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Table of Contents Front Matter / Elementos Pré-textuais / Páginas Iniciales Apresentação A crítica biográfica Janelas indiscretas A biografia: um bem de arquivo Biografar é metaforizar o real Freud explica A traição autobiográfica As mortes imaginárias de pessoa A memória de Borges Cyro dos anjos: a verdade está na Rua Erê O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK Memórias imperfeitas Macunaíma: quem é você? Macunaíma de Daibert Amizade modernista “Márioswald” pós-moderno Carmen Miranda: do kitsch ao cult O tic-tac do meu coração Pan-américas de áfricas utópicas O samba da minha terra Espelho de tinta Com açúcar e com afeto
Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica Eneida Maria de Souza SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SOUZA, E.M. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica [online]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. Humanitas series. ISBN: 978-85-423-0303-2. https://doi.org/10.7476/9788542303032.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS REITOR: Clélio Campolina Diniz VICE-REITORA: Rocksane de Carvalho Norton EDITORA UFMG DIRETOR: Wander Melo Miranda VICE-DIRETOR: Roberto Alexandre do Carmo Said CONSELHO EDITORIAL Wander Melo Miranda (PRESIDENTE) Flavio de Lemos Carsalade Heloisa Maria Murgel Starling Márcio Gomes Soares Maria das Graças Santa Bárbara Maria Helena Damasceno e Silva Megale Paulo Sérgio Lacerda Beirão Roberto Alexandre do Carmo Said
ENEIDA MARIA DE SOUZA
Janelas indiscretas ensaios de crítica biográfica Belo Horizonte Editora UFMG 2011
© 2011, Eneida Maria de Souza © 2011, Editora UFMG Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. S831j Souza, Eneida Maria de Janelas indiscretas [livro eletrônico]: ensaios de crítica biográfica / Eneida Maria de Souza. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. 3129 Kb; ePUB – (Humanitas) Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-423-0303-2 1. Escritores – Biografia – História e crítica. 2. Ensaios brasileiros. 3. Literatura – História e crítica. I. Título. II. Série. CDD:928 CDU:929 Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação Biblioteca Universitária da UFMG DIRETORA DA COLEÇÃO: Heloisa Maria Murgel Starling COORDENAÇÃO EDITORIAL: Danivia Wolff ASSISTÊNCIA EDITORIAL: Eliane Sousa e Euclídia Macedo COORDENAÇÃO DE TEXTOS: Maria do Carmo Leite Ribeiro PREPARAÇÃO DE TEXTOS: Ana Maria de Moraes REVISÃO DE PROVAS: Beatriz Trindade e Simone Ferreira COORDENAÇÃO GRÁFICA: Cássio Ribeiro PROJETO GRÁFICO: Revisto por Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos - Mangá FORMATAÇÃO: Robson Miranda MONTAGEM DE CAPA: Cássio Ribeiro PRODUÇÃO GRÁFICA: Diêgo Oliveira EDITORA UFMG Av. Antônio Carlos, 6.627 Ala direita da Biblioteca Central – Térreo Campus Pampulha | CEP: 31270-901 – Belo Horizonte – MG Tel.: +55 (31) 3409-4650 [email protected]
Fax: +55 (031) 3409-4768 [email protected] Versão digital: julho de 2019
Ao amigo Wander, leitor e parceiro destes ensaios
Ao CNPq, os agradecimentos pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa À CAPES, pela Bolsa de Professor Visitante Nacional Sênior
Table of Contents / Sumário / Tabla de Contenido Front Matter / Elementos Pré-textuais / Páginas Iniciales Apresentação A crítica biográfica Janelas indiscretas A biografia: um bem de arquivo Biografar é metaforizar o real Freud explica A traição autobiográfica As mortes imaginárias de pessoa A memória de Borges Cyro dos anjos: a verdade está na Rua Erê O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK Memórias imperfeitas Macunaíma: quem é você? Macunaíma de Daibert Amizade modernista “Márioswald” pós-moderno Carmen Miranda: do kitsch ao cult O tic-tac do meu coração Pan-américas de áfricas utópicas O samba da minha terra Espelho de tinta Com açúcar e com afeto
Apresentação A reunião destes ensaios sobre crítica biográfica é o resultado de pesquisas realizadas no decorrer dos últimos anos, quando pude aprimorar questões teóricas e exercitar a criação de perfis literários. O convívio permanente com arquivos de escritores e a necessidade de sistematizar tanto seus dados pessoais, quanto sua produção literária e intelectual, exigiam mudanças no modo de abordagem do texto. A sedução pelos manuscritos, cadernos de notas, papéis esparsos, correspondência, diários de viagem e fotos tem como contrapartida a participação efetiva do pesquisador para a construção de ensaios de teor biográfico. A tarefa, a princípio simples, reveste-se de complexidade, por se tratar de uma prática narrativa que une objetividade com estilo pessoal, concisão com clareza expositiva. No exercício dessa prática, o apelo ao ficcional atua como procedimento que formaliza o texto e o molda segundo princípios comuns à arte da escrita. A distinta dicção da crítica biográfica frente ao ensaio de vocação teórica ou de natureza interpretativa reside na condensação entre ficção e teoria, narratividade e argumento teórico. Nesse sentido, há maior liberdade criativa por parte do crítico, por revigorar o enredo narrativo e permitir associações entre texto e contexto, obra e vida, arte e cultura. Mas a escolha do método biográfico impõe determinada disciplina e se afasta de aproximações ingênuas e causalistas operadas por adeptos da pesquisa biográfica como caça aos segredos e enigmas do texto. Cumpre ainda mencionar que o arquivo da crítica latino-americana sobre o texto autobiográfico foi de extrema importância para o desdobramento de questões ligadas à leitura desconstrutora e pós-colonialista, realizada por representantes das consideradas literaturas periféricas. Em diálogo mais aberto com essas questões teóricas, a bibliografia fornecida por pensadores da cultura latino-americana ampliou a perspectiva teórica dominante, qual seja a europeia, sempre voltada para uma preocupação etnocêntrica e sem interesse pelas demandas próprias dos países emergentes. Cite-se, como exemplo dessa linhagem, a abordagem do texto autobiográfico realizada por Sylvia Molloy, em Vale o escrito – a escrita autobiográfica na América Hispânica, em que se analisa a prática de leitura como gesto político e cultural, uma forma de resposta da barbárie à civilização. Trair modelos e “citar mal” configuram o traço original e criativo dos leitores periféricos, como o escritor argentino Sarmiento, responsável pela atitude contraditória entre a sedução e o repúdio da cultura europeia.1 O início do meu interesse pela abordagem biográfica teve como motivação o trabalho de edição da correspondência entre escritores – Mário de Andrade, Henriqueta Lisboa,2 Murilo Rubião –, pela oportunidade de esclarecer dados até então nebulosos de suas obras, soluções que possibilitaram sistematizar com mais rigor a poética defendida por
eles. A publicação da correspondência entre Mário e Henriqueta representou o convívio direto com referências de vida dos autores, indispensáveis para o entendimento da poética modernista e do ambiente literário correspondente às décadas de 1930 e 1940. Seguiu-se a preparação da edição crítica de Beira-mar/memórias 4, de Pedro Nava, não só pela análise de uma obra memorialista, mas pela necessidade de conhecer o arquivo do escritor, composto por documentos de inegável valor para o aprimoramento e a revisão da historiografia literária. Sua publicação está a caminho. Graças à experiência com textos autobiográficos e memorialistas, publiquei o livro Pedro Nava – o risco da memória e Pedro Nava, coletânea de textos e estudo crítico, editado pela Coleção Nossos Clássicos.3 Por se tratar de uma obra de teor memorialístico, a única maneira de ir além dos dados biográficos aí narrados consistiu no procedimento relativo à ficcionalização e teorização do que já havia sido registrado pelo autor. Essa prática ensaística não pretende distorcer nem embelezar os fatos narrados, mas interpretá-los segundo sua relação com o contexto e com a ajuda de instrumental teórico exigido para tal. Ficcionalizar os dados significa considerá-los como metáforas, ordená-los de modo narrativo, sem que haja qualquer desvio em relação à “verdade” factual. O gesto ficcional de composição de biografias torna-se obrigatório para a elaboração de uma dicção que se situa entre a teoria e a ficção, expressa como marca pessoal de cada ensaísta. A definição de Jacques Rancière para o conceito de ficção, presente em A partilha do sensível, merece ser aqui transcrita, pela semelhança de argumento por mim assumido nos ensaios sobre crítica biográfica e pelo discernimento propiciado pelo termo: Fingir não é propor engodos, porém elaborar estruturas inteligíveis. A poesia não tem contas a prestar quanto à “verdade” daquilo que diz, porque, em seu princípio, não é feita de imagens ou enunciados, mas de ficções, isto é, de coordenação entre atos. (…) O real precisa ser ficcionado para ser pensado. (…) A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer.4
De nítida inclinação autobiográfica, a obra de J. L. Borges constitui uma das leituras preferidas, por serem os exercícios ficcionais do escritor respostas adequadas aos enganos e embustes exercidos pela má crítica biográfica. Desconfia do apelo realista que privilegia as coincidências entre obra e vida, incentiva os deslocamentos contínuos entre ficção e realidade, além de embaralhar o senso comum dos leitores.5 Tempo de pós-crítica,6 memorial apresentado ao concurso para professor titular de Teoria da Literatura na UFMG, registra outra vertente da pesquisa sobre o traço biográfico e a crítica, desta vez centrada na revisão de uma trajetória acadêmica, aliada à da crítica literária brasileira. Restrita à experiência pessoal e à de uma geração, essa revisão permitiu que outros ensaios recebessem igual atenção, tendo em vista a ampliação do panorama da crítica hoje. Destaco, entre eles, os ensaios sobre Luiz Costa Lima7 e Silviano Santiago,8 intelectuais responsáveis pela sistematização e consolidação de um pensamento crítico brasileiro e da formação acadêmica de grande parte de
pesquisadores que passaram pela maioria das universidades nacionais nas décadas de 1970 até o momento. A pesquisa “O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK”, apoiada pelo CNPq, consistiu no inventário do grupo de intelectuais que trabalharam com Juscelino Kubitschek de 1940 a 1960. Nesse particular, foi ainda de grande relevância o registro biográfico dos autores escolhidos, entendendo que a fabricação desses perfis envolve o desdobramento da obra dos autores na sua vida, por se constituir como discurso de natureza heterogêneo. O que mereceu maior destaque nessa abordagem foi a diferença existente entre projeto político e projeto literário, levados a termo pelos intelectuais a serviço do Estado. Autran Dourado, Alphonsus de Guimaraens Filho, Murilo Rubião, Guimarães Rosa, Cyro dos Anjos, entre outros, foram respectivamente estudados a partir do engajamento no emprego público como sistema de trabalho – um dos meios de se alcançar prestígio e ascensão social – e a distinta posição assumida na confecção de sua obra, nitidamente em descompasso com o programa desenvolvimentista do governo de JK. A editoração do Diário de guerra de Guimarães Rosa – cuja cópia do manuscrito original se encontra no Acervo de Escritores Mineiros, finalizada há mais de três anos pelos colegas Reinaldo Marques, Georg Otte e por mim – tem sido o corpus atual de pesquisa em torno da criação de perfis biográficos. Esse enfoque, centrado em documentos e manuscritos alocados nos arquivos, além de reconstituições dos lugares frequentados pelo escritor, entende ser a vida literária componente imprescidível para a compreensão da obra dos autores. Diante da impossibilidade de tornar público o texto, por proibição da família, passamos a divulgá-lo por meio de ensaios que exploram a atitude por vezes ambígua entre os deveres do escritor e as obrigações burocráticas exigidas pelo cargo público. É de extrema relevância para a compreensão do estudo do período e para a obra do autor ampliar o registro biográfico, dotado tanto de valor documental quanto de gênese literária. “A biografia, um bem de arquivo”, ensaio incluído neste volume, pretende esclarecer o enlace sempre revigorado entre gênese biográfica, gênese textual e arquivo. Os artigos que integram este livro se destacam por uma linha de pesquisa comum e respondem não só pela distinção de enfoques – teóricos, temáticos, autorais –, mas pelas épocas distintas de publicação das obras, além da diferença de gêneros – literatura, artes plásticas, música, cinema, crítica, depoimento. O conjunto dos ensaios, à primeira leitura, poderia soar um tanto discrepante, por abranger desde Mário de Andrade, Cyro dos Anjos, Fernando Pessoa, Silviano Santiago, Jean-Paul Sartre e Bernardo Carvalho a João Moreira Salles, Carmen Miranda, Caetano Veloso, Chico Buarque, ao lado do testemunho pessoal sobre minha experiência de aprendizado na Escola Primária (“Com açúcar e com afeto”). Na aparente profusão de nomes, persiste, contudo, um objetivo comum: articular temas construídos nas obras com eventos pessoais e tentar, principalmente, enlaçar as múltiplas paixões que regem tanto a vida como a literatura. O
nascimento, a morte, o destino literário, a família, a nação, a identidade e a memória persistem ainda como os grandes temas que movem e compõem a escrita de todos os tempos. A esta escrita autobiográfica que se corporifica nos diversos discursos se ajusta a bela metáfora empregada por Michel Beaujour, o “espelho de tinta”,9 para manter o movimento paradoxal de proximidade e distanciamento entre literatura e vida, ficção e documento. A literatura como destino foi, sem dúvida, uma das mais belas lições legadas por Borges, com exemplos encontrados em toda sua obra. Não é por acaso ser um dos contos de História universal da infâmia a constatação dessa verdade. “Espelho de tinta”,10 provável apropriação de uma narrativa árabe recolhida por R. F. Burton, relata o destino da personagem estampado no círculo de tinta colocado, pelo feiticeiro, na palma de sua mão. O círculo de tinta se espalha na mão, no papel-espelho, artifício capaz de prefigurar a sina trágica da personagem, sua própria morte. O penúltimo ensaio deste livro, “Espelho de tinta”, revisita o tema do duplo em O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, e inverte a imagem estereotipada de família. Escrever em terra estrangeira sobre conflitos e dramas alheios não impede que se considere a narrativa o “espelho de tinta” de conflitos pessoais, embora distorcidos e transformados.
Bibliografia BEAUJOUR, Michel. Miroirs d’encre. Paris: Seuil, 1980. BORGES, Jorge Luis. O espelho de tinta. In: ____. História universal da infâmia. Obras completas de Jorge Luis Borges. I. São Paulo: Globo, 1999. p. 375-377. MIGNOLO, Walter. Histórias locais, projetos globais. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. MIRANDA, Wander Melo; SOUZA, Eneida Maria de (Org.). Navegar é preciso, viver. Escritos para Silviano Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: EDUFF; Salvador: EDUFBA, 1997. MOLLOY, Sylvia. Vale o escrito – a escrita autobiográfica na América Hispânica. Tradução de Antonio Carlos Santos. Chapecó: Argos, 2004. PIGLIA, Ricardo. Respiração artificial. São Paulo: Iluminuras, 1988. PIGLIA, Ricardo. El último lector. Barcelona: Anagrama, 2005. RAMOS, Julio. Saber do outro. Escritura e oralidade no Facundo de Domingos Faustino Sarmiento. In: ____. Desencontros da modernidade na América Latina. Tradução de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 31-45. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO Experimental/Editora 34, 2005. SOUZA, Eneida Maria de. A crítica em palimpsesto – reflexões sobre a obra de Luiz Costa Lima. Chasqui, Revista de Literatura Latino-americana, Brighan Young University, EUA, v. XX, n. 1. p. 54-66, May 1991. SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. SOUZA, Eneida Maria de. Cadernos do NAPq, Belo Horizonte, FALE/UFMG, 2002. SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava – o risco da memória. Juiz de Fora: Funalfa, 2004. SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava. Rio de Janeiro: Agir, 2005. (Coleção Nossos Clássicos). SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2007. SOUZA, Eneida Maria de. Márioswald pós-moderno. In: CUNHA, Eneida Leal (Org.). Leituras críticas de Silviano Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Perseu Abramo, 2008. p. 23-50.
SOUZA, Eneida Maria de (Organização, apresentação e notas). Correspondência – Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Edusp; Peirópolis: IEB, 2010.
A crítica biográfica A estreita e bem humorada relação entre obra e vida, teoria e ficção se deve ao depoimento de Richard Rorty, filósofo pragmático americano, falecido em 2007. Confessou, em texto publicado na Folha de S. Paulo, que sofria do mesmo mal de Jacques Derrida, o câncer no pâncreas. Segundo Rorty, a coincidência era tributária da excessiva leitura que ambos faziam de Hegel, o vício intelectual visto como a causa do mal. A doença é diagnosticada, no entender do filósofo, pela escolha profissional do paciente e pela leitura de determinado autor, não havendo, portanto, separação entre vida e trabalho. A justificativa se apoia na inversão da causa física da doença pela profissional, pela criação do mal pelo próprio indivíduo, graças à sua formação e desejo intelectual. Rorty, filósofo pragmático e um dos seguidores da difícil obra de Hegel, morre, como Derrida, daquilo que viveu, de sua paixão pelo conhecimento e por uma particular forma de saber. A declaração de Rorty, à primeira vista dotada de efeito humorístico, é capaz de suscitar reflexões que iluminam a questão biográfica e a aproxima do livro de Michel Schneider, Mortes imaginárias.1 São aí escritos e encenados os últimos momentos e as prováveis frases pronunciadas por alguns escritores, assim como a situação, o lugar ou as condições de sua morte. Esse exercício teórico/ficcional remete ao fascínio biográfico motivado pela vida literária e a sensível aproximação entre teoria e ficção. É digna de nota a pesquisa pioneira de Susan Sontag a respeito das doenças e suas metáforas, como a tuberculose, o câncer e a Aids. Descrevendo as moléstias entre as que eram aceitas e as excluídas pela sociedade, estabelecendo a relação entre arte e vida, contribui do ponto de vista social, cultural e político para o avanço das discussões sobre a crítica biográfica. A utilização da metáfora para a discriminação das doenças na sociedade funciona de forma negativa, ao servir como reforço ao preconceito e à exclusão. Reelabora, assim, conceitos arraigados e como resultado de crenças e superstições, como a culpa, a vitimização e a irresponsabilidade social atribuídas aos pacientes.2 A metáfora literária, utilizada como mediação por escritores para justificar a vocação pela vida intelectual, tem em Roland Barthes um dos exemplos mais bem-sucedidos. Em Roland Barthes por Roland Barthes, a legenda que registra a foto do escritor ainda criança, “Contemporâneos?”, enlaça seu destino ao de Proust, pela relação entre seus primeiros passos e o término da Busca. A contemporaneidade é construída no presente, ao ser conferida à criança um passado literário: “Contemporâneos?/Eu começava a andar,/Proust ainda vivia e/terminava a Busca.”3 Silviano Santiago se vale igualmente dessa metáfora para construir relatos pseudoautobiográficos, utilizando-se da data de seu nascimento, 1936, para apontar aí coincidências entre eventos vividos por escritores de sua predileção, como Graciliano Ramos e Antonin Artaud.4 O destino
literário é marcado por injunções biográficas, pela escolha de precursores que garantam a entrada do escritor no cânone. Entende-se, portanto, a concepção de biografia intelectual como resultado de experiências do escritor não só no âmbito familiar e pessoal, mas na condensação entre privado e público. As datas recebem tratamento alegórico e a história pessoal se converte em ficção, pela intromissão do outro na narrativa. É importante, enfim, assinalar a contribuição de teóricos latino-americanos para a leitura pós-colonial do gênero autobiográfico, na qual são introduzidas cenas que remetem ao ato de leitura dos escritores. O livro, a leitura, a pose do leitor assumem significado semelhante à iniciação do sujeito na escrita, gesto não apenas individual e particular, mas cultural. Nesse sentido, os relatos autobiográficos giram em torno da experiência do leitor latino-americano em relação ao arquivo europeu, promovendo distorções e leituras desencontradas, com o objetivo de desconstruir o mito da escrita como controle da barbárie. As incursões de Ricardo Piglia no universo da leitura; de Sylvia Molloy na escrita autobiográfica; de Walter Mignolo na revisão dos conceitos de local e global nos textos pós-coloniais; e de Julio Ramos na relação entre escrita e modernização na constituição de saberes descontextualizados e, por esta razão, inaugurais, autorizam a vertente cultural e comparada de minhas leituras. No que diz respeito à abordagem mais pontual da crítica biográfica, é preciso distinguir e condensar os polos da arte e da vida, por meio do emprego do raciocínio substitutivo e metafórico, com vistas a não naturalizar e a reduzir os acontecimentos vivenciados pelo escritor. Não se deve argumentar que a vida esteja refletida na obra de maneira direta ou imediata ou que a arte imita a vida, constituindo seu espelho. A natureza artificial da arte recebeu do dandy e decadentista Oscar Wilde a definição primorosa: a vida imita a arte. A presença de mediações, de terceiras pessoas, da relação oblíqua entre arte e vida é passível de intervenções entre as duas instâncias, sem que o lastro biográfico se defina pela empiria e pela interpretação textual baseada em soluções fáceis e superficiais. A preservação da liberdade poética da obra na reconstrução de perfis dos escritores reside no procedimento de mão dupla, ou seja, reunir o material poético ao biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato literário. Ainda que determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado pelo autor, deve-se distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades atribuídas ao acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada pela ficção. O nome próprio de uma personagem, mesmo que faça referência a pessoas conhecidas do escritor, não impede que sua encenação embaralhe os dados e coloque a verdade biográfica em suspenso. Pelo fato de a crítica literária se expandir em várias e múltiplas vertentes, incluindose aí a crítica comparada, a cultural, a biográfica, a genética, a textual – sem que os preconceitos e as hierarquias sejam prioritárias no tratamento das mesmas –, torna-se às vezes difícil impor limites para sua prática. Diante do aspecto abrangente das
disciplinas e de sua abertura transdisciplinar, revela-se inoperante e retrógrada a separação entre domínios específicos, embora deva ser exigida a definição de pressupostos teóricos e de metodologias na realização de um trabalho crítico. A crítica biográfica se apropria da metodologia comparativa ao processar a relação entre obra e vida dos escritores pela mediação de temas comuns, como a morte, a doença, o amor, o suicídio, a traição, o ódio, as relações familiares, como o tema dos irmãos inimigos, da busca do pai, da bastardia, do filho pródigo e assim por diante. Reunidos por um fio temático e enunciativo, independente de intenções ou da época em que viveram, escritores e pensadores constituem matéria biográfica a ser explorada no nível teórico e ficcional. A comparação conta, portanto, com a ajuda de critérios biográficos ao promover encontros entre escritores e incentivar a criação de diálogos muitas vezes inesperados. Esse procedimento é dotado de liberdade criativa, por conceder ao crítico certa flexibilidade ficcional sobre o objeto em análise, não se prendendo à palavra do autor, mas indo além dela. Por essa razão, o elemento factual da vida/obra do escritor adquire sentido se for transformado e filtrado pelo olhar do crítico, se passar por um processo de desrealização e dessubjetivação. Essa crítica não se concentra, contudo, apenas em obras de teor biográfico ou memorialista, por entender que a construção de perfis biográficos se faz independentemente do gênero. Nas entrelinhas dos textos consegue-se encontrar indícios biográficos que independem da vontade ou propósito do autor. Por essa razão, o referencial é deslocado, por não se impor como verdade factual. A diferença quanto à crítica biográfica praticada durante esses últimos anos consiste na possibilidade de reunir teoria e ficção, considerando que os laços biográficos são criados a partir da relação metafórica existente entre obra e vida. O importante nessa relação é considerar os acontecimentos como moeda de troca da ficção, uma vez que não se trata de converter o ficcional em real, mas em considerá-los como cara e coroa dessa moeda ficcional. Consiste ainda na liberdade de montar perfis literários que envolvem relações entre escritores, encontros ainda não realizados, mas passíveis de aproximação, afinidades eletivas resultantes das associações inventadas pelo crítico ou escritor. Esses perfis exercem, em geral, papel importante na elucidação de propostas literárias, questões teóricas e contextuais.5 Se considerarmos que a realidade e a ficção não se opõem de forma radical para a criação do ensaio biográfico, não é prudente checar, no caso de autobiografias ou de biografias, se o acontecimento narrado é verídico ou não. O que se propõe é considerar o acontecimento – se ele é recriado na ficção – desvinculado de critérios de julgamento quanto à veracidade ou não dos fatos. A interpretação do fato ficcional como repetição do vivido carece de formalização e reduplica os erros cometidos pela crítica biográfica praticada pelos antigos defensores do método positivista e psicológico, reinante no século 19 e princípios do século 20. O próprio acontecimento vivido pelo autor – ou lembrado, imaginado – é incapaz de atingir o nível de escrita se não são processados o
mínimo distanciamento e o máximo de invenção. A crítica biográfica não pretende reduzir a obra à experiência do autor, nem demonstrar ser a ficção produto de sua vivência pessoal e intransferível. As relações teórico-ficcionais entre obra e vida resultam no desejo de melhor entender e demonstrar o nível de leitura do crítico, ao ampliar o polo literário para o biográfico e daí para o alegórico. A retomada de conceitos referentes à autobiografia, como o de autoficção, inaugurada por Serge Doubrovsky, em 1977, teve o mérito não só de rever a relação complexa entre ficção e realidade, como de reforçar a incapacidade do sujeito de se manter íntegro e onipotente. Considerada pela crítica como “aventura teórica”, a autoficção, longe de se impor como chave que abre todos os enigmas da autobiografia – e se contrapõe a ela –, guarda, segundo Jean-Louis Jeannelle, o conhecido estatuto conferido ao sujeito pelas teorias psicanalíticas, foucaultianas e barthesianas, da ficcionalização de si, da encenação de subjetividades no ato da escrita e do discurso. Essa aventura foi proclamada por Roland Barthes em Roland Barthes por Roland Barthes, de 1975, ao admitir na sua “autobiografia”, que “com as coisas intelectuais, fazemos ao mesmo tempo teoria, combate crítico e prazer”.6 Para Serge Doubrovsky, a autoficção é a forma pós-moderna, quer dizer, pós-holocausto, da autobiografia, pois, “mesmo que todos os detalhes sejam exatos, o relato é sempre reinvenção do vivido” ou, mais à frente, “Não se lê uma vida, lê-se um texto.” ou ainda: Uma vez mais, nenhum autobiografia, nenhuma autoficção pode ser a fotografia, a reprodução de uma vida. Não é possível. A vida se vive no corpo; a outra, é um texto. (…) A autoficção é o meio de ensaiar, de retomar, de recriar, de remodelar num texto, numa escrita, experiências vividas de sua própria vida que não são de nenhuma maneira uma reprodução, uma fotografia… É literalmente e literariamente uma invenção.7
A autoficção, pela sua defesa da narrativa a meio caminho entre o testemunho e a ficção, se declara uma narrativa pós-holocausto, por ter sido a narrativa do holocausto sempre pautada pela obediência às normas de fidelidade aos acontecimentos vividos, embora tal exigência se revelasse equivocada. Não resta dúvida de que a publicação, em 1998 (e em português, em 2008), do livro de Giorgio Agamben, Ce qui reste d’Auschwitz, evidencia o avanço teórico das narrativas do holocausto, ao afirmar, com a ajuda de outros pensadores, como Primo Levi, que todo testemunho contém necessariamente uma lacuna, pois quem teria mais condições de se expressar com mais autoridade sobre o fato, os considerados “muçulmanos”, não o fizeram. Como testemunhos integrais, não puderam expressar sua experiência, por se encontrarem na condição de não humanos, entregando sua vida ao destino, sem vontade nem para sofrer, à semelhança do “muslim”, o suposto fatalismo islâmico. Eram denominados figuras, manequins, por se situarem, como sobreviventes, na zona intermediária entre a vida e a morte, o humano e o inumano.8 Outras indagações referentes à autoficção conduzem à desestabilização do referencial, ao seu deslocamento, assim como aos deslocamentos espaçotemporais, considerando serem os protocolos enunciativos mais livres. O autor tem a liberdade de
utilizar o mesmo nome para sua personagem ou narrador, sem que tal gesto interfira no grau de fidelidade/infidelidade narrativa, em posição distinta daquela defendida por Philippe Lejeune quanto ao pacto autobiográfico. Essa estratégia referencial às avessas reveste-se ainda da antiga poética narrativa, marcada pelo gesto de “mentir-vrai”, “mentir-verdadeiramente”, operação que reúne princípios enunciativos ligados ao teatro e ao romance, construindo uma cenografia da enunciação. A desestabilização do referencial produz, com efeito, a invenção e a estetização da memória, esta não mais subordinada à prova de veracidade. Trata-se da ação deliberadamente ficcional por parte do sujeito, do gesto de dessubjetivação que o insere no jogo fabular da narrativa. Estar ao mesmo tempo no interior da linguagem e fora dela consiste na operação paradoxal da presença/ausência do sujeito na complexa cena enunciativa. Essa premissa ficcional é ainda assumida por muitos dos autores modernos – e pósmodernos –; entre eles, a figura de Louis Aragon, na literatura francesa, e a de Silviano Santiago, na brasileira, com o Falso mentiroso, de 2004, e Histórias mal contadas, de 2005.9 O artigo de Silviano Santiago, “Meditação sobre o oficio de criar”, recémpublicado pela Revista Aletria, esclarece sobre o conceito de autoficção, além de ilustrar uma das tendências mais controvertidas e, mesmo assim, mais presentes na literatura e nas artes contemporâneas: Um dos grandes temas que dramatizo em meus escritos, com o gosto e o prazer da obsessão, é o da verdade poética. Ou seja, o tema da verdade na ficção, da experiência vital humana metamorfoseada pela mentira que é a ficção. Trata-se do óbvio paradoxo, cuja raiz está entre os gregos antigos. Recentemente, encontrei a forma moderna do paradoxo num desenho de Jean Cocteau, da série grega. Está datado de novembro de 1936. No desenho vemos um perfil nitidamente grego, o do poeta Orfeu. De sua boca, como numa história em quadrinho, sai uma bolha onde está escrito: Je suis un mensonge qui dit toujours la verité. [Sou uma mentira que diz sempre a verdade.] Esse jogo entre o narrador da ficção, que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade poética, esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional é que possibilitou que eu pudesse levar até as últimas consequências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos, emoções, modo de encarar as coisas e as pessoas etc.), do outro, adequá-la à tradição canônica da ficção ocidental.10 (Ensaio inédito. Cf. artigo de minha autoria, “Notas sobre a crítica biográfica”, publicado em Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. Este ensaio dá continuidade à reflexão ali iniciada.)
Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. Ce qui reste d’Auschwitz. Traduzido do italiano por Pierre Alferi. Paris: Rivages Poche, 2003. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla PerroneMoisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. DOUBROVSKY, Serge. Les points sur les “i”. In: JEANNELLE, Jean-Louis; VOLLET, Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la Neuve: Bruylant-Academia, 2007. p. 53-65. JEANNELLE, Jean-Louis. Où en est la réflexion sur l’autofiction? In: JEANNELLE, JeanLouis; VOLLET, Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la Neuve: BruylantAcademia, 2007. p. 7-37. SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Revista Aletria, Belo Horizonte, n. 18, p. 178, jul./dez. 2008. SCHNEIDER, Michel. Morts imaginaires. Paris: Grasset, 2003. SONTAG, Susan. A doença e suas metáforas. São Paulo: Graal, 1984. SONTAG, Susan. A Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava – o risco da memória. Juiz de Fora: Funalfa, 2004. VASSEVIÈRE, Maryse. Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de la génétique. In: JEANNELLE, Jean-Louis; VOLLET, Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la Neuve: Bruylant-Academia, 2007. p. 89-104.
Janelas indiscretas Por ocasião da posse de François Mitterrand como presidente da França, em 1981, recebi em Paris dois artigos publicados em jornais de São Paulo, um de Paulo Francis e outro de Lúcio Rangel. A vitória tardia do socialismo no país era motivo de júbilo e esperança por parte da população, num início de década ainda sujeita a transformações de toda ordem. Os dois artigos se distinguiam quanto à abordagem do fato, insistindo Francis na revelação de segredos amorosos do presidente, ao contrário de Rangel, pouco interessado no assunto. Paulo Francis, jornalista cujo estilo se pautava pelo modelo da imprensa americana, banalizava a vitória de Mitterrand e despolitizava o evento ao mencionar a existência da amante, interferindo na vida privada do presidente. A ênfase na transparência dos bastidores da vida do homem público se chocava com os princípios da imprensa francesa, dotada sempre de discrição e respeito frente à privacidade de cada um. A minha indignação se explicava por certa rejeição à tendência da mídia em desestabilizar personalidades, valendo-se de detalhes pessoais e pelo endosso de uma ética de fachada. A separação entre a esfera privada e a pública, responsável pela legitimação do exercício da democracia, é um dos lemas da política moderna, instauradora dos padrões republicanos e pautada por práticas de representação e participação. Essa separação inibia julgamentos particularizados sobre a conduta dos governantes, uma vez que cabia à instituição zelar pela moralidade pública. A mídia, ao humanizar a imagem do presidente, o considera como homem comum e o destitui de sua função representativa. Esse gesto de naturalização da figura pública, aproximando-a do ambiente de família, se explica pela atração voyeurista da mídia no seu papel de espectadora do jogo político. Nos últimos anos, os desdobramentos desse processo espetacular da sociedade contemporânea receberam provas de sua eficácia. Um dos pedidos de François Mitterrand, antes de morrer em 1996, foi o de ter nos seus funerais a presença da filha e da amante ao lado da família oficial. A declaração da doença, escondida do público durante sua gestão presidencial, de 1981 a 1995, coincidiu com o reconhecimento público da existência de uma relação extraconjugal. Mas os tempos hoje são outros. Nos Estados Unidos, o escândalo do governo Clinton, no final dos anos de 1990, irá legitimar o poder da mídia – e da internet – como veículos que começam a ocupar o lugar da esfera pública. A invasão da privacidade denuncia a fragilidade do representante do poder público diante de ameaças que ferem a moral e os bons costumes da sociedade. Denunciado por assédio sexual pela estagiária Monica Lewinsky, o presidente por pouco não sofre o impeachment, ao desrespeitar os valores moralistas da sociedade americana. O escândalo político torna-se ainda mais atraente quando se tem como pivô a figura feminina, motivadora de reações preconceituosas por parte da opinião pública.
Em 1997, a morte de Lady Di e do namorado em Paris, exemplo trágico da intromissão da imprensa na vida privada das celebridades, constitui um dos mais emblemáticos casos envolvendo a relação conflituosa entre a criação e a destruição de mitos na atualidade. Com o acidente, inicia-se na imprensa o debate em torno da superexposição da imagem pela mídia, da falta de privacidade e do comportamento esquizofrênico dos meios de comunicação de massa. Lady Di, na condição de princesa pop, atingiu popularidade até então inexistente na coroa inglesa, por ter, entre outros fatores, seguido o modelo da plebeia que se casa com o príncipe. Conhecida como “Rainha dos corações” ou “Rainha do povo”, seu ritual funerário será palco de uma das grandes explosões de emoção popular, não só pela perda causada por uma morte trágica, mas pelo simbolismo que representa na época pós-moderna. A distância entre o povo e a princesa, separação que aumentava seu poder e sedução, se desfaz durante o rito funerário pela conjunção imaginária entre a multidão e o corpo em exposição. A estrutura ambígua do espetáculo permite, por momentos, que a manifestação pública predomine sobre a privada, em que se mesclam sentimentos os mais variados. O mercado de notícias sensacionalistas no mundo globalizado opera, portanto, a diluição gradativa das esferas pública e privada, graças ao enfraquecimento dos valores que definiriam os seus componentes. A sociedade do espetáculo, polêmico livro de Guy Debord, lançado em 1967 na França, consistiria num manifesto convertido em profecia para o tempo presente. Denuncia o império capitalista da mercadoria, a vida como representação e a afirmação da realidade sob a forma de imagens: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.”1 Intolerante diante da sociedade de consumo, condena ainda a ação destruidora do tempo espetacular, ao se revelar como devorador de imagens e do próprio tempo. Na condição de consumidor de ilusões, o sujeito se priva de sua liberdade e se entrega à fruição de uma cultura que se banaliza e se proletariza. O suicídio de Debord, em 1994, é significativo para se avaliar o grau de intransigência manifestado contra essa sociedade, que a cada dia se mostrava de modo artificial, desumano e ilusório. Ao cometer suicídio, converte-se ironicamente em autor de uma cena espetacular na qual irá expor o que de mais íntimo e solitário guarda o ser humano, o momento da morte. Esvaziado pelo excesso de representação e envolto na dimensão obscena das imagens, torna-se vítima da sociedade que tanto criticou. O legado de Debord tem rendido bom número de adeptos entre os que respondem pelo saber iluminista e por uma posição cultural elitista, norteados pela clássica divisão entre público/privado, racionalidade/subjetividade, coletivo/particular. Dentre os argumentos favoráveis ao corte com esse raciocínio binário estão a contínua flexibilização das condutas, o enfraquecimento do Estado moderno, assim como as marcantes transformações culturais e políticas dos últimos vinte anos. A flexibilização dos pares opositivos não implica sua extinção, mas a relativização de princípios rígidos
responsáveis pela afirmação da autonomia de cada polo. A mudança de eixo interpretativo se deve à intenção de contextualizar posições teóricas modernas, pautadas pela dicotomia entre as esferas pública e privada, com vistas a abrir o debate para a contemporaneidade. Nesses termos, a condenação da sociedade do espetáculo por Debord não deverá ser avaliada, no presente, com base em critérios da época, em virtude da natureza híbrida das diversas instâncias formadoras das referidas esferas.
Autobiografias em rede É em torno da produção de novas subjetividades que a discussão sobre a sociedade do espetáculo consegue avançar, por se apresentar de modo positivo. O gênero autobiográfico, em larga expansão nas diversas áreas do conhecimento, se impõe de modo exemplar para se refletir sobre as subjetividades contemporâneas e a relação que aí se estabelece entre os domínios do público e do privado. No entender da socióloga argentina Leonor Arfuch, em O espaço biográfico, a configuração atual das noções de espaço público e privado se apresentam sem limites rígidos ou incumbências específicas, por se submeterem a um constante processo de experimentação. Ao discorrer sobre as subjetividades contemporâneas a partir de relatos autobiográficos, refuta a posição radical e pessimista quanto à invasão de uma esfera por outra, ponderando sobre o trânsito frequente entre elas. As diversas modalidades de atualização das narrativas autobiográficas, longe de se constituírem como exacerbação de individualidades ou narcisismo excessivo, exercitam o direito à expressão de vozes anteriormente excluídas dos discursos hegemônicos. Mais perto de Elias do que das partições dicotômicas, poderíamos dizer que ambos os espaços – se conservamos uma distinção operativa – se entrecruzam sem cessar, numa e noutra direção: não só o íntimo/privado sairia de seu caminho invadindo territórios alheios, mas também o público (em seus velhos e novos sentidos, o político, o social o de uso, interesse bem comum etc.) não alcançaria o tempo todo o estatuto da visibilidade; antes, e como se assinalou reiteradamente, poderia recuar, de maneira insondável, sob a mesma luz da superexposição. Essa dinâmica, que às vezes se transforma numa dialética, conspira contra todo conteúdo “próprio” e designado. Os temas – e seus formatos – seriam então públicos ou privados, segundo as circunstâncias e os modos de sua construção.2
O mesmo se verifica com o espaço da mídia, pois, antes de ser alvo de crítica, deverá passar por outras instâncias de definição e avaliação, de revisão de seus critérios estéticos e éticos como decorrência do enfraquecimento da oposição entre as esferas privada e pública. Os exemplos do discurso autobiográfico e de reflexões teóricas sobre a sociedade contemporânea serão retirados de alguns artigos e livros publicados na França em 2004, com o objetivo de dialogar com distintas posições e melhor definir os novos espaços comunicativos. Na sociedade francesa atual persiste o mesmo mal-estar diante do excesso de exposição de escritores, celebridades ou pessoas comuns no meio literário, social e midiático. Se a febre biográfica atingiu vários setores da vida cultural, são evidentes as causas de sua expansão pelos discursos das minorias, redefinidores de identidades e de lugares políticos. As reivindicações não se limitavam a substituir o emprego de pronomes pessoais, a terceira pela primeira pessoa, mas em deslocar o papel dos mediadores culturais, porta-vozes do outro. O relato autobiográfico, nas suas distintas atualizações, ressurge como revelador de individualidades criadoras, de senhas que ultrapassam interesses locais para se integrarem às redes transnacionais de comunicação. Como exemplo dessa prática,
verifica-se a passagem da escrita do diário íntimo entre adolescentes para o exercício dos blogs e de webcams na tela do computador, comprovando-se a retomada do discurso autobiográfico sob forma coletiva. “Le grand déballage” [“A grande exposição”] é o título da reportagem publicada na revista francesa Le Nouvel Observateur, em abril de 2004, versando sobre a confissão deliberada dos segredos íntimos como assunto preferido da época. No entender dos autores da reportagem, o hábito de compartilhar segredos estaria se tornando um dos últimos projetos coletivos da sociedade contemporânea, presente na produção de livros de memórias, autobiografias, autoficções e nos programas de televisão. Entrevistas feitas com escritores, celebridades e animadores de debates televisivos demonstram ser a exposição da vida privada o meio de afirmação do sujeito pelo olhar do outro. A confissão tornada pública atua de forma ambígua, tanto como gesto possível de realização pessoal quanto na forma de recalque de situações de extrema solidão. Buscase no outro a identificação que lhe dá direito de pertencer a um grupo ou a uma tribo. Michel Maffesoli, um dos teóricos citados, reitera a tendência atual do procedimento autobiográfico diferente do simples narcisismo, ao defini-lo como narcisismo de grupo. A passagem da atitude narcisista em direção à identificação tribal e comunitária implica mudanças quanto à abordagem de questões identitárias, considerando-se que a televisão e a internet são, no momento, os meios de produção de novas e heterogêneas subjetividades. O avanço da sociedade do espetáculo e da cultura de massa possibilitou o reconhecimento de diferentes modelos de valorização estética, da inserção do cotidiano como sendo o pequeno mundo íntimo das pessoas comuns. Trata-se de experiências da comunidade multicultural que se forma atualmente diante das telas do computador ou da TV. O fenômeno kitsch – expressão perfeita da cultura contemporânea – se impõe pela falta de autenticidade dos objetos e pela diluição dos valores centralizados num estilo único, universal e hegemônico. Nada mais indicado para se entender a distância que se verifica entre o culto, no passado, da posse de objetos originais com marca registrada, e a fábrica do falso reinante, hoje, em quase todas as expressões culturais e nos objetos de consumo. A publicação do pequeno e simpático livro de Anne Cauquelin, L’exposition de soi – du journal intime aux webcams, faz a revisão dos conceitos de subjetividade e de realidade a partir da prática de comunicação atual, efetuada pelos blogs e webcams. Segundo a autora, a realidade está sempre colocada em xeque diante da proliferação do aparato de imagens produtoras de simulações, do virtual ou da criação de clones, invadindo o vocabulário cotidiano de termos como tempo real, tele-realidade, reality shows. O destino reservado ao mundo das imagens, após ter inserido no cotidiano das pessoas altas doses de vivência virtual, é o de tentar proceder à reversão da realidade, encenando a perda e se projetando subjetivamente pelo olhar do outro. A saída desse universo fechado da incomunicabilidade e da solidão se dá por procedimentos que guardam analogias com a arte do espetáculo: existir é ser percebido. A formação desse
diário íntimo coletivo na internet se caracteriza pela vivência simultânea do tempo, por ações interativas que atualizam o tempo real. Dessa experiência, o que se ressalta como fator positivo para o conhecimento de outras realidades é a valorização do banal, da vida comum, tornada reality show pela sua associação à estética pobre da arte contemporânea. O fato de os cibercamistas colocarem câmeras em diferentes lugares dos apartamentos serve para captar a imagem de não lugares considerados banais, repetitivos e sem interesse. Assim, “os ritos diários são acompanhados de minigestos: tomar um sorvete, acender uma lâmpada, se olhar no espelho do banheiro”.3 Os relatos de ficção autobiográfica – batizados, em 1977, por Serge Doubrovsky de autoficções4 – têm se proliferado na França desde Simone de Beauvoir, com Les mandarins, na década de 1950, a Julia Kristeva, nos anos 1980, com Les samouraïs, romances bem-comportados sobre períodos distintos da vida intelectual parisiense. Mas a geração formada por filhos de escritores e celebridades irá escandalizar, nas décadas seguintes, os frequentadores de Saint-Germain-de-Près, pela ousadia com que narram os relacionamentos familiares e amorosos. O livro de estreia de Justine Lévy – filha do filósofo Bernard Henri-Lévy –, Le rendez-vous, assim como o mais recente, Rien de grave, se transformaram em best-sellers, pela ousadia em dramatizar, de forma crua, cenas privadas envolvendo personagens entre a realidade e a ficção.
Estéticas do efêmero A publicação de um bom número de ensaios sobre cultura contemporânea tem suscitado discussões, não só no meio intelectual francês como em outras partes do mundo. Dentre os mais recentes, vale mencionar o do etnólogo Marc Augé, intitulado Pour quoi vivons-nous?, o do sociólogo Gilles Lipovetsky, Les temps hypermodernes e Esthétique de l’éphémère, da crítica de arte Christine Buci-Glucksmann. Pela atenção dedicada ao domínio da imagem, à precariedade dos valores, ao individualismo e às questões envolvendo noções de tempo e espaço, esses livros mantêm diálogo indireto com A sociedade do espetáculo, de Debord, sem contudo se vincularem a preceitos racionalistas e socialistas ou à condenação radical dessa sociedade. É de interesse teórico citá-los por dialogarem com as novas e múltiplas formações de relatos autobiográficos na cultura contemporânea, ressaltando o enfraquecimento atual das instituições, a metamorfose da ética e a espetacularização de sentimentos. O conceito de hipermoderno – que, a meu ver, pouco se distingue do pós-moderno – representaria a segunda revolução moderna, graças à dimensão hiperbólica alcançada pelas transformações culturais. Ao momento eufórico do pós-moderno segue-se sua exaustão, obtida pela excessiva reconfiguração de seus princípios, principalmente quanto à transformação hiperindividualista do sujeito. Em decorrência da falta de proteção coletiva e do esgotamento das instituições, vive-se entregue a si próprio, se autoinventando e procurando saídas no interior de espaços privados e solitários. A falta de comunicação na sociedade hipermoderna conduz, no entender de Lipovetsky, ao isolamento, gerado pela troca de hábitos e comportamentos. A domesticação da vida pública se efetua pelo exercício virtual e interativo da comunicação eletrônica, capaz de diminuir espaços e converter a dimensão temporal em recepção simultânea do real. Um dos principais itens de sua crítica à hipermodernidade consiste na denúncia da noção de cultura que se confunde com o consumo, gerando a desestabilização e o barateamento dos valores. A obra de Lipovetsky, embora forneça contribuição válida para o avanço das questões contemporâneas, revela-se, contudo, limitada em vários pontos de sua exposição. Mas a ausência de conotação apocalíptica consegue sustentar um pensamento que se interessa pela busca de justificativas possíveis para o entendimento do momento presente.5 Em Pour quoi vivons-nous? Marc Augé amplia o conceito de “não lugar” elaborado em Não lugares – introdução a uma antropologia da supermodernidade. Ao defini-lo como espaço de circulação (aeroportos, supermercados, tela de televisão), o “não lugar” refere-se também ao espaço do debate público – “lugar metafórico onde se forma a opinião pública”. O polo oposto ao conceito de “não lugar” não se define como o conceito de “lugar”, ou o espaço privado, à medida que essas instâncias se cruzam e se relativizam, de modo semelhante à articulação flexível das esferas pública e privada. Nas palavras do autor, o que se processa atualmente é o deslocamento generalizado
desses espaços, resultando em distorções e na mudança do próprio sentido do adjetivo “público”. A fraca oposição entre lugar e não lugar permite compreender o deslocamento da fronteira entre público e privado, chegando até a sua diluição, considerando que o espaço público transformou-se em espaço de consumo.6 A reflexão de Marc Augé se concentra na articulação e redefinição dos espaços urbanos, lidos de modo literal e metafórico. Na discussão em pauta sobre os espaços autobiográficos na literatura e na mídia, deverá ser levada em conta a construção em processo da opinião pública. O livro de Buci-Glucksmann, Esthétique de l’éphémère, resolve o impasse existencial frente às questões da época globalizada utilizando-se da arte como discurso que exibe o sintoma de um tempo passageiro e precário. Mas é a partir do salto da estética para uma reflexão ética e política da existência que se configura o efêmero, isolando o modelo pessimista e enlutado da modernidade e atuando como saída positiva para o tempo presente. A precariedade e desconforto do homem moderno traduzem as inquietações ligadas a problemas de natureza identitária, surgidos pela convivência do eu com o estranho outro. O tempo, analisado enquanto categoria frágil e nômade, capaz de modificar a relação do sujeito com o mundo, pelo engendramento de uma estética dos fluidos, modifica as condições de construção de imagens, de paisagens e dos ambientes urbanos. A explicação para o sentido da existência suscita, portanto, novas formas de subjetivação, conforme lição de Michel Foucault, com vistas a construir uma “hermenêutica do sujeito”, referente ao cuidado de si e do outro. Christine Buci-Glucksmann, na distinção entre duas categorias do efêmero, o “melancólico” e o “cósmico”, sintetiza o trajeto da modernidade para a pósmodernidade, sem que a passagem se traduza em perda ou luto. O “efêmero melancólico”, marcado pelo spleen baudelairiano, pela alegorização do eu e pela alienação de si, diferencia-se do “efêmero cósmico” dos tempos atuais, por transformar o peso existencial e plástico em leveza positiva e em energia vital, categoria estética legada por Nietzsche ao século 20.7 A lição que daí se retira permite chegar ao conceito de efêmero cultural, contemplado nas suas fragilidades e esquecimentos, espécie de desordem produtiva que movimenta o imaginário de uma época. Não é de se estranhar que a comunidade intelectual francesa, reconhecida pelo recato e respeito pela vida privada de seus membros, reaja de forma hostil à avalanche de discursos da intimidade, veiculados principalmente pelos livros de memórias, pelos programas da mídia televisiva e pelos relatos autoficcionais. Esse ambiente cultural não se mostra exclusivo dos países considerados desenvolvidos, mas se encontra disseminado na maior parte das regiões letradas do mundo. Os vários tipos de reação à cultura do espetáculo omitem as reais intenções aí subjacentes, por se tratar da defesa de uma sociedade que deveria se pautar pelo comportamento opaco e distanciado quanto às expressões exteriorizadas de sua intimidade. A transparência operada pela cultura moderna – amante dos vidros, dos espelhos, da indistinção entre exterior e
interior, do precário, do perecível e da pobreza da experiência – assiste ao declínio do valor absoluto dos objetos e à banalização do conceito de gosto. Para a maioria letrada, essa situação é insuportável, por abalar orientações estéticas unificadoras e universalistas, além de retirar dos objetos contemporâneos traços de profundidade e perenidade. A sociedade do espetáculo não deveria ser entendida apenas como a sociedade das aparências manipulada pelo discurso do poder, mas como aquela em que a realidade se constitui nas suas formas mais brandas e fluidas. (Artigo publicado no número 5 da Revista Margens/Márgenes, Belo Horizonte, UFMG, p. 92-101, 2004.)
Bibliografia ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico – dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010. AUGÉ, Marc. Não lugares – introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução de Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus, 1992. AUGÉ, Marc. Pour quoi vivons-nous? Paris: Fayard, 2003. BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Esthétique de l’éphémère. Paris: Galilée, 2003. CAUQUELIN, Anne. L’exposition de soi – du journal intime aux webcams. Paris: Editions Eshel, 2003. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1980. LIPOVETSKY, Gilles. Les temps hypermodernes. Paris: Grasset, 2004.
A biografia: um bem de arquivo A pesquisa em arquivos é uma atividade que não atrai a maior parte dos estudiosos do texto literário, por se confundir, muitas vezes, com uma atitude conservadora e retrógrada frente à literatura. Teorias críticas dos últimos anos contribuíram para o gradativo apagamento do interesse pelo exame das fontes primárias, ao ser valorizado o texto na sua integridade estética, sem o interesse pelos bastidores da criação. A recusa em se deter no processo construtivo como resultado do trabalho do autor se justifica por ele ter sido entidade incômoda para a crítica, que pouca importância conferia ao contexto histórico das obras. É significativa esta retomada crítica da figura do autor, seu retorno por meio de traços e resíduos, da assinatura, abolindo-se o procedimento de recalque como produto do pacto ficcional com a escrita, inscrita de modo asséptico e distanciado. Na história da crítica ocidental, a atitude mais comum da crítica se concentrava na censura da presença do escritor na cena literária, impondo-se a linguagem como absoluta e eliminando-se a assinatura segundo padrões de objetividade. Com a doação de seus manuscritos à Biblioteca Nacional da França, em 1971, Miguel Ángel Asturias preparou o espírito de seus futuros pesquisadores, incentivando-os a preservar não apenas as obras publicadas, mas também os rascunhos e variantes que acompanham o material de trabalho dos escritores. Esse gesto motivou a criação da Coleção Archivos, cujo objetivo maior é a preservação do acervo dos escritores para que sirva de fonte documental para o aprimoramento das edições comentadas e críticas. O destino material e analítico desse acervo literário passou a ser uma das maiores metas da crítica filológica e genética, no sentido de se considerar a obra não mais como objeto fechado e acabado, mas sujeita a modificações e transformações interpretativas. Se o trabalho de recuperação do texto original exige do pesquisador exame exaustivo das diferentes edições e mudanças processadas pelo autor ou causadas pelos erros de edição, a crítica genética revela o lado inconcluso e incompleto da criação, permitindo que a abordagem dos documentos não mais se restrinja ao texto publicado e ao seu estatuto de objeto intocável e inerte. A obra submetida à edição crítica recebe tratamento editorial capaz de lhe conceder dignidade, ao introduzir metodologias de trabalho centradas nas fontes primárias, procedimento analítico em estágio de desenvolvimento e amadurecimento entre pesquisadores do manuscrito literário. Trata-se de uma das aspirações pós-modernas de recuperação da memória literária, pelo abandono do projeto totalizante e unificador da modernidade para se fixar nas diferenças que delineiam o fragmentado e vigoroso arquivo cultural da atualidade. A prática analítica voltada para as fontes primárias não irá revelar um olhar conservador sobre a escrita literária, mas a sua revitalização: o “manuscrito será o
futuro do texto”, assim se expressa Jean-Louis Lebrave, um dos notáveis representantes da crítica textual e genética francesas. Enquanto os manuscritos estiverem sendo guardados com vistas a um procedimento analítico, reinstaura-se ainda um pouco da gênese literária. Segundo Louis Hay, autor de uma das mais claras reflexões sobre a questão, o manuscrito é de uma extraordinária diversidade, e pertence a todas as etapas e a todos os estados do trabalho, dossiês, esboços, planos, rascunhos. Mas, desde que o pensamento ou a imaginação os tocaram, todos, do documento inerte – até a página inspirada –, encontram-se dotados de vida e convocados a desempenhar seu papel num projeto de escritura.1
É forçoso lembrar que esta prática de lidar com os manuscritos começa a perder sua utilidade e prestígio nos tempos atuais, pela ação dos novos instrumentos da escrita como o computador, substituto da máquina de escrever, mas dotado de potencialidades muito mais destrutivas frente ao arquivo pessoal do escritor. Os rascunhos desaparecem ao serem apagados pela eficiência de uma tecla que deleta o que se apresenta como excessivo ou descartável para a finalização da obra. No entanto, outros procedimentos começam a surgir, com vistas a recuperar o rascunho – ainda que digitado – das obras, o que está, curiosamente, provocando o excesso de arquivos desta natureza, além de outros relacionados à memória digital.2 É digno de nota o rico material existente nos acervos dos escritores, como a correspondência entre colegas, depoimentos, iconografias, entrevistas, documentos de natureza privada, assim como a sua biblioteca, cultivada durante anos. Um esboço de biografia intelectual emana desses papéis ao serem incorporados, ao texto em processo, a cronologia dos autores, o encarte de fotos, a reprodução de documentos relativos à sua experiência literária, assim como a revisão da bibliografia sobre os titulares das coleções. As pesquisas respondem por sua originalidade, uma vez que o objeto de estudo é construído no decorrer do arranjo dos arquivos, da surpresa vivenciada a cada passo do trabalho. A elaboração de perfis biográficos deve contemplar não só o que se refere à obra publicada do autor, mas também os objetos pessoais, imprescindíveis para a recomposição de ambientes de trabalho, de hábitos cotidianos e processos particulares de escrita. Objetos muitas vezes triviais, mas pertencentes ao cotidiano de todo escritor, adquirem vida própria ao serem incorporados à sua biografia: mesa de trabalho, máquina de escrever, canetas, agendas, porta-retratos, objetos decorativos, cadernos de anotações, papéis soltos, recibos de compra, diários de viagem e assim por diante. As condecorações e diplomas servem ainda de registro quanto à participação do titular na vida pública. Não devem, portanto, ser negligenciados como objetos desprovidos de valor. Compõem, com as obras de arte ou as edições de luxo, espaço de trabalho e de intimidade do escritor. Os bastidores da criação, as experiências vividas pelos autores – ligadas à produção literária e existencial – constituem lugares pouco conhecidos pela crítica. A intenção de reunir crítica biográfica e crítica genética permite expandir o registro documental dos
autores como tentativa de recuperar estágios pré-textuais e estágios previvenciais. A página de rascunho, metaforicamente considerada o jardim íntimo do escritor, revela o que o texto definitivo não consegue transmitir: a imaginação sem limites, os recuos da escrita, os borrões, o espaço no qual a face escondida da criação deixa transparecer o fulgor e a paixão da obra em processo. Página branca, marcada de signos negros, tornase a imagem do espelho que refletiria as relações pessoais do escritor com o texto, onde se supõe ser tudo permitido. Pela liberdade de rasurar, de escrever entre as linhas, de acrescentar aos originais margens desordenadas e rebeldes, este laboratório experimental desempenha papel importante na história da literatura moderna. O entusiasmo pelo processo da escrita e o interesse pela gênese dos textos ultrapassam a curiosidade do crítico em penetrar nos bastidores da criação e atingem dimensões próprias ao exercício literário e biográfico.3 Seguindo parâmetros referentes à crítica biográfica,4 é necessário distinguir e condensar os polos da arte e da vida, através da utilização de um raciocínio substitutivo e metafórico, com vistas a não naturalizar e a reduzir os acontecimentos vivenciados pelo escritor. A preservação da liberdade poética da obra na reconstrução de perfis biográficos consiste no procedimento de mão dupla, ou seja, reunir o material poético ao biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato literário. Ainda que determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado pelo autor, é preciso distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades atribuídas ao acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada pela ficção. O nome próprio de uma personagem, mesmo que se refira a pessoas conhecidas do escritor, nada impede que sua encenação embaralhe as referências e coloque a verdade biográfica em suspenso. A crítica genética, responsável pelo trabalho em torno da gênese da escrita, contribui ainda para seu aparato biográfico, considerando a importância de se processar o cotejo entre manuscrito e texto, assim como entre a trajetória literária do escritor e a relação com o lugar escolhido para exercer seu ofício, seja no próprio escritório, nos deslocamentos e viagens, seja no ambiente boêmio dos bares e dos cafés. Nesse particular, é possível reconstituir o espaço de escrita dos autores, pela transformação de sua casa ou de seu acervo em museu ou fundação. Essa solução museográfica confere ao titular a oportunidade de se tornar conhecido no seu cotidiano de escritor e de homem comum pelos leitores do futuro, ao lado da sua obra. Alguns escritores se preocupam em legar à posteridade um pouco do que ficou desse ambiente, ainda que sob a forma textual, como é o caso de Pedro Nava, ao descrever seu apartamento no bairro da Glória, no Rio, em Galo-das-trevas. O interior burguês é ornamentado de peças reveladoras da “adesão dos mortos aos objetos”, a lembrança dos amigos que se foram, personificada nos retratos, numa cadeira, num encosto de poltrona, numa carta. Os objetos são dotados de memória e de forte marca do passado. O museu imaginário contém, em miniatura, a lembrança dos parentes, pequenos objetos mágicos que se configuram
como ruínas do passado.5 Em outros escritores, o recurso metalinguístico de descrição do ambiente de trabalho funciona também como exposição de uma poética particular. Destinado ao futuro, ao devir de uma leitura, ou à desmitificação do lugar sagrado conferido a esta atividade, o livro de Georges Perec, Penser/classer, ilustra diferente perspectiva estética. De forma distinta da poética de Nava, o escritor francês, por meio de uma narrativa/descrição distanciada e minimalista do ambiente de trabalho, desconstrói qualquer tipo de ligação com a tradição e o passado. Enumerando os instrumentos de escrita, os empilhando sobre a mesa e misturando objetos com diferente função, Perec desconfia da hermenêutica crítica, representada pelo leitor ávido em descobrir o sentido oculto dos textos ou em decifrar enigmas literários: Antes, eu não tinha mesa de trabalho, quero dizer, não havia uma mesa expressamente para isso. Hoje, me ocorre, ainda com bastante frequência, de trabalhar num café; mas, na minha casa, é raríssimo que trabalhe (escreva) em outro lugar que não seja minha mesa de trabalho (por exemplo, não escrevo por assim dizer jamais na cama) e minha mesa de trabalho serve apenas para meu trabalho (ainda uma vez, escrevendo essas palavras revela-se precisamente que isso não é totalmente exato: duas ou três vezes por ano, quando faço festas, minha mesa de trabalho, inteiramente desocupada, recoberta de toalhas de mesa de papel – como a prancha sobre a qual se empilham meus dicionários –, torna-se buffet).6
Colecionar/Pensar O livro exige vizinhança e complemento, necessita do contexto de outros livros, àqueles aos quais remete. A biblioteca facilita a transtextualidade concreta, física, o descobrimento e a produção de referências entre as peças individuais da coleção. Já que se repete o processo de formar parte de um todo dentro das capas de um só livro, este contém em si uma biblioteca em miniatura.7
O comportamento do crítico que se interessa pelos manuscritos e bibliotecas autorais se pauta ainda pela lição de Walter Benjamin, autêntico e apaixonado colecionador de livros. Rodeado de mil tomos, de variada literatura, afirmava que o bibliófilo, ao adquirir um livro velho, assumia o poder de lhe dar nova vida. Na sua obra, Benjamin repete o processo revitalizador do bibliófilo, transformando-se em colecionador de citações, arrancando os fragmentos de seu contexto e os organizando numa forma nova, sempre arbitrária e nunca definitiva. Lê e coleciona, desloca a tradição, por um processo simultâneo de conservação e destruição. Amplia este raciocínio para o ambiente privado do burguês, o qual se afasta do espaço público e transforma sua casa – o espaço privado e afetivo – em santuário, lugar propício à criação da privacidade. A biblioteca atua como materialização dessa privacidade, por se erigir como lugar de encontro do colecionador com seu universo de lembranças e de objetos auráticos, sejam eles de qual natureza for: Não há nenhuma biblioteca viva que não abrigue, em forma de livro, um número de criaturas das regiões fronteiriças. Não precisam ser álbuns de colar ou de família, nem cadernos de autógrafos ou textos religiosos: muitas pessoas se afeiçoam a folhetos e prospectos, outras a fac-símiles de manuscritos ou cópias datilografadas de livros impossíveis de achar; e, com certeza, revistas podem compor as orlas prismáticas de uma biblioteca.8
No Arquivo Henriqueta Lisboa, entre documentos de outros escritores, encontra-se uma cópia do Diário de guerra, de Guimarães Rosa, período em que serviu como cônsuladjunto no Consulado Brasileiro em Hamburgo, de 1938 a 1942.9 O documento é de rara importância para o esclarecimento das relações políticas existentes entre o Brasil e a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, além de revelar uma escrita em processo do escritor, entre silêncios e rasuras referentes ao período conturbado pela perseguição nazista aos judeus. Sem menção direta à ajuda prestada por Rosa e sua companheira de trabalho e futura mulher, Aracy Moebius de Carvalho, à causa judaica, o Diário denuncia a ascensão do regime totalitário e excludente representado pelo nazismo. O texto registra a passagem por Hamburgo do então aspirante a escritor, anotando, desenhando, colando e copiando notícias sobre a situação de uma cidade às vésperas da guerra, assim como outros informes de seu cotidiano: alarmes constantes de bombas; impressões pessoais sobre leituras; registro de saídas e visitas aos amigos; recortes, em alemão, de fatos sobre a guerra; anotações para futuros textos literários; desenhos de lugares e de pessoas; anedotas, listas em alemão de nomes da flora e de espécies de temperos; referências sobre a revisão dos contos de Sagarana, ainda inédito. O Diário se assemelha, portanto, a uma caderneta de notas, pelo seu caráter híbrido, entre o
documento e o exercício da escrita subjetiva, prática que acompanhará Rosa nas viagens ao exterior e nas andanças pelo sertão, sempre à cata de material para a narrativa fabulosa que estava compondo. Em 1934, Guimarães Rosa ingressa na carreira diplomática, deixa a medicina e tornase, nas décadas seguintes, um dos maiores escritores da literatura brasileira. Publica, em 1946, o primeiro livro de contos, Sagarana, e, em 1956, Grande sertão: veredas e Noites do sertão. Em plena fase de uma modernidade reciclada pelo projeto industrial de modernização do Brasil, o escritor mineiro volta-se para a tradição, apropriando-se da matéria regional como pano de fundo à experimentação de linguagem. Reúne procedimentos revolucionários na literatura, com temas considerados arcaicos, e rompe com a tendência hegemônica reinante nas manifestações modernas, voltada para o nacionalismo, ao se abrir para a proposta universalista. O arquivista Guimarães Rosa, na prática cotidiana da escrita, é assim descrito por Walnice Nogueira Galvão: Um olhar sobre a natureza de operar do nosso escritor é facultado pela frequentação do Arquivo Guimarães Rosa, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. (…) Há ali abundância de materiais, tais como correspondência ativa e passiva, ainda inédita, recortes, cardápios, fotos e postais, diplomas e certificados, documentos, papéis relativos à carreira profissional, mementos de todo tipo. Mas sobressai uma notável coleção de 7 cadernetas e 25 cadernos, que serviram a diferentes propósitos. Podem conter impressões de boiadeiro, da ocasião em que o escritor tangeu boiadas pelo sertão mineiro, em configuração que se tornou legendária; necessitando das mãos livres para subjugar a montaria, levava o caderno atado ao pescoço por um barbante.10
Na escrita do Diário de guerra, o leitor se depara com os bastidores da criação, com as experiências do escritor frente à sua produção literária e existencial, lugares pouco explorados pela crítica. Na intenção de reunir crítica biográfica e crítica genética, expande-se o registro documental dos arquivos e recuperam-se os estágios pré-textuais como meio eficaz de criação de biografias. A experiência de Rosa durante sua estada em Hamburgo rendeu, além do Diário, quatro contos-crônicas, publicados em periódicos e, mais tarde, reunidos em Ave, palavra, em 1970: “O mau humor de Wotan” (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 fev. 1948); “A senhora dos segredos” (Correio da Manhã, 6 dez. 1952); “Homem, intentada viagem” (O Globo, 18 fev. 1961); “A velha” (O Globo, 3 jun. 1961). Esses textos completam a experiência do escritor vivida no exterior e durante a perseguição judaica pelo nazismo, produzem o efeito biográfico por meio do registro de fatos reais, embora estejam construídos segundo parâmetros ficcionais. A meio caminho da crônica e do conto, as histórias revestem-se tanto do aparato documental quanto fictício, o que permite reconhecer a ambiguidade de sua concepção e de seu resultado textual. Sem descartar dados de ordem política que atenuem a imagem de conservador e apolítico imputada a Guimarães Rosa – nas anotações do Diário de guerra refere-se constantemente à discriminação judaica –, a criação do perfil biográfico do escritor
relativo a essa época remete obrigatoriamente à relação entre a escrita diplomática, o exercício autobiográfico do Diário de guerra e suas recriações literárias. Lidar com a história pessoal ou coletiva significa alçá-la à categoria de um texto que ultrapassa e metaforiza os acontecimentos, sem recalcar o valor documental e o estatuto da experiência que aí se inscrevem. O procedimento criativo se sustenta por meio do ritmo ambivalente produzido pela proximidade e pela distância em relação ao fato. O escritor procede, por exemplo, à colagem de anúncios fúnebres publicados em jornal de alemães mortos em sacrifício pela pátria ao lado de informação pessoal sobre a venda de seu carro. No mesmo espaço da página, o arquivista torna o estranho familiar – o anúncio fúnebre – e contrasta seu sentimento de propriedade – a venda do carro – com o sacrifício dos alemães pela causa patriótica. O processo de montagem resulta na simultaneidade dos discursos heterogêneos e sua consequente uniformidade e contraste. O sentimento de propriedade do regime capitalista e burguês se expõe de forma individualista diante da iminência de mortes coletivas causadas pela guerra: 21.XI.1940 – Vendi o automóvel hoje. Lá se foi o meu HH 727, por 2.535 Reichsmark. Que venham outros, mais tarde! 20.XI.1940 Foi vítima de um ataque de aviões britânicos a um bairro residencial de Hamburgo a companheira Elfriede Festersen [17 anos] Ela também morreu pela Alemanha! NSDAP Distrito Hamburgo 1 Rümker, p/chefe de distrito11
Por se tratar de um texto fragmentado e lacunar, como é a estrutura do diário, cresce, contudo, sua importância como documento do escritor/diplomata que vivenciou um período marcado por grandes conflitos internacionais. A prática do arquivista se manifesta no contato real com a cultura europeia, ameaçada pela barbárie da guerra e da distorção dos princípios de cidadania e liberdade. O avanço tecnológico resultante da modernização se desviava para o aprimoramento dos instrumentos bélicos, para a exclusão étnica e para o extermínio das cidades. Como reagiria o Guimarães Rosa poliglota, recém-chegado ao continente para cumprir missão diplomática, com os originais de Sagarana na mala e ainda interessado em aprimorar seu espírito cosmopolita? Como conciliar os alarmes de bomba, as notícias transmitidas pelo rádio sobre ataques aéreos e mortes, com o trabalho no Consulado, com a revisão dos contos, com a curiosidade do escritor por tudo que se referia à língua e à cultura alemã, e por extensão, à europeia? O pacto de Rosa com a linguagem se pontua nesse intervalo, na pausa entre textos e vivências construídas em contraponto, em que o diplomata divide com o escritor a missão de desconfiar do apelo da racionalidade moderna, contaminada pela destruição e ruína dos valores. Silenciar este texto e censurar o diálogo futuro com os leitores
concede ao Diário de guerra o destino de textos relegados ao esquecimento e convertidos em falsa mitologia. (Artigo publicado na Revista Alea – Estudos Neolatinos, v. 10, p. 121-129, 2008.)
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Biografar é metaforizar o real A análise do documentário de João Moreira Salles, Santiago, de 2007, tem o objetivo de discutir a construção de relatos biográficos sobre personagens que exercem a memória e a escrita como forma de sobrevivência, além de ser o protagonista um mordomo, por ocupar um lugar socialmente inferior no meio de uma sociedade burguesa. O diretor do documentário, ao pretender registrar a experiência de vida dessa personagem que serviu à sua família durante 30 anos, realiza uma obra que o coloca também como um dos protagonistas do filme. Falar do outro, resgatar sua memória, não seria ainda distinta maneira de narrar a si próprio? O documentário Santiago se inscreve na linha tênue entre realidade e ficção, entre autobiografia e autoficção, ao se considerar o grau de tradução de uma vida em obra de arte. Alçado à categoria de personagem, este nobre mordomo representa a contingência de uma vida que se pautou pela mediação da arte e da literatura, cultivando a existência de forma estética e segundo padrões que fugiam do modelo de um simples serviçal de uma casa burguesa. Na leitura realizada por João Moreira Salles, o documentário se vale de procedimentos metalinguísticos que irão reforçar e justificar a proposta de realização de um filme biográfico, no sentido de se desvincular do propósito de desvendamento de segredos, de revelações espetaculares, condizente com o espírito da escrita e da mídia jornalística. O apelo metafórico reside na apropriação da história de vida do mordomo com vistas a desconstruir relações causais e estereotipadas entre diretor e personagem, arte e referente, patrão e empregado. Metaforizar o real significa considerar tanto os fatos quanto as ações praticadas pela pessoa biografada como possibilidade de inserção na esfera ficcional. Ao espectador o direito de construir também sua história e interpretação do enredo, além de usufruir das maravilhosas cenas protagonizadas por Santiago.
Santiago1 Santiago é um homem que fantasiou sua vida inteira – à sombra dos lustres e arranjos florais de uma aristocracia (ou altíssima burguesia) à qual sonhara pertencer. Para Santiago, a “casa da Gávea” era o Palazzo Pitti de Florença. Ele, “senhor dos salões” por 30 anos, simulava seu reino entre acordes de Beethoven, áreas de Puccini e lembranças das cores de Giotto. Sua obra mestra, contudo, o aproximava dos copistas da Idade Média. Por mais de meio século aquele homem solitário e peixotiano frequentou bibliotecas de vários países, muitas vezes durante as viagens com o patrão, Walther Moreira Salles (1912-2001). Ao morrer, deixou para “Joãozinho” um conjunto de 30.000 fichas, enfeixadas em maços com fitas vermelhas, contendo anotações sobre todas as dinastias da nobreza de todas as épocas e regiões do mundo, acrescidas das vidas dos papas, de estrelas de cinema e de tribos indígenas. Uma cornucópia borgiana, que acabou se transformando no grande comentário paralelo do filme.
Carlos Alberto Mattos2
De quais subjetividades esse documentário de João Moreira Salles irá tratar? Como penetrar no universo de Santiago Badariotti Merlo – mordomo de nacionalidade argentina e de ascendência italiana, embora tenha vivido a maior parte de sua vida no Brasil – cuja história se mescla à da infância do cineasta, por ter servido à sua família, durante 30 anos, na casa onde hoje está alocada a sede carioca do Instituto Moreira Salles? Qual o tratamento conferido à montagem desse filme-documentário que coloca frente a frente o antigo patrão e seu empregado, por meio de uma voz em off, na primeira pessoa, que narra os anseios e as falsificações da filmagem realizada em 1992, apenas concluída 13 anos depois? Em entrevista à revista Bravo, o diretor confessa ter realizado o filme para se curar: Fiz Santiago pensando sobretudo em sanar as aflições que me rondavam a alma e que, de certo modo, ainda me atormentam. Trata-se de um filme essencialmente terapêutico. Quando decidi rever o material que rodei em 1992, tinha 43 anos e atravessava uma intensa crise. Estava adquirindo a consciência muito profunda de que as coisas realmente passam e de que não conseguimos recuperá-las.
O teor autobiográfico do documentário enriquece a figura do mordomo, tornando-o protagonista de uma das narrativas cinematográficas mais fascinantes e bem realizadas dos últimos anos. Graças à mescla de fato e ficção, além do procedimento metalinguístico do filme, tem lugar a construção simbiótica de cenas que envolvem a família, o mordomo e o diretor, tendo como cenário a casa da Gávea e o apartamento de Santiago. Uma das funções exercidas pelo procedimento metalinguístico reside no registro das impressões manifestadas pelo diretor durante a retomada do documentário, o que descarta qualquer acusação de poder aí exercido sobre a personagem. Nesse sentido, a figuração dos bastidores, o caráter obsessivo da repetição das cenas, a partir das ordens emitidas por João Moreira Salles na condução dos trabalhos, confirma o clima despojado e experimental do filme. Este se compõe de imagens que metaforizam as tomadas de cena, como o passar do tempo, ilustrado tanto pela recorrência do movimento do elevador do prédio de residência do mordomo quanto pela inserção do vídeo colorido – revelador do momento de descontração da família na piscina e de uma possível evocação de felicidade ligada à infância do cineasta e dos irmãos. Uma das possíveis indagações do espectador a respeito do enredo do filme seria a de tomar conhecimento das histórias vividas na residência burguesa, cujo proprietário acumulou cargos de embaixador, de banqueiro e empresário dos trópicos, protagonizadas pelo mordomo e montadas pelo filho/diretor do documentário. Nada disso acontece. A casa é encenada de modo fantasmagórico, desprovida de traços identitários, pela ausência de móveis e de pessoas, como se estivesse à espera do trabalho de memória a ser efetuado pela lembrança de seus personagens. O que se narra, de forma bastante discreta, é a passagem do tempo, a impossibilidade de
preencher, com imagens, o que as palavras de Santiago dizem e as que são transmitidas pelo narrador, interpretado pela voz do irmão Fernando, e não por João, o autor do roteiro familiar. Portas abertas, cortinas esvoaçantes, folha caindo na piscina vazia, corredores também vazios simbolizam o tempo passado/perdido. O documentário não pretende preencher esse vazio dos salões nem restaurar, de modo falso, a casa moderna/antiga, a família, pela exposição de fotos, vídeos, imagens ou outro tipo de registro. O vazio da memória responde pela crueza do décor do interior da casa e das recordações emitidas pelos discursos do narrador e de Santiago. A amplitude e o silêncio desse espaço contrastam com o apartamento do ex-mordomo, onde são tomadas as cenas, espaço minúsculo que a câmera reproduz em perspectiva, o que permite torná-lo ainda mais reduzido pelo efeito de enquadramento. A técnica cinematográfica utilizada para a entrevista com o mordomo se apropria daquela exercida pelo diretor japonês Yasujiro Ozu, pela ausência de close na reprodução da imagem do protagonista, abolindo-se a utilização de grandes planos. Constata-se apenas o enquadramento de Santiago na altura da câmera, ao ser filmado ora sentado num canto da cozinha, ora na beirada da banheira ou da cama, ora entre duas paredes, o que resulta na ausência de movimentos largos e no aproveitamento do espaço aberto. Retrata uma personagem que se enclausura no interior do apartamento, decorado com reproduções de quadros e cheio de estantes, onde são colocadas as páginas e páginas de textos datilografados e empilhados. Representam o resultado de sua escrita, do exercício lento e obsessivo de quem se dispõe a copiar listas de reis, de chefes indígenas, de artistas de TV, de Hollywood e de aristocratas. Uma das tomadas do filme focaliza Santiago ao fundo, na cozinha, apenas a parte superior do corpo em destaque, tendo como primeiro plano, em vertical, a maçaneta da porta, a chave e, à esquerda, a parte visível do fogão. Sobre ele, panelas dependuradas. À direita da cena, uma máquina de escrever sobre a mesa, uma folha de papel sob os óculos e um porta-lápis. Seria na cozinha o ambiente de trabalho de Santiago, o espaço escolhido para o prazer de sua escrita? Captado pela câmera por meio do enquadramento, Santiago representa, responde às perguntas do diretor, atende às suas ordens, repete o script, quando este não se realiza conforme a vontade do patrão/diretor, reclama, declama em latim orações que decorou na infância e repete frases de várias personalidades, como de cineastas, entre outras. Sua figura atinge incrível plasticidade e um movimento que revitaliza a imagem desse mínimo espaço que lhe é reservado para atuar, o que produz, ao longo do documentário, o crescimento da personagem e seu desligamento do roteiro preestabelecido pelo diretor, além de criar empatia com o espectador. Mas o que escapa a essa ordem do documentário é a criação do pathos, da simpatia e do desvendamento gigantesco e atordoado de uma pessoa que mantém referências com outras personagens da literatura e do próprio cinema.
A movimentação mínima em cena é esteticamente dirigida pela dança das mãos, na verdade um dos mais belos momentos do filme, em que se presencia a sensibilidade artística de Santiago por meio de seu instrumento mais precioso. São essas mãos que exercem a coreografia de uma vida fantasiosa, seja através de sua função de copista das histórias das dinastias e da nobreza do mundo, do manuseio dos arranjos de flores, do cuidado com a casa e sua ordem, seja pela dança em que toca castanholas, ritmo em descompasso com a música que o acompanha (estratégia usada para referir-se ao deslocamento de função e de lugar desse mordomo). Na evocação do narrador se presentifica ainda o ritual assumido por Santiago ao se vestir a rigor (de fraque), quando toca piano numa noite em que os patrões estão ausentes. Ao ser indagado sobre a razão de tal indumentária, justifica-se pela escolha de Beethoven, o compositor a ser interpretado. A falta de audiência (e dos patrões) se preenchia pelo cultivo da música como forma interiorizada de realização pessoal, de satisfação solitária do desejo. Roland Barthes, em entrevista concedida à revista Magazine Littéraire, n. 108, em janeiro de 1976, discorre sobre a prática dos copistas Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, ao considerá-la como pura conservação do gesto manual, sem nenhum sentido, apenas reforçando a inutilidade de se conseguir um saber enciclopédico e sem valor. Segundo Barthes, este gesto representaria o momento histórico de crise da verdade, de crise da modernidade que começava a abrir suas portas. Em Santiago, embora o ato de copiar não se restringisse à mera reprodução flaubertiana, persiste, contudo, o desejo de conservar verdades já inoperantes e desaparecidas, ao lado do fervor de preservar, pelo registro escrito, um mundo em crise, a burguesia em extinção, o tempo dos bailes e recepções que pertenciam, agora, ao tempo passado. O filme expõe o ritual de denúncia dessa situação de decadência, de resto e de fim. É esta a imagem que permanece do apartamento de Santiago, povoado de lembranças e de resíduos de uma época em que, curiosamente, o país vivia um momento de extrema euforia desenvolvimentista. Se na casa da Gávea não se preservaram os vestígios de um interior opulento e nobre, o apartamento do mordomo reproduz, em miniatura, as ruínas que remeteriam para o fim desse tempo. O cuidado em arquivar, pela cópia, a vida e dinastias dos nobres, o desejo de revitalizá-los e torná-los companheiros e amigos, de ficcionalizar sua existência e superar a solidão com a ajuda desse trabalho de criação/cópia de livros escritos em línguas diversas, transformam Santiago em personagem borgiano, em “Funes, o memorioso”. Como Funes, ele não se esquecia de nada, sofria de insônia e no lugar de selecionar, acumulava registros, transformando-se num depósito infinito de objetos, em réplica naturalista do universo. Nesta implacável memória, nada se perde, nada se destrói, em razão de ser ela regida pelo princípio de conservação acumulativa, no qual o ato de pensar não passa de reprodução do percebido. A predileção do escritor argentino por personagens consideradas simples e comuns, como Bouvard e Pécuchet, como Bartleby, o escriturário de Melville, ou pelos criadores de textos, como os copistas das
Mil e uma noites, os tradutores que sempre traíam os textos originais, justifica seu oficio de escritor, assumido como compilador e tradutor de textos alheios. Essa predileção por essas figuras literárias comprova, portanto, o fato de ser Santiago uma das inúmeras personagens de Borges. O arquivo de Santiago assume feição enciclopédica, por ser ele acometido pela febre de tudo registrar, principalmente quando se trata de histórias de reis e de dinastias. À feição dos copistas antigos, faz anotações e acrescenta dados ao texto, tornando-se coautor de uma escrita retirada de livros alheios, além de inserir sua assinatura entre as páginas reproduzidas. O resultado desse trabalho de esteta e de copista carece de objetivo prático, pois na luta para que suas personagens não fossem esquecidas, o escriba torna-se proprietário dos textos utilizados de segunda mão e registra aí sua marca. Essa prática de escrita o impede de ser dominado pela solidão, pela sensação de inutilidade e pela ausência de desejo diante da vida. Por um processo de transferência, vive sempre a experiência do outro, torna-se o guardião da memória da casa, dos nobres, da família Moreira Salles e de si próprio. Como os copistas flaubertianos, Bouvard e Pécuchet, Santiago cultua a repetição na certeza de que tudo já foi dito e escrito, o que resta é inscrever novamente seu nome sobre os de outros escribas. A cópia é a forma de escrita que remete ao palimpsesto, ao texto da vida que se produz por camadas, por remissões, por ecos, por espelhismos. O desejo de alcançar o ideal de nobreza dos patrões, a paixão pelo cinema americano e suas atrizes, contribuíram para que Santiago se transformasse também na réplica de personagens cinematográficas, como o criado, protagonista do filme homônimo de Losey, ou o mordomo de Vestígios do dia, de James Ivory. As diferenças entre eles são, sem dúvida, substanciais, por se tratar de situações sociais distintas de subserviência e de poder. Como esteta, Santiago apreciava sua coleção de madonas, de pratos de porcelana, de estatuetas. O colecionador se conjuga ao espírito enciclopédico, na ânsia de tudo conservar e abarcar. À feição dos hábitos e costumes dos patrões, por meio de um processo de reduplicação, é vítima de espelhismo e de plágio, uma vez que a função do mordomo é a de servir ao outro e de se entregar totalmente ao ofício de cuidar, com elegância e estética, do bom andamento da casa. Os arranjos de flores recebiam formas e sentidos conforme a imaginação de Santiago, o modo de valorizar o que poderia engrandecer e enobrecer o ambiente. Pequenos cuidados que alcançavam significados além de seu valor real, em virtude da imaginação e dos sonhos desse mordomo exemplar. O mea-culpa do diretor se configura em contraponto à fala de Santiago, pela necessidade de se posicionar de forma transparente no documentário, rascunho guardado por muito tempo na gaveta. A decisão pessoal do diretor de registrar seu comportamento na filmagem de 1992 motivou a retomada do documentário. Autoritário, João Moreira Salles mapeia as falas, orienta os gestos da personagem e o impede de confessar verdades íntimas. A confissão fugiria das intenções do script. Na
retomada da filmagem, com Santiago já morto e ausente, o diretor conserva intencionalmente a relação de poder entre ele e a personagem, na qual são problematizados os impasses advindos da diferença social entre eles, por revelar agora muito mais a reflexão sobre os bastidores deste longa, como a relação de poder e o fato de o diretor também aí se colocar como protagonista. Como reflexão final, gostaria de mencionar duas cenas de filmes estrangeiros apresentadas no documentário, cada uma revelando, em particular, o perfil de ambos protagonistas: primeiramente, a cena de Viagem a Tóquio, de Ozu, remetendo à técnica utilizada no filme, pela ausência de close e sem grandes planos. Mas o que se percebe, como uma espécie de mote para a compreensão do documentário, é a pergunta feita por uma das personagens femininas: “a vida é uma decepção?”, e respondida pelo cineasta com um sim e um sorriso, ou na própria interpretação de João Moreira Salles em entrevista: “O júbilo de um sorriso diante do que não se pode evitar.” A segunda referese à dança de Fred Astaire e Cyd Charisse, no filme A roda da fortuna (1943), dirigido por Vincent Minelli, um dos filmes preferidos de Santiago. No documentário, a razão que motiva a reprodução, a cores, da cena, são a beleza e a gratuidade do entrosamento entre os bailarinos, antes descompassados e incapazes de se entender durante os ensaios realizados no próprio filme. O acaso propicia o encontro, pela dança, dos bailarinos, assim como remete para a sensação de medo diante da finitude das coisas, segundo declaração do cineasta, ao conjugar a preferência pelo filme hollywoodiano de Santiago com a necessidade de preservar a imagem leve, nostálgica e feliz dos tempos passados, do ambiente da casa da Gávea. A música, “Dancing in the dark”, ilumina os passos dos atores no Central Park de Nova York e se contrapõe à possível amargura da pergunta presente no filme de Ozu, “A vida é uma decepção?” e a resposta de João Moreira Salles, “Talvez a arte e a fantasia contribuam para que isso reverta em algo mais feliz”. (Texto apresentado no Fórum Virtual de Literatura e Teatro. Programa Avançado de Cultura Contemporânea. Rio de Janeiro, 20 set. 2008.)
Freud explica A psicanálise, ciência do inconsciente, só poderia ter sido inventada no intervalo entre dois séculos, precisamente o 19 e o 20, e por iniciativa de um judeu austríaco, contemporâneo do decadentismo artístico e da crise da racionalidade positivista. Só poderia ter sido gerada no interior de uma sociedade burguesa, reprimida e sujeita à dramatização de histórias mentais. A descoberta da representação psíquica como resposta à realidade repressora anunciava a dissolução do sujeito individual e a insuficiência da linguagem em referir-se ao real. Com Freud instaura-se, em definitivo, o saber calcado na suspeita, ao considerar a vida mental um sistema altamente sofisticado, no qual se processam falsidades, sublimações e deslocamentos. O século 20 se abre com a publicação de A interpretação dos sonhos, quando são postas em xeque as noções de irracionalidade onírica, magia e superstição, cedendo lugar à ciência do inconsciente. A consciência de Zeno,1 publicado em 1923 na cidade de Trieste, e escrito antes do início da Primeira Guerra Mundial, é uma das primeiras e bem-humoradas reações às descobertas da psicanálise. O título já indica o tratamento irônico da narrativa confessional de Zeno Cosini, levada a termo por sugestão do analista, o doutor S. Ao assinar o prefácio, este se considera coautor do livro, por ter encaminhado os originais para publicação, sem o conhecimento do autor e como vingança pela interrupção da terapia pelo analisando. A consciência refere-se à determinação da personagem em se apresentar como curado diante do doutor S., por estar gozando de uma “saúde sólida, perfeita”, e não mais se comportando como doente imaginário. A natureza da doença de que sofre Cosini é da ordem do imaginário, constituindo-se seja pelo vício do fumo, seja por inquietações próprias a todo ser humano: o medo de envelhecer e de morrer, o tédio de viver e o adultério, este visto como entrega às pulsões e relações perigosas. Segundo a personagem, o comércio foi a causa de sua cura. Entregar-se ao comércio – no seu sentido literal e metafórico – foi a saída para os problemas existenciais, ao se convencer de que na compra indiscriminada de qualquer mercadoria reside o sistema de trocas e de substituições dos valores. Alcança-se a saúde – e o lucro nas transações comerciais – graças ao mecanismo de sublimação que se processa no interior das relações humanas: o que se perde é logo superado por outro objeto de desejo. Convencida de ter criado durante a vida um pacto comercial com os outros, de ter vivido o desejo alheio, a personagem aceita ainda fazer e entregar o diário ao doutor S., o que confirma a promoção do desejo do analista. Aceitar a vida e agir de maneira indiferente aos fatos seria para Cosini a prova de estar gozando de uma invejável saúde. Sua consciência se justificaria pela própria escrita do livro, verdadeiro exemplo do ato de denegação, conceito psicanalítico indicador da ambivalência causada pelo duplo ato de negar e de afirmar. A crítica à
psicanálise e à posição do analista como lugar do poder atua também como preservação da “doença” do analisando. Daí se conclui ser o livro, paradoxalmente, um libelo pró e contra a psicanálise. No endosso da concepção moderna de literatura que se autodefine como artifício e invenção, Italo Svevo assume o procedimento metalinguístico, largamente utilizado pelo romance contemporâneo. O texto autobiográfico se apresenta, desde o início, no seu estatuto de ficção, quando a paródia se contrapõe à verdade do escritor, através da encenação banalizada dos problemas existenciais, como a necessidade de parar de fumar da personagem, a morte do pai, o casamento, a amante e a participação numa associação comercial. Por um processo de sublimação, o comportamento de Zeno Cosini se move conforme o sistema de deslocamentos e descentramentos ininterruptos. Ações que poderiam resultar em efeito trágico, como a bofetada que Cosini recebe do pai na hora da morte, são facilmente resolvidas, em virtude da comédia de equívocos aí encenada. A relação entre terapia analítica e invenção ou entre criação e mentira permite a aproximação, pela linguagem, do discurso terapêutico com o ficcional. Rompidas as barreiras antes reservadas à diferença entre ciência e ficção, o que já se anuncia no relato autobiográfico de Svevo é a falência da língua no seu objetivo de dizer o real, além da constatação da natureza ambígua do psiquismo humano: “Uma confissão escrita é sempre mentirosa. Mentimos em cada palavra toscana que dizemos!” Por ser um intelectual também de fronteira – Trieste, em virtude do tráfico comercial e de sua posição geográfica, encontra-se na encruzilhada de culturas contraditórias –, o escritor se sente mais à vontade para agredir a problemática psicanalítica. E o faz por meio do recurso irônico, exercido com total eficácia. Durante a leitura do romance, o que mais se nota é o movimento constante da escrita, onde prevalecem os atos de imprevisibilidade e falsidade cometidos pelo homem sem qualidades, defensor de valores efêmeros e provisórios. Contemporâneo de Luigi Pirandello, Marcel Proust e James Joyce, Svevo soube criar uma narrativa sobre o nada, com base num enredo banal, retrato da vida burguesa de um doente imaginário, entregue ao ócio e aos problemas cotidianos que beiram a simplicidade. Renovador na maneira despojada de narrar e na linguagem desprovida da retórica dos escritores que lhe antecederam, o livro se impõe como clássico da literatura italiana, ao introduzir não só a descrença nas grandes narrativas, mas a vacuidade das relações humanas. Capturadas através do jogo inócuo dos diálogos, essas relações são guiadas pelo ritmo lento da imaginação e do teatro mental. A ambiguidade gerada pela relação entre realidade e ficção é fortalecida pela utilização da narrativa em primeira pessoa, permitindo aos defensores do realismo confundir autor e narrador, escritor e personagem. Não é sem razão que Octave Manonni, em Ficções freudianas, promove, em Paris, o encontro ficcional entre Joyce e um psicanalista de Trieste, que acusa Svevo de ter se servido de sua análise para
desmoralizar a ciência que nascia. O diálogo cumpre o papel de desfazer o equívoco realista, ao romper o teor de verossimilhança entre a personagem do doutor S. e o analista de Svevo, doutor Edoardo Weiss, um dos iniciadores da psicanálise na Itália. A narrativa autobiográfica desconstrói o limite rígido entre ciência e ficção, ao apontar a potencialidade enganosa e fugidia do ato de linguagem, praticada tanto pela literatura quanto pela psicanálise. Joyce encarnaria, no texto de Manonni, o alerta para a presença da alteridade como constituinte do sujeito-autor, assim como o teor plagiário da escrita que se impõe como escrita do outro. A autenticidade autoral do livro de Svevo já é desmitificada no prefácio de doutor S., que se coloca como responsável pela edição do romance. Reeditado pela Nova Fronteira e revisado pelo tradutor brasileiro, A consciência de Zeno merece destaque no quadro das novas reedições. Merece ainda ser lido por todos que se interessam não só pela construção do romance moderno, como pelo desencanto e pelo spleen que marcaram as grandes personagens finisseculares. Embora não tenha o traço experimental da obra de seu amigo e incentivador Joyce, nem de Proust a investigação minuciosa da memória, Svevo tem o mérito de trazer à superfície da linguagem o exercício de autoanálise através da qual imperam a neutralidade, a indiferença e o sucesso do homem comum. (Artigo publicado na Folha de S.Paulo, n. 90, 12 out. 2002. Jornal de Resenhas, p. 3.)
Bibliografia SVEVO, Italo. A consciência de Zeno. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Direção de Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. IV, V). MANNONI, Octave. Ficções freudianas. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Taurus, 1983.
A traição autobiográfica Recusar o prêmio Nobel de Literatura, após a publicação, em 1964, de As palavras, foi a resposta de Jean-Paul Sartre ao risco de se deixar converter em instituição, em “estátua de si mesmo” ou de se tornar “patrimônio nacional”. A construção da imagem que nega o culto da personalidade, do escritor que se exprime mais por infidelidade a si próprio do que por obediência a padrões estabelecidos, justifica o desprezo por um dos maiores ritos de consagração do escritor. Motivado pela energia criativa, pelo dispêndio como força necessária à crítica da sociedade burguesa da qual é um dos atores, Sartre rejeita a posse do dinheiro como reserva e acúmulo, preferindo considerá-lo como dom, como moeda gasta sem escrúpulo, fogo que se queima no ato da doação. O ganho simbólico se reverte na eterna rebeldia e na intransigência diante do poder conservador, ingredientes exigidos para a prática da liberdade como princípio norteador do sujeito. No empenho de viver para a literatura e de se alimentar da alegria que a escrita lhe proporciona, Sartre gasta a vida escrevendo, com a ajuda de psicotrópicos que irão causar, mais tarde, danos à saúde. A vitalidade se mescla à entrega desmesurada à causa do outro, à certeza de que a sua infatigável fome de palavras – que remonta aos seus primeiros anos – lhe traria condições de melhor pensar o mundo. Segundo BernardHenri Lévy, essa entrega às drogas é o que justifica o excesso e a abundância vitais como forma de se ter uma visão ampla de tudo: “Mas o que ele diz desde já, o que sempre disse e repetirá até o fim, é que a escrita é uma droga. Uma verdadeira droga. Uma autointoxicação permanente do escritor por si próprio e da literatura pelos seus próprios encantos e toxinas.”1 Comemorar o centenário de nascimento do escritor não estaria também contrariando o seu projeto de intelectual, em desacordo com as honrarias e salamaleques da classe burguesa? Não seria um gesto de mumificação de sua imagem? Acredito que não. Pela presença maciça de 50.000 pessoas ao seu funeral, em 19 de abril de 1980, confirma-se a importância e a popularidade do pensador Sartre para o mundo, para os estrangeiros residentes em Paris, principalmente vindos do Terceiro Mundo. Muito se comentou, à época, sobre a sua morte, como sendo a morte do último filósofo, do último intelectual francês. As homenagens em torno de seu centenário têm ainda a função de consagrá-lo ainda mais, embora não se deva esquecer de acentuar a contraditória imagem que ele mesmo ajudou a construir. Apesar de cioso dessa imagem, ao romper com o sentimento narcisista comum à maioria dos autores, Sartre transforma sua vida em obra autobiográfica, ao escolher o ofício de escritor como razão da existência. Sua autobiografia escrita, As palavras,2 demonstram, sob o olhar do autor já adulto, a obsessão do menino prodígio pelo universo ficcional da literatura, a paixão pelas palavras, lidas como simulacros da realidade. Considerada obra-prima pela crítica, pelo vigor do estilo e da desconstrução
da narrativa tradicional autobiográfica, o livro se notabiliza pela ausência do relato sensacionalista sobre as possíveis façanhas de Sartre na idade adulta, encenadas nos lugares hoje mitológicos e antes frequentados pelo bando de jovens existencialistas. Reduziu o texto ao destino familiar e pessoal que o fez tornar-se escritor. Sem idealizar a infância ou a se furtar a desconstruir o ambiente burguês no qual se criou, As palavras são o testemunho do intelectual que reflete sobre a sua situação no presente, dotado da responsabilidade para com o outro e disposto a confessar ser a escrita o mais cobiçado projeto existencial. A autobiografia corresponde, em termos cronológicos, ao período que vai do nascimento até os 12 anos do jovem Sartre, momento que coincide com o segundo casamento da mãe. Devido à perda precoce do pai, a criança é envolvida num ambiente familiar propício à concessão do excesso de cuidado na sua criação. Cercado pela proteção dos avós maternos e por sua mãe, vive no meio de livros e se entrega ao ritual de iniciação à leitura e à entronização no meio letrado da sociedade francesa do princípio do século 20. Violentado pela separação daquela que seria menos a mãe do que a futura noiva ou irmã, a companheira de infância, o escritor irá se recusar a escrever suas “memórias” por não crer na singularidade da existência, mas na sua múltipla configuração: “Ora, malgrado as aparências, sou um falso personagem secundário” (p. 171). É na biblioteca familiar que o pequeno leitor irá conviver com os amigos ficcionais, personagens nascidas dos livros e que irão povoar o seu imaginário universo infantil. Arredio ao convívio com a natureza, estrábico, franzino e feio, Sartre constrói um mundo alternativo, acreditando ter sido gerado pela escrita e, contrariamente à tradição familiar, sendo capaz de gerar a própria vida: “Filho de ninguém, fui minha própria causa, cúmulo de orgulho e cúmulo de miséria” (p. 82). As palavras, contudo, não se reduzem ao simples relato de infância. Trata-se de uma autoanálise, um romance de aprendizagem, ode à mãe e uma prestação de contas com a família, por meio de uma crítica feroz à pequena burguesia intelectual da qual é oriundo. Inverte, ainda, o esquema da autobiografia tradicional, ao lançar pistas, optar por uma estratégia que rompe com o acúmulo de informações e instaura o vazio e o silêncio na escrita. Trai ainda a celebração da infância como paraíso perdido, a valorização da família como célula da sociedade, ao negar a morte do pai e, consequentemente, todo direito à herança paterna e à continuidade familiar. Os laços de parentesco se embaralham, os papéis sociais se invertem, o que provoca, em Sartre, a capacidade de imaginar outra fórmula autobiográfica, rompendo com a fatalidade da genealogia. Uma vez negada a linhagem paterna, impõe-se a materna, na figura do avô, que o atirou na literatura e que mais tarde o escritor consagrado irá revelar ter sido a sua prática literária uma forma de cumprir o desejo manifesto de Charles Schweitzer: Em suma, ele me atirou na literatura pelo cuidado que despendeu em me desviar dela: a tal ponto que me acontece ainda hoje perguntar-me, quando estou de mau humor, se não consumi tanto dias
e tantas noites, se não cobri tantas folhas com minha tinta e lancei no mercado tantos livros que não eram almejados por ninguém, na única e louca esperança de agradar a meu avô (p. 118).
A escrita literária tem a liberdade de engendrar autobiografias falsas, instaurar genealogias bastardas e permitir o livro trânsito entre presente, passado e futuro. O escritor adulto, ao escrever sua vida, engendra a si próprio, por negar o estatuto convencional das funções familiares. O pai, pela morte precoce, não teve, aos olhos do filho, tempo de ser seu pai, tornando-se, no momento da escrita autobiográfica, filho do filho-escritor; por seu lado a mãe, viúva e novamente sob as ordens paternas, irá se mostrar frágil e dependente, o que exigirá a proteção do filho, invertendo-se o papel a ela destinado: Houvesse vivido, meu pai ter-se-ia deitado sobre mim com todo o seu comprimento e ter-me-ia esmagado. Por sorte, morreu moço; em meio dos Eneias que carregam às costas seus Anquises, passo de uma margem à outra, só e detestando todos esses genitores invisíveis montados em seus filhos por toda a vida; deixei atrás de mim um jovem morto que não teve tempo de ser meu pai e que poderia ser, hoje, meu filho. Foi um mal, um bem? Não sei; mas subscrevo de bom grado o veredito de um eminente psicanalista: não tenho superego (p. 16-17).
A invenção da família é a façanha do escritor na sua vida/obra autobiográfica. Arredio ao matrimônio burguês, à legalização da união entre homem e mulher, Sartre foi o amante oficial de Simone de Beauvoir, sua companheira durante toda a existência. Mas a infidelidade amorosa faz também parte desse pacto celibatário, pois ambos se relacionam livremente com os demais parceiros, sem o sentimento de serem propriedade privada um do outro. A solidariedade humana se estende também para o convívio amoroso, uma forma de o escritor sublimar a falta da mãe, ao considerar o relacionamento segundo critérios de fraternidade, união incestuosa que reúne literatura e existência: “Graças ao quê, talvez, os anos quatorze foram os mais felizes da minha infância. Minha mãe e eu contávamos a mesma idade e não nos largávamos. Ela me chamava seu chevalier servant, seu homenzinho” (p. 157). Nos últimos anos de vida, em situação precária de saúde, cego e dependente, o celibatário que nunca se casou e que não quis ter filhos, assume Arlette Elkaïm como filha adotiva, moça judia que “tentava servir de olhos para ele”, ajudando-lhe na correção de textos e na leitura. Trata-se do reencontro com o espectro da mãe, de cujo convívio amoroso foi prematuramente afastado. Inventar o passado e resgatá-lo pela simulação da imagem materna instaura o espaço imaginário em que se cruzam ficção e realidade, escrita e vida. A opção por esse espaço transgressor irá fundamentar toda a trajetória autobiográfica de Sartre. Abraçar a filosofia existencialista significava, para o escritor, não só desfazer os limites familiares, mas ainda ampliá-los para o espaço público, para o debate na rua, um convite à exteriorização e à transparência de saberes aprisionados nos gabinetes. Definido tanto como uma filosofia nascida do cruzamento de Kierkegaard e da fenomenologia alemã, quanto um “estilo de vida”, uma maneira de existir que aspirava às liberações motivadas pelo ambiente de pós-guerra, o existencialismo inaugura a
prática biográfica como contraparte da teórica. Recusa separar a filosofia da política, a literatura da ciência, o doméstico do público, o sujeito do objeto. Inserido ainda nesse processo de deslocamento do espaço endogênico da cultura francesa, Sartre se volta para o exterior, seja por meio das leituras e da predileção pelo romance americano, pelo cinema e pelo jazz, seja se entregando às causas políticas defendidas pelo Terceiro Mundo. Na condição de um pensador moderno, desde cedo se torna sensível a outras culturas e às diferentes manifestações artísticas, como o jazz e o cinema americano, o que lhe propicia o rompimento com critérios hierárquicos de arte, pela sedução que os clubes de jazz e as salas de cinema lhe proporcionam, experiências ligadas ao convívio mais próximo com a multidão e o imaginário coletivo. A saída para a ação na praça pública representa a necessidade de mobilizar conhecimentos e acreditar no deslocamento permanente como meio de revitalizar posições e buscar o novo como sinônimo de transgressão e liberdade. A reunião da filosofia e da música, do mundano com a reflexão, legitima a corrente existencialista como estilo de vida que acompanha a modernização dos costumes e assume o risco contínuo da improvisação, inaugurado pela ousadia e popularidade do jazz americano de pós-guerra. Usufruir de expressões artísticas consideradas inferiores pelos puristas, penetrar nas salas de projeção de filmes, desconfortáveis, mas igualitárias, complementam a formação do escritor, no seu engajamento futuro em favor das massas e dos marginalizados: …quando muitos homens estão juntos, cumpre separá-los por meio de ritos ou então eles se chacinam. O cinema provava o contrário: mais do que uma festa, o seu público tão mesclado parecia reunido por uma catástrofe. (…) Tomei aversão pelas cerimônias, adorei as multidões; vi multidões de toda espécie, porém nunca mais encontrei aquela nudez, aquela presença sem recuo de cada um em todos, aquele sonho desperto… (p. 88-89).
Desde criança, o deslocamento constituiu uma forma de resistência do escritor, personagem nômade no espírito e, literalmente, em virtude das mudanças constantes de residência, causadas pela morte do pai, pela convivência com os avós e com o novo casamento da mãe. Essa situação de estrangeiro e hóspede na sua própria casa alimenta as posteriores reações contra o sentido de propriedade e contra a ingênua noção de identidade vinculada aos bens materiais e à posse simbólica do sujeito. Sentindo-se sempre na condição de hóspede em sua casa, Sartre assim também se comporta em relação ao país de origem, indo contra a política colonialista francesa, em que se destaca o papel do filho que transgride os valores defendidos pelo pai, pela família política e pela nação. Justifica-se, portanto, a sua preocupação com os irmãos postiços do Terceiro Mundo, dos filhos bastardos não reconhecidos pelas leis universais de cidadania e de direitos humanos. Como “viajante sem passagem”, Sartre não abdicou do direito de estar permanentemente em conflito consigo mesmo e entregue à errância, à aventura e à busca do desconhecido: Em meus raros minutos de dissipação, minha mãe me segredava: ‘Tome cuidado! Não estamos em nossa casa!’ Nunca estivemos em nossa casa: nem na rua Le Goff nem mais tarde, quando minha
mãe tornou a casar-se. Eu não sofria com isso, pois me emprestavam tudo: mas eu continuava abstrato. Para o proprietário, os bens deste mundo refletem o que ele é; a mim, ensinavam-me o que eu não era: eu não era consistente nem permanente; eu não era o continuador futuro da obra paterna; eu não era necessário à produção do aço: em suma, eu não tinha alma (p. 65).
Annie Cohen-Solal, a mais conceituada biógrafa de Sartre, no último ensaio intitulado Sartre,3 pondera sobre o seu papel de intelectual, interpretando-o a partir de sua repercussão atual no mundo e na França. Recupera a imagem do existencialista voltado para fora da Europa, quando observa que nos dias atuais tem sido mais festejado e valorizado nos países do Terceiro Mundo do que no seu lugar de origem. Registra o lugar do escritor como referência obrigatória no estrangeiro, não só pelas suas inúmeras viagens realizadas na década de 1960 à América Latina e a outros continentes, como pela atenção voltada para os conflitos religiosos e políticos verificados no correr dos últimos 50 anos. A biógrafa irá sustentar, com base nesses argumentos, a tese do olhar multicultural de Sartre e de sua importância para a formação do pensamento de esquerda no mundo. Não é de se estranhar que na lista de escritores dedicados à preservação da herança sartriana se incluem aqueles que também se dedicaram às causas políticas pós-colonialistas, suplementando a lição legada pelo intelectual: Susan Sontag, Edward Said, Salman Rushdie, Ernesto Sábato, entre outros. Na certeza de ser impossível classificar Sartre segundo critérios rígidos e institucionais, a autora reforça a sua posição marginal no universo tradicional francês e ressalta o seu lugar como intelectual crítico e engajado, figura hoje cada vez mais rara entre nós. As palavras finais deste texto são retiradas da autobiografia de Sartre, na qual se constata uma das mais contundentes lições de intransigência e repúdio às falsas aparências e ao papel idealizado da autobiografia como forma de consagração do escritor: “Tornei-me traidor e continuei a sê-lo. Em vão me ponho de corpo inteiro no que empreendo, entrego-me sem reserva ao trabalho, à cólera, à amizade; num instante me renegarei, eu o sei, o quero e me traio já em plena paixão, pelo pressentimento jubiloso de minha traição futura” (p. 171). (Artigo publicado na Revista Margens/Márgenes, Belo Horizonte, UFMG, n. 6/7, p. 24-31, 2005.)
Bibliografia COHEN-SOLAL, Annie. Sartre. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2005. LÉVY, Bernard-Henri. O século de Sartre. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. SARTRE, Jean-Paul. As palavras. Tradução de J. Guinsburg. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [s.d.].
As mortes imaginárias de pessoa Blanchot diz que o escritor “morre” a partir da existência da escrita. Entra-se no espaço literário, e tudo é branco, tudo é possível. Se você quiser, eu escrevo como em todos meus livros, autobiografias de outrem. Antonio Tabucchi
No campo fértil da crítica biográfica, na qual se incluem as escritas autoficcionais, biográficas e literárias, Fernando Pessoa ocupa, sem dúvida, um dos lugares mais destacados. Sua autobiografia literária, composta da invenção de inúmeros heterônimos, atualiza os princípios da poética moderna ocidental, calcada na disseminação do sujeito, na descoberta da alteridade e no elo indissociável entre escrita e morte. O deslocamento intencional da figura única do poeta em múltiplos avatares e espectros instaura a sombra e o reflexo como imagens distorcidas do modelo, operação capaz de nomear tanto a literatura quanto a vida como domínios da representação e do artifício. Uma vez firmado o pacto ficcional, a vida do escritor se reverte necessariamente em grafia, e a biografia se traduz em literatura. Quais seriam, portanto, as mortes imaginárias de Pessoa? O escritor francês Marcel Schwob, autor de Vidas imaginárias, texto publicado em 1896, é um dos singulares biógrafos da literatura, festejado por muitos e atualmente esquecido, mas que se vê revitalizado pela crítica, em virtude da reedição dessa obra pela Editora 34, com tradução de Duda Machado e prefácio original de Jorge Luis Borges.1 A peculiaridade de seu texto reside na criação de biografias de pessoas desconhecidas e no exercício livre da escrita, ao narrar ações fabulosas atribuídas a personagens reais. Borges, ao apresentar o livro na Colección “Jorge Luis Borges, Biblioteca Personal, em 1985”, considera o autor uma de suas fontes literárias, pelo interesse por personagens julgadas “infames”, e pelo método utilizado na escrita, ao misturar realidade e ficção: “O sabor peculiar deste volume está neste vaivém.”2 Acrescenta ainda que, à semelhança de suas personagens, Schwob “não buscou a fama; escreveu deliberadamente para os happy few, para poucos”. A história universal da infâmia, primeiro livro de contos de Borges, de 1935, ao se apropriar do tema da fama através de atos praticados por personagens infames e sem importância, é uma das evidências quanto ao mérito de Schwob para a compreensão da poética borgiana. Uma constatação relevante para o tema desta minha reflexão é a analogia entre a obra e a vida de Schwob, por ambas se pautarem pelo signo do imaginário. Nos últimos dias em que viveu, a imagem do escritor Robert Louis Stevenson lhe serviu de modelo, estimulando-o a partir para a ilha Samoa, aventura que reduplicava a vida e pastichava a literatura do escritor escocês. Schwob viaja com o objetivo de encontrar o túmulo de Stevenson, mas não o acha, desilusão igualmente sentida pela filósofa Hannah Arendt, ao chegar a Port-Bou à procura do túmulo do amigo Walter Benjamin, seis meses após
seu suicídio. O desejo de comprovar a morte pela visita ao túmulo do escritor traduz o gesto de homenagem e a consolidação de um lugar de pouso e assinatura. No entanto, diante da ausência do túmulo, a morte deixa de ser verossimilhante e se converte em morte imaginária, lida em consonância com a vida nômade e inquieta de seus protagonistas. Torna-se ainda componente básico para a estreita ligação entre obra e vida. Túmulos imaginários se revertem em manuscritos enigmáticos, em obra póstuma a ser decifrada pelos futuros leitores da vida e da produção literária dos escritores. Marcel Schwob, ao morrer, em Paris, de pneumonia, se une finalmente ao seu duplo, após ter vivido à sombra de Robert Louis Stevenson morto. A morte imaginária de Schwob é marcada pela projeção do outro na cena final, em que é reiterado o desejo de conjunção entre modelo e cópia. Projetar-se na imagem fantasmática do outro consiste na escolha da literatura como destino e da vida como ficção. O texto autobiográfico corresponde à escrita da vida como autoficção. Os mundos paralelos se explicam pela conversão da letra em experiência copiada da letra de outrem. Essas reflexões foram motivadas pelo livro de Michel Schneider, Morts imaginaires, no qual são reescritos os últimos momentos e as possíveis frases pronunciadas por alguns escritores, assim como a situação e o lugar de sua morte. São ainda relevantes os documentos e objetos pessoais pertencentes ao cotidiano da vida do sujeito, dotados de valor significativo para a melhor compreensão da obra dos autores, como os manuscritos, os livros ou pastas cheias de papéis, deixados como obras inacabadas, à espera de uma publicação póstuma.3 A mitificação do lugar onde se escolhe para morrer, seja a morada familiar, o quarto de hotel, o hospital ou o local mais propício à cena do suicídio, se associa também à visita de amigos e admiradores ao túmulo, com vistas a render culto e a ver ali representada a morte como o livro fechado de uma vida. Sigmund Freud, Stefan Zweig, Immanuel Kant, Truman Capote, Marcel Schwob, Walter Benjamin, entre outros, compõem a galeria dos mortos imaginários analisados por Schneider e são interpretados conforme a feição e o ritual assumidos na hora da morte: ora como morte plagiária, ora como morte paralela, mort d’occasion, ou “morte usada”. Esta se explica pela analogia mantida com a expressão livros usados, antigos, vendidos no sebo, os quais, após terem sido lidos, relidos e manuseados pelos leitores, serão novamente compartilhados por aqueles que lhes sucedem. A expressão “morte usada” refere-se também aos escritores que, nos últimos momentos, se comportam de forma semelhante a outras situações, por meio de frases pedidas de empréstimo e de clichês, metaforizando a imagem da morte como edição repetida e de segunda mão e convertendo a experiência própria em cópia da experiência alheia. A projeção e a realização imaginária por meio do exemplo literário constroem o enredo dessas narrativas de vida. Stefan Zweig, ao decidir se suicidar com a mulher em Petrópolis, em 1942, e após ter escrito, obsessivamente, um número considerável de biografias, repete e plagia, segundo Schneider, o escritor Heirich von Kleist: “A mesma
morte voluntária, cheia da alegria de desaparecer; a mesma partilha com a mulher amada, conduzida a um final apaixonado; a mesma febre de escrever até os últimos instantes.” E mais abaixo: “Stefan Zweig quis situar sua morte na estante das mortes heroicas de escritores.”4 Em 1986, doente e na iminência da morte, Borges decide voltar à Genebra de sua juventude, optando pela eleição de um espaço que talvez mantivesse algum laço com o sentimento de pátria, lugar este que será emblematicamente seu eterno exílio. Enquanto procuravam um imóvel para se instalar na cidade velha, que lhe concederia maior proximidade com o passado, hospeda-se com María Kodama em um hotel nessa região, chamado “L’Arbalète”. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 19 de maio de 1996, Kodama relata a associação feita pelo escritor entre o hotel em Genebra e o “L’Hôtel” de Paris, onde morreu Oscar Wilde, em 1900, no início de um século que irá desconsiderar a personalidade artística, relegada a segundo plano pela obra. A referência a esse lugar simbólico permitiu a Borges convencer o proprietário da casa de que sua morte poderia proporcionar-lhe benefícios materiais, por se tratar de um escritor que se transformara, ao longo do tempo, em “uma velha superstição”. Ao escolher um quarto de hotel para reencenar o gesto de seu precursor Oscar Wilde, estaria cumprindo, ao pé da letra, esse destino literário. De forma irônica, interpreta a morte como ato literário que se repete, assim como o caráter ficcional da própria vida: Sabe, eu, para os argentinos, sou como uma velha superstição. E o senhor sabe que em Paris há um hotel, que se chama “L’Hôtel”, onde morreu Oscar Wilde. Hoje todo mundo quer dormir no quarto em que Wilde morreu. Então isso vai acontecer comigo, de modo que o sr. pode passar a cobrar mais.5
Outra cena relativa à citação literária, como forma de tornar mais nobre a existência pela historicização da doença, encontra-se registrada no discurso de entronização de Roland Barthes no Collège de France, publicado com o título de Aula. No final do texto, o encontro do escritor com a literatura se processa pela mediação da doença sofrida no passado, a tuberculose, o que lhe permite ser contemporâneo e parceiro do corpo doente de Hans Castorp, o herói de A montanha mágica de Thomas Mann. Reconhecendo ser o seu corpo histórico, por ter a dimensão que ultrapassa o presente e reconstrói o passado, Barthes, no momento da aula inaugural, confessa: “Portanto, se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não do meu próprio corpo, passado. Em síntese: periodicamente, devo renascer, fazer-me mais jovem do que sou.”6 O renascer para a vida nova implica a concepção do tempo simultâneo dos encontros e não a cronologia marcada pelo calendário. A entronização de Barthes no Collège de France elege a desconstrução como método, ao se nutrir da literatura como mediação para seu discurso de posse. Além de Thomas Mann, responsável pela sua inserção na história literária, cita Dante, da Vita nuova, ao optar pela revitalização do corpo institucional, reduplicando e se colocando como vida paralela à dos seus modelos.
Nesse espaço ocupado pelo tema literário da morte, Fernando Pessoa inaugurou uma poética original, elegendo a morte do autor como princípio básico, multiplicando-se em heterônimos, e reiterando a perda do sujeito no meio de outras vozes, por meio da criação de diversas instâncias discursivas. Esse artifício articula paradoxalmente o exilar-se e o habitar a linguagem pelo sujeito, ao se tornar tanto seu hóspede como seu anfitrião, deslocar o sentido de propriedade para o de expropriação, pela mobilidade significativa atingida pelo trânsito intersubjetivo entre morte e vida. Na invenção genial dos heterônimos, com biografias e horóscopos próprios, Pessoa adquire liberdade para “matar” Alberto Caeiro, o mestre de todos, que, em 1915, é vitimado pela tuberculose, moléstia fatal para a época e também dotada de conotação literária. Antonio Tabucchi, em Os três últimos dias de Fernando Pessoa, utilizando-se de licença poética, registra a morte de Álvaro de Campos no mesmo dia e ano da morte do poeta, conforme a lista de personagens anexada no final do livro. O escritor italiano, ao narrar os três últimos dias de Pessoa, reencena, livremente, o encontro dos pseudoautores com seu criador, escrita que evoca outra morte imaginária, em que se dramatiza o diálogo entre eles: segredos são revelados, confissões apresentadas, registro de últimos pedidos, em resumo, uma prestação de contas que marca os momentos de desnudamento e fingida exposição de verdades. O subtítulo do livro recebe a denominação de “um delírio” e funciona sob a forma de um procedimento ficcional, por eleger a fantasia e o sonho como procedimentos literários a serviço da narração dos últimos dias de um poeta, pelo menos reconhecido e atestado pelos documentos de identidade. Os fatos narrados, as personagens que aí se instalam, participam, contudo, da autobiografia literária de autoria pessoana, o que permite diminuir o valor do delírio e considerá-lo verossimilhante à poética dos heterônimos, logo, dispensável como recurso ficcional. Os nomes se transformam em personagens, saem das páginas dos livros e dramatizam o encontro com Pessoa, ao ser hospitalizado. Atuam como parceiros e fantasmas da escrita de Tabucchi e recebem sobrevida ficcional ao serem convocados para se despedirem do autor-moribundo. A morte imaginária de Pessoa, encenada por Tabucchi, representa a conciliação ilusória do poeta com os heterônimos, o reconhecimento da morte como reencarnação do sujeito na natureza, uma saída para a entrega do poeta no cosmos. Morte e vida são interpretadas como peças da mesma moeda, desde que o sonho é a mola da vida, a luz, parceira das trevas e a ficção, o espelho da existência. O sentimento da precariedade da vida e a fuga pela ficção, a mentira e o sonho compõem o universo poético de Pessoa e são reproduzidos por Tabucchi na criação de sua personagem. O tema da morte – e sua misteriosa presença – constitui o traço peculiar do poeta melancólico, dominado pelo medo e pela insatisfação. No poema o “Primeiro Fausto; passagem das horas”, de Pessoa, esse pensamento se expressa de modo forte e esclarecedor: – Me toma a gorja, com horror de negro / O pensamento da hora inevitável, / E a verdade da morte me confrange. / Pudesse eu, sim, pudesse eternamente / Alheio ao verdadeiro ser do mundo, /
Viver sempre esse sonho que é a vida! / Expulso embora da divina essência, / Ficção fingindo, vã mentira eterna, / Alma-sonho, que eu nunca despertasse! /Suave me é o sonho, e a vida (…) é sonho.7
Na conversa do poeta com o heterônimo e filósofo António Mora, Tabucchi coloca Pessoa se despedindo da vida e recitando fragmentos de versos de “Primeiro Fausto; passagem das horas”, de Álvaro de Campos, texto que retoma a crença numa existência fabulosa, na qual o sujeito se sente capaz de alcançar a visão total do universo e de se corporificar em vários seres e objetos, mas que resulta inevitavelmente na fragmentação e no desvio desse sujeito: “Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei, não fiz senão extravasar-me, / Despi-me, entreguei-me, / E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.”8 No texto de Tabucchi, o discurso de Pessoa se cruza com esses versos e também remete para a apropriação do procedimento criativo de Borges, a visão do aleph. Descreve, com minúcia, a capacidade visionária do poeta, alcançada pela concepção enciclopédica e alucinante do universo, imagem proporcionada pela experiência da visão do aleph, presente no conto homônimo de Borges. Reproduz, de forma imaginária e sob o signo do pastiche, a plenitude, o excesso e a ilusão da totalidade experimentada pelo poetamoribundo. Na repetição, por Tabucchi, da cena borgiana, os últimos momentos de Pessoa atualizam a figuração do aleph, esfera luminosa cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma, por se tratar de uma visão que simboliza o encontro imaginário, eterno e fugaz do infinito. Através desse processo redutor e minimalista, esse momento representa a cifra da vida de Pessoa. A aproximação entre Pessoa e Borges por Tabucchi – e agora por mim – entra em consonância com o delírio borgiano, por apresentarem ambos poéticas semelhantes e traduzirem o que se entende pelo “cogito melancólico da modernidade”.9 O trecho final de Os três últimos dias de Fernando Pessoa encena a exaustão como experiência vital e como contraparte da imaginação poética, delírio que condensa os versos do poeta português com a imagem borgiana do aleph: Está na hora de partir, é hora de deixar este teatro de imagens que chamamos de nossa vida. Se soubesse as coisas que vi com os óculos da alma, vi os contrafortes de Órion, lá no alto no espaço infinito, andei com esses pés terrenos pelo Cruzeiro do Sul, atravessei noites infinitas como um cometa reluzente, os espaços interestelares da imaginação, a volúpia e o medo, e fui homem, mulher, velho, menina, fui a multidão dos grandes bulevares das capitais do Ocidente, fui o plácido Buda do Oriente, do qual invejamos a calma e a sabedoria, fui eu mesmo e os outros, todos os outros que podia ser, (…) e tudo porque a vida não basta. (…) Mas agora basta, meu caro António Mora, viver a minha vida foi viver mil vidas, estou cansado, minha vela consumiu-se, peço-lhe, me dê os meus óculos.10
Pessoa se declara entediado com a experiência de ter vivido mil vidas e de ter se fragmentado nas múltiplas imagens da alteridade. Morre pelo cansaço na busca da plenitude que se reveste de contradição, esvaziando-se pelo excesso de luz que cega o conhecimento, dimensão paradoxal referente ao sentimento de totalidade e de vazio.
Integrando-se à plenitude cósmica, perde o sentido alegre da vida, o que resulta no próprio tédio, no spleen, na melancolia e na morte por crise hepática. Morre em consequência de sua autobiografia, do alimento e do vício melancólicos da modernidade. No texto citado, Pessoa pede a António Mora, na forma do último desejo, que lhe passe os óculos, gesto que mimetiza e desconstrói a frase de Goethe, pronunciada no leito de morte, “Mais luz”. Na interpretação de Leyla Perrone-Moisés, no ensaio sobre Pessoa “Pensar é estar doente dos olhos”, “nesse confronto, o pedido de Pessoa toma ares de paródia involuntária. No século XX, o poeta já não ocupa aquele lugar reconhecido de vidente que lhe coube no Romantismo; perdeu a auréola (Baudelaire), a supervisão, e só tem acesso à visão parcial dos fenômenos.”11 A morte datada de Pessoa, em 30 de novembro de 1935, no Hospital São Luis dos Franceses, causada por crise hepática, permite não só a associação do alcoolismo e da boemia com a figura do poeta maldito, mas ainda com o sentimento de melancolia explicada, etimologicamente, pelo vocábulo grego “melancolia”, o qual remete para o sentido de “humor negro” e de “bile negra”. Atormentado pelo mal-du-siècle, Pessoa se refugia na criação de personagens, na transformação da escrita em espaço ficcional dos encontros e na metáfora da própria vida. Morre daquilo que construiu como verdade estética e programa existencial, quais sejam o deslocamento constante do sujeito, a perda da aura e a experiência do sonho e do delírio como formas de prazer e realização poética e existencial. A sensibilidade exacerbada do artista, a multiplicação e ruína da subjetividade em tempos sombrios motivam Tabucchi a recriar os últimos três dias de Pessoa, captando o momento da morte como simulacro de uma vida levada às últimas consequências. Morre-se com o mesmo estilo com que se viveu, não havendo contradição entre a grafia, a vida e o fim. A literatura antecipa e constrói o destino do escritor, inscrevendo-o no cânone dos artistas representativos da alta modernidade. Se a melancolia é considerada a doença do pensamento, é ela que ainda assinala a necessidade de reconhecer a presença do corpo como alteridade e registro, determinando o comportamento do sujeito e não se opondo à razão. Instauram-se, portanto, novas modalidades subjetivas. A teoria filosófica de Nietzsche, desenvolvida na Gaia ciência, elege o “saber alegre” como saída para se transformar a dor em conceito, pela ação afirmativa em dizer sim ao sofrimento e por considerar o ato de pensar com uma das possibilidades de cura. A prática da escrita desempenha igualmente a transfiguração da doença, gesto paradoxal que reúne dor e alegria, humor e tragédia, além de comprovar que a criação poética atua como letra que sobrevive à efemeridade da vida e do tempo. Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa e personagem de Tabucchi, num misto de ironia e desdém, despede-se de Pessoa conforme o estilo que o singularizou: E depois dei de querer decifrar a realidade, como se a realidade fosse decifrável, e veio o desânimo. E com o desânimo, o niilismo. Depois, nunca acreditei em nada, nem sequer em mim mesmo. E hoje estou aqui, à sua cabeceira, como um trapo sem qualquer serventia, fiz as malas para lugar nenhum, e o meu coração é um balde esvaziado. (…) Campos colocou a capa sobre os ombros, pôs o
monóculo no olho direito, fez um rápido gesto de despedida com a mão, abriu a porta, deteve-se por um instante e repetiu: Adeus, Fernando. E depois sussurrou: Talvez nem todas as cartas de amor sejam ridículas.12
Uma vez compactuado com a alteridade e a fantasia, o poeta Fernando Pessoa passa a ter prerrogativas de personagem, recebendo, conforme o momento e a intenção de outros fabulistas, tratamento literário e vida própria. José Saramago, em 1984, escreve O ano da morte de Ricardo Reis, romance que estabelece o diálogo com as tradições nacionais, literárias e históricas, tendo como protagonista um dos mais conhecidos heterônimos de Pessoa. Ricardo Reis, agora personagem de Saramago, volta do Brasil após a morte do poeta, ocorrida em 1935, permanece em Lisboa durante o ano de 1936, visita o túmulo do poeta, conversa com o espectro e a aparição de Pessoa durante todo o tempo, até ir ao seu encontro graças à sua morte ficcional criada por Saramago. De feição distinta do livro de Tabucchi, O ano da morte de Ricardo Reis reforça o aspecto histórico e político do país, ressaltando o alheamento da personagem diante da presença assustadora da ditadura de Salazar, a ascensão de Hitler e de Mussolini, além da iminência da Guerra Civil espanhola. Na defesa de um Portugal mais esperançoso e mobilizado, Pessoa e Ricardo Reis, na cena final do romance e no encontro na morte, acreditam na mudança e na libertação políticas do presente, condensadas na imagem de Adamastor: Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Melhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa. Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui onde o mar se acabou e a terra espera.13
Sem o chapéu, que não mais terá sua serventia, Ricardo Reis é também uma fantasia literária de Saramago, o que nos permite concluir que, decorridos mais de 70 anos da morte de Pessoa, o que permanece são a imortalidade de uma obra e a transfiguração imaginária do poeta, que se multiplica em personagem na pele de outros autores e de textos distintos. Com óculos e sem chapéu para enfrentar a morte, essas personagens continuarão a povoar o universo espectral da literatura enquanto houver leitores que lhes proporcionem uma sobrevida literária transtemporal, sobrevida que sempre irá se nutrir da imaginação e do vir a ser. (Ensaio publicado em: MARQUES, Reinaldo; SOUZA, Eneida Maria de (Org.). Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 407-417.)
Bibliografia BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, [s.d.]. BORGES, Jorge Luis. A história universal da infâmia. Tradução de Flávio J. Cardoso. Porto Alegre: Globo, 1975. KODAMA, María. Entrevista. Folha de S. Paulo, 19 maio 1996. Ilustrada. MONEGAL, Emir Rodriguez. Borges, auteur de Fernando Pessoa. Magazine Littéraire, Paris, n. 259, 1988. NIETZSCHE, F. Gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. PERRONE-MOISÉS Leyla. Pensar é estar doente dos olhos. In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 327-346. PESSOA, Fernando. Primeiro Fausto; passagem das horas. In: ____. Obra poética. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1965. SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. SCHNEIDER, Michel. Morts imaginaires. Paris: Grasset, 2003. SCHWOB, Marcel. Vidas imaginárias. Tradução de Duda Machado. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. TABUCCHI, Antonio. Os três últimos dias de Fernando Pessoa. Um delírio. Tradução de Roberta Barni. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
A memória de Borges Talvez no futuro alguém, uma mulher que ainda não nasceu, sonhe receber a memória de Borges tal como Borges sonhou que recebia a memória de Shakespeare. Ricardo Piglia
Na década de 1980, Octave Mannoni, psicanalista francês, escreveu Ficções freudianas, inspirado na poética de Borges e tendo Freud como objeto. O livro se compõe de uma série de contos envolvendo Freud, seus amigos e clientes, com o objetivo de desconstruir os limites rígidos entre ciência e ficção, ao apontar a potencialidade enganosa e fugidia do ato de linguagem, praticada tanto pela literatura quanto pela psicanálise. Nesse espaço baldio da escrita, a alteridade se impõe como constituinte do sujeito e a dessubjetivação autoral celebra o gesto de apropriação do outro. A literatura borgiana já se consolidava mundialmente em vários campos do saber como produtora de artifícios capazes de desbancar racionalidades e de penetrar sem escrúpulos no jogo indomável da ficção. O escritor catalão Enrique Vila-Matas – assim como boa parte da literatura global – tem reativado a invenção ficcional borgiana, pautada pelo desaparecimento (também ficcional) do sujeito/autor e do surgimento do fantasma da alteridade e do duplo. Estamos agora no reino da literatura e não apenas na sua relação com os demais saberes disciplinares. Ela se alimenta de si própria, visita lugares literários, inventa encontros entre escritores, imagina diálogos entre personagens retirados de livros, brinca com as citações alheias e reforça o fascínio de leitores pela aura literária. “A memória de Shakespeare”, conto de Borges que narra como a memória do autor inglês foi presenteada ao narrador/escritor por um desconhecido, não estaria sendo reconfigurada, na literatura contemporânea, pela memória de Borges? A metáfora da memória alheia permitiria definir a tradição poética e a herança cultural da literatura contemporânea? Estaria a profecia de Ricardo Piglia, segundo a qual a memória de um escritor latino-americano poderia ser enxertada, no futuro, na memória de um europeu? E acrescentaria: na memória de tantos outros escritores do planeta? O legado literário do cânone ocidental, no qual o norte sempre se impôs como exportador de modelos estaria sendo ocupado pelo sul, ou pela literatura dita periférica? Ou ainda, a escolha dos precursores literários, realizada contra a passividade da influência, não poderia ser lida como prisão, mais do que como presente recebido, por sua vez, como herança nefasta? Essas reflexões foram motivadas pela leitura de Doutor Pasavento, último romance de Vila-Matas, traduzido no Brasil pela Cosac Naify,1 pelo romance do marroquino Ben Jelloun, L’ enfant de sable,2 assim como pelo olhar frente à atual configuração estética da literatura. Não se pretende aqui apontar a permanência de Borges na cultura europeia do século 20 e na primeira década do século 21, o que não constitui novidade e nada
acrescentaria à proposta deste texto. De Calvino a Vila-Matas, de formas diferentes e com soluções literárias distintas, a poética de Borges se confunde com a própria literatura, e a ultrapassa. O consagrado valor atribuído à sua obra se resumiria no desejo deliberado de se apropriar da cultura alheia como contraponto à afirmação de autoria e originalidade, valendo-se da “política da modéstia”, como assim a nomeia Nicolás Helft e Alan Pauls.3 Essa política consiste na formação da imagem de escritor clássico, por meio de protocolos enunciativos visando ao reconhecimento público. A impessoalidade como estilo e a criação de personagens dotadas de um “saber menor” e da gratuidade de existir concorrem para a consagração ilimitada de Borges, por ter-se convertido em escritor mundialmente citado e eleito como precursor da estética pósmoderna. A extrema visibilidade que a assinatura Borges adquire ao longo do tempo se pulveriza no gesto contrário, o da invisibilidade. O autor como sujeito pleno no ato criador se dilui, revertendo-se na figura do escritor clássico, anônimo, despersonalizado, embora o ato responsável pelo desaparecimento seja, ironicamente, o momento de maior fulguração póstuma. Segundo o escritor, um de seus maiores desejos seria a transformação da humanidade em ideal de construção coletiva dos saberes, em que cada indivíduo fosse capaz de se considerar artista e criador. O anonimato significaria a recusa do sentido de propriedade autoral, uma vez que se postula o gesto democrático de recepção e produção do conhecimento. Ao leitor familiarizado com a obra de Vila-Matas, não causa nenhuma surpresa a repetição de temas sobre criação e vida literárias, já exploradas em textos anteriores, como Bartleby e companhia, Paris não acaba nunca, Mal de Montano e Suicídios exemplares. O desaparecimento do escritor e o desejo de anonimato se associam à estética vital da negatividade e da literatura como doença, mal que atinge as personagens de Mal de Montano. Escritores destinados à reclusão e à interrupção de sua carreira são os preferidos de Vila-Matas, no endosso do desaparecimento como realização às avessas do ofício de escritor. O autor suíço Robert Walser, os americanos Jerome David Salinger e Thomas Pynchon constituem os melhores exemplos do comportamento herdado pelo Doutor Pasavento. Peripécias literárias são urdidas no romance, de natureza híbrida, misto de ensaio e ficção, metaficção e autoficção, termos que correspondem a uma das feições literárias que delineiam a literatura do presente. Convidado a proferir uma palestra em Sevilha sobre os limites entre ficção e realidade, o narrador se esconde na figura de um sósia encontrado num trem e foge do compromisso, assumindo a personalidade do psiquiatra fictício, Doutor Pasavento. Os fatos são relatados a partir do hotel da rua Vaneau, em Paris, famosa por ter sido domicílio de escritores, como Marx, Gide e outros. O tema do desaparecimento se concentra na imagem de Robert Walser, internado nos últimos 23 anos de vida no manicômio e encontrado morto na neve, no Natal de 1956. A mitologia do escritor que diz não ao sucesso e se fecha na solidão da escrita e do anonimato é a resposta desse livro para a exposição espetacular imposta pela mídia ao mundo das celebridades.
No entanto, nunca se escreveu com tanto entusiasmo sobre a vida literária, sobre a curiosidade do leitor/escritor em tentar penetrar na ficção e na vida dos escritores e nunca a biografia mereceu lugar maior do que a obra, mesmo quando era exercida de forma precária e causalista. A literatura de Vila-Matas, no empenho de transformar figuras históricas em personagens, e criações ficcionais em verbetes, não necessita de decifradores das redes intertextuais aí apresentadas à exaustão. O valor enciclopédico de Doutor Pasavento não é apenas fictício, mas documental, precário e permanente, de força vital e de valor textual, ingredientes que combinam com a natureza fugidia e citacional da cultura contemporânea. Essa memória livresca, obsessivamente voltada para os escritores e os caprichos da criação literária, como para o destino marginal e gauche de seus intérpretes estaria, por certo, preconizando, como Maurice Blanchot, citado por Vila-Matas, de ser o desaparecimento o que marca o destino da literatura: “Para onde vai a literatura?”, perguntaram. “Vai em direção a si mesma, em direção à sua essência, que é o desaparecimento.”4 O enxerto da memória de Borges em escritores pertencentes às culturas antes consideradas hegemônicas e colonialistas representaria uma sobrevida para a literatura que sempre se nutriu do apagamento do outro. Esta seria a resposta positiva em face da proposta literária de Vila-Matas, ao se colocar como mediador de escritas e de memórias alheias, estratégia escolhida para se reconhecer integrado no quadro da literatura contemporânea globalizada. Mas essa posição pode se converter em algo negativo ao insistir na reduplicação de modelos que já atingiram a exaustão e o fastio, esquecendo-se o escritor de buscar um caminho diferente, ainda que nem sempre original para a criação. A metaficção, quando reduzida ao parasitismo e ao mimetismo de fórmulas consagradas, corre o risco de se transformar em ficção para escritores fascinados pela mitologia criada em torno de si próprios. Nesse sentido, no lugar de se pregar o desaparecimento da literatura, como queria Blanchot, ou o desaparecimento do escritor, como assim Vila-Matas preconiza, teríamos a volta triunfal daquilo que, ironicamente, estaria fadado a desaparecer. Esse discurso reforça ainda um dos pontos da poética borgiana responsável por sua consagração mundial, o da autonomia literária, ao conferir à literariedade valor indiscutível para a obra. A presença/ausência da imagem do escritor/autor se transforma em tema literário, intriga que se enreda/desenreda como espelho reduplicador da vida literária e da literatura. A comunidade letrada do século 21 se refestela na fruição infinita dos jogos de linguagem e do teor indecidível das questões estéticas, e a academia encontra na literatura de escritores material permanente para as lições de crítica literária. Não seria mais rentável receber a memória de Borges pelo viés de outras investidas, em contraponto com a cultura letrada, como a cultura popular e a cultura de massa? Nesse sentido, a literatura contemporânea – e por extensão, a crítica – poderia se valer também de suas lições sobre a cultura resumida e condensada que se extrai da leitura desconstrutora das enciclopédias, retirando das mesmas os estereótipos de um saber pautado pela racionalidade, o tédio e a erudição. Em estreita
oposição ao saber capitalista, pautado pela aquisição, acumulação de informação e conhecimento, o autor articula, de modo irônico, a alta literatura e o projeto divulgador de saberes menores. Por essa razão, é considerado defensor do conceito Reader’s Digest de cultura, por exercer duas maneiras de fazer literatura: “Uma culta, hermética, ‘intelectual’, dirigida a um grupo de amigos e iniciados; a outra popular, acessível, leve, atenta aos apetites de um público de massa e anônimo.”5 Mas, é seguindo a lógica capitalista da publicidade que Borges redige o texto para Seleções do Reader’s Digest, em 1967, inscrevendo, à maneira de sua poética, a relação estreita entre cultura erudita e popular. O toque de humor arremata a condensação entre culturas, obtida pelo olhar oblíquo do escritor, o que converte a escrita na prática divergente e dupla, com vistas a criar o curto-circuito entre as Mil e uma noites e os textos resumidos das Seleções do Reader’s Digest.6 A arte do resumo e da concisão, traço da moderna literatura e da publicidade, agrada ao escritor, não só pelo abandono do excesso e do palavrório, mas também pelo prazer da leitura. A cultura letrada, portanto, cede lugar às manifestações artísticas transnacionais e à presença de comunidades periféricas, produtoras de novas sensibilidades e múltiplas subjetividades. Mudanças que acentuam a fragmentação do espaço urbano e a produção de redes comunicativas virtuais, como efeito das novas tecnologias e da transformação das experiências estéticas. A segunda reflexão para o debate de hoje se dá por intermédio da apropriação da imagem de Borges como trovador cego, inserido no romance do marroquino Ben Jelloun, L’ enfant de sable, de 1985. A intenção de inseri-lo como herdeiro da poética borgiana responde, inicialmente, pela recepção também periférica do escritor – e da literatura latino-americana –, assim como pela retomada do imaginário oriental na arte de contar histórias. Em segundo lugar, pela relação entre literatura e valor de mercado, realizada pelo diálogo entre escritores pertencentes a diferentes culturas. Marrocos e Argentina se interagem pela apropriação da moeda literária lançada no comércio global: ou para aquilatá-la como objeto de valor real e simbólico, ou para trocá-la pela prática do gesto ancestral dos nômades contadores de histórias. Borges torna-se personagem de Ben Jelloun, ao ver-se encarnado no trovador cego saído de um bairro de Buenos Aires e enxertado numa medina árabe, para narrar histórias que repetem, em abismo, a trama que envolve as personagens do romance. Marrakech e Buenos Aires se encontram pela voz do rapsodo da praça pública, assim como o escritor cego e sua poética plagiária são condensados na mesma figura do rapsodo: Quando leio um livro, me instalo no seu interior. É o meu defeito. Acabei de lhe dizer que eu era um falsificador. Sou biógrafo do erro e da mentira. Não sei quais mãos me impeliram até você. Creio que são as de seu contador, que deve ser um contrabandista, um traficante de palavras.7
Pelas mãos do contador contrabandista, a literatura argentina, sob a imagem de Borges é enxertada na literatura marroquina, pela mediação das Mil e uma noites árabes, texto de referência da poética narrativa borgiana e fonte quase natural do livro de Ben Jelloun. A falsificação de histórias coloca o comércio literário nas mãos de trovadores da
praça pública, para quem a questão da identidade pessoal do protagonista – nascido mulher e sendo obrigado a se comportar como homem – é o enigma da trama. Essa questão de ordem pessoal se desdobra na troca intersubjetiva dos narradores e da moeda que será passada adiante, no espaço aberto e heterogêneo da cidade. Não há nenhuma dívida a ser paga ao escritor argentino, visto ser ele próprio inspirador do tráfico de palavras e de culturas. Os ecos no deserto árabe da literatura que não mais pertence a um só território convidam o leitor a refletir sobre o domínio inesgotável da ficção que não conhece fronteiras. Se antes a literatura latino-americana e, em especial, Borges, teve que se construir através do cruzamento da cultura europeia com a nativa, será que neste princípio de século, repito, seria possível pensar na inversão desses lugares? A resposta é menos utópica e se pauta pela força que literaturas de países periféricos podem representar na bolsa de valores global, mesmo que seja através de manifestações que se situam fora do contexto literário. A predominância da poética do mais pobre, da poética do menos, tem conseguido driblar a ostentação e a epicidade da indústria cultural dos defensores da poética calcada no acúmulo e na riqueza. Ficaremos, portanto, à mercê do valor imposto pelas transações fiduciárias, as quais revertem em lucro os resíduos culturais deixados pelas narrativas das margens, das intrigas familiares e das complexas redefinições de identidades nacionais? O endosso da lentidão e do ócio como reação à poética do acúmulo e da rapidez não se imporia, ao lado da expressão da oralidade, em praça pública, entre as inúmeras saídas para o impasse entre a visão globalizante e a releitura das demais manifestações artísticas fora de eixos culturais hegemônicos? Buenos Aires, Marrakech, seriam esses velhos/novos espaços os inventores de fábulas que retomam tradições, intercambiam vozes, negociam parcerias e superam os limites territoriais de cada região? No ensaio de Josefina Ludmer, “Comment sortir de Borges?”, a posição ocupada pelo escritor no mapa literário do século 20 é assim por ela interpretada: Podemos ler Borges a partir da nação e a partir do exterior (numa posição interna/externa em relação à Argentina), porque para nós, os argentinos, ele encarna hoje o símbolo da exportação literária do século 20: é o escritor que se globalizou. (…) Se estivesse nos Estados Unidos ou na Inglaterra, poderia me perguntar: de que tipo de produto literário latino-americano se trata? Quais são as condições literárias e também culturais, históricas e sociais para que um escritor latinoamericano como Borges possa participar da literatura universal, ou de um cânone ocidental que abraça todo um século?8
Uma das possíveis respostas a essa questão reside, segundo Ludmer, na tentativa de desagregar as unidades da autonomia textual, a estrutura do cânone, deslocando a tradição literária e cultural na sua íntegra e assumindo a instabilidade do texto e a volatização da autoridade do autor. Na perspectiva da ensaísta, a leitura de Borges poderá se situar entre a nação e além dela, entre a ilusão da cultura letrada que sua literatura oferece e a cultura do presente, situada entre a autonomia e a perda da autonomia, entre passado e presente, entre seu nome e sua dispersão em tradições: “Porque para mim, sair de Borges, retirar de Borges seu nome e sua autoridade não
significa não nomeá-lo, mas desagregar a unidade orgânica de sua obra, retirar-lhe seu caráter imutável e monumental.” E conclui: “Gostaria de ler Borges enquanto tradição, e ler o presente com a tradição Borges, que será, aliás, a da apropriação crítica (aquela de uma contra-Escrita) de suas próprias tradições literárias e culturais.”9 Nas lições de Borges para a literatura do presente – contaminada pela metaficção, pelo convívio estreito entre documento e ficção, teoria e ficção, verdades e mentiras, bartlebys e companhias – o que se propõe é a prática da irreverência diante de sua obra, da mesma forma que ele assim entendia a leitura da tradição. O mimetismo e a subserviência aos modelos não constroem boa literatura, pois a leitura dos clássicos e das tradições exige rupturas e clama por um diálogo impertinente com os precursores. A desconfiança demonstrada pelo narrador pelos espelhos e pelas cópulas, no conto “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius” atua como reforço ao horror de Borges pela repetição, a reprodução e a paternidade. Destituir a função paterna de sua obra, herança nefasta da memória que paralisa no lugar de revitalizar, constituiria, de um ponto de vista positivo, uma das múltiplas entradas no imaginário borgiano, resguardando-se os limites e abrindo-se para o diálogo. A herança negativa se configuraria no espectro do escritor atuando na composição das novas gerações e de uma literatura que apenas se alimenta do artifício criativo como sinal de erudição e conversa entre escritores/críticos. Nada impede que o amor pela literatura e sua atração atávica sirvam de tema para grandes ou menores romances, ou que os acidentes comuns do cotidiano se metaforizem em cenas da mais fina literatura. Ou o que se questiona, nas obras representativas dessa herança negativa, é a prisão a fórmulas estéticas e a consequente exaustão dos procedimentos. A crítica acadêmica – entre a retomada de princípios de crítica textual e autônoma, fiel à consagração canônica e ao beletrismo, e a abertura para fluxos e redes comunicativos, que vão além da cultura letrada e do universo sagrado da literatura – se apresenta, no momento, como herdeira da memória de Borges. Por um lado, assumindo atitude conservadora, própria de momentos considerados de crise, nos quais são refutados critérios de valor deste ou daquele discurso; por outro, a herança borgiana ressoa no ensaio crítico pautado pela atenção dedicada à construção de um discurso situado entre a teoria e a ficção e pelo exercício de saberes menores, avessos ao apelo à totalidade. O ensaio literário praticado por grande parte da produção brasileira acadêmica retoma a posição do escritor/crítico borgiano, ao se desvencilhar da dicção hermética e fechada dos tratados e se valer de critérios que se aproximam da critica de natureza imagética e “religiosa” de Borges. Os conceitos tradicionais da crítica são transformados em imagens ao atuarem como operadores de leitura: aleph, biblioteca de babel, Funes, o mapa do império e assim por diante. Do ponto de vista religioso, expressões como “superstição”, “sacrilégio”, “destino”, “ateísmo”, “sacerdócio” envolvem o vocabulário crítico borgiano e com diferenças apenas no modo de expressão, ganham terreno, ressoam no discurso crítico contemporâneo. A literatura como destino, as imagens de escritores, a preferência por lugares simbólicos por onde passaram os
escritores, como Oscar Wilde no hotel em Paris, “L’Hôtel”, são algumas das heranças de leitura legadas por Borges. Vila-Matas, como foi aqui demonstrado, seguiu os passos do escritor argentino e construiu uma poética que leva ao extremo essas obsessões. Nos anos 1970, a ensaística brasileira recebeu do escritor/crítico brasileiro Silviano Santiago uma reflexão sobre o lugar do discurso latino-americano, de onde surgiu o conceito de “entre-lugar”.10 Tributário da teoria da desconstrução de Jacques Derrida, o conceito consiste no “lugar de observação, de análise, de interpretação que não é nem cá nem lá, é um determinado ‘entre’ que tem que ser inventado pelo leitor”.11 Mas a definição do conceito de “entre-lugar” se alimenta ainda da lição de Borges, legítimo representante de um escritor das margens. Ao adotar esse espaço intermediário de reflexão, Silviano descarta “o lugar-comum dos nacionalismos brabos” e o “lugar-fetiche do aristocrata saber europeu”. Desconsidera ainda o rancor próprio da teoria marxista da dependência, por meio da qual se evidencia o descompasso temporal e a consciência trágica do atraso dos países periféricos em relação à cultura metropolitana. Com a definição de Silviano Santiago do conceito de “entre-lugar”, finalizo minhas palavras dedicadas a este encontro com Borges: Borges me deu a coragem do pensamento paradoxal quando estava preparado (ou estavam me preparando) para os caminhos da racionalidade francesa numa terra onde os lugares-comuns nos impelem para o irracional. Nunca fui vítima da lucidez racional da Europa como um novo Joaquim Nabuco, nem me deixei seduzir pelo espocar dos fogos de artifício ou pelas cores do carnaval nos trópicos. Fiquei com os dois e com a condição de viver e pensar os dois. Paradoxalmente. Nem o lugar-comum dos nacionalismos brabos, nem o lugar-fetiche do aristocrata saber europeu. Lugarcomum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a solidariedade latino-americana. Inventei o entrelugar do discurso latino-americano que já tinha sido inaugurado pelos nossos melhores escritores.12 (Artigo publicado no Jornal de Resenhas, Discurso Editorial, v. 10, p.18-19, 2010. A versão ampliada deste texto foi divulgada na revista Aletria, v. 20, p. 27-35, 2011.)
Referências BORGES, Jorge Luis. Une lo útil a lo agradable. Selecciones del Readers Digest, p. 143, nov. 1967 apud HELFT, Nicolás; PAULS, Alan (Org.). El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2000. BORGES, Jorge Luis. Tlon, Uqbar, Orbis Tertius. In: ____. Ficciones. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1990. p. 431-443. BORGES, Jorge Luis. A memória de Shakespeare. In: ____. Obras completas. São Paulo: Globo, 1999. p. 444-451. HELFT, Nicolás; PAULS, Alan (Org.). El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2000. JELLOUN, Tahar Ben. L’enfant de sable. Paris: Seuil, 1985. LUDMER, Josefina. Comment sortir de Borges? Disponível em: Acesso em: 14 jul. 2010. MANNONI, Octave. Ficções freudianas. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro, Taurus, 1983. SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: ____. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 11-28. SANTIAGO, Silviano. Borges. In: SCHWARTZ, Jorge (Coord.). Borges no Brasil. São Paulo: UNESP/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001. p. 433-434. SANTIAGO, Silviano. Literatura é paradoxo. Entrevista concedida a Carlos Eduardo Ortolan Miranda. Disponível em: Acesso em: 1 nov. 2010. VILA-MATAS, Enrique. Doutor Pasavento. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
Cyro dos anjos: a verdade está na Rua Erê O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, publicado em 1937 em Belo Horizonte, é produto do diário escrito por Belmiro Borba durante o ano de 1935. Com esse pseudônimo, o autor mantinha a coluna de crônicas diárias para o jornal A Tribuna. Com seu fechamento em 1933, Cyro assume a redação da mesma coluna no Estado de Minas. Graças à insistência de amigos e leitores, o escritor decide transformar as crônicas em romance, aproveitando-se da ausência do governador de Minas, Benedito Valadares, de quem era chefe de Gabinete. A obra antecipa futuros memorialistas e romancistas que integram a literatura brasileira e que escolhem Belo Horizonte como tema: Fernando Sabino, com O encontro marcado, romance que recria a cena literária e existencial da década de 1940; Carlos Drummond de Andrade, na série de livros de poemas iniciados com Boitempo; Beira-mar/memórias 4, de Pedro Nava, sobre os anos 1920; o ensaio Um artista aprendiz, de Autran Dourado, de 1989, relata a experiência intelectual que um grupo de artistas protagoniza na década de 1940. Guardadas as diferenças de gênero e de intenção poética, ressalte-se que O amanuense Belmiro registra, em primeira mão, o ambiente intelectual e seus dramas existenciais da época, por meio de uma narrativa entre a autobiografia e a ficção. O romance torna-se referência da vida mundana e letrada, do mapa cultural da Belo Horizonte dos anos 1930, mas se reveste de contemporaneidade, por transpor os limites de uma literatura local. Da rua Erê à Paraibuna, o amanuense ainda perambula e destila seu tédio e seu impecável humor. À maneira de Belmiro Borba, que se vale da mediação literária e filosófica para a composição de sua “personagem de romance”, evoco lembranças livrescas, com a convicção de reacender o debate atual sobre sua obra. Não se trata de legitimar o romance pela mediação de textos contemporâneos, cuja temática se encontra presente no Amanuense. O que se pretende, ao contrário, é reunir as pontas referentes ao momento de publicação do livro com sua recepção no século 21. Tomo a liberdade de registrar tanto os livros visitados pelo autor, como os de Georges Duhamel, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Proust, Nietzsche, entre outros, como os que não constam de sua biblioteca pessoal, como O homem sem qualidades, de Musil (19301933), e Bartleby, o escrivão, de Melville, publicado em 1856, e reeditado, em edição de luxo, pela Cosac Naif, em 2005. Considerada uma das personagens mais enigmáticas da ficção moderna, Bartleby desafia a interpretação racionalista e mantém pontos de contato com as criações de Kafka, Musil e Borges. A novela narra a história de um silencioso escrivão, dominado pela pulsão negativa e pelo nada da existência. Narrada pelo advogado que contrata o copista, este passa a se negar a atender aos pedidos do chefe, expressando-se sempre com a frase, “Acho melhor não”. A situação recorrente é levada a tal extremo que o chefe
nem consegue contra-argumentar ou mandá-lo embora. Bartleby revela-se resistente e vítima passiva do sistema de poder que o rodeia. O caminho para chegar até Belmiro Borba havia ainda sido preparado por outro romance, este de 2004, Bartleby e companhia, do espanhol Enrique Vila-Matas. O mesmo sentimento de imobilidade irá caracterizar os escritores selecionados pelo autor, tomados pela síndrome de Bartleby, como representantes da “literatura do não”, os quais, “mesmo tendo consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso), nunca cheguem a escrever; ou então escrevam um ou dois livros e depois renunciem à escrita; ou ainda, após retomarem sem problemas uma obra em andamento, fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre”.1 A associação com o comportamento de Belmiro Borba é evidente, não só nas crônicas publicadas no jornal, como o que se constata no último capítulo do livro, intitulado “Última página”. Ao receber do amigo Carolino os blocos da Seção de Fomento da repartição onde trabalha, material utilizado para a escrita do diário, a personagem revela-se um dos Bartleby do livro de Vila-Matas, renunciando definitivamente à escrita, paralisação que coincide com o final do livro: “Previdente e providente amigo! Esqueceu-me comunicar-lhe que já não preciso de papel, nem de penas, nem de boiões de tinta. Esqueceu-me dizer-lhe que a vida parou e nada há mais por escrever.”2 O homem sem qualidades, embora conste da biblioteca do autor, em edição francesa de 1957, mas não sendo referenciada por ele, dramatiza um dos mais contundentes temas do início do século 20 – dominado pelo spleen e pelo desencanto das personagens do romance moderno – como sinal de uma época que denuncia a fragilidade dos vínculos entre sujeitos. A precariedade e o desconforto do homem moderno se vinculam ao conflito identitário, ao desvirtuamento dos valores e da convivência do eu com seu “estranho” outro. Baudelaire, um dos maiores representantes da estética moderna, pautada pelas noções de efêmero e transitório, reforça a genealogia desses princípios que se estendem à pós-modernidade. Segundo Christine Buci-Gluksmann, no livro Esthétique de l’éphémère, tanto o spleen da personagem de Musil quanto o baudelairiano – este caracterizado pelo “efêmero melancólico”, pela alegorização do ego e da alienação de si –, se distinguem do “efêmero cósmico” da atualidade, pela sua leveza e positividade, creditadas à herança legada por Nietzsche ao século 20.3 A vinculação desse conceito à obra de Cyro dos Anjos é de notória pertinência: Teatro do luto e da aflição, o Trauerspiel participa de um princípio formal destrutivo que interrompe o curso da história inscrevendo aí o efêmero como precário, fragmento e ruína. Dominado por um Édipo infeliz, ele introduz um efêmero melancólico, em oposição à arte do tempo, cheio de humor, de sensualidade e metamorfose, comum à comedia dell’arte, que celebra a vida como princípio carnavalesco, representando assim o mito de um Ícaro desafiando a lei do pai sem “cair”.4
O amanuense Belmiro é a narrativa sobre o nada, de enredo banal, cujo retrato da vida pacata do amanuense-funcionário público vale-se da ausência de problemas do
cotidiano, pela simplicidade da personagem, que se salva, pela escrita, dos males do século. Dotado de estilo despojado, de linguagem sem maneirismos, o livro se impõe como clássico da literatura brasileira, ao introduzir não só a descrença nas grandes narrativas, mas a vacuidade das relações humanas. Capturadas através do jogo inócuo dos diálogos, essas relações seguem o ritmo lento da imaginação e do teatro mental. No endosso da concepção moderna de literatura que se autodefine como artifício e invenção, o escritor assume o procedimento metalinguístico, bastante comum no romance contemporâneo. O texto autobiográfico se exibe de modo ficcional, de modo que o distanciamento e o humor se contrapõem à verdade do escritor, por meio da encenação banalizada dos problemas existenciais. Por um processo de sublimação, Belmiro Borba se comporta segundo o processo de deslocamentos ininterruptos. Ações que poderiam resultar em efeito trágico, como a loucura e a morte da irmã, o casamento de Cordélia, a diluição do grupo de amigos, são facilmente resolvidas, em virtude do tratamento irônico adotado pelo narrador. A leitura de Belo Horizonte como cidade que se apaga e se revigora ganha sobrevida graças ao gesto ficcional. Três letras compõem o nome da rua onde mora o amanuense, a rua Erê, assim como traduzem o sentimento contraditório de conformidade da personagem à banalidade de sua vida miúda, expressa em tom erudito e metafísico, “a verdade está na rua Erê”. Dividido entre a realidade e a fantasia, o que resta a Belmiro é representar papéis, praticar seu “teatro íntimo” e tentar escrever o livro, já esboçado no diário. A dramatização da escrita, das notas do diário, o afastamento do narrador da realidade, obtido pela encenação em primeira pessoa, permitem o livre trânsito entre autobiografia e ficção, sendo o ato de escrever o devir inacabado, o ausentar-se e o deslocar-se das experiências, uma das múltiplas formas de desalojar o eu de sua própria casa. Esse distanciamento evidencia o grau de representação da literatura, à medida que o narrador, ao impessoalizar a narrativa, a singulariza. Esse devir, nas palavras de Gilles Deleuze, remete para a posição intermediária do narrador, a de “estar sempre ‘entre’ ou ‘no meio’” à medida que “a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o neutro de Blanchot)”.5 A primeira pessoa de Belmiro brinca e disfarça o tempo todo, compondo a figura do escritor-narrador como voyeur do escrito, como personagem da narrativa pretensamente autobiográfica: Não se trata, aqui, de romance. É um livro sentimental, de memórias. Tal circunstância nada altera, porém, a situação. Na verdade, dentro de nosso espírito as recordações se transformam em romances, e os fatos, logo consumados, ganham outro contorno, são acrescidos de mil acessórios que lhes atribuímos, passam a desenrolar-se num plano especial, sempre que os evocamos, tornando-se, enfim, romance, cada vez mais romance.6
E continua Cyro dos Anjos: “Devo retificar, nesta página, o que atrás foi dito sobe o amanuense que espia o amanuense e lhe estiliza o sofrimento.”7
I O núcleo familiar do romance, formado por Belmiro e as duas irmãs, se inclui na categoria da “comunidade de celibatários”, responsável pela linhagem fraterna, suplemento da paterna, submetida ao apagamento e ao silêncio. Essa comunidade é formada pelo gesto que transgride a genealogia paterna e instaura o corte com a procriação que visa à conservação e à reprodução de linhagens de família. A amizade entre homens, a rede de empréstimos passada de tio para sobrinho, inventa famílias literárias, cria laços de parentesco a partir de afinidades eletivas. Belmiro Borba representa, com as irmãs, o término da família Borba, por se verem dotados da marca da esterilidade, interrompendo a continuidade e a preservação da genealogia de uma aristocracia rural. Como a personagem de Melville, Bartlebly, o celibatário, Belmiro é sem qualidades, sem ambição, sem posses, sem fortuna e sem herança – tem apenas a casa da rua Erê, num bairro de operários de Belo Horizonte. Considerando-se um “Borba errado”, pondera sobre o fracasso de sua vida, tendo demonstrado a falência tanto na sua relação com a fazenda, na Vila Caraíbas, quanto no curso não realizado de agronomia, um dos desejos do pai. Nega a estirpe familiar e recebe como herança as duas irmãs, que passam a morar com ele depois da morte do pai. Irmãs que, pela doença mental e a esquisitice, compõem o quadro de uma linhagem que parou ali: Coitado do velho. Neguei as virtudes da estirpe. Sou um fruto chocho do ramo vigoroso dos Borbas, que teve seu brilho rural. Em face do código da família, (cinco avós, pelo menos estão me dizendo – ilustres sombras!) foi um crime gastar as vitaminas do tronco em serenatas e pagodes. Lá estava a fazenda, grande, poderosa como um estabelecimento público, com suas lavouras à espera de cuidados moços. Sinto muito, avós. Eu não podia ouvir uma sanfona. Tocavam a Varsoviana e eu me dissolvia (lá na Vila lhe chamavam Valsa Viana…).8
O comportamento da personagem resulta no gesto parricida e na construção da “comunidade de celibatários”, como função de uma fraternidade universal, “que já não passa pelo pai, que se constrói sobre as ruínas da função paterna, (…) segundo uma linha autônoma de aliança e vizinhança que faz da mulher uma irmã, do outro homem um irmão”.9 Nessa relação fraterna, instaura-se a resistência contra a sociedade capitalista, com sua estrutura hierárquica, consumidora e mercadológica. Ao destruir o retrato do pai, que é o centro do sistema representativo, abre-se o futuro de uma humanidade fraternal. O grupo de amigos ao redor de Belmiro Borba – Silviano, Glicério, Florêncio, Jandira e outros – traduz o seu desejo de exercer um igualitarismo dissolvente, por se sentir na condição de um “procurador de amigos”. Na crônica de 28 de outubro de 1934, publicada em A Tribuna, intitulada “Política da amizade”, o cronista assim se expressa: Tenho os amigos mais diversos em clima, e emprego, no convívio de cada um deles, a política que lhes convém. Podem me achar político, mas a amizade o exige e sou um homem devotado à amizade. (Que tem o leitor com isso? É provável que se irrite ao ver-me assim discursando a meu respeito. Fique o leitor certo de que assim procedo, não porque me julgue um espetáculo curioso,
mas porque sou um homem tão comum, tão da rua, que, falando de mim, é como se falasse da humanidade).10
De natureza distinta é a comunidade vivida por Cyro, na república de estudantes em Belo Horizonte, denominada “Castelo de Celibatários”. Nesta, a condição de celibatário se traduzia pela imposição da supremacia masculina como sinal de libertinagem, farras de estudante e um moralismo próprio dos anos 1920. Embora se formasse “um aglomerado homogêneo, tecido de parentescos, de amizades, interesses afins,” o “Castelo de Celibatários” se caracterizava muito mais, segundo o narrador, pela “reputação duvidosa, e seus moradores representavam escassa esperança matrimonial. Namoro com rapazes do interior, destinados a voltar a terra e por lá casarem, constituía investimento precário. As moças preferiam promissória firme, com aval idôneo.”11 Evidencia-se o oposto da condição de uma sociedade de celibatários, pela ênfase no mercantilismo amoroso e no casamento como vitalidade e mola propulsora da estrutura social. No “Castelo de Celibatários” a exclusão feminina se destinava às moças bem comportadas, reforçando o celibato não pela carência de relacionamentos, mas pelo seu excesso. Como traço da economia capitalista, o casamento se oporia à noção de dispêndio improdutivo, de desperdício, por optar pela reprodução e conservação da vida, o acúmulo dos bens, guiando-se pela necessidade e não pelo prazer.12 A relação histórica entre o escritor moderno e sua ocupação em órgão público se inscreve na imagem do papel timbrado da Seção de Fomento onde Belmiro trabalha, papel este que funciona como o suporte da escrita do amanuense. Espaço de inscrição revelador da situação híbrida do escritor, dividido entre o cargo público e a literatura, por intermédio da ociosidade e das benesses proporcionadas pelo Estado. Entre o pão e o papel fornecidos pelo emprego público, Belmiro adquire a saúde da escrita, a possibilidade criada para o estado de devaneio e a entrega ao mundo imaginário, condição desejada para o exercício da descontração e a cura da doença, causada pelo tédio e a passividade. É por meio desse devir-criador, do engendramento do livro por gestação e parto, metáforas utilizadas por vários escritores, que Belmiro Borba torna-se o pai do filho-livro e de si próprio. Desprovido de capacidade natural para engendrar descendentes, substitui a falta pela escrita, ato que cumpre, simultaneamente, a transformação do narrador em escritor, do seu nascimento aos 38 anos, assim como da sua desistência em continuar o diário. Embora a personagem se encontre, no final do livro, ciente de que a vida parou e que não haveria mais nada para escrever, consegue, ao mesmo tempo, fechar o diário e inaugurar o romance. Da mesma forma que engendra a si próprio como escritor, interrompe a escrita e se cala, à espera da morte. Torna-se autor do próprio destino, assim como o foi da narrativa. Saúde e doença se complementam, vida e escrita se conjugam, morte e vida se completam. No Capítulo 4, “Questão de obstetrícia”, Belmiro condensa a criação literária à gravidez, associação que reúne vida e literatura, conjunção adquirida pelo processo transformador da criação:
“Por que um livro?” foi a pergunta que me fez Jandira, a quem, há tempos, comuniquei esse propósito. “Já não há tantos? Por que você quer escrever um livro, seu Belmiro?” respondi-lhe que perguntasse a uma gestante por que razão iria dar à luz um mortal, havendo tantos. (…) Sim vago leitor, sinto-me grávido, ao cabo, não de nove meses, mas de 38 anos. E isso é razão suficiente. Posta de parte a modéstia, sou um amanuense complicado, meio cínico, meio lírico, e a vida fecundou-me a seu modo, fazendo-me conceber, qualquer coisa já me está mexendo no ventre e reclama autonomia no espaço. Ai de nós, gestantes.13
Ao aceitar a metáfora feminina do parto, o amanuense se contrapõe à recusa de Mário de Andrade por essa metáfora, substituída pela imagem do orgasmo, que se vincula à sensação de prazer. A afirmação corresponde à teoria da criação artística em Mário, liberta do sofrimento e inscrita como alegria e júbilo, além da manifestação de virilidade no ato de criar. Em O amanuense Belmiro, o celibato permite a metamorfose do homem em imagem feminina, ao ser fecundado pela vida e dar origem à literatura. Se a vida parou e o que resta ao amanuense é a invenção da narrativa de retorno ao passado – o traço proustiano de construção da memória –, a escrita impulsiona o novo nascimento e a busca do conhecimento de si. A rua Erê – espaço real e simbólico onde se escreve o diário, mônada que se impõe como verdade, ou lugar onde Belmiro se “encolhe na Rua Erê, como dentro de um caramujo” –, longe de ser o pouso tranquilo, responde pelo deslocamento contínuo a que está sujeita a personagem. Ao remeter à imagem do útero que protege seu morador e que o restitui ao ambiente privado e doméstico, a casa da rua Erê contém o embrião e a fonte da criação, onde se engendra o mundo imaginário e particular de Belmiro Borba. Convivendo com a realidade e o artifício, substitui a experiência em sociedade pela reclusão, o sofrimento e a dor em saída bem-humorada e estilizada da vida, filtrada pela escrita. A verdade da rua Erê se evidencia pela negação do amanuense de participar efetivamente do convívio com a comunidade, manifestando, como Bartleby, a sua passividade por meio da potência de poder dizer não. Negativa que torna positivo o ato de escrever e de viver, assim como permite afastar-se do sentimento melancólico da modernidade, ao optar pelo humor e pela “afirmação da vida segundo o princípio carnavalesco”: “As coisas, louvado Deus, não se mexeram de seu lugar. Tudo está como deixei e como sempre esteve. (…) Entretanto, as transformações interiores me devastaram.”14 Ou: A um Belmiro patético, que se expande, enorme, na atmosfera caraibana – contemplando a devastação de suas paisagens –, sempre sucede um Belmiro sofisticado, que compensa o primeiro e o retifica, ajustando-o aos quadros cotidianos. Chegado à sua toca, da rua Erê, o Belmiro egresso de Caraíbas se apalpa, se reajusta e assobia a fantasia do hino nacional de Gottschalk.15
Como expressão de uma coincidência literária, Belmiro Borba tem, em 1935, a mesma idade de Belo Horizonte, ou seja, 38 anos, coincidência que remete para a natureza alegórica do texto, cujo tema é a narração de experiências vividas na cidade. Belo Horizonte, cidade republicana e moderna, condensa a passagem do antigo para o novo, do interior para a capital, do ambiente rural do campo para a modernização urbana. A
modernidade cultural chega pelos livros estrangeiros avidamente adquiridos na rua da Bahia, razão pela qual é possível entender a atmosfera do novo a inspirar a intelectualidade mineira, residindo numa metrópole também nova e moderna. O desenraizamento do sujeito, a perda da individualidade no meio da multidão, a separação entre a esfera privada e a pública – responsável pela legitimação do exercício da democracia, um dos lemas da política moderna, instauradora dos padrões republicanos – redimensionam a vida em sociedade e compõem o cenário do livro. De que modernidade pertence a cena montada pelo amanuense Belmiro? É possível admitir, no presente, que a noção de modernidade assume várias modalidades, por não se constituir como homogênea e universal. O atual conceito de modernidades alternativas, que nega a interpretação de ser a modernidade sinônimo do ocidentalismo eurocêntrico, poderá ser entendido, no caso de Cyro dos Anjos, como a expressão de um modernista tardio. Nesse sentido, sua obra se justifica pela extrema concordância com a poética contemporânea, justamente por não se circunscrever ao modelo modernista e se desvincular da proposta nacionalista que marcou a maior parte da produção dos anos 1920 e 1930. No penúltimo capítulo de O amanuense Belmiro, “Mundo, mundo”, a descrição do sonho da personagem evoca a cena modernista, composta por Drummond, Emílio Moura e um poeta sem nome. Classificando os dois primeiros, respectivamente, como poeta irônico e místico, e o sem nome como intérprete da poesia popular e anônima, o amanuense presta a devida homenagem aos amigos, registrando as duas vertentes da poesia modernista, aliada à terceira, a popular. Sem escolher qual caminho seguir, fecha a cena-sonho com a imagem festiva de um congraçamento entre todos: “Depois, braços dados, volteando em redor de mim e acompanhados pelo chefe de trem, que soprava um grande trombone, cantavam a una voce: ‘Mundo mundo vasto mundo / mais vasto é meu coração’.”16 Sua posição entre os modernistas é afirmada, de modo mais direto, em A menina do sobrado, quando comenta sua experiência no jornal O Diário, ao lado de Drummond, Emílio Moura e João Alphonsus: Oficializou-se, desse modo, a adesão, meio cômica, do companheiro que entrava no fogo quando alguns já saíram dele, que, afinal de contas, nenhum fervor levava na alma. Minha atitude genuína, perante modernistas e passadistas, assemelhar-se-ia à do velho Horácio, filho de Bernardo Guimarães e primo do João, a quem igualmente fui conhecer no Diário, como redator de tópicos: cético, avesso a radicalismos, Horácio via os moços com olhos sorridentes, cheios de simpatia, derramando compreensão, mas nem por isso atirava os velhos à geena; menos, talvez, por apego à sua geração que por fidelidade à sua musa, a dúvida. Na verdade, eu não me engajava naquele movimento já a desintegrar-se.17
II Um grupo de amigos, e entre eles João Alphonsus e Oscar Mendes, reunidos na redação do jornal Folha de Minas, oferece a Cyro dos Anjos, em dezembro de 1937, o retrato a óleo pintado por Delpino Júnior, como homenagem ao sucesso de O amanuense Belmiro. A festividade, ao marcar um dos rituais de consagração do escritor, traduz a conjunção entre a imagem de Cyro e a da personagem de Belmiro Borba. A ambiguidade gerada pela relação entre realidade e ficção é acrescida pelo reforço à semelhança, evocada pela saudação do escritor João Alphonsus. O clima de cumplicidade entre a ficção e a realidade permite que sejam confundidos Belmiro Borba, o retrato de Cyro e a profissão de amanuense exercida pelos amigos. Ao ampliar a dimensão biográfica de uma geração de amanuenses, o autor do conto “Galinha cega” retira o valor de verossimilhança do retrato circunscrito à singularidade do escritor e da pretensa autobiografia atribuída a O amanuense Belmiro. Registra-se a consagração do romance de uma geração, pelo reconhecimento não só da intelectualidade local, mas da consideração da crítica em nível nacional. “Quero acentuar a sua descoberta, ou a sua revelação, Cyro dos Anjos: a parte belmiriana ou belmírica de cada indivíduo da nossa geração, nos altos e baixos do destino, onde quer que estejamos.”18 A leitura, primeiro, condensa autor e personagem para, em seguida, consagrar a literatura como discurso que supera a imagem do real e a substitui. A personagem torna-se mais forte do que o seu criador, o que possibilita a entrada do escritor no meio dos notáveis e a conquista da notoriedade. É comum, no campo intelectual e artístico da sociedade letrada, o processo de fabricação de imagens através de retratos pintados por artistas reconhecidos. A imagem pública do escritor se consolida pela sua representação plástica, a ser exposta como signo de poder e de negociações futuras. Dessa maneira, o livro e o retrato tornam-se símbolo da consagração autoral de Cyro dos Anjos. As palavras de João Alphonsus são as que se seguem: Neste retrato a óleo que lhe oferecemos com alvíçaras (o termo não é meu: alvíçaras pode ser atribuído à presença espiritual do nosso comum amigo Belmiro Borba), Delpino pintou você, não somente com talento, mas também com amizade. Não ligo que haja favorecido o modelo, como se diz em gíria fotográfica, por efeito da amizade: empregou engenho e compreensão. Retratou a imagem física e a psicológica. Não esqueceu nenhum dos acidentes epidérmicos, minucioso na complicada orografia de sua pele. E também não esqueceu nenhum dos traços sutis do rosto como espelho da alma e do espírito: inteligência, talento, bondade, solidariedade humana, perplexidade diante dos problemas eternos e, por aí, os sinais do amanuense Belmiro Borba…19
São dessa época os inúmeros retratos realizados por Delpino Júnior, entre eles os de Juscelino Kubitschek, Clóvis Salgado, ao lado de caricaturas, como as autocaricaturas e a de Emílio Moura. Concorre com o retrato de Cyro dos Anjos ao Prêmio do II Salão de Belas Artes de Belo Horizonte, em 1938, além de apresentar o desenho de Belmiro
Borba, comentado por João Alphonsus, em conferência apresentada no Salão. Nesse texto, a personagem, ao ser retratada por Delpino, adquire vida própria, preservando-se ainda a crença na imagem verdadeira, reproduzida, ironicamente, pelo desenho. Em tom humorístco, João Alphonsus decide sobre o estatuto de Belmiro Borba como ficção, graças à imagem criada pelo desenhista. Cyro e Belmiro, autor, pseudônimo e personagem se acham expostos no Salão, e adquirem, ainda que imaginariamente, autonomia, no entender do conferencista João Alphonsus: Belmiro seria uma ficção? Belmiro existiria na realidade, ainda que fosse na realidade profunda, fora do comum? O II Salão de Belas Artes veio solucionar o problema. Aqui podemos contemplar, de olhos baixos, recolhido no fundo de si mesmo, num retrato exposto, o verdadeiro Belmiro Borba. Belmiro sonha com as moças em flor… Esta é a legenda.20
Em 2006, ano do centenário de Cyro dos Anjos, as comemorações atuaram como novo ritual de consagração do escritor, configurado tanto pela doação, pela família, de seu acervo à UFMG, quanto pela publicação do desdobrável Cyro dos Anjos, homenagem do programa Sempre UFMG ao ex-aluno, e da realização da exposição. A literatura cumpre, assim, a função de ser um recado do escritor para a contemporaneidade, por atuar como mensagem para o futuro. (Ensaio publicado em: MARQUES, Reinaldo; SOUZA, Eneida Maria de (Org.). Modernidades alternativas na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 56-79.)
Bibliografia ALPHONSUS. João. O romancista e seus personagens. In: Segundo Salão de Belas Artes da Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte, 1938. ALPHONSUS, João. (1937). O discurso de João Alphonsus. In: NOBILE, Ana Paula Franco. A recepção de O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos (1937). São Paulo: Annablume, 2006. p. 180-181. ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo & a falta que ama. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968. ANJOS. Cyro dos. O amanuense Belmiro. Belo Horizonte: Garnier, 1994a. ANJOS. Cyro dos. A menina do sobrado. Belo Horizonte: Garnier, 1994b. ANJOS. Cyro dos. Política da amizade. In: ____. A Tribuna. Belo Horizonte, p. 186, 28 out. 1934. BATAILLE, Georges. A noção de despesa. In: ____. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 27-45. BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Esthétique de l’éphémère. Paris: Galilée, 2003. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. MELVILLE, Herman. Bartleby e companhia. São Paulo: Cosac Naify, 2005. (Coleção Particular). NAVA, Pedro. Beira-mar/memórias 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. SABINO, Fernando. Encontro marcado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956. VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK Dedico este texto a Solange, exemplo de inteligência, rigor e amizade, qualidades reveladas ao longo dos quatro anos do curso de Letras da UFMG, década de 1960, na saudosa rua Carangola. O Palácio da Liberdade tomou ares de academia, tantos são os ilustres escritores que têm já o seu “bureau” e cruzam a todo instante as muitas portas que dão acesso ao gabinete de S. Exa. Quando, há pouco, fui ao palácio, querendo falar com o chefe de gabinete do governador (naturalmente, para amolar e pedir coisas, como todo mundo) e encontrei o Murilo Rubião numa salinha apertada e entulhada de calhamaços de processos, confesso que tive pena. Fiquei procurando naquele homem que falava em dois telefonemas ao mesmo tempo, dando ordens e assinando papéis, o Murilo artista que escrevia os contos mais malucos que se possa imaginar. Sim, porque o atual chefe de gabinete é escritor premiado pela Academia Brasileira de Letras, pelo seu livro de contos O ex-mágico, publicado em 1947, no Rio de Janeiro. No meio daquela barulhada de máquinas de escrever e campainhas, fiquei pensando se ele se sentiria como a sua personagem que, tendo entrado para o Serviço de uma Secretaria de Estado, perdeu a sua faculdade sobrenatural de fazer mágicas – a burocracia a havia aniquilado – e o coitado passou o resto da vida a se lastimar: “sem os antigos e miraculosos dons de mago, não posso abandonar a pior das profissões humanas… RAMOS, Maria Luiza. A “Academia” da Liberdade. Diário de Minas, 7 out. 1951.
Pretendo discutir neste ensaio o lugar ocupado pelos intelectuais brasileiros que trabalharam diretamente com Juscelino Kubitschek no período relativo às suas gestões como governador de Minas (1950-1955) e presidente do Brasil (1956-1961), assim como a relação entre função pública e realização literária. Inserido em projeto de maior dimensão, este texto se restringe à construção do perfil de apenas dois escritores entre os escolhidos para análise – Autran Dourado e Murilo Rubião – com vistas a examinar até que ponto o apreço do governante pelas artes e pela literatura justificaria a nomeação de assessores pertencentes à classe intelectual. Conforme interpretação de Humberto Werneck, esse apreço traduziria a forma de garantir “luz e brilho à face verbal de sua administração e neutralizar a perigosa inclinação oposicionista dos intelectuais”.1 Nas palavras de Autran Dourado, a situação é descrita em tom mais jocoso e pragmático: Logo no início do governo JK, o Schmidt aconselhou-o a conviver com gente mais culta e inteligente. Cafajeste é para campanha, para carregar nos ombros, disse ele. Já tenho os meus escritores, que não me dão problemas, disse JK. Mas você não convive com eles, não os convida para almoçar e jantar, não lhes dá importância, disse o poeta. Eles são máquinas de trabalhar, mas de qualquer maneira dão nome ao seu governo. Quando chega a hora de jantar estão mortos de cansaço.2
A importância concedida ao intelectual pelos governantes sofre transformações ao longo da história e é motivo de controvérsias entre os estudiosos do assunto. Nesse
sentido, toda cautela é pouca, pois afirmações apressadas muitas vezes correm o risco de caírem no ridículo. O inventário desse grupo de intelectuais funciona, portanto, como parâmetro para a compreensão do emprego público como sistema de trabalho, um dos meios de se alcançar prestígio e ascensão social, e de contribuir para a construção do perfil do escritor a serviço do poder republicano, em vigência até a metade do século 20.3 Entre os escritores que participaram do projeto modernizador de JK, exercendo a função de funcionários públicos, encontram-se Affonso Ávila, Alphonsus de Guimaraens Filho, Fábio Lucas, Cristiano Martins, Rui Mourão, Autran Dourado, Murilo Rubião, no governo do Estado; Cyro dos Anjos, Josué Montello, Álvaro Lins, Francisco de Assis Barbosa, Augusto Frederico Schmidt, Antônio Houaiss, Geraldo Carneiro, na presidência. Alguns deles ocuparam cargos nas duas gestões, como é o caso de Autran Dourado, seja como oficial de gabinete no governo de Minas Gerais e de secretário de imprensa na presidência. A proximidade – ou a distância – entre o projeto político e o projeto literário, artístico e crítico desenvolvido pelos intelectuais a serviço de JK merece ser analisado de modo cauteloso, para que não seja atribuída a este ou àquele escritor a pecha de conivência com regimes políticos. Uma primeira abordagem da situação constata a existência de obras literárias que ora defendem princípios poéticos em consonância com o vanguardismo político, ora dele se afastam, por se caracterizarem como discursos sempre em tensão e conflito. A legitimação dos discursos artísticos não depende da chancela política, mas torna-se inoperante nesse raciocínio acreditar no papel neutro desempenhado pelo escritor no exercício de um cargo público. Para o prosseguimento desse raciocínio, torna-se necessário incluir a discussão sobre a defasagem entre o processo de modernidade e o de modernização efetuado na América Latina, através do conceito de modernidades tardias, considerando as inúmeras vias de recepção da modernidade entre as comunidades de cada país, assim como a dificuldade de generalizar manifestações que se produzem num mesmo espaço temporal. O que norteia essa análise é o exame das contradições que se processam no âmbito dos discursos – sejam eles de diferentes modalidades – diante do embate entre conservadorismo e vanguarda, comportamento personalista e impessoal, indefinições entre esfera pública e privada, cordialidade e representação. A relação horizontal que se estabelece entre os níveis diferentes de discurso é responsável por interpretações casuísticas e sociologizantes, resultando em perda para ambos os lados. Torna-se necessário, portanto, indicar pontos de contato e diferenças entre a pesquisa de teor sociológico – realizado por Sérgio Miceli em Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945) –, a partir de um enfoque que privilegie o texto produzido por esses intelectuais, sem prejuízo de associar essa escrita à posição por eles ocupada no cargo público, levando em conta um raciocínio binário e realista.
O livro de Miceli atua como referência para nossa reflexão, ao enfocar o lugar ocupado na vida pública pelos intelectuais modernistas sob o rótulo de “cooptação” com o governo ditatorial de Vargas, por motivar associações com outro grupo de escritores que se sucederam imediatamente àquele. Nossa abordagem, contudo, se distancia daquela assumida pelo sociólogo, ao se considerar não só a participação pública dos intelectuais, como também a articulação entre obra literária (ou de outra natureza) e compromisso político. Na abordagem em pauta, regida por princípios de ordem biográfica e cultural, são valorizadas as contradições existentes entre as esferas pública e privada, assim como entre a escrita pessoal, artística e a escrita oficial desses escritores. Augusto Frederico Schmidt, por exemplo, poeta da segunda geração do Modernismo, representava a corrente romântica e espiritualista na poesia brasileira, além de defensor de uma retórica discursiva muito a gosto do discurso político. Editor, empresário, crítico literário, o poeta redigia os discursos de JK na presidência, tornando-se a figura mais influente do governo, pelas suas boas relações sociais na capital do país. Como homem de negócios e pela experiência mundana, respondia ao projeto desenvolvimentista de JK, mas no que diz respeito à sua escrita pessoal e literária, esta se contrapunha completamente aos princípios de vanguarda presentes na poética que surgia na década de 1950, como o concretismo, o neoconcretismo artístico e o recorte abstracionista. O conservadorismo em poesia estava em conflito com a astúcia e a retórica palacianas, considerando estar Schmidt investido na produção de discursos do “presidente bossa-nova”. Como articulador de relações internacionais entre o Brasil, a América Latina e os Estados Unidos, foi o responsável pela Operação Pan-Americana (OPA), que tinha como objetivo captar recursos para projetos de desenvolvimento com vistas a colocar o Brasil na posição de liderança frente aos países latino-americanos e assegurar boas relações com a superpotência americana.4 Os resultados, embora negativos, anteciparam outros planos e intercâmbios realizados por futuros governantes, como a ALCA e o Mercosul, também abortados.
Modernidades tardias no Brasil Na década de 1940, a equação moderna brasileira, com plena realização nas áreas da literatura e das artes plásticas, recebe novo impacto e se configura, tardiamente, nos projetos arquitetônicos, com a presença de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer e sob a influência do arquiteto suíço Le Corbusier. O projeto da Pampulha, em Belo Horizonte, desenhado para se instalar na periferia de uma cidade moderna e recém-construída, deu continuidade às obras anteriores assinadas por seus autores, além de abrir o caminho para a construção de Brasília, obra-prima de arte concreta. Inaugurado em 1942 – com exceção da Igreja de São Francisco –, o conjunto arquitetônico representava, no Brasil, o desdobramento do que tivera início, nos anos 1920, nos planos literário e artístico. Essa construção, por se achar afastada do centro da cidade e enxertada na parte ainda despovoada de Belo Horizonte, deslocava o espaço tradicional reservado à vida pública e inaugurava a arquitetura moderna na “periferia” de uma cidade igualmente moderna. Com traços racionalistas e abstratos, voltado para o caráter internacional que presidia seu projeto estético e para a singularidade da arte de Niemeyer, o conjunto arquitetônico acrescentou, nesta época, outra dimensão ao conceito de moderno. No auge do movimento modernista prevaleceu, segundo Otília Arantes, em Mário Pedrosa – itinerário crítico, a tendência nacionalista, após uma fase de total abertura à lição das vanguardas europeias, que culminou no endosso de propostas de ordem francamente social. Entende-se assim a intenção de pôr em prática uma atividade cultural que se pautava por contornos expressionistas do país, na ânsia de consolidar, pelo apelo à figuração, a imagem ainda pouco definida de pátria. Se o primitivismo inspirado pelo cubismo fora substituído pelo caráter deformado e contundente da arte expressionista-barroca, o abstracionismo receberá ainda certa resistência. Para os defensores de um traçado mais nítido para o desenho do nacionalismo brasileiro, a configuração plástica do país não coincidia com o aspecto disforme e sem rosto da arte abstrata, dotada de uma estética calcada mais nas manchas e nas linhas do que nas imagens, embora deformadas, das figuras. Portinari e Segall representavam, plasticamente, o momento de alta significação monumentalista e social da arte brasileira dos anos 1930. A fusão entre vanguarda estética e vanguarda política permitia ainda a permanência de valores sociais e coletivos no âmbito da arte, a ponto de ser a pintura dessa época uma das grandes referências da tradição nacionalista e engajada do moderno. Indaga-se, contudo, o que ficou deste programa estético, com o abalo das ideologias desencadeado pela Segunda Guerra Mundial ou pela presença de novas ideias introduzidas pelos Estados Unidos. O abstracionismo da década de 1940, por exemplo, aclamado por Mário Pedrosa como uma das formas de redefinir regionalismos e nacionalismos artísticos, chegava aos portos do país com a mobilidade das esculturas do artista americano Calder.
O discurso de abertura da Exposição de Arte Moderna de 1944 aponta o desejo do então prefeito da cidade, Juscelino Kubitschek, de reforçar a atmosfera de renovação artística de Belo Horizonte, com o intuito de colocá-la no nível das grandes metrópoles. Uma nova metrópole deveria, pela sua tradição e história, sensibilizar-se com as mudanças processadas na área cultural, sem se deixar contaminar “pela toxina de idades mortas”.5 Sem ignorar a relação ambivalente, e por vezes precária, existente entre estética, técnica e política, torna-se necessário refletir sobre o convívio da industrialização com a vanguarda artística promovida pelo discurso modernizador de Kubitschek. A arquitetura, em escala bem maior do que outra manifestação cultural, representou, para o governo, uma maneira visível e popular de novamente redefinir os conceitos de território e de apropriação na era moderna. O preço a pagar por esse investimento residia na proposta da arte abstrata, referida linhas atrás: o começo da capo, a recusa em admitir o passado como modelo e o desejo de construção da nacionalidade pelo viés de valores internacionais e cosmopolitas. A abertura de Minas para as formas mais arrojadas da arquitetura inseria o discurso político na rota da vanguarda, pelo rompimento com o passado do período colonial, visto como “subdesenvolvido”. Um quadro polêmico da Exposição de Arte Moderna de 1944 merece ser comentado: trata-se da obra de Guignard, Retrato do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, do mesmo ano, considerado pela imprensa como incompleto, ou seja, “a ser concluído oportunamente pelo Sr. Alberto da Veiga Guignard”. Segundo a opinião pública, esta e outras peças expostas na referida Exposição se apresentavam de forma imperfeita e deformada, por contrariar os princípios naturalistas da obra de arte. A crítica ao quadro, ainda que feita por pessoas comuns, atinge a imagem do prefeito, confundindo-se, mais uma vez, arte e realidade, com prejuízos para a integridade física e moral do retratado. Ser fiel ao modelo conferia, à obra, o selo de sua autenticidade e legitimidade. Curiosamente, a trajetória do quadro – hoje integrando uma coleção particular – reveste-se de interesse para que seja valorizado como “um dos melhores trabalhos do Mestre Guignard”, conforme avaliação de seu ex-aluno do Parque Municipal, Jefferson José Lodi.6 No entanto, segundo declaração de Maria Beatriz Soares Prates, sobrinha de Juscelino, o referido quadro, tendo sido presenteado por ele à irmã, Dona Naná Kubitschek Soares – e que, posteriormente, o doou à filha –, esteve por 20 anos escondido por trás de uma gravura. Após a descoberta da obra e de seu valor, a peça foi encaminhada para restauração, onde foram detectadas algumas sujidades generalizadas, como “respingos de cera no lado inferior esquerdo” e “perda do suporte da moldura no lado inferior esquerdo”.7 A restauração permitiu devolver à pintura a sua qualidade inicial, o que se comprova pelo ótimo estado atual da peça. A pergunta que resta dessa aventura é sobre a relação entre Juscelino e o seu retrato feito por Guignard, considerando-se o fato de o prefeito ter dado o quadro à irmã e esta tê-lo escondido atrás de uma gravura. Estaria o retratado também em desacordo com a
imagem inventada pelo artista, ou teria sido influenciado pelas críticas da opinião pública? O homem político exigiria a analogia perfeita entre arte e realidade, entre modelo e cópia, contrariando o que pregava como moderno em arte? As possíveis distorções da figura deveriam obedecer aos princípios de coerência entre pessoa física e a imagem produzida pelo outro? É possível cobrar coerência em arte ou em política? Essas questões compõem um dos grandes desafios desta tese a ser defendida: qual retrato seria mais fiel ao nosso então prefeito de Belo Horizonte? Que tratamento estaria mais condizente com a figura múltipla e controvertida de um governante que ajudou a construir, com audácia e coragem, a nova imagem de uma cidade moderna? Seria essa imagem o avesso da escrita política, ou o lado direito da arte?
Uma escrita enviesada A produção literária e artística da época contava, entre seus representantes mais notáveis, poucos remanescentes escritores modernistas que ainda permaneciam na cidade, como Cyro dos Anjos, Abgar Renault, Henriqueta Lisboa, além de jovens que começavam a surgir no cenário intelectual do momento. Alphonsus de Guimaraens Filho, Murilo Rubião, Fernando Sabino, Autran Dourado, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende, entre vários outros, irão lançar os primeiros textos literários na década de 1940, embora já exercessem a profissão de jornalistas. Alguns entre eles serão futuros parceiros de Kubitschek na vida pública, ainda que tenham, à época, se posicionado de forma contrária à política municipal, por sua filiação à imagem de Getulio Vargas. Outra parcela da classe de jornalistas, ensaístas e escritores defendia, a seu modo, o espírito de academia, pelo conservadorismo e passadismo de suas ideias, destacando-se entre eles Eduardo Frieiro e Jair Silva. Esses intelectuais terão uma posição crítica frente às realizações da arte moderna, não pelo bom senso, mas pela incapacidade de acompanhar as mudanças da cidade e a chegada, mesmo que tardia, do movimento cultural e artístico que transformaria a cidade no que ela é atualmente. Eduardo Frieiro sempre se colocou contra o Modernismo, embora tenha publicado, pelo selo “Os Amigos do Livro”, Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade, em 1930 e O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, em 1937. Na gestão de Juscelino Kubitschek como governador de Minas, Frieiro foi eleito primeiro diretor da Biblioteca Pública Estadual, em 1954, exercendo o cargo com muito entusiasmo e competência. Mas no Novo diário, destila o preconceito contra os artistas modernos, convidados por Juscelino para a Exposição de Arte Moderna de 1944. Misturava modernidade com comunismo, o que o tornava adepto de uma posição conservadora em arte: 6 de maio – Inauguração, hoje, da Exposição de Arte Moderna, promovida pela prefeitura. Expositores do Rio e de São Paulo. (…) Acontece que os artistas e literatos, campeões da arte moderna, são todos comunistas. A “arte de vanguarda” é uma das armas de propaganda dos bolchevizantes das Américas. (…) O momento é mesmo de confusão. Os artistas e literatos comunistas do Rio e São Paulo são todos uns grã-finos, filhos de famílias privilegiadas, repimpados em bons empregos públicos, frequentadores das rodas burguesas. Snobs da alta ralé. Bolcheviques de salão aristocrático.8
Nas obras de Autran Dourado e Murilo Rubião, dois escritores representativos desta literatura nascente e dessa ideologia tão combatida por Frieiro, há a predominância da estética não figurativa no processo de construção do texto, em que se diluem as marcas de referência do espaço urbano, próprias da estética modernista, e se acentuam os traços intimistas das personagens. O conto “O edifício”, de Murilo Rubião, de 1965, se desenvolve em torno da construção de um edifício interminável, através do movimento ininterrupto e pela apropriação do motivo do arranha-céu, um dos ícones da cidade moderna.9 Na interpretação de Renato Cordeiro Gomes, o conto seria “uma narrativa
alegórica de fundação da modernidade, aberta a um futuro interminável, sempre em construção, mas conjugado a forças míticas arcaicas, para criar, em seu paradoxo, um outro mito, o da própria modernidade”.10 O descompasso entre o caráter progressista e eufórico da modernização urbana processada, à época, em Belo Horizonte, e o texto de Rubião, reforçam a necessidade de se ler, pelo avesso, e numa perspectiva crítica, as contradições existentes entre os domínios da arte e os da política. Em resenha publicada na Folha de S.Paulo, por ocasião da publicação da obra completa de Murilo Rubião, Davi Arrigucci expõe a natureza da escrita urbana do contista, segundo a perspectiva abstrata e diáfana de sua poética: A cidade muriliana é o palco cinzento, decaído e arruinado que sobrou das ilusões romanescas, não o sertão ainda transverberado pela luz da transcendência; pode ser também um espaço onírico e labiríntico, onde destinos próximos e por vezes incestuosos vivem errantes a existência sem centro dos tempos modernos. Na verdade, o cenário muriliano por excelência forma um continuum com o tempo: encerrado em si mesmo, congelado como uma sala de visitas mineira recoberta de pó, teia e rendas da memória, mas a uma só vez eco ou reflexo ruinoso da sociedade industrial, da metrópole capitalista, descontínuo e sistemático (no sentido que o termo tem em Minas), metódico até à mania, rangendo em rodopio segundo os sestros descompassados de um relógio com as molas do ventre expostas, ele se presta à osmose fantástica das temporalidades diversas, que se invertem, se entrecruzam e se mesclam com a mesma identidade escorregadia dos seres raros aí imersos.11
Em 1946, um grupo de poetas e escritores funda a Revista Edifício, tendo como redator-chefe Autran Dourado, na qual são utilizados, como epígrafe, versos de Drummond, indicadores de uma construção em ruínas: “Que século, meu Deus! Diziam os ratos. / e começaram a roer o edifício.”12 Nessa revista, além do espírito cosmopolita e universalista do grupo, registram-se as marcas da modernização do espaço urbano, com a construção de prédios amplos e a abertura de livrarias “modernas”, pelos reclames inseridos nos quatro únicos números da revista. Irônicos e em descompasso com a nova postura estética dos jovens, os reclames funcionam ainda como contraponto à epígrafe da revista, cujo intuito era mostrar a ruína e as contradições de uma modernidade periférica. É evidente o elo entre as pretensões desse grupo literário – formado por comunistas e católicos – com o conto de Murilo Rubião, “O edifício”, embora a data de publicação seja posterior, pela utilização do arranha-céu como tema. A transformação modernizante da paisagem urbana estava sujeita a críticas, da mesma forma que servia de inspiração para os poetas e escritores da época. Inicia-se um tempo de novas subjetividades, do desamparo do sujeito diante da sua perda gradativa no anonimato da cidade grande, dando lugar para diferente atitude estética e uma poética mais intimista e fantástica, como no caso específico de Murilo Rubião. Babeliza-se a cidade através da construção de torres que anseiam chegar ao céu; concebe-se diferente espaço de moradia, pela redução do lugar de convivência, ampliando-se, contudo, os sítios de encontro em praça pública, pela criação de ambientes de lazer e de convívio coletivo.
No mesmo diapasão, a obra de Autran Dourado é interpretada por João Luiz Lafetá, ao considerá-la centrada na releitura metafórica de um Brasil arcaico, o que reforça o descompasso temporal entre presente e passado. Ao optar o escritor pela configuração de um país que parou na década de 1950, antes da modernização conservadora e, segundo o crítico, da “mais terrível desigualdade social”, o ambiente urbano da metrópole é substituído por lugares ainda desprovidos da febre progressista, da contradição entre modernidade e modernização. Lafetá assim se expressa: Não quero terminar sem uma última observação: a fotografia de Duas Pontes que Autran Dourado pendura na parede é o retrato de um Brasil que acabou nos anos 1950, ao longo do governo modernizador de Juscelino, esse presidente cordial e autoritário (à moda mineira), fino e grosseiro como os políticos de Duas Pontes, e que bem poderia ter nascido em Duas Pontes, em vez de Diamantina, a qual, por sua vez, poderia ser Duas Pontes, de tanto que se parecem.13
João da Fonseca Nogueira, alter ego de Autran Dourado, exerce o papel de escriba das histórias da cidade imaginária Duas Pontes, sintomaticamente nomeada sob o signo da dualidade e sobre a qual se estrutura o ambiente de fantasia do autor. Apropriando-se da máscara e da persona como artifícios poéticos, a criação literária autraniana se explica pelo princípio aristotélico de verossimilhança interna. Uma autobiografia imaginária é encenada, com a ajuda do protagonista João da Fonseca – evidente em “Um artista aprendiz” e A serviço del-Rei – pela condensação e deslocamento da imagem do escritor e de outras personagens, procedimento capaz de enriquecer os retratos ficcionais e de disfarçar pretensas associações com atores reais. Em 2000, Autran publica Gaiola aberta,14 “memórias palacianas”, livro que relata o convívio mantido entre o secretário de imprensa e o presidente. Ao assumir o texto de memória, o autor se posiciona como cronista da corte, abstendo-se de ficcionalizar sua experiência, como o faz em A serviço del-Rei. O pacto de fidelidade ao vivido, pela sua natural impossibilidade, não se realiza de forma completa, uma vez que o recorte da narrativa já está contaminado pela atitude subjetiva daquele que narra os fatos. A intenção do narrador é a de colocar em cena episódios ligados à vida privada de um presidente que, no Brasil dos anos 1950, ainda poderia desfrutar de certa liberdade de comportamento, atitude hoje inadmissível. Na intenção de descrever Kubitschek, tanto na informalidade das ações quanto na formalidade exigida pelo cargo, ao leitor é apresentada a descoberta de um país ainda em processo de modernização, e um governo no qual eram resolvidos os problemas de maneira quase privada e sem grandes riscos. Os bastidores do poder são interpretados, ao longo da narrativa, como acontecimentos ficcionalizados, ao receberem o toque pessoal do escritor e se integrarem ao imaginário da época. O leitor se frustra por não encontrar grandes cenas envolvendo o presidente, mas pequenas histórias descritas com sutileza e ironia, valorizando-se o cotidiano das pessoas famosas. A decisão sempre adiada de publicar as memórias foi motivada não só pela dificuldade de narrar experiências pessoais, mas pela possível reação dos antigos correligionários de Kubitschek. De fato, ao se sentirem
traídos pela memória “distorcida” do escritor, não perceberam ser a narrativa autobiográfica sujeita a invenções e a interpretações de ordem pessoal. Afinal, o biografado, pelo seu carisma e importância, tornou-se refém da memória coletiva e da crônica política, de uma mitologia criada em torno do enaltecimento da figura do presidente. O período JK está sendo analisado e interpretado por distintos leitores, não havendo a possibilidade de se construir uma imagem coesa e una, mas contraditória e fragmentária. O cotidiano de um estadista, com suas idiossincrasias e curiosidades, oferece condições para que sejam recuperados momentos significativos da vida política brasileira da época. Desenhar perfis desconhecidos, abandonar lugares-comuns e clichês biográficos não pertencem ao repertório do leitor ávido de revelações e de segredos de estado. A posição do narrador reforça o sentido de desgaste físico e emocional no seu convívio com o poder, pelo prejuízo a ser computado na sua carreira de escritor. Se em A serviço del-Rei a insatisfação se encena por meio do recurso à alegoria e cumpre o papel de denúncia indireta, em Gaiola aberta o ambiente palaciano é moderadamente representado e o escritor-aprendiz se liberta ao se desligar do cargo público. Gaiola aberta é a metáfora da entrada de Autran Dourado na vida literária e o desapego do fardo oficial e do serviço ao rei.
O fim de uma época Merece ser mais bem pontuado o lugar ocupado pelo intelectual nessa época, especificamente na cidade do Rio de Janeiro, e que coincide com o final dos anos JK. Pela leitura da crônica jornalística do momento, registra-se a criação da mitologia urbana e do estilo de vida desses intelectuais, os quais ainda usufruíam dos valores de um país que despontava para outras formas de modernidade. Éramos um país jovem, criativo, boêmio, entediado, alegre, brincalhão, progressista, esperançoso, embalado pela fé no futuro e em consonância com a abertura política e a democracia. A intelectualidade brasileira, sediada na capital do país, se reunia nos bares e nas residências dos escritores, onde se mesclavam a joie de vivre com o quase esquecimento das diferenças sociais. A configuração geográfica da cidade permitia interpretações sociologizantes por parte dos cronistas, que a distinguia da vizinha São Paulo pela função anárquica da praia, com seu “comunismo”, provocando a indistinção de classes e a ausência de preconceitos. A academia não havia, tampouco, exercido o papel antes reservado à boemia intelectual, difusora de uma especial estética do cotidiano, pautada pelo fragmentário e o inacabado. É por volta dos anos de 1970 que iria tornar-se mais visível a distância entre a mídia e a universidade, em virtude da troca de função do intelectual, quando transfere sua participação pública para o ambiente restrito das instituições. Com as crônicas de Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, entre outros, compõe-se, de forma perfeita, o retrato de um Brasil provinciano, que nas asas de Kubitschek começava a se impor como país de vanguarda, pelo deslocamento do Rio de Janeiro para Brasília, do litoral para o planalto central do país. O espaço político da nova capital motiva igualmente o apagamento da imagem de uma geração que reunia política e boemia, trabalho e ócio, bem-estar e responsabilidade. Na alegre, pacata e doméstica Ipanema dos anos 1940, era possível reunir, num só jogo de futebol, Augusto Frederico Schmidt, Di Cavalcanti, Vinicius de Moraes, Aníbal Machado e Rubem Braga. A função heterogênea de político e boêmio no Brasil é também retratada no livro de Russel Jacoby, Os últimos intelectuais, no qual descreve o declínio do intelectual na vida pública da sociedade norte-americana da década de 1950. Sinaliza o desaparecimento do espaço urbano marcado pela convivência agradável e pelo bom rendimento social, situação capaz de agregar e de produzir saberes. As livrarias, os cafés, os restaurantes, lugares de discussão e de formação de grupos, cedem espaço para os campi, construídos longe dos centros urbanos e arquitetados segundo princípios que promoviam o isolamento e o trabalho individual. No caso brasileiro, o afastamento do intelectual diante dos anseios da comunidade é comprovado pela presença do vazio comunicativo instaurado na década de 1960 pela ditadura. No entender de Beatriz Sarlo, a neutralidade valorativa passa a vigorar entre os intelectuais, ao se entregarem ao exercício do relativismo cultural como forma de aceitação das diferenças, sem que haja a quebra do consenso e esteja conforme as regras do jogo neoliberal. A baixa
credibilidade das instituições, o retrocesso da cultura letrada, a crise da escola como lugar de redistribuição simbólica e o pequeno espaço reservado à questão da arte nas agendas culturais compõem o quadro desta comunidade imaginada de intelectuais. A crise da esquerda em todos os segmentos da sociedade não constitui fato isolado entre nós. Por todo o mundo contemporâneo, a intelectualidade procura justificar o lugar ainda deslocado e híbrido em que se encontra. (Ensaio publicado em: DINIZ, T.; VILELA, L. H. (Org.). Itinerários. Homenagem a Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009. p. 29-43.)
Bibliografia ARANTES, Otília B. F. Mário Pedrosa – itinerário crítico. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ARRIGUCCi, Davi. O sequestro da surpresa. Folha de S.Paulo, sábado, 11 abr. 1998. Jornal de Resenhas. BOJUNGA, Cláudio. JK – o artista do impossível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. DOURADO, Autran. Gaiola aberta. Tempo de JK e de Schmidt. Rio de Janeiro: 2000a. DOURADO, Autran. A serviço del-Rei. Rio de Janeiro: Rocco, 2000b. FRIEIRO, Eduardo. Novo diário. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986. GOMES, Renato Cordeiro. Modernização e controle social: planejamento, muro e controle espacial. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 199-213. LAFETÁ, João Luiz. Uma fotografia na parede. Literatura e Sociedade. Revista de Teoria Literária e Literatura Comparada, São Paulo, v. 2, p. 30, 1997. LAGES, Soraya Fernandes. Proposta de restauração da pintura Retrato de J. K. - Alberto da Veiga Guignard. Restaure. Belo Horizonte, 19 de novembro de 1996. LODI, Jefferson José. Avaliação do quadro Retrato do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, de Alberto da Veiga Guignard. Escola de Belas Artes da Universidade de Minas Gerais. Belo Horizonte, 15 de fevereiro de 1987. (Documento constante do dossiê utilizado pelo Secor, UFMG, para a restauração do quadro “Retrato de Juscelino Kubitschek”.) MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 1979. RUBIÃO, Murilo. O edifício. In: ____. Os dragões e outros contos. Belo Horizonte: Movimento-Perspectiva, 1965. p. 159-167. RUBIÃO, Murilo. Os dragões. In: ____. Os dragões e outros contos. Belo Horizonte: Movimento-Perspectiva, 1965. p. 137-142. WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Memórias imperfeitas Em 2003, ano do centenário do memorialista Pedro Nava, Baticum, de Sonia Lins,1 foi reeditado. Trata-se do relato bem-humorado da vida provinciana de Belo Horizonte no início do século 20. As coincidências com a obra de Nava se revelam curiosas, pois a data de publicação de Beira-mar/memórias 4 (1978) é o ano da primeira publicação de Baticum pela editora Pedra Q Ronca, em coedição com a Funarte. A diferença entre as obras reside no modo pelo qual a narrativa memorialista é construída, priorizando-se o relato tradicional em Nava e optando-se pelo registro fragmentado e humorístico em Sonia Lins. Entende-se, com a pouca divulgação de Baticum em sua primeira edição, como a memória oficial se mantém pela restrição a obras fora do mercado e pela valorização de uma bibliografia consolidada e legitimada pelo cânone. Com a reedição do livro de Sonia Lins, falecida há poucos anos, mineira de Belo Horizonte e artista plástica, a imagem da cidade recebe traços finos, nebulosos e caricatos, desfazendo-se o contorno bemcomportado dos textos memorialistas. Embora a dicção narrativa seja caracterizada por um estranhamento poético singular que lembra os desenhos distorcidos dos adultos feitos pelas crianças, consegue-se ampliar essa visão irônica e se referir ao cenário cultural e político da cidade. Os leitores contemporâneos dessa metrópole, entre alegres e espantados, percebem, ainda que de modo tardio, as batidas fortes de Baticum, cientes de que outras formas de narrar irão enriquecer e deslocar as tradicionais. A reconstrução da cidade se converte, em Beira-mar/memórias 4, em referência para os estudos da geração modernista, do cotidiano da rua da Bahia e da classe letrada, formada pelos estudantes universitários, intelectuais e políticos. Nava desenha, com detalhes, o mapa sentimental de Belo Horizonte, recolhendo dados e pesquisando cada esquina, cada prédio e cada rua, com vistas à captação, mesmo que ilusória, de uma época, um grupo e uma maneira de viver. Narrativa que acredita na eficácia política dos grandes relatos, ao sistematizar as genealogias familiares e inseri-las na formação cultural do Brasil republicano e moderno. Em Baticum, a fragmentação, o recorte jornalístico, o pastiche de notícias da coluna social ou das páginas políticas, a plasticidade das letras e do espaço em branco formando poemas concretos, a leitura aleatória dos minicapítulos, a ausência de ordem cronológica do relato e os jogos poéticos com as palavras respondem pelo endosso de procedimentos artísticos já consagrados pela vanguarda artística. Diferentemente de Nava, a narrativa se detém na observação de pequenas cenas do cotidiano urbano e na composição metonímica das experiências vividas pela narradora (“o braço grosso da mãe”, “voz de bigode”, “o pai, que baixo assobiava”, “as irmãs Renault, que apoiavam cotovelos em almofadas”). Não seria, pois, anacrônico, elogiar esse livro que, apesar de
ter sido publicado na década de 1970, retoma muito da poética vanguardista já presente em Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade? Onde residiria, portanto, a originalidade de Sonia Lins? No fato de ser uma escrita que se sobressai por sua dicção feminina, ao reunir plasticidade poética com agilidade e sedução da linguagem? Ou por retomar uma estética inusitada entre os escritores contemporâneos, qual seja a de romper com os modelos da escrita memorialista, centrados no desejo de completude biográfica e integridade autoral? Como resposta a essas indagações, pode-se afirmar que Baticum inova na linguagem, não repetindo fórmulas poéticas, e aguçando, com humor, a visão infantil e fragmentada do universo familiar e urbano. Reacende, ainda, o brilho de uma linguagem que, ao contrário de algumas tendências atuais, não se banaliza pela repetição uniforme de clichês literários. O processo de modernização da cidade que crescia com o século se faz sentir, por exemplo, nas colagens de textos jornalísticos, nas novidades do primeiro curso de ginástica criado na chácara do dr. Estevão Pinto, ou na cena composta pela presença da paraquedista Anésia Pinheiro Machado, cujo salto do aeroplano é descrito de forma singular: “Do seu ventre foi parida / Anésia Pinheiro Machado que / no espaço saltou como 1 biscoito.” O ritmo da narrativa, entremeado de pequenos anúncios, de notícias sucintas, se constrói através de imagens que lembram o movimento rápido e nervoso de uma câmara fotográfica, recurso plástico que ilustra, de forma brilhante, uma modernidade nascente na linguagem. Muitas das personagens evocadas por Nava em Beira-mar/memórias 4 reaparecem em Baticum, dotadas igualmente do vigor plástico do memorialista, mas desprovidas de qualquer referência a uma dimensão interior. Essa técnica caricatural reforça a construção residual da memória, o movimento intermitente das cenas guiadas pelo ir e vir, o apagar e o aparecer, o lembrar e o esquecer. Um olhar que se fixa na superfície, no rés do chão, na exterioridade descritiva dos tipos, como se esses fossem bonecos animados pela escrita. O trabalho de memória não assume a solenidade das origens nem investe na legitimação do passado como forma de preservar o patrimônio familiar. Lá estão o presidente Antônio Carlos, descrito na sua aparência física de forma semelhante à do avô da narradora, por serem ambos “altos, cabeças roçando o pé direito onde o azul terminava, magros como se estivessem guardados durante séculos dentro de livros”; o dr. Estevão Pinto, que “passou a andar de preto com fumo no braço. Era uma semicolcheia correndo pelas ruas de Belorizonte”; ou a chegada na cidade do expresso de Diamantina, cujo som reproduzia, plasticamente, o nome de Juscelino Kubitschek, ressoando na página sob a forma de um poema concreto. A reedição luxuosa de Baticum pelo Museu Histórico Abílio Barreto, com reproduções de fotos das famílias Lins e Mendes Pimentel, presta ainda uma homenagem à cidade, ao enriquecer o seu acervo e torná-lo acessível ao público. Nesse sentido, houve a preocupação de transformar o livro num álbum de família nos moldes tradicionais, o que estaria em contradição com a sua proposta estética e ideológica. Sonia Lins
decompõe o quadro familiar pela utilização do risco ágil e irônico da escrita, pelo traçado caricatural das personagens e pelo deslocamento das hierarquias sustentadas pela moral burguesa. Não estariam essas fotos reeditando uma pose oficial da estrutura familiar? Ou suplementando o que fora negado pela força de uma escrita rebelde e desmitificadora? Estas são as indagações para as futuras edições dos livros de memórias imperfeitas, escritos na contramão das bem-comportadas histórias familiares. (Artigo publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 jan. 2004. Suplemento Ideias, p. 2.)
Bibliografia NAVA, Pedro. Beira-mar/memórias 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. LINS, Sonia. Baticum. 2. ed. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2003
Macunaíma: quem é você? Em 2008, Macunaíma comemorou 80 anos com muitas gargalhadas, piscando o olho para seus fiéis leitores e dando uma banana para os detratores. Seu lugar na literatura brasileira está garantido, pois, ao contrário do que escreveu seu autor, não permaneceu como o “brilho inútil das estrelas”. De modo gaiato e malandro, passeia pra lá e pra cá no céu, num banzo solitário, mas visível. Batizado por Mário de Andrade como “o herói sem nenhum caráter”, nascido da mistura de textos de diversas culturas, Macunaíma conserva permanente mobilidade significativa, sua maior qualidade como personagem de ficção. Incapturável como símbolo fixo de nacionalidade, ostenta, ao longo dos anos, a imagem do malandro tupiniquim, da astúcia mesclada à ingenuidade, da preguiça como resposta ao modernizante apelo da civilização do trabalho. A ambiguidade e a complexa caracterização da personagem são os possíveis motivos do lugar importante que ocupa ao serem discutidas questões envolvendo redefinições de cultura brasileira, política e literatura. A revolução promovida pelos modernistas de São Paulo nos anos de 1920 contou com a revisão rigorosa do imaginário literário e histórico nacional, no qual se celebrava a importação de modelos europeus como chave capaz de impulsionar a criação. Romper com o mimetismo das nossas pretensas origens culturais contribuiu para a instauração do programa modernista, pautado pela experimentação, o compromisso com a produção de obras que atendessem à singularidade e à heterogeneidade de nossa cultura. A rapsódia Macunaíma, o herói sem nenhum caráter,1 publicada em 1928, representou para o movimento a perfeita realização de sua proposta nacionalista, entendida no seu duplo movimento, na sua ambiguidade: o olhar voltado para fora, o olhar voltado para dentro. A recusa em repetir modelos importados não implicava o desconhecimento nem o apagamento das ideias que circulavam aqui e no mundo, mas sim o seu aproveitamento astucioso e criativo. O homem sem qualidades, do austríaco Robert Musil, o aflorar do inconsciente nas pesquisas freudianas, os movimentos de vanguarda, a modernização urbana, a valorização da mitologia indígena, a releitura das narrativas de viagem, todos esses ingredientes entraram no banquete macunaímico. O herói sem nenhum caráter, meio brasileiro, meio venezuelano, denuncia a diluição de espaços de origem e a mistura de lugares, um dos desejos do autor em falsear e descaracterizar uma identidade fixa da personagem. Os três irmãos, da tribo amazônica dos tapanhumas, Macunaíma, Jiguê e Maanape, descem para o sul pelo rio Araguaia, mas antes o herói vai até a foz do rio Negro e deixa a consciência na ilha de Marapatá. No final da rapsódia, de volta à terra de origem, o Uraricoera, o herói buscou a consciência e, não a encontrando, “pegou na consciência dum hispano-americano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma”. A procura de
um traço nacionalista em Macunaíma se faz por meio de sua ausência, de rupturas com os tradicionais meios de consolidação da nacionalidade. A abertura para a América Latina participa de um programa mais amplo, de repercussões na época contemporânea, em que se questiona sobre as particularidades nacionais, e, ao mesmo tempo, discute-se a existência de uma cultura heterogênea e diversificada. “Profetizar americanamente o Brasil” é a definição expressa por Mário para a arte do escultor Aleijadinho, podendo servir para a atual condição identitária do continente. O projeto nacionalista do escritor modernista não se limita a criar estereótipos, mas em ressaltar a complexidade inerente às redefinições de valores impostas pelas diferentes épocas. Este é um dos mais significativos legados que a obra deixa para os tempos atuais, embora seja ainda mal-interpretada por muitos. Que consciência teria deixado na ilha de Marapatá? Que tipo de personagem estava sendo criada pelo autor modernista, qual a finalidade de se produzir um anti-herói brasileiro, um malandro com sangue de índio, aparência de branco, alma de preto, com suas superstições e feitiçarias? Macunaíma deveria, pelo seu atestado de nascimento, representar o índio da tribo Tapanhumas, “preto retinto e filho da noite”. No entanto, por ter mergulhado na água encantada, transforma-se numa pessoa branca, loura e de olhos azuis. Os irmãos, Jiguê e Maanape, representam o índio e o negro, por não terem conseguido se valer integralmente da água milagrosa. A discussão sobre as três raças brasileiras é ironizada na rapsódia, pela presença caricatural dos três irmãos: o branco é esperto, ingênuo e preguiçoso (“Macunaíma era muito preguiçoso”); o índio, dotado de pouca inteligência (“Jiguê era muito bobo”); e o negro, marcado pelo discurso da superstição (“Maanape era feiticeiro”). Cai por terra o mito do índio como símbolo dos valores nacionais, bem como da afirmação do caráter brasileiro centrado numa raça específica. Passados mais de 80 anos dessa constatação, a lição de Mário de Andrade parece não ter muito eco. A separação ideológica entre a raça branca e a negra ainda persiste, reiterando o raciocínio binário e anulando a ambiguidade, a coexistência e a indefinição das raças no Brasil. De igual importância para se avaliar a resistência de Macunaíma ao tempo e sua proposta identitária, consiste a deliberada diluição dos esquemas definidos, das leis do gênero romanesco, da defesa da oralidade como marco de uma língua brasileira e de uma cultura popular. O deslocamento processado pelo programa estético e político da obra constitui um dos mais relevantes experimentos de Mário de Andrade. O universo linguístico da personagem articula-se em torno da imagem do papagaio, seu único companheiro no final da rapsódia. Na condição de avatar da fala do pássaro, Macunaíma registra e veicula o tempo todo as palavras de outros, repete frases-feitas, contrabandeia signos alheios, confunde o sentido literal com o figurado, nega a propriedade dos signos quanto aos seus referentes. Essa astúcia de linguagem se filia ainda à herança de seu animal totêmico, o jabuti, personagem de muitas fábulas dos contos populares brasileiros. Trapaceiro e sagaz como o animal, plagia histórias e
lendas nacionais e estrangeiras, o discurso retórico dos doutos, os provérbios e as adivinhas. A força da linguagem e o seu aproveitamento astucioso permitem entender o papel do herói no âmbito de um discurso que também carece de caráter, por desrespeitar normas e inventar situações inusitadas. No entanto, essa denúncia funciona muitas vezes como arma de dois gumes para os intérpretes de plantão da cultura brasileira. Sem atentar para o caráter ambíguo da personagem, para a malandragem entendida no seu aspecto tanto positivo quanto negativo, as possíveis lições da rapsódia tendem, na maioria das vezes, a serem lidas como alegoria de um país malandro, preguiçoso e sem saída. O discurso do senso comum referente ao jeitinho brasileiro, à cordialidade, como resultado da precária separação entre público e privado, alimenta o estereótipo do brasileiro, além de sua imagem vendida ao estrangeiro. Macunaíma, ao longo desses anos, é argumento utilizado para diversos e múltiplos fins sejam eles políticos – o boquirroto e língua solta presidente Lula, “este não é um país sério” –, sejam referentes ao diagnóstico da malandragem como marca registrada do país. Na literatura, pelo contrário, a obra é considerada, ao lado de Grande sertão: veredas, revolucionária por excelência, por revitalizar a tradição oral, romper com a separação entre erudito e popular, tradição e vanguarda, cidade e campo. A composição heteróclita e irônica da natureza tropical sujeita a interpretações igualmente distorcidas reitera e critica o ufanismo nacionalista, a eloquência do verde-amarelo como tonalidades representativas do ufanismo patriótico. O filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969, leva às ultimas consequências o aparato parodístico presente no livro de Mário de Andrade. A natureza é caricaturada, o verde-amarelo de crepon das fantasias das personagens se reduplica no bordado de um jacaré imenso no peito de Macunaíma, vestindo uma camisa Lacoste. Toda essa herança macunaímica torna-se salutar para se rever, nos dias atuais, a proliferação de discursos vinculados à natureza, a territórios vazios, como o deserto, a reservas naturais, como o mar, florestas, campos, rios, ou à vida animal, os quais se inscrevem como espaços alternativos para se reler a modernidade e os desencantos da civilização. Não se trata, contudo, de saída utópica para os possíveis males do presente. O tratamento dado à natureza se desvincula tanto do sentido estereotipado dos discursos colonialistas – espaço virgem e utópico – quanto do sentimento de nostalgia pelo equilíbrio ecológico perdido. Macunaíma, quem é você? (Verbete para o Livro do ano, em: VERANO, Paulo (Org.). São Paulo: Barsa Planeta, 2009.)
Bibliografia ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Edição do Autor, 1928.
Macunaíma de Daibert A interpretação que Mário de Andrade daria à série de desenhos de autoria de Arlindo Daibert, Macunaíma de Andrade, possivelmente seria a mesma conferida ao seu retrato feito por Portinari: “Eu é que estava me pintando.” Ao se colocar como coautor do retrato, Mário expôs uma das linhas de sua poética, a convicção de estar a vida artística aliada ao exercício da experiência. Na interpretação pessoal que faz desse quadro, Mário se apropria de um dos princípios da ação cristã, implícito em charitas, ao reivindicar o direito de autoria da imagem criada por Portinari. Trata-se de um retrato que Mário ajudou a construir, por revelar o seu “lado bom”, prova evidente do entrosamento entre dois amigos. Em carta a Henriqueta Lisboa, esse gesto criativo é entendido como expressão da simbiose perfeita da amizade, o que permite ampliar o gesto da autoria: “E foi nesse estado iluminado de amor que ele fez o meu retrato que (…) eu fiz ele fazer de mim: só bom.”1 Essa afirmativa se justificaria por ter Arlindo Daibert traduzido, em imagens, o retrato de Mário, sob pretexto de estar relendo Macunaíma. Ao condensar no título do trabalho, Macunaíma de Andrade, o nome da personagem com o do autor, assume a proposta de invenção de teor biográfico semelhante à de Mário, ao reunir obra e vida a partir da reconstrução de retratos que reportam a cenas literárias, artísticas e políticas do período. As apropriações, as associações livres e os deliciosos roubos cometidos pelo escritor na produção literária de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter demonstram ser a estética parodística o ponto fulcral da arte modernista, procedimento encontrado nas colagens e reproduções de figuras da época. No texto “Macunaíma de Andrade - diário de bordo”,2 registro da preparação e da feitura de seus desenhos, Arlindo confessa ter cometido licenças artísticas durante o processo de reconstrução das personagens da rapsódia, ao transformar a Uiara – e Ci – na imagem da bela e talentosa Tarsila do Amaral, além de escolher a figura de Getulio Vargas para protagonizar o gigante Piaimã, ou eleger o amigo e pintor Siron Franco como representação de Macunaíma, estampado no episódio referente às adivinhas. A mais evidente inserção autobiográfica de Arlindo na obra revela-se na colagem da cena final do capítulo “Macumba” (em Macunaíma, o herói sem nenhum caráter), além de contar com a entrada autobiográfica de Mário: na festa da tia Ciata, a mãe de santo do cerimonial da macumba, o escritor introduz e “cola” os amigos, transformando-os em personagens da rapsódia. O procedimento não só concede maior liberdade à criação de Arlindo, como também permite romper os limites entre ficção e realidade. O registro da liberdade conferida à cena é apresentado pelo artista em Cadernos de escritos, com vistas a reiterar a intenção autobiográfica presente na sua leitura de Macunaíma: No final do capítulo, Mário mistura aos personagens da ficção alguns “macumbeiros” reais como Bandeira, Antônio Bento, Cendrars etc. Trata-se de uma lembrança de caráter afetivo, ou talvez por
identificação ideológica, como no caso de Raul Bopp também envolvido no estudo da cultura popular. (…) Incluo entre os meus “macumbeiros” alguns dos de Mário e outros como Drummond, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Virginia Woolf etc. (…) O quadro ainda não está completo e para confundir um pouco os exegetas incorporei ao trabalho algumas… afinidades eletivas (ou seria liaisons dangereuses?) que, para terminar, “fizeram a festa juntos.”3
Ao lado da intenção autobiográfica do artista em recriar outro Macunaíma, encontrase a deliberada proposta de trazer à superfície das gravuras a mistura/condensação entre a personagem e seu autor, Mário de Andrade. A assinatura de Andrade, no último desenho da série que precede o “Ex-libris”, está presente na reprodução da foto do escritor feita por seu amigo Warchavchic, personificando o narrador-rapsodo do livro que, ao chegar à tribo dos Tapanhumas, encontra somente o papagaio para contar história. O registro da fala popular, inscrito na frase “Tem mais não”, funciona como refrão que sela tanto o livro quanto o conjunto de imagens de Macunaíma de Andrade. No canto direito do desenho, insere-se a figura emblemática do beija-flor, que, ao deixar em aberto a cena que finalizaria o trabalho, insinua sua saída do espaço fechado da gravura. Após bolebolir no “beiço do homem”, como assim registra o final da rapsódia, a imagem lembra o gesto contagiante representado pelo bico do pássaro que transmite para o outro os segredos passados de boca em boca. Esse contato entre o pássaro e o narrador se reduplica na estreita relação entre a sensibilidade do artista Arlindo Daibert e a tradução da linguagem de Macunaíma, a qual desde sua origem nunca foi propriedade de Mário, revelando-se um texto sempre compartilhado e parodiado. Macunaíma de Andrade responde, portanto, à frase de Mário de Andrade, “Eu é que estava me pintando”, por insinuar tanto o possível sentimento do escritor de ter sido relido através de seu lado macunaímico, quanto do artista de se valer do pacto autobiográfico no esboço de seu retrato e na construção de seu Macunaíma. Desta vez não é o lado bom e comportado de Mário que está sendo recriado, mas o seu lado desconstrutor e trapaceiro, a outra face da moeda, que se impõe como traço relevante da paródia modernista. A imagem que funciona como “Ex-libris”, o cágado mordendo uma flâmula, com a inscrição “Nome começado por Ma tem má sina”, legitima, pela semelhança das iniciais de Mário e de Macunaíma, a condensação lúdica entre autor e personagem. Mário e Arlindo tornam-se “possuídos” e unidos, de modo demoníaco, pela ação de Exu-Arlindo. Afinidades eletivas ou liaisons dangereuses? O processo de apropriação do texto alheio corre sempre o risco de estar participando de uma festa que excede nos empréstimos e se liberta do enredo inicialmente previsto: “A descoberta de uma foto do sítio de Santo Antônio, paixão da vida do escritor, parece ter alguma coisa a ver com a volta para o Uraricoera. A imagem não pertence ao livro, e sim à vida de Mário. Já não sei mais o que estou ilustrando.”4 Diferente posição artística irão assumir os demais ilustradores de Macunaíma, destacando-se entre eles Carybé, Rita Loureiro e Pedro Nava, este último tendo deixado
apenas oito aquarelas estampadas no seu exemplar da primeira edição, trabalho realizado de maneira descompromissada e sem intenção editorial. (A publicação dos desenhos é de 1978.) A proposta de Carybé, por exemplo, foi a de ilustrar, em 1943, o volume, infelizmente não publicado na época, mas somente em 1979, escolhendo as cenas que julgava importantes, além de se manter fiel à construção do ambiente indígena e à estilização da natureza. A distância entre eles é notória, notadamente se for levado em conta que a série de desenhos de Arlindo Daibert não tem a intenção de ilustrar o livro, por ser o seu projeto voltado para a leitura do Modernismo e de suas personagens, por meio de associações livres e de colagens bem-humoradas. O que merece atenção nesta troca infinita de imagens e de releituras da obra-prima de Mário de Andrade é a rede que começa a ser tecida em torno dos antigos amigos do escritor, da bibliografia sobre sua obra, da correspondência e encontros que Arlindo Daibert promove, com o desejo obsessivo de pelo menos reviver imaginariamente este momento da cultura brasileira. A figura de Pedro Nava, conterrâneo de Arlindo, reveste-se de importância para o entendimento dessa rede de relações afetivas e artísticas aí criadas. Na época da concepção de Macunaíma de Andrade, o escritor já havia saído da condição de poeta bissexto e se tornado autor de quatro volumes das Memórias. Arlindo dirige-se em carta a Nava, em 1981, de forma bastante tímida, com o intuito de tomar conhecimento do episódio referente às ilustrações de Macunaíma. Como nesta época se comprovou, as referidas ilustrações foram inseridas, em 1978, na edição crítica do texto, feita sob a direção de Telê Porto Ancona Lopez. A solicitação de ajuda ao amigo de Mário se realiza nos seguintes termos: Talvez o senhor não me conheça nem ao meu trabalho. Sou desenhista. Moro e trabalho em Juiz de Fora. No momento estou envolvido com um projeto de desenhos que me fascina muitíssimo: ilustrar o Macunaíma de Mário de Andrade. (…) É muito importante para mim entrar em contato com pessoas que tenham conhecido diretamente Mário de Andrade e aprender um pouco com elas.5
A resposta de Nava irá explicitar as razões pelas quais os desenhos só foram conhecidos tardiamente, uma vez que o exemplar da primeira edição, de sua propriedade, havia sido “confiscado por Mário”, por ocasião de uma visita à sua casa. Por se tratar de um volume diferenciado, a irmã do escritor o havia guardado, motivo pelo qual ele não se encontrava no Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Respondendo a um pedido de Nava sobre o destino dos desenhos, Telê Porto Ancona Lopez, após ter ficado com a “história encucada” durante um tempo, pôde descobrir com quem estava o exemplar. Ainda que não tenha fornecido detalhes sobre a natureza ou a qualidade de suas aquarelas, o memorialista narra dados curiosos de sua relação com Mário, tornando-se também o responsável pela descoberta do material até então desconhecido até pelos especialistas na obra do autor.6 Uma das mais fortes contribuições de Nava para a obra de Arlindo consiste, contudo, na retomada do gênero memorialístico, ocasionando a reflexão de categorias recalcadas
pela vanguarda literária, tais como a de tradição e a de escrita do eu. O boom do texto autobiográfico não tardaria a ter lugar na história da literatura contemporânea, principalmente com a abertura política no Brasil e a volta dos ex-exilados ao país. O registro das experiências vividas durante o período de ditadura militar inaugura outra modalidade de relato. Acrescente-se ainda a publicação de Beira-mar/memórias 4, em 1978, volume das memórias que discorre sobre a década de 1920, em Belo Horizonte, com o início do Modernismo mineiro, incentivado pela visita, em 1924, dos intelectuais paulistas à capital. A história literária e artística do movimento se enriquece com o apaixonado e minucioso relato de um de seus protagonistas. Nessa empresa memorialista, o perfil das personagens da época é detalhadamente elaborado pelo escritor, destacando-se o de Mário de Andrade, descrito a partir dos retratos e fotos realizados pelos amigos. Arlindo Daibert, ao se preparar para o trabalho de releitura de Macunaíma, se vale de vasta bibliografia sobre Mário de Andrade e o Modernismo, com vistas a não se posicionar como intérprete ingênuo desse rico momento cultural brasileiro. Na composição do retrato de Mário, Nava emprega o processo criativo de associação livre, o que resulta na confecção de um traçado biográfico muito pessoal, o qual se conjuga ao exercício artístico de Arlindo em Macunaíma de Andrade. São diferentes, por exemplo, as interpretações do retrato de Portinari fornecidas por Mário e Nava: o primeiro, ao considerá-lo a expressão de seu lado bom, da imagem que ele próprio construiu, justifica a frase “eu é que estava me pintando”; o segundo, ainda que reconheça o valor da obra segundo critérios estéticos, irá desconsiderá-la do ponto de vista da semelhança com o modelo e preferir o quadro de Segall, por ser mais fiel ao espírito alegre do poeta enquanto jovem: O retrato de Portinari, obra-prima de pintura, não dá uma ideia perfeita de Mário. Ele é expressionalizado numa megaforma que caberia melhor ao gigante Wenceslau Pietro Pietra. É tórax demais e queixo demais. Fora isto e faltarem os óculos – a semelhança é quase total. O de Lasar Segall aproxima-se mais e dá ideia perfeita da miopia e do que ela adiciona à expressão. Trata-se de um retrato da mocidade e os olhos de Mário ainda não tinham adquirido a amargura que transparece no óleo de Flávio de Carvalho, nem a resignada santidade que está no pastel de Tarsila.7
A obsessão pela anatomia da personagem, em virtude da dupla condição de Nava, dividido entre o médico e o escritor, o faz ler realisticamente as imagens pintadas de Mário, com o objetivo de melhor expressar aquela que ele próprio constrói do amigo. Ao memorialista não agrada a deformação expressionista da “megaforma” do quadro de Portinari, intolerância que irá permitir, curiosamente, a relação inusitada entre o autor de Macunaíma e sua personagem, Wenceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã. Quem já havia se dedicado a desenhar oito aquarelas do texto, sem estabelecer qualquer vínculo entre obra e autor, realiza agora a conjunção entre Mário e sua personagem, pela mediação do retrato de Portinari. Comprova-se mais uma vez a presença do trânsito livre entre biografia e ficção, considerando-se o grau de proximidade entre as duas instâncias.
O lado bom do retrato de Portinari, assim interpretado por Mário, cede lugar ao seu lado mau, contaminado pela analogia com Piaimã. Inverte-se e reitera-se a frase do escritor sobre a pintura feita pelo amigo, pois a leitura de Nava permite traduzir o grau de arbitrariedade e de subjetividade que define cada interpretação particularizada do objeto artístico. O punctum – expressão utilizada por Roland Barthes no ensaio sobre a fotografia8 – consiste na escolha de um detalhe específico da foto/obra realizada de modo distinto pelos leitores, liberdade esta que lhes concede o direito de se sentirem igualmente coautores das obras. A foto de Mário feita por Warchavchik e também reapropriada por Arlindo Daibert merece de Nava tratamento especial, não só pelo seu valor artístico, mas pela ambiguidade da figura, ao mesmo tempo dionisíaca e amargurada: “Mas que retrato… Dividido por uma horizontal que passasse pela ponta do nariz temos embaixo o queixo voluntarioso e possante dum dionísio sorridente. Já a metade de cima é a de uma górgona míope atormentada pelas próprias serpentes.”9 Desta vez é Arlindo quem engloba na mesma imagem o escritor e o narrador-rapsodo, ao inscrever, através do sorriso de Mário, a marca autoral do Macunaíma, de Andrade, e do Macunaíma, de Daibert. A cumplicidade entre os dois é metaforicamente condensada neste desenho, em que o conceito de autoria retorna, simultaneamente, de forma esvaziada e restaurada: Passei a tarde dando aulas no ateliê. Enquanto a aluna japonesa copiava uma figurinha de Maillol eu trabalhava num retrato de Mário de Andrade. Quando comecei a fazer o desenho pensava fazer somente o estudo, mas, aos poucos, foi tomando forma e resolvi aproveitá-lo. Talvez seja o último desenho do livro (!) “Tem mais não! ”10
No extenso e vigoroso convívio de Mário de Andrade com os escritores e artistas mineiros, cultivado não só pelos encontros e projetos realizados, mas ainda pela vasta correspondência mantida com intelectuais de muitas gerações, como Drummond, Nava, Henriqueta Lisboa, Murilo Rubião, vários retratos foram compostos pelos amigos, seja através de poemas, ensaios, ficção ou obras de arte. A primeira viagem de Mário a Minas, datada de 1919, é registrada por Drummond no belíssimo poema “A visita”, em que se dramatiza o encontro, na pacata Mariana, entre o jovem poeta e o consagrado Alphonsus Guimaraens.11 A imagem do autor de “Há uma gota de sangue em cada poema” é evocada por Drummond de modo a ressaltar a atmosfera noturna da estética simbolista, conjugada à iniciação poética de Mário, leitor de Poe, dos impressionistas franceses e do próprio Alphonsus. Mais tarde, o jovem irá conhecer João Alphonsus e Alphonsus Guimaraens Filho, tornando-se correspondente e amigo dos filhos do poeta simbolista e leitor da obra modernista de ambos. A homenagem que Drummond presta a esse encontro, um projeto há muito tempo sonhado pelo autor, só se realiza em 1977, por solicitação de José Mindlin, que edita o poema em edição de luxo. O texto tem o mérito de não só reconstruir um momento revelador de extrema força literária, mas ainda de introduzir Mário de Andrade na
confraria dos poetas mineiros, em que passa de aprendiz de poeta a interlocutor e guia intelectual de gerações futuras. A segunda visita, em 1924, adquire caráter oficial, quando Mário se integra à caravana paulista, na “Viagem de descoberta do Brasil”, protagonizada pelo grupo modernista e pelo poeta franco-suíço Blaise Cendrars. A reunião do princípio artístico moderno com a arte barroca das cidades mineiras instaura a perspectiva do novo em convívio contrastante com o antigo, razão principal para se repensar o conceito de primitivo e de identidade artística nacional. O retrato do Brasil se reveste agora do cruzamento entre a vanguarda e a restauração de uma atmosfera arcaica, até então recalcada pela sedução da novidade, de uma estética do urbano e do culto ao progresso modernizante. Essa aventura dos modernistas é relida por vários escritores e ensaístas, constituindo uma das mais ricas contribuições para se entender a importância desse convívio entre mineiros e paulistas. Dentre os textos que se nutrem da lição de 1924 para a reflexão da poética contemporânea, cite-se “O dentro do dentro do dentro”, de Silviano Santiago, em que se procede à interpretação da aventura modernista em Minas a partir da crônica de Mário de Andrade, publicada logo depois da viagem. Utilizando-se do procedimento de colagem, nos moldes dos ready-made linguísticos de Oswald de Andrade, Santiago reúne na composição os dois Andrades: Mário e Oswald lhe inspiram o tema da viagem da “descoberta do Brasil”; de Oswald retoma a linguagem concisa e curta do pastiche, processo retórico empregado no Roteiro de Minas. Nessa empresa, configura-se mais um retrato do movimento modernista, recortado pela presença dos Andrades, mas principalmente nutrido pela inserção de uma leitura pessoal de Santiago de um determinado momento. A contínua retomada da herança modernista por parte dos autores contemporâneos, longe de significar a necessidade de repetir uma estética, aponta o avanço de olhares dirigidos às exigências da arte do presente. Da estreita convivência de Mário de Andrade com os mineiros, o que mais se impõe como traço de amizade é a figura do missivista contumaz, de quem não deixava uma carta sem resposta, tornando esse ofício uma das formas encontradas para se escrever a obra “incompleta” e as memórias. Permanece essa imagem que resulta de uma generosidade do escritor, ao mesmo tempo que o coloca como divisor de águas da intelectualidade brasileira da época, formada por um grupo que com ele se correspondia e lhe rendia fidelidade e, por outro, que dele se distancia, afastando-se dessa comunidade de literatos. O fantasma de Mário de Andrade permaneceu por muito tempo rondando o imaginário dos autores brasileiros, não só pelo forte legado intelectual como pela sua morte prematura, em 1945. Autran Dourado ficcionaliza essa imagem idealizada de Mário de Andrade, ao construir, em “Tempo de Mário e outros tempos”, a figura de um escritor fracassado, vivendo na Belo Horizonte dos anos de 1940:
Se lembrou dos tempos de Mário de Andrade, como ele chamava 1942, 1943, 1944. Um homem enorme, as mãos grandes, a calva, a boca avançando. O poeta Mário de Andrade rodeado de piás no bar do Grande Hotel. Guardava, ainda, com os versos, num baú velho, as cartas de Mário, como diziam. Hoje recebi carta de Mário, era como eles falavam uns para os outros, como se passassem uma mensagem cifrada. (…) Quase todos tinham cartas de Mário, quem não recebia carta de Mário não entrava para a literatura. O poeta Mário de Andrade descendo aos infernos no poema de Drummond, subindo ao céu cercado de piás. As cartas voavam dos bolsos cheios da casaca do mágico.12
Em 1982, Macunaíma de Andrade chega até a mim através do recorte da revista Veja, enviado por um dos muitos amigos que me mandavam do Brasil notícias e bibliografia sobre Mário de Andrade. Nessa época estava terminando o doutorado em Paris, cujo tema era a análise do discurso e da linguagem em Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.13 A impressão de ver plasticamente traduzido o texto literário com o qual estava, há mais de três anos, em diária companhia, foi a mais impactante possível, embora não pudesse ainda avaliar a obra, por desconhecê-la na íntegra. O contato mais próximo com a série de desenhos ocorreu em 1993, por ocasião da montagem da exposição em homenagem ao centenário de Mário de Andrade, voltada para a relação entre o escritor e os intelectuais e artistas de Minas. Mário de Andrade carta aos mineiros contou com a presença de Arlindo, que teve parte de sua obra exposta, juntamente com as ilustrações de Nava sobre Macunaíma e de documentos relativos ao convívio epistolar e literário de Mário. Nessa ocasião, já havia optado por uma abordagem mais contextual e biográfica de sua obra, através do estudo da correspondência, de ensaios, diários de viagem e entrevistas do autor. De posse de nova postura metodológica e teórica, foi possível perceber que Macunaíma de Andrade realizava, 10 anos antes, uma leitura em que o texto ficcional atua como pretexto para a invenção teórica, cultural e artística, além de tornar mais tênue a distância entre realidade e ficção. Os fatos da experiência, ao serem interpretados como metáforas e como componentes importantes para a construção de biografias, se integram ao trabalho artístico e ficcional sob a forma de uma representação do vivido. Os grandes temas existenciais da literatura e da arte, como o suicídio, a morte, o amor, a paixão, guardam sua natureza ficcional e se espraiam na página aberta do espaço plástico e textual e nos interstícios criados pelo jogo ambivalente entre a arte e o referente biográfico. Macunaíma de Andrade/Macunaíma de Daibert. Já não sei mais o que estou ilustrando. (Ensaio publicado em: ASBACH, J. (Org.). Macunaíma de Andrade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2000. p. 26-35.)
Bibliografia ANDRADE, Carlos Drummond de. A visita. São Paulo: Metal Leve, 1977. ANDRADE, Mário de. Querida Henriqueta. Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. (Organização, introdução e notas de PALU, Pe. Lauro.) BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. CARTA de Arlindo Daibert a Pedro Nava, de 2 de junho de 1981. Arquivo Museu de Literatura – Pedro Nava. Fundação Casa de Rui Barbosa. CARTA de Pedro Nava a Arlindo Daibert. In: SOUZA, Eneida Maria de; SCHMIDT, Paulo (Org.). Mário de Andrade – carta aos mineiros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. p. 155-156. DAIBERT, Arlindo. Macunaíma de Andrade – diário de bordo. In: ____. Cadernos de escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995 (Organização de Júlio Castañon Guimarães.). p. 13-27. DOURADO, Autran. Tempo de Mário e outros tempos. In: ____. Solidão, solitude. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. p. 127-136. NAVA, Pedro. Beira-mar/memórias 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
Amizade modernista A biografia literária, uma das fortes vertentes da crítica atual, recebe maior impulso com a publicação, no Brasil, da correspondência de escritores modernistas, incentivada por Mário de Andrade, um de seus maiores representantes. A separação operada pela crítica textual entre autor e obra, biografia e literatura, história e escrita considerava como critério valorativo a autonomia do texto frente ao contexto de sua produção, excluindo-se aí os documentos pessoais do escritor, como a troca de correspondência mantida com seus pares. No início da década de 1980, com a abertura política e a proliferação de uma escrita autobiográfica dos exilados, a crítica literária brasileira – tendo Silviano Santiago como um de seus titulares – volta-se para o enfoque particular do Modernismo, a epistolografia e o memorialismo, indo além de sua produção literária e ensaística. Configura-se, em definitivo, a aliança entre obra e autor, escrita e política, processando-se, contudo, o deslocamento do lugar reservado ao autor para o do intelectual, o que revela o avanço da crítica para a revisão da historiografia literária brasileira. Na apresentação ao volume, Santiago esclarece a importância de se estudar a correspondência entre escritores para a abertura do próprio conceito de crítica biográfica: A leitura de cartas escritas aos companheiros de letras e familiares, bem como a de diários íntimos e entrevistas, tem pelo menos dois objetivos no campo duma nova teoria literária. Visa a enriquecer, pelo estabelecimento de jogos intertextuais, a compreensão da obra artística (poema, conto, romance…), ajudando a melhor decodificar certos temas que ali estão dramatizados, ou expostos de maneira relativamente hermética (como a questão da felicidade, em Mário de Andrade, ou a questão do nacionalismo, no primeiro Carlos Drummond. Visa a aprofundar o conhecimento que temos da história do Modernismo, em particular do período consecutivo à Semana de Arte Moderna.1
Passados mais de 50 anos da morte de Mário de Andrade, seu baú de cartas pôde ser aberto, propiciando ao leitor a reunião das partes desse diálogo iniciado com o início e expansão do Modernismo. Carlos Drummond de Andrade é um dos mais notáveis parceiros dessa correspondência, tanto pela sua posição como poeta quanto pela sua imagem de intelectual, entre atuante e reservado, avesso à exposição pública, embora tenha exercido cargo político durante o governo Vargas, como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, então ministro de Educação e Saúde. A publicação recente dessas cartas rompe o silêncio da voz de Drummond, saciando a curiosidade da crítica, além de entregar ao público um rigoroso e excelente trabalho editorial.2 A vida estampada nas cartas revela-se de forma distinta para os interlocutores. Se em Mário prevalece a exuberância vital, unida à exuberância criativa, em Drummond, o “pouco de vida tímida e inconformada”, o menos que se traduz no mais de uma obra, confirma ser a vida nada mais do que um segredo impenetrável. E esse segredo se explica pelo comportamento contido do poeta mineiro, em oposta atitude assumida pelo
amigo paulista. Mário, em carta datada de 1944, ao revelar sua insatisfação diante da resolução dos médicos em não operá-lo, define seu estilo de vida inclinado muito mais para o gasto do que para a usura: Eles partem do princípio profissional talvez lógico mas antimário de que viver é conservar a vida. Pra mim, viver é gastar a vida. (…) Mas se vê pelas minhas cartas de todos os tempos que se eu quero me gastar e não conservar a vida, não se trata de nenhuma desistência, de nenhuma covardia atual, de nenhum suicídio. É questão de temperamento, de realidade instintiva do meu ser.3
O excesso, como assim o nomeia Silviano Santiago, à luz da teorização de Georges Bataille,4 seria o traço peculiar do escritor, que “não fala por alusões, símbolos ou metáforas. É direto e certeiro. (…) Mário tem um único estilo: na carta excessiva, ele se automodela pelo excesso. Tudo que nele sobra, falta ao jovem mineiro. (…). Comunica-se com o interlocutor pelo desperdício do que lhe sobra.”5 Essa exuberância se contrapõe ao comportamento retraído do poeta mineiro, contrário à exposição subjetiva e, por essa razão, autor de uma obra cujas qualidades encaminham para o apagamento do sujeito de forma quase absoluta. Esse apagamento se traduz tanto na vida quanto na arte, uma forma esquiva de participar de momentos significativos da vida pública nacional, ao mesmo tempo que construía sua poética em desacordo e em sentido contrário à ideologia autoritária da política do momento: “Me sinto capaz de viver. Não uma grande vida, nem uma vida cheia, mas o meu pouco de vida tímida e inconformada, com desejo de fazer alguma coisa que não sei o que seja, mas que seja bom para os outros, isso eu vivo.”6 As confissões pessoais expressas na correspondência não se restringem a revelar segredos ou a apontar desavenças e dissabores entre os missivistas/personagens. Ao serem lidas no seu estatuto de texto, as cartas se integram ao domínio da ficção, sendo, portanto, motivo de interpretações contraditórias. Vozes dissonantes são colocadas em cena, por meio do diálogo que aponta não só a troca de experiências entre dois poetas – o jovem Drummond recebe lições de poesia e de vida, discute sobre nacionalismo e política –, mas o silêncio e o não dito como sinais invisíveis de uma complexa relação de amizade. Em virtude da diferença de temperamento e de trajetória intelectual e literária assumida pelos poetas, a correspondência evidencia certa irregularidade, por deixar lacunas e silêncios ao longo do diálogo entre amigos de 20 anos. Não é difícil perceber possíveis desentendimentos entre eles, marcados pelo tom distanciado e frio das cartas trocadas no final da década de 1930 em diante. Desavenças da idade, desencontros de ordem política? O certo é que essa situação se apresenta por meio de comentários de ambas as partes sobre a perda de uma comunicação antes exercida de modo mais contundente e vigoroso. Descompassos e reconciliações vão sendo aos poucos negociados pelos missivistas, à medida que a conversa entre eles, pelo menos no papel, carecia de alimento e justificativa para se sustentar. Em 1942, quando Mário publica a reunião de sua obra poética, com o título Poesias, o reencontro entre os amigos-poetas
se manifesta a lembrança contida nos versos relidos por Drummond, pelo lugar da literatura como traço fiel de um antigo sentimento de camaradagem. Drummond reencontra e revê o longínquo Mário das cartas por meio da releitura de sua produção poética, gesto capaz de dar sobrevida à memória: …ao lado dos motivos grandes de satisfação poética, a mim oferecidos por seu livro, motivo de pura voluptuosidade de espírito, houve um que me tocou mais de perto, foi o de reencontrar nele o Mário dos anos 1920-30, o das cartas torrenciais, dos conselhos, das advertências sábias e afetuosas, indivíduo que tive a sorte de achar em momento de angustiosa procura e formação intelectual. Ele está inteiro nas poesias. E como permaneceu grande depois desse tempo todo! Sei que compreenderá a minha emoção encontrando esse velho companheiro.7
A desilusão de Mário diante do movimento modernista é ainda motivo para Drummond perceber o grau de distanciamento entre o atual e o antigo companheiro, o qual não mais se comportava como bravo defensor de uma determinada causa literária e nacional. A desilusão demonstrada pelo intelectual que havia, no passado, se notabilizado como um dos responsáveis pela revolução da historiografia literária brasileira não representava, para Drummond, apenas o acerto de contas de Mário com sua geração, mas também o fim do sonho moderno entre amigos. O bilhete endereçado a Mário pelo poeta, após receber o texto da conferência proferida no Itamaraty em 1942, sintetiza todo o desencanto do intelectual ao assumir o mea-culpa: “Recebi o Movimento modernista. Obrigado, mas que melancolia!.”8 O tempo das “grandes cartas paulistanas, escritas com amor e verdade implacável”, já se impõe como marca do entusiasmo que os uniu e que muito concorreu para a legitimação do programa moderno de criação da literatura nacional. A formação literária e profissional de Drummond, adquirida em parte com a ajuda do amigo paulista, se encontrava, no momento, em situação privilegiada, pelo reconhecimento público de sua obra. O balanço existencial será tributário da lição de poesia legada pelo amigo, consequência inevitável no destino de sua obra: “Eu era então um sujeito muito desgraçado, pelo menos me supunha tal, mas agora reconheço que tudo foi ótimo e valeu a pena. E em grande parte valeu por causa de você.”9 Carlos & Mário, além de ser um dos documentos e registros mais valiosos para a compreensão do programa modernista no Brasil, coloca à disposição do leitor um livroobjeto de luxo, contendo grande parte da vida passada a limpo de uma geração literária do início do século 20. As notas explicativas revelam-se de grande utilidade para a pesquisa, demonstrando fidelidade na recomposição dos fatos, cuidado presente tanto no trabalho anteriormente realizado por Drummond na edição das cartas de Mário, quanto na editoração das cartas de Drummond por Silviano Santiago. As reproduções das imagens de esquinas, de cidades históricas de Minas, de fragmentos de cartas manuscritas, de fotos dos protagonistas e companheiros da época se mesclam às primeiras edições de livros, periódicos e pinturas de artistas. O projeto gráfico, da autoria de Victor Burton, transforma a edição das cartas num álbum modernista, misto de imagem e texto, a ser folheado e lido com certo toque de nostalgia. Mas os resíduos
de uma modernidade em ebulição, de uma vida literária construída através de encontros e sonhos de mudança se perpetuam e se revitalizam neste desenho composto pelas cartas e suas notáveis personagens. (Artigo publicado na Revista Margens/Márgenes, Belo Horizonte, UFMG, p. 84-85, 1 jul. 2003.)
Bibliografia BATAILLE, Georges. A noção de despesa. In: ____. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 27-45. SANTIAGO, Silviano; FROTA, Lélia Coelho (Org.). Carlos & Mário. Rio de Janeiro: Bem-tevi, 2002.
“Márioswald” pós-moderno [Ficha 18] Escutando distraído o rádio, de repente sou tomado pela mais vasta das emoções. Avassaladora. Descobri a pólvora. Inventada por Herivelto Martins e Grande Otelo. A pólvora tem rótulo, versos e notável conteúdo lírico. Chama-se “Praça Onze”. “Vão acabar com a Praça Onze”, diz o verso que me nocateou de vez, levando-me à lona. Meio grogue, levantei, dei dois passos, cumprimentei o vencedor e disse de alto e bom som: Vamos acabar com o Modernismo. Vou acabar com o Modernismo, ecoei, enquanto tomava o café da manhã. Silviano Santiago
A literatura se alimenta da tradição cultural, seja para legitimá-la ou contrariá-la. Silviano Santiago, escritor e ensaísta, se comporta diante dessa tradição de modo paradoxal, por entender que só o gesto de traição/fidelidade quanto aos modelos literários instaura a descontínua linhagem da literatura. A relação do escritor com o Modernismo, tendo Mário e Oswald de Andrade como protagonistas, permite revisar conceitos da crítica literária tradicional, como os de influência, herança, filiação, propriedade autoral, em sintonia com os critérios de semelhança e continuidade, diferença e repetição, sujeição e dívida, modelo e cópia. Revisitar a tradição moderna latino-americana é uma das metas buscadas pela sua obra, no sentido de processar desdobramentos conceituais e apontar limites e rasuras teóricas nos textos em diálogo. No fragmento em epígrafe, retirado do conto “Caíram as fichas”,1 o escritor se mascara em narrador ao se apropriar da voz do outro para expressar pontos de vista que contrariam ou reiteram os seus, articulação enunciativa pautada pelo deslocamento e pelo desvio. Narra, através de recurso ficcional – as fichas de trabalho –, o conflito vivido por Mário, quando preparava a conferência proferida no Itamaraty, em 1942, durante a comemoração dos 20 anos de Modernismo. Ao tomar para si fragmentos de cartas do escritor aos amigos, Silviano constrói um dos perfis de Mário, captado no momento de grande desencanto com os rumos do país e com sua contraditória adesão ao programa cultural do governo Vargas. A crítica ao Modernismo já estava sendo feita desde os anos de 1930, referência encontrada em Silviano no artigo “Fechado para balanço”, onde se afirma que a contestação tinha por base o Rio de Janeiro e o movimento literário que ali se desenvolvia. Nova época se descortinava para os colaboradores da revista Lanterna Verde, destacando-se, dentre eles, Tristão de Ataíde, Octávio de Faria e Jorge Amado. Partidários de ideologias diferentes, esses intelectuais se uniam contra o liberalismo clássico e o niilismo de 1922, em defesa de um período esperançoso para a cultura, constituindo uma força política que reunia catolicismo com integralismo e comunismo com stalinismo.2
A opção por se apropriar da experiência alheia para falar de si é um dos recursos usados por Silviano para apagar a assinatura autoral, o que confere ao seu texto alto grau de ficção e tendência a embaralhar afirmações, inseridas tanto no texto-modelo quanto na cópia. Marcada pela ambiguidade, a escrita se inscreve no registro factual e no fabular, no autobiográfico e no biográfico, estratégia escolhida na composição de perfis identitários. A contaminação de vozes narrativas impede associações que levem à indistinção entre narrador e personagem, convidando, antes, ao deslocamento entre eles. A autocrítica do movimento realizada pela personagem Mário é motivada pela necessidade modernizadora do presente em acabar com a “Praça Onze”, reduto do samba e da concentração popular, da mesma forma que o elogio à modernização operada pelos modernistas em nada contribuiu para o “amilhoramento (sic) políticosocial do homem”. Mas o que o narrador insinua é justamente a coincidência entre o esvaziamento das manifestações populares – o início da modernização política com o crescimento e controle das massas pelo Estado – e a feição elitista assumida pelo movimento, em defasagem com o desejo popular. Por intermédio da canção popular, do apelo emocional que atinge o ouvinte, Mário encontra o fio da meada e a mensagem a ser legada à jovem geração: a desconfiança em relação ao passado. Se na “Praça Onze” lamenta-se o fim de uma época e os efeitos da modernização urbana para a marginalização da cultura – a construção da avenida Presidente Vargas –, no texto de 1942 são apontados os equívocos do movimento, ao repetir o gesto destruidor do ensaio “Mestres do passado”, quando a poética inovadora exigia a ruptura com a poesia parnasiana.3 O deslocamento do tema sério da conferência para o âmbito lúdico e sensorial da música popular se processa de modo a ressaltar o valor da sensibilidade e do inesperado na composição de saberes. Por um processo de montagem, Silviano retira a passagem da canção contida na carta de Mário a Moacir Werneck de Castro e a enxerta no meio das fichas de trabalho, produzindo o efeito irônico e a condensação da dor com a alegria. Dramatiza ainda o momento de satisfação do escritor ao criar a analogia aqui explicitada como desforra pelo mal-estar vivido durante os anos passados no Rio. Ao evocar, através de Mário de Andrade, a sabença popular como via necessária para a construção de saberes considerados eruditos, Silviano reúne a experiência de Mário com a sua concepção de literatura. Se a negra que dançava na avenida durante o carnaval passado no Rio, em 1923, ensinou a Mário o que é a felicidade, a canção ouvida no rádio, em 1942, lhe permite “descobrir a pólvora”, ter o insight sobre o tema da conferência. É no “sentimento religioso da vida”, no aprendizado de emoções motivadas pela experiência e não apenas pela inteligência e pela erudição que reside uma das lições de Mário para a obra de Silviano.4 O apelo ao popular como motivo de desvio do erudito é igualmente incorporado pelo escritor nas suas considerações sobre a cultura de massa, um dos desdobramentos atuais do sentido de popular.
Mas é sobre a escrita bem-humorada, substituta da “ironia corrosiva”, que o escritor se apoia para criar o perfil de Mário, quando este encontra a saída para a conferência. Na desconstrução do conceito clássico de felicidade, o escritor a associa à dor, revelando a proximidade com a lição dionisíaca e nietzschiana: “A própria dor é uma felicidade.”5 Em “Caíram as fichas”, o sofrimento e o conflito vividos pelo modernista ao fazer o balanço do movimento recebe tratamento ficcional resgatando-se o bom humor expositivo, a transfiguração do sentimento em atividade criadora. A recuperação da antiga imaginação poética da mocidade – a vontade “que transformava a dor em luz que os faróis projetavam para iluminar a estrada” – se dá pela rememoração causada pela música, revertendo na revitalização do corpo atormentado pelo reumatismo, pelos movimentos tolhidos e pela fragilidade de um andar de chinelos de velho: E ontem, eu que me queixava do andar de chinelos da minha imaginação crítica. Guardei-os no armário. Tranquei-os. Calcei meias e chuteiras de jogador de futebol. Peguei a bola no fundo do baú da memória e estou disposto a entrar em campo minado, chutando para todos os lados, que nem uma metralhadora giratória. Cuidem-se das canelas, quarentões – rapazes no passado e figurões do presente.6
Ainda que Mário tenha modestamente se esquivado de deixar herança literária para a nova geração, é com base no corte de uma sequência evolutiva que se legitima a linhagem: descontínua, fragmentária e paradoxal. Na vasta correspondência trocada com os amigos, o modernista distribuiu lições e lições de poesia e vida, sem ter a intenção de exercer papel catalisador e autoritário frente aos amigos. Alguns títulos dos volumes de correspondência confirmam, contudo, o seu lado professoral, como A lição do amigo, A lição do guru, reafirmando ser notório o seu poder de formar jovens escritores. A conferência de 1942 desfaz, contudo, o mito do Modernismo como movimento imune a críticas e instaura a necessidade de se romper com a ideia de passado como herança recebida de olhos fechados. Como ensaísta, a posição de Silviano no debate literário e cultural se manifesta de forma desconstrutora e distanciada frente aos objetos de análise, reiterando opiniões já registradas na ficção. O ensaio se desvincula do estudo acadêmico, por adquirir liberdade criativa e optar por uma dicção mais dramatizada e em diálogo com o leitor. Distingue-se da ficção, por ainda respeitar protocolos e pactos da escrita ensaística, embora se perceba de que se trata de um discurso intervalar, híbrido e em simetria com o universo fabular do escritor. A reflexão sobre manifestações culturais do presente ou do passado requer a escolha de uma estratégia comparativa capaz de problematizar certezas e apontar contradições. Leituras bem-comportadas tendem a repetir o que o conceito de tradição guarda de mais conservador e intocável, como muito bem assinala Mário de Andrade. Leituras desconstrutoras têm o mérito de deslocar saberes consolidados, de se entregar à prática do jogo ambivalente dos conceitos e de optar pelo excesso produzido pelo olhar suplementar do ficcionista ou do ensaísta. Essa leitura exercitada por Silviano ao longo de sua trajetória intelectual é tributária da teoria da desconstrução de Jacques Derrida, que consiste no duplo gesto de
denunciar, em determinado texto, tanto o que ele diz, assim como o que, sob o olhar do presente, foi dissimulado e recalcado. Transgredir é o gesto herdado por excelência, invenção, o esforço do leitor na criação do texto que desconfia das origens e acredita na repetição como sinal de diferença e resistência. Cabe ao leitor de cada época reinventar tradições, romper com a cômoda atitude do senso comum, reprodutora fiel do discurso alheio. Privilegia-se a descrição da obra em perspectiva, no lugar da análise do quadro, do texto isolado, considerando que toda obra se inscreve a partir de determinados modelos que ampliam os espaços particulares em que foi gerada. Nenhum texto se impõe como produto singular e autônomo por manter compromissos com outros que lhe serviram de suporte e com os futuros leitores. Desses lugares de enunciação, canônicos ou não, é de onde parte Silviano no seu trabalho de desconstrução, por meio da utilização do conceito de “entre-lugar”7 segundo o qual “o lugar de observação, de análise, de interpretação não é nem cá nem lá, é um determinado ‘entre’ que tem que ser inventado pelo leitor”.8 A criação desse espaço teórico relacional se aproxima da dobra leibniziana, desprovida de avesso e direito, de interior e de exterior, tendo o deslocamento como movimento instaurador da categoria nômade da escrita. A definição do conceito de “entre-lugar” se alimenta ainda da lição de Borges, legítimo representante de um escritor das margens. Ao adotar esse espaço intermediário de reflexão, Silviano descarta “o lugar-comum dos nacionalismos brabos” e o “lugar-fetiche do aristocrata saber europeu”. Desconsidera ainda o rancor próprio da teoria marxista da dependência, por meio da qual se evidencia o descompasso temporal e a consciência trágica do atraso dos países periféricos em relação à cultura metropolitana.9 A posição de Silviano diante da estética modernista brasileira se caracteriza também por essa leitura intervalar, perspectiva analítica voltada para o balanço do movimento de modo a respeitar o que ainda possui rendimento para a compreensão do momento presente, ou o que não mais se sustenta em termos literários e teóricos. Sem apelar para critérios binários, pautados pela exclusão de termos em favor de outros, o ensaísta assinala, em artigo referente às comemorações dos 60 anos do Modernismo, a necessidade de realizar o balanço do movimento de forma a não só legitimar conquistas, mas apontar equívocos, fechar o círculo e cortar o cordão umbilical com o passado.10 O que sustenta essa avaliação é a perspectiva do presente, estratégia capaz de entender o passado por meio da lógica do suplemento, ou seja, o “acrescentar algo ao que já é um todo”. Não se trata de considerar o texto anterior como incompleto e tentar complementá-lo, um exercício repetitivo e parasitário, mas de partir de situações consolidadas a fim de gerar formas transgressoras. Nesse sentido, as personagens que compõem o quadro do Modernismo brasileiro – Mário e Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, entre outros – não se apresentam para o ensaísta de modo intocável e inseridos tranquilamente nesse cânone. Recebem tratamento crítico sem a adoção de um raciocínio binário, de princípios
excludentes, mas são interpretados segundo a lógica do diálogo, do contraste e do paradoxo. Procede-se ao descentramento da estética modernista, confrontada à dos autores pré-modernistas, como Euclides da Cunha ou Lima Barreto, cuja obra rompe com os princípios modernizadores e os ideais de progresso. Rever o que foi recalcado pela crítica ou o que sofreu o processo de exclusão por força de critérios de universalização do cânone oficial é uma das propostas acrescidas à leitura desconstrutora do Modernismo realizada por Silviano: “O que se pode aprender nos textos de Lima Barreto e Euclides da Cunha, que nos deixam para fora dos padrões estéticos e ideológicos estabelecidos pela estética modernista?”11 O argumento usado para a leitura do balanço modernista se concentra nos modelos universais de análise, instaurados na década de 1950 pela publicação de obras de história literária, como Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, A literatura no Brasil, coordenada por Afrânio Coutinho e História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, responsáveis pela institucionalização e transformação do cânone estético do ideário modernista. Esses modelos ou são fielmente fortalecidos pela vertente crítica ligada à Universidade de São Paulo, voltada para a consolidação do cânone modernista, ou são questionados pela nova geração. A mudança desse olhar crítico é tributária da posição de Silviano e reelaborada por seus seguidores, concorrendo para a redução de uma visão única assumida pela geração formada na USP. Em razão de transformações culturais e políticas, as demais vertentes se desvinculam de interpretações associadas ao modelo de fundamento econômico e de seus cânones, partindo para uma análise do Modernismo segundo uma visão antropológica e desconstrutora. Célia Pedrosa, em artigo intitulado “Crítica e grouxismo”, desenvolve pontos essenciais da posição de Antonio Candido na crítica nacional e destaca a diferença assumida por Silviano diante desse quadro, em que são deslocados pontos de referência e apontados novos critérios de interpretação.12 É incisivo o apelo do crítico pela revisão desses modelos, tendo em vista as transformações de ordem política e cultural causadas por eventos mundiais, além da luta pelos direitos de cidadania das minorias e organismos afins. Nesse sentido, os paradigmas da modernidade serão revisitados pela crítica contemporânea, com o objetivo de alargar o horizonte interpretativo, não se restringindo apenas à abordagem literária, mas se impondo como crítica cultural. Reside aí uma das maiores reações ao aprisionamento teórico a que se submete grande parcela da crítica. Em artigo de 1995, (“Atração do mundo”) Silviano sinaliza o impasse das culturas periféricas diante do então nascente processo de globalização, alertando para a mudança de posicionamento crítico e teórico, a revisão dos conceitos frente às transformações sofridas pela “rápida globalização do capitalismo periférico”.13
Para além do moderno Na elaboração de reflexões vinculadas à crítica cultural – atividade da qual é um dos expoentes –, Silviano também se vale da leitura da tradição da cultura brasileira como argumento capaz de concorrer com teorias estrangeiras. É por acreditar na construção de um pensamento crítico no Brasil como produto da conjunção entre conceitos locais já consolidados e aqueles resultantes dos processos de globalização, que se apropria do cânone moderno, sem deixar de apontar diferenças causadas por imposições de ordem espacial e temporal. O trabalho de valorização e divulgação dos “intérpretes do Brasil” moderno não se restringe, para o crítico, na produção literária, mas se dirige também para a produção ensaística existente nas demais áreas. Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado, entre outros, compõem, ao lado de Oswald e Mário de Andrade, um dos desenhos possíveis da identidade cultural brasileira.14 Na posição de crítico cultural, irá proceder à análise da produção modernista, segundo parâmetros que ultrapassam o valor imanente das obras, ao problematizar a complexa relação mantida entre os escritores e o Estado Novo. A leitura, motivada pelo polêmico livro de Sérgio Miceli, Intelectuais e classe dirigente no Brasil, contribui para a revisão dos autores modernistas sob o prisma da vinculação obra/público, intelectual/atuação política, debate também facilitado pelo clima de pré-abertura política no Brasil. No entender de Silviano, o novo enfoque permitiu que se chegasse a conclusões menos unilaterais sobre o movimento, apesar das limitações do enfoque sociológico de Miceli, que desconsidera a produção literária dos escritores envolvidos.15 A desconstrução dos princípios universalistas erigidos pela civilização europeia, com forte impacto nos estudos contemporâneos, é vista por Silviano como herança do Modernismo, pois, embora se pensasse na consolidação de uma nacionalidade artística, Mário e Oswald de Andrade lutaram pelo reconhecimento da civilização indígena e pela abertura a outras civilizações. Na percepção da América Latina, como cultura híbrida, isenta de radicalismos relativos aos sentidos de pureza e unidade, e, por essa razão, capaz de transgredir modelos e inventar respostas próprias, o ensaísta remete à lição de Oswald sobre o tema, introduzindo-o como um dos seus precursores teóricos no artigo “O entre-lugar do discurso latino-americano”. O argumento encontrado é a mistura de raças, a “mulatização”, que, comparado às novas formas do multiculturalismo, não se vincularia à posição defendida por Gilberto Freyre: “A Alemanha racista, purista e recordista precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru e do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no melting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se.”16 Mário de Andrade fornece também ingredientes para o sustento do pensamento multicultural contemporâneo, ao ser citado em ensaio dedicado à tolerância racial em Oswald de Andrade. Neste texto, salienta a lucidez do escritor paulista que, em 1924, ainda que defendesse o nacionalismo como primeira preocupação, se abre para a
compreensão da existência de várias etnias. O emprego do plural para o termo civilização serve como abertura para a multiplicidade cultural e funciona como previsão para o debate atual do tema: “Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há civilizações.”17 O multiculturalismo dos dias atuais recebe do crítico (em “O cosmopolitismo do pobre”) tratamento diferenciado daquele anunciado na obra de Gilberto Freyre, por este se associar à fórmula do Estado-nação. Não resta dúvida de que se apoia na lição legada pelos modernistas para “ir mais além”, com o cuidado de não reproduzir noções criadas em tempo diferente e segundo intenções que se distanciam das atuais. Nesse sentido, torna-se evidente o comportamento analítico de Silviano diante do texto dos modernistas, ao acatar e ao mesmo tempo avançar na reformulação do nosso repertório teórico e cultural. No ensaio “Atração do mundo”, essa contribuição é ressaltada: Com olhos livres, o modernista rechaça a idealização e o recalque do passado nacional, acima referidos, para adotar como estratégia estética e economia política a inversão dos valores hierárquicos estabelecidos pelo cânone eurocêntrico. Essa estratégia e economia de pensamento, necessariamente periféricas, ambivalentes e precárias, tanto aponta para o resgate da multiplicidade étnica e cultural da formação nacional quanto para o vínculo que esta mantém com o pensamento universal não eurocêntrico.18
A convivência sistemática do escritor com o Modernismo, além de ser distinta da vertente canonizadora de grande parte da crítica, contribui tanto para o aproveitamento de conceitos operatórios fornecidos pela obra de Mário e de Oswald de Andrade quanto para o exercício da escrita ficcional. Sem se entregar a critérios binários de exclusão de um autor por outro, vale-se da posição de Mário sobre a questão da dependência cultural, a “traição da memória”, assim como do conceito de antropofagia de Oswald. Em artigo de 1981, “Apesar de dependente, universal”, amplia o conceito de “entre-lugar” com a apropriação das teorias modernistas, uma vez que estas iniciaram o diálogo transcultural, ao transformarem o atraso e o subdesenvolvimento das nações periféricas em resposta eufórica e positiva às questões da dependência. Considera ainda o concretismo como o terceiro antídoto proposto para se repensar a cultura nacional, segundo critérios que reforçam o conceito de defasagem temporal entre o produto da cultura dominante e a da dominada, resultado do descompasso entre modernidade e modernização.19 Dos textos de Mário de Andrade, Silviano irá se valer na sua totalidade, mas de forma mais rentável no que se refere à quebra de barreiras entre a cultura erudita e popular, aos temas referentes à criação literária, à relação entre arte e vida, à linhagem fraterna como substituição da paterna e ao papel do intelectual moderno. O ensaio de 1985, “A permanência do discurso da tradição no Modernismo” representa, na crítica brasileira, uma das reflexões mais agudas sobre a poética modernista, à luz de uma leitura pós-moderna. Considera que na tradição da própria crítica foi prioritário o endosso da estética da ruptura, responsável pela exclusão de vários escritores que não seguiam esses parâmetros, como Murilo Mendes, ou os textos
filosóficos de Oswald de Andrade. A defesa de poéticas vanguardistas pela crítica e pelos escritores-críticos também motivou o estreitamento de padrões estéticos, a escolha de determinados nomes para compor o cânone modernista, além do desprezo da produção que não fosse literária, como a correspondência, memórias, ensaios e outros textos. A abertura para o enfoque de feição cultural e política, ao colocar entre parêntese a valorização do estético em si e do imanentismo textual, é motivada, na obra de Silviano, pelo exercício da crítica memorialista e pela atenção voltada para a correspondência de Mário de Andrade, assim como para a atenção dedicada à cultura de massa. Se, na década de 1970, uma parcela da crítica ainda se pautava pelo endosso das estéticas da ruptura, tendo a poética oswaldiana como emblema, na década de 1980, a obra de Mário e o seu papel como intelectual são reconsiderados, pioneiramente por Silviano, como assinala Italo Moriconi: Nos anos 1980, a figura de Mário voltou a predominar como tópico de interesse não só dos estudos literários, mas também da criação, através de montagens teatrais etc. O espírito tropicalista e o realce da figura de Oswald entraram em declínio, embora os anos 80 e 90 tenham sido pródigos em publicações dele e sobre ele, Oswald. Na PUC do Rio de Janeiro, Silviano Santiago passou a desenvolver uma linha de pesquisas centrada em estudos da correspondência de Mário, praticamente pondo em prática uma proposta que, como se vê, era de Candido.20
Mas a mudança que ocorre na crítica acadêmica na década de 1980, principalmente relacionada à preferência dos autores modernistas, recebe do ensaísta autoanálise, por ter também incorporado, nos anos de 1970, a vertente elitista da arte da qual Oswald de Andrade foi um de seus expoentes (e que Mário já havia denunciado na conferência de 1942). Em “O teorema de Walnice e a sua recíproca”, reacende-se o debate sobre a complexa relação entre escritor e Estado e entre obra literária e público leitor, com o objetivo de, entre outras considerações, ponderar sobre arte e mercado. A conhecida frase de Oswald, “a massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”, é um dos argumentos reveladores da atitude hierarquizante de Oswald e do Modernismo quanto ao diálogo entre obra e público. Elitista, por deslocar a atenção para o público, na confiança de que algum dia ele pudesse comer o biscoito fino, alcançando o valor e a qualidade da verdadeira obra de arte. Não se cogitava ainda de repensar se a qualidade e o hermetismo do texto poderiam ser revistos pelo escritor ou que a exigência de aprimoramento por parte do público respondia, no meio literário, a um desejo que reportava ao saber iluminista da classe letrada. Nesse sentido, Silviano se distancia da premissa de Oswald, por acreditar que o pensamento do modernista se definiria pela “estetização do popular”, cuja função seria a de conservar o saber erudito. Não deixa ainda de reconhecer que, no ano de 1972, por ocasião do cinquentenário da Semana de Arte Moderna, “reinstala-se o projeto modernista” e “redefine-se a arte brasileira como arte elitista”, o que irá perpassar toda a década.21 As aproximações entre Silviano e Oswald se verificam no âmbito literário, ao ser incorporada a poética oswaldiana em várias obras. Os contos de O banquete (1970), de
temática antropofágica, se pautam pela revitalização da paródia oswaldiana e pela exploração de ingredientes da cultura pop e tropicalista. O livro de poemas de 1978, Crescendo durante a guerra numa província ultramarinha,22 se apropria dessa poética pela utilização de colagens textuais, de ready-made linguísticos, numa clara alusão à herança do modernista e ao momento político da década de 1940. A referência a esse período contém tanto a relação das experiências familiares do jovem que crescia durante a guerra, quanto ao momento presente da ditadura militar brasileira. Nessa mesma linha de criação-apropriação de textos alheios, reescreve a crônica de Mário sobre a viagem da caravana paulista a Minas, valendo-se, antropofagicamente, da dicção oswaldiana, mas empregando o pastiche como recurso poético.23 Nesse poema, intitulado “O dentro do dentro do dentro,24 por meio da montagem de citações, reverencia ao mesmo tempo Oswald e Mário, transgredindo, de forma lúdica e alegre, os textos originais. Como suplemento à viagem modernista, Silviano ressalta o que sobra dessa poética, indo além da proposta, sem pensar em completá-la. O trabalho de restauração do texto-modelo joga com o sentido de incompletude e de exposição das várias vozes ali inscritas. Reveste-se em exercício poético que dialoga com o ensaio “A permanência do discurso da tradição no Modernismo”, no sentido de presentificar os ecos e ruínas do moderno e trazê-los à superfície da escrita contemporânea. O poema reveste-se ainda da alegria modernista relativa à descoberta, à viagem ao interior de Minas, colonial e barroca, através do gesto criativo e desconstrutor que evidencia a natureza da leitura pós-moderna como um saber alegre: a “gaia ciência” nietzschiana, via Jean-François Lyotard (“o saber alegre da pós-modernidade”) e a poética moderna de Mário de Andrade (“a própria dor é uma felicidade”) se contrapõem à leitura sociológica de Roberto Schwarz (“as ideias fora do lugar”), caracterizada pelo sentimento de “mal-estar da dependência”, do descompasso temporal entre metrópole e colônia.25 Com a abertura política e a proliferação de uma escrita autobiográfica dos exilados, Silviano se concentra no estudo do Modernismo a partir da produção epistolar e dos livros de memórias. Configura-se a aliança entre obra e autor, entre escrita e política, ao ampliar o estatuto de autor para o de intelectual e revestir a escrita de distinto sentido político daquele assumido pela obra dos ex-exilados. No cruzamento da experiência ficcional com a ensaística, retoma a tradição da crítica biográfica e memorialista, no momento em que escreve Em liberdade, diário fictício do Graciliano Ramos recém-saído da prisão.26 Se no artigo “Fechado para balanço” Silviano registra o ano de 1936 como a proclamação da morte do Modernismo de 1922, corporificada na crítica feita pelos colaboradores da revista Verde, a data remete tanto para o nascimento do escritor quanto para a prisão de Graciliano pela repressão do governo Vargas. A utilização do artifício autobiográfico cumpre função metafórica, ao serem aproximadas referências documentais que respondem tanto pela ambiguidade e transfiguração do ficcional,
quanto pela contextualização da escrita de Silviano como intelectual. Procede-se à dupla releitura do Modernismo seja através da figura de Graciliano, seja através de Em liberdade, uma das primeiras manifestações da literatura pós-moderna entre nós. Diferentes procedimentos narrativos se constroem nesta obra – a estilização e o pastiche, gestos paradoxais de celebração e distanciamento quanto ao modelo – por meio dos quais se afasta do artifício parodístico exercido pelos modernistas. Embora se atualize textualmente o diálogo transgressor com a tradição literária brasileira, o livro rompe com o projeto radical de ruptura dos modelos fundadores. No âmbito político-existencial, Em liberdade nasce simbolicamente do útero cerebral de Graciliano/Silviano, criação especular que evoca o processo de simbiose e afastamento do narrador, na escolha da difícil tarefa de falar de si através do outro, com vistas a refletir sobre um dos perfis do intelectual brasileiro. Ao invés de se valer da experiência carcerária do passado, produtora de discursos do ressentimento, o intelectual deveria se concentrar no compromisso livre e positivo com o presente. Nas palavras de Wander Melo Miranda, em Corpos escritos, ensaio pioneiro sobre a escrita memorialista de Silviano, a obra é a tradução de Memórias do cárcere, pastiche e reverência ao texto de Graciliano, traço de uma leitura que atualiza o conceito de suplemento derridiano: “A ficção de Silviano, ao propor-se como ‘acréscimo’ ou suplemento às memórias de Graciliano – no sentido de multiplicar seus significantes e não de reduplicá-los –, não visa, à semelhança do texto primeiro, a atingir um significado último ou definitivo.”27
Lições de Sabença Como ativista no campo da construção de uma nova sociedade, Mário de Andrade abdica passageiramente da cultura de elite e se entrega ao exercício da solidariedade. (…) A forma mais absoluta do conhecimento pela solidariedade do outro étnico e cultural, pela solidariedade, é a conversa, cujo exercício extrapola agora o campo limitado da correspondência literária e do privado, para ter a abrangência de uma indistinção fraterna e pública que se confunde com o amor à humanidade. Silviano Santiago
Rasurar a primeira pessoa, escolhendo a terceira como álibi e mediação, se esquivar do sentido pleno de identidade autoral ou existencial compõem o fazer literário de Silviano, o traçado de um estilo errante e travestido, no qual se elege o outro como parceiro fiel/infiel de seus escritos. No caminho tortuoso da autoficção – a fabulação autobiográfica – o escritor embaralha as pessoas do discurso, finge falar do outro para falar de si, ou mesmo que se coloque especularmente no texto, se comporta de modo distanciado, irônico e oblíquo. Como escritor-crítico, um dos temas explorados na sua obra incide na elaboração metafórica do conceito de criação literária, desdobrado em vários livros e a partir de afirmações emitidas por Mário em cartas e depoimentos. Inúmeras são as cenas em que o tema é dramatizado, comportando associações com filósofos como Nietzsche, Georges Bataille e Jacques Derrida para o redimensionamento dos empréstimos. A atuação diferenciada da dança da negra eleita por Mário no “Carnaval carioca” e em carta a Drummond, funciona como leitmotiv inscrito em alguns de seus textos e se associa à noção de arte como excesso, dispêndio improdutivo e energia vital desprovida de utilidade imediata. A entrega religiosa à vida se confunde com charitas, o amor à humanidade, o dom que não envolve troca nem retorno, conforme assinala Mário em carta a Oneyda Alvarenga. Considerada no sentido mais abrangente, a doação significa entregar-se com paixão em tudo o que se faz, desdobrando-se o propósito em gesto artístico e prática existencial. Em carta de 1944 dirigida a Drummond, o autor se diz insatisfeito com a decisão dos médicos em não operá-lo, cautela que não combina com seu estilo de vida, dotado de mais propensão para o gasto do que para a usura. O excesso, como assim se refere Silviano na apresentação da correspondência de Mário e Drummond, à luz da teorização de Bataille, seria o traço peculiar do escritor. Essa atitude remete à concepção de arte como energia que excede como transgressão ao interdito e que foge às regras impostas pela racionalidade, dando origem à festa e ao ritual dionisíaco. A noção de dispêndio improdutivo, de desperdício, está relacionada às manifestações que contêm fim em si mesmo, como o luxo, as guerras, os cultos, as artes, distinguindo-se daquelas que se prestam a reproduzir e a conservar a vida, a acumular bens e a se guiar pela necessidade e não pelo prazer.28 No entender do filósofo, é na transgressão e na violência que o homem potencialmente se revela. Essa atitude,
denominada soberana, refere-se a situações em que a submissão ao sacrifício se apresenta de modo excessivo, comportando o sujeito de forma destemida diante da iminência da morte. O êxtase erótico ou sacrificial é uma experiência que nasce no sujeito por obra da arte, “mas que o consome em seu movimento, através de um processo de pura perda do sujeito”.29 É ainda contra o clássico pensamento econômico do sistema capitalista, pela ênfase na necessidade de utilizar os recursos de maneira eficiente que Bataille recorre ao antropólogo Marcel Mauss e se vale de sua teoria sobre o dom. Essa teoria surge como alternativa para o cálculo racionalista da troca capitalista. A influência exercida no pensamento de Bataille o leva a enfatizar o irracional no lugar do racional, o erótico contra a moral burguesa, a celebração do excesso em oposição à economia capitalista e a transgressão contra a conformidade. Mary Douglas tece também considerações sobre o ensaio de Mauss, acrescentando que a noção de dom remete à teoria política contemporânea, por ela denominada de “teoria da solidariedade social”.30 Como motivo recorrente nos seus escritos, Silviano recria a cena da performance da negra fisgada por Mário no “Carnaval carioca” nos romances Stella Manhattan e Viagem ao México, imprimindo-lhe significados conforme o contexto em que se encontra. É importante ressaltar que a apropriação feita por Silviano da lição de solidariedade representada pelos escritos de Mário recupera o conceito de doação como força ativa do projeto existencial. Na substituição do sentido cristão inerente ao termo charitas pela teoria pagã do dispêndio, da alteridade e da falta como categorias formadoras do sujeito, Silviano entende, com Bataille, ser o gesto criativo composto paradoxalmente de ganho e perda. No ensaio “Atração do mundo” e na “Apresentação” ao volume de correspondência entre Mário e Drummond, Silviano retoma a cena, desta vez para destacar o papel de Mário como intelectual moderno, pelo “exercício da solidariedade” conseguido através da conversa, do encontro com o outro étnico e cultural, o que irá concorrer para a legitimação do sentimento de “amor à humanidade”. O artista brasileiro deveria se comportar, segundo Mário, como ator e não espectador na vida, não se dividindo entre o intelecto e o sentimento, e procurando aprimorar cada vez mais o conhecimento que se produz na rua, no meio de gente sem instrução: O literato 24 horas de plantão cede lugar ao etnólogo amador: o coração do homem não bate lá na biblioteca, bate cá no espetáculo das ruas. “Puxar conversa” não é diferente de trocar cartas. Puxar conversa na rua é o modo de se aproximar agressiva e despudoradamente, sensual e fraternalmente, do outro, para que o outro, ao passar de objeto a sujeito, transforme o sujeito que puxara a conversa em objeto.31
O narrador de Stella Manhattan estabelece com a cena dos músicos no metrô parisiense o elo entre a performance da negra no “Carnaval carioca”, assumindo a dívida teórica para com Bataille e retomando o conceito de “fazer milhor” de Mário. O melhor dos músicos, um mulato “retraído e gordo” no meio de brancos esfuziantes, “era todo equilíbrio” e “explodia nele um acúmulo de energia que fugia da norma que satisfaz a necessidade”. Percebe-se, na passagem, a metáfora do desperdício, retirada da cena
doméstica de encher o leite numa xícara e deixá-lo transbordar até ensopar toda a toalha, assim como a interpretação musical do mulato no metrô. Introduz, com a ajuda de fragmentos de Bataille, a definição sobre a criação artística, ao considerar que “arte não é e não pode ser norma, é energia desperdiçada mesmo”.32 A recriação do cenário musical no metrô parisiense, tendo como destaque a interpretação do mulato, redimensiona o significado da cena original, ao ressaltar a presença diferenciada da cultura periférica na metrópole. O excesso que a distingue diz respeito tanto à sua exclusão social como imigrante na comunidade, quanto à criatividade e energia existencial que extrapolam a ordem e o bem-estar público. Viagem ao México narra, no Capítulo VII, sobre Cuba, situação oposta à cena original e à de Stella Manhattan, ao ser contemplado um grupo musical, apático e sem energia, comportando-se como se estivesse realizando um rito operário. A falta de engajamento dos intérpretes os coloca na situação de espectador e não de ator do espetáculo promovido e dirigido pelo governo autoritário. A recorrência da cena funciona como ilustração do cenário do regime socialista, de um espetáculo que nada motiva a quem o observa. Destituída de vitalidade e de entusiasmo, a execução musical obedece ao ritual de trabalho e se apaga enquanto manifestação artística coletiva. O povo se contenta em ser o espectador de uma festa que não lhe reserva mais o direito de exercer o papel de ator na sociedade: A maioria dos cubanos tira a graça e a alegria da vida sendo espectador. Não consegue mais participar como ator dos eventos públicos e dos espetáculos, das coisas do dia a dia. Foi um direito que lhes foi pouco a pouco dado e pouco a pouco roubado, talvez pela excessiva especialização profissional, talvez pela rotina do trabalho setorizado, talvez…33
Tio Mário Os seres sem vontade como Bartleby ou Billy Bud aniquilam, por meio de um excesso simétrico, a figura da obediência filial. Eles a petrificam identificando-a a uma não preferência radical. A tragédia dos originais libera assim, em uma dialética bem hegeliana e em uma dramaturgia wagneriana, a possibilidade do homem sem qualidades. Ao destruir esse retrato do pai que é o centro do sistema representativo, ela abre o porvir de uma humanidade fraternal. Jacques Rancière
Mário entende ser a criação artística semelhante ao orgasmo e não ao parto, como assim reformularam Rilke e Nietzsche, por simbolizar o estado de prazer que arrebata o criador, que se encarregará de retomar o trabalho e revisar o que fora escrito de forma intempestiva.34 O culto da preguiça, presente na economia textual do escritor, se estende ao gesto de meditação do intelecto, modos de filosofar e de exercitar o saber paciente, lento e desprovido de utilidade imediata. A consideração da preguiça como valor e a sua transformação em metáfora da criação e em ganho cultural teve em Mário um de seus maiores defensores, ao se referir aos países periféricos, marcados por males de origem e pela perda natural dos bens. Oswald de Andrade, nos manifestos “Pau-Brasil e “Antropófago”, este mais tarde retomado em Crise da filosofia messiânica, ao eleger a preguiça “mãe da fantasia, da invenção e do amor”, reacende o diálogo intercultural, abolindo traumas e ressentimentos relativos à condição de culturas dependentes da metropolitana. Contribui de forma efetiva para a configuração do desenho lúdico e carnavalizado das manifestações culturais.35 O diálogo com Mário de Andrade permite a Silviano desenvolver conceitos que foram se depurando ao longo de sua trajetória ficcional, fazendo do imaginário andradino um dos textos-referência para a elucidação de sua escrita. Além da retomada das noções de criação artística e de preguiça, o escritor escolhe a alegria como mote para a sua concepção de literatura, recado positivo enviado aos leitores de hoje e de amanhã. Na carta ficcional a ele endereçada, “Conversei ontem à tardinha com o nosso querido Carlos”, publicada por ocasião do centenário de Mário de Andrade, discute-se sobre a relação entre Drummond e o poeta paulista, entre a poética do sofrimento em Manuel Bandeira, ocasião criada pelo narrador para a elucidação de seu labor literário. A tônica da correspondência é o sentido do verso andradino – “a própria dor é uma felicidade” – relido com a mediação do conceito de paradoxo em Deleuze e acrescido da inversão da noção de criação artística como parto, de elaboração nietzschiana. As personagens transitam no interior da carta de modo familiar, como pertencentes à categoria de tios intelectuais do autor, tendo tio Mário como principal interlocutor. Jacques, Giles, Alexandre Eulálio, Nietzsche compõem a estrutura familiar fraterna, suplemento da figura do pai, submetido ao apagamento e ao silêncio. A comunidade formada pelo gesto que transgride a genealogia paterna instaura o corte com a procriação, com a concepção de arte que visa à conservação e à reprodução de linhagens
verticais de família. A amizade entre homens, a rede de empréstimos passada de tio para sobrinho, inventa famílias literárias, cria laços de parentesco a partir de afinidades eletivas e pela força da ficção. Em permanente conflito com seus pares, o diálogo entre eles constitui o fazer e o desfazer de perfis identitários, pelo deslocamento aí processado. Na cumplicidade fraterna não se aspira à obediência ou ao exemplo, mas à convivência sempre marcada pela vontade de suplementar o outro. Tio Mário é a personagem de Uma história de família, declaração efetuada pelo narrador da carta na última versão impressa, confirmando o que fora sugerido na primeira versão. A escolha do escritor como personagem não se vincula a semelhanças de ordem biográfica, mas se presta a extrair da loucura da personagem da novela a lição de alegria transmitida pela obra de Mário, conjugada à força vital que o sobrinho, moribundo, recebe do tio: O narrador/personagem quer saber o que é a loucura (do tio e/ou a sua), o que é a alegria (ausência de dor) diante da iminência da morte, e para isso busca o significado da imagem representada no fotograma. Quer saber ainda por que esse rosto sorridente não coincide com a imagem de sofredor que a família passa, ao manifestar a vontade de que morresse o mais depressa possível.36
O símbolo materno, ao contrário do paterno, é o protagonista da ficção de Silviano, marcada pela sua perda e pelo “mistério da dor inútil”. Como contraponto à teoria da criação como parto, regida por critérios próprios ao feminino – o dizer duplamente sim à alegria e à dor –, a morte da mãe ao dar à luz ao filho se distancia também da metáfora do orgasmo, defendida por Mário, e se inscreve como dor inútil: a mãe diz sim à vida do filho e não à sua. Paradoxalmente, a “dor inútil” se aproxima da lição poética e vital de Mário, do excesso atingido pelo êxtase criativo e sacrificial, da afirmação da morte como contrapartida da vida. Para Silviano, é para entender o enigma da criação pela perda da figura materna que se dedica à literatura, uma forma de suplementar o vazio da origem: O enigma maior que tentei dramatizar nos meus livros é o mistério da dor inútil. A dor que advém no momento em que a mulher grávida morre das “dores do parto”, para retomar a expressão de Nietzsche, ou seja, no momento em que ela só pode dizer sim à vida através do filho que nasce.37
Em “Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões”,38 ao proceder ao balanço dessa época, Silviano se exclui da vertente pessimista de certa produção artística brasileira e se declara adepto da escrita que, à maneira de Mário de Andrade e Caetano Veloso, se impõe de modo afirmativo. O prazer e o sofrimento tornam-se faces da mesma moeda, considerando ser o discurso literário o espaço por excelência da ambiguidade e do paradoxo. O prazer do texto resulta da cristalização da dor, transformada em positividade e alegria criadora, uma resposta bem-humorada que transgride e liberta. No ensaio de 1996, “O tempo não para”, o crítico lembra que o exemplo da obra/vida de Cazuza o coloca em lugar semelhante ao de Caetano e Mário, pela lição de vida transmitida na iminência da morte. Lembra ter sido o grito público do cantor na década de 1980 a continuidade dos discursos poéticos de Caetano em 1967, com “Alegria, alegria”, e de Mário, nos anos 1920, com o verso “A própria dor é uma felicidade”. Embora sejam distintos os momentos e as situações pessoais vividas por
eles, o tom dos discursos se iguala, pela transformação do sofrimento em força vital e pela “capacidade que teria o jovem moderno, como um avestruz do asfalto, de digerir o mal que lhe fere, saindo fortalecido da experiência”.39 Em entrevista concedida à revista Imagem, Silviano Santiago declara, de forma eloquente, que o século 20 terminou “desastrosamente nos anos 30”. Para ele, a imobilidade registrada dessa época até os dias de hoje, dominada pelos nacionalismos econômicos, pela inutilidade da Segunda Grande Guerra e dos campos de concentração nazistas, coincide com a década de seu nascimento, em 1936. Em razão dessa coincidência temporal, o escritor procura, através de sua obra, interpretar “a inutilidade da vida vivida por mim (e da vida vivida pela minha geração)”, reescrevendo o momento de experiência limite dos escritores-personagens: o de Graciliano Ramos, preso em 1936, em Maceió, e o de Artaud, ao deixar a Europa em direção ao México. A experiência alheia a ser narrada supre o vazio da experiência pessoal, permitindo o nascimento do escritor pós-moderno a partir da morte do século moderno e do Modernismo em 1936. A sobrevida do filho após a morte da mãe se vale da contingência de ter nascido da dor, com a responsabilidade de transformar a perda em alegria criativa. O conto “Hello, Dolly!”, concebido em forma de carta a Walter Benjamin, narra a aflição da personagem em busca da identidade perdida, uma vez que se comemorava a primeira clonagem animal, o início da reprodução técnica não apenas da obra de arte, mas de seres. O texto remete, mais uma vez, para a coincidência irônica do nascimento do autor, pois o ensaio de Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” é de 1936. Fadado a repetir experiências do outro, a viver a ficção como filtragem e suplemento de obras alheias, o escritor se inscreve no texto, na figura do narrador, como produto clonado, exigindo carteira de identidade e a recuperação da aura perdida. Rebela-se por se transformar em “antepassado e prole de si próprio”, rompendo com a linhagem familiar tradicional e se perdendo no anonimato. O texto dialoga também com o ensaio de 1986 “O narrador pós-moderno”, no qual se constata o afastamento do narrador diante do material narrado, além de excluir o paternalismo como conexão entre gerações. O narrador de “Hello, Dolly!”, ao contrário, se afasta da concepção pós-moderna, exigindo identidade e aproximação com o objeto narrado. Situa-se, portanto, entre o narrador benjaminiano – testemunha da própria experiência – e o narrador pós-moderno: “A história não é mais vislumbrada como tecendo uma continuidade entre a vivência do mais experiente e a do menos, visto que o paternalismo é excluído como processo conectivo entre gerações.”40 De modo irônico, simula-se o nascimento do escritor Silviano Santiago, declarando-se contra o seu destino vaticinado por Benjamin, no artigo de 1936, rejeitando sua condição de clone e se colocando numa situação paradoxal, entre o moderno e o pósmoderno: Pergunto-lhe, meu caro Walter: Sou homem depois desse falimento? Não é a minha própria identidade que está sendo manuseada por profissionais incompetentes? Será que outro que não eu
conseguirá me representar tão bem quanto eu me represento nas minhas crises e angústia, na montanha-russa da minha depressão e nos meus piques de euforia? Espero uma resposta honesta sua, e não me chame de retrógrado, por favor. Sou benjaminiano e pós-moderno, graças a Deus.41 (Ensaio publicado em: CUNHA, Eneida Leal (Org.). Leituras críticas de Silviano Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Perseu Abramo, 2008. p. 23-50.)
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Carmen Miranda do kitsch ao cult Durante o período da Política da Boa Vizinhança, programa instaurado pelo governo americano para tornar próximas as relações com a América Latina, uma artista é escolhida como símbolo do continente: Carmen Miranda. Entre 1939 e 1945, participou de vários filmes de sucesso de Hollywood, assumindo o papel de “representante da cultura musical-popular brasileira nos Estados Unidos”. Os interesses políticos se sobrepunham aos culturais, transformando a artista no estereótipo da mulher latinoamericana, que se expressava musicalmente no ritmo de samba, rumba e bolero. A construção estilizada de sua imagem guardava um pouco de cada lugar da América, o que dificulta vê-la hoje como representante de uma “autêntica cultura brasileira”. Para que a referida política lograsse êxito, deveria ser estimulada a comunicação entre os dois continentes através do cinema e do rádio, veículos responsáveis pela divulgação de um ideal de modernização a ser difundido nos países situados ao sul do Equador. Na troca linguística e cultural, na mistura de samba, marchinha e rumba exportava-se uma música de fácil aceitação e importavam-se americanismos de contraditória inserção na sociedade brasileira da época, cujas consequências seriam de difícil previsão. O cancioneiro popular refletia o clima de intercâmbio linguístico, apontando a americanização dos costumes que se manifestava na aquisição de gadgets, na linguagem sedutora inspirada pelas expressões inglesas referentes às noites passadas em nightclubs e cassinos. Noel Rosa, em 1933, compõe a música “Não tem tradução”, com o objetivo de ironizar a presença de estrangeirismos no modo de vida nacional: O cinema falado É o grande culpado da transformação (…) Tudo aquilo Que o malandro pronuncia Com voz macia É brasileiro Já passou do português Amor lá no morro é amor pra chuchu. E as rimas do samba não são I love you E esse negócio de alô Alô boy, Alô Johnny, Só pode ser conversa de telefone.1
O distanciamento provocado quer pelo inglês, quer pela conversa mediatizada pelo telefone era já o sintoma da estilização cultural, da falsificação da “voz macia” do malandro pela língua mais sensual do estrangeiro. A relação amorosa entre a cultura latino-americana e a do norte começa a tomar corpo, seja através da figura feminina representativa da América Latina e construída pelo imaginário do período, seja pela
sedução armada pelo conquistador do norte no diálogo com a glamourosa e sexy mulher tropical. Carmen Miranda ocupa o lugar simbólico desse diálogo, estampado pelos meios de comunicação de massa, e contribui para a alegorização do território por meio da expressão de uma imagem lúdica e liberada da mulher. Com a mediação do discurso musical e artístico, o Brasil se incorporava, no entender da política norte-americana, ao concerto das nações desenvolvidas e cosmopolitas, ao mesmo tempo que, antropofagicamente, o ritmo do pandeiro minava o fox e o swing, resultando no enriquecimento cultural de ambos os continentes. Mas a tão decantada integração cultural, imposta pelo discurso político, é certo que não se resolveria com facilidade. Tal situação se comprova pela presença dessa preocupação nas letras de música da época, ora enaltecendo a força de Carmen Miranda, como em “Brasil pandeiro”,2 de 1941, quando Assis Valente tenta recuperar a imagem “americanizada” da cantora, ora na composição de Gordurinha, anos mais tarde, em 1958, no conhecido “Chiclete com banana”,3 em que a resistência à americanização revelava-se mais contundente. No primeiro exemplo, celebra-se a imaginária integração entre os continentes, graças à mediação do samba, veículo capaz de reunir a gente bronzeada da favela com os ioiôs da Casa Branca. Os Estados Unidos eram vistos como o exportador oficial do samba brasileiro para o mundo. A matéria-prima utilizada como exportação, conduzida pela “Embaixatriz do Samba”, penetrava não só na classe média americana, mas entrava de forma oficial na Casa Branca. Essa benção sacralizaria a Política da Boa Vizinhança, ao reconhecer como internacional a música que nascia nos morros do Rio de Janeiro: Chegou a hora dessa gente bronzeada Mostrar seu valor Eu fui à Penha, fui pedir à padroeira para me ajudar Salve o morro do Vintém, Pindura-saia, Eu quero ver Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro Para o mundo sambar. O Tio Sam está querendo conhecer a Nossa batucada Anda dizendo que o molho da baiana Melhorou seu prato Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará Na Casa Branca já dançou a batucada De Ioiô e Iaiá.4
No segundo caso, em “Chiclete com banana”, exigiu-se a participação dos dois países, pela leitura inicial das diferenças entre samba e rumba, entre os ritmos que caracterizam cada região – menos a generalização da América Latina – para que a mistura de Miami com Copacabana e do chiclete com banana gerasse o samba-rock. Nessa convergência de discursos musicais, o interesse é de que se conservem as particularidades, para que se obtenha o efeito de estranhamento. Conservam-se
também as relações binárias entre os símbolos, ou seja, o brasileiro, representado pela fruta tropical, a banana, matéria-prima e riqueza natural de um país agrícola e em processo de desenvolvimento, e o chiclete, produto resultante da industrialização e índice do progresso norte-americano: Eu só ponho bip-bop No meu samba Quando Tio Sam pegar no tamborim Quando ele pegar no pandeiro E no zabumba Quando ele entender Que o samba não é rumba Aí eu vou misturar Miami com Copacabana Chiclete eu misturo com banana E o meu samba vai ficar assim.5
Antonio Pedro Tota, no interessante livro O imperialismo sedutor, irá entender o esforço de um país que se via impelido a participar da ordem política mundial com o concurso da expressão musical, que o permitiria se inserir nessa ordem, mesmo que de uma forma midiática e residual: O Brasil era reconhecido em Carmen no plano político e no plano da cultura de massa. A presença de um artista de sucesso, no sentido adorniano, legitimava nosso país, e esse, na letra do samba de um dos nossos grandes compositores, era o único jeito de a gente bronzeada ter seu valor reconhecido.6
É, portanto, por meio da utilização da figura feminina como signo de latinoamericanismo que se repete o estereótipo e a visão tradicionalista do latino-americano como “pureza originária”, criando a cumplicidade entre o mito do “propriamente” feminino e do “propriamente” latino-americano. No entender de Nelly Richard, no artigo “Feminismo, experiência e representação”, antigos pares de oposição são reproduzidos, tornando-os responsáveis pelo valor atribuído à identidade latino-americana inscrita no âmbito da irracionalidade, do instintivo, do natural e do autêntico, em contraposição à síntese racional da modernidade do Ocidente.7 A essa posição se acrescenta o emprego da rede de oposições, com vistas a desconstruir o caráter naturalista e pouco formalizado das proposições. A imagem utilizada recai no símbolo feminino, que, associado ao discurso corporal e à sensibilidade, opõe-se ao discurso masculino, à racionalidade, concentrado na cabeça, na parte superior do corpo. Em virtude da Política da Boa Vizinhança, a imagem do norte começa a ser nuançada, com as viagens de Rockefeller à América Latina, por meio das quais disseminava um discurso calcado nas boas intenções dos amigos do norte. O encontro amoroso entre os continentes era orquestrado por mitologias populares sabiamente empregadas, já que a mídia se utilizava dessa estratégia para reforçar o encontro. Segundo Tota, Orson Welles atua num programa de rádio com Carmen Miranda, em 1942, no qual ela o ensinava a
cantar e a dançar. A encenação da mulher seduzindo o homem-América revelava o sistema de trocas subjacente ao código amoroso. A manipulação da máquina publicitária concentrava-se na glamourização dos atores que divulgavam, pela mídia, a simulação de um encontro erótico, prevalecendo a ideia de ser a América Latina a terra dos prazeres e da liberação sexual.8 Carmen Miranda motiva ainda a imagem construída de América Latina pela indústria cinematográfica americana por seu caráter totalizador, como se o continente formasse um só bloco e se caracterizasse pela universalidade e unificação de suas regiões. Dentre os produtos de publicidade e de consumo criados pela sociedade americana, destaca-se uma boneca de papel, vendida como brinquedo de criança, cujo objetivo consistia em vestir o modelo com roupas de todas as Américas. A boneca se molda em traje de praia e as roupas a serem coladas remetem a dois filmes, estrelados por Carmen Miranda, That night in Rio e Down Argentine way, ambos realizados na década de 1940. A reprodução, em papel, da artista, e a prática lúdica de colar imagens ao modelo sugerem a idéia de fabricação de uma mulher-continente para uso de mercado e na exploração kitsch da figura como consumo de massa, esvaziando-se o sentido original do modelo. O gesto simbólico de vestir o corpo de papel de Carmen Miranda com indumentárias que denunciam mais semelhanças do que diferenças – turbante, colares, estilo de saia, balangandãs, pulseiras –, embora visasse à multiplicidade, funciona como perverso brinquedo infantil, conduzido à exaustão pelo jogo aleatório de vestir/desnudar a boneca. A montagem lúdica de um corpo exposto como traço natural da identidade revela, contudo, o avesso da proposta política, voltada para a unificação e a integração latinoamericana. Na condição de simulacro, cortado e desenhado à imagem de um continente em fragmentos, a exposição desse corpo desnuda uma pretensa naturalidade aí imposta. No jogo de armar, o significante permanece vazio, à espera de substituições que reforçam a simulação da presença e da ausência de sentido. Ainda que se reconheça o caráter múltiplo dessa cartografia, o que interessava ao programa de controle político e econômico dos Estados Unidos dessa época era o esquecimento das diferenças locais da América Latina. O que mais importava era a criação de identidades coletivas, expressas nos conceitos de hispano-americanismo ou de latino-americanismo. Substituía-se, aos poucos, a hegemonia europeia, primeira intérprete e inventora do Novo Mundo, pela inserção imperialista dos Estados Unidos. A montagem de Carmen Miranda como alegoria da América Latina responde, portanto, por um sofisticado aparato, que vai da fantasia de baiana até a encenação contínua de um papel que deveria sustentar perante a máquina política criada pelas relações entre os dois continentes. A diversidade de opiniões em torno da figura de Carmen Miranda contribui para que se entenda a construção contraditória de um mito. Aos olhos da opinião pública brasileira, ela deveria continuar a ser a “Pequena Notável”, a baiana legítima e a defensora da autenticidade do samba; no entender do discurso cultural e político, subjacente aos interesses de criação de uma imagem naturalizada e
autêntica, ela estaria representando uma baiana de cor branca, ao gosto do estrangeiro, travestida, artificial e produzida como um objeto de consumo. Na montagem do estereótipo, o objetivo é alcançar a aceitação, por parte do espectador, de que se trata de um produto naturalmente dado que, consequentemente, deverá receber tratamento semelhante. Entende-se assim a complexa relação de amor e ódio ao estrangeiro, vivenciada pelos brasileiros, relação que se desdobra nas questões de identidade e alteridade, pois, ao mesmo tempo que a figura de Carmen Miranda era cultuada como mito nacional, era criticada pela sua transformação artificializada e distante do modelo nativo. Na exigência de uma naturalidade estaria o desejo de identidade nacional, a baiana autêntica como símbolo e ícone de um continente; na acusação de artificialidade, a necessidade de retirar da imagem qualquer lastro de alteridade que a tornasse próxima dos valores estrangeiros. O senso comum não suporta a convivência de valores contraditórios num mesmo espaço, excluindo um valor em favor de outro, em lugar de procurar entender que é a partir dessa contradição que se constroem os mitos. A América do Norte seduz e é desprezada pela opinião pública da época, incapaz ainda de enxergar os interesses políticos disfarçados em exportação da cultura de massa. O processo de criação da fantasia de baiana de Carmen Miranda se aparenta à montagem/desmontagem da boneca de papel usada como brinquedo infantil, referida anteriormente, ao serem destacados o vestuário e os adereços que a compõem. A imagem da baiana nasce da música de Dorival Caymmi, que, em 1939, lança “O que é que a baiana tem?”, canção interpretada pela cantora no filme Banana da terra. É nessa ocasião que Carmen Miranda se veste de baiana pela primeira vez. O batismo realizado por Caymmi não ficou só na composição da música, mas se estende à ida à costureira para a confecção da roupa, tecido em listras vermelhas, verdes e amarelas escolhido pela atriz, para, em seguida, acompanhá-la na compra dos balangandãs. Registra-se ainda que no dia da filmagem, Dorival Caymmi tenha sugerido o movimento e os trejeitos de Carmen, apontando os enfeites mencionados na canção.9 Na produção da figura de Carmen Miranda, à pergunta inserida no título da canção, “O que é que a baiana tem?”,10 segue-se o ritual de identificação através da lista de seus adereços e fantasia: tem torso de seda, brincos de ouro, correntes de ouro, pano da costa, saia rendada, pulseira de ouro, saia engomada, sandália enfeitada e graça como ninguém. A baiana vai sendo vestida e criada pela canção, toma forma e movimento e é legitimada pelo encadeamento de perguntas e respostas que compõem a estrutura de seu corpo. O efeito obtido é semelhante ao dos jogos infantis relativos às adivinhas, ao “o que é que é”, resultando na fabricação da imagem de uma baiana que provoca um prazer lúdico, infantilizado e repetitivo. Na sugestão de um erotismo mesclado à dança, procede-se à sua naturalização, principalmente quando a carga erótica da mulher se concentra no gesto corporal e na sedução pelo olhar. A baiana se oferece sedutora e o interesse maior do espectador é que esse corpo tão bem formado e enfeitado “caia por
cima de mim”, pois é o parceiro da dança e quem a legitima como baiana. Carmen Miranda expõe a natureza tropical no turbante tutti-frutti que passa a usar nas suas apresentações, signo alegórico de um país exportador de bananas e de samba para o mundo. Daí a razão de ter-se notabilizado pela frase várias vezes por ela repetida, banana is my business: O que é que a baiana tem? Mas o que é que a baiana tem? Tem torso de seda, tem! Tem brinco de ouro, tem! Correntes de ouro, tem! Tem pano da costa, tem! Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem! Tem saia engomada, tem! E sandália enfeitada, tem! Tem graça como ninguém! Como ela requebra bem! Quando você se requebrar Caia por cima de mim Caia por cima de mim Caia por cima de mim.11
Portadora de objetos de ouro, de enfeites que criam o efeito ligado à acumulação e ao excesso, próprio à estética kitsch, a fantasia de baiana revela ainda outro tipo de riqueza, qual seja, o brilho de um metal já inexistente como riqueza do país, mas que se mostra como resíduo e traço de ostentação corporal. A boneca-baiana revela, ainda, a sua procedência, a Bahia, além de ser incorporada às festas religiosas do Bonfim. Samba e religião concorrem para a legitimação da baiana como símbolo nacional, embora tenha se originado de uma região particular do país. No momento de redefinição de identidades à luz de um princípio moderno, o regional tende a se apagar em função de uma resposta de ordem internacional, objetivando a diluição das diferenças internas e da imposição de um conceito totalizante de nacionalidade. Símbolos nacionais como a baiana e o samba foram criados nessa época como resultado da política nacionalista do Estado Novo, com a ajuda da divulgação popularizada pelos meios de comunicação de massa. Com a Política da Boa Vizinhança em curso, era preciso valorizar ainda mais os símbolos que poderiam render dividendos culturais e políticos para a economia da guerra. O preço a pagar pela internacionalização de sua imagem provoca em Carmen Miranda o desconforto de estar sendo cobrada pela opinião pública brasileira, ansiosa por preservar a autenticidade do samba e da nacionalidade, embora falsa, de sua maior intérprete. (Carmen Miranda era de origem portuguesa e só mais tarde, em 1946, é que conseguiu, nos Estados Unidos, o passaporte de brasileira, tendo sido registrada, em foto, vestida de baiana.)12 O poder da mídia americana, a necessidade de conquistar a
América Latina numa época delicada para os Estados Unidos iam transformando Carmen Miranda num produto de massa a ser consumido da forma a mais degustável possível. Nesse processo de travestimento identitário – a baiana torna-se americanizada –, a opinião pública brasileira se posiciona de forma redutora e nacionalista, exigindo-se a volta da atriz às raízes do samba e à autenticidade de sua imagem nativa. É nesse período, em 1940, quando a cantora volta ao Brasil, no auge de seu sucesso em Hollywood, que se imprime à baiana a pecha de americanizada. A resposta às acusações é transmitida por meio das canções feitas especificamente para ela, com o intuito de revelar o avesso da acusação, obrigando-a a defender um nacionalismo chauvinista e ingênuo: “Eu sou brasileira / Meu it revela que a minha bandeira é verde-amarela.”13 Os versos de “Diz que tem…”, de Aníbal Cruz e Vicente Paiva, reforçam, ironicamente, a carência do sentimento de nacionalidade em Carmen Miranda, pela utilização, em excesso, de argumentos desse gênero. Ela se via na obrigação de atender aos anseios da opinião pública, travestindo-se de novo através de uma fantasia a ela imposta. É mais uma roupa a ser colada à bonequinha de maiô, um corpo a ser usado como se fosse eternamente a outra e sempre encarnando a fantasia de si mesma.14 A encenação nacionalista progride e Carmen chega ao Rio, em 1940, vestindo um costume verde e amarelo, não dispensando o turbante e os balangandãs. Além da conhecida canção “Me disseram que voltei americanizada”, de 1940, de Luiz Peixoto e Vicente Paiva, quando defende a sua preferência pelo “camarão ensopadinho com chuchu”,15 outros versos irão revelar a construção de uma imagem nacionalista kitsch, pela evocação de um país harmonioso, do Norte ao Sul, e que é cantado nas suas cores e riquezas naturais. A baiana incrementa as roupas tradicionais, vestindo-se de bandeira verde-amarela, ao afirmar que tem o amor pelo Brasil dentro do peito: Fiquei pensando e comecei a descrever Tudo, tudo de valor Que meu Brasil me deu… Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo Um pano verde-amarelo Tudo isso é meu! Tem feriado que pra mim vale fortuna A Retirada da Laguna vale um cabedal! Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia Um conjunto de harmonia que não tem rival16
Gostaria, finalmente, de remeter para o presente a importância da figura de Carmen Miranda como uma das responsáveis pelas transformações que as noções de alteridade e identidade sofreram nos últimos anos. Em primeiro lugar, a cantora consegue passar de uma imagem kitsch, pela naturalização da nacionalidade inscrita na roupa, nos adereços e no remelexo, para uma imagem cult, penetrando numa facção do mercado gay, além de outra composta por intelectuais. De kitsch ela guardaria não só o aspecto cafona e excessivamente alegórico dos trópicos, mas o eterno deslocamento a um
modelo original que lhe era imposto.17 Como imagem cult, incitaria a releitura de seu papel na construção de identidades heterogêneas, fazendo com que, a distância, fosse possível encará-la como um raro momento de viabilidade brasileira aos olhos desconfiados do estrangeiro. A caricatura dessa nacionalidade vai ser interpretada de forma criativa por Caetano Veloso e o grupo tropicalista, pelo caráter parodístico somado à imagem de Carmen Miranda e o resgate de uma imagem cult. (A atriz seria, nas palavras de Caetano, “um emblema tropicalista, um signo sobrecarregado de afetos contraditórios que eu brandira na letra de ‘Tropicália’, a canção-manifesto, Carmen Miranda surgia nesses discos como uma reinvenção do samba.”)18 A música popular brasileira enfrenta, com o Tropicalismo, o desafio do bom gosto próprio de um segmento de elite, contrário à inserção das manifestações de massa no quadro do repertório nacional. A encenação kitsch de um Brasil pintado de palmeiras e bananas refletia a leitura parodística dos trópicos, uma forma de mostrar que, pela diferença, essa gente bronzeada também poderia mostrar o seu valor. Os empréstimos estrangeiros serviriam, portanto, de alimento pop para se abandonar a defesa ingênua de uma música autenticamente nacional. A imagem de Carmen Miranda funcionaria como símbolo dessa diferença residual e midiática representada pelas culturas dos países periféricos frente aos demais.19 Ao voltar, em 1972, do exílio em Londres, Caetano Veloso cita Carmen Miranda no primeiro show apresentado no país, ao interpretar “O que é que a baiana tem” com os mesmos trejeitos de corpo da cantora. Trata-se de uma homenagem que se reveste de uma “imitação distanciada” da artista, por remeter à sua própria condição de exílio e, principalmente, às relações mantidas pela cultura brasileira com o exterior. Essa imitação teria ainda reforçado a posição antimachista do intérprete, através da exploração irônica de sua imagem sexualmente ambígua. Nesse sentido, a releitura de um símbolo que se legitima pela ausência de contornos identificatórios, seja quanto ao gênero ou à nacionalidade, permite colocá-lo em constante processo de redefinição. A atualização dessa leitura é que possibilita a passagem do kitsch ao cult, dependendo do grau de inserção cultural que determinado segmento social impõe ao símbolo. Num verbete sobre cultura publicado no Caderno Mais da Folha de S.Paulo, Silviano Santiago nos esclarece sobre a intrincada relação entre arte e cultura de massa neste início de século. Aproprio-me dessa ideia para melhor entender a imagem de Carmen Miranda como uma das que profetizaram essa convivência conflitiva e, ao mesmo tempo, salutar entre arte e mercado. Se hoje a academia aceita, com naturalidade, as lições que a música popular pode oferecer às nossas mentes ilustradas, tal fato se deve à contaminação dessas manifestações artísticas até pouco tempo consideradas espúrias, no universo nem tão puro da arte e da literatura: Nada nos distancia mais das estéticas do século 20 que o célebre trocadilho de Oswald de Andrade: “A massa ainda comerá do biscoito fino que eu fabrico.” Bye bye, 1900! Para falar de cultura hoje e amanhã, nada como inverter os termos do trocadilho: artistas e críticos ainda se regalarão, se já não estiverem se regalando, com o biscoito banal que a massa fabrica.20
(Ensaio publicado em: CAVALCANTI, B.; STARLING, H.; EISENBERG, J. (Org.). Retrato em branco e preto da nação brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Perseu Abramo, 2004. p. 7387.)
Referências ALVES, Francisco (Interp.). Não tem tradução. ROSA, Noel (Compos.). Noel Rosa pela primeira vez. v. 4. São Paulo: Velas, 2000. 1 CD. Faixa 10. ANJOS DO INFERNO (Interp.). Brasil pandeiro. VALENTE, Assis (Compos.). Samba da minha terra. Bando da Lua/Grupo X/Anjos do Inferno/4 Ases e um Coringa. Curitiba: Revivendo, 1992. 1 CD. Faixa 18. GARAMUÑO, Florencia. Modernidades primitivas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. JABOR, Arnaldo. Banana is my business. Folha de S.Paulo, 8 ago. 1995. Ilustrada, p. 8. MENDONÇA, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro: Record, 1999. MIRANDA, Carmen (Interp.). Recenseamento. VALENTE, Assis (Compos.). A pequena notável Carmen Miranda. Curitiba: Revivendo, 1993. 1 CD. Faixa 2. MIRANDA Carmen (Interp.). Diz que tem… CRUZ, Aníbal; PAIVA, Vicente (Compos.). A pequena notável Carmen Miranda. Curitiba: Revivendo, 1993. 1 CD. Faixa 10. MIRANDA, Carmen (Interp.). O que é que a baiana tem? 1939. CAYMMI, Dorival. (Compos.). A pequena notável Carmen Miranda. Curitiba: Revivendo, 1993. 1 CD. Faixa 20. MIRANDA, Carmen (Interp.). Disseram que voltei americanizada. PEIXOTO, Luis; PAIVA, Vicente (Compos.). Coletânea Carmen Miranda. 1996. Rio de Janeiro: EMI-Odeon. CD 5. Faixa 20. PANDEIRO, Jackson do (Interp.). Chiclete com banana. CASTILHO, Almira; GORDURINHA (Compos.). Enciclopédia musical brasileira. Jackson do Pandeiro e Gordurinha, 2000. São Paulo: WEA. 1 CD. Faixa 1. RICHARD, Nelly. Experiência e representação – o feminismo. O latino-americano. In: ____. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p.142-155. SANTOS, Lídia. Kitsch tropical – los medios en la literatura y el arte en America Latina. Madrid: Iberoamericana, 2004. SANTIAGO, Silviano. Cultura. Folha de S.Paulo, 31 dez. 2000. Caderno Mais, p. 7. SONTAG, Susan. Notas sobre camp. In: ____. Contra interpretação. Tradução de Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM Edições, 1987. p. 318-337. TOTA, Antônio Pedro. O imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
O tic-tac do meu coração Carmen morreu como deveria morrer sempre os cantores, os poetas e os passarinhos: ainda jovens, ainda fortes. Antes que o tempo e a velhice os tornem simples e melancólicos fantasmas vivos de um passado glorioso, antes que o público os esqueça.1 João Martins
Em 20 de agosto de 1955, João Martins, repórter de O Cruzeiro, enviado a Hollywood para cobrir a morte de Carmen Miranda, registra essa opinião que lhe foi comunicada por um americano. Trata-se de um dos componentes ritualísticos de consagração da artista vítima de morte prematura, uma forma de congelar o sucesso e de eternizar o presente glorioso. A juventude, aliada ao vigor e ao reconhecimento público, permite a entrada do sujeito no espaço sagrado do mito, além de promover a construção de biografias, motivadas pela proliferação de textos compostos pela mídia. Morrer cedo, e em plena atividade profissional, condensa os ingredientes da tragédia com o melodrama, do sacrifício pelo outro com a catarse provocada no público. A morte de Carmen Miranda, nas palavras de Henrique Pongetti, em texto publicado na época, significaria “a morte em glória, polianteia e biográfica”. O cronista se referia à recomposição de uma vida a partir da miscelânea de homenagens, de opiniões apaixonadas ou equivocadas, versões da opinião pública que sempre são preservadas como verdadeiras. Diante dessa variada gama de informações e de depoimentos sobre Carmen, confirma-se, no entanto, a impossibilidade de os biógrafos construirem um perfil unívoco, considerando-se que os textos escritos sobre ela já se inscrevem como interpretações. Biografias prematuras são igualmente causadas pelas mortes prematuras. Outro componente que interfere no processo de consolidação do mito cultural é a maneira repentina de morrer, no caso, por ataque cardíaco. Nessa circunstância, o corpo não sofre mutilação, o coração apenas para de bater. Em pleno vigor e uso de sua vitalidade, esse corpo que serviu de mediação para a transposição de fronteiras e a consagração internacional, é o cadáver que deverá ser repatriado ao lugar de origem. Participa desse relato de imortalização o fato de ser a artista incorporada ao panteão dos ilustres da nação, graças ao ritual de repatriamento do corpo como expressão da política de sobrevivência simbólica. O imaginário sentimento de posse vivido pela população se manifesta no momento em que o corpo inerte regressa definitivamente ao solo natal e aos braços do povo, significando um ganho adquirido pela morte: “Mágoas e ciúmes desfeitos – a cidade reconquista sua grande intérprete”, diz uma das manchetes de a Última Hora.2 No calor da emoção, a memória de Carmen Miranda é lentamente construída, através de vários gestos cívicos que contribuem para tal: discursos de despedida, músicas cantadas durante o cortejo, promessa de realização de um busto, de criação de um
museu, de nome de rua, e assim por diante. Mas a presença de um número considerável de pessoas aos funerais, as filas intermináveis para se aproximar do corpo exposto à visitação, os desmaios e a expressão de dor que contaminava a todos constituem uma das maiores provas da popularidade e consagração póstuma da artista. É nesse momento de intensa aglomeração popular que se revelam, provisoriamente, comunidades imaginadas em torno de um objetivo comum, graças à mediação dos meios de comunicação de massa, como o rádio e a imprensa. Nessa época, esses meios de comunicação se responsabilizavam por uma grande parcela do processo de integração popular e de vivência de um sentimento cotidiano de nação. Carmen Miranda, como “Embaixatriz do Samba” nos Estados Unidos, cumpria a função de mediadora da América Latina junto à Política da Boa Vizinhança desenvolvida durante a ditadura de Vargas e o governo americano. Com a sua morte, representava-se o sacrifício de quem, aos olhos da opinião pública, se perdeu em termos de identidade e se deixou levar pela sedução de uma vida em que mais se valorizava a entrega a um capitalismo devorador e ao consumismo da imagem. Segundo depoimentos prestados por pessoas da classe artística, Carmen Miranda pagou um preço alto pelo sucesso no exterior, pela agenda de compromissos que lhe exigia total dedicação ao trabalho. O que se verificou foi o desfalecimento gradativo de um corpo, cujo objetivo era o de se expor através do bamboleio latino e da estereotipada “força telúrica” dos trópicos.
“Carmen não sairá mais daqui” Ela foi o símbolo popular do coração carioca e o corpo de mais alma que jamais se viu em terra brasileira. Aníbal Machado
A trajetória artística de Carmen se forjou em torno da exploração estética e profissional de uma voz que se expressava através do corpo e de sua fantasia. Corpo que era ainda símbolo de um país, de um continente, à medida que representava a proliferação de símbolos referentes à América Latina. A sedução da mulher-continente, com seu olhar malicioso, o movimento inusitado dos braços, simulava o ritual carnavalesco, com sua ótica invertida, o descentramento e o embaralhamento dos valores. A alegria dos trópicos se estampava como promessa de felicidade, evocando-se a terra paradisíaca, onde “plantando tudo dá”. O corpo, naturalizado pelo apelo às riquezas naturais do país – a banana, o abacaxi –, vendia um produto exótico bem ao gosto da Política da Boa Vizinhança, que não media esforços para angariar simpatia e apoio dos amigos do Sul. Interpretada ainda como corpo político, Carmen Miranda era também a expressão de um corpo público, cuja autonomia autoral desaparecia em favor do signo vazio, preenchido pelos inúmeros significados a ele atribuídos. Representava o corpo simulado, o estereótipo a ser preservado e conservado como suporte à imagem criada e alimentada pela mídia. O corpo da artista foi se transformando em simulacro que se afastava do original, em cópia de si mesma e em caricatura. A exaustão da imagem repetida em série imitava um modelo de forma congelada e eterna, segundo as regras de produção midiática. A vitalidade da fantasia de baiana durou enquanto o corpo exibia, em superfície, os signos de uma identidade que se perdia no meio dos turbantes de vários tipos, dotados de uma estética kitsch. Uma das causas do apagamento gradativo de sua figura residiria no artifício repetitivo, na perpetuação de uma grife, em detrimento da criatividade. Reduplicada em torno de uma sombra, Carmen Miranda não conseguia manter o padrão de sucesso que gozava durante a década de 1940. A recomposição do corpo da artista se processa por ocasião de sua morte, por meio dos depoimentos de amigos, de jornalistas e de intelectuais. A Carmen Miranda que volta ao Rio de Janeiro, em 12 de agosto de 1955, é um corpo “mudo e paralisado”, “cerrados aqueles olhos, muda aquela boca, sem movimento aquelas mãos”, como assim escreve o escritor Marques Rebelo. A imobilidade da morte resgata o corpo que havia se afastado do lugar de origem, promovendo sua posse imaginária. O retorno ao país, “sem voz e sem bata rendada”, integra Carmen simbolicamente ao corpo da nação, ao descanso em terra brasileira. Antropofagicamente, a cidade a recebe, a acolhe e a devora, pois só a morte propicia o congelamento do corpo ao mesmo tempo próximo e distante.
Nas inúmeras manchetes estampadas nos jornais, a tônica é a de um regresso da artista aos braços do povo, como se a morte a restituísse inteira e sem máscaras, ao lugar de onde, para muitos, nunca deveria ter saído: “Carmen não sairá mais daqui,” “Agora Carmen Miranda voltou para ficar”, “A morte trouxe Carmen de volta”, “Descansará hoje em terra brasileira o corpo de Carmen Miranda”, “Carmen ficará no Brasil para sempre”.3 O processo de bricolagem desse corpo que recebe o estatuto de mito se realiza pelo olhar do outro e se conjuga à glorificação do samba, símbolo de integração popular, do nacionalismo e da figura lendária de Carmen Miranda. Na alegria motivada por sua interpretação da música brasileira, o samba se confunde com a artista, pois, se aos olhos do povo, o samba nasce do coração, também “Carmen nasceu ao bater compassado de um pandeiro como uma canção de ninar”. A generosidade do bom coração produz a boa mediação, a positividade capaz de provocar alegria e bem-estar aos ouvintes, além do eficaz papel desempenhado pela “Embaixatriz do Samba” em projetar o nome do Brasil lá fora. Em reportagem do jornalista Alberto Conrado para O Mundo Ilustrado, de 17 de agosto de 1956, intitulada à maneira de Hollywood, “Nunca houve uma mulher como Carmen”, registra-se a índole natural atribuída à artista. À feição do samba, prescindia de intermediários e tampouco se desvirtuava pelo endosso da técnica estilizada e artificial, própria da publicidade. A permanência do traço fortemente nacional é defendida pelo cronista como sendo a maior qualidade de Carmen Miranda: Nunca houve uma mulher como Carmen. Nunca haverá sambista como Carmen. Mulher extraordinária de personalidade e talento no mais puro e amplo sentido da palavra, pois nasceu com a inquietação natural dos que fazem arte, extraindo do âmago do povo a essência de sua raça; Carmen nunca deixou de ser brasileira, pouco importa um título de naturalização, pois a “pequena notável” sentia nossos anseios como filha natural da terra. (…) Assim como o samba nasce do coração, Carmen nasceu ao bater compassado de um pandeiro como uma canção de ninar.4
O coração, órgão vital para o ser humano, define metonimicamente todo o corpo, por se identificar como lugar do sentimento, confundido com a natureza feminina, em contraste com o cérebro, ideologicamente associado ao masculino. Interpretações de ordem sentimental dominam os depoimentos de amigos, o que motiva a construção do relato folhetinesco em torno da vida e da morte de Carmen Miranda. Utilizando-se de recursos retóricos com vistas a exaltar as qualidades da artista, esses depoimentos reduplicam o modelo biográfico ao gosto da cultura de massa, quando se presta a exaltar seus ídolos. A humanização da artista é essencial para que seu papel desempenhado no meio social receba o estatuto do mito que se consolida com a morte. Pretende-se, com isso, reforçar a função do público diante de Carmen, por não se interessar com o que ocorreu na vida da artista, mas com o que se esconde, o que estaria no nível da invisibilidade. Nas palavras de Nina Gerassi-Navarro, um dos processos de despolitização da figura política de Evita Perón se encontra no filme homônimo de Parker, em que é percebida como mulher comum, sendo destronada, de certa forma, de
seu lugar excepcional: “É justamente no seu desejo de humanizá-la, mostrando-a humilhada, vingativa, egocêntrica, dedicada e vaidosa, que Parker a despolitiza.”5 Como mediadora mítica, sua função desaparece, depois de cumprida a missão de ser a ponte entre a América Latina e os Estados Unidos, entre o povo e o samba. Torna-se, portanto, vítima de sua disponibilidade para se doar aos outros, do coração que se entregou ao mundo de forma apaixonada. Paschoal Carlos Magno interpreta a morte por ataque cardíaco de Carmen Miranda em perfeita consonância com a natureza desprendida de sua pessoa e de sua profissão. A vida pública não se distingue da privada, explicando-se a vida pelo viés da arte, a morte como resultado de um estilo de vida. Constitui uma das formas de explicar a morte pela vida, a de assumir a interpretação de ordem fatalista, em que tudo se justifica pelo viés do destino e da predestinação: “Agora Carmen morreu como podia morrer, de um ataque do coração, desse coração que bateu por milhares e que se deu todo inteiro a amigos, parentes, desconhecidos.”6 Elsie Lessa, em artigo publicado em O Globo, traça uma linha a mais na criação do retrato de Carmen Miranda, empregando recurso discursivo que acentua a função de mediadora mítica. Ao revelar a face oculta e sofredora, o lado avesso de sua vida a cronista lembra os últimos anos da artista como “mulher insone, de nervos tensos, devorada pela própria chama, com que aquecia e iluminava os outros”. Seu depoimento reforça a carga de sacrifício religioso imputada à artista, acrescentando à sua biografia traços de santidade e de imortalidade. Carmen Miranda é valorizada como se fosse uma pessoa próxima dos outros, graças à interpretação de natureza personalista. Nesse sentido, artista e público se assemelham, pela intensidade de experiências comuns, como o sofrimento, que confere à personalização da grandeza artística o perfil de uma santa, próprio da hagiografia. A valorização do grande homem, no entender de Nathalie Heinich, em Être écrivain,7 reúne indissociavelmente a exemplaridade de sua vida à grandeza de sua obra. Valoriza-se o sofrimento como resultado da junção naturalista entre arte e vida. A morte prematura da artista é interpretada por Elsie Lessa por meio da metáfora da chama que cedo se apaga, em virtude da luz intensa mantida sempre acesa para os outros: “Chama pura e viva que se devorou a si mesma, para iluminar aos outros, era natural que cedo se apagasse. Mas, enquanto durou, como foi bela, alegre e viva a sua luz! Por ela, muito obrigada, Carmen!”8
Adeus batucada Na preparação do ritual funerário de Carmen Miranda, seu corpo é igualmente exibido como exótico diante do público brasileiro, tendo causado um efeito de estranhamento. Segundo os costumes norte-americanos, após a morte, o corpo é embalsamado, maquiado e penteado, para que os sinais de morte sejam disfarçados e se produza a impressão de uma pessoa dormindo. Trajando tailleur vermelho de sua predileção – o mesmo com o qual havia desembarcado na última vinda ao Brasil, em 1955 –, Carmen se destacava ainda pela pintura dos lábios, aparência mortuária até então inusitada para os hábitos brasileiros. Estaria fantasiada para o ritual da morte, expondo-se no último espetáculo dirigido a uma multidão que contemplava agora o corpo inerte e convivia com o silêncio. Povo e cidade compõem o cenário representativo da máxima consagração da artista, através da manifestação sentimental e espontânea de um acontecimento que marca a passagem da fama à posteridade. O ritual de imortalização se completa, quando a pessoa é vítima de morte prematura, remetendo ao tema da “bela morte”, conceito originário da civilização grega. Por sucumbir em combate no auge da vida, o herói grego, segundo pesquisa de Maria Cláudia Coelho, em A experiência da fama,9 realiza nesse momento duplo movimento: ao furtar-se, à velhice, pela morte prematura, salva-se também do esquecimento. Pela natureza dessa morte, atinge-se a dimensão do ritual coletivo, uma vez que o herói se liberta da função particularizada e inscreve sua biografia na memória coletiva. “A Embaixatriz do Samba”, repetindo a simbologia traçada pelo ritual da cultura ocidental, recebe as honras dos funerais da “bela morte”, com direito à imortalidade. É consagrada estrela da canção popular e ídolo da cultura de massa, lugar a ser ocupado pelo mito Carmen Miranda ao longo de todo o século 20. O espaço público legitima a consagração da artista durante o funeral, ao ser velado o corpo no salão da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, integrando-o ao corpo oficial da cidade. O ritual se amplia ao tornar visível a consagração de Carmen Miranda como alegoria da nação, quando o esquife é coberto com a bandeira brasileira. Se, antes, ao cantar para um público insatisfeito com sua condição de americanizada, a artista se viu obrigada a exaltar as cores nacionais como resposta a um apelo populista (“Eu sou brasileira / Meu it revela que a minha bandeira é verde-amarela”10); com a morte, seu corpo se torna o da nação. Samba e mulher representam, ironicamente, a glorificação e o fim do pensamento estadonovista, através do qual a Política da Boa Vizinhança representou um de seus maiores exemplos. O jornalista João Martins termina sua crônica revestindo o corpo da artista com as cores verde e amarela e manifestando o direito de posse do mito como consolidação do símbolo nacional: “Mesmo porque a nossa Carmen não morreu. Gente como ela não morre. A nossa Carmen continuará viva para sempre. Apenas o seu corpo é que estava descansando naquele caixão coberto de flores verdes e amarelas, amigos.”11 A afirmação
tende a desvincular o valor real do corpo do sentido de imortalidade, inscrito na força da imagem da artista. Cria-se outra dimensão para a perda do corpo, a da memória, mecanismo capaz de substituir o objeto pelo jogo ambivalente de perdas e ganhos. O devir-Carmen anuncia a sobrevivência do mito, que, amparado pelo nome, transcende a materialidade corporal. A década de 1950 será marcada por mortes de figuras públicas que desempenharam importantes papéis no panorama artístico e político do país. Em 1952, morre Francisco Alves, “O rei da voz”, num desastre de automóvel na Via Dutra; em 1954, Getúlio Vargas, no dia 24 de agosto, comete suicídio. O Brasil, livre da ditadura de Vargas, o reelege presidente em 1950, mas o mandato é interrompido, provocando tumultos de toda sorte. 1955 será ainda o ano da eleição de Juscelino Kubitschek para presidente, comprometendo-se o país com um programa político desenvolvimentista e a abertura para a internacionalização. Nesse clima de país novo, constrói-se Brasília, a cidade moderna, ao lado de movimentos culturais de vanguarda, com a estética concreta voltada para o futuro e com desprezo pelos valores da tradição. No campo musical, abole-se a dicção eloquente e ornamental, presente, entre outras, na interpretação de Carmen Miranda, substituindo-se o samba tradicional, a marchinha e os boleros por novo gênero, a bossa-nova. Com o fechamento dos cassinos pelo presidente Dutra, em 1947, os teatros de revista sofrem também grande abalo, acarretando o fim dos shows com as grandes orquestras, espetáculos frequentados pela classe média nos fins de semana. A bossa-nova nasce em ambiente distinto do samba da Lapa, dos morros, da periferia das cidades, para se concentrar na zona sul, junto a um grupo de universitários e intelectuais. O cotidiano é interpretado de forma intimista, em voz baixa, no pequeno espaço das casas noturnas, e tendo como palco apenas uma voz e um violão. De natureza mais subjetiva e minimalista, descartando qualquer tipo de artificialidade na interpretação, a bossa-nova seguia os caminhos abertos pelo jazz americano e se impunha como ritmo moderno. A televisão, por seu turno, entra nos lares brasileiros por volta dos anos 1950, consolidando-se como veículo de massa na década de 1960. A morte de Carmen Miranda se dá no momento de passagem do cinema para a televisão, da diminuição da força do rádio, no Brasil, como meio de integração nacional. Mas o cinema nacional ainda será devedor de sua imagem, com o advento das chanchadas, um gênero popular que viria atingir o grande público. Sintomaticamente, será no filme a ser transmitido pela televisão americana, no programa de Jimmy Durante, que o corpo de Carmen Miranda ensaia sua morte. Cai dos braços do ator, consegue se levantar e sair, sorrateiramente, de cena. Mais tarde, já em casa, preparando-se para dormir e sem ter tempo para tirar a maquiagem, fecha a cortina. A imagem estereotipada e desgastada de Carmen Miranda como baiana coincide com a imagem de um corpo igualmente desgastado pelo trabalho e cansado de repetir as mesmas cenas.
A figura de Carmen Miranda é interpretada, atualmente, como representante das transformações que as noções de mito e de identidade sofreram ao longo do tempo. Em depoimentos recentes, distinta leitura ilumina o mito, conferindo-lhe uma dimensão utópica e reveladora de nossa cultura contemporânea. Arnaldo Jabor, com irônica sensibilidade, constrói diferente perfil de Carmen, ao qual se distancia das opiniões expressas pelos amigos e colegas que, no calor da hora, não conseguiram se isentar de um discurso sentimental e apaixonado. Por ocasião do lançamento do documentário Carmen Miranda – banana is my business, de 1994, o cineasta se refere à artista por meio da metáfora da luz, também utilizada por Elsie Lessa em seu depoimento. Amplia, contudo, seu sentido, ao considerar a atriz dotada de extraordinária inteligência e de visão avançada para a época. Segundo Jabor, consciente de seu papel no cenário hollywoodiano, Carmen soube conviver com o travestimento identitário como saída para a convivência com a alteridade. O teor avançado de sua performance se nutria de intenções parodísticas e de deboche à cultura americana a qual servia. A luz que aí se propaga serviria, certamente, para iluminar tempos futuros, ao funcionar como sustento de políticas de dependência cultural, assim como de resistência à imposição de modelos hegemônicos de cultura: Aí surgiu Carmen Miranda com seu riso, seu jeito. Ela era um futuro. Seus gestos já eram uma paródia do mundo em volta que ninguém percebia. Ela era mais inteligente que todos. Acho que ela intuiu a cultura de massas, como diria o Caetano muitos anos depois, ela, que já apontava na direção do que seria o tropicalismo. Carmen ilumina seu tempo e, com sua luz, podemos ver também as pistas de algo de nosso destino que se perdeu depois, podemos ver as pegadas dos passos que ainda iríamos dar. (…) Carmen chega à Broadway triunfante, na beleza de seus gestos perfeitos, sua voz desenhando uma alegria matematicamente exata. Carmen usava o corpo como se ela fosse uma “outra” que cantasse. Carmen teve a ideia do travestimento, a ideia de ser uma fantasia de si mesma, de ser uma “outra”, um “eu” sem centro. Carmen inventa a alegoria moderna viva e isto dá a ela a Semana de 22 e prefigura a indeterminação de hoje. Daí o seu imenso fascínio atualíssimo. Daí, os travestis adorarem-na.12
A cantora consegue passar de uma imagem kitsch, pela naturalização da nacionalidade inscrita na roupa, nos adereços e no remelexo, para uma imagem cult, penetrando numa facção do mercado gay, além de outras compostas pela mídia e pelos intelectuais. Daí a sua relação com o fenômeno camp, conceito criado por por Susan Sontag em seu artigo “Notas sobre camp”. A atualidade da imagem cada vez mais artificializada da artista foi gradativamente reconstruída politicamente pelo movimento queer nos Estados Unidos e, mais recentemente, no Brasil. A transformação do estereótipo kitsch por meio da leitura do aspecto performático do camp confere à mitologia de Carmen Miranda penetração muito mais politizada na sociedade contemporânea, contribuindo para a revisão contínua de sua imagem. O mito de Carmen Miranda sobrevive ao tempo e continua se expondo como uma das mais representativas e complexas marcas identitárias.
Carmen Miranda volta à América No século 21, constata-se que o hibridismo latino-americano, considerado do ponto de vista musical, étnico e político, agrega-se a outras manifestações periféricas e se impõe como resistência cultural aos países hegemônicos. Na comemoração, em 2009, do centenário de Carmen Miranda, torna-se evidente a força com que a herança de sua imagem persiste com toda força. Híbrida e integradora, ela se converte em símbolo cultural capaz de reunir, em diferença, o ritmo migratório e diaspórico da latinidade com o som nem tão dissonante da música asiática, africana e pós-colonial. O artigo de Denílson Lopes, “Música ambiente e bossa-nova”,13 nos ajuda a refletir sobre a situação da música contemporânea, discorrendo sobre a junção da bossa-nova com a música eletrônica, com o intuito de construir mais do que um objeto de uma cultura nacional, mas processos socioculturais híbridos que interligam o local e o global, e em que as estruturas ou práticas, que existiam antes em forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas, opondo-se a qualquer discurso essencialista de identidade, autenticidade e pureza culturais…14
Seu raciocínio, seguindo o de Néstor Canclini, se pauta por uma perspectiva pop e transcultural, rejeita discursos fundamentalistas, os quais se reportam à tradição do nacional popular. A tendência ao hibridismo na cultura contemporânea merece ainda a atenção de especialistas em música, ao se constatar a inevitável, saudável e libertadora confluência de estilos, raças, origens, aliada aos bons resultados daí surgidos. Na atual configuração do discurso musical transnacional, prevalece tanto o adjetivo “latino”, quanto o world music, de registro não recomendável pelos intérpretes, o que contribui para a indefinição e globalização das manifestações musicais. No entanto, é possível admitir a influência da música negra e asiática nas práticas musicais não só da atualidade, como das cinco últimas décadas, revestidas da mistura de ritmos vinculados ao jazz, à bossa-nova, ao blues, ao be-bop, ao pop rock, cool, free jazz, salsa, samba, entre outros. A primazia do heterogêneo e a presença irreversível de múltiplas modalidades temporais na constituição das modernidades contemporâneas, no campo específico da música e na cultura em geral, desconstroem qualquer pensamento centrado na identidade musical de um determinado país. No entanto, é preciso desconfiar das fusões rítmicas e musicais como traço de fraternidade sonora entre intérpretes do Terceiro Mundo, instalados ou não nos centros hegemônicos. As críticas endereçadas a Carmen Miranda nas décadas de 1940 e 1950, centradas no mito da identidade nacional e na isenção de empréstimos estrangeiros para a construção da imagem pura da intérprete, não teriam hoje a repercussão esperada. Tanto a sua imagem quanto a mescla heterogênea de ritmos, fantasias e trejeitos encontram ressonâncias e retomada crítica nos palcos daqui e do exterior. O caráter migratório e diaspórico das sociedades periféricas contemporâneas se reproduz na presença maciça do aspecto sonoro na vida cotidiana, considerando ser o fenômeno
musical uma das mais contundentes e revolucionárias manifestações da multidão. A mudança de posicionamento diante das variadas formas de se conceber a modernidade, até então hegemônica e excludente, instaura o jogo entre tradição e modernidade, abolindo-se as hierarquias presentes na ideologia da alta modernidade. A modernidade eurocêntrica, ao servir de modelo para justificar o descompasso e o atraso da recepção artística nos países periféricos, encontra-se hoje enfraquecida por manifestações culturais que deslocam o compasso entre centro e periferia. Renovam-se as relações no campo musical da América Latina, contribuindo para a integração diferenciada entre variadas concepções musicais; ou entre músicos das Américas, congregando tendências ditas primitivas e locais com a abertura trazida pelas modernidades eletrônicas e revolucionárias da música contemporânea. Sob o signo da tensão entre categorias vistas como opostas, o discurso musical se configura de modo heterogêneo, disposto a negociar as contradições e não aderir às oposições. As mudanças tecnológicas e a inauguração da era digital neste início de século não só desfazem propostas identitárias como revelam ser o discurso musical capaz de dispersar os sons dos lugares de origem, o que resulta na condição de “esquizofonia” dos nossos tempos, como assim entende Ana Maria Ochoa Gautier.15 (Artigo publicado na revista Palavra (PUCRJ), Rio de Janeiro, v. 9, p. 174-183, 2002.)
Referências AGORA Carmen Miranda voltou para ficar. Revista da Semana, Rio de Janeiro, 20 ago. 1955. A MORTE trouxe Carmen de volta. Manchete, 20 ago. 1955. CARLOS MAGNO, Paschoal. Carmen Miranda. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 104106, 21 ago. 1955. COELHO, Maria Cláudia. A experiência da fama. Individualismo e comunicação de massa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. CONRADO, Alberto. Nunca houve uma mulher como Carmen. O Mundo Ilustrado. In: QUEIROZ JÚNIOR. Carmen Miranda – vida, glória, amor e morte. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas. 1956. p. 153. DEPOIMENTO de Marques Rebelo. In: QUEIROZ JÚNIOR. Carmen Miranda – vida, glória, amor e morte. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas. 1956. p. 110. DESCANSARÁ hoje em terras brasileiras o corpo de Carmen Miranda. O Diário, Belo Horizonte, 13 ago. 1955. GAUTIER, Ana Maria Ochoa. El contradictorio siglo del sonido. Revista Margens/Márgenes. Belo Horizonte, n. 8, p. 15, jan./jun. 2006. GERASSI-NAVARRO, Nina. Las tres Evas: de la historia al mito en cinemascope. In: NAVARRO, Marisa (Org.). Evita – mitos y representaciones. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002. HEINICH, Nathalie. Être écrivain. Création et identité. Paris: Editions La Découverte, 2000. JABOR, Arnaldo. Carmen foi do getulismo ao capitalismo. Folha de S.Paulo, 8 ago. 1995. Ilustrada, p. 8. LESSA, Elsie. Adeus, Carmen. O Globo. Rio de Janeiro, p. 129-130, 12 ago. 1955. LOPES, Denílson. Música ambiente e bossa-nova. Revista Margens/Márgenes. Belo Horizonte, n. 8, p. 43, jan./jun. 2006. MARTINS, João. Carmen ficará no Brasil para sempre. O Cruzeiro, 20 ago. 1955. MIRANDA, Carmen. Diz que tem… CRUZ, Aníbal; PAIVA, Vicente. A pequena notável Carmem Miranda. Curitiba: Revivendo, 1993. 1 CD. Faixa 10. OLIVEIRA, Celestino Silveira. Carmen não sairá mais daqui. In: QUEIROZ JÚNIOR. Carmen Miranda – vida, glória, amor e morte. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1956. p. 116-117.
QUEIROZ JÚNIOR. Carmen Miranda – vida, glória, amor e morte. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas. 1956. SONTAG, Susan. Notas sobre camp. In: ____. Contra interpretação. Tradução de Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM Edições, 1987. p. 318-337. ÚLTIMA HORA, 13 ago. 1955.
Pan-Américas de Áfricas utópicas No romance Três tristes tigres,1 a desconhecida cantora de boleros Estrella Rodriguez se destaca como personagem de Cabrera Infante, na recriação do clima da cidade de Havana antes da revolução cubana. Conhecida na vida real como Freddy, a cantora se destacava pela aparência grotesca, “era uma mulata enorme, gorda gorda, de braços como coxas”, mas que cativava pela graça e beleza de sua performance. Protagonista de alguns capítulos do romance, como “Ela cantava boleros”, a imagem de Estrella como artista marginal das noites de Havana se mescla à imagem sensual, sentimental e popular de uma América Latina ainda embalada pela fantasia de realização de sonhos coletivos. Cultura que se impunha de forma visível como mestiça, heterogênea, marcada pela modernidade que aportava através do cinema americano, mas que ainda guardava a vitalidade da tradição negra, dos cantores de blues e das letras ardentes dos boleros. É no cabaré Tropicana, palco de espetáculos realizados nas décadas de 1940 e 1950, que se condensava a vida noturna e musical de Cuba, e, por extensão, a relação entre a América Latina e os Estados Unidos, movida por uma aparente confraternização entre povos vizinhos. Por se situar na ilha tropical e sedutora do Caribe, o cabaré era a atração de turistas americanos, os quais se divertiam ao som de rumbas, se embebedavam e se regalavam com as delícias e a sensualidade dos trópicos. A Tropicana, na função mediadora dos interesses econômicos entre os continentes, reveste-se como alegoria do programa político de natureza expansionista, o pan-americanismo, com vistas à unificação das Américas. Com a Política da Boa Vizinhança, no governo Vargas, reforçase a contribuição dos países latinos para a economia americana de guerra. O talento artístico de Carmen Miranda – que parte para a América, em 1939, e integra o programa expansionista, atuando como “Embaixatriz do Samba” – impulsiona o intercâmbio entre os dois continentes. Boleros, tangos e milongas penetravam nos lares da América pelas ondas do rádio e pela transmissão das imagens cinematográficas de Hollywood, o que contribuiu para a importação de modelos de conduta e a revitalização de sonhos coletivos. O maior incentivo para a expansão do espírito modernizador do período foi ainda a construção de salas de cinema em estilo americano que funcionavam, ao lado dos clubes noturnos, como formadores do imaginário cotidiano e da redefinição de identidades. Uma época ainda não marcada pelas ditaduras na América Latina, em busca de uma integração plausível, ainda que sob a égide da cultura de massa que penetrava de mansinho no continente. Turistas endinheirados desciam na ilha e se fartavam do clima de euforia aí reinante. Entre o corpo grotesco e sedutor de Estrella Rodriguez, a cantora cubana de boleros, e o corpo exótico e atraente de Carmen Miranda estariam inscritos os sinais da mais radical alteridade, da natureza heterogênea de um discurso cultural que se impunha no
continente. Era preciso dizer não à idealização do samba, da rumba, do bolero, do jazz ou do swing. O Brasil se incorporava, no entender da política norte-americana, ao concerto da nação desenvolvida e cosmopolita, ao mesmo tempo que, antropofagicamente, o ritmo do pandeiro minava o fox e o swing, resultando no ganho cultural da América. O preço a pagar pela internacionalização de sua imagem provoca em Carmen Miranda o desconforto de estar sendo cobrada pela opinião pública brasileira, ansiosa por preservar traços de uma brasilidade imposta a força, emblematizada nos requebros e nos turbantes “tutti-frutti”. Carmen Miranda e Estrella Rodriguez, ao longo do tempo, recebem duplo tratamento, que se traduz na passagem de uma representação kitsch para uma representação cult. Na condição de artistas que se comportavam de maneira kitsch, elas se destacavam ora pelo sentimentalismo das letras dos boleros e pelo estilo marginal de vida (Estrella), ou pela exposição caricata do corpo e pela fantasia de baiana como ícone tropical (Carmen). Interpretadas como imagem cult, as duas intérpretes ganham, respectivamente, de Cabrera Infante e de Caetano Veloso, o estatuto de personagem literária de Três tristes tigres, e de emblema do Tropicalismo. O que se condenava como sinal de mau gosto e descompasso com os ideais estéticos e políticos do momento passa a ser eleito como manifestação de desejos populares. A reação a qualquer preconceito de ordem musical será protagonizada por Caetano e pelo grupo tropicalista, pelo tratamento parodístico reservado aos ritmos tradicionais da canção latino-americana. A encenação kitsch de um Brasil pintado de palmeiras e bananas compunha a leitura parodística dos trópicos, apontando, pela diferença, o valor produzido pela musicalidade mestiça, pelo jeito de corpo, condições estas que se tornariam uma reação contra outros tipos de performance. Após o silêncio causado pela entrada em cena de ritmos mais sofisticados e do esquecimento dos intérpretes do passado, o Tropicalismo proclama a mescla e a abertura musical, num gesto revolucionário, que se tornaria responsável pelo destino da música popular na atualidade. A imagem tropical de Carmen recebe, assim, interpretação irônica e debochada, uma forma inteligente de apontar, no seu reboleio, as mazelas do país. Pelo riso, pela dança, pela aceitação da condição de país periférico, com palmeiras e bananas prateadas, com a artificialidade própria à encenação da tradição pop brasileira. O debate sempre revigorado entre as posições nacionalista e cosmopolita no âmbito cultural corresponde a outras preocupações vinculadas à dimensão local e global dessas manifestações. Se hoje a situação política dos países latino-americanos não mais se pauta pela ditadura militar subvencionada pelos Estados Unidos, as duas décadas vividas sob o fantasma do imperialismo ianque determinaram o nível de repulsa pelos irmãos do Norte. É nesse clima de Guerra Fria que se processa a reivindicação de vanguarda para a Cuba pós-revolucionária frente à política colonialista norteamericana. A narrativa artística e cultural do período se formou simultaneamente à narrativa política, graças à articulação engenhosa entre elas. O projeto de ocupação do
espaço cultural latino-americano pelos seus agentes contou, a partir da Segunda Guerra Mundial, com a interferência dos Estados Unidos, entendendo-se melhor os embates ideológicos impostos pela Guerra Fria. Alegre e parodístico, o Tropicalismo bebe em várias fontes musicais, do bolero ao rock, da música pop às expressões de mau gosto. Em descompasso com a elite musical, contrariava a esquerda ortodoxa e nacionalista, empenhada na defesa de valores vinculados às raízes da cultura brasileira. O cenário artístico da década de 1960 se alia à abertura revolucionária e libertária da América Latina, por meio de discursos de vanguarda, aliados à denúncia social e política. O Cinema Novo, o Tropicalismo, o Teatro Oficina, o Concretismo e o Neoconcretismo propõem redefinições artísticas e revolucionam o ambiente político dominado pela ditadura. Em torno do regime recéminstalado em Cuba, os ideais latino-americanos se voltavam contra os americanos e almejavam a coerência política no continente. Em 1967, Terra em transe, realização cinematográfica de Glauber Rocha, por meio da imagem do país imaginário, o Eldorado, traduz de forma contundente aspirações latinoamericanas em defesa da liberdade e da denúncia social e política. Trata-se de uma das inspirações de Caetano Veloso para deslanchar o movimento Tropicalista. “Soy loco por ti América”, de Capinam e Gilberto Gil, gravado por Caetano, “Gracias a la vida”, por Milton Nascimento e Mercedes Sosa (além de Elis Regina), expressavam os anseios políticos do momento. Pôsteres de Che Guevara enfeitavam as paredes da juventude e El Paradiso cubano acenava com charutos, rumba, boleros e salsa caliente. E principalmente revolução. Nesse ambiente de euforia e desbunde tropicalista, a literatura, o teatro e o cinema desfaziam a almejada integração americana proposta pelos Estados Unidos, inserindo a criatividade revolucionária dos trópicos. Colocando-se na posição paradoxal – e inteligente – diante da cultura americana, seus intérpretes realizaram, talvez, a mais lúcida integração entre Norte e Sul. O rock dos anos 1950 conversou com os tropicalistas na mesma proporção que o ritmo negro do jazz e das rumbas. Caetano sempre defendeu o fascínio que a música americana exerceu na sua formação e no imaginário de toda uma geração. José Agripino de Paula, no romance PanAmérica, constitui um dos mais instigantes textos do momento, ao se filiar à proposta da literatura pop e da contracultura. Fina estampa, CD de 1994, redefine o olhar de Caetano Veloso frente ao arquivo musical latino-americano. Numa viagem sentimental e nostálgica, o intérprete revitaliza sons e ritmos pontuados pelo glamour dos anos 1950 e de um passado prérevolucionário e pós-utópico. Seleciona canções que vão do cubano Lecuona ao argentino Piazzolla, recorte que se desenha como autobiografia musical. Fecha o CD com a composição de 1988, “Vuelvo al sur”, de Piazzolla, como forma de justificar o projeto do disco. Boleros, rumbas, guarânias ressurgem na voz do intérprete de forma particular, pela presentificação de tempos passados. Estranhar o conhecido e revitalizá-
lo são uma das mais frequentes atitudes de Caetano como leitor atento da tradição musical à qual pertence. Sem endossar a volta romântica ao passado nem a uma nostalgia petrificada, Fina estampa aguça o sentimento contemporâneo de uma retomada crítica e de uma reverência à tradição de uma América mais feliz e menos pobre. Dez anos passados, no momento em que os Estados Unidos invadem o Iraque, Caetano grava “A foreign sound”, “para lançar um olhar sobre a americanidade americana”, nas palavras de Eucanaã Ferraz. Prevalece a proposta tropicalista de romper preconceitos de toda ordem em se tratando de cultura, pelo exercício livre da história pessoal do cantor, pela homenagem, à sua maneira, às canções americanas que embalaram os bailes de sua geração. A interpretação obedece a uma escolha pessoal, ao inserir percussões baianas e instrumentos nativos nos arranjos das canções, estratégia perfeita para a prática da leitura crítica como traço singular. A apropriação amorosa e irônica do repertório clássico americano se vale de procedimentos que deslocam e condensam ritmos, diferentes línguas e o feeling musical herdado da melhor tradição da cultura negra das Américas. A retomada da tradição musical latino-americana inevitavelmente se apoia na leitura dos vazios e intervalos de intérpretes excluídos pelo cânone, representantes de estilos e ritmos marginalizados pela racionalidade moderna. Entre eles se encontram os boleros da cubana Estrella, do pianista cubano de ritmos caribenhos, Bola de Nieve, e de vários outros esquecidos sambistas brasileiros. (Artigo publicado no Estado de Minas, Belo Horizonte, 10 nov. 2007. Caderno Pensar, p. 1.)
Referências CABRERA INFANTE, Guillermo. Tres tristes tigres. Barcelona: Seix Barral, 1970. PAULA, José Agripino de. Pan-América. São Paulo: Tridente, 1967. VELOSO, Caetano (Interp.). Fina estampa. Poligram, 1994. CD.
O samba da minha terra O papel exercido pela música popular na invenção do imaginário cultural e político brasileiro tem recebido, nos últimos anos, efetivo reconhecimento. Com a abertura veiculada pela crítica cultural na universidade, principalmente na área de letras, constatou-se a diluição de hierarquias discursivas e a relativização dos paradigmas hegemônicos, como o da alta literatura, das grandes narrativas, da estética pura ou da alta modernidade. A releitura desses paradigmas no interior das ciências humanas permitiu a transformação do corpus de análise, valorizando-se os discursos até então relegados ao segundo plano ou desprovidos de valor conceitual. O discurso musical, assim como o da cultura de massa, tem sido recuperado pela academia, em virtude do deslocamento dos saberes e da gradativa interferência das instâncias multiculturais. Se a música popular brasileira – na sua complexidade conceitual – atingiu o prestígio que tem hoje, tal fato se deve à sua ligação com os compositores representativos da década de 1960, de nível universitário, e com forte engajamento social e político. Graças à revolução musical instaurada pela bossa-nova, no final dos anos de 1950, em consonância com o programa desenvolvimentista de governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), traça-se no país um desenho cultural e político de dimensão significativa para a compreensão do imaginário da época. Embora o samba tenha ocupado, em períodos anteriores, papel relevante para a legitimação dos conceitos modernos de nacionalidade e identidade popular, articulando-se em torno de compositores e intérpretes de classes sociais distintas, somente mais tarde é que essas relações serão sistematizadas por estudiosos no assunto. Os fatores que mais contribuíram para a retomada de uma posição reflexiva sobre a tradição da música popular brasileira resultaram do diálogo iniciado entre a classe intelectual e a classe artística, de modo ainda incipiente nas décadas de 1920 e 1930 (Pixinguinha e Gilberto Freyre, Manuel Bandeira e Sinhô), e a continuação operada por parte dos artistas que se sucederam. Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, entre outros, pertencentes à classe média, desempenhavam a dupla função de artista e intelectual, ao se posicionarem como porta-vozes dos desejos populares de transformação social. Ao substituírem o lugar dos poetas do Modernismo diante da cultura popular, pela sua formação letrada, encurta-se a distância entre a classe intelectual e o compositor popular, uma vez que a mediação se efetua de modo eficaz. Torna-se mais próximo o diálogo entre as experimentações vanguardistas do discurso musical do período e a tradição da música popular. Chico Buarque conversa com o samba urbano de Noel Rosa, com o chorinho matreiro de Pixinguinha, assim como Caetano Veloso articula as inovações da música internacional aos ritmos nacionais. Essa reflexão torna-se necessária para a construção da linha evolutiva do discurso musical brasileiro.
O fator de legitimação do grupo, marcado pela influência revolucionária da música de João Gilberto, das variações jazzísticas e internacionais de Jobim e da poética de Vinicius consiste no nível literário das letras, produto da relação estreita entre a classe universitária e a artística. João Cabral de Mello Neto, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e os poetas concretistas, como Haroldo e Augusto de Campos, participam indiretamente desse momento de transformação da cena musical brasileira, ao se transferir a experiência literária para os experimentos resultantes da conjunção entre letra e música. Os textos cinematográfico, plástico e teatral (o Cinema Novo, a arquitetura de Niemeyer, o teatro de Arena e o de José Celso Martinez Correia) exerceram igualmente papel definidor na troca de experiências com a canção popular que estava sendo produzida no momento. Como representante desses compositores que respondem por uma poética na qual se conjuga a herança literária da poesia moderna com o engajamento político, a escolha recaiu em Chico Buarque de Holanda, não só pelo lugar ocupado na música popular brasileira, mas por estar o Brasil comemorando os seus 60 anos. Com ele poderiam ser contemplados os componentes do movimento tropicalista, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, além de outros artistas do período, os quais dispensam comentários quanto à defesa dos valores de cidadania e liberdade assumidos na luta contra o governo ditatorial instaurado em 1964. O papel exercido pela canção popular como formadora de opinião pública nessa época se deve, em grande escala, à posição de Chico Buarque mantida ao longo de sua trajetória profissional, na condição de pensador – e de inventor – da cultura nacional. Como motivo condutor desta proposta de análise, será enfocada a apropriação da música como antídoto e saída para os males da nação. Os artistas de formação literária e cultural comum à juventude universitária das décadas de 1960 e 1970 ocuparam o lugar de intérpretes de uma comunidade estudantil atuante e representativa dos movimentos populares e políticos do período. Uma geração que cresceu ao lado de seus ídolos musicais, que se alimentou dos mesmos paradigmas literários e políticos, e que hoje ocupa espaços significativos no cenário nacional. Por essa e outras razões, a fidelidade aos princípios estéticos e culturais próprios a essa geração de compositores constitui, às vezes, empecilho para a aceitação, por parte da crítica, de estilos musicais contemporâneos alheios a essa prática. Através da mediação do compositor letrado, evidencia-se o teor de miscigenação racial como marca da produção heterogênea existente seja entre a música brasileira e a estrangeira – o jazz, o rock –, seja em relação ao samba ou a outros ritmos nacionais. Ainda que a opinião pública se comportasse de maneira desconfiada diante das manifestações musicais oriundas da classe popular – da favela e da periferia – e da classe média universitária, somente nas últimas décadas do século 20 é que a natureza heterogênea desse discurso recebeu tratamento adequado. Na opinião de Hermano Vianna, em O mistério do samba, o discurso da homogeneidade mestiça terá que ser revisto a partir da presença simultânea de projetos
heterogeneizadores, que pregam a diferença como contrapartida da semelhança entre os discursos. A presença dos “mediadores transculturais” propicia a interpenetração de projetos os mais variados e de mundos diferentes, “remodelando constantemente os padrões correntes à vida social e mesmo redefinindo as fronteiras entre esses mundos diferentes”. E acrescenta: O discurso da homogeneidade mestiça, criado no Brasil através de um longo processo de negociação, que atinge seu clímax nos anos 30, tornou determinados “atos decisivos” possíveis e aceitos (como, por exemplo, o desfile de escola de samba com patrocínio do Estado), inventando uma nova maneira de lidar com os problemas da heterogeneidade étnica e do confronto erudito/popular.1
É forçoso lembrar que a função mediadora dos artistas junto aos anseios populares se configura atualmente de modo diferenciado, uma vez que se reatualiza o verso do samba antigo “eu sou o samba / a voz do morro sou eu mesmo / sim sinhô”, ao ser dispensada a mediação pelo intérprete e assumida a voz de seu gueto. O funk, o rap e o pagode são performances que registram a inserção da marginalidade no debate contemporâneo sobre a música popular. O nível de complexidade existente na sociedade brasileira merece ser levada em conta, para que não sejam cometidos equívocos interpretativos nem preconceitos referentes a esta ou aquela manifestação musical, considerando que a diversidade cultural de um país periférico certamente conduz a discussões sobre o gosto ou os critérios de valorização estética. Como procede o discurso crítico universitário diante das transformações sofridas pela música popular brasileira, seja aquela surgida nos anos de 1980, com forte influência do rock internacional, seja a mais atual, pautada pelas manifestações da periferia e das favelas e se inserindo nos movimentos marginais tanto dos países periféricos quanto dos centros urbanos globalizados? O discurso musical anterior era interpretado pela erudita conjunção entre o valor poético e o político, procedimento capaz de promover uma reflexão estética sobre o cotidiano urbano, as utopias políticas ou ainda as referências metalinguísticas, numa época de censura e repressão. Pela utilização de um discurso alegórico – as “segundas intenções” segundo a censura – se sobrepunham alusões ao discurso amoroso e ao político, ao jogo enganoso das palavras, o que se traduzia no convívio paradoxal entre o riso e a dor. Com a abertura política na década de 1980, considerada, contudo, como a década perdida, procedeu-se à revisão dos procedimentos artísticos, em busca de outra linguagem que pudesse desenhar novas linhas criativas e diferentes inserções políticas. O cinema, a literatura, a música, o teatro e as demais artes irão passar por momentos de indefinição e crise, o que culminará com o aparecimento de distintos parâmetros poéticos, aliados a instabilidades de toda ordem. O comportamento da opinião pública que acompanhou a trajetória do discurso musical dos compositores letrados reage, muitas vezes, de modo conservador e saudosista diante das manifestações mais populares, ao se sentir órfã de novos nomes e intérpretes à altura dos anteriores. Torna-se comum a utilização de clichês valorativos
em defesa da superioridade das composições realizadas pela classe letrada de compositores frente aos produtos contemporâneos, em que são diluídas as fronteiras entre o espaço público e o privado, entre a cultura erudita e a de massa, ou entre classes sociais. A tendência habitual dessa crítica é a de se munir igualmente de um instrumental teórico que contemple os discursos vinculados a uma concepção moderna dos valores, em que se privilegiam as letras das músicas em detrimento dos inúmeros componentes das mesmas, como a sua inserção no mercado e na complexa rede da cultura de massa. Os critérios de valor estético, antes válidos para um determinado grupo e em razão da própria contingência histórica desse discurso musical, deverão ser redimensionados, considerando que os conceitos de boa música ou de má qualidade das composições dependem das mudanças processadas no contexto social e político em que são geradas.
Um artista brasileiro Em 1993, a canção “Paratodos” vem selar a linha genealógica instaurada por Chico Buarque diante dos pais legítimos e pais musicais, por se tratar de uma toadahomenagem aos personagens que integram a tradição da música popular. A letra contém uma bem-humorada saudação à música produzida em todo território nacional, justificada pela origem múltipla do compositor, que se nomeia filho de paulista, neto de pernambucano, bisneto de mineiro e tetraneto de baiano. Na qualidade de defensor do conceito de música popular, que privilegie o aspecto nacional na sua heterogeneidade, uma proposta distinta da modernista considera as manifestações locais como diferenças que se suplementam ao conceito de nação. A herança musical completa a genética, por conjugar na figura do “maestro soberano”, Antônio Brasileiro, o nome e a função relativos à gestação musical de um compositor brasileiro, inserido na tradição do samba, do chorinho e da bossa-nova. O artista nasce do duplo poder de Antônio Brasileiro, que, ao lado da função de iniciador e maestro, pelo nome e pela sua lição, se pauta pela construção de uma música com raízes brasileiras: “O meu pai era paulista / Meu avô, pernambucano / O meu bisavô, mineiro / Meu tataravô, baiano / Meu maestro soberano / Foi Antônio Brasileiro.” A leitura da música popular sob esse ângulo esclarece não só a reflexão sobre sua tradição, como avança na sistematização das questões identitárias. José Miguel Wisnik, em “A gaia ciência - literatura e música popular no Brasil”, aborda a presença, em “Paratodos”, de vários pais, dentre eles o pai paulista, “o próprio Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil, remetendo a toda uma linhagem de fundações colhida nessa toada serenada”.2 À herança genética se acrescentam a livresca e a intelectual, responsáveis por um pensamento moderno e canônico sobre a identidade nacional. Na década de 1930, o samba carioca “começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade”,3 conforme afirma Hermano Vianna, em O mistério do samba, ao relegar os demais gêneros regionais. Tal atitude respondia, como se sabe, pelo projeto de modernização e de nacionalização da sociedade. O mesmo não se verifica na posição de Chico Buarque em “Paratodos”, ao deslocar o samba de seu lugar anterior, portanto, de origem negra e carioca, e alçado a símbolo de nacionalidade. Ao optar por compor uma toada, cantiga popular, de melodia simples e não circunscrita a uma região específica, o compositor dirige a saudação aos intérpretes de vários ritmos nacionais, do samba ao rock, e confirma a natureza heterogênea, híbrida e mestiça da música popular, avessa a critérios de pureza criativa ou de essência étnica. O mesmo não se deve afirmar sobre o “Samba da bênção”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, modelo musical de “Paratodos”, composto na década de 1960. Nesse samba, é saudada a comunidade de compositores negros, homenagem que a bossa-nova presta aos seus precursores e à tradição musical. Nas palavras de Maria Alice Resende de Carvalho,
citada por Maria Rita Khel, em “Da lama ao caos: a invasão da privacidade na música do grupo Nação Zumbi”,4 esta comunidade não era brasileira, mas carioca, tendo alcançado o status brasileiro a partir das palavras de Vinícius, que se coloca como “o branco mais preto do Brasil”: Ouvimos a voz de Vinicius de Moraes saudando, como se estivesse, no mesmo ato, nomeando essa comunidade, e criando simbolicamente essa comunidade. (…) E Vinicius vai dizendo: saravá Cartola, Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, saravá Sinhô, Ismael Silva, Donga, Noel (este era branco), Lupicínio (este era gaúcho). Vinicius e Baden Powell saúdam a comunidade negra do samba brasileiro.5
Eleger Tom Jobim, o “maestro soberano”, é ainda legitimar a filiação à bossa-nova, representada por um de seus maiores símbolos, além de colocá-la como marco revolucionário da música brasileira, em todos os seus aspectos. Por ocasião dos 90 anos de Oscar Niemeyer, Chico Buarque, em texto de homenagem, confirma as afinidades eletivas com Tom Jobim e as estende ao arquiteto. Ao sentimento de decepção do compositor por não ter morado em casa projetada para o pai por Niemeyer se mescla a sua dívida diante da profissão de arquiteto, por ter deixado o curso pela metade. Nesse texto, verifica-se a condensação das figuras de Niemeyer e Tom Jobim como símbolos do desejo de perfeição buscado pelo artista, aliando o sonho do arquiteto à música. O livro de Fernando de Barros e Silva, Chico Buarque, recupera esse texto e o elege como abertura do ensaio. A passagem citada é daí retirada: “Quando minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é casa do Oscar.”6 Fernando de Barros e Silva vai além da escolha pessoal e profissional de Chico, interpretando alegoricamente a autobiografia do compositor como forma de expressar um pensamento de construção do Brasil, principalmente no período moderno e desenvolvimentista protagonizado pelo presidente JK e a bossa-nova: A casa de Oscar e a música de Tom pertencem a um país cuja construção era visível. Mais do que isso, Oscar e Tom projetam e exprimem esse país tangível. Estamos falando de Brasília e de bossanova, do final dos anos 1950, com toda sua atmosfera de encantos, quando se vislumbrou a possibilidade de realização do que se pode chamar de uma utopia brasileira. Foi a época em que se viveu a ilusão de que a mesma chave que podia reparar as injustiças de uma herança histórica pesada serviria também para abrir as portas da nossa modernidade.7
A escolha do precursor por Chico, assim como a linha evolutiva seguida por ele, insere o compositor na mesma tradição de Caetano Veloso, representada pela bossa-nova, embora tenham eleito percursores e caminhos diferentes. Delineiam-se mais de perto as distinções entre eles, principalmente por ter o compositor baiano preferido João Gilberto como seu precursor, afinidade que permite desenhar poéticas particulares e justificar posições ideológicas. Em ambos, contudo, persiste a intenção de legitimar influências e o propósito de assumir o pertencimento a um país igualmente inventado pelas suas canções e carregado de utopias. No ensaio citado de Wisnik, o músico/ensaísta registra também a homenagem/filiação de Gilberto Gil a Dorival
Caymmi, na canção “Buda Nagô”, preocupação comum a esta geração de compositores. A música de Gil se definiria pela defesa do traço identitário negro: “Dorival é Eva / Dorival Adão / Dorival é lima / Dorival limão / Dorival é a mãe / Dorival é o pai / Dorival é o peão / balança mas não cai.” A admiração de Chico Buarque por Antônio Brasileiro reside, portanto, na defesa de uma poética pautada pelo lirismo, pelos temas amorosos e pela harmonia musical que busca recriar as imagens e os sons da natureza, uma forma de eleição dos temas nacionalistas. É brasileiro o tom, é revolucionária a urgência em preservar o desgastado sentimento de nação, através de resíduos ainda presentes na voz inaugural dos pássaros. O primeiro encontro entre eles talvez tenha sido com “Sabiá”, de 1968, nova canção do exílio que, durante o Festival da Canção foi interpretada como distante dos ideais políticos do momento. Concorrendo com a politizada “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, “Sabiá” é a escolhida e recebe uma homérica vaia. O canto melancólico do exílio não correspondia ao tempo marcado por gritos e mordaças causados pela repressão. O recado era sofisticado, tanto no nível melódico quanto textual, tornando-se incompreensível para os ouvidos da opinião pública, voltada para o estilo eloquente e direto das canções que animavam o ambiente espetacular dos festivais. A letra denuncia, em tom melancólico e lírico, o silêncio imposto pela censura, pela evocação da paisagem emudecida do país das palmeiras. A expressão artística reprimida se metaforiza na emergência do canto e da voz “da sabiá”: Vou voltar Sei que ainda vou voltar Para o meu lugar Foi lá e é ainda lá Que eu hei de ouvir cantar Uma sabiá. Vou voltar Sei que ainda vou voltar Vou deitar à sombra De uma palmeira Que já não há Colher a flor Que já não dá E algum amor possa espantar As noites que eu não queria E anunciar o dia.
O meu samba é uma corrente O poder atribuído à música em “Paratodos” refere-se ao seu valor de antídoto, capaz de curar a humanidade de todos os males, constituindo um motivo recorrente na obra de Chico Buarque. A função catártica e libertária da música está presente desde a primeira canção, “Tem mais samba”, de 1965, em que se anuncia que “se todo mundo sambasse, seria tão fácil viver”. Mas a trajetória do artista, no empenho de ler a realidade pela mediação do discurso musical, sofre transformações ao longo do tempo e acarreta mudanças no tratamento desse discurso. O período vivido sob repressão política abala o impulso revolucionário do samba, como em “Esta moça tá diferente”, “Corrente” e “Agora falando sério”, notando-se que a ênfase no recurso autorreflexivo e metalinguístico de sua obra contém uma leitura alegórica e denunciante do momento histórico: Agora falando sério Eu queria não cantar A cantiga bonita Que se acredita Que o mal espanta Dou um chute no lirismo Um pega no cachorro E um tiro no sabiá Dou um fora no violino Faço a mala e corro Pra não ver banda passar.
Em “Paratodos”, a mensagem musical vinda dos intérpretes e compositores nacionais atua em todos os sentidos, ultrapassando o auditivo, uma vez que o seu consumo antropofágico se reverte em força positiva e em experiência de vida. A formação do artista se nutre do exemplo e da presença da música, a ponto de se redimir dos males pelo exercício salutar da profissão. Na sua ação catártica, propicia ao outro a vivência da tristeza e da alegria, como prova do valor a ela atribuído. Seguindo o modelo das cantigas populares que se revestem de lição e de exemplo, o narrador-artista dirige-se ao público para aconselhá-lo, cumprindo missão instrutiva, muito comum aos rapsodos de feira nordestina: Nessas tortuosas trilhas A viola me redime Creia, ilustre cavalheiro Contra fel, moléstia, crime Use Dorival Caymmi Vá de Jackson do Pandeiro. Vi cidades, vi dinheiro Bandoleiros, vi hospícios Moças feito passarinho
Avoando de edifícios Fume Ari, cheire Vinicius Beba Nelson Cavaquinho.
Se a experiência da ditadura provocou sentimentos de mal-estar no artista e descrença na denúncia política pela música, em “Paratodos” o clima é de bem estar e de purgação da dor pela alegria, em que se exercita o conceito de “gaia ciência”, o “saber alegre” de F. Nietzsche (1844-1900). A positividade existencial se nutre da experiência da dor, sem que haja a superação de um polo pelo outro. Os discursos do ressentimento, do luto e da melancolia são substituídos pela alegria restauradora. A abertura política no país já havia sugerido o extravasamento de emoções, por meio do desfile alegórico e metafórico pela avenida do bloco da ditadura, em “Vai passar” (1984), em que se reforça o desejo de restauração da democracia e da vitória do samba popular. Semelhante posição se encontra na mais famosa canção do autor, “A banda” (1966), em que se exalta o poder mágico e revolucionário da música. Durante a passagem da banda, vivencia-se, por instantes, a participação do homem comum, capaz de sair da alienação e despertar para a ação. O tom lírico dessa composição, aliado a uma melodia contagiante e sedutora, marcou o lançamento oficial de Chico Buarque no cenário nacional, ao mesmo tempo que serviu de argumento negativo para o balanço de sua obra feito pela crítica. O espírito alegre, apoteótico e catártico de “Vai passar” responde, sem dúvida, por outra função exercida agora pelo “bloco do sanatório geral”, trazendo o fim da ditadura militar. A década de 1990 é responsável pelo convívio dos países periféricos com o processo político e econômico da globalização, o que resultou não só no poder de igualar as qualidades locais com as estrangeiras, mas de ampliar as desigualdades, integrando, globalmente, as minorias. A imagem de nação moderna vai perdendo o seu traçado original, como na canção de 1998, “Iracema voou”, uma revisão do modelo romantizado da personagem Iracema, de José de Alencar. O voo de Iracema em direção à América, em busca de emprego, emblematiza o destino de milhares de habitantes das nações periféricas, embalados pelo desconcertante ritmo neoliberal. América refere-se ao nome do continente que se incrusta e se alegoriza no nome de mulher, Iracema, efetuando-se a inversão do sul pelo norte e a perda gradativa da identidade, causada pela ausência de pertencimento ao lugar de origem. Rompe-se o sentido positivo de Iracema representar o continente e se impor como mito fundador da colônia, presente no romance romântico, para ser relida na condição de desterrada na própria terra: Iracema voou Para a América Leva roupa de lã E anda lépida Não domina o idioma inglês Lava chão numa casa de chá Tem saído ao luar
Com um mímico Ambiciona estudar Canto lírico Não dá mole pra polícia Se puder, vai ficando por lá Tem saudades do Ceará Mas não muita Uns dias afoita Me liga a cobrar: – É Iracema da América.
Um sambista que escreve livros Se a força revolucionária do samba só encontraria lugar propício de realização no espaço público da rua, da avenida, do carnaval ou das manifestações populares como as passeatas, os comícios das diretas, a literatura de Chico Buarque é menos ainda de “levantar poeira”. Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite derramado (2009), além de Fazenda modelo (1975), compõem o seu acervo literário, mas se desvinculam, com exceção da primeira novela, de força alegórica e política, do apelo emotivo, lírico e sedutor das canções. O efeito truncado e labiríntico da narrativa atende ao descompasso das personagens com o mundo, à ausência de saída dos problemas que atingem a sociedade pós-urbana e pós-moderna. A praça pública perde a função de ser o local de convivência humana e de palco de discussões, ao ceder lugar para a dispersão dos grandes centros urbanos, povoados pela fantasmagoria dos falsos encontros e de troca de experiências. Com a ruína dos discursos utópicos, pelo esvaziamento do poder de mudança radical alimentado pelo teor revolucionário da década de 1960, Chico Buarque se reduplica em artista e escritor, e abandona gradativamente o palco da rua. O narrador de Budapeste é retratado na sua função invisível de ghost writer, o escritor fantasma que perde a identidade e se torna autor de livros que nunca escreveu. Por meio de um processo irônico, instaura-se um clima de estranhamento do escritor com a sua própria imagem. Chico Buarque é hoje um escritor pop, o duplo do artista consagrado, que, em virtude de seu temperamento e de estratégias mercadológicas, cultiva o sonho de se transformar em artista invisível, não cedendo à solicitação esquizofrênica da mídia. O compositor se esconde na pele do escritor, o artista detesta o palco e o espetáculo, alcança a popularidade por se mostrar avesso a ela e se consagra muito mais pela negação da celebridade. Ao contestar a participação mais efetiva na vida pública, furtando-se a emitir opiniões políticas ou se recusando a comparecer a sessões de homenagens, defende a vida privada como refúgio e se fecha para o populacho. Comparece, contudo, ao Festival do Livro em Parati, declarando que “às vezes é bom que o escritor se exiba um pouquinho, que saia da toca e se reúna com outros escritores. Senão viram bichos esquisitos.” Bicho esquisito ou não, Chico Buarque responde por uma participação efetiva na história da música popular brasileira e na defesa de uma imagem de país que ajudou a inventar através de seus acordes dissonantes. Se os sonhos ficaram no meio do caminho, a intenção em realizá-los pela mediação da música permanece e se desdobra na revitalização de sua obra pelos futuros leitores. (Artigo publicado em Ciência Hoje, v. 35, p. 20-24, 2004.)
Bibliografia BARROS E SILVA, Fernando. Chico Buarque. São Paulo: Publifolha, 2004. CAVALCANTE, Berenice; STARLING, Heloisa; EISENBERG, J. Decantando a República. Inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira/FAPERJ; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. v. I, II, III. KHEL, Maria Rita. Da lama ao caos: a invasão da privacidade na música do grupo Nação Zumbi. In: CAVALCANTE, Berenice; STARLING, Heloisa; EISENBERG, J. Decantando a república. Inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira/FAPERJ; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. v. III, p. 139-156. MATOS, Cláudia Neiva; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira (Org.). Ao encontro da palavra cantada. Poesia, música e voz. Rio de Janeiro: Sete Letras/CNPq, 2001. VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Jorge Zahar Editor, 1999. WISNIK, José Miguel. A gaia ciência - literatura e música popular no Brasil. In: MATOS, Cláudia Neiva; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira (Org.). Ao encontro da palavra cantada. Poesia, música e voz. Rio de Janeiro: Sete Letras/CNPq, 2001. p. 183-189.
Espelho de tinta Um dos traços marcantes da literatura contemporânea é o alto nível de deslocamento e de estranhamento do sujeito-escritor no discurso, traço que comprova a complexa sensibilidade literária de nosso tempo. O deslocamento literal e metafórico dos parâmetros modernos nacionalistas responde hoje por uma ficção politicamente engajada nos dramas sociais, situados aqui e além dos territórios e dos interesses locais. O estranhamento é decorrência do estatuto de estrangeiro conferido ao escritor, ao se encontrar em constante processo de dessubjetivação. Diante da inevitável perda de identidade autoral, aliada ao esforço de entender o aspecto heterogêneo e mestiço das manifestações culturais, a literatura afasta-se das aventuras imaginárias do passado, pautadas pela nostalgia da origem. O que, na realidade, significa ser um autor brasileiro hoje? Ou esta pergunta carece de sentido? Qual seria a aspiração de qualquer escritor que se preze, a de ser reconhecido apenas no país de origem ou no resto do mundo? Quais os tipos de linguagem e de abordagem temática são reservados para a conquista da notoriedade nacional e estrangeira, num momento em que as diferenças contextuais tendem a ser devoradas pelo apelo à padronização estética e cultural? Os títulos mais recentes do romancista Bernardo Carvalho, incluindo O filho da mãe,1 confirmam a saída romanesca para outros lugares, como Mongólia e Rússia (Mongólia), passando pelo diálogo entre Brasil e Japão em O sol se põe em São Paulo. A experiência do contato com o estrangeiro não se configura apenas enquanto ligada ao exterior, mas por ser manifestação do outro, reflexo invertido do sujeito/escritor. A escrita autobiográfica, comparada ao “espelho de tinta” por Michel Beaujour, encontra ressonâncias na ficção de Carvalho, por manter o movimento paradoxal de proximidade e distanciamento entre literatura e vida, ficção e documento. Como parte do projeto intitulado “Amores Expressos”, O filho da mãe se passa na cidade de São Petersburgo, com rápidas cenas em Moscou e em outros lugares da Rússia, no mar do Japão, no Oiapoque, Brasil. O tema da maternidade se articula com o da guerra, do amor e da morte, sentimentos contraditórios responsáveis por momentos de rara beleza na narrativa. O estranhamento, que à primeira vista o livro provoca no leitor, deve-se à sua produção gráfica e ao sentido do título, sugerindo ambos uma publicação nos moldes de pulp fiction, ficção que explora temas menos nobres, de natureza popular e de massa. A capa do livro lembra a de um exemplar velho e usado, em diálogo com a acepção residual do título, xingamento que remete à bastardia, traço irônico atuante nos dramas centrais do romance. Quem imagina São Petersburgo como a cidade literária por excelência, povoada de personagens que transitam nas ruas, como os funcionários de Gogol ou o próprio escritor Dostoiévski, se depara com os fantasmas que essa mesma literatura consagrou,
graças ao clima sombrio e misterioso aí recriado por Carvalho. O cenário em construção das ruínas da cidade – em 2003, às vésperas da comemoração de seus 300 anos – constitui a alegoria desse romance: os resíduos do passado político e cultural do país presentificam-se no descompasso entre a liberdade revolucionária e a máquina ditatorial e corrupta do Estado. Envolvidos nesse clima sufocante, dois jovens “estrangeiros” encontram o amor e a morte como único recurso para ultrapassar as 300 pontes de São Petersburgo. Os protagonistas – Ruslan, nascido na Chechênia, e Andrei, fruto da união de um exilado político brasileiro e uma russa, natural de uma cidade fronteiriça com a China – veem-se em constante conflito com o tecido urbano, dotado de visibilidade e controle. Fogem, escondem-se e unem-se perigosamente nos prédios abandonados: “De alguma forma, Ruslan passou a associar o amor ao risco e à guerra, porque não conhecia outra coisa. Associou o sexo à trégua (o desejo deixava a realidade em suspenso) e o amor à iminência da perda. E daí em diante só conseguia amar entre ruínas.”2 O enredo de O filho da mãe obedece aos malabarismos próprios da técnica parapolicial, pela inversão da ordem narrativa e a produção de suspense, um convite ao diálogo ficcional. Esse pacto entre escritor e leitor é uma das razões do sucesso editorial de Bernardo Carvalho, por ser a trama policialesca e investigativa uma das mais atraentes modalidades da literatura de nossos dias. Mas, além da construção engenhosa do enredo, o livro denuncia as ruínas do ambiente artístico, literário e político da cidade de São Petersburgo para encenar as contradições e os problemas existenciais causados pelos problemas multiculturais. A ausência de sentimento patriótico entre os jovens permite considerar os dramas sob os âmbitos local e global, entendendo-se essa articulação como justificativa para o abandono da postura nacionalista em literatura ou em outra manifestação artística. Os amores expressos exibidos em O filho da mãe alternam-se entre o sentimento materno e o desamparo dos filhos em meio às crueldades da guerra e à relação amorosa entre os dois rapazes. O desfecho do romance metaforiza-se na formação do jogo especular entre a cena final envolvendo Andrei e a morte do bezerro recém-nascido – disforme e produto da mistura de dois embriões, portador de mau agouro, “o filho da mãe” – e a passagem anterior referente à carta deixada por Ruslan e lida por Andrei, reportando um fato de infância presenciado nas montanhas. Trata-se do nascimento monstruoso de um potro, mais tarde por ele reconhecido como a versão aproximada da quimera, animal mítico composto pela mistura de vários animais. É ainda o título do segundo capítulo do livro. A eliminação do diferente se realiza no romance nos planos animal e humano, por meio dos quais se apaga a imagem do duplo como espelho do sujeito e de seu outro. A união “monstruosa” e o consequente extermínio entre iguais se processa tanto no nível do enredo amoroso quanto no da proposta do livro, que é a de considerar a invenção de histórias em terras estranhas o espelho invertido de experiências pessoais.
A literatura como destino, este espelho de tinta, se realiza de forma admirável em O filho da mãe. (Artigo publicado no Jornal de Resenhas, São Paulo, p. 8-9, 6 jul. 2009.)
Bibliografia CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Com açúcar e com afeto Naqueles primeiros dias de março de 1951, não sabia que as aulas do curso primário iriam começar. Mamãe me alertou, aflita, que já estava na hora de me aprontar para ir à escola. Foi uma correria e, nessa aflição, até a cozinheira trocou o sal pelo açúcar, o arroz ficou adocicado e foi impossível almoçar. A lembrança desse dia sempre me evocou a ideia de inversão, de deslocamento, uma coisa pela outra, momento que marcaria minha atitude diante da vida para sempre. Tinha sete anos e pela primeira vez começava a aprender a escrever e a ter noção do espaço branco da página. A única leitura que praticava – não sei como explicar – era a das partituras musicais, pois aos seis anos e meio iniciara o estudo de piano com a professora Nise Silva. As primeiras letras no Curso Primário da Escola Normal Oficial de Manhuaçu – hoje Escola Estadual Maria de Lucca Pinto Coelho – foram marcadas pelo entusiasmo e pela alegria da descoberta, pelo contato, visto hoje como transparente e cordial com os colegas, funcionários e professores. De saia azul-marinho pregueada, blusa branca e um pequeno distintivo preso ao bolso da blusa, além de uma gravata fininha e da mesma cor da saia – sempre perdida e alvo de reprimendas por parte do sr. João, o porteiro –, começávamos a lidar com a ordem e a disciplina, com a obrigação de obedecer às filas, aos lugares fixos na sala, além das regras e dos exercícios de escrita, de leitura e do desenho. Da primeira experiência com a escrita e com a leitura, indo da cópia enviesada de meu nome no caderno de exercícios, da falta de controle do lápis sobre o papel, do lento aprendizado das frases aprendidas por inteiro – o método conhecido como global –, da visualização das sílabas, do fragmento que se completava no todo da frase, me é difícil lembrar, com clareza, das lições de alfabetização. Não se tratava do Livro de Lili, tenho certeza, pois o único resquício de frase que retenho, “Olhem o Paulinho, ele tem um cachorrinho”, estampada no cartaz colado ao quadro negro, parece não dizer muita coisa sobre os manuais da escola primária. Ou esta lição eu a ouvi durante o aprendizado de meu irmão, um ano e meio mais novo do que eu? “Ivo viu a uva”, que soa hoje como um verso, talvez tenha sido uma das práticas utilizadas no processo de alfabetização, mas será que não foi ela incorporada às experiências de leitura dos outros? O esquecimento não se explicaria pela recusa em arquivar o que veio primeiro, se o Ivo ou a uva, se a escrita ou a leitura, se a voz do outro no lugar da minha, a inverter a ordem das coisas, a embaralhar as lembranças, a comer arroz com açúcar? Pela seleção subjetiva da memória, que conserva alguns momentos ou mentaliza passagens que mais tenham marcado a criança, fica difícil separar o que de fato se passou entre quatro paredes de uma remota sala de aula da década de 1950. No frigir dos ovos, essa seleção rememorativa tende a reforçar o gosto da criança pela literatura, ao compor, de forma ingênua, poemas e dramatizações sobre temas
patrióticos, já na quarta série primária. Ou ainda de ter sido escolhida a oradora da turma, discurso redigido numa sentada, embora contendo uma página e meia, mas lido diante de um auditório repleto. A foto desse momento estampa um vestido rodado, de cor rosa, sapato preto e meia soquete, penteado preso em pequeno coque e papel em punho, remetendo, sem dúvida, para a carreira a ser abraçada pela jovem formanda, a de professora universitária, com atuação na vida acadêmica e pública. A ousadia se mesclava à timidez, componentes de minha personalidade que ainda se integram à versão adulta. A escrita da iniciante nas letras, por força da facilidade de expressão e de certa ingenuidade, não era produto de muito esforço, assim como o hábito de leitura, que passou de hábito a vício, de vício a obsessão. As composições – termo utilizado no primário – eram redigidas com rigor e imaginação, mas sem a vivacidade e criatividade que eram a marca registrada de uma colega do primário, Cristina Leite, dotada de capacidade invejável na arte de narrar, principalmente quando se expressava oralmente. Na interpretação que fazia na época, Cristina assim se comportava por morar na fazenda, onde o cotidiano era bem mais animado do que o nosso. Contava histórias que a gente custava a acreditar, misturando ficção e realidade, reunindo peripécias infantis com fatos inacreditáveis. As professoras responsáveis pelas horas de leitura se encantavam com a sua proeza. De feição distinta, minha tendência era para o texto escrito, o que servia de escudo para a timidez, muitas vezes detectada na performance oral. E se antes a redação fluía de modo a não revelar as dificuldades de confecção, à escrita a que hoje me entrego, elaborada e sofrida, é produto desse entusiasmo próprio das primeiras letras. Na infância, o que mais me marcou como iniciação à leitora que hoje sou, foi o presente dado pela minha mãe de um abajur de cabeceira, em cristal e com pingentes brancos. Esse objeto mágico iluminava, em close, as letras pretas das páginas dos livros de Monteiro Lobato, que devorava noite adentro. A leitura sempre foi, para mim, um gesto solitário. Conviver com os livros é uma forma deliberada de encontrar prazer no mundo imaginário trazido pela linguagem escrita. Os rituais de leitura complementam a criação desse ambiente fascinante, particular e subjetivo do leitor. Os livros e a noite guardam o mistério da ficção, do ato solitário se deslocar em direção à experiência do outro, ao espaço que ultrapassa nosso tão prosaico cotidiano. A escola sempre foi para mim o prolongamento do ambiente familiar, pois minha mãe, Lilita Carvalho, lecionava português nos cursos ginasial e normal e minha madrinha, Ilza Campos, era a diretora. Embora não gozasse de regalias, no íntimo me sentia protegida, certa de que aquele novo espaço de convivência não me afastava dos amigos próximos, nem da rede de relações sociais de meus pais. Acostumada a manusear os livros das estantes de casa, e de perceber, desde cedo, minha vocação para as letras, o tempo de leitura na escola não correspondia à liberdade sentida em casa. Câmara Cascudo, Malba Tahan, Monteiro Lobato, entre outros escritores e divulgadores do folclore e dos contos infantis, compunham, sem dúvida, a biblioteca de toda criança
desse período. Mas o que incentivava a comunicação mais vital entre as colegas eram as brincadeiras realizadas nos recreios, as cantigas aprendidas nos períodos de lazer, entre as quais o “Atirei o pau no gato”, “São Francisco entrou na roda” ou “Terezinha de Jesus”. A descontração e a alegria iam ao lado da responsabilidade em cumprir os deveres de casa, incluindo poemas a serem decorados, para serem recitados em sala de aula (quem não se lembra, de cor, de “O vaga-lume”, de Fagundes Varela, de “A pátria”, de Olavo Bilac?), além dos hinos cantados nos dias de hasteamento da bandeira ou de festas cívicas. A “Parada” de sete de setembro – e não o “Desfile” – consistia na mais importante festa do calendário escolar, dia no qual todos desfilavam sem pudor e se sentiam engrandecidos pela oportunidade de render um culto à pátria. Tudo hoje ressoa de forma mágica, pois fazíamos parte da elite da cidade e, embora vivêssemos modestamente, o limite de nosso mundo não se fechava nas montanhas. A primeira professora deixou marcas nesta história inventada de meu curso primário. Dona Beatriz Pacini, viúva jovem e bonita, nos encantava com sua maneira especial de ensinar, reunia outro atrativo aos olhos dos alunos do primário: não repetia nenhuma blusa durante os cinco dias de aula na semana, sendo todas de muito bom gosto. Compunha sua figura o sorriso largo, o batom vivo e o corpo bem feito. A grande variedade de blusas de seu guarda-roupa ganhava mais brilho com o uso do cinto largo de elástico, arrematando a beleza de seu traje. Ficamos tristes quando ela foi embora da cidade para se casar de novo. (Professora que se preze não devia nunca abandonar os alunos dessa forma.) As outras que se seguiram, Dona Nair Leite, Carmelita Leitão, não preencheram o vazio da primeira. Ainda mais que as matérias iam se tornando mais complexas, ou menos atraentes para mim, como matemática, trabalhos manuais, desenho. É forçoso lembrar que as experiências feitas nas aulas de ciência contribuíam para o contato mais sistematizado com a natureza, as plantas, as árvores, os animais. O dever de casa relativo ao estudo da fotossíntese, por exemplo, teve a ajuda de um colega, Etelvino Bechara, uma vez que sua inteligência e trato com a matéria me aliviavam nos trabalhos. Ele se tornou um dos grandes pesquisadores da USP, na área de química. O que me atraía, contudo, no momento, era o aprendizado da música, por meio do estudo do piano, e o convívio constante com a literatura. As partituras serviam para a leitura do repertório clássico, o ouvido, para criar arranjos de música popular. O gosto adocicado do arroz mostrava ainda a força da inversão dos objetos e das intenções sempre fora do lugar. As dramatizações realizadas no âmbito da escola – a história de dona Baratinha e Dom Ratão, por exemplo – completavam o aprendizado oficial, as provas orais de final de ano, os prêmios aos melhores alunos, o respeito aos mestres e funcionários. Aprendíamos a ser atores mirins, decorando poemas, repetindo cenas da história brasileira, copiando lições nos cadernos de caligrafia para melhorar a letra, gravando datas e acontecimentos significativos da história, saberes que são muitas vezes
questionados pelos métodos modernos de ensino. Com as falhas e vazios presentes na estrutura curricular da escola primária ao longo desses 50 anos, poderia afirmar que resta ainda um saldo positivo. Nossa geração que vivenciou, de forma simultânea, o contato com as primeiras letras e o restabelecimento da democracia no país, foi também espectadora do clima de euforia do governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, dos acordes do samba-canção e do início da bossa-nova. Cantamos o “Peixe vivo” por ocasião da visita de JK à escola e aplaudimos a chegada, na cidade, de Milton Campos e Abgar Renault, respectivamente governador e secretário de Estado de Minas Gerais, em sua recepção pelos professores da Escola Normal. Tornamo-nos cúmplices da entrada da coca-cola nos lares brasileiros e da importação da calça americana, hoje calça jeans, que iria substituir mais tarde os uniformes comportados da escola e revolucionar os costumes do mundo inteiro. A morte de Getúlio, lembrada de modo anedótico, não nos impressionou como devia. Aos olhos da infância, o que contava era a suspensão das aulas. Voltamos alegres para casa com a notícia e fomos jogar peteca na rua. O mesmo se deu com a morte de Evita Perón, em 1952, e a de Carmen Miranda, em 1955. As notícias vinham pelo rádio, eram lidas nos jornais e, finalmente, estampadas nas páginas coloridas de O Cruzeiro. Tomamos conhecimento da morte de Evita pelas páginas da revista: os boatos sobre as armadilhas existentes no Palácio do Governo, seu guarda-roupa luxuoso e sua rica coleção de sapatos. A lembrança está vinculada ao fato de mamãe ter quebrado a perna na escada da escola e de meu pai ter comprado revistas para ela se distrair enquanto estava impedida de se mover. De Carmen Miranda, a impressão até hoje viva de sua foto mortuária, em que aparecia maquiada e trajando um tailleur vermelho. A leitura de revistas ou de revistas em quadrinhos em casa não era um hábito, assim como a compra de frutas estrangeiras, dentre elas a maçã argentina, pois além de custar caro, eram de difícil acesso. Curiosamente, a década de 1950 iria ser objeto de minhas atuais pesquisas acadêmicas, ao reunir os estudos de literatura e crítica cultural à política, às artes e à própria biografia. Compor fragmentariamente este período continua sendo para mim uma forma de discorrer também sobre minha geração, de esclarecer pontos obscuros da história individual e de contribuir para a transmissão de um recado aos futuros leitores do país. (Ensaio publicado em: NUNES, Maria Therezinha; TEIXEIRA, Maria das Graças; GARCIA, Maria Mello; ANDRADE, Therezinha (Org.). Ecos do passado – memórias da infância e da escola no século XX. Belo Horizonte: O Lutador, 2010. p. 44-48.)
Notas
Apresentação 1.
Cf. PIGLIA. Respiração artificial; PIGLIA. El último lector; RAMOS. Saber do outro. Escritura e oralidade no Facundo de Domingos Faustino Sarmiento, p. 31-45; MIGNOLO. Histórias locais, projetos globais; MOLLOY. Vale o escrito – a escrita autobiográfica na América Hispânica. ↩ 2.
SOUZA. Correspondência – Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. ↩ 3.
SOUZA. Pedro Nava – o risco da memória; SOUZA. Pedro Nava. ↩ 4.
RANCIÈRE. A partilha do sensível. Estética e política, p. 53-59. ↩ 5.
SOUZA. O século de Borges. ↩ 6.
SOUZA. Tempo de pós-crítica. ↩ 7.
SOUZA. A crítica em palimpsesto – reflexões sobre a obra de Luiz Costa Lima. ↩ 8.
MIRANDA, SOUZA (Org.). Navegar é preciso, viver. Escritos para Silviano Santiago; SOUZA. Márioswald pós-moderno, p. 23-50. ↩ 9.
BEAUJOUR. Miroirs d’encre. ↩ 10.
BORGES. O espelho de tinta. ↩
A crítica biográfica 1.
SCHNEIDER. Morts imaginaires. ↩ 2.
Cf. SONTAG. A doença e suas metáforas; SONTAG. A Aids e suas metáforas. ↩ 3.
BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 35. ↩ 4.
SANTIAGO. Em liberdade; SANTIAGO. Viagem ao México. ↩ 5.
Cf. meu livro Pedro Nava – o risco da memória, especialmente o capítulo inicial sobre sua morte. Sem me preocupar com a razão do suicídio do escritor, analiso o acontecimento segundo critérios ligados à elucidação da modernização urbana do final do século 20, do lugar deslocado do sujeito diante das mudanças operadas pelo tempo. De flâneur o escritor passa a voyeur, além de se integrar ao patrimônio da cidade do Rio de Janeiro, no momento em que comete suicídio em pleno espaço público, lugar que soube tão bem lutar por sua preservação. SOUZA. Pedro Nava – o risco da memória. ↩ 6.
JEANNELLE. Où en est la réflexion sur l’autofiction?, p. 17. ↩ 7.
DOUBROVSKY. Les points sur les “i”, p. 63-64. (Tradução da autora). ↩ 8.
AGAMBEN. Ce qui reste d’Auschwitz, p. 164. ↩ 9.
O artigo de Maryse Vassevière, “Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de la génétique”, define com clareza esta proposta teórico/poética do escritor: “Porque em Aragon, o discurso autobiográfico tem sempre anseio do necessário desvio pela ficção. É o que ele teorizou sob o nome de mentir-verdadeiramente e que se pode considerar seja como uma pura teoria do romance se o acento é colocado sobre o mentir, seja como um território no vasto continente da autoficção se se coloca o acento sobre o verdadeiro.”
(Tradução da autora). VASSEVIÈRE. Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de la génétique, p. 90. ↩ 10.
SANTIAGO. Revista Aletria, n. 18, p. 178. ↩
Janelas indiscretas 1.
DEBORD. A sociedade do espetáculo, p. 14. ↩ 2.
ARFUCH. O espaço biográfico – dilemas da subjetividade contemporânea, p. 96. ↩ 3.
CAUQUELIN. L’exposition de soi – du journal intime aux webcams, p. 88. ↩ 4.
DOUBROVSKY. Fils. ↩ 5.
LIPOVETSKY. Les temps hypermodernes. ↩ 6.
AUGÉ, Marc. Pour quoi vivons-nous?, p. 144. ↩ 7.
BUCI-GLUCKSMANN. Esthétique de l’éphémère, p. 84. ↩
A biografia: um bem de arquivo 1.
HAY. A literatura dos escritores. Questões de crítica genética, p. 17. ↩ 2.
Jacques Derrida, em entrevista concedida em 1995 sobre o tema do arquivo, já estava sensível à mudança de suporte dos manuscritos: “Ainda no século 19, havia escritores que recopiavam os manuscritos para vendê-los. Agora, pode-se imaginar que por razões de autoridade, de legitimidade, os escritores vão multiplicar os rascunhos nos disquetes para confiá-los às instituições de legitimação, porque ter seu “troço” no IMEC valoriza alguém; há cada vez mais pessoas que têm vontade de depositar seu trabalho. E ser aceito no IMEC, é como já ser publicado na Gallimard. Então, permanecem lutas terríveis, e lutas que acontecem também no interior da universidade. (Tradução da autora) DERRIDA. Archive et brouillon. Table ronde du 17 juin 1995, p. 207-208. ↩ 3.
A bibliografia sobre este tema é vasta. Tomo a liberdade de citar alguns títulos de minha predileção. Entre os autores escolhidos, estão: a) para a crítica biográfica: Nathalie Heinich, Être écrivain. Création et identité; e La gloire de Van Gogh. Essais de l’anthropologie de l’admiration; Michel Schneider, Mortes imaginárias; e Marilyn, últimas sessões; Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes; Georges Perec, Penser/classer; Les choses; e Espèces d’espaces; Maria Helena Werneck, O homem encadernado, Machado de Assis na escrita das biografias. b) para a crítica textual e genética: Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda (Org.). Arquivos literários; Michel Contat e Daniel Ferrer, Pourquoi la critique génétique?; Almuth Grésillon, Elementos de crítica genética; Louis Hay, A literatura dos escritores. Questões de crítica genética. ↩ 4.
Cf. artigo de minha autoria, “Notas sobre a crítica biográfica”, p. 105-113. ↩ 5.
Cf. SOUZA. Pedro Nava – o risco da memória, p. 113. ↩ 6.
PEREC. Penser/classer, p. 22-23. (Tradução da autora). ↩ 7.
SÁNCHEZ. Coleccionismo y literatura, p. 118. (Tradução da autora).
↩ 8.
BENJAMIN. Desempacotando minha biblioteca, p. 234. ↩ 9.
Os originais foram transcritos, anotados e editados por Reinaldo Marques, Georg Otte e por mim, na condição de pesquisadores do Acervo de Escritores Mineiros do Centro de Estudos Literários da UFMG. ↩ 10.
GALVÃO. Rapsodo do sertão: da lexicogenêse à mitopoese, p. 149. ↩ 11.
Trata-se de recortes de anúncios de jornal, em alemão, recortados e colados; as datas foram manuscritas nas margens. Tradução de Georg Otte. ↩
Biografar é metaforizar o real 1.
Santiago. 2007. Direção de João Moreira Salles; fotografia de Walter Carvalho; produção de Maurício Andrade Ramos; trilha sonora de João Saldanha. ↩ 2.
MATTOS, Carlos Alberto. O senhor dos salões. Disponível em: Acesso em: 23 jan. 2011. ↩
Freud explica 1.
SVEVO. A consciência de Zeno. ↩
A traição autobiográfica 1.
LÉVI. O século de Sartre, p. 246. ↩ 2.
SARTRE. As palavras. ↩ 3.
COHEN-SOLAL. Sartre. ↩
As mortes imaginárias de Pessoa 1.
SCHWOB. Vidas imaginárias. ↩ 2.
SCHWOB. Vidas imaginárias, p. 10. ↩ 3.
SCHNEIDER. Morts imaginaires. ↩ 4.
SCHNEIDER. Morts imaginaires, p. 278-279. ↩ 5.
KODAMA. Entrevista, p. 1. Nas palavras de Luis Bilbao, Borges, “como o Tenente Henry de Adeus às armas, foi viver com sua amada num hotel da Suíça”. A ficção e seus modelos sempre acompanhando os atos do escritor. ↩ 6.
BARTHES. Aula, p. 46. ↩ 7.
PESSOA. Primeiro Fausto; passagem das horas, p. 454-455. ↩ 8.
PESSOA. Primeiro Fausto; passagem das horas, p. 345. ↩ 9.
O encontro entre Pessoa e Borges já fora imaginado pelo crítico uruguaio, Emir Rodriguez Monegal, no artigo “Borges, auteur de Fernando Pessoa”, em Magazine Littéraire, de 1988. ↩ 10.
TABUCCHI. Os três últimos dias de Fernando Pessoa, p. 61. ↩ 11.
PERRONE-MOISÉS. Pensar é estar doente dos olhos, p. 344. ↩ 12.
TABUCCHI. Os três últimos dias de Fernando Pessoa, p. 23. ↩ 13.
SARAMAGO. O ano da morte de Ricardo Reis, p. 427-428. ↩
A memória de Borges 1.
VILA-MATAS. Doutor Pasavento. ↩ 2.
JELLOUN. L’enfant de sable. ↩ 3.
HELFT; PAULS. El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados. ↩ 4.
VILA-MATAS. Doutor Pasavento, p. 20. ↩ 5.
HELFT; PAULS. El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados, p. 134-135. ↩ 6.
BORGES. Une lo útil a lo agradable, p. 143. ↩ 7.
JELLOU. L’enfant de sable, p. 173. ↩ 8.
LUDMER. Comment sortir de Borges?. (Trdução da autora). ↩ 9.
LUDMER. Comment sortir de Borges?, p. 10. (Trdução da autora). ↩ 10.
SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-americano. ↩ 11.
SANTIAGO. Literatura é paradoxo. ↩ 12.
SANTIAGO. Borges, p. 434. ↩
Cyro dos Anjos: a verdade está na Rua Erê 1.
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 10. ↩ 2.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 227. ↩ 3.
“Um efêmero sem melancolia, que retrabalharia, no precário e no frágil, os estratos do tempo, suas paisagens e seus imaginários, a ponto de se entregar a este ‘espaço vibrante’ onde sonhava Matisse. Como dizia Edgar Poe: ‘Nosso futuro está no ar’.” BUCIGLUCKSMANN. Esthétique de l’éphémère, p. 73. (Tradução da autora). ↩ 4.
BUCI-GLUCKSMANN. Esthétique de l’éphémère, p. 84. (Tradução da autora). ↩ 5.
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11-13. ↩ 6.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 95. ↩ 7.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 41. ↩ 8.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 27. ↩ 9.
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 91. ↩ 10.
ANJOS. Política da amizade, p. 186. ↩ 11.
ANJOS. A menina do sobrado, p. 274. ↩ 12.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 30.
↩ 13.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 31. ↩ 14.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 205. ↩ 15.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 99. ↩ 16.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 227. ↩ 17.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 395-396. ↩ 18.
ALPHONSUS. O discurso de João Alphonsus. Folha de Minas, p. 181. ↩ 19.
ALPHONSUS. O discurso de João Alphonsus Folha de Minas, p. 180. ↩ 20.
ALPHONSUS. O romancista e seus personagens. ↩
O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK 1.
WERNECK. O desatino da rapaziada, p. 134. ↩ 2.
DOURADO. Gaiola aberta, p. 167. ↩ 3.
Projeto desenvolvido como bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq de março de 2005 a março de 2008. ↩ 4.
BOJUNGA. JK – o artista do impossível, p. 506. ↩ 5.
Discurso de Juscelino Kubitschek na inauguração da Exposição de Arte Moderna de 1944. Folha de Minas, Belo Horizonte, 7 maio 1944. ↩ 6.
LODI. Avaliação do quadro Retrato do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, de Alberto da Veiga Guignard. ↩ 7.
LAGES. Proposta de restauração da pintura Retrato de J. K. – Alberto da Veiga Guignard. ↩ 8.
FRIEIRO. Novo diário, p. 161. ↩ 9.
RUBIÃO. O edifício. ↩ 10.
GOMES. Modernização e controle social – planejamento, muro e controle espacial, p. 201. ↩ 11.
ARRIGUCCI. Folha de S.Paulo, 11 abr. 1998. ↩ 12.
Os componentes da revista, quase todos pertencentes ao partido comunista, são os seguintes: Wilson Figueiredo (secretário), Valdomiro Autran Dourado (redator-chefe); redatores (Sábato Magaldi, Francisco Iglésias, Pedro Paulo Ernesto, Edmur Fonseca e Walter Andrade). Outros contistas, poetas e ensaístas são igualmente representativos dessa geração: Jacques do Prado Brandão, Marco Antonio Tavares Coelho, Octavio Alvarenga e Pontes de Paula Lima. ↩ 13.
LAFETÁ. Revista de Teoria Literária e Literatura Comparada, p. 30. ↩ 14.
DOURADO. Gaiola aberta. Tempo de JK e de Schmidt. ↩
Memórias imperfeitas 1.
ANDRADE. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. ↩
Macunaíma: quem é você? 1.
ANDRADE. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. ↩
Macunaíma de Daibert 1.
ANDRADE. Querida Henriqueta. Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, p. 57. ↩ 2.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo. ↩ 3.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo, p. 25-26. ↩ 4.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo, p. 21. ↩ 5.
Carta de Arlindo Daibert a Pedro Nava, de 2 de junho de 1981. ↩ 6.
Carta de Pedro Nava a Arlindo Daibert, cuja cópia foi cedida pelo artista durante a exposição “Mário de Andrade – Carta aos Mineiros”, de 1993, realizada em Belo Horizonte, sob a curadoria de Eneida Maria de Souza e Paulo Schmidt. A carta foi reproduzida em SOUZA; SCHMIDT (Org.). Mário de Andrade – carta aos mineiros, p. 155156. ↩ 7.
NAVA. Beira-mar/memórias 4, p. 190. ↩ 8.
BARTHES. A câmara clara. ↩ 9.
NAVA. Beira-mar/memórias 4, p. 191. ↩ 10.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo, p. 16. ↩ 11.
ANDRADE. A visita. O Banco de Boston fez uma edição fac-similar. O poema foi incluído, mais tarde, nos livros Reunião e A paixão medida (Rio de Janeiro: Record, 1996). ↩
12.
DOURADO. Tempo de Mário e outros tempos, p. 115. ↩ 13.
SOUZA. A pedra mágica do discurso. ↩
Amizade modernista 1.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 10. ↩ 2.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário. ↩ 3.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 504. ↩ 4.
BATAILLE. A noção de despesa. ↩ 5.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 13. ↩ 6.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 523. ↩ 7.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 478. ↩ 8.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 475. ↩ 9.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 497. ↩
“Márioswald” pós-moderno 1.
SANTIAGO. Caíram as fichas. ↩ 2.
“…o Modernismo de 22 é enterrado em 1936 ao repicar dos sinos maniqueus (nitidez na oposição de luz e sombra, de Deus e Diabo, de catolicismo e comunismo). As vozes dos sinos guerreiros traçam o perfil do intelectual intolerante, de feição totalitária e bem pouco democrático nas suas intenções revolucionárias, pois deseja modernizar o Brasil e atualizar a sua arte pela destruição do seu oposto.” SANTIAGO. Fechado para balanço, p. 78. ↩ 3.
Cf. a dissertação de Roniere Menezes, Notas de um turista canibal, p. 173., Ao discorrer sobre a relação entre Mário de Andrade e a música popular urbana, enfoca o trecho sobre as canções “Amélia” e “Praça Onze”, contida em carta enviada a Moacir Werneck de Castro, em 19 fev. 1942: “Os sambas trazem para Mário de Andrade aquele aspecto artístico do inesperado, aquela comoção que põe de pé o ouvinte, pela riqueza de vida pulsante, cotidiana, simples, irônica e dramática.” ↩ 4.
“O artista brasileiro, dublê de intelectual, deve ser ator e não mais espectador, ensina Mário. Por isso, a vida é mais importante do que a literatura; o trato do corpo é tão importante quanto o trato da cabeça. Caminhar a pé e escutar uma tocata de Bach, o gozo do corpo e o gozo do livro – essas atividades não se excluem, elas se complementam.” SANTIAGO. Atração do mundo, p. 28. ↩ 5.
Cf. SANTIAGO. Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões, p. 20-22. ↩ 6.
SANTIAGO. Caíram as fichas, p. 192. ↩ 7.
SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-americano. ↩ 8.
SANTIAGO. Literatura é paradoxo, p. 4. ↩
9.
SANTIAGO. Borges, p. 43. ↩ 10.
“A questão é a seguinte: de que maneira a estética do romance modernista gera hoje, para o jovem escritor brasileiro, armadilhas artísticas e ideológicas de que ele deve se liberar, para que corte de uma vez por todas o cordão umbilical que ainda o prenderia a esses ‘mestres do passado’, para usar a gloriosa expressão de Mário de Andrade em contexto passado e semelhante. Pensamos assim porque o projeto básico do Modernismo – que era o da atualização da nossa arte através de uma escrita de vanguarda e o da modernização da nossa sociedade através de um governo revolucionário e autoritário – já foi executado, ainda que discordemos da maneira como a modernização foi implantada entre nós.” SANTIAGO. Fechado para balanço, p.76. ↩ 11.
SANTIAGO. Fechado para balanço, p. 88. ↩ 12.
“Ao fazê-lo, configura questões que nortearão, ao longo das décadas de 80 e 90, as discussões sobre o pós-modernismo, em que a compreensão da pluralidade e da desierarquização vai implicar, além da relativização dos valores estéticos modernos, a reativação de uma visada antropológica, igualmente atenta à função estética e política de diferentes níveis de manifestação cultural. As instigantes polêmicas provocadas por essa orientação apontam, entre outras motivações, para a polarização entre duas formas de definição de nosso pensamento acadêmico a partir da metade do século 20, que repõem em termos específicos uma tradicional luta pela hegemonia cultural no interior do eixo Rio-São Paulo.” PEDROSA. Crítica e grouxismo, p. 238. ↩ 13.
SANTIAGO. Atração do mundo, p. 38-39. ↩ 14.
Cf. SANTIAGO. Intérpretes do Brasil. ↩ 15.
“Só de posse destes e de outros dados sobre a atuação política dos modernistas é que se poderá ter uma visão menos adocicada, menos unilateral, ou menos maniqueísta daquele movimento artístico e dos seus participantes, podendo o espírito crítico de hoje problematizar situações, aliando à segurança da leitura rigorosa do texto o pleno
conhecimento de dados empíricos.” SANTIAGO. O teorema de Walnice e sua recíproca, p. 83. ↩ 16.
ANDRADE. Sol da meia-noite, p. 63 apud SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latinoamericano, p. 18. ↩ 17.
SANTIAGO. Oswald de Andrade ou: elogio da tolerância étnica, p. 77. ↩ 18.
SANTIAGO. Atração do mundo, p. 27. ↩ 19.
SANTIAGO. Apesar de dependente, universal. Cf. ainda meus artigos: “Estéticas da ruptura” e “O discurso crítico brasileiro”, contidos em SOUZA. Crítica cult. ↩ 20.
MORICONI. Conflito e integração. A pedagogia e a pedagogia do poema em Antonio Candido – notas de trabalho, p. 267. ↩ 21.
“O Oswald de Andrade, que eu costumo citar com alguma frequência, é o ópio: ‘a massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico’; em outras palavras, acredito mais na educação do que no saber da massa. Quer dizer, esse saber da massa não pode ser trabalhado pela cultura, ele não pode consumir a cultura que eu fabrico, porém, se houver educação, se esse pessoal for preparado, eles vão consumir. (…) É, deslocam o Mário porque ele inegavelmente tem mais abertura para o saber popular. E Oswald de Andrade não tem essa abertura; ele tem abertura para uma estetização do popular, mas não para o saber popular.” SANTIAGO. Um intelectual entre a vanguarda e o consumo, p. 213-214. ↩ 22.
SANTIAGO. Crescendo durante a guerra numa província ultramarinha. ↩ 23.
Mais próximo da proposta de cinema de David Lynch, O falso mentiroso descarta qualquer tentativa de definição do sentido de autobiografia, autoficção, ao jogar com a mentira como ponto de partida do ficcional. O romance, pelo tom picaresco das aventuras e a natureza grotesca das situações, remete para as Memórias sentimentais de
João Miramar. Distancia-se, contudo, da estrutura fragmentada da poética oswaldiana. SANTIAGO. O falso mentiroso. ↩ 24.
SANTIAGO. O dentro do dentro do dentro. ↩ 25.
Cf. artigos de SCHWARZ. Cultura e política: 1964-1969; Nacional por subtração. Cf. também os artigos de CUNHA. Leituras de dependência cultural; SOUZA. Estéticas da ruptura; O discurso crítico brasileiro. ↩ 26.
SANTIAGO. Em liberdade. Uma ficção de Silviano Santiago. ↩ 27.
MIRANDA. Corpos escritos, p.118. ↩ 28.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 30. ↩ 29.
Cf. BORGES. Georges Bataille: imagens do êxtase. ↩ 30.
KOSALKA. Georges Bataille and the notion of gift. ↩ 31.
SANTIAGO. Atração do mundo, p. 28; SANTIAGO. Apresentação, p. 15. ↩ 32.
SANTIAGO. Stella Manhatan, p. 68-71. ↩ 33.
SANTIAGO. Viagem ao México, p. 212. ↩ 34.
Em várias de suas cartas endereçadas aos amigos, Mário de Andrade expõe sua teoria sobre criação poética, associando-a ao orgasmo e ao prazer. Para Fernando Sabino, assim se expressa: “Não: a arte não é um sofrimento, exatamente, nem é só o sofrimento que a pode legitimamente proporcionar. O momento da criação é um prazer sublime, e
estou completamente em desacordo com os que o consideram um parto. Nem posso compreender mesmo essa assimilação da criação artística com o parto. Deriva certamente da semelhança objetiva, entre o filho e a obra de arte. O momento de criação é gostosíssimo, verdadeiramente aquela sublimidade de integração e de dadivosidade do ser, em que a gente fica na ejaculação sexual.” ANDRADE. Cartas a um jovem escritor: de Mário de Andrade a Fernando Sabino. Carta de 16 fev. 1942. ↩ 35.
Em 1973, a formulação do conceito de escrita como prazer será sistematizada por Roland Barthes, no livro O prazer do texto, o que provocou muita polêmica por parte da crítica literária da época. Ao considerar a literatura como mediadora da dimensão hedonística entre o escritor e o leitor, em que o prazer atua como força criadora e catártica, Barthes reúne os princípios nietzschianos à psicanálise lacaniana, recuperando a relação entre o trabalho literário, o ócio e a alegria. ↩ 36.
SANTIAGO. Entrevista: Viagem ao México. Concedida por Silviano Santiago à revista Imagem. ↩ 37.
SANTIAGO. Conversei ontem à tardinha com o nosso querido Carlos, p. 170. ↩ 38.
SANTIAGO. Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões. ↩ 39.
SANTIAGO. O tempo não para. ↩ 40.
SANTIAGO. O narrador pós-moderno, p. 46-47. ↩ 41.
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 156. ↩
Carmen Miranda do kitsch ao cult 1.
ALVES (Interp.). Não tem tradução. Faixa 10. ↩
2.
ANJOS DO INFERNO (Interp.). Brasil pandeiro. Faixa 18. ↩ 3.
PANDEIRO, Jackson do (Interp.). Chiclete com banana. Faixa 1. ↩ 4.
ANJOS DO INFERNO (Interp.). Brasil pandeiro. Faixa 18. ↩ 5.
PANDEIRO, Jackson do (Interp.). Chiclete com banana. Faixa 1. ↩ 6.
TOTA. O imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra, p.118. As informações sobre Carmen Miranda a serem utilizadas neste texto foram extraídas desse livro, além de outros que serão devidamente mencionados. ↩ 7.
RICHARD. Experiência e representação – o feminismo. O latino-americano, p. 142-155. ↩ 8.
TOTA. O imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra, p. 40. ↩ 9.
Cf. MENDONÇA. Carmen Miranda foi a Washington, p. 18. ↩ 10.
MIRANDA (Interp.). O que é que a baiana tem? Faixa 20. ↩ 11.
MIRANDA (Interp.). O que é que a baiana tem? Faixa 20. ↩ 12.
MENDONÇA. Carmen Miranda foi a Washington. ↩ 13.
MIRANDA. Diz que tem… .Faixa 10. ↩ 14.
Cf. análise de Arnaldo Jabor do filme Banana is my business, na Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. 8. Foi reproduzida, em parte, no artigo “O tic-tac do meu coração”, neste livro. ↩ 15.
MIRANDA. Disseram que voltei americanizada. Faixa 20. ↩ 16.
MIRANDA. Recenseamento. Faixa 2. ↩ 17.
Importante assinalar a relação que Carmen Miranda terá com o fenômeno camp, termo utilizado por Susan Sontag no célebre artigo “Notas sobre camp”. Estudos sobre a artista, nos Estados Unidos e na Argentina, desenvolveram, de forma exaustiva, a caracterização de Carmen como típica do espírito de extravagância e artificialidade, a expressão de uma estética e de um comportamento queer. Entre os ensaios, destacamse: GARAMUÑO. Modernidades primitivas; SANTOS. Kitsch tropical - los medios en la literatura y el arte en America Latina. ↩ 18.
VELOSO. Verdade tropical, p. 267-268. ↩ 19.
“O fato de ela ter se tornado, com o sucesso em Hollywood, uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um pouco de vergonha, fazia da mera menção de seu nome uma bomba de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o lançar-se tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto da Hollywood onde Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen levava ao extremo) – aceitação que se dava por termos descoberto que tanto a mass culture quanto esse estereótipo eram (ou podiam ser) reveladores de verdades mais abrangentes sobre cultura e sobre Brasil do que aquelas a que estivéramos até então limitados.” VELOSO. Verdade tropical, p. 268. ↩ 20.
SANTIAGO. Folha de S.Paulo. Caderno Mais, p. 7. ↩
O Tic-Tac do meu coração 1.
MARTINS. Carmen ficará no Brasil para sempre. ↩ 2.
ÚLTIMA HORA, 13 ago. 1955. ↩ 3.
Manchetes dos periódicos nacionais por ocasião da morte da artista. ↩ 4.
CONRADO. Nunca houve uma mulher como Carmen, p. 157. ↩ 5.
GERASSI-NAVARRO. Las tres Evas: de la historia al mito en cinemascope, p. 69. ↩ 6.
CARLOS MAGNO. Carmen Miranda, p. 106. ↩ 7.
HEINICH. Être écrivain. Création et identité, p. 240. ↩ 8.
LESSA. Adeus, Carmen!, p. 130. ↩ 9.
COELHO. A experiência da fama. Individualismo e comunicação de massa, p. 29. ↩ 10.
MIRANDA. Diz que tem… . Faixa10. ↩ 11.
MARTINS. Carmen ficará no Brasil para sempre. ↩ 12.
JABOR. Carmen foi do getulismo ao capitalismo, p. 8. ↩ 13.
LOPES. Revista Margens/Márgenes.
↩ 14.
LOPES. Revista Margens/Márgenes, p. 43. ↩ 15.
GAUTIER. Revista Margens/Márgenes, p. 15. Citando o canadense Murray Schaeffer, Gautier afirma que a separação dos sons de seus lugares de origem e sua maior transportabilidade permitem criar o termo “esquizofonia” para explicar esse processo. ↩
Pan-Américas de Áfricas utópicas 1.
CABRERA INFANTE. Tres tristes tigres. ↩
O samba da minha terra 1.
VIANNA. O mistério do samba, p. 154. ↩ 2.
WISNIK. A gaia ciência – literatura e música popular no Brasil. ↩ 3.
VIANNA. O mistério do samba, p. 111. ↩ 4.
KHEL. Da lama ao caos: a invasão da privacidade na música do grupo Nação Zumbi. ↩ 5.
KHEL. Da lama ao caos: a invasão da privacidade na música do grupo Nação Zumbi, p. 149. ↩ 6.
Hollanda apud BARROS E SILVA. Chico Buarque, p. 15. ↩ 7.
BARROS E SILVA. Chico Buarque, p. 15. ↩
Espelho de tinta 1.
CARVALHO. O filho da mãe. ↩ 2.
CARVALHO. O filho da mãe, p. 38. ↩