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Português Pages 120 [119] Year 2023
LINGUAGEM, SENTIDO E AÇÃO na obra de
Daniel Everett
DANIEL LEONARD EVERETT DANILO VAZ-CURADO R. M. COSTA GERSON FRANCISCO DE ARRUDA JUNIOR JOSÉ MARCOS GOMES DE LUNA ELEONOURA ENOQUE DA SILVA
2023
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE Reitora: Profa. Dra. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcanti Vice-Reitor: Prof. José Roberto de Souza Cavalcanti Conselho Editorial da Editora Universidade de Pernambuco – EDUPE Membros Internos Prof. Dr. Ademir Macedo do Nascimento Prof. Dr. André Luis da Mota Vilela Prof. Dr. Belmiro Cavalcanti do Egito Vasconcelos Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura Profa. Dra. Danielle Christine Moura dos Santos Profa. Dra. Emilia Rahnemay Kohlman Rabbani Prof. Dr. José Jacinto dos Santos Filho Profa. Dra. Márcia Rejane Oliveira Barros Carvalho Macedo Profa. Dra. Maria Luciana de Almeida
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Linguagem, sentido e ação na obra de Daniel Everett / Daniel Leonard Everett, Danilo Vaz-Curado R. M. Costa, Gerson Francisco de Arruda Junior, José Marcos Gomes de Luna, Eleonoura Enoque da Silva. – Recife : EDUPE, 2023. 119f.: ISBN: 978-65-85651-19-6 1. Daniel Everett. 2. Linguagem. 3. Linguística. 4. Cultura I. Everett, Daniel Leornard. II. Costa, Danilo Vaz-Curado R. M. III. Arruda Junior, Gerson Francisco IV. Luna, José Marcos Gomes de. V. Silva , Eleonoura Enoque da VI. Título CDD 410
Elaborado por Claudia Henriques CRB 4/1600
APRESENTAÇÃO O conjunto de textos que ora se apresenta ao público são o resultado das pesquisas desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco, Brasil, e apresentadas ao público em setembro de 2021, em especial no contexto de seu cluster de pesquisadores em torno do eixo linguagem, sentido e ação. Os pesquisadores do núcleo ou linha de pesquisa Linguagem, sentido e ação se propõe ao estudo e investigação de conceitos e temas fundamentais do fenômeno humano da linguagem e dos seus desdobramentos no agir e fazer humanos, tal como esses são apresentados e discutidos sobretudo, mas não exclusivamente, a partir da tradição filosófica resultante da virada linguístico-pragmática. Em setembro de 2021 através do Youtube, em razão do contexto da Pandemia do Covid 16, realizou-se o Colóquio Linguagem, Sentido e Ação na obra de Daniel Everett através do qual por dois dias debateu-se sua obra, com sua presença e deu-se especial atenção ao seu livro Linguagem a maior invenção da Humanidade. Este volume é o resultado de uma rodada de resultados das pesquisas desenvolvidas e agora tornadas públicas em torno da obra do renomado pensador Daniel Everett, que nos brinda com uma tradução inédita ao português de seu trabalho O papel da cultura na emergência da linguagem, onde se apresentam importantes elementos relativos a relação entre linguagem e cultura. Na sequência têm-se o texto de Eleonoura Enoque de Souza Tradução radical e intencionalidade na linguagem: D. Everett e Quine tem objetivo demonstrar que alguns aspectos da teoria exposta e criada por Everett em A linguagem a maior invenção da Humanidade da linguística como construção social, possuem relação com o behaviorismo de Quine como arte social. Em continuidade o texto de José Marcos Gomes de Luna, Convenção Social, Significação Linguística e Formação da Linguagem: 4
um estudo desde Daniel Everett, coloca perguntas como “de que modo se estabeleceu a primeira convenção social linguística?” ou “que caminho foi trilhado, nos primórdios do ser humano, que resultou no surgimento da linguagem?” como inferências fundamentais para a compreensão desta invenção, instrumento altamente sofisticado, da cultura humana. Gerson Francisco de Arruda Júnior, nos brinda com o texto intitulado de Linguagem, Cultura e Ação: Uma hipótese de conciliação entre a teoria linguística de Daniel Everett e a pragmática linguístico-filosófica de Ludwig Wittgenstein , no qual, defende que a teoria linguística do prof. Everett poderá servir de suporte para fornecer a contraparte científica que falta à proposta filosófica de Wittgenstein. Por fim, o volume se encerra com o texto de Danilo Vaz-Curado R. M. Costa Motivos Hegelianos na obra de Daniel Everett: a linguagem como artefato cultura, que defende que tanto em Hegel como em Everett há um holismo de perspectiva e a centralidade da linguagem. Por fim, gostaríamos de agradecer a Editora da Universidade de Pernambuco, em especial ao Prof. Dr Carlos André Silva de Moura, sem o qual, esta obra não viria à público. Os organizadores
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SUMÁRIO
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O PAPEL DA CULTURA NA EMERGÊNCIA DA LINGUAGEM Daniel L. Everett
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TRADUÇÃO RADICAL E INTENCIONALIDADE NA LINGUAGEM: D. EVERETT E QUINE Eleonoura Enoque de Souza
CONVENÇÃO SOCIAL, SIGNIFICAÇÃO LINGUÍSTICA E FORMAÇÃO DA LINGUAGEM: UM ESTUDO DESDE DANIEL EVERETT José Marcos Gomes de Luna
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LINGUAGEM, CULTURA E AÇÃO: UMA HIPÓTESE DE CONCILIAÇÃO ENTRE A TEORIA LINGUÍSTICA DE DANIEL EVERETT E A PRAGMÁTICA LINGUÍSTICOFILOSÓFICA DE LUDWIG WITTGENSTEIN Gerson Francisco de Arruda Júnior
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MOTIVOS HEGELIANOS NA OBRA DE DANIEL EVERETT: A LINGUAGEM COMO ARTEFATO CULTURAL Danilo Vaz-Curado R. M. Costa
O PAPEL DA CULTURA NA EMERGÊNCIA DA LINGUAGEM1 Daniel L. Everett2* Trustee Professor of Cognitive Sciences Bentley University
“A fala é uma função não-instintiva, adquirida, ‘cultural’.” (SAPIR, 1929, p. 2)3
1. INTRODUÇÃO
Este capítulo examina a ideia de que a linguagem é significativamente (embora não exclusivamente) moldada pela cultura. Com isso quero dizer que os padrões comunicativos surgem dentro de sistemas particulares de valores culturais e que esses padrões e valores, por sua vez, moldam a estrutura gramatical de uma língua (Enfield (no prelo) desenvolve essa tese e outras ideias relacionadas em consideráveis detalhes). Para usar a terminologia chomskyana (CHOMSKY, 1986), a cultura afeta não apenas as línguas-E (o corpus observável), mas também as línguas-I (as regras e representações mentais usadas para gerar a língua-E). 1 Gostaria de agradecer a Nick Enfield, Caleb Everett, Emily McEwan-Fujita, Larry Hyman, Christina Behme, Sascha Griffiths, Gareth O’Neill e Robert Van Valin pelos comentários sobre este capítulo. Gostaria de agradecer especialmente a Brian MacWhinney e William O’Grady pelas inúmeras críticas e sugestões perspicazes ao longo de todo o capítulo. Perversamente, não segui todos os conselhos que me deram. 2 * Tradução de Danilo Vaz-Curado R. M. Costa (UNICAP/PE) e Gerson Francisco de Arruda Júnior (UNICAP/PE). 3 E também, “A linguagem é principalmente um produto cultural ou social e deve ser entendida como tal. Sua regularidade e desenvolvimento formal repousam em considerações de natureza biológica e psicológica, com certeza. Mas essa regularidade e nossa inconsciência subjacente de suas formas típicas não fazem da linguística um mero complemento da biologia ou da psicologia”. (SAPIR, 1929, p. 214)
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Uma ressalva e um esclarecimento são necessários antes de começar. A ressalva é que este capítulo é sobre como a cultura afeta a linguagem – não sobre a relatividade linguística, como a linguagem afeta a cultura (para uma pesquisa abrangente desta última, ver C. Everett (2013)). O esclarecimento é que, embora eu tenha argumentado em outro lugar que a linguagem não é inata em nenhum sentido específico, o termo “linguagem-I” ainda é um termo apropriado para uso aqui. Isso porque entendo a linguagem-I para se referir ao conhecimento tácito do falante de sua gramática, uma visão compatível tanto com o não-nativismo, bem como com o nativismo. Nossa discussão está organizada da seguinte forma. Após esta introdução, a próxima seção considera como a linguística foi desviada de sua preocupação tradicional de compreender a linguagem como parcialmente construída pela cultura, devido a uma reificação de seu campo que começou com os primeiros trabalhos de Chomsky, continuando até o presente estágio, mais amplamente, da linguística formal. A seção três discute a natureza do conhecimento cultural, a fim de mostrar que a criança está aprendendo sua cultura pelo menos tão cedo, talvez até antes, de começar a aprender sua língua. Essa aprendizagem cultural não linguística afeta a criança de muitas maneiras, incluindo sua concepção de como a linguagem é usada para comunicação, uma concepção que pode, por sua vez, afetar sua gramática. Na seção quatro, analisamos dois textos curtos Pirahã como pequenos exemplos de como a cultura e a linguagem interagem no nível do discurso. Passamos disso para o cerne do artigo na seção cinco, a saber, como a cultura Pirahã afeta profundamente a “gramática central” pirahã por meio de um valor cultural abrangente, o imediatismo da experiência, e o reflexo desse valor no sistema de evidencialidade da gramática, por meio de um DOMÍNIO DE EVIDENCIALIDADE POTENCIAL. Este Domínio de evidencialidade potencial é culturalmente motivado e efetivamente barra inteiramente a recursão morfossintática. Isto é seguido, na seção seis, por um exame de como a cultura Pirahã molda a fonologia segmentar dos Pirahã. Da discussão da 8
fonologia Pirahã concluímos com uma breve seção sobre a metodologia de estabelecimento de conexões cultura-língua/gramática. Na conclusão do artigo, ofereço e defendo a fórmula: COGNIÇÃO, CULTURA E COMUNICAÇÃO --> GRAMÁTICA, argumentando que o Pirahã não é um caso único e que todas as línguas mostrarão conexões cultura-linguagem se as olharmos. Mas é claro que é difícil encontrar tais conexões se não as procurarmos. Este artigo, como todos os artigos deste volume, tem uma dívida intelectual com os pioneiros da pesquisa sobre o surgimento da linguagem, por exemplo. Hopper (1988) e MacWhinney (2006). 2. REIFICAÇÃO DO CAMPO
Até a década de 1950, era comum que a linguística fosse tratada como um ramo da antropologia e abrigada em departamentos de antropologia. A ideia comum de que a linguagem fazia parte de algo maior - cultura, sociedade, folclore e assim por diante, era uma das características dos estudos da linguagem em ambos os lados do Atlântico. Tanto Sapir (1921) quanto, mais tarde, Roman Jakobson (veja a coleção de Waugh e Monville-Burston (1990)), escreveram amplamente sobre as várias manifestações da linguagem no discurso, poesia, conversação, sistemas de som, e assim por diante e, portanto, a relação simbiótica entre linguagem e cultura. Mas a virada da linguística generativa do interesse pela cultura humana no final da década de 1950 levou a uma reificação marcante, ignorando várias interseções da cultura e da gramática, por exemplo, a estrutura do discurso, expressões idiomáticas, simbolismo sonoro e pesquisa de campo. A falha em olhar para o discurso (e a cultura) no estudo de sentenças está no mesmo nível da posição agora ultrapassada de linguistas anteriores que evitaram incorporar os fenômenos morfológicos na análise de estruturas fonêmicas (PIKE, 1952). Embora os generativistas possam insistir em olhar apenas para os fenômenos ao nível da sentença, o resto do 9
empreendimento (psico)linguístico há muito abandonou essa limitação precisamente por causa do desejo de entender melhor as linguagens I e E. Por exemplo, o trabalho de Levinson (2006), Enfield (2002), Silverstein (2003) e muitos outros avançou sob as tradições anteriores e melhorou-as de várias maneiras. No entanto, alguns veem esses trabalhos como ortogonais ao empreendimento da linguística gerativa, porque eles não se concentraram explicitamente na ‘gramática nuclear’ (‘core grammar) ou na linguagem-I. Portanto, o capítulo atual inclui uma discussão sobre os efeitos da cultura na gramática nuclear. Perseguindo a discussão de tais efeitos, precisamos entender como essa discussão é enquadrada em relação ao modelo responsável pela noção de gramática nuclear. Os principais estudos gerativos da gramática nuclear estão focados e se concentraram nas formas de sentenças, frases e palavras - uma continuação do estruturalismo de Bloomfield. Nesta abordagem, propõe-se um conjunto dedutivo de categorias, enquanto análises posteriores aplicam e ajustam essas categorias ou processos, com o objetivo de mostrar que se enquadram de alguma forma em todas as linguagens. Diz-se que os estudos generativos diferem do estruturalismo Bloomfieldiano por prestar mais atenção às representações mentais, embora o mental nunca seja causalmente implicado em nenhuma das linhas de análise (EVERETT, 2012b). Os pressupostos que passaram a dominar o pensamento sobre sintaxe na linguística teórica incluíram os seguintes: (i) todas as gramáticas são organizadas hierarquicamente por procedimentos recursivos; (ii) todas as gramáticas envolvem derivações; (iii) todas as estruturas sintáticas são formadas pela combinação de duas unidades por vez para produzir estruturas endocêntricas, bináriamente ramificadas (e hierárquicas); (iv) todas as gramáticas derivam de uma dotação genética comum aos humanos chamada Gramática Universal; e (v) o domínio da gramática é a sentença. Superficialmente, pelo menos muitos desses pontos parecem ter sido falseados para alguns linguistas. Jackendoff e Wittenberg (em preparação) argumentaram que Riau e Pirahã têm sintaxe não-recursiva 10
(ver também Piantadosi, et. al. 2012, em preparação). Robert Van Valin (2005) e outros argumentaram que derivações nunca são necessárias em qualquer gramática. Frank, Bod e Christiansen (2012) chegaram a argumentar que hierarquia e recursão são desnecessárias para a análise adequada de qualquer linguagem natural. Lieberman (2013) desenvolveu um formidável caso no sentido de que não há suporte neurológico para a ideia de que as gramáticas derivam de princípios inatos específicos da linguagem. Culicover e Jackendoff (2005) argumentaram contra (i)-(iii). E eu mesmo ofereci análises de várias linguagens, especialmente Pirahã (EVERETT, 2005b) e Wari’ (EVERETT, 2005a; EVERETT, 2009a) que parecem falsificar (i)-(iv). De qualquer forma, se nos concentrarmos na gramática apenas no nível da sentença, perdemos princípios importantes da organização formal da linguagem acima da sentença, que também é, sem dúvida, gramática, mas cujos princípios são mais diversos. Eles incluem os princípios de gramáticas de sentenças como um subconjunto. A título de exemplo, considerarei algumas características grosseiras de alguns pequenos textos Pirahã. 4 3. CONHECIMENTO CULTURAL
Uma questão prévia em qualquer estudo como este é como o conhecimento cultural é adquirido. Ele depende exclusivamente da linguagem ou alguns valores, habilidades, conhecimentos e assim por diante podem ser transmitidos sem linguagem? Quero argumentar aqui, como fiz em outros lugares (EVERETT, 2012b; 2014), que uma grande quantidade de conhecimento cultural é aprendida independentemente da linguagem. Uma discussão 4 Uma área vital da linguagem, cognição e cultura que omitirei da minha discussão aqui é o trabalho sobre gestos, conforme representado em McNeill (2012) e muitos outros trabalhos. Veja Everett (em preparação b) para uma discussão mais detalhada do gesto.
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aprofundada sobre isso para Pirahã é fornecida em Everett (2014); ilustrarei isso aqui com um exemplo simples de minha própria pesquisa de campo com os Banawás. Considere a esse respeito os aspectos não linguísticos do aprendizado de como fazer uma zarabatana. Testemunhei a transmissão dessa habilidade nas sociedades Arawan de pai para filho. Os filhos observam, imitam e trabalham ao lado de seus pais. Surpreendentemente, pouca instrução linguística ocorre nessa transmissão de habilidades. A madeira para a zarabatana vem de uma gama estreita de espécies de madeira. O cipó usado para amarrar a zarabatana e torná-la hermética é um tipo específico encontrado em certos lugares da selva. A agulha usada para os dardos também requer um conhecimento altamente específico do saber local. O tipo do grande cipó da selva usado para extrair o veneno (estricquina) e os outros ingredientes do veneno que o ajudam a entrar na corrente sanguínea com mais eficácia: todos esses passos e momentos do conhecimento podem ser transmitidos sem muita linguagem, pelo filho viajando com o pai e observando. Enquanto aprende a encontrar e reunir os componentes de zarabatana, o filho também aprende sobre caminhadas na selva, fortaleza, bravura, flora e fauna e assim por diante. Em princípio, nenhuma dessas lições precisa ser abordada por uma única palavra. Seja proposicional, não-proposicional, linguística ou não linguística, a transmissão cultural, como a transmissão genética, é sempre corrompida de alguma forma, levando a “mutações” (NEWSON, RICHERSON e BOYD, 2007). Por exemplo, alguém pode acidentalmente usar um tipo diferente de madeira, ou amarrar a zarabatana ligeiramente diferente, ou usar um novo agente de ligação para o veneno. Erro ou inovação podem ocorrer em qualquer etapa do processo de transmissão em um par pai-filho, levando a uma divergência da norma cultural. Desde a perspectiva da cultura, não importa se o desvio foi intencional ou não. Há um desvio que fornece um potencial para uma mutação - um tipo diferente de zarabatana ou uma arma inferior ou superior. Claramente tais desvios ocorreram porque em línguas Arawan intimamente relacionadas, as zarabatanas diferem (assim como 12
as próprias línguas) de maneiras não triviais. A tecnologia variou e a linguagem variou devido à imitação imperfeita e inovação. Everett (2014) fornece outros exemplos de valores culturais transmitidos de forma não linguística. Obviamente, a linguagem enriquece e acelera o processo de aprendizagem da cultura proposicional, por meio de diferentes tipos de instituições culturais, por exemplo, a família, a escola, os militares, a igreja e assim por diante. Mas aspectos da cultura vivem ou mudam sem orientação linguística. Ao lado dessas áreas em que a linguagem não é crucialmente envolvida, existem outras áreas onde há uma interação crucial entre língua e cultura. O discurso é uma dessas áreas. 4. CULTURA E DISCURSO PIRAHÃ
Quando estudamos os textos de uma determinada cultura, aprendemos como a cultura fala sobre o mundo, do que fala e como essa fala é organizada (SILVERSTEIN (2003); SHERZER (1991); QUINN (2005), entre muitos outros). A título de exemplo, examinamos dois textos pirahã muito breves a seguir. Ambos os exemplares foram coletados por Steven Sheldon, missionário entre os Pirahãs, em meados da década de 1970. Sheldon, que fala pirahã fluentemente, fez as transcrições iniciais e a maioria das traduções. Há várias observações culturais que se podem fazer sobre esses textos. Primeiro, observe que não há nenhuma linguagem especial de introdução ou finalização. Isso porque o Pirahã não tem linguagem fática (EVERETT, 2005b; 2008). Assumindo que formas especiais de iniciação discursiva e conclusão discursiva como “Era uma vez” ou “O fim” são um tipo de linguagem fática, esse componente da forma dos discursos está em consonância com a cultura mais ampla. Ambos os textos são muito breves. Embora o Pirahã possa e faça narrativas muito maiores, textos breves como esses são mais comuns. Ambos os textos mostram recursão temática. Por exemplo, o primeiro texto inclui três 13
sonhos (mulher brasileira gorda, mamão e banana) como um texto maior sobre sonhar. O segundo texto coloca perguntas do tamanho de frases, respostas, apartes e endereça diretamente a um todo singular. Outro pressuposto culturalmente compartilhado do primeiro texto é que vale a pena sonhar e falar sobre eles - são experiências importantes. Os Pirahãs entendem os sonhos como experiências reais, embora de um tipo diferente, do pensamento consciente. 1. CASIMIRO SONHA SOBRE UMA MULHER BRASILEIRA GORDA, contada por Kaaboíbagí (1)
Ti aogií aipipaábahoagaí. Gíxai. hai. Eu Mulher Brasileira comecei a sonhar Você. Humm ‘Eu sonhei com a esposa de Alfredo (além de Sheldon, ‘você provavelmente a conhece’).’
(2)
Ti xaí Xaogií ai xaagá. Xapipaábahoagaí. Eu Assim. Mulher Brasileira Começou a sonhar ‘Eu era assim. A brasileira estava lá. Comecei a sonhar.’
(3)
Xao gáxaiaiao. Xapipaába. Xao hi igía abaáti. Ela falou Sonhou Mulher Brasileira Ela fica com. Mulher brasileira falou. (Casimiro) sonhou. “Fica com a mulher brasileira”.’
(4)
Gíxa hi aoabikoí. Voce ele fica. ‘Você vai ficar com ele!’
(5)
Ti xaigía. Xao ogígió ai hi ahápita. Sou: assim mulher grande bem. Ele se foi embora ‘Eu era assim. A grande mulher brasileira desapareceu.’ 14
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Xapipaá kagahaoogí. Poogíhiai. Sonho Mamão. Bananas ‘Eu sonhei acerca de mamão. Bananas.’
2. Bigixisitísi MORRE, contado por Itaíbigaí A modo de introdução ao próximo texto, Bigixisitísi era um homem querido e respeitado na aldeia. Ele também foi um dos melhores professores de idiomas de Sheldon. Quando Steve e Linda Sheldon foram embora da tribo, Bigixisitísi ficou muito doente e morreu. Sua morte foi causada por alguma doença desconhecida, e o falante sentiu que se Linda estivesse aqui talvez Bigixisitísi pudesse ter sido salva. Vários dos detalhes requerem conhecimento do contextual cultural ou implícito, por exemplo, o fato de que “Linda não estava lá”. Como uma mulher americana que viveu entre os Pirahãs e tratou sua saúde por anos, todos os Pirahãs saberiam quem era essa Linda e por que o fato de ela estar ausente é significativo para a história da morte desse homem. (1)
Bigíxisítisi hi baábi. Kapío xiai. Bigíxisítisi ele está doente. Outro é ‘Bigixisitis tem um tipo diferente de doença.’
(2)
Hi baábioxoi. Ele doente interrogativo ‘Qual o tipo de doença?’
(3)
Hi aigía ko Xápaí. Xí kagi hi xaoabábai. Ele assim Ei Xapai Seu marido Ele quase morreu ‘Ele assim. Ei Xapai. Seu marido quase morreu.’
(4)
Hi ábahíoxioxoihí. 3 desconhecidos.doença interrogativa ‘Ele tinha uma doença desconhecida?’ 15
(5)
Hi aigía. Koaísiaihíai. Ele assim tornou-se morto ‘Bem então. Ele morreu.’
(6)
Soxóa ti kabáo. Koaíso. Xai Bigíxisítisi Eu já Eu acabou. Morre (ele). Bigíxisítisi ‘Bigixisitisi já está acabdo, afetando-me. Bigixisitisi morreu. Ele fez.’
(7)
Xabí Xioitábi Não está Linda (seu nome em Pirahã) ‘Linda não estava lá.’
(8)
Hi xabaí. Ela não ‘Ela não estava aqui.’
(9)
Ti xaigía gáxai. Xai. Hi abikaáhaaga. Assim falo. Faço. Ele não é. Assim falei. Fiz. Ele não é mais
(10)
Hi oaíxi. Pixái. Ele morto. Agora. ‘Ele está morto agora.’
Apenas arranhando a superfície desses textos pirahã, vemos que eles são como textos em qualquer idioma na medida em que revelam valores culturais, conhecimentos(s) e exigem uma hermenêutica de base cultural. No entanto, como em toda a ciência, os detalhes são onde a borracha encontra a estrada. Aqui eu quero rever algumas das questões cruciais na compreensão da relação da língua com a cultura, em particular como a cultura e a língua moldam uma à outra por meio de sua relação simbiótica envolvida. 16
Quando digo que essas duas manifestações da humanidade estão simbioticamente relacionadas, quero dizer primeiro que a linguagem depende da cultura para muitas de suas funções, bem como para as formas que ela desenvolve para realizar essas funções. Mas também quero dizer que a cultura é codificada, regulada, reforçada e parcialmente formada pela linguagem. Assim, embora a linguagem e a cultura sejam, segundo essa visão, epistemológica e ontologicamente distintas, elas não são independentes uma da outra na práxis. Essa noção de simbiose língua-cultura difere nitidamente da ideia de que uma é superveniente à outra. A superveniência é uma relação tal que “Um conjunto de propriedades A sobrevém a outro conjunto de propriedades B apenas no caso de duas coisas não poderem diferir em relação às propriedades A sem também diferir em relação às suas propriedades B” (MCLAUGHLIN e BENNET, 2011). A língua e a cultura estão cada uma causalmente implicadas e dependentes uma da outra para sua existência em algum nível de diacronicidade. Os efeitos da língua e da cultura estão interligados, mas não há um mapeamento de um para um entre eles. A falha em distinguir a superveniência da simbiose parece ter confundido ocasionalmente Sapir porque ele escreveu declarações aparentemente contraditórias sobre a relação entre língua e cultura. Em uma extremidade das visões sobre o espectro de linguagem-cultura, há aqueles que argumentam que qualquer interação entre os dois aspectos é trivial, a gama total de interações não vai muito além de algumas escolhas lexicais e coisas como formas de tratamento polidas versus formais, etc. (embora essa atitude banalize tanto o léxico quanto a complexidade das restrições de tratamento e expressão que muitas vezes são varridas para “formas de tratamento” ou “polidez”, vou tomá-lo pelo valor de face para fins de discussão). No outro extremo estão aqueles que pensam na linguagem como pouco mais do que um artefato cultural. Como de costume, a ideia mais interessante é uma mistura dos extremos. 5. CULTURA, EVIDENCIALIDADE E RECURSÃO
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Para um exemplo de cultura afetando a gramática, quero revisitar a aparente falta de recursão Pirahã. A maioria das linguagens usa operações recursivas na construção de suas estruturas sintáticas. Isso é tão comum do ponto de vista linguístico que, em 2002, Marc Hauser, Noam Chomsky e Tecumseh Fitch (HCF) fizeram a surpreendente afirmação de que o único componente cognitivo inato que tornava os humanos capazes de linguagem e que distinguia o Homo sapiens de todas as outras espécies era a capacidade de construir gramáticas recursivamente. Infelizmente, essa afirmação ousada foi falseada por ser muito fraca e muito forte. Primeiro, a proposta é muito fraca, porque há dados abundantes de que os humanos não são a única espécie que usa operações cognitivas ou comunicativas recursivas (CORBALLIS, 2007; GOLANI, 2012; PEPPERBERG, 1992; REY, et. al., 2011). Em segundo lugar, a proposta é muito forte porque existem linguagens que carecem de recursão (EVERETT, 2005b; GIL, 1994; JACKENDOFF e WITTENBERG, 2012). Para ver o que HCF quer dizer com recursão, aqui está uma declaração do artigo original: FLN inclui apenas recursão e é o único componente exclusivamente humano da faculdade da linguagem. (HAUSER, CHOMSKY e FITCH, 2002, p. 1569) ... Em particular, os sistemas de comunicação animal carecem do rico poder expressivo e aberto da linguagem humana (baseado na capacidade humana de recursão). (HAUSER, CHOMSKY e FITCH, 2002, p. 1570)
Existem muitos sentidos potenciais do termo “recursão”, por isso é vital entender o que o HCF tinha em mente. O artigo como escrito não deixa dúvidas de que eles pretendem um processo que se aplica à sua própria produção de informação sem limites. Isso fica claro quando eles afirmam que, quando uma linguagem tem recursão, então “não há 18
a sentença mais longa (qualquer sentença candidata pode ser superada, por exemplo, incorporando-a em ‘Mary pensa que...’), e não há nenhum limite superior arbitrário vinculado ao comprimento da sentença.” (referência 9, p, 1571 [grifo meu, DLE]). A citação de HCF acima é direta, embora alguns sintáticos [syntacticians] agora reivindiquem para ela um significado mais esotérico (seguindo minhas críticas e trabalhos empíricos em Everett (2005b); Everett (2008); e Everett (2012a), entre outros). De acordo com essa exegese inicial, recursão significa para os autores apenas um subconjunto (singleton) de operações recursivas internas ao programa conhecido como Minimalismo, o que Chomsky (1995) chama de ‘Merge’. Merge é uma função que toma dois objetos (α e β) e os mescla em um conjunto não ordenado com um rótulo. O rótulo identifica as propriedades da frase. No Minimalismo, nenhuma estrutura de frase pode ser formada sem passar por Merge. Como Merge é, por definição, uma operação recursiva, nenhuma linguagem pode existir sem recursão. Q.E.D. Por exemplo: Merge (α, β) → {α, {α, β}} Se α é um verbo, p.ex. ‘comer’ e β um substantivo, por exemplo ‘ovos’, isso produzirá uma frase verbal (ou seja, onde alfa é a cabeça da frase), ‘comer ovos’. A operação Merge incorpora dois pressupostos altamente internos à teoria que foram seriamente desafiados na literatura recente. A primeira é que todas as estruturas gramaticais são ramificações binárias, já que Merge só pode produzir tais saídas. A segunda é que Merge requer que todas as estruturas sintáticas sejam endocêntricas (ou seja, encabeçadas por uma unidade da mesma categoria que a estrutura que a contém, por exemplo, um substantivo encabeçando uma frase nominal, um verbo, uma frase verbal, etc.). Isso significa que Merge é potencialmente falsificado por qualquer estrutura de ramificação exocêntrica ou não binária (ternária, quaternária, etc.), por exemplo, uma estrutura com sintaxe plana. Culicover e Jackendoff (2005) argumentaram, a meu ver, de forma convincente, que existem estruturas ternárias na sintaxe de algumas línguas, e eu (Everett 1988) tenho argumentado que estruturas ternárias não-deriváveis existem na estrutura métrica da 19
fonologia Pirahã. Além disso, eu (EVERETT, 2005a; 2009a) argumentei que a sintaxe da língua Wari’ do Brasil faz uso generalizado de construções não endocêntricas. No entanto, embora existam contra-exemplos, os autores insistem que Merge é o que eles entendem por recursão. No entanto, a interpretação Merge tem que se esforçar para produzir a cláusula de “sentença não mais longa” de sua citação anterior, uma vez que isso é resultado da noção mais geral de recursão. Mesmo Chomsky (2010a) permite que o próprio Merge possa ser impedido de repetir infinitamente por estipulações específicas da linguagem. Mas tais estipulações não desempenham nenhum papel na noção matemática de recursão. Há várias razões pelas quais o raciocínio interno da teoria é inútil. Primeiro, exclui um importante espaço empírico, a saber, a classe de linguagens que não possuem Merge, mas têm outras formas de recursão, como linguagens com ramificação ternária, mas sem sentença mais longa. Em segundo lugar, ignora a possibilidade de que alguma linguagem possa carecer de qualquer forma de recursão sintática, como Pirahã. Terceiro, ele ignora o que é, na minha opinião, a consideração mais importante na compreensão do papel da recursão na linguagem natural – conversas naturais, narrativas e outros discursos. Lobina e Garcia-Albea (2009) oferecem uma elucidação útil de várias noções de recursão que têm sido empregadas em matemática, ciência da computação, linguística e ciências cognitivas. Como eles observam, mesmo Merge não precisa ser uma operação recursiva, uma vez que a iteração não se enquadra adequadamente nas definições matemáticas ou computacionais padrão de recursão. No entanto, vou assumir aqui para fins de discussão que Merge é recursivo. No entanto, mesmo que Merge seja sempre recursiva, nem todas as linguagens são. E linguagem com sintaxe não recursiva - como Riau (GIL, 1994) e Pirahã (EVERETT, 2005b) - não pode ser descartada como “irrelevante” na ideia equivocada de que a recursão é simplesmente parte da “caixa de ferramentas” linguística do Homo sapiens. Primeiro, é o único item (!) na caixa de ferramentas de acordo com Hauser, Chomsky e Fitch (2002). Segundo, dizer que a recursão é a 20
única diferença biológica entre humanos e outros animais que torna a linguagem possível, mas que nem todas as linguagens requerem recursão remove qualquer força empírica que ela possa ter. Se um edifício biológico é fundamental, como poderia faltar uma linguagem? Esta é uma proposta estranha, de fato, se a ausência do fundamento biológico singular da linguagem é tratada como empiricamente irrelevante. De fato, tratar o Riau, o Pirahã e outras línguas que carecem de recursão como exceções seria como dizer que encontrar um cisne negro não falsifica a afirmação de que todos os cisnes são brancos. Ironicamente, embora eu tenha repetidamente argumentado que o Pirahã mostra recursividade nos textos, os textos estão fora da sintaxe sentencial que definiu a teoria gerativa desde seu início, onde o símbolo de “início” (Σ) para todas as operações sintáticas sempre foi a sentença. Veja Everett (1994) para mais discussão sobre a “divisão sentencial” em gramática e cognição. Os linguistas há muito resistem à ideia de que a cultura está causalmente implicada na formação das gramáticas, pelo menos na medida em que Chomsky chama de “gramática nuclear” - o estado da faculdade da linguagem após os parâmetros específicos da linguagem terem sido estabelecidos. Nesta seção, quero destacar argumentos que fiz em outros lugares (EVERETT, 2005b; 2008; 2012). Farei isso olhando para a relação na língua Pirahã entre a noção morfossemântica de evidencialidade, cultura Pirahã e sintaxe Pirahã. Defendo que a evidencialidade é o tegumento que conecta cultura e recursão no Pirahã. A evidencialidade - a noção semântica de evidência para uma asserção - é encontrada em todas as línguas de uma forma ou de outra. Por exemplo, se eu disser “O homem veio aqui”, a suposição padrão em inglês é que tenho evidências diretas para essa afirmação. A evidencialidade é indiscutivelmente encontrada na pragmática de todas as línguas porque é um valor para as culturas, ajudando o ouvinte a distinguir especulação de declarações baseadas em evidências, algo que poderia economizar muito tempo na decisão de onde caçar, construir uma aldeia, etc. , para algumas culturas, a evidencialidade não é apenas um fato 21
semântico, mas também um fato morfológico, codificado de alguma forma em palavras, geralmente verbos, da língua. Em algum ponto do desenvolvimento de tais linguagens, o uso do falante transformou essa categoria semântica quase universal em um símbolo evidente em sua gramática. Isso é para mim um desenvolvimento cultural, mesmo que nenhum falante(s) tenha inventado conscientemente os morfemas de evidencialidade para sua língua - uma manifestação do problema de “atuação” - como as mudanças se espalham por uma cultura ou língua (WEINREICH, LABOV, HERZOG (1968)). Além disso, também considero que a evidencialidade, como outras categorias, pode ser considerada mais ou menos importante para uma determinada língua dependendo em parte de seus efeitos na morfossintaxe e em parte de seu papel na cultura. Quanto maiores os efeitos, mais importante é; quanto menos, menos importante. Essas são determinações baseadas na práxis, não resultados de votos ou manipulação consciente de morfemas específicos por falantes (embora eu não negue que isso possa ocorrer). Tendo introduzido a evidencialidade, agora precisamos entender como a evidencialidade Pirahã decorre da cultura Pirahã. Em Everett (2005b), descrevi vários aspectos incomuns da cultura e da língua pirahã, muitos deles nunca documentados para outras línguas (embora eu esperasse que todos fossem assim documentados no futuro). Estes incluem: sistema de parentesco mais simples conhecido, falta de palavras coloridas, falta de números e contagem, ausência de tempos perfeitos, ausência de mitos de criação, ausência de mitos históricos ou de ficção, ser monolíngue após mais de trezentos anos de contato regular com brasileiros e sem recursão. Propus explicar todos esses fatos por um único princípio, o PRINCÍPIO DA EXPERIÊNCIA IMEDIATA, IEP. Este é um princípio encontrado em algum grau de força em muitas línguas amazônicas (ver Gonçalves (2005) para uma discussão sobre a difusão da experiência imediata como um valor cultural em toda a Amazônia.) O que quero fazer nesta seção é mostrar como a cultura pirahã exclui a recursão na gramática pirahã, começando por reafirmar um 22
valor vital e abrangente da cultura pirahã, o “Princípio do Imediatismo da Experiência” (EVERETT, 2005b; 2008): Princípio do imediatismo da experiência (IEP): Os enunciados declarativos pirahã contêm apenas asserções relacionadas diretamente ao momento da fala, seja experimentado (ou seja, visto, ouvido, deduzido, etc. – conforme a gama de evidências pirahã, como em Everett (1986, 289 )) pelo falante ou como testemunhado por alguém vivo durante a vida do falante). Por falta de espaço não repetir aqui os argumentos de Everett (2005b) para o IEP Pirahã, portanto o leitor é encaminhado a esse artigo para uma argumentação completa, com base nos pontos empíricos mencionados anteriormente, bem como (entre outras coisas) a noção culturalmente importante de ‘liminaridade experiencial’ xibipíío, discutida em Everett (2008). Essa palavra expressa a liminaridade como um importante conceito cultural e é usada para descrever coisas que entram e saem da visão ou da audição, desde o piscar de um fósforo até o desaparecimento ou aparecimento de uma canoa em uma curva do rio. Em muitos trabalhos argumentei que Pirahã carece de recursão. Vou, com ou sem razão, assumir esta análise aqui. A evidência para esta análise, dada em Everett (2012) é a seguinte: 1. Em primeiro lugar, a falta de recursão prediz corretamente que os verbos factivos e epistêmicos estarão ausentes (embora haja um - interlingüisticamente comum - o uso do verbo ‘ver’ para ‘saber’). Essa previsão é feita porque se Pirahã não tem recursão, então não há como expressar verbos factivos como verbos independentes, pois estes exigiriam uma cláusula complementar, exigindo embutimento e, portanto, ceteris paribus, uma regra recursiva na sintaxe de Pirahã. Pirahã expressa tais noções por meio de sufixos verbais, consistentes com a hipótese de ‘não recursão’, não com orações complementares. 2. Segundo, Pirahã não tem marca de subordinação. Isso também é previsto pela minha hipótese, pois se Pirahã não tem recursão, não há subordinação à marcar. 23
3. Terceiro, Pirahã não possui partículas disjuntivas de coordenação (por exemplo, ‘ou’). A ausência de marcadores explícitos de disjunção é prevista pela minha hipótese, uma vez que a disjunção implica recursão. 4. Quarto, Pirahã não tem partícula conjuntiva coordenadora (por exemplo, ‘e’). Há apenas uma partícula mais geral, píaii, que pode parecer pré-verbal ou final de sentença e que significa ‘é assim/simultâneo’ (significado vago), que nunca funciona como conjunção própria, mas apenas fornece a informação de que essas duas coisas eram simultâneas (está relacionado ao pixai, agora). Novamente, isso é previsto pela minha análise, uma vez que a coordenação também envolve recursão. 5. Quinto, Pirahã não possui orações complementares sintáticas. Se Pirahã tem recursão, onde estão os dados inequívocos? Afirmei que falta cláusulas incorporadas. Outros afirmam que as possui (NEVINS, PESETSKY e RODRIGUES, 2009), mas apenas mostram que as cotações podem ser incorporadas. Nenhum trabalho jamais mostrou que existem múltiplos níveis de incorporação, o que certamente seria esperado se Pirahã tivesse recursão (restrição auxiliar recente do módulo Chomsky (2010a) sobre Merge, discutida anteriormente). 6. Sexto, Pirahã não permite possessivos recursivos. A questão dos possessivos de Pirahã que eu fiz não é simplesmente que eles carecem de recursão de possuidores prenominais, mas que carecem de recursão de possessivos em qualquer parte do sintagma nominal. Nevins, Pesetsky e Rodrigues (2009) podem estar corretos ao sugerir que o alemão, como o Pirahã, carece de recursão do possessivo prenominal. Mas o alemão tem recursão de possessivo pós-nominal, enquanto o Pirahã não tem. Isso é previsto pela minha análise. 7. Sétimo, Pirahã proíbe múltiplas modificações na mesma frase. Como discuti acima e em Everett (2008) e (2009b), pode haver no máximo um modificador por palavra. Não se pode dizer em Pirahã ‘muitas castanhas grandes e sujas’. Você precisaria dizer ‘Existem grandes castanhas-do-pará. Existem muitos. Eles estão sujos.’ Essa estratégia paratática é prevista por minha análise, pois vários adjetivos, como em inglês, implicam em recursão, mas a estratégia paratática não. 24
8. Oitavo, a semântica Pirahã não mostra escopo de uma cláusula para outra, ex. nada de “aumento de Neg”. Pirahã carece de exemplos como ‘João não acredita que você saiu’ (onde ‘não’ pode negar ‘acredita’ ou ‘esquerda’, como em ‘Não é o caso que João acredita que você saiu’ vs. ‘É o caso que John acredita que você não foi embora’). Neste exemplo, ‘não’ pode ter escopo sobre ‘acredita’ ou ‘esquerda’. Isso não é possível sem recursão, então minha análise prevê a ausência de tais relações de escopo. Isso também está previsto, corretamente, como impossível em Pirahã através de minha avaliação, pois implicaria em recursão. 9. Nono, Pirahã não apresenta dependências de longa distância, exceto entre sentenças independentes, ou seja, no discurso. Os tipos de exemplos que são padrão para dependências de longa distância incluem: ‘Em quem você acha que John acredita __ (que Bill viu__)?’ ‘Ann, acho que ele me disse que tentou gostar de ___’” Nós declaramos o IEP e ensaiamos as provas contra a recursão sintática em Pirahã. Resta agora mostrar como estes se encaixam causalmente. O pirahã, como muitas outras línguas (ver, entre outros, Aikhenvald (2003); Faller (2007)), codifica marcadores evidenciais em sua morfologia verbal como afixos: -híai ‘ouvir dizer;’ -sibiga ‘dedução;’ -ha ‘certeza completa;’ e -0 (afixo zero) ‘suposição de conhecimento direto’. O IEP Pirahã, em conjunto com sua exigência de que sejam fornecidas provas para todas as afirmações, produz um domínio restrito no qual as afirmações e seus constituintes precisam ser garantidos. Reminiscente do Domínio de Foco Potencial desenvolvido por Van Valin (2005, 70ss), chamo esse domínio em Pirahã (e presumivelmente alguma versão dele existirá em todas as línguas, pelo menos aquelas com morfologia de evidencialidade) de Domínio de Evidencialidade Potencial (PED), ou seja, a gama de estruturas onde o domínio da evidência real poderia, em princípio, cair. O domínio real da evidencialidade em um determinado enunciado será o seguinte:
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Domínio de evidencialidade: O domínio sintático em uma sentença que expressa o componente de evidencialidade da proposição estruturada pragmaticamente. O PED em Pirahã é limitado ao quadro lexical do verbo, ou seja, o verbo e seus argumentos (mais tecnicamente, os núcleos frasais do predicado e seus argumentos na terminologia de Função e Gramática de referência de Van Valin) 5. Vamos supor que o IEP seja uma das razões pelas quais o Pirahã possui marcadores de evidência e que reforça dramaticamente seu efeito ao restringir seu escopo ao PED que acabamos de mencionar. O PED então exclui a recursão sintática em Pirahã. Como dito, o PED claramente depende do verbo principal como o núcleo do ato de fala. O PED incluirá apenas núcleos (cabeças semântico-sintáticas, não cabeças no sentido X-barra) licenciados diretamente pelo predicado (seu quadro semântico). O PED não permite nenhum núcleo fora do contido numa sentença. Pelo PED não há possuidores embutidos; nem predicados incorporados – apenas argumentos licenciados pelo predicado principal. Por exemplo, em uma frase nominal como “casa de John”, “casa” é o núcleo - o núcleo semântico, do que se trata essa frase. John é o possuidor, uma espécie de modificador da casa núcleo - o possuidor nos diz de qual casa estamos falando. Por outro lado, em uma frase nominal maior, como “a casa do irmão de John”, “casa” e “irmão” são cada um, um núcleo de uma frase de contenção separada. “Casa” é o núcleo da frase “casa do irmão” e “irmão” é o núcleo da frase “irmão de João”. “João” não é um núcleo de nenhuma frase. Isso significa que ‘João’, não sendo o possuidor de um argumento do verbo principal (é um núcleo de ‘irmão de João’, mas ‘irmão’ não é um núcleo do verbo) é injustificado no PED e a sentença não é permitida. 5 Eu uso função e gramática de referência aqui porque, na minha opinião, ela combina mais efetivamente com os princípios estruturais e funcionais-semânticos em uma teoria da gramática. Nada crucial depende disso, no entanto, e outras teorias podem ser compatíveis com a análise oferecida aqui.
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Um predicado incorporado conteria argumentos não licenciados pelo predicado principal. Portanto, não pode haver frases dentro de frases e nem sentenças dentro de sentenças em Pirahã. Também não pode haver composição produtiva na morfologia. Tais compostos aparentes como são encontrados são de fato frases sincrônicas ou diacrônicas. Isso é exemplificado abaixo, em uma representação em teoria-neutra: SENTENÇA | Argumento1 Verbo Argumento2 | | | Filho de BillNucleus aprendeuNucleus o idioma de JohnNucleus \ | / Domínio da Evidencialidade Potencial Este exemplo é permitido porque cada Núcleo se encontra no quadro semântico do verbo, representado nas linhas da seguinte representação lexical: [TORNA-SE conhecido (filho, idioma)] Este é um requisito de evidência muito rigoroso. Ele prevê que o número de argumentos em uma frase não pode exceder o número permitido por um quadro verbal padrão (por exemplo, RRG). Ele exclui toda a incorporação e toda a recursão sintática. A representação lexical do verbo de realização ‘aprender’ ([TORNA-SE conhecido] indica a mudança de estado de conhecimento) projeta três núcleos para a sintaxe - o verbo ‘aprender’ e os núcleos/argumentos nominais ‘filho’ e ‘língua’. Cada um dos núcleos nominais é possuído por um nominal não-nuclear. Assim, os requisitos do PED são atendidos. Porém, no exemplo abaixo, há dois núcleos não garantidos, ou seja, aparecem no PED sem serem encontrados na representação lexical:
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SENTENÇA | Argumento1 Verbo Argumento2 | | | O Filho do *pai de BillNucleus aprendeuNucleus O idioma *materno de JohnNucleus \ | / Potencial Evidencialidade Domínio Esta sentença seria, portanto, agramatical em Pirahã, embora seja boa em inglês ou português. Esta análise, então, afirma que o PED, as evidências e a falta de recursão são todos reflexos do valor cultural do IEP na gramática pirahã. Embora o PED (forçado pelo IEP) exclua a recursão em Pirahã, esta análise não prevê que outro idioma, e.g. Riau, deriva a ausência de recursão da mesma maneira. A recursão serve a vários propósitos (EVERETT, 2012a) e, portanto, há muitas razões diferentes pelas quais uma linguagem pode não ter recursão. Por exemplo, Riau pode simplesmente classificar o valor da taxa de informação mais lenta acima do valor de sentenças recursivas em sua linguagem. Muitas tradições orais usam a repetição e a velocidade de informação mais lenta como auxílio à comunicação nos ambientes ruidosos da fala humana. Passemos agora aos efeitos culturais no surgimento da fonologia pirahã. 7. CULTURA E FONOLOGIA SEGMENTAR
Embora eu tenha discutido esses dados em outro lugar (EVERETT, 1979; 1985; 2008), vale a pena revisá-los aqui para completar nossa imagem dos efeitos da cultura na gramática de forma mais geral. Como apontado em Everett (1979; 1982; 1985), a fonologia Pirahã não 28
pode ser totalmente descrita ou compreendida sem o conhecimento de como ela interage com a cultura. Existem outros exemplos da fonologia Pirahã. Deixe-me apresentar dois dos mais fortes, em ordem crescente de importância para a coerência. Imagine que uma língua pudesse ter vários sistemas/modalidades de estrutura sonora, além de sua fonética e fonologia. E então considere a possibilidade de que uma modalidade possa afetar outra, mas não necessariamente por meio de classificações ou regras de restrição, os dispositivos padrão da teoria fonológica propriamente dita. Se sim, então para entender o sistema sonoro da língua, L, em qualquer nível (por exemplo, ‘o que acontece’ ou ‘o que os falantes nativos sabem quando conhecem o sistema sonoro de sua língua’), devemos olhar cuidadosamente para as modalidades de expressão feitas disponível através de uma etnografia da comunicação e não meramente em um suposto aparato formal universal. Corolários deste cenário podem incluir, por exemplo, o aparecimento de novos papéis para restrições antigas (por exemplo, fidelidade de modo de segmentos sendo altamente classificados para marcar tipos de sílabas; sílabas são mantidas, uma forma de fidelidade prosódica, a fim de analisar o fluxo de fala maior, não apenas para melhorar a percepção de segmentos ; e assim os argumentos para as sílabas podem ir além da fonotática e do aprimoramento segmentar e a sílaba pode ter papéis não previstos pela chamada ‘hierarquia fonológica’).Se isso fosse verdade, então o trabalho de campo coerente (EVERETT, 2004) evoluiria de uma curiosidade ou desiderato para um imperativo. Existe tal caso? De fato. Considere os seguintes fatos sobre a fonologia do Pirahã, começando pelos fonemas. Tabela Um Fonemas Pirahã Consoantes () = ausentes na fala das mulheres p t k b g (s)
? h 29
Vogais i o a O inventário segmentar dos Pirahã é um dos menores do mundo (as duas únicas outras línguas com inventários desse tamanho são o rotokas e o havaiano - embora não tenham tons). Vale destacar também que o /s/ está em ( ) porque não é encontrado na fala das mulheres, mas apenas na dos homens (as mulheres usam /h/ onde os homens usam /s/ e /h/). Embora este seja um dos inventários fonêmicos segmentares mais simples do mundo (o inventário das mulheres parece ser o mais simples conhecido), devemos justapor a essa simplicidade, a complexidade das prosódias dos Pirahã. A regra do acento dos Pirahã é um bom ponto de partida, pois é bem conhecida. Essa regra, de Everett e Everett (1984), é considerada uma das regras de acento mais complexas e inusitadas da literatura, principalmente por suas consequências fonológicas (mais do que, digamos, qualquer dificuldade em enunciá-la ou reconhecê-la): Regra do acento pirahã: acentuar o símbolo mais à direita do tipo de sílaba mais pesada nas três últimas sílabas da palavra. A base fonética de ‘peso’ em (1) é apenas esta: consoantes surdas são sempre mais longas do que consoantes sonoras e há cinco pesos de sílabas parcialmente baseados neste contraste: Os pesos de cinco sílabas de Pirahã: CVV>GVV>VV>CV>GV Pirahã também é uma língua tonal. Mas a ênfase, o tom e o peso da sílaba variam independentemente no idioma. Para ver isso, vou apenas revisar o conjunto simples de exemplos abaixo. Nestes exemplos, o tom é independente do acento. ´ = tom alto; nenhuma marca sobre a vogal = tom baixo. A sílaba tônica é marcada por!. Não há tensões secundárias. 30
(1)
a. !tígí b. !pìgì c. !sàbí d. !Ɂábì e. tíí!híí f. Ɂì!tì g. tì!Ɂí h. tí!hì
‘papagaio pequeno’ ‘rápido’ ‘malvado, selvagem’ ‘ficar’ ‘bambu’ ‘testa’ ‘mel de abelha’ ‘tabaco’
Assim, ao lado da fonologia segmentar extremamente simples de Pirahã, manifesta um rico conjunto de prosódias. Isso nos leva a fazer uma pergunta razoável, a saber, a linguagem explora essa complexidade diferencial de alguma forma? De fato, como Everett (1985) descreve, a comunicação Pirahã faz uso crucial dos CANAIS em (4), abaixo, onde Hymes (1974) define um canal como um “meio físico sociolinguisticamente restrito usado para transportar a mensagem da fonte para o receptor’. As quatro principais modalidades ou canais em Pirahã após a fala ‘normal’ são: Canal Funções a. Fala Sussurando Disfarce Privacidade Intimidade Fale quando a boca está cheia Comunicação cuidador-criança b. Fala gritando Longa distância Dia chuvoso Uso mais frequente – entre cabanas e do outro lado do rio c. Fala musical (‘mandíbula grande’) Novas informações Comunicação espiritual Dança, flerte 31
Mulheres produzem isso nas sessões de professores de idiomas mais naturalmente que homens. O discurso musical feminine mostra uma sepração de tons alto e baixo muito maior, maior volume. d. Fala assobiando (boca azeda ou ‘enrugada’ Caçando – mesma raiz de ‘beijar’ ou format de boca Apenas homens Após comer limão) Uma melodia incomum usada para jogos agressivos O exemplo abaixo ilustra como a informação prosódica em Pirahã é explorada para criar esses canais. O inventário acima também mostra parcialmente o quão pouco os segmentos contribuem para o conjunto total de informações fonológicas numa determinada palavra pirahã. Vemos que a frase ‘Tem uma paca aí’ tem uma representação tonal quase musical (onde um acento agudo sobre uma vogal representa o tom alto e nenhuma marca sobre a vogal significa que a vogal tem tom baixo), base para os canais apenas resumido. (2)
káiɁihíɁao -Ɂaagá gáihí paca -poss/existir estar lá ‘Tem uma paca aí.’
Todos os canais devem incluir informações prosódicas completas (acento, tom, duração, entonação), embora apenas o canal de consoantes e vogais precise incluir as vogais e consoantes. Na forma musical há um tom descendente, seguido de um baixo curto, com uma pausa anterior no apito (onde a oclusiva glotal, Ɂ, teria sido em kaiɁihi), seguida de outra pausa curta (onde estaria o h) e um tom alto curto, e assim por diante. Assim, os limites das sílabas estão claramente presentes nos canais de assobios (sussurros e gritos), mesmo que os próprios segmentos estejam ausentes. A sílaba neste caso indica comprimento, oferece um contexto abstrato para a colocação do tom, e a palavra geral é enfatizada de acordo 32
com o peso da sílaba (EVERETT, 1988). A sílaba nesses casos é vital para a comunicação em diferentes canais, principalmente na análise da entrada. Mas a descoberta de canais como esse implica alguma interação causal entre cultura e gramática? Ou esses canais estão fora da própria gramática? Observe que esses canais dependem crucialmente dos pesos das sílabas e da regra de acento acima. Então, se nada mais, eles ajudam a explicar o que de outra forma é um nível anômalo de complexidade na regra de acento. No entanto, os fatos são mais profundos do que isso. Considere o seguinte exemplo do que Everett (1985) chama de efeito de fonema desleixado: tí píai ~ kí píai ~ kí kíai ~ pí píai ~ Ɂí píai ~ Ɂí /íai ~ tí píai, etc. (*tí tíai, * gí gíai, *bí bíai) ‘eu também’ Ɂapapaí ~ kapapaí ~ papapaí ~ ɁaɁaɁaí ~kakakaí (*tapapaí, *tatataí, *bababaí, *gagagaí) ‘cabeça’ Ɂísiihoái ~ kísiihoái ~ písiihoái ~ píhiihoái ~kíhiihoái ‘combustível líquido’ 6 Pirahã permite uma tremenda variação entre consoantes, mas não para os traços [contínuo] ou [voz]. Isso pode ser explicado, mas apenas se nos referirmos aos canais do Pirahã. Os exemplos agramaticais acima mostram que os traços [contínuo] e [voz] estão ligados no sentido de que nunca podem variar no efeito. Apenas as características de lugar podem variar. Sem referência a canais, isso não tem explicação. Mas, à luz dos canais, isso ocorre porque [contínuo] e [voz] são necessários para a colocação do acento (EVERETT, 1988) que, por sua vez, deve ser preservado em todos os canais do discurso, ou a restrição abaixo é violada: Restrição na carga funcional e contraste necessário (EVERETT, 1985): a. Maior dependência do canal ¨Maior contraste necessário b. Menor dependência do canal ¨Menor contraste necessário 6 Alternations with /t/s or involving different values for [continuant] or [voicing] are unattested.
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Não estou afirmando que a ausência de variação para diferentes valores de [contínuo] seja prevista apenas por ‘canais’. Este caso, de fato, exige que investiguemos melhor a conexão entre [contínuo] [voz]. Não há alegação de que a etnografia substitua a fonologia. Mas estou afirmando que sem o estudo dos canais e seu papel na cultura Pirahã, mesmo uma compreensão da fonologia segmentar do Pirahã é impossível. A lição que o pesquisador de campo e o linguista teórico devem tirar desses exemplos é apenas esta: primeiro, língua e cultura devem ser estudadas juntas; Em segundo lugar, como um canal dependente da modalidade, a fonologia pode estar sujeita a restrições que são (i) específicas da linguagem e (ii) fundamentadas não apenas nas propriedades físicas da modalidade instanciadora (a fonética), mas também ou alternativamente na cultura específica dos canais de discurso empregados. Este é um resultado muito importante porque mostra que as ‘condições de interface’ do SISTEMA COMPUTACIONAL HUMANO, nos termos de Chomsky (1995), podem ir além de PF e LF, se definirmos um sistema de interface como um sistema de configuração de limites de interpretabilidade para HCL. Esses exemplos também mostram como o trabalho de campo coerente pode ser útil para a teoria. Assim, não apenas o pesquisador de campo, mas também o fonólogo deve engajar a língua como formando um todo coerente com a cultura. E isso, por sua vez, implica um trabalho de campo mais culturalmente informado. 8. EM DIREÇÃO A ETNOGRAMÁTICA
Esta seção tenta desenvolver uma metodologia para estudos etnogramaticais, com base nas sugestões de Saville-Troike (1982, 108ss). Os passos iniciais para a etnografia da comunicação são: (a) identificar eventos recorrentes, (b) analisar esses eventos, examinando sua função, forma e relações entre diferentes constituintes, e (c) examinar a relação entre esses eventos com outros eventos discursivos e à sociedade e cultura em que ocorrem. 34
Por exemplo, pode-se estudar o uso do apito nas Ilhas Canárias. Uma variedade, o Silvo Gomero, é usada dentro e ao redor de La Gomera. Em relação a (a), cada uso do apito é, portanto, um evento. Algumas perguntas que podem ser feitas sobre esses eventos são: Quando é usado? Quem usa? Quais são as restrições à sua inteligibilidade? (por exemplo, duas pessoas podem entender Silvo em qualquer circunstância ou um tópico de conversa precisa ser estabelecido primeiro para fornecer contexto?) Quantos outros canais de discurso existem entre os falantes que usam o Silvo? Existem conteúdos ou tipos de discurso em que as pessoas preferem usar o Silvo? São os conteúdos ou tipos de discurso em que as pessoas preferem não usar o Silbo? Quais são os detalhes fonéticos do Silvo e como isso é possível (já que a linguagem em que se baseia não é tonal, usa frequências segmentares inerentes como base, entonação etc.)? Como isso se relaciona com o canal de consoantes e vogais (ou seja, fala normal)? Além dessas sugestões, há outras preliminares metodológicas para investigar a conexão cultura-língua. Essas preliminares incluem pelo menos o seguinte: a. Existem irregularidades que não têm explicação estrutural óbvia? b. Existem exemplos de ‘variação livre’, ou seja, onde há escolhas entre duas estruturas que não são restringidas pelas estruturas ou pela gramática, na medida em que podem ser determinadas? c. Existem fatos incomuns sobre os eventos culturais, valores ou explicações que envolvem princípios ou fenômenos que, em qualquer nível, parecem semelhantes aos princípios operativos na gramática? Quanto à metodologia que decorre de tais questões, Enfield (2002, 14ss) oferece algumas considerações e sugestões convincentes e muito importantes para o estudo da etnogramática. Primeiro, ele recomenda que o pesquisador de campo “Examine estruturas e/ou recursos morfossintáticos específicos e faça hipóteses explícitas quanto ao seu significado”. Em segundo lugar, seguindo o desenvolvimento desta e de considerações metodológicas relacionadas, ele levanta a questão crucial 35
da ‘ligação’, a saber, como podemos estabelecer uma conexão causal entre fatos da cultura e fatos da gramática? Eu recorro a isso diretamente. Antes de fazer isso, porém, quero apontar o que parece ser a maior lacuna no estudo da etnogramática, seja nos estudos de Enfield (2002) ou em outros lugares. Este é o efeito de valores, especialmente tabus culturais como o IEP acima, ao restringir tanto a cultura quanto a gramática. Ou seja, estudos anteriores, como os de Enfield (2002), embora focando razoavelmente no significado, que é afinal de tudo uma contribuição principal da cultura (ou seja, orientando seus membros a encontrar significado no mundo), deixam de considerar proibições ou injunções culturais, por mais profunda ou superficialmente que sejam enraizada no sistema comunitário de valores. O exemplo Pirahã desta seção é uma evidência de que tais valores também devem ser considerados em estudos etnofonológicos, bem como etnossintáticos - daí “etnogramática”. No entanto, antes de podermos tirar qualquer conclusão sobre a etnogramática em uma determinada língua, precisamos considerar a questão vital que Enfield se refere como ‘ligação’, ou seja, o estabelecimento de uma conexão causal entre cultura e língua. Ou seja, como podemos convencer alguém ou, pelo menos, argumentar efetivamente que a propriedade p da cultura C determina causalmente o traço f da gramática G? De acordo com Clark & Malt (1984), citado por Enfield (2002, 18ff), existem quatro pré-requisitos para estabelecer a ligação entre cultura e linguagem: 1. Fundamentos empíricos - Os fenômenos são claros e bem estabelecidos? 2. Independência de estrutura - As estruturas ou princípios culturais e gramaticais são independentemente necessários na gramática? 3. Coerência teórica - A análise decorre de uma teoria clara? 4. Evitar circularidade.
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Um argumento circular em estudos etnogramaticais seria afirmar que uma característica linguística particular é simultaneamente determinada por um aspecto da cultura e evidência para aquele aspecto da cultura. Portanto, é circular afirmar que uma língua tem evidências porque a cultura valoriza o raciocínio baseado empiricamente e, em seguida, afirmar que sabemos que a cultura valoriza o raciocínio empiricamente valorizado porque possui evidências. A maneira de evitar isso é primeiro estabelecer, usando evidências não linguísticas, valores ou significados particulares em uma determinada cultura, como o IEP. Em seguida, usando evidências não culturais, estabelecer o significado e a estrutura dos exemplos linguísticos relevantes (os exemplos incluem argumentos padrão para os destinatários, constituintes deslocados e assim por diante). Finalmente, mostrando como vincular os dois fornece uma explicação conceitual e empírica (em termos de previsões, quando possível, ou explicando domínios independentes, como a mudança histórica) superior dos fatos que os deixam desconectados. Os estudos etnogramáticos variam, portanto, de mostrar que, digamos, uma língua tem honoríficos por causa de uma estrutura social severa, ou um conjunto particular de termos de parentesco por causa de suas restrições ao casamento, até (o que a maioria dos pesquisadores tem negligenciado), os tipos de estruturas globais, restrições arquitetônicas na gramática de, por exemplo, tabus como o IEP. Outra questão é se o pesquisador consegue pesquisar a semântica com sucesso. A chamada ‘falácia da tradução’ é bem conhecida, mas os linguistas de campo em particular devem estar sempre vigilantes para não serem confundidos por ela. Ao longo deste artigo, exortei o leitor a estar alerta contra o erro de concluir que a linguagem X compartilha uma categoria com a linguagem Y se as categorias se sobrepuserem na referência. Como Gordon (2004) argumenta, muito do pirahã é em grande parte incomensurável com o inglês e, portanto, a tradução é simplesmente uma aproximação pobre das intenções e significados Pirahã.
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9. CONCLUSÃO: CULTURA, COMUNIDADE E COMUNICAÇÃO
A aprendizagem cultural é discutida em uma infinidade de estudos (por exemplo, todo o campo da psicologia cultural, neuroantropologia, etc.). Mas talvez os dois mecanismos mais importantes sejam (i) o que Everett (2012a), voltando a Aristóteles, chama de “instinto social” e (ii) cognição geral. Outra maneira de se referir ao instinto social é como o “instinto interacional” (LEE, et. al., 2009; LEVINSON, 2006). Por cognição geral, refiro-me em particular à capacidade geral do cérebro humano de generalizar e reconhecer padrões. Qual pode ser a utilidade evolutiva de um instinto social ou interacional? O instinto social (como quer que seja caracterizado em última análise) é a necessidade presumivelmente não aprendida de os humanos se comunicarem, interagirem uns com os outros. Levinson (2006) produz um caso convincente para a independência da interação da linguagem. A necessidade de interagir e a capacidade de interagir são anteriores à linguagem. O apelo de tal instinto é que é um reflexo simples que não requer curva de aprendizado (como é necessário para o chamado “instinto da linguagem”, por exemplo). O instinto não é o produto final, é claro, mas desencadeia o movimento nessa direção e é sem dúvida o que distingue os humanos de outras espécies que não possuem esse instinto social ou internacional. O instinto social é o “iniciador” na medida em que fornece o problema, enquanto a linguagem e a sociedade fornecem as soluções. Nesse sentido, a linguagem é a principal ferramenta de construção da coesão social por meio da interação. Muitos pesquisadores (por exemplo, TOMASELLO, 2001) defenderam diferenças qualitativas entre as interações e organizações sociais de humanos versus outras espécies. Claramente, porém, uma vez que os humanos têm cérebros maiores, um instinto interativo e uma história linguística transmitida (passando para as gerações subsequentes tanto o conteúdo quanto a forma, ou seja, a gramática). A ideia de aprendizagem geral (incluindo coisas como memória, motivação, emoção, heurística, categorização, percepção, raciocínio e assim por diante), 38
fortemente dependente da habilidade humana aguçada de fazer generalizações estatísticas tácitas, como uma chave para a linguagem diferenças entre humanos e outras criaturas tem sido defendida muitas vezes na literatura. Kurzweil (2012) faz este caso para um público popular. Mas muitos pesquisadores em abordagens bayesianas de aprendizagem (por exemplo, Goldsmith, 2007; Pearl, 2013; Perfors, et al., 2012, MacWhinney, 2004 e muitos outros) apresentam evidências muito mais técnicas e diferenciadas, apoiadas por extensa experimentação. Tais alegações, de fato, remontam a muito tempo atrás, com uma forma de argumento encontrada em Benedict (1934), pelo menos implicitamente. Os efeitos da cultura no léxico assumem um significado maior nos dias de hoje, quando muitos linguistas negam uma forte bifurcação entre sintaxe ou gramática e o léxico. De fato, se as construções (ver GOLDBERG, 1995) são itens lexicais que produzem famílias de construções sintáticas, então a cultura pode afetar a sintaxe das construções assim como todos os linguistas agora concordam que ela pode afetar os itens lexicais de qualquer língua. Este texto não pretende ser uma lista de resultados não controversos. No entanto, fornece evidências de que a cultura afeta profundamente a gramática e que entender e estudar essa relação entre cultura e gramática não está além do nosso alcance. Por fim, as considerações acima levam à proposta de uma fórmula simples para o desenvolvimento da gramática em nossa espécie: COGNIÇÃO, CULTURA E COMUNICAÇÃO --> GRAMÁTICA Em outras palavras, dadas as habilidades cognitivas humanas, as experiências culturais/comunitárias compartilhadas e o instinto interacional, a gramática surge como solução para este último problema facilitada pelas duas primeiras habilidades.
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TRADUÇÃO RADICAL E INTENCIONALIDADE NA LINGUAGEM: D. EVERETT E QUINE7 Eleonoura Enoque da Silva8
No final da década de 1990, o linguista Daniel Everett (USA, 1932 - ) concluiu a sua pesquisa de campo (na Amazônia), junto à comunidade indígena dos pirahãs. O resultado principal da sua pesquisa foi a construção de uma gramática9 de sinais, palavras e frases dos pirahãs. A sua gramática é relevante no contexto polemista em que foi lançada, e, portanto, foi alvo de amplas discussões e publicações por filósofos, linguistas, sociólogos, antropólogos e outros profissionais. Neste artigo, explicitaremos algumas características dessa gramática a partir de um livro de Everett. Em 2017, Daniel Everett publicou o livro “Linguagem: a história da maior invenção de todos os tempos”10, no qual ele mostra a evolução da linguagem através dos tempos e como os seres humanos adquiriram a forma mais adequada de comunicação, a partir do panorama conjunto de reflexões da Arqueologia, Biologia, Antropologia e Neurociência. No Prefácio, o autor afirma que o livro “oferece uma história ampla e única da evolução da linguagem como invenção humana [....]; o uso da palavra ‘invenção’ quer dizer de comunidades que criaram símbolos, gramática e linguagem onde antes não havia nada”. (EVERETT, 2019, p. 13-14). 7 Artigo baseado na comunicação apresentada no Colóquio ‘Linguagem Sentido e Ação’; evento organizado e realizado pelo PPGFIL-UNICAP, em setembro de 2021. 8 Professora do PPGFIL-UNICAP, e-mail: [email protected] 9 Este resultado foi publicado, em 1983, na sua tese de doutorado em linguística pela Unicamp, SP, Brasil. 10 O livro “Linguagem: a história da maior invenção de todos os tempos”, que abreviadamente chamaremos de “Linguagem” é composto por um Prefácio, uma Introdução, Quatro partes e uma Conclusão. O livro foi publicado originalmente em 2017 e traduzido e publicado pela Vozes em 2010.
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Na Introdução, o autor levanta questões fundamentais e adicionais sobre as línguas humanas, suas diversidades e estruturas. Na primeira parte (intitulada “Os primeiros homini”), o autor analisa a evolução linguística do gênero humano (“Homo”) e atribui à espécie erectus a criação da linguagem como a conhecemos. Na segunda (“Adaptações biológicas humanas para a linguagem”), rebate a teoria gerativista de que a linguagem é algo exclusivamente biológico. Na terceira (“A evolução da forma linguística”) e na quarta (“Evolução cultural da linguagem”), trata do surgimento da gramática e da língua como estruturas culturais. O linguista e filósofo Quine (USA, 1908 – 2000), contemporâneo de Everett, também tinha um interesse pela linguagem como estrutura significativa e pela linguística. Dentre as suas várias publicações, o nosso interesse central pelo livro “Palavra e Objeto” (2010) consistiu na razão de que, além de ser um marco na filosofia analítica da linguagem, ele discute as dificuldades envolvidas na tarefa da tradução e referência de palavras, objetos sintagmáticos e sentenças. O livro trata da relação entre palavra e objeto, entre termos e frases, a partir de uma teoria behaviorista da linguagem, descrevendo a linguagem a partir de comportamento publicamente observável. Segundo o autor, a linguagem pode se desenvolver como um sistema complexo de disposições comportamentais para comunicar pensamentos e sentimentos em resposta aos estímulos verbais ou não verbais. O livro possui 7 capítulos, e para este nosso trabalho nos deteremos no cap. 2, intitulado Tradução e Significado, por considerarmos fundamental para a discussão sobre linguagem, linguística, behaviorismo e semântica. Vera Vidal, especialista na filosofia de Quine, afirmou11: “Dentre os filósofos contemporâneos, Quine foi o único que construiu um sistema nos moldes dos grandes filósofos antigos e modernos. Assumindo determinados pressupostos e tendo como questão propulsora, o que ela chamou de seu projeto epistemológico, ele abordou, de forma perfeitamente interligadas, questões de epistemologia, de filosofia da 11 Quine por Vera Vidal a partir do Cap. 4 do livro Metafísica Contemporânea, p. 98.
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linguagem, de ontologia, de filosofia da lógica e, mais sinteticamente, de ética, estética e política.” Acreditamos que a preocupação de Everett e Quine com a linguagem e gramática utilizadas no contexto social é de suma importância para todos aqueles que estão preocupados em compreender as discussões semânticas e pragmáticas acerca da linguagem e cultura de um povo e de uma civilização. A fim de facilitarmos a referência da nossa exposição, dividiremos o texto em duas partes, intituladas Parte A - Linguagem, linguística e behaviorismo e Parte B – Gramática, tradução radical e cultura. Em cada uma delas, indicaremos os capítulos das obras dos autores de que iremos tratar. PARTE A – LINGUAGEM, LINGUÍSTICA E BEHAVIORISMO
Vamos iniciar esta seção fazendo uma distinção entre linguagem, língua e linguística. A linguagem é qualquer forma de expressão que o ser humano usa para se comunicar. Por exemplo, a linguagem dos gestos, sinais e imagens (não verbal) e a linguagem das palavras (verbal). A linguagem inclui a língua, que é um sistema convencionado pelos humanos e comum a um grupo. Um desses sistemas convencionados é a Gramática, ou seja, as regras que codificam e sistematizam o uso de uma língua. A linguística é a ciência que estuda a linguagem verbal humana com base em observações e teorias que possibilitam a compreensão da evolução das línguas e desdobramentos dos diferentes idiomas. Ela é responsável também pelo estudo da estrutura das palavras, expressões e aspectos fonéticos de cada idioma.12 Ao estudar a língua, a linguística leva em conta os aspectos de fonética, isto é, os sons da fala; a morfologia das palavras; a sintaxe, que trata das relações das palavras com outras orações; a semântica, que corresponde à significação das palavras; a pragmática, que corresponde ao 12 https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/lingua-portuguesa/linguistica
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uso da fala na comunicação e a filologia, que é o estudo da língua através de documentos e registros antigos13. No século XX, alguns dos precursores da linguística foram: (i) Ferdinand Sausurre (Suíço, 1857-1913), com a publicação do livro Curso de Linguística Geral (1916); (ii) Noam Chomsky (E.U.A, 1928 -), com os livros Logical Structure of Linguistic Theory (1955) e Generative Grammar (1988) e (iii) Charles Sanders Peirce (E.U.A, 1939 – 1914), com o livro Semiotics and Significs de 1977. Daniel L. Everett é um professor norte-americano de ciências cognitivas e um eminente especialista e pesquisador na área de linguística. Em seu livro Linguagem, ele fala da diferença entre língua e linguagem e aponta certos aspectos da linguística de Chomsky e Peirce. Segundo Everett, todas as línguas possuem características, estruturas e convenções que estabelecem as relações entre as palavras e os objetos. A respeito disso, o autor afirma que: [...] todas as línguas compartilham pelo menos algumas características gramaticais, seja da relação entre palavras e coisas, entre palavras e acontecimentos ou entre convenções e ordenamento e estruturação de som e palavras, ou entre organização de parágrafos, histórias e conversas. (EVERETT, 2019, Prefácio, p.12).
Essa organização da gramática é feita, geralmente, pelo linguista teórico, mas o pesquisador de campo questiona não só sobre a estrutura da gramática, mas também a comunicação linguística entre sociedades. Vejamos o que diz o autor a respeito disso. [...] Há várias perspectivas particulares que marcam o caminho para a evolução da linguagem,.... mas um pesquisador de campo da linguística levantaria duas questões fundamentais, a saber: (1ª) o quão 13 https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/lingua-portuguesa/linguistica
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parecidas são as línguas humanas faladas hoje em dia e (2ª) o que a diversidade das línguas modernas revela sobre as primeiras línguas humanas? (EVERETT, 2019, Introdução, p. 25-26).
Mas o que nos interessa aqui é a discussão de duas questões adicionais colocadas pelo autor; são elas: “[....] as estruturas gramaticais complexas são exigências das línguas humanas? Algumas sociedades se comunicam menos ou usam menos comunicação linguística do que outras?” (EVERETT, 2019, p.25-26). Para responder a essas questões e as discutirmos sob a perspectiva da “Linguagem, Sentido e Ação”, que é o tema do nosso Colóquio, apresentaremos alguns recortes do Capítulo 4: “Todos falam a língua de signos”, do livro do Everett, com as devidas citações e segundo uma estrutura dialogal com parte do sistema quineano. A.1 LÍNGUAS, SIGNOS E GRAMÁTICA
No capítulo 4 do livro “Linguagem”, o autor diz que “para uma teoria de evolução da linguagem é fundamental um entendimento dos papéis da sociedade, da cultura e da sua interação com funções cognitivas individuais.” (EVERETT, 2019, Cap. 4, p. 99). O autor começa dizendo que a linguagem é algo mais que um tipo particular de gramática recursiva e hierárquica, como defendem alguns linguistas (EVERETT, 2019, p.101). Sabemos que aqui o autor se refere à gramática gerativa elaborada por Noam Chomsky, no final da década de 50. O linguista Noam Chomsky (1928- ) é um teórico da linguagem, importante no contexto contemporâneo, tendo sido o criador da teoria conhecida como gramática gerativa transformacional. Essa teoria, que passa por diferentes versões – a gramática gerativa, a gramática sintagmática e a gramática transformacional –, encontra-se formulada em sua obra Syntactic Structures de 1957 e desenvolvida em Aspects of a Theory of Syntax (1965). 56
A gramática gerativa discute aspectos da linguagem de como a criatividade do falante, isto é, a capacidade humana de produzir ou gerar novas sentenças a partir de uma base finita de conhecimentos. Neste caso, a gramática seria considerada um sistema finito que permite gerar um conjunto infinito de frases gramaticais. Já para Everett, “[....] a gramática é colaborativa nas línguas. [....]. Em outras palavras, a linguagem não é (p. 102) meramente sinônimo de gramática. Ela é uma combinação de forma, gestos, significado e altura de voz. A gramática auxilia a linguagem. Não é a própria linguagem”. (EVERETT, 2019, p. 101-102) O filósofo da linguagem John Searle, em uma resenha no New York Review of Books de 1972, criticou a concepção de linguagem de Chomsky ao afirmar que: O principal problema com a ideia de que a linguagem é gramática resume-se a uma ausência de apreciação da fonte e do papel do significado na linguagem. [...] sabemos que as línguas não precisam ter estruturas gramaticais complexas. Ao invés disso, muitas delas podem simplesmente justapor palavras e frases simples, fazendo com que o contexto guie a sua interpretação [....]. (SEARLE apud Everett, p. 101)
Everett concorda com Searle em relação ao problema do significado da linguagem, e representa as relações da linguagem com a semântica, a pragmática e a gramática (EVERETT, 2019, ver fig. 7, p. 107), mostrando como a linguagem foi modelada pela Cultura, pela Psicologia e pela História. Ele diz que, a partir dessas relações, não há dúvidas que os usos da linguagem para comunicação e pensamento são dependentes um do outro. Um aprimora o outro. (Everett, 2019, p. 107-108) Essa interdependência entre linguagem, comunicação e pensamento é porque a língua não funciona tão bem para troca de ideias e informações se não for através da mediação desta tríade estrutural. Se fosse 57
verdade, isso sugeriria que o principal propósito da linguagem é auxiliar o pensamento e não a comunicação. A respeito disso, Everett afirma: Há outros problemas com o pressuposto de que a linguagem não serve para comunicação. [....] A linguagem, assim como tudo na vida natural, é imperfeita. A comunicação falha, mas o pensamento também. A hipótese de que os pensamentos de alguém não são ambíguos para si é apenas isso: uma hipótese. Ela precisa ser testada. Outro problema a ser observado é o de que não é claro, de forma alguma, que todas as pessoas pensam sempre (ou mesmo na maioria do tempo) através da linguagem. (EVERETT, 2019, p. 110).
Portanto, ao passo que a gramática não foi nem a primeira nem a última na evolução da linguagem humana, ela necessariamente veio depois dos símbolos, isto é, das palavras e frases. [...] A evolução da linguagem seguiu o caminho da “progressão semiótica”14. Os componentes da semiótica são (i) índices que são ligações não intencionais, não arbitrárias, entre forma e significado; (ii) ícones que são conexões intencionais, não arbitrárias, entre forma e significado e (iii) símbolos que se dividem em signo e referente. A.2 INTENCIONALIDADE
Essas ligações intencionais se encontram entre ícones e símbolos, pois a intencionalidade15 consiste em estados mentais que se dirigem a alguém ou alguma coisa. Por exemplo, o desejo, a crença, o querer etc.
14 EVERETT. Linguagem. 2019, p.121 - Figura 1 – A progressão semiótica. 15 SEARLE. Intencionalidade. Ed. Martins Fontes
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Segundo Everett, quando a intencionalidade e a representação se relacionaram em ícones, os humanos foram capazes, pelo menos em princípio, de começar a se comunicar de maneira mais eficiente. Um exemplo da língua falada pela tribo indígena isolada dos pirahãs da Amazônia do Brasil, que envolve diferenças entre a fala dos homens e a fala das mulheres, ajuda a ilustrar esse ponto. [...] o simbolismo fonético dos indexicais, contrastante entre a fala dos homens e a fala das mulheres pirahãs, é encontrada em, pelo menos, dois estágios; são eles: o primeiro é a imitação de sons, que pode criar palavras; o segundo é o uso do simbolismo fonético, que pode construir relações sociais e a compreensão da natureza. O autor diz que enquanto conduzia a sua pesquisa entre os banawás, ele gravou alguns homens imitando (ou seja, usando o simbolismo fonético) os sons dos animais que eles caçavam. Semanas depois, ele mostrou as gravações para os pirahãs, para um grupo de caçadores-coletores. A resposta deles foi “os banawás conhecem a selva. Eles reproduzem os sons de maneira correta”. (EVERETT, 2019, p. 124-125).
O filósofo Quine, também pensando na tradução da língua de uma comunidade, construiu um experimento mental de que falaremos na seção seguinte. A.3 QUINE: EXPERIMENTO DE TRADUÇÃO RADICAL
Em Palavra e Objeto, Quine constrói um exemplo de tradução radical que é um experimento mental. Ele propõe que se imagine um linguista que tem como tarefa traduzir uma língua completamente desconhecida para o seu idioma, por exemplo, de um dialeto de nativos autóctones para o inglês. Para tanto, ele passa a conviver com os falantes 59
de tal língua. Segundo Quine, o único critério que o linguista possui para a tradução de palavras e frases dos nativos é a observação do comportamento verbal deles frente a certas situações. Entretanto, a observação do comportamento verbal, conclui Quine, permite ao linguista elaborar mais de um manual de tradução. (QUINE, 2010). A tentativa de tradução começa com a análise de unidades sentenciais associadas a certas condições de estimulação dos próprios nativos. O linguista deve, portanto, recuperar o significado das unidades sentenciais utilizando dados objetivos, como a observação daquilo que causa algum efeito nos nativos e em seu comportamento verbal ou não verbal. Os dados da observação, a princípio, indicam significados objetivamente empíricos e, em seguida, tornam-se propostas para a tradução de todas as sentenças da língua nativa. O linguista observa a ligação entre a enunciação da palavra e a situação, e percebe que quando um coelho passa pulando o nativo diz ‘Gavagai!’. O linguista imediatamente anota a primeira proposta de tradução: ‘Coelho!’ ou ‘Eis um coelho!’ Essa tradução, no entanto, é preliminar e deve ser submetida a testes posteriores em diferentes situações estimulantes (QUINE, 1960, p. 28). Em cada situação, o linguista enuncia ‘Gavagai?’ e, a partir da resposta do nativo, ele começa a apurar se a enunciação significa consentimento ou dissentimento: o linguista percebe que, ao consentir, o nativo profere ‘Evet’ e, ao dissentir ‘Yok’. O linguista compreende que as enunciações ‘Evet’ e ‘Yok’, respectivamente, significam ‘sim’ e ‘não’ (QUINE, 1960, p. 28-29). O objetivo final do linguista consistirá na construção de um manual de tradução que possibilite ao mesmo uma efetiva comunicação dele com todos os falantes da comunidade. O linguista pode, em princípio, escolher qual o manual que ele considera mais útil à tarefa da tradução. O aspecto mais importante desse exemplo, para Quine, é que ele mostra ser possível elaborar diversos manuais de tradução, sem que seja possível encontrar critérios para decidir qual deles é o verdadeiro. 60
A.4 QUINE E AS TESES DE INDETERMINAÇÃO
Como já exemplificamos na seção anterior, segundo Quine a ‘tradução’ radical consiste em uma ferramenta de tradução de base empírica de uma língua desconhecida cuja consequência resulta na tese da indeterminação da linguagem. Segundo o autor, tal indeterminação representa a própria limitação das tentativas de tradução. E o desafio da proposta de tradução radical é que a língua a ser traduzida seja completamente desconhecida para a comunidade dos linguistas (QUINE, 1960, p. 27) Para Quine, a tradução está baseada na evidência empírica e em um esquema conceitual que nos leva a dois tipos de indeterminação, a saber: a) Indeterminação de referência (ou inescrutabilidade da referência): algumas sentenças podem ser traduzidas em mais de um modo e as várias versões diferem sobre a referência. b) Indeterminação da tradução, que é eventualmente referida por Quine como ‘holfrástica’, e significa que há mais de um método correto de traduzir sentenças. Os dois tipos de indeterminação são análogos. No primeiro tipo, trata-se de tradução de palavras; e, no segundo, de sentenças. Vamos aprofundar um pouco mais sobre essas teses. Para Quine, a tradução permanece indeterminada devido à inescrutabilidade da referência de termos de uma língua, ou seja, não é possível determinar qual é exatamente a referência de um termo, como por exemplo “Gavagai”, usado pelos nativos quando estes observam um coelho, pois apesar de, em um manual, ser possível traduzir o termo por “coelho”, seria concebível igualmente criar um manual de tradução no qual o termo “gavagai” fosse traduzido por “o coelho em movimento”, “o coelho branco” ou “uma parte do coelho”. Esta constatação leva Quine a concluir duas coisas: 1) O linguista não pensa em “significados” ao elaborar manuais de tradução, mas, sim, baseia-se na observação do comportamento dos falantes nativos; 2) É possível determinar as situações em que os falantes 61
assentiriam a uma frase como “Gavagai”, mas não é possível traduzir o termo “gavagai” univocamente porque a referência é inescrutável. Essa tese de Quine, conhecida como tese da indeterminação da tradução, é até hoje muito debatida em livros de filosofia e de linguística e tornou-se um dos temas de debate mais conhecidos nos meios filosóficos do século XX.” (QUINE, 2010) Portanto, para finalizar essa Parte A, vimos que a origem e a composição dos símbolos que nós estivemos discutindo destaca o fato de que, assim como quaisquer outras funções biológicas, a linguagem humana não é simples. A linguagem surge da interação entre significado (semântica), condições sobre como ela é usada (pragmática), propriedades físicas do seu inventário de sons (fonética), gramática, fonologia (a estrutura dos sons), morfologia (a maneira como a língua cria palavras, usando prefixos e sufixos, por exemplo) e organização de suas histórias e conversas. Ainda assim, existe algo mais, porque a linguagem como um todo é maior do que a soma de suas partes. PARTE B – GRAMÁTICA, TRADUÇÃO RADICAL E CULTURA
Nesta Parte B, trataremos dos capítulos ‘De onde vem a gramática’ e ‘Comunidades e comunicação’, do livro Linguagem de Everett e do livro do Quine Palavra e objeto; discutiremos o capítulo ‘Palavras e frases’. B.1 TIPOS DE GRAMÁTICA: HIERARQUIA E RECURSIVIDADE
No Capítulo intitulado “De onde vem a gramática”, Everett afirma: O discurso e a conversação são o ápice da linguagem. ... Quando os falantes nativos de português ouvem a primeira sentença da nossa conversa (‘Ontem, o que o João deu para a Maria na biblioteca?’) em um contexto natural, eles
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a compreendem. Eles são capazes de fazer isso porque aprenderam a ouvir todas as partes dessa totalidade complexa e a usar cada uma delas para ajudá-los a compreender o que o falante pretende quando pergunta: ‘ontem, o que o João deu para a Maria na biblioteca?’. (EVERETT, 2019, p. 268)
Para explicar isso, ele apresenta alguns diagramas para explicitar a estrutura da gramática; as hierarquias fonológicas e morfológicas; a organização dos sintagmas e os tipos de língua por tipo de palavra. Em seguida, o autor explica a importância do significado dos enunciados e a composicionalidade deles. Uma coisa que todas as gramáticas devem ter é uma maneira de juntar os significados das partes de um enunciado para formar o significado do enunciado inteiro. [....] O significado de cada uma das partes é agrupado em sintagmas e frases. Isso é chamado de “composicionalidade”, sem a qual não pode haver linguagem. (EVERETT, 2019, p. 295).
A propósito disso, sabemos que muitas línguas, se não todas, têm exemplos de sentenças com significado com pouca ou nenhuma sintaxe. Para ilustrar isso, o autor fala de três tipos de gramáticas, denominadas abreviadamente G1, G2 e G3. A Gramática 1 (G1) é linear com a língua em sua dimensão mais elementar (símbolos, gestos e entonação), na sua forma mais simples. Por exemplo, considere as seguintes sentenças: “Você bebe”. “Você dirige”. “Você vai para a cadeia”. Essas três sentenças têm a mesma interpretação que a proposição condicional “Se você beber e dirigir, então você vai para a cadeia”, que embora seja gramaticalmente distinta e com uma estrutura mais complexa, tem o mesmo significado. Note que a interpretação das frases separadas como uma única frase não requer um conhecimento prévio das possibilidades sintáticas, uma vez que nós somos capazes de 63
usar esse tipo de compreensão cultural para interpretar histórias inteiras de múltiplas formas. (EVERETT, 2019, p. 196). Vejamos o que Everett chama de G2 e G3. A gramática G2 são as línguas que têm estruturas hierárquicas, mas sem recursividade. Alguns linguistas consideram que as línguas dos povos pirahã e riau são exemplos desse tipo de estruturas hierárquicas sem recursividade, ou da Gramática G2. Outros, como o pesquisador Fred Karlsson, afirmam que a maioria das línguas européias têm hierarquia, mas não tem recursividade. Karlsson baseia a sua afirmação na observação de que o “encaixamento” dos sintagmas se refere à alocação de um elemento dentro do outro. Por exemplo, se eu tomar o sintagma “o pai de João” e colocá-lo dentro de um sintagma maior, “o cunhado do pai de João”, então ambos estão encaixados. A diferença entre encaixamento e recursividade é simplesmente a de que não há limite para a recursividade; ela pode sempre perpetuar-se infinitamente (KARLSSON apud EVERETT, 2019, p. 297). Podemos dizer que as línguas europeias padrão nunca permitem mais do que dois níveis de encaixamento. Portanto, elas têm hierarquia (um elemento dentro do outro), mas não têm recursividade (um elemento dentro do outro... ad infinitum). Assim, o trabalho de Karlsson dá um apoio interessante às línguas da gramática G2, ao demonstrar que uma língua é recursiva, como os exemplos mostrados acima de duas orações o ilustram, uma com encaixamento central, sendo uma oração subordinada - que nos parece bastante complexa e muito semelhante ao que Frege discute no seu artigo ‘Sentido e Referência -, e outra com encaixamento não central, que segundo análise proposta por Davidson a leva a uma semelhança com a língua da gramática dos pirahã. O último tipo de Gramática que Everett examina no seu livro é a Gramática 3, abreviada por G3, que seguindo as ideias de Peirce deve ter tanto hierarquia quanto recursividade. Já para Chomsky todas as línguas são línguas G3, isto é, tem tanto hierarquia quanto recursividade. Na gramática G3, temos duas visões opostas sobre a natureza da linguagem. Uma é a de Chomsky, que Searle descreve da seguinte maneira: 64
As estruturas sintáticas das línguas humanas... não têm nenhuma conexão significativa com a comunicação, .... O que é essencial sobre as línguas, ...., é sua estrutura. ..... Se os seres humanos evoluíram até o ponto em que usaram formas sintáticas - ... – para se comunicar, então, nós não teríamos mais linguagem, mas outra coisa.
Searle conclui: “[...] é importante enfatizar o quão peculiar e excêntrica é a abordagem geral de Chomsky para a linguagem”. “A língua de um humano primitivo sem recursividade seria uma ‘protolíngua’ sub-humana, de acordo com Chomsky”. (CHOMSKY apud EVERETT, 2019, p. 299). A outra visão é a do autor Everett, que diz o seguinte: Então, para Chomsky, não há linguagem sem recursividade. Mas as evidências oriundas da evolução e das línguas modernas apontam para um cenário diferente. De acordo com as evidências, a recursividade teria começado a aparecer na linguagem, como nós vimos anteriormente, através de gestos, prosódia e de suas contribuições para a decomposição dos enunciados holofrásicos. (EVERETT, 2019, p. 302).
Em suma, a recursividade é secundária com relação à comunicação e a gramática humana fundamental que tornou possíveis as primeiras línguas humanas era uma gramática G1. B.2 QUINE: PALAVRAS, FRASES E COMPOSIÇÃO
Ao longo do capítulo 2 de Palavra e Objeto, o autor mostra a dificuldade na tradução de palavras e frases de uma língua para outra, e a impossibilidade de encontrar definições para palavras que possam ser mantidas nessas traduções. Quine também mostra qual é a estrutura básica necessária 65
à constituição da linguagem, desde frases por ele chamadas de observacionais até frases bem mais elaboradas, que tratam de entidades abstratas das ciências. Segundo ele, os linguistas vão, sempre social e paulatinamente, elaborando sistemas linguísticos bastante sofisticados, nos quais é possível identificar certas estruturas básicas das frases e termos. (QUINE, 2010). Vejamos as distinções que Quine faz em relação às frases e termos a partir do artigo das autoras(es) SILVA, MEDEIROS e PATRÍCIO (2019), que dizem: As frases são de dois tipos, a saber: 1) “frases de ocasião” (que afirmam algo sobre uma ocasião presente ou temporária), e 2) frases observacionais (que afirmam algo sobre uma situação mais permanente). As frases de ocasião podem depender da ação por parte da estimulação simultânea, mas a resposta para frases observacionais pode ocorrer sem aviso pela estimulação simultânea.
A distinção entre termos singulares e gerais está baseada na referência a objetos: os singulares a objetos individuais, e os gerais a propriedades gerais. Mas a diferença pode ser arrimada em como eles são usados para construir frases, ao invés de como são utilizados para se referir a objetos. Um termo geral pode ser predicado de um termo singular (por exemplo, o termo geral “satélite da Terra” pode ser predicado do termo singular “a lua” na frase “a lua é um satélite da Terra”). Ao mesmo tempo, termos gerais podem ser convertidos em termos singulares por prefixos demonstrativos, tais como: “essa” ou “aquilo”, como “esse presente”, ou “aquela água”. Um exemplo de frases observacionais, apresentado por Quine em Palavra e Objeto, é quando aparece um coelho e o nativo pronúncia “gavagai”; o tradutor traduz por “coelho” ou “aqui há um coelho”, e confirma sua teoria se, toda vez que aparece um coelho, o falante dá seu assentimento à emissão “gavagai”. O nativo, porém, poderia estar se referindo a “partes não separadas de coelho” ou “movimento de coelhos” ou “presença de coelhidade” etc. 66
Do ponto de vista sintático e semântico da lógica, acreditamos que o ‘Gavagai’ seria um nome, isto é, um referente para o animal coelho, e estaria associado à indeterminação do referente. Já as propriedades, do coelho pulando etc. seriam termos gerais, e estes estariam associados a uma indeterminação da tradução, por se tratar de sentenças. Assim, para refletirmos sobre o princípio da composição de palavras e frases, sob a perspectiva da filosofia da linguagem de Frege e da linguística de Everett, é interessante pensarmos nessa distinção entre frases e termos feita por Quine. B.3 GRAMÁTICA, COMPOSIÇÃO DE PALAVRAS E FRASES
Agora, pensando no experimento de Quine, se fôssemos construir não apenas um manual de tradução, mas uma gramática para língua dos nativos, a questão é: será que essa gramática seria hierárquica e recursiva? Na seção 7 do Cap. 2, Quine diz: Suponha que a língua nativa inclua as frases S1, S2 e S3, de fato traduzíveis respectivamente por ‘Animal’, ‘Branco’ e ‘Coelho’. Como, então, pode o linguista perceber que o nativo estaria disposto a assentir (concordar) a S1, em todas as situações nas quais ele proferiu espontaneamente S3, e em algumas, porém, quem sabe, não todas as situações nas quais ele proferiu espontaneamente S2? (QUINE, 2010, p. 50 -53).
A respeito da recursividade entre duas línguas, João Branquinho e outros (2005) afirmam: Um manual de tradução de uma linguagem L para uma linguagem L‘ (L é a linguagem-alvo e L‘ a linguagem fonte) pode ser visto como resultando em uma função recursiva (pode-se dizer f) que toma
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como argumentos frases de L e como valores frases de L‘, sendo a relação estabelecida em cada caso uma relação de tradução entre essas frases. Mais especificamente, o que se quer com um manual de tradução é obter um método efetivo que dê para cada frase arbitrária de L a sua tradução L‘ 16.
Em suma, uma gramática para L, junto com o conjunto finito do léxico, deve definir recursivamente todos os elementos infinitos (frases infinitas) de L. Assim, quando o linguista ouve um nativo dizer ‘gavagai‘ na presença de um coelho ele formula diferentes hipóteses quanto a que tal termo possa designar: ‘é todo o animal’; ou ‘é uma parte do animal’; ‘sua cor’; ‘seu movimento’, assim por diante. Para testar essas hipóteses, o linguista diz ‘gavagai‘ em circunstâncias distintas e espera pelo assentimento ou dissentimento do nativo. Desse modo, algumas hipóteses são confirmadas. O linguista continuará, a seu modo, confirmando hipóteses a respeito de frases individuais, bem como de tendências gramaticais. A respeito dessa gramática recursiva, Everett diz o seguinte: Contudo, .... ainda permanece o fato de que nunca tenha sido documentada uma língua que tenha alguma sentença infinita. [....] Há .... várias línguas que mostram uma ligação não direta entre sintaxe e semântica. [...]. De qualquer forma, a cultura está sempre presente na interpretação de sentenças, a despeito do tipo de Gramática ser G1, G2 ou G3. (EVERETT, 2019, p. 299).
Vejamos como Everett abordará este objeto de investigação no nosso último capítulo, intitulado ‘Comunidades e comunicação’. 16 BRANQUINHO, João, DESIDÉRIO, Murcho e GOMES, Nelson G. (org.) Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, 2005.
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B.4 COMUNIDADES E COMUNICAÇÃO.
Na última parte do livro de Everett, intitulada ‘Evolução Cultural da Linguagem’, no Capítulo ‘Comunidades e comunicação’, o autor afirma: [....] As interpretações dos interlocutores são baseadas na sua relação, no conhecimento de um da cultura do outro .... e das expressões e dos gestos de cada um. O significado daquilo que é dito nunca está baseado simplesmente – nem mesmo principalmente – nas palavras faladas em uma conversa. (EVERETT, 2019, p. 368). [....] a linguagem humana não é um código de computador. Os humanos não ganharam primeiro a gramática e depois depreenderam seu significado em uma cultura particular. A cultura, a gramática e o significado estão implicados entre si na linguagem humana. As línguas e a psicologia estão profundamente enraizadas na cultura. Nenhum artefato nas línguas ou nas sociedades humanas pode ser compreendido senão em termos da cultura em que ele é interpretado. A compreensão da natureza e do papel da cultura no comportamento humano, na língua e no pensamento é essencial para o entendimento da evolução humana. (EVERETT, 2019, p. 368).
Há vários argumentos que os pesquisadores modernos ocasionalmente empregam para negar a existência da cultura e omiti-la da construção de suas teorias de raciocínio, de comportamento e da linguagem dos humanos. Alguns pesquisadores, tanto na teoria linguística quanto na evolução da linguagem, desconsideram mais de um século de estudos antropológicos que criam uma argumentação consistente de que a cultura é necessária para explicar o animal humano. 69
Segundo Everett, valeria a pena explorar mais a fundo de que modo precisamente entender a linguagem e cultura de forma conjunta pode nos permitir compreender melhor cada uma delas. Tal entendimento também ajudaria a esclarecer como novas línguas, dialetos ou suas variantes vêm à tona, já que mudanças culturais provocam mudanças linguísticas. Já para Quine toda linguagem significativa, para ser clara e isenta de confusões, deve poder ser traduzida para uma linguagem na qual vale o princípio de permutabilidade salva veritate de frases e termos. O único critério seguro para a tradução das frases dos nativos é a observação do comportamento verbal deles frente a certas situações. Entretanto, a observação do comportamento verbal permite ao linguista elaborar mais de um manual de tradução, sem que seja possível encontrar critérios para decidir qual deles é o verdadeiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Everett diz que a: linguagem não é simplesmente uma outra forma de comunicação animal, mas é uma forma avançada de expressão cultural baseada nas habilidades únicas da cognição humana, juntamente com princípios gerais de estrutura para transferência de informação. O núcleo da linguagem é o símbolo, uma combinação de uma forma culturalmente convencionada com um significado culturalmente desenvolvido. [...]. O símbolo pode ter resultado .... pela associação regular de uma coisa no mundo com um objeto ou evento. [...]. Os sons da fala, as palavras, as sentenças, os afixos gramaticais e os tons, todos surgiram da invenção inicial do símbolo, com essa invenção sendo aprimorada e disseminada com o passar do tempo através do pleno envolvimento
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social, [....] As línguas humanas mudam com o passar do tempo, e as culturas e os falantes deixam-nas mais elaboradas em alguns lugares e mais simples, em outros. Portanto, as línguas contemporâneas são diferentes em seus detalhes em relação àquelas de dois milhões de anos atrás. Mas permanece o fato de que há dois milhões de anos, na África, uma comunidade de Homo erectus começou a compartilhar informações entre seus membros através da linguagem. [....] Cada humano vivo desfruta de sua gramática e de sua sociedade por causa do trabalho, das descobertas e da inteligência dos Homo erectus. A seleção natural escolheu as coisas que eram mais eficazes à sobrevivência humana e aprimorou as espécies para que os humanos pudessem viver hoje, na Era da Inovação, na Era da Cultura, no Reino da Fala. (EVERETT, 2019, p. 385 – 387).
Segundo Quine, a linguagem é uma arte social. Ao adquiri-la, nós dependemos inteiramente das indicações disponíveis intersubjetivamente do que dizer e quando. Assim, não há justificação para comparar significados linguísticos, a não ser em termos das disposições dos homens a responder publicamente a estimulações socialmente observáveis. Um efeito do reconhecimento desta limitação é o de que o empreendimento de tradução passa a ser considerado como afetado por uma certa indeterminação sistemática. A indeterminação da tradução tem relação mesmo com a questão de quais objetos interpretar como aqueles acerca dos quais um termo é verdadeiro. Estudos acerca da semântica da referência consequentemente resultam fazer sentido somente quando direcionados para nossa língua. Porém, nós permanecemos livres para refletir sobre o desenvolvimento e a estrutura de nosso próprio aparato referencial. (QUINE, 2010, Prefácio) Ao examinarmos as obras Linguagem de Everett e Palavra e Objeto de Quine, percebemos que ambas trazem discussões e 71
contribuições para várias áreas de conhecimento, como sociologia, psicologia, filosofia, letras etc. Aqui neste artigo privilegiamos em cada obra os argumentos e reflexões desses autores nas áreas de filosofia da linguagem, linguística e filologia, pois acreditamos que existam pontos de discussão em comum, mas com abordagens diferentes. O que é comum aos autores é a preocupação da linguagem e da linguística no âmbito de uma comunidade que se expressa por dialetos. Para Everett, é necessário explicitar as estruturas e significados dos símbolos, signos e sinais das línguas inseridas em um contexto social e cultural. Para Quine, a linguagem é uma arte social, e por este motivo é importante conhecermos as teses das traduções radicais e conhecermos as palavras, frases e objetos no seu contexto social. Por isso, acreditamos que as obras desses autores são legados de desenvolvimento de pesquisa de altíssimo nível nas três dimensões da linguagem, a saber, semântica, pragmática e sintaxe. Por esta razão, sugerimos o estudo e pesquisa dessas obras, pois elas possuem vários temas para pesquisa de pós-graduação em filosofia e linguística, bem como em diversas áreas transversais e interdisciplinares dos conhecimentos que se ocupam com a linguagem, comunicação e cultura. REFERÊNCIAS
DREBEN, Burton S. Quine by Quine. In The Cambridge Companion to Quine. 2014 EVERETT, Daniel Leonard. A língua pirahã e a teoria sintaxe: descrição, perspectiva e teoria. Tese de Doutorado em Linguística. Orientadora: Charlotte Galves. Campinas: IEL-UNICAMP, 1983. EVERETT, Daniel. Linguagem: a história da maior invenção da humanidade. Trad. Maurício Resende. São Paulo: Contexto, 2019. 72
GIBSON, Roger F. (ed.) The Cambridge Companion to Quine. Cambridge University Press, 2004. LEPORE, Ernie and HARMAN, Gilbert (eds.). A Companion to W.V.O. Quine. U.S.A: Willey Blackweel, 2014. QUINE. De um ponto de vista lógico. Trad. Antonio I. Segatto. São Paulo: Editora Unesp, 2011. QUINE. Palavra e Objeto. Trad. Sofia I.A. Stein e Desidério Murcho. Petrópolis: Vozes, 2010 QUINE. Pursuit of Truth. Cambridge, Harvard University Press. 1990. QUINE. Relatividade ontológica e outros ensaios. Coleção Os Pensadores, 1980. SILVA, Eleonoura E., MEDEIROS Rebecka R. e PATRÍCIO, Pedro. Semântica e Epistemologia: um debate entre Davidson e Quine. Revista Ágora, 2019.
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CONVENÇÃO SOCIAL, SIGNIFICAÇÃO LINGUÍSTICA E FORMAÇÃO DA LINGUAGEM: UM ESTUDO DESDE DANIEL EVERETT José Marcos Gomes de Luna17
1. INTRODUÇÃO
A busca de compreensão da formação da linguagem envolve desafios fascinantes para as ciências da linguagem e a filosofia. De modo particular, entre eles, destaca-se o problema da origem da linguagem, isto é, o problema do surgimento da significação linguística, estabelecida numa convenção social que se possa chamar de linguagem. Perguntas como “de que modo se estabeleceu a primeira convenção social linguística?” ou “que caminho foi trilhado, nos primórdios do ser humano, que resultou no surgimento da linguagem?” são centrais, provocando pesquisas e inferências fundamentais para a compreensão desta invenção, instrumento altamente sofisticado, da cultura humana. As posições de Daniel Everett em “Linguagem - A história da maior invenção da humanidade” e a possibilidade que tivemos de discutir com ele no “Colóquio: Linguagem Sentido e Ação na Obra de Everett”, promovido pelo Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco, nos levou a uma interessante 17 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Coordenador da graduação em Filosofia e Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Recife, PE, Brasil. E-mail: [email protected] Orcid: orcid.org/0000-0002-2264-2501 Endereço para correspondência: Rua do Príncipe, n.º 526, Bloco B, 1.º Andar. Boa Vista, Recife – PE, Brasil. CEP: 50050-900.
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reflexão dessa problemática. Everett assume um caminho explicativo para a origem da linguagem que parece bastante interessante, mas, no nosso entender, ainda aberto ao debate e suscitando, em sua fundamentação filosófica, sérias inquietações. Visando expor de forma orgânica e concisa a maneira como compreendemos a posição de Everett, bem como a nossa proposta para pensar algumas inquietações voltadas para a questão da fundamentação filosófica no tocante ao problema do surgimento da linguagem, vamos dividir nosso texto em duas grandes partes. Na primeira, procuramos situar o ponto de vista de Everett a respeito do surgimento da linguagem e tentamos mostrar que ela carece de uma base filosófica que justifique a dimensão interna da linguagem; e, na segunda, procuramos mostrar que nossa proposta, como contra-peso ao externalismo de Everett, tem suas raízes fincadas em pensadores de diversas épocas, reflexo da longa tradição filosófica que a mantém e defende. 2. A ORIGEM DA LINGUAGEM 2.1 O EXTERNALISMO CIENTÍFICO DE DANIEL EVERETT
Everett considera que a linguagem humana tem uma história muito maior do que aquela que costumeiramente se tem afirmado. Segundo sua posição, com base em evidências arqueológicas, se pode dizer que a linguagem começou com o homo erectus e não com o homo sapiens. (EVERETT, 2019, p. 93) Porém, o mais curioso nas posições de Everett, no nosso entender, vem logo a seguir, quando ele dirige sua atenção para o assunto do surgimento histórico da linguagem. De acordo com ele, esse surgimento pode ser considerado e devidamente mapeado a partir de fora, isto é, como fenômeno externo apenas, cujas bases se encontram na riqueza das informações arqueológicas. A posição externalista de Everett, no tocante ao assunto do surgimento da linguagem, deixa entrever duas relevantes posições, que muito 75
interessam ao pensamento filosófico. A primeira, de que a linguagem surgiu do nada; e a segunda, a de que ela surgiu de um processo evolutivo que foi do uso de índices ao uso de símbolos. Ambas merecem e precisam ser melhor consideradas. Sua primeira posição, segundo a qual a linguagem surgiu do nada, aparece já no prefácio de sua obra “Linguagem - A história da maior invenção da humanidade”. Ali, tentando justificar a importância e a força da palavra invenção, inserida no título do seu texto, Everett recorre ao verbo criar e sustenta que o termo invenção “quer dizer o que quer dizer: que as comunidades humanas criaram símbolo, gramática e linguagem onde antes não havia nada”. (EVERETT, 2019, p. 14, grifo nosso) Sem dúvida, essa posição é deveras provocativa e não se deve passar por ela apressadamente. De fato, como pensar essa criação original de símbolos, gramática e linguagem, “onde antes não havia nada”? Os antigos já diziam que do nada nada se cria; mas, pelo que se percebe, a sugestão de Everett é que o homo erectus criou a linguagem a partir do nada. De fato, podemos compreendê-lo assim porque, logo na sequência do seu texto, ele insiste nessa posição, reforçando que em seu entender a linguagem foi criada do zero, ainda que de forma bastante rudimentar, e, a partir dessa criação, ela evoluiu em quantidade e qualidade. Argumentando em favor da incompletude dessa linguagem inicial produzida pelo homo erectus, ele insiste: Assim como todos os humanos, as primeiras espécies de homo iniciaram o longo e árduo processo de construir uma língua do zero quase certamente nunca disseram de maneira completa tudo aquilo que estava em suas mentes. (EVERETT, 2019, p. 20).
Nesse argumento, Everett reforça a ideia de que a linguagem foi criada do nada (zero), sugerindo uma imagem para o que poderia ter sido os seus primeiros passos, a saber, o esboço de uma linguagem truncada, marcada por expressões incompletas, que ele classifica como subdivisão, 76
isto é, o artifício de dizer “menos do que se pretende comunicar deixando implícitos os pressupostos para ser inferidos pelo ouvinte, de alguma forma”. (EVERETT, 2019, p. 18) Note-se que, em seu argumento, Everett também aponta para algo muito interessante, apesar de não lhe dedicar muita atenção, algo que ele chama de “tudo aquilo que estava em suas mentes”. O que estava em suas mentes? Qual a relação entre isso que eles tinham em mente e a linguagem? Voltaremos a isso na próxima subseção. Consideremos agora a segunda posição de Everett, aquela segundo a qual a linguagem surgiu de um processo evolutivo que começou com o uso de índices e avançou até culminar no uso de símbolos. Estes últimos inauguraram a linguagem propriamente dita; eles “foram a invenção que colocou os humanos na rota da linguagem”. (EVERETT, 2019, p. 22). A teoria da progressão do signo para a linguagem consiste na ideia de que a linguagem surge de forma gradual a partir dos índices (itens que representam coisas, às quais eles estão fisicamente conectados, tais como a pegada de um animal), passando pelos ícones (coisas que se assemelham fisicamente às coisas que representam) e, finalmente chegando à criação de símbolos (maneiras convencionais de representar significados que são amplamente arbitrários) (Cf. EVERETT, 2019, p. 22). Daí o processo avançou e se complexificou até culminar na produção da gramática. Em nosso entender, parece aceitável dizer que o ponto alto do processo evolutivo que culminou no surgimento da linguagem é a elaboração da gramática, mas não está claro que a linguagem, estritamente falando, tenha surgido apenas deste processo externo de produção de sinais ao qual alude Everett. Pode ter havido um longo processo sim, mas, no momento em que o primeiro índice foi usado de forma consciente-intencional, a linguagem surgiu e fez morada neste mundo. No momento em que pudermos considerar que, neste rigoroso mapeamento do percurso externo, a dimensão racional atuou de forma consciente-intencional usando alguma forma de linguagem, sua data de nascimento deverá ser registrada e isto conflita com a proposta de Everett. 77
Em alguns argumentos, como aquele que se refere ao que os primeiros falantes tinham em mente, o próprio Everett dá sinais de que vai navegar por essas águas, mas sua decisão de permanecer apenas no âmbito do processo externo do surgimento da linguagem parece o impedir de avançar. Ele chega a acenar para o fato de que só se pode considerar o surgimento da linguagem quando mais do que os elementos fenomênicos externos entram em cena, mas não explora as consequências dessa posição. Diz ele: A linguagem não começou integralmente quando o primeiro hominídeo proferiu a primeira palavra ou sentença. Ela só começou de verdade com a primeira conversa, que é tanto a fonte quanto a meta da linguagem. (EVERETT, 2019, p. 20)
As duas afirmações, sobre a origem e sobre o alvo da linguagem, feitas nesta citação são deveras provocantes: “a linguagem começou com a primeira conversa” e “a conversa é tanto a fonte quanto a meta da linguagem”. A primeira delas pressupõe a existência de dois atores principais da comunicação para que haja a linguagem: o falante e o ouvinte. Ela sugere que um conteúdo significativo é compartilhado. Alguém assere algo e outro alguém reage. Mas, ela também sugere que um processo (que pode ter começado com um indivíduo ou com vários) se desenvolveu até culminar numa conversa. Ora, esse processo, desde o início, já pode ser considerado linguagem e Everett não explora isso. De fato, podemos admitir que se um falante pronunciasse sentenças adequadas conscientemente, isso já seria linguagem. O fato do ouvinte não entender ou não responder não elimina o fato de que houve linguagem, mesmo faltando a comunicação. Se um novo ouvinte se aproximasse, entendesse o que foi dito e começasse a conversar com aquele falante, teria começado a ser linguagem naquele momento? Parece que não. Teria começado a haver comunicação e conversa, mas já era linguagem, já era um conteúdo simbolizado que estava sendo veiculado, já era uma expressão linguística 78
dotada de significado que, lançada, batia à porta de um ouvinte e pedia compreensão/resposta. A segunda afirmação nos faz pensar se realmente a fonte e a meta da linguagem é a conversa. Ao que parece, a conversa pode ser uma meta da linguagem e, dependendo da situação, nem sempre é a principal. O falante pode querer que o ouvinte apenas entenda e o ouvinte pode apenas querer entender, ou o ouvinte pode querer entender e não querer conversar. E a fonte, isto é, o ponto de partida da linguagem só pode se situar na conversa, se essa for entendida não apenas como troca externa de sinais ou símbolos, mas como expressão de um conteúdo conscientemente veiculado e compreendido. De novo, também aqui parece faltar a devida atenção à dimensão interna da linguagem. A conversa, ao que parece, deveria ser um momento segundo. Antes dela, a conversa, teria que haver comunicação e compreensão conscientes de um conteúdo simbolicamente veiculado e aí sim, em seguida, ela (se o ouvinte fizesse um lance-resposta) poderia surgir. 2.2 A DIMENSÃO INTERNA DA LINGUAGEM
As duas posições adotadas por Daniel Everett para inferir a origem da linguagem, nos parecem inquietantes. A primeira delas, de modo bastante simples, parece tomar com certo descuido a noção de criação. Entende-se que o autor desejava acentuar a importância do conceito de invenção para a linguagem, mas “criar’’ não é um sinônimo de “invenção”. Este é um termo que aponta para a capacidade imaginativa do ser humano, para o fato de ter uma ideia ou urdir sobre algo. Este caminho até seria bom, porque colocaria Everett numa direção favorável para trabalhar sua segunda posição sobre o surgimento da linguagem, aquela da teoria da evolução do símbolo. Acontece que isso exigiria, no tocante aos primeiros falantes, admitir que “algo estava em suas mentes”, antes da linguagem externa, para ser expresso linguisticamente. Caminho este que, como vimos acima, não ganhou a atenção de Everett. Admitir que antes da linguagem simbólica, externa, surge o conceito mental, se torna mais evidente se considerarmos que a linguagem, 79
tanto na origem da humanidade quanto na origem de um indivíduo atual, surge com a necessidade do sujeito racional se referir às suas experiências do mundo externo. De fato, não precisamos ir muito longe para perceber que é indispensável inferir que na origem da linguagem está a necessidade de o ser humano se referir ao mundo externo. Se alguém, não admitindo essa necessidade, pretende postular também a necessidade de se referir ao mundo interior, de imediato, já estará forçado a aceitar que este é anterior à linguagem. Por conseguinte, o ponto de partida está exatamente no fato de que precisamos admitir que a linguagem surge da necessidade que o ser humano encontrou de se referir às suas experiências do mundo exterior e de comunicá-las aos seus semelhantes. Dito isso, convém considerarmos também que, para que a linguagem aconteça, é preciso que atuem as atividades humanas de simbolizar e de compartilhar um conteúdo, nessa ordem. Primeiro, simbolizar; e, depois, compartilhar. Simbolizar e compartilhar conteúdos, por sua vez, exigem a capacidade racional de abstrair e de significar um conteúdo, também nessa ordem. Primeiro, abstrair; e, depois, significar. Em poucas palavras, é preciso que atuem as capacidades humanas de abstrair e significar um conteúdo experimentado. O trabalho racional de abstrair as experiências feitas no mundo e a tarefa de significar seu conteúdo por meio de símbolos, portanto, estão intrinsecamente ligados à origem da linguagem. Não precisamos aqui entrar no debate sobre quando e em que condições a razão emergiu no ser humano. Não precisamos enveredar para a dramática decisão de ter que pontuar onde e como a razão despontou, para inferir com segurança a necessidade de que sem a atuação da razão e de sua capacidade de abstrair um conteúdo, significá-lo e compartilhá-lo simbolicamente, não surgiria a linguagem. Por conseguinte, podemos inferir com segurança que a linguagem surgiu a partir do momento em que o ser humano tornou-se capaz de apreender as coisas do mundo e de significá-las entre si com sinais e símbolos conscientemente usados e compreendidos. Ou seja, como veremos na próxima seção, o fenômeno da linguagem surgiu, e só pôde 80
surgir, no mundo quando a enigmática capacidade de produzir a linguagem interior surgiu na razão humana. Noutras palavras, foi o surgimento da linguagem interior que possibilitou o surgimento dos símbolos e do fenômeno da linguagem exterior e não contrário. Todavia, temos que nos perguntar, podemos mesmo pensar no despontar da razão ou em alguma forma de atuação da razão sem que houvesse o uso da linguagem? Esta é uma questão de fundamental importância, pois se a razão antecede a linguagem, precisamos admitir que em seus primórdios a razão começa a atuar mesmo antes dos bandos de homo erectus formarem e usarem alguma forma de linguagem comum. A resposta a essa questão, sem sombra de dúvida, é positiva, isto é, sim, a razão pode atuar sem, ou antes de, fazer uso da linguagem. Um simples exemplo corriqueiro nos permite inferir que, ainda hoje, isto é o caso. Imagine que Daniel Everett vê uma determinada pessoa na festa de aniversário do seu amigo, reencontra essa pessoa dias depois no bar e, novamente, dias depois passa por ela na rua. Ora, podemos, sem sombra de dúvida, dizer que ele reconhece que é a mesma pessoa e até recorda de a ter visto antes e que pode fazer isso sem nenhum uso de linguagem, símbolo ou palavra. Agora, uma coisa muito similar a essa se pode inferir de um homo erectus. Imaginemos um indivíduo do bando dos erectus em que a razão havia despontado. Aquele indivíduo, sem fazer uso da linguagem ainda, encontra uma deliciosa fruta numa certa árvore cujo fruto lhe tira a fome; no dia seguinte, perseguindo sua presa, no outro lado da margem do rio, encontra novamente aquele tipo fruta em outra árvore e, depois que faz esta experiência algumas vezes, ele passa a reconhecer que aquela fruta tem o mesmo sabor da fruta nos dias anteriores e a recordar onde a encontrou antes sem fazer, e sem precisar fazer , nenhum uso de linguagem simbólica. A partir daqui, considerando que o elemento racional está atuando, que o indivíduo humano é capaz de reconhecer e recordar, isto é, de produzir um conteúdo mental, o sabor daquela fruta e onde pode encontrá-la, fica bastante pertinente inferir que aquele indivíduo comece a se inquietar junto aos companheiros do seu bando, fazendo 81
sons ou produzindo sinais para tentar significar o conteúdo que começou a compreender. Como também que, pouco a pouco, outros indivíduos comecem a dar atenção e terminem por compreender e compartilhar tais sons ou sinais, vindo a consolidar uma convenção social para significar e referir aquela fruta. Agora, se formos um pouco mais além e imaginarmos muitas dessas experiências e outras similares acontecendo com todos os indivíduos do bando, fica bastante natural pensarmos o surgimento e o uso de índices e sinais, emergindo na produção de símbolos significativos, como frutos da razão lutando para compreender e significar suas experiências do mundo. Lutando para estabelecer uma convenção linguística que permita ao bando se orientar melhor em suas necessidades. Agora sim, inserindo devidamente a dimensão interna da linguagem, a saber que ela é produto da razão, podemos retornar à trilha aberta por Everett e compreender o processo interno do fenômeno da linguagem. 3. A LINGUAGEM COMO INSTRUMENTO DO PENSAMENTO
Como temos visto, o surgimento da linguagem não fica devidamente esclarecido nem partindo da ideia de um ponto zero ou da ideia de nada nem apenas tentando mapear o seu desenvolvimento fenomênico externo. A hipótese de que o pensamento é anterior à linguagem é inquietante demais para ser descartada. Por isso, nesta seção vamos apreciar o caminho oposto, isto é, aquele em que o sujeito humano, seja ele homo sapiens ou homo erectus, na sua relação com o mundo, primeiro apreende mentalmente um conteúdo e depois tenta expressá-lo na linguagem. Para os que assim pensam, a linguagem humana é uma construção da razão. Ela é produto do pensamento, uma ferramenta que o pensamento constrói para seu uso e benefício. Uma ferramenta que, como toda e qualquer ferramenta, pode ser rudimentar ou melhorada até se tornar sofisticada. Mas, temos que insistir, uma ferramenta secundária, isto é, que surge num momento segundo. 82
A filosofia, em várias épocas e de várias formas, não cessa de pensar e repensar essa questão. A título de ilustração, não que o assunto possa se reduzir a esses pensadores apenas, vamos destacar, brevemente, como uma vertente de raiz greco-latina clássica e uma vertente de de raiz analítico moderna enfrenta a questão. Segundo elas, para haver uma convenção linguística, com o seu devido compartilhamento simbólico, é necessário considerar a anterioridade do pensamento, isto é, a anterioridade do trabalho mental, que produz um conteúdo mental e o signfica por meio de sinais simbólicos. 3.1 A VERTENTE GREGO-LATINA CLÁSSICA 3.1.1 Platão
No texto intitulado Crátilo ou da Correção dos Nomes, procurando equilibrar as dimensões do naturalismo extremo e do convencionalismo radical, defendidos, respectivamente, por Crátilo e Hermógenes, Platão sustenta que a linguagem surge como convenção pública. Sua base, como veremos, é a capacidade humana de pensar diretamente o objeto que contempla e de expressá-lo num símbolo. Ela deriva do ethos, isto é, do costume coletivo e não da sintheke, que seria algo parecido com aquilo que hoje chamamos de convenção, mas no sentido do chamado “façamos de conta que”. Segundo ele, o surgimento da linguagem como costume (ethos) é um processo coletivo. Mas não é um processo que começa do zero. Ele demanda indivíduos capazes de operar nomes e sentenças. E a criação de nomes e sentenças passa pela relação objetiva da alma com o mundo e pela sua capacidade de conhecer a essência das coisas ou ideias. Platão insiste nesse ponto, pois, para ele, o pensamento puro é uma atividade não linguística. Uma atividade que precede a construção e o uso da linguagem. A alma contempla as Ideias diretamente, num diálogo silencioso consigo mesma, sem palavras ou símbolos (Cf. PLATÃO, 2007, p. 238-239). Ela se relaciona com as coisas do mundo, que despertam nela o conhecimento das Ideias, e ao fazer isso ela se reapropria do seu conhecimento. Desse modo, o pensamento pode ir direto às coisas e conhecer sua essência sem o uso das palavras, pois “as coisas que 83
são podem ser aprendidas sem o recurso aos nomes”. (PLATÃO, 2010, p. 133). As palavras são apenas instrumentos, criados a partir daquilo que é conhecido, para expressar o pensamento. Consequentemente, a linguagem é sinal designativo, ela é instrumento que vem depois, que surge a partir do trabalho cognitivo da alma. Precisamos insistir neste ponto. Ao afirmar que a alma conhece diretamente as Ideias, sem fazer uso de nenhuma linguagem externa, Platão chama a atenção para o fato de que primeiro é produzido o conteúdo mental a ser expresso e depois a linguagem que expressa aquele conteúdo. Ao contemplar as Ideias ou, provocada pelos objetos do mundo, recordar as Ideias que estão nela, a alma produz um conhecimento. Somente em seguida, a partir daquilo que foi conhecido, ela produz um som (nome ou sinal), que expresse o conteúdo que ela chegou a conhecer. A produção deste som ou sinal é uma convenção que precisa ser compartilhada por outros membros do grupo significando aquilo para o qual foi gerado. O trabalho pode começar com um indivíduo como, por exemplo, alguém que nomeia seu filho recém nascido, mas só se conclui quando o significado se estabelece coletivamente. 3.1.2 Aristóteles
Aristóteles segue as pegadas do seu mestre, em alguns aspectos, mas, em outros, vai além dele. Em seu entender, o significado de um nome é fruto da convenção. Mas, tal como fez Platão, ele considera que o surgimento deste processo não é uma criação a partir do zero. Um nome, insiste ele, é um som que possui significado. Nesse ponto, insere-se a pergunta sobre como as pessoas produzem sons que possuem significado. E a resposta sugerida por Aristóteles decorre da seguinte consideração: Os sons emitidos pela fala são símbolos das afecções da alma, [ao passo que] os caracteres escritos são os símbolos dos sons emitidos pela fala. Como a escrita, também a fala não é a mesma em toda parte [para todas as
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raças humanas]. Entretanto as afecções da alma, elas mesmas, das quais esses sons falados e caracteres escritos são originalmente signos, são as mesmas em toda parte [para toda a humanidade], como o são também os objetos dos quais essas afecções são representações ou imagens. (ARISTÓTELES, 2010, p. 81).
Um som portador de significado é um símbolo, insiste Aristóteles. Ele simboliza as afecções da alma. As afecções da alma são causadas pelos objetos do mundo e são as mesmas para todos, assim como os objetos do mundo são os mesmos para todos. Elas produzem algo fundamental no indivíduo para que possa surgir a linguagem, a saber, o conceito ou conteúdo mental. Elas são o conteúdo que antecede a produção da convenção de um som, o conteúdo ao qual a razão humana acrescenta uma convenção, aplicando a intenção de significar aquilo que se tem em mente. Por conseguinte, a voz humana se torna portadora de um diferencial bastante peculiar, ela deixa de ser um simples e se torna “certo som com significado” (ARISTÓTELES, 2010, p. 87). Inclusive, a esse respeito, é digno de nota o fato que o trabalho de produzir a voz humana revela uma ação consciente prévia. Ele mostra que não conseguimos “emitir voz quando inspiramos e expiramos, mas o fazemos quando retemos a respiração”. (ARISTÓTELES, 2010, p. 87) Ou seja, falamos quando direcionamos conscientemente o uso do ar em nosso aparelho vocal. A consequência disso é que produzir um som com significado, isto é, um símbolo, é um trabalho, que apesar de poder começar com um indivíduo, chega ao ápice quando atinge o caráter coletivo: alguém precisa buscar significar um objeto com um som e outro alguém precisa compreender aquela relação de significação para que possa haver, de fato, o uso adequado de um símbolo.18 18 Claro, se pode dizer que alguém é capaz de “simbolizar algo apenas para si mesmo e que ninguém mais entende”. Mas, que valor tem isso? Talvez, no máximo, de uma senha secreta para um certo conteúdo. O processo de criação do símbolo linguístico só se completa quando o significado é reconhecido pelo falante e pelo ouvinte.
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Por conseguinte, a linguagem é simbólica. E todo símbolo exprime uma distância e uma relação para com o objeto simbolizado. Ele mantém uma distância de natureza para com o objeto porque ele é da ordem da razão, é fruto de um processo mental. E mantém uma relação de significação para com o objeto porque exige convenção, ele é posto e aceito pelos seus usuários para representar um objeto. Assim, enquanto as afecções da alma mantém uma relação de similitude com o objeto, o símbolo mantém uma relação de referência, ele “não toma pura e simplesmente o lugar da coisa, ele não tem nenhuma semelhança com ela e, no entanto, é a ela que ele nos reenvia [significando-a]”. (ARISTÓTELES, 2010, p. 81) 3.1.3 Tomás de Aquino
São Tomás de Aquino distingue o verbo mental do verbo exterior. De acordo com ele, o verbo exterior é a expressão do verbo interior. Desse modo, o verbo exterior, que é a palavra escrita ou falada, significa o verbo interior, que é o conceito. A distinção tomista entre verbo exterior e verbo interior está encravada na teoria do conhecimento de São Tomás de Aquino. Para ele, o conhecimento se realiza através da assimilação imanente da coisa conhecida. Claro, não se trata de uma assimilação física do objeto, mas, sim, de uma assimilação intencional, uma vez que “o que é inteligido não está no intelecto por si, mas segundo sua similitude: não é a pedra que está na alma mas a espécie da Pedra”. (AQUINO, 2002, p. 496) Desse modo, o objeto do mundo, a coisa extramental, se faz presente no sujeito como espécie inteligida. A espécie inteligida é um ente intencional, ou seja, “um sinal no sujeito cognoscente da presença de algo”. (LANDIM, 2010, p.67) O verbo interior, por conseguinte, é essa intenção inteligida, aquilo que o intelecto concebe em si mesmo a partir da coisa experimentada. De novo: essa intenção inteligida não é a coisa da qual temos intelecção, nem é o próprio intelecto, ela é a semelhança da coisa conhecida concebida pelo intelecto. Por isso, arremata São Tomás de Aquino, esta intenção é chamada de palavra (verbum) interior, aquilo que, 86
posteriormente, é significado pela palavra (verbum) exterior. (AQUINO, 2017, p. 626) Por conseguinte, um som não significativo não pode ser chamado de palavra exterior, ele não expressa um conceito. Só se pode chamar de palavra exterior adequadamente o som que “significar o conceito interior da mente”. (AQUINO, 2002, p. 254) Resumindo, a insistência de São Tomás para que possamos compreender a anterioridade do verbo interior, em relação ao verbo exterior, é fundamental para o entendimento da linguagem. Ela indica que o verbo interior é prioritário diante do verbo exterior, cronológica e ontologicamente. Sua função e significado não dependem do verbo exterior em nada. Um indivíduo pode conceber o verbo interior e nunca significá-lo externamente, por meio da palavra exterior. Já o contrário não é sustentável, a função e o significado do verbo exterior dependem fundamentalmente do verbo interior. Um indivíduo não pode expressar um conteúdo simbólico e significativo na palavra exterior, se este não significar um conceito concebido (primeiro) em seu intelecto. 3.2 A VERTENTE ANALÍTICO-MODERNA 3.2.1 Gottlob Frege
De acordo com Frege, no célebre artigo Sobre o Sentido e Referência, de 1892, um nome tem uma referência e um sentido, mas também está associada a ele uma representação do objeto. (FREGE, 2009, p. 131) Desse modo, quando aprendemos ou usamos um nome nos referimos ao objeto que ele nomeia e associamos a ele uma representação e um sentido. A representação é subjetiva e o sentido é objetivo. Ora, isso mostra que o nome é resultado de um processo de convenção, a ele está associada uma bagagem humana, própria de quem faz uso dele, mas o seu sentido e o seu referente são totalmente objetivos. Frege insiste na importância da distinção entre sentido e referência de um nome da representação que o falante associa àquele nome: A referência e o sentido de um sinal devem ser distinguidos da representação associada a este sinal. Se
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a referência de um sinal é um objeto sensorialmente perceptível, minha representação é uma imagem interna, imersa nas lembranças de impressões sensíveis passadas e das atividades, internas e externas, que realizei. (FREGE, 2009, p. 134)
O nome, então, designa algo, seu referente, que independe de toda e qualquer representação que o falante possa associar a ele. A representação é uma imagem mental, ela é interna e está mergulhada nas lembranças e nos estados emocionais do falante. Por isso, exemplifica Frege, quando uma pessoa olha para a lua, por exemplo, ela produz uma representação mental, uma imagem, da lua e associa esta imagem ou representação mental ao nome “lua”. Outra pessoa poderá fazer o mesmo, mas a imagem ou representação produzida por cada uma das duas pessoas será diferente, será subjetiva. A imagem produzida por cada uma das pessoas está ligada a muitos outros estados mentais delas e será, por assim dizer, uma ideia, um produto mental, contendo contornos e vínculos internos próprios de cada pessoa. O sentido de um nome, por sua vez, difere da referência designada por aquele nome e da representação associada a ele: É, pois, plausível pensar que exista, unido a um sinal (nome, combinação de palavras, letra), além daquilo por ele designado, que pode ser chamado de sua referência, ainda o que eu gostaria de chamar de o sentido do sinal, onde está contido o modo de apresentação do objeto. (FREGE, 2009, p. 131)
Desse modo, como vemos nas palavras do próprio Frege, ao considerarmos um nome precisamos levar em conta que, além daquilo que é designado, a sua referência, existe o sentido do nome. Ou seja, precisamos levar em conta que uma coisa é o sentido de uma expressão e outra, bem diferente, é a sua referência. O sentido de um nome contém o modo de apresentação do objeto e a sua referência é o próprio objeto. 88
Para usarmos o exemplo da lua mais uma vez, o sentido é o modo de apresentação do objeto, o modo como a lua se dá a cada pessoa que a contempla. Isto, claro, não depende da pessoa, isto é algo objetivo, cada pessoa pode apreender um ou vários modos de apresentação da lua e expressá-los na linguagem. Assim, uma pessoa pode apreender o sentido da palavra “lua” como o satélite do planeta Terra e outra pessoa pode apreender o sentido da palavra “lua” como o satélite natural do planeta Terra cuja órbita dura cerca de 27 dias, 7 horas e 43 minutos, pois estes são modos de apresentação da lua, que a referência do nome. E uma vez que a lua é o referente do nome, insiste Frege, não causa nenhuma dificuldade o fato de que sentidos diferentes podem ser associados ao nome, pois a referência permanece constante. Além do mais, isto também não é causa de confusão nem de arbitrariedade, pois cada modo de apresentação é objetivo e pode ser aprendido por todos. A posição de Frege, portanto, põe em relevo o fato de que é impossível surgir o domínio ou o uso de um nome se o sujeito ou usuário dele não associa nenhuma representação ao nome. De fato, o uso de um “nome” em que o usuário dele não representa nada para si é um som vazio. E para que haja uma representação do objeto e sua associação a um nome é necessário antes que haja algum conhecimento daquilo a que o nome se refere, bem como a existência de um trabalho mental que produza e associe a representação ao nome. De modo similar, essa mesma consideração aplica-se ao sentido de um nome. Se um sujeito não associa nenhum sentido ao nome, então é impossível ocorrer o uso de um nome, porque o sentido é exatamente o modo determinação da referência e se o nome não tem nenhum sentido, não refere a nada19. Ora, o sentido também é anterior ao uso do nome
19 Os defensores da teoria da referência direta, seguramente, discordam desta posição. Não pretendemos dialogar com o ponto de vista deles aqui, apenas acentuar que, para Frege, ser capaz de associar um sentido a um nome é condição necessária para o uso bem sucedido daquele nome.
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e pressupõe o trabalho mental, próprio do pensar, de apreensão e, em seguida, de associação do sentido ao nome. 3.2.2. Bertrand Russell
Russell também é um dos filósofos que defenderam a anterioridade da crença ou do pensamento em relação à linguagem simbólica. Em seu famoso artigo de 1919, On Propositions: what they are and how they mean, ele insiste insiste neste ponto. A crença é anterior à linguagem externa. O sujeito humano entra em relação direta com o mundo e produz imagens e crenças, em seu pensamento. Estas, posteriormente, são expressas em palavras e sentenças. Nas Palavras do próprio Russell: O primeiro fenômeno da crença consiste da crença em imagens, das quais, talvez, a memória seja o exemplo mais elementar. Mas, pode-se reivindicar também, que uma crença-memória não consiste apenas de imagem-memória, junto com o portador da crença: é claro que imagens podem ser a mesma para a memória e a expectativa, que são, afinal, crenças diferentes. (RUSSELL, 1956, p. 308)
Segundo ele, a primeira manifestação da relação acreditar consiste na crença em imagens mentais, dentre as quais, possivelmente, a memória seja o exemplo mais básico. Sim, é possível alguém reivindicar que nem sempre uma crença-memória seja do tipo imagem-memória, considerando o portador da crença, porque a mesma imagem pode despertar memórias e expectativas diferentes. Mas isso só reforça o que é mais importante para nós aqui: tal diferença não está no conteúdo do que é acreditado, mas na pessoa que acredita. Na riqueza de perspectiva que ela pode adotar, diante de um conteúdo mental adquirido, quando busca externar uma crença-imagem na linguagem simbólica. Russell descreve esta passagem classificando a crença-imagem como “proposição-imagem”, isto é, a proposição apreendida na mente. Esta, compõe-se dos próprios objetos com os quais o sujeito está 90
relacionado, não com símbolos linguísticos. E uma vez que forma uma proposição-crença, pela apreensão de uma proposição-imagem, o sujeito humano pode expressá-la numa proposição-palavra. Eu distingo uma proposição expressa em palavras como uma proposição-palavra e uma proposição consistindo de imagens como uma proposição-imagem. Assim, como regra geral, uma proposição-palavra significa uma proposição-imagem. (RUSSELL, 1956, p. 308)
A proposição-palavra a que ele se refere é que podemos chamar de frase ou sentença hoje. A proposição-imagem é a proposição, propriamente falando. É a proposição enquanto significado da frase. Ela é independente da linguagem e da mente do falante. Ainda que não seja expressa numa frase ou apreendida numa crença individual, ela antecede o sujeito e aguarda por ele. Por conseguinte, a proposição-palavra, que é relativa ao sujeito, expressa a proposição-imagem. Esta, é anterior e fundamenta aquela. Mas, não vamos nos deter nela aqui. Voltemos nossa atenção para a proposição-palavra, ela radica no uso que o sujeito faz das palavras para significar o que está pensando. Russell destaca os usos elementares de uma palavra como indicativo, imperativo e interrogativo. Ele ilustra seu ponto de vista com o exemplo da criança adquirindo e aplicando a palavra “mãe”. Quando a criança vê sua mãe vindo e é capaz de dizer “mãe”, ela faz um uso indicativo. Quando ela quer sua mãe e chama “mãe!”, ela faz um uso imperativo. E quando a mãe se disfarça de bruxa e começa a tirar o disfarce, a criança, que é capaz de dizer “mãe?”, está fazendo um uso interrogativo. Pois bem, de acordo com Russell, o uso indicativo vem “em primeiro lugar na aquisição da linguagem, uma vez que a associação da palavra e o objeto significado só pode ser criada pela presença simultânea de ambos”. (RUSSELL, 1959, p.110) A partir dele, o uso imperativo e o uso interrogativo podem se seguir muito rapidamente. O que é mais importante notar neste processo é que “a criança que acabou de 91
aprender a chamar sua mãe encontrou uma expressão verbal para um estado em que ela tinha estado muitas vezes antes, aquele estado que estava associado à sua mãe, e que agora se tornou associado à palavra ‘mãe’”. (RUSSELL, 1959, p.110) Antes da linguagem, acentua Russell, aquele estado era apenas parcialmente comunicável. Se algum adulto ouvisse a criança chorar pensaria que ela estava desejando algo, mas tinha que tentar adivinhar o que era. O fato de que a palavra “mãe” expressa seu estado mental mostra que, mesmo antes da aquisição da linguagem, o seu estado mental tinha uma relação com a sua mãe, a saber, a relação que se pode chamar de “pensando em”. E esta relação não é criada pela linguagem, pois a linguagem não a antecede. “O que a linguagem faz é torná-la comunicável”. (RUSSELL, 1959, p.110) 4. CONCLUSÃO
O inquietante apreço da questão do surgimento da linguagem é, sem dúvida, um excelente terreno para o confronto entre externalismo e internalismo. O primeiro, quando acentuado, aproxima-se de riscos relacionados ao behaviorismo e ao reducionismo, busca resolver a questão considerando apenas o entorno do fenômeno da linguagem. O segundo, pelo contrário, prezando pela anterioridade e pelo papel da razão, amplia o campo da reflexão e acentua a necessidade de bases filosóficas consistentes, que justifiquem o surgimento e o desenvolvimento do fenômeno da linguagem. Daniel Everett, como vimos, parece assumir a primeira posição. Seu esforço externalista põe em relevo a riqueza do fenômeno do surgimento da linguagem, com arraigadas bases mecânicas. É importante, sem dúvida, como ele afirma, levarmos em conta as descobertas que indicam que a linguagem surgiu com o homo erectus. Contudo, o que se pode entender a partir desta descoberta é que devemos considerar um erro afirmar que a linguagem começou com o homo sapiens, pois com 92
o homo erectus já podemos encontrar traços de cultura e de linguagem. Mas, desta informação, com base externa apenas, não podemos inferir quando e como a linguagem, realmente, surgiu. Ao assumir que a linguagem surge de um processo mecânico de produção de índices, sinais e símbolos, Everett nos faz pensar que podemos dizer que a alavanca aciona o freio entendendo o papel da alavanca isolado de todo o resto da máquina, para lembrar a crítica irreverente de Wittgenstein.20 Mas, ao que parece, isto não parece ser o caso. Para podermos assumir que um índice, sinal ou símbolo seja usado como linguagem humana, parece mesmo que se faz necessário admitir muito mais, inclusive que um caminho anterior e interior, deve ser levado em conta para que isso aconteça. Afinal de contas, a linguagem é uma invenção humana e para entendê-la adequadamente (o que inclui uma adequada compreensão da sua origem) faz-se necessário colocá-la numa moldura suficientemente ampla, que leve em conta a sua dimensão exterior, ao invés de tentar inseri-la numa moldura estreita, cujo olhar se detenha somente em seus aspectos fenomênicos. REFERÊNCIAS
AQUINO, Santo Tomás. Suma contra os Gentios. Tradução de D. Odilão Moura. São Paulo: Campinas, 2017. AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica. Parte I, questão 34. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
20 “Unindo a barra com a alavanca aciono o freio. - Sim, suposto todo o mecanismo restante. Só em relação com este mecanismo é ela a alavanca do freio; e desprendida de seu apoio, não é nem ao menos alavanca, antes pode ser qualquer coisa, ou nada”. (WITTGENSTEIN, 2005, p. 18)
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ARISTÓTELES (384-322 a.C). Organon: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Tópicos, Refutações Sofísticas. 2ª ed. Tradução de Edson Bini. Bauru-SP: EDIPRO, 2010. ARISTÓTELES. Sobre a Alma. Biblioteca de Autores Clássicos, tradução de Ana Maria Lóio. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (Imprensa Nacional-Casa da Moeda), 2010. EVERETT, Daniel L. Linguagem: a história da maior invenção da humanidade. Tradução de Maurício Resende. São Paulo: Contexto, 2019. FREGE, Gottlob. Lógica e Filosofia da Linguagem. Seleção, introdução, tradução e notas de Paulo Alcoforado. 2. Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. LANDIM, Raul. Conceito e objeto em Tomás de Aquino. Revista Analytica, v. 14, nº 2, 2010. PLATÃO. Diálogos I: Sofista (ou do Ser). Tradução de Edson Bini. Bauru-SP: EDIPRO, 2007. PLATÃO. Diálogos VI: Crátilo ou da correção dos nomes. Tradução de Edson Bini. Bauru-SP: EDIPRO, 2010. RUSSELL, Bertrand. My Philosophical Development. London and New York: George Allen & Unwin Ltd, 1959. RUSSELL, Bertrand. On Propositions: what they are and how they mean?. London and New York: George Allen & Unwin Ltd, 1959. WITTGENSTEIN, Ludwig, Investigações Filosóficas. Tradução de Marcos G. Montagnoli. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2005. 94
LINGUAGEM, CULTURA E AÇÃO: UMA HIPÓTESE DE CONCILIAÇÃO ENTRE A TEORIA LINGUÍSTICA DE DANIEL EVERETT E A PRAGMÁTICA LINGUÍSTICO-FILOSÓFICA DE LUDWIG WITTGENSTEIN Gerson Francisco de Arruda Júnior21
1. INTRODUÇÃO: LINGUÍSTICA, FILOSOFIA DA LINGUAGEM E FILOSOFIA DA LINGUÍSTICA
Até pouco tempo, era comum considerar a Linguística e a Filosofia da linguagem como áreas independentes. Desse ponto de vista, a linguística era caracterizada por fazer uma abordagem científica da linguagem. Como toda a ciência, ela se baseava em observações, conduzidas por um método e fundamentadas por uma teoria. Nesse caso, a função primordial de um linguista seria a de estudar toda e qualquer manifestação linguística como um fato empírico, isto é, como fato passível de descrição e explicação, dentro de um quadro científico adequado e coerente. Por outro lado, à Filosofia da Linguagem competiria, por sua vez, buscar as características universais subjacentes ao fenômeno humano da linguagem. Uma maneira simples de imaginar a diferença tradicionalmente admitida entre um filósofo da linguagem e um linguista é vista na ilustração proposta por Jaroslav Peregrin (PEREGRIN, 2012, p. 1 – 2). Ele propõe que imaginemos dois pesquisadores que aceitam investigar uma paisagem desconhecida. Um deles opta por contratar um helicóptero e, ao alçar voo, consegue obter uma visão de toda a paisagem, fazendo, inclusive, um mapeamento dos seus limites geográficos e territoriais. 21 Doutor em Filosofia. Professor Permanente na Pós-graduação e na Graduação em Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco. Integra a Linha de pesquisa “Linguagem, Sentido e Ação” do PPGFIL/UNICAP.
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Já o outro pesquisador opta por caminhar entre a paisagem, levando consigo uma câmara, um bloco de anotações, e alguns instrumentos. Ele tira fotos e faz anotações sobre os tipos de rochas, plantas e animais que por lá se encontram. A lição extraída da ilustração e que é importante destacar aqui é a seguinte: enquanto o filósofo da linguagem se assemelha ao pesquisador que se interessa por investigar a paisagem voando num helicóptero (buscando os princípios mais gerais de funcionamento da linguagem), o linguista se assemelha ao pesquisador caminhante, que presta atenção aos detalhes da paisagem. Sem dúvidas, estes dois caminhos são distintos; e a questão que logo se impõe diante dessas duas realidades é a de saber qual a melhor maneira de pesquisar a paisagem; qual seria, de facto, o caminho mais razoável. Contudo, apesar de ainda predominar em alguns círculos de investigação sobre a linguagem, esse modo tradicional de se conceber a relação entre a Linguística e a Filosofia da linguagem tem sido repensado e abandonada, de tal modo que, mais recentemente, uma outra maneira de se olhar essa relação tem sido estabelecida. Atualmente, a linha divisória que delimita e distingue esses campos de investigação não é muito nítida. É precisamente nesse contexto de aproximação entre essas disciplinas que se abre o espaço para falarmos de uma Filosofia da linguística que, dentre outras inflexões, admite que pesquisas contemporâneas dentro da Filosofia da linguagem e da Linguística não são excludentes, mas, sim, complementares. Espelhando a ilustração acima, a perspectiva assumida por uma Filosofia da Linguística é a de que que, do mesmo modo que o trabalho dos dois pesquisadores citados na ilustração acima pode convergir e o esforço de um pode contribuir para clarificar o esforço do outro, o trabalho dos linguistas e dos filósofos da linguagem pode igualmente convergir num único empreendimento colaborativo, reunindo, num só âmbito, tanto os princípios empíricos que possibilitam o tratamento dos dados particulares, como os princípios mais gerais que também os caracterizam. Esta será a perspectiva assumida nesta tese. É, pois, dentro desse novo expediente teórico que o presente texto se insere. O seu objetivo principal consiste defender uma hipótese 96
de conciliação entre a teoria linguística de Daniel Everett e a pragmática linguístico-filosófica de Ludwig Wittgenstein, e mostrar que é possível assumir, sem qualquer prejuízo teórico, o pano de fundo metodológico exigido pela Filosofia da Linguística. Para tanto, iremos, inicialmente, pontuar algumas características da teoria linguística de Daniel Everett quanto à origem e desenvolvimento da linguagem; depois, traçaremos alguns paralelos entre eles e os principais conceitos propostos pela filosofia wittgensteiniana da linguagem, sobretudo aqueles presentes na segunda fase de seu pensamento; e por fim, iremos apresentar as convergências dessas propostas teóricas, no intuito de conciliá-las. 2. A TEORIA LINGUÍSTICA DE DANIEL EVERETT: ELEMENTOS GERAIS
A origem e o desenvolvimento da linguagem ainda se constituem um grande desafio para o saber humano. Antropólogos, biólogos, arqueólogos, historiadores, cientistas sociais, linguistas, filósofos e tantos outros especialistas se debruçam incansavelmente para desvendar a história desse fenômeno tão presente na realidade humana. Sobre isso, a teoria linguística proposta pelo Linguista Daniel Everett é tanto original quanto provocativa. A teoria linguística por ele proposta consiste numa história ampla e única da evolução da linguagem como uma invenção humana. Embora o interesse do prof. Everett pela linguagem e pela cultura seja pessoal (EVERETT, 2019, p. 12), a sua teoria não está baseada em posições pessoais. Pelo contrário: ela tem como fundamento o ponto de vista evolucionário, e está alicerçada em constante diálogos com as recentes pretensões das ciências relacionadas à evolução da linguagem, tais como: Antropologia, Linguística, Ciências Cognitivas, Paleoneurologia, Arqueologia, Biologia, Neurociência, Primatologia etc. Indo numa direção contrária a muitas teses linguísticas sobre a origem da linguagem, incluindo a tão ovacionada teoria de Noam 97
Chomsky22 que, segundo alguns, é “o linguista mais importante do planeta” (EVERETT, 2019, p. 101), a proposta do prof. Everett nega que a linguagem seja um desenvolvimento relativamente recente, como algo que tenha, digamos, aproximadamente 50 a 100 mil anos de idade, e que ocorreu exclusivamente com os chamamos Homo sapiens. O que de fato está sendo negado com essa proposta é a ideia segundo a qual a linguagem “passou a existir de repente”, através de uma mutação genética ocorrida na espécie, e que isso proporcionou uma capacidade cognitiva e intelectiva tal aos animais humanos, de modo que eles passaram a falar. O que se rejeita, portanto, não é uma simples ideia, mas a ideia que subjaz a muitas teorias linguísticas contemporâneas, todas elas tendo forte amparo nos desdobramentos filosóficos decorrentes do dualismo cartesiano (EVERETT, 2019, p. 214). Nesse caso, o fundamento da origem do fenômeno linguístico é o de que a linguagem é algo inato ou congênita à capacidade de raciocinar ou inteligir existente nos membros da espécie Homo sapiens. De modo não só nítido como enfático, a proposta teórica do prof. Everett nega tanto que a linguagem seja um instinto de qualquer tipo, como também rejeita a concepção de que ela seja inata ou congênita. Em tese, o que a sua consolidada pesquisa de mais de 40 anos de trabalho teórico-prático sugere é que a linguagem começou não com os Homo sapiens, mas com os Homo erectus, estes concebidos como a primeira espécie de humanos, há mais de um milhão de anos. De acordo como o prof. Everett, é um equívoco conceber os humanos modernos como os únicos homens sábios ou inteligentes. Ele mesmo chega a admitir que tais homens podem ser considerados os mais inteligentes, mas não os únicos. Antes do sapiens, existiram os erectus, que foram os responsáveis pela invenção tanto da linguagem quanto de outro pilar da cognição humana: a cultura.
22 Trata-se, em síntese, da teoria da gramática gerativa, que constitui o cerne do projeto linguístico de Chomsky.
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Dentro do arcabouço conceitual que fundamenta a proposta do prof. Everett, o termo “invenção” recebem uma atenção especial. Como ele mesmo ressalta, o termo “invenção” não deve ser entendido como simplesmente uma metáfora, apenas para qualificar algo como razoável, mas deve ser entendido como de fato é: uma criação. (Cf. EVERETT, 2019, p. 14). Um ponto de destaque na teoria linguística do prof. Everett é a sua consideração sobre a origem da linguagem. Quanto a isso, a sua tese é que “a linguagem surgiu gradualmente de uma cultura” (EVERETT, 2019, p. 13). Quer isto dizer, sem qualquer margem de dúvida, que ela “foi culturalmente inventada e modelada” (EVERETT, 2019, p. 14), o que ocorreu devido a algumas particularidades no desenvolvimento ulterior do gênero Homo. Desse ponto de vista, a linguagem, portanto, “não começou com gestos, nem com cantoria, nem com imitação dos sons animais” (EVERETT, 2019, p. 13). Pelo contrário, assim concebida, ela é fruto de um processo longo de comunicação entre os ancestrais da nossa espécie. É nesse sentido que se pode afirmar que a linguagem humana surgiu a partir de um fenômeno muito maior de comunicação existente no reino animal. O que no fundo diferencia os sistemas de comunicação do reino animal da linguagem humana é o fato de as línguas humanas possuírem símbolos. Eis aqui, portanto, de acordo com a teoria sob análise, o grande feito dos Homo erectus: inventaram símbolos para se comunicarem. Nesse sentido, “os erectus foram realmente maravilhosos” (EVERETT, 2019, p. 80), diz o prof. Everett. Porém, quanto a isso, convém ressaltar que devemos ter o cuidado para não pensarmos que tal invenção foi uma invenção ex nihilo. Não, não foi assim! A invenção da linguagem ocorreu no seio de um contexto cultural. Portanto, a linguagem surgiu através da criação de símbolos, inventados culturalmente. Sendo pois o útero que gestionou a linguagem, a cultura é, assim, outro conceito central na teoria linguística do prof. Everett. De fato, do seu ponto de vista, a cultura é a mola propulsora do longo e lento caminho do enorme abismo evolutivo entre a comunicação animal e a linguagem humana. Para que não fique qualquer dúvida do que se está tratando, o prof. Everett propõe um conceito de cultura bastante 99
particular. Em suas próprias palavras, “cultura é o conhecimento tácito e a prática visível de papéis sociais, valores e formas de ser compartilhadas por uma comunidade” (EVERETT, 2019, p. 363). Trata-se, assim, de um conceito bastante amplo, permeado por valores, papéis sociais e conhecimento – que são três ideias importantes para a compreensão da evolução da linguagem para o prof. Everett (EVERETT, 2019, p. 361). É, pois, a partir desse pano de fundo que a linguagem se originou, sendo a cultura, concebida como formas padronizadas de ser – tais como comer, dormir, pensar, se posicionar, se relacionar, etc. –, ela própria cultivada (EVERETT, 2019, p. 369). Olhada por esse prisma mais amplo da cultura como uma invenção, a linguagem também passa a ser entendida como uma invenção a partir desse contexto mais amplo, não estando restrita a um ou outro aspecto pontual da existência humana, mas ganhando uma dimensão mais abrangente, que engloba aspectos psicológicos, biológicos, sociais, epistemológicos, éticos, etc. É nesse sentido que, como diz o prof. Everett, “independentemente de como seja a gramática de uma língua, a linguagem envolve o indivíduo por completo – intelecto, emoções, mãos, boca, língua, cérebro” (EVERETT, 2019, p. 306). A linguagem, portanto, “não é meramente sinônimo de gramática. Ela é uma combinação de formas, gestos, significados e altura da voz” (EVERETT, 2019, p. 102). Uma consequência imediata dessa foram de pensar é que “nenhum artefato nas línguas ou nas sociedades humanas pode ser compreendido senão em termos da cultura em que ele é interpretado” (EVERETT, 2019, p. 368). Trata-se, portanto, de uma compreensão holística23, feita a partir de elementos mutualmente compartilhados. Ora, dada a dinamicidade da cultura, a linguagem também se torna um elemento dinâmico: “A linguagem não é estática”, diz Everett; “mas dinâmica” (EVERETT, 2019, p. 315). E, sendo assim, as “mudanças culturais provocam mudanças linguísticas (EVERETT, 2019, p. 23 Quem também defende um pano de fundo holístco para a compreensão da linguagem é o filósofo Donald Davidson (Cf. DAVIDSON, 2001; SPARANO, 2003).
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369). Ou seja, culturas mais sofisticadas apresentam linguagem mais complexas. É por esse caminho que o prof. Everett explica a evolução da forma modesta de linguagem que existia no Homo erectus para a linguagem rica e muito mais complexa que existe nas recentes espécies do gênero Homo; e todas elas devem ser chamadas de “linguagem”, “uma vez que todas as línguas humanas são completa” e “nenhuma é inferior à outra, em nenhum sentido” (EVERETT, 2019, p. 300). 3. CONCEITOS CENTRAIS DA TEORIA LINGUÍSTICA DO SEGUNDO WITTGENSTEIN
Após fazermos essas considerações sobre a teoria linguística do prof. Everett, reconduzo a exposição para a apresentação de alguns elementos da filosofia wittgensteiniana da linguagem, que julgo manterem diálogo com a proposta do prof. Everett. É sabido que o chamado segundo Wittgenstein compara a linguagem ao jogo. Equiparando a linguagem a um jogo, Wittgenstein defende a ideia de que, ao invés de “uma unidade formal”, a linguagem é uma praxis, isto é, como uma atividade humana guiada por regras, cuja efetivação pressupõe reações comuns, capacidades adquiridas por meio de treino, o domínio da técnica de sua aplicação etc. Um dos principais aspectos dessa concepção é o da alegada conexão existente entre o falar de uma língua e as ações humanas. Tal ideia baseia-se na convicção wittgensteiniana de que toda a prática da linguagem está totalmente imersa num complexo de ações, e os jogos que a constituem compreendem não só as expressões da linguagem, mas também todas as ações com as quais essas expressões estão interligadas (Investigações Filosóficas, § 7). O conjunto resultante dessa especial imbricação entre a linguagem e as atividades a ela associadas – também designado pelos termos: “o jogo de linguagem”, “jogo de linguagem total”, “jogo de linguagem humano”, “nosso jogo de linguagem” (Da Certeza, §§ 554 – 9) – constitui aquilo que o autor das Investigações 101
chamou de forma de vida humana. Aliás, de acordo com as Investigações, o fundamento da normatividade da linguagem defendida na pragmática de Wittgenstein repousa sobre a nossa forma de vida, que é concebida como aquele “solo rochoso” sobre o qual está fundamentada toda a prática da linguagem. A expressão ‘forma de vida’ não foi criada por Wittgenstein24, e em nenhum momento ele procurou definir esse conceito. Na literatura secundária, há uma enorme discussão sobre o que de fato significa o uso da forma plural (que curiosamente só aparece uma vez nas Investigações), ou em que consiste o significado do uso singular do termo que, por sinal, é muito mais frequente (Cf. IF, §§ 23, 241; II, i.). São poucos os comentadores que realmente dedicam-se a explorar o conceito wittgensteiniano de forma de vida, e alguns – como Max Black (BLACK, apud GARVER, 1994, p. 273) – consideram-no como sendo um tema de importância secundária, cuja compreensão não afetará em nada o entendimento do pensamento de Wittgenstein. Outros, porém, à semelhança de Norman Malcolm (Cf. MALCOLM, 1986, p. 91; MALCOLM, 1963, p. 91), estando cientes de toda a controvérsia existente, vão numa direção oposta e assumem que tal conceito é não só importante como também indispensável para uma correta compreensão da Spätphilosophie de Wittgenstein. De uma determinada leitura das Investigações, o que caracterizaria mais essencialmente a noção “forma de vida” seria os aspectos biológicos que qualificam os seres humanos enquanto tais. A forma de vida humana seria, deste modo, parte essencial da natureza biológica dos seres humanos e, por isso mesmo, determinaria a maneira como eles agem e reagem. Neste sentido, as condições biológica e orgânica dos indivíduos seriam a sua forma de vida. 24 Não há unanimidade sobre de quem Wittgenstein tomou o termo ‘forma de vida’. Stephen Toulmin acredita que ele foi herdado de uma conhecida obra de E. Spranger (Cf. TOULMIN, 1969, p. 60 – 71). Já Baker e Hacker preferem acreditar que a expressão foi tomada de O. Spengler (Cf. BAKER; HACKER, 1980, p. 47).
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Quem chama a nossa atenção para essa interpretação é J. F. M. Hunter (HUNTER, 1971), para quem falar consistiria numa prática de elevada complexidade, a ser realizada por seres humanos. Desse ponto de vista, falar se configuraria no mesmo nível de tantos outros comportamentos biológicos complexos que igualmente são realizados dessa mesma maneira, tais como beber, comer, brincar, andar, etc. Em outras palavras, ao assumir que partilhamos do património biológico comum aos seres da nossa espécie, defende-se, portanto, a ideia segundo a qual a realização de práticas linguísticas envolve um conjunto de elementos do organismo humano num nível biológico, fazendo com que, num certo sentido, tais práticas sejam algo fisiológico. Nesse sentido, ao falarmos, estaríamos simplesmente nos comportando de acordo com a nossa biologia. Tal perspectiva naturalista encontra apoio no fato de Wittgenstein afirmar ter fornecido, com suas considerações filosóficas, “observações sobre a história natural do homem”. O que caracterizaria mais essencialmente a noção “forma de vida” seria os aspectos biológicos que qualificam os seres humanos enquanto tais. A forma de vida humana seria, deste modo, parte essencial da natureza biológica dos seres humanos, e, por isso mesmo, determinaria a maneira como eles agem e reagem. A forma de vida humana implica, portanto, num modo de agir comum da humanidade, e é sobre esse substrato comportamental comum mínimo existente entre os humanos que, para Wittgenstein, repousa a possibilidade de toda a comunicação, e também o entendimento e a tradução de uma língua em outra. Se não nos fosse possível encontrar um plano mínimo comum de ações e comportamentos regulares, não seríamos capazes de nos comunicar nem compreender um ao outro. É impossível haver comunicação entre seres que não partilhem de um plano de comportamentos comuns. Dessa perspectiva, pensar o fundamento e a origem do fenômeno linguístico é conceber que a linguagem não surgiu de práticas imaginárias, de um raciocínio, ou mesmo de qualquer outra manobra intelectual. Tendo como referência o “quadro do estado primitivo da humanidade”, a linguagem, para Wittgenstein, é, de fato, um dado de nossa história natural. 103
Alegando que os homens primitivos não “refletiam”, mas “faziam”, Wittgenstein defende, portanto, que o que está na origem da linguagem é, na verdade reações que, apesar de diversas entre si, podem ser caracterizadas como práticas sobre as quais (e só sobre elas) as formas complexas da linguagem podem se desenvolver. Desse modo, a origem da linguagem se deu por meios de práticas que se caracterizariam por não envolver procedimentos de justificação racional ou intelectiva. Assim compreendida, a linguagem passa a ser considerada como um refinamento dessas ações humanas, e os jogos que a constituem passam todos a fazer parte de nossa história humana. A conjunção do conjunto de tudo o que está relacionado com a linguagem, por um lado, e o conjunto de tudo o que está ligado às atividades a ela relacionadas, por outro lado, formam o que Wittgenstein denomina de “campo do jogo de linguagem”, e é somente inserido nesse campo que podemos falar. Trata-se, na verdade, de um campo de sentido especificado pelas circunstâncias sob as quais determinado jogo é jogado. Contudo, o próprio Wittgenstein afirma que “aquilo que pertence a um jogo é todo uma cultura” (Aulas e Conversas, p. 27), e é somente inserido numa cultura que os jogos se efetivam e se realizam. Assim, a cultura, campo no qual os jogos de linguagem são jogados, é anterior e o locus onde os jogos se efetivam. E, sendo o palco de práticas linguísticas efetivas, a cultura engloba todas as circunstâncias (físicas, biológicas, psicológicas, contextuais, ambientais, cognitivas, éticas, epistêmicas, relacionais valorativas etc.) sob as quais tais práticas são realizadas. É nesse campo amplo da cultura que a linguagem se desenvolve e a multiplicidade de jogos de linguagem aparece, desaparece, se modifica, envelhece, inova etc. Nesse caso, não há jogo mais distinto que outro; eles são apenas jogos diferentes. Por mais simples que seja uma linguagem, ela sempre é uma linguagem completa.
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4. A LINGUÍSTICA DO PROF. EVERETT E A FILOSOFIA DA LINGUAGEM DE WITTGENSTEIN: PONTOS E CONTRAPONTOS
Essa abordagem do fenômeno da linguagem no horizonte da forma de vida humana e dos jogos de linguagem abre espaço para algumas aproximações teóricas entre a filosofia wittgensteiniana da linguagem e a proposta linguística do prof. Everett. Alguém poderia replicar dizendo que isso não pode ser feito, uma vez que as pesquisas do prof. Everett decorrem no âmbito da linguística, enquanto que as de Wittgenstein foram desenvolvidas no âmbito da filosofia da linguagem. O prof. Everett é, portanto, um cientista, no sentido técnico do termo, com um programa de pesquisa desenvolvido por mais de 40 anos. Já Wittgenstein não foi um cientista e nunca se preocupou em fazer ciência no sentido técnico. Pelo contrário, nas Investigações Filosóficas, ele nitidamente nos deixou cientes de que estava certo que suas “reflexões não podiam ser concebidas como reflexões científicas”, porque ele não estava “fazendo ciência natural” (IF, § 109; II, p. 295). De acordo com as suas próprias palavras, o que ele pretendia mesmo era apenas tecer observações sobre a “história natural do homem” (IF, § 415.). De fato, dado esse quadro comparativo, não é incomum encontrarmos quem defenda a ideia de que há uma total incompatibilidade teórica entre essas duas perspectivas. Para muitos, como diz Apel em sua Transformação da filosofia: o a priori da comunidade de comunicação (Cf. APEL, 2000.), linguística nada tem a ver com a filosofia da linguagem. Todavia, na discussão contemporânea, essa maneira histórica de se conceber a relação entre a linguística e a filosofia da linguagem tem sido abandonada. Na atual discussão, a linha divisória que delimitava os campos de investigação da filosofia da linguagem e da linguística já não é muito nítida. Esse fato é reconhecido explicitamente pela Filosofia da Linguística, a qual defende o ponto de vista de que o trabalho dos linguistas e o trabalho dos filósofos da linguagem tende a convergir na direção de uma melhor compreensão do fenômeno humano da linguagem. 105
Nesse novo expediente, as teorias de Wittgenstein e do prof. Everett mantêm um diálogo bastante coerente, que pode ser resumido nos seguintes pontos: a) Tanto o prof. Everett quanto Wittgenstein negam qualquer necessidade de se recorrer a teses metafísicas e/ou mentalistas para explicar a origem da linguagem, uma vez que a linguagem não se originou de operações intelectuais ou mentais. b) As propostas teóricas desses pensadores são qualificadas como sendo nitidamente marcadas não só por uma forte perspectiva antrópica, na qual a condição humana então vigente proporcionou o surgimento da linguagem, mas também por uma concepção de linguagem como um fenômeno que ocorreu na história natural da nossa espécie. c) Tanto o prof. Everett quanto Wittgenstein ressaltam, em suas respectivas teorias, o papel desempenhado pela cultura na origem e evolução da linguagem. Para eles, sem a existência desse plano cultural mais amplo, nenhuma linguagem seria inventada nem nenhum jogo de linguagem seria jogado. d) Ambos admitem que não há linguagem nem língua melhor do que outra. Há graus de complexidade diferentes e jogos diferentes, mas nunca uma linguagem melhor do que outra. Todas as linguagens/línguas humanas são completas. Esses são alguns paralelos que podem ser encontrados nas abordagens acima descritas. Porém, se nossas inflexões aqui feitas estão corretas, há dois pontos que merecem ainda ser destacados. Em termos de uma filosofia da linguística, poderia ser o caso de existir uma acusação de que, ao esforço intelectual de Wittgenstein, falta o aspecto construtivo, científico, que encontramos no programa de pesquisa do prof. Everett. Como já dito, o prof. Everett é um cientista, no sentido estrito do termo; já Wittgenstein não foi e nunca se considerou um cientista. Assim, repetimos, se nossas análises estiverem corretas, as 106
considerações aqui descritas proporcionam uma dupla implicação, que estão intimamente ligadas. A primeira delas consiste no seguinte: de modo geral, por decorrer de um quadro experimental e empírico, a teoria linguística do prof. Everett poderá servir de suporte para fornecer a contraparte científica que falta à proposta filosófica de Wittgenstein. Isso implica dizer que ambas teorias, mesmo apresentadas em campos diferentes, se complementam metodologicamente. A segunda delas afirma que, de modo particular, essa contenção parece estar alinhada com o diagnóstico efetuado por Jaroslav Peregrin no âmbito da filosofia da linguística contemporânea, de acordo com o qual a velha dicotomia entre filosofia da linguagem e linguística deve ser ultrapassada no âmbito de uma nova ciência da linguagem e da sua filosofia. Neste sentido, a hipótese de que a linguagem é a maior invenção da humanidade poderá servir tanto como pano de fundo como como fonte inspiradora para novos e promissores programas de investigação. REFERÊNCIAS
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MOTIVOS HEGELIANOS NA OBRA DE DANIEL EVERETT: A LINGUAGEM COMO ARTEFATO CULTURAL Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – PPGFIL Unicap
A presente pesquisa objetiva demonstrar que há uma sinergia conceitual entre Daniel Everett e Hegel, e nos propomos demonstrar em que consiste esta sintonia nos utilizando do tema da Linguagem, em geral, e do conceito de linguagem como artefato cultural, em particular. A tese que se defenderá é a de que a linguagem não pode ser reduzida a uma explicitação mentalista, nem tampouco ser descrita reducionariamente por elementos a priori, ou derivar de um simples processo de consenso. Ou seja, se rejeitará algumas teses caras a abordagem filosófica da Linguagem, quais sejam; o mentalismo da linguagem muito presente em Leibniz, por exemplo, mas seguido por quase todos os racionalistas modernos e contemporâneos em suas abordagens acerca da linguagem; a perspectiva transcendental, para a qual, há na linguagem dois níveis um meta-empírico (o propriamente transcendental e a priori) e o empírico, sendo o segundo sobredeterminado pelo primeiro e o nominalismo e sua tendência a redução da linguagem as voces. Inicialmente cabe advertir que o título pode induzir o leitor e/ou ouvinte a erro, supondo que se encontrará uma linha de continuidade do sistema hegeliano em Daniel Everett. Destaco que o propósito não é, simplesmente, apresentar elementos hegelianos na obra de Everett, tal como pode ser induzir do excerto “motivos hegelianos” presente no título. É pouco relevante ou mesmo de baixa produtividade reduzir o potencial de uma obra como a de Daniel Everett buscando resíduos num outro projeto, seja qual for, mesmo o projeto hegeliano. Seria quase que uma violência conceitual, pois, se reduziria as contribuições e suas grandezas conceituais, naturalmente intencionais, ao procedimento de verificação das grandezas extensionais. Utilizando uma linguagem 109
coloquial se confundiria alhos com bugalhos, e não estamos propondo e nem dispostos a cometermos os mesmos erros de Gaunilo e Gassendi. Reitero, não se pretender buscar elementos de Hegel em Everett. Se utiliza motivos no título mais para realçar certas convergências de abordagem, em especial, no tema da linguagem e menos para comparar projetos ou identificar resíduos de uma obra em outra. - PRIMEIRO ELEMENTO DE SINERGIA: UM HOLISMO DE PERSPECTIVA
É um lugar comum afirmar que a atividade da filosofia é sobre o pensar e neste sentido sempre sobre o mesmo conteúdo; o que difere na filosofia são as formas de abordagem deste mesmo conteúdo – o pensar – e os métodos que se utilizam ao ser abordado este conteúdo para a apreensão e a construção de seu sentido. Filosofia é a investigação e aspiração à alcançar os fundamentos do pensar e os limites da razão em suas mais diversas expressões. A ciência é limitada pelo seu não-saber e por isto ela é capaz de se impulsionar além de seus limites e fundar novos campos objetuais, o filosofar é o pensar o próprio limite, o não-saber que já é saber de algo e que por isso lhe impulsiona cada vez mais a si mesmo num aprofundamento sem limites. E pensar o limite e desde o limite da linguagem é uma das sub-teses que assumimos como inerentes ao modo de abordagem da linguagem em Daniel Everett. Tal tese o coloca numa linha digamos assim “desconfortável”, desagradando a gregos e a troianos, a filósofos e cientistas, pois, pensa a ciência de modo filosófico e faz filosofia de modo científico. Neste diapasão é preciso considerar que há o primeiro grande motivo hegeliano em Daniel Everett e que assumimos como sendo o modo de refletir a linguagem de modo abrangente, por uma razão ampliada. Nos utilizaremos dos § 79-83 da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, doravante apenas Enciclopédia, na sua seção Conceito mais 110
preciso e divisão da Lógica25. Nestes parágrafos da Enciclopédia Hegel apresenta sob o pomposo título Das posições do pensamento face a objetividade, os modos como se estruturam as linhas de reflexão, e as divide em saber imediato, do entendimento ou negativamente racional26 e especulativo ou positivamente racional. Estas três posições ou modos de articulação da reflexão correspondem ao senso comum, à ciência e a filosofia. A primeira assume o dado, a segunda separa e distingue e é por natureza aporética, e a terceira é o exercício estruturado de coordenação e explicitação dos problemas através de uma diretriz sistemática, assim, estamos diante de uma postura global de filosofar. Em grande parte as incompreensões acerca dos conceitos e conclusões em choque e em jogo da obra de Daniel Everett se deve àquilo que denominamos de reducionismo de perspectiva das abordagens acerca da linguagem nos seus diversos grupos, os mentalistas, racionalistas, transcendentalitas e nominalistas, e que para fins de defesa do argumento de que há motivos hegelianos na obra de Daniel Everett os incluiremos como pensadores do entendimento. Hegel na Enciclopédia § 80 afirma que “O pensar enquanto entendimento [Verstand] fica na determinidade fixa e na diferenciação dela em relação à outra determinidade; um tal Abstrato limitado vale para o pensar enquanto entendimento como [se fosse] para si subsistente e essente.” Como se extraí desta passagem a atividade do entendimento não é produtora, apenas regulativa. Não compreende as razões do fato do conhecimento, limitando-se a reconhecer as estruturas que se desenvolvem no ato do conhecimento e a aplicá-las formalmente.
25 Enz, § 79-83, pp.168-180 [Trad. Br. p. 157-170] 26 Enz § 80, p.168 [Trad.Br. p. 159] - a) O pensar enquanto entendimento [Verstand] fica na determinidade fixa e na diferenciação dela em relação à outra determinidade; um tal Abstrato limitado vale para o pensar enquanto entendimento como [se fosse] para si subsistente e essente.
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Hegel crítico do pensar formal do entendimento, mas cioso do seu papel fundamental nos afirma que “Para filosofar requer-se antes de tudo que cada pensamento seja apreendido em sua precisão completa, e que não fique no vago e indeterminado”.27 Esta apreensão precisa é a atividade do entendimento que fixa e isola o pensamento em suas determinações e as apreende não na relação que se exerce entre as determinações, mas em cada determinação isolada de reflexão. Uma rápida pesquisa em qualquer bom repositório de pesquisas observará que grande parte dos linguistas, cientistas sociais e filósofos ao abordarem a obra de Daniel Everett caem nesta cilada reducionista, e se limitam a refletir se (i) as línguas, e a linguagem humana por oposição a comunicação dos animais - têm ou não a recursividade como um elemento universal; (ii) se a teoria de Everett desmente ou não a gramática universal de Chomsky que advoga que a linguagem reside num componente genético da linguagem humana; (iii) se a ausência de marcações morfológicas (de número e de contraste entre singular, dual ou plural), ou ausência de quantificadores como todo, algum e cada, entre outros em determinadas línguas seriam definidoras para desbancar teorias mentalistas etc. Pensar com o domínio de regras que garantam a retidão e a escorreita compreensão dos signos postos em jogo numa teoria sem uma necessária reflexão acerca do papel destes mesmos signos no mundo e das condições de sua enunciação, esta é a preciosa atividade do entendimento, que é própria de um modelo reducionista de fazer ciência. A abordagem especulativa apresentada por Hegel e que defendemos neste texto ser o modo reflexivo assumido por Daniel Everett assume dois modos próprios à atividade reflexiva e que se definem basicamente pela tarefa de compreender a especulação como a problematização de nosso conhecimento, e, como a unidade dos múltiplos conhecimentos problematizados em torno de um conceito vetor. 27 Enz § 80, Zusatz p.171 [Trad.Br. p. 162]
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Tal perspectiva holista, também defendida por Pierce, mas que em linguagem hegeliana ser designaria por especulativa e que advogamos ser o modo através do qual Daniel Everett aborda a linguagem se constitui como atitude sistemática que é demarcada especificamente por uma unidade de fim, onde o múltiplo problematizado e as partes que lhe compõe ordenam-se por uma ideia subjacente que lhes coordena de modo finalisticamente aberto. Neste holismo metodológico se coordenam (i) uma postura de abertura aporética enquanto atividade reflexiva problemática e sem telos mas que (ii) se ordena de modo determinado por uma multiplicidade interconectada e destinada à um fim aberto. Nesta perspectiva o holismo não deve ser entendido como uma unidade somativa das partes problematizadas. A atitude holista ou especulativa se explicita pela coordenada de o múltiplo problematizado e as partes que lhe compõe ordenarem-se por uma ideia subjacente que lhes coordena de forma finalisticamente aberta. Ou seja, a ideia diretriz é a de um holismo semântico, em que o fim é a própria auto-explicitação do sistema que enquanto telos é buscada, mas, não pode ser atingida. As respostas deste tipo holismo acerca das questões da ciência são abrangentes, integradores e abertas às necessárias evoluções internas (quantitativas) e externas (qualitativas), num modelo de espiral. E é desta compreensão que advogamos inerente ao modo de reflexão acerca da linguagem em Daniel Everett na qual os atributos metodológicos do pensar e refletir sobre a linguagem que reside um ponto nodal para uma correta compreensão do seu projeto explicitador desta maior invenção da humanidade e que se constitui como um motivo hegeliano, consistente na compreensão da linguagem como uma realidade enquanto unidade constituída de vários níveis de compreensão do “discurso” que não se excluem ou diluem entre si, mas que preservando sua diferença recíproca incitam à sua compreensão unitária.
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- UMA EXPLICITAÇÃO ELUCIDATIVA: A LINGUAGEM COMO ARTEFATO [Language as the cultural tool]
A linguagem pode ser com alguma segurança compreendida como o uso de signos intersubjetivos que objetivam a realização da comunicação humana. Vamos também assumir imediatamente e a traços largos com Ferdinand Saussure que a relação entre linguagem e língua se assemelha àquela de gênero e espécie, sendo a língua uma espécie de produto social da linguagem. Também vamos assumir que filosoficamente o problema da linguagem é o problema da intersubjetividade, mas não iremos assumir o reducionismo presente em tentar explicar a origem dessa intersubjetividade e, logo, da linguagem pelos operadores: convenção, natureza, escolha ou acaso. Uma tal escolha nos colocaria num dualismo aprisionador próprio do entendimento, que apenas é capaz de conhecer ou explicitar separando e distinguindo. Seguindo o nosso argumento de que na abordagem de Daniel Everett acerca da linguagem se encontram motivos hegelianos e que tal motivo consiste num tipo bem específico de holismo, passaremos a demonstrar mais internamente ao projeto de Everett como se explicita este holismo; e nosso caso de estudo será a tese de Daniel Everett da linguagem como artefato cultural Vamos assumir no presente trabalho que a linguagem é um artefato. Uma questão prévia é evitarmos pelos motivos que exporemos traduzir “tool” por ferramenta e assumiremos a tradução por artefato. Preliminarmente aduzimos que a escolha por ferramenta impede a compreensão num contexto do português brasileiro do núcleo central da proposta de Daniel Everett, assim como legará dificuldades à compreensão dos alegados motivos hegelianos. O artefato é um desses vocábulos riquíssimos pois aglutina em si dois elementos aparentemente dispares: a arte e o fato. A riqueza deste vocábulo complexo que integra núcleos opostos, como: o engenho, a liberdade, a ambiguidade e a capacidade criativa inerentes à arte, e por oposição, 114
a linearidade, a necessidade, a determinação e o caráter conclusivo intrínsecos ao fato, é inesgotável para a abordagem holística da linguagem. Em geral, o artefato é assumido por apenas um de seus lados o do fato, e aqui reside o risco de tradução de toll por ferramenta, e assim se designar o artefato apenas como o objeto produzido pela ação humana, distinguindo-o do objeto natural. Aqui a língua portuguesa possui apenas o vocábulo objeto para designar o toll o que gera uma clausura de compreensão ao contrário de outras línguas como, por exemplo, a língua alemã que possui Objekt (dimensão objetiva abstrata) e Gegenstand (dimensão objetiva concreta). A dimensão d’O fato [em artefato] prioriza o resultado da ação e não o próprio processo ativo. Esta dimensão é central, mas ela não deve ocultar ou criar obstáculo àquela outra que se explicita a partir da arte. Compreendido também a partir da arte o artefato passa é ser explicitado enquanto processo mesmo (não há mais espaço para o determinismo ou acaso tão fortes no fato), enquanto sinal da ação e da presença humana, a arte é como o sujeito, ação que se lança; enquanto arte o artefato implica intenção e intensão, implica dirigir e dirigir-se no próprio processo da atividade humana. A linguagem em Everett é um artefato que unifica estas vastas dimensões da linguagem, sejam aquelas esferas objetivo-abstratas da linguagem como a gramática e a sintaxe em suas múltiplas dimensões em interação com a atividade cerebral e seus correlativos biológicos momentos inerentes aos fato mas também aquelas outras dimensões objetivo-concretas do uso e da significação que enquanto processos, ações são irredutíveis a explicações causalistas e deterministas, e que confirmam a irredutibilidade da linguagem a soma de suas propriedades. O desafio proposto por Daniel Everett em Linguagem a história da maior invenção da humanidade, nos coloca imediatamente na certeza da presença de um clássico, a obra é de uma riqueza de detalhes e de conexões com a filosofia, a sociologia a antropologia, a etnologia numa perspectiva defendemos amplamente holista acerca da gênese, do papel e intersecções da linguagem na existência humana. 115
Ao tratar das adaptações biológicas humanas para a linguagem, Daniel Everett nos apresenta uma reflexão que tomo como central acerca da linguagem e que nos permitirá aproximar ainda mais do holismo que defendo, ao aduzir que A origem e a composição dos símbolos que nós estivemos discutindo destaca o fato de que, assim como quaisquer funções biológicas, a linguagem humana não é simples. A linguagem surge da interação entre significado (semântica), condições de como ela é usada (pragmática), propriedades físicas do seu inventário de sons (fonética), gramática, fonologia (a estrutura dos sons), morfologia (a maneira como a língua cria palavras, usando prefixos e sufixos ou mesmo sem usar nenhum elemento) e organização de suas histórias e conversas. Ainda assim, mesmo depois de tudo isto, existe algo a mais. A linguagem como um todo é maior que a soma de suas partes. Quando nós ouvimos nossa língua materna, não ouvimos gramática nem sons particulares, nem significado, nós escutamos e instantaneamente entendemos o que está sendo dito, como um todo, individualmente e em conjunto em uma conversa ou em uma história. (EVERETT, 2019, p. 147-148)
A GUISA DE CONCLUSÃO
A tese de que o motivo hegeliano é o holismo presente na proposta de Daniel Everett de explicitar a linguagem como artefato cultural se demonstra como a capacidade expressiva da linguagem nesta abordagem permitir evolucionariamente relacionar na linguagem conceitos lógicos à conceitos empíricos, e conceitos empíricos à conceitos lógicos 116
de modo a que tais conceitos lógicos tornem explícitas as características gerais de uso e conteúdo dos conceitos ordinários e não-lógicos sem reduzir-se a tais conceitos empíricos e que os conceitos empíricos se ornem de universalidade exatamente por se explicitarem racionalmente, sempre sem uns reduzirem-se aos outros, mas ambos preservando seus espaços de valência, justificação e coerência. REFERÊNCIAS
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