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Portuguese Pages 232 Year 1998
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~1 EscRlT ~: COLEÇÃO MÚLTIPLAS
ESCRITAS
Organizadores
Guglielmo Cavallo e Roger Chartier
HISTÓRIA DA LEITURA NO MUNDO OCIDENTAL
1 Tradução Fulvia M. L. Moretto (italiano) Guacira Marcondes Machado (francês) José Antônio de Macedo Soares (inglês) Revisão técnica Maria Thereza Fraga Rocco
Editor Miriam Goldfeder Editor-assistente Claudemir D. de Andrade Revisão Fá 'ma de Carvalho M. de Souza (coord.) Isaías Zilli Márcia da Cruz Leme
Impresso nas oficinas da Gráfica Palas Athena
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© Edi tori Laterza e Edi tions du Seuil, 1997. Título original: Histoire da ta lecture dans te monde occidental
ISBN 8508071876
1998 Todos os direitos reservados pela Editora Ática Rua Barão de Iguape, 110 - CEP 01507-900 Caixa Postal 2937 - CEP 01065-970 São Paulo - SP Tel.: (011) 278-9322 - Fax: (011) 277-4146 Internet: http://www.atica.com.br e-mail: [email protected]
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SUMÁRIO Introdução,
Guglielmo Cavallo e Roger Chartier
O mundo grego e helenístico: a diversidade das práticas
5
9
A leitura em Roma: novos textos e novos livros
16
A Idade Média: da escrita monástica à leitura escolástica
19
A Idade Moderna: uma geografia contrastada da leitura
24
Revoluções
26
Tipologia
32
A leitura entre coerções e invenção
36
1. A Grécia arcaica e clássica: A invenção da leitura silenciosa,Jesper
Svenbro
41
Vocabulário do "ler" grego
42
A tripla lição dos verbos que significam "ler"
48
O "eu" e a voz
50
A leitura silenciosa
54
O modelo do teatro
57
A "cena" da escrita e a escrita na alma
62
Em Atenas: a representação do alfabeto
64
2. Entre volumen e codex: A leitura no mundo romano, Guglielmo Cavallo
71
O nascimento de um público de leitores
72
As modalidades de leitura
78
Os novos leitores
83
Vo/umen e codex: da leitura recreativa à leitura normativa
91
3. Ler, escrever, interpretar
o texto:
Práticas monásticas na Alta Idade Média, Malcolm Parkes
103
Ler para a salvação da alma
104
Da leitura oral à leitura silenciosa
104
A escrita como linguagem visível
106
Novas técnicas de apresentação do texto
109
Interpretação do texto e exegese cristã
112
O desenvolvimento da pontuação
114
A escrita em língua vulgar
115
4. O modelo escolástico da leitura,Jacquelíne Hamesse
123
A referência às auctoritates
124 127
Os instrumentos do trabalho intelectual
129
Florilégios e resumos: as razões do sucesso
132
O papel das ordens religiosas
136
Compilações humanistas
137
O desaparecimento do modelo escolásrico
139
Da ruminatia à lectura
5. A leitura nos séculos finais da Idade Média, Paul Saenger Separação das palavras e leitura silenciosa
147 147
O autor e seu texto: do ditado à composição manuscrita
151
A leitura do copista
154
Do autor ao lei ror
155
Ler na universidade
159
Os textos em vernáculo: livros, escritos, leitores
163
Leitura silenciosa: subversão, erotismo, devoção
169
6. A leitura nas comunidades judaicas da Europa Ocidental na Idade Média, Robert Bonfíl
185
Livro e leitura no espaço sagrado
186
Livro e leitura no espaço urbano
188
Crise de autoridade e política repressiva
191
Leitura e sociedade: em direção ao livro aberto
195
O estudo como ritual religioso
197
A sinagoga como "biblioteca pública"
198
Língua sagrada, línguas vulgares
202
A leitura como ritual religioso: permanências medievais
204
A leitura individual: a organização do espaço gráfico
206
A iconografia da leitura
208
Os espaços da leitura
210
Oralidade e escrita: a exigência da mediação
211
O desdobramento dos campos de leitura
213
Bibliografia
224
INTRODUÇÃO Guglielmo Cavallo e Roger Chartier
"Antes de serem escritores, fundadores de um espaço próprio, herdeiros dos lavradores de outrora, porém, no solo da linguagem, escavadores de poços e construtores de casas, os leitores são viajantes; circulam pelas terras alheias, nômades caçando furtivamente pelos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para deles gozar. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um espaço e multiplica sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não se previne contra o desgaste do tempo (esquecemo-nos dele e de nós próprios), ela não conserva ou conserva mal o que adquiriu e cada um dos lugares por onde ela passa é repetição do paraíso perdido I." Esse texto de Michel de Certeau estabelece uma distinção fundamental entre o traço escrito, seja ele qual for, fixado, durável, conservador, e suas leituras, sempre na ordem do efêmero, da pluralidade, da invenção. Define ele assim o projeto deste livro, escrito a várias mãos e que repousa sobre duas idéias essenciais. A primeira é a de que a leitura não está inscrita no texto, sem uma distância pensável entre o sentido atribuído a este último (por seu autor, seu editor, pela crítica, pela tradição, etc. ... ) e o uso ou a interpretação que dele pode ser feita por seus leitores. A segunda reconhece que um texto apenas existe porque há um leitor para dar-lhe significação:
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GUGlIElMO
CAVAllO E ROGER CHARTIER
Quer se trate do jornal ou de Proust, o texto somente tem significação por seus leitores; com eles o texto se transforma; ordena-se segundo códigos de percepção que lhe escapam. Ele somente se torna texto em sua relação com a exterioridade do leitor, por meio de um jogo de implicações e de astúcias entre dois tipos de "espera" combinadas: aquela que organiza um espaço lisível (uma literalidade) e aquela que organiza uma abordagem necessária àfeitura da obra (uma leitura)".
A tarefa dos historiadores que contribuíram para esta obra foi, portanto, a de reconstruir, em suas diferenças e em suas singularidades, as diversas maneiras de ler que caracterizaram as sociedades ocidentais desde a Antiguidade. a sucesso de semelhante pesquisa supõe que a atenção se volte para a maneira pela qual se dá o encontro entre "o mundo do texto" e "o mundo do leitor" - para retomar as palavras de Paul Ricoeur'. Reconstruir em suas dimensões históricas um tal processo exige, em primeiro lugar, considerar que suas significações dependem das formas e das circunstâncias por meio das quais os textos são recebidos e apropriados por seus leitores (ou seus ouvintes). Estes últimos nunca são confrontados com textos abstratos, ideais, desligados de qualquer materialidade: eles manipulam objetos, ouvem palavras cujas modalidades governam a leitura (ou a escuta) e, ao fazê-lo, comandam a possível compreensão do texto. Contra uma definição puramente semântica do texto - que habitou não apenas a crítica estruturalista, em todas as suas variantes, mas também as teorias literárias mais preocupadas em reconstruir a recepção das obras -, é preciso considerar que as formas produzem sentido e que um texto se reveste de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os suportes que o propõem à leitura. Toda história das práticas de leitura é, portanto, necessariamente uma história dos objetos escritos e das palavras leitoras. É preciso observar, também, que a leitura é sempre uma prática encarnada por gestos, espaços e hábitos. Longe de uma abordagem fenomenológica que apaga as modalidades concretas da leitura, considerada como um invariante antropológico, é preciso identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores, as tradições de leitura, as maneiras de ler. trabalho supõe o reconhecimento de várias séries de contrastes. Em primeiro lugar, entre competências de leitura. A divisão, essencial, porém grosseira, entre alfabetizados e analfabetos não esgota as diferenças em relação ao escrito. Todos aqueles que podem ler os textos não os lêem da mesma forma e, em cada período, é grande a distância entre os grandes letrados e os menos hábeis dos leitores. Contrastes, igualmente, entre normas e convenções de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, usos legítimos do livro, maneiras de ler, instrumentos e processos de interpretação. Contrastes, enfim, entre as expectativas e os interesses muito diversificados que os diferentes grupos de leitores investem na prática da leitura. Dessas
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!NTRODUÇÃO
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determinações, que comandam as práticas, dependem as maneiras pelas quais os textos podem ser lidos, e lidos de formas diferentes por leitores que não partilham as mesmas técnicas intelectuais, que não mantêm uma mesma relação com o escrito, que não atribuem nem a mesma significação nem o mesmo valor a um gesto aparentemente idêntico: ler um texto. Uma história sólida das leituras e dos leitores deve, portanto, ser a da historicidade dos modos de utilização, de compreensão e de apropriação dos textos. Ela considera o "mundo do texto" um mundo de objetos, de formas, de rituais cujas convenções e disposições incitam e obrigam à construção do sentido. Considera, de outro lado, que o "mundo do leitor" é constituído por "comunidades de interpretação", segundo a expressão de Stanley Fish\ às quais pertencem os leitores (e leitoras) particulares. Cada uma dessas comunidades partilha, em sua relação com o escrito, um mesmo conjunto de competências, de usos, de códigos, de interesses. Surge daí, pois, em todo este livro, uma atenção dupla: para com as materialidades dos textos e para com as práticas de seus leitores. "New readers make new rexts, and their new meanings are a funcriorr of their new forrns."? D. F. McKenzie designou dessa maneira, com grande acuidade, o duplo conjunto de variações - variações das formas do escrito, variações da identidade dos públicos - que deve levar em conta toda a história que pretenda restituir a significação móvel e plural dos textos. Neste livro, aproveitamos tal verificação de diferentes modos: marcando os contrastes maiores que opõem, a longo prazo, as diversas maneiras de ler; caracterizando em seus desvios as práticas das diversas comunidades de leitores dentro de uma mesma sociedade; observando atentamente as transformações das formas e dos códigos que modificam, ao mesmo tempo, o estatuto e o público dos diferentes gêneros textuais. Esta perspectiva, ainda que claramente inscrita na tradição da história do livro, acaba, contudo, por dela afastar suas questões e seus procedimentos. A história do livro, de fato, teve por longo tempo como objeto a medida da desigual presença do livro nos diferentes grupos que compõem uma sociedade. Daí a construção, aliás absolutamente necessária, de indicadores aptos a revelar as distâncias culturais: assim, para um dado local e um dado momento, a posse desigual do livro, a hierarquia das bibliotecas em função do número de obras que comportam ou ainda a caracterização temática das coleções a partir do lugar que nelas ocupam as diferentes categorias bibliográficas. Nessa perspectiva, reconhecer as leituras é, antes de tudo, constituir séries, estabelecer limites, construir estatísticas. O propósito consiste, finalmente, em localizar as traduções culturais das diferenças sociais. Semelhante procedimento acumulou um saber sem o qual outras interrogações teriam sido impensáveis - e este livro impossível. Todavia, tal pro-
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GUGlIELMO
CAVALLO E ROGER CHARTIER
cedimento não é suficiente para escrever uma história das práticas de leitura. Já de início ele postula implicitamente
que os recorres culturais são necessa-
riamente organizados segundo um recorre social prévio. Relata, assim, as diferenças das práticas para as oposições sociais construídas a priori, seja numa escala de contrastes macroscópicos (entre os dominantes e os dominados, entre as elites e o povo), seja numa escala de diferenciações menores (por exemplo, entre os gtupOS sociais, hierarquizados
pelas diferenças de condição ou
de ofício ou de níveis econômicos). Ora, as diferenciações
culturais
não se ordenam obrigatoriamente
um gabarito único de recorte do social, que supostamente
por
comandaria a pre-
sença desigual dos objetos e a diversidade das práticas. A perspectiva precisa ser invertida, devendo localizar os meios ou as comunidades
que partilham
uma mesma relação com o escrito. Partir assim da circulação dos objetos e da identidade
das práticas, e não das classes ou dos grupos, leva a reconhe-
cer a multiplicidade
dos princípios de diferenciação que podem explicar as
distâncias culturais: por exemplo, as propriedades as adesões religiosas, as comunidades
de gênero ou de geração,
solidárias, as tradições educativas ou
corporacrvas. etc. Para cada uma das "comunidades de interpretação" assim identificadas, a relação com o escrito efetua-se com técnicas, gestos e maneiras de ser. A leitura não é apenas uma operação intelectual abstrata: ela é uso do corpo, inscrição dentro de um espaço, relação consigo mesma ou com os outros. Por essa razão, neste livro, foi dada uma atenção particular às maneiras de ler que desapareceram ou que, pelo menos, foram marginalizadas no mundo contemporâneo. Por exemplo, a leitura em voz alta em sua dupla função: a de comunicar o escrito àqueles que não sabem decifrá-lo e também a de consolidar formas encaixadas de sociabilidade que são outras tantas figuras do privado -
a
intimidade familiar, a convivência mundana, a conivência letrada. Uma história da leitura não deve limitar-se apenas à genealogia da maneira contemporânea de ler em silêncio e com os olhos. Ela tem também, e talvez sobretudo, como tarefa reencontrar os gestos esquecidos, os hábitos que desapareceram. O desafio é muito importante,
pois revela não só a distante estranheza de práticas
que eram comuns antigamente mas também o estatuto, primeiro e específico, de textos que foram compostos para leituras que não são mais as dos de hoje. No mundo antigo, na Idade Média, nos séculos XVI e XVII ainda, a leitura implícita mas também efetiva de numerosos textos é uma oralização, e seus "leitores" são os ouvintes de uma voz leitora. Dirigido assim tanto ao ouvido quanto aos olhos, o texto joga com formas e fórmulas aptas a submeter o escrito às exigências próprias da performance oral.
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INTRODUÇÃO
Embora possam fazê-Io, autores não escrevem livros. Os livros não são escritos por qualquer pessoa. Eles são feitos por escribas e outros artesãos, por mecânicos e outros engenheiros, e por impressoras e outras máquinas".
Contra a representação, elaborada pela própria literatura e retomada pela mais quantitativa das histórias do livro, segundo a qual o texto existe em si mesmo, separado de qualquer materialidade, devemos lembrar que não existe texto fora do suporte que permite sua leitura (ou da escuta), fora da circunstância na qual é lido (ou ouvido). Os autores não escrevem livros: não, escrevem textos que se tornam objetos escritos - manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados - manejados de diferentes formas por leitores de carne e osso cujas maneiras de ler variam de acordo com as épocas, os lugares e os ambientes. Foi este processo, esquecido com muita. freqüência, que colocamos no centro desta obra que deseja recuperar, no interior de cada uma das seqüências cronológicas escolhidas, as mutações fundamentais que transformaram as práticas de leitura e, além delas, as relações com o escrito no mundo ocidental. Daí decorre a organização ao mesmo tempo cronológica e temática em dois volumes, articulados em treze capítulos que vão da invenção da leitura silenciosa na Grécia antiga até as práticas mais recentes, ao mesmo tempo permitidas e impostas pela revolução eletrônica de nosso presente.
o MUNDO
GREGO E HELENíSTICO: A DIVERSIDADE DAS PRÁTICAS
"Cada logos, a partir do momento em que foi escrito, rola para todos os lados, tanto na direção dos que o compreendem quanto na daqueles com os quais nada tem a ver, não sabendo a quem deve ou não deve falar." Essa proposição, emprestada por PIarão a Sócrates, no Fedro, repousa em um jogo de palavras: o verbo kulindo, "rolar", remete ao livro em forma de rolo que, em seu itinerário até o leitor, "rola" metaforicamente em todas as direções, enquanto o "falar", legein, remete apenas à leitura oral, em voz alta. Continua Platão: "se o Iogas escrito for vítima de vozes dissonantes (plemmeloumenos) ou se for injustamente atacado, precisará sempre da ajuda do pai; ele, na verdade, não é capaz de repelir um ataque ou de defender-se sozinho"; frase em que o recurso ao verbo plemmeleo ("soar falso") designa, por sua vez, uma leitura na qual a interpretação vocal, ou "dissonanre" quanto à intenção do autor, pode deformar e, conseqüentemente, trair o discurso escrito. O (fecho de PIa tão suscita ainda, direta ou indiretamente, outras questões fundamentais para a história da leitura na Grécia clássica. É preciso pensar, antes de mais nada, nas relações entre os sistemas de comunicação não somente por meio da oposição oral/escrito, mas também no próprio interior
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GUGlIElMO
CAVAllO E ROGER CHARTIER
do oral que assume formas diferentes, quer se trate de um discurso simplesmente falado, quer se trate de uma reconstituição oral de um escrito feito por um indivíduo-leitor. O discurso falado - aquele que Platão considera um "discurso de verdade", útil ao processo do conhecimento - escolhe seus interlocutores, pode estudar suas reações, esclarecer suas perguntas, responder a seus ataques. O discurso escrito, pelo contrário, é como uma pintura: se lhe fazemos uma indagação, ele não responde e nada mais consegue, além de repetir-se eternamente. Difundido por um suporte material inerte, o escrito não sabe onde encontrar aquele que será capaz de cornpreendê-Io nem consegue evitar quem não tem competência para acolhê-Io; enfim, prisioneiro dessa difusão descontrolada, ignora quem lhe fornecerá o instrumento da voz, quem dela fará emergir um sentido pela mediação da leitura. Cada leitura constitui portanto uma interpretação diferente do texto, diversa para cada leitor. No entanto, apesar das reservas de Platão, o escrito goza da liberdade de "rolar" livremente em todas as direções e se presta a uma leitura livre, a uma interpretação e a um uso do texto com total liberdade. Esta novidade, o livro que veicula um logos escrito, destinado à leitura, traz outras implicações. Este é o momento em que parece diminuir a contradição (verificável na Grécia do século VI, que vai até o final do século V a.C,) entre uma escassa presença do livro e uma alfabetização mais ampla, uma capacidade para ler inscrições oficiais ou privadas, talvez até mesmo entre as camadas inferiores da sociedade urbana. Tal contradição remete à própria função da leitura nessa época, já que tanto a produção de textos escritos propostos para uma leitura pública, bem como a forma e a tipologia dessas mensagens, contribuem de maneira fundamental para o funcionamento da democracia ateniense a partir de sua instituição (508- 507 a.Cr). Se, como escreve )esper Svenbro, a escrita é "colocada a serviço da cultura oral [ ... } a fim de contribuir para a produção de som, de palavras eficazes, de glória retumbante", esta função diz respeito à composição escrita na fase de "publicação oral" da produção textual grega: diz respeito sobretudo à literatura épica e de forma mais ampla às obras em verso ou ainda às inscrições ou textos mais curtos pintados em objetos. No entanto, a leitura, e particularmente o livro, tinham ainda outra função: a da conservação do texto. A Grécia antiga teve nítida consciência de que a escrita fora "inventada" para fixar os textos e trazê-Ios assim novamente à memória, na prática, para conservá-los. Neste sentido, temos testemunhos muito seguros: exemplares de obras, poéticas ou científico-filosóficas, conservadas nos templos, ou o uso da spbregis, o "selo" do autor, destinado a garantir a autenticidade do texto, fato que somente se explica diante da necessidade de ter de conservar esse texto escrito (apesar de não se poder excluir formas de leitura pública e em voz alta, feitas talvez pelo próprio autor).
INTRODUÇÃO
,
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As últimas décadas do século V a.c. parecem delimitar as fronteiras entre o livro destinado quase somente à fixação e conservação do texto e o livro destinado à leitura". As ilustrações áticas em vasos dessa época documentam a transição de cenas que mostram livros sendo utilizados como textos escolares; portanto, textos com finalidades educativas de um certo grau, ou ainda cenas de leitura propriamente dita, em que os leitores são inicialmente figuras masculinas, mas em breve também seguidas por figuras de mulheres-leitores. Esses leitores não são solitários, em geral, aparecem em contextos representativos de entretenimento e de conversação, sinal de que a leitura era vista sobretudo como prática de vida em sociedade (ou no interior de uma associação). Embora conhecida, a leitura solitária era rara, pelo menos a julgar pelos poucos - aliás, muito poucos - testemunhos iconográficos ou literários que sobreviveram. Uma outra questão diz respeito à modalidade da leitura em voz alta, a mais difundida em toda a Antiguidade. Divulgou-se que ela repousava na necessidade de tornar compreensível ao leitor o sentido de uma scriptio continua (escrita sem o espaço entre as palavras) que seria ininteligível e inerte sem a enunciação em voz alta. Porém, há também o testemunho, já numa época muito antiga, de uma prática de leitura silenciosa" - fato que obriga a perguntar, de um lado, até que ponto as duas práticas diferem em relação à leitura de uma scriptio continua e, de outro lado, se as duas práticas não estiveram sempre presentes simultaneamente e não dependiam apenas da situação do leitor. Os primeiros testemunhos de Eurípides e de Aristófanes referentes a uma leitura silenciosa remontam ao final do século V a.c., e dizem respeito a objetos diferentes do livro (uma mensagem sobre uma tabuinha e o responso de um oráculo). Trata-se de testemunhos seguros. Porém, é preciso indagar se nessa mesma época, em algumas situações, não se praticava também uma leitura silenciosa do livro. "Quando a bordo do navio lia para mim mesmo a Andrômeda" (peça de Eurípides, representada em 413), confessa Dioniso em As rãs, de Aristófanes (v. 52-3); e ainda: "na solidão quero ler (dielthein) este livro para mim mesmo", exclama o protagonista num fragmento do Faonte, de Platão, o Cômico (fr. 173,1-5 Kock), mais ou menos contemporâneo de Aristófanes; e, em seguida, distraído pela intervenção de um locutor intrigado, a pedido deste último, começa a ler-lhe, em voz alta, o seu livro, um pequeno tratado de arte culinária. Não se pode ignorar o fato de que nestes casos a expressão "para mim mesmo" tpros emauton) remete a uma leitura não apenas individual, mas também silenciosa, feita por uma voz leitora totalmente interiorizada e, portanto, dirigida somente a si mesma. É preciso considerar aqui também uma outra dimensão da leitura: os gregos da época clássica evidentemente não desconheciam leituras de viagem e,
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GUGLlEIMO
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portanto, "de entretenimento", fora de quaisquer obrigações profissionais, ainda que Dioniso, deus intimamente ligado à dramaturgia, em seu navio se ocupe quase que exclusivamente com uma leitura ligada ao seu "ofício". Porém, a questão tem caráter mais amplo e envolve o problema da tipologia de leitores e da extensão das práticas de leitura a partir do momento em que os livros começam a difundir-se. Nos diálogos de Platão, os logoi escritos discutidos são em geral textos filosóficos, que circulavam no âmbito da Academia". E, na verdade, as primeiras coletâneas de livros, mesmo particulares, de que se tem notícia são do tipo profissional, como devem ser consideradas, por exemplo, as de Eurípides e de Aristóteles. Na mesma época, todavia, nascia também um outro modelo de coletânea particular de livros. "Queres talvez tornar-te rapsodo?", pergunta Sócrates a Eutidemo; e acrescenta: "dizem que possuis Homero completo" (Xenofonte, Memoráveis, 4,2,8-10). Eutidemo não pretende tornar-se rapsodo, mas a pergunta de Sócrates tem outras implicações importantes: o que emerge realmente desse diálogo, referido por Xenofonte, é o elo, evidente aos olhos de Sócrates, entre a posse de certos escritos (grammata) e o exercício disciplinar ou profissional, da medicina à astrologia, da arquitetura à geometria e à poesia. Mas Eutidemo, que recusa esta relação obrigatória, deseja apenas conseguir e ler o maior número possível de livros: em resumo, ele pretende adquirir uma biblioteca, não profissional. Alguns outros testemunhos parecem ir mais longe. No Erecteu, de Eurípides, os versos "caída a lança [ ...} e pendurado o escudo trácio [ ... } possa eu despregar a voz das tabuinhas de onde extraem fama os sábios" (fr. 60 Austin). somente podem referir-se a uma leitura - em voz alta - fora de toda implicação profissional (mesmo tratando-se de tabuinhas e não de rolo). O livro de arte culinária mencionado por Platão, o Cômico, indica, por outro lado, que já naquela época - estamos no início do século IV a.c. - circulavam certas obras dessa natureza. O fragmento citado do Faonte nos conduz a diferentes maneiras de ler"'. O verbo dierchomai (infinito do aoristo dielthein), usado aqui pelo comediógrafo, indica a leitura atenta, aquela que "percorre" (sentido primeiro de dierchomai) o texto em cada detalhe, em contraste - e aí reside o efeito cômico - com a banalidade do livro que o protagonista quer ler: um modesto e pequeno tratado de culinária. Os vários verbos utilizados pelos gregos para indicar o fato de "ler" exprimem nuanças de significados diferentes, pelo menos na primeira fase de sua definição semântica. Verbos como nemein e seus compostos (ananemein, epinemein) significam ler no sentido preponderante de "distribuir" o conteúdo da escrita, implicando por isso mesmo uma leitura oral; anagignoskein designa o ler como momento do "reconhecer", de "decifrar" as letras e suas seqüências em sílabas, palavras, frases: esse "decifrar" pode ser determinado pelos diversos advérbios: tacheos ("rapidamente"), bradeos
INTRODUÇÃO
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("com dificuldade"), ortos Ç'correramenre"), kata syllabem ("sílaba após sílaba"); enquanto os verbos que utilizam metáforas particulares, dierchomai e diexeimi, "percorrer", acabam por referir-se a um texto "percorrido", isto é, "atravessado do começo ao fim" com muita atenção e, portanto, em profundidade. Parece que, numa época antiga, passou-se de uma prática de leitura vista como "distribuição de texto" feita por poucos alfabetizados a raros iletrados, para uma leitura mais difundida, tida como "reconhecimento" direto das letras em um dado nível. Entre os séculos V e IV a.c., tem-se uma leitura dita de percurso e que, ao "percorrer" atentamente o texto, considera-o, examina-o, investiga-o. Um testemunho de Isócrates não deixa dúvidas quanto à distinção semântica entre anagignoskeinldiecseimi, quando o orador opõe "aqueles que lêem superficialmente" o texto a "aqueles que, pelo contrário, o percorrem todo com atenção". Nesse mesmo contexto aparece pela primeira vez, com o uso do verbo pateo, a imagem do livro "freqüentado" continuamente (literalmente "calcado"), portanto, lido e relido várias vezes. Tratar-se-ia de uma forma de leitura intensiva? De qualquer modo, tudo isso mostra que a Grécia clássica conheceu diferentes tipos de leitura, em correlação com a diversidade de competências e de funções, pelo que se deduz da articulada gama de possibilidades expressivas documentadas pela língua, ainda que em época mais tardia alguns significados verbais originariamente distintos acabassem sendo usados um pelo outro ou tivessem assumido nuanças de significados nem sempre perceptíveis. É difícil dizer se os usos novos e ampliados de cultura escrita na idade helenística - demonstrados sobre tuBo pela produção e pela freqüência de grandes quantidades de documentos - contribuíram não somente para uma instrução mais vasta e, portanto, para uma ampliação do ensino escolar, mas também para uma difusão mais vasta de práticas de leitura. Pode-se observar - porém sem enfatizar seu significado - que algum funcionário da administração deixou traços de leituras cultas, feitas por meio de Calímaco ou Posidipo, em seus documentos (mas trata-se de uma ocorrência à qual não se deve atribuir muito peso). O importante é insistir no fato de que na época helenística, mesmo que permaneçam formas de transmissão oral, o livro passa a desempenhar daí em diante um papel fundamental. Toda a literatura de época depende agora da escrita e do livro: a esses instrumentos são confiados a composição, a circulação e a conservação das obras. Aliás, a filologia alexandrina, inteiramente ocupada em atribuir, controlar novamente, transcrever, comentar os textos, transforma em livros - ainda que um livro dedicado apenas a uma literatura erudita - toda uma literatura de uma época mais antiga que não nascera para ser assim fixada". A filologia alexandrina, em suma, impõe o conceito de que uma obra só existe se for escrita; obra é um texto escrito e de que pode-
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GUGLlElMO CAVAllO E ROGER CHARTIER
mos nos apropriar graças ao livro que a conserva. A Biblioteca de Alexandria, arquétipo das grandes bibliotecas helenísticas", é biblioteca ao mesmo tempo "universal" e "racional": universal, porque é destinada à conservação dos livros de todos os tempos e de todo o mundo conhecido, e racional, porque nela os próprios livros devem obedecer a uma ordem, entrar em um sistema de classificação (podemos pensar nos Pinakes {catálogos} de Calímaco) que permita organizá-los por autor, obra e conteúdo. Porém, essa "universalidade" e "racionalidade" dependiam diretamente da fixação escrita dos textos que podiam ser avaliados criticamente, recopiados, encerrados em um livro, classificados e dispostos junto com ourros livros. É sob essa perspectiva que se chegou a definir, tanto para os textos do passado quanto para os novos, uma estruturação mais exata em vo/umina (rolos), bem como os caracteres externos do próprio vo/umen. Estabelecido o seu formato padrão, dentro de determinados extremos de oscilação quanto à altura e o comprimento, a norma é que cada rolo seja consagrado a uma obra particular - com a advertência de que a extensão desta última é estritamente correlata ao gênero literário e à estrutura da obra - ou a um único "livro" (no sentido de divisão do texto), de um trabalho composto de vários livros, com a seguinte exceção: textos ou livros muito longos, subdivididos em dois rolos ou, então, textos ou livros muito breves então reunidos num único rolo. Chegou-se também a definir uma "divisão em colunas" da escrita, sistemas de organização de títulos e uma série de dispositivos (sinais de paragraphos, coronis) dividindo os textos e cada uma das seções. Surge uma nova organização da produção literária e uma nova disciplina técnico-livreira, ambas ligadas não só à criação de grandes bibliotecas, mas também a novas práticas de leitura. As grandes bibliotecas helenísticas, todavia, não eram bibliotecas de leitura. Eram, por um lado, sinais tangíveis de "grandeza" das dinastias que estavam no poder (Ptolomeus, Atalidas), por outro, um instrumento de trabalho para um círculo de eruditos e de literatos. Ainda que estivessem tecnicamente dispostos para serem lidos, os livros eram mais acumulados do que realmente lidos. As bibliotecas helenísticas continuavam ainda obedecendo ao modelo de referência mais antigo, que era o das coletâneas de livros das escolas de filosofia e de ciências, reservadas a um número muito restrito de mestres, discípulos e alunos. Excetuando as grandes bibliotecas, cuja fama foi transmitida por documentos históricos, conhece-se muito pouco sobre outras bibliotecas públicas da época helenística. Apesar de não se ter certeza da existência das bibliotecas de ginásios construídos em espaços arquitetônicos específicos lj, deve-se de qualquer modo admitir - com base em diferentes fontes arqueológicas - que foram instituídas bibliotecas em várias cidades do mundo helenístico.
INTRODUÇÃO
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Porém, é preciso perguntar: qual era a sua função? E quem possuía realmente condições de freqüentá-Ias? Parece que a leitura era praticada preferenremente na intimidade, por aqueles que a dominavam. O repertório dos mais ou menos importantes fragmentos de rolos greco-egípcios que foram preservados, revela-se tradicional, composto em sua maioria por textos da época clássica. No período helenístico, assiste-se também ao florescer de manuais de caráter técnico, como texros de crítica filológica e literária ou tratados de uso meramente prático (tática militar, agricultura). Neste último caso, trata-se, talvez, mais de textos de referência para profissionais do que de textos dedicados a um público mais amplo. A arte estatuária e os túmulos da época mostram cada vez com maior freqüência figuras de leitores; porém, ao contrário da época clássica, estamos quase sempre diante de leituras solitárias, como se tivesse sido estabelecida desde então uma relação mais íntima e particular com o livro. Da leitura como momento de vida associativa própria da polis, passara-se à leitura como um dobrar-se sobre si mesmo, como procura interior, refletindo bem as atitudes culturais e as correntes de pensamento da civilização helenísrica. Também não faltam sinais, quanto à época precedente, de uma ampliação da leitura. Além dos círculos profissionais eruditos, o novo papel assumido pelo livro nessa época já vem marcado na composição de epigramas de dedicatória e de apresentação editorial em que o livro é objeto de alguma alocução ou, melhor, o livro "fala". A leitura em voz alta "dá alma ao livro", como também desde a época arcaica tornava "animados" outros materiais inscritos (em hastes funerárias, em objetos de uso pessoal), sinal de maior difusão do escrito. De qualquer modo, o livro entra, com sua própria personalidade, num jogo de relações com os leitores, com todos aqueles que a ele se dirigem e lhe "emprestam" voz. Mais tarde, o motivo do livro "animado" conhecerá um grande sucesso entre os autores latinos da época imperial, no momento da máxima difusão da literarura'", Nessa época, no tocante ao autor, é instituída por ele Uma relação mais estreita entre livro e leitor, o que facilita o acesso ao texto, sobretudo quando ele for complexo ou estiver articulado em vários livros: Políbio escreverá uma introdução ao livro XI de suas Histórias para "atrair a atenção dos que desejam ler, estimular e encorajar os leitores, permitir que se encontre mais facilmente o que se procura" (XI, Ia. 2). Mas, geralmente, os historiadores colocam um sumário no início de cada parte de sua obra para facilitar a leitura e sua consulta. Essa prática continuará a ser usada mais tarde sendo encontrada também em autores latinos como Ovídio, que inseria em suas obras notas remissivas para ligar diferentes publicações ou temas, ou como Plínio, que no início de sua Naturalis Historia, depois da carta dedicatória a Tito, fornece sumários a cada um dos trinta e seis livros e a indicação das respectivas fontes.
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Não é por acaso que, já seguindo os passos dos sofistas e de Aristóteles, surge na época helenística, sobretudo com Dionísio Trácio, uma verdadeira teoria da leitura, que manuais de retórica e tratados gramaticais oferecem mediante um conjunto bastante detalhado de preceitos sobre a expressividade da voz no ato de ler". Sem esta arte de ler, o escrito estará destinado a permanecer como uma série de traços incompreensíveis depositados no papiro. Cada anagnosis, "leitura", individual ou na presença de um auditório, deve ser uma hypokrisis, uma "interpretação" vocal e gestual que se esforça o mais possível para expressar gênero literário e as intenções do autor, sem o que o leitor cairia no ridículo. Essa concepção artística da leitura derivava, de fato, da arte oratória, por sua vez ligada à práxis teatral. Nasce daqui a procura, por parte dos antigos, de uma metodologia hermenêutica capaz de decifrar os indícios oferecidos pelo próprio texto, observá-ias, com o objetivo de conseguir uma leitura correta.
A LEITURAEM ROMA: NOVOS TEXTOS E NOVOS LIVROS Não há a menor dúvida de que Roma herdou do mundo grego a estrutura física do vo/umen e certas práticas de leitura, pelo menos a partir da época dos cipiões, sobretudo no começo do século II a.C, Antes dessa época, os usos da culrura escrita no mundo romano limitavam-se substancialmente à casta sacerdotal e à nobreza, sendo portanto difícil acreditar que houvesse outros livros além dos anais compilados pelos pontífices, os commentari augurum, isto é, os livros de interpretação de presságios e os libri Sybillini (coletânea de oráculos), juntamente com outros poucos /ibri reconditi, conservados em locais secretos. Entre as famílias nobres, mais do que livros o que havia eram documentos de arquivos, relatos de funções exercidas junto às que dizem respeito às magistraruras e elogios fúnebres. Portanto, não se pode pensar que a prática da leitura fosse além dessas inscrições e desses documentos. A partir dos séculos III-II a.C, o uso do livro se expande e tal expansão se inscreve nas mudanças por que passa a sociedade romana. Porém, trata-se sobretudo de livros gregos, como é o caso dos livros usados pelos comediógrafos para extrair inspiração e efeitos cômicos, portanto, livros de uso profissional. O próprio nascimento de uma literatura latina está ligado, nessa época, a esses modelos e a livros gregos. Em princípio, a leitura mostra-se uma prática exclusiva das classes elevadas e se faz de maneira privada. Nos séculos II e I a.C., livros gregos chegam a Roma como despojos de guerra: em 168, Emílio Paulo traz livros da Macedônia; em 86, Siia os traz de Atenas; em 71-70, Luculo traz os seus após a vitória obtida sobre Mitridates. Tais livros, guardados nas residências dos que os conquistaram, transformam-se em bibliotecas particulares em torno
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das quais reúne-se a restrita sociedade culta; Políbio evoca os anos de sua amizade com Cipião Emiliano e Emílio Paulo, ligando-os a empréstimos de livros e a conversas provocadas por tais empréstimos; mais tarde, Cícero nutre-se na biblioteca de Fausto Sila, filho do ditador e Catão, o Uticense, mergulha na leitura dos estóicos na biblioteca que o jovem Luculo herdou do pai. As bibliotecas dos romanos ricos, como as do mundo helenístico, são ligadas a um jardim e a pórticos; mas esse espaço inicialmente exclusivo e reservado aos livros vai-se transformando em "um espaço para viver". A época imperial marca uma nova etapa nas práticas de leitura, devida, antes de tudo, ao progresso da alfabetização. O mundo doravante greco-romano - mesmo com diferenças entre as épocas, entre centro e províncias, entre uma região e outra e, dentro de uma mesma região, entre a cidade e o campo e entre uma cidade e outra - torna-se um mundo de vasta circulação de cultura escrita. Ao lado de inscrições de todos os tipos - das epígrafes oficiais aos grafites - circula uma multidão de produtos escritos: cartazes erguidos nos cortejos e que se referem a ex-voto ou a campanhas de guerra vitoriosas, libelos e prospectos em verso ou em prosa distribuídos em lugares públicos com finalidades polêmicas e difamatórias, fichas com legendas, tecidos escritos, calendários, documentos com reclamações, cartas, mensagens; e é preciso levar ainda em consideração a documentação, civil e militar, e a ligada à prática jurídica. Trata-se de uma imensa produção escrita, ainda mesmo que as fontes de que dispomos, diretas ou indiretas, só atestem uma pequena parte da mesma. Nesse cenário em que muitas pessoas sabem ler e no qual circulam numerosos produtos escritos, manifesta-se uma crescente demanda de livros que encontra uma resposta em três planos: na criação de bibliotecas públicas e incremento das particulares, complementadas pelo florescimento de tratados que visam a guiar o leitor na escolha e na aquisição de livros; na oferta de textos novos (ou refeitos) destinados a novas faixas de leitores; na produção e distribuição de um tipo diferente de livro, o codex, mais adequado às necessidades desses novos leitores e das diferentes práticas de leitura. As notícias sobre a função das bibliotecas públicas como espaços de leitura em Roma são poucas. Com certeza não eram bibliotecas como as helenísticas, reservadas a pequenos círculos, mas deve-se pensar, preferencialmente, em "bibliotecas eruditas", no sentido de serem abertas a qualquer pessoa que as quisesse freqüentar. Porém, na realidade, eram freqüentadas por um público de leitores de classe média alta, a mesma, ou quase, que muitas vezes já dispunha de bibliotecas particulares. Da mesma forma, sua multiplicação não pode ser atribuída diretamente a um crescimento das necessidades de leitura. Quando o aumento das bibliotecas era decidido pelo imperador, tratava antes da construção de monumentos de celebração com a
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finalidade de conservar as memórias históricas (desempenhando também as funções de arquivos) e de selecionar e codificar o patrimônio literário. Também a benemerência privada ergueu bibliotecas públicas para serem locais de entretenimento culto da vida urbana. A seleção realizada pelas bibliotecas públicas podia, às vezes, configurarse como verdadeira censura dos textos que desagradavam ao poder. Foi este o caso de um autor como Ovídio. Mas, por outro lado, a circulação entre os contemporâneos e a transmissão dos textos ovidianos demonstram como aquelas bibliotecas estavam longe de orientar ou de condicionar as escolhas dos leitores, que particularmente podiam continuar a adquirir, mandar transcrever, ler ou mandar ler obras excluídas da conservação pública (ou, de qualquer modo, censuradas), provocando a multiplicação das cópias e, portanto, a possibilidade de uma sobrevivência ulterior também dessas obras". O desenvolvimento das bibliotecas particulares correspondem, sem a menor dúvida, a uma expansão das necessidades de leitura; e mesmo nos casos em que essas bibliotecas foram fátua ostentação de poder econômico de uma cultura de fachada (pode-se pensar como exemplo nas coleções de livros de um novo rico pouco instruído como o Trirnalquião de Perrônio ou no ignorante que acumula livros ridicularizado por Luciano), elas indicam que, no mundo das representações da sociedade greco-romana da época, livros e leituras tinham seu lugar na abastança e nos comportamentos de uma vida opulenta. Até Trimalquião abria algum livro e lia algumas frases dele; e o ignorante, ridicularizado por Luciano, tinha sempre um livro na mão, era capaz de ler com grande habilidade, mesmo não entendendo grande parte dos livros que lia. Tratados da época imperial que se perderam mas dos quais temos notícia - como, entre outros, Conhecer os livros, de Télefo de Pérgamo, ou Sobre a escolha e a aquisição de livros, de Erênio Filão, ou então O bibliófilo, de Darnófilo de Bitinia - tinham evidentemente a finalidade de orientar o leitor na escolha dos livros e na reunião de alguma coleção. Isso nos faz pensar que havia ou uma evolução tão vasta e diversificada em relação ao passado a ponto de poder até desorientar os leitores, ou então que o público não era mais somente de elite, revelando-se muitas vezes pouco sagaz ou indeciso em suas escolhas. Uma outra resposta à maior necessidade de leitura foi o aparecimento de novos textos. Foi uma operação complexa. E foi mais uma vez Ovídio que forneceu seu testemunho: com a sensibilidade de um autor extremamente atento às variações, às exigências, aos humores do uso público, o poeta, após a publicação original de seu primeiro e segundo livro da Arte de amar, escreve um terceiro livro destinado somente às mulheres. Estas, na época imperial, começaram a emancipar-se e pelo menos algumas entraram no mundo da palavra escrita, podendo ler o livreto que Ovídio a elas escreveu. A irna-
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da leitora já podia ser encontrada ocasionalmente na Grécia antiga, mas
t na Roma imperial que a figura da leitora se impõe. É o próprio Ovídio que &Ia também dos livros de conteúdo fútil que ensinavam jogos de sociedade
e boas maneiras. E se livros desse tipo circulavam entre indivíduos instruídos e até bastante cultos, havia, além disso, escritos destinados a um público mais vasto e indiferenciado, às vezes também de instrução um tanto escassa. Trata-se de textos criados (ou adaptados) para novas camadas de leitores, intelectualmente menos preparados. A uma mais larga demanda de leitura responde finalmente o codex, o livro já com páginas que irá substituir o rolo a partir do século II d.e., tornando-se a forma preferida pelos escritos cristãos e, conseqüentemente, pelos seus leitores. Essa maior demanda de leitura provocará, de fato, desde o começo do século IIl, uma separação entre a exigência de textos novos - entre os quais os do cristianismo que avançava - e os mecanismos de produção e distribuição de livros próprios da cultura tradicional, a do rolo. Este último permanecia ligado a um tipo de mão-de-obra servil, a técnicas artes anais bastante caras e a um material para a escrita, o papiro, importado do Egito. O sucesso do codex - o livro "com páginas" - era assegurado por diversos fatores: antes de tudo um custo menor, visto que a escrita ocupava os dois lados do suporte; fora do Egito, usava-se normalmente o pergaminho, produto animal que podia ser preparado em toda parte; a forma mais prática prestava-se melhor a uma manufatura não profissional, a uma distribuição por novos canais, a uma leitura mais livre em seus movimentos, e convinha mais aos textos de referência e àqueles que exigiam concentração intelectual (textos cristãos e jurídicos) que pouco a pouco iam prevalecendo nos últimos séculos do Império. Transformações do livro e transformações das práticas de leitura somente podiam avançar juntas.
A IDADE MÉDIA: DA ESCRITA MONÁSTICA
À LEITURAESCOLÁSTICA
O codex coloca-se como instrumento mediador entre a leitura na Antiguidade e as maneiras de ler na Idade Média. No entanto é preciso registrar que a divisão entre velhas e novas práticas, à exceção da tipologia dos livros que permanece comum, foi bem mais forte no Ocidente latino do que no Oriente grego. Um fato deve ser indicado em primeiro lugar: o papel central que o livro ocupa no mundo bizantino. "Diga-me, por favor, como e quando será o fim deste mundo?", pergunta Epifânio a Santo André, o Louco, seu mestre, e continua: "Com que sinais virá a demonstração de que os tempos acabaram e como desaparecerá nossa cidade, a nova Jerusalém? Que acontecerá com ... os livros?" (P G. 111,854a). Esse texto mostra, talvez mais do que qualquer outro, o livro como objeto de excelência e instrumento da própria civili-
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zação bizantina. Em Bizâncio, continuou vivo, durante roda a Idade Média, um ensino público e privado elementar e superior, e a alfabetização, fortalecida pela continuidade de uma burocracia central e periférica, era uma exigência da sociedade leiga, ainda que os ingressanres nas instituições religiosas geralmente já soubessem ler e escrever antes de lá entrarem. Bizâncio sempre conviveu com os círculos de leitura e bibliotecas particulares; lá, o livro continuou sendo uma mercadoria, produzida por copisras-arresãos (às vezes, até mesmo monges), ou por copistas amadores; pelo menos para uso litúrgico, o rolo era ainda largamente usado, mesmo se com uma diferente disposição da escrita em relação à tipologia antiga. Fenômeno significativo: em Bizâncio, o modelo da leitura continuava sendo aquele formulado havia muitos séculos por Dionísio Trácio, retomado nos comentários bizantinos ao gramático que prescrevia ao leitor - para qualquer livro - concentrar a atenção no título, no autor, na intenção, na unidade, na estrutura, no efeito da obra, o que exigia, portanto, uma leitura ordenada, uma meditação profunda do rexto". Também em Bizâncio foi manrida a antiga prática que já fora greco-romana, da leitura em voz alta, oposta à leitura murmurada ou silenciosa do Ocidente latino medieval: leitura em voz alta que aproximava o discurso escrito do discurso falado, discurso do sermão, discurso proclamado. A antiga e nunca abandonada herança de uma língua culta e de estruturas retóricas já ultrapassadas - e que foi chamada de "arqueologia cultural" de Bizâncio" - constitui-se apenas uma explicação parcial deste tradicionalismo das práticas de leitura. Capítulo que precisa ainda ser escrito, a história da leitura em Bizâncio é a nova fronteira a ser franqueada pelos historiadores da cultura escrita. Ao contrário, no Ocidente latino a fratura foi profunda. A leitura do ócio literário que no mundo antigo se realizava geralmente entre jardins e arcadas e que previa também praças e ruas urbanas como espaços de escritas expostas e de ensejos de leitura na alta Idade Média ocidental, foi substituída pela prática de leitura concentrada no interior das igrejas, das celas, dos refeitórios, dos claustros, das escolas religiosas, algumas vezes das cortes: leituras, aliás, geralmente limitadas às Sagradas Escrituras e a textos de edificação espiritual. Somente no interior dos espaços eclesiásticos e nos monastérios florescem poemas que celebram a glória dos livros, leituras, bibliotecas; aliás, uma reflexão sobre esses poemas muito poderia contribuir para delinear quais foram, na Alta Idade Média, as formas de representação da leitura. E é sempre no interior desses espaços que são encerradas as pedras funerárias com seus escritos reservados a um número bastante restrito de leitores, ainda que a fórmula utilizada em grande parte dessas inscrições tu que lês ... " perpetuasse sem solução de continuidade uma tradição antiga, codificada, como "apelo ao leitor", apelo mais próprio de um mundo desaparecido no qual muitos sabiam ler. "ó
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Outra grande transformação que se realizou na Europa da Alta Idade Média foi a passagem da leitura em voz alta para a leitura silenciosa ou murmurada. Para isso contribuíram vários fatores: os livros eram lidos sobretudo para conhecer Deus e para a salvação da alma, de forma que deviam ser compreendidos, repensados, até mesmo memorizados; o próprio codex, com suas páginas que seccionavam o texto, facilitando suas releituras e confrontos, convidava a uma leitura meditada; a vida comunitária dos círculos religiosos em que muitas vezes se realizava o ato de leitura obrigava a falar em voz baixa. O significado e a função do livro se haviam transformado. Liam-se poucos textos ainda que se escrevesse muito, visto que a fadiga da transcrição era em si mesma uma prece "conduzida não com a boca mas com as mãos" (Pedro, o Venerável, Epíst., I, 20). O livro nem sempre destinado à leitura revela-se, além de trabalho piedoso e instrumento de salvação, como bem patrimonial e em suas formas mais elevadas, preciosas, monumentais, torna-se sinal do sagrado e do mistério do sagrado. Eram raros os indivíduos de alta cultura que - como Raterio, bispo de Verona - mantinham "sempre o nariz num livro" (Qualitatis coniectura, 2); e, pelo contrário, eram muito poucos geralmente os livros lidos e estes últimos somente o eram em certas ocasiões ou períodos (na Quaresma, no ambiente monástico). A falta de exercício impedia uma divisão rápida e segura de palavras e frases como a que se exigia de uma leirura sonora. Tudo isso impunha uma leitura silenciosa ou no máximo murmurada, quase como um zumbido de abelhas. A conseqüência direta de tal prática consistirá na separação das palavras adequadas a uma leitura que não mais respondia a um ritmo retórica da frase, no uso de convenções gráficas, litterae notabiliores, que guiavam os olhos entre as partes do texto - uma prática diferente da ponruação e, dos modos de indicá-Ia que, não mais servindo a uma leitura retórica, facilitavam agora ou a compreensão geral ou uma determinada compreensão do escrito. Malcolm Parkes explica esse processo. Porém, assim como houve no mundo antigo alguns episódios de leitura silenciosa, não faltam na Idade Média testemunhos da leitura em voz alta: leitura de textos litúrgicos ou de edificação era praticada na igreja, nos refeitórios comunitários, e talvez até mesmo em práticas escolares, como forma individual de exercício monástico. A leitura pública em voz alta parece ter acontecido até mesmo em algumas narrações históricas. Mesmo que uma ou outra modalidade de leitura tenham sido norma, cada uma em sua época, é preciso de qualquer modo excluir qualquer dicotomia rígida. Além disso, foram sempre praticadas formas intermediárias de leitura sussurrada ou murmurada: basta pensar no lepido susurro ("em um doce murmúrio") com que Apuleio, no início da obra, convida o leitor a ler suas Metamorfoses, ou na rttminatio do monge que lia mastigando as palavras em voz baixa.
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Do final do século XI até o século XIV, tem-se uma nova era da história da leitura. Renascem as cidades e com as cidades as escolas que são os lugares do livro. A alfabetização se desenvolve, a escrita progride em todos os níveis, os usos do livro se diversificam. Práticas de escrita e práticas de leitura, de algum modo separadas na Alta Idade Média, aproximam-se, tornam-se função uma da outra, formando um nexo orgânico e inseparável. Lê-se para escrever, para a compilatio, que é o método peculiar da composição das obras da escolástica. E escreve-se para leitores. Lê-se muito e de forma diferente. Não mais se trata de simplesmente compreender a letra da escrita (littera): essa compreensão constitui apenas o momento inicial, do qual é preciso passar ao significado (sensus) do texto para atingir enfim a sentença (sententia), entendida como doutrina em toda a sua profundidade". Livros e leituras devem ser submetidos à ratio, a interlocutora do De librorum copia, de Petrarca, que reprova a mania de acumular inutilmente volumes e mais volumes e que traça as linhas de uma teoria (mas também de uma história) da leitura como prática destinada a "encerrar" os livros "no cérebro" e não "numa estante":". São esses os fundamentos da leitura escolástica universitária, o modelo de leitura que impregna profundamente o escrito, esclarece o comentário e difunde sua autoridade. Feitos para a leitura, o estudo, o comentário, o sermão, o livro, ou melhor, a página escrita, acaba assumindo uma tipologia funcional para essas práticas. Recorre-se às abreviações para tornar a leitura mais rápida; o espaço da página é dividido em duas colunas um pouco estreitas, de forma que cada linha possa entrar num campo visual único, sendo portanto mais fácil de perceber; o texto é fragmentado em seqüências capazes de facilitar a compreensão. Acaba de nascer, em suma, o livro como instrumento de trabalho intelectual, conforme mostra o ensaio de Jacqueline Hamesse. O livro, daí em diante, torna-se a fonte de onde se chega ao saber ou aos saberes: não é mais o depositário de um conhecimento a ser ruminado ou a ser simplesmente conservado. Fracionada pelos complicados dispositivos da página escrita, a leitura não implica mais a totalidade do texto; é agora limitada a seções particulares. A uma leitura total, concentrada, repetitiva de poucos livros, substitui-se uma leitura de fragmentos de muitos livros, numa época - a da escolástica - marcada por uma imensa multiplicação de textos e pela demanda de saber, mesmo se fragmentário. De modestos dispositivos de subdivisão do texto e dos textos tais como são encontrados na Alta Idade Média - atribuídos, aliás, menos a sinais específicos e mais à ornamentação e ao relevo cromático de iniciais, escritas diferenciadas, decorações - passa-se a um verdadeiro sistema de técnicas auxiliares de leitura e de consulta do livro destinadas a identificar rapidamente a passagem que se procura: rubricas, sinais de parágrafos, títulos de capítu-
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Ias. separação entre texto e comentário, sumários, índice de concordâncias de índices e listas analíticas dispostas em ordem alfabética. Ao mesmo tempo, o espaço dos livros sofre outras modificações. Nasce DO século XIII, com as ordens mendicantes, o modelo de biblioteca destinada não mais ao acúmulo patrimonial e à conservação dos livros, mas à lei tua; e nasce também um sistema bibliotecário que tem como princípio um cacilogo, tido não mais como simples inventário, mas, sim, como instrumento de consulta com a finalidade de localizar um determinado livro numa biblioteca ou até mesmo em outras, da mesma área geográfica; surge ainda o memorial, uma ficha na qual são assinalados os volumes emprestados. Do ponto de vista arquitetônico, essa nova biblioteca é constiruída por uma sala comprida, com um corredor vazio no centro, sendo a sala ocupada, nas duas naves laterais, por filas paralelas de bancos, dos quais os livros, para leitura e consulta, ficam presos por meio de corrente. A planta é, em resumo, a da igreja gótica; e se trata de uma semelhança que vai muito além do fato puramente arquitecônico, visto que assume as novas exigências próprias à civilização gótica. A biblioteca sai da solidão do monastério ou do limitado espaço que lhes destinavam os bispos nas catedrais românicas, para se tornar urbana e ampla. Assim como a igreja que se tornou o cenário aberto de imagens, ogivas, cores, a biblioteca se apresenta como o cenário dos livros, expostos e disponíveis. O quadro que define esse novo modelo de biblioteca é o silêncio: silencioso deve ser o acesso ao livro, perturbado apenas pelo rilinrar das correntes que o prendesse ao banco. Silenciosa deve ser a ptocura de autores e de títulos então dispostos num catálogo bastante acessível. Silenciosa, por ser toda feita pelo olho, é a leitura desses livros, realizada individualmente ou por grupos. Paul Saenger salienta exatamente as influências que, embora não imediatas, a leitura visual, particular e subtraída a qualquer interferência exerceu nas maneiras de usar o livro, na formação de uma consciência crítica diante do texto escrito, na elaboração do pensamento, nas práticas de devoção, nos desacordos, no erotismo. Estamos no limiar do mundo moderno. E, na verdade, a difusão da alfabetização na sociedade laica, entre os séculos XIII e XIV, fez com que à leitura escolástica e universitária fossem acrescentados outros modelos. É nessa época que nasce o livro em língua vulgar, escrito, às vezes, pelo mesmo "leitor-consumidor'?'. Embora não faltem leitores cultos na cultura oficial, o livro em língua vulgar circula sobretudo entre uma "burguesia" de mercadores e artesãos com maior ou menor grau de alfabetização, mas que ignoravam o latim. Outro modelo de leitura é o da corte, próprio da alta aristocracia euroIftDlOS,
péia algumas vezes bastante culta. Entre os príncipes e os nobres os livros são quase sempre de entretenimento
e de devoção, mas sua função transcende
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simples leitura. Os livros são também ornamento, sinal de cortesia, de civilização, de vida refinada; são ainda enfeites, sinais de riqueza e de fasto refletidos no conjunto da casa a indicar de modo ostenratório a opulência, por meio de encadernações recobertas de peles valiosas, de tecidos finos, de metais preciosos. São objetos que evocam, estabelecem,
celebram o esplendor do prínci-
pe e de sua corte. Formam-se, assim, com exemplares geralmente encomendados a livreiros experientes, com exemplares recebidos como presente ou herdados de diferentes maneiras, as bibliotecas da aristocracia, tão diferentes das religiosas quanto ao repertório, obras em língua vulgar que cantam as armas e o amor, que contam histórias mais ou menos fantásticas, que "vulgarizam" textos da grande tradição clássica. Quanto à parte latina, essas bibliotecas contêm obras religiosas, bíblias, livros de horas, breviários. No século XV, é nelas que irrompe o humanismo com seus livros de autores clássicos gregos e latinos, que vêm colocar-se ao lado dos modernos e dos livros de entretenimento e de devoção. E os ritmos do tempo livre das cortes são consumidos também nessas leituras, feitas não na própria biblioteca,
mas nas salas de es-
tar, nos espaços de lazer e de repouso da residência aristocrática.
A IDADE MODERNA: UMA GEOGRAFIA CONTRASTADA DA LEITURA Entre os séculos XVI e XIX, a geografia das práticas de leitura no mundo ocidental está ligada, em primeiro lugar, às evoluções históricas que inscrevem as relações com a cultura escrita em conjunturas de alfabetização, em escolhas religiosas, em ritmos da industrialização Essas diferenças traçam fronteiras
extremamente
diferentes.
fortes e duráveis: entre uma Europa alfa-
betizada cedo e uma Europa que o é mais tardiamente,
entre os países que
permaneceram católicos e os que foram alcançados pela Reforma, entre as áreas marcadas por um desenvolvimento precoce e as que permaneceram por muito tempo dominadas por uma economia tradicional. Tais desvios têm sua tradução nos regimes de censura, na atividade
de edição no comércio livrei-
ro, no mercado do livro. Eles se revelam também nas defasagens que caracterizam as "revoluções" da leitura: aquela que, entre a Idade Média e os inícios da Idade Moderna, faz da leitura silenciosa e com os olhos uma norma interiorizada e uma prática comum; aquela que, entre os séculos XVIII e XIX, familiariza os leitores com uma produção impressa mais numerosa, mais acessível e acolhedora em relação a novas fórmulas editoriais. Essas diferenças geográficas na história da leitura refletem-se nas fontes disponíveis. Evidentemente, encontram-se em toda parte, ou quase, várias séries documentais. Nos inventários pós-morte que permitem medir a desigual presença do livro e a composição das bibliotecas particulares. Nos catá-
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Iogas dos livreiros e nos das bibliotecas leitura. Nos regulamentos
leiloadas que delineiam
e catálogos das instituições
a oferta de
que, a partir do século
XVIII, aurorizam a leitura sem necessidade de compra: de um lado, livrarias
(circulating libraries, cabinets littéraires, Leihbibliotheken), de outro lado, sociedades de leitura (books clubs ou subscription libraries, chambres de lecture, Lesegesetlschaften). Nas listas de subscrição que indicam os protetores de empréstimo
declarados e os leitores potenciais de uma obra particular. Quanto à estrutura lidades de atingir
comum desses arquivos espessos e seriais, as possibi-
mais intimamente
a circulação dos livros ou a prática da
leitura diferem muito segundo as siruações nacionais. Na área mediterrânea e em seus prolongamentos quisidores
coloniais, os interrogatórios
realizados pelos in-
recolhem as declarações dos acusados quanto às obras que leram,
quanro à maneira pela qual elas chegaram até eles e, mais importante como as compreenderam.
ainda,
Nos países do norte da Europa e nas colônias in-
glesas da América, é em outro lugar que se devem procurar as confissões dos leitores comuns sobre suas leiruras: nas autobiografias pelos protestantismos
puritano
ou pietista,
espirituais
nas narrativas
exigidas
de vida conduzi-
das por uma trajetória pessoal que leva da ignorância dos humildes à cultura erudita,
nos livros de razão, nos jornais e nas memórias
gressos da alfabetização, letrados ou, ainda -
que, dados os pro-
não são mais apenas o apanágio dos notáveis e dos
caso mais excepcional -,
nas cartas que certos leitores
enviaram aos autores ou aos edirores. Em cada área nacional, lingüística contram-se
ou cultural,
as práticas de leitura en-
assim no centro de um processo histórico essencial. Na Itália, na
Espanha, em Porrugal,
na França também,
devem temer, ou contornar,
mas sem a Inquisição,
os leitores
as censuras da Igreja e dos Estados que procu-
ram colocar obstáculos à difusão das idéias consideradas
perigosas para a au-
toridade católica e para os soberanos absolutos. Na Alemanha,
uma nova ma-
neira de ler, caracterizada como uma Leserevolution, associa, na segunda metade do Aufklá"rttng e a constituição
do século XVIII, a difusão em profundidade de um novo espaço público. Na Inglaterra, tempo desenraíza as práticas tradicionais categorias de lei rores, como a constituição
a revolução industrial e provoca o aparecimento
nal: o peso das interdições próprias do Iluminismo
encarar de for-
da história e da identidade
impostas pela Contra-Reforma alemão, a construção
entre os sexos) nas sociedades protestantes
de novas
de um novo mercado do material
impresso. A cada vez, a história das maneiras de ler permite ma nova e original um traço constitutivo
ao mesmo
nacio-
católica, as formas
das relações entre as classes (e
da Inglaterra
e da América.
nem -
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REVOLUÇÕES A primeira transformação que afeta as práticas de leitura na época moderna é técnica: ela revoluciona, na metade do século XV, os modos de reprodução dos textos e de produção do livro. Com os caracreres móveis e a prensa de impressão, a cópia manuscrita não é mais o único recurso disponí; vel para garantir a multiplicação e a circulação dos textos. Por baixar muito I o custo de fabricação do livro, dividido pela totalidade dos exemplares de '-?uma mesma tiragem, por abreviar a duração de sua fabricação, que era longa ao tempo do manuscrito, mesmo após a invenção da pecia e a divisão do livro a ser reproduzido em cadernos separados, a invenção de Gutenberg permite a circulação dos textos numa escala antes impossível. Cada leitor pode ter acesso a um número maior de livros; cada livro pode atingir um número maior de leitores. Além disso, a imprensa permite a reprodução idêntica (ou quase, em razão das eventuais correções durante a tiragem) de um grande número de exemplares de textos, o que transforma suas próprias condições de transmissão e de recepção. Será preciso, por essa razão, considerar que a invenção e a difusão da imprensa provocam por si mesmas uma revolução fundamental da leitura' Talvez não e por diversas razões. Em primeiro lugar, é claro que, em suas estruturas essenciais, o livro não é transformado pela nova técnica. Até o início do século XVI, pelo menos, o livro impresso ainda depende do manuscrito do qual imita a paginação, a escrita, as aparências. Como o manuscrito, ele deve ser acabado pela intervenção de várias mãos: a mão do iluminista que pinta miniaturas e iniciais, sejam elas simplesmente ornadas ou historiadas; a mão do corretor ou emendator que acrescenta marcas de pontuação, rubricas e títulos; a mão do leitor, enfim, que inscreve na página sinais, notas e indicações marginais. Mais além dessa dependência direta, o livro, tanto depois como antes de Gutenberg , é um objeto semelhante, composto por folhas dobradas, reunidas em cadernos e juntadas sob uma mesma encadernação ou capa. Portanto, não é surpreendente que todos os sistemas de referência que com muita rapidez foram associados à imprensa lhe sejam amplamente anteriores. Assim, pois, os sinais que, como as assinaturas ou os reclamos, devem permitir que os cadernos sejam reunidos sem desordem. Assim, os pontos de referência que devem ajudar a leitura: numerando as folhas, as colunas ou as linhas; tornando visíveis as divisões da página (pela utilização das iniciais enfeitadas, das rubricas, das letras marginais); instituindo uma relação analítica e não somente espacial, entre o texto e suas glosas; marcando, pela diferença dos caracteres ou da cor das tintas, a distinção entre o texto comentado e seus comentários. Por sua organização em cadernos e seu corte nítido, o codex ma-
•
INTRODUÇÃO
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nuscrito ou impresso pode ser facilmente indexado. As concordâncias, as listas alfabéticas, os índices sistemáticos generalizam-se portanto a partir da época do manuscrito e é nos scriptoria monásticos e nas lojas dos stationnaires* que são inventados esses tipos de organização do material escrito, reapropriados em seguida pelos impressores. Enfim, nos últimos séculos do livro copiado à mão, é organizada uma hierarquia durável dos formatos que distingue o grande fólio, o libro da banco, que deve ser pousado em algum lugar para ser lido e que é livro de universidade e de estudo; o livro humanista, mais maleável em seu formato médio, que traz a leitura de textos clássicos e de novidades; enfim, o /ibel/us, o livro portátil, de bolso ou de cabeceira, com múltiplas utilizações, para leitores mais numerosos e com menos dinheiro. O livro impresso permanece herdeiro direto dessa divisão, associando formato do livro, tipo de texto, momento e modo de leitura. Há ainda uma outra razão para insistir na continuidade entre print culture e scriba/ culture. A invenção da imprensa não tem, de fato, uma importância decisiva no longo processo que faz com que leitores cada vez mais numerosos passem de uma leitura necessariamente oralizada, indispensável para a compreensão do sentido, a uma leitura possivelmente silenciosa e visual. Se desde a Antiguidade grega e romana coexistem as duas maneiras de ler, é durante uma longa Idade Média, como o mostra Paul Saenger, que a possibilidade de ler em silêncio, em princípio reservada aos ambientes dos escribas monásticos, penetra os meios universitários antes de tornar-se, nos séculos XIV e XV, uma prática comum das aristocracias leigas e dos letrados. A trajetória continua, depois de Gurenberg, inculcando progressivamente nos mais populares dos leitores uma forma de ler que não pressupõe mais a oralização. Uma prova a contrario de tal evolução é dada pela situação das sociedades ocidentais contemporâneas em que a categoria de "analfabetismo" designa não somente a parte da população que é totalmente iletrada, porém, mais largamente, os leitores, ainda numerosos, que somente podem compreender o texto se o lerem em voz alta. A primeira "revolução da leitura" da Idade Moderna é, pois, muito independente da revolução técnica, que modifica, no século XV, a produção do livro. Ela se enraíza, sem dúvida, mais profundamente na mutação que transforma, nos séculos XII e XIII, a própria função do escrito, quando, ao modelo monástico da escrita que confere ao escrito uma tarefa de conservação e de memória largamente dissociada de qualquer leitura, sucede o modelo escolástico da escrita que faz do livro ao mesmo tempo o objeto e o instrumento do trabalho intelectual. Seja qual for sua origem, a oposição entre * Nas universidades medievais, livreiro que conservava e emprestava livros. (N.T.)
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leitura necessariamente oralizada e leitura possivelmente silenciosa marca uma divisão capital. A leitura silenciosa, de fato, instaura uma relação com o escrito que pode ser mais livre, mais secreta, totalmente interior. Ela permite uma leitura rápida e ágil, que não é desencaminhada nem pelas complexidades da organização da página, nem pelas múltiplas relações estabelecidas entre o discurso e as glosas, as citações e os comentários, os textos e os índices. Ela autoriza, também, utilizações diferenciadas do mesmo livro, lido em voz alta para os outros ou com os outros, quando o exige a sociabilidade ou o ritual, e lido em silêncio, para si mesmo, na privacidade do gabinete, da biblioteca ou do oratório. A revolução da leitura precedeu portanto à do livro, visto que a possibilidade da leitura silenciosa é, pelo menos para os leitores letrados, clérigos da Igreja ou notáveis leigos, muito anterior à metade do século Xv. Sua nova maneira de considerar e de manejar o escrito não deve, pois, ser imputada muito apressadamente apenas à inovação técnica (a invenção da imprensa). A mesma coisa acontece, evidentemente, com a segunda "revolução da leitura" da Idade Moderna, realizada antes da industrialização da fabricação do impresso. Segundo uma tese clássica, na segunda metade do século XVIII,
r
à leitura "intensiva" ter-se-ia sucedido uma outra, qualificada como "exrenSiva'" O leitor "intensivo" era confrontado a um corpus limitado e fechado de , livros, lidos e relidos, memorizados e recitados, compreendidos e decorados, l' transmitidos de geração a geração. Os textos religiosos, e em primeiro lugar i a Bíblia em terra reformada, eram os objetos privilegiados dessa leitura fortemente marcada pela sacralidade e pela auroridade. O leitor "extensivo", o I
da Lesewut, da "obsessão de ler", que se apodera da Alemanha no tempo de Goerhe, é um leitor completamente diferente: consome impressos numerosos, diferentes, efêmeros; ele os lê com rapidez e avidez; submete-os a um olhar crítico que não subtrai mais nenhum domínio à dúvida metódica. Uma relação com o escrito, comunitária e respeitosa, feita de reverência e de obediência, daria assim lugar a uma leitura livre, desenvolta, irreverente.
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A tese é passível de discussão. Por um lado, são de fato numerosos os leitores "extensivos" ao tempo da leitura "intensiva". Pensemos nos letrados humanistas. Os dois objetos emblemáticos de sua maneira de ler são a roda de livros que permite ler vários livros ao mesmo tempo e o caderno de lugares-cornuns=, que recebe em suas diferentes rubricas as citações, informações e observações recolhidas pelo leitor. Ambos indicam uma prática erudita que
r.,
• "Argumentos, desenvolvimentos e provas aplicáveis a todos os assuntos." (Petit Robert) "Fonte de onde se podem tirar argumentos, provas, etc. para qualquer assunto." (Aurélio) (N.T.)
INTRODUÇÃO
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acumula as leituras, que procede de trechos, deslocamentos, aproximações e que, para os mais letrados, traz o exercício da crítica filológica. Por outro lado, é exatamente no momento da "revolução da leitura" que com Rousseau, Bernardin de Saint-Pierre, Goethe ou Richardson desenvolve-se a mais "intensiva" das leituras, aquela pela qual o romance se apodera de seu leitor, prende-o à sua letra e o governa como fazia antes o texto religioso. A leitura de La nouvelle Hélotse, de Paul et Virginie, dos Sofrimentos do jovem Werther, ou de Pamela desloca gestos antigos para uma forma literária inédita. O romance é constantemente relido, decorado, citado e recitado. Seu leitor é invadido por um texto que ele habita; ele se identifica com os personagens e decifra sua própria vida através das ficções da intriga. Nessa "leitura intensiva" de um novo tipo, é a sensibilidade que é engajada. O leitor (geralmente uma leitora) não pode conter nem sua emoção nem suas lágrimas; perturbado, toma a ele mesmo a pena para dizer seus sentimentos e sobretudo para escrever ao escritor que, por meio de sua obra, tornou-se um verdadeiro orientador de consciência e de existência. Os leitores dos romances não são, aliás, os únicos leitores "intensivos" na época da "revolução da leitura". A leitura dos mais numerosos e dos mais humildes, alimentada pelos títulos da venda ambulante, permanece comandada pelos hábitos antigos. A freqüência aos chapbooks, à bibliotheque bleue, à lireratura de cordel * conserva duradouramente os traços de uma prática rara, difícil, que supõe a audição e a memorização. Os textos que compõem o repertório da venda ambulante são assim objeto de uma apropriação que joga mais com o reconhecimento (dos gêneros, das obras, dos motivos) do que com a descoberta do inédito; apropriação que permanece estranha às expectativas dos leitores apressados, insaciáveis e céticos. Essas evidências põem em dúvida uma oposição por demais simples e por demais nítida entre dois estilos de leitura. Mas elas não invalidam, segundo Reinhard Wittmann, o diagnóstico que situa na segunda metade do século XVIII uma das revoluções da leitura. Seus suportes estão bem claros na Inglaterra, na Alemanha e na França: o crescimento da produção do livro, que triplica ou quadruplica entre o início do século e os anos 1780, a multiplicação rápida dos jornais, o triunfo dos pequenos formatos, a diminuição do preço do livro graças às reproduções clandestinas, à multiplicação das instituições que permitem ler sem comprar. De um lado sociedades de leitura, de outro, livrarias de empréstimo. O tema tão freqüenrernenre usado, no final do século, pelos pintores e pelos escritores, de uma leitura camponesa, patriarcal e bíblica, feita durante o serão pelo pai de família que lê em voz alta para os moradores da casa reunidos, enuncia a nostalgia de uma leitura
* Em português, no texto original. (N.T.)
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perdida. Nessa representação ideal da existência camponesa, cara à elite letrada, a leitura comunitária significa um mundo em que o livro é reverenciado e a autoridade respeitada. Com essa figura mítica, são evidentemente denunciados os gestos comuns de uma leitura contrária, citadina, negligente, desenvolta. Descrito como um perigo para a ordem política como um "narcótico" (é a palavra de Fichre) que afasta das verdadeiras Luzes, ou como um desregramento da imaginação e dos sentidos, o "furor de ler" atinge todos os observadores contemporâneos. Sem menor dúvida, ele desempenha um papel essencial no desapego que em toda parte na Europa, mas sobretudo na França, afasta os súditos de seu príncipe e os cristãos de suas igrejas. A transmissão eletrônica dos textos e as maneiras de ler que ela impõe indicam, atualmente, a terceira revolução da leitura, que acontece desde a Idade Média. Ler numa tela, de fato, não é ler num codex. A nova representação do escrito modifica, em primeiro lugar, a noção de contexto, substituindo à contigüidade física entre textos presentes num mesmo objeto (um livro, uma revista, um jornal) sua posição e distribuição em arquiteturas lógicas - as que governam os bancos de dados, os fichários eletrônicos, os repertórios e as palavras-chaves que tornam possível o acesso à informação. Ela redefine também a "rnarerialidade" das obras, quebrando o elo físico que existia entre o objeto impresso (ou manuscrito) e o texto ou textos que ele veicula, dando ao leitor, e não mais ao autor ou ao editor, o domínio sobre o contorno ou a aparência do texto que ele faz aparecer na tela. É, portanto, todo o sistema de identificação e de manejo dos textos que é transformado. Ao ler numa tela, o leiror de hoje --:- e ainda mais o de amanhã - encontra novamente algo da postura do leitor da Antiguidade que lia um uolumen, um rolo. Mas a diferença não é pequena; com o computador, o texto se desenrola verticalmente e é dotado de todas as referências próprias do codex: paginação, índice, tabelas, etc. O cruzamento das duas lógicas que se realiza na leitura dos suportes precedentes do escrito manuscrito ou impresso (o volumen, o codex) indica claramente que está estabelecida uma relação totalmente original e inédita com o texto. Ela se inscreve numa completa reorganização da "economia da escrita". Ao assegurar uma possível simultaneidade à produção, à transmissão e à leitura de um mesmo texto, ao unir num mesmo indivíduo as tarefas, sempre diferentes até agora, da escrita, da edição e da distribuição, a representação eletrônica dos textos anula as diferenças antigas que separavam os papéis intelectuais e as funções sociais. Por essa razão, ela obriga a redefinir todas as categorias que, até agora, habitavam as expectativas e as percepções dos leirores. É o caso dos conceitos jurídicos que definem o estatuto da escrita (copyrigbt, propriedade literária, direitos autorais, etc.), das categorias estéticas que, desde o século XVIII, caracterizam as obras (integridade, estabilidade,
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originalidade) ou das noções regulamentares (depósito legal, biblioteca nacional) e biblioteconômicas (catalogação, classificação, descrição bibliográfica) que foram pensadas para uma outra modalidade de produção, de conversação e de comunicação do escrito. No mundo dos textos eletrônicos, duas coerções, consideradas desde sempre como imperiosas, podem ser levantadas. A primeira é a que limita, de modo estreito, as possíveis intervenções do leitor no livro. Desde o século XVI, isto é, desde o tempo em que o impressor encarregou-se dos sinais, das marcas e dos títulos que, desde o tempo dos incunábulos, eram acrescentados à mão na página impressa pelo corretor ou por seu proprietário, o leitor somente pode insinuar sua escrita nos espaços virgens do livro. O objeto impresso impõe-lhe sua forma, sua estrutura, seus espaços. Ele não pressupõe, de forma alguma, a participação material, física, de quem o lê. Se o leitor pretende, todavia, inscrever sua presença no objeto, somente pode. fazê-lo ocupando subrepticiamente os espaços do livro abandonados pela composição tipográfica: interiores da encadernação, folhas em branco, margens do texto, etc. Com o texto eletrônico acontece algo diferente. Não somente o leitor pode submeter os textos a múltiplas operações (ele pode indexã-los, anotá-los, copiã-Ios, deslocã-los, recornpô-los, erc.), como pode, ainda mais, tornar-se o co-autor, A diferença, imediatamente visível, no livro impresso entre a escrita e a leitura, entre o autor do texto e o leitor do livro, desaparece em proveito de uma realidade diferente: o leitor, diante da tela, torna-se um dos atores de uma escrita a várias mãos ou, pelo menos, encontra-se em posição de constituir um texto novo a partir de fragmentos livremente recortados e reunidos. Como o proprietário ribaldone, obras de natureza muito diversas, o leitor da era eletrônica pode construir a seu modo conjuntos textuais originais cuja existência, organização e aparência somente dependem dele. Mas além disso ele pode a qualquer momento intervir nos textos, modificá-Ias, reescrevê-los, torná-los sua propriedade. Assim, toda a relação com o escrito está profundamente subvertida. Tanto que o texto eletrônico autoriza, pela primeira vez, a abolição de uma outra coerção. Desde a Antiguidade, os homens do Ocidente mostravam-se obcecados pela contradição entre, de um lado, o sonho de uma biblioteca universal, que reunisse todos os textos já escritos, todos os livros já publicados e, de outro, a realidade, forçosamente decepcionante, das bibliotecas reais que, por maiores que sejam, somente podem fornecer uma imagem parcial, lacunar, mutilada do saber universal. O Ocidente forneceu duas figuras exemplares e míticas dessa nostalgia da exaustividade impossível e desejada: a Biblioteca de Alexandria e a de Babel. A eletrônica, que permite a comunicação dos textos a distância, anula a diferença, até agora indelével, entre o espaço do texto e o espaço do leitor. Ela torna pensável, prometido, o
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sonho antigo. Separado de suas materialidades e de suas localizações antigas, o texto em sua representação eletrônica pode teoricamente atingir qualquer leitor em qualquer espaço. Supondo que todos os textos existentes, manuscritos ou impressos, sejam convertidos em textos eletrônicos, a disponibilidade universal do patrimônio escrito se tornaria possível. Qualquer leitor, onde estiver, desde que se encontre diante de um aparelho de leitura conectado à rede que assegura a distribuição
dos documentos
informatizados,
po-
derá consultar, ler, estudar qualquer texto, não importa qual tenha sido sua forma e sua localização originais. Como observa Armando Petrucci, a leitura tradicional, em nosso mundo contemporâneo, sofre ao mesmo tempo a concorrência da imagem e a ameaça de perder os repertórios, os códigos e os comportamentos inculcados pelas normas escolares ou sociais. A essa primeira
"crise" junta-se outra, ainda rni-
noritária e diferentemente sensível segundo os países: a que transforma o suporte do escrito e que, de repente, obriga o leitor a novos gestos, a novas práticas intelectuais. Do codex à tela, o passo é tão importante quanto o que foi dado ao passar do rolo ao codex. Com ele, é a ordem dos livros que foi dos homens e das mulheres
do Ocidente
desde os primeiros
que está em causa. São assim afirmadas
ou impostas
que ainda não foi possível caracterizar totalmente
séculos da era cristã novas maneiras
de ler
mas que, sem a menor dú-
vida, implicam práticas de leitura sem precedentes.
TIPOlOGIA Escandida
pelas três revoluções
que transformaram
as práticas
entre a
Idade Média e o século XX, a história da leitura põe em evidência alguns modelos maiores que foram sucessivamente dominantes. O primeiro dentre eles, analisado neste livro por Anthony Grafron, pode ser qualificado de "humanista". Caracteriza as leituras eruditas do tempo da Renascença de uma técnica intelectual específica: a dos "lugares-comuns".
a partir
Dois objetos são, ao mesmo tempo, os suportes e os símbolos dessa maneira de ler. O primeiro é ~ roda para livros. Sua existência é antiga, mas os engenheiros da Renascença se esforçaram por aperfeiçoá-Ia graças aos progressos da mecânica. Movida por uma série de engrenagens, a roda para livros permite ao leitor fazer aparecer simultaneamente à sua frente vários livros abertos. A leitura autorizada por tal instrumento é a de vários livros ao mesmo tempo. O leitor que a pratica é um leitor que confronta,
compara,
verifica textos, que os lê para deles extrair citações e exemplos e que os anota { de maneira a encontrar ram sua atenção.
e indexar mais facilmente
as passagens que chama-
INTRODUÇÃO
o
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caderno de "lugares-comuns" é o segundo objeto emblemático da leitura humanística. Trata-se, ao mesmo tempo, de um instrumento pedagógico que cada escolar ou cada estudante deve ter, além de um acompanhamento indispensável da leitura erudita. Aprendiz ou versado, o leitor copia, em cadernos organizados por temas e rubricas, fragmentos dos textos que leu, caracterizados por seu interesse gramatical, seu conteúdo factual ou sua exemplaridade demonstrativa. Compostos a partir das leituras, os cadernos de "lugares-comuns", que substituem as técnicas antigas das artes da memória, podem por sua vez tornar-se um recurso para a produção de novos textos. A abundância das matérias que eles contêm e que fazem coexistir citações textuais e coisas vistas, feitos observados e exemplos lidos, alimenta o ideal retórica da copiaverborumac rerum necessária a qualquer argumentação. Produtos da leitura erudita, os cadernos de "lugares-comuns" constituem no século XVI um verdadeiro gênero editorial, visto que autores de prestígio (Erasmo, Melanchrhon) e livreiros-editores os multiplicam e os especializam, acumulando obras utilizadas em direito, pedagogia e teologia. A leitura que caracteriza a técnica dos lugares-comuns tem seus especialistas: esses leitores "profissionais" empregados pelas famílias aristocráticas para acompanhar os filhos em seus estudos ou para assumir junto ao pai os múltiplos papéis de secretário, de leitor em voz alta e, segundo o termo de Anthony Grafton e de Lisa Jardine, de "facilirador". Cabe a eles, de fato, compor as condensações e resumos, as coletâneas de citações e de excertos que devem ajudar seus patrões ou seus protetores aristocráticos na leitura dos clássicos necessários à sua categoria social ou a seu cargo. Porém, além desses "profissionais" que são freqüentemenre antigos graduados ou professores das universidades, a leitura baseada no método dos lugares-comuns é partilhada por todos os letrados. O caso de Jean Bodin é, desse ponto de vista, absolutamente exemplar. De um lado, ele recomenda a quem quiser conhecer a história de ler, compondo três cadernos nos quais serão consignadas as matérias humanas, os acontecimentos da natureza e as coisas divinas. De outro, ele mesmo parece ser um usuário dessa técnica, visto que o livro que publica em 1596, o Universae Naturae Tbeatrum é inteiramente construído a partir do acúmulo, para cada questão tratada, de citações, de observações e de informações organizadas como uma coletânea de lugares-comuns. Foi assim, em todo caso, que o livro foi lido, como o atestam as anotações marginais encontradas em alguns desses exemplares que marcam as passagens assinaladas pelo leitor, nas diferentes rubricas de uma nomenclatura de lugares-comuns. Raros são na Renascença os lei tores letrados que se afastam desse modelo dominante. Momaigne é um deles. Seus gestos de leitor opõem-se termo a termo aos leitores eruditos: ao ler, ele não usa nenhum caderno de lugarescomuns, recusando-se a copiar e a compilar; ele não anota os livros que lê pa-
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ra marcar trechos e citações, mas faz na própria obra um julgamento de conjunto; enfim, não utiliza, para redigir os Essais, repertórios de lugares-comuns, antes compõe livremente, sem se preocupar com lembranças de leitura ou sem interromper o encadeamento dos pensamentos com referências livrescas. Montaigne é, portanto, um leitor especial que recusa regras e posturas da leitura de estudo: nunca lê à noite, nunca lê sentado, lê sem método e sua biblioteca, longe de ser o manancial aberto e mobilizável que é toda grande biblioteca humanista, constitui o local privilegiado do retiro fora do mundo. Nada mostra melhor a singularidade de tal prática e, a contrario, a força dominante do modelo ao qual ela se opõe do que os esforços feitos para submeter a estranheza dos Essais a uma divisão por loci communes ou a uma reorganização ternática que permitisse uma leitura mais fácil para o leitor desejoso de colher no texto extratos e exemplos. A irredutível originalidade de Montaigne é mais bem percebida quando relacionada às convenções e aos hábitos que governavam a leitura erudita da Renascença. As reformas religiosas dos séculos XVI e XVII instalam no Ocidente um segundo grande modelo de leitura. Como o mostram as contribuições de Jean-François Gilmont e Dominique Julia, a difusão em larga escala de um novo corpus de textos cristãos modifica profundamente a relação dos fiéis com a cultura escrita. São estabelecidas novas partilhas que bem pouco respeitam a divisão historiográfica clássica entre protestantismo e catolicismo. A oposição tão freqüentemente instaurada entre o protestantismo considerado uma religião do escrito, baseada na leitura pessoal do texto bíblico, e o catolicismo considerado uma religião da palavra e do ouvido, portanto, da mediação clerical, hoje não é mais aceitável. De ambas as partes da fronteira confessional, são os mesmos dispositivos de proscrição e de prescrição que pretendem levar os fiéis para os únicos textos autorizados. É evidente que as interdições não têm o mesmo rigor ou os mesmos suportes em qualquer lugar - basta pensar no papel que desempenharam na Igreja Romana os index de livros proibidos e as condenações emanadas dos tribunais inquisitoriais. Mas todas as igrejas se esforçam para transformar os cristãos em leitores e para apoiar numa produção multiplicada de livros de ensinamentos, de devoção e de liturgia, os novos procedimentos exigidos pela reforma religiosa. A leitura torna-se, assim, em sua definição espiritual e piedosa, inteiramente comandada pela relação com Deus. Ela não encontra em si mesma sua finalidade, devendo antes alimentar a existência cristã do fiel, levado para além do livro pelo próprio livro, conduzido, dos textos decifrados, comentados, meditados, para a experiência singular e imediata do sagrado. É entre o luteranismo e o catolicismo, de um lado, e os protestantismos reformados, calvinista e pierista, de outro, que parece instaurar-se o contras-
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te maior em matéria de leitura cristã. Assim como o catolicismo romano, o luteranismo, pelo menos até o final do século XVII, não é uma religião de leitura individual da Bíblia. Na Alemanha luterana, mas também no norte da Europa, a Bíblia é um livro de paróquia, de pasrores, de candidatos ao ministério, que não deve ser dado aos que correriam o risco de realizar leituras heterodoxas e perigosas. Daí, o papel essencial, em regiões luteranas e católicas, da palavra clerical e de todos os livros que têm a função de indicar a correta interpretação da Escritura. Os catecismos, os salmos, as histórias bíblicas (que são reescrituras do próprio texto bíblico) constituem o material privilegiado - de resto muito semelhante em ambas as partes da fronteira confessional - dessa mediação de leitura. Nas terras conquistadas pelo calvinismo e pelo puritanismo, o contato pessoal e familiar com o texto bíblico trouxe práticas de leitura totalmente diferentes. A relação direta, sem intercessão, entre o fiel e a Palavra sagrada faz do contato com a Bíblia uma experiência espiritual fundamental e erige a leitura do texto sagrado como modelo de todas as leituras possíveis. Feita em silêncio para si mesmo, ou em voz alta para a família reunida, praticada no foro privado ou na igreja, presente em cada momento da existência, a leitura da Bíblia define uma relação com o escrito que se reveste de uma intensidade singular. Esse modelo original de leitura, que pode ser considerado a forma acabada da "leitura intensiva", comanda todas as leituras, sejam elas religiosas ou seculares, das comunidades calvinisras, puritanas e, a partir dos últimos decênios do século XVII, com a segunda Reforma, pietistas. A história das práticas de leitura leva, portanto, a deslocar a oposição excessivamente simples rraçada entre protestantismo e catolicismo em favor da comprovação de proximidades que por muito tempo passavam despercebidas entre a igreja romana e a religião luterana, enquanto diferenças duráveis no próprio interior do mundo da Reforma. Essa história permite, assim, inscrever nas sociedades ocidentais, em contraponto aos modelos cristãos dominantes, outras práticas diferentes - por exemplo, as das comunidades judaicas analisadas aqui por Robert Bonfil. Mais além dos contrastes evidentes nas relações com o escrito, o que manifestam essas leituras, freqüenrernente proibidas e perseguidas (pensemos no exemplo espanhol), é uma apropriação indireta dos textos que reconstitui uma tradição e uma religião a partir dos fragmentos encontrados nas obras cristãs que condenam as proposições heréticas. Para além mesmo das comunidades judaicas, essas leituras "em côncavo", que decifram os textos para neles encontrar exatamente o que estes úlrimos desejam censurar e oblicerar, constituem uma prática de defesa para todos os leitores (protestantes em regiões de Contra-Reforma, católicos em regiões reformadas, espíritos rebeldes em regime de absolutismo, etc.) que uma ordem dominante se esforça por afastar das obras que ninguém deve ler.
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Com o crescimento geral da alfabetização, a entrada na cultura escrita impressa de novas classes de leitores (as mulheres, as crianças, os operários) e a diversificação da produção impressa, o século XIX (que é aqui objeto de estudo de Martyn Lyons) conhece uma grande dispersão dos modelos de leitura. É grande o contraste, por um lado, entre a imposição de normas escolares que em toda parte tendem a definir um ideal único, controlado e codificado, da leirura legítima e, de outro, a extrema diversidade das práticas próprias a cada comunidade de leitores, esteja ela desde muito familiarizada com o escrito, ou seja ela recém-chegada ao papel impresso. Evidentemente, todos os leitores dos Antigos Regimes ocidentais não liam da mesma forma e entre os mais capazes, leitores por herança, por profissão ou por hábito, e os mais incapazes, os dos impressos de vendas ambulantes, as distâncias eram grandes. Porém, com o acesso de quase todos à competência de leitura, como se institui no século XIX na Europa mais desenvolvida, a aculturação ao escrito, pela escola e fora da escola, a fragmentação das maneiras de ler e dos mercados do livro (ou do jornal) instaura, atrás das aparências de uma cultura partilhada, uma fragmentação maior das práticas. A tipologia dos modelos dominantes das relações com o escrito tais como se sucederam a partir da Idade Média (do modelo monástico da escrita ao modelo escolástico da leitura, da técnica humanista dos lugares-comuns às leiruras espirituais e religiosas do cristianismo reformado, das maneiras populares de ler à "revolução da leitura" da época das Luzes) cede lugar, nas sociedades contemporâneas, a uma dispersão de usos que corresponde àquela do mundo social. Com o século XIX, a história da leitura entra na época da sociologia das diferenças.
A LEITURAENTRE COERÇÕES E INVENÇÃO A história da leitura foi durante muito tempo partilhada por dois tipos de abordagens: as que desejavam deslocar ou ultrapassar a história literária tradicional e as que se baseavam numa história social dos usos do escrito. A estética da recepção à moda alemã, a reader-response theory à moda americana, os trabalhos baseados nos formalismos russo e tcheco, mais históricos do que os estruturalismos francês ou americano, foram todas tentativas para "excluir" a leitura da obra, para compreendê-Ia como uma interpretação do texto não inteiramente comandada pelas disposições lingüísticas e discursivas. De outro lado, a história da leitura encontrou um poderoso auxílio na história da alfabetização e da escolarização, a das normas e das competências culturais e a da difusão e dos usos do impresso. Ela apareceu como o prolongamento possível, necessário, dos estudos clássicos que desenharam, para diferentes locais europeus, a conjuntura da produção editorial, a sociologia dos possuidores de livros, a clientela dos livreiros, dos gabinetes literários e das sociedades de leitura.
INTRODUÇÃO
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Entre essas duas famílias de abordagem, uma possível articulação foi proposta pela análise bibliográfica à maneira inglesa e americana. Por um lado, ela mostra como as formas do livro e as disposições da página afetam a construção do sentido do texto. Por outro, coleta, no próprio livro, tanto os traços de sua circulação (marcas de posse, ex-libris, menções de compra, de doação, empréstimo, erc.) quanto os traços de sua leitura (trechos sublinhados, anotações, índices pessoais, textos manuscritos, etc.). Nesse ponto, essa análise bibliográfica lembra que os textos são sempre comunicados a seus leitores em formas (manuscritas ou impressas, escritas ou orais) que as limitam sem contudo destruir sua liberdade. A história da leitura que, coletivamente, propomos neste livro pretende cruzar essas diversas abordagens mesmo que, naturalmente, esteja mais ligada à histórica do que à literatura. Ela confere a si mesma um duplo objetivo: reconhecer as coerções que limitam a freqüência aos livros e a produção do sentido; inventariar os recursos mobilizáveis pela liberdade do leitor - uma liberdade sempre inscrita no interior de dependências múltiplas, mas que está em condições de ignorar, deslocar ou subverter os dispositivos destinados a reduzi-Ia. Desses dispositivos, os primeiros são os que instituem a lei e o direito. As censuras e as auto-censuras, mas também o regime jurídico que fixa os direitos autorais e os dos herdeiros são todos mecanismos que limitam os leitores. Por carência, na medida em que privam a maioria dentre eles das obras proibidas, reservadas à minoria dos que, privilegiados ou audaciosos, são os clientes dos vendedores clandestinos. Por excesso, na proporção em que afastam de suas formas originais e da intenção de seus criadores, os textos expurgados, corrigidos ou remanejados pela vontade dos censores ou pela dos executores testamentários. As estratégias editoriais constituem, elas também, limites às práticas de leitura. Sem dúvida, inventando novos gêneros, ao mesmo tempo textuais e editoriais, pondo à disposição dos menos afortunados impressos baratos (primeiramente, livros da bibliotêque bleue, chapbooks, pliegos sueltos, jornais e coleções populares, em seguida), os editores propõem ao público uma gama de leituras possíveis .sernpre mais larga e mais diversa. A liberdade dos leitores, todavia, somente pode exercer-se no interior dessas escolhas feitas a partir de preferências ou de interesses que não são forçosamente os seus. Mesmo se tais preferências nem sempre são todas apenas comerciais, são elas que governam as políticas editoriais e comandam a oferta de leitura. Relaxado na época da industrialização da imprensa, das concorrências múltiplas e dos novos públicos, esse controle das leituras na contracorrente, por meio das decisões dos editores, caracterizou durante bom tempo as sociedades do Antigo Regime.
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GUGlIElMO
CAVAllO E ROGER CHARTIER
No interior dos territórios assim propostos a seus percursos, os leitores se apoderam dos livros (ou dos outros objetos impressos), dão-lhes um sentido, envolvem-nos com suas expectativas. Essa apropriação não se faz sem regras nem sem limites. Algumas provêm das estratégias usadas pelo próprio texto, que deseja produzir efeitos, ditar uma postura, obrigar o leitor. As armadilhas que lhe são preparadas e nas quais ele deve cair, sem nem mesmo dar-se conta, estão na proporção da inventividade rebelde que sempre se supõe existir nele. Outros códigos de leitura, ao mesmo tempo coercitivos e subvertidos, são trazidos pela imagem. Acompanhando muitas vezes o texto impresso, ela institui um protocolo de leitura que deve ou enunciar com ourros signos, porém numa mesma gramática, o que é formulado pelo escrito, ou então manifestar, numa linguagem específica, o que a lógica do discurso é incapaz de mostrar. Todavia, em ambos os casos (que indicam dois regimes muito diferenciados do funcionamento da relação entre o texto e a imagem), a ilustração, encarregada de guiar a interpretação, pode tornar-se suporre de uma "outra" leitura, separada da letra, criadora de seu próprio espaço. Essa dialética da coerção e da invenção implica o cruzamento entre uma história das convenções que normatizam a hierarquia dos gêneros, que definem as modalidades e os registros do discurso, e uma outra história, a dos esquemas de percepção e de julgamento próprios a cada comunidade de leitores. Um dos objetos maiores da história da leitura reside, porranto, em identificar os fossos que, em sua longa duração, se abrem de um lado entre os leitores, ou as leituras imaginadas, designadas, visadas pelas obras e, de outro, seus públicos plurais e sucessivos. As variações na rexrualização das obras produzem uma defasagem semelhante. Dependendo, conforme os casos, da vontade do autor, das escolhas do editor, ou dos hábitos dos tipógrafos (ou dos copistas), as formas fomecidas à apresentação dos textos apresentam uma dupla significação. De um lado, elas traduzem a percepção que os "fazedores" de textos ou de livros têm das competências dos leitores; de outro, elas visam impor uma maneira de ler, com vistas a formar a compreensão e a controlar a interpretação. No manuscrito e no papel impresso, essas diferenças formais e materiais situam-se em diferentes escalas. A linha, em primeiro lugar, com o aparecimento, na Alta Idade Média, da separação entre as palavras, que é uma condição essencial para que seja possível uma leitura silenciosa. A página, em seguida, duas vezes transformada: nos últimos tempos do livro manuscrito, pelo desaparecimento dos textos colocados à margem (rubricas, glosas, comentários); nos séculos XVI e XVII pelo aparecimento, e depois pela generalização, das alíneas e da divisão em parágrafos. O próprio livro, enfim, ao qual a técnica da impressão confere sua identidade, enunciada na página de rosto, bem como uma nova
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INTRODUÇÃO
maneabilidade assegurada pela generalização e pela fixação do duplo dispositivo da paginação e da indexação. A história das práticas de leitura proposta por este livro deseja entrecruzar essas diferentes abordagens, essas diferentes maneiras de compreender o encontro entre os textos e seus leitores. Uma mesma idéia as reuniu: apoiar no estudo das transformações das maneiras de ler o olhar novo que se pode dirigir para as maiores evoluções (culturais, religiosas, políticas) que sacudiram as sociedades ocidentais da Antiguidade até hoje. Muito cedo, desde o mundo grego, essas sociedades foram sociedades do escrito, do texto, do livro. Portanto, sociedades da leitura. Mas a leitura não é uma invariante antropológica sem historicidade. Os homens e as mulheres do Ocidente não leram sempre do mesmo modo. Vários modelos governaram suas práticas, várias "revoluções da leitura" modificaram seus gestos e seus hábitos. Nossa obra se propõe, portanto, a fazer o inventário e produzir a compreensão desses modelos e dessas revoluções.
NOTAS I
Michel de Ceneau, Gallimard,
2
3
L'invention du quotidien. Ans de faire, 1980. Reedição.
Paris,
1990, v. 1, p. 251.
Ibid., p. 247. Paul Ricoeur, Temps et récit . Le ternps raconté. Paris, Editions
de Seuil, 1985,
V.
3,
p.228-63. 4
Stanley Fish, ls tbere a text in tbis elass? The authority of interpretatioe
communities.
Cambridge, Mass. e Londres,1980. 5
D. F. McKenzie,
Bibliography and the sociology of texts. The Panizzi Lectures,
1985.
Londres, The British Library, 1986, p. 20. 6
7
Roger Stoddard, "Morphology History, 17, 1990,p. 2-14.
and rhe book frorn american perspecrive",
Printing
Limito-me a remeter ao clássico trabalho de E. G. Turner, Atbenian books in the Fifth and Pourtb Centuries B.C., London, 1977; (trad. italiana) "I libri nell'Arene dei V e IV secolo a.C"., in Libri, editori epublico nel mondo antico . Guia histórico e crítico, publicado por G. Cavallo, Roma, Bari, 1992, p. 5-24.
8
9
B. M. W. Knox, "Si lent reading in Anriquiry", IX, 1968, p. 421-35.
Greek, Roman and Byzantine Studies,
É preciso observar que muiro mais aberta e favorável ao escrito é a atitude de Platão quando não se trata de discurso filosófico ou "de verdade", segundo observa, em ampla discussão, G. Cerri, Platone sociologodella comunicazione,Milano, 1991, p. 119-28.
\O
Sobre as maneiras de ler em relação aos verbos que as significam ver, além do artigo de P. Chanrraine, "Les verbes grecs signifianr 'Iire", em Mélanges Henri Grégoire, n,
40
GUGlIELMO
CAVALLO E ROGER CHARTIER
Bruxelles, 1950, p. 115-26, e os trabalhos de Svenbro - as contribuições de G. F. Nieddu, "Decifrare Ia scrirtura, 'percorrere' il testo: rnomenri e livelli diversi dell'approccio alia Ietrura nellessico dei Greci", Giornale Italiano di Filologia, XL, 1988, p. 17-37, e de D. J. AlIan, "Anagigrosko and some cognate words", The classical quarterly, 1980, p. 224- 5l. II
Sobre os vários momentos da passagem de uma cultura oral a uma cultura totalmente escrita, limito-me a remeter ao quadro traçado por L. E. Rossi, "L'ideologia dell'oralità fino a Platone", em Lo spazio letterario de//a Greeia antica, I: La produzione e Ia circolazione dei testo, I, organizado por G. Cambiano, L. Canfora e D. Lanza, I, La polis, Roma, 1992, p. 77-106.
12 U
É obrigatória a consulta a L. Canfora, La biblioteca scompars«, Palermo, 1986. R. Nicolai, "Le biblioteche dei ginnasi", Nuovi annali della scuola speciale per archivisti e
bibliotecari, I, 1987 p. 17-48. 14
M. Citroni, "Le raccomandazione dei poeta: apostrofe allibro natario", Maia, XXXVIII, 1986, p. 111-46.
e contatro col desti-
15
G. M. Rispolo, "Declamazione e letrura nella teoria retorica e grammaticale
greca",
Koinonia, XV, 1991, p. 93-133. 16
Sobre toda a problemática ligada à transmissão dos textos latinos de épocas mais antigas remetemos ao trabalho de O. Pecere, "I meccanismi della rradizione restuale", em Lo spazio letterario di Roma antica, IH, La rucezione dei testo, publicado por G. Cavallo, P. Fedeli e A. Giardina. Roma, 1990, p. 297-386.
17
J. Dietharr
e Ch. Gastberger, "Sechs eindringliche Himweise für den byzantinischen Leser aus der Komrnenrarlireratur zu Dionysios Tharax", Bizantiniscbe Zeitscbrift; LXXXVI-LXXXVII,
18
1993-94, p. 386-40l.
E. Patlagean, "Discours écrir, discours parlé à Byzance", AI11Jales, Economie, Sociétés, Cioilizations, XXXIV, 1979, p. 264-78, artigo no qual se encontra uma série de observações sobre a cultura escrita em Bizâncio.
19
Fundamental como estudo das práticas de leitura nessa época é o rrabalho de F. Alessio, "Conservazione e modelli di sapere nel rnedioevo", em La memoria dei Sapere. Forme di conseruazione e strutture organizzative da/I'antichità a oggi, publicado por P. Rossi, RomaBari, 1988, p. 93-133.
20
Francesco Petrarca, De remediis tariusque fortunae, 1,43, org. G. Conrini, em Mostra di codiei petrarcheschi laurenziani, Firenze, 1974, p. 75-81 (exatamente p. 79).
21
Sobre esta e outras questões inerentes à relação entre livro, leitura e público nos últimos séculos da Idade Média, é suficiente remeter a A. Perrucci, "Illibro manoscrirro, em Letteratura italiana II, Produzione e consumo, Torino, Einaudi, 1983, p. 499-524.
1 A GRÉClA ARCAICA E CLÁSSICA: A INVENÇAO DA LEITURASILENCIOSA Jesper Svenbro
Quando, por volta do século VIII a.c., a escrita alfabética irrompe na cultura grega, ela chega em um mundo que há muito tempo é o da tradição oral. Mas se a palavra falada se acha assim "no começo", segundo a fórmula bem conhecida, ela está talvez, antes de tudo, no poder. Pois na Grécia dos primeiros tempos, a palavra falada reina de modo incontestável, ticularmente
sob a forma de kléos, "fama", transmitida
muito par-
aos heróis da epopéia
pelos aedos de tipo homérico. Para os gregos da época arcaica, este kléos é um mor primordial, uma verdadeira obsessão. Se o herói homérico aceita morrer combatendo, é porque espera ganhar a "fama imperecível", e é significativo que a palavra que se traduz por "fama" ou "glória", isto é, kléos, tenha o sentido fundamental de "som" (assim como indicam os parentes etimológicos da palavra nas línguas germânicas, por exemplo, o alemão Laut). A glória de um Aquiles é, portanto, uma glória para o ouvido, uma glória sonora, acústica. No plural, kléos é de fato o termo técnico que Homero uriliza para designar sua própria poesia épica. Em sua sonoridade, a palavra é eficaz, é ela que faz existir o herói. Reconhece-se a valorização do sonoro até na modificação a que os gregos submetem o alfabeto consonântico que herdam dos serniras: como se sabe, eles redefinem um cerro número de seus sinais a fim de registrar as vogais. Para compreender por que e em que perspectiva eles se apropriaram da escrita fenícia, não é despropositado levar em conta essa valorização que pode até parecer paradoxal. Pois, para que serviria a "escrita muda" em uma cultura na qual a tradição oral se acredita capaz de assegurar sua própria permanência sem outro suporte além da memória e da voz dos homens? A resposta mais simples parece ser a seguinte: justamente para a produção de mais eléos, por exemplo, graças às inscrições funerárias, que garantiam uma nova forma
42
de posteridade
JESPER SVENBRO
ao morto. Assim, a escrita teria sido utilizada pela cultura
oral em uma perspectiva que não seria a de proteger a tradição épica (embora ela acabe por fazê-Io), mas, sim, a de contribuir para a produção de som, de palavras eficazes, de glória retumbante. Essa resposta equivale, na realidade, a uma hipótese sobre a natureza da leitura na Grécia arcaica: parece inevitável pensar que os primeiros leitores gregos tenham praticado a leitura em voz alta. Pois, em uma cultura que valoriza a palavra falada da maneira como o fizeram os gregos, a escrita só interessa na medida em que visa a uma leitura oralizada. Não que nossa hipótese alterasse a idéia que há muito fizemos da leitura antiga. Ao contrário, formulada a partir de dados culturais, ela vai ao encontro de uma outra hipótese, geralmente aceita, que não é senão a extrapolação dos testemunhos de uma época mais recente: se os gregos da época clássica liam em voz alta, é preciso aceitar que seus antepassados faziam o mesmo. Na ausência de documentos, parece lógico pensar que a leitura em voz alta constitui a forma original da leitura.
VOCABUlÁRIO DO "LER"GREGO Se, à primeira vista, a ausência de testemunhos informando-nos sobre a leitura arcaica parece quase completa, na medida em que entendemos por "testemunhos" as descrições do aro de ler ou as reações a ele, a situação muda quando consideramos o vocabulário forjado a partir da época arcaica para exprimir a idéia de leitura. Mais precisamente, o grego possui mais de uma dezena de verbos que significam "ler", atestados a partir de cerca de 500 a.c. Esse número elevado pode surpreender: deve-se sem dúvida à diversidade dialetal da língua e ao fato de que "o período experimental" que os colocou em circulação, e que vai privilegiar alguns deles, ainda não tivesse terminado quando começamos a encontrá-Ios nas inscrições e nos textos. Com efeito, esses verbos constituem nossa principal via de acesso à lógica da leitura arcaica: a significação fundamental de um verbo empregado no sentido de "ler" nos indicará de que modo o aro de ler foi pensado no momento em que o emprego especializado aparece, talvez mesmo mais tarde. Esses testemunhos são tanto mais preciosos que ultrapassam o quadro individual ou ocasional, situando-se no nível do saber compartilhado, da língua. Compreender-se-à assim porque será agora preciso invocar fatOs de vocabulário e de gramática capazes de corroborar a hipótese sobre o caráter vocal da leitura arcaica. Essa maneira de proceder é ao mesmo tempo uma evocação da alteridade do ler em uma cultura profundamente diferente da nossa, mas que permanece suficientemente próxima para tornar proveitosa uma comparação.
•••• A GRECIA ARCAICA E ClÁSSICA A INVENÇÃO DA LEITURASILENCIOSA
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Desde 1950, dispomos de um artigo de Pierre Chantraine dedicado aos verbos gregos que significam "ler'". Artigo útil, que no entanto se limita ao estudo de apenas quatro vocábulos. Entre os verbos esquecidos pelo grande pesquisador francês, há um que me parece particularmente importante e que nos servirá de ponto de partida: némein, que significa literalmente "distribuir". A julgar por nossos documentos escritos, este verbo é pouco freqüente no sentido de "ler" e sua raridade poderia justificar o fato de ele ter sido esquecido. Com exceção de três entradas no lexicógrafo alexandrino Hesíquio, que viveu no século V de nossa era, se confirma apenas uma vez em sua forma não composta. Sófocles (496-406) o emprega em um breve fragmento conservado precisamente devido ao uso do verbo que nos interessa aqui. Na véspera da partida para Tróia, os chefes gregos passam suas tropas em revista: "Tu que estás sentado no trono e que seguras as tábulas de escrita na mão, lê, néme, a lista para que se saiba se há ausentes entre aqueles que prestaram juramenrol'". Quando Tíndaro precisa escolher um marido para sua filha Helena entre os numerosos pretendentes vindos a Esparra, faz todos prestarem juramento no sentido de defender os direitos daquele sobre o qual recair sua escolha. É assim que Menelau pode contar com um grande contingente de heróis quando Páris seqüestra Helena. O leitor, no fragmento citado, tem na mão a lista dos nomes daqueles que prestaram juramento. Sua leitura ou, literalmente, sua distribuição tornará evidentes as eventuais ausências. Tratase de uma leitura em voz alta diante de uma assembléia, para a qual o conteúdo das tabuinhas de escrita é "distribuído" oralmente. Assim, o verbo némein, cuja significação fundamental é "distribuir", pode assumir o sentido de "ler" e, mais exatamente, de "ler em voz alta". Mas parece que sobretudo formas compostas do verbo foram empregadas nesse sentido especial, a começar por ananémein, "corrente", segundo o poeta Teócrito, "em dialeto dórico'", Essa precisão é confirmada por dois testemunhos muito antigos. O primeiro encontra-se no poeta Epicarmo (c. 530-440), siciliano e portanto de dialeto dórico"; o segundo, em um vaso de inscrição dórica, encontrado na Sicília e datando dos primeiros decênios do século V5• Hesíquio conhece igualmente este verbo no sentido de "ler", assim como o faz um comentador antigo de Píndaro". Em ananémein, é preciso portanto ver, com Teócriro, o verbo dórico que significa "ler". Ora, se a forma ativa ananémein é a que se encontra em dialeto dórico, isto é, tanto em Espana como na Sicília, vemos ao contrário a forma média ananémesthai em uma inscrição do dialeto dórico, que data da primeira metade do século V e foi encontrada na Eubéia. Trata-se da esrela funerária de um certo Mnésithéos, cujo epitáfio começa assim: "Saudações, ó passantes! Eu descanso morto embaixo. Tu que te aproximas, lê (verbo: ananémesthai) quem é o homem enterrado aqui: um estrangeiro de Egina, de nome Mnésirhéos'",
44
JESPER SVENBRO
Em dialeto dórico, a forma ativa ananémein faz do leitor o instrumento a serviço do escrito: em Esparta, ninguém pergunta se o leitor recebe ele próprio a mensagem que "distribui" a outro, observação que vale tanto para o simples némein como para o composto epinémein atestado no sentido de "ler" em Hesíquio. Em contrapartida, a forma média do mesmo verbo, empregada no epitáfio de Mnésirhéos, tem um sentido mais sutil que "distribuir". Ela significa na realidade "distribuir incluindo-se na disrribuição'". O leitor representado pela inscrição eubóica "distribui" portanto o conteúdo do escrito não somente aos "passantes" evocados pelo texto, mas também a ele próprio. Isto é, as palavras pronunciadas pelo leitor são endereçadas tanto aos ouvintes quanto ao próprio leitor. Em último caso, esse leitor pode "distribuir" o conteúdo do escrito sem ter ouvintes: ele o distribuirá a si próprio, tornando-se seu próprio ouvinte, como se, para compreender a seqüência gráfica, lhe fosse necessário vocalizar as letras para seu ouvido, capaz de captar o sentido delas. Para ele, a própria voz tornou-se o instrumento. Refletindo sobre esse leitor que "distribui"
o escrito a ele próprio e que,
ao ler, faz aquilo que nos parece um desvio - sonoro - para chegar ao sentido, temos a impressão de que seu deciframento do escrito se faz com lentidão e dificuldade.
Sua leitura parece constituir
um esforço considerável, es-
forço que o prefixo ana-, como o sugere Chantraine, pode presurnivelrnenre exprimir". Esse caráter laborioso da leitura deve então ser encarado sob dois aspectos: o da competência do leitor e o da apresentação material do escrito. No que concerne ao primeiro, sabemos, graças a Plutarco, que o ensino das letras em Esparta reduzia-se ao "estritamente necessário"lO; provavelmente, a situação não era muito diferente na Eubéia. Mesmo a competência de alguém que lê uma inscrição aos passantes, que se contentarão em escurá-lo, pode ser considerada muito relativa. Quanto ao segundo aspecto, é preciso acentuar que a escrita de uma inscrição como a de Mnésithéos não tem praticamente intervalo entre as palavras: suas letras alinham-se em scriptio continua, o que - como cada um pode experimentar - torna a leitura lenta e hesitante, provocando irresistivelmente a intervenção da voz. O verbo normidoí encontra-se, portanto, no centro de uma família lexical cujos membros significam "ler". Tal fato nos permite indagar se nómos, nome de ação formado de némein, não teria o sentido fundamental de "leitura". Do ponto de vista formal, não há obstáculos para tal hipótese. É verdade que nossos dicionários nada trazem que sugira esse sentido para nómos, que se traduz normalmente por "lei". Nada, à exceção dos nómoi dos pássaros em Alcrnan", poeta do século VII a.c. À primeira vista, as "melodias" dos pássaros (pois é desse modo que convém traduzir a palavra aqui) não parecem ter muita coisa em comum com as leis dos legisladores arcaicos. Mas não nos
• 45
1. A GRÉCIA ARCAICA E ClÁSSICA A INVENÇÁO DA LEITURASILENCIOSA
enganemos. Os nómoi de Charondas, um dos grandes legisladores da Grécia arcaica, "cantavam-se", segundo a expressão de um autor antigo". A distribuição da lei pode, portanto, assumir uma forma cantada. Assim, pássaros e nomodos - nomõidoí, "cantares da lei"!3 - estão empenhados em "distribuições" perfeitamente análogas. A lei é uma distribuição vocal, que se apóia inicialmente na memória, e mais tarde no escrito. Isso está em conformidade com o duplo sentido de némein e de ananémesthai,
porque esses dois verbos
podem referir-se a uma distribuição vocal que se apóia na memória, quando se "cita" um provérbio em Simônides (verbo: némein) ou quando se "recitam" genealogias em Heródoto (verbo: ananémestbaiy", Como se viu, eles podem também referir-se a uma distribuição vocal que se apóia no escrito, isto é, à leitura de uma lista ou de uma inscrição. No século VII a.c., os reis beócios descritos por Hesíodo "distribuem"
(verbo: némein) a justiça, a qual, assim
como o próprio Hesíodo nos informa, é uma justiça para se "escutar", uma justiça distribuída oralmente". A essa justiça falta apenas um suporte escrito para que sua "distribuição" se torne uma leitura. A distribuição
oral à qual némein e nómos se referem pode portanto
ser
uma distribuição que se apóia tanto na memória quanto no escrito; configura-se, pois, tanto como uma recitação de memória quanto uma leitura em voz alta. O nómos adapta-se a uma situação oral ou escrita. Em compensação, este não é o caso da palavra que se usa em Esparta para "lei", isto é, rhétra. Graças a Plutarco, sabemos que em Esparta era proibido fixar a lei pela escrita". Por isso, é coerente que a palavra que significa "lei" em Esparta seja derivada do verbo eírein, "dizer". Inversamente,
a lei em Roma parece pres-
supor a coisa escrita. Lex é o nome de ação de legere, "ler", e significa fundamentalmente
"leitura?" (sem a ambigüidade que se pode observar em nómos).
Assim, obtemos o seguinte esquema:
Oralidade
eirein, "dizer"
rhêtra
Oralidade/Escrita
némein, "recitar/ler"
nómos
Escrita
legere, "ler"
lex
Por que os romanos escolheram a palavra legere ("colher") para "ler"? Para responder a esta pergunta, deve-se levar em conta o fato de que, embora isso seja ignorado pelos dicionários,
o grego légein pode ter o sentido de "ler".
Observemos esta frase do Teeteto de Platão: "Muito bem, escravo, pega o livro e lê, léges':": Ou ainda a fórmula lége tõn nómon, "lê a lei" freqüente entre os oradores do século IV a.C.19• E se légõ significa "eu leio", temos o direito
46
JESPER SVENBRO
de pensar que os romanos ouviram essa palavra dos gregos ao tornar-lhes emprestado o alfabeto. O que há de mais natural nesse caso senão empregar o homônimo latino lego (cujo imperativo lege soa também perfeitamente grego) como termo técnico para "ler"? Assim, o sentido de "colher" não seria fundamental para a semântica tado um papel ulteriormente.
do latim legere, "ler", embora tenha represen-
Tanto quanto némein, légein pode, portanto, são sobretudo
os compostos
significar
"ler". E, de novo,
do verbo simples que se encontram
no sentido
de "ler", a começar por analégein, atestado em uma inscrição de Téos, que data de 470-4602°, e analégesthai, testemunhado mais tarde". O que foi dito em relação ao prefixo ana-, assim como em relação à diferença entre o ativo ananémein e o médio ananémesthai,
vale evidentemente
também
para esses dois
verbos, e esse paralelismo reitera ao mesmo tempo o sentido de "distribuir oralmente" e de "ler" para némein. Na realidade, némein e légein estão, ambos, no centro de uma família lexical semelhante,
cujos membros
significam
to-
dos "ler", embora com algumas nuanças diferentes. Para que a família de légein, "ler", esteja completa, um membro
Heródoto,
autor de dialeto jônico do século V a.c., este verbo que significa
"ler" só é empregado
importante,
é preciso no entanto
aí incluir
ou seja, epilégestbai.
na forma média (enquanto
Freqüente
seu equivalente
em
epinémein,
"ler", só é atestado no ativo)", forma que se explica da mesma maneira que os médios ananémesthai
e analégesthai,
ção" e "ler incluindo-se
na leitura". O médio supõe que o leitor lê em voz al-
"distribuir
incluindo-se
na distribui-
ta tanto para ouvintes eventuais quanto para ele próprio. Quanto ao sentido de epilégestbai, é um verbo que significa literalmente
"acrescentar
a". O leitor acrescenta sua voz ao escrito, ele próprio incompleto.
um dizer Considera-
se que a escrita necessita do légein ou do lógos que o leitor lhe acrescenta: sem leitor, ela ficará letra morta. A leitura acrescenta-se, portanto, como um "epílogo" ao escrito. Dessa maneira, obtemos o esquema seguinte,
de uma simetria bastante
impressionante: epinémein
ananémein ananémesthai
némein
légein analégesthai
analégein epilégesthai
Mas o verbo que vem à mente quando nos perguntamos como o grego diz "ler" é sem dúvida anagignóskein, atestado pela primeira vez em Píndaro em um poema que data provavelmente de 474 a.C.", Assim, se ananémein é o verbo principal do dórico e se epilégesthai é freqüente em jônico, anagignóskein
1 A GRÉClA ARCAICA
E CLÁSSICA
A INVENÇÃO
DA LEITURA SILENCIOSA
47
é o verbo que significa "ler" em Atenas. Em dialeto ático, ler significa literalmente "reconhecer", já que este é o sentido fundamental de anagignMkein. Chantraine escreve: "Este verbo servia bem para significar 'ler', isto é, reconhecer os caracteres e os decifrar'?". Interpretação que é essencialmente a do prestigioso dicionário de Liddell-Scott-Jones mas que, na minha opinião, é inadmissível. O reconhecimento ao qual esse verbo faz referência não é o do sinal alfabético individual, designado em grego pela palavra grámma. Sabemos todos que a leitura não se resume à simples identificação das letras do alfabe[o. Podemos "conhecer suas letras", tà grámmata eptstastbai", sem estar em condições de ler. Invocarei um exemplo moderno para ilustrar a maneira pela qual creio ser necessário compreender o "reconhecimento" em leitura. "DOUKIPUDONKTAN", lemos nós na primeira página de Zazie dans te métro, de Raymond Queneau. Encontramo-nos aí diante de várias anomalias, se considerarmos nossa maneira normal de ler: (1) a frase está escrita em scrip'.
tio continua (o que é um traço característico da escrita grega); (2) ela está escrita não de modo etimológico, o que é a regra em francês, mas de modo fonético (o que é normal em grego); (3) ela pertence, por sua sintaxe, à linguagem falada (o que é o caso de toda frase grega antes da formação de um idioma escrito sensivelmente diferente da linguagem falada). Por essas três razões, o leitor francês sente-se desorientado quando vê a frase DOUKIPUDONKTAN pela primeira vez. Na verdade ele se encontra em uma situação que se parece com a do leitor na Grécia arcaica: somente fazendo intervir a voz - a experiência o mostra - ele é capaz de "reconhecer" aquilo que é opaco à primeira vista. Seu olho (aqui termina a analogia) naturalmente teria preferido a versão seguinte, normalizada, da mesma frase: "De onde [é} que eles fedem tanto?", ou mesmo: "De que lugar é que eles soltam tanto odor infecro?". Em outras palavras, o reconhecimento em questão é o da seqüência gráfica (e não o da letra individual). Mais precisamente: o reconhecimento da seqüência gráfica como linguagem. O leitor que pronuncia a seqüência DOUKIPUDONKTAN pela primeira vez reconhece, por causa de seu ouvido, essa mesma seqüência como linguagem, dizendo talvez: "Ah! eis o que aquilo queria dizer!". Já antes de a ter reconhecido dessa forma ao mesmo tempo oral e aural, ele pôde identificar as letras, notando a estranha presença de dois K; mas essa identificação pontual ainda não é uma leitura. O momento decisivo, o momento do reconhecimento, é aquele em que as letras, à primeira vista opacas quanto a seu sentido, e portanto sempre semelhantes a letras escolhidas ao acaso, se revelam portadoras de sentido em virtude da voz leitora. É o momento em que, na perspectiva grega, os sinais alfabéticos transformam-se em stoikheía, em "elementos constitutivos da linguagem" e, mais exatamente, em "letras for-
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JESPER SVENBRO
mando uma seqüência":", Pronunciando as letras, o leitor reconhecerá se elas formam uma seqüência inteligível ou não. Ao lado desses verbos que significam "ler", o grego antigo possui realmente alguns outros, cuja significação não se relaciona de forma evidente com a leitura oralizada. Após a época arcaica, pode-se exprimir o fato de ler por verbos que significam literalmente "desenrolar" (anelíssein)27,ou seja, um livro, ou então "percorrer" (diexiénai)Zs ou ainda "ter uma entrevista, e até relações com" (entunkhánein e sungígnesthai)29. Mas, em sua maioria, os verbos gregos que significam "ler" atestam insistentemente a prática de uma leitura oralizada resultante, sem dúvida, não apenas do fato de que normalmente se lia pouco e com dificuldade, mas também e sobretudo, da valorização extrema do lôgos sonoro, este "príncipe", como o dirá o sofista Górg ias", em uma cultura que faz do nômos igualmente sonoro um "rei"".
A TRIPlA LIÇÃO DOS VERBOS QUE SIGNIFICAM "LER" No exame a que submetemos
os verbos que significam "ler", pudemos
reconhecer pelo menos três traços característicos da leitura na Grécia antiga, traços cuja importância convém salientar aqui. O primeiro é o caráter instrumental do leitor ou da voz leitora, observado na análise de némein e de suas formas compostas. O segundo é o caráter incompleto da escrita, que se acredita necessitar de uma sonorização, fato comprovado pelo verbo epilégesthai. O terceiro fenômeno segue logicamente os dois primeiros. Pois, se a voz do leitor é o instrumento que possibilita à escrita realizar-se em sua plenitude, quer dizer que os destinatários do escrito não são lei rores no sentido exato do termo, mas "ouvintes", como os próprios gregos os chamavam. Os "ouvintes" do texto, akoúontes ou akroataí, não são seus leitores, como o sustentam nossos dicionários. Pondo-se de lado o leitor "que se inclui na leitura" e que ouve sua própria voz, eles não lêem absolutamente nada. Somente escutam uma leitura, como os "passantes" do epitáfio de Mnésithéos. Detenhamo-nos inicialmente no caráter incompleto, do ponto de vista grego, da escrita. Se é verdade que é preciso a leitura para que o texto se torne completo, deduz-se logicamente que a leitura faz parte do texto. Palavras que vão se juntar a uma frase que constitui o ponto de partida para Michel Charles em Rhétorique de Ia lecture: "Vamos nos limitar aqui a este fato essencial: a leitura faz parte do texto, ela inscreve-se nele"3'. Como esta concepção se adapta à situação da Grécia antiga? De que maneira o ato sonoro faz parte daquilo que para nós é um ato silencioso? De que maneira um está compreendido no outro? Inicialmente, deve-se invocar o caráter material da coisa escrita na Grécia, pois constatamos que a scriptio continua torna a vocalização
1. "Gi1ÉClA ARCAICA E ClÁSSICA A INVENÇÃO DA LEITURASILENCIOSA
p:aticamente
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inevitável. A ausência de intervalos (como a de uma ortografia
Jm(lllalizada) faz de cada leitura uma experiência sonora. Essa ausência prop.ma então, de maneira negativa, a leitura oralizada, que conseqüenternenlJe acha-se inscrita no "texto". Mas é preciso ir mais longe. Jogando com a etimologia da palavra "texto" (do latim textus ; "tecido"), eu diria que tudo se passa aqui como se o texto fosse feito de uma série escrita e de uma trama ~l, que se unem na leitura e se desfazem depois. Em tal concepção, que .credito ser fiel à experiência antiga de ler, o texto não seria então um objeto aútico, mas o nome da relação dinâmica entre escrito e voz, entre escritor e leitor. O texto se tornaria, assim, a realização sonora do escrito, o qual não poderia ser distribuído ou dito sem a voz do leitor. Mas se o escrito é incompleto sem a voz, isto significa também que ele deve apropriar-se de uma voz a fim de se realizar plenamente. Como vimos, o escritor conta com a chegada de um leitor disposto a colocar sua voz a serYÍÇo do escrito com a finalidade de distribuir seu conteúdo aos passantes, aos
r I.
.'
"ouvinres" do texto. Ele conta com um leitor que seguirá a coerção da letra. Ler é, pois, colocar sua própria voz à disposição do escrito (em última instância, do escritor). É ceder a voz pelo instante de uma leitura. Voz que o escrito logo torna sua, o que significa que a voz não pertence ao leitor durante a leitura. Este último a cedeu. Sua voz submete-se ao escrito, une-se a ele. Ser lido é conseqüentemente exercer um poder sobre o corpo do leitor, até mesmo a grande distância no espaço e no tempo. O escritor que consegue fazer-se ler atua no aparelho vocal do outro, do qual se serve, mesmo após sua morte, como de um instrumentum voca/e, isto é, como de alguém ou de alguma coisa a seu serviço, até mesmo de um escravo. Em uma cultura na qual se considera que a ausência de coerções é consritutiva do cidadão, essa concepção do ler está evidentemente destinada a tornar-se problemática. Para participar da vida da cidade, o cidadão deve ser JaitheroJ, "livre, sem coerção". De fato, o ateniense que se prostitui, e que portanto vende sua autonomia, não pode mais tomar a palavra no Conselho ou na Assembléia:
Êsquines".
se ele o faz, é condenado à morte, informa-nos o orador Como bem o mostrou Michel Foucault, essa concepção do cida-
dão entra em conflito, sobretudo, com a prática pederástica, na medida em que esta define os dois amantes em termos de dominação e de submissão: futuro cidadão, o menino submete-se ao prazer do parceiro adulto". Fato que apresenta o perigo de o desqualificar moralmente, se ele não se mostra reservado, evitando identificar-se com seu papel. Se o menino cede ao erasro, não deve fazê-Io para seu próprio prazer, mas sim para o do parceiro. Não deve identificar-se com seu papel de instrumento. Pois, em relação ao pederasta, ele é tão instrumental quanto o leitor em relação ao escritor. Os gregos pu-
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JESPER SVENBRO
deram pensar a comunicação escrita nos termos da relação pederástica, e isso desde a inscrição dó rica da Sicília de que já se falou": esta última tenta dar uma definição da natureza do ler, uma das primeiras que conhecemos: "Aquele que escreve estas palavras sodomizará, pugíxei, aquele que faz sua leitura". Ler é aqui desempenhar o papel do parceiro passivo, desprezado, enquanto o escritor se identifica com o parceiro ativo, dominante e valorizado. O desprezo pelo leitor demonstrado por essa metáfora, que não é isolada, explica sem dúvida por que se deixava de boa vontade a tarefa de ler a um escravo, já que a função deste é precisamente a de servir e de se submeter. O escravo é um instrumento, um "instrumento dotado de voz". Tomemos a representação do Teeteto: neste diálogo de PIarão, é o escravo de Euclides que lerá o /6gos que seu amo escreveu. Terpsião e o próprio Euclides serão os ouvintes desse lôgos lido pelo escravo. Ao mesmo tempo, essa tendência para desvalorizar a tarefa do leitor explica a relativa resistência à leitura demonstrada pelo fato de que o ensino das letras devia limitar-se ao "escrito necessário", em Esparta, e sem dúvida também em o)ltros lugares. A leitura não é, portanto, inteiramente incompatível com o papel de cidadão, mas tem-se a impressão de que ela deve ser praticada com certa moderação para não se tornar um vício: aquele que lê não deve identificar-se
demais com o papel de
leitor se quer permanecer livre, isto é, livre de coerções impostas por outros.
É melhor permanecer tà grámmata phat7los, "fraco em leitura", para empregar a expressão de Sócrares", isto é, ser capaz de ler, mas apenas isso.
o "EU" E A VOZ Tentemos delimitar ainda mais o problema. Se, para dizer a verdade, é preciso falar "com suas próprias palavras", en idíois lâgois - outra expressão de Sócrares" -, o que se deve então pensar do leitor arcaico que decifra, em voz alta, uma inscrição do tipo "Eu sou o túmulo de Glauco"38 diante de um grupo de ouvintes? Mais tarde, os poetas cômicos se mostrarão sensíveis a esse tipo de equívoco, isto é, à possibilidade de uma confusão entre enunciado lido e enunciado produzido pelo próprio leitor; verossimilmente, este fenômeno já se manifestou com as primeiras inscrições em que o objeto inscrito se designa como "eu", isto é, as primeiras inscrições gregas, do século VIII a.c. O leitor da inscrição citada põe na boca um "eu" que não é o seu. Este "eu", sendo inflexível, ele não pode modificá-Io dizendo: "Ele afirma que é o túmulo de Glauco". Não seria uma leitura. Ao contrário, é preciso pronunciar exatamente a inscrição. Se o leitor o faz, é porque está de fato a serviço do escrito, ao qual cedeu seu aparelho vocal, seu corpo, sua voz. Ele lhe pertence. Conseqüentemente, não há contradição, pois, segundo o raciocínio
1 A GRÉCIA ARCAICA E ClÁSSICA A INVENÇÁO DA LEITURASILENCIOSA
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proposto aqui, a voz que diz "eu" pertence ao escrito, adere a ele, une-se a ele pelo tempo de uma leitura. Não há contradição, mas certamente uma forma de violência, contra a qual existe apenas uma arma: a recusa de ler. Ora, o emprego da primeira pessoa para designar o objeto inscrito é tão surpreendente e ao mesmo tempo tão corrente nas inscrições gregas que exige uma reflexão mais profunda. Pois, se ele marca a submissão do leitor ao escrito, sua significação não fica assim esgotada. Ele revela na verdade um modo singular, compartilhado por toda uma cultura, de pensar a relação entre escritor, objeto escrito e leitor. Essa maneira de pensar pode resumir-se assim: o objeto escrito é designado na primeira pessoa, enquanto o escritor designa-se na terceira (na verdade, somente a partir de 550 a.c. se começa a ter objetos que são designados, explicitamente, na terceira pessoa, como que para ocultar a violência, real, marcada pelo "eu"). Uma ânfora do século VI pode ser citada como exemplo: "Kleimachos me fez e eu sou dele, ekeínou eimt":". No momento da leitura, Kleimachos não estará mais lá, estará ausente, fato que o demonstrativo
ekeínos exprime com precisão (ekeí-nos é o de-
monstrativo de terceira pessoa para indicar que alguém não está mais "aqui", mas sim "lá", ou mesmo no "além": ekeí). Em compensação, a ânfora permanecerá lá: ninguém mais do que ela pode reafirmar o "eu" da inscrição. Kleimachos não pode. Ele escreve na ânfora porque prevê sua própria ausência no fururo (caso contrário, não valeria a pena escrever). Ele se designa como ausente pelo fato de ter feito a inscrição. O resto vai-se passar entre a ânfora inscrita e o leitor, colocados face a face como "eu" e "tu". Por causa de suas inscrições na primeira pessoa, o túmulo de Glauco e a ,"
ânfora de Kleimachos pertencem a uma categoria de objetos aos quais há muito tempo são feitas referências com o termo "objetos falantes". Autor de um artigo clássico consagrado a esses objetos (1962), Mario Burzachechi tentou uma explicação sobre a surpreendente escolha da primeira pessoa para designar o objeto inscrito". Explicação animista, pois, segundo Burzachechi, o fato de atribuir uma alma e uma voz aos objetos seria típico das civilizações primitivas, e é somente a partir da segunda metade do século VI a.c. que "se começa a notar uma certa racionalização da estátua, que perde seu antigo halo de magia". Mas é em um outro nível que se situa o princípio dessa categorização: ele reside na relação estabelecida entre a voz e a primeira pessoa que designa o objeto inscrito (único critério de seleção do corpus). Ao designarem a si próprios por um "eu" ou, às vezes, por um "nós", esses objetos julgam "falar". Considera-se o objeto dotado da "palavra" pela única razão de que ele se designa por "eu". É verdade que essa ligação entre a primeira pessoa e a voz pode parecer uma evidência. Para questioná-Ia, basta no entanto fazer a seguinte observa-
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JESPER SVENBRO
ção: se a voz era consricutiva da primeira pessoa, um indivíduo mudo não poderia aspirar ao "eu". Total absurdo, que nos obriga a desfazer essa ligação, se não quisermos permanecer prisioneiros de uma certa metafísica da voz. A primeira pessoa não é mais provida de voz - ou de interioridade que a terceira. Em si mesma, não possui voz alguma. Em compensação, a primeira pessoa situa seu referente, seja ele um ser humano ou um objeto. Em vez de ser sinal de animismo,
a escolha da primeira pessoa para designar o
objeto inscrito diz respeito a uma representação original desse mesmo objeto, presente Ç'eu") diante do leitor ("tu") na ausência do escritor ("ele, ela"). Atesta, ao mesmo tempo - mas isso é uma outra história - a pouca profundidade psicológica que os gregos arcaicos atribuíam ao "eu". Se, por essas razões, a expressão "objeto falante" deve ser evitada em sua acepção corrente, em compensação ela seria perfeitamente
aplicável ao obje-
to inscrito que se apropria da voz do leitor. Pois em uma cultura que pratica a leitura oralizada, todo objeto inscrito é, inevitavelmente, um "objeto falante", qualquer que seja sua estrutura de enunciação, com a condição, é claro, de que encontre um leitor. Empregado dessa maneira, o termo seria sem dúvida de fácil justificativa, se a outra expressão, "objeto inscrito", já não ocupasse o espaço. Parece, portanto, mais aconselhável reservá-lo apenas aos objetos que utilizam, por sua própria conta, a metáfora da voz, como naquela inscrição à qual logo voltaremos mais longamente: "A cada um que me pergunta, respondo a mesma coisa, isto é, que Andron, filho de Antífonas, dedicou-me como dízimo"41. A estatueta arcaica provida dessa inscrição é um "objeto falante" devido a seu emprego não da primeira pessoa "eu", mas de um verbo que significa "responder" - oralmente, bem entendido. Ela levanta a "voz", sua voz metafórica. Na época arcaica, essa metáfora é raríssima, e a inscrição citada, que data do final do século VI, constitui verdadeiramente o primeiro exemplo indiscutível que temos dela. Não importa por quanto tempo uma tal inscrição é classificada como "objeto falante" no sentido de Burzachechi, seu caráter excepcional corre o risco no entanto de passar desapercebido, pois o que poderia acrescentar a metáfora da voz a um objeto que já consideram falar? Daremos aqui todo o peso devido a essa metáfora que, na realidade, é tão notável que nos convida a um estudo ao mesmo tempo global e minucioso. Pois a lógica que ela utiliza parece ir ao encontro de tudo o que foi dito nas páginas precedentes sobre a leitura na Grécia antiga. Mais exatamente, em uma cultura na qual o leitor empresta sua voz ao escrito para que este atinja sua realização plena, sonora, a metáfora da voz, referindo-se ao objeto inscrito que dela se serve, parece estranhamente supérflua. Ou antes, ela torna a voz do leitor supérflua: já antes de toda realização sonora, o objeto "falante" possui uma
: 1..A ~CIA
ARCAICA E CLÁSSICA A INVENÇÃO DA LEITURASILENCIOSA
-.c)Z", sua própria voz metafórica,
••
inscritos.
pela qual ele se distingue
53
de outros obje-
Isto significa que o objeto "falante" possui uma "voz" sem ser
'lido em voz alta pelo leitor. Tudo se passa realmente como se a inscrição de ·:Aadron, filho de Antífanes, pudesse economizar a voz do leitor, elevando sua . pápria voz metafórica. Teremos compreendido desse modo porque foi necessário insistir na no"objeto falante" e dar-lhe uma nova definição: o objeto que emprega a
.po de
~ora da voz para designar sua própria enunciação escrita ("eu respondo") JIUIIlite-nos na verdade considerar, à guisa de hipótese, a existência de uma 6anna de leitura inédita. Forma de leitura oposta àquela que ocupou o centro .• ~
·c
nossas preocupações até aqui. Pois a lógica da inscrição de Andron não parece estar de acordo com a leitura tradicional. Nosso estudo teve a
.••• tagern de nos tornar sensíveis ao caráter quase chocante de um ler não oraliado, melhor dizendo, de uma leitura silenciosa. A incongruência desta última é, de certo modo, dupla: em relação à leitura oralizada, que sem nenhu_
dúvida foi a forma de leitura dominante
pesquisa moderna, da possibilidade
que, em geral, permaneceu
na Antiguidade, profundamente
e em relação à cética diante
de uma leitura não oralizada na Grécia antiga". Se, para os
sregos, a finalidade da escrita alfabética foi, como afirmei antes, a produção _ som, de palavras eficazes, de glória retumbante, por que teriam tido a idéia tkler !
r..
..-e
em silêncio'
Por que teriam lido de modo silencioso em uma cultura
faz do silêncio o sinônimo do esquecimento? O obstáculo parece temí-.d. Para melhor fundamentar a hipótese de uma leitura silenciosa, é preciso pxtanto procurar, no contexto cultural da referida época, elementos suscetí~ de torná-Ia plausível. Encontramo-los em um domínio não sem relações, OJIDO
ante
já vimos, com a leitura: o da lei, do nómos, da justiça. Domínio que, duo século V a.c., atesta uma notável interiorização da voz.
Em uma cena muito teatral do Críton de Piarão, no meio do diálogo, os Himoi ("Leis") personificados tomam a palavra para a conservar praticamente ai o final. Erguendo-se ao lado de Sócrates e de Críton, esses Nómoi expliam longamente por que Sócrates não deve fugir de sua prisão. Sobre o que Sócrates, que dirige esse discurso no diálogo, faz a seguinte observação: "Aí CRá, meu cato Críton, aquilo que, note bem, creio ouvir, como as Coribanres em seu delírio acreditam ouvir flautas; e é o ruído destas palavras que, troando em mim, faz com que eu julgue agora tudo o que poderias replicar, tu o dirás inurilmente":". Já constatamos que a voz dos Nómoi, apesar de seu "ruído", não é uma voz real, exterior. Os Nómoi que Sócrates faz atuar são aqueles que ele ouve em si mesmo, sem nenhum estímulo acústico provindo do rnerior. Normalmente, o diálogo interior de Sócrares - o "diálogo da alma consigo mesma" -
dispensa a voz, conforme se diz no Sofista e no Teeteto":
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JESPER SVENBRO
o pensamento de Sócrates se produz em silêncio. Aqui, portanto, não é mais o mesmo caso. A voz dos Nómoi tem tal força que Sócrates é incapaz de "ouvir outra coisa", até mesmo de "obedecer aos outros". Ele obedecerá aos Nómoi, que troam nele. Não obedecerá a Críron, seu velho amigo. As vozes exteriores não contam mais. Sócrates ouve apenas essa voz interior que lhe diz o que não deve fazer. Ela rememora
assim fortemente
a voz "dernônica"
de que se fala em
Teágenes, no Fedro e, sobretudo, na Apologia, onde Sócrates diz: "Tudo começou na minha infância: é uma voz,phóne, que se faz ouvir em mim e que, cada vez que isto acontece, me desvia daquilo que eventualmente estou prestes a fazer, mas que jamais me leva à ação":". A mesma passagem nos ensina que Sócrares tinha o hábito de falar dessa voz interior a seus concidadãos; a acusação que ia conduzi-Io à morte parece ter aludido a isso. Aquilo que chamaríamos "a voz da consciência" se mostra aqui como novidade capaz de provocar escândalo. Porque, para a maioria dos contemporâneos de Sócrares, a voz do nómos é sempre, sem dúvida, uma voz exterior, não uma voz inreriorizada e individual. Para eles, o nómos distribui-se de maneira pública. Imaginam mal esse "pequeno distribuidor"
que é o daimónion socrãtico",
proferindo um
discurso - de uso estritamente pessoal - no interior do indivíduo, sem que esse discurso possa ser ouvido ao mesmo tempo pelo outro. Lembramos assim que o nómos pode ser compreendido como uma distribuição vocal, como uma recitação ou como uma leitura em voz alta. Em todo o caso, como um fenômeno sonoro, acústico: a distribuição da justiça, da díke é uma operação exterior cujo instrumento
é a voz. Conseqüentemente,
a pró-
pria díke é uma justiça exterior, difundida publicamente, por exemplo, pelos três reis hesiódicos, aos quais fiz alusão ao estudar o sentido de némein. Ora, como bem o demonstrou Eric Havelock, é somente a partir da época de Heródoto e de Protãgoras, contemporâneos de Sócrates, que essa díke se interioriza, com o aparecimento da palavra dikaiosúne, que significa "sentido da justiça":". Interiorização que pode ser observada no plano lexical, portanro, e que comprova a do nómos como "voz da consciência" atestada por Sócrares na obra de Platão. Na verdade, trata-se de um mesmo e único movimento de interiorização realizado durante o século V, que é também o século que nos fornece os primeiros testemunhos diretos sobre a leitura silenciosa, isto é, sobre a interiorização da voz do leitor, daí em diante capaz de "ler com a mente".
A LEITURA SILENCIOSA Em seu artigo "Silenr reading in Anriquity" (1968), Bernard Knox cita dois textos do século V a.c. que parecem mostrar que os gregos - ou, para
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r. A GRÉClA ARCAICA E ClÁSSICA A INVENÇÁO DA LEITURASILENCIOSA
ser mais preciso, certos gregos - praticavam a leitura silenciosa e que, na época da guerra do Peloponeso, os poetas dramáticos podiam contar com uma familiaridade de seu público em relação a ela". O primeiro desses textos é uma passagem do Hipôlito, de Eurípides, que data de 428. Nela, Teseu percebe a tabuinha de escrita que cai da mão de Fedra morta e se pergunta o que ela pode querer anunciar-lhe. Ele rompe o selo. O coro intervém para cantar sua inquietação, até que seja interrompido por Teseu: "Ai! À desgraça, que desgraça vem juntar-se, intolerável, indizível! Como sou desafortunado! "49, exclama ele. A pedido do coro, revela em seguida o conteúdo da tabuinhanão lendo-a em voz alta, mas resumindo seu conteúdo. Leu-a claramente em silêncio, durante o canto do coro. O segundo texto de Knox é uma passagem dos Cavaleiros de Aristófanes, que data de 424. Trata-se da leitura de um oráculo escrito, que Nícias conseguiu roubar de Paflagão. "Traga-o a mim para que eu o leia", diz Demóstenes a Nícias, que lhe enche uma primeira taça de vinho e pergunta: "Que diz o oráculo?"; Demóstenes, absorvido em sua leitura, responde-lhe: "Enche-me uma outra taça! - Diz ele realmente 'Enche-me uma outra taça'?", pergunta então Nícias, acreditando que se trata de uma leitura em voz alta feita por Demóstenes.
Essa brincadeira
é retomada
e desenvolvida
nos versos que se-
guem, até que Dernósrenes revele a Nícias: "Aqui está dito como Paflagão vai perecer'?". Em seguida, faz um resumo do oráculo. Ele não o lê: já o fez - em silêncio. Esta passagem apresenta-nos, portanto, um leitor que tem o hábito de ler mentalmente - ele sabe até pedir algo para beber enquanto o faz! - ao lado de um ouvinte que não parece habituado a essa prática, mas que toma as palavras ditas pelo leitor como sendo palavras lidas, o que na realidade elas não o são. A cena dos Cavaleiros é particularmente insttutiva, pelo menos à primeira vista, pois ela indica que a prática da leitura silenciosa não é conhecida de todos em 424 (Piarão tem então cinco anos), ainda que seja supostamente conhecida do público da comédia. É uma prática reservada a um grupo limitado de leitores e sem dúvida desconhecida de um bom número de gregos, sobretudo, pode-se pensar, daqueles analfabetos que não conhecem a escrita senão do "exterior". Além disso, é preciso lembrar que os dois documentos citados são de proveniência ateniense: em locais onde, como em Espana, existia o esforço para limitar o ensino das letras ao "estrito necessário", a leitura silenciosa deve ter sido ainda bem menos conhecida e praticada. Para o leitor que lê pouco e de maneira esporádica, a decifração lenta e hesitante do escrito não conseguiria
fazer surgir a necessidade
de uma interiorização
da voz,
pois a voz é exatamente o instrumento pelo qual a seqüência gráfica é reconhecida como linguagem. Conforme vimos, a sonorização do escrito é pro-
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JESPER SVENBRO
gramada, negativamente, pela ausência dos intervalos. E se essa sonorização é um valor em si mesma, por que sentir a necessidade de abandonar a scriptio continua, obstáculo técnico ao desenvolvimento da leitura silenciosa? Porque a ausência dos intervalos foi um obstáculo que permaneceu. Mas não foi um obstáculo insuperável, como se poderia acreditar a partir da experiência medieval, na qual, segundo Paul Saenger, a word division foi uma condição necessária para que a leitura silenciosa - praticada por monges que copiavam os textos em silêncio - pudesse se propagar". Pois acabamos de constatar que os gregos parecem ter aprendido ler em silêncio, mesmo conservando sua scriptio continua. Como sugere Knox, o contato com grandes quantidades de textos é que abriu a possibilidade para uma leitura silenciosa na Antiguidade, silenciosa e, portanto, rápida. No século V, um Heródoto precisou abandonar realmente a leitura em voz alta no transcorrer de seu trabalho de historiador e, já durante a segunda metade do século VI, com uma finalidade quase filológica, aqueles que se ocuparam do texto homérico sob os Pisistrãtidas em Atenas - como o fez o poeta Simônides - sem dúvida tiveram a oportunidade de desenvolver esta técnica. Técnica reservada a uma minoria,
bem entendido,
mas uma minoria
importante,
na qual se encon-
tram certamente os poetas dramáticos. A introdução apenas do intervalo não foi suficiente para generalizar a leitura silenciosa na Idade Média. Foi preciso mais do que essa inovação técnica introduzida já no século VII de nossa era. Foram necessárias as exigências da ciência escolástica para que as vantagens da leitura silenciosa - rapidez, inteligibilidade - fossem descobertas e exploradas em grande escala. Somente no interior daquela ciência, a leitura silenciosa conseguiu "pegar"ao mesmo tempo que permanecia praticamente desconhecida do resto da sociedade medieval". Do mesmo modo, diria eu, o contato freqüente com grandes quantidades de textos não é um fator suficiente, por si só, para que a leitura silenciosa "pegasse" durante o século V a.c. em certos meios da Grécia antiga. A leitura extensiva aparece antes como o resultado de uma inovação qualitativa, na atitude em relação ao escrito. Como o resultado de todo um quadro mental, novo e poderoso, capaz de reesttuturar as categorias da leitura tradicional. A leitura silenciosa não poderia ser estruturada unicamente pelo fator quantitativo: na verdade, o próprio Knox cita somente autores pós-clássicos - por exemplo, Dídimo de Alexandria, autor muito erudito de vários milhares de livros - quando quer evocar as vastas leituras dos antigos. Em compensação, ela poderia ser estimulada pela experiência do teatro.
I. A
GRÉClA ARCAICA E CLÁSSICA A INVENÇÃO
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DA LEITURASILENCIOSA
Que traços distintivos da representação teatral são suficientemente níti,tios e originais a ponto de terem podido estruturar a nova prática da leitura silenciosa? É natural que se pense inicialmente
na separação bem marcada
earre a cena e o público. Essa separação delimita o jogo fictício que se desen; JDIa no palco e constitui, de certa maneira, a própria originalidade do teatro: o público não pode intervir nesse jogo. Não pode, por exemplo, comunicar a , lUDa personagem do palco aquilo que já sabe sobre seu destino. Não pode deter o curso dos acontecimentos explicando às personagens aquilo que defazer. Deve "contemplá-Ias" (théâsthai) quando, no jogo trágico, cami, oham para sua própria destruição. A tensão criada por essa situação torna as1I'elIl
sim mais fascinante
a ação no palco: o espetáculo
teatral se dá com tal
autonomia que o público não deve perrurbar, como quer a regra do "jogo" flaidiaj de que fala Tespis, quando, em pleno século VI, defende sua arte no~ contra a crítica indignada de Solon". O público - e já o de Tespis - deve olhar e escutar. Passivamente. Não cabe aos espectadores intervir na representação, nem ler o texto que, ausente da cena, conduz no entanto toda a ação. Memorizado pelos atores, o texto não é visível no momento em que é dito". Os atores o substituíram
de modo
a traduzi-lo em "escrita vocal"expressão que se justificará plenamente mais adiante - em vez de leitura em voz alta. Os atores não o lêem: produzm sua cópia vocal. Nisso, distinguem-se
do leitor ordinário, que empresta
sua voz ao escrito que está diante dele. Não julgamos que o leitor comum ,possa produzir uma outra escrita - vocalquando lê, pela simples razão , de que sua voz é percebida como o prolongamento "natural" do escrito, seu acabamento ou suplemento necessário. Ela não pode, assim, ser considerada sua cópia. A leitura em voz alta se faz em presença do escrito, de modo que o ouvinte dessa leitura não se engane sobre a relação de contigüidade entre escrita e voz. Contrariamente
às palavras pronunciadas pelo ator, as do leitor
não são palavras decoradas (se bem que todo leitor tenha a liberdade de memorizar aquilo que lê). Em compensação, a distância entre o texto dramático e a difusão que dele fazem os atores parece bastante grande para que esta última mereça a designação, ainda provisória, de escrita vocal. Antes do espetáculo, os atores talvez tenham lido o texto para memorizá-lo, mas, durante a representação, suas vozes substituem o escrito. Os espectadores escutam sua "escrita vocal". E se o ator não se confunde com o leitor, a escuta dessa escrita vocal também não transforma espectadores em leitores tradicionais. Enquanto espectadores, não precisam ativar ou reativar o escrito pela intervenção de sua própria
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JESPER SVENBRO
voz, pois o escrito lhes fala com toda autonomia. Eles escutam, passivamente, uma escrita. Uma escrita vocal. A separação entre o palco, onde essa escrita vocal acontece, e o público, que a escuta, é provavelmente bastante clara para ter podido sugerir aos gregos uma separação análoga entre o escrito e o leitor. Ou melhor: ter-lhes aberto a possibilidade de uma nova atitude em relação ao escrito. O leitor tradicional, que necessita de sua voz para "reconhecer" a seqüência gráfica, entretém com o escrito, no plano da sonorização, uma relação sensivelmente ativa (embora, em relação ao escriba do qual executa o programa, possa assumir o papel do "parceiro passivo"). Ele deve fazer um esforço mental e físico para realizar sua função insrrumenral, senão as letras ficarão vazias de sentido. Ao contrário, aquele que sabe ler em silêncio tem uma relação com o escrito que parece sobretudo passiva. Ele não é mais o instrumento do escrito, pois este último "fala" -lhe sozinho. Cabe ao leitor escutar passivamente. Digamos antes que a atividade daquele que lê em silêncio não é vivida como um esforço para decifrar, ela ignora-se como tal (assim como a atividade inrerpretativa do "ouvido" escutando uma seqüência sonora significante é uma atividade que se ignora como tal - ela aparece sobretudo como uma recepção passiva). Seu "reconhecimento" do sentido é imediato, não precedido de um momento opaco. O leitor que lê mentalmente não precisa ativar ou reativar o escrito pela intervenção mente. Ele escuta uma escrita escrita vocal dos atores. O escrito rece possuir a mesma autonomia
da voz. A escrita parece-lhe falar, simplesassim como o espectador no teatro escuta a que é "reconhecido" de maneira visual paque o espetáculo teatral. As letras lêem-se
- ou, antes, dizem-se - elas mesmas. O leitor "silencioso" não deve intervir na cena da escrita: capazes de "falar", as letras podem dispensar a intervenção de sua voz. Elas já possuem uma. Cabe ao leiror simplesmente tá"-la - no interior de si mesmo. A voz leitora acha-se interiorizada. Se essa "passividade"
"escu-
do leitor é herdeira da passividade do espectador
de teatro, até que ponto, voltando no tempo, poderíamos esperar segui-Ia? As análises de George Thomson do verbo hupokrínesthai, "representar um papel"55, poderiam ajudar-nos a marcar o momento decisivo em que se instala essa passividade. Como Thomson observou, hupokrínesthai significa duas coisas distintas nos poemas homéricos: "responder" e "interpretar" (um presságio ou um sonho). Contrariamente a outros estudiosos, que procuraram escolher entre essas duas significações para explicar a origem de hupoeritês, "ator", Thomson pergunta-se por que elas foram cobertas por uma só palavra, como em uma passagem da Odisséia em que Peisistrato diz a Menelau: "Explica [ ...} se é para nós ou somente para ti que um deus fez ver este presságio!". Homero prossegue: "A essas palavras, Menelau C ..} refletiu a fim de lhe dar a respos-
59
'. L A GiÉClA ARCAICA E CLÁSSICA: A INVENÇÃO DA LEITURASILENCIOSA
· ., hllPokrínaito, convenienre'i". Poderíamos ter traduzido igualmente: "a fim .•
lhe dar a interpretação
conveniente".
A chave do problema,
segundo
~mson, é fornecida por uma passagem do Timeu, onde se diz "que os proiflitai são hupokritaí de palavras e de sinais enigmáticos, mas que não são ab·...tutamente ·'Ihomson
.-em
mánteis [isto é, adivinhos proferindo suas palavras em êxtase)";7. conclui: hupokrites dá origem à designação de uma personagem a
se fazem perguntas sobre "palavras e sinais enigmáticos" -
;pttação
sua inter-
constituirá sua resposta. Se essa personagem estiver conduzindo um
éDro que realiza um rito cuja significação escape àqueles que assistem, o bu. I-kritfs pode "responder" às perguntas, "interpretando" o que se passa, por
~aemplo, · .uoei
dizendo: "Sou Dionísio e estas são as filhas de Eleutério que eu ful-
com a loucura". E mais tarde, quando começa a dar "respostas-inter-
pretações" sem que lhe peçam, de repente ele não é mais um hupokrites no ~tido Jl8Ço
antigo. Tornou-se, assim, ator. Estabeleceu-se a separação entre o escênico (a partir daí autônomo) e os espectadores (doravante passivos).
Ora, é precisamente Andron,
o verbo hupokrínesthai
filho de Antífanes,
que se lê na inscrição de
à qual convém agora voltar. Encontrada
em
Atenas, essa inscrição métrica, de dialeto ático, pertencia a uma estatuera de bronze agora perdida, que datava do final do século VI a.c.
ís'
pãsin
onthrôpois hupokrinomai
o lodo
hóstis
erõtâi
homem
....................................................................... ..........
que pergunta eu respondo
.
identicamenle
.
hõs m' onéthêk'
dekórên
Ándrõn Antiphónous Andron, filho de Antífanes,
que
.
..... me dedicou
como dizimo
Diante dessa inscrição que se transcreve e se traduz assim, algumas observações impõem-se imperativamente. No final do século VI, o teatro já existe em sua forma instirucionalizada: os concursos trágicos começam em 534 e as representações trágicas - antes de Ésquilo com um só ator e um coro -
remontam
provavelmente
a aproximadamente
trinta anos anres".
Quando a estaruera recebe sua inscrição, o poeta trágico Tespis (o inventor
do ator) já está em plena atividade. O verbo hupokrínomai tem, pois, inevita.elmente
uma significação mais rica que minha tradução -
"eu respondo"
60
JESPER SVENBRO
- permite supor. Em dialeto ático, "responder" não é com efeito hupo-krínesthai como em jônico. Em Atenas, emprega-se apo-krínesthai nesse sentido. Se o autor da inscrição tivesse desejado escrever "eu respondo", teria utilizado apokrínomai, que é o equivalente métrico de hupokrínomai. Ele não o fez. Somos, portanto, levados a crer que este verbo foi escolhido para exprimir mais do que a simples idéia de uma resposta. Ao empregar hupokrínomai, a estatueta inscrita eleva sua "voz". Ela "faIa". E pela força das circunstâncias, seu dizer é tanto um dizer teatral quanto vocal: por sua voz metafórica, a inscrição responde a uma pergunta que não lhe foi feita, mas que ela antecipa, com toda autonomia, como o hupokritts no teatro, que dá sua resposta sem que lhe peçam. Mas se hupokrínomai significa ao mesmo tempo que ela interpreta o que se coloca como um enigma - isto é, que sentido se deve dar à estatuera inscrita? -, ela se interpreta a si mesma, ela decifra-se diante dos olhos do especrador-Ieiror, que não deve fazer esforço para vocalizar o escrito, já que ele próprio se "vocaliza" aqui. Hipócrita leitora, que nos oferece a representação da voz! Verdadeiramente a primeira. Pois antes da invenção da leitura silenciosa, a escrita visava ã produção de uma voz e não à sua representação. Até sua sonorização, ela não representava para nós mais do que letras batidas por um macaco. Dirigindo-se ao espectador-leitor, que não deve fazer ouvir sua voz, a inscrição pode doravante oferecer seu sentido diretamente ao olhar: por que ler em voz alta, se a inscrição sabe "falar" em silêncio? O sentido do objeto chega ao olhar do leitor como por uma espécie de irradiação ou de "eflúvio". O objeto irradia seu sentido sobre o leitor. Seu sentido não é mais laboriosamente ativado pela voz do leitor. Sua escrita é autônoma,
ela "fala". Tal é,
parece-me, a lógica dessa inscrição, que atesta de maneira indireta (e não de maneira direta, como as passagens de Hipõlito e dos Cavaleiros) uma prática de leitura silenciosa para a Atenas do final do século VI e, por extensão, a inreriorização do espaço teatral no espaço escrito. Doravante, o espaço da escrita é suscetível de ser uma cena. Essa nova forma de leitura, na qual o leitor se encontra como que "passivizado" enquanto espectador de uma escrita ativa, irradiando seu sentido, obedece a um esquema baseado na teoria da percepção visual, tal como foi elaborada por Empédocles, leucipo e Demócriro durante o século V. No início, em Empédocles, a situação parece confusa. Segundo as palavras de Aristóteles, "Empédocles assemelha-se àquele que acredita ver quando a luz sai do 0Iho"59.Empédocles toma, portanto, posição inversa àquela que envolve a leitura silenciosa, na qual o escrito emite sentido na direção do olhar. Mas - coisa significativa - Aristóteles acrescenta: "Ora Empédocles declara que se vê assim, ora afirma que a visão se produz graças às emanações, apór-
61
I A GRtClA ARCAICA E ClÁSSICA A INVENÇÃO DA LEITURASILENCIOSA
_ai, dos objetos vistos":". Com efeito esta última posição triunfará entre aus sucessores: os arornisras, a começar por Leucipo, vêem também a visão o resultado de uma emanação ou de uma efluescência, aporrhoé, dos objetos vistos, indo em direção ao olho. No século III de nossa era, um filósofo
CDIl10
RSUme assim a teoria atomista:
"Eles atribuem
Irndo a mesma forma que o objeto, resultam
a visão a certas imagens que, (verbo: aporrhetn) incessante-
mente dos objetos vistos e atingem o olho: tal era a posição da escola de I.rucipo e de Dernócrito"?'. Entre os atomistas, a visão se deve, portanto, a mna emissão contínua de corpúsculos pelo objeto visto, emissão que, de modo mais ou menos complicado (devido às coerções inerentes à teoria atomisIa), é finalmente
recebida pelo olho. A posição de Empédocles
ma sua ambigüidade
proma para elaborar uma nova, mais satisfatória. aomistas
-
deve sem dú-
ao fato de o filósofo ter abandonado uma teoria recebida
herdeiros dessa nova teoria -
Ao contrário, a posição dos
parece, desde o início, rompida,
pelo menos no que se refere ao aspecto que nos intetessa aqui. O o\ho não emite um raio para ver, ele recebe o eflúvio dos objetos vistos: tal é a direção pela qual se supõe passar a informação visual. Essa relação analógica entre a percepção visual e a leitura silenciosa, em que o olho parece receber passivamente
a irradiação do escrito, não adquire
toda sua importância antes de ser confrontada com um fato fundamental da a:oria dos atomistas. Para eles, as combinações dos elementos no mundo físi, m explicam-se
com o auxílio do modelo alfabético,
bmam graças às combinações significa "letras" e "elementos" mmédia
no qual as palavras se
das 24 letras: em grego, stoikhefa realmente ao mesmo rernpo". "Escrevem-se tragédia e
com as mesmas letras", lemos em Leucipo'"; da mesma forma, no
mundo físico, são os mesmos elementos que se combinam e se recombinam para mudar as coisas. Com razão, falou-se da "onrografia" dos atornisras (Heinz Wismann). De maneira que, em sua teoria, a percepção visual é suscetível de Ir tornar uma leitura - uma leitura silenciosa do mundo. Se, no século VI, a estátua dedicada por Andron está isolada enquanto ebjeto "que fala" (no sentido que determinei anteriormente), o século V vai lDrllar sua metáfora cada vez mais corrente. Não tanto no domínio das inserições, mas entre autores que praticam uma escrita menos lacônica e que, por esta razão, são mais suscetíveis de mudar seus hábitos de leitura. Meu primeiro exemplo é Ésquilo, cuja precedência nesse domínio é muito significativa (logo se compreenderá por quê). Nele, o emprego da metáfora é suanido por três escudos de heróis, a saber os de Capaneu, de Etéocles e de . ftolinice nos Sete contra Tebas", "Por brasão, diz aí o mensageiro a Eréocles, Capaneu tem um homem nu, carregando o fogo; uma tocha flamejante arma soas mãos, e ele proclama, phõnei, em lerras de ouro: 'Incendiarei a cidade' ''.
62
jESPER SVENBRO
Em uma peça de teatro na qual é encontrada a expressão sinestésica notável "vejo o estrondo", parece lógico que os objetos tomem a palavra e que a personagem desenhada no escudo "vocifere", como naquele citado, ou "grite", boâi, como no escudo de Etéocles, com as letras alfabéticas desenhadas ao lado dele. Finalmente, no escudo de Polinice, vê-se a Justiça personificada, identificada não devido a seus atributos tradicionais, mas graças a uma legenda: "E esta gaba-se de ser a Justiça, como diz, légei, a inscrição colocada junto dela". Meu segundo exemplo é Heródoro. Para ele, as letras do alfabeto começam igualmente a falar, légein, e isso maciçamente; e os oráculos escritos, os monumentos fúnebres e os trípodes levantam também a "voz" assim como a estátua de pedra do rei egípcio Serhos, que "pronuncia" sua própria inseriçã065. Para o historiador que escreve de maneira extensiva e que lê ainda mais, a leitura silenciosa, que se tornou mentalmente possível pela experiência do teatro (podemos lembrar aqui que Heródoto é amigo de Sófocles), impõe-se naturalmente. Ele deve ler rapidamente, mesmo que seja apenas para elaborar melhor sua própria obra escrita. E acelerar a rapidez da leitura significa de certa forma interiorizar necessariamente a voz leitora. Fazer abstração da voz e ler mentalmente.
A "CENA" DA ESCRITA E A ESCRITA NA ALMA A inscrição de Andron, filho de Antífones, marca um momento decisivo nas relações dos gregos com o espaço escrito: não é um acaso se o Fedro de Platão lhe faz eco, com mais de um século de distância, em uma passagem que se refere ao que é inerente à escrita". Comparando esta última à pintura, Sócrates censura ao escrito o fato de "significar sempre a mesma coisa", isto é, exatamente aquilo de que se gaba a inscrição de Andron. Naturalmente, o filósofo poderia ter dirigido a mesma censura a um ator, cuja voz não é senão o instrumento de um texto imutável e não a de alguém que possui um saber, epistêmõ . Na verdade, ele o faz em outra parte. As duas coisas vêm a dar no mesmo pois, como se viu, o escrito e o ator são análogos, intercambiáveis. O ator substitui o escrito no palco, o escrito substitui o ator na inscrição de Andron. Produzindo aquilo que chamo de uma "escrita vocal", o ator abre a possibilidade de uma nova atitude em relação ao escrito, a possibilidade de uma leitura silenciosa. De fato, a estaruera com a inscrição dedicada por Andron define-se como "ator", hupokrités, o que pressupõe essa nova atitude. O espaço escrito é um "palco" que toma emprestada sua lógica ao espetáculo teatral, atribuindo o papel do espectador ao leitor. Ele interioriza o teatro. Esta conclusão justifica-se ao mesmo tempo pela inscrição de Andron e por uma passagem como a do Hipôiito de Eurípides, já citada, na qual a "prancheta de escrita" de Fedra morta "grita, grita horrores, boâi boâi dé/tos álas-
'I.. A GREClA ARCAICA E ClÁSSICA A INVENÇÁO DA LEITURASILENCIOSA
63
". Tal como foi encenado por Eurípides, acredita-se que o escrito não sote "fale" durante o ato da leitura silenciosa, mas ainda "grite". Ele é mescapaz de cantar: "Tal é, tal é o canto sonoro" - continua Teseu alguns ·WI'SOS adiante "que vi elevar-se dessas linhas escritas, boion boion etdon en hals mélos pbtbengõmenon'?', O ator que canta o papel de Teseu (estamos ,'!1m uma passagem lírica) canta portanto um mélos sonoro que surge do escri-
~
isto é, um canto para o olho. No palco, um ator que canta; na prancheta de escrita - lida em silêncio por isso mesmo, interiorizando o espaço teatral -letras que "cantam". É ~cil imaginar uma representação da leitura silenciosa mais instrutiva do 9Ie esta. E isto por duas razões. Inicialmente, ela faz intervir, em um canto • primeiro grau apresentado no palco, o canto figurado do escrito, subli.bando, através desta inclusão, a analogia entre o espaço teatral e o escrito ;lido em silêncio. Em seguida, estabelece claramente a correlação entre o objrro "falante" e a leitura silenciosa: à "voz" ouvida na mente durante a lei tu·_ silenciosa corresponde precisamente o objeto "falante" . O testemunho de Bipólito não se reduz assim aos fatos externos - que não permitem distin,pir de modo indiscutível entre leitura silenciosa e leitura simplesmente ·iDaudível para os outros -, mas comporta um aspecto interno, que corrobo·_ a interpretação de Bernard Knox, acrescentando-lhe fatos que se referem à s 8Rjuitetura mental de uma leitura verdadeiramente silenciosa. Se, dessa maneira, o teatro se interioriza no livro, este por sua vez inte; noriza-se no espaço mental, designado ora como pbrên, ora como psukhé". E : isto, bem antes de PIarão, que em uma passagem do Fedro opõe a escrita co;-.um à "escrita na alma'?", Nosso primeiro testemunho da metáfora "o livro :da alma" é com efeito Píndaro, que em um poema de que já se falou ante..ftormente (na análise do verbo anagignàskein) exclama: "Lêde para mim o -.orne do vencedor olímpico, aqui onde está escrito (verbo: gráphein) em meu · espírito (phren)!"69. Mas é entre os trágicos que esta metáfora terá sua maior · trpercussão antes de ser retomada por Platão. E com razão: os poetas dramáticos, que produzem textos destinados a serem decorados por seus atores, viwm muito concretamente a inscrição do texto no espírito do ator. Para o · poeta dramático, o ator recebe uma inscrição, tanto quanto a pedra ou a folha de escrita, e seu interior é um espaço da escrita. O que significa que o imO dramático está "inscrito" no espírito daquele que o diz em cena. Assim R justifica a expressão "escrita vocal" que utilizei ao longo destas páginas, e mmpreende-se por que Ésquilo - que introduz o segundo ator" - escreve _ memória de seus atores, enquanto Homero (fosse ele um escriba) não pode ser considerado como alguém que escreve na memória de seus aedos, muito distantes dele - no tempo e no espaço - para que tal metáfora pudesse ser pertinente.
64
JESPER SVENBRO
Citemos os exemplos que provêm da obra de Ésquilo, embora a mesma metáfora esteja presente nos dois outros grandes trágicos. Em Prometeu acorrentado, o protagonista declara: "A ti primeiramente, 10, direi os erros de tua corrida arrebatada: inscreve-os nas pranchas fiéis de tua memória (phrénes)!"71. Prometeu é uma personagem ção, Danao também
ligada à origem da escrita; segundo uma tradi-
o é. Eis aqui de que maneira ele se dirige a suas filhas:
"E agora, na terra, minha previdência
vos exorta a conservar meus conselhos
bem gravados em vós". E a mesma metáfora volta mais adiante na mesma peça quando Danao diz: "Agora, às numerosas lições de modéstia inscritas em vós por vosso pai, acrescenrareis a inscrição seguinte!". Nas Eumênides, o coro compara a memória de Hades a uma prancha de escrita: "Hades, sob a terra, exige terríveis contas aos humanos, tudo guarda fiel transcrição".
e sua alma (phrén) que tudo vê, de
E em meu último exemplo tirado de Ésquilo,
Electra diz a Orestes: "Ouve e inscreve em teu coração (phrénes)". É uma fórmula que o poeta trágico poderia ter utilizado ele próprio ao dirigir-se a um de seus atores.
EM ATENAS: A REPRESENTAÇÃO DO ALFABETO Assim se estabelecem
relações de interiorização
entre teatro e livro tanto
quanto entre livro e alma. Mas, a esses dois movimentos
de interiorização
-
do teatro ao escrito, do escrito à alma -,
dois movimentos
de
correspondem
exteriorização que vão no sentido inverso. Antes de mais nada, o espaço mental é naturalmente
exteriorizado
no livro. Pode-se mesmo postular a existên-
cia de uma escrita silenciosa, embora ela seja talvez impossível de se documentar. Com efeito, o bupõmnêm« escrito pode substituir uma memória enfraquecida":
ele constitui
uma memória exterior, objetiva, um "lembrete"
que não deve ser confundido
com a memória viva de uma pessoa. Consciente
dos limites dessa memória objetivada, um Platão a utiliza, assim como o poeta dramático, cujo texto constitui um bupâmnêma, que não foi escrito tendo em vista os leitores da posteridade,
mas sim um espetáculo
singular,
do
qual ele parece constituir condição indispensável. Se o espaço mental pode exteriorizar-se no espaço escrito, este último pode, por sua vez, exteriorizar-se no espaço teatral. Primeiro, naturalmente, quando o texto dramático é representado, movimento de um certo modo original nesse sistema de representações interdependentes, visto que dá lugar àquilo que chamei "escrita vocal". Mas essa exteriorização foi literalmente representada na Grécia antiga - e de maneira bastante singular - no Espetáculo do alfabeto (ou em grego: a Grammatike theõría) do poeta ateniense Callias". Esta peça coloca problemas difíceis no que se refere à data de sua composição
1. A GRÉClA
ARCAICA
E CLÁSSICA
A INVENÇÁO
DA LEITURA SILENCIOSA
65
e à sua relação, no plano musical e métrico, com a Medéia de Eurípides (que data de 431) e com o ÉdiPo rei de Sófocles (que é de pouco depois de 430). Será ela a inspiradora dessas peças ou delas constitui uma paródia? Não posso entrar aqui neste debate. Contento-me em atribuir uma data aproximada à peça, dizendo que ela pertence à segunda metade do século V a.Ci: todas as datas que foram propostas caem nos limites desse período. De qualquer modo, essa aproximação será amplamente suficiente para meu propósito. O que o Espetáculo do alfabeto oferece à contemplação (theõría) de seus espectadores (theatai)? Nada menos do que um coro de vinte e quatro mulheres representando o alfabeto jônico, apresentado da seguinte maneira no prólogo: "Alfa, beta, gama, delta, e (que é a letra de Apelo), zeta, eta, teta, iota, capa, lambda, mi, ni, xi, ou, pi, rô, sigma, tau, u; fi assiste, tal como qui, a psi - até ô!". Em seguida, o coro, colocando-se dois a dois, nos faz assistir a um exercício de escola elementar: "beta alfa: ba; beta e: bê; beta eta: bé; beta iota: bi; beta ou: bo; beta u: bú; beta ô: bô; - e depois, na antístrofe: gama alfa: ga; gama e: guê; gama era: gué", e assim por diante, o que compõe 17 estrofes ao todo, cantadas em uma única e mesma melodia. Após esse "coro silábico" - que provocaria arrepios nos atuais especialistas do aprendizado da leitura -, vem um diálogo entre o professor e duas mulheres:
o professor
-
É preciso pronunciar nas. -
Primeira mulher O professor -
Ou.
Dizei a sexta!
Segunda mulher O professor -
lota.
A quinta!
Primeira mulher O professor -
Então, direi eta.
Em seguida, direis a quarta!
Segunda mulher O professor -
só alfa, senhoras, e, em segundo lugar, e ape-
Vós direis a terceira vogal!
É u.
Mas a última das sete vogais, õ, eu vo-la digo, e, então, todas as sete metrificadas. Quando as tiverdes pronunciado, dizei-as a vós mesmas!
No fragmento seguinte, Callias diverte-se dando a descrição detalhada de duas letras sem que seus nomes sejam pronunciados, mas de maneira a fazer compreender de quais se trata. Em Teseu, Eurípides faz a mesma coisa: um pastor analfabeto descreve as letras do nome TESEU sem saber o que elas significarn". Em Callias, compreende-se por que o mesmo ptocedimento
não se
deve à ignorância das letras: "Estou grávida, senhoras, diz uma mulher [talvez a Escrita personificada}; por pudor, minhas amigas, vou pronunciar-vos o nome do bebê descrevendo a forma das letras. Há uma longa linha reta; no
66
JESPER SVENBRO
meio dela, há duas pequenas linhas curvadas para o alto, uma de cada lado. Em seguida, vem um círculo sobre dois pequenos pés". Trata-se de '\)I e de n, dois sinais do alfabeto jônico e, portanto, bastardos no contexto ateniense. Foi, aliás, precisamente por essas duas letras que a décima sétima estrofe do "coro silábico" precisou terminar. Infelizmente, não conhecemos a significação exata - certamente obscena - de psõ. De qualquer modo, psõ deve fazer referência a algo que a mulher se envergonha de dizer. E, pelo fato de o gracejo ter sido feito em cena, podemos acrescentar que essas duas letras têm um valor pictográfico próprio a gracejos obscenos. Afinal, Sófocles utilizou um ator que dançava a forma das letras em cena no drama satírico Anfiarau75• De qualquer modo, durante a segunda metade do século V a.c., representou-se o alfabeto jônico no teatro de Dionísio, em Atenas. Isto é um fato notável. É nessa mesma época que as letras começam a "falar" em grande escala na obra de Heródoto, amigo de Sófocles, fenômeno que atesta de maneira indireta a prática da leitura silenciosa (e, acrescentaria eu, da escrita silenciosa). Por um movimento exatamente inverso ao da inscrição de Andron, que o precede em cerca de um século, o Espetáculo do aljàbeto deixa ver aquilo que é normalmente dissimulado no teatro, isto é, o escrito. O "grande ausente" da cena aí faz finalmente palavra derivada -
sua aparição. Já o título da peça insiste nisso: theõría,
como théatron -
de theáomai ("eu vejo, contemplo"),
sig-
nifica precisamente espetáculo para os olhos. Vamos, portanto, ver as letras no teatro, e não somente ouvir a "escrita vocal" dos atores. As letras alfabéticas serão oferecidas aos olhos, não apenas inscritas na memória dos atores. Toda a cena deixará ver que ela é, no fundo, um espaço da escrita capaz de "responder" - de ser dito, de ser lido e de ser interpretado em voz alta. A idéia de uma tal representação
dramática
só pôde ter nascido no espí-
rito daquele para quem as letras já são autônomas e cuja vocalização não é condição necessária para a compreensão das mesmas. Isto é, no espírito de alguém para quem as letras se tornaram "puras" representações de uma voz (realmente transcrita ou fictícia, como no caso de uma escrita silenciosa) e cuja finalidade primordial é a de produzir kléos, renome sonoro - ainda que não seja a única. Em suma, no espírito de alguém que considera a leitura silenciosa intimamente familiar. Tal conclusão é no entanto inadequada, na medida em que ela sugere que a leitura silenciosa finalmente triunfou no mundo grego. Na realidade, ela permaneceu um fenômeno marginal, e praticada por profissionais da palavra escrita, mergulhados em leituras suficientemente vastas para favorecer a interiorização da voz leitora. Para o leitor médio, a maneira normal de ler permaneceu sendo a leitura em voz alta, como se fosse impossível apagar a razão primeira da escrita grega: produzir o som, e não represenrá-Io. A voz jamais
67
A GRÉClA ARCAICA E ClÁSSICA: A INVENCÃO DA LEITURASILENCIOSA
abdicará na Antiguidade
grega. Por razões de cultura, seu reino não está se-
riamente ameaçado. Assim, a leitura silenciosa não desenvolveu seu próprio vocabulário, mas recorreu simplesmente
aos termos já existentes, tal como
anagignóskein, que doravante pode referir-se não somente ao reconhecimento acústico do escrito lido em voz alta, mas também ao reconhecimento da seqüência gráfica, "falando" diretamente
visual
aos olhos. Por todo seu caráter
inovador, a leitura silenciosa dos gregos permanece, pois, profundamente
de-
terminada pela leitura em voz alta, da qual ela conserva como que um eco interior irreprimível.
NOTAS 1
P. Chantraine,
"Les verbes grecs signifiant
'Iire'", em Mélanges Grégoire, II, Bruxelles,
1950, p. 115-26. 2
Sófocles, fr. 144 Nauck.
; Teócrito, Idy!!es, 18,47-8 . .I
Epicarmo, fr. 224 Kaibel.
j
Ver C. Gallavorri,
"Letrure epigrafiche",
1975, p. 172-7; B. Forssman,
Miinchener Ssudien zur Sprachwissenschaft, 6
Hesíquio, s.V.annémein (=
Quaderni urbinati di cultura classica, n. 20,
"ANNEMOTA
ananémein);
in einer dorischen
Gefãssinschrifc",
34, 1976, p. 39-44. Scbolies à Pindare, III, 222, 16-7, Drachmann.
- W. Peek, Griechische Vers-Inschriften, I, Berlin, 1955, n. 1 210, 1-3. 8
Ver Ê. Benvenisre, Problêmes de iinguistiqta générale, I, Paris, 1966, p. 168-75 ("Actif et moyen dans le verbe").
9
Chantraine, arr, citado, p. 115.
10
Plurarco, Vida de Licurgo, 16, 10.
11
Alcman, fr. 40.
12
Hermippe,
13
Para
1.1
Sirnônides, fr. 37, 11-2; Heródoto, I, 173.
15
Hesíodo, Os trabalhos e os dias, 224 e 213.
16
Plutarco, ibid., 13, 1-4.
i-
A. Magdelain, La foi à Rome, Paris, 1978, p. 17.
!8
Piarão, Teeteto, 143c.
:9
Ver Demóstenes, XXI, Contra Mídias, 8 e 10, erc.
20
P. Herrmann, "Teos und Abdera im 5. Jahrhundert
fr. 88 Wehrli.
° magistrado
chamado nomoidõs, ver Estrabão, XII, 2, 9.
v. Chr.", Cbiron, 11, 1981, p. 8 e 11.
68
.'ESPER SVENBRO
11
Chantraine, art. citado, p. 126.
12
Hesíquio, s.v. epineimdto.
2.\
Píndaro, Otimpiades, 10, 1.
" Chantraine, art. citado, p. 115. 25
Para a expressão, ver Hipócrates, Do regime, I, 23.
21i
Anecdot« Graeca, Il, 793-5 Bekker; cf. Liddell-Scorr-jones,
5.\'.
itoikIJúOlI, II, l.
'" Xenofonre, Mémorables, I, 6, 14. 2X
29
Esopo, Fables, 276 Chambry. Para estes dois verbos, ver Chanrraine , art. citado, p. 122-6 e 118 respectivamente. Para o sentido "ter relações com", ver Plutarco,
Vida de SO/Oli, 20.
-I,
e Xenofonre,
Anabase, I, 2, 12, etc. lO
Górgias, fr. 11,8 Diels-Kranz.
li
Píndaro, fr. 152 Bowra, etc.
" M. Charles, Rhétorique de Ia lecture, Paris, 1977, p. 9 . .H
Ésquines, Contre Timarque, com as análises de K.
J.
Dover, Hontosexn.riité gl'eeqtlB, tr. fr.,
Paris, 1982, p. 42 . .;4
M. Foucault, Histoire de Ia sexualité, Il, L'tlsage des plaisirs, Paris, 1982. p. 205-69.
15
Ver supra, p. 4 e n. 5.
jli
Piarão, Fedro, 242c.
l'
Piarão, República, Il, 9, 366e.
j8
G. Pfohl, Greek poems on stones, I, Epitaphs. From the Seuentb to tbe Fift]: Century (Textus Minores, 36), Leyde, 1967, n. 15 .
.19 40
M. Guarducci, EPigrafia greca, M. Burzachechi,
"Oggecti
m,
Roma, 1975, p. 482.
parlanri
nelle epigrafi greche",
Epigraphica,
24, 1962,
p. 3-54. 41
M. lazzarini, Le formule delle dediche nel]a Grecia arcaica (Art i deJla Accademia Nazionale dei lincei. Memorie. Classe di scienze morali, sroriche e filologiche, 8' sér., XIX, 2), Roma, 1976, n. 658.
42
Citemos o artigo clássico de].
Balogh, "Voces pag inarum",
Pbilologus,
82, 1927,
p. 84-109 e 202-40. Crírica em B. M. W. Knox, "Silent Reading in Anriquity", Roman and Byzantine Studies, 9, 1968, p. 421-35. 43
Piarão, Crtfton, 54d.
,j
Piarão, Sofista, 263e-264a; Teeteto, 18ge-190a.
45
Plarão, Apologia, 31d (cf. Teágenes, 128d.; Fedro, 242b-c).
46
Dnimõnion tribuir").
é o diminutivo
de daimon, literalmente
"distribuidor"
(de daíesthai,
Greek,
"dis-
69
A GRÉClA ARCAICA E ClÁSSICA A INVENÇÃO DA LEITURASILENCIOSA
.- E. A. Havelock,
"D'iisaiosune: An essay in Greek intellectual
hisrory", Phoenix, 23,
1969, p. 49-70.