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Portuguese Pages 191 Year 2012
PERFIS DA EDUCAÇÃO Organização e Introdução Maria Ciavatta Textos selecionados de Gaudêncio Frigotto GAUDÊNCIO FRIGOTTO Um intelectual crítico nos pequenos e nos grandes embates
E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei se até alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amadureciam depois, para remoçar mais tarde. (Machado de Assis, cap. VII de Memórias póstumas de Brás Cubas )
Cronologia
Introdução Sujeito e estrutura na apresentação de um intelectual crítico Maria Ciavatta A entrevista realizada com Gaudêncio Frigotto tem a intenção de revelar traços da identidade do “professor visto de perto” a partir de sua trajetória de vida. Não se trata nem mesmo de uma síntese de biografia, mas apenas de traços de um perfil como quer a coleção Perfis da Educação. Perfil são traços de identidade, o contorno de um rosto visto de um de seus lados, no caso, um profissional da educação, intelectual docente crítico e militante dentro das condições de vida que lhe foram dadas pela sua história: “os homens não fazem a história como querem, mas nas condições
que lhes foram dadas” (M ARX , 1980). A ação profissional e a ação política são marcantes em sua caminhada de vida e nos textos selecionados. Um perfil guarda sempre os traços do ponto de vista de quem o desenha. E aqui o fizemos singelamente, pela palavra e pela imagem fotográfica, buscando resgatar a história do homem professor pesquisador. Entramos aqui no terreno da história, das “ideias arriscadas”, no dizer do historiador Eurelino Coelho (2010), que é o debate sobre o método em história, ou o debate epistemológico e teórico-metodológico que não está muito em moda entre os historiadores. O que orienta a atenção dos estudiosos são “as práticas e experiências plurais de construção do saber histórico, escritas da história” (C OELHO , 2010, p. 7). Não estamos alheios às práticas nem às experiências do professor entrevistado, mas o sentido histórico que damos aos fatos narrados insere-se nas dimensões da realidade social, do tempo e espaço de suas vivências. Orientados pelas reflexões do autor (C OELHO , 2010) e de outros historiadores (a exemplo de C ARDOSO , C., 2005; V ILAR , 1987; F ONTANA , 2004; F ONTES , 2001), entendemos que as características do objeto da história impõem questões de método que buscam responder à questão epistemológica da verdade passível de ser reconstruída ao nível do pensamento. Trata-se de “pensar a história como a dialética entre a ação dos sujeitos históricos (que fazem a história) e as condições dadas em que tais sujeitos têm que agir (que eles não escolhem)” (C OELHO , 2010, p. 8). Tradicionalmente, a história ocupou-se dos grandes feitos, dos grandes homens, daqueles que, por terem uma representatividade para os povos e as nações, perpetuaram uma memória de relatos consagrados ao longo do tempo. Para Marx (1979) a história é a produção social da existência. Essa afirmação, aparentemente singela, representa uma revolução na forma de compreender e escrever a história. A história somos nós, somos todos aqueles que vivemos e produzimos e nos reproduzimos como homens e mulheres comuns, mas todos com histórias de vida, de lugares, de acontecimentos que são legados às novas gerações. Uma reflexão correlata é posta por Labastida (1983): “a história como processo e a história como método”. A história como produção social da existência é a história como processo de vida que envolve a totalidade social dos fatos que constituem a existência humana. A história como método é a reconstrução ao nível do pensamento desses mesmos fatos, ou, nos termos de Marx (1977), o real como “a síntese de múltiplas determinações”. Coelho (2010) inicia sua exposição por dois problemas clássicos da história, singularidade e subjetividade: “Somente um acontecimento que possui história própria (que o fez acontecer do modo que aconteceu e não de outro modo) pode ser tomado como objeto da História” (p. 8). Somos singulares, únicos na nossa forma de ser, na nossa história de vida. A impossibilidade de repetir os fenômenos sociais distingue de forma irrecorrível as ciências sociais e a pesquisa experimental. A pesquisa experimental, quantitativa, tem por base o tratamento dos dados, entendidos como fenômenos singulares, reduzidos a uma homogeneidade que não existe no caso da pesquisa social porque os fenômenos sociais não são passíveis de
reprodução experimental. Nisso está a singularidade da história que, nos termos do século XIX, restringiu a singularidade aos feitos dos “grandes” homens ou aos “grandes” feitos, acontecimentos significativos, principalmente, em termos de poder político. Quanto à subjetividade, ela diz respeito à história que é sempre protagonizada “por sujeitos distintos, também irrepetíveis”. Para o autor, somente “mediante a arbitrariedade metodológica se pode desconsiderar a evidência da singularidade dos sujeitos” (C OELHO , 2010, p. 8). Diríamos, a presença dos sujeitos que fazem a história. Ao comemorar 100 anos de existência, em 1993, “a história somos nós” foi o lema adotado pelo mais importante sindicato italiano de trabalhadores. O risco paralelo à consideração do sujeito e da subjetividade, como inerente à história, é resumi-la ao sujeito, independente da sociedade de que ele faz parte, como fazem alguns estudos culturais que limitam o objeto histórico aos objetos empíricos, de natureza quantitativa ou qualitativa; ou aos documentos, ou à sua representação, senão ao discurso construído por quem lê a história (a exemplo de alguns estudos de Roger Chartier). Ou ainda, fazer a equivalência do discurso histórico ao literário e confiná-lo à subjetividade do narrador ou à verdade histórica equivalente à ficção da literatura (a exemplo de W HITE , 1995). A recusa aos sistemas explicativos, própria ao pensamento pós-moderno, também encontra apoio na recusa “aos modelos generalizantes” ou “sociológicos” de explicação. Mas, nesta bem-intencionada orientação, “por exemplo, as pesquisas passam a priorizar o escravo como sujeito em detrimento da escravidão como sistema, ou a identidade em detrimento das relações sociais ” (C OELHO , 2010, p. 8, grifos do autor). Seria como, no delineamento do perfil de Gaudêncio Frigotto, desconhecermos sua origem familiar de agricultores imigrantes, italianos, a vida no interior gaúcho, a formação filosófica social cristã e, depois, marxista e as condições de vida e de trabalho que o levaram a se tornar um importante educador e intelectual crítico de nosso tempo. Outro aspecto de interesse histórico na vida do intelectual focalizado é sua educação e o trabalho. Excetuando-se os povos primitivos, que têm no cultivo para a sobrevivência e na cultura, que organiza seus grupos étnicos ou tribais, no Ocidente europeu e no Oriente, na América Latina, no Brasil, o domínio das letras, das artes, da filosofia, em resumo, das humanidades e da “ciência”, destinava-se às elites, aos nobres, às autoridades religiosas. Estes eram repassados aos filhos dos detentores do poder para organizarem as sociedades e comandarem a produção e a distribuição de bens necessários para manter a vida. Aos trabalhadores que serviam aos senhores com sua força e sua lealdade, deviam bastar os conhecimentos úteis à agricultura, ao artesanato, aos ofícios ou aos serviços. Vemos assim que o conjunto de conhecimentos informais ou sistematizados na organização escolar teve em vista algum tipo de aprendizado ligado ao poder de mando e ao trabalho. O currículo escolar constituiu-se, portanto, na dependência do lugar que homens e mulheres ocupam na sociedade, e a seleção dos conteúdos se fez a partir da
importância desses conhecimentos para o exercício das funções sociais desempenhadas pelas diversas classes e grupos sociais, em suma, pelo trabalho. Gaudêncio cresceu no campo, em uma comunidade rural. Embora fosse neto do homem mais instruído do local e que se tornou o professor da escola, o menino Gaudêncio se criou conhecendo o rude trabalho do campo. Na entrevista que se encontra neste livro, ele expõe suas raízes: Primeiramente, a socialização primária como o menino do campo numa situação, digamos assim, de pequenos agricultores, onde se produz a minha infância de zero ano aos 12 anos. Mas nunca me desliguei do campo; tanto que hoje, por exemplo, a identidade que eu tenho com o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], essa identidade tem a face dessa socialização primária onde a terra era o problema. [...] A segunda [marca] é, exatamente, a possibilidade de, no fim dos anos 1950, um filho de pequeno agricultor, minifundiário, poder seguir a vida escolar. Aí, então, entra a minha vida de internato num seminário dos Frades Capuchinhos, ¹ onde passei, sete anos [...]. (C IAVATTA , 2012, p. 13). A recusa na consideração dos sistemas e dos sujeitos inseridos na estrutura social revela outra dificuldade na construção do objeto histórico, a política que é parte da vida social. Na aceitação da estrutura social, “a ideia do protagonismo dos sujeitos cede passagem à problemática do assujeitamento, as estruturas saltam para o centro da explicação histórica” (C OELHO , 2010, p. 8). Nos dias de hoje, imersos na bem-sucedida sociedade capitalista (dos ricos), depois da débâcle do sistema socialista na antiga URSS em 1989, nada mais contraditório do que a perspectiva marxista de análise, tanto para a reconstrução histórica da realidade como para a atuação política com vistas à transformação da sociedade capitalista (dos pobres) em que vivemos no Brasil e em muitas partes do mundo. Gaudêncio retira da vida intelectual, que a escolaridade progressiva lhe proporciona, os elementos de compreensão e de atuação nas políticas educacionais e com os movimentos sociais. Sua ida a uma escola de rígida formação intelectual e moral e, na juventude, a saída dessa instituição para uma faculdade de filosofia, com inserção nos movimentos sociais e na resistência à Ditadura dos anos 1964 a 1985, deram-lhe a perspectiva das lutas sociais pela democracia e pela transformação da sociedade. A investigação das relações estabelecidas pelos sujeitos situados nas estruturas a que pertencem supõe superar a aparência, a visão abstrata (no sentido de abstraída) dos fenômenos da totalidade social de que são partes indissociáveis, salvo pelo desconhecimento ou recusa metodológica de assim considerá-los na análise da realidade. Para Coelho (2010) seria tomar o fenômeno como autodeterminado. No campo do trabalho e da educação, das políticas públicas, que constituem o campo de pesquisa de Frigotto, “a verdade do salário não é ser ele renda do trabalho, mas sim ser a forma pela qual o trabalho é explorado em sua relação com o capital”(p. 8). É nessa relação que não se revela na aparência do campo empírico que o trabalho se torna um fenômeno histórico (C OELHO , 2010), parte de uma totalidade social, o sistema capitalista.
Duas outras questões de método estão imbricadas na apresentação do perfil deste educador. A primeira é o conceito de totalidade social. A segunda é a concepção dos tempos múltiplos de Braudel (1992). O termo “totalidade”, além da concepção sistêmica que traz consigo, apresenta uma dificuldade semântica de origem histórica, tem a mesma raiz de totalitarism o e, fora do contexto teórico a que pertence, alguns rejeitam por entender que se confunde com tudo. No sentido de totalidade social dialética, na filosofia política marxista, o termo não guarda nenhum dos dois significados. Totalidade não é tudo, porque se fosse não teria valor discriminativo e conceitual para a análise dos fenômenos, não poderia ser uma categoria epistemológica. Nos termos da Contribuição à crítica da economia política (M ARX , 1977), o real concreto é a “síntese de múltiplas determinações” quando a aparência do fenômeno é desvelada na sua essência, naquilo que o constitui como totalidade social de relações articuladas, processos sociais complexos ou mediações históricas (C IAVATTA , 2001). Todavia, a totalidade não é um todo estruturado fechado, mas um conjunto de relações abertas ao movimento da vida, da história, das contínuas transformações da realidade. Zemelman (1982) fala em totalidades abertas às novas determinações, sob a ação dos sujeitos sociais. Não obstante as dificuldades operacionais na pesquisa social, o conceito de totalidade social também permite pensar os tempos múltiplos da análise de Braudel (1992): a longa duração do capitalismo (da geoistória econômica do mediterrâneo); a média duração da conjuntura e o tempo breve dos acontecimentos. O tempo é um fenômeno inefável, exceto pelo conhecimento das mediações da realidade em movimento, em contínua transformação. A concepção de tempos múltiplos faz apelo à simultaneidade em que os fenômenos ocorrem, em que as coisas, aparentemente, se superpõem umas às outras. Essa multiplicidade de ocorrências no tempo e no espaço, ou do tempo como movimento no espaço, contrasta com a percepção cronológica, sequencial, que temos do tempo e da vida humana, da natureza que lhe é intrínseca. A “Cronologia” mostra as etapas de vida, de formação e de trabalho de Frigotto (em anexo). Mas a vida ocorre na simultaneidade de muitas temporalidades. A longa duração do capitalismo deu-lhe a percepção de como se produz a existência humana no trabalho duro no campo, a disputa pela propriedade da terra e a exploração do trabalho assalariado no campo e na cidade. Essa percepção tomou corpo nos estudos de filosofia e na política de apoio a militantes que lutavam contra a Ditadura (1964-1985). Novas temporalidades ou novas conjunturas tomam forma no casamento com Edith e a ida ao Rio de Janeiro para cursar o mestrado em Educação. A vida pessoal e a vida profissional são simultâneas ao longo tempo do capitalismo. Este se revela no ambiente intelectual estimulante, mas também no conservadorismo institucional da Fundação Getulio Vargas, permeado por brechas do pensamento dialético de um Durmeval Trigueiro Mendes, professor cassado do Conselho Nacional de Educação pela Ditadura.
A acolhida acadêmica e militante de Julieta Maria Calazans deu-lhe a oportunidade de conhecer o país, dando aulas a professores de cursos técnicos nos mais diversos lugares do Brasil, além da introdução na atividade docente da pós-graduação. Esta se aprofunda progressivamente em nova e significativa conjuntura, o doutorado, nos anos 1980, sob a coordenação de Dermeval Saviani, na PUC de São Paulo. Mais tarde, toma forma no trabalho em universidades públicas e nos vínculos com os movimentos sociais de luta redemocratização política do país. Entre outros acontecimentos da vida profissional e da vida pessoal, os tempos breves de que fala Braudel, são momentos marcantes do período a publicação dos livros de sua tese de doutorado (F RIGOTTO , 1995) e a de professor titular de Economia Política da Educação (F RIGOTTO , 2002); a intensa atividade na criação do doutorado em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); a atuação na base de elaboração de políticas educacionais na primeira fase do Partido dos Trabalhadores; o nascimento de suas filhas Giovana, Larissa e Alexandra (de 1978 a 1985) e, mais recentemente, o nascimento das netas Letícia e Maria Eduarda (2010 e 2011). O tratamento das fontes é outro problema a ter-se atenção quando se pretende uma abordagem histórica de um tema ou acontecimento. Coelho (2010) alerta que a existência de fontes não pode liberar o pesquisador de problematizar o objeto, limitando-se a transcrever os documentos em forma narrativa. Este livro se fundamenta em três tipos de documentos: a entrevista semiestruturada com Frigotto, acompanhada da cronologia; as fotografias de seu acervo familiar e os textos (artigos e capítulos de livros) selecionados entre a vasta produção acadêmico-científica do autor. A entrevista decorreu em situação interativa, segundo as perguntas que lhe fizemos e os rumos da memória do entrevistado, mas não no curso livre e inteiramente subjetivo de uma narrativa de história de vida. No entanto, a subjetividade do narrador deve ser considerada nas ênfases dadas aos fatos, na importância pessoal, subjetiva dos momentos destacados. Do ponto de vista de sua objetividade, trazemos o confronto do conhecimento que temos do autor, como colega de trabalho docente há quase três décadas, e o conhecimento de sua obra da qual selecionamos, de comum acordo, os textos reproduzidos nesta obra. Falamos em subjetividade e em objetividade e devemos explicitar, minimamente, como tratamos esse complexo problema epistemológico que é, também, metodológico, porque entendemos “que o método não se separa da construção do objeto” (C ARDOSO , 1977) e envolve a relação sujeitoobjeto. ² A questão tem origem na filosofia e mereceu uma vasta literatura. Constitui, de acordo com as diversas correntes e tendências, o campo da teoria do conhecimento que se coloca para todas as ciências e, particularmente, para as ciências sociais, onde o homem é o sujeito que investiga e ele é o próprio objeto de estudo. Três são as posições fundamentais para se conceber a relação sujeito-objeto (S CHAFF , 1978, p. 72 e ss.). Elas dizem respeito ao sujeito que conhece, ao
objeto de conhecimento e ao conhecimento como produto do processo cognitivo, que é uma interação específica entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. Historicamente, elas sinalizam a ruptura com a filosofia da história e o nascimento das ciências sociais no final do século XIX, quando o homem deixa de ser sujeito, consciência e produtor da história para tornar-se objeto. A filosofia refletia sobre o sujeito, que tem uma consciência racional, livre, autônoma, produtora de sentido sobre os objetos. As ciências humanas e sociais nascentes (Marx, Dilthey, Durkheim, alcançando a passagem do século XIX para o século XX) desenvolvem uma forma diferente de ver as relações entre as condições externas, objetivas e a consciência humana. “O novo objeto-homem, abordado pelo novo saber das ciências sociais, é empírico, observável, repetitivo, quantificável, regular, submetido a condições objetivas, limitadoras de sua vontade e independentes de sua intencionalidade” (R EIS , 2000, p. 40-41). Uma primeira concepção privilegia a atuação do objeto sobre o sujeito, cujo aparelho perceptivo é receptivo, passivo, contemplativo. O produto desse processo é o conhecimento, que seria o reflexo, a cópia do objeto. No limite da interpretação, é a construção mecanicista da teoria do reflexo. Associa-se a ela a definição clássica de verdade, segundo a qual um juízo é verdadeiro quando sua formulação está conforme ao seu objeto. Essa concepção está subjacente à concepção positivista de história que vê na descrição empírica dos fatos o conhecimento objetivo, de acordo com a realidade. Na segunda posição, concebe-se o predomínio do sujeito que conhece. O sujeito que percebe o objeto e produz o conhecimento é o elemento predominante ou exclusivo do processo cognitivo. Seu elemento positivo é o reconhecimento do papel ativo do sujeito. Nas suas formas estritas, essa concepção conduz ao subjetivismo, ao idealismo e ao relativismo presentes nos pensadores historicistas. Para esses “críticos da razão histórica”, a consciência não é um epifenômeno, não está ausente dos fenômenos estudados, mas não está inteiramente submetida às condições objetivas (R EIS , 2000). Uma terceira posição tenta superar o predomínio do sujeito ou do objeto, pela ênfase na relação que se estabelece entre os dois. Neste sentido, a história humana constitui o desdobramento das possibilidades do homem no tempo (K OSIK , 1976, p. 217-218). O conhecimento não seria apenas o registro do objeto por um sujeito passivo, embora seja “submetido a diversos condicionamentos, em particular, às determinações sociais, que introduzem no conhecimento uma visão de realidade socialmente transmitida” (S CHAFF , 1978, p. 75). ³ Para Coelho (2010, p. 15-16), [...] se a própria subjetividade não se esgota em si mesma, ou seja, se os sujeitos não podem ser considerados como autodeterminações, a história não pode limitar seu interesse à história das subjetividades. [...] História será, então, sempre a investigação da história do ser social, isto é, de sujeitos determinados atuando em circunstâncias determinadas. O homem, sujeito e objeto na produção do conhecimento, não é um indivíduo isolado, mas um sujeito social que realiza a história e nela se realiza; produz
conhecimento sobre si e sobre o mundo em que vive, se organiza e se aperfeiçoa nos embates que trava. “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência [...]” (M ARX , 1979, p. 37-38). Um último aspecto correlato a este é o conceito de práxis. Na mesma Ideologia alemã, Marx (1979) reitera que “toda vida social é essencialmente prática”. Mas aqui, também, é preciso não retirar o conceito do conjunto de sua obra. A prática supõe a materialidade da ação sobre o mundo exterior, mas envolve toda a sociabilidade que nela se gera, envolve a cultura, a política. Por essa duplicidade de ações, o conceito tem sido objeto de discussão entre os estudiosos, principalmente pela sua convergência com o conceito de trabalho, como atividade fundante, ontocriativa da vida humana (L UKÁCS , 1979). De nosso ponto de vista, pela ação do trabalho, o ser humano produz a própria existência e, nesse agir, põe em movimento todo seu potencial físico e mental. A práxis seria seu desdobramento como ação política. Particularmente, em Gramsci (1978), a filosofia da práxis é o conhecimento e a prática para a transformação da sociedade da exploração do trabalho em que vivemos. O trabalho intelectual e político de Frigotto se realiza no contexto dessa polêmica. Mas este é um tema onde o consenso está longe de ser alcançado. A entrevista que realizamos foi centrada nas ações do sujeito e nas suas relações sociais e familiares. Foi complementada com fotos do acervo pessoal da família. Lá estão o “nono” (avô), os pais, os irmãos, as instituições educacionais onde Frigotto se formou, a esposa, as filhas e as netas. O uso da fotografia como fonte histórica (C IAVATTA , 2002) requer alguma atenção. A ambiguidade é intrínseca à imagem fotográfica que mostra e esconde o objeto ao mesmo tempo, revelando o fenômeno na aparência e ocultando as relações que lhe estão subjacentes, o contexto de sua produção, a totalidade social à qual cada imagem pertence. Isso não nos permite abrir mão da riqueza e do ineditismo de informações que a imagem, diferentemente da palavra, nos transmite. E, muito menos, nos autoriza a utilizá-la com ilustração. Nosso contato imediato com a realidade é com sua aparência, com o que se mostra à vista, as qualidades exteriores ou o que constitui a representação de um objeto. Para se chegar à “coisa em si”, é necessário fazer certo détour. Por isso o pensamento dialético distingue o conceito da coisa de sua representação. Não significa distinguir duas formas e dois graus de conhecimento da realidade, “mas, especialmente, duas qualidades da práxis humana”, porque o ser humano não é um abstrato sujeito cognoscente, mas um indivíduo histórico que age objetiva e praticamente (K OSIK , 1976). A fotografia, ela própria é um documento que, tratado como mediação histórica, para não esgotar-se na aparência, na sedução estética da imagem ou na comunicação, supõe que se busque a totalidade social a que pertence, as mediações sociais de sua produção, apropriação, preservação e sentido de seu uso. Para que as fotografias apresentadas não se tornem apenas uma curiosa ilustração da entrevista, com a ajuda de Frigotto, identificamos a data ou o período em que foram produzidas e, com apoio de outras
informações, constituímos legendas que revelam seu contexto e significado. Este processo de leitura da fotografia, com o apoio de outras fontes, é o que a historiadora Ana Maria Mauad Essus (1990) chama de intertextualidade. ⁴ A reflexão sobre a natureza documental da fotografia implica também seu tratamento enquanto monumento, ou seja, a análise de sua condição inevitável de construção histórica destinada à perpetuação de alguma memória, do ponto de vista do grupo social que produziu e/ou apropriou-se das fotos. No caso, são fotos do acervo familiar, “monumento” afetivo, mas não menos revelador da história do homem e de suas raízes, que contribuem para outro tipo de conhecimento do entrevistado, tal como a importância da coesão familiar, a importância de serem lembrados e reconhecidos amorosamente juntos. Testemunho visual das aparências, como informação e como fonte de recordação e de emoção, a imagem fotográfica associa-se à memória e introduz uma nova dimensão no conhecimento histórico, tradicionalmente obtido através da linguagem oral e, principalmente, da escrita. Analisando a origem e a expansão da fotografia no Brasil, além de resgatar o conhecimento possível sobre o tema, Kossoy (1989) mostra os limites da preservação da memória documental no Brasil, de modo particular, a memória fotográfica. Fatores de ordem cultural e econômica impediram que, ao lado da produção fotográfica que foi abundante desde a segunda metade do século XIX, também se desenvolvesse o registro e a preservação ampliada dessa memória, frequentemente restrita ao âmbito familiar. Para Miriam Moreira Leite (1993) e Ecléa Bosi (1987), o instrumento socializador da memória é a linguagem, e pode-se considerar a fotografia como um tipo de linguagem que, ao mesmo tempo, reduz a história vivida, unifica-a através do quadro espacial recortado pelo fotógrafo e aproxima o olhar sobre determinados aspectos da experiência cotidiana. A fotografia atua, portanto, como um instrumento socializador da memória de indivíduos, grupos e instituições. A terceira fonte de estudo para o conhecimento de Frigotto são os textos selecionados. Neles, particularmente, evidenciam-se os embates com o mundo criado pelo sistema capital, em países como o Brasil e outros da América Latina. Os temas em destaque são a exclusão e/ou a desigualdade, a questão do trabalho, a sociedade de classes e a história e as políticas educacionais no país. Eles refletem a preocupação do autor com a teoria para pensar a ação política na sociedade. O primeiro texto foi apresentado em um evento do Consejo Latinoamericano de las Ciencias Sociales (CLACSO) em 2001, no contexto da implantação e das consequências das políticas neoliberais na América Latina desde os anos 1990. Inicia reconhecendo o embate ideológico e político expresso pelo termo “exclusão social”, que [...] expressa, certamente, o diagnóstico e a denúncia de um conjunto amplo, diverso e complexo de realidades em cuja base está a perda parcial ou total de direitos econômicos, socioculturais e subjetivos. Sinaliza, quem sabe, o sintoma de uma realidade contraditória em cuja base está a forma mediante a qual o capital reage às suas crises cíclicas de maximização de lucro, vale
dizer, suas crises de tendência de queda da taxa de lucro (F RIGOTTO , 2001, p. 419). Na atual crise, o capital estaria expondo “limites nunca antes expostos com igual magnitude e intensidade, resultado de sua forma contraditória, e por isso destruindo, de forma devastadora, direitos constituídos ao longo, especialmente, dos últimos 100 anos”. Não se trataria apenas de um conceito do campo da epistemologia, porque não “apreenderia as mediações constitutivas da materialidade histórica atual da forma capital, cujo escopo é de ampliação e radicalização da sua natureza intrínseca – a desigualdade” (F RIGOTTO , 2001, p. 419). Em outros termos, não cobriria toda a totalidade social onde se gera o fenômeno. No segundo texto, apresentado para debate no Grupo de Trabalho (GT) Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), Frigotto não se prende à transformação semântica do termo trabalho, porque “os sentidos e significados do trabalho resultam e constituem-se como parte das relações sociais em diferentes épocas históricas e [como] um ponto central da batalha das ideias na luta contrahegemônica à ideologia e à cultura burguesas” (p. 169) . A partir desse pressuposto, o autor é levado a [...] compreender e tratar as relações de produção e de reprodução sociais, a linguagem, o pensamento e a cultura de forma histórico-dialética, e que, para não cairmos numa discussão abstrata, atemporal ou, nos termos de Marx, escolástica, o sentido do trabalho, expresso pela linguagem e pelo pensamento, só pode ser efetivamente real no campo contraditório da práxis e num determinado tempo e contextos históricos (F RIGOTTO , 2009, p. 169). O autor desenvolve seu texto polemizando com autores do campo do trabalho (como Sérgio Lessa e Paolo Tumolo), trazendo o pensamento de nomes importantes das ciências humanas e sociais para o debate (a exemplo de Ricardo Antunes, Marilda Villela Iamamoto e Dermeval Saviani). Apoia-se ainda na discussão sobre o capitalismo dependente , tema que voltou a ser objeto de consideração na primeira década deste século no Brasil (retomando Florestan Fernandes, Rui Mauro Marini) e na discussão do desenvolvimentismo e a democracia nos rumos políticos e econômicos do país (Francisco de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho). O terceiro dos textos selecionados constituiu-se na Conferência de Abertura da XXXIII Reunião Anual da ANPEd, em Caxambu, MG, em 17 de outubro de 2010. O tema retoma Florestan Fernandes, para quem “a história nunca se fecha por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os homens, em grupos e confrontando-se como classes em conflito, que ‘fecham’ ou ‘abrem’ os circuitos da história” (F ERNANDES , 1997, p. 5 apud F RIGOTTO , 2011b). Não perdendo de vista que o conjuntural é parte do estrutural, Frigotto analisa que [...] a década começa em janeiro de 2003 com a posse do atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já que não é o tempo cronológico que
define uma conjuntura, mas a natureza dos acontecimentos e dos fatos e as forças sociais que os produzem. O começo, em janeiro de 2003, se traduz no fato de que, não obstante as diferenças entre a eleição de 1989 e a de 2002, as forças sociais progressistas que conduziram ao poder o atual governo tinham em sua origem a tarefa de alterar a natureza do projeto societário com consequências para todas as áreas. (F RIGOTTO , 2011b, p. 237) Esse objetivo não estaria sendo alcançado porque “a conciliação se dá, por um lado, na continuidade da política macroeconômica fiel aos interesses da classe detentora do capital e, por outro, no investimento na melhoria de vida de uma fração de classe (trabalhadora) que, embora majoritária, não consegue construir desde baixo as suas próprias formas de organização ” (S INGER , 2009, p. 84 apud F RIGOTTO , 2011b, p. 239, grifos do autor). Em síntese, o texto traça uma rigorosa crítica das políticas econômicas e educacionais, destacando a lógica mercantil que tem pautado as políticas de educação tanto durante o Governo Fernando Henrique Cardoso quanto no Governo Lula. “Para o mercado não há sociedade, há indivíduos em competição. E para o mundo da acumulação flexível, não há lugar para todos, só para os considerados mais competentes, os que passam pelo metro que mede o tempo fugaz da mercadoria e de sua realização” (F RIGOTTO , 2011b, p. 251). Outros artigos tomam as dimensões epistemológicas da produção do conhecimento de um ponto de vista marxista e focalizam a interdisciplinaridade e a dialética. Ao referir-se à dialética materialista histórica, o autor assinala a ruptura entre a ciência da história e as análises metafísicas de compreensão do real. É este enfoque que está presente na análise das relações capitalistas de produção para o estudo “Fazendo pelas mãos a cabeça do trabalhador”, que também integra esta coletânea. Os textos de opinião expressam sua atuação política na imprensa, em questões pontuais mas que não perdem o vínculo com a sociedade mais ampla. O primeiro texto foi publicado no jornal Folha Dirigida (F RIGOTTO , 2001b). O artigo ressalta o fato reiterado por vários estudos que “apontam que, no Brasil, passamos de uma ditadura civil-militar para uma ditadura do mercado”, não somente nos negócios mas também na educação, ela também um negócio. E exemplifica com a declaração do reitor de uma universidade privada, o que “não só qualifica o atual modelo econômico-social mas também o projeto educacional do atual governo”. É coerente com o pragmatismo empresarial quando afirma: [...] eu não me interessei pela educação e nem acho que eu seja uma pessoa muito interessada em educação. [...] Estou interessado no Brasil? Não, não estou interessado no Brasil. Na cidadania? Também não. Na solidariedade? Também não. Estou interessado na Estácio de Sá. Ou seja, estou interessado no meu negócio (Estácio de Sá apud F RIGOTTO , 2001b, p. 12).
O segundo artigo, publicado por uma revista do movimento sindical, Retratos da Escola, trata do ensino médio, da educação profissional e das condições de ruptura com o dualismo estrutural que vige, historicamente, na educação brasileira: A minimização da dualidade na educação implicaria efetivar o que a geração de intelectuais do pensamento social crítico entendia como Revolução Nacional. Não se tratava de uma revolução socialista, mas condição prévia de sua possibilidade futura em termos reais, pois o socialismo não resulta do quanto pior, melhor. Tratava-se de afirmar um projeto de desenvolvimento autônomo e soberano com reformas estruturais que permitissem efetiva distribuição de renda e integrar as massas, o povo à vida digna com acesso ao trabalho, moradia, saúde, educação e cultura (F RIGOTTO , 2011a). Como toda história, apresentamos nesta obra fragmentos de uma vida que vai além do que pudemos compreender e expressar nos documentos e observações aqui apresentados. Na história positivista do século XIX e, também, no pensamento pós-moderno do século XX em diante, um dos riscos dos historiadores seriam as teorias. Era preciso “deixar as fontes falarem” (C OELHO , 2010). Corremos o risco de apresentar o professor intelectual crítico da educação e da política, não abdicando das teorias e das questões de método que nos ajudassem na leitura das fontes. Não esgotamos seu pensamento. Buscamos a aproximação possível de sua práxis e de sua vida. Rio de Janeiro, junho de 2012 Referências BOSI, Ecléa. Memória-sonho e memória-trabalho. In: Memória e sociedade: lembranças de velhos . São Paulo: T. A. Queiroz; Edusp, 1987. BRAUDEL. Ferdinand. A longa duração. In: História e ciências sociais . Lisboa, Presença, 1992. CARDOSO, Ciro F. Um historiador fala de teoria e metodologia. Ensaios. Bauru: EDUSC, 2005. CARDOSO, Miriam. La construcción de conocimientos. Cuestiones de teoría y método . México: Ediciones Era, 1977. CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações . Lisboa: DIFEL, 1990. CIAVATTA, Maria. O conhecimento histórico e o problema teóricometodológico das mediações. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria. Teoria e educação no labirinto do capital . Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. CIAVATTA, Maria (Org.). Entrevista com Gaudêncio Frigotto. O professor visto de perto. In: Gaudêncio Frigotto. Um intelectual crítico nos pequenos e nos grandes embates. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
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Entrevista – O professor visto de perto
⁵ “O subjetivo que nós somos é aquilo que a realidade nos permite subjetivar” (G. Frigotto) Esta entrevista foi realizada em uma manhã ensolarada do Rio de Janeiro, em torno a uma mesa, e tem tom coloquial. Realizada de manhã porque, para quem vem do campo como nós, o tempo da luz do dia é o tempo da visão mais clara, do entendimento da vida e da natureza. Em torno a uma mesa, não podia deixar de ser por seu tom coloquial. Gaudêncio é como um irmão mais novo com a experiência e a generosidade do irmão mais velho. Uma entrevista traz aspectos de uma biografia e traços de uma autobiografia porque o entrevistado aceita contar um pouco de sua vida para quem o entrevista, mas conta sua vida com os meandros e recessos daquilo que quer contar. Esta entrevista com o Prof. Gaudêncio Frigotto é sobre o educador, mas “quem educa o educador?” diz Marx. Certamente, é a vida, sua história de vida. Por isso, esta entrevista não é apenas uma leitura escrita de seu Currículo Lattes. Está mais próxima de seu Memorial , de sua biografia, mas tem o roteiro delineado por quem o entrevista a partir de espaços de convivência no trabalho. Eu o conheci, em meados dos anos 1970, durante o curso de mestrado em Educação no Instituto de Estudos Avançados em Educação (IESAE/FGV). Ele já era famoso pela dissertação que fazia sobre o SENAI, ⁶ juntamente com Darcy Costa, ambos orientandos do mais polêmico professor, economista e intelectual positivista que tínhamos, o irreverente Cláudio de Moura Castro. Por caminhos paralelos, em outras instituições e, principalmente na Universidade Federal Fluminense (UFF), fizemos vários projetos de ensino e pesquisa juntos e escrevemos vários livros e artigos. É com a intimidade da colaboração em um longo trabalho intelectual conjunto que elaborei algumas perguntas para esta entrevista.
Quais são suas raízes no presente? O que você considera que constitui sua identidade como intelectual? Veja, acho que são diferentes raízes nesse inventário. Primeiramente, a socialização primária como o menino do campo numa situação, digamos assim, de pequenos agricultores, onde se produz a minha infância de zero ano aos 12 anos. Mas nunca me desliguei do campo; tanto que hoje, por exemplo, a identidade que eu tenho com o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], essa identidade tem a face dessa socialização primária onde a terra era o problema.
Acervo da Família Frigotto, 1954, autor desconhecido. Gaudêncio (à esquerda) nasceu em 12 de fevereiro de 1947. Na foto com os dois irmãos, Lino ( in memoriam) e Braz (in memoriam ), na localidade de Antônio Prado, RS, onde nasceram e passaram a sua infância. E, depois, também a formação política ao longo da minha trajetória. Então, a primeira marca são as raízes do campo, das quais eu gosto, e não abro mão
delas; e a segunda é, exatamente, a possibilidade de, no fim dos anos 1950, um filho de pequeno agricultor, minifundiário, poder seguir a vida escolar.
Acervo da Família Frigotto, 1931, fotógrafo desconhecido. Foto de casamento dos pais de Gaudêncio, Miguel Domingos Frigotto e Irma Dal Bosco Frigotto em Antônio Prado, RS. “Em memória do meu velho pai Michele Domenico e Irma Dal Bosco Frigotto, que só a morte os libertou da extorsão, violência e exclusão de sua condição de colonos, e de quem guardo uma imensa e infindável saudade. Deles aprendi a singeleza do amor, o senso de justiça e a força para lutar os pequenos e grandes embates” (FRIGOTTO, 2006, p. 4). Aí, então, entra a minha vida de internato num seminário dos Frades Menores Capuchinhos, onde passei sete anos e fiz a formação (nos termos de hoje) básica. No Memorial , eu sublinho a importância desse período, dialogando com Foucault sobre o tema das instituições totais. Se é verdade que as instituições totais moldam, amordaçam e restringem a liberdade, todavia, dependendo da situação e relação social que se vive, elas também são libertadoras. Contraditoriamente, foi essa instituição total (seminário) que me permitiu a travessia de filho de colono para um mundo intelectual e entender que a igreja e a religião são produtos da ação humana. Como assinala Marx, não é a religião que faz o homem, mas os homens que fazem determinada religião, ainda que, esta existindo, passe fazer parte da materialidade das relações sociais.
Arquivo M. Ciavatta, março de 2012, Maria Ciavatta. Pátio interno do Seminário dos Capuchinhos, Veranópolis, RS. Os Capuchinhos chegaram ao RS em 1896. O prédio do Seminário onde Gaudêncio estudou, hoje é ocupado por várias instituições: Instituto Josué de Castro [escola pública
estadual de nível médio, sob a responsabilidade do MST], Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Esportes, Universidade de Caxias do Sul, Evolução - Escola de Ensino Fundamental. “De repente uma ‘vocação’ fulminante. A captura deu-se por um velho frade da Ordem Menor dos Capuchinhos, uma ramificação dissidente da Ordem Franciscana. Na sua labuta de fisgar vocações , o velho e magro frade, com suas longas barbas, respondeu-me seguro à única pergunta que lhes pude fazer: o que mesmo se faz no seminário? Didático respondeu-me: reza-se um pouco, trabalha-se um pouco e estuda-se e brinca-se muito. Argumento imperativo para quem trabalhava muito, rezava muito e estudava e brincava bem menos [...] É dos 12 aos 19 anos, no espaço da instituição total seminário , dentro de uma forte disciplina intelectual e moral, cujo objetivo era transformar colonos em intelectuais teólogos, que concluí a escola primária, o clássico e científico e um ano de pós-secundário – noviciado (um ano probatório para ver quem, de fato, tinha “vocação”). Tratava-se, como bem nos ajuda entender Bourdieu na sua teoria da violência simbólica , de, por um exercício sistemático, intenso e prolongado, mudar o habitus primário de colono para um habitus secundário ” (F RIGOTTO , 2006, p. 7-8). Outro traço fundamental das raízes é o trânsito do meio rural para o meio urbano nos anos 1960. A vivência no movimento urbano operário e a organização dos agricultores na região de Ijuí, e essa participação começou a demarcar, digamos, minha raiz intelectual e a raiz histórico política. Neste mesmo contexto, a organização de grupos para apoiar os presos políticos da ditadura, dos exilados, os que estavam na guerrilha, etc. Essas são marcas que fazem a ponte entre a minha vida no campo e minha vida intelectual, as mediações que constituem a possibilidade do filho de colono ir constituindose intelectual. Não era somente eu, outros, como João Pedro Stédeli, Cândido Gribowsky, Domingos Giroletti, passaram pelo mesmo seminário. Éramos, em diferentes séries, mais de quatrocentos que transitamos por essa via.
Como filho de italianos, de vez em quando você manifesta lembranças dessa convivência. Essas raízes têm presença em sua vida? O que a Itália representa, ou... ela representa alguma coisa em sua vida? Sem dúvida. Eu diria que a Itália é o inconsciente mais recôndito, as marcas são de várias ordens. A primeira, a própria marca de neto de imigrante italiano que veio ao Brasil com o ideal de “vencer na vida”. Eu tenho a marca muito forte de que você tem que depender de você e tem que ir a luta. Como diziam os avôs, “vamos à América para tentar vencer pelo trabalho”. O trabalho é uma marca forte e, talvez, não por acaso eu pesquise tanto o trabalho. A segunda é a cultura. Diria que a cultura, onde a vejo mais nítida, é na influência de meu avô que veio como professor primário, instrutor agrícola e primeiros socorros. Aí também tem uma ligação forte com a valorização do ensino, da educação, um pouco estranha no meio rural naquela época, mesmo entre os italianos. Mas pelo fato de o avô ter sido a
vida toda professor, não por acaso, nossa casa é que recebia e hospedava o professor ou a professora da pequena comunidade. Então tem uma marca importante nisso. A terceira influência é, sem dúvida nenhuma, a cultura alimentar. Isso é uma coisa extremamente positiva, o cuidado com a comida, a importância da comida, das frutas. Meu pai carregava isso e tinha sempre cultivo de uma variedade grande de frutas. Minha mãe vinha de uma tradição de hospedaria com ligação à culinária. Pobreza não significava passar fome, pelo contrário, tinha uma abundância extraordinária, e isso tem a ver com a saúde, com a vida.
Acervo da Família Frigotto, 1971, autor desconhecido. Ijuí, RS. “O início de minha formação superior coincide com o período de endurecimento do golpe de 1964 ou, como ficou conhecido, o golpe dentro do golpe após o AI-5 . A região de Ijuí era uma das cidades mais vigiadas por sua longa tradição de atuação popular. Neste período, o Movimento Comunitário de Base abrangia o meio rural e urbano, e sua ação transcendia o âmbito da organização cooperativa e sindical em forma de campanhas. A ênfase era dada à
problemática da cultura popular e aos processos de conscientização. A Fundação de Integração de Desenvolvimento do Noroeste do Estado (Fidene) era o centro catalisador destas ações. Embora, na época, não fosse uma Universidade – tinha uma perspectiva de Universidade [mais tarde, Unijuí]. De início mantida pela Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, paulatinamente transformou-se numa fundação gerida pelos professores mediante um conselho diretor” (F RIGOTTO , 2006, p. 11). Da Itália tenho, então, muitas marcas. Ao visitar a Itália e a região de onde vieram os avós paternos e maternos experimenta-se uma contradição, porque aquela Itália paupérrima dos nossos avós hoje é a Itália rica, o norte da Itália. Evidentemente, isso tem que ser redescoberto; por exemplo, eu nunca tinha entendido adequadamente porque como tudo com pão, pizza com pão. Em uma entrevista que dei a dois italianos que vieram pesquisar sobre netos de italianos, fomos jantar, e fiquei intrigado porque ao chegar a comida eles não começaram a comer. Aí perguntei, falando italiano: cosa è sucesso ? (O que está acontecendo?). Eles juntos me responderam: dove Il panne? (onde está o pão?). Depois eles me deram uma aula explicando por que o pão é tão fundamental. Aí eu entendi também por que a hóstia é de pão e não podia ser outra coisa. Isso é cultural, então são essas marcas que agora me ocorrem assim, na mente.
Acervo da Família Frigotto, 1939. Antônio Prado, RS. Miguel Frigotto nasceu em 5 de maio de 1869, em Balia, região de Verona, Itália, e veio para o Brasil em 1889. Estabeleceu-se em Antônio Prado e formou numerosa família. No tempo de Vargas, precisou naturalizar-se e “abrasileirar” o nome para Miguel Frigotto. “É como colono que meu avô veio ao Brasil no final do século passado e, com l8 anos de idade, passou a ser professor dos filhos dos imigrantes italianos em Antônio Prado, RS. Imigrantes marcados pela pobreza e pela rigidez de uma formação católica, apostólica, romana , cujas
rezas, longas rezas, eram mescladas de latim e dialeto do norte da Itália e constituíam-se num dos traços de sua identidade e alienação. É em relação a este tipo de materialidade e situação existencial concreta que, por certo, Marx é levado a concluir o que nos expõe na Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel : ‘A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o íntimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma’” (F RIGOTTO , 2006, p. 6).
Acervo da Família Frigotto, 1982, autor desconhecido. Os pais, Miguel Domingos Frigotto e Irma Dal Bosco Frigotto Domenico, e os irmãos (da esquerda. para a direita), Gaudêncio, Alfonso (in memoriam ), Lino ( in memoriam ), Benvinda, Inês, Olacir, Marta, Braz ( in memoriam ) e Inocêncio em um reencontro da família, em um sítio, em Paim Filho, em 1982. “Alfredo Bosi, na sua obra Dialética da colonização (1992), ao examinar o sentido filológico e etimológico de colonus nos indica que significa o que cultiva uma propriedade rural em vez de seu dono [...], ou aquele que reside em terra alheia”. Mais profundamente, Bosi nos mostra a situação do ser colonus , como um modo de vida, uma condição de vida, marcadas pela exclusão e alienação social. É na condição de colono, filho de pequenos proprietários rurais, no Rio Grande do Sul, que, cultivando a pouca e acidentada terra (no campo, com cinco anos de idade se tem tarefas claras na divisão familiar do trabalho), rezando a infindável reza num híbrido de dialeto italiano (do Veneto) e latim, que molda as marcas da infância. Mas a infância no campo e nas classes populares sofre um processo de adultização precoce, ao contrário dos mamíferos de luxo a que se refere Gramsci para caracterizar o modo como são educados os filhos da burguesia que os condena a uma infantilização prolongada. Como constituir-se intelectual saindo da condição de uma realidade rebelde de colonus? Na maioria das vezes pelo acaso. A rebeldia do ser colonus ou desenraizados urbanos, grande parte provenientes do campo, não permite à
maioria absoluta, no contexto da nossa história, de ir além de dois ou três anos de escolaridade (F RIGOTTO , 2006, p. 6-7).
Uma pergunta semelhante a essa é: qual o lugar da religião da sua formação? Parece uma questão muito interessante que tem relação com a primeira questão que você coloca e, também, com a segunda relativa às raízes. Obviamente, eu não podia não nascer católico, porque neto de italiano e, praticamente, em um gueto... não é bem gueto, seria uma enclave – é esta a palavra –, onde existiam só italianos, a religião era uma marca funda. Agora, contraditoriamente, foi preciso ir ao seminário para depois optar em não seguir nenhuma religião. Faz 40 anos que eu não sigo nenhuma religião. Fazendo um curso de antropologia das religiões e, depois, um curso longo de um ano sobre “problemas do pensamento humano” que discutia a origem e o fim do homem, digamos, o processo histórico das religiões, a conclusão é de que a religião é um fato social e humano, como eu ser botafoguense. É claro, não o mesmo peso na marca da vida, mas é uma instituição social como qualquer outra feita para os seres humanos. Para aqueles que veem um sentido hoje, eu poderia dizer que a minha docência, a minha militância ocupam esse lugar, e, portanto, a religião é algo cultural que tem que ser respeitado. Eu respeito todas as religiões, tanto que as minhas filhas não foram iniciadas em nenhuma religião, embora tenham sido batizadas. Hoje, também, elas não frequentam. Mas é uma marca forte, por exemplo, a marca do seminário em que a mulher era fonte do pecado. Isso me marcou muito antes de começar a entender que isso não era legal, isso não é religião, é uma determinada forma de interpretar. Esse é um tema que nós discutimos pouco, mas, mal ou bem, está na vida das pessoas, e eu tive a felicidade de poder estudar isso em antropologia das religiões, em história das religiões e depois, exatamente, em um curso de filosofia de pós-graduação que era sobre os problemas da origem e do fim que se misturam muito. E esses problemas existem independentes da religião. Não tenho dimensão do quanto ela marca ainda, o fato de não frequentar religião não significa que ela não marque, mas essa é uma contradição. O seminário me fez entender que a religião não era necessária à minha vida, o que é uma contradição interessante.
Gaudêncio fez uma viagem no tempo, uma viagem densa e espontânea pelos gestos e pela reverência com que falou de pessoas amadas...
Continuando, a outra contradição, acredito assim, de sua formação e de sua trajetória, eu resumiria na pergunta: Como você se constituiu no intelectual crítico, que você é hoje, saindo da condição de colono ou, mais propriamente, de filho de colono? Essa talvez seja a questão central, pra mostrar que nós somos síntese de relações sociais que a vida nos permite. Acho que sou um cara de sorte; nesse sentido, a palavra sorte, talvez, não diga, mas entrar em um internato de padre foi um acaso. A “vocação”, não creio que seja uma dádiva, mas este acaso mudou radicalmente minha possibilidade de vida. Meus colegas de infância, que não tiveram essa trajetória de escola, continuam colonos, inclusive meus irmãos. Embora a maioria deles já não morem no campo moram na cidade e não sejam mais colonos, trazem a marca do homem do campo. A passagem por essa instituição total (seminário) ou similares, o internato, seja dos Maristas, dos Lassalistas, dos Franciscanos, era o caminho da possibilidade da travessia e, com isso, fez-se a história de centenas de educadores que têm essa trajetória. Agora, hoje, eu entendo como aprendi com Marx que a consciência política você não a faz na escola, a escola é uma mediação, a consciência política se faz nos movimentos, nas lutas, etc. Também há outro elemento importante que é de eu ter tido a oportunidade de fazer a universidade em uma instituição, primeiro, de cultura europeia e, portanto, com quadro docente era bem preparado; e, segundo, uma instituição que estava ligada ao movimento social, ao movimento dos agricultores da região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul e ao movimento operário.
Qual era a instituição? Fidene, Fundação de Integração e Desenvolvimento do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, hoje Universidade de Ijuí (Unijuí). É uma universidade importante, ela tem essa marca, ali é que começou essa relação do aprimoramento intelectual e de nunca deixar de ter um pé na sociedade. Paradoxalmente, eu nunca fui filiado a partido político, esse é um paradoxo. Tenho uma marca inicial no Partido Comunista, que à época formava quadros e, como lembra Francisco de Oliveira, da influência dele se desdobraram outras siglas do campo de esquerda, inclusive em boa medida Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual eu também não fui filiado. A partir, especialmente, do final dos anos 1970, quando o próprio Partido dos Trabalhadores se formou, a não vinculação era o entendimento de que a natureza dos partidos políticos e as diferentes tendências prendiam o trabalho intelectual, em vez de liberar. Então a conclusão que tenho até hoje é que no campo intelectual é muito mais importante o “partido ideológico”, a que se está vinculado, do que um “partido parlamentar”. No plano formativo, a Unijuí foi um marco importante, em seguida, a Fundação. Uma instituição ambígua, ou mais precisamente conservadora e sempre ligada ao poder dominante. Mas o grande momento de aprofundamento teórico foi o doutorado.
A Fundação a que se refere é a Getulio Vargas? É a Fundação Getulio Vargas do Rio [de Janeiro], e não necessariamente a Fundação como um todo, mas o Instituto de Estudos Avançados em Educação [IESAE] ⁷ que tem uma história muito particular e que agregava intelectuais do pensamento crítico liberal e outros conservadores, mas permitia uma formação densa. E o doutorado em Filosofia e História da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), quando fiz uma leitura não dogmática do Marx e de Gramsci, porque, eu diria, a primeira leitura que eu fiz de Marx foi uma leitura muito doutrinária. É sem dúvida o curso de doutoramento e a tese orientada por Dermeval Saviani que me permitiram um percurso para consolidar, digamos, uma formação da qual eu ainda me alimento.
Você poderia relatar alguns momentos decisivos de sua carreira? É... Na minha carreira a entrada na Unijuí como professor é decisiva, porque isso me permite, em seguida, fazer o mestrado. Durante o mestrado tive a possibilidade de contar com o apoio de pessoas como Maria Julieta Calazans. No final do mestrado, outros momentos decisivos foram uma seleção interna na FGV e eu ter sido selecionado para coordenar um programa nacional. Fiquei durante quase 20 anos girando o Brasil. Então isso me deu uma visão do Brasil, de suas enormes desigualdades, da cultura política do coronel e o bacharel. Com isso, entendi o que Florestan fala: “Nós somos o gigante de pé de barro”, acorrentados como escravos pela desigualdade social, desigualdade profissional, pela violência das classes dominantes. Esse foi um momento marcante. O doutorado, sem dúvida, como disse anteriormente, permitiu a convivência com um grupo que vai ter, digamos, a possibilidade de aprofundar os estudos do materialismo histórico, da concepção dialética da história. Eu registro a enorme importância, não só de intelectual mas de organizador, de Dermeval Saviani. É difícil, às vezes, você ter junto a pessoa que produz intelectualmente de forma densa e crítica e que organiza. O Saviani organizou aquele doutorado da PUC [São Paulo] em 1978, deu espaço a vários grupos de profissionais mais maduros nas primeiras turmas e depois mais jovens e formou uma escola no sentido sociológico do termo, uma escola de pensamento, com suas diferenças, mas que vai ter um peso importante na educação brasileira das décadas seguintes.. Esse é, também, um momento extremamente marcante do ponto de vista político. Nós somos um país, como lembra o Chico de Oliveira [Francisco de Oliveira], que tem uma espécie de castigo de Sísifo. É um país de golpes, de
ditaduras, golpes institucionais. Então, eu nasci no final da ditadura Vargas e passei a minha juventude e a minha formação acadêmica de universidade, de mestrado e de doutorado na contramão; isso também é uma marca que, digamos, está registrada nessa trajetória. E sem dúvida nenhuma, depois do doutorado, o convívio, permanente, com um grupo de pesquisa, na qual, você, Maria, é uma das referências. Nós trabalhamos juntos há praticamente 30 anos, e isso é importante no contraponto. Antes disso, acho que a forma de organização da minha participação sempre coletiva, tem duas marcas contraditórias, uma é o programa Eciel [Estudios Conjuntos de Integración de América Latina y el Caribe], que tinha uma vertente dominantemente positivista, mas eu diria séria. O Gramsci nos dá um elemento importante, lembrado num texto de Leandro Konder, que assinala que o intelectual mostra ser mais avançado quando toma dos seus contendores seu ponto de vista mais avançado, para, se for o caso, incorporá-lo de forma subordinada. E nós tivemos o privilégio de estarmos no Eciel, onde havia rigor metodológico na pesquisa empírica. É coisa que muitas vezes falta naquilo que o próprio Engels chamava a atenção aos jovens que “esposavam” o materialismo histórico mas tinham duas ou três ideias e tiravam sua conclusão sobre a história e não tinham paciência de percorrer o caminho das mediações, das contradições, etc. Esse registro eu nunca o fiz tão enfaticamente, já o fiz em conferências, etc., mas não por escrito. Mas acho que isso é extremamente educativo. No doutoramento, Dermeval Saviani teve essa postura. A orientação era dominantemente coletiva e o esforço era de articular o teórico e o empírico. Você não viveu a experiência com o Saviani, mas a viveu aqui. Isso nos ajudou a fazer o que fazemos, juntos há 30 anos, os Projetos Integrados, agora com várias instituições [Grupo THESE – Projetos Integrados de Pesquisas em Trabalho, História, Educação e Saúde – UERJ/UFF/EPSJV/ Fiocruz]. E isso é de uma riqueza extraordinária, mais do que você se isolar intelectualmente e achar que sozinho conseguirá produzir algo. O epílogo, diria que é a organização do NEDDATE, Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação da UFF. O fruto dessa trajetória é que, com outros colegas, durante 20 ou 25 anos, nós fomos formando quadros. Eu não tenho ideia hoje de quantas teses e dissertações eu já orientei, mas deve ser próximo a 100, se não mais. Eu nunca tive essa preocupação de contabilizar. Mas certamente participei de mais de duzentas bancas de mestrado e doutorado, etc. Acho que isso é a expressão de um trabalho e de uma disciplina coletiva.
Eu tinha uma outra questão, de alguma maneira você já se adiantou, mas gostaria de colocar mais um detalhe à pergunta. A questão era sobre as instituições, quais são as marcas que ficaram? E você trabalhou durante quase, ou pelo menos, 20 anos na UFF e agora está na UERJ. Você teria algo a acrescentar sobre essas instituições e como você interagiu com elas, não só as marcas que elas deixaram mas o que você vê da sua passagem por essas instituições?
Olha, eu acho que eu começaria pela Fidene. Na Fidene eu fiquei pouco tempo, fiquei três anos, tive uma experiência de professor e de vice-diretor durante um ano. Lá, a marca é a importância da disciplina e da organização no estudo, de ir aos clássicos e, como lhe disse, da sua relação com os movimentos sociais e políticos. Figuras como as dos professores Mário Osório Marques, Soterro Dotti (a este tenho uma dívida especial por seu inestimável apoio para entrar como professor na Fidene), Argemiro Brum, me marcaram muitíssimo por seu conhecimento vinculado à luta para construir uma nação de fato. Na FGV, a marca era de uma instituição que tinha uma grande fama, mas, como assinalei anteriormente, era conservadora. Contraditoriamente, na ditadura, porque dela não se esperava nenhuma “revolução”, pôde se desenvolver, dentro dela, um grupo de professores que organizaram um mestrado que tem uma história muito interessante na educação brasileira. No entanto, do ponto de vista da minha produção intelectual e da minha atuação profissional, a UFF é a instituição que mais me marcou, não só porque foi onde me aposentei mas porque eu acho que o curso de Pedagogia, o curso de Pós-Graduação em Educação no qual trabalhei, o grupo de pesquisa a que me referi, representaram um momento muito virtuoso, e ainda não estávamos tão marcados pelo produtivismo, pela competição, pela mercantilização do conhecimento, como vivemos hoje. É uma coisa terrível. Tenho pena dos jovens, dos que oriento e começam a carreira docente querendo seguir a pesquisa na pós-graduação. É um preço contado pelo metro do conhecimento, e é um metro muito enferrujado, um metro enviesado, um metro, como diz Chico de Oliveira, marcado pela mimese da mercadoria. Portanto, mutila a possibilidade de trabalhos mais densos. E nós tivemos essa possibilidade na UFF, em um momento extraordinário de um grupo, também plural, de pessoas com aportes teóricos diferentes, com embates, mas sempre embates dentro de uma convivência ética, e isso também me marcou profundamente. A UERJ, eu tenho pouco tempo, ela tem uma marca para mim de outra natureza. Estou em um programa pequeno – Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH). Um programa muito leve, muito bom nesse sentido, que tem um objeto, digamos, uma definição de estudo interessante, que articula a formação humana a política púbica. Algo está muito ligado aos fundamentos e à minha trajetória intelectual. E na UERJ o público que nós acolhemos na graduação em Pedagogia não é da Zona Sul, é do Grande Rio. São alunos que têm dificuldade de chegar e que têm dificuldade de pagar o transporte. Trabalho à noite com esse grupo e tenho muito prazer de tê-los. Muitas empregadas domésticas que vão à universidade com a vontade de não serem mais empregadas domésticas. Que ótimo, vão criar um problema porque, como se sabe pelas estatísticas, agora há cada vez menos empregadas domésticas. Isso é um sinal muito bom para o Brasil. E na pós-graduação acolhemos pessoas muito ligadas a instituições públicas e a movimentos sociais. Então é uma continuidade, um espaço bom de trabalho, e é onde ficarei até o tempo me deixar.
Eu retomo uma palavra sua quando iniciou sua fala sobre os alunos. E eu gostaria de lhe perguntar o que são, o que trazem e o que levam os alunos? Os alunos são os nossos xodós, o que seria de nós sem os alunos? Então, acho que uma das coisas que aprendo com os alunos é que eles nos surpreendem, positivamente e negativamente. Às vezes temos uma grande aposta, e por razões A, B ou C, não por juízo moral, essa aposta não dá certo. Apenas avaliamos mal... e, de repente, você tem alunos que não prometem muito no início mas depois desabrocham como uma grande “flor”. Essa é uma forma de você não acomodar seu pensamento. Trabalhar na pósgraduação, nesse sentido, especialmente, é um privilégio, porque nós temos, o tempo todo, pessoas pesquisando questões que estão relacionadas imediata ou mediatamente com aquilo que pesquisamos, mas que nunca conseguiríamos alcançar. Então, o aluno também nos forma nesse sentido. E hoje o grande problema é que o aluno chega com uma carga de informação brutal, há uma produção estupenda de dados em todos os campos, mas com pouco conhecimento; é uma produção que gera pouco conhecimento. O produtivismo que resulta da mimese mercantil , então, gera também uma dificuldade na orientação. É diferente orientar hoje um aluno que trabalha e estuda, ou o aluno que não pode comprar livros muitas vezes, comparado com aquele que tinha tempo integral, enfim, que muitas vezes tinha salário e bolsa. Mas essa é a realidade sobre a qual nós trabalhamos. A coisa mais bonita é encontrar, dez anos depois, alunos que até reclamavam do curso puxado, da exigência de trazer por escrito, e receber um obrigado pelo aperto. Isso significa que aquilo valeu. Aprendi também que nosso papel é o de organizar, disciplinar intelectualmente e saber não simplificar. E outra coisa, eu nunca dissocio o conhecimento da vida, acho que isso também é uma coisa que aprendemos e sofremos muitas vezes com a situação dos alunos, principalmente, da graduação. Para desmistificar a ideologia da “vocação” e realçar que gosto do que faço, sempre digo aos meus alunos que tive na vida três caminhos ou “vocações” que felizmente não vingaram, e finalmente o quarto caminho, que trilhei desde o início da vida adulta perdura até hoje. Uma “vocação” ou caminho era o de ser agricultor, pois na infância o que ouvia falar era da necessidade de ter-se mais terra; a segunda, caminhoneiro. Quando eu era criança, com nove anos, vi pela primeira vez um caminhão e pensei que fosse um deus; queria ser esse deus! A terceira vocação ou caminho foi o seminário, onde me disseram que se brincava, jogava, estudava e se rezava um pouco, e em casa eu trabalhava muito, eu rezava muito, tinha raiva de reza, estudava e brincava um pouco, então, eu queria aquele céu. E, por fim, foi ser o que sou, o professor... e se tivesse que começar tudo de novo, como num flashback , não renegaria nada. Foi uma trajetória de idas e vindas, mas estou muito feliz pelo que sou: professor.
Você poderia falar mais sobre a situação dos alunos e como é que se estuda hoje na pós-graduação que, como disse, “o produtivismo é mimese”... A mercadoria é uma mimese porque uma mesma mercadoria se reproduz, se reproduz e se reproduz. Assim, hoje a produção acadêmica gera pouco conhecimento novo. A tendência é uma repetição da repetição. Muita coisa requentada ou aligeirada. Não se trata de culpar as vítimas, embora, talvez, falte autocrítica e uma reação mais coletiva.
A outra pergunta que faria a você é o que representam os colegas professores, os grupos de pesquisa em sua trajetória intelectual? Eu já mencionei isso... A produção intelectual tem a marca do sujeito, mas ela é sempre social. Então, diria que a minha produção tem a marca das relações, especialmente, com os grupos com os quais eu pude interagir, desde os grupos de estudos políticos da Fidene. Ali formávamos grupos, equipes para estudar os problemas brasileiros, questões econômicas, sociais, culturais e políticas etc. O doutorado, a forma do Dermeval Saviani organizar a orientação mais coletiva, embora mantivesse, também, individual, tem uma grande contribuição na minha trajetória intelectual. Também na pesquisa do Programa Eciel. Nós não tínhamos um grupo de pesquisa, mas, sem dúvida nenhuma, foi uma escola do rigor positivista e funcionalista. O contato com o computador, precocemente, definição empírica do nível socioeconômico dos alunos, com 600, mais de 600 indicadores, eu lembro, foi uma grande escola. Eu diria que foi a possibilidade da minha tese de doutorado ter a qualidade que teve. E, depois, o NEDDATE que organizamos, esse foi o momento de muita produção, de entusiasmo, de organização de pesquisa. E hoje os Projetos Integrados [de Pesquisas], a interface com a ANPEd [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação] teve um papel importante. Fui um dos fundadores do GT Trabalho e Educação e nunca me afastei. Mas eu diria que atualmente, de uma forma ou de outra, o produtivismo nos tomou um pouco. É a isso que me refiro na conferência de abertura da Reunião Anual de 2010 da ANPEd (F RIGOTTO , 2011). Nós temos que fazer esse inventário. Acho que deveríamos ser mais rebeldes, menos passivos. Em última análise, a tese tem que ser produzida no prazo, porque senão o Programa cai meio ponto; não importa o conhecimento, o texto tem que estar pronto.
Isso tem relação com a ideia de mimese ? Sem dúvida, sem dúvida. Por isso que, hoje, ao lermos as dissertações e teses, vemos que os mestrandos e doutorandos não têm tempo de fazer um recuo de estudos indispensáveis. Ou seja, não há tempo para atender o que
Mirian Limoeiro Cardoso sublinha ao destacar que todo o processo do conhecimento científico começa com uma crítica daquele conhecimento que, direta ou indiretamente, se relaciona com objeto que pesquisamos. Isso se efetiva com uma cuidadosa revisão de literatura. Pesquisa exige tempo, muita busca de fontes, documentos. Exige equipe e financiamento. Há um diferencial dos alunos que passam pela iniciação científica, seguem o mestrado e o doutorado vinculados a um grupo de pesquisa. Tenho essa convicção e leitura, quem passa três ou quatro anos por um grupo de pesquisa na sua formação tem um diferencial.
Volto à questão do “produtivismo mimese ”, você poderia explicar melhor qual é a ideia e como que você a desenvolveu? Na verdade, essa reflexão se relaciona à conferência proferida por Francisco de Oliveira, na abertura, em 2001, da Reunião Anual ANPEd cujo tema era “intelectuais e a produção do conhecimento” (O LIVEIRA , 2001). Guardei duas ideias centrais dessa conferência. A primeira que há 20 dias havia ocorrido o atentado às Torres Gêmeas em Nova York, ele sublinhou que, embora em todos esses dias o tema estivesse 24 horas on-line , com milhões de informações, o conhecimento era quase nulo. Uma década depois sabemos muito pouco além das análises de Noam Chomsky. A segunda refere-se à voracidade do capital e a forma mercantil de degradação social que vem tomando todos os campos em áreas até então inimagináveis. Um desses espaços é o da produção do conhecimento, agora medido pelo metro do produtivismo e pelo metro da mercadoria. É nesse ponto que o Chico nos lembra que a mercadoria é mimese ... reproduz cadeiras, cadeiras, cadeiras. Essa repetição não gera conhecimento, pelo contrário, atrasa o processo histórico de produzir conhecimento potente, conhecimento socialmente relevante. Então, a produção de conhecimento sob a ótica mercantil se explicita pela mesma lógica mimética da mercadoria. Não tem compromisso com a vida, com as pessoas, só possui compromisso com a reprodução das relações mercantis. É esse modelo institucional adotado atualmente pela CAPES na avaliação da pósgraduação. Um modelo centrado na mimese produtivista e mercantil na educação brasileira. O critério produtivista atinge a escola básica, a avaliação do professor, a avaliação do aluno; não se discute o sentido social e histórico daquilo que se avalia. É uma espécie de processo seletivo de uma sociedade que, cada vez menos, tem recursos para os direitos sociais. Com suas diferenças, isso acontece em todos os campos do conhecimento. Esta é, talvez, a questão que mais me incomoda intelectualmente, essa pouca rebeldia, especialmente, que a área social tem apresentado.
Como marxista, você mencionou que a questão da contradição está muito presente nos estudos, nas pesquisas. Quais contradições você enfrenta ou enfrentou em sua vida? Uma das contradições é exatamente essa, a pressão do produtivismo e a busca de uma produção intelectual que procura ser histórica, crítica e que faça uma leitura de como o real se produz. Outra contradição é da importância que vejo da relação do intelectual com os partidos e os sindicatos, mas isso sempre tem sido uma relação tensa e de convívio contraditório. Isso não decorre somente da dificuldade real desta relação, mas talvez de como essa relação tenha tendido a ser em nossa história. A figura que eu uso, na conferência que fiz na Abertura da Reunião Anual da ANPEd em 2010 de que falei, a retiro de um texto de Karel Kosik sobre a postura da bela alma e do comissário. A tendência da bela alma é de fixar-se plano de uma pureza teórica abstrata e moralista para a qual tudo é reformismo, o que conduz a uma posição imobilista. Já o comissário centrase nas conquistas de fatias de poder, exercendo uma atitude pragmática, utilitarista e oportunista, capaz de subordinar os interesses da sociedade aos seus. Há uma tendência em nossa formação histórica de ter uma postura do intelectual de “não me meto com isso porque pode estragar a minha coerência, a pureza das ideias”. Então, toda vez que você se relaciona com o sindicato, com o partido, com o movimento social, isso se dá no plano da realidade, ou seja, o plano que nos coloca na esfera da contradição. Tenho a opção de convívio com essa tensão e aprendo com ela. Mas um engajamento institucional em um partido político é complicado, dado que os partidos têm cada vez menos corpo ideológico. Por exemplo, quando o Partido dos Trabalhadores fez 15 anos, várias pessoas que hoje não pertencem mais ao Partido me pressionaram muito para me filiar a ele. Eu tinha e tenho a convicção de que isso teria me tirado a possibilidade do trabalho que faço com várias correntes, tanto dentro desse partido, quanto dos partidos comunistas. Enfim, eu não sei se isso é uma contradição mais geral, porque agora lembro-me de Lukács, que militou quase toda a vida no partido comunista e no final da vida concluiu que a “trincheira” dele como intelectual era outra e saiu do partido. Florestan Fernandes enfrentou essas contradições dentro de um partido. Sem nenhuma comparação, nem de longe quero me comparar ao Florestan, foi um intelectual que viveu essa contradição até o fim da vida. A vida é contraditória, a gente é avançado em um campo, atrasado em outro. Mas não sei se era isso que você queria com a pergunta.
Eu quero saber o que você pensa. A vida não é linear, aprendermos que somos seres históricos e, portanto, contraditórios. Acho que talvez seja isso que Gramsci diz quando fala que sair de uma personalidade bizarra para uma compreensão mais coerente do mundo implica aprender com as contradições e depurá-las. Penso que as contradições ajudam muito, porque senão você cai no normativo, nas
verdades lógicas e as contradições não estão na cabeça da gente, no mundo das ideias, mas elas são dadas pelo mundo real, pelas relações sociais, no plano político, no econômico, a própria vida biológica tem contradições – crescer é também envelhecer. Nós gostaríamos de ter a cabeça de hoje com o corpo de adolescente [risos], mas nós chegamos à conclusão que não temos nem a cabeça de adolescente nem o corpo, é uma contradição, e viver com elas, muitas vezes, não é fácil. A vida nas instituições é carregada de contradições. Elas nos amarram, mas também, como me disse um dia, em uma conversa, num trajeto de engarrafamento, Florestan [Fernandes]: “Moço, eu, quando jovem, era muito contra as instituições, não faça isso! O ser humano não é feito para viver fora das instituições”, casamento tem contradições, as escolas tem contradições, o sindicato, enfim, é vida, contradição é a vida.
Seus livros, com quais você se identifica mais ? Eu sou um pouco daquela ideia de que cada autor tem um livro, e depois é o que acontece em torno do mesmo. Acho que pra mim é A produtividade da escola improdutiva, pelo objeto que ela me deu e que, no fundo, demarca o contraponto de um campo disciplinar (economia da educação) que veio se constituindo no Brasil, pelo campo liberal, do pensamento liberal, do economicismo e daquilo que hoje percebo. Por isso digo que é essa obra, pois não só, naquele momento, eu tinha essa ideia, mas pelo efeito que essa obra teve na minha formação e pelo seu impacto, digamos, do ponto de vista do seu registro. Agora mesmo acabo de escrever um texto para uma coletânea onde trato dos novos fetiches da “teoria” do capital humano.
Fiquei surpreendido quando li o livro O fim do capitalismo como o conhecemos , onde o autor, Elmar Altvater, faz uma nota mencionando um grupo de professores da Universidade de Frankfurt, que elegem anualmente uma “não palavra”. Isso para destacar noções que deturpam o sentido das coisas e degradam a vida humana. Em 2004, eles elegeram o “capital humano”. Eu poderia, se fosse supersticioso, me focar na ideia de “sorte”. Acho que a coincidência de ter sido aluno de Cláudio de Moura Castro e depois seu orientando e de, já na época, pensar diametralmente em sentido oposto levou-me a trabalhar esse objeto. Um objeto potente, socialmente necessário de ser trabalhado. E eu tive um grupo que me ajudou nessa construção, que foi o do doutorado, e um orientador que me ajudou extraordinariamente a construir um trabalho que mesmo com suas lacunas e um trabalho datado, se mantém atual. Depois dele escrevi outros textos seguindo o mesmo objeto. O desdobramento da Produtividade da escola improdutiva , dez anos depois, é o livro A educação e a crise do capitalismo real , que visa mostrar a redefinição do capital humano no contexto da crise do sistema capital e do colapso do socialismo realmente existente. São as duas obras que eu tenho como fundamentais. Depois disso organizei outras obras, muitos capítulos de coletâneas, artigos em revistas Já várias vezes me cobraram outros livros, mas não quero entrar na lógica do produtivismo. Um livro exige tempo para se fazer, seis ou sete anos, um bom livro ou, então, um epílogo de uma pesquisa.
Você é uma pessoa muito conhecida por todo o Brasil, solicitado para muitas conferências, palestras, seminários. O que para você significam as suas atividades, que nós o vemos fazer com muito empenho, com muita dedicação, com muito esforço, para atender bem os convites que lhe chegam? Isso também não é por acaso, é engraçado, porque existe uma visão de que as coisas nascem da competência, da genialidade, disso ou daquilo. O fato de eu ter uma atuação bastante intensa começa em razão de que, durante 20 anos, eu andei pelo Brasil coordenando cursos e dando aulas. A isso que me referi anteriormente sobre a coordenação de projetos pelo IESAE/FGV. Uma atuação em todo o país; esse é um ângulo em que você acaba conhecendo grupos, fazendo relações, ganhando experiência, etc. Segundo, a produção escrita também é um elemento de conhecimento e de solicitação pelos temas que você aborda. Tenho, sem dúvida nenhuma, um permanente vínculo com os professores da educação, especialmente, básica e média, muitas conferências nas secretarias da educação, congressos e etc. O outro retorno é do campo sindical, que não é tão recente, mas eu tenho ido a congressos dos sindicatos, a muitos debates, conferências, entre outras coisas. Também seminários de caráter mais de pesquisa, como na ANPEd, encontros regionais, programas de pós-graduação, aulas inaugurais, etc. Tudo isso tem um aspecto de divulgação de ideias, mas são eventos, e do que fica você nunca tem certeza.
O que me espanta, cada vez mais, hoje nesses encontros é que há uma “estandardização do conhecimento” pelo privatismo. Um exemplo, mas que no interior do país vem se tornado regra, é o da Secretaria Municipal de Educação [do Rio de Janeiro], que contratou o Instituto Ayrton Senna para gerir as escolas e para padronizar as apostilas para todos os alunos e professores. Há um processo de solapamento da função docente. Me espanto quando encontro nos debates professores que, com frequência, perguntam: “o que faço, o que fazer?”. Para mim esse é o indicador de que a conferência que eu dou não foi entendida no seu fundamento, porque “O que eu faço?” não tem resposta, pois depende do contexto. A formação básica do professor deveria lhe permitir, no contexto dele, dialogar com a realidade dos sujeitos alunos com quem atua. Não é um julgamento moral que estou fazendo, e, por isso não estou culpando o professor, pois ele é uma vítima disso.
Acervo da Família Frigotto, 2006. IV Conferência Latino-Americana de Ciências Sociais As conferências, os debates, os fóruns e o fato de eu ter representado o Brasil, durante quatro anos, como membro do CLACSO [Consejo Latino Americano de Ciencias Sociales] também me deram um conhecimento da América Latina e de alguns países europeus. Essas experiências constituem um ganho pessoal, existencial e intelectual. E você conhece mais do que eu a América Latina e vê que nós, brasileiros, conhecemos muito pouco a respeito do pensamento latino-americano. Essa constatação também foi
muito importante; você mesma, Maria, sempre trouxe isso ao grupo, teve ligações antes da minha ligação com a América Latina, e essa oportunidade foi importante. Mas as conferências têm outros sentidos, é mais uma extensão, da qual não tenho grande certeza do alcance do que fiz.
Você, Gaudêncio, nunca aceitou, até onde eu sei, cargos na administração do estado, nós sempre lhe cobramos em várias oportunidades, reitoria, secretaria, ministério... Por quê? Essa é uma contradição muito grande que não mencionei numa questão anterior sua. Tenho grande admiração pelas pessoas que têm capacidade e se dispõem a gerir e a organizar nas instituições, nas secretarias de município, nos estados, etc. Eu acho que esse é o grande viés de parte do campo da esquerda, de que quem está no plano da organização ou de gestão faz um trabalho menor. Não... não há mudança sem organização, sem gestão, sem ação concreta. Penso que há dois ou três elementos que me levaram e me levam a resistir a cargos nos aparelhos do Estado. O primeiro é por onde você foi torcendo o “cachimbo”. Você pega uma rota e o gosto por aquela rota; eu gosto de dar aula, gosto de pesquisar, gosto de fazer conferências, mas, por exemplo, não gosto muito de ir atrás da lei, de pesquisa sobre leis... e isso é ruim porque a lei é um elemento importante de ser analisado. A lei não é expressão da realidade, mas das forças que a produzem. Por outro lado, me sinto preso se tenho que estar organizando ou administrando; tive experiência com departamento, muito novo como vicediretor de faculdade. Quando eu era vice-diretor de faculdade teria, naquele momento, do ponto de vista econômico, uma carreira nesta rota, no plano econômico, de melhor sucesso, talvez, mas cheguei à conclusão que não era a minha “praia” e saí sem salário, com uma pequena poupança, e vim fazer o mestrado de peito aberto no IESAE/FGV. Já tive convites em secretarias de educação, no Ministério [da Educação], já fui indicado pelas instituições científicas de nossa área para compor o Conselho Nacional de Educação, na década de 2010, e declinei as duas vezes. Nós não temos instituições de Estado. Quando você aceita entrar é no contexto de um governo e, se você não está “ancorado” a uma sigla, uma tendência, você está muito frágil. Nós tivemos vários colegas de extraordinária capacidade que assumiram cargos e fizeram um trabalho exemplar. Ficaram um pouco e tiveram que sair. E eu diria mais uma coisa – e eu coloco com muita ênfase, mas também não é uma acusação. Há em parte da esquerda a visão meio mágica da bela alma, figura que explicitei em questão anterior. O seguinte: se eu assumisse o Conselho Federal Nacional de Educação seria um espaço importante... Todavia eu teria o apoio efetivo de quem, além de alguns colegas mais próximos? A direita é muito mais inteligente nesse sentido, o campo da direita dá uma sustentação mesmo na divergência, uma sustentação aos quadros com infraestrutura e apoio orgânico, não tenho dúvida. Isso me incomoda muito no sentido de que é uma coisa mal-resolvida no nosso campo de esquerda. Daí a instigação
da análise de Karel Kosik ao sinalizar que grande parte da esquerda joga a solução dos problemas, o socialismo, sempre para o futuro. Mas o futuro não chegará se não for construído desde já. Ele é construído na contradição. Penso que há uma confusão entre o plano do trabalho intelectual que tem que ser radical, porque na teoria você não negocia – trata-se da disputa de interpretação da realidade. No plano da administração, da gestão, plano da política você trabalha com forças, com relações de forças que são dadas pela história.
Vamos passar para uma questão mais ampla. Quais são os momentos mais críticos que você identifica na educação do Brasil? O primeiro deles, sem dúvida, eu vou falar do meu tempo histórico, um ponto que tem um peso até o presente, é o Golpe Civil Militar de 1964 – ou, como outros preferem, Empresarial Militar. Acho que ele tem um peso muito forte de interromper um processo. Queria-se fazer do Brasil não um conglomerado de consumidores, mas uma nação, eu identifico isso com aquilo que Florestan Fernandes denomina “revolução nacional”, que é na verdade fazer as reformas de base no Brasil. Ontem, no debate que tivemos na UFRJ, Mauro Iasi mostrou muito bem que a burguesia brasileira e o empresariado brasileiro se preocuparam em estancar os movimentos pósSegunda Guerra Mundial e, sobretudo, pós-Revolução Cubana, de uma revolução popular que se transformou em uma revolução socialista. A burguesia brasileira (uma burguesia subalterna e associada ao imperialismo) fez muito de bem isso pela ditadura: impedir uma revolução popular. Essa interrupção tem um peso violento na nossa história, um peso que se prolonga até o presente. A década de 1980 foi de reação ao entulho da Ditadura em todas as esferas da sociedade. Uma década de intensos debates, avanços, um momento fecundo do qual participamos. É onde não só as ideias, mas também os pensamentos históricos marxistas, se divulgam e ganham força. Mas, no embate político da educação na Constituinte, na LDB e, como afirma Florestan [Fernandes], nós perdemos, a Constituição de 1988 manteve a educação como um plano secundário. O segundo momento, que eu acho do ponto de vista do seu efeito político e social o mais violento, é a década de 1990, com Collor e, especialmente, a gestão de Fernando Henrique Cardoso e seu ministro da Educação Paulo Renato de Souza. A ditadura é expressão de falta de hegemonia, e esse período trabalhou para criar consenso conservadores. Golpe Civil Militar é menos, nesse sentido, destruidor de possibilidades do que o golpe do desmonte do Estado, da nação, do ajuste, a reestruturação produtivo sob o ideário neoconservador ou neoliberal. Eu concordo com a metáfora do Octavio Ianni, de que nós vivemos em uma espécie de pêndulo, entre forças que sempre tenderam a ter um país vinculado ao grande capital e a ele subordinado e forças que buscavam construir uma nação autônoma e soberana. O pêndulo se decidiu na década de 1990, e é tão forte que a minha tese no texto da conferência em 2010, na abertura da reunião anual da ANPEd, pela
capacidade do campo da direita, mas também por erro do campo da esquerda, de que o ideário conservador da década 1990 penetrou em todos os níveis e modalidades da educação e, portanto, é não só dominância mas hegemônico. Somos poucos hoje na luta contra-hegemonia. Daí que o momento mas decepcionante e doloroso é o presente. É o presente, porque da ditadura não se espera nada, dos neoliberais você não espera nada, mas do campo de forças que veio da luta, da memória da esquerda, do acúmulo de forças de esquerda a perda de rumo e a abertura de espaço ao ideário conservador é constrangedor. Esse inventário não está feito suficientemente e é marcante na sua negatividade, evidentemente que não só na negatividade.
Bom, eu não sei se caberia dizer alguma coisa ainda sobre esta questão: avanços e retrocessos. Acredito que, talvez, algum detalhe sobre esses problemas críticos nos levam a entender esses retrocessos. Talvez você pudesse acrescentar algo também sobre os avanços. Acho que o que se pode afirmar é que há uma regressão nas relações sociais. O mundo estava caminhando no rumo do Estado do bem-estar social e do socialismo possível. Tivemos a crise do Estado de bem-estar social e a derrota do socialismo real, a experiência mais importante do século XX. Concordo com Domenico Losurdo, que historicamente o socialismo não fracassou, pois, mesmo derrotado, ele demarcou o século XX. E com a desregulação do capital, mediante o ideário neoliberal, há uma regressão da própria inteligência do capital. O bate-cabeça em torno da crise mostra, hoje, que quem produziu a crise não sabe por que a produziram e nem como solucioná-la. Aí, vem visão do Marx para quem os economistas burgueses veem o estrago, veem o problema, a crise, mas não veem, por condição de classe, o que a produz a crise. Isso porque eles não a historicizam a análise da realidade. Então vivemos uma regressão social, regressão do próprio capitalismo, ou seja, o capitalismo hoje é mais violento do que foi em sua origem. Os seus instrumentos são o uso da violência, da guerra permanente da guerra comercial, da banalização da vida. Nas relações sociais impera o individualismo, o narcisismo, o consumismo, e isso se deve à mercantilização das relações sociais e da educação. Perdemos a sociedade como referência, o capital humano hoje não é o indivíduo isolado. Daí a ideologia das competências, do empreendedor. Mas a história tem seus circuitos; como diz o Florestan [F ERNANDES , 1977], são os homens que produzem a história, e os circuitos da história, portanto, podem mudar. Essa é uma ideia do Marx, e Florestan tem lá em Marx essa inspiração. De todo modo, há conquistas, mas nós estamos muito atrasados na educação básica, especialmente no ensino médio. Na universidade estamos longe do acesso médio da América Latina. Estamos pela metade de matrícula da América Latina. Acho que houve, nesses últimos anos, eu registro isso, uma pequena retomada de abrir novas universidades em nível federal, mas é uma gota
d’água. Os ganhos não são nem de longe proporcionais às perdas. A história nos mostra, entretanto, que não existe fim, há hoje no mundo uma incógnita enorme, há movimentos de rebeldia, mas eles não são orgânicos. A história sempre está em aberto.
Então, agradeço muito a sua entrevista, uma entrevista muito pensada, generosa nas informações, na maneira de se apresentar. Eu queria saber se você tem alguma coisa a mais que gostaria de falar e que eu não tenha incluído nesta entrevista. Eu enfatizei muito a trajetória pessoal. Evidentemente esse é o objeto da entrevista, mas eu acho que há outro elemento que é de caráter muito pessoal. Certamente de meus pais e oito irmãos trago o que de mais fundamental. Dos pais a vida, o amor, o senso de justiça. Dos meus manos e manas o afeto, as memórias da convivência da infância no campo. Mas também de seu incondicional apoio para que eu permanecesse estudando. Na minha trajetória afetiva e intelectual devo muitíssimo ao convívio com a Edith, minha esposa, e as minhas filhas. Um convívio de muito aprendizado existencial e intelectual.
Acervo da Família Frigotto, 2009, autor desconhecido. Gaudêncio e Edith Frigotto em visita à Universidade de Aberdeen, Escócia.
A Edith é uma intelectual que tem um enorme rigor de análise. Ela é muito mais disciplinada intelectualmente que eu, muito mais rigorosa. Vejo isso também pela admiração de seus alunos na universidade e pela forma de orientar as dissertações de mestrado e monografias. Mas os filhos também nos educam. Eles vão tomando seus caminhos, suas trajetórias, tanto que eu tenho três filhas que seguiram caminhos diferentes. Giovana seguiu Medicina, Larissa, Cinema, e Alexandra, Direito. Aprendo com outros olhares sobre a vida humana, a realidade humana. Mas, sobretudo, aprendo do ciclo da vida, de que as gerações que nos seguem têm que estar mais bem preparadas que a nossa geração. Posso dizer que nesse núcleo familiar encontro um suporte inestimável de afeto e intelectual. E agora vieram duas netas, as encantadoras Letícia e Maria Eduarda. Nas filhas e netas, e nas ou nos que virão (Alexandra dos Santos Frigotto e Maurício Vasconcelos já estão de casamento marcado!), situa-se certamente uma enorme razão de vida e um pedaço da eternidade.
Acervo da Família Frigotto, 2009, autor desconhecido. As filhas Alexandra, Giovana e Larissa em noite de festa de aniversário.
Acervo de Família Frigotto, 2011, autor desconhecido. A neta Letícia com um ano e três meses, filha de Giovana dos Santos Frigotto e de Ramon Gonçalves Leite.
Acervo de Família Frigotto, 2012, autor desconhecido. A neta Maria Eduarda aos 2 meses de idade, filha de Larissa dos Santos Frigotto e de Francisco Lisboa Neto. E, por fim, gostaria de registrar, embora o já tenha assinalado ao longo da entrevista, que no plano profissional há algumas marcas de pessoas que foram imprescindíveis para trilhar a trajetória intelectual e profissional aqui traçada. No início da vida profissional na Fidene destaco duas pessoas que me marcaram muito: Sotero Dotti, pela ajuda que me deu ao me acolher para trabalhar com ele numa pesquisa, da qual publicou um livro sobre psicologia do desenvolvimento. Ele que me incentivou e apoiou para entrar na universidade como docente; Mário Osório Marques ( in memoriam ), a quem eu faço referência no Memorial (2006), por seu vínculo com os movimentos sociais, especialmente do campo, e pelo seu senso de estimular o pensar crítico. Na década de 1970, mais precisamente em 1974, conheci no IESAE a professora Maria Julieta Calazans. Era coordenadora de pesquisa. Ela era uma exímia organizadora, uma intelectual idealizadora, eu tenho a dimensão da importância do que ela foi na organização, do lado mais progressista do IESAE. Ela pagou um preço por isso, pagou um preço de lado a lado, eu diria. Uma pessoa com uma generosidade extraordinária e de acolhimento de centenas de pessoas de todos os cantos do Brasil. Talvez, pelo que expressei sobre a visão que se tem de que o trabalho de gestão é de menor importância, sua importância tenha sido negligenciada. E sem dúvida fundamental a presença de Dermeval Saviani como intelectual que abriu e organizou um curso de doutoramento que permitiu o pensar denso e a revisita às obras de Marx, Gramsci, Lenin e outros pensadores marxistas. Uma leitura densa e não doutrinária e um debate agudo com os colegas de doutoramento. A oportunidade de fazer um curso com Chico de Oliveira foi crucial para pensar nossa especificidade e particularidade de
sociedade brasileira. Sociedade onde a classe dominante “produz a miséria e se alimenta dela”. Diria que a minha produção intelectual tem uma dívida grande com a leitura desse intelectual. Eu tive um tempo razoável para pensar; você vê que nós somos aquilo que podemos subjetivar. Ou seja, uma individualidade socialmente construída. Isso é tudo ao contrário da crença no dom, vocação, esforço individual, empreendedor como resultado do sujeito isolado. É comum ler, em revistas como Veja, uma criminalização dos pobres e dos que cometem algum tipo de delito, sem historicizar, sem analisar o que os levou à droga, ao assalto, etc. Como isso fosse algo genético. A solução é de que tem que pagar por isso e retirá-los da sociedade e pronto. Mas eu penso exatamente o contrário, que a sociedade condena aquilo que ela produz. O que quero frisar é que não dá para separar o indivíduo das relações sociais em que vive. A história pessoal carrega a marca dos espaços e do tempo que vivemos, muitas dessas marcas adormecidas ou instaladas no inconsciente. É engraçado, não há muito tempo uma aluna me perguntou: “Professor, por que você pesquisa tanto tempo sobre o trabalho?”. É uma boa pergunta para se fazer uma análise [risos]. Mas como eu não tenho tempo para isso ou eu não me predisponho, não é, talvez, que eu não necessite, vou seguindo pesquisando o trabalho! Penso muito no que Gramsci discute quando fala da importância do inventário. Perguntar-se de que conformismos somos conformistas, quais as circunstâncias, determinações, mediações que nos conformaram, o que somos, é crucial para entendemos o que fomos nos tornando como pessoas, intelectuais, profissionais, etc. Para muitos jovens do campo ou da cidade, a travessia de sua condição de vida constrangida pelo meio social em que vivem depende de mudar as circunstâncias que os condicionam. Acho que tem esse lado de você ter uma possibilidade de ter um ambiente para desenvolver-se. No tipo de sociedade em que vivemos, certamente isso, como eu dizia, tem um traço de acaso, sorte, a palavra “sorte” é pouco acadêmica [risos]. Trata-se, sim, de você ter oportunidade, vale dizer, uma materialidade de condições objetivas e subjetivas para ir desenvolvendo-se como indivíduo social. A vida me deu essa oportunidade, e sou grato a ela. Referências BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. FÁVERO, Maria de Lourdes A. A experiência do IESAE/FGV: das origens à extinção . S. l., s.d., mimeo, p. 4; 10; 14. Disponível em . Acesso em: 22 mar. 2012. FERNANDES, Fernandes . Os circuitos da história. São Paulo: HUCITEC, 1977. FRIGOTTO, Gaudêncio. Memorial. Rio de Janeiro: UERJ, 2006.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Os circuitos da história e o balanço da educação no Brasil na primeira década do século XXI. Revista Brasileira de Educação , ANPEd, v. 16, n. 46, jan./abr. 2011, p. 225-54. IANNI, Otávio. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970). 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. OLIVEIRA, Francisco de. Intelectuais, conhecimento e espaço público. Revista Brasileira de Educação, Campinas, Autores Associados, n. 18, set./ out./nov./dez. 2001, p. 125-232. ⁵ Entrevista realizada por Maria Ciavatta, na cidade do Rio de Janeiro, em 24 de agosto de 2011. ⁶ Dessa dissertação, escreveu um artigo atual até os dias de hoje, “Fazendo pelas mãos a cabeça do trabalhador”, (atual, principalmente, pela emergência de um programa como o Pronatec). ⁷ O Instituto de Estudos Avançados em Educação foi criado pela Portaria nº. 33 de 1º de junho de 1971, tendo por objetivo “a realização de estudos, pesquisas e ensino em nível de pós-graduação na área de educação”. Por essa mesma portaria são designados o professor Luiz Alves de Mattos para exercer a função de Diretor e os professores Raymundo Moniz Aragão, Joaquim de Faria Góes e José de Faria Góes Sobrinho para, sob a presidência do Diretor, constituírem a “Comissão de Planejamento e Programação das Atividades do IESAE ”. Em 1º de julho do mesmo ano, o Prof. Luiz Alves de Mattos toma posse como diretor do Instituto, e os membros da Comissão de Planejamento e Programação: Raymundo Moniz de Aragão, José Faria Góes Sobrinho e Durmeval Trigueiro Mendes. [...] “Com 20 anos de funcionamento, tendo não somente recebido o conceito A nas sucessivas avaliações da CAPES e também sido classificado por essa agência e o CNPq entre os cinco melhores mestrados em educação no país, o IESAE, através da Portaria nº 24, de 20 de junho de 1990, simultaneamente com mais outros sete órgãos daquela Fundação foi declarado extinto, devendo suas atividades passarem temporariamente à competência da EBAP- Escola Brasileira de Administração Pública”. [Foram 384 dissertações de mestrado defendidas e aprovadas. Em vista da mobilização e protestos de alunos e professores e a desaprovação da CAPES, o Curso de Mestrado do IESAE foi mantido até 1993] (F ÁVERO , p. 4; 10; 14. ).
Parte 1 | A teoria para pensar a
ação política na sociedade Exclusão e/ou desigualdade social? Questões teóricas e político-práticas
⁸ Gaudêncio Frigotto A temática da exclusão social tem assumido, no contexto da mundialização do capital e das políticas neoliberais e seus efeitos assimétricos nos países do capitalismo orgânico, semiperiférico e periférico (A RRIGHI , 1998), uma grande centralidade nos debates no campo econômico-social e educacional. Inúmeros estudos têm se ocupado sobre essa categoria de análise social explicitando suas diferentes formas ou interrogando o alcance e limite dessa categoria para apreender a especificidade que assume o capitalismo tardio . ⁹ Com efeito, multiplicam-se estudos como os seguintes: Dupas, G. (1999). A economia global e exclusão social – pobreza, emprego, Estado e o futuro do capitalismo ; Pochmann, M. (1999). O trabalho sob fogo cruzado, exclusão, desemprego e precarização no final do século ; Nascimento, E. P. (1993). “A exclusão na França e no Brasil – situações aparentemente invertidas, resultados quase similares?”; Martins, J. de S. (1997). A exclusão social e a nova desigualdade ; Castel, R. (1997). “As armadilhas da exclusão”; Xiberas, M. (1993). As teorias de exclusão. Para uma construção do imaginário ; Oliveira, L. (1997). “Os excluídos existem? Notas sobre a elaboração de um novo conceito ” ; Forrester V. (1996). O horror econômico . Trata-se de trabalhos que discutem a exclusão sob diferentes aspectos, e alguns desses estudos, como veremos, assumem uma perspectiva crítica em face do abuso da utilização deste termo. Como ponto de partida, poderíamos afirmar que no âmbito do embate ideológico e político a “exclusão social” expressa, certamente, o diagnóstico e a denúncia de um conjunto amplo, diverso e complexo de realidades em cuja base está a perda parcial ou total de direitos econômicos, socioculturais e subjetivos. Sinaliza, quem sabe, o sintoma de uma realidade contraditória em cuja base está a forma mediante a qual o capital reage às suas crises cíclicas de maximização de lucro, vale dizer, suas crises de tendência de queda da taxa de lucro. Na atual crise, como veremos a seguir, o capital está expondo limites nunca antes expostos com igual magnitude e intensidade, resultado de sua forma contraditória, e por isso destruindo, de forma devastadora, direitos constituídos ao longo, especialmente, dos últimos 100 anos.
Uma crescente literatura crítica, todavia, nos convida a suspeitar que se a noção de exclusão social se constitui num sintoma da materialidade que assume a forma capital e seu poder destrutivo no capitalismo tardio, no sentido dado por Jameson (1996) e Mészáros (1995), ela se constitui numa noção ou categoria que tem sérios limites e armadilhas no plano da análise da materialidade das relações sociais capitalistas. Em termos epistemológicos, a exclusão social não se constituiria num conceito. Vale dizer, não apreenderia as mediações constitutivas da materialidade histórica atual da forma capital, cujo escopo é de ampliação e radicalização da sua natureza intrínseca – a desigualdade. O risco do uso abusivo dessa noção situa-se na possibilidade de nos fixarmos no sintoma e nas consequências das formas que assumem as relações sociais capitalistas hoje e sermos conduzidos, no plano das políticas, a uma postura reformista e conservadora. Seria, no contexto do capitalismo hoje realmente existente, o antônimo de exclusão social o de inclusão, ou a questão mais radical é a da emancipação humana? Neste breve texto irei destacar algumas advertências críticas ao uso da noção de “exclusão social” e destacar análises que apontam seus limites e riscos. O ponto seguinte busca explicitar como a noção de exclusão social é insuficiente para apreender a crise estrutural do trabalho assalariado e a radicalização da desigualdade na atual crise do sistema capital. Por fim, a título de considerações finais, destacarei algumas implicações teóricopráticas. A direção que assumem as políticas educativas e, em especial, as de formação profissional, no âmbito das reformas neoliberais, pode elucidar de forma emblemática um comportamento esquizofrênico da forma capital hoje: na sua base estrutural, aumenta a desigualdade e, em suas políticas, elabora estratégias focalizadas de administrar essa desigualdade. Neste particular, sem dúvida, situa-se um dos problemas de difícil enfrentamento para o campo da esquerda, muito visível no Brasil, mas que certamente se manifesta também nas demais realidades latino-americanas. Exclusão social e desigualdade: antinomia e contradição Neste item vamos nos ater, ainda que de forma sucinta e indicativa, a um conjunto de advertências e críticas ao uso corrente da noção exclusão social e algumas consequências no plano teórico e político. Começamos pela indicação de um dos mais celebrados sociólogos da atualidade, Pierre Bourdieu, e seu colega L. Wacquant (2001), que situam o termo “exclusão” junto com uma ampla lista de outros termos, como pertencendo a um vocabulário corrente e que constitui uma estranha “ novlangue ” (nova língua) aparentemente sem origem.
Em todos os países avançados patrões, altos funcionários internacionais, intelectuais de projeção na mídia e jornalistas de primeiro escalão se puseram em acordo em falar uma estranha novlangue cujo vocabulário, aparentemente sem origem, está em todas as bocas: “globalização”, “flexibilidade”, “governabilidade”, “empregabilidade”, “ underclass ” e exclusão ; nova economia e “tolerância zero”, ”comunitarismo”, “multiculturalismo” e seus primos pós-modernos, “etnicidade”, “identidade”, “fragmentação” etc. A difusão dessa nova vulgata planetária – da qual estão notavelmente ausentes capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade, e tanto vocábulos decisivamente revogados sob o pretexto de obsolescência ou de presumida impertinência – é produto de um imperialismo apropriadamente simbólico: seus efeitos são tão mais poderosos e perniciosos porque ele é veiculado não apenas pelos partidários da revolução neoliberal que, sob a capa da “modernização”, entende reconstruir o mundo fazendo tábula rasa das conquistas sociais e econômicas resultantes de cem anos de lutas sociais, descritas, a partir dos novos tempos, como arcaísmos e obstáculos à nova ordem nascente, porém também por produtores culturais (pesquisadores, escritores, artistas) e militantes de esquerda que, em sua maioria, ainda se consideram progressistas (B OURDIEU ; W ACQUANT , 2000, p. 1, grifo nosso). A exclusão aparece na análise desses autores de forma intrigante, junto com a vulgata neoconservadora – globalização, flexibilidade, governabilidade, empregabilidade – ou com o jargão pós-moderno – comunitarismo, multiculturalismo, etnicidade, etc. – e, certamente, nos deixa no mínimo desconfortáveis por seu uso indiscriminado. Tanto mais porque o uso corrente da noção de exclusão dá-se, como apontam Bourdieu e Wacquant, em amplo campo da esquerda. Avançar nesse terreno implica desvendar “o aparentemente sem origem” colocado de forma provocativa por Bourdieu e Wacquant. Alguns autores do campo marxista nos ajudam, creio, a desvendar o aparentemente sem origem e a qualificar melhor nosso problema. O historiador Eric Hobsbawm (2000) nos oferece uma indicação preciosa que corrobora outras análises as quais situam o surgimento da ênfase na ideia de exclusão social no âmbito do debate político mais recente. Ao tratar da ênfase que assume os estudos sobre etnia e raça, Hobsbawm indica que esses vocábulos não se constituem categorias analíticas, e sim categorias de embate político. Numa mesma direção, e referindo-se diretamente à questão da exclusão, Oliveira (2000) analisa que trata-se de uma exclusão no campo dos direitos. Esta, também, é a indicação de Robert Castel (1997), que situa a explosão do vocábulo exclusão social no âmbito da mídia e o discurso político na França nos anos 90. Um dos temas mais candentes do debate sobre a exclusão era o crescente número de desempregados, que atingiu em outubro de 1992 o patamar psicológico de três milhões de desempregados. Assim, poderíamos dizer que a exclusão social é uma categoria que vai sendo assumida nos embates políticos tanto para explicitar questões de
gênero e etnia como, e especialmente, para designar problemas da perda de direitos que, no contexto da mundialização do capital, assumem uma magnitude e uma gravidade sem precedentes. Ora, se os embates acerca da exclusão resultam do diagnóstico dos efeitos da mundialização do capital, por que, como afirmamos acima, ela não se constitui num conceito que nos permite apreender as mediações históricas que assume a forma capital hoje? E por que o antônimo de exclusão, num plano mais radical, não é a inclusão, mas a emancipação? Em diferentes momentos Castel (1997) nos dá elementos que nos permitem avançar, se não numa clara resposta a essas questões, ao menos para elucidá-las melhor. De imediato nos mostra a debilidade analítica da noção de exclusão e nos oferece um conjunto de razões que, como ele mesmo indica, nos “deveriam levar a um uso reservado desse termo, e até mesmo a excluí-lo, ou seja, a substituí-lo por uma noção mais apropriada para nomear e analisar os riscos e fraturas sociais atuais” (1997, p. 16). Sustentando a ideia que esse termo, ao mesmo tempo, oculta e traduz a questão social atual, sinaliza a sua fragilidade e as armadilhas que engendra e destaca: trata-se de um termo que designa uma ampla heterogeneidade de fenômenos encobrindo a especificidade de cada um. Ou seja, a exclusão não é uma noção analítica; um segundo aspecto da fragilidade do termo é que ele autonomiza situações limites que só têm sentido quanto colocados num processo; por fim, indica que a noção de exclusão não atenta para as causas estruturais e globais das relações capitalistas e conduz, por isso, a atacar, de forma focalizada e precária, as consequências. Não se trata, ressalta Castel, de não reconhecer o mérito e a necessidade das políticas de inclusão, mas de atentar para o fato que a questão social vem sendo trazida, de forma permanente, para a “margem”, reduzindo-a a uma questão técnica. ¹⁰ Na pista para buscarmos entender por que a exclusão não se constitui num conceito analítico e, ao mesmo tempo, a explosão de sua utilização no campo da direita e da esquerda, presumo que Frederic Jameson nos traz uma contribuição crucial ao distinguir as analises que se desenvolvem na perspectiva da antinomia daquelas que se centram na contradição. ¹¹ A antinomia explicita-se por uma forma mais clara de linguagem e afirma “proposições que efetivamente são radical e absolutamente incompatíveis, é pegar ou largar [...] x ou y, e isso de forma tal que faz a questão da situação ou do contexto desaparecer por completo”. De modo totalmente diverso “a contradição é uma questão de parcialidades e aspectos; apenas uma parte dela é incompatível com a proposição que a acompanha”; na verdade, ela pode ter mais que ver com forças, ou com estado de coisas, do que com palavras e implicações lógicas.[...] Nesse caso, é a situação que explica a disparidade, gerando, em sua incompletude, as perspectivas múltiplas que nos fazem pensar que a matéria em questão é agora x ou y, ou, melhor ainda, ao mesmo tempo tem jeito de x, tem jeito de y (1997, p. 18). Configura-se, ao nosso ver, que o debate sobre exclusão social situa-se claramente no campo da antinomia – incluído ou excluído – e, por isso, tem mais que ver com o discurso e o embate político do que com a análise das situações concretas. Com efeito, Jameson (1997, p. 18) avalia que
nossa época é, de forma bem clara, mais propícia à antinomia do que à contradição. Mesmo no próprio marxismo, terra natal desta última, as tendências mais avançadas reclamam da questão da contradição e se aborrecem com ela, como se ela fosse um remanescente inexpugnável do idealismo, capaz de reinfestar o sistema de forma antiquada como os miasmas ou a febre cerebral. A apreensão de que vivemos num tempo mais propício à antinomia o conduz à conclusão de que a contradição se situe, talvez, na tradição modernista, enquanto a antinomia explicite mais a situação pós-moderna, embora não necessariamente sejam pós-modernos as análises que se apoiam nesta categoria. Podemos perceber uma concordância de perspectiva entre a análise de Bourdieu, Wacquant e de Castel no sentido de que a exclusão é um termo ou um vocábulo que não nos ajuda na apreensão da complexidade das situações históricas concretas e suas contradições. O encaminhamento dado por Jameson e Francisco de Oliveira, todavia, não é pela sua não utilização. Jameson nos conduz a pensar que, traduzida a exclusão no campo da antinomia e a materialidade das relações sociais de produção, no âmbito da contradição, “talvez valha a pena utilizar ambas concomitantemente e lançar uma contra a outra, na medida em que cada uma fornece um instrumento único para problematizar a outra em suas implicações mais vitais”. Ou de utilizarmos “a antinomia como se fosse um sintoma de uma contradição ” (1997, p. 19-20, grifo nosso). Oliveira, ao afirmar que não se trata de “uma exclusão pelo mercado”, como geralmente apontamos, mas no plano dos direitos, nos convida à mesma relação dialética. “Essa exclusão [dos direitos] é a mais grave de todas, porque é a partir daí que você interroga e contesta o outro” (2000, p. 89). Seguindo essas pistas poderíamos tomar, talvez, a exclusão social (campo da antinomia) como sintoma da desigualdade social (campo da contradição). Com efeito, como mostra Martins (1981 e 1997), estruturalmente a sociabilidade do capital exclui e inclui, ou seja, é x e y, ao mesmo tempo. No plano econômico, o capital efetiva formas diferenciadas e subordinadas de inclusão e, no plano social, formas diferenciadas de degradação e de segregação. Na base está a natureza estrutural de classe da forma capital e a desigualdade, portanto, como elemento central. O desafio situa-se, para esse autor, na qualificação histórica dessa “nova desigualdade”. Nas análises de Oliveira, a dialética da inclusão e exclusão, como forma específica de o capital construir as relações sociais, é uma constante. Num texto que capta a dinâmica do capital na forma de subsumir e expropriar o trabalho no contexto em que a mundialização do capital já era um fato – o terciário e a divisão social do trabalho –, Oliveira (1981) chama atenção para o fato de que o inchaço do setor informal de trabalho é, ao mesmo tempo, expressão e exigência das mudanças da base material das relações capitalistas de produção. O setor informal constitui-se como um colchão de molas que amortece e regula a expansão do exército de reserva. Na sua obra Os direitos do antivalor (1998), Oliveira capta a radicalização desse movimento, expressão da exponencial ampliação de incorporação de
capital morto no processo produtivo e da expansão, igualmente exponencial, do capital financeiro de cunho meramente especulativo. Neste contexto, o fundo público que no embate da luta de classes, particularmente no pósSegunda Guerra Mundial, foi garantindo direitos à classe trabalhadora, incluindo, de alguma forma, o exército de reserva e, mesmo, o excedente, ou seja, aqueles que já não são necessários à produção capitalista. Como o fundo público, mediante a mundialização do capital e as políticas neoliberais, vem sendo capturado na valorização do capital na recuperação de suas taxas de lucro e a base produtiva incorpora vertiginosamente tecnologias microeletrônicas poupadoras de trabalhadores, uma massa cada vez maior dos que antes eram incluídos, mesmo que de forma desigual e diferenciada, engrossam agora o número de trabalhadores excedentes – sobrantes ou descartáveis. Configura-se, por outro lado, uma radicalização da divisão internacional do trabalho e substituição de políticas sociais por mecanismos de filantropia e de programas de alívio à pobreza, particularmente nos países do “capitalismo periférico e semiperiférico” (A RRIGHI , 1998). A questão revela-se aqui menos econômica e técnica, e frontalmente como sendo uma questão política. Tomando-se a questão específica da crise estrutural do trabalho, talvez possamos perceber que estamos diante de uma situação histórica em que não bastam políticas afirmativas de inclusão, pois se trata de uma inclusão cada vez mais degradada. Multiplicam-se as formas precárias de trabalho, muitas vezes sob a denominação de “trabalho autônomo”, gestor do próprio negócio ou empreendedorismo. A contradição entre trabalho social e relações de produção no capitalismo tardio: inclusão e emancipação. A exclusão social sob a forma de sobrantes e descartáveis, e tomada como sintoma de ampliação e radicalização da desigualdade de classe e entre as classes sociais, sinaliza uma realidade mais radical da crise da forma capital. Para um conjunto cada vez mais amplo da classe trabalhadora, a perda ou a exclusão do emprego formal significa cair numa situação de inclusão precária mediante política focais compensatórias ou caridade social.
Para um número cada vez maior de membros da classe trabalhadora, a radicalização da desigualdade econômico-social constitui-se em mediação para a exclusão no sentido de eliminação. Trata-se de mortes pelo aumento da violência social, particularmente nos grandes centros urbanos, pelo aparato repressor do chamado Estado paralelo. A eliminação, neste caso, é sobretudo de jovens. Com efeito, em pesquisa feita pela Unesco sobre o mapa da violência, o Brasil ocupa o terceiro lugar na América Latina. A situação das grandes capitais é dramática. Em 1980, no Rio de Janeiro, os homicídios de jovens entre 15 e 24 anos representavam 33,2% do número total de mortes da capital. ¹² No ano 2000, passaram a representar 53,2% (P EREIRA , 2004). Os dados do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro indicam que as mortes em confronto com a polícia, no Rio de Janeiro, passaram de 900 casos, em 2002, para 1.195 em 2003. Essa tendência, em relação aos jovens nessa faixa etária, se reproduz em outras capitais, como São Paulo, Belo Horizonte, Salvador etc. Mas as novas formas que assumem as relações sociais de produção do sistema capital são responsáveis pela situação de miséria absoluta de um terço da humanidade. Neste caso há uma exclusão, ¹³ também no sentido de extermínio, pela fome e endemias. Aqui as vítimas são especialmente crianças e velhos. Essa forma de apreender a exclusão como sintoma do aprofundamento da desigualdade nos conduz numa direção antagônica às abordagens liberal ou neoliberal e oposta à perspectiva pós-moderna. Ambas, por caminhos diversos, apagam as mediações históricas do caráter cada vez mais violento da relação social comandada pelo sistema capital aprofundando a violência de classe. Os liberais e neoliberais, por uma condição de classe, enxergam a disfunção social, mas não a origem da desigualdade que a produz. O pósmodernismo, como explicita Jameson (1996), constitui-se na cultura do capitalismo tardio. Cultura da fragmentação mercantil, do sujeito desvinculado de suas condições objetivas, de sua produção material da existência enquanto um ser da natureza, uma individualidade singular e particular e um ser social. ¹⁴ Ao contrário, portanto, do que se manifesta na superfície e na qual essas abordagens se fixam, as classes sociais não desapareceram. Sua força de destruição e de ampliação da desigualdade entre as nações e internamente é cada vez mais potente. E a destruição dos estados nacionais e dos direitos sociais dos trabalhadores é, por excelência, a forma mediante a qual o sistema capital busca enfrentar sua crise estrutural e orgânica da tendência da queda de suas taxas de lucro. O capital, como demonstrou Marx nos Grundrisse , tende necessariamente ao limite mais externo de um mercado global, que representa também a sua situação de máxima crise (visto que não é possível maior expansão): essa doutrina é para nós, hoje, muito menos abstrata do que era no período moderno; ela designa uma realidade conceitual que nem a teoria nem a cultura podem postergar para um tempo futuro (J AMESON , 1997, p. 41).
Essa tendência contraditória e cada vez menos abstrata desdobra-se, atualmente, sobretudo no âmbito do trabalho assalariado. Nos mesmos Grundrisse , Marx evidenciou o aprofundamento histórico da contradição entre o avanço das forças produtivas, o trabalho social como valor de uso e o desenvolvimento das relações sociais capitalistas que o condicionam e o aprisionam. A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado, isto é, a posição do trabalho social sob a forma de oposição entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção apoiada sobre o valor. Seu pressuposto é e permanece a massa de tempo de trabalho imediato, o quanto de trabalho empregado como fator decisivo da produção de riqueza. Na medida em que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva torna-se menos dependente do tempo de trabalho e do quantum de trabalho utilizado, do que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que, em seu powerful effectiveness (poderosa efetividade), não mantém relação com o tempo de trabalho imediato demandado por sua produção, mas [essa criação] depende muito mais da utilização da ciência na produção (M ARX , 2000, p. 151). Em seguida, Marx evidencia-nos que sob o capitalismo não se libera tempo de efetiva liberdade para o desenvolvimento humano, mas tempo supérfluo subordinado ao trabalho alienado. Não é a redução do tempo de trabalho necessário ao sobretrabalho, mas a redução do trabalho necessário à sociedade a um mínimo, o tempo tornado livre para todos os indivíduos e os meios criados que possibilitam a educação artística, científica etc. necessária ao livre desenvolvimento da individualidade. O capital é ele mesmo a contradição em processo, conforme impede que o tempo de trabalho se reduza a um mínimo e, simultaneamente, torna o tempo de trabalho a única medida e fonte de riqueza. Por conseguinte, ele diminui o tempo de trabalho sob a forma necessária para multiplicá-lo sob a forma supérflua. Neste sentido, transforma o supérfluo em medida crescente como condição – question de vie et de mort (questão de vida e de morte) – para o [trabalho] necessário [ sic ]. [...] É verdadeiramente rica uma nação quando se trabalha seis horas em vez de doze (M ARX , 2000, p. 251-253). Várias análises, por ângulos diversos, buscam revelar essa realidade “teórica e cultural” que não pode ser postergada. A análise mais completa, sem dúvida, é a efetivada por Mészáros (2002), que reúne pesquisas e reflexão durante mais de duas décadas e as expôs sob o indicativo título Para além do capital. Ao longo de mais de mil páginas, o autor expõe-nos que a crise atual do capital e da forma que assume o trabalho subordinado à relação capital – trabalho abstrato, trabalho alienado, trabalho assalariado – é uma crise de natureza e consequências diversas de todas as precedentes. Para ele, o capital esgotou sua capacidade civilizatória e agora tende a ser mera destruição de direitos duramente conquistados pela classe trabalhadora. Vivemos uma era de uma crise histórica sem precedente. Sua severidade pode ser medida pelo fato de que não estamos frente a uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, como as vividas no passado, mas a uma
crise estrutural, profunda, do próprio sistema capital. Como tal, esta crise afeta – pela primeira vez em toda a história – o conjunto da humanidade, exigindo, para esta sobreviver, algumas mudanças fundamentais na maneira pela qual o metabolismo social é controlado” (M ÉSZÁROS , 2000, p. 7). No capitalismo tardio, a desnecessidade crescente de incorporação de trabalho vivo na produção de mercadorias em forma de bens e serviço – a sociedade continua industrial e não pós-industrial (H OBSBAWM , 2000, p. 98) – e a hipertrofia do capital morto em forma de ciência e tecnologia na produção, como o previsto por Marx já nos Grundrisse , não só gera desemprego estrutural ou a sua extrema precarização mas também produz, como já assinalava Gramsci nos anos 1930, formas de trabalhos fantasmagóricos. Por outro lado, atrofia-se e impede-se o tempo de trabalho livre – reino da liberdade, da escolha e do desenvolvimento humano. É este horizonte que conduz o historiador Eric Hobsbawm a colocar como questão central do século XXI não a produção de mercadorias, mas a distribuição da riqueza por uma esfera pública, que para ele continua sendo o Estado, ainda que não sob a forma atual. O que, na minha opinião, temos de buscar é uma outra maneira de distribuir a riqueza produzida por uma quantidade cada vez menor de pessoas, que no futuro pode chegar a ser na verdade a uma quantidade ínfima. [...] não se trata de aumentar a produção, pois isto conseguimos resolver de forma satisfatória. A verdadeira dificuldade está na forma de distribuir a riqueza (H OBSBAWM , 2000, p. 98). Os exemplos que afirmam essa realidade são inúmeros e eloquentes. Na produção industrial a utilização ínfima de mão de obra se explicita de forma vertiginosa. A indústria automobilística, que após 1940 constitui-se em símbolo do fordismo empregando milhões de trabalhadores, hoje se transforma em montadoras que se deslocam de nações para nações, buscando a melhor escala de lucro e empregando parcelas ínfimas de trabalhadores. Em Gravataí (RS), a General Motors inaugurou uma montadora, em 2000, onde operam, de acordo com o secretário do Trabalho do estado, 600 trabalhadores, a maior parte comunicando-se por celular. Para uma escala de produção similar, nos anos 1970, eram empregados, no chão da fábrica, 25 mil trabalhadores (F RIGOTTO , 2001). A fome constitui-se numa das pragas do mundo. Quase dois terços da população do mundo passa fome. Ao mesmo tempo, sabemos que há estoques de comida, de acordo com a FAO (sigla em inglês da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), para alimentar, ao nível do consumo dos países ricos, 12 bilhões de pessoas. Há toneladas de alimento e de remédios cuja validade está vencendo, e há políticas de incentivo à diminuição da produção em várias partes do mundo. No Brasil, por exemplo, onde temos cerca de 51 milhões de habitantes em miséria absoluta e que podem gastar por dia aproximadamente meio dólar, seguidamente se noticia a perda de toneladas de alimentos. Há poucos dias, noticiava-se que toneladas de peixe estão vencidas e apodrecendo. A explicação econômica é que não há demanda. Com efeito, um quilo de peixe custa entre um e dez dólares, obviamente os 50 milhões condenados a um
dólar/dia para todas as necessidades estão fora desse mercado. Cinicamente o maior programa social atualmente no Brasil chama-se “Fome Zero”. Como decorrência da crescente precarização e degradação das condições e vida da classe trabalhadora, gera-se aquilo que Boaventura Santos (1999) denominou de fascismo da insegurança e uma predisposição de “baixar o horizonte de expectativas e a criar a disponibilidade para suportar grandes encargos, de modo a obter reduções mínimas dos riscos e da insegurança” (p. 54-55). ¹⁵ Num plano mais profundo e permanente, Sennett (1999) analisa as “consequências pessoais do trabalho no capitalismo tardio” como produtoras da “corrosão do caráter”. ¹⁶ À medida que aprofundamos a análise das contradições da forma capital percebemos que o que se amplia é sua força destrutiva. Para manter-se, como demonstra Mészáros, vem destruindo todos os direitos que a classe trabalhadora conquistou nos últimos séculos. Por isso no plano da luta política o antônimo da exclusão não é a pura e simples inclusão, já que, como assinalamos anteriormente, se trata de uma inclusão cada vez mais degradada. O horizonte a perseguir é o da utopia da emancipação humana sob novas formas de relações sociais. Vale dizer, uma luta para ir além do capital. Considerações finais: para além da inclusão excludente As condições objetivas das relações de produção, em termos das suas contradições, indicam a necessidade cada vez maior, para ter futuro visível para a humanidade, da ruptura com a forma capital. Contraditoriamente, a mundialização do capital e as políticas neoliberais a ela associadas que esfacelaram, em boa medida, as organizações da classe trabalhadora configuram uma realidade, no plano subjetivo, onde a tarefa da ruptura das atuais relações sociais capitalistas aparenta ser algo impossível. É nesse contexto que a tarefa das forças sociais de esquerda é produzir análises que superem o pensamento marcado pela antinomia e avance na materialidade histórica das contradições e mediações que permitem construir uma agenda política que se paute por projetos societários que busquem a superação da forma capital de relações sociais. Voltamos, neste particular, à questão clássica da travessia do capitalismo ao socialismo. De imediato, ela não se fará pela força mecânica das contradições do sistema capital, mas pela luta e organização política da classe trabalhadora. Compreender a natureza das contradições do sistema capital e evidenciar (tornar senso comum de novo tipo) o que elas representam em termos de negação de satisfação das necessidades básicas, direitos sociais e subjetivos e em termos de mutilação de vidas é uma tarefa crucial. Neste particular é que o materialismo histórico, como concepção de realidade e método para analisá-la, por ter se estruturado como crítica radical ao sistema capital, se constitui no instrumental que, sem celebrações (J AMESON , 1996), pode nos conduzir à raiz das contradições do sistema capital mundializado e, sob essa compreensão, construir as estratégias políticas.
Dois aspectos se apresentam como indicativos na luta das forças políticas de esquerda comprometidas com a construção de relações sociais de ruptura com o sistema capital. O primeiro diz respeito à antinomia: reforma ou revolução. Essa questão clássica, seguindo a perspectiva apontada por Jameson no contexto da virulenta forma que assume a desigualdade social no capitalismo tardio, exige, talvez, do campo de esquerda uma práxis que, ao mesmo tempo, e contraditoriamente, trabalhe a reforma e a revolução. Ou reforma na perspectiva da revolução , vale dizer, da ruptura com o modo de produção fundado sob a relação capital. Não se trata, pois, de qualquer reforma, mas daquelas reformas que trazem a marca da mudança estrutural. O discernimento da qualidade entre as reformas conservadoras e mantenedoras da “velha ordem” das reformas que engendram os elementos de mudança do modo de produção capitalista depende da análise histórica e dos referenciais teóricos que a sustenta. Daí o papel crucial da teoria e do debate sobre nossas teorias e categorias de análise. Neste sentido, parece adequada, no caso brasileiro, a postura daqueles que lutam por reformas mais estruturais articuladas a políticas públicas de caráter distributivo e emancipatório. Trata-se, ao mesmo tempo, de superar o voluntarismo e o pragmatismo reformista. No âmbito das reformas estruturais, se destacam como necessidade inadiável: a reforma agrária e a taxação das grandes fortunas, com o intuito de acabar com o latifúndio e a altíssima concentração da propriedade da terra; a reforma tributária, com o objetivo de inverter a lógica regressiva dos impostos, em que os assalariados e os mais pobres pagam mais, corrigindo assim a enorme desigualdade de renda; a reforma social, estatuindo uma esfera pública de garantia dos direitos sociais e subjetivos. Os dados da realidade brasileira, divulgados há décadas são eloquentes para mostrar que o tecido desigual da sociedade não se move: 1% dos ricos detém uma renda equivalente aos 50% mais pobres. Essa situação estrutural se apresenta, para aqueles que não querem ser indiferentes aos dramas humanos do presente, com problemas cruciais de ordem conjuntural a serem resolvidos cuja dramaticidade implica políticas distributivas imediatas. É neste contexto que se situam a política de renda mínima, bolsa família, etc. Tais políticas, além de terem um controle social público para não se transformarem em clientelismo e paternalismo (traços fortes de nossa cultura política), não podem ser permanentes. Por isso o esforço é no sentido de instaurar políticas emancipatórias que garantam emprego e renda. Essas reformas estruturais e políticas públicas distributivas e emancipatórias são transformações ainda de dentro da ordem burguesa. No caso brasileiro, uma ruptura com a “modernização conservadora”, que reitera mudanças tópicas para manter no poder as frações mais violentas da classe burguesa. Isso certamente não é a revolução socialista, mas uma condição de sua possibilidade para aqueles que buscam na tradição das análises de Marx a tese de que a travessia para o socialismo não se efetiva sob o ideário do “quanto pior melhor”.
O segundo aspecto, ligado ao primeiro e tão crucial quanto este, diz respeito ao sujeito histórico da travessia. Aqui podemos perceber, de imediato, dois equívocos. O primeiro é protagonizado pelos apologetas do fim das classes sociais pela sociedade do conhecimento e surgimento do “cognitariado” e pelos profetas do fim do trabalho ou mesmo de superação automática do trabalho abstrato. Trata-se de análises que têm origens diversas mas que concorrem para o imobilismo e fatalismo. No primeiro caso, assume-se que chegamos ao “fim da história” e, finalmente, confirma-se a sociedade de tipo natural: o capitalismo. No segundo, o sujeito histórico da travessia é subsumido logicamente pelas contradições do capital, e a travessia se efetivará como consequência de uma “razão sensível” (K URZ , 1992). Outro equívoco é não perceber que a classe trabalhadora não é a mesma hoje daquela que constituía o proletariado no início do capitalismo até final do século XX. E como a classe social não é uma “coisa”, mas uma relação social, sua extrema fragmentação e diferenciação não elidem sua existência. O desafio de construir um sujeito revolucionário é, sem dúvida, mais complexo e cada vez mais premente. Como sinaliza Coutinho (2002, p. 38), “talvez não se trate mais de construir ‘o’ sujeito revolucionário, mas de construir uma intersubjetividade revolucionária, ou seja, um conjunto de sujeitos que são plurais e diferentes, mas que convergem e se unificam na luta contra o capital”. Aqui, como lembra o autor, não se pode incorrer no corporativismo ou no “multiculturalismo muito simpático, mas que em última instância, não é mais que uma nova forma de reprodução do corporativismo neoliberal” (2002, p. 38). O grande desafio é que todos os movimentos e lutas dos trabalhadores alcancem a dimensão ético-política de universalidade contra o sistema capital. Por certo este é um ponto crucial na análise da natureza dos diferentes movimentos sociais existentes na América Latina, dos sindicatos em crise e dos partidos de esquerda. O cerne da questão que essas forças sociais precisam ter presente é que a luta de classes, capital e trabalho muda de forma e de conteúdo histórico, mas persiste até que existam capital e capitalismo. Nesse contexto redefinem-se o papel do sindicalismo e dos partidos políticos de esquerda em sua estratégia revolucionária. A repercussão que têm no mundo os movimentos sociais, como Chiapas, no México, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, ou o movimento indígena do Equador e outros similares na América Latina, sinalizam o que acabamos de pontuar. Trata-se de novos sujeitos políticos que lutam mais amplamente do que por seus direitos imediatos. Lutam contra a forma que assume o capital nas sociedades latino-americanas. Por isso são tão combatidos e satanizados pelas classes dominantes dos seus respectivos países. Num campo ético-político mais amplo e de maior universalidade, situam-se os Fóruns Sociais Mundiais. Frente à mundialização do capital destrutivo e cada vez mais violento, mundializam-se as lutas anticapital. Em comum, na diversidade dos que participam dos fóruns mundiais e regionais que se multiplicam, está a afirmação da ideia de que outro mundo é possível e que os seres humanos e suas necessidades, e não o capital e o mercado, são a medida de todas as coisas. Trata-se, então, de combater o ideário e valores neoliberais e de prosseguir lutando para construirmos sociedades fundadas nos valores e princípios da igualdade, solidariedade e a generosidade
humana, colocando a ciência e a técnica e os processos educativos a serviço da dilatação da vida para todos os seres humanos. Nesse horizonte, a tarefa política é, sem dúvida, transcender às estratégias de inclusão degradada, sob programas focalizados e de caridade social que funcionam como alívio à pobreza e manutenção do status quo . Para ir além do focal, a luta da classe trabalhadora e dos movimentos que a constituem implica, como indica o historiador Eric Hobsbawm, redefinir o papel do Estado. Não do Estado em sua função de preposto para o capital, mas, como sublinha o historiador, de um Estado radicalmente democrático. Aqui a tarefa é criar capacidade política para ter controle do fundo público e sua aplicação para garantir os múltiplos direitos e necessidades humanas, ¹⁷ e não as exigências do capital. Essa possibilidade está condicionada, sem dúvida, à organização, cada vez mais ampla, da classe trabalhadora em seus diferentes organismos coletivos e nos movimentos sociais. A teoria que vem da tradição de Marx nos lega a compreensão de que a realidade histórica é contraditória e no seio do capitalismo o antagonismo de classe é a contradição central. A leitura da realidade por antinomia não nos permite perceber que o novo modo de produção social, sem classes, somente se construirá arrancado do velho modo de produção. A antinomia inclusãoexclusão, por isso, somente pode ser tomada como sintoma de relações sociais, estrutural e organicamente geradoras da desigualdade. Relações que precisam ser rompidas e superadas. Essa travessia implica teoria densa e ação política organizada, vale dizer, práxis revolucionária. Referências ANDERSON, P. A batalha das idéias na construção de alternativas. In: BORON, A. A. Nova hegemonia mundial - Alternativas de mudança e movimentos sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2005. ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento . Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. A nova bíblia do Tio Sam. Le Monde Diplomatique , edição brasileira, ano 1, n. 4, ago. 2000. CARDOSO, M. L. A ideologia da globalização e descaminhos da ciência social. In: GENTILI, P. (Org.). Globalização excludente – desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial . Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. CASSIA, Cristina; BOTTARI, Elenice. PM sobe a Rocinha e três adolescentes são mortos . O Globo, 2 fev. 2004, p. 13. CASTEL, R. As armadilhas da exclusão. In: CASTEL, et al . Desigualdade e a questão social . São Paulo: Educ, 1997. CASTRO, R. P. Globalização e visão unidimensional (monetarista) do mundo moderno. Novos Rumos , Revista trimestral. Instituto Astrogildo Pereira, 1999. CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Scrita, 1996.
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¹⁰ Em recente análise, Peregrino (2001), tendo como interlocutores Bourdieu e Wacquant, Robert Castel e outros autores discutem, de forma densa, os limites e armadilhas da noção de exclusão. ¹¹ Cabe esclarecer ao leitor que Jameson não está fazendo, na obra aqui citada, uma análise da problemática da exclusão social. Sua análise nesta e, especialmente, em outras obras (1996 e 2001) aborda as mudanças estruturais e as contradições daquilo que denomina o capitalismo tardio e suas consequências humano-sociais. A discussão da questão da exclusão social no âmbito do pensamento antinômico deriva de sua discussão, na obra supracitada, quando aborda “as antinomias da pós-modernidade” (p. 16-81). ¹² Dificilmente se passa um dia sem que os jornais de grande circulação não noticiem mortes de jovens em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Trata-se de mortes causadas por confrontos ou não com a polícia ou entre grupos rivais. Manchetes como estas se repetem: “PM sobe a Rocinha e três adolescentes são mortos”. A notícia dá conta de que “os jovens voltavam para casa depois de um baile funk quando foram abordados por homens do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM. Eles teriam sido levados para a Travessa Gregório, próximo a um valão, e baleado” (CÁSSIA; BOTTARI, 2004, p. 13). ¹³ Para uma ampla compreensão da exclusão no mundo e no Brasil como sintomas de agravamento desigualdade, ver POCHMANN e outros (2004) e POCHMANN; AMORIM (Orgs.) (2003). ¹⁴ Para uma análise profunda das condições objetivas e subjetivas da cultura e que nos permite uma crítica adequada ao culturalismo e ao multiculturalismo, ver PARIS (2002). ¹⁵ Neste contexto é que podemos entender o sentido e o significado das reformas educacionais sob a ótica liberal e neoliberal em sua função dominantemente ideológica. Se nos marcos do Estado intervencionista e, posteriormente, nos do Estado de bem-estar social a escola se apresentava com a promessa integradora (preparar para o emprego) sob a teoria (ideologia) do capital humano, no contexto do mercado globalizado ou da mundialização do capital, a ideologia das competências anuncia o papel da educação para justificar a promessa desintegradora (preparar para a empregabilidade). Ver, a esse respeito, Gentili (2001). ¹⁶ O autor nos assinala que “caráter são os traços pessoais a que damos valor a nós mesmos e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”. Trata-se de traços que se caracterizam por aspectos de longo prazo de nossa experiência e que num contexto do capitalismo flexível, onde o longo prazo “desaparece”, tendem a uma erosão. ¹⁷ Em recente debate Perry Anderson (2005) chama a atenção para o desgaste do tema dos direitos humanos considerando que uma das estratégias imperialista do poder norte-americano é o ideário do “humanismo militar”. Trata-se de justificar a agressão a nações, agora até mesmo de forma preventiva (guerra preventiva), em nome de uma ideia abstrata de direitos humanos. O foco desta estratégia é o combate ao que o imperialismo define como terrorismo. Neste particular Anderson sinaliza a
importância de centrar o debate na satisfação das necessidades básicas dos seres humanos. A polissemia da categoria trabalho e a batalha das ideias nas sociedades de classe
¹⁸ Gaudêncio Frigotto Até os nossos dias, a história de toda a sociedade tem sido a história das lutas de classe. (M ARX e E NGELS , 1998) Diz-se que um termo é polissêmico quando ele é utilizado com várias significações. Por exemplo, ao examinar as relações sociais de produção na especificidade da sociedade capitalista, Marx vai nos mostrar que produtivo é aquele trabalho que produz mais-valia. Este, todavia, não é o sentido dado nem pelo pensamento liberal nem pelo senso comum. No pensamento econômico liberal é uma relação entre os insumos aplicados e o resultado da produção. No sentido dicionarizado, usualmente trabalho produtivo é aquele que rende mais, que produz mais ou é mais eficaz. Neste texto, que visa a estimular o debate dentro do espaço de acúmulo de discussões do GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), não vou ater-me particularmente à dimensão semântica do trabalho para evidenciar as mudanças de sentido sofridas por ele no tempo e no espaço. Primeiro por não ser este meu campo de formação e, muito menos, de estudos e pesquisa. Segundo, e fundamentalmente, porque, no exemplo anterior, o cerne da questão não é uma disputa semântica abstraída das relações sociais. Na sociedade capitalista é uma disputa de classe que somente pode ser apreendida em sua historicidade dentro de uma concepção dialética e no campo das contradições e não das antinomias. A opção do encaminhamento que estou dando ao texto busca no legado de Marx a compreensão de que não é a consciência, a teoria e a linguagem que criam a realidade, mas de que elas se produzem dentro e a partir de uma realidade histórica, sendo e tornando-se, porém, elas mesmas parte dessa realidade. Daí que para Marx e Engels nenhuma ideia, preconceito, ideologia ou teoria deve deixar de ser examinada, já que todas elas se constituem em elementos constitutivos da realidade e parte de determinadas práxis (alienadas ou críticas). A produção das idéias, de representações da consciência, está de início diretamente entrelaçada à atividade material e com o intercâmbio material [...] os homens são produtores de suas representações, de suas idéias, etc.,
mas os homens reais e ativos (grifos meus) [...]. A consciência jamais pode ser outra do que o ser consciente e o ser dos homens é seu processo de vida real (M ARX ; E NGELS , 1986, p. 36-37). Essa compreensão conduz-me ao pressuposto de que os sentidos e significados do trabalho resultam e constituem-se como parte das relações sociais em diferentes épocas históricas e um ponto central da batalha das ideias na luta contra-hegemônica à ideologia e à cultura burguesas. Esse pressuposto, como consequência, leva-me, ao mesmo tempo, a compreender e tratar as relações de produção e de reprodução sociais, a linguagem, o pensamento e a cultura de forma histórico-dialética e que – para não cairmos numa discussão abstrata, atemporal ou, nos termos de Marx, escolástica – o sentido do trabalho, expresso pela linguagem e pelo pensamento, só pode ser efetivamente real no campo contraditório da práxis e num determinado tempo e contextos históricos. A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas da prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade do pensamento isolado da práxis, é uma questão puramente escolástica (M ARX ; E NGELS , 1986, p. 14). Se por um lado, então, é crucial voltar aos textos de Marx e Engels e de outros pensadores marxistas buscando seu sentido imanente e o rigor semântico como exercício de não nos afastarmos dos fundamentos da concepção materialista-histórica da realidade humana ou social e do método dialético de construção de sua compreensão, o grande desafio, todavia, em nosso tempo, como nos adverte Francisco de Oliveira (1987), é o “de não alcançar-se a saturação histórica do concreto, isto é, de não saber apanhar a multiplicidade de determinações que fazem o concreto. Vale dizer, seguir o legado de Marx e de Engels, que é o de “compreender toda a realidade em seu movimento, nas suas ‘tendências’ – portanto na ‘unidade’ dos seus diferentes aspectos e ‘contradições’” (L EFEBVRE , 1981, p. 295-296). Ao abordar a concepção materialista de história, Engels, em carta a C. Schmidt, adverte sobre o risco de seu uso apenas como rótulo. Sobretudo a palavra “materialista” serve, na Alemanha, a muitos escritores jovens como uma simples frase com que se rotula todo e qualquer estudo, ou seja, coloca-se o rótulo e crê-se ter encerrado então o assunto [...]. Toda a história precisa ser reestudada, as condições de existência das diversas formações sociais precisam ser examinadas em detalhe, antes de induzir delas as correspondentes concepções políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas, religiosas, etc. (E NGELS apud F ERNANDES , 1983, p. 456). Por certo, no plano mais geral, Edward Thompson, Raymond Williams, Eric Hobsbawm, Antônio Gramsci e, no Brasil, Francisco de Oliveira e Florestan Fernandes, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, entre outros, são intelectuais pesquisadores que pensam com Marx para além de Marx . ¹⁹ Ou seja, pensadores que pela pesquisa e análise sistemática buscam não se afastarem dos fundamentos e saturar as categorias e conceitos (trabalho, classes sociais, Estado, cultura, democracia, luta de classe, etc.), no
movimento mais universal do sistema capital e na especificidade de diferentes formações históricas capitalistas. A construção da categoria de capitalismo dependente , em Florestan Fernandes (1975 e 1981) e Rui Mauro Marini (2000), a crítica da razão dualista atualizada, 30 anos depois, com um texto sobre a metáfora do ornitorrinco, em Francisco de Oliveira (2003), e a análise da questão da democracia e da relação Estado e sociedade civil, em Carlos Coutinho (2002), são abordagens que explicitam a especificidade do capitalismo no Brasil dentro do movimento do sistema capital. No âmbito mais geral, Francisco de Oliveira (1998), em “O surgimento do Anti-Valor”, traz à luz a forma mediante a qual o capital se reproduz e amplia cada vez mais dependendo do fundo público e as consequências para a luta de classes da disputa pelo controle e manejo dele. ²⁰ Konder (1992 e 2002) dialoga sobre o pensamento de Marx no século XXI, o futuro da filosofia da práxis e a leitura crítica da história. Essas demarcações introdutórias objetivam explicitar a direção dentro da qual gostaria de trazer ao GT Trabalho e Educação, para debate, alguns elementos dos aspectos mencionados e suas implicações ético-políticas na luta contra-hegemônica nos diferentes espaços da sociedade e, em particular, no campo da educação ou, mais amplamente, da formação humana onde a maioria de nós atua. Considerando a natureza das questões que vêm ocupando o GT, vou abordar dois pontos inter-relacionados. No primeiro ponto busco sinalizar que a polissemia da categoria trabalho resulta de uma construção social e, em nossa sociedade, com o sentido de dominação de classe. O grande desafio é o de apreender, no tecido social do senso comum, das religiões e das ideias do pensamento e da ciência positivista e pragmática dominante qual mosaico de sentidos assume o trabalho. No segundo, que tem origem e está vinculado ao primeiro, ocupo-me de dois aspectos também imbricados. Num recente livro, Sergio Lessa (2007) aborda a perda da precisão semântica do vocabulário trabalho e as consequências para definição de quem é hoje o proletariado, a distinção entre proletários e trabalhadores e o que é hoje a classe revolucionária. Partindo da análise da compreensão ontológica de trabalho numa perspectiva imanente e dentro da ortodoxia e centrado particularmente no Livro I de O Capital , justificando sua prioridade exegética, salienta que, em Marx, por trabalho se entende o intercâmbio orgânico do ser humano com a natureza e a atividade que transforma a matéria natural . Compreensão esta, para Lessa, que permite definir quem é hoje o proletariado e a classe revolucionária. Sob essa base analisa parte da obra de três autores brasileiros, Ricardo Antunes, Marilda Villela Iamamoto e Dermeval Saviani, e sustenta que eles, por perda dessa precisão, dão o adeus ao trabalho no Brasil ²¹ e à identificação de quem pertence ou não ao proletariado e à classe revolucionária. Ao abordar a obra de Saviani, e referindo-se a “alguns dos mais significativos pedagogos de esquerda”, destaca que essa incompreensão semântica “tornou aos educadores mais complicada e difícil
a percepção da essência das transformações em curso: a passagem de um patamar mais elevado de extração de mais-valia, uma intensificação dos processo alienantes oriundos do capital” (L ESSA , 2007, p. 121). Para Lessa, isso decorre de ilusões de Saviani e desses pedagogos da possibilidade, sob o sistema capitalista, da existência de alguma positividade do desenvolvimento científico e tecnológico, dos avanços das forças produtivas ou de transformações que possam ser disputadas e capturadas pelas forças comprometidas pela emancipação humana. Da mesma forma, decorrem as ilusões sobre a possibilidade de construir uma educação geral, omnilateral ou politécnica dentro do sistema capitalista. Na mesma direção de análise imanente de textos de Marx feita por Tumolo (2003), busco analisar as implicações, no plano teórico e político-prático, da defesa que o autor procura sustentar de que o trabalho, sob o sistema capital, não pode ser entendido nem pensado como princípio educativo, isto porque é cada vez mais alienante. Ou seja, o trabalho neste caso seria pura negatividade e por isso impensável como princípio educativo. Registro de imediato que as objeções que explicito nesta discussão não se referem à pertinência de efetivar análises imanentes dos textos de Marx ou outros pensadores clássicos. Portanto, o intuito não é de desclassificar ou menosprezar a sua produção. Pelo contrário, entendo-a como um trabalho intelectual fundamental e com o qual compartilho, como compartilho da análise da forma cada vez mais destrutiva e violenta do sistema capital e de sua natureza não reformável. O ponto crucial a ser debatido é a passagem da compreensão imanente do trabalho, da classe proletária e do sujeito revolucionário para a análise ou julgamento de trabalhos que se centram, há décadas, em desenvolver pesquisa histórico-empírica e que pensam com Marx para além de Marx . O que procurarei mostrar é que as análises de Lessa e Tumolo, na especificidade e natureza diversa dos dois trabalhos a que me refiro neste texto, podem estar incorrendo nessa impropriedade. Isso pode ter como consequência, ainda que não intencionalmente, em nome da imanência e da ortodoxia, por um lado, congelar a saturação histórica das categorias e conceitos e com isso o legado fundamental de Marx de perquirir a relação do estrutural e conjuntural, no tempo e no espaço, nas mediações e contradições singulares, particulares e universais da realidade que queremos compreender, e, por outro, conduzir ao imobilismo no plano da práxis, ponto nodal da luta de classes para a superação das relações sociais capitalistas. As mediações histórico-sociais da polissemia da categoria trabalho e a batalha das ideias A proposta do tema polissemia do trabalho , de início, trouxe-me um desconforto de um lado, por não ter acompanhado a natureza do debate ou a controvérsia que gerou, e, de outro, pelo receio de que o tema pudesse conduzir a discussões muito descoladas das questões que emergem da vida real dos trabalhadores: dos diretamente superexplorados ou pela extração da mais-valia (trabalho produtivo em termos de Marx) ou em atividades, serviços no campo da educação, cultura, saúde, etc., nas diferentes esferas
do Estado (trabalho improdutivo) ou jogados na vala comum da precariedade da grande maioria dos que atuam na informalidade ou diretamente não necessários à produção. ²² Aí a disputa dos sentidos do trabalho poderia estar isolada da práxis e tornar-se uma discussão puramente escolástica . Esse desconforto foi se desfazendo e fui percebendo a pertinência e a necessidade desse debate no GT, na direção apontada, especialmente pelas consequências que podem advir de um encaminhamento das questões postas se perdermos de vista que o objetivo fundamental é a crítica das relações sociais e dos processos formativos e educativos que reproduzem o sistema capital e todas as suas formas de alienação. Mas, concomitantemente, na luta contra-hegemônica e no terreno contraditório que a realidade histórica (realidade rebelde, na expressão de Gramsci) nos coloca para a travessia, onde a disputa cultural e do sentido da ciência, tecnologia e dos processos educativos na sociedade e na escola se constituem em mediações cruciais na possibilidade de superação do sistema capital. ²³ Todavia, o entendimento da pertinência do tema carregou consigo uma enorme perplexidade pela natureza complexa da tarefa pelo que, neste texto, o que posso alcançar é, apenas, uma problematização e abordagem introdutória. Como efeito, quando escrevemos nossos textos supondo que os leitores – alunos de graduação e de pós-graduação, professores que atuam nas redes de ensino público e privado ou lideranças de movimentos sociais e sindicatos, etc. – apreendam os sentidos e distinções que foram sendo construídas sobre trabalho na sua dimensão ontológica, princípio educativo ou trabalho alienado por sua subordinação ou subsunção real; trabalho concreto e abstrato, produtivo e improdutivo, trabalho material e imaterial e mundo da necessidade e da liberdade, etc., por certo, estamos ignorando lições que a literatura marxista engendra. O fato de crescente contingente da população que tem experiência concreta de classe trabalhadora brasileira sem que, como nos indica Edward P. Thompson, ²⁴ tenha consciência de classe, acredite, ao seguir a Igreja Universal ou congêneres, que presencia milagres, exorcismos e prosperidade, não é uma quimera. É um dado real existencial que tem que ser, primeiramente, entendido, como indica Marx ao discutir a religião na “Introdução” à Crítica da filosofia do direito em Hegel e na Questão judaica . É este o fundamento da crítica irreligiosa: o Homem faz a religião, a religião não faz o homem. [...] Mas o homem não é um ser abstrato, ancorado fora do mundo. [...] a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real (M ARX , 2005, p. 145). Não procuremos o segredo do judeu na sua religião, mas muito pelo contrário, o segredo desta religião no judeu. Qual é a base temporal do judaísmo? (M ARX , 1989). A razão fundamental, então, da necessidade de compreender a polissemia da categoria trabalho não é apenas, e sobretudo, semântica, teórica e epistemológica, ainda que mediada por essas dimensões, mas de natureza histórico-social, ontológica e ético-política.
Por certo, o mais comum é que a grande massa dos que pertencem e têm experiência real de classe trabalhadora e que não necessariamente têm consciência de classe, tome o trabalho e o emprego como sinônimos e, do mesmo modo, a classe como um contínuo de estratificações. Trata-se de um senso comum imposto pelo pensamento sociológico, econômico e político e sedimentado dia a dia pela mídia quando expõe a questão das classes sociais dentro de um contínuo - classe A, B, C, D, E... Do mesmo modo é difícil que a grande maioria dos professores, mesmo com níveis de escolaridade elevados, compreenda por que – se de manhã eles trabalham numa escola privada (onde são explorados) e pela tarde trabalham numa escola do Estado desmantelada e também são explorados –, pela manhã seu trabalho é produtivo e pela tarde é improdutivo, ou que pelo fato de serem professores não são proletários, ainda que trabalhadores expropriados. Por outro lado, é comum que em pesquisas com mulheres que fazem trabalho doméstico, embora tenham uma jornada tripla de trabalho, afirmem que não trabalham. Todas essas situações expressam uma determinada filosofia, popular ou científica, certa prática econômica e hegemonia política . Por isso, num terreno mais profundo da construção dos sentidos de trabalho que coexistem na sociedade brasileira hoje, a indicação de Gramsci (1978, p. 13) sobre a concepção de mundo é de extrema pertinência. Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Isso nos indica que captar os sentidos e significados do trabalho na experiência social e cultural das massas de trabalhadores é tarefa complexa e implica analisar como se produz a sociedade nos âmbitos da economia, da cultura, da política, da arte e da educação. Na perspectiva de Florestan Fernandes (1980) implica “repor o intelectual no circuito das relações e conflito de classe [...]. Mas de nada adiantaria uma retórica ultra-radical de condenação e de expiação: o intelectual não cria o mundo no qual vive. Ele já faz muito quando consegue ajudar a compreendê-lo e explicá-lo, como ponto de partida para sua alteração real”. Posta a compreensão da polissemia da categoria trabalho nessa perspectiva, percebo que em parte ela está em curso, mas que a tarefa é imensa e demanda o esforço de pesquisa de um amplo coletivo. No escopo deste texto é possível apenas sinalizar o que está sendo produzido no debate da polissemia da categoria trabalho e delinear, no campo marxista, onde percebo as fontes teóricas que pensam com Marx e que vão além de Marx para avançar neste terreno . Esse segundo aspecto permite encaminhar a direção do debate dos pontos seguintes da importância de ir-se aos fundamentos do pensamento de Marx, Engels, etc., mas que concomitantemente a esses fundamentos, eles têm de
ser historicizados na linha da advertência de Engels de que “formações sociais precisam ser examinadas em detalhe, antes de induzir delas as correspondentes concepções políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas, religiosas”. Para Engels, analisando as tendências de seu tempo, sem este cuidado o fraseado do materialismo histórico somente serve para que os jovens construam às pressas, a partir de seus conhecimentos históricos escassos, [...] “todo um sistema e aparecem, então para si próprios como colossais” (E NGELS , 1983, p. 457). Indicações sobre a polissemia da categoria trabalho, emprego e classe social Um breve inventário nos evidencia que dentro tanto da perspectiva marxista quanto de outras perspectivas há pesquisas que se ocuparam, primeiramente, de discutir diferentes qualificações que recebe o termo “trabalho”. Num nível mais simples, mas importante, encontramos verbetes, com algum detalhe, sobre as várias qualificações. Uma segunda dimensão, mais complexa, é a de buscar apreender o sentido das mesmas em sua historicidade e como são apreendidas na vida real da classe trabalhadora. Sobre o primeiro aspecto, em relação ao trabalho, apenas para exemplificar, no Dicionário do pensamento marxista de Bottmore (1988), encontramos especificações sobre trabalho abstrato, trabalho doméstico, divisão do trabalho, trabalho e força de trabalho e a natureza do trabalho na transição para o socialismo. Na literatura brasileira dois textos recentes têm clara preocupação de tratar as várias dimensões em que o trabalho é tratado com fins pedagógicos. Recentemente a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio publicou o Dicionário da educação profissional em saúde (2006), onde diferentes autores abordam os verbetes sobre trabalho, trabalho abstrato, trabalho concreto, trabalho complexo simples, trabalho real e trabalho prescrito, divisão social do trabalho e divisão técnica do trabalho. Com o mesmo propósito, Catani (2002) organizou um dicionário sobre trabalho e tecnologia, focando, sobretudo, formas de organização do trabalho. Essas produções ajudam para uma primeira e importante aproximação das diferentes dimensões do significado e sentidos em que o trabalho, dentro de uma perspectiva marxista, é abordado e indicam as fontes onde os leitores podem aprofundar tal compreensão e situar-se no debate. Algumas dessas dimensões renderam vários trabalhos, como, por exemplo, a questão do trabalho produtivo e improdutivo em Marx. ²⁵ Num horizonte de uma dimensão mais complexa, porque implica captar as múltiplas mediações constitutivas da polissemia do trabalho social e historicamente produzidas, encontramos a contribuição de diferentes trabalhos no debate marxista ou não. Um pequeno texto de Nosella (1989) foi, sem dúvida, o primeiro dentro do GT Trabalho e Educação a sinalizar os sentidos que assume a categoria trabalho na Antiguidade, na sociedade moderna burguesa e como se anuncia dentro da utopia de uma sociedade sem classes. Um texto que demarca, pois, a historicidade dos sentidos e significados que assume o trabalho.
Uma coletânea organizada por Daniel Mercure e Jean Spuk, publicada na França em 2003 e traduzida pela Editora Vozes em 2005, dentro de uma abordagem não especificamente marxista, propõe-se uma ampla compreensão da noção de trabalho no pensamento ocidental desde o mundo grego até a moderna sociedade burguesa. Outros estudos buscam explicitar como surgiu e se desenvolveu o sentido que temos hoje de trabalho reduzido a emprego como quantidade de tempo pago por uma determinada atividade. Neredo (2006) efetiva uma análise na qual examina os valores, concepções e modos de vida que predominaram antes que se tivesse a ideia atual de trabalho. Em seguida mostra a gênese da visão produtivista de trabalho ao logo do século XVIII quando o modo de produção capitalista se torna dominante e se desenvolve a ideia de riqueza, produção e de sistema econômico. Por fim analisa as determinações que estão provocando a crise da função produtivista e social que se atribuía ao trabalho em nossas sociedades. A relevância de sua análise, concorde-se ou não com ela, situa-se no fato que nos mostra as conexões entre ciência, ideologia e sociedade e entre linguagem e pensamento. No campo da batalha das ideias, como espaço de luta de classe, tem sido importante o desenvolvimento de textos, partindo especialmente da obra de Lukács (1976 e 2004) sobre a ontologia do ser social em Marx, que tratam o trabalho na sua dimensão ontocriativa em contraposição às formas históricas que ele assume, mormente o trabalho sob os modos de produção escravocrata e/ou servil e capitalista. Na sua dimensão ontocriativa explicita-se que, diferente do animal, que é regulado e programado por sua natureza, por isso não projeta sua existência, não a modifica, mas se adapta e responde instintivamente ao meio, os seres humanos criam e recriam, pela ação consciente do trabalho, a sua própria existência. Antes, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporeidade, braços, pernas, cabeça e mãos, a fim de se apropriar da matéria natural numa forma útil à própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (M ARX , 1983, p. 149). Sob essa compreensão, o trabalho, como nos mostra Kosik (1986, p. 180), “é um processo que permeia todo o ser do homem e constitui a sua especificidade”. Por isso ele não se reduz à “atividade laborativa ou emprego”. Mészáros (1981) traz uma distinção importante entre trabalho como mediação de primeira ordem, em Marx processo antediluviano entre o homem e a natureza, para designar sua compreensão ontológica e trabalho, mediação de segunda ordem, para designar as formas históricas que este assume. Dos autores brasileiros se destacaram nesta tarefa especialmente Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Neto, Ricardo Antunes. No esforço de compreender o trabalho, “os mundos do trabalho” no movimento histórico social destaco os trabalhos de Antunes (1999, 2006)
Não cabe aqui retomar este debate por serem as obras destes autores amplamente difundidas. No que concerne aos aspectos busco ressaltar sobre a historicidade dos sentidos do trabalho, emprego e classe social a chave ou a direção que parece nos dar elementos para isso, para não ficarmos no plano discursivo, a encontramos na tradição da pesquisa histórica onde se destacam, no campo marxista contemporâneo a tradição anglo-saxônica de Eric Hobsbawm, Raymond Williams, e Edward Thompson e, no Brasil, na mesma direção, Francisco de Oliveira e Florestan Fernandes. Neste item tomo apenas um aspecto que ao meu juízo permite uma ponte para o diálogo sobre os fundamentos do pensamento de Marx e a necessidade de, a partir dos mesmos, buscar compreender o presente. ²⁶ Raymond Williams, ao tratar a teoria da cultura construindo o que denominou de materialismo cultural, nos indica a tarefa por fazer para entender como a categoria trabalho, emprego e classe social vão assumindo diferentes significados. Trata-se do esforço de saturar as categorias de historicidade. Com base em seu materialismo cultural vai tratar do Vocabulário de cultura e sociedade (W ILLIAMS , 2007). Entre outras palavras ou categorias, mostra os diferentes sentidos que vão assumir trabalho, emprego e classe social. O materialismo cultural, nos termos colocados por Williams, é entendido como um processo produtivo (material e social) e das práticas específicas, as “artes”, como usos sociais de meios materiais de produção (da linguagem como consciência prática às tecnologias específica da escrita e de formas da escrita, passando pelos sistemas eletrônicos e mecânicos de comunicação” (C EVASCO apud W ILLIAMS , 1980, 2007, p. 18). Tomando a ênfase de Gramsci sobre a questão da hegemonia, Williams (2007, p. 14), num texto provocativo – “Você é um marxista, não é?” ²⁷ –, explicita como se efetiva a dominação de classe na relação poder, propriedade privada e cultura. Podemos então afirmar que a dominação essencial de determinada classe na sociedade mantém-se não somente, ainda que certamente se for necessário, pelo poder, e não apenas, ainda que sempre pela propriedade. Ela se mantém também inevitavelmente, pela cultura do vivido: aquela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver, que é continuamente renovada em todas as etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas e no interior de significados definidos...
É dentro desta perspectiva que Williams nos dá pistas de como as palavras e as categorias vão construindo, no tecido social e cultural, os diferentes sentidos estando estes atravessados pela dominação de classe. Assim, trabalho, no sentido de fazer algo ou de algo feito, tem uma ampla gama de aplicações. Mostra-nos o autor a forte relação entre trabalho e labor ( labour ) em seu sentido medieval de faina e de dor. Já no século XIII “os trabalhadores manuais receberam a designação de laboures (trabalhadores, operários), e a oferta desse tipo de trabalho generalizou-se como mão de obra ( labour ) desde o século XVII. Trabalho adquiriu então um sentido mais geral de atividade” (2007, p. 396, grifo do original). É com o desenvolvimento das relações sociais produtivas capitalistas que o trabalho assume o sentido de emprego remunerado e “trabalhador” para a ser usado para designar a classe trabalhadora Estar empregado ( to be in work ) ou desempregado ( to be out of work ) era estabelecer uma relação definida com pessoa que controlava os meios do esforço produtivo. Então trabalho deslocou-se, em parte, do próprio esforço produtivo para a relação social dominante. É somente neste sentido que se pode dizer que uma mulher que cuida da casa e cria os filhos não trabalha (2007, p. 397, grifos do original). A redução do trabalho de atividade vital do ser humano para produzir seus meios de vida a emprego vincula-se, pois, a uma dupla determinação: o desenvolvimento concomitante da palavra “trabalho” e do termo “emprego” e às relações sociais dominantes. Assim mostra-nos Williams que o termo “emprego” tem origem obscura e bastante coloquial no sentido de lump (massa informe, monte) ou de piece, (pedaço, parte). É no século XVII que assume o sentido de uma quantidade limitada de trabalho. Assim “ jobbing (trabalho de empreitada) e jobber (trabalhador de empreitada), em sentido ainda vigentes, passaram a significar a execução de pequenos trabalhos ocasionais” (2007, p. 398) . De seu sentido restrito e, por vezes, pejorativo como jobbery (traficância, negociata), passou a ter um uso mais universal e comum para designar uma ocupação regular e paga. Os termos “trabalho” e “emprego”, mostra-nos Williams, interagiram tanto no seu desenvolvimento interno quanto em sua inter-relação. Com efeito, com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, o trabalho na sua dimensão ontológica, forma específica da criação do ser social, é reduzido a emprego – uma quantidade de tempo vendida ou trocada por alguma forma de pagamento. Dessa redução ideológica resulta que, no senso comum, a maioria das pessoas entenda como não trabalho o cuidar da casa, cuidar dos filhos, etc. Quando relacionamos o trabalho e o trabalhador ao sentido de classe e classe social, estes ganham novas determinações, também histórica e socialmente construídas. Por isso é crucial, ainda que de forma breve, que se faça, com Williams, o mesmo percurso de trabalho e emprego com o termo “classe social”. ²⁸ De imediato Williams nos assinala que o termo “classe” é duplamente complexo. Primeiro pela amplitude dos sentidos que assume, e, segundo, na complexidade dos significados que a mesma assume na divisão social. Na
sua origem, a palavra latina “ classis” “se referia a uma divisão de acordo com a propriedade que possuíam os romanos. [...] logo o uso se ampliou primeiro como termo de organização eclesiástica (as assembléias ou classes ou sínodos) e, mais tarde, um termo geral para divisão ou grupo” (Classe das plantas, 1664) (2007, p. 85) . A historicidade da construção e do desenvolvimento de classe no seu sentido moderno para designar classes sociais específicas é enfatizado por Williams ao mostrar que isso se define entre os anos de 1770 a 1840, justamente o período da revolução industrial e da reorganização decisiva da sociedade. “A história da introdução de ‘classe’ como uma palavra que substituiria designações mais antigas para as divisões sociais tem relação cada vez maior de que a posição social é construída e não simplesmente herdada” (2007, p. 87). A perspectiva política do sentido de classe social se afirma e se impõe com a Revolução Americana e Francesa, mas não sem dificuldades, tanto pela resistência dos pensadores conservadores quanto pela superposição de sentidos. É nesse contexto que surge a categorização de classe baixa, média e alta. Nos embates sobre os direitos políticos, sociais e econômicos, a partir de 1790, segundo Williams, um novo sentido contrapõe “as classes produtoras ou úteis (trabalhadores, artesões, comerciantes e toda a profissão útil à sociedade) à classe privilegiada (sacerdotes, cortesões contadores públicos, comandantes de tropas, em resumo os agentes civis e militares ou religiosos do governo)”. ²⁹ Ou seja, uma contraposição que caracteriza “as classes trabalhadoras como classes úteis ou produtivas para distinguir-se e opor-se aos privilegiados ou ociosos. Esse uso, que se combina de modo peculiar com o modelo de mais baixa, média e mais alta, conservou-se importante e ao mesmo tempo confuso” (2007, p. 89). De acordo com Williams (2007, p. 90), Owen, em 1818, é quem empregou por primeiro a denominação de “ classes trabalhadoras no contexto específico e inconfundível das relações entre “trabalhadores” e “seus empregadores”. A partir de 1840 a classe trabalhadora, no singular, foi sendo usada nas análises socialistas e no plural nas descrições conservadoras. Ao mesmo tempo em que o sentido e significado de classe social vão se consolidando, mostra-nos Williams que o termo carrega ambiguidades que se mantêm até hoje tanto no terreno não marxista quanto no marxista. A ambiguidade, ainda em 1844, se dava entre trabalhador e operário. Para Cockburn os únicos trabalhadores eram aqueles que trabalhavam com as mãos, embora tanto para trabalhador como para operário houvesse a referência ao trabalho manual. “Uma lei de 1975 estabeleceu uma definição jurídica para essa situação: a expressão trabalhador [...] refere-se a qualquer pessoa que sendo operário, criado doméstico, jornaleiro, artífice, artesão ou que se dedique a qualquer trabalho manual [...] foi contratado ou trabalha para um empregador” (W ILLIAMS , 2007, p. 91). Do mesmo modo a divisão binária ou tripartite de classe indicando ordens ou posições sociais (alta, média e baixa) ou agrupamentos econômicos (empregadores e empregados), ou ainda, nas categorizações de John Stuart
Mill ( proprietários da terra, capitalista e trabalhadores ) e, em Marx, no volume III de O Capital (1983, p. 94), trabalhadores assalariados, capitalistas e proprietários de terra . A denominação dominante, com o desenvolvimento capitalista, na linguagem marxista, prevaleceu a divisão binária entre burguesia e proletariado. Williams e Thompson trazem indicações importantes para o desenvolvimento do próximo item sobre as tensões no âmbito marxista e mesmo em Marx, ao mostrar a distinção da classe em termos de relações econômicas, que pode ser uma categoria como de assalariados, e a classe enquanto uma formação social no plano histórico. Para Williams, Marx vai usar os dois sentidos sendo que a descrição de classe mais frequente por ele utilizada é de classe como formação, exemplificando com um texto de A ideologia alemã e outro de O Dezoito Brumário . “Os indivíduos singulares formam uma classe somente na medida em que têm de promover uma luta contra outra classe; de resto eles mesmos se posicionam uns contra os outros, como inimigos na concorrência...” (M ARX , 1986, p. 94). Em seguida, todavia, indica Williams, a classe em Marx aparece como categoria econômica incluindo todos os que estão objetivamente naquela situação econômica e como formação. Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam uma das outras, e opõem seu modo de vida, seus interesses e sua cultura aos de outras classes da sociedade, esses milhões formam uma classe. Mas na medida em que existem entre os pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma, nem organização política, nesta exata medida não constituem uma classe ³⁰ ( O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte , p. 95 apud W ILLIAMS , 2007). Essa dificuldade, para Williams se evidencia também no debate entre consciência de classe e classe objetivamente medida. É evidente que consciência de classe só pode pertencer a uma formação. Luta de classe , conflito de classes , guerras de classes , legislação classista , preconceito de classe dependem da existência de formações, embora isso possa ser muito desigual ou parcial no interior das classes e entre elas (W ILLIAMS , 2007, p. 95) Um exemplo emblemático disso a que se refere Williams é o debate entre Edward P. Thompson e Perry Anderson. Para Anderson a análise de Thompson, ao centrar-se sobre experiência de classe, elide a classe como uma estrutura objetiva. Tese da qual Ellen M. Wood não compartilha, evidenciando que Thompson não nega a existência de uma estrutura objetiva de classe, mas indica que o fato da grande maioria dos que estruturalmente pertencem à classe trabalhadora e vivem objetivamente a experiência dessa classe não têm consciência de classe. ³¹ Thompson, na mesma direção, nos dá uma indicação ainda mais clara sobre distintas formas de abordar a questão da classe.
Ao tomarmos a classe como categoria historiográfica, poderemos ver historiadores dispondo do conceito com dois significados diferentes: a) com referência ao conteúdo histórico correspondente, empiricamente verificável, e, b) como categoria heurística ou analítica, recurso para organizar uma evidência histórica cuja evidência direta é muito mais escassa. No meu modo de ver, tal conceito pode ser adotado com propriedade em ambos os sentidos. Todavia, confusões geralmente surgem quando nos deslocamos de uma acepção para outra (T HOMPSON , 2008, p. 1, grifos meus). ³² Do exposto até aqui fica claro que trabalho, emprego e classe social estão, em seu desenvolvimento, imbricados, e os sentidos e significados que assumem têm determinações histórico-sociais. Para o que o GT Trabalho e Educação tem como horizonte básico, desde sua origem, de um trabalho teórico que nos ajude entender as relações entre trabalho, relações sociais capitalistas e educação numa perspectiva de luta de classes parece-nos crucial o que é, para Williams, em nossos dias, uma crítica militante. [...] sei que há um trabalho fundamental a ser feito em relação à hegemonia cultural. Acredito que o sistema de significados e valores que a sociedade capitalista gera tem de ser derrotado geral e no detalhe por meio de um trabalho intelectual e educacional contínuo. [...] temos de aprender e ensinar uns aos outros as conexões que existem entre formação política e econômica e, talvez, mais difícil, formação educacional e formação de sentimentos e de relações, que são os nossos recursos em qualquer forma de luta (C EVASCO apud W ILLIAMS , 2007, p. 15). Essa advertência, do aprender e ensinar uns aos outros, é, também, repleta de indicações e lições para a natureza do debate do ponto a seguir se nosso objetivo comum é o de fortalecer as lutas que buscam não simplesmente reformar o capitalismo, mas superá-lo. A compreensão imanente e historicidade dos fundamentos do pensamento de Marx A breve análise até aqui desenvolvida revela que os termos ou categorias ou conceitos anteriormente discutidos têm suas variações de sentido marcadas pelo desenvolvimento histórico-cultural, por valores, tradições, por concepções ideológicas e disputas sociais. Marx e Engels desenvolveram suas análises no contexto onde os mesmos se consolidam dentro da definição do modo de produção capitalista como forma dominante de relações sociais. O que Marx e Engels fizeram foi, mediante pesquisa meticulosa, dar-lhes rigor científico dentro da concepção histórica de realidade social e do método do materialismo histórico-dialético. ³³ Assim mesmo, como destaca Williams, suas análises não ficaram livres de ambiguidades que rendem polêmicas até o presente. Neste segundo item busco o discutir posicionamento sobre a análise imanente ou dentro da ortodoxia (L ESSA , 2007) de parte da obra de Marx e suas implicações teóricas no plano da ação política, especialmente, ainda que não só, no campo educacional. O esforço de análises dentro de uma perspectiva imanente e heurística, como foi assinalado na introdução e sublinhado por Thompson, não só é
pertinente como de crucial importância para afirmar os fundamentos das contribuições de Marx e Engels e de outros marxistas que seguiram seu legado. Assim, o esforço dos trabalhos de Sérgio Lessa e sua contribuição na explicitação da ontologia do ser social de Marx e concepção ontológica de trabalho é de enorme relevância. As ponderações que coloco a seguir referem-se ao livro de Lessa Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo (2007), onde, a partir de uma compreensão imanente do trabalho em Marx, centrado, sobretudo no livro I de O capital, efetiva críticas a diferentes autores do campo social e educacional, nos aspectos destacados na introdução deste texto, cujas análises se esforçam para entender o trabalho, as classes sociais, a ciência e tecnologia e os processos educativos no seu desdobramento e desenvolvimento históricos. Mesmo que Lessa (2007) chame a atenção para a questão histórica e as mediações de forma insistente, por diferentes razões a ênfase de sua análise parece fixar-se no plano da categorização, referido por Williams e de um procedimento heurístico nos termos colocados por Thompson. Thompson (2008, p. 2) enfatiza ser a classe no seu sentido heurístico inseparável da luta de classes. Em meu juízo foi dada excessiva atenção, freqüentemente de maneira ahistórica, à “classe” e muito pouca, ao contrário, à luta de classe. Na verdade, na medida que é mais universal luta de classes me parece ser o conceito prioritário. Talvez diga isso porque luta de classes é evidentemente um conceito histórico, pois implica um processo, e, portanto seja o filósofo, o sociólogo ou o criador de teorias, todos têm dificuldades em utilizá-lo. Para dizê-lo com todas as letras: as classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham um inimigo e classe e partem para a batalha [...]. Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico relação. Na minha leitura o foco na imanência e numa compreensão heurística do trabalho, do proletariado e do sujeito revolucionário é que conduz a Lessa, no texto aqui referido, ao trabalhar mais com antinomias do que com a contradição e, portanto com excessiva atenção ao que é o trabalho, o proletariado e a classe em detrimento de como se produz o trabalho, o proletariado e a luta de classes nos processos históricos. Daí, penso, advêm as dificuldades de reconhecer o caráter contraditório, como veremos, da ciência, tecnologia, do avanço das forças produtivas, do papel da escola e dos processos educativos no interior das relações sociais capitalistas. Na mesma perspectiva, e pelas mesmas razões, parecem situar-se as análises de Tumolo, no que concerne à questão do trabalho como princípio educativo. Neste sentido caberia explicar melhor alguns aspectos explicitando o que estou destacando das análises em discussão. Uma primeira observação reside na defesa de Lessa da ortodoxia como metodologia na análise imanente do texto de Marx para evitar o ecletismo. Mesmo considerando o cuidado que Lessa tem de contrapor-la ao dogmatismo, o sentido corrente de ortodoxia relaciona-se a doutrina e as posturas rígidas ou dogmáticas. Este sentido, na análise de Lessa se reforça
pela recorrência do argumento de autoridade como critério da maior veracidade da interpretação imanente. No mesmo plano metodológico, talvez a perspectiva de Karel Kosik (1986) de monismo materialista , para distinguir as análises entre estrutura econômica (marxismo) e fator econômico (sociologismo) seja mais adequada para contrapor-se ao pluralismo e ecletismo metodológicos. ³⁴ Um segundo aspecto, na mesma ordem de questões, diz respeito às tensões internas da compreensão imanente do trabalho e classe social e a questão da historicidade. Sob as tensões internas, José Paulo Netto ao caracterizar o sentido ontológico de trabalho como constitutivo do ser social observa que o ser social não se reduz e esgota no trabalho, ainda que o mesmo permaneça como objetivação fundante. Quanto mais se desenvolve o ser social, mais as suas objetivações transcendem o espaço ligado diretamente ao trabalho. No ser social desenvolvido, verificamos a existência de esferas de objetivação que se autonomizaram das exigências imediatas do trabalho – a ciência, a filosofia, a arte, etc. [...] O trabalho, porém, não só permanece como objetivação fundante e necessária do ser social – permanece ainda como o quase poderia chamar de modelo das objetivações do ser social... (N ETTO e B RAZ , 2006, p. 43). Isso fica, a meu ver, ainda mais claro na abordagem de Kosik, tanto do ponto de vista das tensões internas quanto da historicidade, no seu esforço para superar uma visão semântica e antinômica entre o trabalho (mundo da necessidade) a as atividades humanas como livre criação (mundo da liberdade). A possibilidade de dilatação da liberdade do ser humano é indissociável à satisfação, no grau historicamente possível, do mundo da necessidade. Do mesmo modo, dentro de uma compreensão dialética, o que distingue trabalho de outras atividades humanas não é algo eterno. É o processo histórico real que vai definir como uma mesma ação humana pode ser considerada trabalho ou não trabalho. O trabalho é um agir humano que se move na esfera da necessidade. O homem trabalha enquanto seu agir é suscitado e determinado pela pressão da necessidade exterior cuja consecução se chama necessidade natural ou social. Uma atividade é ou não trabalho dependendo de que seja ou não exercida como uma necessidade natural, isto é, como um pressuposto necessário à existência. Aristóteles não trabalhava. Um professor de filosofia e interpretações metafísicas de Aristóteles são um emprego, isto é, uma necessidade, socialmente condicionada, de procurar os meios materiais de sustento e de existência (K OSIK , 1986, p. 187, grifos meus). Por isso, para ele a divisão do agir humano entre trabalho esfera da necessidade e esfera da liberdade capta a problemática do trabalho e não trabalho apenas aproximadamente e apenas sob certos aspectos. [...] Nessa distinção fica oculta uma ulterior característica essencial da especificidade do trabalho como um agir humano que não abandona a esfera da necessidade, mas ao mesmo tempo a superar
e cria nela os reais pressupostos de liberdade humana. [...] A relação entre necessidade e liberdade é uma relação historicamente condicionada e historicamente variável (p. 188, grifos meus). Os aspectos anteriores conduzem-me, finalmente, a uma terceira ordem de dificuldades dos pressupostos da análise imanente sobre trabalho, proletariado e classe trabalhadora. A justificativa bastante exaustiva e eloquente para eleger o Livro I de O Capital como o ponto mais alto para uma leitura imanente da problemática do trabalho e os corolários consequentes para definir o proletariado e trabalhadores certamente sustenta-se como uma decisão que dá segurança metodológica e coerência de argumento. Todavia resta saber se essa delimitação, mesmo que amplamente argumentada, não limita o alcance de sua análise e, por consequência, fragiliza as críticas a pesquisadores que, sem desprezar a análise imanente, arriscam o terreno mais complexo, mediado, contraditório da pesquisa histórica. Com efeito, parece-me bastante contraditório eleger, como mais relevante, uma parte da obra de Marx cujo pensamento, como assinala Lefebvre, referindo-se a ele e a Engels, “não foi apenas um pensamento em luta e em ação – criando-se no decorrer de sua luta –, mas um pensamento em movimento. [...] Um pensamento em movimento não pode estudar-se nem compreender-se senão acompanhando o seu movimento” ³⁵ (L EFEBVRE , 1981, p. 69). Esse movimento é evidenciado por Ruy Mauro Marini (2000) ao mostrar que o conceito de trabalho produtivo, ainda que posto claramente no capítulo I de O Capital , somente se equaciona no capítulo XVIII do Livro III ao se estudar os operários assalariados mercantis. “Do mesmo modo que o trabalho não retribuído ao operário cria diretamente mais-valia para o capital produtivo, o trabalho não retribuído dos operários assalariados comerciais cria para o capital comercial uma participação naquela maisvalia” (M ARX , III, p. 287, apud M ARINI , 2000, p. 249). Para Marini o mesmo vale para os demais operários da circulação naquelas atividades indispensáveis para que esta tenha curso (banco, publicidade, etc.) pelo que conclui que “é possível sustentar que restringir a classe operária aos trabalhadores assalariados que produzem a riqueza material, isto é, o valor de uso sobre o qual repousa o conceito de valor, corresponde a perder de vista o processo global de reprodução capitalista” (p. 250). Por outro lado, Hobsbawm (2008) – o historiador vivo que, talvez, mais se tenha ocupado da obra de Marx –, numa entrevista sobre sua mais recente publicação sobre os Manuscritos econômicos de Marx 150 anos depois, destaca duas razões de seu impacto internacional na cena marxista sua importância atual. Primeiro porque permitiu no campo marxista, no contexto “dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético”, ampliar a análise com um texto que não podia ser considerado herético. Segundo porque trata de um conjunto de reflexões sobre assuntos importantes que não foram considerados no livro O capital ou desenvolvidos por Marx em nenhum outro lugar. ³⁶
Também, seguindo-se a argumentação de Wolfgang Leo Maar, que ao comentar o pensamento de Francisco de Oliveira realça o vigor que emerge da perspectiva de sua análise que se concentra no âmbito da produção da sociedade, caberia realçar que quando as análises se fixam apenas no livro I de O Capital para discutir o trabalho, a classe proletária e os trabalhadores, correm o risco de ignorar ou minimizar a luta de classes e seus sujeitos. O trabalho é intrinsecamente social. Neste sentido, a sociedade pode ser vista como um grande trabalhador coletivo que pode, na profundidade em que cabe pensar na produção da sociedade, ser formulado em duas determinações sociais. Um trabalhador coletivo pela perspectiva da acumulação e, neste sentido, nós pensaríamos um trabalhador coletivo em que haja uma universalização do trabalho abstrato tal qual a conhecemos hoje. Mas nós precisamos pensar também no trabalhador coletivo numa outra determinação social, que é a perspectiva do trabalho que produz a sociedade (M AAR , 2006, p. 44). É justamente dentro dessa perspectiva que Francisco de Oliveira percebe que atualmente a disputa pelo controle e manejo do fundo público constituise numa arena da luta hegemônica, da luta de classes e, portanto, das formas sociais do futuro. Por fim, nesta terceira ordem de questões, um ulterior aspecto que me parece central e que, de certa forma, se reporta ao conjunto de ponderações até aqui apresentadas. Se por um lado as análises imanentes são necessárias e importantes, elas necessitam estar atentas ao processo histórico real. Isso pela razão fundamental que, pelo menos os pensadores marxistas que pensam com Marx para além de Marx referidos anteriormente e na compreensão da nota 19, enfatizam como legado fundamental de Marx a concepção materialista de história e o método histórico-dialético de apreensão da realidade. Até onde percebo pelos autores que privilegiam a análise histórica, os argumentos de Lessa para concluir que Ricardo Antunes, Marilda V. Iamamoto e Dermeval Saviani, cada um com suas particularidades e com sua relevância, em suas obras dão o adeus ao trabalho no Brasil são, no mínimo, lacunosos de mediações históricas. Ou, talvez, dito de outra forma, comete o equívoco apontado por Thompson de passar de uma perspectiva heurística da historiografia para avaliar pesquisas que buscam, no plano histórico real perquirir, num terreno menos seguro e cheio de dificuldades e sujeito a equívocos de diferentes ordens, o imbricado, contraditório e complexo desenvolvimento ao longo do século XX do processo de trabalho, do proletariado e das classes sociais e dos processos educativos. Não vou ater-me aqui a maiores desdobramentos deste debate, apenas destacar brevemente elementos para chegar a uma conclusão oposta à de Lessa sobre os três autores criticados e das implicações para os aspectos mais diretamente imbricados com o debate no âmbito educacional, tanto de Lessa quanto de Tumolo.
Um primeiro elemento o tomo de um pequeno e clássico texto de Francisco de Oliveira – O elo perdido. Classe e identidade de classe, no qual na introdução nos fala do “método no estudo das classes”. Para o autor (1987b, p. 10-11), a opacidade da divisão e das relações entre as classes é de tal densidade que o trabalho teórico de dar-lhes transparência caminha no sentido inverso do movimento da história do capitalismo contemporâneo. [...] Isto é, torna-se mais complexo e difícil re-conhecer, em fim, o perfil das classes sociais. [...] As classes não se constituem em si e nem mesmo para si, mas para as outras. Ao analisar os Mundos do trabalho e a formação da classe operária , Hobsbawm (1987, p. 29) também demarca o caráter histórico e processual da constituição das classes. A história operária é parte da história da sociedade, ou melhor, de certas sociedades que possuem características em comum. Relações de classe, qualquer que seja a natureza de classe, são relações entre classes ou camadas de classes que não podem ser adequadamente descritas se analisadas isoladamente, ou apenas em termos de suas divisões ou estratificações internas. Isso implica um modelo do que são as sociedades e de como funcionam. Também, justificar o título – “O fazer-se da classe operária” – de um capítulo do livro Mundos do trabalho adverte que ele não quer sugerir que as classes tenham início meio e fim como a construção de uma casa: “As classes nunca estão prontas no sentido de acabadas ou de terem adquirido sua feição definitiva. Elas continuam a mudar” (1987, p. 273). Uma das mudanças profundas para a classe trabalhadora situa-se no fato de que cada vez mais a ciência e a tecnologia se tornam forças produtivas do capital e que se voltam contra a classe trabalhadora. Marx nos Grundrisse já indicava claramente essa tendência mostrando que a criação da riqueza dependia cada vez menos do tempo e do quantum de trabalho utilizado e mais do estado geral da ciência e de sua utilização na produção, e que isso, sob o domínio do capital, se voltava contra o trabalhador e sua classe. A máquina, triunfo do ser humano sobre as forças naturais, converte-se, nas mãos dos capitalistas, em instrumento de servidão de seres humanos a estas mesmas forças [...]; a máquina, meio infalível para encurtar o trabalho cotidiano, o prolonga, nas mãos do capitalista [...]; a máquina, varinha de condão para aumentar a riqueza do produtor, o empobrece, em mãos do capitalista (M ARX apud P ARIS , 2002, p. 235). A magnitude do desemprego estrutural e da indigência do trabalho certamente é mais evidente hoje que na época de Marx. As mudanças, nos últimos 20 anos, são profundas no mundo e no Brasil. Os profissionais empregados com carteira assinada e os direitos advindos de um contrato de trabalho pelas lutas históricas da classe trabalhadora são cada vez em menor número. Os maiores sindicatos de trabalhadores assalariados não são mais dos metalúrgicos nem dos bancários, mas os da área de serviços como educação e saúde. ³⁷
Essa realidade faz com que a definição de quem é o proletário e quantos são os proletários e onde estão e quem constitui o sujeito revolucionário hoje se torne mais complexa, e certamente, se essa fosse a realidade do tempo de Marx, ele a tomaria como um problema a decifrar. Por isso parece-me que o desafio é muito menos de tentar classificar quem é ou não é proletário na precisão semântica e imanente e mais na direção que nos aponta Carlos Nelson Coutinho. Apoiado na herança, sobretudo de Marx e Gramsci, o autor nos sinaliza que o grande desafio para a classe trabalhadora é de “construir uma intersubjetividade revolucionária, ou seja, um conjunto de sujeitos que são plurais, mas que convergem e se unificam na luta contra o capita l” (C OUTINHO , 2002, p. 38, grifo meu). Vale dizer, uma convergência na luta de classes. Dentro do que expus até aqui me parece que a conclusão de Lessa de que as análises de Antunes, Iamamoto e Saviani dão adeus ao trabalho no Brasil incorre em dois equívocos. Primeiro os filia, de forma lógica, mas não histórica, às abordagens de S. Malett e André Gorz e M. Sabel a J. Lojkine e Adam Shaff. Isso porque, e ai o segundo equívoco, é exatamente ao contrário. No âmbito específico das mudanças do mundo do trabalho ³⁸ – Antunes (1999), Iamamoto (2007) e Saviani (1994), na relação com a educação, não dão adeus ao trabalho, mas estão empenhados em compreender o processo histórico do trabalho e das classes sociais e buscam perceber como se constitui, diferentemente do século XVIII e XIX, o sujeito revolucionário. O sentido semântico dos termos é importante, mas, como vimos, histórica e socialmente construído. Neste aspecto ganha precedência a historicidade nos termos da tese II de Feuerbach e do que explicitam, sobretudo, Williams e Thompson. Outro aspecto da crítica de Lessa baseado na análise imanente do trabalho e do proletariado como sujeito revolucionário refere-se à analise de alguns aspectos de publicações de Dermeval Saviani (1994) e um livro de Frigotto (1995) para caracterizar como ilusões o caráter contraditório da ciência como força produtiva e do desenvolvimento do capitalismo e das perspectivas da escola unitária, omnilateral e integral. A leitura que Lessa extrai é de que esses educadores estariam passando a ideia de que do “próprio desenvolvimento capitalista”, passaríamos ao comunismo, à “sociedade regulada” de Gramsci ou ao “reio da liberdade”, famosa expressão de Marx (L ESSA , 2007, p. 121). Como base dessa afirmação, Lessa retira de Saviani um trecho em que analisa o caráter contraditório dos processos produtivos sob uma nova base científica e tecnológica e que a ideia de escola unitária e da formação omnilateral estaria deixando o terreno da utopia e da mera aspiração ideológica, moral e romântica, para se converter numa exigência posta pelo próprio desenvolvimento do processo produtivo. Indícios desta tendência (grifo meu) estão aparecendo cada vez mais fortemente [...] inclusive entre os empresários, de que o que importa, de fato, é uma formação geral sólida, a capacidade de manejar conceitos, o desenvolvimento do pensamento abstrato (S AVIANI , 1999, p. 164-165 apud L ESSA , 2007, p. 120-121). ³⁹
E, ao assinalar que “Saviani não esteve sozinho ao alimentar tais ilusões acerca do capitalismo contemporâneo”, remete a uma nota onde afirma: “Frigotto, por exemplo, enxerga na transformação em curso uma positividade que pode ser politicamente capturada com as forças comprometidas com a efetiva emancipação humana” (F RIGOTTO , 1995, p. 7 40 apud L ESSA , 2007, p. 121). E para mostrar a ilusão sobre a busca e a luta concreta para construir espaços educacionais na perspectiva da escola unitária, remete F. M do Carmo (2003, apud L ESSA , 2007, p. 121): “Entre alguns educadores perdeu-se de vista de que é impossível, na lógica deste sistema, a realização de uma educação geral e politécnica, configurando desta forma como utopias educacionais as propostas que anuncia dentro do capital como capazes de formar o indivíduo omnilateral ”. Como corolário de suas críticas às ilusões de Saviani, conclui que “o fato de alguns dos mais significativos pedagogos de esquerda terem aderido a estas teses tornou aos educadores mais complicada e difícil a percepção da essência da transformação em curso: a passagem de um patamar mais elevado de extração de mais-valia, uma intensificação dos processos alienantes oriundos do capital” (L ESSA , 2007, p. 121). Da leitura que faço das obras de Saviani e naquilo que exponho no livro citado, não encontro a possibilidade de uma visão linear da ciência e tecnologia e do avanço das forças produtivas, pela qual se estaria indicando a passagem mecânica do desenvolvimento capitalista para, na afirmação de Lessa, “o comunismo, à sociedade regulada de Gramsci ou o reino da liberdade, famosa expressão de Marx”. Por outro lado, também não consigo ver de onde deduz que na obra de Saviani e nas análises que faço não esteja explícita a compreensão de que se exacerba no capitalismo atual a superexploração com a “intensificação da mais-valia relativa” e, para os que são empregados, a ampliação da mais-valia absoluta e, portanto, dos processos mais violentos alienantes do sistema capital. Do mesmo modo não poderia deduzir que está se afirmando que dentro do sistema capitalista é possível desenvolver, nas suas condições próprias de uma sociedade sem classes, cuja travessia supõe o socialismo, uma educação unitária, integral, omnilateral, politécnica ou tecnológica. O que percebo na obra de Saviani é o que está claro na citação analisada, dentro da compreensão de que não só o capitalismo é uma contradição em processo – e como insistia Marx, cada vez mais profunda e insanável – como também existe antagonismo e luta contra-hegemônica. Ao dizer “indícios desta tendência”, no que alcanço ler, ele não está afirmando nem que mecanicamente as mudanças científicas e técnicas na base produtiva levem ao comunismo e reino da liberdade nem que dentro do sistema capitalista a escola unitária e omnilateral sejam possíveis. Apenas está se apreendendo uma contradição e, com isso, a possibilidade de disputar no conteúdo, no método e na forma a direção política na luta pela superação do capitalismo. A obra Educação e crise do capitalismo real foi produzida num contexto de pós-derrota (mas não fracasso) do socialismo realmente existente (Hobsbawm), da tese do fim da história de Fukuyama e de um crescente
pessimismo da esquerda, dando a impressão de que o capitalismo tem eternamente a chave para superar suas crises e ciência burguesa as soluções eternas. Isso redundaria na aceitação tácita da tese de Fukuyama de que estaria provado que o capitalismo é a sociedade de tipo natural e que, portanto, é uma ilusão lutar por sua superação. Busquei, com base em Marx e pensadores marxistas que produziram o pensamento social crítico brasileiro, vários deles anteriormente referidos, trabalhar o aprofundamento das contradições cada vez mais profundas e insanáveis do modo de pensar burguês e da sociedade capitalista. No plano das ideias é só seguirmos o caminho percorrido ao longo de quatro décadas por Frederic Hayek, pai do neoliberalismo, para ver que sua condição de intelectual da classe capitalista não lhes permitiu jamais, dentro da concepção da economia clássica e neoclássica, entender o conflito insolúvel entre indivíduo e sociedade nas relações sociais capitalistas. ⁴¹ E isso não fundamentalmente por uma premeditação maquiavélica. É algo mais radical, como nos mostra Marx. “São os limites de uma época – de uma classe – mais que um ‘egoísmo’ deliberado ou uma ‘mentira de classe’ que explicam os limites das idéias...” (M ARX , Carta a Weidemever , 1852). Por essa razão, assinala Marx: “Presos às representações capitalistas [os economistas burgueses] vêem como se produz dentro da relação capitalista, mas não como se produz a própria relação” (M ARX apud F RIGOTTO , 2006, p. 35). Por isso, dialogando com o pensamento de Francisco de Oliveira, especialmente com a Crítica da razão dualista (O LIVEIRA , 1987) e a tese do surgimento do antivalor (O LIVEIRA , 1988), o livro busca pensar o tempo presente. ⁴² Tratava-se não só de ver as contradições mas também de entender como dentro delas pode dar-se a luta contra-hegemônica. A disputa das concepções, teorias e práticas educativas e de ciência e tecnologia situam-se neste terreno. O que Lessa não explica é a questão relativa ao processo de superação do modo de produção capitalista. A ultrapassagem do capitalismo implica enfrentar, no plano da práxis, o pântano contraditório da dialética do velho e de novo. Como nos ensina Gramsci, velho que não quer morrer e novo que necessita nascer. Ou se começa a luta pela utopia do socialismo e da educação omnilateral , unitária e politécnica no embate contraditório da realidade rebelde historicamente existente, ou teremos, como assinala Jameson, que esperar a “deterioração total da terra e da natureza”; ou remeter a um imaginário futuro, na análise de Kosik (1969), a superação do sistema capitalista. Sem dúvida, a análise de Lessa explicita o fetiche do determinismo da ciência, da técnica e da tecnologia e dos processos educativos sob o sistema capital tomados como forças autônomas das relações sociais de produção, de poder e de classe. A forma mais apologética desse fetiche aparece, atualmente, sob as noções de sociedade pós-industrial e sociedade do conhecimento que expressam a tese de que a ciência, a técnica e as novas tecnologias nos conduziram ao fim do proletariado e à emergência do
cognitariado e, consequentemente, à superação da sociedade de classes sem acabar com o sistema capital. Todavia, o fato de não perceber nenhuma positividade na ciência e tecnologia no avanço das forças produtivas e da possibilidade de disputa das concepções, teorias e práticas educativas na perspectiva de uma educação omnilateral e politécnica no interior do sistema capitalista decorre do fato de não considerar, como analisa Jameson, que a contradição, diferente da antinomia, como explicita a citação, tem que ver com forças, contexto ou com o estado das coisas. ⁴³ Isso, para este autor, conduz mais a uma dedução lógica que histórica e a falta de imaginação. Mesmo depois do “fim da história”, ainda parece persistir uma certa curiosidade histórica em geral mais sistêmica do que meramente anedótica: não saber somente o que vai acontecer depois, mas também uma ansiedade mais geral sobre a sorte ou o destino do nosso próprio sistema ou modo de produção [...]. Parece que hoje é mais fácil imaginar a deterioração total da terra e da natureza do que o colapso do capitalismo tardio; e talvez isso possa ser atribuído à debilidade de nossa imaginação (J AMESON , 1997, p. 10-11) A interpretação dessa falta de imaginação para Jameson resulta de uma dominância de nosso tempo das análises antinômicas, campo mais seguro da linguagem que nos permite saber onde se está pisando. No campo da contradição, por lidar com a historicidade, tal segurança desaparece. A contradição é uma questão de parcialidades e aspectos, apenas uma parte é incompatível com a proposição que a acompanha, na verdade ela pode ter mais a ver com forças, ou com o estado das coisas do que com palavras e implicações lógicas [...]. Enquanto a antinomia são, clara e inequivocamente duas coisas separadas: y ou x, e isso de forma tal que faz a questão da situação ou do contexto desaparecer por completo. Nossa época é bem mais propícia ao terreno da antinomia do que da contradição. Mesmo no próprio marxismo, terra natal desta última, tendências mais avançadas reclamam da questão da contradição e se aborrecem com ela, como se ela fosse um remanescente do idealismo, capas de reinfestar o sistema de forma fatalmente antiquada como os miasmas ou a febre cerebral (J AMESON , 1997, p. 17-18). Por isso, parece-me que as afirmações sobre as ilusões de Saviani e dos pedagogos de esquerda, com todas as imprecisões que possam ter de ordem semântica e de análise histórica sobre o trabalho, proletariado, trabalhadores e classe social, são uma expressão mais retórica e de caráter pejorativo, cujo efeito pode ser contrário ao que Lessa certamente quer: reforçar as teses da desescolarização da sociedade, do pragmatismo e economicismo, as perspectivas do laissez-faire, ampliadas hoje pelas teses do pós-modernismo e o desmantelamento do que define a profissão docente pelas políticas neoliberais. ⁴⁴ Por outro lado, se sairmos do campo da antinomia, ciência e tecnologia ou pura negatividade ou pura positividade e lidarmos com o plano das contradições no seio do capitalismo realmente existente, e, portanto com situações concretas e forças em disputa, não me parece que se trate de uma
ilusão a possibilidade de os educadores disputarem, dentro da perspectiva da escola unitária e educação omnilateral , as novas bases de conhecimento demandados pelo processo produtivo. O fato de a fração brasileira da burguesia internacional e seus intelectuais terem recentemente cunhado a expressão “apagão educacional” para reclamar que há falta de trabalhadores qualificados para os setores que necessitam de pessoas que dominem bases de conhecimentos para o trabalho complexo indica, ao mesmo tempo, o limite de ideias dessa burguesia, já que ela é a maior responsável por tal situação e uma real necessidade de elevar o patamar de escolaridade, certamente não para todos. ⁴⁵ Com isso não se está sugerindo que se esteja “no mundo da liberdade” e nem que estamos na porta da sociedade socialista. O que se está dizendo é que há contradições e que, numa perspectiva de luta de classe, na superação do sistema capitalista, esta é uma questão da práxis. “A escola, como o movimento operário, implica um equívoco: só conseguirá interpretar plenamente seu papel numa sociedade renovada e, ao mesmo tempo, compete-lhe, dia após dia, desempenhar um papel” (S NYDERS , 1981, p. 392). ⁴⁶ Finalmente, uma breve análise do texto de Paulo Sérgio Tumolo (2003), “O significado do trabalho no capitalismo e o trabalho como princípio educativo: Ensaio de análise crítica”, que, mediante uma leitura imanente de parte de O capital de Marx sobre “trabalho concreto”, “trabalho abstrato” e “trabalho produtivo”, conclui que sob o capitalismo o trabalho não pode ser considerado princípio educativo. Situo o conteúdo básico do texto, nos termos apresentados pelo próprio autor: O texto tem como finalidade analisar criticamente a concepção do trabalho como princípio educativo, que tem sido utilizada para fundamentar propostas de educação dos mais importantes movimentos sociais brasileiros, tais como o MST e a CUT. À luz da contribuição teórica oferecida por Marx, sobretudo em O Capital , discute o significado das três categorias fundantes de trabalho – trabalho concreto, trabalho abstrato e trabalho produtivo [...] (T UMOLO , 2003, p. 1). Tumolo justifica que, mediante o número de educadores que se ocupam do tema, seleciona apenas um trecho de um deles – Saviani, 1986b – porque o mesmo sintetiza a concepção presente no conjunto de seus estudiosos e serve de base, em grande medida, para as propostas educativas dos referidos movimentos sociais. Numa nota, a título de exemplo, nomeia 13 educadores e 23 obras deles, inclusive quatro de Dermeval Saviani. O trecho citado refere-se a uma entrevista de Saviani publicada pela revista Bimestre do MEC/INEP/Cenafor , uma das quatro referências indicadas por Tumolo do autor. Na verdade, todo sistema educacional se estrutura a partir da questão do trabalho, pois o trabalho é a base da existência humana, e os homens se caracterizam como tais na medida em que produzem sua própria existência, a partir de suas necessidades. Trabalhar é agir sobre a natureza, agir sobre a realidade, transformando-a em função dos objetivos, das necessidades humanas. A sociedade se estrutura em função da maneira pela qual se
organiza o processo de produção da existência humana, o processo de trabalho (S AVIANI , 1986a, p. 14, apud T UMOLO , 2003, p. 2). Com base no pressuposto de que este fragmento da entrevista de Saviani representa sua obra sobre o tema e mais a das 23 obras referidas, apenas como exemplo, de 13 pesquisadores e de que a concepção do trabalho como princípio educativo trata apenas de “um lema, que carece de precisão e consistência teóricas”, faz uma discussão sobre as categorias anteriormente enunciadas de acordo com Marx, para ao final explicitar sua conclusão. Dado o conjunto de razões expostas, o trabalho não pode ser considerado como princípio educativo de uma estratégia político-educativa que tenha como horizonte a transformação revolucionária da ordem do capital. O trabalho só poderia ser concebido como princípio balizador de uma proposta de educação que tenha uma perspectiva de emancipação humana numa sociedade baseada na propriedade social, vale dizer, na não-propriedade dos meios de produção que, dessa forma, teria superado a divisão e a luta de classes e, por conseguinte, qualquer forma de exploração social, bem como o trabalho produtivo de capital e o trabalho abstrato, porque teriam sido eliminados o capital e o mercado (p.10). Tiradas as premissas sobre trabalho como princípio educativo e a forma de encaminhá-las e a sua conclusão, o texto expressa uma interpretação, independentemente que se concorde ou não, em Marx das categorias trabalho concreto, trabalho abstrato e trabalho produtivo. Trata-se de uma análise que, também, se pauta pela visão imanente e heurística do texto de Marx que tem sua pertinência como reiterei ao longo deste texto. Mas a forma de articular essa interpretação de Marx com o que apresenta sobre trabalho como princípio educativo expressa, além de um raciocínio silogístico, equívocos de conteúdo, método e de forma. Mesmo que o autor assuma tratar-se de um texto introdutório, não pode cometer a impropriedade de pinçar uma citação de uma entrevista numa revista, sendo que na bibliografia cita mais três obras de Saviani e nem partir da suposição de que os demais 12 autores e suas 19 obras referidas estejam contemplados em tal citação. O mais estranho e paradoxal é que a citação não trata diretamente do trabalho como princípio educativo, mas da relação da estruturação do sistema educacional e o trabalho como produção da existência humana. Do mesmo modo, a maior parte das obras referidas não trata do trabalho como princípio educativo. Também afirmar, particularmente em relação ao MST, que a concepção do trabalho como princípio educativo é tomada apenas como um lema que carece de precisão e consistência teóricas, sem considerar e debater minimamente a produção sobre educação de intelectuais do MST como Roseli Caldart (2000) e o dialogo e a produção de educadores como a que fazem com Miguel Arroyo, um dos 13 pesquisadores referidos, é uma generalidade e uma impropriedade. Um exame mais cuidadoso do debate teórico e da proposta pedagógica do MST, por ser um movimento que coloca a educação como mediação da luta de classes, nos revela que aí se efetiva um esforço sistemático de compreender tanto o trabalho como princípio educativo quanto algo distinto como indico a seguir, como princípio
pedagógico, aqui se valendo das contribuições de Pistrak e Paulo Freire, entre outros educadores. ⁴⁷ Todavia, é no plano da vida concreta no acampamento e na escola que se pode observar o esforço de superar as marcas de uma “personalidade bizarra” com resquícios “do homem da caverna” (G RAMSCI , 1978, p. 12) conformados na condição de colonos que os adultos e crianças se exercitam no trabalho como princípio educativo. Assim, quando as crianças participam de pequenas tarefas do dia a dia e têm seu tempo lúdico e de escola garantidos, nada tem que ver com exploração do trabalho infantil. Explorados, não por vontade dos pais, mas por condição de vida, eram na condição de colonos ou quando trabalhavam como meeiros ou assalariados. ⁴⁸ A exposição de Tumolo, neste texto, é um exemplo da discussão antinômica posto por Jameson e das implicações da passagem de um estudo imanente e heurístico para análise histórico-concreta. Ou vejamos nos termos do autor: “O trabalho só poderia ser concebido como princípio balizador de uma proposta de educação que tenha uma perspectiva de emancipação humana numa sociedade baseada na propriedade social, vale dizer, na nãopropriedade dos meios de produção...”. Dada a premissa, o autor passa a analisar em Marx as categorias de trabalho concreto, trabalho abstrato e trabalho produtivo e, de forma correta, demonstra que sob o capital o trabalho avilta, degrada, aliena cada vez mais o trabalhador. E conclui que, em sendo isso, o trabalho não pode ser tomado como princípio educativo. Do ponto de vista da lógica a argumentação interna é de um silogismo sem contradição em seus termos. A questão é outra. A premissa é que tem que ser discutida. Posto o trabalho humano no plano histórico onde negatividade e positividade coexistem e se definem no campo de luta de forças, a leitura que podemos fazer desta questão em Marx e Gramsci, me parece outra. Da leitura que faço do trabalho como princípio educativo em Marx o mesmo não está ligado diretamente a método pedagógico e nem à escola e sim a um processo de socialização e de internalização de um caráter e personalidade solidários, fundamental no processo de superação do sistema capital, da ideologia das sociedades de classe, que cindem o gênero humano. Não se trata de uma solidariedade psicologizante ou moralizante. Ao contrário, ela se fundamenta no fato de que todo o ser humano, como um ser da natureza, tem o imperativo de, pelo trabalho, buscar os meios de sua reprodução – primeiramente biológica, e na base deste imperativo da necessidade criar e dilatar o mundo efetivamente livre. Socializar ou educar-se de que o trabalho que produz valores de uso é tarefa de todos é uma perspectiva constituinte da sociedade sem classes. Por ser o trabalho (mediação de primeira ordem) o que possibilita o ser humano produzir-se e reproduzir-se, e por isso na metáfora de Marx, antidiluviano , e não o trabalho escravo, servil e o trabalho alienado sob o capital (mediações de segunda ordem) a internalização, desde a infância, do princípio do trabalho produtor de valores de uso é fundamental. É dentro deste contexto que entendo a expressão – mamíferos de luxo de Gramsci,
para significar uma formação e socialização que aliena a possibilidade de perceber que tudo o que é produzido para o ser humano produzir a si mesmo como ser da natureza vem do trabalho. ⁴⁹ É dentro dessa perspectiva que Marx entende, na minha leitura, a união de trabalho e ensino desde a infância e, ao mesmo tempo, luta contra a exploração do trabalho infantil. A conclusão de Tumolo da impossibilidade de considerar o trabalho como princípio educativo, sob o capitalismo, decorre não só por não trabalhar neste texto o caráter contraditório das relações sociais, mas de uma inversão histórica: o capital se torna a categoria antediluviana. Tomado o trabalho como processo que cria e recria o ser humano, não é redutível às formas históricas, sob as sociedades de classe que cindem o gênero humano, ao trabalho escravo, servil e capitalista. Por isso até mesmo o trabalho escravo não é pura negatividade. Este parece ser um dos sentidos da dialética do senhor e do escravo. Do mesmo modo, não é estranho em Marx reconhecer o caráter civilizatório da revolução burguesa, no plano do pensamento e no plano das relações de produção. Na Crítica da filosofia do direito em Hegel – “Introdução” (Marx, 2006) reconhece que a burguesia acertou contas com as concepções metafísicas e que agora a tarefa é o acerto de contas mediante a crítica ao direito, política, etc., da visão de mundo e de conhecimento. Do mesmo modo, no Manifesto comunista Marx e Engels explicitam o caráter revolucionário da burguesia. Historicamente, a burguesia desempenhou um papel revolucionário. Onde quer que tenha sumido o poder, a burguesia pôs fim a todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. Destruiu impiedosamente os vários laços feudais que ligavam o homem aos seus “superiores naturais” deixando como única forma a relação de homem a homem laço do frio interesse, o insensível “pagamento à vista” (M ARX ; E NGELS apud L ASKI , 1982, p. 96). Explicitam, ao mesmo tempo, no plano das contradições históricas, a positividade e negatividade desse processo. A positividade pela destruição de velhas relações feudais e trabalho escravo e a negatividade de a burguesia não abolir as classes e constituir-se na classe do frio interesse.
Na recente conferência sobre o sentido e atualidade do Manifesto comunista , Francisco de Oliveira ⁵⁰ sublinhou que a encomenda da “Liga dos Justos” era um manifesto contra as injustiças. Marx e Engels fazem um manifesto que explicita que é a propriedade privada dos meios e instrumentos de produção que é a fonte de todas as injustiças e que, portanto, a luta é para suprimir a propriedade privada e a sociedade de classes. O Manifesto , por outro lado, destaca Oliveira, não indica que a direção da história seja rodar a roda para trás ou, do autor em outras análises, a tese do quanto pior, melhor . Por isso, ao ser instado a avaliar o caráter alienante da Rede Globo, reconhecendo e criticando seu poder alienador, adverte que o problema não é a sua destruição, mas como se apropriar desse potencial noutra direção. Num plano mais geral, essa é a mesma conclusão de Hobsbawm (2008) quando afirma que o problema não é a globalização ou a internacionalização, mas esssa forma de internacionalização. A tese do internacionalismo, destaca, é uma tese cara a Marx. A título de conclusão Pela natureza e finalidade deste texto não cabe propriamente uma conclusão. O que trago é a demarcação de alguns aspectos do texto que julgo possam facilitar o debate. O sentido maior deste texto creio que é sintetizado pelo que nos interpela Williams sobre a tarefa da crítica militante na luta pela hegemonia cultural que é o “de aprender e ensinar uns aos outros as conexões que existem entre formação política e econômica e, talvez, mais difícil, formação educacional e formação de sentimentos e de relações, que são os nossos recursos em qualquer forma de luta” (W ILLIAMS , 2007, p. 15). E por tratar-se de um espaço formativo de uma associação científica com a presença dominante de jovens pesquisadores, professores, lideranças sociais, outro aspecto central emana da observação de Engels: o risco de deduções que encerram o assunto a partir do “termo materialista. Toda a história precisa ser reestudada, as condições de existência das diversas formações sociais precisam ser examinadas em detalhe, antes de induzir delas as correspondentes concepções políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas, religiosas”. Do primeiro eixo do texto, explicita-se que a polissemia do trabalho resulta de um complexo processo que se desenvolve historicamente nas relações sociais e se vincula à produção material e à cultura, mediante valores, símbolos, tradições e costumes. O sentido que o trabalho vai assumir, tanto na linguagem do senso comum quanto nos âmbitos das ciências, na sociedade de classes, resulta de relações de poder e dominação.
O percurso feito, sobretudo com Williams, sobre trabalho, emprego e classe social nos dá conta, primeiramente, do processo da constituição do seu significado e sentidos no plano social e cultural e, ao mesmo tempo, de que os três vocábulos passam a ter um vínculo inseparável no processo de definição do modo de produção capitalista. Marx e Engels vivem esse contexto e esmeram-se, particularmente Marx, em desmascarar os sentidos da ciência burguesa e dar-lhes um rigor e concepção histórica. Nem Marx e Engels ficaram imunes das ambiguidades, como se destacou. Não só por isso, mas também por isso, o permanente debate no campo marxista. O debate em relação ao tema das classes sociais, da classe proletária e o próprio sentido de classe como estrutura, categoria ou como processo e formação histórica trazidos neste texto é emblemático. Penso que nos ajudam muito, para nos situarmos neste debate, as distinções que fazem Raymond Williams e Edward P. Thompson, respectivamente, da classe como categoria ou como formação e a abordagem de classe como categoria heurística ou analítica e classe como conteúdo histórico. Para Thompson a classe só pode ser considerada uma categoria no sentido heurístico. No sentido histórico a classe é uma relação de forças. Classe e consciência de classe são sempre o último, e não o primeiro degrau de um processo histórico real. A mesma compreensão a encontramos em autores que tratam a classe em seu sentido histórico real. Para Williams, consciência de classe e luta de classe dizem respeito a formações históricas concretas. Hobsbawm nos fala do “fazer-se classe” e que as mesmas nunca estão prontas. Oliveira, as classes não se constituem em si e nem mesmo para si, mas para as outras. O segundo eixo do texto tem como centro o sentido do trabalho e das classes na sua relação com o campo educativo. Ele se põe como uma exigência, da área na medida em que as abordagens discutidas aqui de Lessa e Tumolo, com abrangência e grau de aprofundamentos distintos, interpelam o campo educativo e, sobretudo, a produção oriunda do GT Trabalho e Educação da ANPEd. Para Lessa a confusão semântica em relação ao trabalho, classe proletária, sujeito revolucionário conduz aos mais destacados pedagogos de esquerda a ilusões em relação a ciência, tecnologia e educação integral e omnilateral . Para Tumolo, o não entendimento do trabalho concreto, abstrato e produtivo em Marx no sistema capital, conduz educadores e movimentos sociais a entenderem o trabalho como princípio educativo – um lema sem consistência teórica. O que se buscou evidenciar é que Lessa e Tumolo fazem suas análises dentro da perspectiva imanente e heurística dos textos de Marx, tomando, sobretudo o Livro I de O capital . Uma abordagem não só sustentável, como importante, na compreensão dos fundamentos do pensamento de Marx e de outros pensadores clássicos. Trata-se de abordagem tão importante quanto a abordagem que analisa as formações históricas. Como adverte Thompson, “confusões geralmente surgem quando nos deslocamos de uma acepção para outra”. Nos textos aqui analisados de Lessa e Tumolo o que busquei evidenciar é que esse deslocamento se efetivou. Dar um tratamento imanente e
heurístico a trabalhos de natureza histórica os conduziu a não tratar a contradição no sentido da materialidade do processo histórico onde negatividade e positividade são indissociáveis. Disso decorre, na minha compreensão, a dificuldade de Lessa perceber que Antunes, Iamamoto e Saviani, com recortes diversos, estão empenhados em entender o trabalho no processo histórico e, como tal, situam suas análises no sentido oposto das abordagens do adeus ao trabalho. Do mesmo modo, entende-se sua dificuldade de ver a possibilidade de positividade da ciência, da técnica e de avanços das forças produtivas dentro do sistema capitalista ou ter-se uma perspectiva de educação escolar omnilateral ou politécnica. No mesmo sentido e de forma mais intensa, Tumolo efetiva esse deslocamento e é conduzido à percepção de que é impossível pensar-se o trabalho como princípio educativo sob o capitalismo. No capitalismo o trabalho se efetiva de forma puramente negativa. Paradoxalmente, na forma que conduz a análise, acaba dando ao capital o caráter antediluviano. Do que foi exposto, para concluir, parece-me importante, na linha apontada por Florestan Fernandes de que o “intelectual não cria o mundo em que vive, mas faz muito quando consegue ajudar compreendê-lo para transformá-lo”, assinalar dois riscos possíveis do deslocamento das análises imanentes e heurísticas para análises históricas como as que acabamos de discutir. O primeiro risco é de conduzir a um imobilismo e a um beco sem saída colocando para o futuro a tarefa de superação do trabalho, da ciência e da técnica e da educação alienadores. A questão, no plano da história e da práxis, que nos interpela é: quem constrói e como se constrói a travessia? Por certo nessa travessia, se entrarmos no pântano e de terno branco e sairmos de terno branco, como lembra João Cabral de Mello, a poesia perde a graça. O outro risco, este mais específico para o campo da educação, é que ao tratar as análises dos pesquisadores criticados, mesmo com as ressalvas feitas, de ilusões ou lemas sem consistência teórica , acaba-se reforçando as posturas conservadoras e neoconservadoras ou pós-modernas já hegemônicas nestes tempos de capitalismo tardio . Por isso, o cuidado em nossas análises, lembrando Marx do Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, é para que a frase não vá além do conteúdo. Referências ANDERSON, Perry. A crise da crise do marxismo . 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. ANTUNES, Ricardo Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho . São Paulo: Boitempo, 1999. ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.
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no ar” como sentir que o que anunciou exatamente uma década atrás, em seu livro Os direitos do anti-valor , assume agora uma evidência histórica contundente e para o sistema capital em conjunto. ²¹ Lessa refere-se às teses do fim do trabalho desenvolvendo, em seu livro, três capítulos. No primeiro, o adeus ao trabalho dado por S. Malett e André Gorz, no segundo, adeus ao trabalho de M. Sabel a J. Lojkine e Adamn Shaff, e, finalmente, no terceiro capítulo, dedica-se ao adeus ao trabalho no Brasil dado pelos autores mencionados. ²² A categoria de trabalho informal, por diferentes razões, no desmanche e precarização do trabalho, não dá conta de nos ajudar aprender os “mundos do trabalho” (HOBSBAWM, 1987) daqueles que não são incorporados diretamente no emprego formal. Ver TAVARES (2004). Uma realidade que advém, como Marx indicava nos Manuscritos econômicos filosóficos , da forma que se desenvolve, sob o capitalismo, a atividade humana. “Substitui o trabalho por máquina, mas lança parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas” (MARX, 2004, p. 82). ²³ Trouxe-me importante ajuda no encaminhamento da estrutura deste trabalho as pistas que Paolo Nosella me enviou por e-mail ao solicitar-lhe uma ajuda. “Na verdade, com esta sugestão, pretendi frisar a importância da linguagem como expressão de alguma filosofia (popular ou científica) que expressa certa prática (econômica) e política (hegemonia)... novamente o nosso Gramsci, caderno 11. A discussão tomou ênfase com a palestra de Saviani (Fundamentos ontológicos e históricos do trabalho), pois, se o ser humano se coestende com o trabalho, as formas históricas do mesmo podem adquirir outras denominações, isto é, outras expressões lingüísticas... não sem sentido a turma se perguntava: que diferença passa entre ‘trabalho’ e ‘emprego’? Entre ‘trabalho braçal e intelectual’? Etc.” ²⁴ A obra do pensador marxista Edward P. Thompson tem a particularidade de ser produzida pela pesquisa histórica e a intensa vivência como educador popular. Por isso sua produção sobre a formação da classe operária inglesa ou, como ele mesmo expressa, “o fazer-se classe operária” , envolve tanto as dimensões econômicas e políticas, quanto as culturais mediadas por experiências, tradições, sistema de valores e vivências concretas. Ver Thompson (1987a, 1987b, 1987c e 1981). ²⁵ Ver a esse respeito, entre outros autores que efetivam este debate: ROSDOLSKY (2001), MANDEL (1998), ROBIN (1980), NAPOLEONI (1981) e SINGER (1981). ²⁶ Parece-me, neste particular, pertinente a análise que Perry Anderson (1985) nos oferece sobre o marxismo ocidental. Indica-nos Anderson que, quando a tradição marxista francesa enveredou na análise do discurso, perdeu a batalha das ideias, já que neste terreno o estruturalismo é imbatível. Ao contrário, a tradição anglo-saxônica manteve-se fiel a Marx e Engels na pesquisa histórica, terreno onde se pode superar o estruturalismo. ²⁷ Ver Raymond Williams, “You’re a Marxist, Aren’t You? (2007, p .14)
²⁸ Isso é particularmente importante para, no próximo item, mostrar alguns aspectos, no mínimo problemáticos, das posições de Lessa e Tumolo nas críticas que efetivam a produções de pesquisadores no campo social e educacional. ²⁹ Esta distinção é apresentada por Williams de uma citação do livro de Volney, de 1795: The Ruins, or a Survey of the Revolutions of Empires . Ver Williams, 2007, p. 89. ³⁰ Nesta passagem de análise histórica concreta fica evidente quando Marx se refere às classes fundamentais que definam a estrutura específica do modo de produção capitalista – proprietários privados dos meios e instrumentos de produção e trabalhadores que vendem sua força de trabalho – de outras classes que se articulam às mesmas. ³¹ Ver, a esse respeito, Wood, 2003. ³² De um texto publicado pela revista eletrônica Marxismo Revolucionário Atual (disponível em: ) e extraído da coletânea de NEGRO e SILVA, As peculiaridades dos ingleses e outros artigos , 2007. ³³ Num texto produzido na década de 1980 analiso a dialética materialista histórica como uma postura ou concepção de realidade histórica, um método e uma práxis para caracterizar aspectos inseparáveis da análise de Marx e Engels (FRIGOTTO, 1989). ³⁴ “O monismo materialista que concebe a realidade como um complexo constituído e formado pela estrutura econômica e, portanto, por um conjunto de relações sociais que os homens estabelecem na produção e no relacionamento com os meios de produção, pode constituir a base de uma coerente teoria das classes e ser o critério para a distinção entre mutações estruturais – que mudam o caráter da ordem social – e mudanças derivadas, secundárias, que modificam a ordem social, sem, porém mudar essencialmente seu caráter” ( KOSIK , 1986, p. 105). ³⁵ Lefebvre busca demonstrar que as obras filosóficas de Marx ou de Marx e Engels se integram com a ciência histórica, com a economia e a política. Por isso rejeita tanto a leitura de um jovem Marx (humanista) e de um Marx maduro (cientista) quanto que as obras de juventude substituam Marx da maturidade. ³⁶ Entrevista concedida a Marcelo Musto. Entrevista: Hobsbawm. Agência Carta Maior , 29 set. 2008. ³⁷ Poderia afirmar-se com segurança que os metalúrgicos e bancários brasileiros, que a partir da década de 1970 pela magnitude e organização dos seus sindicatos produziram duas lideranças que respectivamente se tornaram presidente da República (Luís Inácio da Silva) e governador do Rio Grande do Sul (Olívio Dutra), não terão mais essa capacidade pelo simples fato que robôs e máquinas digitais ocuparam seus postos ampliando o desemprego estrutural, o trabalho precário e “informal”.
³⁸ Em diferentes passagens Lessa assinala a expressão “mundos do trabalho” – “esta sim quase misteriosa” ( LESSA , 2007, 9) – como a evidência de imprecisão semântica do trabalho, preocupação que tem validade se o contexto da análise do trabalho estiver no campo do imanente e do heurístico. Mas isso não é pertinente se está-se tentando entender como o trabalho se apresenta num determinado contexto e desenvolvimento histórico. O historiador marxista Hobsbawm (1987) não por acaso, intitula uma obra clássica sua de Mundos do trabalho. ³⁹ Lessa não inclui nas referências bibliográficas esta obra de 1999. Todavia o trecho se refere a obra referida anteriormente (LESSA, 2007, p. 90) que é de Saviani (1994). ⁴⁰ Coincidentemente, não encontro na página 7 do livro referido o pedaço de frase pinçado e citado. Na página referida começa o sumário do livro citado, Educação e crise do capitalismo real, onde, como veremos a seguir, em boa parte do livro trato do caráter contraditório e dos limites da ciência e do sistema capitalista. Também trato das teses do fim da sociedade do trabalho e da não centralidade do trabalho em Claus Off, Adman Schaf e Robert Kurtz. ⁴¹ Ver a esse respeito a análise de Paulani (2005). ⁴² Para Roberto Schwarz, em várias ocasiões, Chico acertou na análise quase sozinho, sustentando posições e argumentos contrários à voz corrente da esquerda (SCHWARZ, Prefácio, apud OLIVEIRA 2003, p. 22). Na ampliação do texto de 1988 sobre o anti-valor, Oliveira evidencia hoje, mais uma vez, que acertou numa tese que lhe rendeu muitas críticas. Há dez anos afirmava: “O processo invisível por excelência é o capital fictício, que viaja em tempo real-digital – de um para outro lugar do mundo: e viaja em moléculas, que é o próprio dinheiro, não necessitando fixar-se em unidades físicas. Mesmo quando se fixa em unidades industriais, o que preside a ordem desta fixação é o caráter fictício do capital dinheiro, ao contrário da sociedade do conflito, em que o capital-dinheiro só existe depois de construir a força de trabalho vivo. A sociedade da ordem jurídico-política é fundada na propriedade tangível, enquanto na sociedade molecular-digital a regra é o intangível, o invisível [....]. Na ordem jurídico-política em destruição, uma ordem de proprietários, de sujeitos, constituem-se fóruns em que as partes do contrato podem cobrar-se, mutuamente, pelos prejuízos ou agravos produzidos por um autor que se pode conhecer. Na ordem-desordem molecular-digital, tal procedimento é impensável. O episódio da falência do Barings Bank da Inglaterra motivado por um jovem especulador da Malásia, é emblemático neste sentido. Detonou um processo que liquidou uma duplamente centenária instituição bancária. Evidentemente, mesmo que se estabeleça a ação desse operador como sendo o momento inicial do Big Bang, sua punição individual não repara uma perda em bilhões de dólares” (Oliveira, 1998, p. 8-9). Agora, a cada dia que passa fica evidente que não se trata de um banco, mas de uma crise que desnuda o sistema mundo da jogatina do capital fictício. O cinismo mistura salvação pelo fundo púbico e zombaria e ironia com os que pagam a conta. Um exemplo dessa zombaria foi a “indecência de diretores do grupo financeiro Belga Fortis que fez um banquete para comemorar a salvação do grupo pelo fundo público num
jantar para 50 corretores ao preço módico de US$ 200 por pessoa. (Jornal Valor Econômico , 13 out. 2008). ⁴³ Tomando as análises de Marx, por um lado, sobre a contradição entre a capacidade exponencial da classe detentora do capital desenvolver as forças produtivas e de subsumir trabalho de forma cada vez mais intensa e a incapacidade de socializar o resultado do trabalho e, por outro, de que a ultrapassagem desse sistema não se dará pela perspectiva do quanto pior, melhor , mas do aguçamento daquela contradição, o desafio para a classe trabalhadora é de criar uma vontade coletiva, ou, nos termos de Coutinho, uma intersubjetividade revolucionária para viabilizar a ruptura do modo de produção capitalista. Gramsci, em Maquiavel, política e estado moderno , 1976, nos dá os diferentes níveis de correlações de força e as exigências para que uma tarefa revolucionária se torne viável. Dentro dessa compreensão – e Gramsci (1976) entendeu isso já na década de 1930 –, nas condições sobre as quais se deu a Revolução Russa, dificilmente esta poderia se manter sem que houvesse um movimento mais amplo onde nos centros mais desenvolvidos do sistema capitalista. Nesta direção de análise pode-se afirmar que, do ponto de vista das condições objetivas – avanço científico e tecnológico, capacidade produtiva maior –, há muitíssimo mais condições da sociedade socialista hoje do que em 1917. O que falta são as condições subjetivas ou a força intersubjetiva revolucionária. A nova sociedade não começaria da pedra lascada, mas se apropriando e redefinindo os rumos da ciência e da tecnologia. De mutiladora dos direitos fundamentais do ser humano e de destruição das bases da vida em “extensão de membros e sentidos humanos dilatando um efetivo tempo livre e de liberdade. ⁴⁴ Dermeval Saviani, tendo presente o esvaziamento da função de organização, sistematização e produção do conhecimento dos docentes (em todos os níveis de ensino, mas especialmente na educação básica) numa recente entrevista, reclama: “Ao professor deve ser devolvida a sua função: ensinar” ( Revista Rubra , n. 3, Lisboa, outubro 2008). Reitera aquilo que expõe no pequeno livro Escola e democracia (SAVIANI, 1986) com 40 edições, sobre especificidade da função política da escola e da educação escolar, que se dá pela mediação das conepções, metodo dialético-histórico na apreensão dosconteúdos e dos fundamentos científicos, na expressão de Gramsci, da sociedade dos homens e das coisas. Ideias cuja base pode ser buscada em Marx, nas “Instruções aos Delegados do I Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores” e na “Crítica ao Programa de Ghota” e em “O Capital”. ⁴⁵ Uma análise atual e importante sobre demanda e trabalho complexo no Brasil é efetivada por Lúcia Maria, Vanderlei Neves e Marcela Alejandra Pronko (2008). Em pesquisa que concluí recentemente ( FRIGOTTO , 2008), no último capítulo discuto a relação quantidade e qualidade na educação tecnológica de ensino médio e evidencio o espaço contraditório no qual se dão disputas no campo da educação e uma análise do apagão educacional. ⁴⁶ Lenin, como um dos mais importantes teóricos do marxismo do século XX e líder revolucionário, tinha clareza sobre o papel contraditório da escola burguesa. Ao se dirigir aos jovens, após a Revolução de 1917, criticou a
tendência de se ver tudo o que se fez na velha escola como inútil e argumentava que a teoria revolucionária, contraditoriamente, também resultou dela. “O marxismo é um exemplo de como o comunismo resultou da soma de conhecimentos adquiridos pela humanidade” (LENIN apud FRIGOTTO, 2006, p. 190). ⁴⁷ Não se está dizendo que o MST não tenha conflitos ou contradições internas e imensos limites nas suas lutas, impostos pela classe dominante brasileira e pelas condições em que os seus militantes produzem a sua existência. Este é um tema sobre o qual são doutores e nos ensinam muito. Também não se está dizendo que esses conceitos estão resolvidos na teoria e na prática. ⁴⁸ Outra, ainda que possa ter dimensões positivas, é a visão da Organização Internacional do Trabalho quando, por uma pressão da concorrência intercapitalista, produz leis contra o trabalho infantil. Soa uma lei cínica, quando não se oferece às crianças nem aos jovens que trabalham precocemente uma alternativa de produção digna de sua existência. ⁴⁹ Por isso também as teses de que o movimento social, a greve e as lutas são educativos e o são, mas não fazem como “princípio educativo” da mesma natureza do trabalho produtor de valores de uso. Aqui reside a necessária distinção entre trabalho e práxis, já que o trabalho não esgota a construção do ser social, mas é também fundamento da práxis. As greves, as lutas dos movimentos sociais tendem a desaparecer numa sociedade cujo fim é a emancipação humana. O trabalho produtor de valores de uso continuará sendo uma necessidade antediluviana para todos os seres humanos pelo simples fato que este ser da natureza e com necessidades de elementos da natureza ou de produtos desenvolvidos pela criação humana continuará existindo. Manacorda mostra uma ênfase específica de Gramsci, com base em Marx, ao colocar “o conceito e o fato” do trabalho como “princípio imanente da escola elementar”. Marx, saliente Manacorda, se refere, sobretudo, à concepção de trabalho como uma relação imediatamente instituída entre sociedade e a natureza para transformar a natureza e socializá-la numa concepção que sintetiza todos os termos marxianos da história da indústria como relação entre homem e natureza e como processo de humanização da natureza (MANACORDA, 1991, p. 136.) ⁵⁰ Referido na nota 20. Os circuitos da história e o balanço da educação no Brasil na primeira década do século XXI
⁵¹ Gaudêncio Frigotto Tenho a dimensão da responsabilidade pela tarefa que assumi, tanto pela abrangência do tema, complexidade do conteúdo e delicado momento político que vivemos quanto pelo desafio de ser para quem se destina esta conferência. Falar aos próprios pares, sem dúvida, traz a vantagem de
debater com interlocutores que se ocupam do tema, mas, exatamente por isso, a exigência torna-se mais aguda e espinhosa. Só posso explicar o lapso de insanidade ao aceitar o convite por tê-lo interpretado como uma tarefa para quem, ainda como aluno de pósgraduação em 1976 esteve no processo de debates que iniciaram a criação da ANPEd, fundada em 1978. Mas neste momento isso não é um consolo nem me retira o compromisso e a responsabilidade. O que busco nesta exposição não é o consenso balofo, mas o dissenso crítico. Não só pelo fato de estarmos vivendo o momento em que se completam 15 anos da morte de Florestan Fernandes, mas, pelo que representa sua contribuição intelectual para entendermos o que somos e o que nos trouxe até aqui, eu o tomo como referência básica para a leitura que faço da primeira década do século XXI quanto à relação entre projeto societário e educação. Para Florestan Fernandes (1997, p. 5), a “história nunca se fecha por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os homens, em grupos e confrontando-se como classes em conflito, que ‘fecham’ ou ‘abrem’ os circuitos da história”. Tal compreensão conduz-me a uma exposição que se estrutura em três pontos: o primeiro trata da indicação de alguns pressupostos e das opções e embates em torno do projeto societário que marcam a conjuntura da década; o segundo, traçado justamente com base nesses pressupostos e opções de projeto societário, engloba o balanço indicativo daquilo que entendo ser marcante nesta década com respeito à educação; e, por fim, o terceiro ponto, em que levanto algumas questões que nos afetam, como a ANPEd, e nos interpelam como pesquisadores ou jovens em formação na pesquisa e pós-graduação na área. Esses três aspectos não decorrem de uma eleição arbitrária, mas sim daquilo que entendo seja a própria natureza de uma entidade que congrega pesquisadores e discute tanto os pressupostos e método quanto os resultados de um trabalho específico que busca a cientificidade do saber ⁵² e, da mesma forma, o sentido histórico, social, cultural e ético-político de sua produção. Pela estrutura de minha fala que, de saída, apresentei, os colegas já podem perceber que minha opção para a elaboração do balanço refere-se muito mais a um roteiro indicativo que pode nos permitir uma leitura histórica dessa conjuntura do que à aventura de fazer superficialmente outro tipo de balanço, trazendo aqui uma espécie de estado da arte do que foi produzido, na sua maior parte justamente pelos que me estão escutando, sobre o que ocorreu na área de educação durante o período. Esta não é tarefa a ser vencida numa conferência, mas numa pesquisa de vários anos. De que pressupostos parto e qual a opção de projeto societário marca esta década? Qualquer que seja o objeto de análise no campo das ciências humanas e sociais que se queira tratar no plano da historicidade, vale dizer, no campo das contradições, mediações e determinações que o constituem, implica necessariamente tomá-lo na relação inseparável entre o estrutural e
conjuntural. Por outra parte, implica tomar o objeto de análise não como um fator, mas como parte de uma totalidade histórica que o constitui, onde se estabelecem as mediações entre o campo da particularidade e sua relação com uma determinada universalidade. Assim sendo, entendo que a década de 2001 a 2010 não se interpreta nela mesma nem pelo que nela se fez, mas pela natureza desse fazer e das forças sociais que o materializam para além das intenções e do discurso. Para este auditório, mormente à geração a que pertenço, mas não só, caberia, quiçá, enfrentar o mesmo desafio intelectual e político que Florestan Fernandes (1977) enfrentou ao fazer o balanço de sua geração. Assim é que relembro, aqui, para todos nós, que Florestan, ao definir a sua geração como geração perdida , interroga sobre o que pretendiam, por que falharam e quais lições poderiam ser tiradas para o futuro. O que pretendo demarcar é que, como conjuntura, a década começa em janeiro de 2003 com a posse do atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já que não é o tempo cronológico que define uma conjuntura, mas a natureza dos acontecimentos e dos fatos e as forças sociais que os produzem. O começo, em janeiro de 2003, se traduz no fato de que, não obstante as diferenças entre a eleição de 1989 e a de 2002, as forças sociais progressistas que conduziram ao poder o atual governo tinham em sua origem a tarefa de alterar a natureza do projeto societário com consequências para todos as áreas. Francisco de Oliveira (2003, p. 3). sintetiza qual era a tarefa e o seu sentido: Na periodização de longue durée brasileira, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, ancorada na excepcional performance do Partido dos Trabalhadores e de uma ampla frente de esquerda, tem tudo para ser uma espécie de quarta refundação da história nacional, isto é, um marco de não retorno a partir do qual impõem-se novos desdobramentos. [...]. É tarefa das classes dominadas civilizar a dominação, o que as elites brasileiras foram incapazes de fazer. O que se exige do novo governo é de uma radicalidade que está muito além de simplesmente fazer um governo desenvolvimentista Uma ampla produção crítica, a começar pela do próprio Oliveira, permitenos sustentar que, por diferentes razões e determinações, ⁵³ não ocorreu o caminho do não retorno e a opção esteve centrada na realização de um governo desenvolvimentista. A radicalidade a que o autor se refere, no contexto das forças em jogo, seria uma opção clara de efetivação de medidas políticas profundas que viabilizassem a repartição da riqueza e suas consequências em termos de reformas de base na confrontação do latifúndio, do sistema financeiro e do aparato político e jurídico que os sustentam. Entre os novos desdobramentos poderia estar aquilo que os clássicos brasileiros do pensamento crítico definiram como revolução nacional, capaz de abrir amplo acesso aos bens econômicos, sociais, educacionais e culturais à grande massa até hoje submergida na precária sobrevivência e com seus direitos elementares mutilados. Num horizonte mediato, exorcizando o
quanto pior, melhor , tal revolução poderia propiciar o desenvolvimento das condições para que a grande massa de trabalhadores viesse a se constituir, ela mesma, em sujeito político, condição indispensável, como nos ensina Gramsci, para mudar um determinado panorama ideológico, construir bases para relações sociais de novo tipo e de caráter socialista. Na lição principal para a sua geração, pensando em nossa realidade histórica, Florestan qualifica esse movimento e o papel do intelectual ou da intelligentia crítica, lição que guarda viva atualidade: Não foi um erro confiar na democracia e lutar pela revolução nacional. O erro foi outro – o de supor que se poderiam atingir esses fins percorrendo a estrada real dos privilégios na companhia dos privilegiados. Não há reforma que concilie uma minoria prepotente a uma maioria desvalida. [...] A causa principal consiste em ficar rente à maioria e às suas necessidades econômicas, culturais e políticas: pôr o povo no centro da história, como mola mestra da Nação. O que devemos fazer não é lutar pelo Povo. As nossas tarefas são de outro calibre: devemos colocar-nos a serviço do Povo brasileiro para que ele adquira, com maior rapidez e profundidade possíveis a consciência de si próprio e possa desencadear, por sua conta, a revolução nacional que instaure no Brasil uma nova ordem social democrática e um estado fundado na dominação efetiva da maioria (F ERNANDES , 1977, p. 245-246). Ao assentar-se, e cada vez mais, na opção pelo desenvolvimentismo, o marco do não retorno não foi construído na atual conjuntura e, por isso mesmo, não altera nem o tecido estrutural de uma das sociedades mais desiguais do mundo nem a prepotência das forças que historicamente o definem e o mantêm. Para Florestan o que se tem chamado de desenvolvimento, em realidade, tem sido um processo de modernização e de capitalismo dependente onde a classe dominante brasileira, minoria prepotente, se associa ao grande capital abrindo-lhe espaço para sua expansão, o que resulta na combinação de uma altíssima concentração de capital para poucos com a manutenção de grandes massas na miséria, o alívio da pobreza ou um precário acesso ao consumo, sem a justa partilha da riqueza socialmente produzida. ⁵⁴ Diferente, todavia, das análises que operam no plano antinômico entre uma abstrata equação de continuidade ou descontinuidade, as quais, como bem nos alerta Fredric Jameson (1997), se inscrevem na ordem das abordagens lógicas e na retórica discursiva, a análise materialista histórica, terreno da contradição, ⁵⁵ refere-se a contextos e permite-nos perceber que a década analisada, no plano social e educacional é, ao mesmo tempo, continuidade e descontinuidade. E aqui vale a advertência de Engels (1983, p. 456): Sobretudo a palavra “materialista” serve, na Alemanha, a muitos escritores jovens como uma simples frase com que se rotula todo e qualquer estudo, ou seja, coloca-se o rótulo e crê-se ter encerrado então o assunto [...]. Toda a história precisa ser reestudada, as condições de existência das diversas formações sociais precisam ser examinadas em detalhe, antes de induzir delas as correspondentes concepções políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas, religiosas, etc.
André Singer, porta-voz durante os quatro primeiros anos do atual governo, ao analisar o que denomina de “Lulismo” , define-o por sua especificidade quanto à opção por um determinado projeto societário e à natureza das políticas públicas e seu sentido político, dando-nos, ao mesmo tempo, elementos para percebermos as diferenças de tais políticas em relação ao passado, especialmente, a década de 1990. A continuidade da década presente em relação ao passado incide no erro da geração perdida – a opção por conciliar uma minoria prepotente a uma maioria desvalida – mediante o combate à desigualdade dentro da ordem de uma sociedade capitalista onde sua classe dominante é das mais violentas e despóticas do mundo. Com efeito, como assinala Singer, a conciliação se dá, por um lado, na continuidade da política macroeconômica fiel aos interesses da classe detentora do capital e, por outro, no investimento na melhoria de vida de “uma fração de classe (trabalhadora) que, embora majoritária, não consegue construir desde baixo as suas próprias formas de organização” (S INGER , 2009, p. 84). Tal opção política, por “executar o programa de combate à desigualdade dentro da ordem”, “confeccionou nova via ideológica, com união de bandeiras que pareciam não combinar” (p. 97). Continuidade, no entanto, não significa que um mesmo projeto estrutural seja conduzido da mesma forma. As forças que protagonizaram o chamado ajuste estrutural na década de 1990, particularmente os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, representam o núcleo dominante da minoria prepotente, o qual , por seus vínculos orgânicos com o grande capital e quadros de intelectuais altamente preparados, definiram o movimento de pêndulo a que se refere Octavio Ianni (1986) entre a construção de uma nação autônoma e soberana e um projeto modernizador e de capitalismo dependente. As reformas neoliberais ao longo do governo Fernando Henrique aprofundaram a opção pela modernização e dependência mediante um projeto ortodoxo de caráter monetarista e financista/rentista. Em nome do ajuste, privatizaram a nação, desapropriaram o seu patrimônio (P ETRAS ; V ELTMEYER , 2001), desmontaram a face social do Estado e ampliaram sua face que se constituía como garantia do capital. Seu fundamento é o liberalismo conservador redutor da sociedade a um conjunto de consumidores. Por isso, o indivíduo não mais está referido à sociedade, mas ao mercado. A educação não mais é direito social e subjetivo, mas um serviço mercantil. O que quero sublinhar é que, a despeito da continuidade no essencial da política macroeconômica, a conjuntura desta década se diferencia daquela da década de 1990 em diversos aspectos, tais como: retomada, ainda que de forma problemática, da agenda do desenvolvimento; alteração substantiva da política externa e da postura face contrária às privatizações; recuperação, mesmo que relativa, do Estado na sua face social; diminuição do desemprego aberto, mesmo que tanto os dados quanto o conceito de emprego possam ser questionados; aumento real do salário mínimo (ainda que permaneça mínimo); relação distinta com os movimentos sociais, não
mais demonizados nem tomados como caso de polícia; e ampliação intensa de políticas e programas direcionados à grande massa não organizada que vivia abaixo da linha da pobreza ou num nível elementar de sobrevivência e consumo. Trata-se, neste ultimo caso, não apenas da realização de políticas compensatórias e de parca distribuição de renda, como é o Programa Bolsa Família, ou das políticas de descriminação positiva, mas do acesso diferenciado e intenso ao crédito para a casa própria e a bens de consumo, programas de acesso à energia, etc. Vale lembrar aqui a aguda observação de Bertolt Brecht: “Para quem tem boa posição social falar de comida é coisa baixa. É compreensível, eles já comeram”. ⁵⁶ O indicador dessas diferenças pode ser aquilatado por dois caminhos de origem diametralmente diversa: um furor da classe dominante e de seus aparelhos de hegemonia ⁵⁷ contra as políticas aqui exemplificadas, por retirarem migalhas da reprodução ampliada do capital ou de seus privilégios; e um comportamento de gratidão e de apoio das multidões que objetivamente sentem a melhora efetiva de suas vidas, grande parte passando da indigência à sobrevivência e outra parcela subindo um degrau na escala do consumo. Não por acaso essa massa é a grande responsável pelos índices estáveis próximos de 80% de avaliação do atual governo como ótima. O problema não é a real necessidade de um projeto de desenvolvimento e a adoção de políticas compensatórias ampliadas como travessia. O equívoco está em que estas não se vinculam à radicalidade que está muito além de simplesmente fazer um governo desenvolvimentista sem confrontar as relações sociais dominantes. Como sustenta o historiador Eric Hobsbawm (1992, p. 270), “o ‘desenvolvimento sustentável’ não pode operar através do mercado, mas deve operar contra ele. Implica, sobretudo, uma investida contra as fortalezas centrais da economia de mercado e de consumo. Isso exigirá não apenas uma sociedade melhor que a do passado, mas, como sempre sustentaram os socialistas, um tipo diferente de sociedade”. Assim, ao final dessa década, podemos afirmar que no plano estrutural, embora não se tenha a mesma opção dos que no passado recente venderam a nação e haja avanços significativos no plano social, mormente para o grande contingente da população até então mantido na indigência, o marco de não retorno não se estabeleceu e o circuito das estruturas que produzem a desigualdade não foi rompido. A lição principal de que nos fala Florestan lamentavelmente, no seu conteúdo fundamental, não foi aprendida. Uma leitura da educação brasileira na primeira década do século XXI O que expus até aqui, penso, me permite, de forma muito resumida e reduzida, explicitar a leitura que faço do campo educacional nesta década, abordando os processos educativos, institucionalizados ou não. O pressuposto basilar da leitura a que me refiro incide no fato de que, ao não disputar um projeto societário antagônico à modernização e ao
capitalismo dependente e, portanto, à expansão do capital em nossa sociedade e centrar-se num projeto desenvolvimentista tendo como foco o consumo, e ao estabelecer políticas e programas para a grande massa de desvalidos, harmonizando-as com os interesses da classe dominante (a minoria prepotente), o governo também não disputou um projeto educacional antagônico, no conteúdo, no método e na forma. Isso explica, do meu pronto de vista, por que o acúmulo de debates e de produção teórica produzidos no combate à ditadura civil-militar, na transição para a “redemocratização”, no processo constituinte e no combate à ditadura do mercado na educação na década de 1990, não tenha sido apropriado ou apenas marginalmente apropriado por alguns setores. Refirome aqui às Conferências Brasileiras de Educação (CBES), ao Fórum em Defesa da Escola Pública e, posteriormente, às Conferências Nacionais de Educação (CONEDS) e aos Fóruns Mundiais de Educação, espaços cuja atividade, especialmente, a produção teórica de caráter crítico, da década de 1980, que neles teve lugar e que foi produzida no seio da pós-graduação da área, particularmente em alguns programas, deixou de ser apropriada. ⁵⁸ Também explica a fragmentação e o abandono por parte de grande parte dos setores críticos organizados da área a disputar a direção das políticas educacionais, favorecendo a dupla deformação política sublinhada por Karel Kosik (1969): a postura da bela alma e a do comissário. No primeiro caso trata-se do encastelamento no plano de uma pureza teórica abstrata e moralista para a qual tudo é reformismo, o que conduz a uma posição imobilista. No segundo caso, está o comissário centrado em suas fatias de poder, exercendo uma atitude pragmática, utilitarista e oportunista, capaz de subordinar os interessas da sociedade aos seus. A junção da fragmentação ao abandono do campo crítico na disputa pelo projeto educativo e o foco de atendimento da grande massa desorganizada e despolitizada resultaram naquilo que foi dominante na educação durante a década: a política da melhoria mediante as parcerias do público e privado. Desse desfecho resulta que no plano estrutural reiteram-se as reformas que mudam aspectos do panorama educacional sem alterar nossa herança histórica que atribui caráter secundário à educação como direito universal e com igual qualidade. Não só algo secundário, mas desnecessário para o projeto modernizador e de capitalismo dependente aqui viabilizado. No plano das políticas educacionais, da educação básica à pós-graduação, resulta, paradoxalmente, que as concepções e práticas educacionais vigentes na década de 1990 definem dominantemente a primeira década do século XXI, afirmando as parcerias do público e privado, ampliando a dualidade estrutural da educação e penetrando, de forma ampla, mormente nas instituições educativas públicas, mas não só, e na educação básica, abrangendo não só o conteúdo do conhecimento como também os métodos de sua produção ou socialização. A não mudança estrutural a que me refiro pode ser nitidamente percebida pela leitura de balanços-síntese feitos por três intelectuais representantes do pensamento crítico, os quais evidenciam que, tomados os últimos 80 anos, a prioridade da educação sustenta-se apenas no discurso retórico.
Antônio Cândido (1984, p. 28), referindo-se aos ideais educacionais dominantes na década de 1930, conclui: Tratava-se de ampliar e “melhorar” o recrutamento da massa votante e de enriquecer a composição da elite votada. Portanto, não era uma revolução educacional, mas uma reforma ampla, pois o que concerne ao grosso da população a situação pouco se alterou. Nós sabemos que (ao contrário do que pensavam aqueles liberais) ⁵⁹ as reformas da educação não geram mudanças essenciais na sociedade, porque não modificam a sua estrutura e o saber continua mais ou menos como privilégio. São as revoluções verdadeiras que possibilitam as reformas de ensino em profundidade, de maneira a torná-lo acessível a todos, promovendo a igualitarização das oportunidades. Na América Latina, até hoje isto só ocorreu em Cuba a partir de 1959. Quatro décadas depois, Florestan Fernandes (1992, p. 34), batalhador das teses dos movimentos sociais e organizações científicas defensoras de um projeto educacional que desse base a mudanças estruturais, chega a conclusão similar à de Antônio Cândido, referindo-se à Constituição de 1988: A educação nunca foi algo de fundamental no Brasil, e muitos esperavam que isso mudasse com a convocação da Assembléia Nacional Constituinte. Mas a Constituição promulgada em 1988, confirmando que a educação é tida como assunto menor, não alterou a situação . O desfecho da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases e o percurso do Plano Nacional de Educação, agora subsumido pelo Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), vieram confirmar que permanecem inalteradas, até o presente, as análises de Antônio Cândido e Florestan Fernandes. ⁶⁰ Com efeito, duas décadas depois do balanço feito por Florestan, Dermeval Saviani, referindo-se ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que, secundarizando-o, se superpõe ao Plano Nacional de Educação (PND) e à numerologia que o acompanha, sustenta: Fica-se com a impressão que estamos diante, mais uma vez, dos famosos mecanismos protelatórios. Nós chegamos ao final do século XX sem resolver um problema que os principais países, inclusive nossos vizinhos Argentina e Uruguai, resolveram na virada do século XIX para o XX: a universalização do ensino fundamental, com a conseqüente erradicação do analfabetismo (S AVIANI , 2007, p. 3). E, referindo-se ao conteúdo das políticas, conclui: [...] do ponto de vista da pedagogia histórico-crítica, o questionamento ao PDE dirige-se à própria lógica que o embasa. Com efeito, essa lógica poderia ser traduzida como uma espécie de “pedagogia de resultados”. Assim, o governo se equipa com instrumentos de avaliação dos produtos forçando, com isso, que o processo se ajuste a essa demanda. É, pois, uma lógica do mercado que se guia, nas atuais circunstâncias, pelos mecanismos das chamadas “pedagogias das competências e da qualidade total” (p. 3).
A síntese de Saviani permite-me explicitar como analiso o dominante que se faz presente na educação durante a atual década, tanto em relação à natureza das políticas quanto – e principalmente – às concepções pedagógicas dominantes. Em relação às políticas educacionais da presente década, uma análise antinômica que trabalhasse com base na continuidade ou descontinuidade não seria capaz de captar as diferenças de contexto e o alcance delas em relação ao passado, especialmente em relação à década de 1990. No entanto, numa outra perspectiva, ao examinar as propostas de educação do bloco de forças que apoiavam a candidatura de Fernando Henrique Cardoso e as que apoiavam a de Luiz Inácio Lula da Silva, Luís Antônio Cunha (1995) apresenta-nos os projetos e as concepções em disputa: enquanto as primeiras resultavam de produções de quadros intelectuais elaboradas pelo alto para serem aplicadas na sociedade, as segundas buscavam uma construção desde a própria sociedade. Grande parte dos integrantes daqueles quadros eram, na verdade, membros de organismos internacionais, a começar por Paulo Renato de Souza, que por oito anos ocuparam o Ministério da Educação aplicando o planejado. Tanto que podemos dizer que a LDB aprovada no Congresso foi um ex-post facto de um ex-ante . Mesmo sabendo que o contexto de 2002 já era outro e que as alterações de percurso ao longo do atual governo foram se apartando da sociedade organizada, o discurso da mera continuidade cai no plano antinômico da retórica e não condiz com o compromisso que tenho por revelar o plano contraditório do contexto. Por isso, naquilo que é, especificamente, competência da esfera federal, em sua função suplementar há diferenças no que tange à abrangência das políticas, aos grupos sociais atendidos e ao financiamento posto em prática. Assim, podemos assinalar a criação de mais 14 novas universidades federais, a abertura de concursos públicos, a ampliação dos recursos de custeio e uma intensa ampliação dos antigos Centros Federais de Educação Tecnológica, atualmente transformados em Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFTs). Nesse âmbito foram criadas 214 novas escolas a eles vinculados e cerca de 500 mil matrículas. É preciso também assinalar que houve ênfase nas políticas voltadas para a educação de jovens e adultos e para a educação da população indígena e afrodescendente. Por certo não se pode reduzir tais feitos ao debate sobre a política de cotas e menos ainda que tal debate se reduza, uma vez mais, ao pensamento dicotômico do a favor ou contra . Trata-se de ver quais forças sociais as demandam, qual sua sinalização social e política e qual seu ardil. O atual governo também se mostrou diferenciado no apoio dado ao projeto pedagógico desenvolvido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e às suas iniciativas no importante processo de alterar a concepção e as práticas de educação no campo. A comissão parlamentar de inquérito contra o MST, “olho por olho, dente por dente ” , quando analisada do ponto de vista dos órgãos de fiscalização em relação aos convênios do MST e à sua sistemática demonização, pela imprensa e pelas forças ligadas ao latifúndio, sinaliza essa diferença.
No plano do financiamento, a criação do FUNDEB, com todos os limites da natureza dos recursos ligados ao fundo e não constitucionais, incorporou a educação infantil e o ensino médio, antes não contemplados. Para cobrir todas as modalidades, na sua função suplementar, esta em tramitação final, tem lugar a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Profissional e Tecnológica (FUNDEP). E outro aspecto diferenciado, ainda que em termos muitíssimos baixos, é a fixação do piso nacional para o magistério da educação básica, uma conquista histórica do magistério nacional. Reitero aqui, também, que o problema não está na necessidade de que se reveste a maior parte dessas ações e políticas, mas sim na forma de sua gestão e na concepção que as orientam. Com respeito à gestão, o viés contraditório se dá por serem tais ações e políticas, em grande parte, pautadas na opção pelas parcerias do público com o privado e dentro de uma perspectiva daquilo que Saviani denominou de pedagogia dos resultados, sem a disputa pela concepção que as orienta . Com isso, o Estado, em vez de alargar o fundo público na perspectiva do atendimento a políticas públicas de caráter universal, fragmenta as ações em políticas focais que amenizam os efeitos sem alterar substancialmente as suas determinações. E, dentro dessa lógica, é dada ênfase aos processos de avaliação de resultados balizados pelo produtivismo e à sua filosofia mercantil, em nome da qual os processos pedagógicos são desenvolvidos mediante a pedagogia das competências. Nesse contexto, as concepções de educação centradas na pedagogia histórico-crítica e, portanto, as possibilidades de uma educação unitária e omnilateral e as suas exigências em termos das bases materiais que lhes dão viabilidade, disputadas quando da definição do Plano Nacional de Educação, explicitadas em diferentes Conferências Nacionais e que afetam a educação no conjunto da federação, mormente a educação básica, ficam subvertidas dominantemente pela concepção mercantil. Três aspectos reforçam tal compreensão, dois já enunciados – a dispersão e fragmentação do campo de esquerda e o fato de o governo não ter assumido o acúmulo teórico crítico como opção. O terceiro diz respeito ao que bem demonstra Saviani em relação aos debates ocorridos durante a recente Conferência Nacional de Educação (realizada de 28 de março a 1º de abril de 2010), a qual, a despeito da importância dos seus temas e discussões, foi simplesmente ignorada pela imprensa. Essa conferência tratou de dois temas fundamentais: a organização do Sistema Nacional de Educação e a elaboração do Plano Nacional de Educação, que deverá substituir o atual. Dos resultados da Conae [Conferência Nacional de Educação] deverão sair projetos de lei a serem encaminhados ao Congresso Nacional para discussão e aprovação. Apesar da grande importância desse acontecimento, a mídia falada e escrita nada publicou a respeito (S AVIANI , 2010). O movimento dos empresários em torno do Compromisso Todos pela Educação e sua adesão ao Plano de Desenvolvimento da Educação , contrastada com a história de resistência ativa de seus aparelhos de
hegemonia e de seus intelectuais contra as teses da educação pública, gratuita, universal, laica e unitária, revela, a um tempo, o caráter cínico do movimento e a disputa ativa pela hegemonia do pensamento educacional mercantil no seio das escolas públicas. Um exemplo emblemático da busca por impor a visão financista e mercantil na educação básica é a iniciativa do mercado de capitais (Febraban, Anbima e gestores, Bovespa, Previc, etc.) que, desde agosto de 2010, implantou um projeto-piloto de educação financeira , com supervisão do Ministério da Educação, em 450 escolas do ensino médio, não por acaso, de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Distrito Federal e Tocantins (Sciarretta, 2010), estados dirigidos ou que seguem a filosofia do ministro Paulo Renato de Souza da era de Fernando Henrique Cardoso. Também é uma evidência relevante do interesse crescente que empresas privadas vêm demonstrando em relação à Educação como negócio a recente compra, pela Abril Educação, do Anglo Sistema de Ensino (“211 mil alunos em 484 escolas da rede privada em 316 municípios brasileiros”), do Anglo Vestibulares e da SIGA, empresa focada na preparação para concursos públicos, o que fará “com que o faturamento da Abril Educação supere R$ 500 milhões de reais em 2010, tornando a empresa uma das maiores do setor” (Portal G1, 2010). Pode-se afirmar, assim, que a despeito de algumas intenções em contrário, a estratégia de fazer reformas conciliando e não confrontando os interesses da minoria prepotente com as necessidades da maioria desvalida, acabam favorecendo essa minoria, mantendo o dualismo estrutural na educação, a inexistência de um sistema nacional de educação, uma desigualdade abismal de bases materiais e de formação, condições de trabalho e remuneração dos professores, redundando numa pífia qualidade de educação para a maioria da população. No plano da educação básica, além de os fundos terem prazo de validade, no caso do FUNDEB ampliou-se, positivamente o universo de atendimento, sem, contudo, ampliar, proporcionalmente, os recursos. Atende-se mais com menos. O que vigora é uma fórmula para atender à cláusula pétrea do capital na sua intenção de contar com uma fatia gorda do fundo público como garantia de seus negócios, ao mesmo tempo que se promove constante pressão para diminuir suas contribuições, quando não o emprego das mais variadas estratégias com a intenção de burlá-las. No âmbito da educação profissional, técnica e tecnológica, centro de grandes disputas na Constituinte, na LDB e no Plano Nacional de Educação em prol de uma concepção não adestradora e tecnicista e de sua vinculação jurídica e financiamento públicos, esta foi se constituindo na grande prioridade da década, sem alterar, todavia seu caráter dominantemente privado. Certamente, a opção pela parceria do público com o privado não favorece a reversão da dualidade educacional. Pelo contrário, como demonstra Cunha (2005), a tendência, desde a década de 1980, era de ampliá-la para o ensino superior. A transformação da Rede de Escolas Técnicas Federais em Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETS) e, nesta década, em universidades tecnológicas ou Institutos Superiores de
Educação, Ciência e Tecnologia (IFS) confirmam tal tendência. Do mesmo modo não ajuda a reverter o caráter dominantemente privado e a apropriação privada de recursos públicos na área. Em tese defendida por Gabriel Grabowsky (2010), vemos que, em 1999, apenas 25% da educação profissional era pública e 75% era composta por cursos de curtíssima duração, de nível básico. O Censo de 2008 revelou que 83% das matrículas do nível tecnológico estavam na iniciativa privada. Mas o mais chocante é que o Sistema S, em 2010, mobiliza aproximadamente 16 bilhões de recursos públicos, somando-se os recolhidos compulsoriamente pelo Estado e a ele repassados e a venda de serviços ao setor público. “Esses valores, destacamos, são superiores ao que a União está prevendo investir no FUNDEB, ao custo anual do Bolsa Família e a todos os investimentos realizados na expansão da rede federal (2 bilhões) ao Brasil Profissionalizado (900 milhões) ao Projovem entre 2008-2011 (5,8 bilhões) e a todos os demais programas no campo da educação e qualificação profissional” (G RABOWSKI , 2010, p. 177). Em relação à universidade, o balanço não difere daquilo que expusemos até aqui. Se, positivamente, tivemos na década um forte impulso em direção à criação de novas universidades públicas, isso não alterou a tendência histórica de privatização nem, sobretudo ao que Marilena Chauí (2003) expôs na conferência de abertura na 26ª Reunião Anual da ANPEd, em 2003, a nova perspectiva da universidade pública. Foi quando Chauí nos pôde mostrar que, especialmente a partir década de 1990, houve o deslocamento da universidade concebida como instituição pública ligada ao Estado Republicano para o de organização social vinculada ao mercado. Uma universidade operacional, avaliada não mais em razão de sua função social e cultural de caráter universal, mas o da particularidade das demandas do mercado. Ou seja, centrada na pedagogia dos resultados e do produtivismo, na análise de Saviani. O ProUni e o Reuni, por caminhos diversos e aparentemente contraditórios, dão conteúdo à universidade operacional. O ProUni criou mais de 700.000 vagas para jovens, e isso seria fantástico se tal inclusão não fosse incorporando, ainda que de forma enviesada, a tese conservadora de Milton Friedman que, no final da década de 1950, defendia que o Estado desse aos mais pobres um voucher ou uma carta de crédito para escolherem onde queriam estudar. O Reuni, por sua vez, se representa uma inversão substantiva de recursos de custeio para projetos e programas, quase duplicando as vagas e sendo aplaudida fortemente pelo manifestos dos reitores das universidade públicas durante o atual governo, em contrapartida estabelece a desestruturação da carreira docente, conquistada duramente, aumenta o trabalho precário e, sobretudo, impõe uma brutal e, em muitos casos, insuportável intensificação da carga de trabalho. Além disso, especialmente pelo crescimento do enclave da educação a distância, em alguns casos com a defesa de sua crescente expansão em substituição ao ensino superior presencial, produzse mais uma forma de dualidade. O fetiche da tecnologia opera aqui como argumento ideológico.
Há um último aspecto de grande abrangência que me conduz a sustentar que a primeira década do século XXI, dominantemente, foi marcada pelas concepções e práticas educacionais mercantis da década de 1990, seja no controle do conteúdo do conhecimento, seja nos métodos de sua produção ou na socialização, autonomia e organização docentes. Três mecanismos articulados estão em ampla expansão nas secretarias estaduais e municipais de educação. O primeiro mecanismo chega ao chão da escola calcado na ideia de que a esfera pública é ineficiente e que, portanto, há que se estabelecer parcerias entre o público e o privado, mesmo mediante disfarce, quando o privado permanece encoberto pelo eufemismo que engloba organizações sociais ou o chamado terceiro setor. A esses institutos privados ou ONGs ⁶¹ cabe selecionar o conhecimento, condensá-lo em apostilas ou manuais, orientar a forma de ensinar, definir os métodos de ensino, os critérios e processos de avaliação e controle dos alunos e dos professores. O segundo mecanismo, decorrente do anterior, talvez o mais proclamado pela mídia, notadamente as revistas semanais, é justamente o de se atacar a natureza da formação docente realizada nas universidades públicas, com o argumento de que os cursos de pedagogia e de licenciatura ocupam-se muito com a teoria e com análises econômicas sociais inúteis e não ensinam o professor as técnicas do “bem ensinar”. A revista Época , de 26 de abril de 2010, numa reportagem de dez páginas, traz o receituário do “bem ensinar”: “Os segredos dos bons professores. Os mestres que transformam nossas crianças em alunos de sucesso (e o que todos temos que aprender)”. Os livros tomados como referência para esse adestramento docente são Ensinar como um líder: o guia do professor supereficiente para diminuir o déficit de aprendizagem , de Steven Farr; e Ensine como um campeão: 49 técnicas que colocam os estudantes no rumo da universidade , de Doug Lemov. Uma das receitas desses manuais, em letras maiores e destacadas em negrito pela reportagem, é de que “avaliar o desempenho individual dos professores permitiria não só premiá-los de forma mais justa mas também fazer algo mais importante: entender como eles trabalham”. Esse último aspecto define o terceiro mecanismo, condição para que os dois primeiros tenham sucesso. Trata-se das ações de desmontar a carreira e organização docentes mediante políticas de prêmio às escolas que, de acordo com os critérios oficiais, alcançam melhor desempenho, remunerando os professores de acordo com sua produtividade em termos do quantitativo de alunos aprovados. Os institutos ou organizações privadas, para assessorar ou atuar diretamente nas escolas, têm a incumbência de avaliar professores e alunos de acordo com os conteúdos, métodos e processos prescritos. O que se busca, para uma concepção mercantil de educação é, pois, utilizar na escola os métodos do mercado. ⁶² O que acabo de afirmar se explicita emblematicamente no fato de que o mesmo membro do Conselho Federal de Educação que havia sido relator do contestado Decreto n. 2208/97 foi o relator do atual Decreto n. 5154/04 e, atualmente, é o relator das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Profissional Técnica de Nível Médio . Essas diretrizes, por encontrarem o campo aberto, regrediram de tal forma ao Decreto n. 2.208/97 que motivou uma reação por parte de várias instituições, com grande participação da ANPEd. ⁶³ Mas isso não é tudo. Exatamente no último ano desta década, quem preside a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação é o mesmo histórico representante do Sistema S, ⁶⁴ sistema gerido pelos órgãos de classe dos empresários. O ideário de ensinar “o que serve ao mercado ou de fazer pelas mãos a cabeça do trabalhador” (F RIGOTTO , 1993), antes restrito ao adestramento profissional do Sistema S, tende, então, a impor-se para a educação em seu conjunto. A título de conclusão, ou o que nos interpela como ANPEd na tarefa de manter “fechados” ou “abrir os circuitos da história” Creio que esta conferência perderia o sentido se eximisse a pós-graduação de nossa área deste balanço. O tempo de exposição não me permite avançar em direção a detalhes importantes, mas, de certo modo, no plano geral, creio que estamos de acordo em que a mesmo não difere, no fundamental, do panorama mais geral. Somos mais de 100 programas reconhecidos. Resta indagar: o que isso significa socialmente no embate em torno da abertura dos circuitos de nossa história? Detenho-me, então, no aspecto que julgo central. Trata-se daquilo que define nossa especificidade como espaço de formação de pesquisadores e docentes. Reitero aqui o que assinalei logo no início, que tal especificidade se define pela busca da cientificidade do conhecimento construída pelo trabalho sistemático de captar as mediações e determinações que nos permitem apreender a explicação mais fiel possível do que investigamos. Nisso que nos identifica, teríamos conseguido enfrentar a tendência dos ditames mercantis presentes no sistema educacional brasileiro e herdados da década de 1990 ou fomos também pautados por eles? Essa pergunta não é retórica, pois os temas escolhidos pela ANPEd como referências, no início da década, indicam um estado de alerta e um posicionamento crítico em relação ao que sucedera nas décadas passadas, mormente a de 1990. Com efeito, em 2001, o tema abordado por Francisco de Oliveira versou sobre “Intelectuais, conhecimento e espaço público”. Ao demonstrar a evolução das especializações, nosso conferencista destaca um célere processo de transformação do conhecimento em mercadoria e, consequentemente, o encurtamento do espaço público e, ao mesmo tempo, a redução do conhecimento à intoxicação de informações, provocando a perda de sua radicalidade. “Parece que dispomos de todas as informações para operarmos a aventura do conhecimento. Mas esta intoxicação provoca o contrário. [...] Cria um movimento mimético que se repete incessantemente” (O LIVEIRA , 2001, p. 127).
O calcanhar de Aquiles, para quem atua nas ciências sociais e humanas, segundo Oliveira (2001, p. 228), é que “nossas investigações passam a ser medidas pelo metro da produtividade. [...] É o mesmo metro que mede a produção de uma mercadoria. Há pouca diferença, ainda, entre elas. Tratemos de preservar essa diferença”. Dois anos depois, o tema de abertura da reunião anual, abordado por Marilena Chauí, foi “A universidade pública sob nova perspectiva”. Com outro recorte, a análise de Chauí coincide com a de Oliveira sobre o processo de mercantilização do conhecimento e do trabalho docente. O ponto central de sua análise foi o processo que vem transformando a universidade pública, instituição vinculada ao Estado republicano, em organização social, prestadora de serviços ligada ao mercado. Ao subtrair sua referência da esfera pública, terreno dos direitos universais, e ser referida ao mercado, a universidade perde sua autonomia intelectual, institucional e financeira. Por isso, a sua produção passa a ser medida ou avaliada em função dos critérios produtivistas do mercado. Das várias consequências que Chauí retira de sua análise, destaco duas que incidem diretamente sobre o que nos interpela como pesquisadores e docentes, e de forma radical. Referindo-se à análise de David Harvey sobre a acumulação flexível que se expressa num processo produtivo fragmentado e disperso no espaço e no tempo e reunificado no efêmero e fugaz, Chauí (2003, p. 11) mostra-nos como isso incide na produção intelectual. “Para participar desse mercado efêmero, a literatura, por exemplo, abandona o romance pelo conto, os intelectuais abandonam o livro pelo paper ”. A segunda consequência refere-se aos pontos que nos traz como desafios a enfrentar para reverter a lógica mercantil da universidade operacional. É quando Chauí destaca que isso “depende de levarmos a sério a ideia de formação” (p. 12) e a “revalorização da docência, que foi desprestigiada e negligenciada com a chamada ‘avaliação da produtividade quantitativa’” (p. 14). Ao contrário do paper, do efêmero, do fugaz e descartável típico da cultura pós-moderna do capitalismo tardio, ⁶⁵ como condição para efetuarmos essa reversão, Chauí destaca a necessidade de conhecimento dos clássicos e sua contribuição para entendermos as mudanças atuais que, diferentes do discurso em voga que nos fala de uma sociedade de incerteza, significam que vivemos tempos de insegurança. ⁶⁶ Por mais incômoda que seja a conclusão do balanço com respeito ao que nos compete na pós-graduação em nossa área, ainda que não apenas nela, pior é o fato de que as preocupações trazidas por Oliveira e Chauí, no início da década de 2000, não foram tomadas como agenda fundamental de embate. Desse modo, lembrando o filósofo, poeta lírico e satírico romano Horácio, poderíamos dizer: Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur. ⁶⁷
Ou seja, o pensamento mercantil da universidade operacional nos tomou quase por completo. Vale dizer, consciente ou inconscientemente, entramos no mercado do conhecimento, do ensino e da pesquisa e nos submetemos aos critérios da mensuração mercantil. “E uma mercadoria se reproduz pela mimese, pela sua homogeneização; a mercadoria recusa a diferença, recusa o diverso, recusa o plural, a mercadoria é univocidade” (O LIVEIRA , 2001, p. 127). A mercadoria é a reificação, o fetiche e a alienação em ato. Para o mercado não há sociedade, há indivíduos em competição. E, para o mundo da acumulação flexível, não há lugar para todos, só para os considerados mais competentes, os que passam pelo metro que mede o tempo fugaz da mercadoria e de sua realização. As consequências disso são mais que visíveis em vários aspectos. Nossos cursos tornam-se cada vez mais elitistas. Neles percebo um duplo processo de mutilação e atrofiamento de capacidades intelectuais. Por um lado, os jovens doutores, para atuarem na pós-graduação, têm crivos cada vez mais refinados de ingresso. Por outro, os pesquisadores que não resistem a essa pressão ou que se recusam a se enquadrar nessa lógica, não sem humilhação, ou saem ou são convidados a saírem. O fundamental para muitos pró-reitores e programas de pós-graduação é atingir o máximo de pontos da escala de 1 a 7, mesmo que saibamos que a lógica dos indicadores se funda na visão positivista e funcionalista de conhecimento e que, de antemão, se saiba que há um efeito trava ou gangorra para que apenas uns fiquem no topo. Tomando por foco a nossa produção acadêmica, constata-se que cada vez menos produzimos livros que sejam fruto de longos anos de pesquisa e, em seu lugar, produzimos artigos, papers . Já não há tempo para a formação de jovens pesquisadores e docentes ancorados na leitura dos clássicos. O tempo de nossa produção de pesquisadores, das teses e dissertações que se elaboram não está mais referido à cientificidade que nos permita compreender como a realidade educacional se produz e à sua relevância social, política, cultural e humana. Ao contrário, aprisionamo-nos ao cronômetro da “pedagogia dos resultados” e deslizamos na intoxicação e fugacidade mercantil de informações. Produzimos, enfim, pouco conhecimento. Isso nos dificulta ou anula em grande medida, por certo, a contribuir de forma radical para “abrir os circuitos de nossa história” para novas relações sociais de caráter socialista e nos deixa distantes no enfrentamento daquilo que é para o historiador Eric Hobsbawm (2010, p. 4-6) a questão fundamental do século XXI para o futuro humano. Se pensarmos em termos de como “os homens fazem a própria história”, a grande questão é a seguinte: historicamente comunidades e sistemas sociais buscam a estabilização e a reprodução criando mecanismos contra saltos perturbadores no desconhecido. Como, então, humanos e sociedades estruturados para resistir à transformações dinâmicas se adaptam a um modo de produção cuja essência é o desenvolvimento dinâmico interminável e imprevisível?
Se a razão me leva a um balanço pessimista não é para apostar no quanto pior, melhor ou conduzir a uma postura de imobilismo, pela adoção da atitude quer da bela alma, quer do comissário. Pelo contrário, não só pela especificidade de nosso trabalho de formação e de pesquisa, mas por seu vínculo ético-político, cabe-nos buscar caminhos de superação como tarefa de cada um e coletiva. Os desafios colocados por Marilena Chauí e Francisco Oliveira, no início da década, permanecem na agenda bem como a lição da geração de Florestan que nos convida a nos perguntar: o que queríamos, por que erramos e quais lições devemos tirar para o presente e para o futuro? O horizonte que Florestan Fernandes nos aponta para essa tarefa de superação “é o de nos repor, como intelectuais, nas relações e conflitos de classe”. Mas ele sublinha, e eu, na trilha de suas lições, reitero: “De nada adiantará uma retórica ultra-radical, de condenação ou de expiação. O intelectual não cria o mundo no qual vive. Ele faz muito quando consegue ajudar a compreendê-lo, como ponto de partida para a sua alteração real” (F ERNANDES , 1977, p. 231). É desafio – urgente e necessário – para cada um de nós e para a Associação em seu conjunto. Assim vejo e compartilho com meus pares. Referências ANDERSON, P. As origens da pós-modernidade . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. CÂNDIDO, Antônio. A revolução de 1930 e a cultura. Novos Estudos Cebrap . São Paulo, v.24, p. 27-36, abril de 1984. BARATA-MOURA, José. Materialismo e subjetividade – Estudos em torno de Marx . Lisboa: Avante, 1997. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional e Técnica de Nível Médio . Set. 2010. Disponível em: . CHAUÍ, Marilena. A universidade pública sob nova perspectiva. Revista Brasileira de Educação. Campinas, Autores associados, set./out./nov./dez. 2003, p. 5-15. KOSIK, K. Dialética do concreto . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. COUTINHO, Carlos Nelson. As metamorfoses do PT e o governo Lula. In: Intervenções . O marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2006. COUTINHO, Carlos Nelson. A hegemonia da pequena política. In: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy; RIZEK, Ibele. Hegemonia às avessas . São Paulo: Boitempo, 2010, p. 30-49. CUNHA, Luiz Antônio. Educação brasileira: projetos em disputa. São Paulo: Cortez, 1995. CUNHA, Luiz. Ensino profissional e a irradiação do industrialismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Ed. UNESP/Flacso 2005.
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⁵¹ Conferência de Abertura da XXXIII Reunião Anual da ANPEd. Caxambu, MG, 17 de outubro de 2010, publicado na Revista Brasileira de Educação , ANPEd, v. 16, n. 46, p. 235-274, jan./abril 2011. ⁵² Ver a esse respeito a discussão “Marx e a cientificidade do saber” (BARATA-MOURA, 1997, p. 69-148), na qual é feita distinção entre a ciência como força produtiva e a cientificidade do saber. ⁵³ No espaço deste texto torna-se inviável expor essas razões e determinações. Para esse fim ver: OLIVEIRA (2004 e 2010), COUTINHO (2006 e 2010) FRIGOTTO (2005) e PAULANI (2006 e 2008). ⁵⁴ Diferente da perspectiva da modernização, que concebe o desenvolvimento econômico e sociocultural de forma linear e, mesmo, das análises da teoria da dependência, que apresentam a assimetria de poder entre países, o conceito de capitalismo dependente explicita a compreensão da aliança, ainda que subordinada, das classes detentoras do capital dos países periféricos com as classes detentoras do capital dos centros hegemônicos no processo de expansão do capital. Nas sociedades de capitalismo dependente explicita-se um processo histórico de desenvolvimento desigual e combinado. Vale dizer, nichos de altíssima concentração de capital e renda e manutenção e ampliação de grandes massas na miséria ou nos limites da sobrevivência. Ver, a esse respeito, Fernandes (1975). ⁵⁵ “Na antinomia você sabe onde está pisando. Ela afirma duas proposições que efetivamente são radical e absolutamente incompatíveis, é pegar ou largar. Já a contradição é uma questão de parcialidades e aspectos; apenas uma parte dela é incompatível com a proposição que a acompanha; na verdade, ela pode ter mais a ver com forças ou com o estado das coisas do que com palavras e implicações lógicas. [...]. Nossa época é bem mais propícia ao terreno da antinomia do que da contradição. Mesmo no próprio marxismo, terra natal desta última, tendências mais avançadas reclamam da questão da contradição e se aborrecem com ela” ( JAMESON , 1997, p. 17-18). ⁵⁶ Ver: http://pensador.uol.com.br/2010. ⁵⁷ Uma crônica de Luís Fernando Veríssimo (2010, p. 7) sobre o comportamento da grande imprensa nas eleições atuais traça com fina ironia este furor. ⁵⁸ Destaco a década de 1980 porque nela a área não tinha caído, como veremos adiante, na armadilha do produtivismo ou submergido aos critérios mercantis, construindo um processo de mercantilização na produção acadêmica. Por certo, este seria um tema central para uma ampla pesquisa, cuja hipótese mais provável de ser revelada poderia indicar uma grande indigência intelectual e uma produção com pouco sentido social e humano efetivamente transformador das atuais relações sociais. ⁵⁹ Cândido, no artigo em questão, refere-se às reformas propostas por Sampaio Dória, em 1920, Lourenço Filho, no Ceará (1924), e Fernando Azevedo (1928), no Distrito Federal, base para o que se desenvolveria no
Governo Provisório após 1930 com a criação do Ministério de Educação e Saúde, confiado a Francisco Campos, que fora o reformador da instrução pública em Minas Gerais. ⁶⁰ Para uma visão crítica sobre a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Plano Nacional de Educação ver, respectivamente, Saviani (1999 e 2008). ⁶¹ Referimo-nos aqui a Instituto Ayrton Senna, Instituto de Qualidade na Educação (IQE), Positivo, Pitágoras, Fundação Roberto Marinho, Fundação Bradesco, Sistema COC de ensino e congêneres, que assumem a direção pedagógica de muitas secretarias estaduais e, especialmente, municipais, em nome do ensinar eficiente. ⁶² Os estados de São Paulo e de Minas Gerais são os grandes artífices dessas políticas, mas que se ampliam céleres, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. O município do Rio de Janeiro, capitaneado pela secretária Cláudia Costin, é uma espécie de laboratório avançado dessa filosofia. Agora, ela é seguida pelo recém-empossado secretário estadual de Educação, o economista Willson Risolina, alçado ao cargo no dia seguinte em que o governador Sérgio Cabral foi eleito, após uma campanha em que a qualidade da Educação no estado foi bastante questionada. Perguntado sobre o que pensa da educação e dos professores, o novo secretário foi explícito: “Penso em educação como um negócio”. Concebe os professores como “entregadores do saber. A vida é assim, premia quem é melhor. Vamos fazer avaliações periódicas, que servirão de base para um sistema de bonificação” ( O Globo , Primeiro Caderno, 7 de outubro de 2010). O único estado que tem uma política de contraponto clara a essas tendências é o Paraná. ⁶³ Ver: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional e Técnica de Nível Médio . (BRASIL, 2010). Texto para discussão. ⁶⁴ Uma observação de duas ordens faz-se necessária. A primeira é que não se trata aqui de uma referência pessoal ao conselheiro, mas de sua representação de classe. A segunda é que é preciso, sempre, ter-se presente que os milhares de trabalhadores que atuam nesse sistema vendem a sua força de trabalho como qualquer outro trabalhador. ⁶⁵ Para uma densa análise sobre o pós-modernismo como expressão cultural do capitalismo flexível e fragmentado, um capitalismo tardio, ver JAMESON, 1996. ⁶⁶ Não há espaço aqui para relacionar o discurso ultraconservador com a adoção ampla em nosso meio das tendências de cunho pós-moderno por representarem uma fuga da historicidade do real. Não se trata de negar a particularidade e as diferenças, mas, pelo contrário, do fato de serem tratadas separadas de uma estrutura social ou totalidade histórica (KOSIK, 1986) que nos permitem apreender seu sentido. Daí resulta uma visão fragmentada e superficial da realidade social e educacional e, consequentemente, um reforço às visões conservadoras, ainda que não seja esta, mormente, a intencionalidade. Ver a esse respeito, FONTES, (2002), FRIGOTTO, (2002), JAMESON, (1996 e 1997) e ANDERSON, (1999).
⁶⁷ “Por que ris? A anedota fala de ti, só que com outro nome” (Sátiras, Horácio ).
Parte 2 | Dimensões epistemológicas do conhecimento A interdisciplinaridade como necessidade e como problema nas ciências sociais
⁶⁸ Gaudêncio Frigotto Ao discutirmos a questão da interdisciplinaridade na educação, não há como tratá-la a não ser no âmbito das ciências sociais. O campo do educativo constitui-se, enquanto objeto da produção do conhecimento e enquanto prática docente de socialização do conhecimento, no interior das ciências sociais. Isso decorre do fato de serem os processos educativos constituídos nas e pelas relações sociais , sendo eles mesmos constituintes dessas relações. Tal pressuposto (que é posto antes e que é passível de ser teórica e historicamente sustentado) nos leva a afirmar que os processos educativos enquanto objeto de investigação ou enquanto práticas pedagógicas somente podem ser adequadamente analisados tomados como objeto das ciências sociais. Esse pressuposto, todavia, é gerador de muita controvérsia. A objeção mais frequente que se coloca é de que, com isso, se dilui a especificidade do campo educativo. Parece-nos, todavia, que essa objeção não resiste à análise uma vez que o fato de situarmos os processos educativos como objetos de conhecimento que se constituem no âmbito das ciências sociais não lhes tira nem a especificidade nem a cientificidade. Estas lhes são asseguradas por sua materialidade própria. Revela-se, talvez, apenas a natureza mais complexa e mediada desses processos. Neste breve ensaio temos como objetivo demarcar alguns aspectos que as análises não têm enfatizado suficientemente ao abordar a questão da interdisciplinaridade. Trata-se de apreender a interdisciplinaridade como uma necessidade (algo que historicamente se impõe como imperativo) e como um problema (algo que se impõe como desafio a ser decifrado). A questão da interdisciplinaridade, ao contrário do que se tem enfatizado, especialmente no campo educacional, não é sobretudo uma questão de método de investigação nem de técnica didática, ainda que se manifeste enfaticamente neste plano. Vamos sustentar que a questão da interdisciplinaridade se impõe como necessidade e como problema fundamentalmente no plano material histórico-cultural e no plano epistemológico.
No intuito de uma apresentação didática vamos expor, inicialmente, a dimensão do caráter necessário do trabalho interdisciplinar nas ciências sociais. Em seguida buscaremos explicitar por que a prática efetiva de um trabalho interdisciplinar se explicita como problema sobretudo nos planos material, histórico e cultural e no plano epistemológico. Por fim, firmada e explicitada a necessidade e postos os seus limites, buscaremos demarcar algumas implicações práticas a nível de investigação e do trabalho docente no campo educacional. A interdisciplinaridade como necessidade O caráter necessário do trabalho interdisciplinar na produção e na socialização do conhecimento no campo das ciências sociais e no campo educativo que se desenvolve no seu bojo não decorre de uma arbitrariedade racional e abstrata. Decorre da própria forma do homem produzir-se enquanto ser social e enquanto sujeito e objeto do conhecimento social. Os homens, na busca incessante de satisfazer suas múltiplas e sempre históricas necessidades de natureza biológica, intelectual, cultural, afetiva e estética, estabelecem as mais diversas relações sociais. A produção do conhecimento e sua socialização ou negação para determinados grupos ou classes não é alheia ao conjunto de práticas e relações que os homens produzem num determinado tempo e espaço. Pelo contrário, nelas encontra a sua efetiva materialidade histórica. Na medida em que o conjunto das ciências sociais e humanas (para reiterar uma redundância) tem como objeto de conhecimento a compreensão e a explicitação da produção da existência social dos homens, não há razões de ordem ontológica e epistemológica para cindir autonomamente esta ou aquela prática social. O que pode ocorrer e de fato ocorre, como veremos adiante, é que sob as relações de produção humana capitalistas efetivam-se diferentes processos de alienação e de cisão. Mas esta alienação se dá no plano do conjunto das práticas sociais e atinge, ainda que de forma diversa, todos os homens. Como bem evidencia Marx, na sociedade de classes o “humano se perde”. A necessidade da interdisciplinaridade na produção do conhecimento fundase no caráter dialético da realidade social que é, ao mesmo tempo, una e diversa e na natureza intersubjetiva de sua apreensão, caráter uno e diverso da realidade social que nos impõe distinguir os limites reais dos sujeitos que investigam dos limites do objeto investigado. Delimitar um objeto para a investigação não é fragmentá-lo ou limitá-lo arbitrariamente. Ou seja, se o processo de conhecimento nos impõe a delimitação de determinado problema, isso não significa que tenhamos que abandonar as múltiplas determinações que o constituem. É neste sentido que, mesmo delimitado, um fato teima em não perder o tecido da totalidade de que faz parte indissociável. A compreensão da categoria totalidade concreta em contraposição à totalidade caótica, vazia , é imprescindível para entendermos a interdisciplinaridade como necessidade imperativa na construção do conhecimento social. A totalidade concreta, como nos adverte Kosik (1976), não é tudo, e nem é a busca do princípio fundador de tudo. Investigar dentro
da concepção da totalidade concreta significa buscar explicitar, de um objeto de pesquisa delimitado, as múltiplas determinações e mediações históricas que o constitui. A historicidade dos fatos sociais consiste fundamentalmente na explicitação da multiplicidade de determinações fundamentais e secundárias que os produzem. Fazer análise histórica dos fatos, como nos indica Oliveira (1987), é, então empreender um esforço de saturar as categorias abstratas de mediações, de conteúdos dados pela especificidade de uma determinada realidade. Essas colocações são repletas de consequências cruciais para o tema que estamos abordando. Uma primeira consequência é que o trabalho interdisciplinar não se efetiva se não formos capazes de transcender a fragmentação e o plano fenomênico, heranças fortes do empiricismo e do positivismo. Todavia, e esta é uma segunda consequência, ele também não se efetiva se cairmos no reducionismo estruturalista que abandona o plano histórico-empírico e se locupleta no plano discursivo. Muitas análises que se autodenominaram marxistas, na verdade, como bem demonstra Anderson (1975), são de fato estruturalistas. Aqui as categorias assumem autonomia em face do real histórico e aparecem como um a priori , camisas de força que amordaçam o tecido complexo da realidade. O caminho de superação das armadilhas do empiricismo, positivismo e estruturalismo não se faz sem dificuldades. Tem como pré-requisito o rompimento das concepções metafísicas da realidade social, tanto daquelas que se centram na determinação dos fatos pelos deuses quanto, e principalmente, aquelas que atribuem aos fatos históricos forças ou determinações que não lhes pertencem. Colocada a realidade social no plano histórico, acreditamos que o que Marx (1983) nos aponta no método da economia política se mostra um fermento fecundo e totalmente atual. Trata-se, pois, de distinguir a esfera do conhecimento humano que se move no plano abstrato, no e pelo pensamento, do plano do movimento da realidade social que investigamos. Ascender do empírico ponto de partida, conhecido apenas na sua exterioridade, no seu caráter fenomênico, ao conhecimento efetivo das forças, mediações e determinações múltiplas que produzem essa realidade exige um processo, uma elaboração. Neste processo de elaboração, as categorias teóricas, os conceitos se constituem nas ferramentas indispensáveis, mas não suficientes nem estáticas, da apreensão das determinações que nos permitem penetrar no tecido mais profundo que constitui a realidade investigada. Neste processo as categorias, para não perderem a sua historicidade, necessitam ser reconstruídas, redefinidas e saturadas com as especificidades dadas pela realidade investigada. Tratada a interdisciplinaridade no plano do movimento do real e não do movimento da razão (como determina o racionalismo e idealismo), perceberemos que não há contradição entre a necessidade de delimitação nas ciências sociais na construção dos seus objetos e problemáticas e o caráter unitário do conhecimento. E o conhecimento do social tem um caráter unitário porque os homens, ao produzirem sua existência mediante as diversas relações e práticas sociais, o fazem enquanto uma unidade que
engendra dimensões biológicas, psíquicas, intelectuais, culturais, estéticas, etc. Se do ponto de vista da investigação podemos delimitar uma dessas dimensões, não podemos perder de vista que para que sua compreensão seja adequada é preciso analisá-la na sua necessária relação com as demais dimensões. A necessidade do trabalho interdisciplinar na produção do conhecimento não é prerrogativa apenas das ciências sociais. Todavia, nestas, sem dúvida, ela se mostra mais crucial já que o alcance de uma maior objetividade (sempre relativa, porque histórica), somente se atinge pelo intercâmbio crítico intersubjetivo dos sujeitos que investigam um determinado objeto ou problemática. A busca da objetividade, que significa a explicitação das múltiplas determinações que produzem e explicam os fatos histórico-sociais, ao afirmar o caráter relativo de todo o conhecimento, não apenas nega a tese do relativismo absoluto ou do agnosticismo como afirma a especificidade do método científico nas ciências sociais. A afirmação dessa especificidade do conhecimento nas ciências sociais não só colide com a concepção positivista de conhecimento em suas diferentes e históricas matizes como também nos explicita o terreno problemático mais profundo dentro do qual o esforço de um trabalho interdisciplinar encontra uma materialidade adversa. O inventário crítico da concepção positivista de conhecimento no campo social e, ao mesmo tempo o caráter problemático de produção crítica do conhecimento social, vários autores os têm feito (1 e 2) de forma consistente ainda que nem sempre em acordo em todas as dimensões. Indicamos e recomendamos as análises de Lowy (1986 e 1987), Schaff (1983), Gramsci (1978), Goldman (1978), entre outros. Para o positivismo, as ciências sociais devem se enquadrar no método (neutro, objetivo, imparcial) das ciências da natureza para serem científicas. Como nos apontam as análises dos autores mencionados, não só as ciências sociais constituem-se enquanto tal com uma metodologia própria como também a experimentação tal qual se faz nas ciências da natureza lhes é incompatível. Quando, em nome da objetividade, da neutralidade e da imparcialidade se aplicam os parâmetros das ciências da natureza aos fatos sociais, acaba-se mutilando as determinações fundamentais que permitem entender tais fatos. A natureza da objetividade dos fatos sociais encontra sua validação não na mensuração pura e simples, mas no plano histórico empírico. Mas a especificidade das ciências sociais vem marcada, na sociedade capitalista, como indicamos anteriormente, por uma determinação que torna a produção do conhecimento científico e o necessário trabalho interdisciplinar prisioneiros de uma materialidade social cindida em classes cujos interesses são antagônicos. O processo de conhecimento social vem então marcado pelos interesses, pelas concepções e pelas condições de classe do investigador. O conhecimento não tem como ser produzido de forma neutra tendo em vista que as relações que ele tenta apreender não são neutras. É justamente neste âmbito que percebemos que a interdisciplinaridade na produção do conhecimento nos é uma necessidade
imperativa mas nos é também um problema que está plotado na materialidade das relações capitalistas de produção da existência. Sem penetrarmos na aridez desta materialidade, a questão do debate da interdisciplinaridade fica num limbo sem pecado e sem prazer – limbo da discussão lógico-formal, discursiva. A interdisciplinaridade como problema Os aspectos analisados que indicam a interdisciplinaridade como necessidade de certa forma expõem algumas das dimensões que a definem também como problema. Buscaremos, todavia, neste item explicitar em dois níveis aquilo que situamos como problema ou como entrave que enfrentamos ao nos propormos uma investigação ou um trabalho educativo interdisciplinar. Primeiramente, a interdisciplinaridade se apresenta como problema pelos limites do sujeito que busca construir o conhecimento de uma determinada realidade e de outro pela complexidade desta realidade e seu caráter histórico. Todavia essa dificuldade é potenciada pela forma específica com que os homens produzem a vida de forma cindida, alienada no interior da sociedade de classe. a) Os limites do sujeito e a complexidade dos fatos históricos “À teoria materialista distingue um duplo contexto dos fatos: o contexto da realidade, no qual os fatos existem originária e primordialmente, e o contexto da teoria, em que os fatos são, em um segundo tempo, mediatamente ordenados depois de terem sido precedentemente arrancados do contexto originário do real” (K OSIK , 1976, p. 48). Esse pressuposto é, também, repleto de consequências. Indica que o processo de conhecimento implica uma ação ativa, uma elaboração, um trabalho de construção por parte do sujeito que pretende aprofundar a compreensão dos fatos. Esse processo vem marcado pelos mais diferentes limites do sujeito, que se apresentam no plano da formação (convivência bizarra de diferentes concepções do senso comum cotidiano e de diferentes concepções teóricas e ideológicas), como traços específicos culturais; limites físicos e de tempo, etc. Fazer o inventário crítico desse “conformismo” teórico, ideológico e cultural é uma condição necessária para um processo crítico de produção do conhecimento. Todavia, mesmo que se atinja um elevado nível de capacitação crítica, nenhum sujeito individual dá conta de exaurir determinada problemática. Esse esforço é sempre acumulativo e social. Já por esse ângulo percebemos que o conhecimento humano sempre será relativo, parcial, incompleto. Daí a relevância de se buscar esclarecer, revelar e expor não toda a realidade de um fato, mas sim as suas determinações e mediações fundamentais. Os desafios no plano da realidade que se quer conhecer não são menores sobretudo quando o objeto do conhecimento é a própria práxis humana . Quando nos esforçamos para conhecer determinado aspecto ou fato das múltiplas práticas e relações sociais que os homens estabelecem num determinado tempo, numa determinada cultura, percebemos que mediata ou imediatamente o sujeito que busca conhecer esse aspecto da realidade está nela implicado. Nas sociedades cindidas em classes ou grupos antagônicos,
como veremos a seguir, esta determinação assume importância crucial para o conhecimento interdisciplinar. Certamente o trabalho interdisciplinar, como vimos no primeiro item, se apresenta como uma necessidade imperativa pela simples razão de que a parte que isolamos ou arrancamos “ do contexto originário do real ” para poder ser explicada efetivamente, isto é, revelar no plano do pensamento e do conhecimento as determinações que assim a constituem, enquanto parte tem que ser explicitada na integridade das características e qualidades da totalidade . É justamente no exercício de responder a esta necessidade que o trabalho interdisciplinar se apresenta como uma problema crucial, tanto na produção do conhecimento quanto nos processos educativos e de ensino. E onde se situa esse problema? Primeira e fundamentalmente ele se situa no plano ontológico, ou seja, na forma histórica concreta mediante a qual os seres humanos estabelecem suas relações sociais de produção. Secundária e concomitantemente, este problema se manifesta no plano especificamente epistemológico, teórico e na práxis. b) O plano material-histórico e cultural como problema para o trabalho interdisciplinar na produção do conhecimento social. As determinações histórico-materiais e culturais talvez sejam as que menos são consideradas tanto na produção do conhecimento quanto na sua socialização mediante diferentes processos pedagógicos (na escola, nos partidos, no sindicato, etc.) e justamente as que mais impõem limites. Certamente é neste plano onde os seres humanos se produzem enquanto seres da natureza, enquanto individualidades, mas sempre enquanto seres resultantes das relações sociais – síntese de relações sociais (G RAMSCI , 1978) –, que podemos perceber os limites e as possibilidades do trabalho interdisciplinar. Isso porque é nessa materialidade que imperativamente se produz o ser social. E é nesta materialidade (sempre histórica e social) que os homens produzem suas ideias, teorias e concepções. A produção de idéias, de representações da consciência está, de início, diretamente entrelaçado à atividade material e com o intercâmbio material. [...] os homens são os produtores de suas representações, de suas idéias, etc., mas os homens reais e ativos, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra do que o ser consciente, e o ser consciente dos homens é seu processo de vida real (M ARX ; E NGELS , 1986). E sob que condições históricas tem se construído o processo de vida real dos homens até o presente? Sabemos que, dominantemente, este processo se produziu sob relações de dominação, exclusão e alienação mediante a cisão dos homens em classes ou grupos sociais. É a persistência dessa determinação que levou Marx, há quase um século e meio, a concluir que sob tais condições a humanização dos homens é limitada, move-se no plano de sua pré-história.
Sabemos que as formas históricas que as relações de classe assumem são diversas nos diferentes modos de produção – tribal, antigo, medieval feudal e capitalista. Todos eles, todavia, limitam o livre desenvolvimento humano de todos os homens mediante formas de dominação e exclusão em todos os planos da vida. Não só o dominado é limitado sob essas condições, mas também o são os próprios dominadores. O capitalismo, não importa aqui a sua real diferenciação em sociedades diversas, é hoje o modo de produção social da existência dominante. Tratase de uma sociedade cindida em classes sociais que, sob a igualdade legal e formal, esconde os mecanismos que produzem a exclusão, alienação e desigualdade. Não cabe aqui uma explanação nem da anatomia estrutural do modo de produção capitalista e sua evolução conjuntural no plano mundial e nacional nem de seus mecanismos de alienação e exclusão. O leitor interessado pode buscar esse conhecimento começando pela leitura das obras de Marx e passando por inúmeros e importantes autores internacionais e nacionais que se ocupam da análise das relações sociais capitalistas nos diferentes âmbitos da produção humana, tais como Hobsbawm (1981), Ianni (1981), Cardoso de Melo (1992), entre outros. O que nos importa aqui é demarcar o significado, no plano da produção do conhecimento e do trabalho interdisciplinar, do fato de os homens produzirem o processo de sua vida real sob as relações de classe. A existência da propriedade privada dos meios e instrumentos de produção (de um capitalista em particular ou de uma S.A.), de um lado, permite a compra da força de trabalho de uma classe ou grupos sociais que de sua venda dependem exclusivamente para produzirem sua vida, e, de outro, demarca uma divisão social do trabalho na qual se consume a alienação e a exclusão e dentro da qual os homens não produzem apenas sua vida material mas também sua consciência social, suas ideias e representações. A alienação e exclusão marcam a vida no seu conjunto. Neste plano podemos identificar o obstáculo ou problema mais radical na produção do conhecimento histórico e do trabalho interdisciplinar na sua produção. A cisão que se produz e desenvolve no plano das relações de produção do homem social, enquanto uma totalidade concreta, se explicita necessariamente no plano da consciência, das representações e concepções da realidade. As idéias das classes dominantes são, em todas as épocas, as idéias dominantes: i.e. , a classe que é força material governante da sociedade é ao mesmo tempo sua força governante intelectual. A classe que tem à disposição os meios de produção material controla concomitantemente os meios de produção intelectual, de sorte que, por essa razão, geralmente as idéias daqueles que carecem desses meios ficam subordinadas a ela (M ARX ; E NGELS , 1986). Podemos entender, dentro desse contexto, que a produção e a divulgação do conhecimento não se faz alheia aos conflitos, antagonismos e relações de forças que se estabelecem entre as classes ou grupos sociais. A produção do conhecimento é ela mesma parte e expressão dessa luta. É neste sentido que a teoria se constitui em força material e a consciência crítica se torna um
elemento fundamental e imprescindível na luta pela transformação das relações sociais marcadas pela alienação e exclusão. Evidencia-se aqui, também, de forma mais clara, por que a pretensão positivista da neutralidade do conhecimento social, sob as condições de uma sociedade fraturada, cindida, é historicamente inviável. Essa visão de neutralidade, ao contrário, expressa apenas a representação do tipo de consciência e de conhecimento funcional à reprodução das relações sociais dominantes. Certamente a estruturação da sociedade capitalista não se define apenas pelas classes fundamentais. Estas apenas indicam as forças que explicitam os interesses antagônicos em jogo no processo histórico. Não importa, também, a forma histórica que assumem estas classes no processo de produção. O que importa é não perder de vista que, enquanto houver maisvalia (expropriação de parte das horas de trabalho dos que vendem sua força de trabalho como forma de sobrevivência), não está superada a sociedade de classe nem a exclusão e a alienação. É no plano ontológico, isto é, no processo de produção do ser social, que as relações sociais classistas manifestam sua negatividade mais radical. Tratase de relações que limitam, atrasam e impedem o devenir humano. As representações, as concepções os conhecimentos que se produzem dentro dessa base ontológica são ao mesmo tempo resultado e mediações constituintes da base histórico-social dessas relações. Necessitamos, então, perceber que a superação mais profunda dos limites que encontramos na produção do conhecimento e nos processos pedagógicos de sua socialização somente se dará de forma mais efetiva na medida em que forem sendo rompidas as relações sociais que fornecem a base material desses limites. Superação da divisão entre trabalho manual e intelectual e dos mais diversos processos e mecanismos de exclusão, que no horizonte histórico significa lutar pela superação da sociedade de classe. Num trabalho anterior, ao abordar a questão da dialética materialista histórica na produção do conhecimento em educação (F RIGOTTO , 1991), apresentei de forma sintética as concepções de realidade que se forjam sob a base material indicada anteriormente. Trata-se de formas que, no processo de sua radicalidade, não encontram conciliação no plano do conhecimento porquanto ela não existe no plano da produção do ser social. Esse caráter inconciliável não se radica fundamentalmente no plano da razão, mas sim, e sobretudo, no plano histórico do real e nas práticas sociais no seu conjunto (economia, político, a produção do conhecimento, da arte, dos processos pedagógicos, etc.). E quais são, no âmbito mais geral da problemática aqui analisada, as concepções de realidade e de conhecimento que explicitam formas inconciliáveis de produzir a vida humana no seu conjunto? A concepção mais generalizada de realidade e de conhecimento que expressa as formas dominantes de relações sociais é fragmentária, abstrata, linear e fenomênica. Reduz a concepção de história, realidade e do próprio ser social à arbitrária e parcial concepção burguesa. Os interesses
particulares da classe dominante aparecem como os interesses universais e eternamente válidos para todos. É neste sentido que Marx, na sua análise à economia política burguesa, critica os seus intelectuais por terem transformado a ciência política e econômica numa apologética dos interesses parciais dessa classe (M ARX , 1977). Por essa razão é que esse mesmo autor, ao criticar a filosofia do direito em Hegel, após ter afirmado que a religião funciona como a consciência invertida do mundo, conclui que “ A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto alienação humana nas suas formas não sagradas. [...]. A crítica do céu, transforma-se, desse modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica ao direito, e a crítica da teologia em crítica política” (M ARX , 2005, p. 146). A não atenção ao tecido histórico dentro do qual se produz o conhecimento e as práticas pedagógicas tem nos levado a tratar a questão da interdisciplinaridade dentro de uma ótica fenomênica, abstrata e arbitrária. Aparece como um recurso didático capaz de integrar, reunir as dimensões particulares dos diferentes campos científicos ou dos diferentes saberes numa totalidade harmônica. Não há, dentro desse prisma didatista, nenhum problema em fazer-se, no dizer de Lefebvre, sopa metodológica . Trata-se de uma espécie de fetiche de conceitos que consiste em atribuirlhes um significado neles mesmos. O enfrentamento desse problema tem ficado, no mais das vezes, na busca de novas palavras, como “transdisciplinaridade”, ou nas dicotomias pesquisa quantitativa e qualitativa, pesquisa participante, pesquisa-ação. A questão que queremos apontar aqui é que a mudança do prefixo “inter-” pelo “trans-”, ou a falsa dicotomia quantidade/qualidade, não elide o problema do caráter opaco e alienador da realidade social que analisamos. No próximo item veremos por que essa perspectiva se dissemina na nossa cultura. Certamente neste terreno o debate se perde em questiúnculas especulativas e, por isso, facilmente palatáveis às relações dominantes. É preciso insistir que essa visão integracionista e neutra de conhecimento e de interdisciplinaridade – que é dominante entre nós – não é fortuita e tão pouco fruto do atraso do desenvolvimento científico. É, pelo contrário – consciente ou inconscientemente –, uma forma específica cultural, ideológica e científica de conceber a realidade, de representá-la e de agir concreto na história social. Kosik (1978, p. 100-101) denomina essa forma de apreensão da realidade de metafísica da cultura, ou teoria dos fatores:
Vários aspectos do complexo social se transformam em categorias particulares e independentes; e momentos isolados da atividade social do homem – o direito, a moral, a política, a economia – transformam-se na mente humana em forças independentes que determinam a atividade do homem. Depois de cada aspecto do complexo social ter sido assim isolado e transformado em abstração, investiga-se a conexão recíproca entre os vários aspectos, por exemplo, o condicionamento do direito pelo “fator” econômico. [...]. A síntese operada com tais abstrações metafísicas é, portanto, exterior, e a conexão mútua entre os “fatores” abstratos relativos é apenas formal ou mecanicamente causal. Esse mesmo autor, no debate que estabelece com dois críticos da teoria dos fatores – Plekanov e Labriola –, vai discordar deles, não na apreensão de como tal teoria se explicita, mas na explicação dessa concepção de realidade e de conhecimento. Para Plekanov e Labriola, essa teoria dos fatores descrita resulta do pouco desenvolvimento da ciência. Para Kosik, ao contrário, trata-se de uma forma própria de produção da realidade e de representação no plano do conhecimento na sociedade de classe. A cisão, a exclusão e a fragmentação são partes constituintes no plano material e no plano do conhecimento desta forma de relação social de produção da existência humana. Essa forma de compreender a produção do conhecimento arraigado no tecido da materialidade social nos leva a perceber que a própria classe burguesa fica limitada pelas relações sociais que teima em manter. O modo de pensar fragmentário, linear, produz conhecimentos que, transformados em ação, trazem inúmeros problemas concretos ao conjunto da humanidade. Os problemas que as relações predatórias de produção e a exclusão social crescente trazem no plano social (miséria, violência, epidemias) e também no plano da natureza (desmatamento, poluição do ar, da água e poluição sonora) atingem a própria burguesia. Mais grave que o cinismo e maquiavelismo da burguesia, como nos indica Marx, é a sua pele burguesa . Mas a concepção de realidade e de conhecimento enquanto uma totalidade concreta, que se materializa numa concepção frontalmente antagônica a essa forma dominante de produzir a vida humana no seu conjunto, também vem constrangida e limitada pelas relações sociais dominantes. Situamo-nos aqui no coração de uma contradição cujo desenlace só pode ser resolvido no plano das contradições e de sua superação no processo histórico mediante a práxis revolucionária. Para tornar dominante uma concepção de totalidade concreta de conhecimento é preciso que essa totalidade vá se concretizando no plano da produção da vida social. Isso significa dizer que é, ao mesmo tempo um problema ético-político, econômico, cultural e epistemológico. É nesse terreno que iremos perceber a complexidade do desafio a enfrentar quando temos como convicção ético-política a necessidade de lutarmos em todos os planos para suplantar as relações sociais de alienação e exclusão. Inicialmente, os grupos ou classes dominados não constituem uma classe para si ; pelo contrário, constituem-se em classes trabalhadoras , como nos indica Hobsbawm (1981 e 1987). Isso significa a existência de uma imensa
heterogeneidade de formas de inserção social, de consciência e de interesses. Sob essa realidade existencial as representações da classe dominante constituem-se num fermento permanente no senso comum desses grupos sociais subalternos. É nesse chão do senso comum, que se explicita por um mosaico contraditório de representações, que os intelectuais de novo tipo , de que nos fala Gramsci (1978), podem desenvolver e elevar a cultura e a consciência desses grupos. Essa tarefa, todavia, encontra obstáculos de toda ordem. Notadamente as forças dominantes não só detêm o controle dos aparelhos de hegemonia (mídia, escola, etc.), como também controlam os recursos materiais e financeiros. O avanço nesta luta exige um esforço inaudito de crítica ao modo dominante de produção social da existência, de organização política e de concepções e teorias sobre a realidade. Mas a crítica só tem seu efeito histórico quando se transforma em práxis – reflexão teórico-crítica e ação prática na produção de alternativas ao modo alienante e excludente de produção da vida humano-social. Nesta tarefa, a história recente nos tem dado lições múltiplas, tanto no plano teórico quanto no plano político e ético. Não nos ajudam as posturas ecléticas nem as voluntaristas, doutrinárias e dogmáticas. A busca profunda e radical das determinações e mediações históricas que constituem os fatos sociais não se confundem com o dogmatismo. Essas e outras questões se colocam como desafio permanente para aqueles que buscam conhecer de forma profunda e radical (que vai à raiz) as múltiplas determinações e mediações que produzem os fatos históricos. A interdisciplinaridade como um desafio prático na pesquisa e nos processos pedagógicos Uma das questões intrigantes que possivelmente incomode o leitor deste texto é sobre o sentido do debate apresentado anteriormente, centrado, basicamente, na concepção marxista de história, de realidade humana e de conhecimento. Não estaria isto superado, especialmente após o fracasso do socialismo real e a queda do muro de Berlim? Afinal se trata apenas de uma crise do marxismo ou de sua morte?
Vários autores de formação marxista se ocupam dessas questões hoje. Quase todos eles concordam que efetivamente o marxismo vive uma crise profunda e que não são poucos os erros cometidos no seu desenvolvimento, como também não são poucos os equívocos de Marx e Engels. Todavia, se há um campo onde a contribuição de Marx e Engels tem sido radicalmente profícua e permanece válida mesmo se considerando os equívocos, o dogmatismo e o caráter doutrinário que possa ter assumido por diferentes intérpretes, é justamente a concepção de história, de realidade humana e de conhecimento e de práxis. As contribuições de Kosik (1976; 1982), Lukács (1970; 1974) e Gramsci (1978), num passado não muito remoto, e de Henri Hobsbawm e Perry Anderson, no presente, para citar apenas os que considero mais relevantes, são fecundas nesta direção. No Brasil, autores como Francisco de Oliveira (1987; 1992), Leandro Konder (1986; 1984; 1992), Carlos Nelson Coutinho (1972; 1983; 1992) e José de Souza Martins (1981), entre outros, têm trabalhado essa perspectiva de forma fecunda escapando, ao mesmo tempo, do dogmatismo e doutrinação e do ecletismo. O grande valor do marxismo sempre foi a crítica do capitalismo. [...] Creio que a primeira geração de social-democratas marxistas, no final do século passado, tinha razão ao sustentar que a concepção materialista de história é o coração do marxismo. Pois bem, nesse sentido não há morte do marxismo (H OBSBAWM , Folha de S. Paulo , 21 jun. 1992, p. 6). Colocando-nos nesta perspectiva, vários são os desafios que percebo no plano prático, tanto nos processos de pesquisa quanto nos processos pedagógicos com que nos deparamos para nos situarmos adequadamente no horizonte de um trabalho interdisciplinar que transcenda o plano fenomênico. Limito-me, aqui, a apenas apontar alguns. a) Inventário crítico da matriz cultural e intelectual dominante em nossa sociedade No seu aspecto mais geral a matriz cultural de que somos herdeiros explicita-se por um comportamento peculiar onde o colonizado se identifica com o colonizador. Perenizamos uma relação de submissão. No passado mais remoto, essa submissão dava-se com os colonizadores; hoje, mediante a associação subordinada ao grande capital imperialista e dominantemente com a cultura e modus vivendi americano. Desenvolvemos uma cultura que escamoteia sistematicamente o conflito e as crises, embora a sociedade viva em profundo conflito e crise. Dilui-se o conflito capital-trabalho mediante estratégias paternalistas. Minimiza-se a desigualdade social e a profunda discriminação racial. Faz-se a apologia ao consenso, à conciliação e à harmonia. No plano político essa cultura da harmonia balofa explicita-se nas estratégias da conciliação pelo alto das elites, pelo liberalismo no discurso, que escondem o profundo autoritarismo tanto nos processo ditatoriais quanto nas cíclicas transições para a “democracia” (D EBRUM , 1983). No plano intelectual, que nos interessa sobretudo nesta discussão, essa matriz cultural se manifesta por uma postura de desenraizamento e de ecletismo.
Um dos traços constantes do que será o sistema intelectual brasileiro: a sensação, ingênua ou fraudulenta, conforme o caso, que têm seus participantes de não pertencerem a nenhum grupo social, de estarem como soltos no espaço dos interesses sociais (C OSTA L IMA, 1981). A postura eclética é ao mesmo tempo produto e reforço tanto do desenraizamento quanto da apologia à conciliação e à harmonia. Sérgio Buarque de Holanda (1936) observa a esse respeito ser frequente “entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares”. Esses fortes traços culturais marcados pelo ecletismo se explicitam, de outra parte, pela crença de que a apreensão da verdade dos fatos sociais de forma imparcial resulta “de um mosaico montado a partir de inúmeros pensadores, o que além de livrar-nos dos perigos dos sistemas nos permitiria um enriquecimento indefinido aproveitando-se de cada sistema o melhor” (G OMES , 1980). Propostas interdisciplinares no campo da pesquisa ou na prática pedagógica que não romperem com essa tradição estão fadadas a reforçar o senso comum do ecletismo. b) Os desafios na prática da pesquisa e na ação pedagógica Por onde passa, em nosso trabalho de pesquisa, de docência e nas nossas práticas político-pedagógicas (no âmbito partidário, sindical, etc.) a superação desta postura de desenraizamento e do ecletismo? Pelo dogmatismo ou pela teoria reduzida à doutrinação? Certamente, como já indicamos, a história vem nos mostrando que esse caminho não nos levou e não nos levará longe. Como ser teoricamente radical, sem o que não nos situamos no campo da construção científica, e não ser dogmático e doutrinário, já que isso é condição, também , sine qua non da elaboração crítica e científica? O encaminhamento desse complexo problema, que se explicita, por vezes, como um enigma, é adequadamente formulado pelos autores indicados no início deste item (3) e que, desenvolvendo suas análises no interior da “ radicalidade ” do materialismo histórico, rompem ao mesmo tempo com o ecletismo e com o dogmatismo. Particularmente, a magistral e pontual síntese de Leandro Konder sobre O futuro da filosofia da práxis (K ONDER , 1992) nos explicita que é na e pela práxis, na formulação original de Marx, que podemos, sem abandonar a radicalidade teórica e mesmo política, e sem concessões ao ecletismo, dialogar criticamente com análises que se fundam em outras concepções da realidade. Konder (1992) nos mostra que esse caminho contraditório já era apontado por Gramsci há 60 anos. “Na discussão científica, já que se supõe que o interesse seja a busca da verdade e o progresso da ciência, demonstra ser mais avançado aquele que adota o ponto de vista segundo o qual o adversário pode expressar uma exigência que deve ser incorporada, ainda que como um momento subordinado, à própria construção”.
Se essa é uma direção adequada, fica claro que a condição prévia para o trabalho interdisciplinar, tanto em nível de pesquisa como no trabalho pedagógico, é que as concepções de realidade, o conhecimento e os pressupostos e categorias de análise sejam criticamente explicitados. O convívio democrático e plural necessário em qualquer espaço humano, sobremaneira desejável nas instituições de pesquisa e educacionais, não implica junção artificial, burocrática e falsa de pesquisadores ou docentes que objetivamente se situam em concepções teóricas e forçosamente ideológica e politicamente diversas. A diluição forçada do conflito e da diversidade não ajuda no avanço do conhecimento nem na prática democrática. Se no campo da produção científica os desafios do trabalho interdisciplinar são grandes, quando passamos para o cotidiano do trabalho pedagógico percebemos que estamos diante de limites cruciais. Alguns trabalhos recentes (F OLLARI , 1991; F REITAS, 1989; W ARDE , 1987) nos apontam esses desafios e limites. O limite mais sério para a prática do trabalho pedagógico interdisciplinar situa-se na dominância de uma formação fragmentária, positivista e metafísica do educador e nas condições de trabalho (divisão e organização) a que está submetido. De que conformismo é conformista , nos planos cultural, teórico e prático esse educador? É novamente Gramsci (1978) que nos surpreende ao afirmar que o problema crucial da escola não é sobretudo de reforma curricular, mas da existência de profissionais que sejam ao mesmo tempo técnicos e dirigentes . O especialismo na formação e o pragmatismo e ativismo que imperam no trabalho pedagógico constituem-se em resultado e reforço da formação fragmentária e forças que obstaculizam o trabalho interdisciplinar. Esse viés de formação vai situar a questão pedagógica do trabalho interdisciplinar não no processo de produção e reprodução do conhecimento , mas nos métodos e técnicas de transmissão. Ora, como aponta Warde (1987), o processo de organização, de distribuição didática e metódica e de articulação do conhecimento, para não ser aleatório, deve estar necessariamente ligado aos processos concretos de produção e reprodução do conhecimento dos sujeitos sociais envolvidos no processo de aprendizagem. “O educador tem que aprender a fazer a articulação entre o sujeito que aprende e o sujeito da aprendizagem”.
No plano da organização do processo pedagógico, o resultado da concepção fragmentária e positivista da realidade vai se expressar de um lado na interminável lista de disciplinas e, de outro, na divisão arbitrária entre disciplinas de conteúdo geral, humano e disciplinas de conteúdo específico e técnico. Caminha-se aqui na direção oposta ao que nos indica o processo científico, na perspectiva que discutimos neste texto. Os conhecimentos de maior universalidade são exatamente aqueles que têm maior nível de abstração. Isso significa dizer aqueles conhecimentos que em sua unidade engendram a diversidade. Apreendidas e sedimentadas, essas bases têm a virtualidade de nos permitir encaminhar criativamente a solução de múltiplos problemas. Não seria esse o sentido de todo o esforço do trabalho interdisciplinar? Se essa não for a direção, temo que a interdisciplinaridade seja confundida com justaposição arbitrária de disciplinas e conteúdos. A superação desses desafios certamente implica a capacidade de atuar dentro da dialética do velho e do novo , ou seja, na crítica à forma fragmentária de produção da vida humana em todas as suas dimensões e, especificamente, na produção e socialização do conhecimento e na construção de novas relações sociais que rompam com a exclusão e alienação. O caminho, uma vez mais, no âmbito mais geral nos é apontado pela filosofia da práxis. O debate educacional das últimas décadas avançou bastante nesta direção. Sobretudo a discussão sobre escola unitária e formação politécnica tem significado um esforço de crítica à forma dominante de educação fragmentária. Percebemos, também, que na medida em que novos atores e forças sociais, contra-hegemônicos, assumem espaços no plano político organizativo da sociedade, essas concepções encontram maior espaço de seu exercício e de seu efeito e também dos seus limites e possibilidades. Referências ANDERSON, Perry. C onsiderações sobre o Marxismo Ocidental . Porto: Edições Afrontamento, 1975 BENEVIDES, Mara Victoria. A conversa mole da política (conciliação e outros temas). Lua Nova , v. 1, n. 1, abr./jun. 1984, p. 14-17. CARDOSO de Mello, J.M. O Capitalismo Tardio . São Paulo: Brasiliense, 1992. COUTINHO, Carlos Nelson. O Estruturalismo e a Miséria da Razão . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1962. COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal . Rio de Janeiro: Salamandra, 1984. COUTINHO, Carlos Nelson. Socialismo e democracia . São Paulo: Cortez, 1992. DEBRUM, H. A conciliação e outras estratégias . São Paulo: Brasiliense, 1983.
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⁶⁹ Gaudêncio Frigotto
Foi-me solicitado redigir um pequeno texto cujo objetivo básico é suscitar o debate sobre o enfoque dado pela dialética. Mas a que dialética vou referir-me? A concepção de Zenon de Eléa (490-430 a.C.) ou a de Sócrates (469-399 a.C.), considerados fundadores da dialética entendida como “arte do diálogo”, ou a “arte de, no diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de definir e distinguir claramente os conceitos envolvidos na discussão”? (K ONDER , 1981, p. 7). A dialética de Heráclito de Éfeso (540 a.C.), cuja acepção incorpora o seu sentido moderno, ou seja “o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação”? (K ONDER , 1981, p. 8). A dialética de Hegel, de Feuerbach, ou a dialética de Marx? Propor-se falar da dialética como método de investigação é, ao mesmo tempo, abordar um tema candente e relevante política, ideológica e teoricamente e, contraditoriamente, expor-se a um conjunto de riscos dentre os quais o fundamental é o da banalização ou da simplificação. Em recente publicação sobre trabalho e conhecimento, assinalo algumas dimensões relativas à simplificação tanto do entendimento quanto da aplicação, no campo da investigação educacional, da dialética materialista histórica: Se é verdade, de modo geral, que as décadas de 1970 e 1980 sinalizam um avanço na construção teórica que permitiu uma crítica às bases do pensamento humanista tradicional e moderno, ao positivismo, ao funcionalismo e às visões estruturais-reprodutivistas da educação, talvez não seja menos verdade que esta construção, que se funda numa perspectiva do materialismo histórico, é de domínio (relativo) de um reduzido número de intelectuais da área. A crise de aprofundamento teórico se manifesta num nível mais imediato pela homogeneização superficial do discurso crítico, mas cuja prática reflete a interiorização das concepções e categorias do humanismo, do positivismo e do funcionalismo (F RIGOTTO , 1987, p. 15). Para maior clareza, é preciso, então, delimitar de imediato de onde parto, ou seja, de que dialética vou falar e aonde quero chegar. A) De onde parto Não vou falar da dialética em geral nem da dialética pré-socrática, e nem mesmo vou atentar-me à imensa e importante contribuição de Hegel e Feuerbach. Vou prender-me só à dialética materialista histórica ou, mais precisamente, ao materialismo histórico. Ao referir-me somente à dialética materialista histórica, quero demarcar aquilo que entendo como a ruptura entre a ciência da história ou do humano-social e as análises metafísicas de diferentes matizes e níveis de compreensão do real – que vão do empiricismo ao positivismo, ao idealismo, ao materialismo vulgar e ao estruturalismo.
Essa delimitação não autoriza, porém, que se coloquem numa mesma “bruaca” esses diferentes enfoques aludidos nem que tais abordagens não deem conta de certo nível de compreensão da realidade. As visões pseudoconcretas, metafísicas ou empiricistas da realidade são determinadas leituras desta realidade. É preciso frisar, porém, que os métodos que se fundam nessa perspectiva não são epistemologicamente radicais. Não atingem leis fundamentais de organização, desenvolvimento e transformação dos fatos e problemas histórico-sociais. Não se pode também ignorar que é impossível pensar Marx e sua obra sem a imensa contribuição de Hegel, do qual é discípulo e, posteriormente, severo crítico, ou, mais amplamente, da filosofia alemã, da economia política clássica inglesa e do pensamento socialista francês. Finalmente, como advertência prévia em relação ao que me refiro, é importante enfatizar que a dialética, para ser materialista e histórica, não pode constituir-se numa “doutrina” ou numa espécie de suma teológica. Não se pode constituir em uma camisa de força fundada sob categorias gerais não historicizadas. Para ser materialista e histórica, tem de dar conta da totalidade, do específico, do singular e o do particular. Isso implica dizer que as categorias totalidade, contradição, mediação, alienação não são apriorísticas, mas construídas historicamente. B) Aonde quero chegar? Como subsídio para o debate, no tempo limitado de exposição, quero demarcar primeiramente a dialética materialista histórica enquanto uma postura ou concepção de mundo; enquanto um método que permite uma apreensão radical (que vai à raiz) da realidade e enquanto práxis, isto é, unidade de teoria e prática na busca da transformação e de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade histórica. Num segundo momento, trabalhar a ideia do “monismo materialista” em contraposição à concepção do pluralismo e ecletismo metodológicos, uma espécie de “sopa metodológica” ( L EFEBVRE, 1966, p. 21). Por fim, vou ater-me a uma sinalização de como, na prática de uma pesquisa que desenvolvemos, se tenta incorporar a perspectiva dialética. Neste item interessa-me sobretudo mostrar que não há razões necessárias para se ritualizar a pesquisa em etapas estanques ou mistificar o formalismo dos projetos. Não vou fazer, nesta exposição, a não ser sob a forma de alusões bastante rápidas, um inventário de como a perspectiva da dialética materialista histórica se efetiva atualmente no campo educacional. Essa discussão, relativa aos últimos 20 anos, é efetivada, em boa medida, por Nízia H. Nagel no trabalho de doutoramento Quando o conteúdo vai além da frase (1986). A dialética materialista histórica: uma postura, um método e uma práxis Para efeito de compreensão e de organização didática, e como recurso de exposição formal, distinguem-se aqui dimensões de uma mesma unidade: o materialismo histórico enquanto postura, enquanto método e enquanto práxis.
A dialética materialista histórica enquanto postura ou concepção Uma análise da história do pensamento humano vai nos indicar duas grandes linhas de construção filosófica que demarcam concepções opostas sobre o mundo, a realidade no seu conjunto – uma metafísica e outra dialética materialista. Esta contraposição é elaborada por Marx e Engels e, posteriormente, desenvolvida por pensadores marxistas. A primeira concepção, que “reúne visões metafísicas de todos os matizes”, parte de uma compreensão organicista e fisicalista da realidade social, das ideias e do pensamento. O pensamento constitui um reino original irredutível por essência ao da realidade material circundante. Neste caso as ideias têm existência absoluta, quer pertençam à própria constituição do espírito, isto é, sejam inatas, quer lhe venham, pelo menos algumas, de fora, mas por um mecanismo que as institui em essências inteligíveis cujas leis imanentes seriam as verdadeiras leis da realidade (V IEIRA P INTO , 1979, p. 32 e ss.). Essa postura, denominada, pelos autores enunciados, de metafísica, orienta os métodos de investigação de forma linear, a-histórica, lógica e harmônica. Por essa perspectiva, ainda que com diferenças significativas de complexidade e alcance, incluem-se as abordagens empiricistas, positivistas, idealistas, ecléticas e estruturalistas. Cada uma, a seu modo, estabelece representações sobre a realidade. Essas representações, como assinalamos anteriormente, não atingem as leis de organização, desenvolvimento e transformação dos fatos sociais. Esta concepção mais geral da investigação no interior das ciências sociais se apresenta sob o pressuposto de que os fenômenos sociais se regem por leis “do tipo natural” e, enquanto tais, são passíveis de observação neutra e objetiva. A separação de fatos e valores, ideologia e ciência, sujeito e objeto não só é possível, mas necessária à objetividade. Esse pressuposto concretiza-se na pesquisa por uma metodologia que reduz o objeto de estudo a unidades, individualidades, fatores ou variáveis isoladas, autônomos e mensuráveis. “Uma tal concepção de mundo faz ver todos os fenômenos, formas, categorias como eternamente isolados uns dos outros, como eternamente imutáveis” (M AO T SÉ- T UNG , 1974, p. 33). A segunda perspectiva – materialista histórica – funda-se na concepção de que o pensamento, as ideias, são “o reflexo”, ⁷⁰ no plano da organização nervosa superior, das realidades e leis dos processos que se passam no mundo exterior, os quais não dependem do pensamento, têm suas leis específicas, as únicas reais, de modo que só compete à reflexão racional apoderar-se das determinações existentes entre as próprias coisas e dar-lhes expressão abstrata, universalizada, que corresponde ao que se chamará então de “ideias” e “proposições” (V IEIRA P INTO , 1979).
Tome-se o conceito de reflexo sob sua dimensão genética, sociológica ou gnosiológica. Em qualquer dessas acepções está implícita a admissão da existência da realidade objetiva, isto é, uma realidade que existe independentemente das ideias e do pensamento. É importante compreender, porém, que o reflexo não é toda a realidade, mas constitui-se na apreensão subjetiva da realidade objetiva. Ou seja, o reflexo implica a subjetividade. A dialética situa-se, então, no plano de realidade, no plano histórico, sob a forma de trama de relações contraditórias, conflitantes, de leis de construção, desenvolvimento e transformação dos fatos. O desafio do pensamento – cujo campo próprio de mover-se é o plano abstrato, teórico – é trazer para o plano do conhecimento essa dialética do real. É sobretudo na Ideologia alemã que Marx e Engels estrutura a concepção básica do materialismo histórico e de sua dialética materialista. A concepção materialista funda-se no imperativo do modo humano de produção social da existência. O primeiro pressuposto de toda a história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza. Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião, ou por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida; passo esse que é condicionado por sua organização corporal (M ARX ; E NGELS , 1986). Após examinar as diferentes formas de divisão de trabalho nas sociedades tribais, antiga e feudal, Marx completa esta concepção, sinalizando: O fato, portanto, é o seguinte: indivíduos determinados, que como produtores atuam de modo também determinado, estabelecem entre si relações sociais e políticas determinadas. É preciso que em cada caso particular a observação empírica coloque necessariamente em relevo empiricamente e sem qualquer especulação ou mistificação a conexão entre a estrutura social e política e a produção [grifo meu]. [...] A produção de ideias, de representações da consciência está, de início, diretamente entrelaçada à atividade material e como o intercâmbio material. [...] Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais e ativos, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência jamais pôde ser outra do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real (M ARX ; E NGELS , 1986). Essas duas concepções básicas orientam, como assinalamos anteriormente, as formas metodológicas conflitantes e antagônicas de apreender o real. Enquanto as concepções “metafísicas” se fixam no fenômeno, no mundo da aparência ou na aparência exterior dos fenômenos, na existência positiva, no movimento visível, na representação, na falsa consciência, na sistematização doutrinária das representações (ideologia), a concepção materialista histórica, respectivamente, se fixa na essência, no mundo real, no conceito, na consciência real, na teoria e ciência (K OSIK , 1976, p. 16).
Em termos de categorias básicas, a primeira concepção se funda sob a linearidade, a harmonia, o fator, a a-historicidade, e a segunda, sob as categorias totalidade, contradição, mediação, ideologia, práxis, etc. A dialética materialista histórica enquanto um método de análise O método de análise, na perspectiva dialética materialista, não se constitui na ferramenta ascética, uma espécie “de metrologia” dos fenômenos sociais, que nas perspectivas que aqui denomino de metafísicas é tomada como garantia da “cientificidade, da objetividade e da neutralidade”. Na perspectiva materialista histórica, o método está vinculado a uma concepção de realidade, de mundo e de vida no seu conjunto. A questão da postura, neste sentido, antecede ao método. Este se constitui em uma espécie de mediação no processo de apreender, revelar e expor a estruturação, o desenvolvimento e transformação dos fenômenos sociais. Antes, pois, de responder-se à questão fundamental que sinaliza a natureza do processo dialético de conhecimento – como se produz a realidade social –, é necessário responder-se qual a concepção que temos da realidade social. É por isso que, como nos assinala Gramsci, “uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em uma atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E, portanto, antes de tudo, como crítica do ‘senso comum’” (G RAMSCI , 1978, p. 12). Romper com o modo de pensar dominante ou com a ideologia dominante é, pois, condição necessária para instaurar-se um método dialético de investigação. Aqui reside, a meu ver, uma armadilha, entre outras, na qual se tem caído comumente no processo de investigação nas ciências sociais, de modo geral, e na área de educação em especial. Trata-se de não dar a devida importância ao inventário crítico das diferentes e conflitantes concepções de realidade gestadas no mundo cultural mais amplo, nas concepções religiosas, nos diferentes sensos comuns, especialmente o da concepção positivista da ciência. ⁷¹ Pela própria concepção de mundo pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homem-massa ou homens coletivos. O problema é o seguinte: qual o tipo histórico do conformismo e do homem-massa do qual fazemos parte? [...] O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como um produto histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos em seu benefício no inventário. Deve-se fazer, inicialmente, esse inventário (G RAMSCI , 1978, p. 12). O não entendimento do método ligado à concepção da realidade e o não inventário rigoroso dessa concepção não só definem claramente o horizonte positivista que separa o sujeito do objeto, a consciência da realidade, como nos indicam que muitos trabalhos de investigação que se definem como críticos e dialéticos seguem, na prática, os parâmetros positivistas.
A expressão mais clara que tenho para assinalar a dominância das concepções metafísicas na formação dos educadores é que, na concepção de nossos currículos de graduação e de pós-graduação, há grande ênfase e obrigatoriedade na disciplina de métodos e técnicas de pesquisa. A concepção de que existe a possibilidade de ensinar métodos e técnicas alheios a um objeto a ser construído nos indica a origem positivista da organização curricular e do processo de conhecimento. Todavia, é preciso assinalar que incorre no mesmo erro uma outra tendência – aparentemente crítica – que consiste na ideia de que primeiro temos de aprender a teoria, as categorias, o referencial teórico, depois passamos a investigar a realidade. Enfatizada a ideia de que não existe método alheio a uma concepção de realidade e que, como vimos, duas concepções fundamentais se contrapõem na história do pensamento (a metafísica de diferentes matizes e a dialética), vamos responder à questão: em que consiste o método dialético materialista? O entendimento do que seja o método dialético materialista inicia sua explicitação mediante a questão: como se produz concretamente um determinado fenômeno social? Ou seja, quais as “leis sociais”, históricas, quais as forças reais que o constituem enquanto tal? Essa questão indica, ao mesmo tempo, no âmbito das ciências humano-sociais, o caráter sincrônico e diacrônico dos fatos, a relação sujeito e objeto, em suma, o caráter histórico dos objetos que investigamos. Marx, como fundador do materialismo histórico, curiosamente, não se ocupa, senão em poucas passagens, em falar de O capital . Marx fala de seu método de forma sucinta, através de um de seus críticos: Para Marx, só importa uma coisa: descobrir a lei do fenômeno de cuja investigação ele se ocupa. E para ele é importante não só a lei que os rege, à medida que eles têm forma definida e estão numa relação que pode ser observada em determinado período de tempo. Para ele o mais importante é a lei de sua modificação, de seu desenvolvimento, isto é, transição de uma forma para outra, de uma ordem de relações para outra. Uma vez descoberta essa lei, ele examina detalhadamente as conseqüências por meio das quais ela se manifesta na vida social [...]. Por isso Marx só se preocupa com uma coisa: provar mediante escrupulosa pesquisa científica a necessidade de determinados ordenamentos de relações sociais e, tanto quanto possível, constatar de modo irrepreensível os fatos que lhe servem de ponto de partida e de apoio (M ARX , 1983, p. 14). Após a citação do seu crítico, Marx pergunta: “O que descreveu ele senão o método dialético?”. Aqui se explicita, a meu ver, a dialética materialista, ao mesmo tempo como uma postura, um método de investigação e uma práxis, um movimento de superação e de transformação. Há, pois, um tríplice movimento: de crítica, de construção do conhecimento “novo” e da nova síntese no plano do conhecimento e da ação.
Um primeiro aspecto a ser caracterizado nesta compreensão de método é que a “dialética” é um atributo da realidade, e não do pensamento. Como assinala Kosik (1976, p. 9), “a dialética trata da coisa em si”. Mas a “coisa em si” não se manifesta imediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão é necessário fazer não só certo esforço, mas também um détour . Por este motivo o pensamento dialético distingue a representação do conceito da coisa... (K OSIK , 1976). E como se atinge a “coisa em si”? Como se dá esse détour para apreender as leis dos fenômenos na sua concretude, na sua totalidade concreta? Esse détour implica necessariamente ter como ponto de partida os fatos empíricos que nos são dados pela realidade. Implica, em segundo lugar, superar as impressões primeiras, as representações fenomênicas desses fatos empíricos e ascender ao seu âmago, às suas leis fundamentais. O ponto de chegada será não mais as representações primeiras do empírico ponto de partida, mas o concreto pensado. Essa trajetória demanda do homem, enquanto ser cognoscente, um esforço e um trabalho de apropriação, organização e exposição dos fatos. Por isso mesmo, “o conhecimento da realidade histórica é um processo de apropriação teórica – isto é, de crítica, interpretação e avaliação dos fatos –, processo em que a atividade do homem, do cientista é condição necessária ao conhecimento objetivo dos fatos” (K OSIK , 1976, p. 45). É preciso, então, não confundir o movimento do real – com suas contradições, conflitos, antagonismos – com o movimento do pensamento no esforço de apreender esse movimento da forma mais completa possível. O método de ascensão do abstrato ao concreto é o método do pensamento, no elemento da abstração. A ascensão do abstrato ao concreto não é uma passagem do plano (sensível) para outro plano (racional): é um movimento no pensamento e do pensamento. Para que o pensamento possa mover-se do abstrato ao concreto, tem de mover-se no seu próprio elemento, isto é, no plano abstrato, que é a negação da imediaticidade, da evidência e da concreticidade sensível. A ascensão do abstrato ao concreto é um movimento para o qual todo o início é abstrato e cuja dialética consiste na superação dessa abstratividade. O progresso da abstratividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto (K OSIK , 1976, p. 30). Não é fortuita a distinção, ainda que formal, que Marx faz entre método de investigação e de exposição. É na investigação que o pesquisador tem de recolher a “matéria” em suas múltiplas dimensões; apreender o específico, o singular, a parte e seus liames imediatos ou mediatos com a totalidade mais ampla; as contradições e, em suma, as leis fundamentais que estruturam o fenômeno pesquisado. A exposição busca ordenar de forma lógica e coerente a apreensão que se fez da realidade estudada. É sem dúvida necessário distinguir o método de exposição, formalmente, do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria,
analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento do real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez possa parecer que seja tratando de uma construção, a priori (M ARX , 1983, p. 20). Uma dificuldade concreta que percebo nos trabalhos de pesquisa que se esforçam por assumir uma perspectiva dialética é, primeiramente, a apreensão do caráter histórico do objeto de conhecimento. Isso faz com que as categorias totalidade, contradição, mediação sejam tomadas abstratamente e, enquanto tal, apenas especulativamente. Com isso confunde-se a necessária relação parte-todo e todo-parte com a ideia de um método capaz de exaurir todos os infinitos aspectos de uma determinada realidade, captar todas as contradições e todas as mediações. Ignora-se, assim, o caráter relativo, parcial, provisório, de todo o conhecimento histórico, e que o conhecimento científico não busca todas as determinações, as leis que estruturam um determinado fenômeno social, e sim suas determinações e leis fundamentais. A distinção entre o fundamental e o secundário, o necessário e o fortuito, é princípio epistemológico sem o qual não é possível construir conhecimento científico. Pode-se perceber, como decorrência dessa confusão, que muitos trabalhos de pesquisa na área de educação – principalmente dissertações e teses –, no esforço de superação do empiricismo e positivismo, se esmeram em expor um quadro referencial de análise. Ora, quando esse quadro de análise é feito tomando-se as categorias abstratamente, o resultado de análise é uma relação externa com essas categorias, ou elas funcionam como camisas de força dentro da qual os fatos reais têm de se enquadrar. Para que o processo de conhecimento, seja dialético, a teoria, que fornece as categorias de análise, necessita, no processo de investigação, ser revisitada, e as categorias reconstituídas. Ou por acaso a “totalidade”, as contradições e as mediações são sempre as mesmas? Que historicidade é essa? A dialética materialista histórica enquanto práxis No processo dialético de conhecimento da realidade, o que importa fundamentalmente não é a crítica pela crítica, o conhecimento pelo conhecimento, mas a crítica e o conhecimento crítico para uma prática que altere e transforme a realidade anterior no plano do conhecimento e no plano histórico-social. A teoria materialista histórica sustenta que o conhecimento efetivamente se dá na e pela práxis. A práxis expressa, justamente, a unidade indissolúvel de duas dimensões distintas, diversas no processo de conhecimento: a teoria e a ação. A reflexão teórica sobre a realidade não é uma reflexão diletante, mas uma reflexão em função da ação para transformar. A ação, prática como critério de avaliar a objetividade do conhecimento, é insistentemente clara em Marx e Engels (1979), Lênin (1974), Gramsci (1978) e Mao Tsé-Tung (1974). Nas teses II e XI sobre Feuerbach, Marx situa a ação refletida (a práxis) como critério de verdade.
A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. E na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade do pensamento é uma questão puramente escolástica (tese II). Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo (tese XI) (M ARX ; E NGELS , 1979, p. 12 e 14). A ruptura radical da filosofia da práxis, em relação ao pensamento filosófico anterior, é exatamente que a preocupação fundamental é refletir, pensar, analisar a realidade com o objetivo de transformá-la. Para Lênin, o critério básico da verdade do conhecimento é a prática social. A prática constitui-se no aspecto básico da concepção materialista do conhecimento. “A prática é superior ao conhecimento (teórico), pois ela tem não somente a dignidade do geral, mas também a do real imediato” (L ÊNIN apud M AO T SÉ- T UNG , 1979). Mao Tsé-Tung vale-se do provérbio chinês – “se não se penetra no covil do tigre, não se lhe podem apanhar as crias” – para enfatizar que o conhecimento desligado da prática é inconcebível (1979). O trabalho, as relações sociais de produção se constituem, na concepção materialista histórica, nas categorias básicas que definem o homem concreto, histórico, os modos de produção da existência, o pressuposto do conhecimento e o princípio educativo por excelência. Para a teoria materialista, o ponto de partida do conhecimento, enquanto esforço reflexivo de analisar criticamente a realidade e a categoria básica do processo de conscientização, é a atividade prática social dos sujeitos históricos concretos. A atividade prática dos homens concretos constitui-se em fundamento e limite do processo de conhecimento. A compreensão da dialética materialista histórica, ao mesmo tempo como uma concepção de realidade, como método de perquirir e expor o real e como práxis transformadora, nos sinaliza alguns pontos, no campo educacional, que merecem atenção. Limito-me aqui apenas a enunciá-los. Um primeiro aspecto que se pode observar no campo da pesquisa é que há uma tendência de tomar o “método”, ainda que dialético, como um conjunto de estratégias, técnicas, instrumentos. O método aparece isolado, e a questão da concepção de realidade, de mundo, a questão ideológica, as relações de poder e de classe sequer aparecem. A teoria, as categorias de análise, o referencial teórico, por outro lado, aparecem como uma camisa de força, um capítulo primeiro. A teoria, as categorias não são historicizadas, isto é, construídas, e por isso se tornam vazias de historicidade, abstratas, especulativas.
Há ainda uma falsa contraposição entre qualidade e quantidade, e uma confusão entre uma leitura empiricistas da realidade e a realidade empírica. Isso tem desdobramento num certo senso comum de que o método dialético trabalha só com análises qualitativas. Finalmente, há duas dimensões que merecem ser pensadas em relação ao processo de conhecimento enquanto práxis no campo educacional. Trata-se, primeiro, de perguntarmos qual o sentido “necessário” e prático das investigações que se fazem nas faculdades, centros, mestrados e doutorados de educação. Não se trata do sentido utilitarista e apenas imediato, ou de uma espécie de ativismo. Trata-se de indagar sobre o sentido histórico, social, político e técnico de nossas pesquisas. A serviço de que e de quem despendemos nosso tempo, nossas forças e grande parte de nossa vida? A outra questão, mais complexa, a meu ver, é a necessidade de examinarmos com maior rigor qual de fato a novidade que traz hoje a “metodologia da pesquisa-ação”. Em que nos ajuda aprofundar o entendimento da pesquisa como crítica, como produção de conhecimento e como sustentação de uma ação prática mais consequente? Em que, por outro lado, pode banalizar o processo mesmo de apreensão rigoroso dos fatos que analisamos? Em que consiste a tese do monismo materialista? Um último ponto, mal-apreendido, em relação ao processo materialista histórico de conhecimento, é a questão do monismo metodológico. Esta é uma questão crucial, sobretudo do momento presente dos confrontos de enfoques na pesquisa e na prática educacional. A simples exposição dos termos “monismo materialista” soa, ao senso comum, como uma posição dogmática, doutrinária e determinística. É preciso, todavia, compreender, de dentro do materialismo histórico, o significado de tal enunciado. A tese do monismo materialista funda-se na concepção de que o real, os fatos sociais – produzidos pelos homens em determinadas circunstâncias – têm leis históricas que os constituem assim e não diferentemente, e que tais leis condicionam seu desenvolvimento e sua transformação. Dentro desse pressuposto histórico, a tese do monismo materialista sustenta que a estrutura econômica – entendida como o conjunto de relações sociais (políticas, ideológicas, culturais, educacionais) que os homens estabelecem na produção/reprodução material de sua existência – é que define, em última instância, o complexo social em suas diferentes dimensões. ⁷² Essa concepção “pode constituir-se na base de uma coerente teoria das classes sociais e ser critério objetivo para a distinção entre mutações estruturais – que mudam o caráter da ordem social – e mutações derivadas, secundárias, que modificam a ordem social, sem porém mudar essencialmente seu caráter” (K OSIK , 1976, p. 105). A tese do monismo materialista indica, ao mesmo tempo: a) Que o caráter radical do conhecimento histórico se explicita mediante rupturas, críticas ao status quo ante , e que por isso mesmo o embate
teórico revela que há teorias que explicitam e revelam a realidade de forma mais completa, ainda que relativa, e outras que são mais parciais ou até obnubilam a realidade dos fatos; b) Que a ciência do social é uma ciência não neutra. A ciência e o processo científico não são imunes aos embates reais que se dão na sociedade de classe. Neste sentido, o conhecimento histórico-crítico é um instrumento de luta; c) Que o materialismo histórico constitui-se na ciência do proletariado, classe social empenhada com a superação da sociedade de classes e instauração da sociedade socialista; d) Que as concepções do “pluralismo ou do ecletismo metodológico” representam apenas uma variação ou uma das expressões das perspectivas metafísicas. A ideia central do pluralismo é de que o complexo social se estrutura tendo como determinação básica ora o fator econômico, ora os fatores políticos, culturais, religiosos, psicossociais. Historicamente haveria uma alternância de “fatores”. Dewey ( apud K OSIK , 1976, p. 104-105) expressa claramente a tese pluralista quando afirma: A questão consiste em saber se algum dos fatores é tão preponderante a ponto de constituir a força preponderante, enquanto os outros fatores são consequências secundárias e derivadas. Existe um fator ou uma fase de cultura que seja preponderante ou que crie e coordene os outros fatores? Ou a economia, a moral, a arte, a ciência etc., são apenas aspectos da interação de fatores, cada um dos quais atua sobre os outros e é influenciado pelos outros? A postura do ecletismo metodológico, que Lefebvre denomina “sopa metodológica”, historicamente representa uma aparente concessão do “mito positivista” de uma ciência social neutra, imparcial, em face do avanço do pensamento marxista. Quem formula de modo mais organizado este pensamento é Mannheim, que vai defender a ideia de que os diferentes pontos de vista são complementares. Pleiteia, então, a “integração dos diferentes pontos de vista mutuamente complementares num todo compreensivo”. Quem faria essa síntese seriam os intelectuais que atuam especialmente nas universidades – uma espécie de inteligência sem vínculo (L ÖWY , 1985). A concepção do “pluralismo formal” e do ecletismo consubstanciado no senso comum, na crença de que a “verdade” resulta de um mosaico montado pela junção de diferentes posturas, ideologias, perspectivas metodológicas tem sido, historicamente, no Brasil, uma ideia das elites dominantes no campo político, cultural, e se manifesta fortemente nos centros de pesquisa e universidades. Trata-se de posturas ainda dominantes.
No campo político esse traço histórico-cultural das elites se manifesta nas teses da “conciliação” (D EBRUM , 1983), consenso, negociação e entendimento (B ENEVIDES , 1984). O que está ocorrendo no país, hoje, na Constituinte, reedita essa tendência histórica tanto no campo econômicosocial como no político, cultural e educacional. No âmbito da pesquisa social e educacional essas concepções se explicitam pelo caráter inorgânico dos currículos e dos cursos; no privilegiamento de cursos de “metodologia” de pesquisa desenraizados e desvinculados do inventário das concepções, ideologias e dos diferentes sensos comuns existentes; pelo formalismo e mistificação dos projetos de pesquisa; por uma compreensão falsa de interdisciplinaridade. Neste particular confunde-se a unicidade do objeto das ciências sociais – o homem e suas relações sociais –, o apreendido por diferentes campos de conhecimento ou ciências sociais (economia, política, sociologia, etc.), com a junção mecânica de especialistas desses campos científicos indiferentemente às suas perspectivas teóricometodológicas. Parece-me que um dos desafios mais cruciais que enfrentamos hoje na pesquisa educacional, e que merece um esforço sistemático, é superar a confusão bastante generalizada entre a necessária liberdade de pensamento, convívio de posturas divergentes e o pluralismo formal ou eclético. O processo de perquirir e analisar as leis históricas que estruturam, desenvolvem e transformam os fatos sociais não é algo que dependa de negociação, conciliação ou consenso. Ao contrário é algo a ser prática e historicamente demonstrado. Nesse sentido não há duas teorias que expliquem igualmente o mesmo fato. A ciência se faz mediante rupturas. É preciso entender, então, que, apesar de sapos e rãs serem batráquios e conviverem num mesmo lago, não são a mesma coisa. A tentativa de metamorfoseá-los em lagartos – numa espécie de síntese integradora – certamente não será um avanço para a espécie. Por fim, vale ter presente que a busca consciente de uma postura materialista histórica na construção do conhecimento não se limita à apreensão de um conjunto de categorias e conceitos. Não se trata de homogeneizar o discurso. É preciso superar a abstratividade inicial dandolhe concretude. Esse movimento é um movimento prático, empírico. Há, pois, a exigência necessária de uma concepção de realidade, um método capaz de desvendar as “leis” fundamentais que estruturam um problema que se investiga, da exposição orgânica dos avanços no conhecimento e de novas sínteses no plano da realidade histórica. Considerações finais A questão que comumente aparece nos cursos ao se discutir as diferentes posturas e métodos decorrentes da investigação educacional é a seguinte: mas como na prática se pesquisa dialeticamente? Ou como ter presente que a dialética materialista é, ao mesmo tempo, uma visão de mundo, um método de investigação e análise e uma práxis?
Trata-se de questões cuja resposta não é simples. Tal procedimento implica rupturas – no dizer de Gramsci (1978), uma catarse e um processo de trabalho de aproximações sucessivas da verdade que, por ser histórica, sempre é relativa. Com o intuito de apenas sinalizar, no plano da prática, como isso pode ocorrer, indicarei a estratégia de condução de uma pesquisa sobre formação do trabalhador no processo produtivo que vínhamos realizando, em equipe, no IESAE/FGV. ⁷³ Essa estratégia envolve cinco momentos fundamentais: a) Ao iniciarmos uma pesquisa, dificilmente temos um problema, mas uma problemática. O recorte que se vai fazer para investigar se situa dentro de uma totalidade mais ampla. De outra parte, quando iniciamos uma pesquisa, não nos situamos num patamar “zero” de conhecimento; pelo contrário, partimos de condições já dadas, existentes, e de uma prática anterior, nossa e de outros, que gerou a necessidade da pesquisa ao problematizar-se. Na definição da problemática deve, pois, aparecer de imediato a postura, o inventário (provisório) do investigador. Essa postura delineia as questões básicas – a problematização, os objetivos, em suma, a direção da investigação. Nesse âmbito já se coloca a contraposição, as rupturas, da concepção do investigador em relação ao que está posto. O processo de ir à raiz dos problemas, ou seja, ao desvendamento das “leis” que os produzem. Não só o recorte ou a problemática específica a ser investigada necessita ser apreendida com a totalidade de que faz parte, como também é importante ter presente a que sujeitos históricos reais a pesquisa se refere. b) No trabalho propriamente de pesquisa, de investigação, um primeiro esforço é o resgate crítico da produção teórica ou do conhecimento já produzido sobre a problemática em jogo. Aqui se podem identificar as diferentes perspectivas de análise, as conclusões a que se chega pelo conhecimento anterior e a indicação das premissas do avanço do novo conhecimento. Ou seja, esse conhecimento se expressa por ideias, conceitos, categorias que precisam ser revisitadas no sentido tanto de ruptura – quando se trata de falsas apreensões, conhecimentos pseudoconcretos ou positivação da “verdade” ideológica de um grupo ou classe dominante – quanto de superação, por inclusão – quando se trata de concepções, categorias, teorias que, embora dentro de uma perspectiva crítica, histórica e transformadora, revelam-se insuficientes pela própria dinâmica da realidade histórica. Definido o embate no plano teórico-metodológico, partindo do conhecimento existente, começa a pesquisa dos múltiplos elementos e dimensões do problema que se está querendo desvendar. É importante ressaltar que quem conduz a investigação é o investigador, e não os dados, sejam primários ou secundários. É o pesquisador que estrutura as questões e sua significação para conduzir a análise dos fatos, dos documentos, etc. Com isso está se afirmando que o investigador vai à realidade com uma postura teórica desde o início. A questão crucial é estabelecer o inventário crítico dessa postura em face do objeto que se está investigando, e não abstratamente.
c) Feito o levantamento do material da realidade que se está investigando, necessita-se definir um método de organização para a análise e exposição. Trata-se de discutir os conceitos, as categorias que permitem organizar os tópicos e as questões prioritárias e orientar a interpretação e análise do material. Que categorias interessam? A discussão teórica que se põe desde o início reaparece aqui com novas determinações produzidas pelo movimento da investigação. É como se estivéssemos, o tempo todo, desafiando o movimento do pensamento, que é um movimento que se dá no seu terreno próprio, abstrato (K OSIK , 1976), a dar conta do movimento do real no plano histórico. d) A análise dos dados representa o esforço do investigador de estabelecer as conexões, mediações e contradições dos fatos que constituem a problemática pesquisada. Mediante esse trabalho, vão se identificando as determinações fundamentais e secundárias do problema. É no trabalho de análise que se busca superar a percepção imediata, as impressões primeiras, a análise mecânica e empiricistas, passando-se assim do plano pseudoconcreto ao concreto, que expressa o conhecimento apreendido da realidade. É na análise que se estabelecem as relações entre a parte e a totalidade. A compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interação das partes (K OSIK , 1976, p. 42). e) Finalmente busca-se a síntese da investigação. A síntese resulta de uma análise e elaboração cuidadosa dos materiais da pesquisa e da exposição orgânica, coerente e concisa das “múltiplas determinações” que explicam a problemática investigada. Aqui não só aparece o avanço em cima do conhecimento anterior, mas também questões pendentes e a própria redefinição das categorias, conceitos, etc. Na síntese, de outra parte, discutem-se as implicações para a ação concreta. Repõe-se aqui o ciclo da práxis, onde o conhecimento ampliado permite, ou deveria permitir, uma ação mais consequente, avançada, que por sua vez vai tornando o conhecimento ampliado base para uma nova ampliação. Por essa razão a pesquisa mantida como “segredo do pesquisador”, ou dos pesquisadores, é uma dupla sonegação: não questiona nem permite ser questionada e acaba não tendo, por isso, nenhum sentido histórico e político. Como se poderá perceber, os passos enunciados têm apenas uma fronteira “didática” e formal, mas não real. No processo de pesquisa, o que ocorre de fato é que há momentos em que haverá maior ênfase num dos aspectos apontados. De outra parte, a literatura sobre pesquisa nos oferece inúmeros esquemas que sinalizam as diferentes “etapas” de um processo de pesquisa. Quanto mais detalhadas – alguns textos chegam a enunciar 16 etapas –, tanto mais se tornam formais. O que importa aqui, em vez disso, é que buscamos expor ao debate o movimento real de uma pesquisa em andamento. Referências
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como elemento pedagógico na formação profissional
⁷⁴ Gaudêncio Frigotto Nota introdutória O meu propósito ao abordar, neste simpósio, a questão do trabalho como elemento pedagógico na formação profissional não é efetivar uma análise teórica sobre o assunto. Dentro da própria proposta original deste simpósio a preocupação nodal é tentar colocar experiências concretas sobre a relação entre educação e trabalho para averiguar como efetivamente o trabalho se constitui num elemento pedagógico, um elemento educativo. Em cima desta leitura, obviamente não inocente, pois já incorpora uma determinada postura teórica, política e ideológica, a questão que se nos coloca é de ver como nossas teorias dão conta para uma explicitação aguda da relação trabalho e educação. O objetivo aqui não é, então, de se efetivar uma exposição satisfatória nela mesma, mas de assinalar alguns aspectos que possam nos ajudar no debate mais amplo e global sobre a relação trabalho e educação. Vale ressaltar, igualmente, que a formação profissional, tomada na acepção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) como sendo “todo o tipo de formação destinada a preparar ou readaptar uma pessoa para que exerça um emprego ou para que seja promovida em qualquer ramo de atividade econômica incluindo ensino em geral, profissional e teórico”, extrapola o âmbito que queremos dar a essa questão neste simpósio. Se o conceito em si se presta, e muito, para uma análise de ideologia que vincula nas diferentes formas de formação profissional, e neste sentido poderá ser retomada em qualquer tipo de experiência específica, interessa-nos aqui fixarmo-nos na formação profissional do tipo que é efetivada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). Trata-se de instituições que movimentam recursos vultosos da sociedade, com orçamentos maiores, às vezes, que o de alguns estados e cuja origem histórica acompanha a própria gênese e as novas formas de organização da produção capitalista no Brasil. Vou ater-me, limitado pelo próprio tempo de exposição aos cursos de aprendizagem do Senai, dentre as diferentes formas de ação dessa instituição. Por que Senai e por que Cursos de Aprendizagem? Senai, porque se trata da instituição que é produzida num contexto determinado do avanço do capitalismo industrial no Brasil e por constituir-se, por excelência, numa instituição que se especializa na pedagogia do trabalho industrial, ou na pedagogia do capital, e que vai se constituir em paradigma de todas as instituições congêneres na América Latina, como de resto vai influenciar Senac e mais tarde Senar. Pode ser, de outra parte, a instituição mais antiga e que melhor, penso eu, pode nos dar uma ideia da especificidade do uso do
trabalho, da própria concepção de trabalho, como elemento pedagógico no interior da formação profissional. ⁷⁵ O Senai desenvolve cursos de aprendizagem de menores (aprendizes entre 14 e 18 anos); treinamento, aperfeiçoamento e especialização de adultos (80% da atividade do Senai); aperfeiçoamento de supervisores, cursos técnicos industriais de nível médio, treinamento gerencial, treinamento e aperfeiçoamento de docentes. Vamos nos fixar nos cursos de aprendizagem, pela razão de que ao examinar o que aí ocorre podemos ter uma ideia do todo, com a vantagem de estarmos tratando de um tipo de curso mais próximo ao que se efetiva nas escolas de 1º e 2º grau (curso com disciplinas similares, um certo currículo, etc.) Minha exposição se fixará em três tópicos básicos: uma sinalização da especificidade da concepção de trabalho que se desenvolve nesse tipo de formação profissional; uma descrição da metodologia e prática pedagógica do Senai (a produção do homem fabril, as relações pedagógicas e as expansão das relações de trabalho) e algumas questões para o debate mais amplo. A ótica do trabalho na formação profissional: transmutação do trabalho em força de trabalho Inicialmente é importante situar a concepção de trabalho sobre a qual se balizam as relações de prática pedagógica na formação profissional. Isso é importante, para entender-se como o trabalho – enquanto relação pedagógica – se efetiva sob uma determinada especificação bem como, e a partir do mesmo, se constrói a noção ideológica do trabalho. O trabalho a que vamos nos referir como elemento da prática pedagógica na formação profissional não é o trabalho entendido como uma relação social que os homens estabelecem na produção de sua existência. Ou seja, o trabalho enquanto um processo em que participam os homens e a natureza, onde “o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza como uma de suas forças [...] e atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza” (M ARX , 1980, p. 202); trabalho que pressupõe que homem (e todo homem) possa ter as condições objetivas de apropriar-se da natureza e transformá-la em seu proveito; trabalho que, de outra parte, pressupõe o homem como proprietário. Propriedade, não sob a forma privada capitalista, mas propriedade que “significa nada mais do que a atitude do homem ao encontrar suas condições naturais de produção como lhe pertencendo, como pré-requisitos de sua própria existência; sua atitude em relação a elas, como pré-requisitos naturais de si mesmo, que constituiriam, assim, prolongamento de seu corpo. [...] uma relação do sujeito atuante com as condições de sua produção e reprodução como suas próprias” (M ARX , 1977, p. 82-92). O trabalho nas relações pedagógicas da formação profissional tipo Senai/ Senar, aparece sob especificação histórica em que forma dissolvidas as relações sociais de produção da existência, onde o homem trabalhador é um proprietário, e o proprietário trabalha.
O trabalhador aparece duplamente “livre”: livre de propriedade e “livre” para vender sua força de trabalho a outrem. Liberdade esta cujo limite imediato é que haja alguém disposto a comprá-la. Ou seja, o trabalhador aparece como “trabalhador livre, como capacidade de trabalho puramente subjetiva, sem objetividade, enfrentando as condições objetivas da produção como sua não propriedade, como propriedade alheia, como valor existente em si mesmo, como capital” (M ARX , 1977, p. 82-92). Em suma, o trabalho que é ação dirigida com o fim de criar bens úteis, valores de uso, forma de apropriar-se dos elementos da natureza para satisfazer necessidades humanas, condição do intercâmbio entre homem e natureza, condição do próprio devir humano – aparece sob a determinação social e histórica de trabalho abstrato, um trabalho separado dos sujeitos –, força de trabalho, mercadoria. Para assinalar concretamente essa especificação que recebe o trabalho na formação profissional, basta analisar as próprias condições históricas que produzem e demandam instituições tipo Senai e Senar. Por que o Senai surge em 1942 e sua ideia vai se formulando desde 1937, e o Senar, somente surge 1976? Porque se delineiam duas formas históricas específicas do avanço do capitalismo, de organização do trabalho na indústria e no campo, em tempos diversos. De outra parte, o fato de o Senai ser gerido pela própria Confederação da Indústria, e não pelos sindicatos trabalhadores, especifica o tipo de interesses que estão em jogo e a marca que recebe a concepção de trabalho e a relação pedagógica que se efetiva a partir dele. O Serviço Social da Indústria (Sesi), também gerido pela Confederação Nacional da Indústria, que surge em 1946, com a preocupação básica de intervir em diversas áreas chamadas sociais (alimentação, saúde, higiene, moral e civismo, habitação do trabalhador) que influenciam a relação homem-trabalho, procurando proporcionar às empresas condições para maiores índices de produtividade e atendimento dos seus compromissos, vai explicitar de forma ainda mais clara a especificação que o trabalho recebe neste tipo de formação profissional. ⁷⁶ A questão que está em jogo não é a valorização do trabalho e do trabalhador, mas a preservação e a formação de uma força de trabalho adaptada aos interesses da produção. A relação máquina-aprendiz-instrutor; fazendo pelas mãos a cabeça do home fabril “– Num de seus estudos, o senhor [Cláudio de Moura Castro] afirma que o Senai está entre as melhores escolas do mundo. Isso ainda é verdadeiro?
– Está. O SENAI tem um compromisso de qualidade que o sistema convencional não tem. Quem consome o produto é quem paga diretamente por ele – a indústria. Os alunos, em geral filhos de operários, têm pouco trato com a abstração, e a ciência que a escola convencional lhe oferece já vem vestida de abstração. No Senai, o aluno vê a ciência lidando diretamente com máquinas, materiais e processos. A linguagem é mais tosca, mas faz parte do seu repertório. Aprendendo um limitado de processos, o aluno tem condições de incorporar novos processos” (Veja. “Os males da qualidade”. Entrevista com C. M. Castro, 26 maio, 1982). “Em trinta anos de atividade o Senai, estruturado e orientado como organismo de livre-empresa, encerra uma significação que transcende o âmbito de uma entidade de formação profissional, para tornar-se autêntica expressão da cultura da indústria brasileira” (B OLOGNA , s/d). Ao tentar explicitar como se efetivam as relações pedagógicas na aprendizagem do Senai, através do trabalho de oficina – “o aluno lidando com máquinas, matérias e processos” –, gostaria de ressaltar que o que se tem como resultado educativo, mais que um aprendizado meramente técnico do “saber fazer o que serve”, é o “saber fazer de forma eficiente” – tem-se uma internalização de uma determinada cultura – que explicita uma relação social dada, ou seja, “um conjunto de maneiras de ser, de agir e de pensar que uma sociedade hierarquizada tenta inculcar àqueles que ela relega às tarefas de execução, ou, no melhor dos casos, supervisão e controle” (G RIGNON , 1972, p. 267). A ideia de aprender fazendo, aprender trabalhando, não é tão nova quanto possa parecer. E a metodologia que o Senai utiliza, nos seus traços básicos, está longe de ser uma invenção brasileira. No ano de 1868... o diretor da escola [Técnica Imperial de Estradas de Ferro de Moscou] Victor Della Voz compreendeu que o processo de treinar mecânicos, pelo método de aprendizado, era moroso e de resultados desiguais. E pensando conseguir um engenheiro de produção dentro de um sistema militar, Della Voz quis obter um tipo de operário treinado de grau mais elevado, mais uniforme, em menor espaço de tempo e por preços mais baixos. Concluiu que não podia conseguir isso pelos métodos de aprendizado usados nas oficinas de produção ligadas à escola. Estabeleceu um novo grupo de oficinas a que denominou “oficinas de instrução” para diferenciar de suas oficinas de produção. Designou um professor para cada oficina, [...] equipou cada oficina com tantos postos de trabalho e tantos jogos de ferramentas quanto fossem os alunos. Em seguida analisou, nos seus processos mais simples, os processos de ofício, ou a arte a ser ensinada, e organizou séries de exercícios para ensinar o uso de ferramentas e montagens de peças fabricadas. Tais exercícios eram preparados na ordem de dificuldade de execução. Cada membro da turma recebia um desenho do trabalho que tivesse que fazer. Nas diversas oficinas um professor – um mecânico perito – iniciava o curso dando uma aula de demonstração sobre o primeiro exercício da série e fazia com que os alunos executassem o trabalho ensinado. Cada membro da turma trabalhava na sua forja, no seu torno, ou em qualquer outro lugar de acordo com a circunstância. No momento próprio fazia a segunda demonstração, e depois a terceira, e assim
por diante até completar o primeiro período do curso no qual o aluno aprendia a usar todas as ferramentas. No segundo período eram ensinados elementos de montagem em trabalhos de madeira. O método adotado era semelhante ao período anterior, porém o professor inspecionava menos a parte referente ao modo de usar as ferramentas [...], durante o terceiro período o aluno prepara ele próprio seus planos e o professor passava a agir como superintendente. O objetivo era fazer com que o estudante desenvolvesse a capacidade de iniciativas e seu poder de assumir responsabilidades. Esse método teve grande repercussão quando exposto num seminário em Filadélfia em 1876 e logo se espalhou por toda a Europa e América. (B ENNET , 1944, p. 18) No Brasil o método foi assimilado primeiramente nos cursos de formação para serviço ferroviário, cuja primeira escola foi fundada em 1906 – escolas prática de aprendizagem das oficinas do Engenho de Dentro da Estrada de Ferro da Central do Brasil. Apenas em 193, porém, foram inauguradas as primeiras bancadas para aprendizagem prática dentro da escola. Em 1934, foi criado em São Paulo o Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (CFESP), onde vai se utilizar o método de séries metódicas. O Senai, criado em 1942, vai herdar a tradição de ensino do CFESP de São Paulo e vai desenvolvê-lo, cada vez mais com o apoio dos métodos de ensino individualizado, ensino programado, ensino por módulos, produzidos a partir da psicologia condutivista, cuja expressão mais evidente é a figura de Skinner. ⁷⁷ Se compararmos ensino de oficina no Senai com o que descreve Della Voz em 1868, veremos que os passos são praticamente os mesmos e a concepção igualmente a mesma. Como se efetiva, sumariamente o ensino na oficina de escola de aprendizagem do Senai? Existe uma série metódica, ou seja, um conjunto de tarefas, pequenos módulos, programados por ordem de complexidade, que compõe o curso de oficina. O ensino é individualizado e segue os seguintes passos ⁷⁸ : a) Estudo da tarefa : para o estudo da tarefa, o aluno recebe uma folha de tarefa que detalhe o que fazer com desenhos, ilustrações, etc.; uma folha de operação que indica como fazer ; uma folha de informações tecnológicas que indica com que fazer e , eventualmente, uma folha de informações complementares que indica por que fazer; b) Demonstração da tarefa: a demonstração é efetivada por sistema de videotape com filmes especialmente montados para as tarefas do SENAI. O aluno observa individualmente a demonstração quantas vezes necessitar. Em alguns centros a demonstração é feita pelos instrutores. Cada nova tarefa não apresenta mais que duas operações novas; c) Execução da tarefa: cada aprendiz tem seu posto de trabalho. Ele é responsável pela máquina – conservação, limpeza, etc. – durante o tempo que executa a tarefa. Segue um roteiro preestabelecido e aprovado pelo instrutor que tem um número de 12 aprendizes. Com o tempo, o mesmo que
sugere Della Voz em 1868, o aprendiz é induzido a se desprender do roteiro, uma vez que na fábrica supõe-se que ele tenha internalizado todas as operações da tarefa. d) Avaliação da tarefa : não é uma quarta fase, mas algo que ocorre permanentemente. O instrutor preocupa-se fundamentalmente em induzir o aprendiz, durante todo o tempo de trabalho, a uma autoavaliação quanto à transferência prática dos conteúdos, uso correto das ferramentas, manejo correto e limpeza rigorosa das máquinas, cuidado com acidentes, precisão e esmero na execução da tarefa, pontualidade e responsabilidade. O instrutor corrige na hora quando o aprendiz erra. O parâmetro do que ensinar – isso não só na oficina, mas também nas disciplinas instrumentais (matemática, ciências, desenho) – é ensinar o que serve. O que serve é dado por diagnóstico nos postos de trabalho – a partir de cuja descrição montam-se as séries metódicas. O cuidado é de não ensinar para além do que as empresas exigem. A justificativa é para não frustrar o aluno no posto de trabalho futuramente. O sistema de prêmios e sanções está inserido na própria metodologia. ⁷⁹ O prêmio constitui-se no reforço dado pela aprovação do instrutor (o mestre e amigo) da tarefa e a passagem à tarefa seguinte. Num dos centros, há um quadro onde cada aprendiz marca os avanços, e isso é público (competição, individualismo). A sanção é a reprovação da tarefa e a obrigação de refazêla. Aos aprendizes que executam com precisão, rapidez, esmero e de forma responsável, as tarefas preestabelecidas são asseguradas vantagens, como outras especializações, etc. A fábrica-escola-Senai: a formação do ethos para submissão da organização social do trabalho industrial? Aparentemente, instituições de formação profissional do tipo SENAI tendem a ser concebidas como instituições cuja tarefa básica é a qualificação técnica do trabalhador. Na realidade, porém, as relações de trabalho-aprendizagem, a forma de organização interna, os valores que se passam, as atitudes e os hábitos que se reforçam, as imagens de trabalhador bem-sucedido e fracassado, a figura de patrão, os traços, enfim, de responsabilidade, assiduidade, pontualidade, etc. indicam que o ponto nodal é o de formar “ bons trabalhadores”, isto é, trabalhadores fabricados para submeter-se mais facilmente às relações sociais de trabalho estabelecidas. Homens fabricados para aceitarem a desqualificação dada pela crescente divisão do trabalho. Esta parece ser a percepção que operários não formados pelo Senai têm em relação à formação profissional que lá se efetiva. Um grupo de operários da Fiat, que, despedidos na greve de 1979, partiram para organizar uma oficina-escola com o intuito de, através dela, terem “um meio de vida, uma forma de qualificação e educação de classe operária e também uma forma de serviço à comunidade”, perguntados se como viam a formação que os operários recebem no Senai, relacionada ao que eles pretendiam, assim se expressam: O Senai joga no mercado fornadas de técnicos treinados em técnicas, sem visão do processo de produção como um todo. Nós buscamos formar o
técnico que entenda de técnicas, que entenda do processo de produção no seu todo, que entenda da sociedade. Aprenda que as relações de trabalho não são apenas relações técnicas, mas relações políticas, uma relação de classe. O aprendiz aprende a técnica ao mesmo tempo que a fábrica rouba o conhecimento do operário. ⁸⁰ A preocupação da formação do “bom trabalhador” parece patentear-se em todos os aspectos do que se passa no interior da fábrica-escola-Senai, a começar na relação máquina, aprendiz, instrutor, passando pelo próprio método individualizado de aprendizagem e se explicitando em todos os momentos vividos na organização Senai. O “ensinar fazendo”, fazer poucas coisas – “O QUE SERVE”, o fazer “bem-feito”, – o preciosismo carregam em si mais que traços de qualificação técnica, traços de um amoldamento a determinadas relações de trabalho. O que serve não é outra coisa senão aquilo que é historicamente ditado pela divisão do trabalho no interior da fábrica. a) A jornada do aprendiz e a organização do ambiente O primeiro aspecto a ser destacado é que o aprendiz começa sua jornada de trabalho muito cedo. Dezoito por cento dos entrevistados numa pesquisa afirmam demorar mais de uma hora para chegar ao Senai. O processo de entrada no Senai obedece ao mesmo ritual da entrada na fábrica – no portão são recolhidas as cadernetas de presença onde são anotados os atrasos (três atrasos sem justificativa levam a suspensão). Repete-se a chamada, posteriormente, pelo instrutor. Aprendiz sobe rampa, não sobe no elevador. A atividade é desenvolvida durante quatro horas sem intervalo. Mesmo para merenda não se interrompe o processo produtivo – ou é servida na oficina mesmo, ou é tomada no refeitório, em grupos. Conversas só em função da tarefa ou então informações rápidas. O recolhimento e a entrega das marmitas igualmente seguem um ritual de disciplinas. Aprendiz só fuma em locais determinados. No término da jornada, o posto de trabalho e a máquina devem rigorosamente ficar limpos. O aprendiz é induzido a isso pelas justificativas repetidas do instrutor, do custo do material, da difícil reposição das peças e, sobretudo, porque futuramente na empresa o aprendiz deverá ter esses cuidados para ter sucesso na carreira. A própria disposição das máquinas e os avisos sobre cuidados que se devem ter para evitar acidentes reproduzem o clima ambiental de uma fábrica (da grande fábrica). A segurança e higiene no trabalho é uma lição permanente desde o momento em que se entra na instituição (fase de enturmação). A ideia que se vai sedimentando é que a não segurança gera prejuízos a “ele principalmente, à empresa e à nação”. b) Da imagem do instrutor à imagem do patrão; figuras que existem para ajudar a vencer na vida – que têm direito de mandar e de se fazer obedecer Nas relações de aprendizagem – instrutor-aprendiz – passa-se a relação de trabalho – operário, supervisão, patrão –, passam-se as figuras de autoridades, sentido da hierarquia, da funcionalidade. Mais fundamentalmente passa-se a ideologia do mérito, da ascensão pelo esforço, produtividade e ideologia de “vencer pelo trabalho assalariado”.
O instrutor é um profissional selecionado no interior da fábrica, de sorte que, no Senai, apenas recebe um treinamento para reproduzir de forma mais didática possível, e em doses homeopáticas, a trama de relações sociais de trabalho que existem no interior da fábrica. Os próprios profissionais que lecionam disciplinas complementares (português, desenho, ciências, matemática) têm que passar por um treinamento específico. O mesmo ocorre com os orientadores educacionais. A figura de autoridade do instrutor e dos postos de chefia até a figura do patrão é construída como função de competência e do mérito, sendo que condição de subordinado, de aprendiz ou de operário pode ser vencida na medida que os indivíduos se esforcem, se dediquem e sejam competentes para tanto. Num outro texto mimeografado pode-se ler que na empresa o supervisor imediato é aquele que “tem autoridade sobre os seus comandados, isto é, tem o direito de mandar e o poder de se fazer obedecer”. Ao empregado, além de obediência, responsabilidade, tem “obrigação de prestar contas do que foi feito”. ⁸¹ Outra lição para o aprendiz é que o patrão não é aquele sobre o qual o empregado pensa “cobras e lagartos”: “O trabalhador percebe o patrão notando que ele impõe certos rigores por ser impertinente, exigente. Não vêem que isso é para o progresso da empresa”. Em suma, a lição que é incutida permanentemente no aprendiz é a ideia de que não existem “maus patrões”, mas “maus empregados”. O patrão vai promover aquele operário responsável, que produz, o bom operário. “Ao contrário cabe a tarefa de se auto-promover pelo seu esforço e pela sua capacidade de produção, havendo para ele uma trajetória de postos a galgar.” ⁸² Esta ideia-força que se desenvolve em todas as atividades da instituição vai sedimentando no aprendiz aquilo que J. S. Martins (1981) denomina a produção ideológica da noção de trabalho que obscurece a relação entre patrão e o empregado e entre as classes sociais. “O trabalho não é considerado principalmente como uma atividade que enriquece a burguesia. Ao contrário, o trabalho é considerado como uma atividade que cria riqueza e, ao mesmo tempo, pode libertar o trabalhador da tutela do patrão (ou até mesmo tornar-se ele futuramente o supervisor, o patrão, um autônomo). O trabalhador é sempre considerado um patrão potencial de si mesmo, sobretudo porque a condição de patrão é essencialmente concebida como produto do trabalho árduo e das privações materiais do próprio patrão quando era trabalhador, regulados por uma espécie de prática asséptica. A riqueza, no sentido do capital acumulado, torna-se aceitável e legítima porque é produto do trabalho e porque o trabalho é concebido como uma virtude universal. A capacidade de criar riqueza através do trabalho é concebida com o uma virtude socializada sem distinções de classe, que abra acesso ao capital e ao capitalismo a todo homem que trabalha. [...] Este deslocamento dá idéia de que a riqueza não é produto do trabalho explorado do trabalhador, mas resulta do trabalho e das
privações do próprio burguês, na origem do seu capital, consagra e justifica para o trabalhador a sua exploração por outra classe” (M ARTINS , 1981, p. 117 e 134). A observação mais acurada das relações pedagógicas que se estabelecem no interior da instituição Senai, quer ao nível da relação máquina-aprendizinstrutor, quer mais amplamente no conjunto e trama das relações que aí se dão, vai nos revelar que, se o Senai treina trabalhadores em habilidades que os tornem capazes de exercer uma determinada atividade dentro do processo produtivo, na divisão social do trabalho organizado pelo capital, essa qualificação não é nem a única nem a principal. O que talvez de mais efetivo consagra esse tipo de pedagogia onde o aprendiz, fazendo, faz o que serve, não é a qualificação técnica, e sim o moldar, “fabricar o trabalhador” com um conjunto de traços atitudinais, que são requeridos pela divisão social do trabalho no interior da fábrica. Ou seja, trata-se de um tipo de formação que vai dotar os indivíduos de “qualidades morais” que os adequem a relacionar-se com o capital no desempenho contínuo das atividades produtivas por ele organizado. A adaptabilidade tornou-se sinônimo de mão de obra qualificada. No Senai não é a ciência que o aprendiz vai aprender, partindo da manipulação, da relação com a máquina, e sim como integrar-se nas relações de classe existentes numa cultura técnica, um conjunto de maneiras de ser, de agir e de pensar, necessário à submissão das relações sociais de produção impostas pelo capital. ⁸³ Não há como negar a eficiência da instituição nesse sentido. Será a formação profissional dada por instituição do tipo Senai apenas um reforço às relações capitalistas de produção? A análise histórica da origem do Senai, e mais recentemente da origem do Senar, sem dúvida vai nos revelar que são instituições que são produzidas para dar respostas às novas formas que assume o capitalismo na indústria e no campo. São, nesse sentido, instituições que nascem – independentemente de o vínculo jurídico ser público ou privado – para desenvolverem a pedagogia das relações capitalistas de trabalho e que vão adaptando – na ótica do que serve – essa pedagogia às novas formas que assume a divisão do trabalho como resultante das novas formas de sociabilidade do capital. Neste sentido seu vínculo com a produção capitalista é mais direto do que o tipo de prática pedagógica das escolas de 1º e 2º graus. Certamente, na ótica do trabalhador e daqueles que postulam uma sociedade onde não haja patrão e empregado, dominante/dominado, capitalista e proletário, não cabe senão uma escola única onde se desenvolve a pedagogia do trabalho como um direito e um dever de todos e onde desde a escola elementar, na expressão gramsciana, se prepara o homem para a societas rerum e para a societas hominum . Caberia, entretanto, dentro das circunstâncias dadas, perguntar-se em que medida essa pedagogia da submissão, mas amoldada de atividades requeridas pelas relações capitalistas de produção fabricadora de um trabalhador disciplinado, consegue efetivamente constituir-se num filtro,
num anestésico à contradição concreta que o aprendiz empregado vai se defrontar – contradição capital-trabalho. A dose do que “serve”, tecnicamente, e a dose de doutrinação parecem não ter uma fórmula muito fácil. Mesmo neste tipo de relação pedagógica o homem parece não se revelar um “gorila domesticável”. Até mesmo esse tipo de formação profissional se apresenta problemática ao capital. De outra parte, dentro das instituições desta natureza não encontramos apenas máquinas, autômatos mas também trabalhadores-instrutores, supervisores, que, por mais que boa parte introjete a figura do patrão, também apresentam o conflito capitaltrabalho. Não é raro encontrar profissionais não só contaminados pelos movimentos e pelas reivindicações da classe operária, mas associados a essa luta. Posta a questão de outra forma, poderíamos afirmar que a força do tipo de formação profissional que se efetiva em instituições do tipo Senai, com o intuito de formação do trabalhador que interessa às relações capitalistas de produção, parece estar justamente na própria prática do aprendizado que impede o aprendiz de desenvolver uma consciência crítica, uma visão do processo global de produção, um posicionamento perante a própria questão técnica. A questão técnica passa como algo inteiramente separado da questão social e política da própria questão da vida. Na figura da poesiarealidade de Brandão (1981), a ação pedagógica do SENAI vai moldando o aprendiz e não percebe que O trabalho do corpo é a mercadoria que o homem vende ao dono todo dia e o corpo-livre pertence ao maquinário que converte o homem no operário de que retira o preço do sustento: a comida, a cama, a casa, o agasalho o que mantém vivo o corpo e o seu trabalho. A repetição continua diária igual de um mesmo gesto limitado e repetido todos os dias sobre os mesmos atos ensina ao operário as regras de mestria e ele aprende a norma que o uso faz do trabalho-artesão que então domina através de dominar a sua prática com a sabedoria de um corpo dominado.
Duas questões básicas podem, talvez, encaminhar uma discussão sobre a temática que acabamos de assinalar. A primeira questão que se pode formular é se, uma vez em contato com a luta concreta do movimento operário – luta-capital-trabalho –, os egressos desse tipo de formação profissional criam resistência a essa luta. Essa parece ser uma questão relevante que se põe ao campo de investigação. A segunda questão nos leva a perguntar se seria possível, e sob que condições, resgatar esse tipo de formação pedagógica pelo trabalho, na direção dos interesses da classe trabalhadora. Ou, em outros termos, o que seria formar para o trabalho, dentro dos interesses da classe trabalhadora, numa sociedade onde, além da falta de trabalho, do não direito concreto ao trabalho, existe uma crescente desqualificação do trabalho. Referências BENNET, C. A. Origens da educação industrial. In: EDWIM, A. Lee. Objetivos e problemas da educação industrial . Rio de Janeiro: C.B.C.I., 1944. BOLOGNA, Ítalo. Formação profissional na indústria. SENAI Rio de Janeiro: DN, s/d. BRANDÃO, C. R. A trama da rede. RJ – CEDI, Encarte. Tempo e Presença , n. 172, nov./dez., 1981. COSTA, Darcy. Aprendizado “não cognitivo” como resultado da escolaridade – um estudo comparativo da experiência do SENAI e de escolas acadêmicas convencionais. IESAE/FGV: Rio de Janeiro, 1978. FRIGOTTO, Gaudêncio. Efeitos cognitivos da escolaridade do SENAI e da escola acadêmica convencional – uma pedagogia para cada classe social. Rio de Janeiro, IESAE/FGV: Rio de Janeiro, 1977. GRIGNON, Claude. L’ordre des choses . Paris: Minuit, 1972. MARTINS, J. S. As relações de classes e a produção ideológica da noção de trabalho. In: O cativeiro da terra . São Paulo: LECH, 1981. MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Livro I, Tomo I, 1980. MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. SENAI. Avaliação do Projeto de Construção Civil – análise do método de ensino segundo a opinião dos concluintes e dos empregados . Brasília: SENAI, 1976. VITAL, Clemência. O ensino supletivo no SESI/AM. Rio de Janeiro: Da paz social a hegemonia do capital: o SESI/AM na educação do trabalhador. IESAE/FGV, 1982. REVISTA VEJA: Os males da qualidade. Entrevista com C. M. Castro, 26 maio 82.
⁷⁴ Este artigo foi originalmente publicado em Cadernos de Pesquisa , Fundação Carlos Chagas, São Paulo, n. 47, nov. 1983, p. 38-45 (As referências aparecem como constam da publicação original do texto aqui reproduzido). ⁷⁵ Este trabalho é baseado, em grande parte, nas dissertações de mestrado efetivadas por mim e Darcy Costa, respectivamente, Efeitos cognitivos da escolaridade do SENAI e da escola acadêmica convencional: uma pedagogia para cada classe social? e Aprendizado “não cognitivo” como resultado da escolaridade – um estudo comparativo da experiência do SENAI e das escolas acadêmicas convencionais . Nesses trabalhos discute-se detalhadamente a especificidade da relação pedagógica do Senai. ⁷⁶ Ver a esse respeito Clemência Vital, O ensino supletivo no SESI/AM . ⁷⁷ Sobre o impacto da psicologia condutivista e as teorias da aprendizagem que delas derivam e sua influência na metodologia de ensino do Senai, ver FRIGOTTO, 1977, p. 42-61. ⁷⁸ Nos cursos de aprendizagem, o aprendiz, antes de ingressar na oficina, realiza um conjunto de disciplinas instrumentais (compilação de leitura, matemática, ciências e desenho); o método é o mesmo, isto é, individualizado. ⁷⁹ Os aspectos que se seguem tomam como base a dissertação de Darcy Costa, anteriormente citada. ⁸⁰ Notas sobre o depoimento de um grupo de operários da FIAT que tem uma experiência de escola-oficina organizada pelos próprios operários a partir da greve de 1979. Semana de Educação. Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro, 17 a 21 maio 82. ⁸¹ COSTA, 1978, p. 102. ⁸² COSTA, 1978, p. 103. ⁸³ Isso parece ser confirmado por depoimento de empregadores. Numa pesquisa feita com empregadores no Distrito Federal em 1976, os empregadores sinalizaram como características básicas que diferenciam os egressos do Senai com os demais empregados, a ponto de preferir os primeiros, não o preparo técnico, mas, fundamentalmente, a pontualidade, a responsabilidade e a facilidade de serem administráveis (SENAI, 1976).
Parte 3 | Textos de opinião Os “homens de negócio” e a política educacional do MEC na década de 1990
⁸⁴ Gaudêncio Frigotto
Em recente texto expus a tese que vários estudos apontam que, no Brasil, passamos de uma ditadura civil-militar para uma ditadura do mercado e que isso não só qualifica o atual modelo econômico-social mas também o projeto educacional do atual governo. A entrevista do fundador e dono da “Universidade” Estácio de Sá, publicada pela Folha Dirigida , em 16 de outubro de 2001, constitui-se, a meu ver, num exemplo paradigmático desse processo. O fundador e dono da Estácio de Sá, de sucesso vertiginoso – 160 alunos em 1970 e 90 mil em 2001–, por sua exemplar sinceridade, nos dá, em estado puro, o pensamento empresarial do ensino vigente no Brasil. Do ponto de vista do negócio, o pensamento do dono e fundador da Estácio de Sá é de uma coerência total: ele diz que “a pesquisa é uma inutilidade pomposa, é uma perda de tempo federal”, ou que o analfabetismo não é um problema para ele, já que “estudar é uma opção, quem quiser faz, quem não quiser não faz, e não fica pior porque não faz”. Também é totalmente coerente para o pragmatismo empresarial que nos diga: “Eu não me interessei pela educação e nem acho que eu seja uma pessoa muito interessada em educação. [...] Estou interessado no Brasil? Não, não estou interessado no Brasil. Na cidadania? Também não. Na solidariedade? Também não. Estou interessado na Estácio de Sá. Ou seja, estou interessado no meu negócio”. Claro que para quem pensa a educação como um direito social e subjetivo, e não um produto ou mercadoria, e base de um projeto estratégico para a construção de um país soberano, com uma identidade cultural e com produção de ciência e tecnologia, a franqueza do empresário fundador da Estácio espanta. Mas louve-se a sinceridade. Gostaria de sustentar, todavia, que o dono e fundador da Estácio está profundamente errado quando atribui o sucesso do seu negócio à sorte ou ao fato de que na Estácio de Sá se “trabalha muito” e se tem uma estratégia de trabalho descentralizado. Com igual sucesso ao da Estácio existem dezenas de megaempreendimentos, do Sul ao Norte, que fazem do ensino um negócio dos mais rentáveis, e que isso não advém da sorte ou do trabalho duro. Isso é profundamente falso. Poderíamos falar da maior universidade do país hoje – a UNIP –, cujos jornais há alguns meses sinalizam que um de seus donos comprou a vaca mais cara que já se vendeu no país. Se a Estácio é gerida com a perspectiva de um banqueiro, a UNIP será na perspectiva do investidor em fazendas, em vacas de raça. Já tínhamos, nos anos 1980, a “universidade do gás encanado”, ⁸⁵ como se referiu Francisco de Oliveira à Universidade de Fortaleza (UNIFOR). A lista se amplia a cada dia, pois no ano 2000 a Organização Mundial do Comércio (OMC) sinalizou aos investidores que a área da educação seria um grande negócio. Onde está, então, a resposta do sucesso? A verdade está em que isso se deve a uma política que se constrói no Brasil desde a ditadura civil-militar de 1964, mas que é competentemente concebida e executada no contexto da ditadura do mercado ou daquilo que James Petras e H. Veltemeyer explicitam no livro Brasil de Cardoso – A desapropriação do país (2001).
Os protagonistas das reformas do ensino não veem necessidade de que a universidade seja pública e que se produza, entre nós, pesquisa básica ou aplicada. Não é, então, casual que o ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, tenha a mesma visão em relação à pesquisa na universidade que o empresário/fundador da Estácio de Sá. A revista Exame (17 de julho de 1996, p. 46) sintetiza um pronunciamento do atual Ministro da Educação falando aos homens de negócio. Segundo o ministro a ênfase no ensino universitário foi uma característica de um modelo de desenvolvimento auto-sustentado desplugado da economia internacional e hoje em estado de agonia terminal. “Para mantê-lo era necessário criar uma pesquisa e tecnologia próprias”, diz Paulo Renato. “Com a abertura e globalização, a coisa muda de figura. O acesso ao conhecimento fica facilitado, as associações e joint ventures se encarregam de prover as empresas dos países como o Brasil do know-how que necessitam. Alguns países como a Coréia chegaram a terceirizar a universidade”, diz Paulo Renato. “Seus melhores quadros vão estudar em escolas dos Estados Unidos e da Europa. Faz mais sentido do ponto de vista econômico”. O sucesso das empresas de ensino como a Estácio, a UNIP, etc. decorre, sobretudo, do fato de que o seu maior aliado é o Estado privatizado e privatizante gerido por competentes doutores, diplomados em universidades de elite do exterior (estas que fazem mais sentido) e nos organismos internacionais. A equação do sucesso é, então, linear e olímpica: ao mesmo tempo que se desmonta a universidade pública, derrota-se o projeto da LDB e o Plano Nacional de Educação debatidos por 34 instituições científicas e sindicais e negociados por 10 anos com todas as tendências políticas e aprova-se uma LDB e Plano Nacional, pelo alto, minimalistas e flexíveis como convém ao mercado. Mas isso não é tudo, o governo promulga uma legislação, espécie de “lei da vadiagem” aplicada aos recém-libertos para obrigá-los a venderem sua força de trabalho ao magistério do ensino básico. Em 10 anos, agora apenas cinco ou seis, todos os professores deverão ter título de ensino superior ou correm o risco de perder o direito de lecionar. Cria-se no magistério aquilo que Boaventura de Sousa Santos denomina “fascismo da insegurança”. O mercado do ensino, no varejo e no atacado, tem demanda sob pressão. Mais que isso, as prefeituras compram com o fundo público vagas, cuja inadimplência é praticamente zero. A Estácio, mas não só ela, é mestra e doutora nesse seguro negócio . Agora, por uma benesse do MEC no atacado, os empresários do ensino bem-sucedidos no nada consensual Provão podem ampliar seu negócio com o acréscimo de 50% de vagas. Estranho, também, que o dono e fundador da Estácio nos diga que “mestres e doutores demais não é bom” (F RIGOTTO , 2001, p. 12) e que seu interesse não é educação mas que ao mesmo tempo crie uma pós- graduação em Educação e para credenciá-la contrata, como todas essas empresas que têm o ensino como negócio, mestres e doutores formados e/ou aposentados, em sua maioria, nas universidades públicas. Diga-se, aliás, grande parte pesquisadores e autores e que não necessariamente pensam como seus
patrões. Isso tudo tem um altíssimo investimento do fundo público apropriado olimpicamente de graça. Isso me leva a concluir que não se trata de quaisquer homens de negócio. São homens de negócio moldados numa cultura que nos ajuda a entender por que, no início do século XXI, milhões de brasileiros são analfabetos, qual o motivo de termos a mais iníqua distribuição de renda e por que quatro milhões de famílias são sem terra e 50 milhões de brasileiros estão no nível da miséria absoluta. É essa vanguarda e os que privatizam o Estado, que Florestan Fernandes tanto combatia, pois nos dizia que são os que decretam a continuidade de um Brasil de dimensões continentais, mas frágil, porque é pautado por interesses externos. O que é uma forma de permanecer na ilusão da liberdade (F ERNANDES , 1981). Se você julgar que esta breve análise tem sentido, certamente entenderá por que há 90 dias os professores das universidades federais estão em greve e o que eles estão defendendo. Referências FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil . Rio de Janeiro: Zahar, 1981. FRIGOTTO, G. Os “homens de negócio” e a política educacional do MEC. Folha Dirigida , Rio de Janeiro, 20-26 de novembro de 2001, p. 12. PETRAS, J.; VELTEMEYER, H. Brasil de Cardoso – A desapropriação do país. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. SOUZA, P. R. Entrevista. Revista Exame , v. 30, n. 15, 17 jul. 1996, p. 46. ⁸⁴ Este artigo, com alguns pequenos acréscimos, foi publicado no jornal Folha Dirigida , Caderno Educação, Rio de Janeiro, 20 a 26 de novembro de 2001, p. 12. ⁸⁵ Trata-se de uma referência aos criadores da Universidade, donos da empresa que ganhou a concorrência para instalar em Fortaleza as tubulações de gás. Ensino médio e educação profissional: a ruptura com o dualismo estrutural
⁸⁶ 1- Como romper com o histórico dualismo entre o ensino médio e a educação profissional no Brasil? O dualismo da educação é elemento estrutural das sociedades de classe. Todavia, ele se manifesta de forma diversa e em formações sociais
específicas. A sociedade brasileira tem forjado um projeto societário dos mais desiguais do mundo, combinando a cultura escravocrata com o capitalismo selvagem. As lutas sociais ao longo do século XX foram incapazes de romper o tecido estrutural de uma das sociedades mais desiguais do mundo com uma criminosa concentração de renda e capital na mão de poucos e uma massa imensa de pobres e miseráveis. Uma espécie de ornitorrinco, na metáfora de Francisco de Oliveira. “ O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão.” ⁸⁷ Uma sociedade onde analfabetismo, trabalho informal, baixos níveis de escolaridade não são, como mostra esse autor, um problema, mas ao contrário inerentes e funcionais ao seu modo de ser. A minimização da dualidade na educação implicaria efetivar o que a geração de intelectuais do pensamento social crítico entendia como Revolução Nacional. Não se tratava de uma revolução socialista, mas condição prévia de sua possibilidade futura em termos reais, pois o socialismo não resulta do quanto pior, melhor. Tratava-se de afirmar um projeto de desenvolvimento autônomo e soberano com reformas estruturais que permitissem efetiva distribuição de renda e integrar as massas, o povo, à vida digna com acesso ao trabalho, moradia, saúde, educação e cultura. Diferentes forças da sociedade brasileira buscaram esse caminho após a ditadura Vargas. Houve uma intensa mobilização da sociedade no campo intelectual, cultural e artístico, educacional e político. Movimento que a classe dominante brasileira interrompeu, apoiando-se na força das armas e do arbítrio pelo golpe e pela ditadura de 1964. Ao longo dos 20 anos de ditadura efetivou-se, sob a ideologia economicista do capital humano, reformas na educação da pré-escola à pós-gradução. O dualismo foi fortemente solidificado. Mas ditadura é expressão de falta de hegemonia e, portanto, o dissenso permanece ainda que latente. Com efeito, no seio da própria ditadura a sociedade se mobilizou até finalmente, na década de 1980, selar seu fim. E foi na década de 1980 que a agenda das reformas de base e da escola pública, universal, gratuita, laica, foi retomada, acrescida, no campo educacional, das teses da escola unitária e politécnica do pensamento socialista. Uma década de intensas disputas de ideias e de projeto societário. A constituição sinalizou avanços, mas nem na sociedade nem na educação capazes de rupturas estruturais. Mas o pior estava por vir. A década de 1990, iniciada pelo Governo Fernando Collor de Mello foi a década do ajuste às reformas neoliberais que implicou a venda do patrimônio público e a destruição da face pública do Estado. Coube essa tarefa antinação ao presidente Fernando Henrique Cardoso, que, ao longo de oito anos, a cumpriu à risca. Na educação o ministro Paulo Renato de Souza, intelectual forjado nos organismos internacionais e membro deles, mediante o Decreto 2.208/96 acabou por ampliar a dualidade, desmontando já a precária integração da formação profissional do ensino médio e implementando diferenciações dentro da dualidade. Ademais estendeu a dualidade no ensino superior. Às universidades federais, mas nem todas, destinam-se dominantemente as classes dirigentes, e o ensino privado de baixa qualidade – universidades, centros, cursos isolados privados que transformam o ensino num serviço mercantil – fica reservado a
setores mais pobres da classe média, já que a maioria da classe trabalhadora da cidade e do campo não chega ao ensino superior. A eleição de Luiz Inácio da Lula da Silva, com a base social que o elegeu, criou a possibilidade de fazer mudanças estruturais e refundar a nação e, na expressão de Francisco de Oliveira, firmar um marco de não retorno. Para isso, de acordo com Oliveira, seriam necessárias medidas de uma radicalidade que fossem além de um simples governo desenvolvimentista (O LIVEIRA , 2003a). Como mostra esse autor, todavia, o marco de não retorno não se efetivou e no estrutural continuamos na lógica da modernização que significa abertura de espaços para o capital. ⁸⁸ A anulação do Decreto 2.208/92 e a criação do Decreto 5.154/04 abriram a possibilidade da volta do ensino médio integrado, mas manteve todas as outras possibilidades advindas do decreto anterior. Por um lado o não empenho efetivo do governo, nem mesmo na rede federal, na defesa do ensino médio integrado e dentro de uma concepção integral e no horizonte da escola unitária e politécnica e, de outro a doutrinação da década de 1990, resultaram na afirmação da dualidade e das diferenciações dentro dela. O breve retrospecto até aqui assinalado indica como o romper com a dualidade estrutural é uma equação complexa que não se resolve com reformas apenas no campo da educação. Elas são significativas quando resultam de mudanças estruturais na ordem social, econômica e cultural da sociedade. 2- Quais os limites e as possibilidades das políticas para o ensino médio e a educação profissional num cenário em que essa etapa/modalidade da educação básica é predominante nos estados e no Distrito Federal, e considerando, ainda, que grande parte das propostas de sua mudança e reforma decorrem do governo federal? O que acabamos de expor na resposta anterior sinaliza a questão de fundo que impõe enormes limites a uma política que possa alterar substantivamente a atual situação do ensino médio em termos de sua universalização e de sua proposta pedagógica que articule ciência, trabalho e cultura. Mas há limites também de ordem política. O mais geral é o de que constitucionalmente o ensino médio é atribuição dos estados da federação, que atendem aproximadamente 90% dos alunos matriculados neste nível, cabendo à União apenas uma atuação complementar. Mesmo que haja leis que obriguem os estados a gastarem 25% do seu orçamento em educação, a desigualdade regional por um lado e, por outro, os vários mecanismos de burlar esse montante acabam tendo em cada estado um sistema e uma qualidade do ensino médio. O FUNDEB está equalizando melhor, mas por baixo, pois acaba fazendo transferências de recursos de uma região a outra nivelando o custo médio por aluno em menos de três mil reais. Isso é pelo menos três vezes menos do que aquilo que a União gasta com os aproximados 2% de matrícula de ensino médio que atende, uma mesma proporção em relação a padrões internacionais de sociedades com PIB similar ou até menor que do Brasil. A outra dificuldade é na concepção do ensino médio. O horizonte da proposta de ensino médio integrado facultado pelo Decreto 5.154/04, cuja
concepção centra-se num conteúdo e método que articulam ciência, trabalho e cultura e na perspectiva da escola unitária e politécnica, não vingou nem mesmo na rede federal pelo fato de o governo não ter disputado politicamente tal perspectiva. Assim, o esforço positivo da significativa expansão com a criação e interiorização dos IFETS, ainda que numericamente em termos globais não altere a situação do ensino médio, corre o risco de pautar-se pela fragmentação ou pela simples justaposição das disciplinas de fundamentos com as técnicas e tecnológicas. 3- Quais os principais desafios para a garantia da universalização do ensino médio até 2016, considerando-se os indicadores atuais de acesso e permanência? Os desafios são de ordem econômica, política e organizacional. No plano econômico o primeiro limite é a fixação no novo PNE de 7% do PIB para a educação e ainda progressivo. Montante imposto pelo dogma metafísico do ajuste econômico que postula a manutenção de reservas para garantir o crime da especulação financeira e o pagamento de juros da dívida interna de famílias e grupos que acumularam fortunas dentro de uma legalidade cujo fundamento é a “justeza da injustiça”. Esse montante até pode ampliar o acesso, mas dentro de uma qualidade pífia, pois não permitirá um salário digo aos trabalhadores da educação e dentro de uma carreira que os fixe numa só escola, com no máximo 50% da carga horária em sala de aula, como é atualmente o regime da rede federal. Se de fato as classes dirigentes priorizassem a educação o caminho seria inverso. Um investimento inicial de mais de 10% do PIB por alguns anos até pagar a dívida social aos milhares de jovens que não fazem o ensino médio e melhorar a qualidade dos que o fazem de forma pífia. Daí, ir decrescendo aos patamares dos 7%. No plano político o desafio se apresenta na luta por remover o conservadorismo da classe dominante no campo da educação. Os parlamentares que elaboraram a Constituição e que expressam quase de forma absoluta os interesses das diferentes frações da classe dominante brasileira mantiveram a educação como um tema de segunda categoria . No plano político organizativo, a proposta da CONAI e do PNE de um sistema articulado de educação é outro desafio a ser enfrentado, pois as propostas aí contidas vem sendo desfiguradas. 4- Que políticas, programas e ações contribuem para a articulação/ integração ensino médio e educação profissional no País? A proposta do ensino médio integrado, na concepção anteriormente assinalada, é sem dúvida a política mais adequada para, ao mesmo tempo, superar o academicismo, a fragmentação e o tecnicismo que têm marcado historicamente a formação profissional. Por certo não é a mesma coisas que o ensino médio unitário politécnico e/ou tecnológico, mas é um grande passo na sua direção. Isso implicaria políticas e ações de escolas com espaço físico adequado em termos de salas de aula, laboratórios, biblioteca, espaço para arte, praça de esportes e espaço para as atividades de gestão e para os professores. Políticas que afirmassem nacionalmente uma mesma carreira nacional para os professores e demais trabalhadores na escola, com um piso médio
equivalente à rede federal, com tempo de pelo menos 50% da carga horária para estudo, pesquisa, orientação, reuniões coletivas, etc., espaços de esporte e lazer, etc. 5- Que fatores contribuem para a evasão e a repetência no ensino médio brasileiro? O mais fundamental, sem dúvida, é a situação socioeconômica dos alunos, uma vez que a maioria dos que estudam no turno noturno o faz por necessidade. Por outro lado as condições de trabalho docentes, a maioria trabalhando até em dois ou mais turnos e instituições, inviabiliza qualquer trabalho de acompanhamento efetivo dos alunos com dificuldades. Há também uma desmotivação por frequentar a escola, uma vez que os jovens percebem que sua promessa integradora ao emprego e melhorias de vida cada vez menos se cumpre. 6- As avaliações da educação básica, especialmente no ensino médio e na educação profissional, contribuem para o desenvolvimento das instituições educativas e para a melhoria do processo ensino aprendizagem? Por quê? Em que medida? A avaliação é fundamental em qualquer atividade humana. Porém, da forma produtivista e reducionista como é feita, a ótica classificatória com perspectiva de premiar os melhores e mesmo ser referência para professores é profundamente negativa, desagregadora e deseducativa. Sem levar em conta a desigualdade real onde atuam as escolas, as condições sociais dos alunos e condições de trabalho docentes, as avaliações se tornam cínicas. Elas têm sentido se forem para fazer um diagnóstico do sistema de ensino e orientar políticas para melhorá-lo. 7- As Diretrizes Curriculares Nacionais, recém-aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação, contribuem para a melhoria da formação e/ou a organicidade curricular do ensino médio e educação profissional? Na verdade o Conselho Nacional de Educação, ao aprovar as diretrizes do ensino médio não incorporando na mesma normatização e concepção as diferentes modalidades, reforça a fragmentação e a dualidade. Se de um lado as diretrizes aprovadas de ensino médio expressam um significativo avanço na compreensão de sua natureza de educação básica, as versões até agora apresentadas das Diretrizes da Educação Técnica e Profissional são um retrocesso, porque são pautadas sobre a perspectiva do produtivismo da pedagogia das competências. Os remendos que estão sendo feitos tornam as propostas que se sucedem num monstrengo, na sua concepção e forma. A Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação acaba assim legalizando a inorganicidade, a fragmentação e o antagonismo de concepções. Enquanto as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de Nível Médio incorporam as perspectivas da Conferência Nacional de Educação, resultantes de intensos debates e contribuições dos educadores, das redes de ensino, dos pesquisadores da área e das entidades científicas, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Técnico e Profissional de Nível Médio da Educação Técnica e Profissional expressam a visão unidimensional do pensamento mercantil/ empresarial.
8- Qual a identidade do ensino médio? Mesmo existindo diferentes modalidades de ensino médio (integrado, inovador, técnico, PROEJA), a identidade constitucional é de ser a última etapa da educação básica. O horizonte de afirmação de sua identidade é, pois, de ensino médio unitário dentro da concepção da educação politécnica/ tecnológica. 9- É possível garantir sólida formação teórica mais o preparo dos alunos para o mundo do trabalho? O que diferencia a concepção de formação centrada em competências da concepção centrada em habilidades? O ensino médio, qualquer que seja a sua modalidade, concebido como educação básica, por não se constituir numa contradição em termos, não é imediatamente profissionalizante. Poderá garantir formação sólida e preparar para o mundo do trabalho quanto mais se aproximar da concepção da educação politécnica, pois esta busca a superação da fragmentação dos conhecimentos, da separação entre educação geral e específica, técnica e política e à divisão entre trabalho manual e intelectual e afirma o domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho moderno na relação entre educação, instrução e trabalho. Tanto a formação centrada em habilidades quanto a entrada em competências partem de um mesmo fundamento: a concepção produtivista e mercantil de educação. 10- A frequência às atividades de lazer e cultura interfere no processo formativo dos estudantes da educação básica? Por que, em que medida? Escola que não tenha espaços e tempos para a arte, a cultura, o lazer e o esporte é uma pobre escola, e isso esgarça o processo formativo. Especialmente para crianças e jovens das classes populares, essas atividades, além de serem formativas em si, constituem-se na porta de entrada para a afirmação e autoestima, elementos importantes para se ter confiança no processo de aprendizagem. Lamentavelmente, a maioria das escolas não tem espaço físico, e nem mesmo no currículo, para essas atividades. Os alunos de nível médio que o fazem no turno noturno, que são a maioria, são mutilados na sua formação dessas atividades. 11- Quais são os insumos imprescindíveis a um padrão unitário de qualidade para o ensino médio e a educação profissional? A Conferência Nacional de Educação apontou todos os insumos básicos necessários relativos à concepção de educação que articule ciência, trabalho e cultura, salários compatíveis aos do corpo docente e demais trabalhadores da escola, fixação numa mesma escola e não mais de 50% do tempo em sala de aula. Como sublinhamos, elevar ao padrão da rede federal todas as escolas de ensino médio. Mas isso não garantiria a universalização com qualidade do ensino médio sem melhorar drasticamente a distribuição de renda. Milhões de jovens têm sua vida mutilada desde a alimentação, condições de moradia, locomoção, etc. 12- Como garantir ensino médio e educação profissional com qualidade, inclusive no turno noturno?
O turno noturno, quando tivermos uma sociedade menos desigual e injusta, deveria desaparecer. Ele é uma imposição da necessidade do jovem que estuda e trabalha ou procura trabalho. Como a realidade nos fala o contrário, para minimizar deveria ser um curso mais longo, com professores e equipes pedagógicas com mais tempo e preparo para se dedicarem a essa realidade e uma equipe de apoio pedagógico com maior tempo e preparo para auxiliar. Em termos materiais deveriam ser escolas mais bem equipadas que as diurnas. Uma bolsa de estudos para que esses jovens pudessem ter uma melhor qualidade de vida e acesso a bens culturais certamente teria efeitos positivos no processo formativo. 13- A universalização do ensino médio, a integração ensino médio e educação profissional e a oferta de escola de tempo integral são grandes desafios para o novo Plano Nacional de Educação. Como democratizar o acesso e a permanência e consolidar as instituições públicas nesse contexto? Os desafios apontados na pergunta, pelo que vem se evidenciando nos desdobramentos do Plano Nacional de Educação em debate no Congresso, não terão desfecho facilmente favorável. O Plano Nacional de Educação vem sofrendo o mesmo processo que ocorreu com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação na década de 1990. As forças conservadoras vão estilhaçando uma a uma as proposições das organizações científicas e sindicais dos educadores mediante destaques, supressões e alterações. O que está ficando cada vez mais claro é que o ideário mercantilista e produtivista, sobre o qual Dermeval Saviani denominou de pedagogia de resultados , que caracteriza o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) sob o falso lema todos pela educação, está subordinando o PNE. Isso decorre, em grande parte, pelo fato de as forças políticas que assumiram o governo em 2003 terem optado pela conciliação daquilo que Florestan Fernandes (1980, p. 145) denominou o erro de sua geração e que se expressa hoje no PDE. “Não foi um erro confiar na democracia e lutar pela revolução nacional. O erro foi outro – o de supor que se poderiam atingir esses fins percorrendo a estrada real dos privilégios na companhia dos privilegiados. Não há reforma que concilie uma minoria prepotente a uma maioria desvalida”. Se não houver uma unidade forte dos movimentos sociais, sindicatos e organizações científicas empenhadas em transformar esses desafios em realidade, corre-se o risco de dentro de dez anos continuarmos com os mesmos desafios. Essa cultura protelatória é expressão do caráter antissocial e antinação da minoria prepotente que constitui a classe dominante brasileira. Sem essa confrontação clara nas ideias e na ação, não haverá mudanças estruturais na sociedade e na educação. Rio de Janeiro, 22 de julho de 2011 Referências FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil . Petrópolis: Vozes, 1980. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco . São Paulo: Boitempo, 2003a .
OLIVEIRA, Francisco de. Entrevista concedida a Fernando Haddad e Leda Paulani. Revista reportagem , n. 41, fev. 2003b. OLIVEIRA, Francisco de. Hegemonia às avessas. In: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy; RIZEK, Sibele. Hegemonia às avessas . São Paulo: Boitempo, 2010. ⁸⁶ Publicado na revista Retratos da Escola , Brasília, v. 5, n. 8, p. 11-24, jan./ jun. 2011. Participaram também da entrevista os professores Pedro Demo e Eliezer Pacheco. ⁸⁷ Para maior compreensão de nossa especificidade societária, ver OLIVEIRA , 2003a, p. 150. ⁸⁸ Dois pequenos textos de Francisco de Oliveira explicitam a possibilidade do não retorno e o caminho desviante, que, em vez de socializar a política, acabou anulando-a: “Entrevista concedida a Fernando Haddad e Leda Paulani” (OLIVEIRA, 2003b) e “Hegemonia às avessas” (OLIVEIRA, 2010, p. 21-29).
Produção bibliográfica Artigos completos publicados em periódicos 1- FRIGOTTO, Gaudêncio. Financiamento da educação vocacional na América Latina. Rio de Janeiro, Revista Fórum Educacional , n. 2, 1977. 2- FRIGOTTO, Gaudêncio. Criação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro: reflexões sobre reforma educativa, investimento em educação e transferência de tecnologia. Rio de Janeiro, Revista Fórum Educacional , n. 4, 1977. 3- FRIGOTTO, Gaudêncio. Ensino pago: a inversão autoritária – o estado educador e a sociedade civil quem paga a educação. Cadernos CEDES , n. 5, CAMPINAS, SP. 1981. 4- FRIGOTTO, Gaudêncio. Fazendo pelas mãos a cabeça do trabalhador: o trabalho como elemento pedagógico na formação profissional. Rio de Janeiro: SENAC/DIPLAN , 1983. p 175-192. 5- FRIGOTTO, G. Trabalho como princípio educativo: por uma superação das ambiguidades. Boletim Técnico do SENAC , 11(3): set.-dez., 1985. p. 1-14 6- FRIGOTTO, Gaudêncio; FRANCO, Maria Ciavatta . As faces históricas do trabalho: como se constroem categorias. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos , Brasília, v. 174, n. 178, p. 529-554, 1993. 7- FRIGOTTO, Gaudêncio. Ideologia. Revista Presença Pedagógica , v. 1, n. 3, 1995. 8- FRIGOTTO, Gaudêncio. Dialogando. Boletim da Faculdade de Educação , Goiânia, v. 1, n. 1, p. 1-2, 1995.
9- FRIGOTTO, Gaudêncio. Trabalho e educação: um olhar multi-referencial. Perspectiva , Florianópolis, v. 4, n. 26, p. 7-12, 1996. 10- FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria . Reconstruindo coletivamente a trama histórica do mundo do trabalho e da Educação. Revista Trabalho e Educação Em Perspectivas , Belo Horizonte, v. 1, p. 161-173, 1997. 11- FRIGOTTO, Gaudêncio. Apresentação: Trabalho-educação – um olhar multi-referencial. Revista Perspectiva , Florianópolis, v. 1, n. 26, p. 7-12, 1997. 12- FRIGOTTO, Gaudêncio. O local face ao nacional e o global. Possibilidades e limites. Revista Tudo Flui Aduel , Londrina, v. 2, n. 2, p. 34-41, 1997. 13- FRIGOTTO, Gaudêncio. A mercantilização da educação e o processo democrático no Brasil. Democracia Viva , Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 82-88, 1998. 14- FRIGOTTO, Gaudêncio. Ciência e tecnologia. Revista Rumos , Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 42-45, 1998. 15- FRIGOTTO, Gaudêncio. Perspectivas da formação técnico-profissional. Boletim Técnico do SENAC , v. 25, n. 2, 1999. 16- FRIGOTTO, Gaudêncio. Brasil 500 anos. Um retrato da educação. Revista do Sepe , Rio de Janeiro, v. 1, n. 3, p. 18-21, 1999. 17- FRIGOTTO, Gaudêncio. No Brasil falta trabalho e não trabalhadores. Presença Pedagógica , Belo Horizonte, v. 5, n. 27, p. 5-14, 1999. 18- FRIGOTTO, Gaudêncio. De olho no próximo século. Presença Pedagógica , Belo Horizonte, v. 5, n. 26, p. 66-72, 1999. 19- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação, trabalho e desenvolvimento: contradições da atual política educacional. Revista da Diretoria de Engenharia da Aeronáutica , v. 18, p. 46-50, 2000. 20- FRIGOTTO, Gaudêncio. Crise do trabalho, formação profissional e reforma de ensino. Cadernos da Epsjv , Fiocruz, p. 45-59, 2000. 21- FRIGOTTO, Gaudêncio. Novos desafios para a formação do professor. Boletim do Nueph , Niterói, v. 12, p. 1-2, 2000. 22- FRIGOTTO, Gaudêncio. Modelos ou modos de produção. Revista da ABT , 2000. 23- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e formação técnico-profissional frente à globalização excludente e o desemprego estrutural. Revista do Sepe , Rio de Janeiro, v. 2, n. 56, p. 27-31, 2000. 24- FRIGOTTO, Gaudêncio. Estrutura e sujeito e os fundamentos da relação trabalho e educação. Trabalho & Educação (UFMG), v. 9, p. 14-26, 2001.
25- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e trabalho: bases para debater a educação profissional emancipadora. Perspectiva, Florianópolis, v. 19, 2001. 26- FRIGOTTO, Gaudêncio. Projetos societários e educacionais em disputa: uma análise conjuntural da educação nacional. Revista da III Conferência Estadual de Educação , Curitiba, p. 18-29, 2002. 27- FRIGOTTO, Gaudêncio. Ética, trabalho e educação. Revista de Educação , Conselho Estadual de Educação, Rio de Janeiro, v. 1, p. 13-15, 2002. 28- FRIGOTTO, Gaudêncio. O Fórum Mundial de Educação e as relações entre trabalho, tecnologia e formação humana. Revista de Educação Simpro , Campinas, v. 9, p. 13-18, 2002. 29- FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria . Educar o trabalhador cidadão produtivo ou o ser humano emancipado. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 1, p. 45-60, 2003. 30- FRIGOTTO, Gaudêncio. Expectativas sociais para a educação profissional. Revista Interagir , São Paulo, v. 1, n. 1, p. 41-44, 2003. 31- FRIGOTTO, Gaudêncio. A universidade e a formação dos professores. Interagir (UERJ), Rio de Janeiro, v. 1, n. 3, p. 93-100, 2003. 32- FRIGOTTO, Gaudêncio; FRANCO, Maria Ciavatta . Educação básica no Brasil na década de 90: subordinação ativa e consentida à lógica do mercado. Educação e Sociedade , Campinas, v. 24, n. 82, p. 93-132, 2003. 33- FRIGOTTO, Gaudêncio. A dupla face do trabalho: criação e/ou destruição da vida. Caminhando com o Itepa , Passo Fundo, v. 1, n. 69, p. 30-43, 2003. 34- FRIGOTTO, Gaudêncio. Inovação e construção do conhecimento. Interface. Comunicação, Saúde e Educação , Botucatu- UNES. São Paulo, v. 07, n. 13, p. 154-156, 2003. 35- FRIGOTTO, Gaudêncio; FRANCO, Maria Ciavatta . Educação básica no Brasil na década de 90: subordinação ativa e consentida. Trabalho, Educação e Saúde , Campinas, SP, v. 24, n. 82, p. 93-132, 2003. 36- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educar o trabalhador cidadão produtivo ou o ser humano emancipado. Educação e Sociedade , Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 45-60, 2003. 37- FRIGOTTO, Gaudêncio. Subsídios para o retorno às contribuições das instituições da sociedade civil e política na construção da versão final da minuta do Decreto que revoga e substitui o Decreto-Lei 2.208/97. SEMTEC/ MEC , Brasília, p. 8-8, 2004. 38- FRIGOTTO, Gaudêncio. Gênese e estado atual dos conflitos sociais na Colômbia. Trabalho Necessário (On-line), v. 03, p. 01-06, 2005. 39- FRIGOTTO, Gaudêncio. Mudanças societárias e as questões educacionais da atualidade no brasil. Ciência & Opinião , Curitiba, v. 1 e 2, p. 15-28, 2005.
40- FRIGOTTO, Gaudêncio. A política de educação profissional no Governo Lula: um percurso histórico controvertido. Educação e Sociedade , Campinas, v. 26, p. 1087-1113, 2005. 41- FRIGOTTO, Gaudêncio. Nova hegemonia mundial. Alternativas de mudanças e movimentos sociais . Nómadas (Santafé de Bogotá), Colômbia, v. 22, p. 330-336, 2005. 42- FRIGOTTO, Gaudêncio. O Brasil e a política econômico-social: entre o medo e a esperança. Observatório social de América Latina , Buenos Aires, v. 14, p. 95-104, 2005. 43- FRIGOTTO, Gaudêncio. Universidade pública, trabalho e projeto de desenvolvimento no Brasil: desafios e perspectivas. FORGrad em Revista , v. 1, p. 17-26, 2006. 44- FRIGOTTO, Gaudêncio; PEREIRA, J. C. L. Trabalho e educação: que trabalho (de)forma o cidadão? Práxis Educacional , Vitória da Conquista, BA, v. 1, n. 1, p. 233-245, 2006. 45- FRIGOTTO, Gaudêncio. Mudanças societárias e crise do emprego. Sinais Sociais , v. 1, p. 44-75, 2007. 46- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação profissional e capitalismo dependente: o enigma da falta e sobra de profissionais qualificados. Trabalho, Educação e Saúde , v. 5, p. 521-536, 2007. 47- FRIGOTTO, Gaudêncio. A relação da educação profissional e tecnológica com a universalização da educação básica. Educação e Sociedade , v. 28, p. 1129-1152, 2007. 48- FRIGOTTO, Gaudêncio. Escola pública brasileira na atualidade: lições da história. Diálogos Pedagógicos , v. 3, p. 11-34, 2007. 49- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação profissional e capitalismo dependente: o enigma da falta e sobra de profissionais qualificados. Trabalho, Educação e Saúde , v. 5, p. 521-536, 2008. 50- FRIGOTTO, Gaudêncio. Ensino médio no Brasil: juventude com o futuro interditado. Salto para o Futuro , v. 18, p. 24-29, 2009. 51- FRIGOTTO, Gaudêncio. Teoria e práxis e o antagonismo ente formação politécnica e as relações sociais capitalistas. Trabalho, Educação e Saúde (Impresso), v. 7, p. 67-82, 2009. 52- FRIGOTTO, Gaudêncio. Investigación en el campo social y contexto histórico: Dimenciones teóricas, económico-sociales y ético-políticas. Voces , Barcelona, v. 1, p. 09-23, 2009. 53- FRIGOTTO, Gaudêncio. A polissemia da categoria trabalho na batalha das ideias nas sociedades de classe. Revista Brasileira de Educação , v. 14, p. 168-194, 2009.
54- FRIGOTTO, Gaudêncio. Exclusão e/ou inclusão social? Questões teóricas e político práticas. Cadernos de Educação (UFPel), v. 1, p. 417-442, 2010. 55- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação contemporânea: Disputa de concepções, práticas e caminhos. Revista APASE , São Paulo, v. 1, p. 59-64, 2010. 56- FRIGOTTO, G.; CUNHA, M. B. O trabalho em espiral: uma análise do processo de trabalho dos educadores em saúde nas favelas do Rio de Janeiro. Interface (Botucatu. Impresso), v. 1, p. 00-00, 2010. 57- FRIGOTTO, Gaudêncio; MOLINA, Helder. Estado, educação e sindicalismo no contexto da regressão social . Retratos da Escola , v. 4, p. 37-53, 2010. 58- FRIGOTTO, Gaudêncio. Entrevista. Tantas Palavras , v. 13, p. 6-9, 2011. 59- FRIGOTTO, Gaudêncio; SANDER, Beno; PACHECO, Eliezer. Ensino médio e a educação profissional: a ruptura com o dualismo estrutural. Retratos da Escola , v. 5, p. 11-24, 2011. 60- FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria . Perspectivas sociais e políticas da formação de nível médio: avanços e entraves nas suas modalidades. Educação & Sociedade (Impresso), v. 32, p. 619-638, 2011. 61- FRIGOTTO, Gaudêncio. Os circuitos da história e o balanço da educação no Brasil na primeira década do século XXI. Revista Brasileira de Educação (Impresso), v. 16, p. 235-254, 2011. Livros publicados/organizados ou edições 1- FRIGOTTO, Gaudêncio. Formação profissional e desenvolvimento econômico . Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1979. 2- FRIGOTTO, Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva . São Paulo: Cortez, 1984. 3- FRIGOTTO, Gaudêncio. (Org.) Trabalho e conhecimento : dilemas na educação do trabalhador . São Paulo: Cortez, 1987. 4- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e trabalho : Dilemas na educação do trabalhador . São Paulo: Cortez, 1987. 5- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real . 1. ed. São Paulo: Cortez, 1995. V. 1. 231 p. 6- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e crise do trabalho : perspectiva de final de século . 1. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. V. 1. 230 p. 7- FRIGOTTO, Gaudêncio. La produtividad de la escuela improductiva . 1. ed. Buenos Aires, Madrid: Miño y D’Ávila, 1998. v. 1. 259 p.
8- FRIGOTTO, Gaudêncio; GENTILI, P. (Orgs.). A cidadania negada – políticas de exclusão na educação e no trabalho . 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. 273 p. 9- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Teoria e educação no labirinto do capital . 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 188 p. 10- FRIGOTTO, Gaudêncio; GENTILI, P. A cidadania negada – políticas de exclusão na educação e no trabalho . 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002. 11- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). A experiência do trabalho e a educação básica . 1. ed. Rio de Janeiro: DPA, 2002. 12- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Trabalho e conhecimento : dilemas na educação do trabalhador . 4. ed. São Paulo: Cortez, 2002. 13- FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Orgs.). Teoria e educação no labirinto do capital . 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. 14- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e a crise do capitalismo real . 5. ed. São Paulo: Cortez, 2003. v. 1. 231 p. 15- FRIGOTTO, Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva . 7. ed. São Paulo: Cortez, 2004. 16- FRIGOTTO, Gaudêncio; FRANCO, Maria Ciavatta (Orgs.). Ensino Médio – Ciência, cultura e trabalho . Brasília. Brasília: MEC, 2004. V. 1. 338 p. 17- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e trabalho : dilemas na educação do trabalhador . 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005. 18- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e crise do trabalho : perspectiva de final de século . 7. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. 19- FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria ; RAMOS, Marise. Ensino médio integrado : concepção e contradição . 1. ed. São Paulo: Cortez, 2005. 176 p. 20- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação profissional e tecnológica : memória, contradições e desafios . 1. Campos, RJ: Essentia, 2006. V. 1. 449 p. 21- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e crise do capitalismo real . 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. v. 3000. 230 p. 22- FRIGOTTO, Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva . 8. ed. São Paulo: Cortez, 2006. V. 3000. 234 p. 23- FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Orgs.). A formação do cidadão produtivo : a cultura do mercado do ensino médio técnico . Brasília: INEP, 2006.
24- FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria ; RAMOS, Marise (Orgs.). Novas e antigas faces do trabalho e da educação . 1. ed. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2008. V. 500. 216 p. 25- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e crise do trabalho : perspectivas de final de século . 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. V. 3.000. 230 p. 26- FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século . 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. V.1. 260 p. 27- FRIGOTTO, Gaudêncio; RUMMERT, Sônia Maria; CANÁRIO, Rui (Orgs.). Política de formação de jovens e adultos no Brasil e em Portugal . 1. ed. Niterói, RJ: Ed. UFF, 2009. V. 1. 232 p. 28- FRIGOTTO, G.; GENTILI, P.; LEHER, R.; STUBRIN, F. (Orgs.). Políticas de privatización, espacio público y educación en Americalatina . 1. ed. Buenos Aires: Homo Sapiens, 2009. V. 1500. 405 p. 29- FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Orgs.). A experiência do trabalho e a educação básica . 3. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. V. 1. 133 p. 30- FRIGOTTO, Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva . 9. ed. São Paulo: Cortez, 2010. v. 1. 263 p. 31- FRIGOTTO, Gaudêncio; KUENZER, Acácia; GENTILI, P. (Orgs.). Educação e crise do trabalho : perspectivas de final de século . 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. v. 1. 230 p. 32- FRIGOTTO, Gaudêncio; ORG, G. F.; KUENZER, Acácia; GENTILI, P. (Orgs.). Educação e crise do trabalho . 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. v. 2500. 230 p. 33- FRIGOTTO, Gaudêncio; ROSELI, Salete Caladart; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo (Orgs.). Dicionário da Educação do Campo . 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012. v. 1. 887 p. Capítulos de livros publicados 1- FRIGOTTO, G. O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In: FAZENDA, I. (Org.). Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1989. 2- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e formação humana: Ajuste neoconservador e Alternativa democrática. In: GENTILI, Pablo; SILVA, Tomaz Tadeu (Orgs.). Neoliberalismo, qualidade total e educação : visões críticas . 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1994, v. 1, p. 31-92. 3- FRIGOTTO, Gaudêncio. Fundamentos de um projeto político-pedagógico. In: Vários. (Org.). Dermeval Saviani e a Educação Brasileira . São Paulo: Cortez, 1994, v., p. 180-195.
4- FRIGOTTO, Gaudêncio. Delírios da razão. Crise do capital e metamorfose conceitual no campo educacional. In: GENTILI, Pablo (Org.). Pedagogia da Exclusão : crítica ao neoliberalismo na educação . Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, v., p. -. 5- FRIGOTTO, Gaudêncio. Construção social do conhecimento e cultura tecnológica. In: Vários. (Org.). Paixão de Aprender II . Rio de Janeiro: Vozes, 1995, v., p. -. 6- FRIGOTTO, Gaudêncio. Qualidade de vida, educação e universidade. In: MACHADO, C. L.; BRUM, R. F. (Org.). Olhares sobre o futuro . Porto Alegre: UNISSINOS, 1996, v., p. 84-110. 7- FRIGOTTO, Gaudêncio. A formação e profissionalização do educador novos desafios. In: SILVA, T. T.; GENTILI, P. (Orgs.). Escola S.A. – Quem ganha e quem perde no mercado educacional do neoliberalismo . Brasília: CNTE, 1996, v., p. 75-105. 8- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e mundo do trabalho - escola como ambiente de aprendizagem. In: CASALI, Alípio. (Org .). Anais do Seminário Internacional sobre Educação para o Trabalho. São Paulo: PUC/SP, 1996, v., p. -. 9- FRIGOTTO, Gaudêncio. Cidadania e formação técnico-profissional: desafios para o fim de século. In: SILVA, L. H. (Org.). Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996, v., p. 137-164. 10- FRIGOTTO, Gaudêncio. Propostas e reformas educativas e o desmonte da escola pública. In: DIAS, R. (Org.). O público e o privado na educação : a experiência da privatização do ensino em Maringá e temas afins . Maringá: SED, 1996, v., p. 135-147. 11- FRIGOTTO, Gaudêncio. Escola como ambiente de aprendizagem. In: CASALLI, Alípio. (Org.). Empregabilidade e educação: novos caminhos no mundo do trabalho . 1. ed. São Paulo: EDU/PUC, 1997, v. 1, p. 139-150. 12- FRIGOTTO, Gaudêncio. Lições do ato de orientar e examinar dissertações ou teses. In: BIANCHETTI, I. (Org.). Trama & texto – Leitura crítica e escrita criativa . 1. ed. São Paulo: Plexos, 1997, v. 1, p. 181-198. 13- FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e formação profissional frente à globalização excludente e o desemprego estrutural. In: PIANTAMURA, Vitangelo. (Org.). Escola cidadã no contexto da globalização . 1. ed. Rio de Janeiro - RJ: Vozes, 1998, v. 1, p. -. 14- FRIGOTTO, Gaudêncio. A ideologia que embala a galinha dos ovos de ouro. In: GUIMARÃES, Gonçalo. (Org.). Sindicalismo e cooperativismo . 1. ed. São Paulo: Unitrabalho e Reproarte, 1999, v. 1, p. 93-112.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gaudêncio Frigotto : um intelectual crítico nos pequenos e nos grandes embates / Maria Ciavatta , (Org.). -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2012. -- (Coleção Perfis da Educação, 6) Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-8217-067-0 1. Educação - Brasil 2. Educadores - Brasil 3. Frigotto, Gaudêncio I. Ciavatta, Maria. II. Série. 12-11987 CDD-370.92 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Educadores 370.92