviço de Francisco Gomes, de quem era caixeiro. E nsinou que depois de queim ar q u atro ram o s de alecrim em cru z, com as pontas cortadas, acrescentasse um punhado de sal, chegasse à janela à m eia-noite e dissesse: Lá vem Francisco abaixo, com a corda de enforcado, arrasto vem dizendo, valei-me, eu não te quero valer, ele para mim vem a correr mais querido de ti que todas as mulheres, lhe dava tudo quanto quisesse... tudo quanto souberes Barrabás, Satanás, Diabo coxo, Diabo dos povais, Diabos da Ribeira e todos os Diabos capitães se metam no corpo de fulano, com que não se possa estar, nem descansar, Maria de Faria com toda a sua quadrilha.38 A ntônio M ascarenhas, tam bém angolano, escravo preso em 1742, pediu ao estudante A ntônio da Silva que trasladasse u m a “carta de to c ar” que trouxera do B rasil, co n ten d o inclusive p in tu ra s,
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 2.632. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 538.
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dentre as quais um a “grelha, um espeto e o u tras m ais”, que dizia serem arm as do D iabo. Confessou tam bém que certa vez evocara o D em ó n io com assobios p a ra p e d ir u m a c a rta de m andinga. A p arecen d o sob a form a de hom em com pés de cabra, ele o fez prom eter que o serviria por três anos e recitou as seguintes palavras p ara que colocasse n a carta: “Em nom e do D iabo, pé de p ata de São C ipriano, São M arcos e Justo Juiz, essa c a rta de m andinga o livrará de lutas, ferro, fogo e de todas as pendências”.39 A suposição da “am izade” que muitos tinham com o Demónio contrib u iu b astan te p ara um largo processo de dem onização dos negros e mulatos: seus costum es, suas crenças e sua religiosidade foram incansavelm ente detratados e associados a Belzebu. O Brasil e suas gentes, índios e negros, foi palco desse discurso, escandalizando-se os prim eiros colonizadores e jesuítas, com o N óbrega ou A nchieta, an te a vida devassa dos indígenas e sua “boca infernal de com er tantos cristãos”. Lem brem o-nos da m em o rável passagem de Frei V icente do Salvador em 1627, constatando que o nom e Brasil, associado à coloração verm elha do pau-brasil, cor das cham as infernais, era indício de que o D iabo finalm ente en co n trara m orada tam bém do outro lado do A tlântico.40* M as também os negros, com seus batuques e calundus, fizeram do m undo colonial a filial do Inferno. A s “gentilidades” africanas
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 254. “O dia que o capitão-mor Pedro Alvares Cabral levantou a cruz (...) era a 3 de maio, quando se celebra a invenção da Santa Cruz em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra que havia des coberta de Santa Cruz, e por este nome foi conhecida muitos anos. Porém, com o o dem ónio com o sinal da cruz perdeu todo o dom ínio que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com que tingem panos, que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja.” Apud SOUZA, L. de M., op. cit., epígrafe.
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horripilaram clérigos, missionários e colonos, como N uno M arques Pereira que, em seu C om pêndio narrativo do peregrino da Am érica, de 1728, foi categórico na crítica a certos senhores que perm itiam a seus escravos to d a so rte de “abusos e vícios”:
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Logo, como se lhes pode permitir agora, que usem de semelhantes ritos, e abusos tão indecentes, e com tais estrondos, que parece que nos quer o demónio mandar tocar triunfo ao som destes infernais instrumentos, para nos mostrar como tem alcançado vitória nas terras, em que o verdadeiro Deus tem arvorado a sua Cruz à custa de tantos Operários, quantos têm introduzido neste novo mundo a verdadeira Fé do Santo Evangelho (...). É um pacto explícito, que fazem estes gentios com o Diabo, sobre o qual assenta alguma conveniência corporal da parte do que o faz: como de terem bom sucesso na guerra, fortuna na caçada, na lavoura, etc.41
L u iz M o tt b rin d a-n o s com u m a in teressan te n a rra tiv a de um clérigo n as M in a s G erais, q u e em 1759 d en u n cio u u m a p re ta calu d u n zeira d a n açã o C o u rá que o im p ed ia d e d o rm ir pelos ru íd o s ensu rd eced o res que fazia o calundu, p arec en d o “peças de a rtilh aria, tão horrendas as algazarras e estrondos, roncos de porcos m edonhos e cavalo relinchando e vários instru m en to s do Inferno e no fim g rita ria de g alin h as”.42 Em Portugal, esse processo de demonização seguiu os mesmos passos de sua colónia do ultram ar. P articularm ente em relação a ritos m ais complexos, o docum ento dos ritos gentílicos de A ngola em Lisboa m enciona “adoração do dem ónio em fig u ra de bode, a
que cham am cacuto, a que se juntam m uitos de noite, com grande estrondo de atabaques em suas senzalas”, e “várias imagens a que cham am quitecles, a que dão culto dizendo — Este é meu filho, este é m eu pai, este é m eu irm ão, e com o a vivos lhe oferecem su sten to ”.43 A asso ciação d a en tid a d e reverenciada ao D iabo integra, evidentem ente, o discurso dem onizador da Inquisição diante das devoções dos africanos. D esde a Á frica os cultos e ritos com os quais os missionários portugueses se d epararam foram objeto da m ais pura indignação e repressão. N as palavras de L au ra de M ello e Souza, o “olhar dem onológico” do europeu sobre a A m érica tam bém atingiu a Á frica que, vendo as p ráticas m ágicas e religiosas dos diversos grupos africanos, analogicam ente associou-as à sua “estru tu ra m ental e discursiva” p ara entendê-las.44 E m 1607, em m issão à C o sta d a G uiné, o padre M anuel Á lvares e outros com panheiros seus te n taram persuadir o rei de G uinalá a abdicar de suas “cerim ónias gentílicas”, cham adas de chinas, constatando a presença de ares satânicos naquelas terras distantes: Tão grande é o poder que o Diabo tem adquirido sobre esta mise rável gente! E esta cruel e diabólica cerimónia (...), a brutalidade de sua China, declarando-lhe o desatino tão brutal com que o Diabo os trazia enganados.4S* 43 44
PEREIRA, N.M., Com pêndio narrativo do Peregrino da Am érica (1728). Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1939, v. II, p.133. Ver SOUZA, L. de M., op. cit., p.144. MOTT, L., “Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”. In: SOUZA, L. de M., H istória da vida privada. Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.200.
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ANTT, Conselho Geral do Santo Ofício, Coleção Manuel da Cunha Pinheiro, tomo XXXI, livro 272. Jean de Léry, em fins do século XVI, viu nos ritos ameríndios tupi, no Brasil, encontros sabáticos ao estilo das bruxas européias. Ver SOUZA, L. de M., Inferno atlântico. Demonologia e colonização. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.162. “Relação anual das coisas que fizeram os padres da Companhia de Jesus nas suas missões, pelo Padre Fernão Guerreiro, S. J.”, Coimbra: 1931, v. II (1604/1606), p.415-418. In: BRÁSIO, A., M onum enta missionaria africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953, v. IV (1600/1622), p.205.
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Na Angola de inícios do século XVII, as missões jesuíticas atuaram destruindo ritos e ídolos, queim ando “cabeças de cabras, cágados, pés de anim ais, ossos de elefantes e outras im undícies, m ostrandolhes quão falso era tudo o que lhes diziam seus feiticeiros”. “T ão apoderado estava o Diabo desta miserável gente, e nem um a cruz queriam consentir que se levantasse”, bradou um clérigo d ian te da resistência do soba C asanha em c o n stru ir um a igreja cristã e em perm itir a destruição de duas casas de culto locais, “já sem portas e sem ídolos, porque os tin h am levado ao m ato, sabendo o que fizeram aos do outro soba”.46 Sem dúvida alguma, os m issionários viam diabos em to d a a Á frica. Em 1609, o padre B althazar B arreira pedia ao rei de Bona, a leste do Senegal, que o deixasse partir. A negativa preocupou-lhe, pois ouvira falar que esse rei usava de “diabos fam iliares” p a ra castigar aqueles que abandonassem o reino co n tra a sua vontade. O utrora, contou que dois portugueses que tiveram essa intenção foram “tão atormentados por esses dem ónios que julgaram m orrer de terror e de sofrim ento”. E n q u an to um deles dorm ia, o D iabo soprou-lhe no nariz “p ara dentro do cérebro m atéria tão m alchei rosa” que acordou subitam ente e vom itou sangue p a ra se liv rar do incómodo. Apegado às suas relíquias, este clérigo acreditava estar cercado de “forças diabólicas e de ídolos”, lançado naquele “labirinto” pela grande confiança e am or que tin h a a D eus.47 A d e sc riç ã o de rito s a n g o la n o s, em 1575, p elo so ld a d o A ntônio de O liveira C ad o rn eg a - au to r de H istória geral d a s guerras angolanas, 1680 -, é notável em tran sfo rm ar os costum es e ritos “gentílicos” em obras do dem ónio. A s adorações a ídolos, os sacrifícios e oferendas p ara obterem saúde, as consultas aos
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oráculos p ara saberem procedim entos de curas com ervas e raízes eram coisas do “Pai das m aldades”, cuja fam iliaridade com seus adivinhos - os gangas - era enorm e, enganando-os e “levando-os à perdição”. O s “enxaquetam entos” que faziam os gangas eram tid o s p o r C adornega com o ch am am ento e evocação do D iabo, “p ara lhes d a r rem édio em seus males ou lhes d ar distinção a suas consultas”.48 E m m issão p a ra o R eino de M atam b a, o cap u c h in h o Fr. A n tô n io R om ano, p o r volta de 1658, em m eio à m issão evange lizadora, in corporou o D iabo em ritos e crenças locais. Recebeu “m alungas” (braceletes e argolas) de m etal usadas nos braços, “feitas e forjadas com grandes cerim ónias e superstições gentílicas”, e que “serviam de fam iliar onde lhe dava o diabo sinal de tudo o que queria saber”. E ste religioso prontam ente pôs fogo em tudo, na crença de que vencia m ais um a batalha contra Satã: “o fedor daquele incêndio era ta n to que não havia quem pudesse su p o rtar m uito ao largo, dan d o grandes estrondos que p arece estava ali o Inferno todo”.49 O padre italiano da ordem dos capuchinhos, Pe. João A ntônio C avazzi de M ontecuccolo (1621-78), atuou em A ngola entre 1654 e 1667 e entre 1672 e 1677 no Congo. Escreveu a D escrição histórica dos três reinos do Congo, M atam ba e A ngola, de 1658, onde não só descreveu, m as registrou imagens dos negros e de seu cotidiano, pin tad as ao longo do texto. E ste clérigo se ocupou b astan te dos ritu ais religiosos dos africanos, nesse espírito de dem onizar essas práticas. Suas observações foram apuradas, ao a rro la r cerca de trin ta tipos de feiticeiros em A ngola.50 48
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Idem, p.413-415. In: op. cit., v. V (1600/1610), p.239. BARREIRA, B., Lettre Écrite de Guinée. Paris: 1609, p.16-19. Apud COQUERYVIDROVITCH, C., A descoberta da África. Lisboa: Edições 70, 1965, p.153.
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CADORNEGA, A. de O., História geral das guerras angolanas (1680). Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1940, v. I, p.39. Idem, v. II, p. 167-168. MONTECUCCOLO, J. A.C., Descrição histórica dos três reinos d o Congo, M atam ba e Angola (1658). Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965.
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Um últim o exem plo interessante da dem onização dos cultos negros se deu no R eino de Benguela em 1722. A c a rta enviada à Inquisição pelo Fr. M anuel de S anta C atarin a, bispo de A ngola e Congo, fez com que o T ribunal Lisboeta m andasse um a com issão à Benguela p a ra a p u ra r os fatos. N atu ral de A ngola, o capitão A ntônio de Freitas m andara fazer em sua casa uma festa “gentílica”, e m uitos de seus vizinhos e colegas de ofício testem u n h aram ao visitador os detalhes do episódio. A reunião, com vários escravos e escravas, atabaques e “instrum entos am bundos”, era p ara A ntônio de Freitas “se c u ra r de achaques” causados pelo espírito de sua m ulher, “que nele estava m etido, o que cham am vulgarm ente o gentio Zum bi, e que só fazendo-lhe a d ita festa sararia”. A lém das curas am bundas a que se subm etera p o r interm édio de um negro do D om be, devia, nessa festa, “oscu lar a traseira de u m bode” m orto “ao m odo gentílico” p ara a ocasião. U m de seus vizinhos acusou-o de “useiro e vezeiro destas superstições”, frequentando um lugar onde o tal bode era cultuado. Sebastião M artin s, assis tente do presídio de Benguela, afirm ou a g rande publicidade da reunião, sendo “estrondosos” os folguedos das negras; segundo F rancisco V ieira de L im a, bailavam m u ito e d iziam “palavras diabólicas, que ch am a o gentio sa q uilam entos, que é o m esm o que invocar o D iab o ”. O Pe. C ristóvão M oreira da Sylva, clérigo do hábito de São Pedro e vigário da v ara no presídio de Benguela, doente na ép o ca da festa, não se incom odou “p o r razão de não ser novidade o fazer a gente p reta sem elhantes folguedos”, m as quando soube da m atança do bezerro avisou ao prom otor eclesiástico p ara a b rir a denúncia e m andou prender a todos. In teressan te foi o dep o im en to do ca p itã o M anuel Sim ões, a firm a n d o que to d o s naquele reino, ta n to b atizad o s com o p a gãos, se curavam p o r m eio dessas práticas. Q ualquer doença que tinham , “a p rim eira diligência que fazem é invocar o D em ónio
p ara ad iv in h ar a doença que tem p a ra o que lhe oferecem muitos sacrifícios”. E stando esse capitão há cerca de quarenta anos em todos os presídios do Reino, “com larga experiência de todas estas m aldades”, ouvira de m uitos “negros gentios” que “não era pecado o que se usava há tantos séculos, e que D eus perm itia que cada qual usasse dos meios necessários p a ra o seu remédio (...) e que D eus não fazia caso das ditas coisas”. Tais absurdos ele atribuía à “falta de legítim a e verdadeira fé”.51 Tanto o discurso inquisitorial quanto o dos testem unhos brancos refletiam nitidam ente a associação desses ritos a evocações dem oníacas. O p arecer final da Inquisição, no entanto, concluiu que as culpas n ão eram suficientes p a ra prisões, dem onstrando mais um a vez um certo desdém por p a rte do Santo Ofício em relação a essas “superstições e ritos gentílicos”. Jacques Le G off analisou brilhantem ente o processo de trans m igração do im aginário lendário europeu da Á sia e do O ceano ín d ic o - lugar de fan tasias h ab ita d o p o r m onstros e criaturas fantásticas - em direção a outras regiões do globo à medida que o conhecim ento geográfico do O rien te desm istificava essas noções em fins d a Idade M édia.52 V im os, p o r exemplo, como o reinado do lendário Preste João cam in h o u da Á sia à Á frica, sendo uma das m otivações que levaram os lusitanos a adentrar o Atlântico. M as a aventura portuguesa em d ireção a esse oceano recriou um im aginário que, em relação à Á frica e suas outras colónias, como o Brasil e o O riente, associou suas gentes ao Diabo, demonizando seus costum es e religiosidades.53*
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ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 92, livro 285. Agradeço a indicação desta denúncia a Selma Pantoja. LE GOFF, J., “Ocidente medieval e o Oceano índico: um horizonte onírico”. In: Idem, Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1979. SOUZA, L. de M., O Diabo e a terra de Santa Cruz..., p.25-7.
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Q uando chegaram a Portugal, em m eados do século XV, os a fri canos eram vistos como m ercadorias exóticas, ao lado de m acacos e papagaios, integrando festas e sendo exibidos nos círculos reais. Nesses primeiros momentos, Lúcifer ainda m antinha distância de seus futuros acólitos no Reino, em bora estes fossem detratados pelos cham ados cronistas dos descobrim entos. E ram “tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quase se p arecia (...) imagens do hemisfério m ais b aixo”, dizia o cronista Z u rara , referindo-se aos prim eiros african o s desem barcados em Lagos, no ano de 1444.54 Mas não tardou p a ra que tam bém em P ortugal Belzebu fosse associado a eles e seus cultos. São novamente as fontes inquisitoriais que vão mostrar os brancos e os próprios negros vendo o Demónio como negro em vários processos e denunciações. D o mesmo modo, em inúm eras denúncias e depoim entos de brancos, percebemos a dem onização dos cultos e práticas da população de origem africana em Portugal. Vejamos, inicialm ente, alguns dos demónios negros apanhados nos processos inquisitoriais. M aria Tomé denunciou ao S anto O fício, em inícios do sé culo XVIII, um a mulher que se postava de joelhos d ian te de um a imagem de um “negrinho cham ado S atan ás” e que p o r volta de meia-noite o enterrava no adro de u m a igreja de Lisboa.55 Francisco Antônio, o já m encionado escravo curandeiro cujo “mestre” falecido lhe deixara m ateriais e métodos de cura, confessou que viu o Diabo na figura de um a p reta velha bem vestida, com um cachimbo na boca, convidando-o p ara “atos torpes nos m atos”. Negou o convite, pois constatou que ela “tin h a os sinais de um e de outro sexo”. O dedal que Francisco usava nas curas “m eteu-lhe 54 55
ZURARA, G.E., Crónica da Guiné. Porto: Civilização, 1972, Cap.XXV. ANTT, Inquisição de Lisboa, Correspondência recebida, livro 922.
na via da geração e depois de tirá-lo esfregou com as m ãos e lho tornou a d a r”, na intenção de aum entar seus efeitos. Para saber se alguém estava enfeitiçado, pusesse-o num a bacia e cantasse um a cantiga com eçando por “oy e cabindte”. N a m ente desse africano oriundo da Costa da M ina, percebemos as perm anências africanas de sua te rra n atal e, ao m esm o tem po, a presença de elementos cristãos europeus ao assum ir, p eran te os inquisidores, a figura d em o n íaca e o pacto. N otável foi o im ag in ário em relação ao p ró p rio D iabo, travestido de p reta, ensinando cantigas de curas african as e evocado por meio das mesm as canções...56 C o n tin u a n d o no ra stre a m e n to dos negros d iabos, en co n tram os o caso de M argarida Lourenço, estudado por Francisco B eth en co u rt, que n a rra u m g ra n d e conventículo d e m ulheres adoradoras de Belzebu e de outros diabos m enores, todos negros e trajad o s de frade.57 L u iz d e L im a, o m a n d in g u e iro d a C o im b ra setec en tista, confessou que viu o D iabo sob a form a de um m ulato, “com o n ariz m uito levantado, cabelo m uito grosso, preto e vinha vestido com traje de gente de fora da cidade, e nunca viu hom em tão feio com o aquele”.58 Q u e os brancos colorissem o D iabo de preto, não é difícil de entender pela via do estigm a aos africanos, seus costum es e sua condição de escravos.59*M as que os próprios negros tam bém
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ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.179. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.642. Apud BETHENCOURT, F., O imaginário da magia. Feiticeiras, saludadores e nigromantes no século XVI. Lisboa: Centro de Estudos de História e Cultura Portuguesa, 1987, p.167. ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 1.630. A documentação inquisitorial também mostra o grau de enraizamento do preconceito racial, que também o próprio Santo Ofício ativava na população. Na Évora de 1701, por exemplo, Catarina Dias denunciava que, tendo seu filho atirado uma pedra no vizinho, este chamou a ela e seu marido de “muitos nomes afrontosos”, dentre os quais dizerem “que eram ju d eu s e m ulatos”
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252 o fizessem , talvez fosse pelo fato de associarem suas entidades africanas, de cor negra, ao Demónio, com o m eio de se adequar ao discurso do inquisidor - p o r estratégia ou medo, visando m inorar sua condição de réus. PUN IÇÕ ES: RÉUS NEGROS, BRA NC AS SEN TEN Ç A S N enhum processo contra negros ou m ulatos feiticeiros m ereceu o “relaxam ento ao braço secular”, expressão que significava a suposta transferência p ara a ju stiça secular dos hereges convictos e irre dutíveis e sua im ediata condenação à m o rte na fogueira, em bora nenhum m agistrado civil sequer visse os autos. N a prática, porém, era um artifíc io do T rib u n al p a ra n ão assu m ir esse gênero de condenação.60 Sobre esta pena capital, vale lem brar que integrou todo um conjunto de penas de m orte típicas das justiças do A ntigo Regim e, a té m uito m ais atrozes, não sendo u m a especificidade do S anto O fício. A p ró p ria ju stiça civil p o rtu g u esa condenava assassinos a penas supliciantes, com o, p o r exemplo, os ladrões de igrejas que na Lisboa de 1780 tiveram as m ãos decepadas “e queim adas à sua vista”, depois o enforcam ento e p o r fim “feitos por fogo em pó”.61 A s estatísticas dem onstram que foi um a m in o ria que subiu aos cadafalsos portugueses dos trib u n ais de C oim bra, Évora e Lisboa en tre os séculos XVI e XVIII: 8,3%, 5,3% e 4,6%, sendo a im ensa m aio ria de supostos ju daizantes (ver Tabela 3).62 Q u an to
aos feiticeiros estudados por Pedro Paiva, a percentagem foi ainda bem menor: 0,6% dos casos.63 Sobre as penas pecuniárias - confiscos de bens e pagamento de custas dos processos -, que foram largam ente aplicadas a todos os réus, os escravos eram naturalm ente isentos, cabendo ainda aos senhores o seu sustento no período em que estivessem no cárcere.64 O Conselho G eral do Santo O fício in stru ía os tribunais para que a cobrança fosse feita enquanto o escravo estivesse preso, e não depois de despachado o processo.65 A escrava da Guiné Domingas Fernandes, penitenciada por curandeirism o e numerosos feitiços, teve seu p ro p rietário notificado pela M esa do Santo Ofício por n ã o tê-la su sten tad o no tem po em que esteve no cárcere. E ra cristão-novo, já tendo sido pego pelo Tribunal, e provavelmente vislum brando o destino de sua cativa recusou-se a pagar a dívida. A escrava, então, foi libertada: Que a ré Domingas Fernandes estava livre e isenta, conforme o direito, de todo o domínio e sujeição que nela tinha o dito Doutor Roiz Navarro seu senhor, e que por assim se fez a confirmação de seu direito, isenção e liberdade se lhe devia despachar carta em que a declarasse por esta . 66
P ro v av elm en te, esse p ro c e d im e n to foi com um , com m uitos senhores se recu san d o a su sten tar seus escravos encarcerados, pois convenham os que a perspectiva de retorno da sua força de trab a lh o era rem ota. A probabilidade de p erd a total do cativo
(grifo meu). ANTT, Inquisição de Évora, Cadernos do Promotor 56, livro 262. 60
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Consagrava-se, assim o privilégio inquisitorial de condenar à morte por meio de metáforas, reforçando-se sua estampa misericordiosa, e convertendo-se os juízes civis em meros algozes a serviço dos santos inquisidores”. VAINFAS, R., op. cit., p.301. Idem, p.303. A pesquisa de Luiz Mott sobre o crime de sodomia demonstrou que apenas 1/4 dos penitenciados pelos Tribunais de Lisboa, Coimbra e Évora foi torturado.
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Ver deste autor “Desventuras de um sodomita no Brasil seiscentista”. In: O sexo proibido. Virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição. São Paulo: Papirus, 1988, p.75-131. PAIVA, J.P., op. cit., p.219. ANTT, Conselho Geral do Santo Ofício, Coleção Manuel da Cunha Pinheiro, tomo VII, 1702. Idem, tomo III, livro 244. ANTT, Inquisição de Évora, processo 10.101.
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era o mais evidente, pelo tem po em que estaria cu m p rin d o sua pena ou por m orte natural ao longo desse período. E m relação aos negros livres, não encontram os nenhum a referência relativa a confiscos, isentando-os na p rática o inquisidor, pela já sabida falta de recursos dessa população. As outras sentenças inquisitoriais, em bora n ão levassem à m orte im ediata, por vezes d estru íam irrem ediavelm ente o indi víduo, física e emocionalmente. Jogados nas prisões p o r anos a fio, expostos a público, degredados p ara regiões com pletam ente inóspitas no Im pério português ou condenados às galés do Rei - trabalhos forçados nas em barcações reais ou em te rra firm e -, dificilm ente eles resistiam às situações que a “m isericó rd ia” in quisitorial lhes garantia.67 Embora, com o já se disse, em relação a outros delitos do foro inquisitorial, especialmente os judaizantes, a feitiçaria tivesse uma repressão m ais branda em term os estatísticos, é preciso enfatizar o teor de violência dessas perseguições.68
Se olharmos para as sentenças im postas aos negros e mulatos residentes em Portugal, conform e a Tabela 14, alguns dados são significativos. Vale lembrar que algum as dessas penalidades eram sim ultâneas, havendo, p o r hipótese, açoites, degredo e algum a abjuração num a mesma sentença. O núm ero de casos de sentenças leves, com o as p enas es pirituais e as abjurações de “leve suspeita na fé”, em relação às “abjurações de veemente” - 13 co n tra um a - é um indicativo da brandura inquisitorial em relação à feitiçaria, p articularm ente em se tratando de negros e mulatos. A s “abjurações” eram declara67 68
Sobre as sentenças inquisitoriais dos réus acusados de crimes morais no Brasil, ver VAINFAS, R., op. cit., p.298-323. Edward P. Thompson adverte que a violência também perpetrada em pequena escala pode adquirir uma conotação política significativa. Ver deste autor Historia social y antropologia. México: Instituto Mora, 1994, p.64.
ções de arrependim ento que variavam em função da gravidade do crim e, eram classificadas ao a rb ítrio dos inquisidores segundo o posicionam ento do réu d ian te do delito: se confessava a heresia, se insistia em negá-la, se arrenegara a fé e a Igreja, se de fato se arrependera. A s penas socialm ente infam antes, com o o uso do hábito de penitente, d a “carocha” de feiticeira e a perm anência na p o rta de igrejas com um a vela na m ão eram tam bém aplicadas à guisa de exemplo, m as em relação aos negros e m ulatos não tiveram m uita incidência. A s p enas de degredo com o com plem ento de açoites foram as de m aio r ocorrência. O chicote pelas ru as, à vista de todos, era com um , sobretudo no caso da população de origem african a, que não se enquadrava nas altas categorias sociais, que podiam se livrar dessa pena vil e hum ilhante, atestada pelos códigos legais e pelos p ró p rio s regim entos inquisitoriais, isentando nobres e pessoas “de qualidade” de açoites e galés.69 D e todas as penas da Inquisição entre 1600 e 1774, 80% foram de degredos associados a prisões e açoites, tendência tam bém verificada p a ra a população de origem a fric an a em Portugal.70 N o Reino, iam para os locais m ais distantes, com o C astro M arim , no A lgarve, e no U ltram ar, p a ra o Brasil e a p rópria Á frica, p ar ticularm ente Angola. N o século XVII, o B rasil foi a região p a ra onde o S an to O fício m ais despachou seus réus. A o lado do E stado português, a Inquisição tam bém contribuía p ara um a política de reorientação dessas categorias sociais m a rg in alizad as e desclassificadas em direção à colonização u ltram arin a. Já no XVIII, o próprio Reino
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“Regimento do Santo Ofício... - 1640, livro III, Título XIV”. Op. cit., p.854857. PAIVA, J. P., op. cit., p.218.
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e as ilhas atlânticas tom aram o lugar do Brasil na preferência das sentenças de degredo.71 A s estatísticas da Tabela 14 m o stram que ap en as três dos 21 degredados negros foram p ara o Brasil. E m sua m aioria, po rém , os espaços destinados a estes réus foram o p ró p rio Reino, especialm ente C astro M arim , no A lgarve. M as a in d a assim a circularidad e das p ráticas e crenças dos negros era realim entada o tem po todo. L au ra de M ello e S ouza ch am a a aten ção p a ra o c ará ter simbólico do degredo enquanto elemento pu rifica d o r dos pecados. N o caso dos réus inquisitoriais, era o derrad eiro passo do árduo cam in h o purgado inicialm ente com a prisão, as inquirições, a to rtu ra , o desfile no auto-de-fé e, p o r fim , o d esem b arq u e em inóspitas terras po rtu g u esas, brasileiras ou afric an as.72 Nesses locais, a pena cu m p rid a pela exclusão que o d esterro im punha significaria a purgação das culpas, trab alh an d o o S anto O fício p ara ex tirp ar hereges inconvenientes, detratores da m oralidade e da religiosidade cristã d a sociedade, cu m p rin d o dessa form a seu papel norm atizador. Por outro lado, em meio a esse processo de exclusão social e posterior in co rp o ração dos fiéis, o S anto O fício, pela via da pena de degredo, foi um poderoso in stru m en to de transm issão cultural e religiosa, de transm issão de práticas e crenças que ele p ró p rio procurava extirpar. P articularm ente, o Brasil se constituiu com o um purgatório privilegiado, acolhendo em seu territó rio judaizantes, feiticeiros, sodom itas, bígam os, den tre outros, rep ro d u zin d o neste espaço suas p ráticas, fosse p o r cren ça, desejo ou m esm o p o r sobrevi71
72
SOUZA, L. de M., Inferno atlântico..., p.90. Ver ainda COATES, T., Degredados e órfãs: colonização dirigida pela coroa no império português. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. SOUZA, L. de M., Inferno atlântico..., p.94.
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vência, com o no caso dos feiticeiros que não tinham outra forma de subsistir a não ser reiniciando suas “arte s”, cobrando por seus serviços, crian d o assim um a nova fam a no lugar e até ensinando a outros. A Inquisição acabava por recriar novos réus que, peni tenciados em Portugal, lá perm aneciam , configurando um impasse no controle social que o T ribunal procurava impor. Esse ir-e-vir de indivíduos entre Brasil e Portugal, incluindo-se aí os réus reincidentes, que sofriam novos processos, era o espelho das contradições dos m ecanism os punitivos inquisitoriais e do p ró p rio sistem a colonial no plano “dos símbolos e das imagens , precisam ente vislum brado por L aura de Mello e Souza: Muitos dos feiticeiros metropolitanos reincidiram na colónia, sendo enviados para Lisboa e sofrendo novos processos cujo fecho era o degredo num couto de Portugal, das ilhas atlânticas ou da África. Outros, já no século XVIII, nascidos no Brasil e tributários de uma tradição mágica e demoníaca que o degredo ajudara a perpetuar mostrando, aqui, sua face de transmissor cultural -, eram também processados na Metrópole e degredados para seus coutos ou suas galés. A ca b a va m , a ssim , p o r infernalizar a M etrópole, criando n ovos p ro b lem a s p a ra a In quisição portuguesa. Infernalizar a colónia significava m uitas vezes ter, de volta, a M etrópole infernalizada. (grifo meu)73
Foi o caso do curandeiro n atu ral da C osta da M ina Domingos Álvares, que do Rio de Janeiro foi para Lisboa preso pela Inquisição e de lá foi degredado, em 1744, p a ra C astro M arim , no Algarve, onde continuou atuando, sendo por isso novam ente preso e peni tenciado pelo Santo O fício em 1749.74 A própria Inquisição im punha mecanismos de difusão cultural
73 74
Idem, 101. ANTT, Inquisição de Évora, processo 7.759.
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e religiosa, fazendo circular, por interm édio de seus penitenciados, práticas tipicam ente européias de feitiçaria, que com o vim os vão se im iscuir, no Brasil ou em Portugal, a práticas m ais ligadas à própria Á frica, como foi o caso das bolsas de m andinga. *** As penas im putadas aos réus que estudam os v ariaram conform e o grau do delito. Comecemos pelos m andingueiros dos anos 1729 a 1731, cujos principais protagonistas foram Francisco Pedroso e Francisco Pereira. Suas penas foram duras, pois am bos confes saram o com ércio das bolsas en tre os negros, o envolvim ento do D iabo na preparação das m andingas, encontros n o tu rn o s em Vai de Cavalinhos e outros locais, p actos e até cópulas, com o foi o caso de Pereira. Com este últim o, a “m isericórdia” do inquisidor, depois de todas as suas confissões, foi rígida: saiu em auto-de-fé com carocha de feiticeiro, abjurou em forma, foi açoitado, obrigado ao cárcere e ao hábito perpétuo, b anido de Lisboa, degredado por cinco anos para as galés, teve penas espirituais e foi instruído nos “mistérios da fé”.75 Já ao seu com panheiro Francisco Pedroso foram im putados, igualmente, açoites, degredo p erp étu o p ara fora de Lisboa, cárcere e hábito perpétuo e cinco anos nas galés.76Também o baiano Manuel da Piedade, integrante desse grupo, teve um triste desfecho de seu processo: abjurou em form a, açoitaram -lhe, teve degredo perpétuo de Lisboa e cinco anos de galés.77 O bservam os que, nos casos em que o réu não tin h a envolvi mento com outros m andingueiros e nem confessava a presença do Diabo, apesar das pressões inquisitoriais, as penas não eram tão rígidas. Esse foi o caso de Jaques Viegas (1704) e P atrício de
75 76 77
ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.767. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11.774. ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 9.972.
A n d rad e (1690), que ab ju raram de leve suspeita na fé - o prim eiro num auto e o segundo na M esa inquisitorial -, foram açoitados e degredados p o r três anos em C astro M arim . O s destinos das curandeiras e curandeiros negros do Reino foram em regra abjurações leves, açoites e degredo. A lguns casos, no entanto, m erecem destaque. Réus que curavam doenças e su postos feitiços de várias m aneiras, com m uitos ingredientes, como Inez do C arm o (1754), Teresa M aria (1755) e M iguel de M acedo (1654), foram degredados e ab ju raram de leve suspeita na fé. A s duas p rim eiras p a ra o Vizeu, e o últim o - que, aliás, confessou curas evocando o D iabo - para o Brasil. O bservam os tam bém que as menções genéricas ao demónio, sem pacto explícito, ensejavam penas desse tipo. A rriscam o s estas considerações genéricas já sabendo, no en tanto, que é d ifícil estabelecer um q u ad ro preciso das penas específicas dos feiticeiros negros em relação à gam a de práticas m ág icas e seus objetivos, carecen d o p a ra ta n to de um estudo ap rofundado de outros casos e até de brancos p ara um a noção m ais precisa. R esta-nos, no entanto, ex tern ar a im pressão geral de que os casos m ais severam ente punidos foram aqueles que en volveram um pacto dem oníaco explícito, evidentem ente, e casos em que os “saberes” do réu eram difundidos entre os negros do R eino ou do Brasil. A grande m aioria dos negros e m ulatos do Reino processados pela Inquisição portuguesa teve em suas sentenças proferidas pelos inquisidores menções a ligações com o Diabo, desde explícitas, com um pacto, participações em conventículos e relações sexuais, até sutis, não passando de m eras suspeitas das influências satânicas, mesmo assim condenáveis, em bora nenhum tivesse explicitam ente insistido em renegar a fé em D eus e na Igreja, salvo tem p o raria m ente, quando sob o dom ínio do D iabo. O discurso inquisitorial associou seus réus feiticeiros ao D em ónio, de um m odo ou de
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CONCLUSÃO
outro. A s sentenças proferidas nesses processos de feitiçaria en volvendo negros se lim itavam à narrativa do caso e à associação das práticas observadas às influências do “Príncipe das Travas”, explícita ou im plicitam ente. N os vários processos que consulta m os, vim os term os africanos, com o a m b u n d u , jabacousse, ganga,
m andinga e outros, que foram pouco explorados pela curiosidade do inquisidor, lim itando-se a colocar o D em ón io na frente de um possível desvendar dessas práticas em Portugal. Lembremos, por fim, dos desenhos do mandingueiro Francisco Pedroso (im agem anexa), onde a cruz de Cristo foi transpassada por flechas, circundada por letras, pequenos guerreiros e corações, tam bém transpassados por flechas e espadas, não tendo sido em nenhum m om en to objeto de q u estion am en to do Santo O fício, provando um a vez m ais o desdém da Inquisição aos aspectos da religiosidade da população de origem negra em Portugal.
Estudar grandes temas, com o a religiosidade africana, a escravidão, o tráfico negreiro, a Inquisição, a feitiçaria e a cultura popular, num período de quatro séculos, não foi tarefa fácil. No nosso caso, lacunas, om issões e superficialidades certam ente permaneceram nos cam inhos que procuram os trilhar para tentar entender um pouco o que foi a religiosidade dos negros em Portugal do A ntigo
O p rojeto aculturador d o S a n to O fíc io fo i abrangente e, esp ecialm ente n o caso dos feiticeiros africanos no R eino, a de-
R egim e, e a m aneira pela qual sua p op ulação reconstruiu sua identidade cultural n esse novo espaço, em m eio à repressão da
m onização de seus cultos e crenças e a consequente repressão aos seus ritos e religiosidade foram um a das tentativas de enquadrar
Igreja levada a efeito por interm édio do Tribunal da Inquisição. A s práticas m ágicas, crenças e devoções desses africanos no
essa população aos preceitos e à ortodoxia da religião católica. E nesse processo, trabalhando no sentido de erradicar as práticas m ágicas dos africanos e seus descendentes, tidas por feitiçaria, a
R ein o tentaram responder a um a série de anseios e problemas quotidianos. D entre outros, à m anutenção da saúde, à felicidade
Inquisição ancorou-se na figura do D iab o para extirpá-las de vez das terras do Im pério português. D iab o de cor negra, que liderava
m ateriais de existên cia, aos ím petos de vingança, à segurança física e à proteção espiritual. O que os distinguia dos brancos,
calundus, preparava m andingas, curava doentes e am eaçava a pureza da fé cristã.
cristãos-velhos, que tam bém se valiam da m agia e da superstição, era justam ente o agravam ento dessas tensões sociais que, no caso dos escravos e negros, os levava à exasperação. Vimos quantos cativos urdiram m aneiras de aplacar a violência senhorial por interm édio de seus saberes e de suas relações com o sobrenatu ral, tecendo um a resistência ao escravism o ancorada em forças
no amor, à realização de desejos, à m elhoria de suas condições
invisíveis.
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Em m eio às “m andingas” que os negros faziam , tentam os, de algum m odo, esquadrinhar as raízes african as de algum as
espadas e corações - a lembrar pontos atuais da macumba carioca - , à qual o inquisidor mal prestou a atenção, indiferente ao detalhe
delas, destacando-se o uso das bolsas e os rituais dos calundus. Quanto a estes últimos, em bora presentes no R eino, perm anece
e cioso do protocolo dem onológico. A dem ais, ten tam os perceber o grau de com p lexid ade das
a lacuna, em seu estudo, pela falta de docum entação disponível sobre eles. Mas importa destacar que os com ponentes do cristia
m anifestações culturais no Im pério português, que no caso dos negros foi atestado por um m ovim ento de circulação de saberes e práticas - a exem plo das bolsas de m andinga - entre africanos
nism o e das antigas tradições pagãs européias se em aranharam a essas m anifestações, com pondo um com plexo cultural híbrido
do R eino e do Brasil, no trânsito inerente às atividades de seus
e m ultifacetado que também representou para os africanos, no território da metrópole portuguesa, uma via de reconstrução de
resp ectivos senhores. Por fim , alm ejam os detectar interações, englobando elem entos oriundos da elite letrada e culta, m as nem
sua identidade e de formação de novos laços de sociabilidade. A li,
por isso se isentando de ser cliente das artes m ágicas e curativas
os negros africanos comungavam procedimentos de cura, trocavam
dos negros. O s registros das m anifestações relativas à vivência religiosa
“feitiços”, indicavam clientes, difundiam seus saberes. Em m eio ao processo de evangelização a que foram subm e tidos antes m esm o de pisarem nos “tum beiros” portugueses, eles
desses africanos em Portugal são um cam po aberto para h isto riadores, antropólogos e pesquisadores continuarem a desvendar
estabeleceram laços entre si, os quais, pósteriorm ente, através das irmandades e eleições de reis, se consolidaram em Portugal.
seus m istérios. M istérios por séculos encerrados nos porões dos tribunais do Santo O fício, cujo resgate, ironicam ente, só foi pos sível graças aos que defendiam a Igreja de Rom a e a fé católica
Quando, no entanto, caíam nas “malhas do Santo O fício”, forneciam ao inquisidor, em face da confissão de suas crenças e devoções, a possibilidade de associá-las ao pacto diabólico, elem ento que em Portugal se configurou com o cerne da feitiçaria, isto é, com o crim e herético. Se por um lado algum as das m an ifestações dos africanos funcionaram como meio de socialização e alternativa de construção de identidades, por outro possibilitaram uma via de desarticulação e destruição desses próprios laços, associadas que eram à gam a de crim es heréticos da alçada do Santo O fício português. M as os inquisidores não se em penharam em desvendar a fundo essas m anifestações, preocupados que estavam em rastrear o pacto de m oníaco em m eio às m ezinhas, fervedouros, bolsas de m andinga e unguentos. D esse com portam ento vim os um exem plo ímpar na cruz desenhada pelo m andingueiro Pedroso, envolta em flechas,
em Portugal.
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1.1.3. Inquisição de Évora Processos: n° 216, 429, 2.229, 2.422, 3.315, 4.333, 4.745, 5.089, 5.940, 5.992, 6.257, 6.390, 6.460, 7.759, 7.855, 8.910, 10.101. Cadernos do Promotor: n‘ 25, liv.231; 38, liv. 244; 46, liv.252; 54, liv.261; 56, liv.262; 69, liv.270; 71, liv.272; 93, liv.290. Listas dos autos-de-fé: livros 2, 3 e 4. Correspondências: Recebida: livros 34 e 595. Denúncias: livros 91 e 94. Instruções práticas de actuação com os presos nos despachos e autosde-fé, liv. 105. 1.1.4. Conselho G eraldo Santo O fício Consultas do Conselho aos Inquisidores Gerais: livros 99 e 381. Cor respondênc ias: Para as Inquisições de Lisboa, Coimbra e Évora: livros 378 e 366. Listas de autos-de-fé: Coimbra, livro 433; Évora, livro 434; Lisboa, livro 435; Lisboa, Coimbra e Évora, livro 436. Inquisição - Obras sobre sua ação e defesa: livros 175 e 235. Santo Ofício - Colectânea de Manuel da Cunha Pinheiro: livros 244 a 249, 265, 266, 270, 272 e 273. 1.1.5. M anuscritos da Livraria v Livro de São Domingos de Lisboa, Livro 30. 1.2. BIBLIOTECA NACIONAL D E LISBOA “Bruxarias. Interrogatório de réus. Narração de práticas e invocações diabólicas”, Códice 668. “Descrição de várias regiões e notícias dos costumes de alguns povos Século XVII”, Códice 525. “Denúncias obrigadas de feitiçarias e superstições”, Códice 6178. Inquisição de Lisboa. Listas dos autos-de-fé. 1540-1767. “Questão bem necessária para os confessores, o bem impertinente e acerca da obrigação que há de denunciar feitiçarias e superstições”
1.3. BIBLIOTECA M U N IC IPA L DE ÉV O R A “Ritos gentílicos e superstições que observam os negros do gentio deste Reino de Angola desde seu nascimento até a morte”
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------.
ANEXO I
TABELAS E GRÁFICOS
TABELA 1. N úm ero de escravos exportados p ara Portugal entre 1441 a 1505
! j I t.I
PERÍODO E C O N TE X T O
N Ú M ER O S
1441 a 1448. Do período predatório na região do Cabo Branco até o estabelecimento da feitoria de Arguim.
1.000 a 2.000
1448 a 1450. Do início dos resgates com caráter comercial, em Arguim, até o ar redamento do tráfico a particulares.
1.500 a 2.000
1450 a 1505. Do período de arrendamento dos resgates, por Arguim, à volta do monopólio, com ampliação do tráfico para o interior (conside rada a média anual de 700 a 800 cabeças).
38.500 a 44.000
1450 a 1460. Período inicial do trato na região do Senegal, à média de 400 a 500 peças por ano
4.000 a 5.000
1460 a 1470. Período de pleno funcionamento dos resgates ao sul do Senegal, com o dobro do rendimento, ou seja, 800 a 1.000 peças ao ano.
8.000 a 10.000
1470 a 1475. Período de contrato de Fernão Gomes, 10.000 a com aumento da média para 1000 a 1.200 peças por ano. 12.000
•
*2—I------------------------------------ -------------------- «2
-------- ----- í3 i
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.
1475 a 1495. Período de maior grandeza do tráfi co em toda a costa, calculado por Duarte Pacheco num total de 3.500 peças por ano (excetuada a exportação por Arguim, computada à parte).
54.000 a 56.000
1495 a 1505. Período de queda do tráfi co após a morte de D. João II (média estimada de 2.500 peças por ano, excetuada a expor tação por Arguim, computada à parte).
19.000 a 20.000
Totais
136.000 a 151.000
FONTE: V itorino de M agalhães G odinho, Os descobrimentos mundial. Lisboa: Estampa, 1983, p.161, 1981963/65.
e a economia
TABELA 2. População aproxim ada de escravos em Portugal nos m eados do século XVI REGIÕES
Entre Douro e Minho Trás-os-Montes Beira E stre m a d u ra m iH B B H M H Entre Tejo e Odiana (Alentejo) Algarve Total
TABELA 3. N úm ero de processados e relaxados nos tribunais portugueses (1536-1767)
NÚM EROS
2.730(a) 1.265(c) 10.480(e) 3.f 32.370
(a) 6% da população da cidade do Porto (700 escravos); 1,5% da população do term o do Porto e da população de todas as restantes vilas e dos respectivos ter mos com assentos nas Cortes (2.030 escravos), de acordo com o A N TT, anterior arm ário 26, m aço 3, doc.2, “Lugares que vem as Cortes e os vezinhos, que tem: anno de 1535“, in: V isconde de Santarém, Documentos, parte 1‘, pp.88/9. (b) 1,5% da população de todas as cidades, vilas e respectivos term os com assento nas Cortes, ibid., p.88. (c) 1,5% da população das vilas e termos com assento nas Cortes, ibid., p.89. (d) 9.950 escravos em L isboa e resp ectivo term o, de acordo com C. R. de Oliveria, Sumário, p.95; 5% da população estritamente urbana de Aveiro e vilas a sul de Tomar, inclusive, com assento nas Cortes (1.255 escravos); 1,5% da população dos termos das referidas vilas, e ainda 1,5% da restante população da Estremadura indicada no censo de 1527 (2.525 escravos), in: V isconde de Santarém, Documentos, parte 1*, pp.90/1. (e) 10% da população de Évora e respectivo termo; 5% da população do restante A lentejo, com o indicado no censo. (f) 10% da população inventariada por A . de Sousa Silva Costa Lobo, História da Sociedade, p.31. Extraída de A . C. de C. M. Saunders, História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555). Lisboa: Imprensa Nacional/C asa da Moeda, 1982, p.90.
Lisboa Coimbra
Évora
Goa
Totais
1536-1605 Processados Relaxados % Relaxados
3.376 256 7,6
2.248 193 8,6
2.739 203 7,4
1.831 103 5,6
10.194 755 7,4
1606-1674 Processados Relaxados % Relaxados
3.210 337 10,5
4.877 261 5,4*
6.703 265 3,9
7.691
14.790 * 863 5,8
1675-1750 Processados Relaxados % Relaxados
2.844 209 7,3
3.079 93 3,0
1.281 28 2,2
3.347 59 1,8
10.551 389 3,7
1751-1767 Processados Relaxados % Relaxados
296 9 3,0
170 0 0,0
327 11 3,4
798 37 4,6
1.591 57 3,6
9.726 811 8,3
10.374 547 5,3
11.050 507 4,6
13.667
? /
TO TAL
Processados Relaxados % Relaxados
* Excetuando-se Goa. Fonte: Francisco Bethencourt, História das Inquisições. Itália. Lisboa: Temas e Debates, 1996, p.275.
? ?
31.150 * 1.865 6 ,0
Portugal, Espanha e
TABELA 4. Processados p o r feitiçaria nos trib u n ais de Lisboa, Coim bra e Évora (séculos XVI a XVIII) PERÍODOS
NÚMERO DE CASOS
%
1542-1550 1551-1560 1561-1580 1581-1595 TOTAL PARA O SÉCULO XVI
7 51 14 22 94
10,3
1600-1634 1635-1664 1665-1694 1695-1700 TOTAL PARA O SÉCULO XVII
43 97 83 16 239
26,3
1700-1729 1730-1759 1760-1774 TOTAL PARA O SÉCULO XVIII
238 301 40 579
63,4
TOTAL GERAL
912
100
Fonte: Francisco Bethencourt, O imaginário da magia. Feiticeiras, saludadores e nigromantes no Século XVI. LisboasUniversidade Aberta, 1987, pp.302/307; José Pedro Paiva, Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”. 1600/1774. Lisboa: Notícias Editorial, 1998, p.209.
G rá fico da TA BE LA 4
TABELA 5. Participação de negros e m ulatos entre os processados p o r feitiçaria pela inquisição portuguesa (séculos XVI a XVIII) #
%
Negros e mulatos Outros
60 852
6,5 93,5
Total
912
100
Fontes: Francisco Bethencourt, O imaginário da magia. Feiticeiras, saludadores e nigromantes no século XVI. Lisboa: Universidade Aberta, 1987, pp.302/306.; José Pedro Paiva, Bruxaria e superstições num pais sem “caça às bruxas”. 1600/1774. Lisboa: N otícia Editorial, 1997, pp.209.; ANTT, Listas de autosde-fé da Inquisição portuguesa
G rá fico da TA BE LA 5
TABELA 7. M otivações das práticas m ágicas realizadas por negros e m u latos p ro cessa d o s e d en u n cia d o s pela In q u isição portuguesa
Negros e Mulatos
#
TABELA 6. N egros e m ulatos p ro cessad o s e d en u n ciad o s p o r feitiçaria nos trib u n ais da inquisição p o rtu g u esa (séculos XVI a XVIII) #
%
Tribunal de Lisboa Tribunal de Évora Tribunal de Coimbra
61 20 12
65,5 21,5 13
Total
93
100
Fontes:
ANTT, Listas de autos-de-fé da Inquisição portuguesa
%
#
%
Total
Proteção*
Curandeirismo
Relacionamentos pessoais
(sécu lo s XVI a XVIII)
#
%
# 11 0
0 0
1540-60 1561-99 Total para o século XVI
6 0
1600-30 1631-60 1661-1700 Total para o século XVII
1 4 3
1701-30 1731-60 1761-99 Total para o século XVIII
7 13 2 22
33,3
16
24,3
28
42,4
66
Total geral
36
38,7
27
29,0
30
32,3
93
6
8
5. 0 54,5
5
45,5
0 2 4 50,0
6
0
0,0
1 6 9
0 0 2 37,5
3 9 4
2
11
12,5
16 23 36 7
13 14 1
Fonte: ANTT, Processos inquisitoriais, Cadernos do Promotor e Livros de denúncias referentes aos Tribunais de Coimbra, Évora e Lisboa. * D eve-se deixar claro que o quesito proteção está definido pelo uso de bolsa de mandinga.
G rá fico da TABELA 8
TABELA 8. M otivações das práticas m ágicas realizad as por negros e m ulatos processados pela In q u isiçã o p o rtu g u esa (sécu lo s X V I
# 1540-60 1561-99 Total para o século XVI
7 0
1600-30 1631-60 1661-1700 Total para o século XVII
1 2 2
1701-30 1731-60 1761-99 Total para o século XVIII
2 7 0
Total geral
7
5
%
Proteção
Curandeirismo
Relacionamentos pessoais
a X V III)
#
%
4 0 4
63,6
5
36,4
%
0
45,5
1
0,0
li
pessoais
í 4 6 9,0
13 5 1
5 2
# li 0
0 0 1
3 „
# 0 0
0 2 3 45,5
"-Õ 4-3*
11 18 17 3
9
23,7
10
26,3
19
50,0
38
21
35
19
31,7
20
33,3
60
Fonte: ANTT, Processos inquisitoriais referentes aos Tribunais de Coimbra, Évora e Lisboa
IV
T A B E L A 9. P r á tic a s m á g ic a s e m o tiv a ç õ e s: n eg ro s e m u la to s
G rá fico da TA BELA 9
p ro cessa d o s e d en u n cia d o s pela In q u isiçã o p o rtu gu esa (sécu lo s XV I a XVIII)
. O ,
■■
1
Uso de elementos cristãos* Uso de ingredientes para contato físico ou ingestão
j
}
#
#
#
#
%
Uso de elementos cristãos*
23
16
21
60
31,9
Uso de ingredientes para contato físico ou ingestão
25
19
0
44
23,4
4
1
30
35
18,6
Comunicação com os mortos mediante oferendas
16,0
Imprecações
•3 o
.
Uso de patuás e bolsas de mandinga
Uso de patuás e bolsas de mandinga Evocação expontânea do Diabo
16
6
8
■■■. " 30
Comunicação com os mortos mediante oferendas
3
3
0
6
3,2
Uso de “vodus”
Imprecações
6
0
0
6
3,2
Cerimónias “gentílicas”
Uso de “vodus”
2
2
0
4
2,1
Cerimónias “gentílicas”
0
3
0
3
1,6
79
50
59
188
100
Evocação espontânea do Diabo
* Evocação de santos, orações, hóstias, água benta etc. Fontes: A N T T , Processos inquisitoriais, Cadernos do Promotor e Livros de denúncias referentes aos Tribunais de Coimbra, Évora e Lisboa
0 8
5
10
15
Relacionamentos pessoais Curandeirismo ] Proteção
20
25
30
TABELA 10. Origem dos negros e mulatos processados e denunciados
D,
Oc
#
#
#
Sá.S $
AFRICA E ILHAS Costa da Mina Angola Congo Guiné São Tomé Benguela Moçambique Cabo Verde TOTAIS PORTUGAL Lisboa Viana Alcácer do Sal Beja Tavira Villa de Massão Montemor Lamego Alentejo TOTAIS
a
o c ca 3 O
.2 '2 Dí
O
1 6 4 2 0 1 1 1 16
-o
2 4 2 2 0 0 0 1 11
o IC O O u” o*-