Formação de uma Variedade Urbana e Semi-oralidade: O Caso do Recife, Brasil [Reprint 2014 ed.] 9783110933154, 348452314X, 9783484523142

The study describes the urban variety of Brazilian that developed in Recife in the 19th century. It begins with a genera

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Portuguese Pages 345 [348] Year 2003

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Table of contents :
1 Introdução
2 O Desenvolvimento Histórico do Português Brasileiro: elementos para urna história externa
2.1 Introdução
2.2 História externa e periodização histórica do português brasileiro
2.2.1 Períodos do desenvolvimento lingüístico
2.2.2 As fases segundo Silva Neto
2.2.3 Da formação das variedades rurais à elaboração da língua literária
2.3 Primeira fase: divisão do país em capitanias hereditárias e formação das variedades lingüísticas rurais
2.3.1 Contexto histórico
2.3.2 Multilingüismo e formação de variedades regionais
2.3.3 As línguas gerais indígenas: vida e decadência
2.3.4 As línguas africanas
2 .3.5 O pidgin da Costa da África
2.3.6 Línguas gerais africanas
2.3.7 As variedades lingüísticas regionais dos colonizadores
2.3.8 A formação das variedades rurais do português brasileiro
2.4 Segunda fase (I): descoberta do ouro nas Minas Gerais e modernização do Estado português. Pré-koineização da língua comum
2.4.1 Contexto histórico
2.4.2 Condições para a pré-koineização de variedades lingüísticas
2.4.3 Elementos de fermentação do português comum brasileiro
2.5 Segunda fase (II): Urbanização da sociedade brasileira. Formação das variedades urbanas e da lingua comum
2.5.1 Contexto histórico
2.5.2 O desenvolvimento de centras urbanos e a criação da imprensa. Elementos para a formação das variedades urbanas e do português comum brasileiro
2.5.3 Imprensa e formação de variedades urbanas
2.6 Segunda fase (III): Firn do tráfico de escravos. Estabilização das variedades urbanas e da língua comum
2.6.1 Contexto histórico
2.6.2 Estabilização das variedades urbanas e da língua comum
2.6.3 Mudança geracional das elites e estabilização da língua comum
2.6.4 O português falado pelo escravo
2.6.5 O ensino do português ao escravo
2.6.6 Quai foi o fim das línguas africanas no Brasil?
2.7 Terceira fase: Fim do predomínio das oligarquias e surto industrial. Elaboração da lingua literária
2.7.1 Contexto histórico
2.7.2 Classe média e urna nova oralidade urbana
2.7.3 A formação da lingua literária
3 A Formação de urna Variedade Urbana na Cidade do Recife
3.1 Introdução
3.2 O extralingüístico
3.2.1 A constituição do Recife como centro urbano
3.2.2 A urbanização da vida social recifense
3.3 O extralingüístico e o lingüístico
3.3.1 Migração e contato lingüístico
3.3.2 Formação étnico-social e caracterização lingüística
3.4 O lingüístico
3.4.1 Características gerais da emergência de variedades urbanas
3.4.2 A reconstituição das variedades lingüísticas antes de 1850
3.4.3 Atitudes lingüísticas e reconstrução de VOE
3.4.4 A formação de uma variedade urbana na cidade do Recife
4 Entre Oralidade e Escrita: a semi-oralidade brasileira na primeira metade do século XIX
4.1 Introdução
4.2 A oralidade: sua importância para as tradições lingüísticas gerais
4.2.1 O analfabetismo brasileiro nos tempos coloniais
4.2.2 Uma retrospectiva histórica
4.3 A tradição oral brasileira: a literatura oral
4.4 A oralidade urbana: o desenvolvimento da conversação
4.4.1 Urbanização da vida social e conversação
4.4.2 A conversação na família, na rua e nos salões
4.5 A constituição da língua escrita
4.5.1 Oralidade, jomalismo e literatura
4.5.2 A língua do jornal
4.5.3 A língua da literatura
4.6 A semi-oralidade
4.6.1 Contextos onde é significativa a noção de semi-oralidade
4.6.2 Diferenças constitutivas entre oralidade e escrita
4.6.3 A natureza da concepção nas duas modalidades
4.6.4 Proximidade e distância comunicativas - agregação/integração
4.6.5 As passagens
4.6.6 Leitura em voz alta e protocolo: uma perspectiva histórica
4.6.7 A semi-oralidade brasileira no século XIX
4.6.8 A semi-oralidade na politica e na advocacia
4.6.9 Passagem concepcional do escrito para o oral. O romance romântico
4.6.10 A passagem do oral para o escrito: oralidade concepcional
5 A Semi-oralidade em Textos: uma análise de jornais recifenses do período
5.1 Introdução
5.2 Análise do corpus
5.2.1 Caracterização do corpus
5.2.2 Aspectos processuais do oral concepcional
5.3 Traços semi-orais nos níveis de análise lingüística
5.3.1 O pragmático
5.3.2 O textual
5.3.3 O morfossemântico
5.3.4 O sintático
5.4. Da fiala à língua: características específicas do português brasileiro
5.4.1 Apagamento do pronome objeto anafórico
5.4.2 Anteposição dos clíticos ao verbo
5.4.3 Apagamento do artigo definido antes do pronome possessivo
5.4.4 Voz passiva
5.4.5 Uso impessoal do verbo «ter» («ter» com o sentido de «haver»)
5.4.6 Preenchimento da função sujeito
6 Conclusão
7 Anexos
7.1 Jornal O Cruzeiro, ano de 1829
7.2 Jornal A Quotidiana Fidedigna, ano de 1835
7.3 Jornal O Commercial, ano de 1850
8 Bibliografia
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Formação de uma Variedade Urbana e Semi-oralidade: O Caso do Recife, Brasil [Reprint 2014 ed.]
 9783110933154, 348452314X, 9783484523142

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BEIHEFTE ZUR ZEITSCHRIFT FÜR ROMANISCHE PHILOLOGIE BEGRÜNDET V O N GUSTAV GRÖBER HERAUSGEGEBEN V O N GÜNTER HOLTUS

Band 314

MARLOS DE BARROS PESSOA

Formagäo de uma Variedade Urbana e Semi-oralidade O Caso do Recife, Brasil

MAX NIEMEYER VERLAG T Ü B I N G E N 2003

Bibliografische Information der Deutschen Bibliothek Die Deutsche Bibliothek verzeichnet diese Publikation in der Deutschen Nationalbibliografie; detaillierte bibliografische Daten sind im Internet über http://dnb.ddb.de abrufbar. ISBN 3-484-52314-X

ISSN 0084-5396

© Max Niemeyer Verlag GmbH, Tübingen 2003 Das Werk einschließlich aller seiner Teile ist urheberrechtlich geschützt. Jede Verwertung außerhalb der engen Grenzen des Urheberrechtsgesetzes ist ohne Zustimmung des Verlages unzulässig und strafbar. Das gilt insbesondere für Vervielfältigungen, Übersetzungen, Mikroverfilmungen und die Einspeicherung und Verarbeitung in elektronischen Systemen. Printed in Germany. Gedruckt auf alterungsbeständigem Papier. Satz: Linsen mit Spektrum, Oli Heimburger, Kirchentellinsfurt Druck: AZ Druck und Datentechnik GmbH, Kempten Einband: Heinr. Koch, Tübingen

A Edna, a quem devo muito. Também a Igara e Marlinhos, a quem tantas vezes tive de renunciar.

A Brigitte Schlieben-Lange (in memoriam)

Sumário

1

Introdujo

2

O Desenvolvimento Histórico do Portugués Brasileiro: elementos para urna historia externa Introdujo Historia externa e periodiza§áo histórica do portugués brasileiro Períodos do desenvolvimento lingüístico As fases segundo Silva Neto Da formasáo das variedades rurais á elabora?áo da língua literária O conceito de língua comum O conceito de koiné Explicita?ao do critério da proposta Condi?5es para a formado de variedades rurais CondÍ£6es para o desenvolvimento de variedades urbanas e da língua comum O P a n o de fundo da elaborado da língua literária Reflexos do nativismo sobre a consciéncia lingüística brasileira Primeira fase: divisao do país em capitanías hereditarias e formafáo das variedades lingüísticas rurais Contexto histórico Multilingüismo e formagáo de variedades regionais As línguas gerais indígenas: vida e decadéncia As línguas africanas O pidgin da Costa da África Línguas gerais africanas As variedades lingüísticas regionais dos colonizadores . . . . A formagao das variedades rurais do portugués brasileiro . . . Segunda fase (I): descoberta do ouro ñas Minas Gerais e modernizagáo do Estado portugués. Pré-koineiza$áo da língua comum Contexto histórico Condi?oes para a pré-koineiza?ao de variedades lingüísticas

2.1 2.2 2.2.1 2.2.2 2.2.3 2.2.3.1 2.2.3.2 2.2.3.3 2.2.3.3.1 2.2.3.3.2 2.2.3.3.3 2.2.3.3.4 2.3 2.3.1 2.3.2 2.3.3 2.3.4 2.3.5 2.3.6 2.3.7 2.3.8 2.4

2.4.1 2.4.2

i

VII

15 15 16 18 20 22 22 23 24 25 27 29 31 35 35 36 39 42 43 44 44 46

48 48 49

2.4-3 2.4.3.1 2.4.3.2 2.4.3.3 2.4.3.4

2.7.1 2.7.2 2.7.3

Elementos de fermentado do portugués comum brasileiro . . Migra?áo Estratificado social Pré-koineizafáo do portugués comum brasileiro A proibifao da língua geral e a imposifáo da língua portuguesa Registros simplificados em textos religiosos Segunda fase (II): Urbanizado da sociedade brasileira. Formado das variedades urbanas e da língua comum Contexto histórico A transferencia da familia real A independencia e o Primeiro Reinado O Segundo Reinado O desenvolvimento de centros urbanos e a criado da imprensa. Elementos para a formado das variedades urbanas e do portugués comum brasileiro Imprensa e formado de variedades urbanas Segunda fase (III): Fim do tráfico de escravos. Estabilizado das variedades urbanas e da língua comum . . . Contexto histórico A continuad 0 do Segundo Reinado e a formado da consciéncia nacional O fim do tráfico de escravos Estabilizado das variedades urbanas e da língua comum . . . Mudanza geracional das elites e estabilizad 0 da língua comum O portugués falado pelo escravo O ensino do portugués ao escravo Qual foi o fim das línguas africanas no Brasil? Terceira fase: Fim do predominio das oligarquias e surto industrial. Elaborad 0 da língua literária Contexto histórico Classe média e urna nova oralidade urbana A formado da língua literária

3 3.1 3.2 3.2.1 3.2.2 3.2.2.1 3.2.2.2 3.2.2.3 3.3 3.3.1

A Formaba» de urna Variedade Urbana na Cidade do Recife Introdud 0 O extralingüístico A constituido do Recife como centro urbano A urbanizado da vida social recifense A ascensao social do jovem A elevado social da mulher Ascensao social de mulatos e formado de urna classe média O extralingüístico e o lingüístico Migrado e contato lingüístico

2.4.3.5 2.5 2.5.1 2.5.1.1 2.5.1.2 2.5.1.3 2.5.2

2.5.3 2.6 2.6.1 2.6.1.1 2.6.1.2 2.6.2 2.6.3 2.6.4 2.6.5 2.6.6 2.7

VIII

50 50 51 52 54 57 59 59 59 60 61

61 62 63 63 63 65 67 68 69 71 71 74 74 75 76 81 81 82 82 92 95 97 98 103 103

3.3-2 3.4 3.4.1 3.4.2 3.4.2.1 3.4.2.1.1 3.4.2.1.2 3.4.2.1.3 3.4.2.1.4 3.4.2.1.5 3.4.2.1.6 3.4.2.2 3.4.3 3.4.3.1 3.4.3.2 3.4.3.3 3.4.3.4 3.4.4 3.4.4.1 3.4.4.2 3.4.4.3 3.4.4.3.1 3.4.4.3.2 3.4.4.3.3 3.4.4.3.4 4 4.1 4.2 4.2.1 4.2.2 4.3 4.4 4.4.1 4.4.2 4.4.2.1 4.4.2.2 4.4.2.3

Formado étnico-social e caracterizado lingüística O lingüístico Características gerais da emergencia de variedades urbanas . A reconstituido das variedades lingüísticas antes de 1850 . . A s diversas variedades lingüísticas na primeira metade do século Variedade arcaica Variedade de maior prestigio Variedade de menor prestigio Variedade coloquial informal Variedade oral de escravos Variedade urbana em constituido V+P: contestado, resistencia e suplantado Atitudes lingüísticas e reconstru?äo de VOE Bo^al/ladino Atitudes lingüísticas de senhores em rela§ao ao portugués de escravos Rotuladlo estereotipada de variedades lingüísticas regionais Acesso do escravo ä cultura letrada ou sua relado com a língua escrita A formado de urna variedade urbana na cidade do Recife . . Alguns traaos da variedade urbana do Recife Avalia?äo da comunidade sobre o caráter da norma Koineiza?äo de variedades e emergencia de urna variedade urbana Papel da oralidade e da escrita para a constituido da variedade A preservado de tragos rurais estigmatizados Hipercorredo e reconstrugäo de tragos da língua falada . . . . Koineizafäo e redugäo da diglossia Entre Oralidade e Escrita: a semi-oralidade brasileira na primeira metade do século XIX Introdudo A oralidade: sua importancia para as tradigöes lingüísticas gerais O analfabetismo brasileiro nos tempos coloniais Urna retrospectiva histórica A tradido oral brasileira: a literatura oral A oralidade urbana: o desenvolvimento da conversado • • • • Urbanizado da vida social e conversado A conversado na familia, na rúa e nos salöes Na familia Na rúa Nos salöes: o exemplo de urna companhia IX

106 110 110 111 112 113 114 115 116 117 117 118 119 121 122 123 124 126 127 130 132 134 138 146 147

153 153 154 155 156 162 165 166 169 169 170 171

4.4-2-3-1 4.4.2.3.2 4.4.2.3.3 4.4.2.3.4 4.4.2.4 4.5 4.5.1 4.5.2 4.5.3 4.6 4.6.1 4.6.2 4.6.2.1 4.6.2.2 4.6.2.3 4.6.3 4.6.4 4.6.5 4.6.6 4.6.7 4.6.7.1 4.6.7.2 4.6.7.3 4.6.7.4 4.6.7.5 4.6.8 4.6.9 4.6.10 5 5.1 5.2 5.2.1 5.2.2 5.3 5.3.1 5.3.2 5.3.2.1 5.3.2.1.1 5.3.2.1.2 5.3.2.1.3 5.3.2.1.4 X

A natureza da conversado em urna «companhia» Os temas Os turnos Locus da conversado e língua Conversado, imprensa e formado da opiniao pública A constituido da língua escrita Oralidade, jomalismo e literatura A língua do jornal A língua da literatura A semi-oralidade Contextos onde é significativa a nogáo de semi-oralidade . . . Diferengas constitutivas entre oralidade e escrita A situado A déixis A perdurabilidade da escrita no tempo A natureza da concepgao ñas duas modalidades Proximidade e distancia comunicativas agregagáo/integragáo As passagens Leitura em voz alta e protocolo: urna perspectiva histórica . . A semi-oralidade brasileira no século XIX Do escrito para o oral: a leitura em voz alta Leitura em voz alta e alfabetizado Outra forma de oralizagao do texto: o teatro A oralidade elaborada: a importancia da Retórica O significado do sermáo A semi-oralidade na política e na advocada Passagem concepcional do escrito para o oral. O romance romántico A passagem do oral para o escrito: oralidade concepcional . . A Semi-oralidade em Textos: urna análise de jomáis recifenses do período Introdu§áo Análise do corpus Caracterizad 0 do corpus Aspectos processuais do oral concepcional Tragos semi-orais nos níveis de análise lingüística O pragmático O textual Coesáo referencial Referencia Ausencia de paralelismo sintático Ausencia de sujeito claramente identificável A relagáo título-texto

172 173 174 175 176 178 178 180 182 184 188 190 191 192 192 193 193 194 202 203 203 206 208 209 212 215 215 218

221 221 222 222 225 230 230 235 235 235 240 241 241

5-3-2.2 5.3.2.2.1 5.3.2.2.2 5.3.2.2.3 5.3.2.2.3.1 5.3.2.2.3.2 5.3.2.2.3.3 5.3.2.2.3.4 5.3.2.2.3.5 5.3.3 5.3.3.1 5.3.3.2 5.3.3.3 5.3.3.4 5.3.3.5 5.3.4 5.3.4.1 5.3.4.1.1 5.3.4.1.2 5.3.4.2 5.4.

242 243 245 250 251 255 255 257 257 258 258 259 259 261 264 265 266 266 266 267

5.4.6

Coesao seqüencial Parataxe Hipotaxe Pontuagáo Pontuafáo e semi-oralidade A vírgula O ponto-e-vírgula Os dois pontos O ponto O morfossemántico Vocabulário Semántica de certos verbos Emprego das categorías modo e tempo verbais Artigos Preposi^oes O sintático Concordancia Concordancia nominal Concordancia verbal Organizado sintática dos constituintes da frase Da fala á língua: características específicas do portugués brasileiro Apagamento do pronome objeto anafórico AnteposÍ9áo dos clíticos ao verbo Apagamento do artigo definido antes do pronome possessivo Voz passiva Uso impessoal do verbo «ter» («ter» com o sentido de «haveD>) Preenchimento da fungao sujeito

6

Conclusao

281

7 7.1 7.2 7.3

Anexos Jornal O Cruzeiro, ano de 1829 Jornal A Quotidiana Fidedigna, ano de 1835 Jornal O Commercial, ano de 1850

287 287 297 306

8

Bibliografía

315

5.4.1 5.4.2 5.4.3 5.4.4 5.4.5

272 273 274 275 276 278 278

XI

i Introdu?äo

O trabalho1 que se vai 1er tem por objetivo principal a reconstituido do processo de forma9áo da variedade urbana do Recife, capital do Estado de Pernambuco, no Nordeste brasileiro durante a primeira metade do século XIX. Além desse objetivo principal, o trabalho investiga um conjunto de textos publicados em jomáis locáis, apontando-lhes o caráter semi-oral, tomando-os também como evidencia do processo de formas ào da variedade investigada. A m o t i v a l o para tal investiga£ào remonta aos anos 8o, quando o autor, por ocasiào do desenvolvimento do seu trabalho de Mestrado, na Universidade Federal de Pernambuco, investigava atitudes lingüísticas de professoras 1

O autor quer aqui agradecer ao CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - pela bolsa concedida para a realizado da pesquisa e também ao DAAD - Servido Alemäo de Intercambio Académico - pela bolsa concedida para a proficiència em lingua alema. A um sem-número de pessoas, que direta e indiretamente contribuíram para a realizado deste trabalho o autor também agradece, dentre elas: A Profa. Dra. Brigitte Schlieben-Lange (in memoriam), catedrática de línguas románicas da Universidade de Tübingen, orientadora do trabalho; à banca examinadora, coordenada pelo Prof. Dr. Klaus-Peter Philippi, e ainda composta pelo Emérito Prof. Dr. Eugenio Coseriu (in memoriam), Prof. Dr. Peter Koch e o Prof. Dr. Francisco Oroz, cujas sugestóes foram de grande vaha para o aperfeifoamento do trabalho; ao Prof. Dr. Max Pfister e ao Prof. Dr. Günter Holtus, respectivamente exeditor e atual editor da sèrie Beihefte zur Zeitschrift für romanische Philologie, pelo interesse em publicar o trabalho. Um agradecimento especial ao SFB 441 da Universidade de Tübingen pelo apoio decisivo para esta publicacjäo; há que agradecer ainda à Dra. Gabriele Berkenbusch, Dra. Isabel Zollna e Dra. Konstanze Jungbluth pela permanente disposilo em colaborar. O autor quer ainda agradecer aos pesquisadoies e participantes do Coloquio conduzido pela Profa. Dra. B. Schlieben-Lange (in memoriam) e pelo Prof. Dr. P. Koch, que acompanharam o desenvolvimento da pesquisa desde seu inicio, questionando e oferecendo contribui^oes. A valorosa ajuda técnica de Johanna Ferdinand e Ligia Rospantini, ambas do Seminàrio de Línguas Románicas da Universidade de Tübingen. Um agradecimento especial às Sras. Ott e Dauber, sempre cordiais nas ocasiòes em que eram solicitadas. Também aos funcionários das bibliotecas da Universidade (UB) e da Faculdade de Filologia pela diuturna presteza, o autor agradece. A Profa. Dra. Adair Palácio, pela prestimosa ajuda na leitura da primeira versào; ao Prof. Dr. Michel Zaidan; à Fundafào Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e ao Departamento de Letras da UFPE. Finalizando, o autor quer enfatizar que todas as falhas, que porventura o trabalho contiver, sao exclusivamente de sua responsabilidade. I

secundárias na regiào do Grande Recife. Naquela oportunidade, através das entrevistas com as informantes, póde-se perceber a atitude daquelas entrevistadas em relafào a urna «norma-padrao» como entidade como que «sacralizada», o que impedia conseqüentemente urna reflexào mais crítica e investigativa sobre esse fenómeno lingüístico, tal o caráter mítico de que se revestía o conceito na consciencia das entrevistadas. Como partíamos de uma metodologia de pesquisa-participante, ao invés de simplesmente submetermos questionários às informantes, discutíamos em círculos sobre o ensino da lingua portuguesa e sua pràtica, e somente a partir dai recolhíamos o material que comporta os instrumentos de coleta de dados que seriam submetidos a outro grupo de professoras da regiào. A o final da pesquisa ficou-nos sempre presente a visào rígida sobre a chamada «norma-padrào», tao evocada pelas participantes, que excluía a compreensào do processo de desenvolvimento das normas lingüísticas, principalmente aquelas consideradas «cultas», standard, que afinal se constituiam no maior objetivo do ensino da lingua portuguesa ñas escolas brasileiras. Ficava claro que faltava àquelas participantes urna percep£ào mais dinàmica do problema, o que dificultava naturalmente uma renova§ào das atitudes lingüísticas num contexto sócio-histórico em que o choque de variedades lingüísticas exigia um tratamento renovado. Desapontador, por outro lado, foi constatar a absoluta inexistencia de qualquer traballio cujo objetivo fosse a reconstituisào do processo sócio-histórico de forma9ào de qualquer norma prestigiosa utilizada no país.2 Se existisse material dessa natureza, poderia ter servido como instrumento de conscientiza?ào para a compreensào de que a constituido de qualquer forma de realizado lingüística coletiva de uma dada comunidade é sempre produto da aqño dos homens condicionados por circunstancias históricas dadas, sendo por isso mesmo passível de varia§ào e alterado. 3 Somente agora pretendemos suprir essa lacuna, embora em outro contexto histórico e com outros objetivos. Essa reflexào procura justificar as raízes da motivagào deste traballio e a escolha do Recife como realidade histórica para se demonstrar o processo de constitui?ao de uma norma lingüística. Ademáis, esta pesquisa poderia a principio ter sido desenvolvida em qualquer outra cidade brasileira que experimentou vicissitudes semelhantes às que foram vivenciadas pelo Recife, notadamente as cidades costeiras que experimentaran! mais de perto os efeitos da modernizado e urbanizado promovidas pela transferencia da familia real portuguesa em 1808. Neste caso, destacaríamos, além do Recife, o Rio de Janeiro e Salvador. É possível que o que se vai 1er encontre bastantes semelhan§as com o desenvolvimento das

2

3

No Brasil nao existe «a norma-padräo». Como ela é representada pelas normas urbanas cultas regionais, está sempre marcada localmente por varia?äo quer suprasegmental, quer lexical. Na verdade, trata-se de dialetos terciónos. V. Coseriu (1988a, 52) para o caso da Espanha. Sobre esse problema, v. Schildt (1989).

2

normas lingüísticas dessas outras duas cidades, mas ao mesmo tempo certas especificidades, principalmente por causa das diferentes composiçôes de natureza étnico-social, que as individualizan!. No Rio de Janeiro, a mais intensa europeizaçâo com um maior influxo portugués depois daquele ano; em Salvador, a persistência de urna maior presença negra; o Recife seria um meiotermo. Afora isso, é preciso destacar o significado de um centro urbano como o Recife para demonstraçâo do fenómeno. Em particular a sua constituiçâo como tal - favorecida pela instalaçâo em Olinda, cidade vizinha, da Faculdade de Direito em 1827 e o movimento migratorio sobretudo do interior e de outros estados da regiâo - e sua localizaçâo geográfica também justificam a sua viabilidade e pertinência como objeto de estudo. Por outre lado, ao final dos anos 60, uma equipe de pesquisadores (professores universitários) decidiu elaborar um Projeto de Estudo Conjunto e Coordenado da Norma Lingüística Oral Culta das Cinco Principáis Capitais Brasileiras (NTJRC), vinculando-o ao Proyecto de Estudio Coordinado de la Norma Lingüistica Oral Culta de las Principales Ciudades de Iberoamérica y de la Península Ibérica. O NURC inclui Rio de Janeiro, Sao Paulo, Salvador, Recife e Porto Alegre. Os critérios para escolha das cidades foram os seguintes: possuir um milhâo de habitantes e ter cem anos de vida, com a consolidaçâo de quatto geraçôes completas.4 Como se vé, embora o Projeto nao contemple nenhuma perspectiva histórica, utiliza, por outro lado, um critèrio dessa natureza, pressupondo assim uma tradiçâo já estabelecida, dentro da qual as normas tinham se formado. Tendo sido fundada no século X V I e recebido o primeiro impulso urbano já no século XVII, o Recife particularmente já oferecia as condiçôes ideáis para a investigaçâo da formaçâo de sua norma, e está, dessa forma, apto a revelar a natureza sócio-histórica de uma particularidade do desenvolvimento lingüístico brasileiro. Além dessa explanaçâo, sentia-se a necessidade de um esclarecimento mais detalhado sobre o desenvolvimento do portugués brasileiro (PB), nâo só de qualquer uma manifestaçâo de sua realidade urbana, mas também do Brasil como um todo. Apesar das referencias na literatura sobre o processo de urbanizaçâo no século XIX, 5 nâo tem havido nenhum estudo mais pormenorizado e aprofundado sobre a vinculaçâo entre a constituiçâo étnica e social e a caracterizaçâo lingüística da populaçâo brasileira naquele periodo. De uma forma geral, muito pouco se conhece sobre a historia externa do PB. 6 Dai a necessidade de se propor um cenário mais ampio para tal historia externa. Além disso, também por uma razâo metodològica, o processo de constituiçâo da norma7 em questâo só pode ser melhor compreendido, se for precedido de uma descriçâo mais ampia do contexto histórico, isto é, de uma espécie de

4 5 6 7

Cf.Cunha, Celso (1989). Veja-se Silva Neto (1963) e Teyssier (1982). Essa afirmado de Tarallo aparece aínda recentemente, v. Tarallo (1993, 38; 40). Estamos usando norma na acep§áo de variedade.

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pano-de-fundo da historia externa, dentro do quai a emergência da norma possa ser explicada. Essa descriçâo vai se materializar sob a forma de urna periodizaçâo com descriçâo permenorizada das etapas. Para estabelecer a periodizaçâo histórica do portugués brasileiro, entâo, nos inspiramos na realidade sócio-histórica, mas em concomitância com a realidade lingüística. Em outras palavras, a periodizaçâo proposta nâo se deu aleatoriamente ao largo dessa realidade, mas foi estabelecida a partir déla, na medida em que a configuraçâo lingüística interna lançou luz sobre o conjunto de etapas apresentadas. Comparativamente a essa relaçâo entre variedades de uma língua histórica. Coseriu (1988a) distingue básicamente très níveis. Os dialetos, a língua comum e a língua exemplar. Os primeiros sao os dialetos primarios; os que derivam da língua comum sao os dialetos secundarios; e os que derivam da língua exemplar sao os dialetos terciários. Estes dois últimos tipos sao na verdade variaçôes diatópicas da língua comum e da língua exemplar, respectivamente.8 Assim, inspirando-nos nesse autor quanto à relaçâo entre as variedades internas de uma língua, estabelecemos como guia para a periodizaçâo a existência das variedades rurais (em Coseriu «dialetos») e a formaçâo da língua comum. Dessa forma, no capítulo 2 - «O Desenvolvimento Histórico do Portugués Brasileiro: elementos para uma história externa» - definimos alguns marcos históricos significativos para o desenvolvimento da naçâo brasileira e associamos a eles estágios do desenvolvimento lingüístico. Ainda nesse capítulo, gostaríamos de enfatizar o último estágio, o de formaçâo da língua literária. É importante, nesse contexto, a investigaçâo do conflito estabelecido pela língua literária renovada em confronto com a tradiçâo gramatical arraigada na prática pedagógica dos professores do 1° e 2 0 graus. A i mostramos como o Projeto NURC nasceu também de uma inspiraçâo de natureza pedagógica, tomando por base seus objetivos.9 O peculiar e intéressante desse processo é que, dada a vinculaçâo muito próxima entre jornalismo e literatura, essa língua literária vai ao mesmo tempo buscar suas origens na língua comum brasileira, portanto na fala urbana, mas ao mesmo tempo vai influenciar outros géneros, penetrando em certos tipos de textos, principalmente em face do papel do jornalismo. Aqui o processo vai se tornar mais complexo, porque

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Os conceitos de dialetos primários, secundários e terciários tém grande valia para explicar as sociedades para onde houve transplantajáo lingüística. Coseriu os utiliza nao só em relajao ao espanhol da Espanha, mas também em relayáo ao espanhol americano. Neste último caso sobretodo a no?áo de dialetos secundários, segundo o autor, serve para explicar o surgimiento de variafoes diatópicas da língua comum, que náo seriam entao dialetos primários, mas dialetos secundários do dialeto castelhano tornado língua comum, portanto. No fundo, os verdadeiros dialetos primários sao os que antecedem a constituisáo da língua comum (Coseriu 1988a, 51-52). Esse conflito está representado no Congresso sobre a Situa?ao da Língua Portuguesa realizado em Lisboa em 1968, v. Actas do I.simpósio luso-brasileiro, Coimbra (1968).

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alguns autores aproveitam a língua escrita de textos tradicionalmente náoliterários, que em certa medida já estavam mais próximos da oralidade - porque se afastavam da tradi?áo literária portuguesa de séculos anteriores - , enquanto outros aproveitam a língua falada, aproximando-se também dessa forma de textos fora da tradi?áo literária. Décadas após décadas, a língua escrita, forjada pelo movimento modernista em 1922, foi substituindo o ideal de língua escrita, aproximando-se da língua falada e ao mesmo tempo influenciando outros tipos ou géneros de textos devido aos jomáis, que ao publicarem crónicas - género em que a literatura brasileira se especializou - recuperaram uma tradÍ9áo e estabeleceram um vínculo definitivo entre os dois canais de veicula9áo da palavra escrita, o jornalismo e a literatura. Ao desfazer o fosso entre essas duas tradi?oes - na verdade isto já vinha se realizando desde a metade do século XIX com o Romantismo - o Modernismo abriu as possibilidades para diversas experimenta?5es lingüístico-literárias, permitindo hoje total liberdade quanto ao manuseio da língua, nao se estabelecendo uma distin?ao absoluta entre literario e náo-literário, do ponto de vista linguistico, como vigorou até o século XIX. O desenvolvimento lingüístico brasileiro estudado no primeiro capítulo é, como se vé, associado ao desenvolvimento histórico da nafao brasileira. Antes de tudo devemos discutir a importancia do período histórico para compreender que a linguagem nao poderia estar ausente das grandes transforma§5es que ali estavam ocorrendo. Trata-se na verdade de uma cadeia de acontecimentos, que levam á forma§áo da na§ao brasileira. Nessa perspectiva, deve-se destacar a transferencia da familia real de Lisboa para o Brasil, que vai ocasionar outros acontecimentos. Com essa transferencia, por exemplo, é inevitável a independencia em 1822, plantando-se as sementes do nacionalismo, que se intensifica com o golpe da República em 1889, se exacerba na década de 20 do século X X - cujo bom reflexo é a semana de Arte Moderna de 1922 - e desemboca na Revoluto de 1930. A primeira metade do século XIX é como que um período de transi?áo em que se prepara a paz política e o processo de integra§áo nacional na segunda metade do século. O processo de forma^áo das variedades urbanas, como discutido no capítulo 3, se dá, pois, em concomitancia com a cria$áo das condÍ£6es adequadas ao processo de intera§áo social, que permite a quebra paulatina do isolamento regional. A fundamenta£ao da nossa periodiza9áo implica que entendemos o funcionamento de uma língua ou variedade em estreita relafáo com o desenvolvimento da sociedade. A medida, pois, que uma determinada sociedade se desenvolve e se complexifica, complexificam-se também os usos lingüísticos ai realizados. Um ilustrativo exemplo para essa afirmagáo é o caso das sociedades que passam de uma cultura predominantemente rural para outra preponderantemente urbana. Seja o caso da história do alemáo. A revolu?ao industrial marcou decididamente uma nova etapa do desenvolvimento dessa língua e de suas variedades (Schildt 1989). A sociedade marcadamente rural dos séculos anteriores vai sofrer uma profunda alteradlo de natureza lingüística 5

concomitantemente com a urbanizado que vai se aprofundar depois de 1800. A alteragào das rela?5es sócio-econòmicas no campo obriga a fuga de significativas parcelas de trabalhadores ou pequeños proprietários para os centros que se industrializam, estabelecendo-se necessariamente novas rela?5es de natureza lingüística e promovendo-se urna nova configura?ào na arquitetura da lingua alema. O caso de Berlim é ilustrativo para o que discutimos. A migragáo de individuos de diferentes regiòes para aquele novo centro vai propiciar urna complexidade lingüística maior do que a existente anteriormente, possibilitando um processo de koineizagao de dialetos e variedades urbanas extremamente importante para o desenvolvimento de duas variedades significativas para a comunidade lingüística alema de hoje. Trata-se da formagao da «Umgangssprache» moderna e do alemao standard. Em última análise, urna situado histórica específica propiciou urna alteralo na arquitetura dessa lingua, deixando evidente que esse momento histórico estabeleceu urna nova etapa na historia da lingua alema. Outro bom exemplo é o caso da Russia. A dissolugáo do sistema políticosocial dominante estabelecido no inicio deste século está propiciando urna nova situagao lingüística naquele país, que houvera promovido, junto com a unificado de várias repúblicas, um processo de «russificagào» de várias etnias e culturas com reflexos sobre outras variedades faladas naquela realidade histórica. Talvez a clareza e a complexidade dessa nova situagáo nao possam ainda ser descritas face ao estágio inicial do processo. Mas com certeza urna futura historia da situagao lingüística desse país vai se estabelecer com a derrocada do Comunismo como urna etapa da periodiza?ao lingüística. Voltando à rela§ào entre as variedades de urna lingua num dado contexto geográfico - espinha dorsal do caráter linguistico de nossa proposta de periodiza?áo - , Svejcer (1990) concebe, do ponto de vista social, a superposigao dessas variedades. Segundo o autor, a lingua nacional é representada por urna piràmide, em cuja base se encontram os dialetos, usados pelos estratos sociais mais baixos na estrutura da sociedade; a variedade standard se encontra no topo. A movimentalo da base para o topo dá lugar entào ao progressivo desaparecimento dos dialetos. O autor explica ainda que o caso mais comum de difusáo do standard é do topo para a base, que coincide com o conceito de «mudanza por cima». Urna outra possibilidade é a da «mudanga por baixo» e dá conta da aquisigào de prestigio de formas «non-standard» num movimento contràrio descrito para o caso anterior. O autor associa este segundo caso à mobilidade geográfica e social e à urbanizado, como representa a figura abaixo: standard

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Se incorporarmos a visào de Coseriu (1988a) sobre a arquitetura de urna lingua histórica a essa piràmide, poderemos entào conceber com mais clareza o processo de constituigào da lingua comum, num primeiro momento, e o de sua «depuragào», por assim dizer, num segundo, ou seja, a elaboragào da norma urbana eulta. Por outro lado, os usos lingüísticos da minoría que teve acesso à educagáo superior ñas situa^òes mais formáis caracterizam essa lingua culta. Assim, a representado da figura acima se faria da seguinte forma: standard

(normas cultas urbanas)

Depois de urna apresentagào horizontal de urna sucessao de eventos no tempo e suas implicares lingüísticas, no capítulo 3 - «A Formagào de urna Variedade Urbana na Cidade do Recife» - resolvemos fazer um corte vertical, centrando-nos numa dada realidade geográfica, o Recife, portanto. Aqui a caracterizagào mais geral do país apresentada no capítulo 2 cede lugar a um estudo mais aprofundado da realidade escolhida. Trata-se de um momento histórico extremamente significativo para a vida brasileira e de urna realidade local, bastante representativa do processo geral de transformagào por que passa a sociedade brasileira. Freyre (1968) classificou também o momento como o de transformagào de urna sociedade patriarcal rural para outra patriarcal urbana, neste caso antecipando o inicio do referido processo ao final do século XVIII. Concebemos o capítulo dividido em tres partes, assim rotulados: a) o extralingüístico; b) o extralinguistico e o lingüístico; c) o lingüístico. Novamente, como nao concebemos neste traballio o desenvolvimento lingüístico separado dos seus condicionantes históricos e sociais, será interessante agora contemplar o extralingüístico porque se trata da formagào específica de urna norma dentro do processo de urbanizagáo na primeira metade do século XIX, delimi tagào temporal deste trabalho. Assim, dentro do item a estudamos a origem rural do Recife e sua transform a d o num centro urbano; dentro da urbanizagáo, descrevemos a transformagao física da cidade pelas implicagoes lingüísticas que esse processo vai favorecer; em seguida, descrevemos a urbanizagáo da vida social e a caracterizagào social e étnica da sociedade local, para compreendermos melhor os individuos implicados no processo de constituigáo da norma. Assim, chegamos ao nivel intermediàrio, o extralingüístico e o lingüístico, item b, onde os fenómenos do primeiro sao ¡mediatamente associados aos do segundo. Desse modo, tratamos da migragao e do contato lingüístico; da formagào étnico-social e da caracterizagào lingüística, reconstruindo-os. Chegamos assim ao item c. Aqui reconstruimos também as variedades em jogo na época na sociedade local, pelo papel que algumas délas vào exercer no processo de koineizagào para 7

dar nascimento á variedade estudada. Ao discutimos a forma?ao da variedade urbana em questao, lanzamos máo de duas fontes importantes. Em primeiro lugar, os estatutos de dois educandários fundados em 1798 que entraram em funcionamento em 1800. Sao eles: Estatutos do Seminario Episcopal de N. Senhora da Grasa da Cidade de Olinda de Parnambuco e Estatutos do Recolhimento de N. Senhora da Gloria do Lugar da Boa-Vista de Parnambuco, ambos escritos pelo bispo de Pernambuco, D. Jozé Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. Em segundo lugar, nos baseamos num comentário publicado no jornal O Carapuceiro «A lingoagem bordalenga de muita gente» (O Carapuceiro 19.10.1842, n° 58, i).10 Ao final do capítulo, fazemos urna rela?ao entre o papel da impiensa, a difusáo da escrita e o desenvolvimento da variedade. Tal como representamos acima, a língua comum se forma em contato mais direto com a realidade local de cada urna regiáo, isto é, no contato com as variedades rurais. A partir do momento em que as condigoes sócio-históricas concretas da constituido da na§ao brasileira foram se definindo e foram se forjando as condi?5es comunicativas dentro do respectivo contexto histórico da formagáo da na§áo, a língua comum foi se constituindo diferentemente daquela trazida pelos colonizadores, adotando determinados tra90s que passaram a identificar uma variedade brasileira da língua portuguesa. Por outro lado, a formagáo de uma elite cultural nacional, que se intensifica depois da década de 30 do século XIX, vai paulatinamente incorporando individuos identificados com o Brasil, produzindo ao longo de décadas um novo referencial de percep§áo e identificagao dessa língua comum mais elaborada de acordo com a elite local. Pelo acesso as formas institucionais de cultura dominantes na sociedade, as elites locáis - favorecidas pelo desenvolvimento do jornal e da literatura - foram depurando uma certa variedade «exemplar», que, pelas especificidades regionais, foi se constituindo com certas características trazidas por tais elites. Embora a língua comum sirva como uma espécie de estágio intermediário entre as variedades rurais e as normas cultas, sendo um primeiro grau de afastamento em rela§áo as variedades rurais, a influencia destas também se deixa perceber sobre ela e, num grau menor, sobre as normas cultas, levando á varia5ao geográfica dessa variedade exemplar. Retomemos a no?ao de exemplaridade lingüística de Coseriu. No nosso caso, o processo e o período de formagáo da língua comum e dessa exemplaridade se confundem em certo momento. O aceleramento no século XIX e a estabilizado no século atual da língua comum propiciaram os elementos de 10

O referido jornal servirá de fonte para todo o nosso trabalho. Trata-se de um dos mais importantes periódicos do Brasil do período. Periódico sempre moral, e só per accidens político, inscrivo que aparecía acima, logo abaixo do título. Comefou a ser publicado no dia 7 de abril de 1832. Era redigido pelo padre-frei Miguel do Sacramento Lopes Gama. Seu último número saiu no dia 28.09.1847. Nascimento (1969, 92-106). A cole§áo do referido jornal foi publicada em très volumes pela Fundafáo de Cultura Cidade do Recife, v. O Carapuceiro (1983).

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urna nova lingua exemplar, que, acompanhando o percurso daquela, passou a se configurar geograficamente diversa, porque a criagào de um novo referencial para a exemplaridade lingüística nào se deu como fruto de urna politica de imposi?ào, como fora aquela durante o século XVIII, quando da p r o i b i t o das línguas gerais e imposi?ào da lingua portuguesa.11 A s variedades urbanas faladas ñas cidades mais antigas do país - onde se distingue a exemplaridade - dào urna c o n f i g u r a l o regional à lingua comum, que representa o cerne desse somatório de variedades urbanas espalhadas pelo país, favorecida pelo papel dos meios de comunica§ào e pela escola. Por isso, se tornou imperioso neste trabalho estudar o processo de f o r m a l o de urna dessas variedades, que se dà portante) paralelamente ao desenvolvimento da lingua comum, e ao mesmo tempo mostrar como se configurou urna manifestal o da exemplaridade lingüística. Assim, estudar microscopicamente a formagào da norma urbana de qualquer cidade brasileira - naturalmente aquelas que constituem urna tradi§ào histórica com um dado número de habitantes, tal como definiu o Projeto NURC - é compreender o processo de form a l o geral da lingua comum, com suas especificidades, mas também com suas semelhanfas em face do movimento de unificafào politica e social, que desde a segunda metade do século XIX comegou a se estabelecer. Fazendo isso, pois, estamos, ao mesmo tempo, estudando a configurafào da base da exemplaridade, já que esta se forma a partir da lingua comum. Entretanto, estudar isoladamente a configuragào da exemplaridade é tarefa ainda muito complexa, porque a d e f i n i t o dessa exemplaridade sincrónicamente traz consigo muitas divergencias. O problema, entretanto, se complexifica no caso do Recife em particular (é possível que em outras normas urbanas acontega algo semelhante) quando contemplamos a atitude dos falantes jovens, estudantes universitários (Matos 1984), aqueles que em breve serào o ponto de referencia para a identifica^ào da norma culta, considerando que o Projeto NURC adota como critèrio básico o nivel de instru?ào - ter freqüentado a Universidade - para detectar tal norma. Da forma como se expressam sobre a variedade local, esses individuos nào se consideram falantes de uma variedade «exemplar» da lingua portuguesa, ou pelo menos o ideal de exemplaridade lingüística nào se revela em suas avaliagòes da pròpria fala. Por outro lado, nào existe ainda consenso quanto a que variedade deve ser ensinada na escola como símbolo portante) dessa norma. Enquanto os lingüistas desmistificam determinados fatos propagados pelas gramáticas escolares como «exemplares», a tradigào gramatical ainda imp5e o ensino de aspectos que nào mais se coadunam com a realidade lingüística das normas cultas regionais, embora a situa?ào hoje já tenha mudado bastante em comparado com o passado. Além disso a falta de conscien-

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Mesmo assim houve uma tentativa de imposiçâo da variedade do Rio de Janeiro - à época capital do país - como norma-padrâo na primeira metade do século passado. Mas a falta de aceitaçâo e a reaçâo à tentativa a tornaram obsoleta.

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cia entre professores do ensino básico quanto ao que pertence ou nao ao standard, redunda, mais urna vez, na repetido de «regras» ultrapassadas, reforjando a referida tradi?áo gramatical ainda persistente. Hoje para o lingüista vai se tornando claro o que pertence as normas do PB á medida em que se vao conhecendo os dados colhidos pelo Projeto NURC, mas o caminho entre esta constatado e o ensino ñas escolas ainda é longo. Dessa maneira, a autoestima negativa dessa minoría em rela?ao á sua variedade revela o quáo profunda foi a inculcado ideológica de urna norma, que tendo se tornado obsoleta, deixou urna profunda inseguranga nos usuarios das normas que a substituíram. Como o tema do capítulo 5 é a natureza semi-oral dos textos, caracterizamos no capítulo 4 - «Entre Oralidade e Escrita: a semi-oralidade brasileira na primeira metade do século XIX» - o contexto histérico-cultural, principalmente no século XIX, para mostrarmos como a cultura brasileira se identificava com a oralidade, fornecendo dessa forma um pano-de-fundo para essa manifestado lingüística. Assim, situando de inicio a importancia da oralidade para as tradigóes lingüísticas gerais, mostramos o seu predominio desde o inicio da colonizagao, tomando por base o analfabetismo. Ai trabamos urna pequeña historia do analfabetismo brasileiro para se compreender que numa sociedade onde ele impera a oralidade exerce seu primado. Esta, por sua vez, tem outras formas de manifestado na vida cultural. Urna expressao clara da tradigáo cultural brasileira é a literatura oral. A tradigáo dessa literatura trazida da Península Ibérica pelos primeiros colonizadores vai se mesclar com aquela já presente dos indígenas brasileiros e depois com a das culturas africanas, estabelecendo uma nova realidade cultural. Mas, deixando de lado essa cultura oral, expressao da vida rural, havia também uma oralidade urbana que se desenvolvía no impulso promovido pela urbanizado. Para captá-la fizemos também um esbogo do desenvolvimento da conversagáo, tomando o caso do Recife e do Rio do Janeiro. A dinamizagáo da vida social favorecida pelo contexto histórico de estabelecimento da paz política vai propiciar uma nova era ñas relagoes sociais sobretudo com o aparecimento das companhias, versao brasileira das «societés» francesas, que no Brasil serviram para dinamizar a vida social, facilitando a interagao entre os setores pequeno-burgueses. Esse fenómeno é de grande importancia para o desenvolvimento da língua comum e para a formagáo e estabilizado das normas urbanas. Ainda é importante, no contexto da oralidade dominante, investigar a constituido da língua escrita. Aqui fazemos a análise de duas outras tradigóes, o jornal e a literatura. No Brasil, elas tém uma estreita relagáo, dada a vinculado dos escritores com o jornal, que se tornou veículo dos primeiros romances brasileiros sob a forma do folhetim, do tipo francés. A oralidade de alguma forma ligava essas duas tradigóes. A literatura romántica, que buscava identificar o que era brasileiro, também na língua; e os jomáis, pela auséncia de preocupagáo literária e como canal de divulgado da literatura romántica. A partir de entáo podemos melhor compreender o conceito de semioralidade, numa perspectiva lingüística, considerando a relado entre médium 10

e concepçâo. Depois de discutirmos esses conceitos segundo a concepçâo de Koch/Oesterreicher (1990), damos ênfase às passagens da oralidade para a esenta e vice-versa, tais como representadas por Schlieben-Lange (1995). Com esse esboço teòrico, passamos ao objetivo maior do capítulo: reconstituir a semi-oralidade brasileira no século XIX. Aqui apontamos o significado histórico da leitura em voz alta corno pràtica cotidiana e sua estreita vinculaçâo com a alfabetizaçâo. Incluimos nesta discussâo o papel do teatro, que se antecipou à literatura, talvez pelo seu caráter oral; e o papel da Retòrica, que vai adquirir grande importâneia em face de sua relaçâo com a formaçâo dos quadros para a burocracia dentro da formaçâo do Estado. Destaca-se ainda o papel do sermâo, pela funçâo da Igreja como instâneia de aproximaçâo social entre diversos setores da populaçâo. Por firn, dois últimos aspectos importantes para a divulgaçâo da lingua escrita no Brasil: em primeiro lugar, o romance romántico, que possibilitou a formaçâo de um público leitor. A i devem se destacar: a consciência do escritor sobre o papel da leitura em voz alta e, ao mesmo tempo, da simplificaçâo do texto, escrito em funçâo desse público em formaçâo; em segundo lugar, a popularizaçâo das práticas da escrita no Brasil dos séculos XVIII e XIX e a manifestaçâo da semi-oralidade, destacando-se os anúncios de jornais e os documentos da revoluçâo pernambucana de 1817. Dessa forma, podemos entâo no capítulo seguinte analisar os textos do corpus selecionado, para percebermos como se manifestava concretamente a semioralidade. Chegamos, assim, ao capítulo 5 - «A Semi-oralidade em Textos: urna análise de jornais recifenses do período». Aqui importa mais urna vez trazer o pensamento de Eugenio Coseriu. O lingüista romeno também distingue très níveis da atividade lingüística. Um nivel universal; um histórico; e um individuai.12 Como já deixamos claro, dois desses níveis nos interessam mais de perto. O nivel histórico, concretizado numa determinada realizaçâo da lingua portuguesa, no caso a norma urbana recifense, estudada quanto à sua constituiçâo enquanto tradiçâo histórica de urna comunidade; e o individual, representado pelo texto. Do ponto de vista das técnicas - manifestaçâo do saber lingüístico - o autor fala nesses dois níveis em técnica de urna lingua histórica e técnica de textos, que correspondem respectivamente ao saber idiomàtico e saber expressivo, dois estágios do saber lingüístico. Do ponto de vista da avaliaçâo da atividade lingüística, esses estágios sâo classificados como correto e adequado, respectivamente (Coseriu 1994, 54-58). E exatamente a avaliaçâo «adequado» que nos interessa para encaixarmos os textos no nosso estudo, porque «Die Angemessenheit kann die Korrektheit aufheben, das sprachlich Nicht-Korrekte kann für gewisse Texte gerade das Angemessene sein».13 A natureza dos textos que compôem nosso corpus revela, pois, a singularidade de seu caráter semi-oral. Assim, o que une o capítulo 5 ao capítulo

'2 V. Coseriu (1992, 250-265). 13 Coseriu (1994, 57). II

3 - e conseqüentemente ao capítulo 2 - é o texto. Como manifestatilo concreta da lingua, produto portante de sua realizagào, o texto vai nos mostrar como a comunidade experimenta o seu desenvolvimento lingüístico, revelando através do seu caráter semi-oral - portante a meio-caminho entre oralidade e escrita - como a variedade urbana discutida se formava, deixando nesses textos - adequados para o que nos interessa - vestigios de seu processo de constitui?ao. Dessa forma, além das fontes indiretas ou testemunhos de contemporáneos utilizados para reconstrugao do processo de formagào da norma locai, no capítulo 3, valemo-nos também de textos produzidos pela comunidade à época. Assim, nos interessavam textos que revelassem esse processo constitutivo e que sobretudo tivessem veiculagào pública. As cartas, por exemplo, embora sejam um material fartamente utilizado em pesquisas semelhantes, nào seriam tao interessantes pelo seu caráter privado. O textos, por outro lado, por nós utilizados - na sua maneira de ser, isto é, anuncios de compra/venda/fuga/ apreensào de escravos - tinham d i v u l g a l o pública nos jomáis locáis. Os «erros» - desvios de urna norma e indicios da constituido de outra - nào eram muitas vezes percebidos pelos usuários dos jomáis, podendo dessa forma ter contribuido para a consti tuigào de urna tradirlo lingüística. A esse respeito é interessante a seguinte nota publicada em um dos jomáis pesquisados, que embora revele a consciéncia de certos «erros» da parte da redagào do jornal, evidencia, por outro lado, que eles nào eram corrigidos, o que contribuía para estimular a sua difusào no seio de urna populagào formada na maioria de analfabetos (a nota aparecia depois da errata): «Nào fasemos mensào de muitos outros erros por conhecermos, que nào mudarào o sentido das orafòes.» (A Quotidiana Fidedigna 3.05.1834, 688)

O erro na lingua escrita é em regra geral urna transferencia da oralidade. Esse fenòmeno pode ser observado com mais clareza em línguas que estào passando por um processo de escrituralizagào (isto é, tomando-se escritas), o que o distingue de outros casos onde urna tradigào escrita estabelecida permite urna mais nítida separagáo entre «erro» e variagào. Um exemplo ilustrativo é o caso de Tok Pisin (o pidgin de Papua Nova Guiñé). Siegel (1981) analisou textos escritos em jomáis naquela comunidade, dividindo-os em tres grupos: a) noticias e editoriais; b) historias tradicionais; c) cartas. O autor observou diferengas de acordo com o tipo de texto. Nos do grupo a percebe-se uma diferenciagào na diregào de características de lingua escrita; nos do grupo b tem-se claramente transposigào da oralidade; em c tem-se uma situagào intermediària. O autor concluí que essas distingòes indicam que o Tok Pisin àquela época estava passando por um estágio de transigào entre o uso de tragos oráis na escrita e a aquisigáo de uma escrita distinta da oralidade (Siegel 1981,27). 14 14

V. também sobre o tema Romaine (1988).

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Mas outros autores utilizaram cartas para estudar fenómenos de gestado lingüística. Stein (1985; 1989) póde observar como textos inicialmente escritos em holandés no século XVIII passaram ao crioulo holandés (Negerhollands); Muysken (1995) também utilizou essas cartas para estudar a variad o histórica nesse crioulo. Quanto aos jomáis, Tingley (1981) levantou o que ele classificou de desvios no inglés jornalístico de Gana, África. Em rela§ao a anuncios publicados em jomáis, Cherubim (1980) analisou urna amostra desses textos do inicio do século passado como parte de «urna historia de certos tipos de textos». O autor, considerando o que permaneceu da natureza desse tipo de texto, analisou as características gramaticais e pragmáticas que se transformaran!. Nao só no campo do léxico, onde naturalmente se reflete grande alterado em comparado com os dias de hoje, mas também no grau de compreensibilidade, muitos anúncios só podem ser reconstruidos no seu sentido somente com grande esfor?o. Numa nota-de-rodapé o autor chama atend o para a comparado com textos da metade do século passado, destacando dois aspectos inovativos dos textos de 1909, a saber: o estilo telegráfico e as inversoes. Dentro, pois, do capítulo 5, tomando por base a no§áo de semi-oralidade, analisamos textos produzidos no período, enfocados sob diferentes óticas. A análise serve para ilustrar como se realizava lingüísticamente a semioralidade nos jomáis brasileiros e sua importancia como manifestado do processo de constituido da variedade urbana recifense. Inicialmente, depois de termos discutido algumas noyóes sobre as relafóes entre oral e escrito no capítulo anterior, fizemos uma caracterizado do corpus, composto de trés jomáis recifenses do período, a saber: O Cruzeiro, para o ano de 1829, A Quotidiana Fidedigna, para 1835 e O Commercial para 1850. O corpus, depois de selecionados os textos que o compóem, passou a se constituir de 154 textos, formados de anúncios de várias naturezas, mas sobretudo com énfase naqueles referentes ao contexto da escravidáo, dada a sua incidéncia e valor histórico. Do ponto de vista da descrido lingüística, mostramos a natureza oral geral do corpus para depois tratarmos de elementos específicos, onde a semi-oralidade se manifestava concretamente. Assim, dividimos a análise nos seguintes níveis: pragmático; textual; morfossemántico; e sintético. Por fim, para encaixarmos alguns elementos, vistos nos estudos sobre o PB como característicos dessa variedade, escolhemos seis aspectos (o apagamento do pronome objeto anafórico; a anteposigáo dos clíticos ao verbo, o apagamento do artigo definido antes do pronome possessivo; o emprego da voz passiva; o uso impessoal do verbo «ter»; e o preenchimento da fun§áo sujeito), para mostrar a sua vitalidade naquele período histórico, compreendendo-os também como indicios da formado do PB e, ao mesmo tempo, como parte constitutiva da norma urbana local. Na conclusáo do trabalho, discutimos com mais vagar como se dá o relacionamento entre os fenómenos discutidos nos textos e a constituido da norma descrita no capítulo 3. Inicialmente fazemos uma reflexáo sobre o papel dos textos para uma historia do portugués brasileiro. Quando se discute historica13

mente o desenvolvimento dessa variedade - o que aliás tem sido feito de forma escassa - , normalmente o texto que ganha mais evidencia é o literario, deixando-se de lado outros tipos de textos. O tipo de texto aqui investigado nunca foi utilizado. Intimamente ligada ao problema do texto como fonte para a historia do PB, é a difusáo da língua escrita no país, via propagado de tipografías, que vai possibilitar a emergencia do texto semi-oral, cujo conteúdo lingüístico se torna assim revelador do processo constitutivo da variedade estudada. Nesse sentido, as no?5es de agregarlo e integra§áo passam a ser pertinentes dentro da análise do nosso corpus, porque tanto há textos agregativos, quanto aqueles em que as duas nogoes se combinam. Em última análise, esses fenónemos apontam para o papel da relagáo oralidade/escrita, evidenciando como essa rela§áo é deveras frutífera para a compreensáo do processo de forma^áo das normas urbanas brasileiras.

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2

O Desenvolvimento Histórico do Portugués Brasileiro: elementos para urna historia externa

2.1

Introdu?ào

As línguas apresentam sempre urna vincula?ào direta com a realidade cultural onde se encontram. Elas refletem de forma marcante elementos da cultura em que se gestam.1 Este fenòmeno é mais evidente no campo das línguas t r a s plantadas, onde entao é possível se fazer urna compara9ào mais palpável entre urna forma originària, que se desenvolveu em ambiente sócio-histórico diferente, e outra nova, desenvolvida no novo ambiente de transplantagao (Stepanov/Svejcer 1981). A percepito dessa rela?ào se torna ainda mais palpável quando se procede a urna análise histórica do desenvolvimento de urna dada lingua no novo contexto histórico-social em que é usada, podendo-se apontar os diferentes estágios históricos e seus efeitos sobre a configuralo lingüística em questào (Domingue 1981). Urna das línguas transplantadas que mais se prestam para observa£ào concreta dessa vinculagào é o portugués brasileiro. Transplantada no século X V I para o Brasil, a lingua portuguesa, em face da especificidade do contexto brasileiro, assumiu pouco a pouco urna configuralo pròpria, que, embora nào a tenha feito se constituir noutro sistema lingüístico totalmente diferente do originàrio de onde procedeu, a dotou de especificidades de diversas naturezas, algumas das quais podem se estudar satisfatoriamente. Embora muitos afirmem que tais diferencia9òes se devem imputar ao desenvolvimento naturai de qualquer sistema lingüístico ou que se devem à recupera9ào de usos antigos que no Brasil se mantiveram - em face dos antigos dialetos trazidos pelos primeiros colonizadores -, 2 o que nào se pode negar é que os sistemas lingüísticos refletem, de urna forma ou de outra, as vicissitudes de seu enraizamento em urna dada cultura ou realidade sóciocultural, que se concretizam no nivel lingüístico, quer por determinadas caracterizares históricas específicas, quer pelo contato entre grupos de origem étnica diferente. 1

Urna das moüva{oes deste capítulo é o trabalho de Bakhtin (1977), que mostra como as altera§oes de urna dada língua sao expressáo das modificafoes que ocorrem na estrutura social. Há, entretanto, quem nelativize essa correlasao, condicionando a influencia externa a certas especificidades da estrutura interna da língua investigada, v. Vachek (1975).

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Para um resumo das diferentes hipóteses interpretativas sobre o portugués brasileiro, v. Castilho (1992).

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2.2

Historia externa e periodizado histórica do portugués brasileiro

Por historia externa de urna língua ou variedade déla, entendemos os acontecimentos sociais, históricos ou políticos que de alguma forma exerceram influencia sobre sua natureza, quer seja do ponto de vista do complexo de suas variedades, quer seja do ponto de vista estritamente gramatical. Mais comumente alude-se ao contato ou interferencia lingüística3 como o mais característico fenómeno externo responsável pela alterado da fisionomía gramatical de urna língua, dialeto ou variedade lingüística. Naturalmente esse contato, visto de urna forma mais ampia, revela a coexistencia de outros fatores histórico-sociais que possibilitam a aproximado entre povos e os conseqüentes efeitos lingüísticos dessa aproximad 0 via migra?áo (Greenberg 1965). No caso de uma língua transplantada, por exemplo, há evidencias do contato entre colonizadores, grupos étnicos locáis e populares forzosamente imigradas. Os fenómenos de migra§áo sao, por outro lado, os mais comuns e se dáo em razáo de uma série de fatores, tais como catástrofes naturais, colonizado, problemas económicos, expulsao e perseguido étnica e ocupado politica. Dentro de uma nado específicamente há outros fenómenos que podem promover a migrafao e aproximado entre populazóes, favorecendo a alteragao na constituido ou no uso de uma dada língua, mas nao necessariamente, como o caso da urbanizado e modernizado. 4 A urbanizado, por exemplo, envolve de alguma forma a migra^áo, mas tem outras características como a necessidade de reformula§áo de hábitos sociais ou a alterado de tragos culturáis, que envolvem educado, comunicado e acesso a outras formas de prom o d o social. No caso da modernizado de sociedades tradicionais, as modificares lingüísticas podem alterar desde o alfabeto, o vocabulario até a relagao de prestigio entre dialetos (Neustupny 1974; Chen 1993). Fenómenos de natureza política podem também desempenhar significativo papel nesse processo, possibilitando a aproximado ou a separado de populagoes via unificado ou divisao territorial.5 Outras decisoes de natureza política ainda

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«At the level of the individual, interference may be sporadic and idiosyncratic. However, over time the effects of interference in a bilingual speech community can be cumulative, and lead to new norms, which are different from those observed by monolinguals who use the languages elsewhere.» Romaine (1989, 50). O trabalho pioneiro sobre urbanizado lingüística no Brasil é Bortoni (1985). Para o mesmo fenómeno em outra realidade cultural com língua transplantada, v. McDavid ( 1 9 7 1 ) . Para a utilizado do conceito em comunidade de língua indígena, v. Garvin/ Mathiot (1968). A bibliografía sobre modernizado lingüística é bastante ampia: v., por ex., Timm (1973), Sridhar (1988), Sadembouo/Chumbow (1990). Quanto ao conceito de modernizagáo lingüística, vista como «renovafao», no ámbito da língua portuguesa, v. Carvalho ( 1 9 8 0 - 1 9 8 6 ) ; vista como «reforma», Casteleiro (1983). Um caso típico é o da ex-Uniáo Soviética, que tomou bilingües falantes de outras etnias com a imposi§áo do russo e assimilafáo de populates, v. quanto a isso Marshall (1996).

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podem alterar de forma significativa a realidade lingüística de uma comunidade, tal como a imposiçâo de uma língua como nacional6 em detrimento de outra ou outras. Esse novo contexto social, cultural ou político géra novas situaçôes de utilizaçâo das línguas, favorecendo o surgimento de vários fenómenos, tais como decadência e morte lingüística.7 A história da língua portuguesa no Brasil ao longo de seu desenvolvimento experimentou momentos que propiciaram algumas caracterizares semelhantes às feitas acima, servindo como bom exemplo para ilustraçâo de teorías sociolingüísticas ou de desenvolvimento histórico das línguas. Os acontecimentos históricos, sociais ou políticos que compôem os fenómenos extralingüísticos analisados podem, no caso brasileiro, ser desdobrados em outros fenómenos que a eles se subordinam, apresentando uma riqueza de caracterizaçôes explicativas das alteraçôes lingüísticas comentadas. Assim, levantaremos importantes momentos históricos da vida brasileira, outros fatos deles decorrentes e suas implicaçôes para o desenvolvimento da língua portuguesa usada no Brasil. Consideraremos os seguintes: a) divisâo do país em capitanías hereditárias Tal a forma como foi estabelecida, a divisâo do país em capitanías em meados do século X V I teve o sentido da verdadeira ocupaçâo com a transferencia de colonos, a escravizaçâo do indio e a imigraçâo forçada de escravos africanos numa segunda etapa. Essa divisâo promoveu em conseqüéncia o isolamento, a formaçâo de um sentimento regionalista e a tendência ao separatismo. b) descoberta do ouro ñas Minas Gérais e modemizaçâo do Estado portugués com as reformas pombalinas No século XVIII com a necessidade de salvar Portugal do caos económico, a política adotada pelo Rei foi agressiva. Do ponto de vista económico e cultural, implicou a formaçâo de quadros para o novo Estado através da educaçâo. Em conseqüéncia desse processo de modemizaçâo e de concentraçâo da riqueza económica ñas Minas, vâo se verificar ondas de migraçâo de individuos de todas as regióes do Brasil e de Portugal, a transferencia e importaçâo de escravos para aquela regiâo e a primeira forma de entrelaçamento entre regióes. c) transferencia da familia real e urbanizaçâo da sociedade brasileira Com a transferencia da Corte portuguesa para o Brasil, há necessidade de reformar a vida cultural e social, com a adoçâo de novas medidas, tais como a criaçâo de uma imprensa, da biblioteca nacional e de escolas, favorecendo a 6

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Exemplo desse fenòmeno é a nacionalizado do Swahili no Quènia, v. Harries (1976). Quanto ao fenómeno de morte lingüística, veja-se Brenziger (1992).

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independencia e a fundagào do Impèrio brasileiro. O desenvolvimento das cidades costeiras vai promover também a migra?ào campo-cidade, implicando num processo de estratificado social e miscigenafào étnica. Do ponto de vista cultural, vai se dar a amplialo do acesso à palavra esenta e a criado de novos «loci» de contato social. A independencia que advém nesse contexto leva paulatinamente à formagào da nacionalidade, que vai se concretizar no Segundo Reinado. Ao longo da primeira metade do século XIX e continuando pelo inicio da segunda, ocorre a substituido das elites, através das geragòes de novos hacharéis formados em Direito, que passam a fornecer os quadros para essa carnada social. d) firn do tráfico de escravos O firn do tráfico de escravos faz cessar a entrada de novos contingentes étnicos, o que favorece a acomodado desses estratos populacionais e seus descendentes, possibilitando urna certa homogeneiza§ao populacional em relad o aos anos anteriores. Com o fim do tráfico e a libertado paulatina de escravos, vai se promovendo também a estratificado social, na medida em que esses escravos váo se constituindo urna parcela de mào-de-obra urbana disponível, contribuindo para a complexificagao urbana que assume a lingua portuguesa na seqiiència do processo de urbanizado. e) fim do predominio das oligarquías e surto de industrializado Com o inicio do século XX, vem a industrializado, promovendo urna terceira onda de urbanizado e o fim da República Velha com a Revolugào de 1930, possibilitando a articulado de movimentos de natureza cultural ao longo do país. Nesse sentido deve-se destacar a emergencia do movimento modernista brasileiro, que exerce influencia em vários aspectos da vida cultural. 2.2.1

Períodos do desenvolvimento lingüístico

Agora a pergunta que se coloca é a seguinte: em face dos fatos históricos arrolados como importantes momentos da vida brasileira, que implicares lingüísticas podem ter exercido esses momentos históricos e seus desdobramentos na caracterizado do uso do portugués no Brasil? Na resposta a esta pergunta evidentemente está a especificidade que assumiu essa variedade, porque mesmo que se contra-argumente que o portugués brasileiro é muito próximo do europeu, todas as línguas se alteram de alguma forma ao longo de sua historia, porque faz parte da natureza das línguas a alterad 0 . 8 nào necessariamente na diredo de urna nova lingua, nem em rupturas tao fortes que levem à impossibilidade de intercomunicado entre grupos da mesma comunidade lingüística distanciados social ou geograficamente. Fazendo-se uma

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Este problema é discutido fabulosamente em Coseriu (195871979b).

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rela§ào entre esses fenómenos históricos, políticos e culturáis com suas implica£óes lingüísticas, é possível fazer corresponder para cada um dos períodos acima, respectivamente, os estágios lingüísticos abaixo referentes ao uso do portugués na vastidào do territòrio brasileiro: a) um período de multilingüismo e f o r m a l o de variedades lingüísticas rurais (I534-I750) b) um estágio de koineiza?áo de diferentes variedades ou pré-koineiza?ào da lingua comum (1750-1808) c) um período de forma?ào de variedades urbanas com forma?ào paralela da lingua comum (1808-1850) d) um subperíodo de estabilizado das variedades urbanas e da lingua comum (1850-1922) e) um período de elaboralo da lingua literária (1922) Pelo que ficou exposto, depreende-se a subjacente existencia de fases para a historia do portugués brasileiro, à medida que seguimos o roteiro da historia econòmica e sócio-cultural do Brasil. Quando se expòe sobre a historia como seqüenciamento linear de fatos e nessa seqüéncia se procuram estabelecer momentos distintos, fica evidente que estes representem fases, que podem ser explicitadas e mais ou menos delimitadas, porque elas nào se diferenciam das outras de forma estanque. Associando-se portante os fenómenos históricos aos diferentes estágios de desenvolvimento lingüístico da variedade brasileira, resulta naturalmente o problema da periodizafào histórica dessa variedade. Aqui novamente dois aspectos devem ser considerados, o interno e o externo. De urna forma geral se estabelecem etapas do desenvolvimento a partir das caracteriza5òes lingüísticas que se alteram ao longo da historia em diferentes níveis da gramática. E muito comum que esse tipo de periodiza§ào tome como referencia textos literários e certos autores representem marcos, assim como as escolas literárias a que pertencem ou que ajudam a fundar. Há, por outro lado, urna periodiza§ao inspirada em fatores de natureza externa, que se estabelece em face da importancia de diferentes momentos dessa historia externa para a configura5ào da lingua em questào.9 Nesse sentido, os fenómenos históricos, sociais, políticos podem influenciar a homogeneiza?áo ou a varia?ào, tanto na lingua oral, quanto na lingua escrita. Do ponto de vista oral, podem esses elementos se refletir ñas técnicas do diálogo e conseqüentemente ñas formas de manifestafào da lingua oral ou, do ponto de vista do escrito, sobre a diversidade dos textos à disposilo na sociedade. É claro que, ao lado da homogeneiza?ào, fenómenos intermediários ocorrem, tais como mistura, koineizagào, cria£ao e redu?áo diglóssica, assim como a

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Schildt (1990) discute esses aspectos, associando periodiza9ào a tipologia de textos. 19

elaboraçâo da lingua literária. Como corolário dessa identificaçâo entre os dados históricos externos e a configuraçâo sociolingüística da lingua, é possível agora levantar quais as caracterizaçôes das novas variedades e dos textos em geral, estabelecendo-se dessa forma a historia interna como ponto de chegada ideal para a compreensâo da alteraçâo e do funcionamento de urna lingua e/ou de suas variedades. Por outro lado, poucos sâo os estudos sobre a historia do portugués brasileiro, que propôem fases para sua historia, limitando-se esses trabalhos quase sempre a repetir o que já se fez. Dentre eles sobressai-se como traballio mais importante - se poderia dizer pioneiro - o de Silva Neto (1963). Praticamente todos os trabalhos posteriores o tomam por base ou o repetem literalmente.10 Inicialmente analisaremos as fases por ele propostas para constatar em que medida elas sâo úteis ou como podem contribuir para uma outra mais coerente. Considerando, entretanto, o caráter didático das fases, propomos outras, cujo critèrio norteador vamos explicitar nesta seçâo do trabalho. 2.2.2

As fases segundo Silva Neto

ia. fase: desde o inicio da colonizaçâo (1534) até a expulsâo dos holandeses (1654) 2a. fase: de 1654, quando se define o caráter portugués do Brasil, propiciando-se a imigraçâo do Reino, até 1808 3a. fase: a partir de 1808, com a chegada da familia real ao Brasil e a transformaçâo do Rio de Janeiro em capital do mundo portugués. Começando pelas críticas11 que tal proposta ensejaria, o primeiro problema que apresenta é a ausência de uma exata justificativa para sua concretizaçâo. Toda proposta deve ter subjacente uma motivaçâo que tenha levado seu autor 10

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Outra proposta interessante surgiu na ex-RDA nos anos 70. Gärtner (1976) propoe uma revisäo das fases de Silva Neto e apresenta um nova, dividida em quatro períodos inspiradas no Marxismo em conformidade com as idéias dominantes em seu país à época. Embora a nossa proposta coincida em parte com a do autor, há algumas divergências na concepçâo entre as duas; Castilho (1992) reproduz a mesma periodizaçâo de Silva Neto; Teyssier (1982) adota em seu trabalho uma periodizaçâo, embora nao claramente explicitada. Noli (1999, 153-155) propoe também uma periodizaçâo dividida em très fases com ligeira diferenciaçâo em relaçâo às anteriores. Neste interessante trabalho destaca-se o esforço do autor em sistematizar diferentes aspectos do portugués brasileiro e da comparaçâo deste com o portugués europeu. Além disso, o autor conseguiu reunir uma das mais vastas bibliografías sobre o tema. Cámara (1968, 237) também tece críticas sobre a forma como Silva Neto relaciona fatos lingüísticos e fatos históricos: «According to his method he associates the history of the language and its expansion in the new territory and its differentiation into dialects with the political and cultural events of Portuguese colonization. He compiles a rich body of facts from many historical sources, but somewhat at random, and does not organize them in a comprehensive framework.»

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a adotá-la. Se se propòem fases no àmbito da história, é fundamental se perceber quais sào as motivagóes históricas que o autor seguiu para concretizá-las. Se ele seguiu os fatos históricos mais importantes que assinalam periodos específicos no desenvolvimento da sociedade em estudo; se, numa sociedade como a brasileira, o autor acompanhou o processo de ocupafáo e expansào territorial; se o autor considerou a migra§ao; ou se ele estabeleceu urna reuniào de várias possibilidades, fundindo-as ou distinguindo-as em determinados momentos. Sem essas i n f o r m a l e s prévias, torna-se diíficil compreender tal proposta, ao mesmo tempo que eia corre o risco de tornar-se improdutiva como ponto de partida para outras análises.12 Como nào é clara, portante, a motivado que levou o autor a adotar tal proposta, depreendemos que Silva Neto tomou por base o progressivo sobrepujar-se do portugués sobre a lingua geral e sobre o processo de crioulizafào - por ele aceito - através da expansào territorial e o aumento da imigra?áo portuguesa. Em resumo, as diferentes fases da peri odi zagào apresentada tomam por base a progressiva «lusitaniza?ao do Brasil», já que nos primeiros séculos dominavam as línguas gerais e, num periodo concomitante com esse, houve a ocupa?ào holandesa, que durou vinte e quatro anos, e só depois os portugueses se tornam de fato senhores do país, impondo conseqüentemente a sua lingua a todos os rincòes brasileiros. Além disso, percebem-se alguns problemas que exigem solu£ào. O periodo de vinte e quatro anos é muito pouco significativo para ser tomado como marco, quando se tem em mente os efeitos lingüísticos advindos da ocupa$ào holandesa ou o significado geral do fato para a ruptura do desenvolvimento lingüístico normal que ali se dava, na perspectiva das línguas indígenas, africanas e do pròprio portugués. Esse período correspondeu apenas a um momento quando o Recife, capital do mundo holandés ñas térras americanas, ouviu muitas línguas diferentes em face dos europeus imigrados, estimulados ou comprometidos com o dominio holandés. Apesar da maioria da populadlo se concentrar no Nordeste brasileiro nessa época, o efeito holandés praticamente nào afetou as outras regioes, tal como o Rio de Janeiro e Sào Paulo. De modo que o hiato estabelecido pelos invasores em relafáo ao dominio portugués nào caracterizou nada específicamente quanto ao uso da lingua portuguesa, até porque nào se tem nenhuma noticia sobre o efeito da lingua dos invasores sobre a fala local. Afora isso, entendemos que o século XVIII no Brasil tem caráter diferente daquele do século XVII - o que explicitaremos na proposta a ser apresentada - , por isso nào se podem incluir no mesmo período etapas diferentes, quando se delimita o espa?o de tempo entre 1654 e 1808. Só talvez a imigra^ao poderia

"

Schildt (1990, 415), tecendo crfticas aos criterios de periodiza^öes da histöria da lingua alemä, escreve: «Die Auswahl außersprachlicher Faktoren erfolgt meist ohne erkennbare Systematik. Man bezieht sich, ohne daß dafür im Einzelfall Begründungen angegeben werden, auf ausgewählte Fakten der politischen Geschichte, der Sozial-, Kultur- und Geistesgeschichte, verweist auch auf das Wirken bestimmter Persönlichkeiten.»

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justificar essa divisào, mas mesmo assim eia sempre aconteceu para o Brasil. E um fato que antecede e ultrapassa o período, pois antes dos holandeses posteriormente vai se avolumar, embora nao se saibam os números precisos eia já acontecía e depois da independencia continuou acontecendo. Nào é portante muito convincente a razào de tal divisào. E mais ainda, estabelecer um periodo de 1808 até nossos dias é esquecer um marco fundamental do desenvolvimento lingüístico do portugués brasileiro que foi a semana de Arte Moderna de 1922. Porque mesmo que se considere na proposta 0 progressivo sobrepujar-se da lingua portuguesa em rela?ao à lingua geral e ao processo de crioulizagào, por exemplo, nào se pode deixar de considerar aquele evento pelo que possibilitou de reflexào sobre a renovagào da lingua esenta, em certa medida, via elementos da oralidade - cuja polèmica até há alguns decenios ainda foi motivo de discussào no Brasil - e as propostas e experiencias que apresentou à sociedade, com todos os seus desdobramentos para o ensino da lingua portuguesa. Que essa questào foi controversa, nào se pode negar, mas que a partir de 1922 a lingua esenta de um modo geral no Brasil tem feito concessòes ao que propuseram os modernistas, deixando-se penetrar por certas inova?5es da lingua orai, isso é um fato inconteste, sobretudo por causa do estilo jornalístico, que por sua vinculagào com a literatura, abriu espago para a renova?ào dos géneros literarios brasileiros. 2.2.3

Da formafào das variedades rurais à e l a b o r a l o da lingua literaria

Antes de explicitarmos o critèrio tomado por base para e l a b o r a l o da proposta, vamos operacionalizar os conceitos de lingua comum e de koiné, já que se trata de conceitos-chave dentro da periodiza?ào. 2.2.3.1

O conceito de lingua comum

Para trabalhar com a denominagào lingua comum,13 vamos conceituá-la segundo Sommerfeldt (1938). Este autor a define como «(...) une langue sensi-

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O conceito de b'ngua comum tem urna larga tradiçâo na lingüística comparatista. Os trabalhos de Meillet, por exemplo, sâo prova dessa produtividade. Em Meillet (1965, 2), lê-se: «(...) l'existence à une certaine date d'une langue une, parlée par un peuple ayant conscience de son unité; c'est cette langue - non attestée - qu'on désignera ici par le nom de slave commun. 'Le slave commun' est l'une des langues du groupe indo-européen, c'est-à-dire qu'il est l'une des formes prises par une langue préhistorique, connue au moyen de comparaisons entre diverses langues, 1' 'indoeuropeén commun'.» Em conseqiiência, também na Romanistica o conceito constituai uma tradiçâo e ainda se mantém produtivo. Se se consultarem as atas dos diversos Congressos Intemacionais de Romanistica, pode-se perceber como ele mantém sua vitalidade na Europa. Na lingüística norte-americana ñas primeiras décadas do século passado o conceito foi utilizado (Fríes 1940). Hoje, entretanto, se encontra quase que completamente abolido dessa tradiçâo. No Brasil, Cámara (1964a, 214) conceitua a expressâo e a exemplifica em contextos culturáis diferentes. 22

blement une qui fonctionne comme outil linguistique à un nombre de groupes sociaux, groupes qui forment une seule société ou plusieurs sociétés. (...) langue qui prend des nuances différentes suivant les classes et les groupes sociaux qui les emploient, mais dont les traits fondamentaux restent les mêmes.» (Sommerfeldt 1938,42). Além disso, Sommerfeldt associa (a) a lingua comum à criaçâo de Estado e à administraçâo centralizada; (b) à fusâo de um falar e de urna lingua literária; e, ainda, (c) à urbanizaçâo. Para o primeiro caso, «Elle surgit là où il se constitue un état ayant une administration centralisée (...)» (Sommerfeldt 1938,43) e exemplifica a origem das primeiras línguas comuns com os primeiros Estados do antigo Oriente; quanto ao segundo e terceiro, tomando o caso do risksmâl norueguês, o autor mostra que a urbanizaçâo favoreceu o desenvolvimento de urna certa nivelaçâo de falares na direçâo do urbano, relacionando o fenòmeno à imigraçâo (Sommerfeldt 1938,45-47). Coseriu (1988b) salienta, por outro lado, a lingua-padrào de urna lingua comum, que representa a sua norma socio-cultural e a denomima exemplar. Esta denominaçâo seria para o autor urna segunda lingua comum, que se estabelece por cima da primeira, quando esta se apresenta social ou regionalmente diferenciada (Coseriu 1993). Por firn, destaca ainda, a lingua literária é o estilo ou conjunto de estilos mais elevado da lingua exemplar, «a oficina onde constantemente se experimenta e se elabora a exemplaridade idiomàtica» (Coseriu 1995, 58). Do ponto de vista da relaçâo entre dialetos e lingua comum, o autor fala da pré-existência daqueles à constituiçâo desta, coincidindo mesmo de um dialeto ser a base da lingua comum (Coseriu 1988b, 51). Isso significa que quando se investiga a constituiçâo de variedades de urna lingua, é plausivel se investigar primeiro a formaçâo de dialetos ou variedades rurais, porque estes sâo mais antigos que a lingua comum. 2.2.3.2

O conceito de koiné

Outro conceito de grande interesse para este traballio é o de koiné. Siegel (1985), num artigo muito instigante, analisou os diferentes conceitos de koiné e koineizaçâo em diversas situaçôes históricas.14 O autor parte entâo do conceito original, isto é, uma variedade que reúne traços de outras regionais, mas baseada primariamente em urna delas. Essencial para a identificaçâo de uma

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Os conceitos de koiné e koineizagáo tém ganho nos últimos anos extrema produtividade em varias tradi?oes. Embora já tivessem sido usados em trabalhos anteriores, depois do artigo de Siegel (1985), que no fundo representou uma sistematiza9áo de sua diversidade em diferentes autores e realidades, os termos tém crescido em utilizad o cada vez mais. Na lingüística hispano-americana, por exemplo, Weinberg (1992) valeu-se do seu potencial explicativo para escrever sobre a formafáo do espanhol americano; também Granda (1994) recorreu a eles para explicar o desenvolvimento deste espanhol. Em 1993, Siegel organizou, especialmente para o tema, um número do International Journal ofthe Sociology of Language, vol. 99.

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dada variedade como koiné é a idéia de mistura dialetal acima de tudo, dai o autor discordar da rotulagào de qualquer lingua comum ou lingua franca corno tal (Siegel 1985, 363). Quanto ao conceito de koineizagào, o autor o restringe aos casos onde o nivelamento dialetal leva à formagào de urna variedade de compromisso, ou seja, o processo de nivelamento referido nào é por si só suficiente para caracterizar a koineizagào (Siegel 1985, 365). Outros dois aspectos centráis do artigo aqui resumido se referem, em primeiro lugar, à koineizagào entre sistemas lingüísticos distintos, que o autor denomina «extensao do espectro de koineizagào» (Siegel 1985, 367) e, em segundo, à reíagao entre koineizagào e pidginizagào (Siegel 1985, 370). Ambos nào serào discutidos aqui em face da extrapolagao dos limites do conceito que nos interessa neste trabalho. Concluindo, para se perceber melhor como os conceitos de lingua comum e koiné se aproximam, a koineizagào de variedades lingüísticas e a forma?ào de urna lingua comum tèm bastantes semelhangas quanto à necessidade comunicativa de seus usuários numa certa realidade histórica. O pròprio significado de koiné, do grego, era «comum». Em outras palavras, o termo se referia a um dialeto que se deixou influenciar por tragos de outros dialetos ao se tornar comum a urna regiao mais vasta do que aquela onde era originariamente falado. Somente assim pòde esse dialeto se tornar comum a falantes de outras variedades. 2.2.3.3

Explicitagào do critèrio da proposta

Feito isso, cabe agora explicitar que o critèrio norteador da proposta sào a progressiva superagào das dificuldades de intercomunicagào entre populag5es fisicamente isoladas e a criagào das condigòes que favoreceram essa intercomunicagào; dois momentos cruciais caracterizam essa transformagào e favorecem o desenvolvimento da lingua portuguesa falada no Brasil. O primeiro vai do isolamento geográfico até ao sentimento separatista; o segundo vai da centralizagào administrativa - propiciando a formagào da unidade politica - até à integragào e à formagào de urna consciència nacional. No primeiro, a situagào histórica favoreceu o surgimento do regionalismo e paralelamente a isso a emergencia de variedades rurais; no segundo, a centralizagào administrativa com a busca da unidade e integragào nacionais favoreceu o estabelecimento das condigòes comunicativas ideáis para a emergencia, desenvolvimento e estabilizagào de urna lingua comum, que nào é exatamente a mesma de Portugal, nem poderia ser pelas peculiaridades da realidade brasileira,15 a

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Parece inconsistente a opiniào de Elia (1966, 202) sobre o problema da lingua comum no Brasil: «A lingua comum nào se constituiu à maneira das grandes línguas européias de civilizagào (...). Aqui nas Américas, essa lingua já nos chegou configurada. E impós de cima para baixo. (...). Nào houve, portante, necessidade de formagao de urna lingua comum no territòrio brasileiro. Esta já veio pronta e acabada da metrópole e, entre nós, evoluiu, sem alterar-se substancialmente.»

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serem explicitadas, e pela pròpria natureza do funcionamento das línguas, que se alteram de alguma maneira ao longo dos séculos, devido à criatividade dos falantes, que refazem seu instrumento de c o m u n i c a l o permanentemente. Conceber urna lingua comum transplantada e que assim se mantivesse ao longo dos séculos seria conceber a lingua como um produto acabado, que por isso nào poderia mais atender a novas necessidades dos seus usuários.16 Partimos, dessa forma, da concepgào de que o desenvolvimento do portugués brasileiro acompanha a historia da comunicafào no Brasil. Portante, tomando por base o isolamento histórico das capitanías - e depois provincias - e a ausencia de unidade politica e cultural, a proposta leva em consideralo as condifòes de interafào e intercomunicabilidade que se váo forjando ao longo dos séculos. Ou seja, à medida que crescem os meios, as formas de acesso à intercomunicado, através do contato e integraf ào das diversas regiòes brasileiras, a lingua portuguesa passa por diferentes estágios que correspondem às fases de sua historia no Brasil. 2.2.3.3.1

Condifòes para a formafào de variedades rurais

A fragmentado de núcleos populacionais confere à colònia urna configuraf à o de arquipélago gigantesco, que sobrevive até o século XIX (Sodré 1976a, 12). Se esse fenomeno caracterizava a regiào Nordeste, por onde comefara a colonizafào, no Sudeste do país o processo também era semelhante.17 Veja-se o caso de Sao Paulo. Em face das condifòes ambientáis e sem recursos para investir no comércio africano, Sao Paulo nào se integrou à economia afucareira, recorrendo ao bra§o indígena, mantendo-se em tais condifòes dois séculos isolado da produrlo económica da colonia, o que naturalmente representava isolamento geográfico (Pinto 1989,16). Pelo fim da era colonial ninguém pensava na possibilidade do Brasil como um Estado único, pois as classes dirigentes enraizadas nos diversos centros de colonizafào nào viam o país como um todo; pelo contràrio a expectativa era o mesmo destino da América espanhola (Oberacker 1957, 26-67). Se compararnos o caso da

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Coseriu (1958/19790). Curiosamente, no Sul do país, onde esse processo é mais tardio, fenómenos semelhantes podem ter ocorrido, embora guardando certas peculiaridades. No Rio Grande do Sul, por exemplo, com a chegada de grandes levas de ¡migrantes italianos ao final do século XIX, quando certas áreas ainda inacessíveis passam a ser ocupadas por aqueles ¡migrantes, pode-se identificar tres fases da h¡stória da vitória da lingua portuguesa sobre a italiana. Num primeiro momento, quando convivem diferentes dialetos italianos, sendo majoritário o vèneto, ao lado da lingua portuguesa, num período ainda de grande isolamento geográfico no interior da propria área; num segundo momento, como resultado da aproximagáo entre populafòes, forma-se urna koiné composta dos dialetos mais lingua portuguesa já no inicio del século passado; num terceiro momento, o uso da lingua portuguesa cresce sobre a koiné, principalmente entre as populaíóes mais jovens, muitas das quais nào falam mais essa variedade, veja-se Frosi (1987).

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América espanhola, que em se esfacelando em muitas repúblicas, também caracterizou o espanhol americano com normas lingüísticas diferentes, apesar da unidade superior da lingua espanhola (Coseriu 1990), o Brasil, curiosamente, apesar de nào ter sofrido o esfacelamento territorial aludido, apresenta processo semelhante, talvez devido a esse isolamento secular das regiòes, que só se resolveu pela metade do século X I X , e que quase representou urna separa£ào do país em varias republiquetas. Esse isolamento geográfico e comunicativo - ao lado do retardamento da entrada de algumas áreas no processo de colonizado - teve inclusive repercussào no desenvolvimento da literatura, que representa um instrumento de comunica5ào entre escritor e leitor. A atividade literaria realizada no Brasil se apresenta como urna sucessào, século após século até o X V I I I em diferentes regiòes, que principiam a desenvolver a literatura em estreito relacionamento com o desenvolvimento cultural, embora sem ligagao urnas com as outras, que j á haviam passado por aquele desenvolvimento. Assim, no século X V I em Pernambuco e Bahia; No X V I I , no Rio de Janeiro; e no século X V I I I em Sào Paulo e Minas Gerais. Até o século X I X prevalece a ausencia de intercomunicabilidade, apesar do movimento academicista em meados do século XVIII, que coincide com o primeiro movimento de popula?5es dentro do país e é ao mesmo tempo o momento capital da formagào da cultura brasileira, pela participado de toda a sociedade na elaboratilo de sua expressáo cultural (Pinto 1989). O quadro de confinamento regional das capitanias se devia sobretodo às dificuldades naturais de comunicatòes em face das próprias condiqòes geográficas, fomentado posteriormente pelo sentimento separatista que atuou em várias regiòes. Dessa forma, o contato se fazia preponderantemente com Portugal, exteriormente, constituindo-se portanto num isolamento interno e externo (Castelo 1967). Nào se deve esquecer que essa situa?ào passou num certo momento a ser promovida pela metrópole, que de forma intencional evitava a formarlo do espirito de uniào que poderia resultar num movimento separatista intenso. E nesse contexto que se devem buscar as raizes do regionalismo. Desde os primeiros movimentos de rebeliào, a exemplo da luta contra os holandeses, até à inconfidencia mineira, 18 predomina o caráter local ou regional. Até ainda no inicio do século X I X havia como que a aspiratáo das provincias de viverem isoladas. 19 Wagley (1965) refere-se às diferentes condigoes ecológi-

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Movimento de liberta§áo do jugo portugués, fracassado, no final do século XVIII em Minas Gerais. O isolamento geográfico, motivado pelas barreiras físicas e pelas distancias, é urna das causas principáis da formafao das variedades diatópicas. A esse respeito, escreve Hertzler (1965, 249-950): «The geographic extent and the physical barriers and distances of the area within which a more or less common language has prevailed have been basic, although not exclusive, factors in the splitting of the language in time into somewhat distinctive languages. The more immediate effect, however, is the formation and development of dialects, that is, regional variants of the main

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cas e aos diferentes fatores históricos, aliados às dificuldades de comunicado entre as partes, como fatores que geraram regiSes estritamente diferenciadas, embora cada urna portadora de sua parte característica da cultura nacional. 2.2.3.3.2

Condigòes para o desenvolvimento de variedades urbanas e da lingua comum20

O problema da dispersào entre as capitanías tinha se delineado desde o século XVI, anos depois da divisáo do país em capitanías. O combate a essa dispersào provocou a c r i a d 0 do governo-geral com sede em Salvador, que assim tentaría urna certa centralizado, que nao funcionou, permitindo que o sentimento de autonomia de cada capitanía se desenvolvesse nos anos seguintes. O resultado desse momento histórico que se estabeleceu no Brasil só se debelou numa primeira etapa na segunda metade do século XVIII com Pombal, que reverteu as capitanías à Coroa, rompendo aquele sentido de posse que caracterizara o sistema de distribuido de térras na época da colonizado. Paralelamente a isso, ele já come?ara a exercer algumas medidas no sentido do delineamento definitivo da configurado territorial do país. Com a transferencia da capital para o Rio de Janeiro em 1763 - com deslocamento do pòlo econòmico para a regiáo das Minas - aínda assim a nova capital nao significou qualquer centralizado efetiva, permanecendo aquelas características já referidas anteriormente. A f o r m a d 0 da lingua comum está associada à constituido do Estado com administrado centralizada e grupos sociais com vida social comum, como vimos. Seguindo este raciocinio, é a partir de 1808 que o Brasil passa a ter urna administrado centralizada, embora as provincias se tivessem mantido em quase estado permanente de conflito. Mas a célula de centralizado come^ada no Rio de Janeiro é o inicio de um processo, que tem seu segundo momento em 1834 com a criado das Assembléias Provinciais, que institucionalizam os conflitos das cámaras locáis - dominadas pelo regionalismo e isolamento - e reduzem sensivelmente as amea^as de desintegrado territorial.21 A chamada luta da independencia ainda nào representara efetivamente urna consciència nacional e nem forjara urna na?ào propriamente. O término dessa luta em 1831 possibilitou em parte 0 sucesso da centralizado politico-admi-

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language - somewhat divergent as to phonectics, formal characteristics, vocabulary and pronunciation - which may develop (and often have done so), into separate languages.» Para se ter urna idéia do portugués comum brasileiro comparativamente ao europeu, v. Cámara (1964a). Reforjamos o perigo da desintegrajao territorial, porque ela pode trazer consigo um conflito lingüístico, como no recente caso da ex-Uniáo Soviética (Marshall 1996). Por outro lado, o conflito lingüístico pode contribuir para o nascimento de um novo Estado, como no caso do Paquistao (Musa 1996). O caso brasileiro nao era exatamente como estes, mas o problema levantado revela de alguma forma um conflito.

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nistrativa. Um entrave séno era a força representada pelas oligarquías, que centravam seu poder de fogo ñas cámaras municipais, por elas dominadas. Por isso, 1834 representa um passo importante para romper com esse entrave político para a criaçâo do Estado nacional com a criaçâo das Assembléias Provinciais, que, embora maniendo a tradiçâo do regionalismo - que encarnava o pensamento das oligarquías - alçavam-se sobre o poder dos municipios, dependentes agora da superioridade dessas Assembléias. Elas cooptam os poderosos locáis, instituindo-se como um poder intermediàrio - localizado ainda na provincia - que permitía às diversas oligarquías defender seus intéressés, inclusive no conflito com o poder central. Apesar do efeito positivo da medida, o regionalismo continuava alimentado, sendo, no entanto, acomodado ao Estado nacional. Porque vinculados institucionalmente ao Estado nacional, os conflitos que porventura pudessem ocorrer nâo poriam mais em risco a integridade territorial. Com isso o regionalismo ganha outra feiçâo, pois agora os proprietários rurais nâo conseguem fazer prevalecer interamente seus interesses (Dohlinkoff 1990) e a ameaça do separatismo diminiui.22 O terceiro e definitivo momento se dá entre 1840 e 1850 com o Segundo Reinado, que, depois de pacificar o país, estabelece urna paz política de cinqüenta anos. Dentro dessas condiçôes históricas deve ter se formado o núcleo básico do portugués comum brasileiro. Para a formaçâo dessa lingua comum brasileira era fundamental a integraçâo das provincias e a formaçâo da consciência nacional, que se completa com a República em 1889,23 favorecida pelo nacionalismo. Tudo indica que é o ano de 1848 que marca a unidade nacional (Dohlinkoff 1990). Até ai já se tinha garantido a unidade política e conseqüentemente formado uma certa consciência de naçâo. Essa unidade, com a estabilidade politica, se realizou no plano da cultura, da integraçâo social e do fortalecimento moral (Tavares 1977, 282). É possível pois que nesse período já se alcançara a constituiçâo tanto das normas urbanas regionais, quanto da lingua comum, embora a consciência délas ainda nâo fosse bastante clara.

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Mesmo a luta da independencia em 1 8 2 2 nào promoveu a uniáo, inexistindo aínda posteriormente a integrafo e a unidade. Se a independencia tivesse resultado de uma luta prolongada, difícilmente ter-se-ia preservado a unidade territorial, pois os interesses regionais eram ainda muito mais fortes do que esse comedo de unidade que principiava a se foijar em 1808 (Furtado 1961). Por isso o único centro durante aquele período era ainda Lisboa, com tudo que o caracterizava como tal, ou seja, a lingua, a cultura e também a legislafào (Oberacker 1 9 5 7 , 26). Uma prova da unidade conseguida foi o reconhecimento por todas as provincias do Rio de Janeiro como centro politico do país, quando na capital federal foi proclamada essa forma de governo. Todas as provincias acataram o fato sem maior contestalo. Apesar disso, o Rio de Janeiro - assim como a Bahia nos séculos anteriores - jamais se constituiu como centro irradiador cultural comparável à cidade do México e a Lima, que rivalizavam com Toledo, Madri ou Sevilha (Cunha 1968, 64).

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2.2.3.3-3

O pano de fundo da e l a b o r a l o da lingua literária

O nacionalismo brasileiro è naturalmente um aprofundamento da progressiva tomada de consciència por parte de certos setores da populagào da individualidade do Brasil como na?ào. Com o impulso desenvolvimentista depois de 1850 e as guerras contea os ditadores do Paraguai e Argentina, cresce ainda mais essa consciència nacional e se transforma em nacionalismo. Lauerhass (1986) classifica essa etapa inicial de «despertar do nacionalismo». Ele coincide com o firn do impèrio e o golpe militar que instaurou a república em 1889. Por essa época a situafào do país tinha se alterado tanto, que a ordem antiga responsável por essa a l t e r a l o nao tinha mais condigóes de conduzi-la. A partir de entào a tomada de consciència nacional se transforma em crescente nacionalismo, cujo auge vai ser atingido com a r e v o l u t o de 1930 e o firn da «República velha». Entre esses dois períodos, 1889 e 1930, inicio e firn da Primeira República, desenvolve-se urna classe mèdia, exatamente quando o país atravessa urna importante fase de sua industrializado e conseqüente urbaniza?ào. O papel dessa classe mèdia se transforma em aqào concreta nos primeiros anos del século passado, quer através de militares, quer através de intelectuais, que dessa forma aprofundam o nacionalismo, sobretudo no plano ideològico. O surgimento desses novos setores em atua§ào na sociedade aponta para um conflito entre as oligarquías rurais, que se a^aram ao poder com o golpe da república, e urna classe mèdia que exige a continuidade da moderniza9ào do país, nào satisfeita portante com o quadro acanhado da vida política e intelectual que interessava às classes dominantes conservadoras e sintonizadas com sua origem rural. É nesse contexto de crescente nacionalismo24 - exatamente em 1922, ano do centenário da independència brasileira - que eclode o movimento modernista, que representa urna tentativa do ponto de vista das artes de adapta?ào do país ao novo momento histórico, cuja principal vertente foi a de natureza literária. As diversas correntes do movimento - «Verde-amarelo», «Pau-brasil», «Anta», etc. - refletem através de sua denominalo a m o t i v a l o nacionalista que as gerou. Nesse sentido, nos interessa particularmente a vertente lingüística do movimento, que objetivava a e l a b o r a l o da lingua literária. Da mesma forma que na Europa do século XIX o nacionalismo levou a urna vinculado com lingua, no Brasil - embora urna corrente do movimento romàntico tenha tentado estabelecer urna vinculagào semelhante naquele século - somente com o Modernismo se póde estabelecer essa vincula?ào de forma efetiva,

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O nacionalismo intenso do inicio do século nao vinha somente dos modernistas. Até filologos de escolas tradicionais refletiam o nacionalismo do período, embora em outra direçào. Bem representativo do que comentamos é a conferencia A defesa da língua nacional, pronunciada em 1920 por Laudelino Freiré a convite da «Liga da defesa nacional» e publicada na Revista da língua portuguesa, Rio de Janeiro, n.° 5, maio de 1920, pp. 1 1 - 1 7 e 33-34, reproduzida em Pinto (1978,474-486).

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com resultados objetivos sobre a realidade lingüística brasileira. Embora no inicio do movimento as propostas de elaboralo da lingua literaria tenham sido muito dispersas, fica evidente que a consciència de urna variante brasileira da lingua portuguesa já existia, reflexo também da existencia de urna lingua comum brasileira, embora esse fenòmeno nào tenha sido percebido com clareza pelos líderes do movimento. Da mesma forma que alguns países europeus tinham recorrido à fonte da fala popular25 como meio de renovado da lingua nacional, também no Brasil essa tendencia se fez sentir. Em Macunaíma, de Mário de Andrade, percebese a tentativa de reuniao de dados das variantes praticadas ñas mais diversas regiSes do Brasil, de modo a projetar a personalidade de base do brasileiro através da fala (Cabrai 1970). Reflexo desse nacionalismo lingüístico26 se encontra também em «O dialeto caipira», de Amadeu Amarai (1920), que, embora nào se Aliasse formalmente ao movimento, sistematizou urna das va-

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Um caso exemplificativo é o do romeno literário. Combatendo as tendencias mais conservadoras de elaboraçâo da lingua literária, um grupo de escritores romenos no século XIX preconizou urna lingua literária sobre a base da lingua falada pelo povo. «Au XIX-ème siècle, à l'époque de la constitution de la nation roumaine et de la langue nationale roumaine, le caractère unitaire de la langue littéraire s'accentue, et on aboutit à une norme littéraire supradialectale, résultat d'une longue tradition culturelle.» (Cazacu 1976, 125). Pode-se traçar um pequeño esboço do desenvolvimento do nacionalismo lingüístico brasileiro no século XIX. Embora no inicio restrito a urna pequeña minoría e com expressôes isoladas até a época do Romantismo, esse desenvolvimento tem inicio logo depois da independência em 1822, embora Martins (1977/78, vol. I, 520) considere a segunda ediçâo do dicionário de Moraes (Silva 1813) já um sintoma do amadurecimento da consciència nacional, que vai produzir o movimento de 1822. Em 1825, José Bonifacio, urna das figuras mais atuantes no movimento da Independência, reivindicava aos brasileiros o direito de criar neologismos (Pinto 1978,10); em 1827 Annaes do Senado (1910,96) aparece já oficialmente a expressào «lingua nacional» no texto da lei do ensino, que acaba com o subsidio literário, criaçâo ainda do Marqués de Pombal «os professores ensinarâo a 1er, escrever, a pratica das contas, a grammatica da lingua nacional (...).»; sobre o tema Sodré (1976a, 274) escreve: «Algumas gazetas, como O Repúblico, em 1830, usaram urna grafia fonética, que Ihes gritasse o protesto contra a influência portuguesa. Na organizaçâo legislativa dos cursos, os deputados tinham pejo de chamar e diziam (...) (...).» Em 1835 é publicado o «Compêndio da Gramatica da Lingua Nacional», de Antonio Alvares Pereira Coruja, lançando-se assim o tom do nacionalismo lingüístico, que vai marcar o Romantismo brasileiro. Infelizmente nao conseguimos ter acesso a este manual. Martins (1977/78, vol. II) o cita em algumas passagens da sua obra (Martins 1977/78, 212-213; 393; 401). Ai também se lê que o autor da referida gramática publicou um Manual de Ortografia, em segunda ediçâo em 1852 e em 1851 houvera terminado a Coleçâo de Vocábulos de Frases Usadas na Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul, publicada na Revista do Instituto Histórico Geographico Brazileiro em 1852 (vol. XV), onde se refere a alguns aspectos do contato lingüístico entre os gauchos, os indios e os falantes de espanhol da fronteira (Martins 1977/78, vol. II, 438-839). 30

riedades rurais mais marcadas do portugués brasileiro, ou seja, a variedade rural falada no interior do estado de Sào Paulo. A partir de 1930 o movimento entra numa fase caracterizada de pós-modernista (Sodré 1976a), cuja figura mais expressiva é Graciliano Ramos. Nesse autor, «a lingua se encontra equidistante dos cacoetes mais escandalosos do Modernismo e dos rigores meramente formáis de um classicismo superado» (Sodré 1976a, 530-532). Vè-se pois que o desenvolvimento do portugués brasileiro entra em urna fase de acomodagào e d e f i n i t o de sua peculiaridade em relagào ao portugués europeu, embora a lingua escrita aproxime as duas variantes, mascarando certas marcas da oralidade, que na realidade as diferenciam de forma mais evidente. Em resumo, a eclosào do Modernismo criou as condi§5es ideáis para a elabor a d o de urna lingua literária brasileira, num contexto de crescente nacionalismo, semeando também em textos náo-literários certas tendéncias de inspiragao oral, apesar do papel da escola, que por sua vez somente decenios depois comegou a adotar urna atitude mais favorável em relagào à renovagào da lingua escrita. Depois de caracterizados os critérios que enformam a proposta, acrescentemos um componente que pode ter desempenhado papel importante na configuragào das variedades lingüísticas urbanas, advindo provavelmente do regionalismo exacerbado e de um certo orgulho da procedéncia geográfica e cuja manifestagào era sempre motivada pela convivencia de portugueses naquele ambiente. Trata-se das atitudes lingüísticas. Dada a sua manifestagào num periódico do Recife num momento de visível conflito entre brasileiros e portugueses, vale a pena levantar urna certa hipótese sobre o seu significado para a configuragào do portugués brasileiro. 2.2.3.3.4

Reflexos do nativismo sobre a consciéncia lingüística brasileira

Nesse processo de construgáo da nagào brasileira, em cuja raiz estava o conflito entre nacionais e portugueses, chama a atengào o nivel de rejeigào destes por aqueles. Essa rejeigào é tao forte que se transforma em violéncia. A aversáo política, por sua vez, pode ter influenciado o lingüístico, já que as atitudes lingüísticas nascem da estrutura social, ou seja, as reagòes à forma particular de manifestagào lingüística de certos grupos refletem apenas o que em outros níveis acontece. A manifestagào lingüística de um individuo revela, portante, urna sèrie de características do estrato social ou pertenga étnica de que ele provém. Embora a aversào aos portugueses, em face do contexto da colonizagào, tenha suas raízes em séculos anteriores - precisamente em Pernambuco na época da dominagào holandesa (Brandào 1924, 13) - é no século XIX que esse problema ganha dimensào com possíveis efeitos sobre a consciéncia lingüistica dos brasileiros em relagào à variedade local em detrimento daquela de feigào nitidamente européia. Com a vinda da familia real para o Brasil, o problema ganha maior evidéncia, se intensifica na época da independéncia, atinge seu auge na época da abdicagào do Imperador e ainda se prolonga, extrapolando a metade do século. 3i

Em épocas anteriores, esse sentimento já comegara a ganhar algum vulto face à situa£ào de diferenfa entre os brancos da colònia e os portugueses recém-chegados. Inicialmente o problema dizia respeito aos portugueses nascidos na colònia, que nào possuiam o mesmo prestigio que os vindos da Europa.27 Com a evolu§ào que a colònia experimenta na época de Mauricio de Nassau e pela crescente perda de vínculo das novas gera£Òes de filhos desses portugueses nascidos na colònia com a metrópole, passam esses brasileiros a se julgar superiores aos portugueses, sentimento que evolui para preconceito hostil e òdio (Brandào 1924, 48-49). Em 1710, durante a tentativa de elevagào do Recife à categoria de cidade, e subseqüente substituifáo de Olinda como centro mais importante da regiao, foram divulgados bandos ordenando que os oficiáis filhos do reino deixassem os postos para serem ocupados por naturais da capitanía (Bittencourt 1 9 2 7 , 1 1 0 - 1 1 1 ) . Pernambuco pode ser considerado a capitanía onde os sentimentos de òdio aos portugueses foram mais intensos, ou pelo menos onde mais se protestou contra a presenta portuguesa, principalmente depois da independencia (Girào 1979, 305). Ali, durante a revolta praieira, os portugueses dominantes no comércio sofreram muito com o clima de perseguido que dominava. Além de serem donos do comércio de lojas, eles empregavam caixeiros portugueses numa desproporfào muito grande em rela?ào aos pernambucanos, fato que se constituiu como um dos estopins daquela revolta. Em 1847 e 1848, aos gritos de «mata-marinheiro», portugueses sào mortos e suas casas sao invadidas, ao mesmo tempo em que se exigia a expulsáo de todos os portugueses solteiros dentro de um prazo estabelecido (Prado 1991, 83-84). Mesmo quando a crise económica - em face dos acordos com a Inglaterra - se acirrou e a infla?ào se fez sentir na vida urbana com reflexos sobre as revoltas ocorridas na primeira metade do século

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Aos filhos de portugueses nascidos no Brasil chamava-se pejorativamente «mazombos». Na raiz desta atitude depreciativa estava urna caracterizajao sociolingüística, como escreve Abreu (1933, 233): «Mesmo entre portugueses castigos, se um nascera na metrópole e outro na colonia, a diferenja era apregoada: chamava-se reinol o primeiro e mazombo o segundo. A etymologia de mazombo ou mozombo é desconhecida; talvez seja africana como a de mucama. A o menos no principio nao envolvía o sentido injurioso que Antonio de Moráis lhe atribuíu mais tarde, quando o vocábulo já safra de circulafáo. E anterior as guerras flamengas; Markgraf explica-o em sua Hist. Nat., e devia ter aparecido desde que se notou diferenfa de pronuncia entre os reinéis e os filhos da térra. Para reconhecer um mazombo nao era desnecessário recorrer a atestado de baptismo, á lista de passageiros, etc.: o simples ouvido bastava.» Por esta explicagao se deduzem nos primeiros cem anos de colonizagáo do Brasil, somente pelo lado dos portugueses, tres grupos com fala diferenciada. Primeiro, os portugueses vindos da metrópole; segundo, os seus filhos, os mazombos, urna segunda gera9ao que já houvera reanalisado traaos gramaücais do portugués europeu; e terceiro, os mamelucos, filhos de portugueses com indias, bilingües e com marcas de interferencia portugués-tupi ou vice-versa. Acrescentem-se agora os africanos e deduza-se o grau de variedade com que a língua portuguesa era falada no Brasil de entáo.

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X I X , os portugueses f o r a m responsabilizados por todos os males que atormentavam o p o v o (Furtado 1 9 6 1 , 1 1 6 ) . O sentimento regionalista j á destacado, aliado a u m certo orgulho p e l a o r i g e m e m contraposi?ào aos portugueses europeus, d e i x o u tra§os na cultura. D o ponto de vista lingüístico é de supor que o òdio e m r e l a f à o aos portugueses levava a se assumirem as diferen§as lingüísticas, provavelmente p o u c o acentuadas, c o m o s í m b o l o dessa diferen?a originada das estruturas sociais. N o jornal O Carapuceirv,

no ano de 1842, se p o d e m 1er dois fatos q u e corro-

b o r a m o que acabamos de afirmar. N o artigo «a l i n g o a g e m bordalenga de muita gente», 2 8 c o m e n t a d o e m P e s s o a (1994), há referencia a essa consciència lingüística, r e f l e x o da i m a g e m o d i o s a dos portugueses. «Eu nasci no Brasil e nào sei fallar l i n g o a de marinheiro», 2 9 afirmava u m tipo característico local. A i n d a no m e s m o ano encontramos a atitude jocosa 3 0 e m rela§ào aos portugueses num texto publicado naquele jornal, nao só pelo conteúdo do texto, mas t a m b é m p e l a ridiculariza§ào da realiza9ào lingüística característic a da fala portuguesa de entao: «Copia fiel de duas cartas, isto he; huma d'hum labrego em Portugal a seu filho no Brasil, e outra deste em resposta a seu pai. Mei filho Antonio - A benfào de Déos te cubra, e mais a minha, que he bomha, junto com a de tua mài, que está no Ceo para sempre de todos os seculos, e a de San Francisco recebendo as chagas, que nào me deixará mentir; porque trez bezes com esta já te escrebi, e nào me tens respondido. Manda-me dizer, se es morto para nao te escreber mais: e se es bibo, como nosso Senhor ha de prometir, manda me hum barrii de melasso, e obra d'humas binte caixas de assucar; porque disse-me o compadre Zé Antunes, quando de là beio, que tu já estabas tào adiantado, que ja eras terceiro de San Francisco, e com promessa de seres l(o)go procuradori. Tua irmà a Joanna, mulher do Sacristào, pano a salbamento um menino grande, como hum macho, Deos loubado, e ha de- se chamar Gon^alinho, ou Gon^alito, que ha de ser hum regalo. Responde me, filho, para te encomendar a ialma ao Criadori dos ceos, e da terra, & c. &c. Resposta Mei rico pai - Lebem me seiscentos diabos, se eu arrecebi as cartas, em que me falla: e se eu fosse morto teria animo de negallo a Vm., que he mei pai, assim como sou se filho? Isto por cá nào corre, como dantes; e por isso sò lhe posso mandar um banilinho do tal melasso. No mais fico ás suas ordens. &c.» (O Carapuceiro 1983, voi. 3, n° 73, 10.12.1842, 4).

28 29 30

O Carapuceiro (1983) vol. 3, 19.10.1842, n° 58, p. 1-3. «Marinheiro» entäo se referia pejorativamente a portugues. Cämara (1964b, 329) se refere a essa atitude brasileira comum nos dias de hoje: «Das Spanische ist ein wertvolles Beispiel für unsere These, denn die Brasilianer verstehen es gut und nehmen die sprachliche Verschiedenheit ohne weiteres hin, da es sich ja um eine andere Sprache handelt. Im Falle des europäischen Portugiesischen jedoch lacht und spottet man, so wie man über die bäuerliche Sprache eines brasilianischen Hinterländlers lacht und spottet.» 33

Observe-se que o texto é reflexo do momento histórico daquela sociedade no conflito entre brasileiros e portugueses. Especialmente o que nos interessa é a referéncia aos usos oráis daquela variedade lingüística retratada, provavelmente uma variedade rural de ¡migrantes. O uso de «mei» por «meu»; a forma analógica «bomha» por «boa»; o recurso à representado do «b» no lugar do «v»; o «i» escrito depois do «r» final, representando uma sílaba a mais nos substantivos terminados em «-or»; o «i» epéntico entre o artigo feminino e o substantivo come§ado por «a-» para desfazer o hiato (a ialma); e os diminutivos revelam a consciéncia da diferen?a entre um uso lusitano e outro brasileiro já reconhecíveis em certos níveis. Do que se viu dentro dos critérios, ressalta um aspecto interessante. Entre os dois extremos históricos, ou seja, o isolamento das capitanias e a integrad o das regiSes, aparece um momento intermediàrio que é a descoberta do ouro, onde se cometa o processo integrativo. Para esse período escolhemos a data simbòlica de 1750, quase como ponto intermediàrio, porque o ouro se descobre pelo firn do século anterior e Pombal assume a partir de 1755. Sodré (1976a, 7-8) apresenta uma periodizagào para a historia da cultura no Brasil e a divide em très fases, sendo as duas primeiras caracterizadas por uma cultura transplantada, diferenciando-se a primeira da segunda apenas pelo aparecimento de uma carnada social intermediària; a terceira passa a acontecer com o surgimento e o desenvolvimento de uma cultura nacional com o alastramento das rela?5es capitalistas. Embora a divisào periódica da historia da lingua portuguesa no Brasil nao esteja baseada naquela periodiza§ao da cultura, as duas possuem alguma confluencia. Nesse sentido, 1750 é o ponto de referencia encontrado por Sodré para a passagem da primeira para a segunda, o que aproveitamos inspirado nele. Pelo menos dois fatos podem justificar essa data como ponto de referéncia: a definido territorial do Brasil e a fundafào do colégio de Mariana, duas expressSes da política pombalina. Quanto ao primeiro, trata-se do que ficou estabelecido pelo tratado de Madri em cujo acordo se delimitaram os limites geográficos brasileiros, correspondentes à área atual do país, o que significava que a expansáo em superficie atingira seus limites máximos e a conquista da terra estava efetivada (Sodré 1976a, 135); quanto ao segundo, significa tanto um marco histórico na substituido da cultura jesuítica pela cultura leiga e no papel que esta exerceu no processo de nivelamento lingüístico,31 quanto um modelo a ser seguido por anos. Fica claro que os dois fatos representavam momentos dentro de um processo mais

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« A afào unificadora da lingua - unificadora e ao mesmo tempo profilática, urbanizadora, europeizante - os colégios de padre exerceram-na de modo mais inteligente. Pelo menos os do tipo representado no Centro do país pelo Seminario de Mariana, que Saint-Hilaire observou, nos principios do século X I X , vir adorando os costumes das popula§5es mineiras, brutalizadas pelas preocupa9Òes do ouro. No Norte, pelo Seminàrio e, ao mesmo tempo, Colégio de Pemambuco, fundado na cidade de Olinda pelo Bispo Azeredo Coutinho.» (Freyre 1968, voi. I, 7 8 - 7 9 ) .

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ampio - com outros significativos, tais como a expulsâo dos jesuítas em 1759 e a passagem em 1763 do Rio de Janeiro à capital do governo colonial - de modernizaçâo e de outras alteraçôes sociais, com urna certa complexificaçâo da estrutura social. Em resumo, há um período em que se formam variedades rurais, dadas as condiçôes históricas já explicitadas, que correspondería a urna extrema complexidade lingüística. É o período inicial e de isolamento das regióes, com o mínimo de contato entre elas. Depois começa a se fermentar o que seria o portugués comum brasileiro pelo contato de populaçôes de regióes diferentes, através da migraçâo. Quando cessam as dissensôes internas, as lutas intestinas que dominaram quase todas as provincias, vem a busca de integraçâo nacional e se desenvolvem as comunicaçôes, quer oráis, quer escritas. Só depois disso, se pode chegar à elaboraçâo da língua literária já no inicio do século XX, depois de ter se estabelecido urna rede de comunicaçôes através da constituiçâo de centros urbanos e, naturalmente, de um público leitor. Dos cinco grandes momentos históricos e seus estágios lingüísticos esboçados acima, resultou a periodizaçâo apresentada a seguir, em très fases de natureza lingüística, porque concebemos os estágios b), c) e d) como partes de urna mesma etapa, ou seja, da formaçâo do portugués comum brasileiro, que começa a se delinear pelo grande movimento populacional verificado no ciclo do ouro. Dessa forma, estabelecemos as seguintes fases para a historia do portugués brasileiro: fases

período

formaçôes lingüísticas

ia. fase

I534-I750

formaçâo das variedades lingüísticas rurais

2a. fase

1750-1922

formaçâo do portugués comum brasileiro

3a. fase

1922 em diante

elaboraçâo da língua literária

O que se vai 1er a seguir é o desdobramento das très fases do quadro acima, mas combinadas com o contexto histórico. Dessa forma, as partes serâo: primeiro, segundo e terceiro momentos históricos, estando o segundo dividido em très subfases, conforme explicitado no item 2.2.1.

2.3

2.3.1

Primeira fase: divisâo do país em capitanías hereditárias e formaçâo das variedades lingüísticas rurais Contexto histórico

De 1534 a 1536, Portugal promoveu, em face das dificuldades financeiras para bancar o fabuloso empreendimento da colonizaçâo, a divisâo do país em catorze capitanías para fins de povoamento, defesa e divulgaçâo da fé católica. O tipo de empresa agrícola e de ocupaçâo que surgiu nesses vastos territó35

nos, com senhores de engenho e fazendeiros de gado estabelecidos em redutos ¡solados, fez emergir a figura de urna espécie de patriarca, em torno do qual se ajuntavam familia, servos e agregados, nos ambientes da casa-grande, da senzala e das edifica?5es para efeito da produgao agrícola. O mesmo tipo de organizado se repetía em áreas distantes e o sistema se reproduzia pelo modelo de ocupa§ào e transmissào de pais a filhos (Holanda i960). 32 Com Duarte Coelho, em Pernambuco, cometa a produgáo do adúcar, que paralelamente foi introduzido em outras capitanías, nào tao felizes como aquela e a de S. Vicente (hoje Sao Paulo). Para se ter urna idéia do crescimento dessa empresa agrícola, em 1584 Pernambuco já possuía 66 engenhos e na primeira metade do século seguinte, 144 existiam ali. (Andrade 1980, 55). O ato de divisào, pela sua pròpria natureza intencional e nào espontànea, leva à separal o e promove o isolamento, o que faz criar redutos de uma certa forma enquistados, configurando-se como regionalismos de cultura e de lingua,33 que hoje ainda se fazem notar ñas diferentes regioes do país, apesar de uma situafào totalmente diferente da que se estabeleceu nos comeaos da colonizad o . Acres^a-se a isso a natural dificuldade de comunica9ào em face dos impedimentos naturais, tais como as distancias, acidentes naturais, rios, quedas d'água, animais selvagens, florestas e o perigo que o indio representava. 2.3.2

Multilingüismo e f o r m a d o de variedades regionais

Fazer urna reconstituido da situa^ao lingüística do Brasil nos dois primeiros séculos de colonizado nào é tarefa fácil. A falta de informado mais porme-

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Esse sistema implantado no Nordeste do Brasil reforçou a área classificada de «área cultural crioula», por Ribeiro (1995, 275-277), que tivera sua origem por volta de 1520, com a implantaçâo dos primeiros engenhos de açucar: «Chamamos área cultural crioula à configuraçâo histórico-cultural resultante da implantaçâo da economia açucareira e de seus complementos e anexos na faixa litorànea do Nordeste brasileiro, que vai do Rio Grande do Norte à Bahia.» Esse dominio, geográfico e cultural, vigorou enquanto a economia que lhe dava sustentaçâo era predominante, só perdendo sua vitalidade com a descoberta do ouro no século XVIII. A sua peculiaridade em relaçâo ao núcleo paulista se deve à presença cada vez mais intensa de africanos. Uma descriçâo mais pormenorizada desse núcleo se encontra em Freyre (1968). Um campo de estudos da sociologia da linguagem que oferece fundamentos teóricos para se compreender o problema do isolamento, da separaçâo, geográfica e social, com efeitos sobre a diferenciaçâo lingüística é o de planificaçâo lingüística ou política lingüística. Hertzler (1965) dedica os capítulos IX e X de sua obra aos conceitos de «forças centrípetas» e «forças centrífugas», respectivamente. As primeiras sao responsáveis pela linguagem enquanto fator unificador; as segundas, pela multiplicidade de línguas e as dificuldades de comunicaçâo. A consciência de pertença a urna dada etnia é ao mesmo tempo fator centrípeto e centífugo, dependendo da perspectiva de que se olha. Por exemplo, a integraçâo entre os séculos XVII e XVIII de uma parte dos gaúchos da fronteira sul-americana, falantes de guarani, ao Brasil e nao a outras etnias em conflito foi fator decisivo para a separaçâo desses gaúchos em brasileiros e argentinos, uruguaios ou paraguaios (Ribeiro 1995).

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norizada sobre o assunto inviabiliza em muito a reconstruçâo, porque os colonizadores nâo estavam preocupados em registrar temas dessa natureza. Entretanto, pelo que se sabe, um fato é certo, dominava entào um multilingüismo, como na África ou India ainda hoje se pode observar, o que nos permite, comparativamente às essas realidades mais bem conhecidas, levantar algumas hipóteses sobre a natureza desse multilingüismo e seus efeitos. Do aumento paulatino de línguas africanas e do papel minoritário da lingua portuguesa, sabemos com segurança, o que, entretanto, aconteceu no espaço entre essas línguas e no contato entre elas, é o que precisamos reconstruir. Desde a lingua portuguesa - introduzida pelos colonizadores - às línguas africanas, trazidas pelos escravos importados, às línguas gérais indígenas e africanas, ao pidgin africano formado na costa da África, às línguas indígenas, todo esse mosaico lingüístico refletia a complexidade cultural e étnica da colonia. Quando os colonizadores chegaram ao Brasil, encontraram numerosas tribos falando diversas línguas indígenas. A o lado disso, os jesuítas que se incumbiram da missâo evangelizadora, perceberam que havia urna lingua mais regularmente falada na costa que possibilitava a comunicaçâo de indios de diversas regiôes do país e que funcionava pois como lingua franca. Estudaram essa lingua e a aprenderam para tornar mais fácil o contato com os numerosos indios ali encontrados. Obviamente que nâo fazia sentido ensinar à força portugués ao indígena e por isso os primeiros anos da colonizaçâo foram de dominio absoluto da lingua tupi. O que, entretanto, começa a acontecer a seguir é o bilingüismo face ao contato entre brancos e indios e o cruzamento de raças, que possibilità novas geraçôes de falantes bilingües.34 Essa nova fase adiciona mais um elemento na complexidade lingüística anterior, pois além das formas de pidginizaçâo, das linguas indígenas, africanas e línguas gérais também indígenas e africanas, acrescenta-se a isso o portugués, que começa a ganhar terreno entre populaçôes mestiças.35 Nâo se pode perder de vista que à medida que se alastram as áreas de ocupaçâo em face da expansâo econòmica no Nordeste, há um crescimento

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Esse bilingüismo é a característica principal das origens da comunidade lingüística do Brasil, que nasce do cruzamento entre portugueses e indias, gerando um novo biotipo étnico chamado, ao que tudo indica pejorativamente, de mameluco. Trata-se portanto de uma caracteriza§ao étnica, mas ao mesmo tempo lingüística. Essa comunidade de mamelucos constitui a protocélula da sociedade brasileira, sobre a qual váo se acomodar mais tarde os africanos. O exemplo mais típico dessa configurafáo étnica é o caso de Sao Paulo, que a manteve até o século XVIII, antes da chegada dos escravos negros. A esse respeito, v. Ribeiro (1995, 83-84; 114).

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A nivel individual de comunicado e de dominio de línguas, Rosa (1995) apresenta uma escala hipotética de comunicabilidade entre os habitantes do Brasil do século XVI. «Num dos extremos estariam os falantes monolíngües, quer do portugués, quer de L G (língua geral), quer de outras línguas, brasileñas ou nao.(...) No outro extremo da escala de comunicabilidade estariam os falantes bilingües.(...) Entre o monolingüismo e o bilingüismo estariam níveis variados de interlíngua, considerando-se como língua-alvo a LG (...).» (Rosa 1995, 274).

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na complexidade da formagào das áreas dialetais pela intensificalo do contato através da criagào de novas comunidades em pontos específicos da regiáo. Um fato especial nesse contexto é o desenvolvimento da atividade criatória. Em primeiro lugar, com a devastalo das matas litoràneas para produgào do agúcar, a necessidade da extragào de lenha obrigou urna penetralo cada vez mais na diregào do interior com longas distancias que tinham de ser vencidas com animais. Em segundo, a inviabilidade de criagào do gado de corte na zona litorànea obrigou mais uma vez a penetragào no interior. O surgimento dessas duas economías criou situares sócio-culturais diferentes délas derivadas, sendo preponderante nesse momento a ocupagào do interior, onde se encontravam o indio e o caboclo organizados sob a tutela da Igreja (Furtado 1961). A atividade criatória no interior tendia cada vez mais a penetrar sertao adentro, dada a natureza dos pastos nordestinos cuja carga era extremente baixa. A partir do rio Sao Francisco, os rebanhos penetraram no Tocantins e no Norte no Maranhào já no inicio do século XVII. Essa característica e natureza da atividade criatória possibilitou a acumulagáo por parte de certos individuos, trabalhando numa fazenda de gado, para depois trabalharem no seu pròprio negocio. Houve, em conseqüéncia, a migragao de colonos sem capital para esse núcelo, vindos da regiào agucareira e de S. Vicente, outro núcleo de produgào agucareira dos primordios da colonia. E, além disso, foi fundamental o papel do indio aculturado que se adaptou rapidamente às tarefas auxiliares de criagào (Furtado 1961). Desse quadro se infere facilmente que a lingua falada na colònia vai refletir tal situagào. Acresga-se a isso a desimportància da lingua escrita em tal sociedade - se assim se puder classificar - e o proeminente papel da oralidade, onde uma minoría de dirigentes comandava indios e escravos. É esse sem dúvida o espago ideal para o desenvolvimento de variedades oráis da lingua dos dominantes. Considerando a origem de muitos colonos, mais o desconhecimento do portugués pelas populagòes nativas e africanas, pode-se deduzir como se caracterizavam tais variedades do ponto de vista estrutural, que, em oposigào à variedade européia urbana - a variedade prestigiada mais próxima - deviam ser de feigào nitidamente rural. A constituigào, pois, de variedades lingüísticas rurais nesses espagos transformados em capitanias assinala a primeira caracterizagào da lingua portuguesa no Brasil, à medida que eia foi se espalhando entre as populagòes, quer autóctones, quer transplantadas. Por tudo isso, o trago predominante do ponto de vista interno devia ser a simplificagào. Um exemplo concreto, ao que tudo indica, dessas variedades é o portugués rural nordestino, a regiào mais populosa no periodo, que ainda preserva tragos do periodo de sua constituigào. Indo de Pernambuco ao Ceará, a regiào Nordeste à epoca congregava cerca de 70 por cento da populagào da colonia. A Bahia, que embora se situé no Nordeste, constituía uma regiào à parte e se estendia até Sergipe. Sào Paulo e o Rio de Janeiro se constituiam num terceiro pòlo, embora em menor dimensào comparativamente às outras áreas citadas.

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Esse aspecto analisado, portante, serve bem para caracterizar a relaçâo entre fato histórico e fenómeno lingüístico. Mostra além disso como o isolamento histórico das regiôes provocou a compartimentalizaçâo da cultura e fez surgir outras, segundo a direçâo que determinado aglomerado tomou desde o ponto de vista de sua organizaçâo interior, até o da relaçâo étnica que se estabeleceu dentro de cada uma. Tal situaçâo, que começou a se formar a partir do final da primeira metade do século XVI, se intensificou na segunda metade daquele século, e se consolidou ao que parece nos séculos XVII e XVIII. A partir do momento em que as populaçôes indígenas começam a rarear - e conseqüentemente as suas línguas - ; a língua gérai começa a decrescer; e os africanos deixam de entrar no Brasil, é possivel que essas variedades já estivessem configuradas, sofrendo apenas outras alteraçôes em face de aportes novos que recebiam. 2.3.3

A s línguas gérais indígenas: vida e decadência36

Uma das características desse multilingüismo do periodo é a existência de línguas indígenas. Embora hoje ainda se falem no Brasil cerca de 170 diferentes línguas indígenas, a situaçâo era totalmente diferente porque a língua portuguesa era minoritária. Hoje, ao contrário, a língua portuguesa funciona para muitos povos indígenas como a língua de contato com a cultura dominante. Mas até o século XVIII, dominaram as línguas «gérais» de base indígena. Rodrigues (1996) tenta esclarecer o que se deve entender por «língua geral», já que, segundo ele, há bastante confusâo quanto a sua conceituaçâo. Por exemplo, a de se pensar que a expressâo designaría uma língua criada ou moldada pelos jesuítas. Assim, para o autor, a língua geral surgiu num contexto de contato lingüístico entre indios e europeus, que posteriormente se transformou numa comunidade de mamelucos e em que a língua indígena originariamente falada foi se aproximando da cultura portuguesa. Além disso, essa aproximaçâo foi favorecida pelo bilingüismo, que assim contribuiu para a transformaçâo do tupi nesse novo instrumento de interaçâo entre mamelucos. De um modo abrangente se fala da existência da «língua geral», talvez por se fixar na situaçâo apenas do século XVI. Rodrigues (1986), entretanto, distingue duas línguas gérais, a paulista e a amazónica. E preciso ter clara, a principio, a diferença entre língua indígena e língua geral.37 Na costa brasileira à época da chegada dos portugueses dominavam

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Este tópico vai se basear em Rodrigues (1986; 1996). Rodrigues (1996), que tem pesquisado de forma mais sistemática as línguas indígenas brasileiras, apresenta a bibliografia existente para o estudo do tupi e tupinambá e das línguas gerais. Alguns trabalhos básicos sao os seguintes: Anchieta, Joseph de. Arte de grammatica da lingua mais usada na costa do Brasil. Coimbra, 1595; Figueira, Luís, Arte de grammatica da lingua brasilica, 1678. R e p r o d u j o fac-similar por J. Platzmann sob o título Grammatica da lingua do Brasil. Leipzig, B.G. Teubner, 1878; Sympson, Pedro Luiz, Grammatica da lingua brazilica geral, fallada

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indios da familia tupi-guarani. Em face da concentraçâo de colonizadores na regiâo Nordeste no primeiro século da ocupaçâo, entre Pernambuco e Bahia, onde se desenvolveu plenamente a cultura da cana-de-açucar, os indios que ai habitavam foram mais rapidamente dizimados ou empurrados para o interior onde se refugiaram, caracterizando-se esse nucleo desde mais cedo pela presença africana. Por outro lado, ainda no século XVI, o núcleo de Sâo Vicente viveu exclusivamente da escravidâo indígena, onde os indios tupis predominavam. Com a crescente mestiçagem entre indios e portugueses foi crescendo o número de mamelucos com evidente influência da lingua portuguesa na situaçâo de contato e bilingüismo. No século XVII o tupi houvera praticamente se transformado na chamada «lingua gérai», ou seja, nao se tratava mais do tupi original, mas duma lingua nova, fruto portanto desse contato intenso com a cultura portuguesa. Ao final do século XVII, com a procura do ouro e a expansâo paulista, essa lingua foi levada pelos chamados «bandeirantes», falantes da lingua geral, a Minas Gérais, ao sul de Goiás, ao Mato Grosso e ao Norte do Paraná. Seus últimos falantes viveram até o inicio do século XIX. Ao Norte, da regiâo do Pará até ao Maranhâo, dominava urna outra lingua da mesma familia tupi-guarani, o tupinambá. Por apresentarem essas duas línguas certas semelhanças, o desenvolvimento lingüístico e as condiçôes sociolingüísticas que vâo se dar ali a partir do século XVII sâo também semelhantes aos ocorridos em Sâo Paulo nos sáculos X V I e XVII, constituindo-se assim também urna lingua geral, chamada de «lingua geral amazónica» (Rodrigues 1986, 102), para distingui-la da outra falada em Sâo Paulo. Durante a ocupaçâo da Amazonia eia foi levada para là e no século XIX foi chamada «nheengatú», sendo ainda hoje falada em certos pontos daquela regiâo. Sobre a lingua geral falada no Nordeste, a situaçâo nâo é tâo clara como nos casos de Sâo Paulo e do Amazonas. Rodrigues (1996) nega a existência de línguas gérais no espaço entre o Piauí e o Rio de Janeiro.38 Entretanto, como se explica a documentaçâo da reforma pombalina, que alude à lingua geral no Nordeste, quando ordena a imposiçâo da lingua portuguesa?39 Tam-

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pelos aborígenes das provincias do Pará e Amazonas. Manaus, 1877; Tastevin, C., La Langue tapïhiya, dite tupi ou neengatu (belle langue): grammaire, dictionnaire et textes. (Kaiserliche Akademie der Wissenschaften, Schriften der Sprachenkommission, vol. II). Viena, Alfred Hôlder, 1910. Esse autor defende seu ponto de vista, tomando por base o fato de que aquela regiâo concentrou mais portugueses desde o inicio da colonizaçâo, dada a proximidade do centro administrativo localizado em Salvador. Outro fator a que alude foi o exterminio das populaçôes indígenas localizadas na regiâo, seja em lutas, seja através de epidemias transmitidas pelos brancos (Rodrigues 1996, 1 1 - 1 2 ) . O historiador brasileiro Rodrigues (1985b) cita urna série de documentos onde se encontram as leis referentes à proibiçâo da língua geral. A título de exemplo, seja o seguinte: Collecçào da Legislaçâo Portugueza desde a ultima compilaçâo das Ordenaçôes, redigida pelo desembargador Antonio Delgado da Silva, 1750-1762, Lisboa (1830, 507-530). 40

bém através das missôes dos padres oratorianos, depois da expulsâo dos holandeses, se retomam os trabalhos de catequizaçâo. Lá se distinguem os indios de lingua gérai e os tapuia,40 sendo os primeiros designados de caboclos, que representavam o resultado do contato de indio com portugués. 41 Dada a familiaridade do portugués com a lingua gérai, é de se supor que, à medida que o uso da lingua portuguesa se alastra, a lingua geral vai pouco a pouco perdendo traços de sua natureza e seus falantes vâo se dirigindo em direçâo ao portugués. É de se supor que, depois da expulsâo dos holandeses e com a quebra da economia açucareira e o conseqiiente desenvolvimento da pecuária com a migraçâo do litoral para o interior, mais populaçôes indígenas passaram a ser integradas no convivio com o branco e disso resultou ainda mais a aproximaçâo entre a lingua portuguesa e as línguas indígenas. Urna prova disso sâo os baixos números de indios no século XVIII na regiâo. O crescimento da populaçâo nordestina durante aquele período de estagnaçâo económica atesta a migraçâo para o interior (Furtado 1961,77-80). Da mesma forma que o negro exerceu sua influéncia no contexto da produçâo açucareira, o indio o fez no contexto da economia do pastoreio, dentro da atividade criatória, sendo o primeiro mais presente na regiâo litorànea onde se concentrou o açùcar e o segundo no interior, com a criaçâo. A s línguas gérais faladas na costa brasileira entraram respectivamente em dois processos de reduçâo de sua esfera de uso; a paulista em desaparecimento; e a amazónica em decadência, com a imposiçâo da lingua portuguesa. A lingua geral paulista deve ter desaparecido completamente no inicio do século XIX, quando ainda se resgistram alguns falantes velhos, últimos remanescentes. Depois deixou rastro de sua existência sobretudo no chamado «dialeto caipira», estudado por Amarai (1920) no inicio do século X X . A amazónica, transformada no Nheengatú, apresenta ainda hoje fortes marcas de sua existência na fala do ribeirinho, habitante típico da regiâo. Há urna literatura regional amazónica, que utiliza um vocabulário originàrio dessa lín-

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«Tapuia» denomina§áo atribuida aos indios náo-falantes da língua-geral. Lima (1979,71), ao relatar as missóes dos oratorianos no Nordeste brasileiro, referese a informa^oes nos documentos sobre indios aldeados na segunda metade do século XVII: «E bom ter em mente que nos vários documentos do tempo, os indios das missóes eram repartidos em duas categorías principáis: os caboclos ou indios da língua geral, habitantes na vizinhanía do litoral; e os Tapuias, situados no interior pelos sertóes, cada um com sua língua própria (...).» Quanto aos indios da missáo de Aratagui, escreve: «(...) Seus indios pertenciam aos caboclos da Língua Geral» (Lima 1979,73). A questao que se coloca entáo é como e com base em que língua indígena esses indios dominaram urna língua geral? O próprio autor afirma também que algumas das missóes nao foram cria?áo dos oratorianos. Tinham sido fundadas pelos jesuítas, que as abandonaram por causa dos holandeses (Lima 1979,71). Por fim cita o seguinte documento, onde encontrou algumas informa^oes: Noticias que dao os padres da Congregando de Pernambuco. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, manuscritos do Brasil n.° 23.

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gua (Zambonim 1982). Tudo indica que ela representa um estágio de uma língua gérai em contato com a língua portuguesa, principalmente porque as marcas indígenas sobrevivem no vocabulário e seus falantes sao individuos nascidos de indios e nâo-indios.42 Esses fatos mostram, pois, como as linguas gérais contribuíram na constituiçâo das variedades rurais da língua portuguesa. 2.3.4

As línguas africanas

Para o resumo dos dados a seguir, vamos tomar por base Ribeiro (1978, 9 24). Até meados do século XVII indios e africanos compunham os números da escravidâo brasileira. Utilizado em primeiro lugar como mâo-de-obra escrava, o indio só foi susbtituído pelo africano depois da certeza da rentabilidade do comércio de açùcar. Embora utilizado na fase de verdadeira ocupaçâo das terras brasileiras, na segunda metade do século XVI, apesar da imprecisâo dos dados hoje disponíveis, o escravo africano passou a ser intensamente empregado na produçâo açucareira no século seguinte com a expansâo da cultura da cana. Entre 1620 e 1623 existiam em Pernambuco - a regiâo mais importante na produçâo daquele produto - cerca de 15 mil escravos africanos. Depois da invasâo holandesa, em 1630, continuaram as importaçôes principalmente de Angola, embora durante a guerra de ocupaçâo dos batavos tivesse havido uma queda no tráfico e uma diminuiçâo geral do número de escravos, sobretudo por causa da fuga durante o conflito com a formaçâo de quilombos. Quando os invasores se estabilizan! - e se tornam eles próprios traficantes de escravos - os números de importaçâo de africanos voltam a crescer. Entre 1739 e 1741 foram levados cerca de mil negros de Pernambuco para as Minas, mas, alguns anos depois, na segunda metade do século a entrada anual de escravos na capitania era superior a dois mil. De todos esses dados - embora imprecisos - importantes para a compreensâo da formaçâo étnica da populaçâo brasileira e seus efeitos sobre a intercomunicaçâo entre os diferentes grupos étnicos, nao se sabe com precisâo quantos escravos eram africanos, ou filhos de africanos nascidos no Brasil, os chamados crioulos. Apesar da imprecisâo da origem dos escravos importados, parece haver um certo consenso de que nos dois primeiros séculos teriam predominado em linhas gérais africanos da Guiñé e de Angola, e no século XVIII, escravos do Centro-Oeste africano, sobretudo de Angola, destacando-se os portos de Luanda e Cabinda.43 Em Pernambuco, particular-

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Sobre a historia da imposijáo do Nheengatú na Amazonia, v. Freire (1983). Miller ( 1 9 8 3 ) escreveu importante artigo sobre os números, origens e destinos de escravos no comércio angolano do século XVIII, utilizando documentado oficial. Entretanto, o número total de importares durante todo o período continua incerto. Admite-se entre 4 milhóes e 18 milhóes de venda de escravos para o Brasil durante cerca de 300 anos, veja-se Castilho (1992); sobre origens, v. também Daeleman (1982).

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mente, os bantos sobrepujaram numéricamente os sudaneses. Daí, entretanto, a se precisar urna influencia lingüística mais evidente é hoje praticamente impossível, porque outros complicadores se ajuntam, tais como o contato indio-negro e um possível pidgin de base portuguesa já trazido da África, que poderia ter nivelado algumas variedades no Brasil, além naturalmente do papel da língua portuguesa, que á medida que crescia em uso, reduzia algumas discrepancias das diferentes variedades que tinham alguma influencia dessa língua, aproximando-as de si ainda mais. Para encerrar este tópico, apresentamos urna classifica^áo dos grupos lingüísticos africanos que entraram no Brasil no período da escravidáo. Ventura (1987,66), apoiando-se em outros estudos, dá a seguinte classifícafáo: a) sudaneses, originados principalmente da Guiñé, Costa da Mina, representados em especial pelos Yoruba (Nagó, Ijésha, Egba, Ketou, etc.), pelos Dahomeanos do grupo Gegé (Ewe, Fon) e pelo grupo Fanti-Ashanti, chamado á época colonial Mina, e enfim pelos grupos de Kroumans, Agni, Zema, Timini; b) mugulmanos, chamados de Males, oriundos do norte de Benin, representados sobretudo pelos Peuhls, Mandigues, Haussa e, em menor número, pelos Tapa, Bornu, Gurunsi; c) bantos do grupo angola (Cassanges, Bengalas, Inbangalas, Dembos), pelos Congos ou Cabindas e pelos Benguela; d) bantos da Costa Oriental, representados pelos M09ambiques.

Entre os sudaneses, situados no Oeste africano, ao Norte da linha do equador encontra-se a importante familia Kwa, e entre os bantos, ao Sul dessa linha, as línguas majoritárias quimbundo, quicongo e umbundo, referidas por Castro (1978, 12-13). 2.3.5

O pidgin da Costa da África

Desde o sáculo X V que os portugueses mantinham algum tipo de contato com africanos. Em Portugal já teria surgido, senao um pidgin, como observou Naro (1978), pelo menos urna etapa dele, o que se depreende dos textos analisados por esse autor, que correspondería a um «foreigner talk» na concept o de Clements (1992). Entretanto em Granda (1976; 1978) aparece urna proposta sócio-histórica, que dá á formulafao teórica de Whinnon (1965) - de que o crioulo portugués da África houvera se formado na metade do século X V através de um modelo morfossintático simples fornecido pela lingua franca, amplamente usada no mediterráneo durante os séculos anteriores um embasamento de natureza externa. Granda, pois, busca fornecer esse embasamento, apresentando a contribuÍ5áo de dois processos fundamentáis para que o modelo da lingua franca fosse utilizado. Trata-se da transmissao e da difusáo da lingua franca. O contato intenso entre marinheiros portugueses e italianos no litoral da África ocidental vai propiciar aos portugueses a difusáo daquele modelo lexicalizado na dire?áo do portugués, que, por sua vez,

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vai servir de base para o protocrioulo ou protopidgin portugués na África negra. Partindo do pressuposto de que esse sistema simplificado teria se desenvolvido naquela regiào, de onde foram levados milhôes de escravos para o Brasil, nâo seria estranho se argumentar que essa lingua de emergência teria sido levada com os africanos que a dominavam para o Novo Mundo, constituindo-se no Brasil dessa forma em mais um componente da complexidade lingüística deste período inicial. Quai teria sido o firn desse pidgin no Brasil é urna pergunta que continua sem resposta, podendo se hipotetizar apenas que ou ele teria confluido com outras variedades que emergiram naquele contexto ou teria sido absorvido pela crescente penetraçâo da lingua portuguesa. 2.3.6

Línguas gérais africanas

Da mesma forma que as línguas indígenas deram nascimento às suas línguas gérais, também as línguas africanas da mesma familia deram nascimento às suas línguas gérais.44 Esse fenòmeno é facilmente compreendido dada a concentraçâo de escravos de línguas diferentes, mas pertencentes à mesma familia, ou seja, aparentadas em alguns aspectos gramaticais, o que teria favorecido o desenvolvimento dessas linguae francae. Rodrigues (1985b, 31), citando Nina Rodrigues, informa que na Bahia serviram como línguas gérais o nagô ou iorubá; no Norte e no Sul, o quimbundo. Ñas senzalas no século XVI, dada a diversidade de lingua africanas, apesar da semelhança genética entre muitas délas, se originou urna lingua franca de base banto, que Castro (1978) classifica de dialeto das senzalas. No século XVIII, a autora identifica a criaçâo de urna outra lingua franca ñas regiôes das Minas. Trata-se de um dialeto das minas, atestado na primeira metade do século XVIII e de base ewê, numa comunidade agora diferente, porque nâo se trata mais do sistema de casa-grande e senzala, predominante na economia do açucar. Essas linguae francae tenderam sempre à assimilaçâo pela lingua portuguesa, favorecida sobretudo a partir do século XIX com o processo de urbanizaçâo e modernizaçâo. 2.3.7

As variedades lingüísticas regionais dos colonizadores

Este é também um tema controverso na historia do portugês do Brasil. Sobretudo porque nâo se tem informaçâo segura sobre a imigraçâo portuguesa para o Brasil nos primeiros séculos da colonizaçâo. Só a partir da segunda metade

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Da mesma forma que as línguas gerais indígenas foram produto do contato entre indios e brancos, como um desenvolvimento natural onde trafos de dois sistemas lingüísticos se interpenetraram com tendencia mais favorável á língua dos dominadores, as línguas gerais africanas foram fruto do contato entre etnias diferentes, que eram obligadas a conviver no contexto da escravidao.

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do século X I X se tem alguma i n f o r m a l o mais concreta. Embora no século X V i n tenha havido imigra^ào em massa, a origem dos imigrantes nào é sabida. Nos anos quaranta deste século, Paiva Boléo contestou filólogos brasileiros que defendiam a existencia de certos brasileirismos no campo da fonética, apontando a origem a$oriana de muitos deles, mas Rogers ( 1 9 4 7 ) pos em questionamento certas o b s e r v a r e s daquele filòlogo portugués ao apontar a dificuldade em se tirar conclusòes históricas sobre fenómenos lingüísticos comuns às duas regiòes, quando se parte do pressuposto de que se se sào semelhantes aos do Brasil, também assim o eram entre os séculos X V I I e X I X , periodo daquela imigragào. Também o contràrio, continua o autor, poderia se levantar, ou seja, se certos fenómenos insulares nào teriam sido o resultado da influencia da volta de emigrantes do Brasil, que teriam levado para là traaos fonéticos do portugués brasileiro. Nos anos 80 Boléo ( 1 9 8 0 1986) publicou, décadas depois, portanto, da polémica com Rogers, resultados mais convincentes sobre suas investigares, 4 5 depois que pesquisou os arquivos abríanos sobre a emigra§ao para o Brasil e certos fenómenos lingüísticos naquelas ilhas. 46 Que a imigrasào portuguesa teve grande impac-

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O autor enumerou vários fenónemos sobretudo de ordem fonética comuns as duas regióes. No Brasil os fenómenos foram associados aos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, para onde reconhecidamente emigraram os casais aforianos. Sobre a influencia aforiana em Santa Catarina, v. o trabalho de Furlan (1989), que investiga as posicjoes mais antigas acima referidas, trazendo para o tema importante contribuifáo. Quanto ao papel dos aforianos na configurafáo histórico-cultural do Brasil sulino, assim se expressou Ribeiro (1995,424-425): «Uma outra configurafáo histórico-cultural constitui-se no Brasil sulino formado por populares transladadas dos Afores, no século XVIII, pelo govemo portugués (...). Alguns grupos se estabeleceram na faixa litoránea, ñas térras marginais do rio Guaíba, outros no litoral de Santa Catarina (...). Entregues, porém, a seu próprio destino, acabaram aprendendo os usos da térra que já estavam a seu alcance, através dos grupos j á conformados pelas protocélulas brasileiras que se vinham expandindo ao longo do litoral catarinense. Fizeram-se matutos, ajustando-se a um modo de vida mais indígena que aforiano (...). [Foram] decisivos no aportuguesamento lingüístico e no abrasileiramento cultural da campanha». Também os aforianos constituíram uma matriz da cultura cabocla da Amazonia, como Ribeiro (1995» 3^3) escreve; «A Coroa portuguesa esforfou-se por estabilizar a sociedade nascente, estimulando o cultivo de algumas plantas indígenas, como o tabaco, o cacau e o algodáo. Para essas tarefas produtivas e também para consolidar o seu dominio da área disputada pelos espanhóis, introduziu na Amazonia colonos das ilhas atlánticas, principalmente dos Afores.» Um paralelo interessante a se estabelecer é o papel de variedades insulares tanto para a formafáo do portugués brasileiro, quanto para o espanhol americano. Da mesma forma que os Afores contribuíram para o povoamento do Brasil, trazendo em conseqüéncia influencia lingüística, também as ilhas canarias contribuíram para a formafáo do espanhol da América, nao sendo pelo menos nesse último caso uma transposifáo direta de variedades européias, como afirma Lüdtke (1994b, 44): «Así, la primera aclimatización del español ultramarino tuvo lugar en las Islas Canarias orientales.» O mesmo em parte pode-se dizer para o portugués.

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to na formagào do portugués brasileiro, nào se pode negar, mas precisar como e quanto é urna questào ainda em aberto. Entretanto hoje é um consenso que os imigrantes portugueses vieram de várias regiòes ao mesmo tempo, dai ser difícil precisar a origem de certos fenómenos. 2.3.8

A formagào das variedades rurais do portugués brasileiro

A o fazer um resumo histórico sobre o portugués brasileiro, Bortoni/Guimaráes (1988, 19-20), afirmam que as diferencias entre fala rural e urbana no Brasil assumem características notáveis, atribuindo isso ao processo de colonizagào. Dada a complexidade lingüística produzida pelo encontro dos très troncos étnicos, originou-se ñas zonas do interior um pidgin, que, dadas as ondas de imigragào portuguesa no século XVIII, transformou-se em dialetos rurais, face à crescente exposigào de seus falantes aos modelos lingüísticos da lingua portuguesa. Para os autores, essas variedades rurais mantèm urna grande vitalidade favorecidas pelo analfabetismo cujos falantes ainda conservam marcas do processo de refonologizagào e redugào de flexòes. As afirmagòes desses autores fornecem mais um elemento sobre o que sabemos, oferecendo mais possibilidades de interpretagào na reconstrugao daquela situagào lingüística. Numa primeira fase de emergencia das variedades rurais, podemos postular de inicio tres áreas onde eles teriam se formado de acordo com o tipo de contato que se estabeleceu em cada uma délas: na Bahia e em Pernambuco, no Nordeste, e em Sao Paulo, no Sudeste. Em Pernambuco, encravado na chamada área crioula, onde a miscigenagáo étnica foi significativa - incluindo as outras regiòes sob sua tutela administrativa, que compòem hoje diferentes estados nordestinos; na Bahia, que se constituiu como outro núcleo, dando surgimento a Sergipe, é possível que tenha se constituido uma variedade regional com leves tragos diferentes, sobretudo em face da presenga negra, apesar da proximidade e semelhanga de formagào histórica com Pernambuco; e em Sao Paulo, fortemente marcado pela influencia indígena. De um modo geral as diferengas regionais incidem no nivel prosódico e fonético, denunciando ao que tudo indica o substrato indígena ou africano. Dessa maneira, algumas observagòes inspiradas nesses elementos podem ser feitas. A variedade de Pernambuco distingue-se de alguma maneira da da Bahia, percebendo-se algo diferente a nivel prosódico entre elas; essas, por sua vez, diferem da falada em Sao Paulo, que ainda hoje guarda marcas também de sua origem rural e de sua longa caracterizagào indígena. Numa segunda fase, é provável que num período de cerca de duzentos anos tenha se formado uma koiné regional nordestina em face do contato que se estabeleceu de Alagoas até o Ceará, por causa do papel que Pernambuco exerceu inicialmente na ocupagào e povoamento e posteriormente na administragào de toda a regiáo. Para verificar em que medida essa explicitagào histórica do surgimento de variedades brasileiras corresponde ainda hoje em certa medida a áreas dialetais, trazemos a opiniào de Antenor Nascentes (1963), que adotando um mo46

délo dominante nos estudos filológicos,47 justificou a sua divisào do Basii em áreas dialetais da seguinte forma: «(...) a enorme extensào territorial sem fáceis comunicagòes interiores quebrou a unidade do falar, fragmentando-o em subfalares (...)•» (Nascentes 1 9 6 3 , 1 7 ) . Essa afirmasao é interessante, porque embora nào tenha tido preocupado com o surgimento de variedades, deixou subjacente urna certa fundamenta?ào histórica.48 A o propor suas áreas dialetais para o Brasil, aquele filòlogo escreve: «De um modo geral se pode reconhecer urna grande divisào: norte e sul; norte, até a Baia e sul, dai para baixo. No sul nào ha vogais protónicas abertas antes do acento (salvo determinados casos de derivafào) e a cadencia é diferente da do norte. È palpável a diferen9a entre a fala cantada do nortista e a fala descansada do sulista. No léxico sào grandes as diferen?as que se notam entre os diversos Estados do Brasil; basta comparar um livro de Alfredo de Rangel, por exemplo, com um de Monteiro Lobato.» (Nascentes 1963, 19-20) Esses dois grandes grupos foram subdivididos em seis subfalares (terminologia do autor). Os do Norte seriam o amazónico e o nordestino, ficando a Bahia fora deste; os do Sul seriam o baiano, o fluminense, o mineiro e o sulista; o territòrio localizado na regiào Centro-oeste, na fronteira com a Bolivia, Mato Grosso, Amazonas e Pará, foi classificado de incaracteristico por ser à época praticamente despovoado.49 Fagamos agora urna comparagào com urna classifica9ào cultural das regiòes. Wagley (1965, 126) propòs seis grandes regiòes para classificar as diferengas culturáis50 brasileiras, inspirado nos critérios: clima, superficie, composÌ9ào racial da populagào, passado histórico e padróes e instituifòes culturáis modernos. Ele chegou ao seguinte resultado: vale amazónico; Nor-

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Trata-se do «principio da divergéncia», que procura explicar a historia das linguas románicas pela diversificacáo do latim ñas diversas regi5es para onde foi levado. Esse modelo também foi aplicado aos estudos dialetológicos no ámbito das linguas románicas em particular. Contrariamente ao autor, entretanto, apesar de o portugués brasileiro se tratar de urna língua transplantada, conforme esclarecemos no inicio, adotamos sempre a visáo do contato entre as linguas (por exemplo, língua comum, koineiza§áo, mistura dialetal), o chamado «pincípio da convergencia», desde a primeira fase até a última. Para urna síntese de estudos dialetológicos e suas descobertas sobre as variedades regionais do portugués brasileiro, v. Cunha (1986). A proposta mais recente é a de Ribeiro (1995). Ele distingue quatro áreas culturáis. A primeira a área cultural crioula (v. nota 32), instalada no Nordeste brasileiro; a segunda a área cultural caipira, ñas antigas áreas de minera^ao e que se estende pelo centrosul do país, desde Sáo Paulo, Espirito Santo e Rio de Janeiro na costa, até Minas Gerais e Mato Grosso, estendendo-se até as vizinhan?as do Paraná; a área cultural cabocla, na regiáo amazónica; por fim, uma área cultural sulista. Cada uma dessas áreas apresenta sua peculiaridade e complexo étnicos, servindo também como ponto de partida para uma investiga§áo de variedades lingüísticas regionais brasileiras. 47

deste litoráneo; Nordeste árido; extremo Sul; estados médios industriáis; e o Oeste fronteirifo. Se se comparam essas regióes culturáis com as áreas dialetais de Nascentes, percebe-se bastante semelhanga: Inicialmente sete sao as áreas dialetais e seis as regi5es culturáis. As divisoes vale amazónico e Nordeste tém correspondencia, embora do ponto de vista cultural o Nordeste esteja subdividido. A rigor, o Nordeste nao é lingüísticamente homogéneo, com urna nítida diferen$a, pelo menos no nivel prosódico, entre a fala do litoral e a do sertao; culturalmente o extremo Sul tem correspondencia lingüística, o sulista; o que Wagley classificou de «estados médios industriáis», corresponde a uma divisáo mais vasta de Nascentes, o fluminense e o mineiro; por fim, o Oeste correspondería ao que Nascentes chamou de «incaracterístico». Como se vé, sao poucas as diferengas entre as divisoes de objetos culturáis de natureza diferente, tal como apresentados, o que parece comprovar que a especificidade cultural e o regionalismo discutidos encontram correspondentes de natureza lingüística, de acordo com as vicissitudes histórico-geográficas das distintas regioes do país. Essa comparagáo indica que nao foi a extensáo territorial que «quebrou a unidade do falar», mas circunstancias históricas diferenciadas promoveram fenómenos específicos e novos dentro da tradi?áo histórica da língua portuguesa enquanto diassistema em continentes culturalmente diversos.

2.4

Segunda fase (I): descoberta do ouro ñas Minas Gerais e moderniza?ao do Estado portugués. Pré-koineiza9ào da língua comum

É preciso esclarecer inicialmente que este momento se estende até 1922, quando se forma a língua literária, porque esta precisava de urna tradito que vai ser estabelecida a partir dessa constituido do portugués comum brasileiro. Ele compóe-se de très grandes subfases históricas, ou seja, a modernizagao do Estado portugués com as reformas pombalinas; a transferencia da familia real portuguesa e as transformagóes urbanas; e o fim do tráfico de escravos. Lingüísticamente essas fases corresponden!, respectivmente, a um período de fermentado do portugués comum brasileiro; uma fase de efetiva forma?ào dessa variedade; e uma fase de sua estabilizado, que vai de 1850 até 1922, quando come§a a terceira fase histórica. 2.4.1

Contexto histórico

Depois da expulsào dos holandeses em 1654 e a conseqüente concorréncia que estes vào estabelecer ñas Antilhas com o agúcar brasileiro, a economia brasileira - ainda baseada sobremaneira na produgáo agucareira - cometa a entrar num progressivo declínio. Ao final do século X V I I - ainda em pleno processo de derrocada da economia do adúcar - descobre-se o ouro ñas Minas

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Gerais e o pòlo economico transfere-se do Nordeste para o Sudeste do país. Esse fato econòmico vai representar a saida para a salvalo de Portugal que, depois da libertado do jugo espanhol e da ocupa?ào holandesa no Nordeste do Brasil, se encontrava economicamente prostrado. No tempo em que esteve sob o jugo espanhol, de 1580 a 1640, Portugal perderà a melhor parte dos entrepostos orientáis e no Brasil tivera a melhor parte da economia na mào dos holandeses. Era a hora de reformar o Estado portugués e revitalizar o desenvolvimento da colònia. Nesse contexto de reformas emerge à cena política o Marqués de Pombal, que com um ampio programa de modernizagào do Estado, interfere decisivamente no curso da historia portuguesa e de suas colonias. 2.4.2

Condi?5es para a pré-koineiza§ào de variedades lingüísticas

As condi?òes que favoreceram a emergència de um embriào de lingua comuni - processo que poderiamos classificar de pré-koineiza?ào (Siegel 1985, 373)5' - estao naturalmente associadas à complexifica^ào social, sobretudo porque se trata do comefo do entrela§amento entre as regiòes, nào só em face da migrafào, mas também das necessidades de intensifica?ào do comércio interno. Os centros mineiros dependiam de outras áreas para o abastecimento e as outras regiòes tinham interesse nesse abastecimento para participar também da economia do ouro. A existencia de um núcleo de coloniza9ào em Sào Paulo possibilitou a amplialo desses contatos e a regiào paulista constituiuse como um centro para onde convergiam certas mercadorias - sobretudo animais - que entào eram distribuidas para a regiào aurifera. Por volta de 1730 inicia-se a comunicalo por terra entre as pastagens do Sul, fornecedoras de animais para o transporte do ouro e de outras mercadorias, e Sào Paulo passa a ser o centro de redistribuigào. Como no Nordeste a cana-de-a9Úcar fez desenvolver a pecuária, desenvolve-se no Sul a procura do gado de corte; depois o comércio de muarés, dada a necessidade fundamental de transporte para a regiào do ouro. Esses dois fatores, sobretudo o segundo, possiblitaram a integra?ào do Sul do país, pois do Rio Grande do Sul, cuja produco de muarés era a maior, esses animais eram levados para a regiào de Sào Paulo, onde em grandes feiras, distribuiam-se para outras regiòes através de compradores atraídos para ali. A articulado entre aquelas provincias provocada pelo desenvolvimento da produfào aurifera quebrou urna tradigào histórica de isolamento, que tendería a persisitir em regime de subsistencia sem vínculos de solidariedade econòmica (Furtado 1961). Este entrela5amento se estabeleceu da seguirne forma: Inicialmente entre 1704 e 1707 abriu-se «o caminho novo» entre Mi-

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A descrivo feita neste tópico tem o objetivo de fomecer ao leitor urna visào geral de como, ao final do século XVIII, foram se criando as condi?5es para a cescente intera^ào e integrafo entre as regiòes, o que vai favorecer o processo de koineiza9ào de variedades lingüísticas.

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nas e o Rio de Janeiro, gerando um comércio mais intenso, o que redundou na transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763. Além disso com a descoberta do ouro em Mato Grosso, Sâo Paulo também se tornou centro abastecedor daquela regiào num comércio feito através dos ños. A partir de 1736 foi aberto o caminho que ligava essa regiào às minas de Goiás e através destas ao vale do rio Sào Francisco, que também possibilitou a ligaçâo das minas Gérais à Bahia, dada a maior proximidade geográfica. Em 1749 o percurso dos rios possibilità a ligaçào do Para às minas do Mato Grosso e em seguida a conexào se faz com o Amazonas também pelas vias dos rios. A partir de 1773 pelo rio Tocantins se ligou Goiás ao Para. Por outro lado, do ponto de vista da configuraçâo dos núcleos populacionais e de como se dava a articulaçâo entre eles ao final do século XVIII, pódese pensar em très polos. Dois deles se articulavam mais nitidamente ao hinterland, a economia do açùcar e a do ouro. A economia açucareira estava articulada à pecuária nordestina, de forma nâo muito fluida, entretanto. O núcleo mineiro se articulava à pecuária sulina, que se estendia de Sâo Paulo ao Rio Grande do Sul. Os dois grandes núcleos ligavam-se tenuamente através do rio Sâo Francisco, em face da posiçâo média entre os dois polos, alternando a sua direçâo em relaçâo ao mercado que apresentava mais vantagens. Os dois centros mais importantes, o do ouro e o da cana-de-açùcar, e ainda o Maranhâo como um terceiro, se articulavam entâo através do sertâo pecuário. No Norte estavam dois centros autónomos, Para e Maranhâo, que viviam exlusivamente da extraçâo florestal baseada na mâo-de-obra indígena, com apoio jesuítico. Eram esses pois os centros e seu poder de articulaçâo quando se entra no século XIX e a articulaçâo vai deixar de ser rural e fluida para ser mais urbana e cada vez mais densa (Furtado 1961, 108). 2.4.3

Elementos de fermentaçâo do portugués comum brasileiro

2.4.3.1

Migraçâo

Dentro dessa nova realidade histórica, dois fatos muito importantes para o desenvolvimento lingüístico em qualquer comunidade ganham dimensâo. Trata-se do fenòmeno da migraçâo e da politica lingüística. Do segundo fenòmeno trataremos dentro do tòpico referente à imposiçâo da lingua portuguesa. Quanto à migraçâo, trata-se do primeiro grande movimento populacional na historia do Brasil. Com o ouro que se começa a produzir, pode-se financiar a expansâo demográfica, alterando-se significativamente a estrutura populacional do país. Os colonos portugueses - na primeira grande corrente imigratória espontánea com destino ao Brasil - imigraram em massa para a regiào do ouro,52 constituindo-se tal fato à época motivo de preocupaçâo para

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Segundo as últimas pesquisas de Ramos (1993), as origens da familia mineira estáo nos colonos do Minho, ao Norte de Portugal.

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o governo portugués, dado o esvaziamento da metrópole. Popula?òes também do Nordeste brasileiro - grande parte délas formada de escravos - migraram em massa para lá, dado o fracasso da economia da cana-de-a?úcar e a pecuária se constituir como atividade de subsistencia. De Sao Paulo53 também houve migragào em massa. Escravos foram importados de todas as regi5es para mào-de-obra extrativa do ouro e, ao lado deles, muitos negros libertos e mulatos livres migraram com o intuito de fazer o seu proprio negocio. Esse acontecimento modificaría sensivelmente o aspecto do Brasil. A distribuido espacial da popula5ào se altera profundamente com a ocupa?ào definitiva do interior com a descoberta do ouro ñas minas. Em um século, ou seja, entre 1660 e 1760, a popula?áo brasileira aumenta em 13 vezes e sào importados cerca de 600.000 escravos. Internamente o deslocamento de popula?ào é intenso. A grande mudanza, entretanto, é a transferencia de percentual populacional em rela9ào ao Nordeste do Brasil, que durante os séculos X V I e XVII era a regiào com maior concentragào populacional. A partir da descoberta do ouro, essa situa^ào se transfere para o Sudeste, incluindo o Rio de Janeiro e Minas Gerais, que passam a concentrar cerca de cinqiienta por cento da popula?ào brasileira (Marcflio 1974, 120). 2.4.3.2

Estratifica9ào social

Comparativamente ao predominio da economia azucarara, que se caracterizou pelo isolamento rural, a economia aurífera favorecida pela migrafào desenvolveu a vida urbana, alterando conseqüentemente a estruturafào das classes sociais, tornando mais complexa a primitiva dualidade senhor-escravo (Pinto 1989,18). E possivel portanto ao final do século XVIII distinguir urna composito social da populagào brasileira da seguinte forma, de acordo com Sodré (1990, 175): a) senhores de térras e de escravos, como classe dominante, nào já sem a unidade dos primeiros tempos apresentando agora frames de interesses heterogéneos, alterando a opiniao antiga face à metrópole; b) carnada mèdia, constituida de funcionários, militares, padres, letrados, pequeños comerciantes, pequeños proprietários, elementos que nào vivem do trabalho alheio; c) trabalhadores nào-escravizados, ou submetidios ao regime de escravidào, ñas áreas náo-escravistas, ou exercendo ñas áreas urbanas o trabalho fisico, do mais rudimentar ao artesanal; d) escravos, numa fase em que, com o declínio da minera§ào, o trabalho escravo passa por transformafòes importantes (...).

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O povoamento inicial das Minas Gerais é o desdobramento do tronco paulista, formado de bandeirantes mamelucos, que ali se instalaram na busca do ouro. Veja-se, a esse respeito, Ribeiro ( 1 9 9 5 , 374).

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Significativo também para o processo de constituigáo lingüística é a emergencia de urna classe de mulatos livres gerada também pela nova situagáo do escravo na economía aurífera. A participado déla é diferente daquela na economía agucareira. É também um mundo social mais complexo, com muitos trabalhando por conta própria, podendo entáo comprar a própria liberdade (Furtado 1961, 91). Muitos mineiros viviam em concubinato com escravas e deram origem a mulatos, que pelas habilidades no manuseio da máquina e pela origem, passaram a ter urna importancia significativa. Muitos deles tiveram urna participado importante na atividade artística, compositores que eram e representavam um número maior de que todos aqueles do Reinado de Portugal (Klein 1969, 48-49). Seu papel vai ser mais importante no século XIX, como veremos. Para se compreender a situagao dos homens livres ñas duas situagSes, ou seja, entre a economía da cana-de-agúcar e a da produgáo do ouro, é interessante atentar para o que nos diz Celso Furtado (1961). Enquanto na primeira, onde predominava urna estrutura simples, marcada nos dois extremos entre senhores de engenhos ou grandes proprietários e escravos, abaixo da primeira classe nenhum homem livre tinha chance de ascender socialmente e, durante a queda daquela economía, a situagáo se tornou ainda mais difícil para eles, chegando a constituir-se urna subclasse de homens livres, problemática algums vezes. Por outro lado, na economía do ouro, acrescenta o economista, dependendo do capital que possuía, o homem livre tinha sorte completamente diferente. Poderia organizar lavras com um escravo ou ainda, se seus recursos nao eram suficientes para aquela empresa, poderia ele próprio trabalhar como faiscador, podendo inclusive a partir daí ascender á posigao de empresário (Furtado 1961). A complexificagáo dessa estrutura social vai permitir as primeiras manifestagoes de variedades lingüísticas intermediárias, entre as de natureza rural já formadas e outras urbanas inspiradas na variedade européia. Mesmo assim, diz Celso Cunha (1990) que, ao se entrar no século XIX, a diglossia era evidente dada a distancia entre a língua da elite e a da massa de individuos falantes das variedades rurais. E exatamente a diminuigáo da distancia entre essas variedades que vai caracterizar o surgimento daquelas urbanas na primeira metade do século seguinte. Mas a incipiente urbanizagáo da economia do ouro deve ter gerado o primeiro embriao dessas variedades. 2.4.3.3

Pré-koineizagáo do portugués comum brasileiro

Do ponto de vista da reforma pombalina, vé-se aqui algum resultado intentado pelo entáo poderoso ministro, o Marqués de Pombal. A carnada média surgida, com mais competencia no manuseio da leitura/escrita, assume novas atividades, favorecendo o uso da língua portuguesa, paralelamente ao combate oficial á língua geral. Esse primeiro aportuguesamento lingüístico do Brasil tem a ver com a incipiente urbanizagáo do século XVIII e se constituí como o primeiro momento da formagáo de um portugués comum brasileiro, num nítido estágio inicial de koineizagáo. Era a primeira vez que surgia um público 52

no Brasil pelo menos para aquelas atividades culturáis de sentido mais utilitàrio. Mas afora isso surgiu urna literatura - inspirada nos padròes lusitanos que era também reflexo desse público leitor, originàrio da carnada mèdia que se formara no bojo das reformas pombalinas e do crescimento económico. Comparando-se o periodo de multilingüismo da época anterior com esta nova, percebe-se urna diferenga crucial quanto ao desenvolvimento lingüístico. A identificagao pela primeira vez da fala brasileira com determinados traaos que lhe sao próprios aparece no teatro portugués desta nova época, na segunda metade do século XVIII, na figura ridicularizada de «o brasileiro», especificamente classificado de «mineiro» e com origem européia, que é na verdade o portugués emigrado para o Brasil, que viaja para ali com o intuito de fazer fortuna e regressar ao reino. Paul Teyssier (1983) estudou onze pegas do teatro portugués do período, procurando identificar aquele personagem e os tragos lingüísticos que lhe sào associados. De um modo geral, o autor conseguiu apenas identificar um certo vocabulário exótico. Na pega O miserável enganado, de 1788, a figura do «brasileiro» é um senhor de engenho, cujas características lingüísticas sào formas arcaicas, representando um portugués rústico. Mas em urna pega, do ano de 1800, avalia o autor, intitulada O periquito ao ar, ou o velho usurário, aparecem tragos mais característicos do brasileiro, que desta vez é apresentado sob a figura de um mulato. O autor enumera alguns tragos da fala representada desse «brasileiro», dentre eles: a passagem do «e» a «i» em posigào pretonica; a despalatizagào de «Ih» no pronome «lhe»; o emprego de diminutivos repetidamente; emprego da próclise do pronome átono; e o tratamento «Vocé» aplicado a personagens que mereciam tratamento menos familiar. Com sua análise concluí Teyssier que pelo final do século XVIII já existia urna variedade brasileira da lingua portuguesa. Para este trabalho, a pesquisa daquele autor vem fornecer elementos reforgadores sobre a hipótese aqui defendida da fermentagào de urna lingua comum no Brasil naquele período, que caracteriza e identifica o portugués brasileiro. Essa informagào encontra também algum tipo de ressonáncia ñas obras de certos gramáticos portugueses contemporáneos. Em relagào pois ao portugués brasileiro no século XVIII, D. Jeronimo Contador de Argote 54 refere-se ao vocabulário e Frei Luís do Monte

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Trata-se da gramática Regras da língua portuguesa, Espelho da lingua latina, ou Disposifam para facilitar o ensino da lingua Latina pelas regras da Portugueza. Composto pelo Padre Caetano Maldonado da Gama. Lisboa Occidental: Na Officina de Mathias Pereyra da Sylva, & Joáo Antunes Pedrozo M.DCC.XXI. Nesta primeira edifáo o nome do autor aparece sob um pseudónimo. Para as edifóes, constituido e recepsao veja-se Schafer-PrieB (1994,19-23).

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Carmelo55 chama a atengao para o aspecto fonético; Jerónimo Soares Barbosa56 faz outras observares já no século XIX (Teyssier 1982). Num contexto de urbanizarlo e migragáo, tal como o caso do ciclo do ouro, é fato bastante comum o surgimento de processos de nivelamento dialetal, esséncia do fenómeno da koineizagáo. Nao somente a grande imigragao portuguesa, mas também o surgimento da literatura e os resultados da política lingüística do Marqués de Pombal sao sinais suficientes do processo de imposifáo da língua portuguesa e do seu sucesso, numa época em que os focos rurais de resistencia das línguas gerais entravam em desaparecimento. É possível, pois, se inferir que as diversas variedades já constituidas no período de multilingüismo entram em contato e passam a se nivelar, constituindo-se a célula do que viria ser o portugués comum brasileiro, num estágio que classificamos de pré-koineizagao. Essa etapa corresponde, pois, a urna fase de fermentado do que vai ser o portugués comum brasileiro, que, a partir do contato entre falantes de diferentes regioes, exibe as suas primeiras manifestagoes. De tudo isto se deduz que o novo ambiente ali surgido propiciou a formagáo de urna espécie de immigrant koiné (Siegel 1985,364), paralela ao declínio da língua geral, que vai ganhar terreno no século seguinte á medida em que crescem as condigSes comunicativas da sociedade brasileira. Quando a sociedade do ouro entra em decadencia ao final do século XVIII, já havia se constituido urna base dessa língua comum, ao lado das variedades já existentes e outras que se formaram principalmente com influxo africano (Castro 1978). 2.4.3.4

A proibigao da língua geral e a imposigao da língua portuguesa

Antes de comentarmos o efeito da política lingüística instaurada nos meados do século XVIII no boj o da reforma do Estado, conduzida pelo Marqués de Pombal, daremos urna visáo mais ampia do que abrangia essa reforma, dentro da qual a política lingüística era apenas urna parte. Nascido em Lisboa em 1699, Sebastiao José de Carvalho e Meló, mais conhecido inicialmente por «Conde de Oeiras» e posteriormente por Marqués de Pombal (local onde faleceu em 1782), durante a sua fase mais atuante como Primeiro Ministro, ganhou grande popularidade por ocasiao do terremoto de Lisboa em 1755, quando ele se empenhou de forma profunda na reconstituigáo da cidade, onde era visto entre os escombros, tragando os planos de reconstrugáo e dirigindo os trabalhos (Cidade/Selvagem 1973). Pombal se insere no momento histórico do alastramento do pensamento iluminista na Europa, depois que ele próprio entrara em contato com as idéias 55 56

Citada em Teyssier (1983). Trata-se da Grammatica philosophica da lingua portuguesa ou Principios da grammatica geral applicados à nossa linguagem. Por J.S.B, Deputado da Junta da Directoría Geral dos Estudos e Escolas do Reino em a Universidade de Coimbra. Lisboa: Typographia da Academia das Sciencias, 1 8 2 2 . Para as edigòes, constituifáo e recepsào, veja-se também Schàfer-PrieB (1994, 60-63).

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de Locke, quando atuara na Inglaterra a s e r v i ^ do governo portugués. A sua chegada ao poder, portanto, vai significar a implementa^ào desse pensamento como condutor da política a ser adotada por Portugal tanto na metrópole, quanto ñas colonias. Em face dos efeitos mais renovadores da politica pombalina se fazerem sentir no setor da instn^ào pública, notadamente na reforma universitaria, favorecidos pelo papel intelectual do Pe. Rafael Bluteau, Antonio Nunes Ribeiro Sanches e Verney,57 o Iluminismo portugués se caracterizou como essencialmente pedagógicio (Moneada 1941). As chamadas «reformas pombalinas», levadas a cabo pelo Marqués num prazo de vinte anos, se resumem em tres campos: a reorganiza5ào das estruturas do Estado, o fomento económico e as reformas da instru^ao pública. Quanto ao primeiro, a moderniza9ào do Estado, se resume na intenfào centralizadora e na maior eficiéncia do servi?o público, quando foram criados varios servidos novos, tais como as Juntas (do Comércio, do Eràrio Règio, da Providéncia Literária); na alterafào quanto à orienta?ào da censura no sentido da defesa do poder político e nào da ortodoxia religiosa; no firn do cativeiro indígena no Brasil e na declara9ào do nascimento livre dos filhos de escravos em Portugal. Quanto ao fomento econòmico, destacam-se o desenvolvimento do comércio - que foi declarado profissào nobre - e das indústrias. O primeiro se resume na cria?ào de Companhias de capitais privados, asseguradas pelo Estado (Companhia da Asia, do Para e Maranhào, Pernambuco e Paraiba, por exemplo); o segundo pode se resumir no aumento de indústrias, sob forma de simples oficinas artesanais. No que diz respeito às reformas da instrugào pública, destacam-se a criafào de classes para o ensino da gramática latina e da Retòrica em 1759, com a expulsào dos Jesuítas; em 1761 criou-se o Colégio dos Nobres, voltado para as disciplinas científicas; em 1772, instituiu-se a lei que criava a figura dos mestres de ler e escrever e criou-se o ensino secundario, cuja concepto sobrevive como inspiragào da estrutura do ensino atual. (Saraiva 1978, 231-233). No que diz respeito ao Brasil, paralelamente ao movimento populacional para a regiào das minas, come§am as medidas de política lingüística do Marqués de Pombal no sentido de abolifào da lingua geral, que nào se coadunava com o plano de modernizafáo do Estado. Essas medidas tém apoio na expulsào dos jesuítas em 1759 que eram o esteio sobre que se apoiava a difusào daquela lingua, haja vista o empenho que tinham em promové-la entre as popula?5es catequizadas.58 Concomitantemente com as medidas de proibi-

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Luís Antonio Vemey ( 1 7 1 3 - 1 7 9 2 ) . Sobretodo na segunda metade do século XVIII, com o processo de modemizaçâo do Estado portugués, a política pombalina atuou de forma violenta sobre as populaçôes indígenas do interior, indo desde a imposiçâo da lingua, a adoçâo de sobrenomes portugueses até à separaçâo de familias, além da promoçâo de casamentos mistos. Esse contato forçado aproximou o colono branco, o indio de lingua geral ou de outra lingua da familia tupi-guarani e os tapuia, que dessa forma deram origem ao caboclo, numa regiào onde a presença de escravos era pequeña (Porto Alegre 1993).

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?ao da lingua geral, procurou-se promover o ensino da lingua portuguesa, que a partir dai passou ganhar a luta contra o predominio daquela que fora majoritária anteriormente a eia. Se o processo de migra?ào já guarda estreita rela§ào com o desenvolvimento lingüístico pela pròpria natureza - em face do contato entre populares de hábitos lingüísticos ou variedades diferentes - tal relagao se intensifica quando ele se concretiza no contexto de urna política lingüística, cujo objetivo é promover uma das línguas imbricadas naquela situa?ao de contato. Antes de tudo, é preciso entender a imposifáo da lingua portuguesa dentro dos quadros do pensamento dominante da época, que era o do aproveitamento e valorizagào dos vernáculos em detrimento do latim. A substituÍ9áo do latim pela lingua portuguesa promovida pelo Marqués de Pombal foi inspirada em Luís Antonio Verney, que na sua obra já defenderá a necessidade de se oferecer aos jovens uma gramática curta e clara de sua lingua (Verney 1949, 3435). A lingua portuguesa vai servir de base para aprendizagem do latim, que agora deixa a sua condilo de lingua douta (Carvalho 1978, 61-82). Antes o estudo da lingua vernácula limitava-se às escolas de ler e escrever, passando agora a ser considerada de forma mais sistemática, a ponto de se incluir uma gramática da lingua portuguesa na reforma pombalina. Inicialmente, o estudo dessa lingua se faz quase que tradicionalmente pelas cartilhas, que vinham dos séculos passados quando predominara a de Inácio de Loyola. Por volta de 1772, na segunda fase da reforma, foi aprovada oficialmente a primeira gramática portuguesa no Reinado de D. Jose I A Arte da grammatica da lingua portuguesa,59 composta por Antonio Jose dos Reis Lobato em 1771. Com isso substituiu-se também ñas primeiras letras a pràtica de ler processos judiciais, nomeadamente senten§as, prescrevendo-se em sua substituisào o catecismo pequeño de Montpellier (Andrade 1978b, 465-491). A imposÌ9ào da lingua portuguesa come?ara a rigor com D. Joào V, que em meio à multidào de línguas indígenas e africanas, procurava buscar as formas de dominio da lingua portuguesa. E assim que em 1727 o Rei manda uma provisào ao Governador do Maranhào em que encarregava os religiosos de instruírem os indios na lingua portuguesa pelo grande beneficio que disso poderia resultar (Rodrigues 1985b, 32). O que vai acontecer de agora em diante é a procura de imposigào da lingua portuguesa em rela§áo à lingua geral e às línguas africanas, embora nesse segundo caso o processo nao tenha sido direcionado como foi o caso da lingua geral, porque eia era a lingua majoritária e competía portanto com a lingua do colonizador. Entretanto, com a saída dos Jesuítas, o sistema de ensino entra em colapso, porque a substituido devia implicar em professores competentes, o que nao aconteceu. Sao nomeados mestres régios de formagao deficiente que eram ironizados pela sua ignorància.

59

Para edi§5es, constitui$ào e recepjáo, veja-se Schafer-Priefi (1994, 23-28).

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Em Pernambuco, específicamente, a imposigào cometa a partir de 1759, quando se registra no Recife a «Diregào com que se devem regular os indios das Novas Vilas e Lugares erectos ñas aldeias da Capitanía de Pernambuco e suas aldeias» (Rodrigues 1985, 36). Segundo aquele documento, a partir de entào será necessàrio «desterrar este pernicioso abuso» - o uso da lingua geral - estabelecendo-se o uso da lingua portuguesa sobretudo ñas escolas. Por esse ato, ampliado a todo o Brasil, se conseguiu mudar a lingua do Amazonas, Pará, Maranhào, Sao Paulo, onde predominava a lingua geral, e em outras capitanias (Rodrigues 1985b, 36). Para Pernambuco foram mandados os professores régios de Portugal Manoel de Melo e Castro e Manoel da Silva Coelho, que tiveram grandes dificuldades naquela provincia. Ñas suas queixas às autoridades portuguesas, os professores reclamam da dificuldade de introdizir «o novo método» - ou seja o método da reforma pombalina em detrimento do antigo da época dos Jesuítas - notadamente na pràtica de composi?ào (Andrade 1978b), exatamente num aspecto que diz respeito ao manuseio das habilidades de produco de textos na lingua portuguesa. Quanto à modernizado propriamente, a politica pombalina da lingua portuguesa visava à formagào de quadros para os novos passos do desenvolvimento econòmico. Por isso é importante se perceber a diferenga em relagào ao ensino do tempo dos Jesuítas. Na época dos Jesuítas 1er e escrever eram atividades aprendidas na familia. Eles organizaram por sua vez um curso de Humanidades, chamado «estudos menores», com quatro séries de gramática, urna de humanidades e uma de Retórica. Ler e escrever para aqueles religiosos só existam para servir a alguns alunos que precisavam ingressar ñas Humanidades. Na época de Pombal, por outro lado, vai se dar a mudanga da situagào do ensino da leitura e da escrita, que passa agora da esfera privada da familia para o Estado. Isso coincide com a necessidade que Portugal tem de garantir o controle sobre a única colonia que lhe poderia garantir a sobrevivencia econòmica. Para exercer o efetivo controle das atividades económicas, era preciso preparar pessoal para trabalhos de fiscalizagào, ampliando dessa forma o aparelho administrativo. As atividades superiores ficariam para os nascidos na metrópole e as outras para os nascidos na colonia. As técnicas de leitura e escrita se tornam entào necessárias, fazendo surgir a instrugào primària de caráter público e a Retórica passa, de uso restrito ao público e à cátedra, para a utilidade do contato entre os individuos na vida cotidiana (Ribeiro 1979, 33-38). 2.4.3.5

Registros simplificados em textos religiosos

Indicios sobre a maneira de falar dos escravos no século XVIII praticamente inexistem. Dai o problema da crioulizagào do portugués brasileiro ser sempre uma incógnita. Uma das fontes de que se poderia langar mao para tal estudo seriam materiais didáticos utilizados pelos padres na educagào de escravos. Também aqui nao se tem noticia da existencia de suficiente material para um levantamento mais detalhado de tais fenómenos. Segundo se lé em Willeke 57

(1976), que fez um estudo sobre a preparado religiosa dos escravos no Brasil entre 1550 e 1888, foram publicadas por volta de de 1719 as Constituigdes primeiras do Arcebispado da Bahia, que estiveram em vigor durante cerca de 170 anos, ou seja, até o final do século XIX. Ali se encontram as normas que regularam o acompanhamento religioso dos escravos para o país inteiro. Nos cánones 579-583, com o título Curta exposigáo dos mistérios da fé, adaptada ao uso lingüístico dos escravos, para que eles depois sejam ensinados, aparece um texto, adaptado portanto ao uso lingüístico dos escravos, inspirado no principio universal de «registro simplificado», numa forma mais elaborada de «foreigner talk», o que se supòe refletir estratégias de aprendizagem do portugués por africanos. Veja-se urna passagem da exposigáo, citada por Willeke (1976, 23): Frage

Antwort

Wer hat diese Welt erschaffen? Wer hat uns erschaffen? Wo ist Gott? Haben wir nur einen Gott oder viele? Wieviele Personen? Sag' ihre Namen! Welche dieser Personen hat für uns Fleisch angenommen?

Gott. Gott. Im Himmel, auf Erden und überall. Wir haben nur einen Gott. Drei. Vater, Sohn und Heiliger Geist. Der Sohn.

(Kanon 579)

Das sete perguntas apenas uma procura ensinar resposta com frase completa (Wir haben nur einen Gott). O restante sao modelos de frases simplificadas com o núcleo da resposta, sem maiores elaboragSes da frase, isto é, faltam todos os outros componentes da frase, pressupondo um estilo bastante econòmico. Em face da existencia de apenas uma frase com todos os elementos, é de se pressupor que aqueles a quem se ensinavam os mistérios da fé, nao iam além de frases simplificadas na sua competencia na lingua portuguesa, sendo iniciados na educagáo religiosa - e possivelmente lingüística - por frases desse tipo. Porém se dessa etapa da aprendizagem, os escravos passavam para uma fase de plena produgao lingüística ou se essa realizado era reflexo de uma fase de pidginizagào/crioulizagào, nào se pode afirmar com exatidào dentro da situarlo atual da pesquisa sobre o tema. Em síntese, pode-se dizer que o século XVIII representa um momento crucial na f o r m a l o da cultura brasileira. Foi a primeria vez em que toda a sociedade participou da e l a b o r a l o de sua expressào cultural. Além disso se formou na colònia pela primeira vez uma verdadeira elite também cultural (Pinto 1989, 19-20). É plausivel, por isso e pelos fatos assinalados, que se tenha desenvolvido ali a primeira célula do portugués comum brasileiro.60

60

Se tomarmos o século XIX como resultado do que correu na regiáo das minas, podese entender perfeitamente como ali houvera se constituido essa célula do portugués

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Em resumo, tres fenómenos sobretudo nos permitem levantar essa hipótese: a) o primeiro grande movimento migratorio interno para a regiào das Minas e a articulado entre regiòes promovida pela descoberta do ouro. Esses fatos permitiram a construfào de urna nova sociedade com traaos urbanos, onde evidentemente o contato entre populares linguisticamente diferenciadas possibilitou fenómenos de acomodafào e nivelamento lingüísticos; b) a identificafáo naquele momento histórico de urna fala brasileira por parte de portugueses, que deram surgimento no teatro à figura de «o brasileiro», identificado também como «mineiro», de onde se deduz a referéncia a urna certa especificidade do portugués do Brasil, exatamente na regiào referida; c) o papel exercido na mesma regiào pelos «colégios de padre», a partir da metade do século, no sentido de favorecer o nivelamento lingüístico, contràrio às discrepáncias das variedades rurais e dos hábitos lingüísticos indígenas ou africanos das populafòes para ali transferidas.

2.5

Segunda fase (II): Urbanizaçâo da sociedade brasileira. Formaçâo das variedades urbanas e da língua comum

2.5.1 2.5.1.1

Contexto histórico A transferencia da familia real

A o final do século X V I I I haviam se esgotado as reservas do ouro que por cerca de um século houveram sido a base da riqueza de setores da populaçâo que para as Minas Gérais se transferiram. Como nesse período Portugal se encontrava sob a proteçâo da Inglaterra face à ameaça de ocupaçâo daquele pequeño país pela poderosa França, praticamente toda riqueza advinda do ouro brasileiro havia sido carreada para os cofres ingleses e ao final do período, Portugal estava de novo em sérias dificuldades económicas, quando é de-

comum brasileiro, que embora preservando traaos das variedades locáis, estava reduzindo as maiores discrepancias. Cortesào (1964, voi. II, 1 1 6 - 1 1 7 ) nos fomece uma informadlo valiosa sobre o fato: «(...) ao contràrio, no Brasil, e especialmente ñas populadles paulistas, chegando o (...) ciclo do ouro, deu-se uma intensa renova^ào étnica, grafas à fusào com os emigrantes reinéis, que durante o século XVIII acudiram por muitas centenas de milhar às Minas, provocando a maré equinocial e complementar dos negros. Ao passo que no Paraguai o equilibrio demográfico se fez com preponderancia do indio e do crioulo - ñas capitanías centráis do Brasil esse equilibrio rompeu-se a favor dos reinóis, cujo afluxo acabou por impor a cultura pròpria, substituir o indio pelo negro, lan9ar as bases de um novo tipo de cultura brasileira e restaurar o predominio do portugués. De Minas dizia, em 1828, Bernardo Pereira de Vasconcelos: .» O fenòmeno descrito por Cortesáo é típico na formaijáo de koinés.

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finitivamente ocupado pelas tropas do General Junot. Para os governantes portugueses, nâo havia mais outra alternativa senào fugir para o Brasil e transformá-lo no Reino da Dinastia de Bragança. Para muitos autores este fato representa a total transformaçâo da vida da colònia pelas mudanças políticas e sociais que passam a se dar. Se determinados acontecimentos históricos nâo fossem caracterizados do ponto de vista externo e meramente formai - como o é no caso a independência brasileira - se poderia dizer, para alguns autores, que a independência começa propriamente em 1808. D. Joâo V I abole, portante, todos os caracteres do regime de colònia, quebrando as velhas engrenagens do antigo regime e muitas restriçôes sâo também abolidas e os interesses do país passam a primeiro plano (Prado 1991, 47). Dentre as medidas mais importantes, pode-se destacar a abertura dos portos brasileiros a outras naçôes. O Brasil passa a ser nesse período a capital do Reino e o Rei D. Joâo VI provê a colònia de instituiçôes e realizaçôes para poder acolher a familia real. Com eia chegam entre dez e quinze mil reinóis, relusitanizandose o portugués falado na cidade do Rio de Janeiro. E esta transferência, acompanhada da abertura dos portos, veio mudar profundamente as condiçôes da colònia. Do ponto de vista econòmico, o Brasil viveu urna fase esplendorosa, assumindo um status de Reinado equivalente ao de Portugal com a proclamaçâo do «Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarve» (Jakob 1970, 196), crescendo, em conseqiiência, sobretudo no Rio de Janeiro, o bem-estar social da populaçâo. 2.5.1.2

A independência e o Primeiro Reinado

Como se disse antes, a chegada da familia real preparou a independência política. As condiçôes de melhoramentos em vários setores criaram um caminho sem volta. O Rio de Janeiro como capital do Reino ganhou um novo impulso e quando o rei teve de voltar a Portugal em 1821, a situaçâo já era irreversível. Em 1822 se proclama a independência e o filho de D. Joâo, o Príncipe Regente Pedro I, é aclamado Imperador do Brasil. A independência houvera sido urna forma de a familia real manter-se à frente do Brasil, pois naquele momento o clima de separatismo era intenso, tal a falta de uniâo entre as provincias e os interesses das oligarquías locáis. Mesmo assim a crise nâo é resolvida e a aproximaçâo do Imperador aos portugueses aumenta a situaçâo de insatisfaçâo, porque os brasileiros se sentiam alijados na conduçâo dos destinos da naçâo. O aprofundamento da crise leva mais urna vez ao perigo do separatismo e o Imperador, impotente para conter os ánimos, renuncia ao cargo. O filho do Imperador, brasileiro, seu sucessor imediato, nâo pode assumir o posto em face da insuficiência de idade como previa a constituiçâo. Por isso, o país vai ser governado durante nove anos por urna regência provisoria até que o novo Imperador assuma definitivamente. Durante esse período de intensa luta política e quase fragmentaçâo territorial se preparam algumas condiçôes para o advento do Segundo Reinado.

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2.5.1.3

O Segundo Reinado

Finalmente em 1840 assume o jovem Imperador D. Pedro II, que cometa a se esforzar pela integragáo do país e favorece o crescimento da consciéncia nacional. Este Imperador desempenha papel fundamental na pacificagao das provincias que se encontravam permanentemente em lutas internas pela separagao, cujo gérmen havia sido langado desde a divisáo do país em capitanais, como vimos. A primeira fase do Segundo Reinado, de 1840 a 1850, se resume, pois, na pacificagao do país com consolidado da paz interna (Fleiuss 1925, XVIII-XIX). Paralela á obra de pacificagao, há que destacar outra obra do Segundo Reinado, qual seja a agáo desenvolvimentista. Essa agáo contribuiu para a organizagáo política e a vida civil, jurídica e militar, alterando a face do país. Afora isso e em contraposigáo ao sentimento separatista que grassava, ela promove as comunicagoes, através da introdugáo do vapor, do telégrafo e dos trens que interligam distantes regioes, ¡soladas praticamente até entao. Esse componente comunicativo vai representar um elemento importante para a unidade do país, o que faltara sempre nos tempos coloniais. Se quisermos resumir o que significou o Segundo Reinado, dinamos que se iniciava a partir dos anos quarenta urna nova época na historia nacional. O espirito revolucionário fora debelado e os desacordos entre diferentes interesses nao produziam mais as insurreigoes e as revoltas armadas. A partir de entao ganham importancia as eleigoes, cresce o papel da imprensa e as discussóes públicas assumem papel importante (Calógeras 1935, 246). 2.5.2

O desenvolvimento de centros urbanos e a criagáo da imprensa. Elementos para a formagáo das variedades urbanas e do portugués comum brasileiro

Conforme se apresentou no inicio do capítulo, as condigóes de surgimento de urna língua comum sao a urbanizagáo e a centralizagáo administrativa. A segunda já se discutiu no item 2.2.3.3.2. Quanto á primeira, este período vai marcar decisivamente o processo de transformagoes da vida urbana com a modernizagáo significativa do Rio de Janeiro, mas com reflexos em outras provincias sobretudo ñas cidades costeiras mais importantes á época, Salvador e Recife. Com a chegada dos milhares de reinóis, entre eles fiincionários, para os diversos ministérios, urna urgente reorganizagáo das condigoes de vida na colónia teve de ser levada a efeito. Era preciso reformar o velho aspecto colonial da nova metrópole, marcada ainda pela influencia barroca dos séculos anteriores A criagáo da biblioteca pública, do jardim botánico, do museu nacional, a circulagáo do primeiro jornal e as primeiras revistas literarias sao fruto dessa época e dessas medidas (Ribeiro 1979,44). Em conseqüéncia a vida social passa por uma transformagáo significativa, dadas as novas exigencias da populagáo. Com a vida urbanizada que agora alguns setores da populagáo passam a experimentar, muitos hábitos tidos como rudes em face do isolamento passam a ganhar novas configuragóes por causa também do 61

contato com estrangeiros na capital, para onde os atraíam festas, recepgòes e cerimónias freqüentes. É a partir dai que o sentido de cidade passa a se estabelecer, surgindo a necessidade de reformas de hábitos, busca de maior comodidade e modernizagào. A imprensa passa a desempenhar papel fundamental na circulado de idéias e langa as bases da constituido da opiniào pública brasileira burguesa, favorecendo o desenvolvimento de urna lingua escrita por todo o país (trechos de jomáis de outras provincias pelo interesse das noticias veiculadas passam a aparecer em jomáis locáis). Quanto à constituido de variedades lingüísticas especificamente, se trata do processo de urbanizagáo como condigào básica para a formagào de urna lingua comum.61 Esse processo atua significativamente sobre a realidade lingüística, promovendo nivelamentos, koineizagào, mistura dialetal e reduzindo a distancia entre variedades rurais e urbanas. Tal como acontecerá na mineragào, quando um incipiente processo de urbanizad o se desenvolveu e as primeiras manifestares da formado do portugués comum brasileiro se revelaram sob forma de urna pré-koineizafào no período de sua fermentagào, também com a urbanizado do século XIX essa formagào ganhou grande impulso. Além disso, na primeira metade do século XIX se desenvolvem as cidades portuárias, que se no passado já haviam vivido certas experiencias de migragao, agora crescem muito mais em importancia e comegam a se caracterizar como centros urbanos. Nelas o processo de migragao vai ser mais intenso e, favorecidas pelas condigoes criadas no século do ouro no tocante às possibilidades de intercomunicagáo entre grupos de origem social e geográfica diferentes, puderam mais facilmente aprofundar a experiencia mineira, recebendo individuos de outras regióes com quem passam a conviver. Com o desenvolvimento das cidades, cresce a estratificado social, fruto do surgimento de classes e da migragao. Acrescentem-se a isso a miscigenad o com o encontro de individuos de diferentes origens étnicas nos centros urbanos em formagào, a ascensáo de descendentes de escravos e a diversificagao das novas necessidades que a vida social oferece. Em face, pois, dessa nova realidade social, comegam a emergir as normas urbanas, que tem no complexo de fatores que comegam a atuar, tais como a tradigáo lingüística, o desenvolvimento da imprensa e um certo sentimento de raízes regionais, os elementos básicos para a sua emergencia. 2.5.3

Imprensa e formagào de variedades urbanas

Sem dúvida a mais significativa realizagào da colonia é a criagào da imprensa règia no Rio de Janeiro e seu desenvolvimento no país como um todo. Assim, a lingua escrita se populariza de forma significativa numa colonia de analfabetos. Ademáis, sendo o jornal um meio de comunicado que permite a vastos

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Segundo Coseriu (1988a), essas novas variedades, rurais ou urbanas, comporiam o que ele chama de dialetos secundarios.

62

setores da populad» o contato com a cultura letrada, ele vai ser a ponte entre a cultura orai e a escrita naquela sociedade. Por isso, muitos individuos realizaram suas experiencias com lingua esenta através de folhetins principalmente e, aprofundando essa experiencia, produziram romances, onde procuraram introduzir formas de inspiralo orai. Mas urna conclusào interessante pode-se extrair dessa experiencia. A tentativa de se foijar urna lingua literária no inicio da segunda metade do século XIX revela urna tomada de consciència quanto a urna variedade oral diferenciada, preparada desde meados do século X V m , que deveria ser transposta em certa medida para o papel. O problema era também que esses usos estavam come?ando a entrar num período de estabiliza5ào e a consciència que se tinha deles ainda era algo pouco definido. A necessidade de canais de comunÌ5ào mais ampios do que a mera interado oral revela as possibilidades de amplialo das rela?òes comunicativas e conseqiientemente da difusào de usos lingüísticos. Para os individuos que se alfabetizam nesse contexto a experiencia é diferente daquela das gera?5es anteriores. Sem dúvida, a variedade oral dominante num centro em transformado nào vai ser a mesma de outrora. Novos usos lingüísticos deverào brotar dentro de uma nova sociedade. Nesse sentido, no contexto da urbanizado, a introduj o e difusào da imprensa exercem um papel preponderante na modernizado lingüística. Voltaremos ao tema no capítulo 3. Em conclusào, do ponto de vista lingüístico, fica claro que a formado das normas urbanas regionais e respectivamente do portugués comum brasileiro depois de uma fase embrionária - come?a a se dar na primeira metade do século XIX dentro do processo de urbanizado e criado das tipografías e é concomitante com o processo de formado de urna opiniào pública. Só quando a menor das possibilidades de criado de uma rede de comunicado passa a existir é que essa formado lingüística pode comegar a se dar. O desenvolvimento das cidades possibilità a constru5ào de uma rede comunicativa onde comegam a se estabelecer as tradigòes de normas lingüísticas. Esse processo, portanto, é favorecido pelos fatos históricos aludidos, ganha impulso a partir do Segundo Reinado com a garantía da integridade nacional e se espalha com o aprofundamento da consciència nacional depois de 1850.

2.6

2.6.1 2.6.1.1

Segunda fase (III): Fim do tráfico de escravos. Estabilizado das variedades urbanas e da lingua comum Contexto histórico A continuado do Segundo Reinado e a formado da consciència nacional

Esta fase corresponde à segunda do Segundo Reinado a partir de 1850, que imprime urna a?ào desenvolvimentista, foija uma consciència nacional e cul63

mina com o advento da República. Seus antecedentes devem ser buscados em 1837 em pleno efervescer das lutas políticas que se alastravm pelo país com o perigo iminente do esfacelamento territorial, quando sobe ao poder Araújo Lima, numa reaçâo para restaurar o prestigio da autoridade ao mesmo tempo que buscava fortelecer o poder central, fortalecendo os laços entre as provincias, que, conforme se viu, eram muito frouxos, senâo inexistentes. Na verdade aquela açâo preparava a formaçâo da consciência nacional, no período de concentraçâo monárquica, que a partir de agora vai se estabelecer (Tavares 1977). O período revolucionário tinha acabado e o tráfico de escravos tinha sido extinto, o que fazia diminuir sensivelmente os insultos à soberanía nacional. Esse período coincide com o desenvolvimento das comunicaçôes com o navio a vapor, encurtando-se a distância da Europa, quando as locomotivas começam a cortar o país. A literatura apresenta urna certa consciência nacional, inclusive com experiências lingüísticas, e se ouvem entâo expressôes tais como «ópera nacional» e «teatro nacional». Aparece José de Alencar, utilizando a figura do indio com tema nacional e Joaquim Manoel de Macedo e Manoel Antonio de Almeida retomam a historia recente dos tempos coloniais e do império para fazer literatura, nacionalizando-a de fato. Ainda prevalecía o estudo do latim e as antiguidades clássicas das melhores épocas de Roma constituíam as bases da instruçâo das classes cultas (Calógeras 1935, 253254). Vê-se agora que, depois da unidade territorial, desenvolve-se urna consciência nova no campo da cultura, por exemplo, e as regióes passam a se entrelaçar ainda mais, constituindo-se sem dúvida uma unidade acima dos intéressés locáis e das lutas partidárias num movimento próprio de constituiçâo de nacionalidade (Tavares 1977). Ainda depois de 1850, depois de pacificado o país internamente, os sucessos na política externa deixaram seus efeitos positivos para a formaçâo da consciência nacional. A vitória contra o ditador da Argentina, Rosas, (18511852) e contra o do Paraguai, Francisco Solano López (1865-1867), estreitaram ainda mais a unificaçâo das forças internas. Especialmente em relaçâo à guerra do Paraguai, esta fortaleceu significativamente a alma nacional. Nao somente o fato de lutar pela naçâo desenvolveu este sentimento de nacionalidade, mas também a própria uniâo de homens de várias regióes do país colaborou para a unidade interna e para aquela consciênca. Com o desenvolvimento da economía nacional, a agricultura teve incremento, desenvolveram-se o artesanato e a industria e, em conseqüéncia, o comércio e os meios de transporte, unindo-se ainda mais as várias regióes. Um dos aspectos fundamentáis dessa obra desenvolvimentista se observa no campo das comunicaçôes, diferentemente do que oorrera em séculos anteriores. A i se podem destacar a utilizaçâo das estradas de ferro a partir de 1854; do telégrafo em 1857; do cabo submarino em 1872; do telefone em 1876; e da instalaçâo da primeira agência de noticias em 1874 (Pinto 1989,27). 62 A rua começava a ter papel na vida social 62

Vè-se como esse novo desenvolvimento toca o problema das comunicares, alterando as condifòes de sua realizado. A oralidade experimenta uma nova forma de reali-

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e os salòes passam a ser freqüentados com o surgimento de novos hábitos (Sodré 1976a, 341). Todos esses fatos vào contribuir para a consolidafào da unidade nacional, que nào foi meramente a preservalo contra a desintegra?ào territorial. Com a renovafào que cometa a haver na segunda metade do século, estava encerrado o papel do isolamento, iniciando-se os contatos mais diversos. A longa simetría do quadro colonial cedia lugar a urna variedade que tendia a acentuar-se (Sodré 1976a, 340). 2.6.1.2

O firn do tráfico de escravos

De fundamental importancia para o desenvolvimento lingüístico do portugués do Brasil é o problema da escravidào. A sua existencia no Brasil significava a entrada regular de milhòes de africanos de diversas partes da África com toda riqueza lingüística que caracteriza esse continente. Os cálculos da quantidade de entrada deles no Brasil variam muito, estimando-se entre quatto e dezoito milh6es, sendo sem dúvida Brasil o país das Américas que mais importou mào-de-obra africana. Urna parte dos africanos vai inicialmente ser utilizada na produco do adúcar dos engenhos que se estabelecem à margem dos rios. Urna outra parte vai ser utilizada em servias domésticos e, posteriormente, depois do desenvolvimento das cidades, nos servidos urbanos. Quando o Brasil entra no sistema internacional de explorafào colonialista, surge um problema sèrio a resolver. O da mào-de-obra. Transportá-la da Europa tornaría o negocio extremamente oneroso em face dos custos, sobretudo porque se deveriam pagar salários bem altos para que os trabalhadores trocassem a vida mais còmoda da Europa por urna outra em condÌ9òes totalmente diferentes, que requereriam forte disposilo de adaptagào. Em face pois dessas dificuldades e da experiencia já acumulada no negocio de tráfico de escravos, os portugueses utilizam entào a escravidào indigena, possibilitando a execugào daquela empresa agrícola. Essa etapa corresponde ao periodo da impiantalo do sistema de explorafào e significa aquela mais pesada da colonizasào (Furtado 1961).

za^áo com o aparecimento do telefone em 1876, ou seja, ela pode se realizar sem ser necessariamente acompanhada de outros componentes como os gestos, os movimentos e o contato físico entre falantes. Embora nao exista nenhum estado sobre qualquer alterafáo lingüística com o advento dessa nova era, é de se supor que estavam criadas condifoes propicias para um novo desenvolvimento lingüístico. Schenker ( 1 9 7 7 ) postulou a inclusao de certos tipos de textos, como a conversa telefónica, como constitutivos da historia da língua alema do presente. A título de exemplo do efeito do telefone ñas relafóes comunicativas entre os falantes, citamos um caso brasileiro: com a inaugurado do servidos telefónicos no Recife em 1 8 8 3 , embora para urna pequeña minoría, diminuirá - assim se deduz em Sette ( 1 9 7 8 , 1 8 3 - 1 8 7 ) - o hábito de se mandar o moleque de casa levar recados e «Em 1884 as linhas telefónicas tinham atingido os arrabaldes.» Se por certo diminuiu o contato face-a-face entre interlocutores, por outro lado as comunica^oes entre áreas mais distanciadas passaram a ser mais constantes.

65

Só depois da empresa implantada, é que sào trazidos os africanos, que embora representassem máo-de-obra barata, só sào trazidos quando a rentabilidade do negocio está garantida. Os colonizadores nao quiseram investir embora pouco em relagào a urna hipotética importalo de assalariados europeus - num negocio que pudesse se reverter em prejuízo. Dessa forma, por volta de 1538 chegam à Bahia os primeiros escravos africanos (Calógeras 1935, 27). Ao final do século XVI, dada a prosperidade e expansáo do cultivo da cana-de-afúcar, a popula?ào de escravos negros no Brasil já era cerca de 20 mil e a de origem européia nào passava de 30 mil (Furtado 1961, 56-58). A partir dai o crescimento da populado negra em face da escravidào é cada vez mais significativo. Nesse sentido pode-se dividir os períodos de maiores levas de escravos desembarcados no Brasil em tres etapas. A primeira durante os séculos X V I e XVII, para o Nordeste sobretudo; a segunda, no século XVIII, com a descoberta do ouro, quando a importado é cerca de tres vezes maior do que nos primeiros séculos; e por firn, a terceira, entre os primeiros anos do século XIX até 1850, quando é maior ainda o número de escravos importados e a partir de quando o tráfico é definitivamente proibido (Ventura 1987,65). Os resultados positivos dos caminhos adotados por aqueles colonizadores se revelam pela sua longa presen?a ñas térras americanas (Furtado 1961, 21-22). Essa pràtica tanto se torna reconhecida internacionalmente, que ao final do século XVII é reproduzida e adaptada no Caribe e ñas colonias inglesas ao sul da América do Norte no século XVIII (Ventura 1987, 61). Com a mudanza do contexto econòmico internacional e em face da necessidade da criasao de mercados manufaturados europeus, coloca-se em cheque a sobrevivencia do comércio brasileiro de escravos. A dificuldade de extin?ào do tráfico, por outro lado, residía também na natureza da máo-de-obra africana. As taxas de mortalidade de escravos eram muito mais altas do que as taxas de natalidade. Eia requería substituidlo ou reposi?ào regular através do comércio transatlántico de escravos. Muitos negros nào sobreviviam sequer ao período de adapta9ào; outros morriam em face das condi^óes de alimentado e de doen^as; outros ainda morriam de maus-tratos e exausta?ào em face da explorado. Por fim as taxas de mortalidade infantil eram também consideradas altas em face das condigoes em que se davam os nascimentos. Todos esses fatores levavam à necessidade de reposigao constante dessa máo-de-obra nos campos (Bethell 1970,4). Conjugando-se os dois fatores, portanto, - demanda por mào-de-obra e tendéncia ao decrescimento em face da taxa de natalidade negativa - compreende-se facilmente o que representava a continuidade do tráfico de escravos, para toda aquela rede de envolvidos e interessados nos lucros advindos do negocio. Dentro, pois, desse quadro, estima-se que a importa§áo de escravos na primeira metade do século XIX tenha superado a casa de um milhào de individuos. Particularmente duas fases apresentam grandes taxas de importagào nesse período. A primeira por volta de 1830, quando teria de terminar definitvamente o tráfico; a segunda entre 1845 e 1849, época que antecedeu a c e s s a l o total do tráfico. Neste último período, quando a Inglaterra intensifica a pressào, a mèdia de escravos importados é de 48 mil. De 20

66

mil escravos contrabandeados anualmente antes dos acordos com aquele país, passa-se aos seguintes números nos anos posteriores (Calógeras 1935, 238):

2.6.2

1845

19-453

184 6 1847 184 8 184 9 1 8 50

50 3 2 5 56.172 60.000 54.000 23.000

Estabilizado das variedades urbanas e da língua comum

Esta etapa é marcada por urna transigáo definitiva entre a complexidade lingüística do período anterior e a nova situagáo que comega a se configurar com o desaparecimento paulatino da língua geral em 1759, em primeiro lugar, e se completa agora com o desparecimento das línguas africanas, em segundo. Se considerarmos que muitos negros chegados ao Brasil vinham diretamente das selvas africanas e que portante nao dominavam sequer o pidgin de base portuguesa que se propagara ñas costas africanas, fica evidente que a babel lingüística do período anterior se mantinha firme á medida em que novos cativos desembarcavam no país, embora muitos escravos e ex-escravos já estivessem sido a essa altura assimilados pelo uso da língua portuguesa. Entretanto, a partir da metade do século XIX a situagáo comega a mudar. Com o fim do tráfico em 1850 a composigáo étnica do Brasil vai sofrer nova configuragáo. Deixam de entrar novas levas de africanos através dos vários portes brasileiros, diferentemente do que ocorria antes. Some-se a isso ainda a reduzida média de vida útil63 dos escravos além da sua taxa de crescimento negativa, fatores que fazem decrescer significativamente essa populagáo com implicag5es para a redugáo da influencia africana na cultura brasileira e inclusive para a vitória definitiva da língua portuguesa. Por isso 1850 é um marco de valor importante para a estabilizagáo da língua comum, porque a outra fonte de interferencia nos usos da língua portuguesa - as línguas africanas - também comega a desaparecer depois do fim tráfico. Este fato tem especial significado para a ampliagáo dos contextos de emprego da língua comum brasileira porque, para as populag5es de diferentes origens étnicas, a língua portuguesa era o único modelo, embora hábitos lingüísticos de seus antepassados já tivessem deixado marcas na natureza da língua. A partir daí as variedades urbanas e da língua comum já constituidas puderam se estabilizar pela segunda metade do século XIX favorecidas pelo desenvolvimento das comunicagoes brasileiras e a integragao nacional, que se intensificavam no período. Um reflexo dessa estabilizagao é o esforgo de criagao de urna prosa romántica e a consciéncia daqueles escritores quanto a

63

Admite-se que a média de vida útil do escravo era de 7 a 1 0 anos (Moura 1989, 54), entendendo-se por vida útil o período em que o escravo mais e melhor produzia.

67

urna escrita de caráter nacional, inspirada sobretudo na existencia de urna lingua oral, que nao era sem dúvida alguma o portugués rural nem táo pouco o portugués europeu. 2.6.3

Mudanga geracional das elites e estabilizado da lingua comum

Ainda na primeira metade do século XIX, quando o portugués comum brasileiro está em formagào, cometa a se dar a substituido das elites intelectuais portuguesas. Um marco importante nesse período é o ano de 1827, quando se fundam as Faculdades de Direito em Olinda e em Sao Paulo. Aqui comega a desaparecer a influéncia portuguesa, porque agora os jovens nào vào mais a Coimbra e dentro do país se dividem dois centros regionais de formagào das elites. Olinda congrega as provincias do Norte e Nordeste e Sào Paulo, as do Sul e Sudeste. No entanto, por volta de 1820, comegam os primeiros movimentos nesse sentido, porque coincidem com a luta da independencia. Aqueles que à época da independéncia estavam em Portugal - filhos de portugueses ainda - passam por diversas humilhagòes e outras formas de discriminado, o que faz crescer um certo nativismo e, ao retornarem ao Brasil, vao desempenhar papel importante na derrabada do Imperador (Barmann 1976,434-435). Ao que tudo indica, essa elite vai representar urna transigào entre as elites portuguesas do século XVIII e as nacionais que se formam depois da criagào das Faculdades de Direito. O processo de substituigào das elites faz parte do jogo de cooptado das oligarquías, que pela sua vinculagào regional muito forte, estavam em permanente conflito com o governo estabelecido no Rio de Janeiro. Para as autoridades garantirem a pròpria governabilidade do país, era preciso de alguma forma trazer para junto de si esses grupos detentores do poder. Com a abdicagao de D. Pedro I, póde o Estado desvencilhar-se dos portugueses, ficando os cargos públicos disponíveis, possibilitando o acesso de representantes oligárquicos, pelo menos a nivel regional, onde o seu poder era exercido. Tres anos depois, as Assembléias Provinciais, representagoes das oligarquías, passam a gozar de certa autonomia local, financeira e administrativa. Quando ocorre a substituido das elites portuguesas entre 1831 e 1834, com a lei Provincial, já uma boa parte das novas houvera se formado no país, sem ter tido portanto experiencia em Portugal. A total substituido só vai acontecer a partir de 1850 - e entáo já havia muitos hacharéis formados em Olinda e em Sao Paulo (Pang/Seckinger 1971) - o que coincide com os quarenta anos de paz social, com os esforgos de integrado e formado da consciéncia nacional. A partir dai já o portugués comum brasileiro entra na fase de consolidado. Podemos resumir a substituido das elites nos seguintes momentos: 1 0 momento, há uma burocracia predominantemente portuguesa; 2 0 , entra em cena a geragào de Coimbra, nascida ao final do século XVIII, que faz oposigào a D. Pedro I, que se acercara dos portugueses; 3 0 , trabalhando na queda do Imperador, a geragào de Coimbra assume a burocracia depois de 1831 - com a substituido maciga de portugueses que se segue - e a partir de 1834 sao 68

incorporados à elite 64 os hacharéis formados em Olinda e Sào Paulo; 4°, estabiliza-se urna elite quase totalmente brasileira, depois de 1850 (Barmann 1976). A s i t u a d o que antes se caracterizava pela p r e s e r a nos postos da burocracia e ñas elites de individuos com fala tipicamente lusitana, passa agora a ser caracterizada pela p r e s e l a de outra elite, que emergira de urna situa?ào lingüística diferente no contexto da cultura brasileira, cuja fala come?ava a representar outro modelo de prestigio. Além disso, complementando a config u r a d o do uso lingüístico de prestigio, à medida, pois, que a lingua comum se forma, as peculiaridades lingüísticas regionais que a compoem vao se reduzindo em face do nivelamento dialetal, tornando-a mais estável numa fase mais intensa de u r b a n i z a d o . 2.6.4

O portugués falado pelo escravo

Inicialmente é preciso compreender como se classificavam os escravos chegados ao Brasil do ponto de vista lingüístico. Havia os que chegavam sem dizer nenhuma palavra em portugués, os bofais; havia os que chegavam falando o pidgin de base portuguesa, aprendido na costa da África. Aqueles provavelmente tiveram inicialmente de se comunicar através de alguma lingua franca, dadas as semelhan§as entre as línguas a que estavam expostos nos locáis de trabalhos. Estes tiveram mais facilidade de aprender a lingua portuguesa em face da semelhan^a entre o pidgin e uma de suas combina?5es, o proprio portugués. Deve-se acrescentar a isso o aprendizado da lingua portuguesa já no Brasil por ambos e as novas geragSes de escravos nascidos no Brasil, muitos dos quais bilingües. A natureza do dominio lingüístico do escravo pode ser depreendido de muitos viajantes que deixaram relatos sobre o tema. Em 1836, George Gardner escreveu que varias vezes viu bandos de escravos levados para serem vendidos sem saberem dizer uma só palavra em portugués (Rodrigues 1985b, 31). Outro viajante, Robert Avé-Lallement encontrou no interior da Bahia muitos escravos livres, entre os quais poucos falavam portugués fluentemente e conversavano entre si no seu dialeto nagò (Rodrigues 1985b, 32). Tollenare observou no Recife que aos escravos recém-chegados da Africa, os antigos se dirigiam na lingua de sua na9ào, o que agradava aos senhores, pela confian§a que isso dava aos novos escravos (Lima 1904b, 452-453). Vé-se a complexidade dos usos lingüísticos de milhòes de individuos que formavam a populagao brasileira. E preciso ainda considerar o uso da pròpria lingua portuguesa. O escravo fúgido, por exemplo, era reconhecido por seu «shibboleth», o que dificultava o sucesso da fuga. Os escravos alforriados pelo seus senhores também encontravam dificuldade na sociedade porque na sua fala se percebiam as marcas da

64

A crítica que aparece em A lingoagem bordalenga de muita gente (O Carapuceiro, n° 58, cit.) ao uso da lingua portuguesa pela elite em 1842 pode ser reflexo desse processo de substituifào, v. Pessoa (1994).

69

sua o r i g e m servil, o que naturalmente lhes dificultava a v i d a (Southey 1969). R e f e r e n c i a t a m b é m à fala do e s c r a v o se encontra n u m a edi?ào de u m jornal recifense e m 1842, quando este se refere à f a l a de oradores, deputados de entào, comparando-a à f a l a de escravos, utilizando-se dos prototipos «Pai M a t h e u s » e « M a i Rosaria». 6 5 A l é m disso, o m e s m o jornal, ao criticar «os v i c i o s da fala» de j o v e n s , os atribuem à i n f l u é n c i a de escravos no trato diàrio familiar - o que nos permite deduzir que estes f a l a v a m u m portugués m a r c a d o por hábitos lingüísticos diferentes daqueles dos nativos - , c l a s s i f i c a n d o esse portugués «mal falado» de gericonga

luso-africana.66

N e s s e sentido, o s es-

cravos ladinos e o s crioulos desempenharam u m papel vital no p r o c e s s o d e aportuguesamento de hábitos lingüísticos africanos e de a f r i c a n i z a s à o de hábitos articulatorios do portugués, 6 7 c o m a e m e r g é n c i a de mais urna variedade

65 66 67

O Carapuceiro (1983), voi. 3, n° 58, 19.xo.1842, p. 1-3. O Carapuceiro, ibidem. Ribeiro destaca o papel do negro na difusào da lingua portuguesa: «A primeira tarefa cultural do negro brasileiro foi a de aprender a falar o portugués que ouvia nos berros do capataz. Teve de fazé-lo para comunicar-se com seus companheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou, comefando a sair da condil o de bem semovente (...). Conseguindo miraculosamente dominar a nova lingua, nào só a refez, emprestando singularidade ao portugués brasileiro, mas também possibilitou sua difusáo por todo o territòrio, uma vez que ñas outras áreas se falava a lingua dos indios, o tupi-guarani.» (Ribeiro 1995, 220). Nesse sentido pode-se postular uma fase da historia da lingua portuguesa nos estados do Maranháo, do Rio Grande do Sul e de Sao Paulo. No primeiro, com a criagáo da Companhia do Pará e do Maranháo pelo Marqués de Pombal em 1755, importou-se máo-de-obra africana em grande escala, mudando-se^totalmente a fisionomia étnica daregiào (Furtado 1961,109); no segundo, entre 1835 e 1845, na chamada República de Piratinim, quando os escravos viveram em liberdade, o Rio Grande do Sul tinha cerca de 100.000 negros numa populafào de 360.000 habitantes; por fim, em Sao Paulo, com o incremento da produ§ao cafeeira depois de 1850, a importado de escravos cresce significativamente - provavelmente com uma maioria de negros falantes de portugués, porque com a p r o i b i t o do tráfico nesse ano, os escravos vieram sobretudo do Nordeste (sobre essa situafào nos dois últimos estados, v. Moura, (1989, 50-51; 55). Em todas as trés regioes, partiu-se de uma célula protobrasileira basicamente indígena a que numa etapa posterior se acrescentou a lingua portuguesa. Quanto a Sao Paulo, se se quiser estabelecer uma periodizaíáo, baseada em critérios histórico-sociais, para a sua historia lingüística, sem dúvida trés fases distintas devem ser reconhecidas: uma que vai do inicio da colonizado com os primeiros mamelucos e se estende até cerca de 1750, quando entra em declínio a escravizagáo do indio; uma fase de transÌ9ào que vai até 1850; a partir desse ano aumenta a importa^áo de escravos. Em 1887 Sao Paulo já concentrava 50% da popula?ào escrava do país (Moura 1989,55). Nesse contexto deve-se considerar também a formagao da variedade urbana da cidade de Sao Paulo, que com a instalafáo da faculdade de Direito em 1828 entra num certo processo de urbaniza§áo em face do papel exercido pelos estudantes (Sodré 1976, 214-215). Por volta de 1872, com a imigrafào européia e a industrializafào, a urbanizafào entra em outra fase. A essa altura as novas condifoes sócioculturais da capital paulista trabalhavam decisivamente contra as marcas da fala caipira daquela cidade, cuja variedade lingüística Amadeu Amarai descreveu no inicio do século X X como localizadamente rural (Amarai 1920). 70

rural. Esse fenómeno teria resultado no próprio portugués do Brasil naquilo que se afasta do portugués de Portugal, como um compromisso entre duas forças dinámicamente opostas e complementares, ou seja, urna imantaçâo dos sistemas fónicos africanos em direçâo ao sistema portugués e, em sentido inverso, um movimento do sistema fónico portugués em direçâo aos sistemas africanos (Castro 1978, 18-23). 2.6.5

O ensino do portugués ao escravo

Embora, como já afirmamos anteriormente, o processo de imposiçâo do portugués ao escravo nao tenha sido o mesmo da imposiçâo oficial da língua portuguesa com as reformas pombalinas, essa língua foi também sendo imposta ao escravo por outras razôes. Tal necessidade surgiu dentro do contrabando da mâo-de-obra africana, porque a partir de 1831 todos os escravos que fossem recém-importados e que fossem apanhados pelas autoridades eram tornados automáticamente livres por imposiçâo da Inglaterra. Dessa forma para burlar a legislaçâo e fazer os escravos recém-chegados parecerem antigos, os contrabandistas passaram a ensinar a língua portuguesa aos africanos desembarcados em pontos fixados ao longo da costa brasileira, para onde eles eram imediatamente levados antes de serem liberados para o comércio. Os pontos mais importantes ficavam na Bahia e no Rio de Janeiro e ñas suas imediaçôes, chegando os maiores deles a possuírem cerca de seis mil escravos expostos á venda. Em 1843 em Pernambuco e na Bahia estavam sendo tremados escravos no dominio da língua portuguesa para se melhorar seu preço nos mercados do Rio de Janeiro. Em face dessa prática, entre 1834 e 1847, cresceram consideravelmente as importaçôes via contrabando, o que aponta para o número de escravos que passavam por esse treinamento (Calógeras 1935, 194-236). Aos negros boçais ou novos, que nâo falavam a língua do país, portanto, eram ensinados os rudimentos da língua portuguesa para que eles se assemelhassem a ladinos ou a crioulos (Bethel 1970, 76). Do que ficou exposto, à medida em que se formam as variedades urbanas e a língua comum, o multilingüismo vai sendo reduzido ou simplificado. No fundo essa dinámica revela a marcha da língua portuguesa na direçâo de ocupaçâo dos espaços comunicativos que se foijavam. A investida da política pombalina já no século XVIII prepara o caminho para urna maior homogeneizaçâo lingüística que vai ocorrer no século XIX, enquanto outras formas mais circunstanciáis de aprendizagem da língua portuguesa pelo escravo vâo dando conta da simplificaçâo da complexidade lingüística africana. 2.6.6

Quai foi o fim das línguas africanas no Brasil?

O problema da presença das línguas africanas no Brasil foi sempre um tema complexo, nunca existindo sobre ele qualquer opiniâo unánime. Quantos escravos foram trazidos e como foi a sobrevivéncia dessas línguas no Brasil sâo perguntas cujas respostas permanecem ainda desconhecidas. Isso se deve so7i

bretudo à inexistencia de documentagào suficiente para levantamento desses dados, quer por d e s t a r l o , corno foi o caso depois da abolido da escravatura, quer por falta de levantamento, se ainda existir. Dentro desse contexto já se escreveu alguma coisa sobre o tema, mas sempre permanecem dúvidas. Urna das hipóteses mais polémicas é a do surgimento de crioulo durante a colonizad o , mas volta e meia aparecem novas contestares à referida hipótese. Afora essa caracterizagao, também vez por outra aparece um traballio sobre alguma comunidade de remanescentes africanos cujo uso do portugués é analisado sempre na diredo do problema da crioulizagào ou descrioulizagào. Trabalhos interessantes nos últimos anos foram realizados por Castro (1978) que, baseando-se em estudos realizados sobre a influència negra na Bahia, tem apresentado resultados muito comedidos sobre as polémicas que o tema enseja. Identificando a regiáo de onde teriam vindo as maiores levas de escravos para o Brasil e as familias lingüísticas trazidas, a autora mostrou como se deu a influència africana sobre a lingua portuguesa, principalmente na diregào da formagáo de variedades lingüísticas da lingua portuguesa em contato com aquelas línguas. Sobre a origem crioula do portugués popular brasileiro, seus estudos revelaram a inexisténcia desse fenòmeno, dado o movimento recíproco de encontro entre elas durante a situagào de contato por causa da semelhanga de padroes silábicos semelhantes do portugués e das línguas africanas envolvidas no contato, tanto no tocante às línguas banto, quanto em relagáo às línguas sudanesas, ao norte da linha do equador. Excluindo, portante, a hipotética crioulizagào, Castro demonstra como esse contato propiciou a formagáo de diferentes dialetos em ambientes e momentos históricos diferentes. Um primeiro, que eia chamou de dialeto das senzalas, teria sido urna lingua de emergencia, originada em face da pouca distancia entre as línguas envolvidas no processo de colonizado, ao qual posterioremente se incorporaram também elementos indígenas. Este dialeto teria evoluído em face de novas necessidades comunicativas para um dialeto rural, confluindo em ambas as diregoes com o portugués e com sua base africana. Para isso desempenharam papel preponderante escravos ladinos e crioulos. Por firn, com a mineragào dentro de urna nova realidade social, ou seja, a urbanizado, surgiu um dialeto das minas, que em face do contato mais intenso com a lingua portuguesa, por causa da crescente imigragào portuguesa e o aumento da urbanizado, recebeu muita influència do colonizador e tomou empréstimos bantos. Todos esses processos favoreceram o nivelamento desses falares em urna só diregào, ou seja, da lingua portuguesa. Silva Neto (1963) defendeu a existéncia no período colonial brasileiro de um crioulo, cuja manifestado tardía, em estágio de descrioulizagào, é o chamado «portugués popular brasileiro». Révah (1963) contestou esse ponto de vista, apontando a impossibilidade de se provar tal origem crioula, nao somente por causa da unidade desse portugués brasileiro, mas também por causa de seus tragos medievais. Mais recentemente Guy (1985) voltou a insistir na hipótese crioulista, defendendo o estado atual de descrioulizagào do portugués popular brasileiro. Tomando exemplos das estruturas nomináis e do sis72

tema de flexáo verbal, onde paralelamente ocorrem tanto retengao quanto perda de elementos da estrutura gramatical do portugués, Guy demonstrou entao o processo de descrioulizagáo. Tarallo (1992) ofereceu contra-exemplos para essa tese no campo da relativizagao com pronominalizagáo e anáfora. Para ele, inspirado ñas pesquisas que realizou na cidade de Sao Paulo e nos resultados encontrados por outros autores na comparado entre o portugués brasileiro e o europeu, para o portugués passar por uma fase de descriouliza^áo, deveria sofrer urna transformado radical, quanto ao emprego das categorías vazias, que se apresentam em posigáo totalmente assimétrica ñas duas variedades. Além disso, o fenómeno tem uma alta correlagao com outros pontos do sistema gramatical, ou seja, ele está fortemente encaixado na reorganizado estrutural do sistema do portugués brasileiro. Dessa forma, embora nao descarte de todo a hipótese de Guy, porque, diz ele, nao se conhece bastante o portugués brasileiro, nem tanto em relagáo á historia interna, nem quanto á historia externa, Tarallo se mostra cético quanto á alegada crioulizagao da variedade brasileira. Dessa forma, deixa mais uma vez o tema ainda em aberto. Por fim, Zimmermann (1996) procurou reviver a discussao pela comparado com outros crioulos, que apresentariam propriedades semelhantes as dessa variedade brasileira, e com amostras de variedades rurais brasileiras, concordando dessa forma com a esséncia do pensamento de Guy.68 Diante desse quadro, nao se pode levantar muitas hipóteses num campo onde ainda se tem muito para fazer. Por outro lado, um fato nao pode ser contestado, ou seja, o da influencia de hábitos lingüísticos de falantes estrangeiros, no caso os africanos, que imprimiram algumas marcas no modo de falar o portugués, numa situa^ao de interferencia lingüística - representada pelo fenómeno da convergencia69 - como é normal em situagoes semelhantes. Nesse sentido, Castro (1978) tem razáo em afirmar que os dialetos de origem africana constituidos no Brasil se incorporaram ao portugués, configurando-o, porém, de um modo peculiar, principalmente no campo da fonética e da prosodia,70 68

69 70

A pesquisa que leva en conta a hipôtese da crioulizaçâo do PB tem ganho força ultimamente da investigaçâo de comunidades negras cuja origem remonta a antigos quilombos sobretudo do século X I X . Nesse sentido o trabalho pioneiro se deve a Carlota da S. Ferreira (Ferreira 1987), que investigou a comunidade de Helvécia no Sul da Bahia, identificando presumiveis traços de um crioulo remanescente. Depois dai, outros pesquisadores têm focado a atençâo em comunidades semelhantes. Seguindo mais ou menos essa linha, v. Vogt/Fry (1988 e 1996). Para o conceito de convergência, v. Crowley (1994, 2 5 3 - 2 8 3 ) . Sobre o papel de traços supra-segmentais como residuo de antigos dialetos, Montgomery ( 1986) escreve: «Thus, within the British Isles many of the more fundamental differences of vocabulary and sentence structure between the English dialects have become eroded (not to mention, of course, the drastic decline - sometimes active suppression - of Welsh and Gaelic). Often, all that remains as kind of historical residue of the original dialect is its distinctive mode of pronunciation - its accent. For this reason, we now have a situation in which the standard dialect is spoken with many differing regional accents.» (Montgomery 1986,68).

73

onde as marcas sào mais fáceis de serem imprimidas. Quanto à sintaxe, permanecem abertas as possibilidades de investigatilo de tal influencia.

2.7

Terceira fase: Firn do predominio das oligarquías e surto industrial. Elaboragào da lingua literária

2.7.1

Contexto histórico

Na segunda metade do século XIX com o desenvolvimento da produ§ào do café, o pòlo económico transfere-se para o Sul e o Sudeste do país. As regioes onde a atividade económica era diminuta investem na mao-de-obra para acelerar a produgao cafeeira. Nesse período, muitos escravos sao importados do Nordeste e, paralelamente a essa importado, chegam as primeiras levas de imigrantes europeus, novos colonos que ocupam regiòes vastas e um tanto isoladas, dedicando-se à agricultura, fundando cidades e mais tarde compondo a mao-de-obra durante a nascente industrializado do país (Pinto 1989; Moura 1989). Por volta de 1870, com as oligarquias já estabelecidas, come§a a crise do impèrio brasileiro, dada a nova realidade que se configurara. Por essa época já dominam os baróes do café consolidados ñas oligarquias. O descontentamente da classe política e as limitagoes do regime apressam mudanzas guiadas pelos novos interesses das classes dominantes e as classes militares se exaltam, promovendo o golpe da República, destruindo dessa forma o regime imperial. Estabeleceu-se a hoje chamada República Velha, imposta em 1889, quando o poder passou definitivamente à burguesía rural, essencialmente cafeeira (Cavalcanti 1989). Essa nova forma de governo entrou num rápido processo de desgaste. O firn da escravidào no ano anterior acrescentara um dado novo na vida economica brasileira. A massa de escravos tornada livre passou a constituir o operariado rural e urbano dentro da economia cafeeira e na subseqüente industri alizagào que se impós pelo final do século. Sào Paulo cresce como centro de todo esse processo incorporando a mào-de-obra exportada pela Europa (Bosi 1976). Os trabalhadores europeus, já de alguma forma familiarizados com um processo de industrializado dominante no velho continente, vào dessa forma dar um novo caráter às rela§oes económicas capitalistas que entram em acelerado processo de desenvolvimento. Todo esse novo quadro que se estabelece na sociedade brasileira atinge o seu auge no inicio do século X X , com a crise mundial que leva à Primeira Guerra, aumentando as tensòes sociais, que preparam o estopim da revolu£ào de 1930. No inicio do século X X , portante, a ordem economica vigente nào comporta mais a estrutura tradicional que a gerara, com a intensificarlo da industrializad 0 sobretodo em Sào Paulo e 0 decorrente processo de urbanizado que se instala. A revolu?ào de 1930 representa urna nova etapa da vida brasileira e é, ao mesmo tempo, o ponto de chegada de urna crise que se acumulara nas tensòes que vinham se somando desde décadas (Ortiz 1986). Como a situado se 74

agravara durante o pós-guerra, é exatamente em 1922 que très movimentos de natureza distinta apontam para a mudança por que passa a sociedade. Em primeiro lugar, salientamos a revolta dos tenentes, ou Tenentismo; depois a fundaçâo do Partido Comunista Brasileiro, como reflexo do crescimento do operariado que já se constituirá; e por firn, o movimento modernista, do qual resulta a elaboraçâo da lingua literária. Deixando de lado a formaçâo de um operariado - que é também reflexo da complexificaçâo da sociedade e aponta para um aspecto da realidade lingüística brasileira na medida em que se forma urna classe social de origem rural, somada aos trabalhadores emigrados - que se estabelece num centro em processo de urbanizaçâo, os reflexos dessas tensôes sociais no plano da vida cultural sao na verdade expressâo de urna classe média em franco processo de desenvolvimento e ao mesmo em disputa pelo poder, antes concentrado ñas mâos das elites rurais. 2.7.2

Classe média e urna nova oralidade urbana

Dentro do novo quadro social que se apresentava no inicio do século, a chamada «nobreza fondiaria» nâo exercia seu poder isoladamente dentro daquele contexto. Outros grupos sociais emergiam, dentre eles a burguesía industrial, incipiente em Sâo Paulo e Rio de Janeiro; os profissionais liberáis; e o Exército, que desde o golpe da República vinha exercendo papel de relevo (Bosi 1976). É dos profissionais libérais que se constimi a classa média, que por sua vez vai fornecer os quadros responsáveis pela movimentaçâo cultural do período. Urna classe social emergente dentro da complexificaçâo da realidade social implica naturalmente numa nova oralidade também, em face do processo de modernizaçâo, principalmente da cidade de Sâo Paulo. Esse problema foi bem captado por Simon (1980), que assim se exprimiu: «(...) deformaçôes e desvíos decorrentes da concentraçâo de imigrantes europeus (em especial, italianos) e migrantes da zona rural na cidade. Como consequência natural do influxo de grupos assim diferenciados, emerge urna nova fala urbana, também sem precedentes no Brasil.» (Simon 1980, 38)

E mais adiante, escreve a mesma autora: «De sua vez, a linguagem solta, desleixada, dinàmica e funcional, falada pelas camadas médias e baixas da populaçào, tomava-se a expressâo mais viva das novas forças que se inscreviam na sociedade brasileira.» (Simon 1980, 38)

Considerando, entâo, que no plano lingüístico a mais importante proposta do Modernismo era o aproveitamento da lingua coloquial na elaboraçâo de urna literatura de cunho nacional, disso se infere que eia era a lingua comum que viera se formando com a aproximaçâo de populaçôes, antes geográfica e socialmente afastadas, conforme mostramos ao longo deste capítulo. A citaçâo 75

acima, por outro lado, é a representado do pensamento dos líderes do movimento, que, nào conscientes do processo de c o n s t i t e l o da lingua literaria, apresentavam as propostas mais confusas e desencontradas (Sodré 1976, 524-525). Depois da fase inicial de irrupgào do movimento, deixam-se de lado as atitudes mais radicais e por isso pouco produtivas, para se entrar numa fase de estabilizado e de urna consciència mais comum de como a literatura brasileira atingiría no plano lingüístico a sua pròpria identidade.71 O fato mais importante que nos interessa nesta discussào é, portante, a existencia de urna lingua comum já estabelecida - coloquial urbana - sobre a qual se poderia erigir a literatura. Esta lingua comum no fundo era o somatório de características das variedades urbanas espalhadas pelas cidades maiores e de maior trad i t o , favorecida pelo papel nivelador da lingua escrita. 2.7.3

A formado da lingua literária

Por volta de 1920, cresce a efervescéncia dos movimentos culturáis, aliados à insatisfa§ào com a conjuntura econòmica marcada ainda pelos velhos setores dominantes, representantes das oligarquías do século anterior. A nova era do desenvolvimento económico, onde a máquina e a velocidade já se tornaram símbolos, marca essa fase da historia brasileira, influenciada pelos acontecimentos na Europa. No plano cultural, os intelectuais brasileiros nao suportavam mais o predominio das conceptees parnasianas dominantes e a inadequa?ào das idéias daquela fase histórica e fazem irromper o movimento da Semana de Arte Moderna em 1922, que tinha por objetivo romper com os padròes tradicionais dominantes ñas artes de um modo geral. Quanto às concep$6es sobre literatura e lingua vigentes, esse movimento torna-se bastante representativo da literatura brasileira sobretudo em relado à renovado dos meios lingüísticos, instaurando urna ruptura com as concep?oes dominantes. Como cerne da discussào em torno da literatura, emergiu o problema da lingua, que os modernistas - como se fizera à época do Romantismo - retomam e aprofundam. Cabe destacar o papel que exerceu Mário de Andrade, que se transformou no maior teorizador daquela problemática.72 A partir dai se levantaram longas discussòes em torno da realidade lingüística brasileira em confronto com aquela do portugués europeu. O interesse voltado para a nova perspectiva dirigiu as atengoes para a pesquisa lingüística do portugués rural brasileiro, ensejando-se várias propostas de incorporado de elementos dessa variedade à nova lingua literária, muitas délas nào alcanzando o objetivo que pretendiam.

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Zílio ( 1 9 9 4 , 1 1 1 ) se refere a urna primeira fase do movimento voltada para a atualiza$ào e o nacionalismo e urna segunda voltada para a questao social. Embora o autor nao fa9a referéncia aos aspectos lingüísticos, nos anos 30 se abandona o ímpeto da fase inicial e se assume urna atitude mais lúcida. Sobre as idéias lingüísticas de Mário de Andrade, v. Cabrai (1970), que analisou os conceitos lingüísticos e a visào daquele autor em vários de seus textos.

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Em resumo, a partir desse momento, elabora-se urna nova lingua literaria, com um leque variado de possibilidades, algumas delas extremando-se num certo nacionalismo exacerbado, que nào tiveram continuidade. Apesar de tudo isso, aquele momento histórico estabeleceu urna discussào em torno da questào lingüística, que se arrastou até recentemente, sobretudo porque o que se tinha adotado nào ganhou reconhecimento ñas gramáticas escolares, criando-se um fosso entre a lingua literária renovada e as regras apresentadas nos manuais escolares, nascendo disso um conflito no plano pedagògico em face da dualidade de normas. Apesar da multiplicidade de concep9Òes presentes no movimento, o interessante é que todas convergiam para o mesmo objetivo, que era a criagào da lingua literária brasileira (Sodré 1976,526). Todo o esfor50 empregado pelos románticos no século anterior, pode-se dizer, veio praticamente se concretizar somente com o Modernismo. As experiencias de José de Alencar,73 por exemplo, sempre encontraram rea§5es da critica, ao mesmo tempo em que refletiam o contexto desfavorável à elabora?ào daquela norma mais próxima da realidade brasileira, como propagavam os románticos. Como concep9ào central dos modernistas, estava a aproximado entre lingua literária e fala brasileira,74 só que em face da multiplicidade de correntes, muitos enveredaram pelo caminho do exótico, por assim dizer, propondo como norma literária características da fala rural, o que nào se coadunava com a tradito das normas urbanas regionais e da lingua comum já àquela altura bastante delineadas. Comparando as propostas de elaboralo de urna lingua literária do século XIX e do século X X , ao que tudo indica, o insucesso do Romantismo se deve a vários fatores, sendo talvez o principal a inexistencia de urna clara consciència da norma culta oral que se tomaría por base para essa elabora§ào, principalmente quando o objetivo dessa escola era promover a oralidade como matèria da lingua literária. Embora alguma ou outra experiencia possa ser tomada como exemplo, na verdade isso era muito pouco para alcan9á-lo.75 Por isso foi preciso esperar até o século X X para se perceber algo mais concreto, porque agora as condigòes históricas eram outras.

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José Martiniano de Alencar ( 1 8 2 9 - 1 8 7 7 ) . É considerado a figura mais importante do Romantismo brasileiro, pela polèmica que levantou em torno da litera!iza$ào da fala brasileira, produzindo nào só textos literários, mas também teóricos, v. textos do autor em Pinto (1978). Mario de Andrade usou inicialmente a expressào «lingua brasileira» e posteriormente «lingua nacional». Sobre isso assim se expressou Cabrai (1970, 110): «De qualquer forma, interpretamos o tèrmo brasileira como equivalente à variante brasileira da lingua portuguesa, porque nesse sentido grandes foram as contribuifòes de Mário de Andrade. No final de sua obra, abandonou a denominalo por outra mais feliz: lingua nacional.» Naturalmente nào se pode comparar o número de escritores do Romantismo com aqueles do Modernismo. A s condi§òes históricas eram outras, já mais favoráveis durante o Modernismo. Enquanto no primeiro movimento eles se contavam a dedo, no segundo o número de escritores é crescente.

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A s experiencias iniciadas em 1 9 2 2 e reorientadas a partir de 1930 nao fixaram de forma rígida cánones que deveriam compor a nova língua literária brasileira, mas simplesmente abriram através da experimentasáo as possibilidades de alteragao da língua escrita pela influencia da oralidade, o que, das obras estritamente literarias, se passou a observar em outros tipos de textos.76 Antes que se nivelasse a língua escrita do país, desfazendo-se a separagáo rígida entre as «permissividades» da língua literária, por assim dizer, e os cánones prescritos pela gramática tradicional - fato que se deu de forma espontánea, favorecido pelos escritores-jornalistas - , estabeleceu-se um conflito,77 sobretudo no contexto escolar, entre essas duas normas, urna ¡novadora, espelhada na fala urbana mais cultivada e outra ditada pelas gramáticas normativas. Nesse sentido a discussao que comegou a se travar entre professores, mais sensíveis ao uso do que á prescri§áo, e lingüistas, levou á necessidade de melhor se conhecer a realidade oral urbana culta de forma objetiva, para urna clara identificafáo da norma representativa desse uso. Na raiz desse conflito se coloca o surgimento do Projeto NURC, 78 que fundado ao final dos anos 60, tinha as seguintes finalidades (Cunha 1 9 8 9 , 1 1 - 1 4 ) : a) conhecer melhor a realidade lingüística brasileira; b) recolher dados precisos sobre a linguagem falada em cinco capitais brasileiras, centros irradiadores de normas lingüísticas para vastas áreas que deles dependem culturalmente; c) descrever a variedade do uso normal culto brasileiro, tendo em vista a enorme complexidade que a estratigrafía sociocultural assume em nosso País; d) conhecer as normas tradicionais que estáo vivas e quais as superadas a fim de nao sobrecarregar o ensino com fatos lingüísticos inoperantes;

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Pontes (1987), por exemplo, detectou fenómenos típicos da modalidade oral em textos informativos, náo-literários. Reveladora dessa polémica foi a exposi§áo de Rodrigues (1968) no I Simposio Lusobrasileiro sobre a Situafáo da Língua Portuguesa Contemporánea. Ali afirmou o autor: «Quase sem excepgoes os livros didáticos de língua portuguesa, todos de caráter normativo, ensinam urna mesma variedade de língua escrita, cuja gramática é a que se infere da análise dos melhores escritores portugueses dos séculos XVI a XIX e dos brasileiros do século XIX e inicio do século XX.» (Rodrigues 1968, 46) e ainda: «Com respeito á literatura, observa-se que desde a década de 20 os melhores escritores brasileiros vem-se insurgindo contra o padráo lingüístico sustentado pelo magistério - o qual foi freqüentemente usado pelos críticos para julgar a das obras literárias - e vém, através de seus escritos, oferecendo urna língua escrita que diverge em muitos pontos daquele padráo e se aproxima correspondentemente da modalidade falada, sobretudo no nivel coloquial tenso. Vai aumentando de tal maneira o consenso entre escritores e leitores de que essa é a melhor língua escrita, que somos levados a reconhecer que se processa urna reformulafáo, ou urna substituido da língua padráo escrita.» (Rodrigues 1968,46-47). Para a historia do Projeto, v. Castilho (1990). 7«

e) ajustar tanto quanto possível o ensino da lingua portuguesa, em todos os seus graus, a urna realidade concreta, evitando a imposi$ào indiscriminada de urna só norma histórico-literária, por meio de um tratamento menos prescritivo e mais receptivo às diferenjas regionais e socioculturais do País; f) dar ènfase ao uso orai da lingua portuguesa como instrumento de comunicafáo e expressào da cultura brasileira, contribuindo para a desmarginalizafào de imensos contingentes humanos e para a sua incorporalo ao processo de desenvolvimento nacional; g) realizar o estudo conjunto e coordenado das modalidades regionais objetivando urna consciente unidade lingüística nacional.

Pelo menos dois dos objetivos (d e e) se referem explícitamente ao problema da nonna em rela9ào à e d u c a l o da lingua portuguesa e outro (a) faz men?ào ao melhor conhecimento da realidade lingüística brasileira como reflexo do conflito acima referido. Só a partir dos anos 80 se estabeleceu ñas escolas urna discussào mais profunda sobre o problema, especialmente com o engajamento de lingüistas com interesse pedagógico - grabas ao desenvolvimento da lingüística aplicada ao ensino da lingua portuguesa ñas universidades brasileras - e com a f o r m a l o de professores imbuidos dessa preocupa£áo, além da c a p a c i t a l o de outros cuja forma^áo nao houvera contemplado a incorporasao de conceitos lingüísticos apropriados a essa nova perspectiva. Nos anos 80 o NURC entrou numa nova fase, com a incorporado de novas perspectivas para o estudo do portugués culto brasileiro.79 As concepì oes originárias de caráter teórico para a análise da realidade lingüística brasileira se tornaram obsoletas e a análise da conversa?ao cresceu em importancia. Em 1987 se propunha o «Projeto de Gramática do Portugués Falado», como reflexo também do material que já se havia acumulado ñas diversas regiSes, permitindo-se urna visao mais geral do funcionamento da oralidade urbana culta brasileira. Concluindo, as propostas lanzadas pelo Modernismo se estabeleceram notadamente aquelas assumidas nos anos 30 - , mantendo ainda hoje os efeitos que se buscavam.80 A lingua escrita do Brasil nào é exatamente a mesma de Portugal, pelo potencial de inclusáo de tra90s da oralidade mais cultivada, que nào sào necessariamente os mesmos da variedade européia e os últimos focos de resistencia de urna tradi?ao ultrapassada parecem ir cedendo ante urna atitude mais saudável no tratamento das questoes lingüísticas. Depois de apresentarmos esta proposta de periodiza9ào para a historia externa do portugués brasileiro, vamos nos centrar num ponto do continuum histórico. Trata-se de um corte histórico e geográfico para uma análise mais

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Em Castilho (1990, 152), para se perceber a reorientado do Projeto, lè-se: «A pròpria lingua falada como um objeto científico autònomo é um fato novo.» Ainda nos anos 60 Lessa (1966) publicou um traballio pioneiro sobre o efeito das propostas e manifestos modernistas sobre a constituido dos textos propriamente ditos, que vào desde o inicio do movimento até a década de 40.

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profunda do desenvolvimento lingüístico do PB, exemplificando com o caso do Recife. Assim, trabaremos no capítulo seguinte o processo de constituido da variedade recifense em pleno momento de urbanizagáo da vida social. Antes disso, fornecemos uma caracteriza9ao pormenorizada da composi?áo étnica e social daquela comunidade para uma melhor compreensáo do desenvolvimento investigado.

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A Forma9ào de urna Variedade Urbana na Cidade do Recife

3.1

Introduco

Hoje no Brasil se reconhece a existencia de normas lingüísticas urbanas cultas - estudadas em algumas capitais brasileiras pelo Projeto NURC - que, apesar de suas especificidades regionais, apresentam-se com relativa unidade no plano da oralidade em todo o país.1 As particularidades regionais residem muito mais na fonética, na prosodia e no léxico e os fenómenos sintéticos ou pragmáticos sào de um modo geral comuns a todas as regioes. Embora o objetivo do projeto nào inclua preocupado com a norma escrita, podemos dizer que esta modalidade se realiza de forma bastante unitària em todo o país, favorecida pelo papel da imprensa e da literatura. Estas normas constituirían! efetivamente no seu conjunto, cada urna com suas peculiaridades regionais, urna variedade brasileira culta da lingua portuguesa. A variedade de maior prestigio até o inicio do século XIX foi inspirada no modelo lusitano, enquanto a de menor prestigio, de origem rural, nunca possuiu o prestigio de urna variedade urbana e comparativamente àquela, sempre esteve associada aos grupos socialmente inferiorizados e sempre foi marcada por urna certa influencia do portugués dos séculos X V e XVI. 2 Nos interessa agora discutir um pouco como se teria constituido urna daquelas variedades ou normas urbanas mais especificamente brasileiras. Analisaremos dentro desse objetivo o caso do portugués urbano do Recife. A propria denominado do NURC de «urbana» para cada urna das normas estudadas, aceita sem contesta?áo pelos lingüistas brasileiras, chama a ate^ào para o contexto geográfico de sua origem, enquanto a variedade de rural, por muitos identificada sob a denominad 0 genérica de

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Veja-se para isso Coseriu (1988b, 4 0 - 4 2 ) , que faz alusào a essa peculiaridade da realidade dialetológica da América do Sul. Essas variedades correspondem a situafóes semelhantes na Franja e na Italia. A s no§5es de «francés regional» ou «italiano regional» apontam para variedades que se afastam dos dialetos locáis e se aproximam do «standard», mas nào deixam de lhe acrescentar tra?os desses dialetos locáis, constituindo-se algo intermediàrio. V. para a Franga Marcellesi ( 1979) e para a Italia, Hall

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Esse conjunto de variedades aqui referidas representam o chamado «continuum lingüístico». Veja-se a esse respeito J0rgensen/Kristensen (1995). Quanto à influencia da lingua do século X V I , veja-se o traballio de Révah (1959).

(1980).

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«portugués popular»3 - aqui denominada de variedade de menor prestigio4 é nitidamente diferente délas e em relagào a elas se encontra quase em oposiPara um estudo completo dos aspectos que interferiram no desenvolvimento lingüístico local, tratamos o problema em très dimensòes. Urna primeira abordagem será o contexto «extralinguistico», com a investigado do período histórico e o processo de urbanizagào e modernizagào que caracterizam a sociedade local naquele momento; depois, estabelecendo-se urna ponte entre o extralinguistico e o lingüístico propriamente dito, denominamos um segundo aspecto da abordagem de «o extralinguistico e o lingüístico», em que o contexto sociolingüístico está relacionado ao tipo de contato entre grupos étnicos e sociais, resultado do processo de migragáo. Em última análise, a segunda parte do capítulo procura enfatizar o relacionamento entre fenómenos de natureza típicamente externa e seus evidentes efeitos sobre o nivel lingüístico.5 Por fim, num terceiro momento, consideramos «o lingüístico», onde com base em documentos históricos, de 1798 e 1842, levantamos dados sobre a lingua falada e o processo de constituigáo da norma urbana local, favorecida também pelo papel da lingua escrita.

3.2

O extralingüístico

3.2.1

A constituigáo do Recife como centro urbano6

Com a transferencia da familia real para o Brasil em 1808, as cidades costeiras, sobretudo as de alguma tradigáo, recebem um grande impulso. Talvez o acontecimento de efeitos mais marcantes na vida global dessas cidades seja a abertura dos portos «as nagoes amigas», primeira medida tomada pela Corte portuguesa logo que chegou ao país. Este acontecimento, do ponto de vista económico, tem dois reflexos imediatos: primeiro, favoreceu o comércio com

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Esta é urna caracterizado muito genérica, porque sabemos que o «portugués popular» nao é absolutamente uniforme. A essa denominado aqui usada corresponde o termo «non-standard», corrente na literatura. Na verdade, numa perspectiva do estudo de variedades urbanas, a urbanizado e/ou modernizado seriam os fatores que desencadeariam outros, mais diretamente associados ao lingüístico. Assim, eles promovem alterado na vida social de urna comunidade urbana, tomando mais complexa a sua estrutura e conseqüentemente seus usos lingüísticos. Sobre o papel da urbanizado e mudanza lingüística, ver Romaine (1994). Também a formado de variedades urbanas foi associada ä urbanizado e ä industrializado. Veja-se o caso de Helsinque (Paunonen 1993) e a formado da «Umgangssprache» na Alemanha (Schildt 1989). Para os sáculos XVII e XIX baseamo-nos em Mello (1987; 1992); em Cowell (1975), baseamo-nos para o sáculo XVIII e também para o XIX. 82

o incremento da exportado; segundo, possibilitou o intercambio com outras nagoes européias - sobretudo a Inglaterra - permitindo a atragáo de viajantes, que movidos por diversos interesses, passaram a realizar viagens para estudo ou conhecimento da realidade do país. Pela amplitude desse evento histórico, a face do Brasil vai sofrer importante alteragào, refletida na transformagao da vida urbana que a partir dai comega a se intensificar. Se compararmos essa nova situagao da colònia com aquela do século XVIII, por exemplo, a alteragao é significativa (Armitage 1965). Até mesmo no correr dos primeiros anos do século XIX, se notam diferengas num pequeño espago de tempo entre urna época e outra (Koster 1978). 7 O Brasil foi na maioria do seu período colonial uma sociedade rural. Aquele isolamento já discutido no capitulo anterior tinha criado as condigòes típicas de uma sociedade rural na vida econòmica e nos hábitos sociais. Por isso ainda no século XIX tal fenòmeno é significativo.8 Como a vida econòmica concentrava-se no campo, os centros urbanos nào passavam de vilas.9 Por isso a populagào que fixava residencia nesses centros era de procedencia rural e ali se estabelecia temporariamente. Os centros mais importantes ao final do período colonial, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Sào Luis e Sào Paulo representavam apenas 5, 7% da populagào total do país, enquanto os outros eram apenas aldeias (Prado 1 9 9 1 , 1 2 2 - 1 2 3 ) . As diferenciagòes entre as regiòes do Brasil trazem como trago específico de cada uma a forma de vida agrària, com a cana-de-agúcar e a criagào do gado de um lado; com o extrativismo vegetal no extremo Norte ou com o extrativismo minerai, do outro (Diégues 1959, 112). E por isso que devemos considerar com Celso Cunha (Cunha 1990) a natureza rural da sociedade brasileira e sua posterior urbanizagào, quando pretendemos estudar o desenvolvimento da lingua portuguesa no Brasil. Trazendo o foco desta discussào para a realidade que nos interessa e para provar do ponto de vista extralinguistico a origem rural da sociedade

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Esse paño de fundo histórico é, por assim dizer, o motor que impulsiona a ebuli?ao lingüística ñas cidades costeiras brasileiras. Pinto (1986) e Bortoni ( 1 9 8 5 ) aludem a esse fato. Sobre a influencia da vida rural na vida urbana no século X I X , escreveu Holanda ( 1 9 9 5 , 68): «Wenn die Portugiesen, wie im vorangegangenen Kapitel behauptet, strenggenommen keine landwirtschaftliche Kultur in Brasilien begründet haben, so war es doch eine Kultur mit ländlichen Wurzeln. Unbestreitbar konzentriert sich das gesamte Leben während der ersten Jahrhunderte europäischer Besetzung auf den Landgütern: Die Städte sind virtuell, wenn nicht gar tatsächlich, lediglich deren Dependancen. Ein wenig zugespitzt könnte man sagen, daß dies sich bis zur Aufhebung der Monarchie nicht wesentlich änderte. Der 1 3 . Mai 1888, als die Sklaverei in Brasilien abgeschafft wurde, ist ein Markstein, der zwei Epochen voneinander trennt. Dieses Datum ist in der Entwicklung unserer Nation von einzigartiger, unvergleichlicher Bedeutung.» Ver Azevedo (1957).

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recifense, basta acompanhar seu processo de urbanizaçào no sentido da ocupaçâo de áreas antes vazias do ponto de vista populacional. Os bairros centrais do Recife surgiram um após outro, mas numa sucessâo imediata, por força da expansâo da colonia holandesa. Fundado na metade do século XVI, como porto para o centro administrativo de Olinda, a que estava subordinado, o Recife passou a evoluir como centro comercial. Desse núcelo Olinda-Recife, espalhou-se a produçâo do açucar e expediçôes militares conduziram a expansâo em direçâo ao Norte, estebelecendo-se novos pontos de expansâo económica, tais como Paraíba, Natal e Fortaleza. No século XVII, cobiçada pelo fabuloso negocio do açucar, os holandeses tomam a cidade entre os anos de 1630 e 1654, tranformando-a num centro cosmopolita com urna populaçâo de diversa origem européia somando cerca de dez mil habitantes. Tendo nascido dentro da economía da cana-de-açùcar para embarque do produto e inicialmente ocupado por pescadores, o Recife é fruto dessa ruralidade que caracteriza a vida brasileira como base económica do colonialismo europeu. As suas áreas mais distantes constituíam a regiâo de plantaçâo de cana-de-açùcar, ao longo do rio Capibaribe, onde se localizavam engenhos, que enviavam a colheita àquele porto para escoamento da produçâo. Esses engenhos, que se constituíam de núcleos populacionais, contando com cerca de 100 a 200 moradores cada um deles, deram origem aos diferentes bairros quando a cidade evoluiu no espaço urbano, sobretudo no século XIX, com a construçâo de estradas e desenvolvimento dos meios de transportes (Mello 1992). A cidade ainda guarda algumas marcas desse processo de desruralizaçâo, com alguns de seus bairros arborizados lembrando os antigos sitios do século XIX. A área do Recife se caracteriza do ponto de vista de sua evoluçâo urbana em núcleos. O do porto desde o século X V I com a construçâo do Forte de Sâo José; o núcelo da Ilha de Antonio Vaz; e o dos vários engenhos localizados às margens do rio. Por exemplo, o da Madalena, o da Torre, o de Casa Forte, o do Monteiro, o de Apipucos, na várzea do Capibaribe nos séculos X V I e XVII. (Mello 1992,266). Depois da configuraçâo básica inicial com a ocupaçâo dos holandeses na península e fundaçâo do bairro do Recife, segue-se a ligaçâo por meio de pontes às áreas adjacentes como a ilha de Antonio de Vaz e por fim a ligaçâo ao continente, dando origem ao bairro da Boa Vista. Nos começos do século XVIII com a expansâo populacional e com obras de aterro, surge esse último bairro e começa a expansâo no continente completando a sua configuraçâo geográfica mais central predominante até hoje (Mello 1992, 267). Ainda na segunda metade do século XVIII, o rio Capibaribe passa a ser incorporado à vida cotidiana da populaçâo, pelo seu valor medicinal e recreativo,10 e as grandes propriedades localizadas às suas margens vâo sendo divi-

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Cf. Mello ( 1 9 9 2 , 267): «Na segunda metade do século X V I I I divulgam-se informaijóes sobre a importáncia medicinal dos banhos do rio Capibaribe. Segundo urna noticia do Povoado do P050 da Panela, os médicos do Recife, por volta de 1 7 5 8 , por observafóes feitas, concluíram que havia no uso de banhos no rio Capibaribe grande

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didas em sitios e chácaras com suas capelas. Já na primeira metade do século XEX, as margens do rio eram o local predileto para as férias de fim-de-ano, de modo que por essa época era comum ver familias inteiras se banhando ñas suas águas. Nos meados do século, os aterros realizados pelo engenheiro francés Vauthier" contribuiram para a expansáo dos bairros, originados dos sitios, onde se concentraram os mais ricos. Dessa forma a urbanizado vai ser mais um fator para o fim da vida acanhada dos primeiros tempos e o rio tornase um espado de intera?áo entre os grupos sociais que o freqüentavam (Mello 1992, 267-270). Favorecido pela sua situa^áo geográfica e pela sua condÍ9áo de cidade portuaria, o Recife vai apresentar-se como uma daquelas cidades onde se refletem claramente as alterares da vida urbana. Históricamente a cidade já experimentara o sentido da urbanizado com a chegada dos holandeses em 1630, que transformaram o porto que ali existia na «cidade maurícia», denomina5áo adotada pelos invasores em homenagem ao nome daquele que conduziu a edificafáo da cidade, o alemao Joáo Mauricio de Nassau.12 Mello (1987) estudou esse processo com profundidade e revelou aspectos interessantes do tema. Antes da chegada daqueles invasores, o Recife era um entreposto de remessa de produtos agrícolas - sobretudo o a§úcar - para a Europa e ali habitavam pescadores, que se aproveitavam das condi?oes favoráveis da regiáo, dada a presen?a do mar e dos ríos que naquele ponto despejam no océano. Exatamente a favorável localiza£áo geográfica daquele ponto - por onde Olinda, a sede da capitanía, fazia escoar a produ§ao a^ucareira vai estimular o interesse dos holandeses pela conquista, ocupando o Recife e subjugando Olinda. Durante os vinte e quatro anos de ocupagao holandesa, criam-se condi?oes urbanas semelhantes as existentes na Europa da época, tal como uma maior complexifica^ao da estrutura social, que antes de 1630 era caracterizada praticamente por uma divisáo entre senhores e escravos, e depois daí enriquece-se com uma nova classe, denominada «classe burguesa», formada de comerciantes ricos, donos de sobrados e negociantes de escravos. Ao lado desses individuos, tém importancia também os ferreiros, carpinteiros, alfaiates, pedreiros, caixeiros, comissários e outros encarregados de servifos. Deve-se, no entanto, observar que se tratava de europeus de diversas origens e de judeus, cujas línguas foram faladas naquele contexto histórico, pois, segundo documentado 13 da época, além da prega§áo em sinagoga -

" 12 13

vantagem para debelar certa febre epidémica que desde 1 7 4 6 aparecera aqui. Com esta descoberta e o gosto da populaçâo pelos banhos de rio, as grandes propriedades marginais foram sofrendo as primeiras divisôes e começaram a surgir os sitios ou chácaras recifenses, muitos deles com suas capelas (...).» Louis Léger de Vauthier ( 1 8 1 5 - 1 8 7 7 ) . Joáo Mauricio de Nassau-Siegen ( 1 6 0 4 - 1 6 7 9 ) . Importante documentaçâo do periodo foi levantada por Mello ( 1 9 8 7 ) em arquivos holandeses.

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dada a grande presenta judaica - se pregava em ingles, francés e evidentemente em holandés. Nào bastasse a caracterizado da estrutura social como tipicamente urbana, acrescente-se ainda a sèrie de medidas adotadas pelo governo holandés que se referem à regulamentagao desse estilo de vida (Mello 1987). Depois da expulsào dos invasores e durante o resto do período colonial, os ¡migrantes portugueses, que antes de 1630 vinham se instalar ali, continuaram chegando, principalmente do Norte de Portugal, Lisboa e das ilhas de Azores e Madeira. Muitos deles preferiram a vida urbana em constituigào trabalhando no Recife em diversas atividades, como serventes, caixeiros, livreiros entre outras (Cowell 1975,44-45). Essa imigrafào de portugueses cresce e, pouco a pouco, eles vào se constituindo numa classe poderosa de comerciantes, que por todo o século XVIII exerceu lideranga, destituindo Olinda da situagào de sede da regiào, fato que pelas suas implicares lingüísticas será comentado adiante. Chegando-se ao século XIX, portanto, já havia algumas condigSes, físicas e em parte sociais, para que o processo de urbanizado ganhasse impulso. A constituigào de um centro urbano está diretamente relacionada com a prosperidade económica, desenvolvendo-se mais as condigoes de riqueza e atraindo-se em conseqüéncia levas de migrantes. Depois do fracasso da economia agucareira e já durante a exploragào do ouro ñas Minas Gerais, dadas as necessidades económicas provocadas pelo incipiente processo de urbaniz a d o mineira, cresce a necessidade de importagáo de produtos derivados da atividade pecuária nordestina, já constituida como alternativa econòmica. O Nordeste, entào, passou a servir como centro abastecedor, o que favoreceu um certo desenvolvimento econòmico da regiào e o Recife beneficiou-se de tal situado em face da sua posigào de centro administrativo regional, reforjando a sua influéncia comercial sobre o vasto interior.14 Já nesse período o contato mais direto com Lisboa, favorecido pelas dificuldades de comunicad o com Salvador e o Rio de Janeiro, lhe propiciara autonomia administrativa e antes de 1765 o Recife exercia a lideranga no monopolio regional do comércio ultramarino. E de se supor que devido à influéncia comercial do Recife e pela evidencia da ìmìgragào de comerciantes portugueses para ali, o crescimento urbano da cidade é reflexo do desenvolvimento e do poderío destes comerciantes, que definitivamente já superavam os senhores de engenhos olindenses, ganhando projegào em relagào a estes, estabelecidos na antiga capital, e agora fracassados com a prostragào da economia agucareira. Pelo inicio do século XIX, com a crescente demanda da Inglaterra por produtos para suas fábricas de tecido, a economia peraambucana expandiu-se com a produgào de algodào. Durante o período de 1805 a 1819 os comerciantes de algodào pernambucanos estavam à frente de quaisquer outros produtores brasileiros na comercializado daquele produto. A abertura dos portos às nagSes amigas veio favorecer ainda mais tal situagào. Afora isso, também a demanda

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Cf. Theodoro (1990, 303-304).

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européia por adúcar estimulou de tal forma de novo a produfào a§ucareira, que por volta de 1850 o Recife era o mais importante mercado a?ucareiro do Impèrio. Estava, portanto, consolidada a hegemonía econòmica regional de Pernambuco e do Recife, como capital da provincia, por onde escoava toda essa produgao, reflexo do seu crescimento como centro urbano em desenvolvimento. O papel de lideranga como centro aglutinador regional favoreceu o Recife como ponto de difusào nacional de inovagào intelectual. Por ocasiao da escolha dos locáis que iriam abrigar as duas faculdades de Direito do Brasil, em 1828, foram escolhidas Sao Paulo, que formaría os hacharéis das regiòes SulSudeste, e Olinda, os das regiòes Norte-Nordeste. Apesar dessa localizagào em Olinda, era no Recife, centro regional, que seus efeitos se faziam sentir. Mesmo depois da independència, quando perdeu suas f u n d e s administrativas regionais, o Recife continuou por todo o século XIX como a cidade-metrópole, tanto do ponto de vista econòmico, como demográfico, dentro de sua zona de influencia, que abrangia um total de cinco provincias (Cowell 1975, 44-51). Em torno da faculdade de Direito se forma urna gama de intelectuais - entre professores e alunos - criando a necessària condigào para o desenvolvimento de um círculo de cultura local e de modelos da vida cultural, 15 favorecendo-se, por sua vez, o surgimento de um modelo lingüístico inspirado nesses valores, incentivado pelo regionalismo ainda intenso do período. Comparativamente ao final do século XVIII, quando as elites se formavam em Coimbra, o século XIX produz urna nova situa?ào para a cidade do Recife enquanto pòlo de atragào das elites culturáis. Em 1828, o Recife já atraía estudantes de todas as regiòes do Impèrio, demonstrando o seu caráter de centro urbano importante do país, ganhando do ponto de vista cultural nesse momento um impulso decisivo. Talvez por essa época tenham se criado condÌ5Òes adequadas para a constitui§ào de uma norma lingüística, já que o centro urbano da regiào é símbolo de formagao jurídica - portanto de hacharéis - e atrai para si os mais importantes intelectuais nordestinos do século XIX. A conclusào do curso de Direito qualificava o individuo para o acesso à burocracia imperial, permitindo-lhe a ascensao dentro das elites governamentais e administrativas. Por isso, entre 1832 e 1890, quase um quarto dos estudantes vinham para o Recife da Bahia e Rio de Janeiro e um quinto vinham de regiòes mais afastadas e de Portugal. O Recife, durante esses anos e pirncipalmente depois de 1850, quando a faculdade para là foi transferida, passou a servir como ponto de difusào de inova§ào intelectual (Cowell 1975, 51). Dentro do processo de urbaniza?ào, há determinados aspectos aqui que tèm grande significado para o desenvolvimento lingüístico que vamos desta-

15

Vários dos textos publicados na coletánea «Um tempo do Recife», publicada pelo Arquivo Público Estadual de Pernambuco (1978), referem-se ao papel da Faculdade de Direito no desenvolvimento e cultivo da vida cultural local; para a historia da Faculdade, veja-se Bevilaqua (1977).

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car. Um primeiro refere-se às transformaçôes físicas por que passa o espaço urbano, quando se criam ou se ampliam as possibilidades para que o contato e a interaçâo entre os individuos possam se dar. Um segundo refere-se à transformaçâo da vida social, mormente naquilo que diz respeito à transformaçâo de hábitos muitas vezes associados à vida rural, na direçâo de outros associados à vida cultural, comodidade e renovaçâo de idéias. No primeiro caso, por exemplo, a mera medida de abertura de estradas representa a possibilidade de aproximaçâo de populaçôes fisicamente afastadas ou de surgimento de novas comunidades, que ampliam ou alteram a configuraçâo de urna determinada variedade lingüística; a criaçâo de novos logradouros públicos - como foi no Recife a construçâo do cais do colégio- ou a dinamizaçâo de determinados espaços urbanos, que passam a ser pontos de referência para que a interaçâo possa existir - como no caso da ponte da Boa Vista - favorecem o desenvolvimento da vida social e permitem a realizaçâo da conversaçâo. No segundo, o contato com outras naçôes européias possibilitou aos brasileiros da primeira metade do século XIX a renovaçâo de idéias e aquisiçâo de certos hábitos já comuns a muitas daquelas naçôes, como a freqiiência a teatros e a aprendizagem de linguas estrangeiras, alterando qualitativamente os padrôes da vida social e ampliando substancialmente os interesses, objetivos e conteúdos das interaçôes lingüísticas. 16 Quando se pretende discutir e entender como se constituiu urna determinda variedade urbana, deve-se partir do pressuposto básico de que é preciso que exista um centro urbano, que por diversos aspectos, se distingue do rural. O processo, portante, de emergência de um centro urbano, é paralelo ao processo de constituiçâo de urna norma lingüística, que representa ou é resultado de urna série de fatores, que passaram a se configurar no momento dessa constituiçâo. Com relaçâo ao árabe, por exemplo, para se entender melhor o que estamos discutindo, percebe-se claramente como o processo de urbanizaçâo tem correlaçôes imediatas com a emergência de variedades urbanas de prestigio, como é o caso do Cairo e de Damasco, onde se fala um standard regional daquela lingua. No Jordâo, escreve Abd-el-Jawad (1986, 53), os falantes nâo dispunham de formas lingüísticamente sofisticadas do árabe. Somente com o crescimento das cidades, no final dos anos quarenta do século XX, sobretudo com o aumento populacional em face da migraçâo de populaçôes rurais e beduínas, começam ñas cidades jordanianas a emergir dialetos urbanos, num típico processo de «urbanizaçâo lingüística». Em razâo de fatores sociais e culturáis, emergem dentro desse quadro de urbanizaçâo

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Sobre os fatores que promovem urbanizaçâo da vida de migrantes rurais numa perspectiva moderna, Bortoni/Guimarâes (1988, 25) escrevem: «O acesso dos migrantes rurais à cultura urbana é também agilizado por muitos canais, dentre os quais a escola desempenha relevante papel. Outros veículos que promovem a urbanizaçâo sâo a exposiçâo aos meios de comunicaçâo, participaçâo nos eventos urbanos, mobilidade geográfica nos limites da cidade e participaçâo em associaçôes religiosas e voluntárias.» Fica claro que alguns desses fatores já estavam presentes no período em estudo.

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lingüistica processos competitivos de estandardizado lingüística, em que a variedade em surgimento se baseia na variedade standard nos componentes fonológico e lexical e observa-se também um fenòmemo de «beduinizagáo lingüística», ou seja, a retendo ou adoijào de traaos dos dialetos beduinos na configurad 0 dessa nova realidade lingüística. Retomando a nossa hipótese, explicitada no capítulo anterior, sobre a paulatina criado de condi§òes de intera?ào e intercomunicado entre p o p u l a r e s fisica e socialmente ¡soladas para o desenvolvimento da lingua portuguesa falada no Brasil, o papel desempenhado pela urbanizad 0 física dos centros urbanos brasileiros foi um componente de fundamental importáncia para a c r i a d 0 daquelas condÌ5òes. Um fato aparentemente desimportante dentro desse contexto, mas que revela um potencial explicativo muito interessante para o desenvolvimento lingüístico aqui estudado é o da construd 0 de estradas ou de locáis adequados à interad 0 social e portante à pràtica do diálogo. Isso mostra como o aperfeÌ5oamento das condi^es físicas de urna dada comunidade implica ou possibilità a ampliado da vida social. Um exemplo esclarecedor do que afirmamos é o caso de Ramallah, às margens do rio Jordào. Ali a urbanizado física levou a efeito a urbanizad 0 lingüística, em face da necessidade do desenvolvimento de transportes e dos canais de comunicado, quando seus habitantes emigraram para o lado oeste do rio Jordào e entraram em contato com habitantes de cidades adjacentes (Cadora 1970,16). Inspirado em exemplos como estes aqui citados, podemos compreender como o fenomeno da urbanizado física contribuiu para o processo de emergencia de urna variedade urbana brasileira. Dessa forma, analisemos alguns aspectos do desenvolvimento fisico da cidade do Recife e suas i m p l i c a r e s para as condÌ95es de intercomunicado e interado com efeitos naturalmente sobre a constituido de novos usos lingüísticos. Esse processo come£a já no governo de Luis do Rego 17 por volta de 1818 e se amplia com o Barào da Boa-Vista 18 a partir de 1837. Depois de 1840, com a contratado do engenheiro francés Louis de Vauthier, eie ganha impulso, transformando-se muito do que era lembran?a da vida acanhada dos primeiros anos do século. Esse discípulo da escola politécnica de Paris come5ara dirigindo urna sèrie de obras, como o futuro liceu19 e a proje^ào de um novo teatro,20 entre outras. Para o engenheiro francés, a execu?ao de um sistema de comunicares era fator fundamental para o desenvolvimento do tecido social, segundo se depreende de seu relatório21 de 1843. Por isso, estava nos

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Luís do Rego Barreto (1778-1840). Francisco do Rego Barros (1802-1870). Cognominado «Barâo ou Conde da BoaVista», govemou a provincia de Pernambuco entre 1837-1844. Trata-se do Liceu Pernambucano, hoje Ginásio Pernambucano, fundado em 1825 (Montenegro 1979). Trata-se do Teatro Santa Isabel, inaugurado em 1850. Freyre (1940) escreveu um importante ensaio sobre a influência francesa no Brasil, apoiando-se no referido relatório.

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seus planos considerar Pernambuco em suas relagòes com todas as partes do Impèrio, a nivel regional e nacional, tendo em vista o problema da comunicagao. Dai a sua preocupagào em abrir estradas que permitissem ligar as diferentes partes do todo social. Dentro do seu projeto estava clara a necessidade de maior difusao das luzes e relagoes mais freqüentes entre os homens. Um dos instrumentos para se alcanzar esse fim era a viagáo férrea, que Vauthier chegou a discutir, apontando o seu valor para a harmonia e o acordo pacífico entre as provincias (Freyre 1 9 4 0 , 1 1 7 - 1 7 4 ) . Por isso, a mera urbanizado física tinha um forte componente de intengao social, manifestada no interesse por um sistema de comunicagoes, que naturalmente se daria via linguagem. Para se ter urna idéia do lento processo de interagào favorecido pelas condigoes físicas em Pernambuco, basta citar o fato de que a primeira estrada de ligagào com o interior do estado é construida somente em 1834. O Impèrio ainda conservava os caminhos dos tempos colonias. Nada tinha sido feito até entào para tornar mais fáceis e rápidas as comunicagoes. Em seguida vem a ligagào do Sul do estado com a capital, em face das necessidades de transporte do agúcar, que nao podia se utilizar de vias fluviais para alcanzar o mar e, conseqüentemente, o porto. Em vista disso se construiu urna estrada que ligava aquela regiao salpicada de casas-grandes, engenhos, vilas e povoagóes com o Recife (Freyre 1940, 174-178). Com Luís do Regó, que assumiu o governo da provincia em 1817, depois da revolugào republicana de Pernambuco, projetou-se uma estrada em linha reta desde o bairro da Boa Vista até a cidade de Olinda com largura considerável em relagào aos caminhos anteriormente existentes. Com uma instrugáo de 1818, este governo encarregou um engenheiro que, derrabando cercas e retalhando sitios, ia construindo algumas estradas e alargando outras, fazendo desaparecer os velhos caminhos estreitos e tortuosos de outrora. Esse impulso dado ao desenvolvimento físico da cidade foi interrompido entre 1821, quando saiu Luís do Regó, e 1829, em face das agitagoes políticas que dominaram a provincia. Só a partir de 1830, voltou-se a tratar dos melhoramentos das estradas e agora de um forma mais efetiva, visando atender aos interesses da agricultura, o que outrora deixara isolados da capital os centros produtores, pois no conjunto as obras daquele governo nesse setor nào iriam mais que uma légua além da capital (Costa 1984, 14-38). A construgào de estradas, portante, vai ser fator muito importante para expansao urbana e para integragáo da populagáo. Por exemplo, os sitios e chácaras que no século XVIII surgiram às margens dos rios vao ser ocupados permanentemente por setores da populagáo, impulsionados pelo acesso das estradas agora existentes. Um exemplo dessa expansao é o bairro da Capunga, onde pela metade do século XIX já havia uma certa intensidade de vida urbana, sendo o bairro servido por ónibus - puxado por animais - diariamente (Mello 1992). Por volta de 1839, as estradas da provincia já tinham se estendido ñas várias diregoes, mas em 1848 elas ainda nào tinham realizado a revolugào económica e social, idealizada pelo engenheiro francés, pois poucos eram os engenhos que se podiam utilizar délas, que também ainda nào ligavam o interior a um centro 90

consumidor considerável (Freyre 1940, 176) Dessa forma, somente com a c o n s t r i ñ o de canais para contato entre popula95es ¡soladas é que se poderiam criar condifSes para as rela?5es interativas e comunicativas. Pelo que se le aqui até agora a construyo de estradas para permitr o transporte mais rápido foi sempre algo muito moroso, como morosas eram as viagens para áreas mais distantes. Somente depois de Vauthier é que as coisas come?am a mudar, e isso depois de 1840. Dai terem persisitdo até o século XIX meios de transporte utilizados ainda nos séculos XVI e XVII e dadas as condi§òes dos caminhos, era verdadeira aventura viajar a cavalo. Assim, sào comuns ainda no século XIX: o palanquim asiático, a rede indígena em ombros de negros e também o carro de bois (Freyre 1940, 187). O trabalho de construyo de estradas dinamizado pelo francés aproximou do Recife áreas distantes, tornando-as bairros da cidade, onde as familias iam passar festas e tomar banho de rio; além do mais, outras áreas foram mais facilmente integradas, tirando-as do isolamento secular em que se encontravam (Freyre 1940, 188). Há ainda que destacar no governo de Luis do Regó os melhoramentos do Porto do Recife, obra fundamental para o crescimento e desenvolvimento da cidade. Com a abertura dos portos, decretada pelo Rei D. Joào VI, ao chegar ao Brasil, o Recife recebeu grande beneficio pelo crescente significado que passou a ter, o que favoreceu seu crescimento como centro regional. Essa medida possibilitou também a dinamizagào da vida social na medida em que o Recife passou a receber artistas europeus, difundindo as luzes do século, que se iniciava com novas perspectivas. Esses artistas abriram as suas oficinas como marceneiros e torneiros nos bairros da cidade, propiciando a difusào de novas técnicas de trabalho à populado local, notadamente mulatos, que no futuro váo desfrutar do aprendizado que com esses artistas tiveram. (Costa 1984, 75-103). Em 1825 o Presidente da provincia se empenha em contratar um engenheiro na Europa para melhoramentos do porto por causa da falta de pessoa adequada para a tarefa. Um ano depois chega da Alemanha urna companhia de oficiáis mecánicos e trabalhadores para se encarregarem de urna sèrie de obras urbanas num verdadeiro processo de europeizado e moderniz a d o do Recife (Freyre 1940, 96-99). Outra realiza9ào de natureza física com efeitos importantes para a promo§ào da interagao entre individuos e classes sociais foi a inaugurafào da ilumin a d o pública22 em 1822 (Costa 1984, 358-359). Isso possiblitou a ampliad o das reuniòes sociais na vida noturna. Na medida em que a rúa passa a ser ocupada pela pequeña burguesia, a vida pública ganha impulso agora favorecida pelo hábito de conversar à noite na rúa ou na ponte como revela a crònica «as palestras da ponte da Boa Vista», já em 1837, publicada por O Carapuceiro, onde se le: «A Ponte da Boa-Vista todas as noites, mormente de

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Sobre o papel da iluminafáo pública dentro da urbanizado, veja-se Bouman ( 1987).

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luar, he um theatro talvez mais divertido, do que o chamado theatro publico.»23 Sobre a interaçâo nos espaços urbanos num contexto histórico onde as relaçôes sociais se transformam, pode-se 1er no mesmo artigo a sátira em relaçâo à reuniâo de «individuos de todo o lote, desd'o honesto, e sisudo cidadaô até o mais completo, e rematado peralvilho», que se reúnem para falar da vida alheia. Também noutro artigo sobre «o novo caes do Colègio»24 classificado de «único passeio público», se satiriza o argumento dos homens, que, tomando o cais por pretexto, procuram justificar a demorada volta para casa. Isso significa que a construçâo desse espaço público deve ter alterado o hábito de se demorar até mais tarde na rua em conversa com amigos e conhecidos. Por fim deve-se destacar a elevaçâo do Recife à condiçâo de cidade. Esse ato revela já o quanto ele havia evoluído em recursos, riqueza, importancia, favorecido pela posiçâo geográfica. Isso se deu em 1823, depois de longos anos de espera, pois - sem contar com o conflito de 1710, quando os mascates quiseram elevá-lo à força a essa condiçâo - já em 1750, por pedido da cámara do Senado dirigido a El-Rei D. José I, essa solicitaçâo já houvera sido feita (Costa 1984, 485-486). 25 3.2.2

A urbanizaçâo da vida social recifense

Quanto à urbanizaçâo da vida social, é nítida a diferença que o Recife passa a apresentar no correr da primeira metade dos século XIX. A vida privada, quase estritamente familiar e socialmente recatada nos primeiros anos, era a tònica. A partir do Conde da Boa Vista, o teatro passa a ter um significado importante para aquela sociedade, por influência francesa, já que a sua formaçâo houvera sido na França entre 1 8 2 3 6 1 8 2 5 . Isso redunda em outras ampliaçôes da vida social com a realizaçâo de festas. Dessa forma, a influência francesa teve efeito também lingüístico, na medida em que o interesse pela lingua francesa no Brasil cresceu, como se depreende do aparecimento de um anuncio num jornal local sobre urna certa Madame Théberge, recém-chegada de Paris, com o objetivo de fundar um colégio francés para meninas e moças do Recife

23 24 25

Cf. O Carapuceiro (1983), vol. 1, 2 7 . 0 5 . 1 8 3 7 , n ° i 2 , p. 1. Cf. O Carapuceiro (1983), vol. 3, 9 . 1 1 . 1 8 3 9 , n° 50, p. 4. Mesmo durante boa parte do período aqui comentado, o Recife ainda possuía o «status» político de vila, o que é aparentemente urna contradiçâo em relaçâo ao seu desenvolvimento urbano. Mas esse fato tem sua explicaçâo, cf. Zancheti (s.d., 2): « A política portuguesa estabelecia padrôes rígidos quanto à atribuiçâo do de povoado, vila ou cidade a qualquer aglomeraçâo humana da colònia. Em gérai, as motivaçôes políticas preponderavam sobre todas outras, inclusive as económicas. A fundaçâo de uma cidade, ou atribuiçâo deste título a alguma vila, e mesmo povoado, devia estar de acordo com os propósitos de ocupaçâo e dominaçâo do territòrio pelo governo metropolitano. Esta alitude, por parte da administraçâo colonial, explica o fato de, por exemplo, Recife, metrópole indiscutível do Nordeste, só alcançar a categoria de cidade após a Independencia.»

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(Freyre 1940,41). Tudo isso nos permite associar a urbanizagao da vida social com o «afrancesamento» da sociedade. A modernizado lingüística que ocorre nesse momento nào seria também reflexo desse afrancesamento, desde a popularizado da caligrafía francesa até outras influencias, tais como a ordem e a construgáo sintética ou certos itens e expressòes lexicais, muitos dos quais classificados de «vicios», especificamente «galicismos», pelas gramáticas tradicionais? Tomando-se como ponto de partida a influencia francesa já em Portugal no século XVIII, uma historia da «galicizagào» do portugués brasileiro poderia trazer aspectos interessantes de um tema até agora quase completamente esquecido.26 Podemos, por outro lado, destacar os acontecimentos no plano da educagao, comunicagào, cultura e diversào como índices do processo de urbanizagao que produzem uma diferenciagào qualitativa na vida social recifense. Dentro deles, destacaríamos o papel da educagào e o desenvolvimento da imprensa. Quanto ao primeiro, desde o movimento de promogào da lingua portuguesa, que comegara no século XVIII com o marqués de Pombal com o objetivo de garantir a formagao de pessoal mais especializado para fungoes administrativas, tivemos no século XIX urna continuagào daquelas idéias iluministas que em Pernambuco tiveram um efeito profundo via educagào. Os estatutos do Seminàrio de Olinda e do educandário de mogas, ambos criados pelo bispo Azeredo Coutinho,27 tocaram na questao lingüística de forma incisiva, quando o autor se propunha corrigir certos fenómenos nitidamente rurais em espagos urbanos. A fundagáo do Liceu Pernambucano28 em 1825 e a instalagào da faculdade de Direito em Olinda em 1827 apontam para uma alteragào qualitativa na formagao das elites intelectuais, criando certos ideáis de formagao cultural que antes nao existiam.29 Quanto ao segundo, a imprensa possibilitou um contato cada vez maior com a lingua escrita, porque os jomáis comegaram a se popularizar ao representarem o canal mais requisitado para a propaganda política, para a divulgagào dos negocios comerciáis e para a comunicagào de uma sèrie de outras

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A influencia francesa sobre a língua portuguesa foi sempre vista numa perspectiva negativa, motivada pela visáo purista, a servido portanto de uma c o n c e p t o prescritivista do ensino da gramática. Dada a forte influéncia francesa no Brasil no século X I X , exatamente num momento em que o ensino da língua portuguesa crescia como componente dos currículos escolares, os manuais de gramática reuniram uma série de fenómenos em diferentes níveis da gramática como «galicismos», que portanto deveriam ser evitados. A existencia desses fenómenos em si aponta para uma certa tradÍ9áo se estabelecendo na língua escrita. O escritor Machado de Assis (1994), no ano de 1889, já deleitava os leitores com crónicas sobre o problema num tom claramente irónico.

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Azeredo Coutinho ( 1 7 4 3 - 1 8 2 1 ) . Veja-se Montenegro (1979). Sobre o papel da Faculdade de Direito do Recife na irradia9áo do pensamento nordestino, v. Pereira (1978).

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necessidades, que até entào só possuíam o canal da transmissào oral. Dessa forma, com a complexifica?ào da sociedade e o aumento da populado tornase necessària a utilizado do jornal. O estabelecimento definitivo de tipografías, a partir de 1821, vai contribuir para a circulado de idéias e permitir a troca de informales, possibilitando urna certa aproximado dos individuos, na medida em que o povo passa a ter acesso à produco de anuncios, que estimulam o comércio e o contato entre os membros da comunidade, percebendo-se nitidamente como as redes sociais se tornam menos densas. Além disso, a mais intensa circuiamo da palavra escrita altera significativamente os padroes de urna sociedade orientada para o rural, onde a oralidade tinha papel preponderante e onde a partir de entào se promovem idéias de lingua escrita para maiores setores da populagao. Particularmente em Pernambuco em 1817, se exercera um primeiro impacto na popula?áo na medida em que a revolugao republicana daquele ano se utilizou muito da tipografia para fazer circularem as proclamares. 30 Mas em 1821, com a Aurora Pemambucana, primeiro jornal ali publicado, comega urna fase efetiva e crescente do papel da imprensa na vida da sociedade. O jornal ampliou a possibilidade de contato de largas faixas da popuìagào com a lingua escrita, o que antes só era feito praticamente através de cartas, com todas as dificuldades que os correios na época apresentavam. Os anuncios publicados entào refletem o acesso que as populares analfabetas e semi-analfabetas passam ter ao jornal, seja escrevendo como podiam, seja ditando para que outras pessoas escrevessem, seja reproduzindo os pregòes de escravos na venda de variados produtos. O esforzó que fazem essas populares para manuseio daquele instrumento de altissimo significado cultural para urna sociedade com alto percentual de analfabetos possibilità que oralidade e escrita se confronten! e produzam a constituido de novos usos, indicadores do processo de modernizado e constituido de urna nova realidade cultural urbana. Além da difusao da palavra escrita, cresce a necessidade de espetáculos mais sofisticados, estimulando-se a construgao de um teatro a partir de 1839 em substituido ao antigo teatro popular - que a partir de 1850 vai oferecer ao público a oportunidade de ampliado dos horizontes culturáis principalmente com a visita de companhias européias. Por fim, o crescimento do prestigio dos bailes, no plano do lazer, vai contribuir para o fim da vida isolada, permitindo o contato maior entre individuos. Através desse tipo de movimentalo da vida urbana, a mulher pode projetar-se na vida social numa época em que também eram criadas sociedades com diferentes fins, inspiradas em modelos franceses, dinamizando-se também a vida da cidade e permitindo maior interagào ñas relafòes sociais. Com relagào à mudanza de hábitos sociais por volta de 1817, Tollenare, comerciante francés que esteve no Recife naprimei-

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«O Preciso de José Luiz de Mendon§a, a pastoral dos governadores do bispado e urna proclamafao aos habitantes do Ceará foram as primeiras produgóes revolucionarias dessa Tipografía (...).» (Lima 1969, 326).

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ra metade do século XIX, fala da ado$ào de costumes europeus pelos brasileiros. Aquele visitante do Recife refere-se ao abandono por parte dos jovens de certas formas de diversào porque já nào sào mais moda na Europa (Lima 1904b, 448).31 Em 1844, o jornal O Guarda NacionaP2 critica os novos hábitos da sociedade, lamentando a falta da tradicional educa?ao religiosa e civil. Dentre os novos hábitos, refere o «falar mal da vida alheia» e «empregar de continuo termos empolados». Dois aspectos que tocam diretamente o uso da lingua portuguesa. Primeiramente, «o falar mal da vida alheia» ganha evidencia porque agora há mais contato entre as pessoas e elas já se encontram em determinados pontos tornados possíveis pela urbaniza5§o fisica da cidade. O «empregar termos empolados» revela como a fala coloquial se enriquece ou como um certo vocabulário literário passa a ser dominado por maiores parcelas da popula?ào. 3.2.2.1

A ascensào social do jovem33

Por volta de 1838 com as primeiras gera$5es de hacharéis formados em Olinda e Sào Paulo, urna nova gera§ào cometa a assumir os postos dos velhos políticos da ordem social que c o n c a v a a mudar. E, entretanto, durante o Segundo Reinado, que as novas gera^òes vèm à cena da vida social e política de forma mais sistemática, combinando-se urbanizado, centraliza9ào e pacifica?ào. A partir dai estabelece-se um conflito de geragoes, porque o Brasil jovem que algumas estatísticas, embora precárias, mostravam, cometa a se revelar em vários aspectos da vida cotidiana, denunciando urna nova ordem social e jurídica em pleno momento do declínio do patriarcalismo. Na literatura, na política, na administra9ào, na magistratura e na Igreja se tornam evidentes esse conflito e a substituido dos velhos pelos jovens de vinte e trinta e tantos anos, fenòmeno classificado anos depois de «neocracia».34 Essa nova s i t u a l o de gera?5es é mais perceptível em cidades mais europeizadas como o Rio de Janeiro ou o Recife (Freyre 1968, voi. I, 66-92). Nesse sentido, é sintomático o aparecimento na imprensa recifense35 do «dialogo entre a Ponte da Boa Vista, e o novo caes do Colegio» onde se p5em a conversar os dois

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Com a administrado de Luís do Regó, alude Tollenare á educa^áo da esposa daquele capitao-mor, cuja formaíáo cultural européia certamente contribuiría para a transform a d o dos costumes da sociedade (Lima 1904b, 534). Cf. citado por Girao (1979, 299). Embora estejamos tratando do Recife especificamente neste capítulo, os itens 3.2.2.1, 3.2.2.2 e 3.2.2.3 dizem respeito ao Brasil como um todo, porque nao há fontes específicas para aquela cidade. Como o Recife era urna das mais importantes cidades brasileiras á época, deduz-se que o que era geral para o país entao, também o era para a capital pernambucana. O termo foi cunhado por Joaquim Nabuco para descrever esse fenómeno social. V. Freyre (1968, vol. I, 88). O Carapuceiro (1983), vol. 3, 13.11.1839, n ° 5i> P- I _ 4-

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espaços públicos da cidade, revelando o seu significado para a vida social. Nesse artigo se percebem os efeitos do processo de urbanizaçâo da vida social e alguns fenómenos que caracterizam a sociedade. A i reside o tema da renovaçâo dos hábitos sociais, o confronto entre o novo e o velho, embora com certa ironia. A ponte, construida à época dos holandeses, representa urna etapa anterior, o único ou quase único ponto de encontro entre as pessoas para a conversaçâo; o cais representa a ampliaçâo numa fase mais avançada do processo de urbanizaçâo. Fica clara, pois, a referência ao papel das novas geraçôes: «Ponte - Disse V. S. a verdade, quando disse: que hoje dào as cartas os jovens: com effeito temos o imperio dos jovens; e nâo sei, se he por isso, que vâo tâo bellamente as cousas: porém já vê, meu Sr.,que com a elevaçâo de V. S. devem escacear muito os meus freguezes.» (O Carapuceiro 1983, vol. 3, n° 51, 1-2)

Mas ao mesmo tempo o objetivo principal do texto é praticamente mostrar a substituiçâo da ponte pelo novo cais, ou o ganho de prestigio deste e a perda de prestigio daquela - apesar da ironia - , acompanhados do tipo de público, que busca esse novo espaço de lazer e diversâo, como ambiente onde se dào as interaçôes na renovaçâo da vida social. Dai a alusâo ao conteúdo da conversaçâo, de onde se deduz o que afirmamos: «Ponte- Boa he a minha terra! Menino, quem já lhe ensinou tanta cousa? Mr. Boyer felo caladinho; entre tanto V.S. já falla, que parece um Doutor. Ouviria tudo isto da gente, que o frequenta? Bem lastimo eu a minha sorte. Quem mais quererá saber da velha Ponte da Boa vista, tendo o Sr. Caes do Colegio que he hum joven táo instruido, e noticioso? Que ainda ontem nasceo, e já parece hum sabio de primeira ordem?» (O Carapuceiro 1983, vol. 3, n° 51, 2)

Pelos dados estatísticos disponíveis sobre o século XIX, a primeira informaçâo oficial sobre dados etários da populaçâo data de 1872, que apresentava urna populaçâo brasileira muito jovem. Embora nâo sejam disponíveis outras fontes seguras e gérais sobre a situaçâo nos primeiros anos daquele século, há entretanto informaçôes sobre taxa de nascimento, mortalidade e migraçâo, forçada ou livre, que permitem fazer algumas inferências sobre a caracterizaçâo etária da populaçâo brasileira. Entre o final do século XVIII e o inicio do século XIX, a populaçâo livre apresenta mais de 40% de seus componentes em idades inferiores a 20 anos, constituindo-se portante como urna populaçâo jovem (Marcflio 1974). Ainda, no século XIX grande parte do crescimento populacional do Brasil se deveu mais ao crescimento naturai do que à imigraçâo, afetando a distribuiçâo etária da populaçâo. Altas taxas de natalidade conduzem a uma situaçâo em que urna percentagem relativamente alta de populaçâo se localiza em faixas etárias muito jovens. No censo de 1872 cerca de um quarto da populaçâo do pais tinha 10 anos ou menos. Leff / Klein (1974, 59-60), com base em dados 96

do primeiro censo oficial, fizeram urna projefào regressiva num total de 75 anos e chegaram a outras c o n s t a t a r e s básicas. Primeiro, as taxas de crescimento populacional eram relativamente altas no Brasil do século XIX; segundo, a maioria desse crescimento populacional foi devido ao crescimento naturai e nao à imigragào (Leff/Klein 1974, 63). O significado desse aspecto etário tem i m p l i c a r e s para se compreender o problema da alternancia geracional a nivel das elites e seu impacto sobre a realidade lingüística local, mas tem também um significado básico para se compreender a rela9ào da popula§ào de urna forma geral com a lingua portuguesa. Tomando em consid e r a l o o conceito de reanálise 36 pelas novas gera?5es, no processo de altera5ào lingüística, pode-se afirmar com seguranza que o periodo que investigamos é deveras sugestivo quanto a isso. Se considerarmos as análises de Marcílio (1974), é possivel entào se admitir que as novas geragóes estavam reanalisando aspectos da lingua portuguesa presumivelmente a nivel fonológico e prosódico com mais incidencia. 3.2.2.2

A eleva?ào social da mulher

Mulher e rúa eram no Brasil Colonia e Impèrio dois conceitos que nao se combinavam. 37 Diferentemente do homem, que diversificadamente ñas cidades brasileiras frequentava as rúas, a mulher sentiu de forma mais nítida os reflexos da sociedade patriarcal rural. Tollenare escreveu sobre os hábitos sociais das mulheres pernambucanas, destacando a maneira tao reclusa em que viviam. Raramente se viam passar senhoras pelas rúas, que só saíam em cadeirinhas ou palanquins asiáticos, nao havendo divertimientos públicos de espèrie alguma e o teatro só abría aos domingos. As rúas só eram freqüentadas por certos escravos e escravas, porque em 1821 anunciava-se para vender escrava «criada som sahir à rúa»; somente na década de 40 daquele século é que se encontram anuncios de escravos para «vender na rúa» (Freyre 1968, voi. 1,47). Além disso, o isolamento característico das regiSes se refletia também na vida interna das casas grandes ou dos sobrados. Quando um senhor de engenho visitava outro, as suas mulheres nao eram vistas, comentou o viajante francés. Ele se hospedou por dois dias na casa de um senhor de engenho e nào viu a familia nem na sala, nem à mesa. A senhora, embora tendo-lhe preparado um lanche, nào foi vista também, e fato semelhante lhe houvera ocorrido na casa de um lisboeta perto do Recife (Lima 1904a, 407). Quando visitou alguma casa, teve contato apenas com o patriarca e das mulheres percebeu apenas vestigios como certos instrumentos de trabalho doméstico. Também Koster (1978) observou fatos semelhantes.

36 37

Para o conceito de reanálise, v. Hopper/Traugott ( 1 9 9 3 , 4 0 - 5 6 ) . Para o papel da mulher na sociedade colonial brasileira, v. Russell-Wood ( 1 9 7 7 ) e Monteiro (1981).

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A o que tudo indica a mulher, confinada nos lares ou nos conventos,38 comegou a sair desse enclausuramento e passar à vida pública na passagem do século XVIII ao XIX. Naturalmente favorecida pelo processo de urbanizado, com o afrancesamento da vida social e com o aparecimento das «societés». Nos meados do séculos XIX, com o prestigio que a rúa passa a adquirir, a mulher de certa origem social mais privilegiada passa a freqüentá-la preponderantemente no Rio de Janeiro, num momento em que o teatro e o baile passam a fazer parte da vida social. Essa nova situado, pois, proporcionou urna vida institucional, onde a Igreja, o Governo, o banco, o colégio, a fábrica, a oficina, a loja foram fazendo diminuir o prestigio da casa-grande, representativa da sociedade escravocrática, e fazendo surgir outras figuras masculinas - o padre, o presidente de provincia, o mestre-régio, o correspondente comercial, etc. - , que foram substituindo o poder do pater-familias. Desse novo quadro institucional emerge urna mulher que pouco a pouco se liberta do patriarcalismo (Freyre 1968, voi. I, 122). Já pelo final da primeira metade do século XIX publicam-se muitos jornais cujo objetivo era enaltecer a figura da mulher, ou seja, dirigidos à mulher propriamente. Em 1837 aparece no Recife o «Relator de Novellas» - publicad o destinada a entreter principalmente as mais assíduas leitoras de novelas, de quem esperava toda a p r o t e s o (Nascimento 1969, 158).39 De qualquer maneira esse fenòmeno revela a participado da mulher na nova sociedade ou a sua saida do ambiente estritamente familiar. 3.2.2.3

Ascensào social de mulatos e formado de urna classe mèdia

Tomando-se por base as cidades costeiras brasileiras, por onde a colonizado come^ara e portante onde a mào-de-obra escrava fora largamente usada considerando-se ainda essa mào-de-obra na regiào das Minas Gerais, onde como vimos foi significativa a importado de escravos por todo o século XVIII - a presenta de negros e seus descendentes representou um percentual sempre crescente na c o m p o s i t o étnica da populado. À medida que diminuí a imigragào portuguesa, naturalmente que esses individuos passam a ser maioria da populado. Por outro lado, com o declínio da populado escrava, que com o firn do tráfico diminui sensivelmente, cresce o número de mulatos face às novas relagòes que necessariamente tiveram de se estabelecer. Diégues (1959, n i ) , um dos estudiosos do tema, afirma que o crescimento dos elementos mestizos (considerando os descendentes de negros ou de indios) passou a exercer um papel considerável no desenvolvimento demográfico com repercussáo na ordem econòmica e social.

38 39

Sobre o papel social e económico dos conventos no Brasil, v. Soeiro (1974). Martins (1977/78, vol. II, 399) cita cinco jomáis pernambucanos aparecidos no ano de 1849, acrescentando que esse fenómeno apontava para a consolidafáo de um público feminino no mundo da palavra escrita. Sao eles: a Aurora, o Beija-Flor, o Brinco das Damas, o Recreio das Belas e A Violeta.

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Embora deva ser tratado com bastante cautela, o tema da ascensào social no Brasil refere-se diretamente ao descendente de escravo,40 aquele portanto mais socialmente estigmatizado. Para se compreender, entao, o papel da liberdade do mulato na sociedade brasileira, devem-se analisar os números de crescimento, mobilidade ocupacional e i n t e g r a f o dessa popula5ào na sociedade (Klein 1969, 30). A firn de se compreender com mais clareza o problema, devemos antes análisá-lo sob a perspectiva dos mecanismos de libertad o . Para a liberta9ào urna das possibilidades era a compra da liberdade à vista, o que acontecia, por certo, com escravos de ganho,41 que economizando e depositando em màos fiéis, tinham possibilidades de fazè-lo. Alguns como era a màe que garantía a liberdade do filho, pois sendo eia livre, este também o seria - usavam o dinheiro para a liberdade dela, e assim poderiam garantir a liberdade de sua posteridade, segundo informes de Tollenare (Lima 1904b, 455). Como muitos escravos e mulatos livres eram artesaos, podiam mais facilmente comprar a sua liberdade e o dominio que exerciam nessas profissòes facilitava o acesso a outras que lhes eram proibidas por leis. Já em 1732 em Pemambuco se vé o Juiz de paz reclamando contra o exercício de certas profissòes como ourives, por estarem nas màos na sua maioria de escravos e mulatos (Klein 1969, 43). Quanto aos números, por volta da metade do século XIX, embora nào tenha existido censo oficial, cerca de 40% a 60% de negros ou seus descendentes eram livres, o que atinge no censo de 1870 a cifra de 74%. Sao números absolutamente maiores se comparados com Cuba, que possuía apenas 35% em 1861 e com os Estados Unidos, onde havia entre livres e escravos apenas 11 % pela mesma época. Por esses dados pode-se perceber o papel que os mulatos livres desempenharam no Brasil antes da abolÌ9ào da escravatura (Klein 1969, 36-41). A s principáis cidades do Brasil na primeira do século XIX já tinham absorvido enormes contingentes de negros livres muito antes da imigra§áo européia e continuaram absorvendo no tempo de sua expansào. Sobretudo no Recife, Rio de Janeiro e Salvador, antes da abolido, urna ou mais geragSes de negros - metade ou dois tercos deles - já tinham alcan?ado a liberdade e por isso devem ter experimentado algum tipo de mobilidade (Klein 1969, 51). No tocante aos canais de ascensào de mulatos naquela sociedade, o que se traduz na mobilidade ocupacional e integra?ào na sociedade, há que se destacar a carreira militar e a medicina. Já no século XVIII a participasào de mulatos na vida militar é um fato. O crescimento das unidades de mulatos e negros livres tinha chegado a tamanho tào importante, que estes eram divididos em determinadas fun£òes mais especializadas. Pelos censos militares da metade e firn daquele século, eles já tinham se expandido a quase todas áreas da colònia

40 41

Pierson (1947) dedicou um artigo ao tema. Escravos que negociavam mercadorias na rúa e traziam o dinheiro ganho para o seu dono.

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(Klein 1969,32). Koster, vivendo no Recife em 1810, notou que nos regimentos de mulatos militares os oficiáis eram homens de propriedade. Entre os militares brancos, mulatos claros também tornavam-se oficiáis (Klein 1969, 33). Na medicina, pela falta de médicos e das respectivas faculdades no final do século X V m , a maioria dos barbeiros-cirurgiôes eram negros ou mulatos, sendo reconhecida a superior qualidade deles pelo pròprio Governador da Bahia em relaçâo aos doutores formados em Coimbra, solicitando assim à Coroa a continuaçâo de tais individuos no exercício desta pràtica (Klein 1969,

49)-

Com o prestigio das cidades, a elevaçâo social de homens livres se deu sobretudo via título de bacharel ou médico, ai incluindo-se os mulatos. Foi dessa elite que o movimento de aboliçâo da escravidâo ganhou a necessària força. Tavares (1969, 300-301), citando Tollenare, ao comentar o sentimento de igualdade reinante em Pernambuco durante a revoluçâo de 1817, o atribuí à existência de numerosos negros e mulatos livres, habilitados no exercício de artes mecánicas e profissôes, tais como a de alfaiate ou sapateiro, muitos possuindo também escravos, nao exercendo contudo o comércio, que estava ñas mâos dos portugueses. Nesse sentido, aqueles individuos ganhavam preponderancia em relaçâo aos brancos ociosos - mean whites - e eram aceitos com urna certa tolerancia. Muitos que eram marceneiros, ferreiros ou funileiros chegaram às vezes à pequeña burguesía (Freyre 1968, vol. I, 179). A este propósito, em O Carapuceiro em 1832, se nota como individuos dessas profissôes se aproximam da leitura, o que parece nao era comum, pela forma como o fato é retratado pelo jornal: «O Alfaiate, em vez de estar em sua loja, cortando pano, e fazendo roupa, traz á corda os freguezes semanas, e semanas; por que vive talhando Governos, gizando Costituiçoes, e alinhavando rasgas: o çapateiro já nao quer saber de couros, e solías; só falla em Gazetas, e nâo há Governo, que nao metta ñas encospias. Pois o Barbeiro, que dá para Publicista! Isso he urna peste; he a nossa Colera morbus. Se o mando chamar para me limpar os queixos, nâo há Reino, de que nâo saiba noticias, nâo há Gabinete, que nâo traga no estojo, nâo há novidade, com que nâo venha, bem prompta, e añada; e se me ha de escanhoar a barba, escanhôa me a (pa)ciencia com Políticas, ou per( )as (...).» (O Carapuceiro 1983, vol. 1, n° 2, 6-7)

Deve-se acrescentar ainda o casamento como um bom indicio de integraçâo na sociedade. Tomando-se em consideraçâo essa instituiçâo social como indicador de mobilidade social e comparando-se a situaçâo de negros com a de mulatos, pode-se dizer que dois terços destes tinham uma melhor posiçâo na sociedade do que aqueles. (Klein 1969,43-44). O casamento de muitos filhos de mecánicos ou mascates42 - individuos com melhor posiçâo social do que

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O casamento foi um dos importantes mecanismos para a ascensâo social também de europeus. Tais individuos imigrados da baixa ou pequeña burguesía aspiravam a se

IOO

os descendentes de escravos - com negras e mulatas se tornou mais freqüente no século XIX. Já no final do século muitos líderes da República - que galgaram os altos postos do poder político - foram filhos de homens «bem-nascidos» com suas belas escravas (Freyre 1968, vol. I, 89). Os mesti?os de um modo geral também exerceram um papel importante na independéncia. Toda a produ?áo escrita literária e científica brasileira foi obra deles.43 Depois da independéncia, conta Armitage, muitos mulatos foram admitidos em cargos mais elevados no Estado.44 Mulatos que nasciam livres ou eram libertados pelos pais tinham oportunidade de crescer económica e socialmente, como o poeta Luis Gama,45 da Bahia, o ensaísta Antonio Pedro de Figueiredo,46 fundador da revista literária O Progresso do Recife nos anos 40 do século XIX e o escritor Machado de Assis, 47 já na segunda metade do mesmo século, que sao exemplos mais destacados desse processo de ascensao social discutido (Andrade 1972, 93). Ainda em rela^áo á independencia e participa9áo literária das carnadas inferiores e médias - ai incluidos naturalmente muitos mulatos - Roger Bastide, citado em Cunha (1968, 22-23), o r " ganizou urna estatística sobre a origem dos escritores brasileiros. No período colonial tinha-se a seguinte origem, tomando-se por base a dos pais: a) saídos das classes superiores b) saídos das classes médias c) saídos das classes inferiores

86, 3 % 6, 9 % 6, 8%

A partir da segunda metade do século XVIII, a participa§áo das classes inferiores torna-se significativa, o que representa a preparado da independéncia em 1822 pelos menos a nivel intelectual. No século XIX, em menos de oitenta anos depois da época em que se escolheram os dados apresentados acima e restringindo-se a análise á poesia apenas, apesar da escravidáo - que marginalizou grande parte da populagao humilde - , a participadlo das classes médias e inferiores sobe para 2 6 , 4 % e 36, 8%, respectivamente, enquanto a participafáo das classes superiores baixa para 36, 8%. O autor conjuga para tal resultado as condi?6es da independéncia e o Romantismo. A ascensao social que estamos discutindo reflete sem dúvida a forma^ao de urna classe média no século XIX, onde individuos mestizos tiveram um papel importante. Esta observa9ao deriva do processo de miscigena9áo, á

43 44

45 46 47

tornarem membros da nobreza rural, plantando café. Quer através do casamento, quer pela via militar nos tempos coloniais, ou ao receberem o título de barào ou visconde durante o impèrio, muitos deles conseguiram eleva9áo social. Cf. Amado (1966, «A chave de Salomào», 156). Por exemplo, em posi^oes mais elevadas da esfera política viam-se individuos por cuja fisionomia se entrevia a origem (Armitage 1965, 209). Luís Gama (1830-1882). Antonio Pedro de Figueiredo (1822-1859). Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

IOI

medida que diminuiu o número de escravos proporcionalmente ao crescimento de individuos livres. A medida que a miscigenagào possibilità o surgimento de individuos de origem negra com ascendència branca, resulta, do ponto de vista social, uma nova configuragáo, pois a tais individuos se é permitido penetrar numa nova esfera social, tornando mais complexa a estrutura social (Wagley 1968,159). A introdujo da máquina, por outro lado, veio diminuir a importancia tanto do escravo como do senhor, permitindo que o mulato ou branco pobre assumissem novas fungòes e possibilitando que estes se constituíssem como classe mèdia, que passou também a se compor de mulatos hacharéis, padres, doutores ou portadores de diplomas académicos, por exemplo.*8 Partindo do pressuposto de que esta classe mèdia que se formava era obviamente composta de homens livres, dos quais mais de dois termos eram mulatos, urna primeira e natural inferencia é que o restante déla era formada preponderantemente por brancos. A partir desse quadro se infere também que eia era alimentada por mulatos livres, dado o crescimento desse contingente étnico em face do processo de miscigena?áo. O desenvolvimento de urna classe mèdia que houvera mostrado seus principáis sinais durante a minera^ao cresce de forma nítida. Esta classe radicada na zona urbana - em razào de sua origem no artesanato, no pequeño comércio e na burocracia - passou a ter uma participado mais ativa na vida social. Seu período de participado mais marcante na vida política brasileira foi durante a regencia, entre 1 8 3 1 6 1 8 3 9 , momento de grande conturbado social e de mudanza na composito das elites, sobretudo no acesso à burocracia (Romanelli 1988, 47). As atividades intelectuais serviam entào para elevar os individuos à carnada intermediària, formando pregadores, letrados e eruditos, que aspiravam às profissoes liberáis e aos empregos públicos, alcanzando até mesmo uma determinada esfera das elites (Sodré 1978,36). A ampliado pois da atividade cultural na colonia, já que o jornalismo só foi introduzido no século XIX e a literatura sofreu um movimento de abrasileiramento, permitiu a criagáo de novas condi$oes favoráveis a essa carnada, permitindo a individuos de outros estratos sociais uma chance de ascensào social. A estrutura social da época que nos interessa é portanto mais dinàmica e quando a comparamos com aquela de séculos anteriores - com excedo do que ocorre ñas Minas, quando a carnada intermediària cometa a se esbozar sobressai nitidamente a diferenciado discutida. Para efeito de comparado, reproduzimos uma passagem elucidativa. Manchester ( 1 9 3 1 , 163), citando Capistrano de Abreu, apresenta a seguinte hierarquia da sociedade colonial brasileira, onde se percebe a sua rigidez e a ausencia de qualquer possiblidade de ascensào para individuos dos estratos inferiores:

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Freyre (1968, voi. I, 308; voi. II, 534).

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a) senhor de engenho; b) proprietários rurais, fazendeiros e criadores de gado; c) os portugueses de origem ou nascimento - sem terra, mas livres - , mecánicos e outros trabalhadores; d) escravos, indios, negros livres e seus descendentes.

No topo dessa classifica§ao estào os potentados da sociedade, demonstrando a sua natureza rural. Isto vai contrastar com a estrutura social do século XIX, nitidamente diferenciada pela atividade intelectual, que faz engrossar a camada mèdia, alterando substancialmente o perfil de urna estrutura social secular, pela possibilidade de ascensào social de individuos dos estratos inferiores com reflexos sobre a c o n f i g u r a l o sociolingüística brasileira. O que parece representar uma carnada mèdia na estrutura acima esbozada é o conjunto de portugueses ligados a algumas atividades nào-intelectuais através das quais muitos individuos se elevaram socialmente, já na economia do ouro, no século XVin, como se viu; no século XIX, essa e l e v a l o vai se dar preponderantemente através do jornalismo, da burocracia, das faculdades de Direito e de Medicina. Assim, uma nova caracteriza§ào social e étnica com o embriào de classe mèdia cometa, pois, a se esbozar durante século XVIII; no século XIX, a carnada representada em c avoluma-se, diversifica-se, sobretudo com a ascensào de elementos de d.

3.3 3.3. i

O extralinguistico e o lingüístico Migra?ào e contato lingüístico

O século XVIII brasileiro è marcado pela imigra^ào portuguesa. Esta imigra9ào pode ser considerada como um dos fatores mais importantes da caracteriz a d o do portugués brasileiro de uma forma geral. O fracasso económico de Portugal e a descoberta do ouro no Brasil sao responsáveis por esse movimento populacional. Pernambuco, porque se constituiu como centro abastecedor da regiào do ouro, em razào da c r i a d o de gado bovino e caprino como alternativa à cana-de-a?úcar, foi também pòlo de recebimento de levas de portugueses, que ali se estabeleceram como comerciantes, seguindo urna t r a d i d o que vinha desde a expulsào dos holandeses. Mas quando se leva em conta a f o r m a d o dos centros urbanos, que de uma forma geral se intensificam no século XIX, dois tipos de migra?ào devem ser considerados. Em primeiro lugar, uma m i g r a l o campo-cidade e, em segundo lugar, uma intensificado de imigragao de portugueses. No caso do Recife, esses dois tipos de m i g r a l o foram fundamentáis para a constituido de uma variedade lingüística urbana local. Quanto à i m i g r a d o portuguesa, embora nao existam dados suficientes em face da falta de maiores i n f o r m a l e s , os jomáis da época revelam como

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significativa eia foi depois de 185o.49 Esse aumento de transferencia de portugueses aliado ao fím do tráfico de escravos vai favorecer sobremaneira urna certa nivela?ào lingüística no Brasil. Partindo do pressuposto de que a maioria da popula§áo dominava urna variedade de natureza rural, a convergencia daqueles dois fluxos populacionais favoreceu um nivelamento na direfào de um portugués com tragos urbanos, baseando-se na variedade européia. O respectivo volume de m i g r a l o na dire§ào de um determinado centro urbano representa um dos índices mais utilizados para se depreender o grau de urbanizagào de urna dada sociedade. Isso significa que para ali afluem populares com alguma variedade cultural e com tragos lingüísticos específicos, que passam a se fundir à medida que as popula§5es em contato passam a se acomodar aos novos padrSes de comportamento que váo se estabelecendo. Nesse sentido, o papel da migragào para o Recife entre o final do século XVIII e a primeira metade do século seguinte é significativamente elucidativo para o que se constituí como novo naquela sociedade. Para se compreender isso pode-se lanzar mào do traballio de Cowell (1975). Segundo esse autor, entre o ano da abertura dos portos (1808) e a independencia brasileira (1822), as taxas de crescimento da popula§ao do Recife quase dobraram em relagào a décadas anteriores, em face do crescimento da economia de exportagào, nos níveis do auge da produgào agucareira. Comparativamente às taxas modestas do século XVIII, este crescimento aponta para um processo de urbanizado. Nesse período o Recife se constituí como a terceira cidade em importancia no Brasil, depois do Rio de Janeiro e Salvador. A diferencia no crescimento populacional da cidade na comparagáo dos dois séculos exige urna explicagao. Um crescimento populacional de 2% ao ano nao poderia ter provindo de crescimento natural, dadas as altas taxas de mortalidade e os baixos índices de nascimento em comparagáo aos números da zona rural, argumenta o autor. Além do mais, prossegue, o índice de crescimento natural era de apenas o, 4% ou menos, o que deixa claro que o restante, ou seja, 1, 6% só pode ser atribuido à migragao.5" Cowell (1975) também comparou a migragao interna e observou que no fim do período colonial (1822) cerca de 13% a 14% da populagào tinham origem em outros estados da regiào, dentro da esfera de influencia de Pernambuco. À medida que o tempo passa no século XIX essa proporgào vai subindo significativamente de modo que ao final daquele século essa migra-

49

50

Segundo Serráo ( 1 9 7 6 , 86) teriam emigrado para o Brasil, legalmente, cerca de 665.000 portugueses entre 1 8 5 5 e 1900. A aparente contradi§áo entre os dados de Leff/Klein (1974), Marcílio ( 1 9 7 4 ) e Cowell ( 1 9 7 5 ) se deve, provavelmente, ao fato de que enquanto Cowell observou o Recife isoladamente, os outros tomaram o Brasil de um modo geral. Duas outras razoes podem ser acrescidas aínda. Primeiro, os dados do censo de 1 8 7 2 nao sao muito confiáveis; segundo, os dados desse censo podem ter privilegiado as elites, para falar do Brasil como um todo. E para concluir: as fontes de Cowell nao sao provavelmente as mesmas dos outros autores.

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gào alcanna a p r o p o r l o de 39%, enquanto migrafdes de pontos mais distantes do país subiram muito pouco. Paralelamente, decresce o número de estrangeiros de cerca de 20% por volta de 1800 a apenas 5 % ao final do século. Vè-se, pois, a importancia de se considerar a m i g r a l o interna para a compos i t o populacional daquele centro em crescimento. Importante - inclusive para se entender a constituifào da popula9ào quanto a sua origem e o efeito desse fenòmemo sobre a constitui^ào da variedade - é perceber que a regiào do estado de onde maior numero de migrantes proveio é a zona da mata, num raio de cerca de 100 quilómetros do Recife, a regiào mais produtora de canade-a?úcar; os imigrantes do agreste e sertao representaran! taxas muito inferiores comparativamente. Esse movimento migratòrio, concluí o pesquisador, sugere que algumas mudanzas específicas no sistema de produfào agricola acompanhadas de mudanza social desalojaram as pessoas do campo, acelerando o processo de urbanizafào, alcan9ando tanto pobres, quanto grupos da elite. Assim, nem o crescimento naturai - já referido - nem o comércio escravo podem explicar o rápido crescimento do Recife no século XIX suficientemente.51 Os efeitos da m i g r a l o sobre a caracterizagào lingüística local nào vào ser diferentes do que ocorre na maioria das sociedades que vivenciam semelhante fenòmeno. Partindo do conhecimento da permanente ocupa?ào do Recife durante todo o século XVIII por comerciantes portugueses, que favoreceram o crescimento da cidade como centro de comércio e destronaram os senhores de Olinda, donos dos engenhos de adúcar às margens do rio Capibaribe no Recife, fica claro que essa classe crescente de comerciantes e os caixeiros que emigravam também para ali, promoveram urna forte europeiza£ào do portugués local. Com o crescimento da cidade na primeira metade do século XIX, que se retrata na migragào descrita por Cowell, ocorre desta vez um processo de crescente afluencia de individuos de fala rural para ai, criando as condi9oes ideáis para o fenómeno de koineizagào no processo de formagào de urna variedade urbana, conforme descrita abaixo. Descendo ao nivel mais íntimo das rela^Ses étnicas, e para se entender melhor como se dava o contato entre os diferentes grupos no Brasil de entao, Freyre (1985) conta que numa casa urbana de classe alta, no caso de alto funcionário público, o número de escravos era em mèdia de 15 a 20. Esse contato mais íntimo de negros com p o p u l a r e s brancas possibilitou a influencia deles sobre as elites coloniais e impelíais, como se depreende do artigo aparecido no jornal O Carapuceiro de 19 de outubro de 1842:

51

Cowell està interessado em todo o século XIX. Para os primeiros cinqiienta anos desse século, entretanto, o percentual de importalo de escravos é importante para a constitui^ào da popula^ào recifense. O pròprio autor afirma: «Slaves constituted 30 percent of the urban population in the 1820s, but only 12 percent by 1872 (...).» (Cowell 1975, 48).

105

«Estes, e outros vicios procedem de muitas causas, sendo a principal sem duvida o tracto familiar com pretos africanos, que sao por via de regra os nossos primeiros mestres. Depois disto o abandono, antes desprezo, em que temos a lingoa vernacula, contentando-nos de a fallar segundo aprendemos de nossas amas, quasi sempre escravas, & c . &c.» (O Capuceiro 1842, vol. 3, n° 58, p. 1)

3.3.2

Formagao étnico-social e caracterizagáo lingüística

A migragáo contribuí significativamente também para a formagao étnica e social das comunidades onde ela ocorre. Antes de entrarmos na consideragáo dos resultados da migragáo para a composigáo populacional do Recife, fagamos urna rápida caracterizagáo da fisionomía étnico-social da populado colonial como um todo. Do ponto de vista do prestigio, obviamente os portugueses eram quem mais o detinha na colonia. Entretanto é preciso fazer urna distingáo entre os portugueses imigrados e aqueles nascidos no Brasil, estabelecendo uma diferenga entre os de origem européia e os náo-europeus, o que já caracterizava alguma diferenga social e lingüística. Em seguida vinham os mestizos de indios - preponderantemente concentrados ñas vilas e cidades do interior - que nao admitiam serem colocados ao lado dos mulatos e de outros individuos da mesma origem. Alegavam a sua ascendencia portuguesa via pai e a protegáo que receberam do rei, ao permitir o casamento deles com europeus. Assim, depois destes estavam os mulatos e em seguida uma gama de combinagoes de mulato mais indio ou indio mais negro. Depois deles, os indios escravizados e por fim os escravos africanos e seus filhos (Calógeras 1935, 32-33). A constituigáo étnica da populagáo local revela sobretudo a maciga procedencia africana e sua miscigenagao no nosso período de estudo. Significativo no Recife é o percentual de mulatos, de negros e a mistura de descendentes de indios e negros. A medida que se desenvolvem as cidades e o Recife se constitui como centro de importancia económica e cultural, se intensifican! as importagSes de escravos e o processo de migragáo traz contingentes de descendentes de indios para ali. Do ponto de vista social, o papel que a burguesía nacional representa tem destaque muito grande na historia da constituigáo do Recife como centro urbano. Depois da expulsáo dos holandeses, na segunda metade do século XVII, com o desenvolvimento do comércio e do crédito, ele cresce rápidamente, pondo em xeque os proprietários rurais. Por causa dele, as cidades litoráneas se transformam em centros populosos e ricos. O Recife, que antes dos holandeses nada mais era do que um povoado de pescadores, vai superar Olinda, a capital onde se concentravam os senhores da térra, e seu crescimento como centro urbano é reflexo dessa classe que pouco a pouco vai se impondo a esses senhores. No inicio do século XVIII, a sua populagao vai dobrar em relagáo ao período posterior aos holandeses, sendo quase toda formada de mercadores (Prado 1991, 38-39). Acrescente-se a eles os funcionários públicos, também portugueses, ou, menos freqüentemente, os descendentes da106

queles proprietários rurais, que nao tinham vocagao ou oportunidade para se estabelecerem nos mesmos ramos dos seus parentes. Estes transformavam-se muitas vezes em comerciantes, militares, padres ou funcionários públicos (Andrade 1972, 92).52 Nesse momento comega a concorréncia pelo poderío económico entre os portugueses ligados ao comércio e aqueles senhores de escravos de Olinda. Enquanto na regiáo das Minas há urna mésela de populagoes de diferentes origens, no Recife há uma certa lusitanizagáo daquele centro económico, que já no inicio do século XVIII os portugueses querem transformar em vila. Daí o conflito conhecido por guerra dos mascates5i - assim chamado porque entre esses comerciantes existiam mercadores ambulantes ser pois a medida do conflito entre dois grupos de poder, mas com origens já diferenciadas. Os portugueses de origem, mas já brasileiros pelo tempo e ocupado, e os portugueses imigrados. É praticamente uma luta entre a aristocracia fundiária nacional e a burguesía nacional (Prado 1991, 41). Numa perspectiva do poder e prestigio, o desenvolvimento da cidade apresenta agora dois momentos nítidamente diferentes. O primeiro, o do poderío e influencia dos senhores de engenho até o final do século XVII, e o segundo no século X V m , o do ganho de prestigio de uma nova classe, ou seja, os comerciantes portugueses, que assimilam valores urbanos e estabelecem conflito com os antigos senhores de térra e fazem o Recife emergir como centro da atividade comercial, propiciando assim o nascimento, num terceiro momento, de uma burguesía comercial, antes da constituido do Recife como centro regional e das transformares do século XIX. Os efeitos lingüísticos do segundo momento podem ter sido uma reagáo do modelo portugués europeu em rela?áo á variedade local fortemente marcada pelo rural - dado o enclausuramento cultural dos senhores proprietários de térra - com relusitanizasáo daquela variedade, entre a primeira metade e inicio da segunda metade do século XVIII, paralelamente ao crescimento do Recife. Com a intensificaba0 do crescimento da cidade no século seguinte, diversificam-se as relagoes sociais e uma espécie de verticalizagao de usos comega a se manifestar, num típico processo de emergencia de uma complexificagáo sociolingüística do portugués local. Ventura (1986, 65) faz um paralelo entre urbanizagao e miscigenagáo. A urbanizarlo aliada á migragáo provoca uma alteragáo na configuragáo e na estratificagao dos grupos étnicos, possibilitando a relativa ascensáo do mulato, tornando mais complexa a estrutura social e as formas de relacionamento entre as carnadas sociais, conforme descrevemos no tópico 3.2.2.3. Com o

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« A familia, de qualquer modo, tinha que ter um padre. Quanto ao filho rude de inteligencia ou desajeitado nos modos, os pais mais prudentes encaminhavam-no para o comércio, que era olhado com desprezo pela gente afidalgada da época», escreve Freyre ( 1 9 8 5 , 1 1 2 ) sobre a vida social brasileira ainda nos meados do século X I X . Conflito entre os senhores de térras e de escravos e os comerciantes portugueses entre 1710-1714.

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século X I X , a migrafáo forjada africana como reflexo do surgimento do Recife como centro urbano - já que come§am a se intensificar as demandas por máo-de-obra para a complexificagao dos servidos que um centro urbano exige - aumenta consideravelmente. Os negros, sejam africanos ou crioulos além das tarefas domésticas ñas cidades e na comercializa?ao de certos produtos54 - constituem portanto a origem do operariado urbano. Dadas as novas necessidades, a importado de populafáo africana pesa significativamente no incremento populacional do Brasil como um todo especialmente na primeira metade do século X I X . Se 3 0 % dos habitantes do Recife eram escravos, os 7 0 % restantes eram negros livres e mulatos e portugueses, com urna minoría branca em trabalhos mais especializados que envolviam algum conhecimento de leitura e escrita.55 Assim, a urbanizado propicia urna alterado da rela?ao do escravo com a cidade num momento em que grandes levas de individuos de outras origens étnicas imigram para ali, propiciando a miscigenafao e a conseqüente complexificagao das relagoes sociais no espado urbano. Urna parte dessa composi^áo étnico-social da cidade pode ser bem reconstruida a partir dos escritos deixados pelos viajantes que visitaram o Recife nos anos 20 do século X I X . Leite (1989), tomando as notas escritas por Tollenare, Koster e Mana Graham,56 reconstituiu o «viver» num centro urbano como aquele, com estas palavras: «Tollenare, a esse respeito, relata que na vila o movimento ñas rúas era continuo, com predominancia de escravos que iam e vinham carregando muitos fardos. O arrastar de seus pés era monótono e cadenciado por seus cantos. Negociantes, vestidos á moda européia, juntavam-se num ponto central do comércio, movimentando-se constantemente em fun§áo da troca rápida de interlocutores. (...) mestizos livres e alguns negros escravos que exerciam atividades de artesáos mereceram, também, menjao da viajante inglesa. Já Tollenare conta que defronte ao mercado avistavam-se várias casas de comércio. Ali eram vendidos os negros: ho-

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Cf. Queiroz (1990, 33-34): «Nesses tipos de explorafáo urbana, muito mais intensa no século XIX, também cabia a especializado, que diferenciava os cativos entre si. Carregadores, remadores, transportadores de cargas ou animais pertenciam aos grupos dos nao-especializados. Os vendedores ambulantes poderiam ser classificados entre os trabalhadores semi-especializados, pois a maioria confeccionava o que vendia: em geral comidas - angu, paes-de-ló, café, bolinhos - , objetos de palhas e outros artigos que nao exigiam apuro técnico. Já para os oficios de seleiro, ferreiro, impressor, sapateiro, marceneiro, havia necessidade de aprendizado e especializa?ao. Nao era incomum que um proprietário treinasse seu cativo em determinado oficio, a fim de oferecé-lo depois para servidos mais bem pagos. Músicos, pintores, escultores escravos foram razoavelmente comuns ñas cidades maiores.» Segundo Theodoro (1990, 304), a populajao do Recife subiu de 8.000 em 1650 para 25.000 habitantes em 1809. Além de Louis de Tonellare e Henry Koster, viajantes europeus que viveram no Recife no inicio do século XIX, María Graham foi urna inglesa que, passando pelo Recife nos anos 20 daquele século, também registrou fatos da vida local, v. Graham (1956).

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mens e mulheres de 18 a 25 anos, crianfas nuas e jovens de 7 a 15 anos vestidos com poucos panos. Esses negros ficavam expostos, agrupados em lotes, aguardando os compradores. Sentados ou deitados no chào de tábuas, mastigavam peda?os de canade-afúcar e mandioca. Os compradores, senhores de engenho e de térras, ao chegar (sic) examinavam-lhes (...). Os passantes nào prestavam atengào. Segundo Koster no porto do Recife o movimento era grande...Sobressaíam os clamores e a a g i t a l o dos negros que faziam grande algazarra enquanto carregavam os fardos (...).» (Leite 1989, 68)

O componente de migrantes do interior mais importante para a nova composigào étnica da cidade é o da zona da mata sul,57 como vimos. 95% dessa populagào eram constituidos de individuos sem posse de terra engajados na produgào de adúcar e à mercè das necessidades e interesses dos donos de engenhos, além de outros assalariados (Cowell 1975, 59). Era tipicamente urna popula§ào rural que imigrou consideravelmente para o Recife no periodo de expansào e complexifica?ào dos servidos em face das novas necessidades urbanas que se intensificam. Quem eram tais individuos nào se pode precisar, mas a maioria provinha da mistura de brancos com negros ou seus descendentes e brancos com indios num segundo nivel. Os que estavam ocupados na economia do gado tinham procedencia indígena, sobretudo com mistura de brancos, e aqueles ocupados na economia da cana-de-afúcar estavam mais ligados à procedencia negra. Pelo menos é o que se detecta da observado de um viajante inglés da época que, ao comparar indios aculturados e matutos,58 excetuando-se a cor da pele, diz que aqueles nào diferiam destes que vinham ao Recife, na linguagem e ñas maneiras (Lima 1904a, 417). Os matutos, portanto, dependendo da regiào de onde vinham, poderiam ter origem india ou africana. Dentro, pois, dessa complexificagào social e lingüística, ao final da primeira metade do século XIX, no terceiro momento acima aludido, já está constituida urna parte da burguesia comercial de origem brasileira, ou seja, que nào era ligada aos portugueses imigrados e que com eles e com os proprietários rurais entra em conflito. Essa burguesia comercial dà nascimento no Recife à rebeliáo praieira59 e se alia ao operariado e à pequeña burguesia, urbana e rural, formada pelos artífices, operários, funcionários públicos, lavradores, rendeiros, negros livres, homens livres da cidade e do campo (Carneiro i960,17-18). A carnada culta que passa a fazer parte da estrutura social - dentro do quadro de complexificagào de que a cidade passa a se compor - é reflexo de urna carnada mèdia, que tendo tido acesso a algum nivel de escolarizagào, passa a ocupar posigòes mais importantes e o uso que faz da lingua portuguesa nào é mais aquele dos brancos dominantes dos séculos an-

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A mata-sul foi a regiao onde se concentrou de forma mais intensa a produ /e/, dependendo da sílaba e da tonicidade. Quanto ao aspecto lexical, há no c a m p o do vocabulario urna certa especificidade regional, naturalmente e m razào de certas diferengas culturáis, e «variafòes mais livres» comparativamente ao vocabulário de outras regiòes. U m exemplo ilustrativo desse último fato seria o do item lexical «bala», que significa na norma c o m u m recifense «projétil», enquanto na regiào Sul-Sudeste é usado para denotar «bombom» (guloseima de confeitaria), termo empregado no R e c i f e , embora a denomina?ào «baia» para referir «bombom»

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A regiào agreste nâo experimentou a escravidào da mesma forma que o litoral e a mata-sul a experimentaram. Apenas escravos ligados à familia indicavam a presença desse sistema ali. Muitos escravos que para là se dirigiram, o fizeram em forma de fuga, ou atravessando a regiào em busca de outras mais afastadas. Veja-se a esse respeito Lins (1989). 129

nào seja de todo desconhecida dos falantes recifenses. Este seria um rápido resumo de como a norma se diferencia da de outras cidades brasileiras, servindo para ilustrar em que reside sua especificidade. Naturalmente que um levantamento mais exaustivo proporcionaría mais especificidades, mas os exemplos citados sao suficientes como ponto de partida para esclarecimento ao leitor daquilo sobre o que se vai discorrer. Afora essa análise, Palácio (1989a) analisou uma parte do corpus do Projeto NURC/Recife e detectou um caso de permuta consonantal, observável também na fala de outras cidades de Pernambuco e de outros estados do Nordeste. Trata-se de uma aspirado usada em substituido a vários fonemas em ambientes bastante variados como na substituido de fonemas fricativos sonoros por /h/: 1 ) o homem tava todo enfeitado 2) por exempio, a vida ainda está 3) a gente vé tanta coisa

/'taha/ /i'hèplu/ /a'hèti/

Tomando por base a hipótese da alta estigmatizado da variável e acreditando que esse fenòmeno só ocorria na fala de pessoas com pouca ou nenhuma escolaridade, a pesquisadora resolveu investigar se sua realiza5ào também ocorria na fala de pessoas com bom nivel de escolaridade. Como resultado, eia chegou à conclusào de que a substituido de fricativas por /h/ se constituí em uma marca da norma recifense. Tal permuta nao tem condicionamento segmentai e, independente do grau de escolaridade do falante, tem ampia distribuido local e está presente em vários tipos de registro. 3.4.4.2

Avaliado da comunidade sobre o caráter da norma

Fagamos agora uma relado do trabalho de Palácio (1989a) com o de outro pesquisador local para vermos como eles se completam e fornecem elementos para a nossa investigado. Matos (1984), num estudo preliminar e pioneiro sobre o tema, estudou a auto-avalia^áo de estudantes universitários recifenses sobre a pròpria pronuncia, detectando os seguintes adjetivos com caracterizado negativa: arrastada, feia, cantada, horrível, pèssima, matutada, engranada, ruim, errada, incrível,fraca, rispida, agressiva, rasteira, áspera, errònea, vagarosa, inexpressiva, pobre, pesada, atrasada, corrente. Quando o autor perguntou sobre as justificativas da auto-avalia§ao de suas pronuncias, aqueles estudantes responderam que: - nao pronunciamos o final das palavras»; «engolimos os fináis das palavras»: «o sotaque aberto desembeleza a fala» (características fonéticas); - é cheia de vicios de linguagem» (incorrefào lingüística); - devido a nossa colonizado» (origem); - falamos (...) lembrando totalmente o matuto» (estereotipiarelativa ao matuto).

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A considerar essas respostas de estudantes universitários - exatamente aqueles que em breve serviriam também de informantes88 do projeto NURC como falantes cultos, que representariam a fala urbana culta brasileira - percebe-se urna auto-estima muito negativa em relaçâo àquela variedade, ao mesmo tempo que certas avaliaçôes nos remetem à sua origem rural.89 Além disso, alúdese à articulaçâo do final das palavras (aqui deve-se entender sobretudo o final); e à procedência rural (lembrando o matuto). Isso revela urna certa consciência da procedência rural, talvez devido à comparaçâo com a variedade, aqui classificada de V-P, ainda presente na regiâo e naturalmente devido à ênfase atitudinal disseminada pela gramática normativa. O intéressante, entretanto, é essa referência ao rural, confirmando a procedência da variedade. O que a investigaçâo de uma marca lingüística da variedade tal como a identificada por Palácio (1989a) tem a ver com os resultados encontrados por Matos (1984) sobre as atitudes de falantes universitários recifenses sobre a sua própria fala? Embora nesta investigaçâo se tenha consciência do grau da estigmatizaçâo da variedade, naquela se realiza uma marca da norma - pressuposta com uma hipotética estigmatizaçâo - num corpus de fala de individuos com bom nivel de educaçâo. Além disso, o fenómeno observado por Palácio também se apresenta na fala de outros individuos de origem rural ou de baixo nivel de escolaridade. Isso prova definitivamente o que vimos mostrando sobre a variedade culta do Recife: a sua procedência rural. Prova definitivamente também que um fenómeno rural manteve-se na variedade urbana surgida no século XIX, revelando o processo de fusâo dialetal, e que ao ser preservado no ambiente urbano, manteve-se paralelamente ñas variedades rurais da regiâo. Essa característica de persistência de certos aspectos depois da urbanizaçâo da variedade pode ser atribuida a uma certa consciência de pertença à comunidade local por força do regionalismo intenso que dominou até o século XIX. O curioso é que apesar da consciência da estigmatizaçâo da variedade por parte dos seus falantes - neste caso /h/ é representativo de outros fenómenos de natureza semelhante e, em conseqiiência, de uma visâo geral da norma - ela persiste, mesmo diante do modelo do portugués dos centros mais desenvolvidos, como Sao Paulo ou Rio de Janeiro, que diariamente se ouve ñas novelas de televisâo ou nos noticiários em cadeia nacional.

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Os informantes do projeto NURC sao pessoas de formafao superior, isto é, individuos que tendo freqüentado curso universitário, representam uma miñona culta, cuja fala serve de base para se detectar a norma culta em cada uma das cidades onde o projeto se desenvolve. Curiosamente, algumas adjetivaíóes váo ser encontradas também no século XIX da parte dos senhores em rela?ao á fala de escravos, como vimos. Ou esse fenómeno representa simplesmente uma tradi^áo de avahado da fala, que a gramática normativa pouco a pouco assimilou, ou a impressao causada pela variedade - dadas certas características típicas suas - revela tra?os semelhantes em épocas diferentes. Trata-se das rotula^oes «arrastada», «vagarosa» = «descansada» (séc. XIX) e vicios de linguagem = «viciosa» (séc. XIX).

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3-4-4-3

Koineiza5áo de variedades e emergencia de urna variedade urbana

Para se compreender a emergencia de urna norma urbana na cidade do Recife no período investigado, há que considerar o contato entre variedades lingüísticas à disposilo entre os falantes. Aqui consideraremos principalmente as acima identificadas, a saber: as V+P, V-P e VCI. Dadas as condi§5es de desenvolvimento e crescimento do Recife naquele momento, é possível se admitir a koineizagao de variedades que se encontraram na nova situagao que entào se estabeleceu. Sem dúvida, a variedade que exerceu maior prestigio nessa nova composito foi aquela V+P já identificada em outro trabalho (Pessoa 1994). Eia deve ter exercido influència como o ideal que representava, sobretudo porque era o modelo usado pelos pregadores religiosos e políticos, que de certa forma impressionavam o povo. Afinal eia estava à disposi§ào naquela sociedade, já que havia sido imposta desde 1759 e era portante ensinada, depois dos jesuítas, pelos professores régios - alguns vindos de Portugal - e depois pelos padres da Congregalo do Oratòrio na primeira metade do século XIX.9° Seguem-se a eia a variedade da grande maioria, e por isso popular, ou seja, V-P e a VCI. A V-P, variedade básica do processo de forma§ao da norma urbana, ainda hoje mantém marcas muito próximas daquelas de sua origem, nao existindo nenhum trabalho que mostre alterares que porventura tenha sofrido nos últimos séculos, sendo dessa forma possível reconstituir traaos dessa origem em grande parte. Desde os primeiros anos da coloniza£ào e paralelamente ao bilingüismo portuguès/lingua geral, confluem hábitos lingüísticos indígenas, caboclos e africanos, dando nascimento a essa variedade, que entào já no século XIX - num segundo momento de sua historia portante - vai fomecer elementos para a formagào de urna variedade urbana, aqui investigada. No processo de aproximado dessas duas variedades, vamos encontrar a VCI, que de certa forma já era um meio-termo, fundindo-se dentro do processo de koineiza§ào. Essa variedade, descrita acima, tem origem na fala de caixeiros portugueses, que nào utilizando o portugués-modelo dos pregadores pelo seu escasso grau de alfabetizarlo, também nào falavam a VP, pois nào compartilhavam a mesma origem social ou étnica de indios, escravos ou seus descendentes. Ali onde se realizava essa variedade mèdia, estavam os individuos que, nào sendo escravos, também nào eram os representantes da variedade mais prestigiosa. V+P, pois, exerceu forte influencia sobre a modernizafào de V-P, relusitanizando a sua estrutura fonológica, fortemente marcada por traaos supra-segmentais rurais. Por outro lado, V-P contribuiu com esses traaos para a configurado da estrutura prosódica da nova norma.91 V+P ainda ofereceu os 9° Cf. Andrade (1965). 91 É plausível se admitir que certos trafos da estrutura morfossintática de V-P tenham se preservado na nova norma, conforme alusáo á perda de /s/ final na investigado de Matos (1989).

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elementos necessários para a paulatina suplantado de traaos gramaticais, como alguns da estrutura morfossintática identificados com a origem rural, fazendo a outra variedade assimilar, em parte, por exemplo, as concordancias nominal e verbal ou a realizado do plural de substantivos e outros elementos desses dois componentes gramaticais. A o que tudo indica, o processo de forma^áo da variedade urbana em estudo, se nao come^ou, pelo menos ganhou impulso depois de 1750 - com a imposi§áo da lingua portuguesa - e durante o período de desaparecimento da lingua geral, só mostrando seus frutos anos mais tarde. Dessa forma, depois do processo de imposi?ào da lingua portuguesa e paulatina substitui?ào da lingua geral, há um processo de fusào dialetal, originando-se dai urna nova variedade, urbana agora, porque existe um centro urbano, que cresce e se desenvolve, alterando os padroes rurais até entào dominantes. A propósito da complexidade de variedades nào-prestigiosas associadas a grupos étnicos socialmente discriminados, há referencia em 1823 no Recife a urna gramática parda, com urna nítida carga pejorativa, quando o frei Caneca, no jornal O Typhis Pernambucano, critica o texto do padre Quintella, redator do Diàrio do Governo, na seguinte passagem: «No 4. numero, ñas quatro palavras que ali poz de sua casa o padre Quintella, o mais notavel que se encontra é a boa grammatica parda do segundo paragrafo - Quando a patria dos Martins, dos Ribeiros, dos M e n d o s a s e outros, cujo sangue espalhado, bem como o de Gomes Freire em Portugal, nao fez mais do que sazonar a sua independencia, ella jamais tornará a ser o patrimonio etc. Aqui há urna ora?áo intermedia, que principia em cujo sangue, e acaba em independencia. Tirada essa intermedia, reduz-se a principal a esta - Quando a patria dos Martins, dos Ribeiros, dos Mendonfas, e outros, ella jamais tornará a ser etc. - Ou tire fora o Padre o quando, ou si lhe deu no goto esta partícula, entào bote abaixo os seus Sanches, e os seus Perisonios, e veja lá como ha de arranjar esta construíáo em lingua de branco.» (Caneca 1875, 295)

Embora o padre Quintella nào fosse representante de urna variedade lingüística com uma certa origem étnica específica, seu texto provoca as rotulagoes gramática parda e lingua de branco - feitas pelo frei, autor de uma gramática portuguesa e de um tratado de eloqiiència92 - que deveriam aludir inicialmente à influencia ou nào, respectivamente, de tra§os tidos como de certa procedencia étnica. A primeira denomina?ào estaria, preconceituosamente, para uma variedade utilizada por individuos de origem negra provavelmente e deve depois ter se estendido para ridicularizar marcas lingüísticas que fossem de encontro à natureza da V+P. De outra forma, a caiga negativa da rotula?ao

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Ambos os trabalhos foram reunidos pelo Comendador Antonio Joaquim de Mello em 1875. Em 1972 o Govemo do Estado (PE) promoveu um outra edifáo dessas obras reunidas. Sao os seguintes: Breve Compendio de Grammatica Portugueza (organisado em forma systematica, com adaptafáo a capacidade dos alumnos) e Tratado de Eloquencia (extrahido dos melhores escriptores).

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«gramática parda» era, pois, usada quando se quería ridicularizar o desempenho lingüístico de quem, embora tentando escrever em «lingua de branco», produzisse um texto que se afastasse dessa expectativa; e a segunda estaría para a V+P. Por outro lado, como o objetivo do frei era criticar o adversario político, nao se pode precisar se ele se referia à VOE, identificada acima, ou à V-P, que era a da maioria, pobre e analfabeta. 3.4.4.3.i

Papel da oralidade e da escrita para a constituiçâo da variedade

Também para se compreender o processo de formaçâo de urna variedade lingüística urbana no Recife, temos de considerar a situaçâo de imersâo da maioria da populaçâo na oralidade. A principio podemos distinguir a oralidade em dois níveis. O primeiro, de urna minoría, que corresponde à variedade de maior prestigio já caracterizada, representada pelos oradores, pregadores, enfim, todos que usavam qualquer pulpito. A pràtica desse uso foi cultivada sob a égide da Retòrica e da eloqûência, e encontrou naquele momento histórico campo bastante fértil para crescimento e ganho de prestigio. As lutas revolucionárias, a independência e a formaçâo de quadros para a burocracia que se ampliava favoreceram essa pràtica e eia criou raizes, estendendo-se à época por todo o país. Freyre (1985), ao comentar a força da eloqûência, nos meados do século XIX, afirma: «(...) porque as cerimônias ñas igrejas, as festas litúrgicas, os sermôes pelos pregadores eloqüentes tinham alguma coisa de teatral que atraía multidoes.» (Freyre 1 9 8 5 , 1 1 8 )

As medidas de imposiçâo da lingua portuguesa e organizaçâo do ensino, ao final do século XVIII, tinham trilhado o caminho para aquela pràtica e até mesmo um certo número de teorizadores do assunto, além de gramáticos, surgiram no século XIX, escrevendo o que professavam ñas poucas escolas que existiam.93 O segundo nivel, a oralidade da maioria, pode ser reconstruido a partir dos escritos sobre educaçâo e as devassas das rebeliôes, que nos fornecem algumas informaçôes nâo só sobre como eia se constituía (sintaxe, morfossintaxe, vocabulário), mas também sobre quem a utilizava. Com relaçâo à lingua dos

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Além dos trabalhos citados de frei Caneca, se poderia citar já no inicio do século XIX a gramática de Moraes (Silva 1813). Além desse, Bello ( 1 9 7 8 , 1 5 3 ) citaos trabalhos de Januário Alexandrino da Silva Rabelo, Breve Compéndio de Gramática Portuguesa, Recife, 1846; dois trabalhos de Miguel do Sacramento Lopes Gama, Seleta Clàssica para a Leitura eAnálise Gramatical ñas escolas de instrugäo elementar e para anàlise oratoria e poética ñas aulas de Retòrica, Rio de Janeiro, 1846, e Lifòes de Eloqiiència Nacional, Rio de Janeiro, 1851. Martins (1978, vol. I, 438) cita o traballio de Antonio Pedro de Figueiredo Nogöes Abreviadas de Filologia Acerca da Lingua Portuguesa, Recife, 1868. 134

alunos, o bispo Azeredo Coutinho ao final do século XVIII (1798a; 1798b) registrou algumas informagoes importantes. Ao explicar, nos estatutos das instituÍ9oes que criou, como se devia falar e escrever a língua portuguesa, descreve indiretamente características da língua falada de entao. Há nesses estatutos toda urna explica?áo de como se articulavam as vogais, quanto a abertura e eleva?ao, ditongagao, monotonga?áo e um pouco sobre consoantes. Além dos níveis fonético e prosódico, o bispo explica problemas morfossintáticos, que envolvem desde concordancia nominal até confusSes de género e tempos verbais. Urna análise mais detida dessas características vai ser feita no próximo tópico. Quanto á competencia dos professores, Mota (1956), citando o relatório do padre Lopes Gama sobre a situagáo do ensino ñas escolas de Pernambuco em 1825, comenta que os de primeiras letras ignoravam os primeiros rudimentos da língua portuguesa e, em conseqüéncia, os alunos se encontravam atrasados sem nenhum conhecimento da prosodia da língua.94 As devassas da revolufáo de 1 8 1 7 em Pernambuco deixaram através de seus textos provas do estado da língua tal como usada pelos envolvidos no movimento. Mota (1972) fez análise do discurso revolucionário e por várias vezes se surpreendeu com a repetitiva marca de oralidade nos textos escritos, dificultando muitas vezes a percep?áo do pensamento veiculado e a interpreta9áo dos fatos. Afora os problemas de pontuagáo, a reprodujo de diálogos, ao invés de relato do fato, mostra como os textos escritos estavam impregnados da oralidade dominante da época. Exemplificando fenómenos dessa impregna9áo em textos de militares, esse autor diz que eram formas que tipificavam setores da oficialidade, um dos poucos letrados naquele tempo e naquela sociedade.95 É possível, pois, que nesse contexto onde a oralidade é marca dominante, possam ter ocorrido fusóes de procedencias diversas. Num certo momento pela imagem da oralidade prestigiosa de V+P; noutro pela oralidade da massa da popula§áo imersa no analfabetismo. Por outro lado, á medida que a camada culta local se ampliava, certas formas tidas como populares ascendiam á condÍ9ao de prestigio. Tomando alguns exemplos da fonologia, especificamente sobre a variedade lingüística prestigiosa do Recife, o apagamanto do «r» final, a eleva9áo de vogais, a pronuncia da palatal do pronome dativo «lhe» como simples lateral sao tra9os comuns a ela. Em 1842 essas características já eram apontadas cómo sendo influenciadas pelos africanos, devido ao contato familiar com negros, e serao discutidas no tópico seguinte. Holm

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Por essa informafao se infere a variafáo prosódica que caracterizava a fala dos alunos. Comentando urna passagem dos textos analisados, o autor escreve: « A busca de um sentido para tais idéias parece difícil, mas nao o será dar-se conta das dificuldades da comunicafáo escrita, dificuldades que nao seriam estranhas á grande maioria dos representantes da ordem estabelecida nos sertoes nordestinos.» (Mota 1 9 7 2 , 77).

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(1987), por exemplo, admite o apagamento do «r» final como tendo essa origem, embora nao tenha lido o jornal escrito pelo Padre Lopes Gama. Pelas afirmagoes deste último, representante daquela V+P, fica claro o ganho de prestigio dessas marcas e sua elevagáo á condigáo de variedade urbana prestigiosa local, conforme mostraremos abaixo. Estes sao exemplos claros do papel de urna outra oralidade impondo-se dentro da elaboragao da norma urbana. Numa época em que o acesso á escrita era extremamente limitado, a norma pouco poderia se pautar pelo modelo da escrita - o que só podia fazer a minoría letrada e com o privilégio do acesso aos materiais de leitura ganhando a oralidade valor significativo. Nesse sentido, nao se pode admitir urna quase total assimilagáo do modelo dominante favorecida pela escrita. O fato é que nesse contexto havia um campo aberto para diferentes caminhos dessa constituigáo, porque, depois da proibigáo da língua geral, a muitos se impós a necessidade de falar e estudar portugués. Por outro lado, as populagoes africanas e crioulas estavam em contato com suas línguas origináis, ou no mínimo, com uma língua geral, criada por eles próprios. Era o momento de elaborado e reelaboragáo dessa oralidade. Mas, apesar disso, a língua escrita vai exercer uma determinada influencia na constituigáo da nova variedade,96 através da crescente popularizado da imprensa. A introdugáo da escrita em uma sociedade altera em alguma medida a sua cultura. A língua ai falada, principalmente, a partir desse momento nao vai ser a mesma (Schlieben-Lange 1983). No caso do Brasil, a fundagáo da imprensa vai ter quase o mesmo significado que a introdugáo da escrita ñas sociedades ágrafas, em face da imersáo da imensa maioria da populagáo no mundo da oralidade. Apesar de a escrita ser usada há muito tempo naquela sociedade e a literatura ter conhecido um certo desenvolvimento, os percentuais de sua pro-

96

O alemäo coloquial da cidade de Colonia tem sua origem exatamente entre dois polos extremos do continuum lingüístico, isto é, entre o dialeto local - marcado pela oralidade - e o dialeto-padräo falado ali, que de qualquer forma tem inspirado na língua escrita. Sobre isso, lé-se em Hoffmann/Mattheier (1985, i860): «Dialekt als normale Sprechsprache und als Symbol reichsstädtischer Identität sowie als literarisch verwendbare Schriftsprache ist jedoch nur die eine Komponente, die die Entwicklung der gesprochenen Sprache seit 1800 bestimmt. Die andere Komponente ist die Ausbreitung des 'kölnischen Hochdeutschen', wie man die hd. Sprechsprache mit einem Kölner Akzent nennen könnte (...). Zwischen den beiden Polen Dialekt und Kölner Hochdeutsch entwickelt sich etwa seit Beginn des 20. Jhs. die Kölner Stadtsprache.» Sugestivo nesse sentido também é o caso de Helsinque. Assim escreve Paunonen (1993, 51): «The evolution of colloquial Finnish in Helsinki has been governed from the outset by tension between the dialect-based speech of the working classes and the speech of the educated classes, which is based on the written language. From the linguistic point of view, the speech of the working classes is the colloquial speech. Its roots are in the living dialects, and its use is connected with normal situations of language use. The spoken language of the educated classes does not spring from living language in the same way, but is the result of deliberate manipulation.»

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pagarlo entre os habitantes eram extremamente diminutos. Ao se considerar as condi?5es de propagado da educarlo através do aparelho escolar, é bastante legítimo se postular urna divulgalo deficitària das técnicas de leitura e escrita através dessa instituidlo formal de educalo. Por isso, chamamos a aten§áo para o grande papel desempenhado pelos jomáis como formadores de um público leitor e seu conseqüente efeito sobre a alteradlo da situarlo lingüística do ponto de vista da natureza e caracterizarlo das variedades, sobretodo no caso particular da constituido de uma variedade urbana como esta aqui estudada. A falta de estudos sobre o problema impede que se fa?a uma análise mais detalhada a respeito do papel da imprensa nessa constituidlo. No entanto, dado o acesso que individuos de baixa instruyo tiveram aos jomáis para publicar anuncios de diversa natureza, conclui-se, por um lado, o efeito desse meio de comunicarlo para carnadas da popularlo que nao dispunham de outras formas de contato com a escrita, exceptuando-se naturalmente a utilizarlo da carta como meio de comunicarlo entre individuos geográfica e socialmente distanciados; por outro lado, o fato da literatura romàntica e da pré-romàntica terem sido divulgadas preponderantemente pelo jornal, antes do aparecimento do livro como instrumento natural de veiculaflo da literatura, ou o fato de os escritores románticos terem come^ado a sua atividade nas redaròes dos jomáis, revelam mais uma vez o significado dos pasquins da época para divulgarlo de material de leitura para as carnadas populares, que por meio deles conseguiram aprender a 1er. E, por isso, plausível mais uma vez admitir que as carnadas populares, usuárias de uma variedade rural, conforme descrita, ao experimentaren! o contato com a lingua escrita veiculada pelos jomáis, nao somente lendo, mas em certa medida também escrevendo anuncios, por exemplo, tiveram a oportunidade de aperfeiroar seus usos na direrlo de modelos representados pela escrita, nivelando os extremos característicos da lingua falada, preservando apenas certos aspectos que nlo tem representarlo na escrita, como traros fonéticos, favorecidos pela natureza fonológica da representarlo escrita portuguesa, e sobremaneira o sistema prosódico. Os casos de nlo-realizarlo completa da concordancia foram mais facilmente vencidos pela urbanizarlo da norma em face do tipo de representarlo unívoca do subsistema morfossintático, conforme o exemplo citado adiante (muitas flore —» muitas flores). Uma análise dos anuncios dos jornais como vai ser feita no capítulo 5 revela muito bem esse fenòmeno. Por firn, a menor carga de acentuarlo da fala do Recife em compararlo à da fala do interior, revela que algum processo de koineizarlo nesse aspecto deve ter ocorrido. Na medida em que se desenvolve uma lingua dos jomáis - influenciada pela pròpria oralidade - criam-se as condiroes para o desenvolvimento de uma variedade orai urbana, favorecida pelo prestigio da escrita, que lhe serve de modelo e dà prestigio a suas realizar5es. Um fato que nlo se pode esquecer é a interpenetrarlo entre essas duas modalidades da lingua numa alimentarlo mutua. A escrita - tendo incorporado elementos de uma longa tradirlo, que, 137

apesar de tudo nâo se substituí completamente - exerce sobre a oralidade a sua influência. Esta, por sua vez, alimenta a lingua escrita, seja no vocabulário, seja nas simplificaçôes sintéticas, tal como o movimento modernista deixou documentado. 3.4.4.3.2

A preservaçâo de traços rurais estigmatizados

Além da constataçâo de Palácio (1989a) sobre a natureza rural compartilhada pela variável fonològica /h/ e, conforme acrescentamos inspirado na investigaçâo de Matos (1984), o significado da consciência dos falantes para o potencial explicativo desse fato como indicio da procedência da norma, há outras trabalhos que fornecem maiores indicios sobre essa constataçâo, agora no nivel histórico, exatamente em pleno momento de sua constituiçâo. Os traços de natureza rural, comparativamente às formas prestigiosas da época, usados pela maioria da populaçâo, já eram comprovados aos fináis do século XVIII pelo bispo Azeredo Coutinho, e aparecem mais urna vez censurados por Lopes Gama ainda em 1842. Curiosamente, por compartilhar certos traços com a variedade rural regional de hoje, a variedade urbana recifense permite ainda aos falantes mais jovens associaçâo à sua procedência, que os textos de 1798 e 1842 estào indicando. O que nos dois autores dos séculos XVIII e XIX deveria ser expurgado, para os contemporáneos deste século é constataçâo, embora com certo grau de auto-avaliaçâo negativa. Entretanto, o que parece ficar evidente é que urna tradiçâo da norma já se concretizou. Em 1798, ao escrever os estatutos dos dois educandários que fundou, e que a partir de 1800 entram em funcionamento, Azeredo Coutinho identifica alguns aspectos da fala regional, associados à procedência rural, que deveriam ser combatidos. No capítulo I, parágrafo 2, «Quanto à Arte de Lêr», dos estatutos do Seminàrio, o bispo aconselha os professores a ensinar os alunos a fazerem a diferença entre vogais e consoantes: «(1) nâo lhes consentindo que pronunciem urnas em lugar de outras: v em lugar de b, nem b em lugar de v, como vento em lugar de Bento, e Bento em lugar de vento, nem acrescentar letras aonde nâo á, como v. gr. aiagua em lugar de a agua, nâo aiá em lugar de nâo a á; nem tirar letras aonde á, como v. gr. Janero em lugar de Janeiro; teado em lugar de telhado; mio em lugar de milho; nem inverter a ordem das letras, pondo em primeiro lugar as que se devem pôr em segundo, como v. gr. treato em lugar de teatro; cravâo em lugar de carvâo; virdaça em lugar de vidraça; breço em lugar de berço; provezinho em lugar de pobrezinho &c. Deve ensinar-lhes a pronunciar os ditongos com clareza, e em toda sua força: como v. gr. meu Pai, e nâo me Pai; pauzinho, e nâo pazìnho; nâo, e nâo num &c.» (Coutinho 1798a, 47)

No parágrafo 3, a seguir: «(2) Deve ensinar-lhes a proferir com perfeiçâo os sons das vogais de cada urna das palavras, como por exemplo a vogai á da palavra bordado, que é longa, e se deve

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proferir com a boca mais que aberta, do que o a da palavra covado, que é breve, e que se deve pronunciar com a boca mais fexada: a vogal e da palavra febre, cujo primeiro e é longo, e se pronuncia com a boca mas aberta do que o segundo e, o qual com tudo nao se deve pronunciar com a boca tâo fexada que pareça i, como febri, di Deus, di cá, di lá; a vogal i da palavra gentío, frió, que é longo, e se pronunciam como se fossem dois ii, e com a boca mais aberta, do que o i da palavra abrió, consentio, e este mais aberto do que o i da palavra Indio, relojio, que é breve; a vogal ó da palavra olhe, que se deve pronunciar com a boca mais aberta; como o ó das palavras cólhe, mólhe, e nâo olhe com o o fexado, e proprio do o das palavras folha,folho, cujo segundo o ainda é mais fexado do que o primeiro, e se pronuncia quazi como u folhu: a vogal u da palavra escrupulo, cujo primeiro u é longo, e se pronuncia com a boca um pouco menos fexada do que o segundo u, que é breve &c.» (Coutinho 1798a, 47-48)"

Nos estatutos do educandário de meninas, no capítulo VIII, no parágrafo «Quanto à arte de 1er», escreve Azeredo Coutinho: «(3) Ñas liçôes de 1er porá a Mestra muito cuidado em evitar ñas suas discipulas tres vicios, ou defeitos, em que se abituâo muitas por descuido de quem as ensinou. O primeiro é no pronunciar das palavras o inverter em algumas a ordem das letras como por exemplo breço em lugar de berço: cravâo em lugar de carvâo: outras vezes suprimindo no meio das palavras algumas letras, como teado em lugar de telhado: fio em lugar de filho: outras suprimindo a letra ultima principalmente no número plural, e nos nomes, que acabâo em agudo como muitas flore : Portugá em lugar de Portugal &c. O segundo defeito em que muitas ficâo é o 1er sempre duvidando, ou como solet a n d o cada palavra, fazendo assim defeituosissima a leitura, e impercetivel o que dizem; ainda quando elas sao expeditas no falar. O terceiro é o modo, e tom de 1er como cantando, e ás vezes fazendo sair o som pelos narizes: o que tudo procede do costume, que tomáráo ñas aulas por negligencia das Mestras, que nâo as souberáo corrigir de semelhantes defeitos.» (Coutinho 1798b, 101-102)

No parágrafo seguinte, «Quanto à arte de escrever», censura: «(4) (...) e os erros de Gramatica, como sâo os de uzar de um tempo por outro, de um genero, ou de um numero por outro (...).» (Coutinho 1798b, 103)

Em resumo, ter-se-iam, agrupando-se os fatos arrolados nos diferentes tipos:

97

A pronùncia do -e gráfico final como IU no Brasil é urna conserva?ào de urna pronuncia portuguesa que vigorou por todo o século XVIII. No final desse século eia estava se transformando em /a/, pronuncia européia atual. Para discussào do problema ver Révah (1959) e Cunha (1986). Révah no mesmo artigo discute também o problema do -o final, pronunciado /o/ no dialeto caipira de Sao Paulo como marca arcaizante. Quando a sua passagem a ImI se deu nào é claro.

139

a) consoantes: - fricatizafáo da oclusiva bilabial e oclusáo da fricativa: /b/ —»/v/ Bento —* vento / vento —• Bento - queda da consoante lateral:

/l/ - • /zero/

Portugal —»Portugá

- queda da palatal:

IXI -* /zero/

telhado —»teado,

=

/aw/ —> /a/

pauzinho —• pazinho

=

/ew/ —> /e/

meu pai —> me pai

=

/áw/ —• /un/

nao -

=

/ey/ —> /e/

/v/ —• /b/ =

milho -

b) di tongos: - monotonga§áo

Janeiro —>j añero

c) vogais - epéntese vocálica, desfazendo o hiato: /a'agwa/ —• /ay'agwa/ a agua —» aiagua, /náwa'a/ —> /'náway'a/ nao a á —• nao aiá; - dura?ao da vogal interpretada como grau de abertura: /a:/ = /boh'da:du/, /a/ = /•kovadu/; /e:/ /e/ ¿ /i/ = /fe:bre/ — /fe:bri/; /i:/ = /,fri:u/#/i/ = /a'briw/ ^ /y/ = Andyw/; h/ = te X U ¿

/o/ = ííoXsJ

f M

= /'foXu/;

/u:/ ^ /u/ = /is'kru:pulu/ d) deslocamento de /r/ ou /h/ e alterafáo do padráo silábico: - inversáo do padrao silábico = CV + V + CC (r)V treato;

CC(r)V + V + CV teatro

- altera?áo do padrao silábico = CVC(h) + CVV —> CC(r)V + CVV carváo —• cravao; - inversáo com alterado do padráo silábico = CV + CC(r)V + CV —> CVC(h) + CV + CVvidrafa —• virdaga e) ausencia do morfema de plural do substantivo no NP: muitasflores—• muitas flore Com rela?ao á passagam (i) citada, está claro que se os fatos apontados pelo bispo deveriam ser corrigidos é porque nao pertenciam ao modelo lingüístico em vigor. Comparando-os com a situa§áo de hoje, pode-se afirmar que a maioria desses fenómenos ficaram restritos as variedades rurais regionais, mas dois deles fazem parte do uso prestigioso local: a redu?ao do ditongo /ey/ —• /e/ e a transformado da negativa «nao» em «num». A realizagao «nao» só ocorre em situa95es de extrema formalidade, passando a constituir urna variante diafásica. E comum, entretanto, aparecer o «num» pré-verbal e o refor§o 140

do «nào» ao final da ora?ào, que talvez por urna necessidade comunicativa ainda resista à sua total substitui?ào por «num». Com rela§ào a (2), quanto à elevagào da vogai final /e/ para /i/, é fenómeno que se estabilizou na norma locai, e que no século XVIII, portanto, ao que parece, tinha natureza marcada em rela?ào à lingua de prestigio. Também a elevafào de /o/ final para /u/ nao é, como descrevia Azeredo Coutinho, «quase como u», mas já é /u/ mesmo, com urna a l t e r a l o face ao ambiente fonològico de final de palavra. Em (3), o que há de novo em rela£ào a (2) quanto à cadeia segmentai é o agrupamento de problemas diferentes: os casos citados nos primeiros estatutos, a ausencia da indicado do morfema de plural /s/ no NP e a queda da alveolar final (Portugal —y Portugá). A queda do morfema /s/ tem chamado a aten?ao pela sua difusào urbana; quanto à queda da alveolar, a constituifào da norma foi na dire^ào de sua vocalizado /al/ —> /aw/. Este fenòmeno nào é comentado em nenhum dos textos dos séculos XVIII e XIX utilizados. Teria sido urna inova9ào mais recente, entre a segunda metade do século XIX e o século XX? 98 Urna última observafào importa fazer aqui «o ler cantando, e ás vezes fazendo sair o som pelos narizes». Duas características - a prosodia, comentada acima, e a nasaliza?áo, que em certos ambientes tem se realizado na norma local - estào em certa medida estabilizadas na norma do Recife hoje. Em rela?ào a (4), «os erros de gramática», sobressaem a confusào dos tempos verbais, na morfologia verbal, e a confusào de género e número, na morfologia nominal. E possível que alguns casos do emprego dos tempos verbais, incluindo ai aspecto, e algumas altera?6es de gènero de certos vocábulos tenham se estabilizado na norma. Conforme aludimos acima, um maior aprofundamento desses aspectos está fora do que foi definido como objeto de análise. Mais de quarenta anos depois do que observou o bispo de Pernambuco, o jornal O Carapuceiro publicou no Recife o comentário «A lingoagem bordalenga de muita gente», já referido, cujo objetivo era apontar o mau uso da lingua portuguesa naquela localidade. Interessante é que a crítica do padre, que era uma espécie de pedagogo, tinha em mira sobretudo os setores mais privilegiados do ponto de vista da forma?áo cultural. O autor nào quería criticar a existencia dos usos citados na lingua portuguesa, meramente como característica rural ou procedencia africana, mas criticá-los na medida em que a sua difusào alcan?ava os setores mais cultos citados. Perseguindo esse objetivo, o comentário do padre nos fornece urna interessante visào sociolingüística da lingua portuguesa falada ali. Era uma época em que o modelo de lingua de prestigio era a variante européia do portugués (V+P) e os «erros» apontados revelam uma curiosa transi?ào. Naquele momento de urbaniza9ào da vida local, os grupos de origem urbana que ascendem socialmente trazem as marcas de sua origem e, ao que parece, revelam na sua fala a constituÌ9ào de uma

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Fonseca (1977) discutili o problema da vocalizado do «1» posvocálico, afirmando que esse processo ainda estava se concretizando.

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nova norma, aquela que corresponde a um centro urbano em f o r m a l o e expansào. A luz do que acontece hoje, onde vários dos fenómenos criticados pelo autor nao sào mais vistos localmente nesta mesma perspectiva, pode-se afirmar que esses fenómenos entraram num processo de estabilizafào e já constituem urna t r a d i t o da norma urbana local, apesar de um valor estigmatizado de certos usos, embora mantidos, de acordo com a investigalo de Matos (1984). Logo no inicio do texto, Lopes Gama classifica os fenómenos como «nao só do meugalho, mas até de gerarchia elevada». Por ai se nota que os fatos comentados perpassavam os usos de grupos de vària procedencia. Na seqüencia, escreve ainda: «Já nao tractarei da Prosodia, ou accentuarlo da voz, pela qual extendem tudo, que deve ser breve, e formào dest'arte huma lingoagem tao morosa, que enfastia, e quasi dá somno». A passagem nos fornece valiosa informagào sobre a especificidade da lingua falada ali em relagao à de outras regioes, considerando a origem dessa marca. Observa-se nesta passagem algo semelhante às observares do final do século XVIII. Mais urna vez a alusào à prosodia, que talvez coincidisse com o «cantando», como descreveu o bispo. Dentro do objetivo do comentário acima citado, o autor escolhe alguns tipos para caracterizar todo um grupo social, que nao deveria falar daquela forma: «huma menina galante, viva, e espirituosa/ D.Mariquinhas he bella, veste se com gosto, apresenta se nos bailes com garbo, e airosidade; danga bem as sempiternas quadrilhas, toca seu piano, e canta agradavelmente/ D.Chiquinha he amavel por seus encantos, e bons modos» (1). Pela descrivo dos tipos apresentados, fica claro que nao se tratava nem de escravas, nem de seus descendentes diretos, nem de agricultoras ou roceiras, mas de jovens pequeno-burguesas de origem urbana. A a s s o c i a l o , portante, entre estrato social das jovens e uso lingüístico é feita da seguinte forma pelo autor: «(...) huma menina galante (...) fallar tao descansada, preguifosamente (...)» «D. Mariquinhas (...) diz pra mode quel em vez de por amor de quel Diz cade elle? em vez de que he delle? Diz vigié em lugar de veja. Diz oreia, veiaco, cuié, muié em vez de orelha, velhaco, colher, mulher, &c.» «D. Chiquinha (...) nào tira da bocca o seu oxente! e nao perde o vezo do mi deixe.»

Urna hipótese digna de se levantar é a alusào - do ponto de vista prosódico ao «falar descansado» como procedencia africana, conforme a atitude dos senhores de escravos veiculada pelos anuncios de jomáis já discutida e refor?ada por Lopes Gama, enquanto Azeredo Coutinho classifica os problemas com «1er cantando e o ar sair pelo nariz» (prosodia e nasala^ao). Como nesse último caso nào há referencia à influencia africana, pode-se entáo hipotetizar que o que ele apresenta tem raízes indígenas, pois há na literatura referencia à

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nasala$áo na base amerindia." T e ñ a m o s assim, confiando nessas informa^oes, identificado duas procedencias diversas da fala local, urna africana e outra indígena. Prosseguindo, depois da associa^áo entre individuo e uso lingüístico, L o p e s G a m a cita varios fenómenos ao que tudo indica e m processo de difusao: «Que cousa mais geral entre nos, do que os vocabulos bunda, caxerenguengue, quecé, e outros muitos de origem africana? Por esses matos bem poucas pessoas fazem uso do verbo ver; ou olhar. tudo he espiar. Espiou para elle, espie isto, espíe aquillo. Muitos declaram guerra aos rr finaes, e dizem sempre manda, busca, conté, dormí, singulá, &c. &c. De protector dizem em regra protectora, de morador moradora, de sabedor sabedora: mas de senhor formam senhóra com o o bem aberto. Quase todos os ee sao reduzidos a ii, e assim dizem mi deixe, mi espere, ti fago, ti quero, minino: E o Ih quasi sóa como l simplesmente na bocca de muitos, que aínda assim nao o proscrevem de todo: por isso dizem muler, colér,ficou-le, pegou-le, le pedio em vez de mulher, colher,ficou lhe,pegou-lhe, Ihepedio.»'00 (i). E m r e s u m o ter-se-iam, agrupando-se os fatos arrolados nos diferentes tipos: a) processos vocálicos - alongamento: nao há exemplos concretos, apenas associa?áo com a prosodia e a acentuafáo;'01 a referencia a alongamento se deduz da passagem «extendem tudo, que deve ser breve» (i) e vem associada á prosodia;102 - vocalizado da palatal: - abertura: - elevajao (tónica ou pré-tónica):

/ve'Xaku/ —• /ve'yaku/ /se'ñora/ —• /se'ñora/ /me/ —• /mi1, /me'ninu/ —• /mi'ninu/

b) processos consonantais - apagamento do /r/ final: - alveolarizafáo da palatal:

99 100

101

102

/man'dah/ —• /man'da/ /mu'Xeh/ —> /mu'leh/

Cf. Cascudo (1978, 39). A propósito do Ihe, objeto indireto usado com verbos transitivos diretos (eu lhe vi), muito comum na fala local, Moráis Silva já o apontava em 1802 como peitencendo aos «erros das Colonias.» (Silva 1813, XXIX). Observe-se que na passagem (2) de Coutinho, as vogais classiñcadas de longas sao sempre tónicas. O que aqui chamamos de alongamento talvez esteja também associado a abertura, pois o autor nao o explícita claramente. Qualquer que seja o fenómeno, ele contribuí decisivamente para o aspecto prosódico da variedade. A esse respeito, escreveu Elia (1979, 213): «Parece-nos que, nesse aspecto, o que mais caracteriza regionalmente a fala brasileira é o chamado (pelos sulistas) «falar descansado» ou «cantado» do nordestino, muito aparente na prolafáo das vogais abertas protónicas (...).»

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E m seguida, analisando-se o s dados sociolingüisticamente, pode-se f a z e r alg u m a s o b s e r v a r e s mais sistemáticas. Para L o p e s G a m a o s f e n ó m e n o s sao produzidos por «muita gente nossa, e nào só do meugalho, c o m o até de gerarchia e l e v a d a » (p. i ) . Isso significa que os processos a c i m a reproduzidos ou sao f e n ó m e n o s que caracterizam diferentemente as variedades lingüísticas, pertencendo uns a urna determinada variedade, e outros a outra, que e l e nao e s p e c i f i c o u ; ou sao todos eles f e n ó m e n o s c o m u n s a duas variedades distintas - urna do «meugalho>y,,0ì

e outra das carnadas de prestigio. E s s a d ú v i d a

nasce da falta de urna exata discriminagáo de «quem» diz o «que». U m fato é certo: a «gerarchia elevada» f a z u s o d e f o r m a s típicas do « m e u f a l h o » . S e se trata da segunda hipótese, entào pode-se falar de u m p r o c e s s o de c o n s t i t u i d o de urna norma e da aquisi§áo de prestigio de certos usos oráis, j á q u e a «gerarchia elevada» t a m b é m os usa, n u m nítido c a s o de m u d a n z a «por baixo». N e s s e sentido, p o d e m o s f a z e r u m confronto c o m o portugués recifense e brasileiro de hoje: a) quanto às vogais - O alongamento de vogais parece ser característico do portugués brasileiro independente da norma lingüística, seja diatópica, diatrástica ou diafásica, em comparado com o portugués de Portugal; - A vocalizado da palatal IXI —> /y/ está restrita a dialetos rurais ou rurbanos (Bortoni, 1985: 1). Ex. oreia, muié, em vez de orelha, mulher; - A abertura de vogais é mais comum no Nordeste do Brasil; especialmente a palavra «senhora» - como já atestava Lopes Gama - tem o h ¡ assim articulado, mesmo na fala de prestigio; - A eleva§ao do /e/ —> /i/ é tra§o característico do portugués do Recife e de outras cidades do Nordeste, mas fenòmeno de prestigio. Ex. mi, ti, minino em vez de me, te, menino (1).104 b) quanto às consoantes O apagamento do «r» final já se realizou em todas as variedades do Recife e, ao que tudo indica, em todo o Nordeste do Brasil. Isso contrasta nitidamente com o portugués de Sao Paulo (desconte-se a significativa emigra9ào nordestina para lá). Ex. mandá, buscá em vez de mandar, buscar (1).105 A alveolariza^ao da palatal fíJ —• Ili é fenòmeno socialmente desprestigiado, só ocorrendo um caso de sua fixafào na variedade de prestigio «lhe» - pronunciado [li] presumivelmente em todo o país. Ex. muler, colér em vez de mulher, colher (1).

103 104

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Palavra em desuso que significava «plebe». Cunha (1986) aponta o fenómeno como conserva?ào no portugués brasileiro de real i z a d o em Portugal já nos séculos X V I e XVII. Na palavra «Recife» há oscilafáo quanto às pronuncias /he'sifi/ ou /hi'sifi/. /he'sifi/ seria claramente rural. Enquanto Elia (1979, 213) se refere ao fenòmeno como já tendo alcanzado a lingua culta, «A erosáo sofrida pelos L e R fináis se dá também na lingua culta», Cunha (1986, 210) o classifica como pertencente a «registros muito vulgares.» 144

Acreditamos que, depois do comentário do texto, fica clara a sua importancia para o conhecimento em parte do portugués do Recife e do Brasil no século XIX. Infelizmente o pouco aproveitamento de fontes nào-convencionais para o estudo do portugués brasileiro no campo da historia - aliado à excessiva valorizado de material de inspiraeào literária - tem dificultado a compreensào de fenómenos mais dinámicos, que envolvem elementos como os que aqui procuramos comentar. Nesse sentido, a abordagem da lingua falada possibilità reflexoes que, confirmadas por outros estudos,106 permitam a reconstruyo do subsistema fonológico do portugués em variafào e o contexto sócio-histórico que o motivou/motivava. Pelo menos as informafòes contidas no texto analisado nos propiciam algumas reflexoes sobre a forma^ào da norma local.107 Além do mais, no caso específico deste texto - produzido em pleno momento de forte repressào da cultura de origem africana no Brasil,108 por ocasiáo do processo de europeiza§ào e urbanizado do país - percebe-se o grau de intensidade do contato das duas culturas, ou melhor, da formafào da cultura afro-brasileira, no aspecto particular da linguagem. Para os interessados na hipotética existéncia de um crioulo, semicrioulo ou alguma forma de contato lingüístico no passado, o texto do padre Carapuceiro fornece elementos para discussào também dessa hipótese. Como observado particular a respeito do significado do texto para o que nos interessa propriamente, a saber: elementos para melhor compreensào do processo de forma?ào de urna norma no portugués brasileiro do século XIX, a pròpria atitude de Lopes Gama representa o saudosismo de quem foi evidentemente formado sob a educafào jesuítica - portante sob a inspirafào da Retórica e do latim - diante de uma variedade prestigiosa que se via amea$ada pela renovado. A ascensào de novos elementos - os baharéis, muitos deles advindos de carnadas social e históricamente inferiorizadas - impunha, ao que parece, uma variedade renovada, nào só pela nova gera?ao que eles representavam, mas pela renova^áo cultural como um todo, inspirada em práticas culturáis de origem européia. E o padre clamava pelo estudo e empenho dos jovens no estudo da lingua portuguesa, sem perceber as mudanzas que ocorriam ou já haviam ocorrido. Nesse sentido, o texto é um flagrante da situa§ào de instabilidade de uma variedade prestigiosa de urna na?ào jovem, que havia vinte anos procurava definir a sua nacionalidade, inclusive no plano da lingua.

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Por exemplo, a observado de viajantes europeus, tal como Caldleugh, citado por Rodrigues (1985). Quase todos os fenómenos aqui comentados Celso Cunha (1986) classifica de inova$óes do portugués brasileiro. Cf. Freyre (1968, vol. II, 3 8 6 - 3 8 7 ) : «Assim, ficava proibido, na cidade do Recife, a partir de 1 0 . 1 2 . 1 8 3 1 , fazer alguém , restri^ao que atingía em cheio os africanos e as suas expressoes de caráter religioso ou simplesmente recreativo. Ficava, também, proibido que os pretos carregadores andas sem pelas rúas cantando, . Restrisao severa, dado o hábito dos africanos de ado?arem o trabalho com o canto.»

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Fazendo-se agora urna comparagáo entre as descrigóes dos dois críticos, percebe-se que nem todos os fatos sao os mesmos nos autores, havendo urna abundancia maior de observagSes nos textos do bispo. Por exemplo, o problema do alongamento de vogais - intimamente ligado á prosodia - aparece de passagem em Lopes Gama, que diz que nao tratará do assunto; a queda da palatal comentada por Azeredo Coutinho está representada em Lopes Gama por uma vocalizado. Compare-se: telhado—> teado e velhaco—• veiaco, respectivamente. Ou o fenómeno passou despercebido por Azeredo Coutinho ou o ieísmo só aconteceu no século XIX. 109 Neste autor, alongamento aparece associado a grau de abertura das vogais e á acentuagao, enquanto o padre refere como abertura o caso do h l da palavra «senhora», fenómeno isolado. No primeiro autor ainda a elevagáo de /e/ a /i/ é vista como fechamento da vogal final, enquanto o autor de O Carapuceiro refere-se de forma mais grosseira ao problema, «quase todos os ee sao reduzidos a ii», afirma. A monotongagáo,110 um aspecto que passou despercebido por Lopes Gama, também ascendeu á condigao prestigiosa de norma local: /naw/ —> /nun/; /ey/ —> /e/ em certos contextos fonológicos. O apagamento do /r/ final, nao citado por Azeredo Coutinho, está registrado pelo segundo autor e também faz parte da norma. A comparagáo de dados observados em períodos de tempo diferentes, pois, permite que se possa detectar a origem rural de tragos que no processo de urbanizado ou desapareceram na sua maioria, ou ganharam prestigio. Os fatores, pois, responsáveis por isso estáo no complexo histórico-social analisado acima. 3.4.4.3.3

Hipercorregáo e reconstruyo de tragos da língua falada

Lopes Gama também se refere a um caso de hipercorregáo - a generalizado da palatal em ambientes fonéticos de semivogal [y] + vogal [a] ou [u] - que ainda hoje se dá, sobretudo entre individuos em fase de aquisigao da variedade de prestigio e naquele contexto poderia estar revelando o momento da constituigáo da norma e o ampio espectro das tentativas ou recriagoes lingüísticas dos falantes. O fenómeno citado prova o prestigio da palatal e o quanto se mantém firme na norma culta (cuia—> culha; papagaio—• papagalho, p. 1). Por esse exemplo se deduz que o ieísmo era fenómeno socialmente desprestigiado e os individuos que realizavam a hipercorregáo, estavam na verdade

109

110

Dada a inexistencia de estudos que se refiram à data§áo do fenómeno e tomando-se por base os textos aqui analisados, pode-se admitir o seu surgimento na primeira metade do século XIX. Os casos de monotonga9ào /aw/ —> /a/, /ew/ —> /e/ citadas pelo bispo nao se estabeleceram na norma urbana recifense. A monotongafao de /ow/ —> /o:/, trafo da norma local, que já deveria estar ocorrendo na primeira metade do século XIX, é reconstituida a partir da hipercorregáo discutida no item 3.4.4.3.3. Nao bastasse essa reconstituido, a sua existencia é documentada desde o século XVII no portugués europeu, cf. Cunha (1986).

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fugindo desse estigma, ao transformarem a semivogal em palatal, fazendo dessa forma urna reconstituido de algo que nào existia na norma prestigiosa. Um segundo fenòmeno de hipercorregào se dava por causa do apagamento do /r/ final, como refere a passagem: «Quanto nao he feio, e até nauseoso ver hum jovem com barbas de profeta, e tao pintalegremente, como o mais afinado petit maitre de Pariz, e ouvilo pronunciar estou com muito caloir, cavallo carregadou, esquipadou, boi decedou, o mestre purgadou,

& C . & C !» (2).

O apagamento do /r/ final precedido da vogai /o/, fechada portante, fez essa vogai coincidir na articulado com a redugào do ditongo /ow/ para /o/. Os individuos que adquiriam tragos da norma prestigiosa, ao tentarem reconstituir naquele ambiente um ditongo que absolutamente nao existia, passaram a realizar a hipercorregào. Esse fato nos permite afirmar que a redugào do ditongo /ow/ era também um trago desprestigiado à época, que pouco a pouco foi adquirindo prestigio, sendo hoje parte da norma local. A o final do século XVIII já se realizava a redugào de /ey/ para /e/ conforme se viu acima. Se a redugào de /ow/ nào se realizava naquela época, pode-se hipotetizar que eia pode ter comegado por /ey/, difundindo-se por outros tipos de ditongo." 1 A alteragáo dos padròes silábicos e a migragào de /r/ para sílabas iniciáis nos estatutos do bispo parecem indicar um caso de hipercorregào, pois nos dois primeiros exemplos no quadro dos casos elaborados (d), as duas sílabas iniciáis ficam idénticas, com o /r/ passando a ser bastante peceptível na posigào em que passa a figurar (treato; cravào); no terceiro exemplo, o fonema /r/ também emigra para a sílaba inicial, embora menos perceptível, porque margem de sílaba, e talvez num estágio intermediàrio entre «vidraga» e «vridaga», existindo esta última forma na comunidade embora de maneira marcada. 3.4.4.3.4

Koineizagào e redugào da diglossia

A situagào que descrevemos acima tem semelhangas com aquelas onde se dà a diglossia (Ferguson 1959; 1996). Por isso nào é improvável que esse fenòmeno tenha ocorrido no Brasil no periodo estudado." 2 Cunha (1968, 20-21), considerando as condigòes culturáis e históricas de entào, se refere ao proble-

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Na norma recifense o ditongo /ay/ reduz-se a /a/ em certos ambientes fonológicos, por exemplo, nas palavras «caixa» e «baixa», sendo a sua plena realizado em certa medida um ato de pedantismo. Cunha (1986) aponta a antiguidade de /ay/ e /ey/ em relacjào a /ow/. Ainda nos anos 70 do século X X se acreditava que a diglossia era também ainda característica da comunidade lingüística brasileira, v. Froehlich ( 1975). Se, entretanto, admitirmos que a diglossia já foi totalmente substituida, restam apenas os manuais de gramática normativa, considerados consensualmente como ultrapassados.

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ma no Brasil. Sem dúvida, a distancia entre a lingua escrita, codificada nos manuais de gramática, e a lingua falada pela maioria favorece essa interpretaçâo. Na medida em que o processo de propagaçâo do portugués avança, a diglossia é paulatinamente reduzida, gerando-se urna aproximaçâo entre as duas variedades, sendo os traços mais marcados da variedade B pouco a pouco eliminados, de modo que o surgimento da lingua comum inscreve-se como urna variedade urbana, entre a variedade A - que pouco a pouco também perde seu status, na medida em que as elites sao substituidas e urna nova elite nacional se forma, com a alteraçâo das geraçôes - e a variedade B, que se reduz e se restringe à variedade rural, deixando entretanto influências na nova variedade. De acordo com a análise a que procedemos nos inventários dos fenómenos comentados pelos autores trazidos, é possível se depreenderem certos componentes de origem rural da norma e outros da variedade urbana. Se a grande maioria da populaçâo dominava urna variedade de base rural, que se encontrava bastante distante da norma escrita, o processo de modernizaçâo lingüística possibilitou a relusitanizaçâo da variedade local, favorecida por urna série de fatores, tais como a ampliaçâo da educaçâo 113 e o desenvolvimento da imprensa. Observando-se a distância entre uma variedade de máximo prestigio e a de mínimo (V+P e V-P), a constituiçào da nova vai representar uma aproximaçâo entre as duas - como foi o caso do inglés em muitas partes dos Estados Unidos (Gambhir 1982, 189) - favorecida pelos traços daquela variedade intermediària, nesse caso a VCI, sem se excluir de todo a possibilidade da contribuiçâo de VOE. A medida em que a complexidiade étnica se reduz e se transforma em complexidade social, a distribuiçâo sociolingüística se torna mais clara e o processo de urbanizaçâo favorece um certo nivelamento propiciado pelo pano de fundo sociolingüístico, considerando-se que a maioria daquelas variedades tomavam por base a lingua portuguesa. A elaboraçâo da norma é, em última análise, resultado da dissoluçâo da diglossia, senào da sua reduçâo, ao lado do desaparecimento de traços das variedades V-P e VCI, esta última sobretudo no nivel prosòdico, em face da origem européia comum. Os traços prosódicos da nova variedade foram recolhidos nos hábitos lingüís-

" 3 Lendo-se a historia do Liceu Pemambucano, percebe-se a crescente importancia do ensino da lingua portuguesa no Recife. Assim, somente com o Barào da Boa Vista a partir de 1837, lè-se: «E pela primeira vez lembra-se a necessidade de completar o Curso de Belas-Letras do Liceu com a criafào da cadeira Gramática Filosofica da Lingua Portuguesa (...).» (Montenegro 1979, 46). E ainda, citando artigo do Diàrio de Pernambuco, de 13/04/1841, sobre a reforma de ensino do Liceu e a harmonía entre as ciéncias e as letras: «Agora as primeiras no?6es do reino vegetal seriam impressas nos meninos com os primeiros ensáios da palavra escrita (...); os primeiros elementos do Cálculo com a primeira e v o l u t o da Gramática; as mais simples regras da Gramática geral (...).» (Montenegro 1979, 55). Parece que com a urbanizado corneja um período de estandardizado da lingua portuguesa. Compare-se o caso da Argentina, cf. Weinberg (1996).

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ticos das populares locáis; o sistema fonológico resultou da fusào de elementos do portugués europeu mais outros de origem rural; o sistema morfossintático modemizou-se na dire?äo da variante européia; e o léxico ficou também caracterizado pela fusäo, revelando o processo de koineiza^äo. Essa interpreta9äo parece indicar o destino de várias sociedades caracterizadas pela diglossia, pois como afirma Sotiropoulos (1982, 8), referindo-se ao caso do grego moderno: «The mixing of the H and L varietes is not an exclusively modern Greek phenomenon. It is in the nature of the diglossie dissolution to generate mixed languages during the first stages.» Por firn, gostariamos de ressaltar o tratamento dado por Koch (1977) ao problema da diglossia. Em face da prolifera5ào do conceito114 aplicado a diferentes comunidades, o autor foijou um sistema de classificafäo baseado no principio da fatora?ào como forma de dar conta da complexidade do tema. Tomando por base os conceitos de Fergusson, Fishman, Kloss e da lexicografía francesa, Koch estabelece diferentes parámetros para a interpretado das diversificadas situa^öes lingüísticas. Com esse sistema de interpretado, o autor pòde reconstituir os diferentes momentos da diglossia na Franca, partindo da sua origem e percorrendo diversos momentos da historia até chegar à situagào de hoje. Depois de submeter os diferentes momentos da historia aos conceitos de diglossia que o autor reuniu num conjunto de parámetros, Koch concluí: «Insgesamt bleibt also festzustellen, daß es diglossische Tendenzen im Französischen geben mag, daß diese aber bislang nur im Bereich der Grammatik deutlich ausgeprägt sind.» (Koch 1977, 244). Para concluir, o autor ainda faz algumas especulares sobre a situa?äo futura com base no movimento normal da mudanza lingüística e em fatores histórico-culturais, antevendo mais cedo ou mais tarde urna clara situagäo diglóssica na Fran9a tal como a descreveu Fergusson. Depois da análise do desenvolvimento histórico da formado do portuges urbano do Recife, voltemos agora às características da emergencia de variedades urbanas, tais como formuladas no tópico 3.4.1 para, em forma de resumo desta última parte do capítulo, confrontarmos as características apresentadas para o caso do árabe, tomado como modelo do tipo de fenòmeno, com as aqui investigadas, já que ele apresenta de forma bastante objetiva a natureza dessa emergencia: a) muitas das formas aqui analisadas e comentadas pelos autores eram formas estigmatizadas sobretudo pela origem rural e pela associa?äo com grupos sociais desprovidos de qualquer forma de prestigio na comunidade; b) para que a norma emergisse de sua procedencia rural, foi preciso que certas adapta§öes fonológicas e lexicais fossem feitas, tomando-se por base urna variedade de maior prestigio, no caso a variedade européia;

114

Sobre a prolifera?äo do conceito, ver Schlieben-Lange ( 1 9 7 2 , 1 7 3 - 1 7 8 ) e Hudson (1992,611-674).

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c) certas formas, embora socialmente estigmatizadas, foram mantidas, ganhando depois um certo prestigio, possivelmente pelo regionalismo e um certo orgulho da origem geográfica. Esses elementos que pertencem à consciéncia lingüística sao perfeitamente legítimos, considerando que foi ali onde predominou a rea§áo ao portugués ex-colonizador, principalmente depois da independencia; d) muitos dos elementos que nao se fixaram na norma passaram a se distritribuir de outra forma de acordo com os índices sociais do uso lingüístico. Um caso típico é o uso de tragos ainda socialmente estigmatizados presentes na fala de individuos de formagào culta," 5 mas que os usam em certas situagSes bem específicas como estilo ou com determinadas finalidades comunicativas; e) o processo de constituigao da norma com urna certa «estandardizado» e modernizagào no sentido mais informal nào se deveu a nenhum processo de planejamento formal. Apesar da política lingüista da metade do século XVIII, o que aconteceu é reflexo de um outro caminho, diferentemente dos meios formáis para a veiculagào de políticas intencionáis, como o caso da escola, que durante o século XIX se mostrou sempre deficitària. O que dissemos acima, para o caso do Recife, serviría também em certa medida para as principáis cidades costeiras brasileiras na primeira metade do século XIX, ai incluindo-se Salvador e o Rio de Janeiro, principalmente. Na primeira cidade, há que considerar a maior influencia negra e a mais persistente existencia de línguas gerais africanas. Na segunda, nao se pode esquecer o influxo lusitano no inicio do século passado - as estimativas oscilam entre dez e vinte mil portugueses emigrados com a Corte portuguesa - que deixou marcas em todas as variedades ali faladas. Relativamente ao Norte do país, ai predominou grande influencia indígena, apesar também das medidas de imposigào da lingua portuguesa no século XVIII. No Sul - fortemente identificado com a colonizagào mais tardía européia, face às levas de imigrantes sobretodo alemàes e italianos - percebe-se a nivel prosódico e fonético algumas diferengas das normas urbanas cultas ai constituidas. Comparativamente ao portugués do Recife - dentro das características acima identificadas para esta variedade - , pode-se dizer que a nào-articulagào do «r» final e a elevagào das vogais nào se verifica ñas normas cultas sulistas. No Sudeste, destaca-se o

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A forma «véi» /vey/, redu9áo da forma «velho», própria do non-standard rural, é ouvida entre individuos de instru§áo superior, mas como estilo informal num mesmo círculo de amizade. Sobre esse tipo de fenómeno Oesterreicher (1994,173), inspirado em Eugenio Coseriu, comenta: «Así, un elemento con una impronta dialectal acentuada pasa a ser usado en la dimensión diastrática con una valoración baja y un elemento con una impronta diastrática baja se usa corrientemente en situaciones comunicativas más o menos informales que atañen a la dimensión diafásica (...).» A isto ele chama de cadeia variacional. 150

fenómeno de Sao Paulo - com um significativo processo de urbanizado lingüística no século XIX - onde o «dialeto caipira», a principio dominante, restringiu-se a urna determinada área, deixando entretanto seus efeitos na norma culta local." 6 Em Minas Gerais" 7 - inicialmente influenciado pela variedade falada em Sao Paulo - a realidade lingüística complexifica-se posteriormente, considerando-se o influxo de origem negra e o desenvolvimento do ciclo do ouro, proporcionando um interessante processo de urbanizado com maciza imigragao portuguesa com efeitos também sobre os usos lingüísticos locáis. Consideramos - a título de ilustrado para o portugués recifense - o sistema fonológico. Aqui as marcas do processo de constituido da norma podem ser percebidas mais claramente, o que facilitou a percepgáo e o registro por individuos, que deixaram seus comentários sobre os fenómenos. Por outro lado, conseguir informales sobre a variado sintática oral é mais difícil, por causa da imagem da língua escrita, que encobre muitas vezes certas peculiaridades da oralidade. Mas até mesmo ai as tensóes entre oralidade e escrita existem e em certos textos escritos - principalmente os de caráter semi-oral a oralidade se insinúa. Duarte (1989) e Galves (1987) citam fenómenos de apagamento do pronome objeto na língua escrita, já que na oral é marca das diferentes normas regionais ou sociais. Isso vem mostrar que o portugués brasileiro é um campo fértil para observado de fenómenos dinámicos, muitos deles caracterizados como mudaba em progresso. A tradi§áo da interpenetrado das duas modalidades discutidas na historia constitui-se, portanto, como crucial para a compreensáo do desenvolvimento das variedades urbanas brasileiras. Dessa forma, no capítulo 5 analisaremos textos de jomáis recifenses da primeira metade do século XIX, apontando marcas da oralidade na sua constituido. Partindo do conceito de semi-oralidade, mostramos como tais textos se podem caracterizar sob essa perspectiva, exatamente num mo-

" 6 Esse fato aparece na introduçâo do livro de Amadeu Amarai, que ao escrevê-lo em 1920, referia-se à influência que o dialeto caipira exercia sobre a fala da minoría culta de Sao Paulo ainda ao final do século X I X . Veja-se Révah (1959, 276). Por isso nâo se pode deixar de considerar essa influência sobre a fala paulistana, se se quiser estudar a formaçào de urna norma urbana na cidade de Sao Paulo. 117

Assim como todos os centros urbanos brasileiros, o portugués falado em Belo Horizonte deve ter influência das variedades rurais basicamente. Mas a posiçào geográfica e as circunstâncias históricas de sua formaçào apontam também para outras influências, talvez sobretudo do Rio de Janeiro. Aquela capital, por nâo ter na época preenchido os requisitos do N U R C , ficou de fora do projeto. Outro centro jovem, já com mais de trinta anos, Brasilia, capital do país, revela como o contato entre migrantes de diferentes regiôes tem levado à fusâo diale tal, evidenciando a ebuliçâo lingüística que está ocorrendo ali e como a variedade local está se formando (Bortoni 1991). Pelo caráter universal de certos aspectos da migraçâo para a configuraçâo lingüística de várias sociedades, os fenómenos observados pela autora podem ser úteis para se entender o que ocorreu em outras cidades brasileiras, que viveram situaçôes semelhantes há séculos ou décadas.

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mentó histórico em que mudanzas sociais ocorriam naquela realidade histórica. Exatamente essas circunstancias históricas e a natureza dos textos analisados - hoje nao mais encontráveis dentro da perspectiva da rela§áo oralidade/ escrita em que se constituem - sao indicios do processo de constituido de urna variedade urbana local, que somente através do testemunho da escrita, é possível se reconstruir. Antes, porém, no capítulo 4, faremos urna caracterizagao externa e portanto mais ampia da semi-oralidade brasileira, para que os leitores compreendam como o paño de fundo histérico-cultural possibilitava manifestares lingüísticas, tais como as explicadas no capítulo 5.

152

4

4.1

Entre Oralidade e Escrita: a semi-oralidade brasileira na primeira metade do século XIX

Introduco

Nosso objetivo neste capítulo é fazer urna reconstru£ào externa do papel da semi-oralidade no Brasil na primeira metade do século XIX. Trata-se, pois, de urna abordagem histórica dentro de urna perspectiva cultural, excluindo-se portanto urna análise de fenómenos lingüísticos de per si. Para isso tomaremos como ponto de partida urna caracterizado ampia do fundo cultural que favorecía a manifestado da oralidade como preponderante, concedendo-se à escrita um lugar secundário até mesmo em situa§òes onde sua primazia devia ser esperada. Para tratar, pois, das técnicas da oralidade, da escrita e da rela§ào entre elas no Brasil do século XIX, consideraremos inicialmente o papel da oralidade em si mesma; dentro desse aspecto, destacaremos dois fenómenos, o analfabetismo e a tradi§ào oral, como pano de fundo cultural. Quanto ao primeiro, é a partir dele que a preponderancia da oralidade se explica, por isso estará sempre presente ñas nossas abordagens; enfatizaremos, dentro do segundo, a influencia ibérica dos primeiros colonizadores; depois o rico papel da tradi^ào indígena e a influencia das culturas africanas transplantadas, compondo esse segundo aspecto do contexto cultural; em seguida, discutiremos a constituido da lingua escrita. Esta era privilègio de urna miñona que a aprenderá em instituifoes tais como escolas, seminários e faculdades. Principalmente os individuos que de alguma maneira pertenciam às elites e dessa forma estavam envolvidos na burocracia do Estado - os literatti de entào compunham a minoría que a manuseava.1 Por fim, analisaremos as formas intermediárias de elaborado ou transmissào dos conteúdos dos textos, sobretudo a leitura em voz alta, que se constituiu em importante forma de transmissao de mensagens às p o p u l a r e s privadas do contato com a leitura-escrita naquele tempo. Já que a grande maioria nao sabia ler/escrever - porque numa sociedade escravocrática esse saber representava um bem de classe - , nào fazia sentido a distribuido de material para a leitura pelas autoridades do governo. Por isso cresce em importància a

' Para nào parecer tao radical nossa análise, a u t i l i z a l o privada de cartas devia constituir também parte da cultura das carnadas excluidas do processo reprodutivo de transmissao do saber, como única forma de produco escrita, no Brasil do século XIX, apesar das dificuldades do transporte de mensagens escritas à época.

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transformado do material escrito em oral, que passa a ser fundamental para a veiculagáo da palavra escrita. Isso ocorre em todos os campos, seja no da diversáo, através do contato com a literatura popular, seja em outras atividades, quando o povo tinha de ouvir as determina^oes governamentais. Somente depois da análise de todo esse paño de fundo, é que se poderáo fazer constatases mais concretas sobre o desenvolvimento histórico da língua portuguesa na realidade brasileira.

4.2

A oralidade: sua importancia para as tradifoes lingüísticas gerais

A tendencia, dominante durante muito tempo, de ver a oralidade como algo totalmente separado da escrita já foi superada. Hoje é mais salutar se procurar ver as formas de inter-relagáo entre as duas modalidades, porque em diferentes contextos culturáis essa inter-rela§ao é inevitável e até necessária. O próprio desenvolvimento da escrita nao pode se dar sem a intermediad0 da oralidade. Durante a Revolugáo Francesa e o Iluminismo, por exemplo, a inter-relafáo entre as duas modalidades se mostrou deveras frutífera, constituindo-se essa situado histórica como exemplar para o que discutimos aqui. Schlieben-Lange (1983, 64-67) apresentou algumas teses elucidativas para aquele contexto histórico.2 Urna primeira tese dá conta da existencia na Franga do século XVIII de duas culturas separadas, urna oral e outra escrita, que se deduz da situado da alfabetizado á época, da historia da divulgado dos diferentes géneros da literatura e pelas crescentes dificuldades de comunicad 0 entre Ville e Campagne; urna segunda tese diz respeito a duas tendencias visíveis entáo, a saber: a idealizad 0 do diálogo e a expansao da cultura escrita, como exigéncia do Iluminismo, que ao adotar essa premissa, apóia-se na cultura oral e ao mesmo tempo a marginaliza; numa terceira tese, a autora, ao frisar a imposigáo da opiniáo pública burguesa sobre a do absolutismo, aponta como manifestado desse fenómeno a intensificado do diálogo e da discussao como situa?oes comunicativas ideáis. Essa situado típica da oralidade se reflete na língua escrita, principalmente no surgimento de urna literatura epistolar. Paralelamente a isso, desenvolve-se a privatizagao da conversado; em seguida, em face do ideal iluminista de derramar suas luzes sobre todas as carnadas da populado, surgem certos textos escritos direcionados para urna concepdo oral, através sobretudo da simplificado e emprego do diálogo como tentati-

2

Há quem veja a Revolugáo Francesa como um período de modernizagáo da Fran?a, baseando-se sobretudo no papel exercido pela educajao. Veja-se sobre isso Harten (1992). A partir dessa perspectiva pode-se também compreender a dinámica dessa inter-rela§áo entre oralidade e escrita naquele acontecimento histórico, fenómeno comum em sociedades que vivem processos de modernizado ou urbanizagáo.

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vas de aproximado da oralidade; outra tese apresentada pela autora pòe em evidencia o papel das redes de comunicagào oral para corporificado dessa literarizagào do século XVIII. O cerne desse processo é a leitura em voz alta, nos clubes e sociedades, de textos revolucionários que a partir dai vào entrar em circulagào; por fim, os textos do tempo da revolugáo oscilam entre oralidade e escrita, nào permitindo portanto se saber se o que teria existido no inicio era um texto oral ou escrito. A isso voltaremos adiante. Além dessa situagào que classificamos de exemplar para a relagào oralidade e escrita na historia, há outras situagòes em que a oralidade até mesmo moldou a gramática de urna lingua. Trata-se do espanhol antigo. Neumann-Holschuh (1994), baseando-se em certas especialidades sintéticas, investigou textos literários espanhóis dos séculos XII, XIII e XIV e constatou que a natureza oral dessas construyes é um indicio claro de que aquela lingua nào tinha atingido ainda o estágio de lingua escrita. Inspirando-se em Fleischmann (1990), quanto ao papel desempenhado pela oralidade na constituigào da gramática dos vernáculos medievais, a autora investigou até que ponto textos caracterizados por tragos da «lingua de distancia» eram fortemente influenciados pela oralidade. Essa situagào particular do espanhol antigo nos remete para o caso da formagào das línguas románicas. Sendo o latim a lingua que predominava ñas situagòes mais formáis - principalmente quando se tratava de lingua escrita - , restava ao romance o espago caracterizado pelas relagòes de proximidade, onde a oralidade se identificava com as línguas em formagáo (Koch/Oesterreicher 1990). Outro caso sugestivo, embora numa outra perspectiva, é o da literatura basca, que no seu processo de elaboragào, voltou-se para a grande tradigào oral, aproveitando os textos da chamada literatura oral. Assim essa fonte literária vai ser transformada, adotando os ritmos, normas e mecanismos da escrita, introduzindo dessa forma urna nova tradigào naquela literatura, ou seja, o que nasce no mundo oral, mas se conserva e atualiza através da escrita (Lekuona 1985, 33). Pelos exemplos, resulta claro que o papel da oralidade foi crucial em vários aspectos para o desenvolvimento da lingua escrita em várias sociedades, prova inconteste de como as duas modalidades se relacionam na historia, constituindo determinadas tradigoes lingüísticas. 4.2.1

O analfabetismo brasileiro nos tempos coloniais

Numa sociedade cujo índice de analfabetismo atinge quase a totalidade de individuos é sem dúvida a oralidade que exerce o seu primado. Dessa maneira, uma das formas de caracterizar esse predominio é via análise da situagào da educagào para, através da caracterizagào do analfabetismo, se chegar a algumas evidencias nessa diregào. Embora na literatura especializada nào se encontrem dados que esclaregam com seguranga o verdadeiro estado do analfabetismo naquele momento, nào é difícil se inferir o quadro de tal situagào. É claro, entretanto, que dados mais promenorizados do problema, tais como sua 155

caracterizado lingüística, isto é, como se manifestava esse analfabetismo do ponto de vista lingüístico, sao difíceis de serem totalmente reconstituidos. Numa sociedade escravocrática o acesso á leitura era um bem de classe e a maioria da populado estava alijada desse bem, nao constituindo assim o saber lingüístico dessa massa nenhum interesse para as classes dominantes. Por isso nao se vai encontrar na literatura nenhuma referencia as formas de apropria§ao da leitura nem ao resultado das tentativas dessa apropriado por parte dos setores alijados da participado ativa na vida social. Até mesmo o mero recenseamento da totalidade de individuos, com a mais aproximada exatidáo numérica, nao se sabe. Para se ter urna idéia, o próprio recenseamento da populado brasileira, de cunho oficial, vai ser realizado somente pelos fins do século XIX, quando alguma informado sobre número de escravos analfabetos é fornecida.3 Somente a partir da reconstituido de formas de acesso ao texto escrito, coletadas em trabalhos de pintores e informado de viajantes e na própria literatura, pode-se contrapor algo de novo á informado superficial que o censo oficial fornece.4 De posse dos elementos de que dispomos, portante, vamos proceder a uma reconstituido da situado da oralidade e da escrita - via analfabetismo - para deduzirmos em que medida essas modalidades se sobrepunham ou se complementavam, dentro da realidade brasileira. É, pois, uma análise do aspecto externo do uso lingüístico, voltada para o contexto sócio-histórico e o manuseio de certos tipos de textos, que nao se separam meramente em oral e escrito, mas se interpenetram na escala concepcional da distin?ao entre oral e escrito contemplando-se também as formas intermediárias.5 4.2.2

Uma retrospectiva histórica

Ana Maria A. Freire (1989) divide a educado brasileira do seu inicio até a metade do século XIX em cinco fases, a saber: 1 - período da instalad 0 das capitanías hereditárias ou de nenhuma preocupado com a educado escolarizada (1534-1549); 2 - período jesuítico ou do inicio da ideología da interdigo do corpo (1549-1759); 3 - período pombalino ou da remodelado iluminista (1759-1808); 4 - período joanino ou do inicio da instalado do aparato burocrático do Estado brasileira e da educado escolar como necessidade deste (1808-1822); 5 - período pós-autonomia política ou da inexistencia de um sistema educacional próprio de um Estado nacional (1822-1850). O analfabetismo brasileiro é inaugurado pelos jesuítas desde o século XVI. Considerando a pequeña valorizado das escolas de primeiras letras e o conteúdo dos currículos de entáo, conclui-se que o ensino jesuítico estava

3

4 5

Para crítica aos números de escravos analfabetos no primeiro censo brasileiro, v. Moysés (1994). Veja-seMarcílio(i974). A distinfáo/relagáo médium e concepgao será feita no tópico «semi-oralidade».

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voltado para a forma?ào das elites agrárias, nào havendo preocupa§ào com a alfabetiza?ào de todos. Nos primeiros anos da chegada daqueles religiosos, foram abertas escolas de ler e escrever e aulas de lingua portuguesa para os indios e filhos de colonos brancos e mamelucos. Depois de 1570, com a morte do padre Manoel da Nóbrega,6 muda a orientalo com a falta de interesse pela e d u c a l o dos indios, privilegiando-se quase que exclusivamente os filhos dos colonos brancos. A partir de 1599 instituí aquela ordem religiosa a «Ratio atque Instituto Studiorum Societas Jesu» 7 , dando ènfase ao ensino do latim, e do grego, à filosofia, à teologia e às humanidades, ficando para o segundo plano o ensino elementar. Este periodo vai até à época de Pombal, quando cometa o ensino público. Em 1759, com a expulsào dos jesuítas, entra em vigor o periodo pombalino e a instituido da «reforma da instrugào pública». A principio, antes da instituido dessa reforma, se passam treze anos para a sua efetiva§ào, adotando-se «aulas avulsas», muitas vezes conduzidas por professores improvisados ou por professores régios, que encontraram muita dificuldade em se contrapor à tradÌ5ào já arraigada deixada pelos jesuítas. Quanto à promo^ào do ensino das primeiras letras implantado pela reforma pombalina, na verdade isso nào se constituiu como algo muito significativo em relagào ao ensino do latim. Essa situalo nao tinha mudado significativamente quarenta anos depois do subsidio literário. Entre 1 8 1 2 e 1 8 1 5 ñas primeiras cidades brasileiras, encontram-se cerca de vinte professores de primeiras letras para cento e quatto de latim.8 O fato comprova o que havia em 1772 e confirma a continua9ào do analfabetismo da massa vivendo no dominio da oralidade (Castro 1984), considerando-se o ensino oficial. Mas, apesar do fracasso da reforma pombalina, tanto os poetas da inconfidencia mineira no final do século XVIII, quanto os estadistas que fizeram a independencia e o público leitor dos pasquins do inicio do século XIX 9 foram formados por eia, ao lado naturalmente do papel das ordens religiosas,10 sobretudo dos oratorianos. Assim, nos primeiros anos da segunda metade do século XVIII, esses religiosos abriram as portas das aulas para os de fora e em Pernambuco sua a?ào foi até após a revoluto de 1817, porque muitos deles tomaram parte naquele movimento, quando entào come£ou a diminuir. Ali - afora o colégio jesuíta de Olinda - existia apenas a casa dos oratorianos com 79 pessoas entre

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Padre Manuel da Nóbrega ( 1 5 1 7 - 1 5 7 0 ) . Denomina9áo do plano educacional jesuítico, que regeu a educa^áo ministrada por aquela ordem entre 1 5 9 9 e 1 7 5 9 . No Recife em 1 8 1 7 havia très professores de latim, um de filosofia e outro de eloqiiència e poética (Casal 1947, 172). Temos que considerar que todo esse público era ainda muito diminuto em rela9ào à propaga9ao da leitura que vai acontecer depois de 1850. Além dos Jesuítas, estiveram presentes no Brasil naquela época os Franciscanos, Capuchinhos, Beneditinos, Carmelitas, Oratorianos e as Mercedárias (Holanda 1960, 7 2 - 7 4 ) .

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padres e irmaos, que se dedicavam as missoes no interior da provincia. Imbuidos da formagáo espiritual e cultural do povo, esses religiosos faziam preceder a essa instrugáo o ensino da língua portuguesa,11 conforme urna certa tradigao das cartinhas de D. Diogo Ortiz (Andrade 1978a, 68-72). Nesse sentido, os oratorianos tiveram urna atuagáo fundamental para a instrugao da populadlo. Para compreendermos melhor a situagáo da educagáo da língua portuguesa, da leitura e da escrita no século XIX brasileiro, faz-se necessária urna retomada histórica da situagao da educagao do século XVIII, porque acreditamos que é ai que tudo se origina. Em primeiro lugar deve-se enfatizar que o estudo da língua portuguesa só cometa a se vulgarizar nesse século com a modernizagáo do Estado portugués e a imposigáo da língua portuguesa. Como conseqüéncia desse quadro, como um bom exemplo da situagáo do país, vale citar o caso de Pernambuco, onde nem a metrópole nem o Estado mantinham urna só cadeira de primeiras letras (Brandao 1924, 60), o que só aconteceu com o subsidio literário a partir de 1774, e daí para o século X I X distam apenas vinte e seis anos, o que nao era muito tempo dentro das dificuldades e lentidáo da época. Nao se pode negar que algumas ordens religiosas supriam de alguma forma as lacunas nos engenhos e nos conventos, mas isso nao se configurava como educagao pública. Ao final desse século, os estatutos do Colégio de Nossa Senhora da Gloria 12 revelam a preocupagáo de ordem lingüística. Ali se alertam as mestras para diferentes usos lingüísticos.13 Específicamente quanto a quem assim se desempenhava lingüísticamente, escreve

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Temos de distinguir duas formas de agao das ordens religiosas quanto á precedencia da língua portuguesa em relagáo ao latim. No ámbito das missoes, pelo interesse cultural; e no ámbito da reforma, pelo aspecto metodológico, porque, na reforma, como temos mostrado, o ensino do latim continuou mais valorizado do que o ensino do portugués. Para reforjar essa constatado, Andrade (1965, 167-168) se refere aos trabalhos publicados pelos Néris na metade do século XVIII cujo prestigio se prolongou até a metade do século XIX. Trata-se de dois manuais do padre Antonio Pereira de Figueiredo. Um é O Novo Methodo da Grammatica Latina para Uso das Escholas da Congregando do Oratorio, em dois volumes, publicado entre 1752 e 1753; o outro é O Novo Methodo da Grammatica Latina, reduzido a compendio, de 1758. Além da importancia desse educandário de mojas, o papel desempenhado pelo Seminario para a elevagao do nivel cultural de certos setores da populagáo local pode-se aquilatar pela formagao de pastores, que, por sua vez, formavam jovens, e pela formagao de outros individuos hábeis para empregos; além disso, sob o bispado de Azeredo Coutinho, formaram-se ñas principáis vilas escolas primárias pagas pelo Estado, possibilitando o acesso de pessoas pobres á educa?ao (lavares 1969, 30-31). Conforme os casos que comentamos no capítulo 3.

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Gilberto Freyre que eram brancas e filhas legítimas, mofas da casa-grande e de sobrado, que eram pois as que podiam freqüentar o citado colégio. 14 Sob outra perspectiva, podemos também explicar a necessidade da amplia d o do uso e contato da escrita no Brasil do século X V I I I com a nova dinámica sòcio-econòmica que ali se experimentava. O pròprio desenvolvimento das atividades que aparecem em face do crescimento demográfico cometa a definir centros urbanos que comegam a ganhar configurafào, tais como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Vila Rica. Ali se desenvolve urna populagao originada das zonas rurais, que passa a se vincular à ordem urbana. Dentro desse quadro surgem profissoes que passam a ser da exclusividade de elementos metropolitanos, nao acessíveis aos da colonia. Na complexificafáo urbana que se segue, emergem a importancia e o valor do saber e da instrufào, surgindo a necessidade da comunicado escrita do particular ao particular em vez da autoridade à autoridade. Além disso, surge entào nesse incremento do meio urbano a necessidade de quem soubesse as leis, quem as defendesse e quem as aplicasse, o que também no fundo significava saber lè-las e interpretá-las. E nesse contexto cultural novo que os elementos dotados da dimensào intelectual, que sao os padres, muitos deles mulatos e pobres (Sodré 1976, 1 3 7 - 1 3 8 ) , vào exercer grande influencia. E ainda nesse contexto ¿luminista que surge o Bispo Azeredo Coutinho para dar continuidade no derrámente das luzes às populares até entào esquecidas do ponto de vista da promofào cultural pela metróple. O Seminàrio por ele criado de nivel secundário vai durante os primeiros dezessete anos do século X I X forjar um plèiade de padres, leitores dos filósofos enciclopedistas franceses do final do século XVIII, que vào ser o sustentáculo das revolufòes pernambucanas de 1 8 1 7 e de 1824. Do ponto de vista lingüístico e literário, nos estatutos daquele Seminàrio, propòe seu autor urna ortografia simplificada que procura estabelecer urna relafào unívoca entre som e letra, seguindo claramente a proposta de Verney. Na primeira metade do século X I X , portante, vamos encontrar, ao lado da massa de analfabetos, 15 individuos que aprenderam de alguma forma o manu-

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Curiosamente, para mostrar os hábitos lingüísticos rurais arraigados ñas populaf5es locáis, até mesmo entre as familias dos grandes senhores de engenhos e de escravos, Gilberto Freyre afirma que o falar «fanhoso» e arrestado caracterizava nao somente os habitantes de um modo geral, mas também as grandes familias, como os Wanderley das cidades de Serinhaém e Rio Formoso no litoral sul pernambucano, cujos escravos aprenderam a falar da mesma forma pelo convivio do trabalho doméstico (Freyre, 1968, vol. I, 79). Também dentro desse contexto, os autos da devassa da revoluto pernambucana de 1817 revelam especificidades lingüísticas de parcelas importantes da popula^ao, como o desempenho lingüístico dos militares, um dos poucos setores letrados daquela sociedade (Mota 1972). Entre esses individuos, Meló (1973, 121-122), citando Alves de Matos, destaca o analfabetismo de importantes setores da sociedade portuguesa, emigrados, como elementos da pequeña burguesía, a alta nobreza e componenetes da familia real. O dominio da leitura e da escrita geralmente se restringia a sacerdotes e á cúpula da administra9ao. 159

seio de textos em lingua portuguesa, muito próximos do que chamaríamos semi-alfabetizados,16 além de urna minoría detentora das melhores habilidades em todos os níveis de uso da lingua portuguesa. Com a chegada da familia real ao Brasil há a necessidade de f o r m a d o de urna elite burocrática para cuidar da administradlo da nova capital do reino e da ampliado do s e r v i i público. Com isso, ao lado de aulas avulsas que continuam, crescem as aulas de ler e escrever, privilegiando aquela minoría. Fundam-se nesse periodo a imprensa règia17 com a circulado do primeiro jornal brasileiro, a gazeta do Rio de Janeiro e, em 18 io, a primeira biblioteca pública. Dessa forma, cria-se alguma demanda pela ìnstrugào pública porque cresce a necessidade da leitura. Depois da independencia, surge através de urna lei o primeiro plano18 de educado nacional, que se resumía na criagào de duas faculdades de Direito, a de Olinda e a de Sào Paulo - de novo para criar as elites da administrado, do aparato jurídico, a que já aludimos no capítulo 2 - e na c r i a d o das escolas de primeiras letras em 15 de outubro de 1827. Essa lei parece urna extensáo da reforma pombalina, nao no objetivo, mas naquilo que afeta a educado diretamente. Inicialmente determinava que cada cidade e vila deveriam possuir escolas de primeiras letras. Com eia é introduzida a idéia da lingua portuguesa como lingua nacional, porque era a primeira lei, depois da independencia, que tornava como livros de leitura a constituido do Impèrio e a historia do Brasil, adotando o método do ensino mùtuo (Bittencourt 1953,43-44). Como nào houve a criado de um curso primàrio completo, continuou-se a idéia de aulas avulsas. Aliada à inexisténcia de cursos de formado de professores que cuidassem da alfabetizado - a primeira escola normal foi fundada em Niterói em 1835 - , a situado do analfabetismo continuava como crucial porque contra ele nào havia nenhum plano organizado.

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A «semi-alfabetizados» chamamos os individuos que, embora de alguma forma iniciados na alfabetizado, ficaram apenas na restrita competencia de assinar o nome, ou ainda, aqueles que, ultrapassando essa fase, escreviam textos muito próximos da concepgáo oral, isto é, nao eram capazes de transformar sua competencia oral imediata em concep?áo escrita, observando as regras dessa transforma?5o. Marques de Meló coloca o problema do analfabetismo como urna das causas do atraso da chegada da imprensa ao Brasil. Dessa forma, é só por volta de 1810 que se criam as condi§5es para o desenvolvimento cultural da populafáo, destacándose ai a maior facilidade de acesso a materiais de leitura. Sendo a educado, P°is> limitada no Brasil-colónia, nao havia condifóes de se criar um público capaz de consumir livros e, em conseqüencia, capaz de se interessar por jomáis (Meló 1973, 120-125). Esse plano ensejou urna grande discussáo a nivel parlamentar sobre os locáis onde se deveriam instalar as faculdades de Direito. Dessa discussáo pode-se filtrar um dado importante sobre a realidade lingüística de Sao Paulo, que a principio foi preterido, por ser «o dialeto ali menos correto», talvez por ainda estar marcado pela influencia indígena, intensa que foi naquela provincia. Por outro lado, elogiava-se a fala do Rio de Janeiro e a de Minas Gerais (Rodrigues 1985). 160

Com urna populaçâo de mais de 25% de escravos, nâo havia interesse do Estado, portante, em promover a educaçào gérai dessa populaçâo nem mesmo como aparelho ideológico, já que numa sociedade escravocrática a ordem era mantida pela violência legalizada pelo sistema escravista. A s carnadas médias continuavam usufruindo das aulas avulsas. Os filhos dos senhores recebiam a sua educaçào na propria casa ou ñas escolas para esse fim instituidas e conduzidas pelos tios-padres. Em 1834, com a criaçâo das assembléas provinciais, a organizaçâo do ensino elementar ficou na mâo das provincias, que sem recursos humanos e económicos evidentemente também nâo instituíram as escolas básicas. Analisando-se os relatórios da época, para se ter uma idéia mais concreta da situaçâo do ensino no período, percebe-se que esta era difícil e precària.19 Além disso, o método lancasteriano20 adotado se revelava falho nos relatórios e nâo havia prédios públicos para escolas. Tomando ainda por base o número de alunos que freqüentavam escolas na corte, deduz-se que o analfabetismo era alimentado a cada dia e junto com a escravidâo dava a medida da sociedade brasileira até a metade do século XIX. A ponte que representa o jornal no sentido da produçâo e do consumo do material de leitura pelos novos leitores dos primeiros anos do século XIX vai se intensificar pelos anos seguintes e de forma mais acentuada em urnas ou outras cidades. E curioso que no Recife já em 1832 o jornal O Carapuceiro faz referencia ao contato de individuos de extratos inferiores em contato com o jornal, através do qual sem dúvida muitos se alfabetizaram, interessando-se, segundo o periódico, pela situaçâo política.2' Mas foi com o Romantismo" que começou a se solidificar um público leitor brasileiro. Sobretudo a mulher e o jovem das classes superiores em primeiro plano e os comerciantes, funcionários e militares, como elementos da embrionária classe média num segundo, compòem esse público restrito. A principio é a obra de Manuel Antonio de Macedo com as «Memorias de um Sargento de Milicias» que lança o romance e estimula aquele público saído das escolas de primeiras letras. Em seguida, dentro da corrente do indianismo, o livro «O Guarani», de José de Alencar (Sodré 1976, 280-281 ; 319). Por esse período, os próprios escritores român-

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«(...) faltavam mestres e mestras que soubessesm ensinar os conteúdos indicados pela Lei de 15 de outubro de 1827 (...) os alunos nao estavam preparados para os estudos maiores nem para se ocuparem nos misteres da vida.» (Freyre 1989, 53). «O método deveria ser o do ensino mutuo, que andava em moda, entre nós, desde 1823, depois que Bell (1753-1832) e Lancaster (1778-1838) o tinham preconizado na Inglaterra, ñas primeiras décadas do século.» (Bittencourt 1953, 44). Cf. item 3.2.2.3 do cap. 3. Anteriormente ao surgimento do romance, tém importancia o teatro e o jornal. Os escritores da época, por exemplo, se dedicam ao teatro como forma de a l c a f a r o público. A relafáo do teatro com a oralidade justifica o seu crescimento, em compara£ao ao desprestigio do livro. É por isso que se cria um público de teatro e até uma crítica teatral se desenvolve, tudo antes do prestigio do folhetim (Sodré 1976, 319-321).

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ticos, como Alencar e Macedo - os mais lidos da época - dispunham de moleques que vendiam suas novelas de casa em casa, de cesta à mào. Esse movimento por volta da metade do século promovía o hábito de ler novelas ou folhetins entre membros das classes mais altas, tais como as iaiás das casasgrandes ou dos sobrados (Freyre 1985, 83-85) e os folhetins románticos empolgaram os jovens saídos das aulas de cartilhas (Menezes 1982, 188-200). Dessa forma, na perspectiva do saber enquanto privilègio de uma carnada social, nào interessava a educagào primària escolarizada. Pelo contràrio, interessava apenas uma educagao superior para urna elite encarregada da burocracia estatal, a quem, por sua vez, interessava unicamente o diploma como marca de classe, perpetuando-se as posifòes sociais, políticas e económicas. Ao se perpetuarem as relagòes sociais de produgào e o sistema escravista, deduzse que o que restava às popula9Òes alijadas do processo histórico era o analfabetismo (Freire 1989, 57-58). Mas se concordamos com Marques de Melo, citado acima, sobre o atraso da impiantataci da imprensa brasileira, é de supor que por volta da terceira década do século XIX em diante, já houvesse se constituido um certo público leitor nào mais exclusivamente pertencente aos setores privilegiados, mas de outra procedencia social, em face da relativa ascensào de individuos identificados com o Brasil como resultado do processo de miscigenagáo ainda em marcha. Além do mais, embora grandes percentuais da populagào nào exercessem a leitura silenciosa, participavam de outra forma desse processo, como ouvintes das sessSes de leitura em voz alta que os alfabetizados proporcionavam e assim refaziam o texto de modo pessoal.23 Ao lado destes é de se supor também os individuos semi-alfabetizados que liam a seu modo e também escreviam ou ditavam para que se escrevessem seus textos, fazendo emergir naturalmente textos com certas peculiaridades lingüísticas.

4.3

A t r a d i t o oral brasileira: a literatura oral

A oralidade tem também sua tradito, que fora do àmbito da vida comum do dia-a-dia, é suporte de veiculagào do folclore e de uma literatura nào-escrita, transmitindo-se de gerafào a geragào. A oralidade pois do analfabetismo brasileira era já histórica e reunia a influencia das correntes étnicas que forma-

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Aqui podemos mencionar como o escravo se relacionava com a alfabetizado, segundo escreve Moysés ( 1 9 9 4 , 2 0 7 - 2 0 9 ) . Embora alijado de uma maneira geral desse processo, ele se encontrava em contato espontáneo com a leitura na medida em que levava cartas, bilhetes para os namorados das sinhás ou quando ouvia oraliza§oes de textos, que se realizavam dentro do ambiente doméstico, tais como a repet¡9áo das ora§oes em épocas de chuvas, além de presenciar o processo de alfabetizado dos filhos dos senhores, que se inspirava na leitura em voz alta. A s sim, o negro - aprendiz da língua portuguesa - ouvia esse tipo de leitura, e á sua maneira recriava o percurso da alfabetizado.

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ram o p o v o brasileiro, ou seja, o portugués, o indio e o africano. Importa agora r e c o n s t r u i m o s um pouco dessa tradiçâo oral que se encontrava viva naquele momento do século X I X . O s primeiros colonizadores chegados da Península Ibérica trouxeram consigo um tradiçâo oral que j á era antiga naquela parte da Europa. E nao só plenamente oral, mas também urna literatura popular escrita - colhida na tradiçâo - que tinha a sua veiculaçâo e m Portugal e na Espanha, onde era lida em v o z alta em várias ocasioes. N o Brasil essa literatura é reimpressa e c o m e ç a a constituir urna nova tradiçâo, sobretudo no Nordeste brasileiro. A s s i m , sao reimpressos livrinhos populares c o m motivos literários dos séculos XIII, XIV, X V , X V I , dentre eles «Donzela Teodora», «Imperatriz Porcina», «Princesa Magalona», «Joâo de Calais» e «Carlos M a g n o e os D o z e Pares da França», «Roberto do Diabo», dentre outros (Cascudo 1978). Essa tradiçâo européia trazida para o Brasil vai encontrar outra j á estabelecida, ou seja, a indígena. Sendo a língua geral até meados do século X V I I I a língua majoritária da populaçâo brasileira, havia nessa língua toda a tradiçâo oral indígena que era conhecida da maioria daqueles falantes brasil e r o s . E nao só havia uma tradiçâo oral veiculada nessa língua, mas ela também foi o veículo da transmissâo de outra, a de origem portuguesa, porque era a língua usual. O próprio hábito de contar histórias ao final do dia - quando todos os membros da familia se reuniam e m torno da mesa para o jantar, rememorando os acontecimentos do dia na narraçâo dos membros da familia - era uma tradiçâo indígena brasileira, conhecida por «poranduba» na língua geral e foi muito c o m u m no interior brasileiro até recentemente (Cascudo 1978). Por uma certa semelhança entre as populaçôes indígenas e as africanas, mais o contato próximo c o m o colonizador, as tradiçôes veiculadas por essas culturas se fundiram num processo de mestiçamento. O hábito de contar histórias, cantando ou narrando, por parte dos trovadores africanos, conhecidos por «akpalô» (no francés griot), também foi c o m u m no Brasil, possibilitandose a fusâo de toda uma tradiçâo que se aproximava pela sua natureza oral. (Diégues 1973, 11). A narradora india foi substituida pela africana, que ao fazer dormir as crianças brasileiras, contava histórias maravilhosas da terra distante e multiplicava as outras ouvidas das moças e mâes brancas, desempenhando assim um papel poderoso na propagaçâo, fixaçâo e desdobramento dos contos africanos, acomodando-os à mentalidade do menino brasileiro, propiciando a divulgaçâo de um vocabulário curioso, que se fixou no portugués do Brasil (Cascudo 1978). 24 D a tradiçâo ibérica que chegou ao Brasil e c o m mais força no Nordeste, destaca-se a hoje chamada literatura de cordel, que tem origem no romanceiro portugués da Idade Média. Essa literatura trazida ao Brasil j á no século X V I representa temas mais tradicionais que j á circulavam na Europa. N a o se deve

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Freyre (s/d) também comentou esse fenómeno.

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esquecer entretanto que o seu desdobramento no Brasil vai depois de séculos se transformar quanto aos temas e possivelmente suas formas, resultando em urna certa nativiza$ào dessa literatura.25 Eia se compunha de narrativas de épocas antigas - os romances ou novelas de cavalaria - que se concretizavam em temas tais como os de amor, narrativas de guerras e viagens ou conquistas marítimas na perspectiva ibérica. A sua d i v u l g a l o e v i n c u l a d o à tradi?ao estenderam esse espectro de temas, passando no Brasil a representar temas modernos ou contemporáneos, caracterizando portante seu aspecto mestizo. Em Portugal, serviu como jornal praticamente, pois com o aparecimento desse órgào de transmissáo de noticias, a literatura de cordel decaiu. N o Brasil, também servindo como jornal, resistiu a ele e ao que parece somente com o advento do ràdio e da televisào é que come?ou a perder o seu prestigio (Diégues 1973, 5), em face do poder da oralidade mediatizada, 26 sem no entanto anular a sua produtividade. Quanto à forma de transmissao dessa literatura, é preciso inicialmente considerar que quando nào existiam facilidades de impressào desse material em mais extensa dimensào para efeito de d i v u l g a d 0 mais ampia, foi através da oralidade que eia se popularizou. Isso tanto em Portugal na época medieval como no Brasil no período da colonizado. Um prova disso é a poesia de Gii Vicente que declamava seus versos para a n i m a d 0 da corte. Depois disso os manuscritos possibilitaram urna certa forma de sua popularizado, porém em nivel restrito, funcionando entretanto como estágio anterior à impressào através das tipografías. Quer dizer, trata-se de urna literatura eminentemente oral que no Brasil come§ou a ser escrita provavelmente ao final do século XIX. Entào, dado o analfabetismo da grande maioria, a leitura em voz alta foi a forma comum de d i v u l g a d o dessa literatura. Em reuniSes de diversas naturezas ou ñas feiras populares estes folhetos eram vendidos através da divulgad o oral, acompanhados de uma certa platéia atenta (Cascudo 1978, 27). Mas à medida que se foi formando um público no Brasil, ouvinte dessa literatura, a sua popularizado foi crescendo concomitantemente com o analfabetismo promovido pelo Estado na medida em que este descurava da e d u c a d o . Depois da introdurlo da imprensa, come?am a se multiplicar lentamente as tipografías, favorecendo o aprendizado da leitura à margem da deficiente promod o do Estado. Dessa forma, já com a modernizado da imprensa brasileira ao final do século XIX, se comegou a imprimir os folhetos no Brasil, 27 que eram reproduzidos ñas regiòes mais afastadas. Mais uma vez, é preciso considerar o estágio intermediàrio do manuscrito, que antes da tipografia possibilitou uma certa circulado e d i v u l g a d o dessa

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V. Cavignac (1995). Para o conceito de oralidade mediatizada, v. Zumthor (1985a). A moderniza?«) da imprensa possibilitou aos poetas populares o aproveitamento do velho material, dispondo entao de condifoes de impressao de sua literatura. 164

literatura (Diégues 1973, 147-148). Naturalmente a circulagao oral entre populasoes analfabetas, ao lado da reprodu£áo manuscrita, antes da populariza£áo das tipografías, favoreceram o retrabalhamento dessa tradi§ao, que assim desempenhou varias fun?oes (Diégues 1973, 33). Com o aparecimento do trem e depois do automóvel, essa literatura experimentou ainda maior divulgado, porque os seus divulgadores puderam circular pelas feiras públicas de diferentes municipios, favorecidos dessa forma sobretudo pelas estradas de ferro (Diégues 1973, 146).

4.4

A oralidade urbana: o desenvolvimento da conversagáo

Ao lado dessa oralidade descrita em que se baseia toda a tradi?áo popular, a oralidade urbana enquanto concretizada na mera conversa$áo diária, também tem a sua historia, principalmente se acompanharmos o desenvolvimento da interafao social dentro do processo de urbanizafáo da vida social brasileira. Trata-se neste caso do desenvolvimento da conversado como reflexo da intera^ao social e do contato lingüístico no contexto da urbanizado, que reflete a complexifica§áo sociolingüística numa comunidade urbana. As transforma5oes da composÍ£áo sociolingüística que delineia o conjunto de variedades ou normas de uma dada sociedade tém sua origem no nivel microlingüístico da intera§ao social e, depois de penetrar nesse nivel de aceita?áo interpessoal, al9a num segundo momento a fase da difusáo, dando-se a partir daí o inicio do processo de formafáo das respectivas variedades ou normas lingüísticas, porque é obvio que o falante sozinho ou isolado nao poderia jamais realizar essa complexa tarefa. Embora a difusáo tenha origem num individuo, que na intera?áo interpessoal consegue a adesáo do outro, só a partir daí e da vasta aceitado da comunidade, é que ela ganha acelerado. Esse problema está representado em vários autores, embora com perspectivas diferentes. Bakhtin (1986), apoiandose no materialismo histórico, enfatiza a intera?ao como verdadeiramente constitutiva da linguagem, valorizando o diálogo, embora numa visáo mais ampia do que a sua mera realizado numa intera?áo face-a-face, em que dois individuos altemam os tumos conversacionais; Coseriu (1979) coloca o problema da origem da mudaba lingüística no diálogo. Como a mudaba se dá por difusáo, a inovafáo praticada por uma falante pode ser aceita por outro, o que configura ado^ao e ai o novo uso cometa a entrar em circulado. 28 Para ele, entretanto, a motiva^ao da mudanza está na criatividade. E, contudo, na passa-

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Littlewood ( 1 9 7 7 ) classificou esse processo em trés etapas. A primeira baseia-se numa situa?áo de criafào de «frames» de referencia parcialmente estáveis, parcialmente dinámicos; numa segunda, há uma negociagáo da interpretafao social, sobretudo do grau de formalidade da interafáo; numa terceira se dá a influencia de um sobre o outro, quando a difusáo inicia seu processo. 165

gem de um individuo para outro que o aspecto social da inovagào ganha corpo, contribuindo a inovagào, inicialmente isolada, para a consti tuigào de normas, que se dá em forma de agào/atuagào (Schlieben-Lange 1991).29 Em face dessa forma de emergencia de normas ou variedades lingüísticas, é fundamental se lanzar um olhar sobre o menor nivel da interagào lingüística, concretizada na conversagao, para que se possa estabelecer a ponte necessària entre a reconsti tuigáo da origem da variedade investigada no capitulo anterior e as formas de manifestalo do seu processo constitutivo - concretizadas nos textos a serem analisados no próximo capítulo - , embora tal origem só possa ser reconstituida em parte face ao caráter limitado das possibilidades que as fontes históricas oferecem. Dessa forma, faremos urna análise histórica do desenvolvimento da conversarlo no Brasil, inspirando-nos mais precisamente no que aconteceu no Recife e no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, com o objetivo maior de compreender o desenvolvimento da oralidade das carnadas médias da populagào no Brasil de entào. 4.4.1

Urbanizagào da vida social e c o n v e r s a l o

Se acompanharmos o desenvolvimento da vida social no Brasil na passagem da condigào de colònia à de impèrio, dois fenómenos que nos interessam se apresentam de modo muito interligados: a urbanizagào social e a conversagào. Nos tempos coloniais a sociabilidade era quase que sentida somente na Igreja, e a ausencia de instrugào e comunicagóes eram evidentes (Lima 1904a, 441-442). Ainda no inicio do século XIX, as distancias e a pouca seguranza das estradas se opunham à comunicagào entre os vizinhos. Armitage testemunhava que até mesmo entre amigos íntimos as relagóes sociais eram poucas. Entre as mulheres a situagào era pior ainda, pois viviam quase em reclusào e nào tomavam parte na conversagào da sociedade. (Armitage 1965, 184). Em Pernambuco ainda em 1840 - em pleno processo de urbanizagào - o engenheiro francés Vauthier sentiu a necessidade de estradas para a dinamizagào da vida social. As estradas por ele abertas agiriam a favor da melhor intercomunicagào social, até entào limitada a relagóes entre parentes e a contatos entre vizinhos (Freyre 1940, 180). O desenvolvimento da conversagào como reflexo do desenvolvimento da vida social, que se dá no recinto das companhias e das sociedades, novidades de quase meados do século, já vinha se realizando desde os anos trinta, como o jornal O Carapuceiro deixa entrever em duas edigóes, a primeira em 1837

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Sobre inovagäo das normas sociais e lingüísticas, escreve Schlieben-Lange (1991, 23): «Menschen müssen eine bestimmte neue Handlung schaffen; sie muß akzeptiert werden, d. h., eine Trägergruppe muß sie als sinnvoll anerkennen; sie muß institutionalisiert werden, d.h., bestimmte Charakteristika und Einschränkungen ihrer Verwendbarkeit müssen sich herausbilden.»

166

no artigo «As más lingoas»30 e a segunda em 1838 no artigo «Os perguntadores».31 Embora aqui nao haja preocupado em criticar a forma de intera?áo ou distribuid 0 da palavra, o que chama a aten^ao é o ato de falar. No primeiro caso, procura-se admoestar os que «faláo da vida alheia, atra§alhando a honra de qualquer com tanto desfastio, e gosto». Semejantemente a esse, o segundo critica o individuo «que para entreter a conversado vé-se obrigado a ajudar-se de socorros estranhos. Tal he o grande perguntador». O crítico procura caracterizar várias situa?oes em que diferentes perguntas sao feitas por aquele individuo, que pode apresentar-se como o perguntador das companhias, o do teatro ou o companheiro de urna viagem. Além disso, há o que pergunta «se vos vé com urna casaca nova»; «se lhe diréis: morreu fulano». Ao lado dele, identifica o «parolleiro», «que parece ter nascido para elle» (o perguntador). Por fim, classifica as «Senhoras», havendo dentre elas as que interrogam escravas para saberem da vida de suas sinhás. No contexto histórico em que esta análise se insere, o grande marco das novas relafóes que se come§am a estabelecer é a oportunidade oferecida pelo estabelecimento da vida política institucional com a na?áo independente. A Assembléia Constituinte de 1823 serve de bom exemplo para o que aqui discutimos. Rodrigues (1985), sobre a primeira reuniáo pública dos parlamentares brasileiros por ocasiáo da elaborado da primeira constituido nacional, escreve: «Era a primeira vez que brasileiros de toda a parte falavam sua própria língua uns aos outros em assembléia pública. Uns poucos deviam ter notado diferen9as de prosodia. A língua se formara numa competifao desigual com línguas indígenas e negras e variagoes prosódicas oriundas dos diferentes grupos do portugués falado em regioes diversas.» (Rodrigues 1985, 4 7 )

«Falavam a própria língua uns aos outros em assembléia pública» revela um novo tipo de conversado, ou seja, aquela que se dá no seio da vida política, que em José de Alencar vai ser o tema mais importante. O próprio Congresso brasileiro, alguns anos depois, em 1827, percebe o papel da conversado no novo momento da vida da nado, isto é, no período de sua formado e no processo de urbanizado, como se depreende deste trecho, em que o seu ideal se eleva por sobre a importancia até mesmo da leitura, de acordo evidentemente com a predominancia da oralidade naquela sociedade: « A fácil comunica^ao instrue os homens; é evidente que os homens aprendem mais conversando do que lendo; e essa comunicafáo só na Capital é que a ha.» (Annaes 1827, 1 4 5 )

30

31

O Carapuceiro ( 1 9 8 3 ) , vol. 2, 2 8 . 0 6 . 1 8 3 7 , n° 2 1 , p. 1 - 2 . O artigo critica o hábito geral de se falar mal da vida alheia. O Carapuceiro ( 1 9 8 3 ) , vol. 2, 0 5 . 0 5 . 1 8 3 8 , n° 2 7 , p. 1 - 4 .

167

Como o século XIX é aquele do Iluminismo brasileiro, o ideal de difusâo do conhecimento e do saber entre os homens se concretiza no ideal da conversaçâo, como a inspiraçâo do jornal O Carapuceiro em La Bruyère32 e os primeiros folhetins de Alencar no Rio de Janeiro no inicio da segunda metade daquele século revelam. Alencar começa afirmando que «A conversa é urna das coisas mais agradáveis e mais úteis que existe no mundo». Além disso, chamando a atençâo para o novo significado da conversaçâo naquele momento, escreve: «A conversa, portanto, pode ser uma arte, urna ciência, urna profissâo mesmo». Em seguida, teoriza sobre ela, quando a classifica em dois tipos «Há, porém, diversas maneiras de conversar. Conversa-se a dois, en tête-àtête; e palestra-se com muitas pessoas, en causerie.» Comparativamente a O Carapuceiro, trata-se da conversaçâo dentro do processo de urbanizaçâo e específicamente sobretudo dentro do desenvolvimento da vida polítca. O contexto da urbanizaçâo e da vida política se reflete na passagem «é inegável a influência benéfica que exerce a conversa sobre a alma do homem civilizado.» (Alencar 1955, 215-219), o que se dá históricamente no inicio do Segundo Reinado, exatamente quando as tensôes internas haviam sido acalmadas; se dá inicio ao processo de formaçâo da consciência nacional com a paz política; e começa a se consolidar a unidade. Dessa forma, pode-se concluir que, quando as tensôes internas foram sufocadas, criaram-se condiçôes ainda mais favoráveis ao desenvolvimento da conversaçâo, principalmente por causa da urbanizaçâo. A Alencar ( 1955) intéressa, pois, a «conversa a dois». Ai portanto é claro 0 papel do novo contexto social e político, porque das rebeliôes da fase anterior, passa-se à conciliaçâo, à unidade e à paz política, como vimos. Surge na pena de Alencar a metáfora conversa = combate «Em outras ocasiôes, a conversa a dois torna-se, como dissemos, uma perfeita estratégia militar, um combate» (216).33 E mais adiante, confirma o autor: «Isto sucede freqüentemente em política e diplomacia» (216). Descreve em seguida na página 217 o desenvolvimento desse tipo de conversa em très momentos «Caminham lado a lado, mas guardando uma certa distância»; depois, a segunda fase: «Dentro em pouco tempo, há um pequeño arranhâo, faz-se sangue. Os homens tomam fogo, falam ao mesmo tempo, gesticulam desesperadamente (...)»; na terceira fase, o fecho: «A conversa chega ao seu terceiro período, à sua última fase. Passeiam entâo braço a braço, ou sentam-se nalgum canto, risonhos (...) como dois amantes que se abraçam depois de um pequeño arrufo.» Os oposicionistas, que antes bradavam por armas, na nova fase da vida nacional, sâo

32 33

Moralista francés do século XVII. A comparafáo de Alencar nos remete á metáfora «argument ist war», discutida por Lakoff/Johnson (1980). A discussáo dos autores nos ajuda a ver em Alencar o aspecto argumentativo da conversa, numa época em que o argumento se imp5e á rebeliáo. 168

c l a s s i f i c a d o s quanto à d i s p o s i ç â o de conversar, e m très tipos, aludindo-se à n o v a f o r m a de interaçâo na política, c o m o na passagem: «Desde que começou a ter voga éste gènero de conversa governativa, ou política, ¿mediatamente certos espíritos metódicos e sistemáticos trataram de classificar por eia as diversas espécies de oposicionistas ou descontentes: Assim, há hoje très classes distintas de oposicionistas: ia.) dos que já conversaram; 2a.) dos que querem conversas; 3a.) dos que nao admitem conversa. Esta última classe dizem que é das mais pobres, e com tôda a razâo. E preciso ser-se bem misantropo e anti-social para fugir a uma conversa tâo amável e de tâo grande interèsse.» (Alencar 1955, 217)

4.4.2

4.4.2.1

A c o n v e r s a ç â o na familia, na rua e nos salôes

Na familia

Partindo do pressuposto histórico descrito no capítulo 2, de n o v o o isolamento regional característico brasileiro vai se refletir sobre os grupos sociais e sobre o s individuos. N o c a s o da familia, por e x e m p l o , n u m a sociedade patriarcal c o m o a brasileira, o pater familias

nao conversava c o m os outros m e m -

b r e s da familia, mas gritava. 3 4 A s pessoas ali t a m b é m quase nao c o n v e r s a v a m urna c o m a outra. N e s s a sociedade patriarcal rural e m transiçâo para urna urbana - onde o isolamento, que era u m a das marcas mais características, representava a distância nâo só social, mas t a m b é m f í s i c a do senhor e m relaç â o a todos que habitavam a casa-grande - quase nunca as pessoas estavam perto u m a da outra. 35

34

Esse comportamento do paterfamilias é uma inferencia fundada no tipo de sociedade. Numa sociedade patriarcal rural, onde a mulher era mantida sob uma forma de vida reclusa e os escravos constituíam a mao-de-obra dos servidos domésticos, é claro que nao havia quase disposi?áo ou oportunidade para conversas. A o pater familias incumbía dar ordens. E possível se inferir que a leitura em voz alta ou a narrafao de historias constituíssem uma excefáo em rela9ao a esse comportamento geral, como momento de diversao, dada a extensao dessa prática no Brasil colonial.

35

Freyre (1968, vol. I, 46) assim se refere a esse isolamento: «O senhor rural mais pervertido pelo isolamento, este desprezava tudo, pelo regalo de mandar sobre muitos escravos e de falar gritando com todo o mundo, tal a distancia, nao só social, como física, que o separava quase sempre das mulheres, dos filhos, dos negros, em casas vastas, com salas largas, onde quase nunca as pessoas estavam todas perto uma da outra; onde ñas próprias mesas de jantar, de oito metros de comprido, era preciso que o senhor falasse senhorialmente alto para ser ouvido no fim da mesa quase de convento.»; Monteiro (1981, 86) comenta a observaíáo de um viajante estrangeiro sobre o hábito em Pernambuco de as mulheres sentarem numa sala e os homens em outra. 169

44-2.2

Na rúa

A rúa de um modo geral no Brasil colonial possuía um caráter degradante. As pessoas de urna certa elevagáo social nao a freqüentavam, viviam em casa e os escravos é que saíam á rúa. Essa presen?a de escravos na rúa a tornava imprestável para ocupagáo e até perigosa. Mas até mesmo para escravos havia alguma distin?áo. Havia aqueles que eram anunciados nos jomáis tendo como característica principal «criados sem sair á rúa». Feita essa constatado, concluímos que escravos conversavam entre si e possivelmente com alguns negros libertos.36 Tollenare observou que os escravos mais antigos se dirigiam aos recém-chegados ao Recife na sua língua, o que agradava aos senhores.37 Mas nem em todas as cidades a situagao era a mesma. Quanto aos homens livres, ainda no Recife, estes passavam o dia todo na rúa, onde tomavam decisoes importantes (Freyre 1968). Comparativamente á vida social que no século XIX se dinamiza, retomamos agora urna abordagem que já fizemos no capítulo anterior sobre a transformado física e a cria§áo de espatos onde a comunicado se desenvolve. Consideremos duas realizares interessantes para a vida pública, destacando agora a realizagáo da conversado de forma concreta na cidade do Recife. Trata-se da urbanizado da ponte da Boa Vista e do cais do colégio. Em 1837 passava aquela ponte por urna renovado que lhe permitía se tornar ponto de encontro para conversas noturnas, enquanto o cais do colégio era urna novidade também no mesmo sentido, pelo que se depreende no bojo das críticas dos jomáis da época ao engenheiro francés Boyer, que o construirá. É curioso o artigo publicado no jornal O Carapuceiro de 1837 «as palestras da ponte da Boa-vista» 38 . Observa-se pelo título que o que interessava nao era a ponte em si como renovagáo física do aspecto urbano do Recife da época, mas para que estava servindo aquele espa?o público. O que chamava a aten§ao do autor eram precisamente as «palestras», que ali se realizavam, ou seja, a conversad o , e por que chamava a atengao a conversa5áo? Simplesmente porque a possibilidade que as pessoas passam a ter de conversarem na rúa - contrapondo-se aquela visao dominante de que a rúa era algo reservado aos escravos e a

36

37

38

Essa constatado nos permite delinear as r e n d e s e as interagóes sociais dos escravos brasileiros. Em primeiro lugar, na rúa, como escravos de ganho; em segundo, ñas irmandades, segundo referimos no capítulo anterior; e ainda, no ambiente familiar, no caso dos escravos domésticos. É a seguinte a passagem encontrada em Tollenare: « (...) á tarde sao fechados em armazéns, nao com receio de que se evadam - onde iriam parar estes pobres miseráveis que nao sabiam a língua da térra? - mas, com medo de que nao sejam furtados, cousa, dizem, assaz frequente (...). Alguns negros da sua na9áo, j á habituados ao Brasil, vém conversar com elles; os senhores aprovam este intercurso, que dá confianza aos recemchegados.» (Lima 1904b, 453-454). O Carapuceiro (1983), vol. 1, 27.05.1837, n° 12, p. 1-4.

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todos os segmentos considerados á margem da vida social burguesa - se alarga.39 Quanto ao cais do colégio, lé-se no mesmo jornal, na edifáo de 9.11.1839, 4 0 urna pequeña nota sobre o referido cais, pelo novo que representa. Diz o jornal que em épocas anteriores «um rapaz nao sahia á rúa sem ser acompanhado por hum escravo de confianza» (4). Percebe-se o marco que esse novo espado significa quanto á ocupa?áo da rúa pelas carnadas médias já no governo do Barao da Boa-Vista. Adiante diz ainda o periódico: «Huma já disse, que seu marido, antes do caes do colegio recolhia-se com as galinhas; mas agora deo em ter tantos calores, que já se recolhe pelas 1 1 horas da noite»; por fim, relata: «Já ouvi dizer a huma solteirinha, que só desejava cazar com hum intrevado para ter o gosto de nunca lhe sahir de caza. Que menina! O que cazar com ella, despega-se do caes» (4). Essa construgáo, portanto, favoreceu o prestigio da rúa enquanto locus de interafáo entre os individuos. Em síntese, o hábito de sair á rúa, tanto entre homens quanto entre mulheres, somente depois de algumas décadas é que come£ou a perder o seu caráter degradante de séculos anteriores, tendo o Recife, ao que parece, se antecipado a outras cidades brasileiras nesse aspecto (Sette 1978,16). Esse caráter degradante atingia mais duramente a mulher, por isso que a participadlo déla na vida social é um bom indicio do fim do isolamento e do contato maior entre as pessoas. 4.4.2.3

Nos saloes: o exemplo de urna companhia

Os salóes, locus de intera9áo e conversado, entram em moda pelo fim da primeira metade do século XIX sob a grande influencia do que ocorria na Fran9a. E é o teatro que propicia esse desenvolvimento, depois que essa forma de entretenimento superou a Igreja como a única instancia mais formal de contato social.41 Face á realizagáo oral do texto teatral, foi através desse ins-

39

40

41

Esse sentido negativo a que a rúa estava associada, dada a sua proximidade e rela9S0 histórica com aqueles segmentos socialmente marginalizados, até hoje se reflete ñas expressòes «mulher de rúa» ou «menino de nía». Trata-se do texto «o novo caes do Colegio», O Carapuceiro (1983), voi. 3, 9.11.1839, n° 50, p. 4. Há mais de urna alusao histórica à conversa no teatro. Parece que a expansáo dessas casas de espetáculos significou verdadeiramente mais um espa90 social de interafáo. No artigo «Os perguntadores», citado no tópico 4.4.1, um dos tais perguntadores que mais incomodam o crítico é o do teatro; Martins (1977/78, voi. II, 3 1 1 ) cita urna pesa do teatrólogo brasileiro Martins Pena, representada em 25.02.1845, onde um personagem se queixa dos que perturbam «com suas conversas e tosses» quando ele está no teatro; Alencar (1955, 3 1 1 - 3 1 2 ) numa de suas crónicas, no dia 25.11.1855, alude à conversa no teatro, quando o escritor reproduz a experiencia desagradável de ter sentado próximo de individuos que durante o espetáculo conversaram «E assim neste crescendo continuam os dois dilettanti de maneira que o vosso ouvido direito está sempre em completa oposigáo com o ouvido esquerdo.»

171

trumento de arte e comunicaçâo que os grupos sociais fizeram a aproximaçâo entre oralidade e escrita, utilizando-o como urna espécie de transiçâo, pois o texto feito para a encenaçâo teatral precede o texto da literatura romàntica brasileira. Depois do teatro crescem as sociedades ou companhias, onde a conversaçâo passou a se estabelecer num nivel mais formal do que acontecía na familia ou na rua. Pela novidade que essa forma de reuniâo representa, o que acontecía ali passou a ser visto como parte do processo de renovaçâo geral da vida social, interessando-nos mais especificamente o conteúdo lingüístico dessa renovaçâo. Ao padre Lopes Gama novamente, chamou-lhe a atençâo a forma como se conversava e dai as suas observaçôes se constituírem como dados de valor para reconstruçâo de parte dessa renovaçâo. Parece que a dinamizaçâo da vida social levou à criaçâo de sociedades entre a pequeña burguesía com destacado papel da mulher, a despeito de todo o conservadorismo patriarcal persistente. A esse respeito, vale a pena trazer à discussâo um interessante artigo, aparecido no jornal do padre Lopes Gama, intitulado «A algazarra das companhias», publicado em I o de junho de 1842, 42 cujo tema é a conversaçâo em uma recém-fundada sociedade. A nossa intençâo ao trazer este artigo é fazer uma estrita correlaçâo entre aspectos sócio-históricos e desenvolvimento lingüístico brasileiro no século XIX. Nao se trata, entretanto, de elementos gramaticais no sentido estrito, mas de algo mais ampio, ou seja, uma explanaçâo da forma de interaçâo entre os individuos, tal como praticada pela análise da conversaçâo. Quando se pretende compreender o funcionamento da linguagem de forma plena, nâo resta dúvida que é necessàrio o encaixamento dos fenómenos lingüísticos na estrutura social, do contràrio a análise se revelaría mais pobre, contribuindo pouco para a compreensào mais ampia do papel da linguagem como instrumento de açâo entre os individuos. Por outro lado, uma análise histórico-social pode fomecer um interessante pano de fundo para se explicar elementos menores da estrutura lingüística, que poderào nâo somente ser compreendidos mais facilmente, mas também ganharâo mais força explicativa dentro de uma teoria da inovaçâo lingüística, por exemplo. 4.4.2.3.1

A natureza da conversaçâo em uma «companhia»43

O artigo «a algazarra das companhias», aparecido em 1842, se insere no mais importante jornal de critica de costumes sociais no Brasil do século XIX. Uma primeira pergunta que naturalmente se levanta é por que razâo o modo de conversar entre as pessoas reunidas em uma dessas companhias chamou a atençâo do autor, merecendo dele um artigo? Em primeiro lugar, o autor era um professor de Retórica e temas referentes à linguagem lhe interessavam. Entretanto, é curioso que em plenos meados do século XIX a forma de con-

42 43

O Carapuceiro (1983), vol. 3, 1.06.1842, n° 18, p. 1 - 3 . «Companhia» corresponde a «société» do francés.

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versar de individuos reunidos fosse interessar mesmo a um professor de Retòrica, quando a conversalo nào era absolutamente tema de investigado, observado ou reflexào de natureza teòrica de forma sistemática. Em segundo lugar, é provável que a maior motivado do artigo tenha sido a novidade de pessoas reunidas - principalmente a mulher, cujas falas sao motivo de sátira em companhias, em visitas e em bailes, très eventos sociais por ele referidos. O fato de novos hábitos sociais de influéncia francesa estarem sendo introduzidos naquela sociedade proporcionava urna sèrie de fenómenos até entào nào observados e que agora naturalmente ati?avam a curiosidade do critico de costumes. Talvez, pode-se ainda hipotetizar, o tipo de reuniào social - mais formal que a conversalo familiar ou entre amigos - devesse determinar um modo de intera§ào lingüística aparentemente mais ordenado diferentemente da intera^ào cotidiana para a concep?ào da época. Dai a censura e a sátira. O texto cometa com a seguinte afirmado: «A conversalo he sem duvida hum dos melhores prazeres da vida, e até muito pode concorrer para instruy o » (i). Em seguida critica a quebra da máxima da conversalo «fala um de cada vez», comentada abaixo. Prosseguindo, escreve: «A's vezes suscita-se huma questào por (v)ia de regra sobre objecto muit frivolo, e quasi todos da companhia tomào parte na discussào inclusive as senhoras» (i). Por que, por outro lado, passa a ser importante para aquele periódico a*forma como as mulheres conversavam? Acreditamos que a preocupado do periodico com o tema é reflexo da modernizado da vida social quando os costumes passam a se alterar, ganhando relevo certos aspectos até entào pouco observados. Assim podemos associar o desenvolvimento da conversalo à ascensào da mulher,44 pois os dois acontecimentos refletem também o nivel de urbanizado da vida social quando a interagào entre individuos ou grupos sociais se intensifica, complexificando-se. Diante desse quadro e em face da critica à convers a d o naqueles ambientes sociais, é de se perguntar se nào se pode atribuir algum papel à mulher no processo de constituido da lingua comum, já que estamos em pleno processo de constituido de usos lingüísticos. A seguir faz nova referencia à v i o l a d o da máxima da troca de turnos, que vamos discutir no tópico correspondente. 4.4.2.3.2

Os temas

O que leva o autor a classificar a conversado ñas companhias de «algazarra» nào é apenas o falar todos de urna vez. Essa classifica§ào implica também os temas. «Todos fallào ao mesmo tempo, e as vezes sobre materias tao descone-

44

Koster (1978, 375), num livro publicado em aínda 1816 (ed. original), escrevendo sobre a mulher pemambucana, registrou o seguinte: «Recebem escassamente educ a d o e nao tém a vantagem de poder obter instrufáo pela comunicabilidade das pessoas estranhas ao seu ambiente nem adquirem novas idéias na conversa9ao geral. Nasceram, criaram-se e continuam cercadas de escravos (...).»

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xas, e disparatadas, (...).» (i). Pelo que se percebe, a reuniáo de varios individuos ensejava a discussáo sobre diferentes temas em pequeños grupos ou com companheiros ao lado, já que era impossível a todos conversarem ao mesmo tempo sobre o mesmo tema, como descreve o crítico. «Huns tractáo da política do dia, outros de objectos de commercio, este conta anécdotas, aquele refere, ou improvisa novidades.» (i). Em seguida ele classifica os temas de acordo com o perfil das mulheres presentes nessas reuniSes, defendendo a adequagáo dos temas á experiencia de vida (moga ou velha) ou estado civil (solteira ou casada). Ou seja, para ele o problema nao reside na variedade de temas, mas na inadequada distribuigáo deles de acordo com o perfil de cada um, como se vé na seguinte passagem: «e (...) quasi todos da companhia tomáo parte na discussáo inclusive as senhoras (...)» (i). A nossa suspeita sobre a simétrica distribuigáo dos temas de acordo com a situagáo social dos individuos exigida pelo religioso é confirmada mais adiante «e cada hum só deve fallar do que sabe, e está bem informado (...)» (2). Aqui discorre, citando exemplos, sobre a inadequagáo de individuos classificados em diferentes perfis sociais enumerados falarem sobre assuntos estranhos a seu perfil (profissáo, faixa etária, etc.). A visáo do padre, repisemos, reflete a transigáo de urna sociedade, onde pouco se conversava e onde a partir de entáo se comega a experimentar essa nova realidade refletida na interagáo entre as pessoas, que, por sua vez, em conseqüéncia da nova realidade, tém oportunidade de tratar de diferentes temas, fruto da curiosidade, do desenvolvimento, das experiencias e do aprimoramento cultural. Com o desenvolvimento da conversagáo, pois, vém á tona novas formas de sua concretizagao e as velhas formas sao postas em xeque, o que atinge desde os participantes, a quantidade deles, os temas e a troca de turnos. 4.4.2.3.3

Os turnos

Do ponto de vista da natureza da estruturagáo lingüística que dominava em tais conversagoes, deixando de lado os temas, nos interessa chamar a atengao para o problema da troca de turnos, que era o que mais chateava o crítico, classificando-o de «algazarra», como o próprio título sugere. Assim lé-se: «Todos falláo ao mesmo tempo, e as vezes sobre materias táo desconexas, e disparatadas, que parece aquella reuniáo hum hospital de doudos» (1); «Todos simultáneamente entráráo na materia» (1); «Pessoas há, que tomando a máo em fallar, entendem, que só elas sao dotadas do dom da palavra, e a ninguém deixáo fazer vaza, já cortando a conversagáo de outrem» (1-2);«(...) porque os contendores, querendo a mesma cousa, falláo todos a hum tempo, e discrepáo no sentido dos vocabulos, de que se servem, vindo tudo a reduzir-se a mera disputa de palavras.» (2).

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44- 2 -3 A

Locus da conversado e língua

Nao somente o texto em si reflete essa transformado da conversado que entáo passa a se realizar, mas ali também se faz referencia á alterado do locus onde se dá a intera§áo comparativamente aos séculos anteriores. Para se ter urna idéia de como se alteram os ambientes onde se dáo as conversa95es dentro das transformares da vida social, o artigo compara as discussóes de «nossos avós» que se davam nos conventos, nos seminários e nos colégios, o que também mostra a preponderancia da Igreja como ambiente onde as «convers a r e s » mais formáis se realizavam, atestando-se uma alterado significativa naquelas situagoes de interagáo via uso da língua portuguesa. Ao remontar aos séculos anteriores, o autor nos remete a uma época em que os vernáculos ainda nao tinham se imposto ao latim, a língua de cultura e dos instruidos da época. Assim, na passagem «Nossos avós eráo talvez mais ergotistas, e arengueiros, do que nos Quem alcancou as conclusSes, que se defendiáo publicamente nos Conventos, nos Seminarios, e Colegios, pode dizer, que ouvio a confusao da torre de Babel. Entáo nao se argumentava, se nao em Latim (...).» (2-3), observa-se que esse locus concentrava-se ñas instancias da Igreja, tendo o latim como língua dominante, mas nao há comparado com bailes, salóes ou companhias, sinais dos novos tempos. Se a situagáo que se buscava para se comparar o que estava acontecendo no século XIX é o que acontecía na Igreja, onde nao se conversava, mas se discutía, se argumentava, entáo a substituido do latim pela língua portuguesa em Portugal e no Brasil vai portanto preparar o longo caminho para um outro tipo de interagao, que o século XIX com o seu potencial inovador vai permitir as novas gera?5es. Pode-se nesse caso falar de uma «secularizado» da conversado, que era praticada pelas companhias. Como a perspectiva crítica do autor era diferente da que temos ou procuramos captar para o estado da pesquisa de hoje - nao se deve esquecer que se tratava antes de tudo de um crítico de costumes - , ele via somente o lado «negativo» das reunioes, exatamente o que era inovador naquela sociedade, ou seja, a intera?áo lingüística nos salóes, revelando o seu modo de ser e de acordo com a cultura local, porque «fala um de cada vez» como máxima da conversado nao se realiza da mesma forma em todas as culturas e, no Brasil especialmente, a máxima contraria áquela, «falam todos de uma vez», parece ser muitas vezes bastante apropriada para explicar a natureza da intera?áo. Por isso, podemos concluir, naquele momento a conversado experimentava no Brasil uma nova fase com reflexos possivelmente na constituido das variedades urbanas regionais e, por extensáo, do portugués comum brasileiro.45

45

O que deduzimos da discussáo levantada pelo padre é o seguinte: havia as discussóes na Igreja, que se davam em latim; agora surgem conversafoes nos salóes, que se aproximam da conversa9áo cotidiana.

175

44- 2 -4

Conversado, imprensa e f o r m a d o da opiniào pública

Neste tòpico fazemos urna rela^ào entre o desenvolvimento da conversado e da imprensa, porque se trata de duas entidades que se desenvolveram paralelamente e contribuiram para a formado de urna opiniào pública brasileira no século XIX, favorecendo a estabilizado da lingua comum. A discussào politica que os j ornáis alimentavam no período se dà paralelamente à formaiào de urna pequeña burguesía, que interage cada vez mais pela conversado dentro do processo de urbanizado. A s conversares (discussòes) de natureza politica dentro desses grupos alimentavam as matérias dos pasquins e os temas por eles veiculados alimentavam, por sua vez, as suas discussòes, levando-se dessa forma à constituido de urna opiniào pública.46 Dai a relagào entre imprensa e conversalo. Como nào havia outra forma de contato entre as p o p u l a r e s espalhadas, apenas a imprensa possibilitou a comunhào de temas e a trama politica criou um certo sentido de unidade de idéias, dentro das diferentes correntes que muitas vezes se opuseram. Esse processo que coincide com o período da luta da emancipado política foi marcado pelos grupos políticos, locáis ou portugueses, que possuíam cada um o seu jornal, e toda a discussào travada entre eles era praticamente gerada na imprensa. Esse conjunto de elementos se reflete em síntese sobre a estabilizado da lingua comum, que vai se intensificar na segunda metade do século, conforme discutimos no capítulo 2. Esta análise possibilità de modo mais claro a passagem do tratamento da oralidade para o da escrita, quando se discutem as línguas do jornal e da literatura. A o final do século XVIII, é notòrio que nào havia urna opiniào pública brasileira. Armitage nos deixou um retrato do contexto desfavorável à existencia dessa opiniào pública. A educado era ainda muito deficitària, os padres conheciam apenas um mau latim. A ciencia política era quase que desconhecida pela totalidade da populado brasileira. As únicas fontes de instrufào eram as historias da Grècia e de Roma, o contrato social de Rousseau e alguma obra de Voltaire, que haviam escapado à fiscalizado das autoridades coloniais. Nào havia imprensa nem Universidade. Os elementos dinamizadores da vida social e que possibilitam a formado de urna opiniào pública nào existiam absolutamente (Armitage 1965, 29-30).

46

Lendo-se Habermas, percebe-se como o processo de formagào da opiniào pública brasileira guarda muita semelhanja com o mesmo processo na Europa. Assim, escreve o autor: «Os artigos de jomáis nào só sào transformados pelo público dos cafés em objeto de suas discussòes, mas também entendidos como parte deles; isto se mostra no diluvio de cartas, das quais os editores semanalmente publicavam urna selenio. As cartas dos leitores, quando o Spectator se separa do Guardian recebem urna instituÌ9ào pròpria: na parte Oeste do café Button's é colocada urna cabe?a de leào, por cuja garganta o leitor podia jogar as cartas/38/. Também a forma do diálogo, que muitos artigos mantèm, testemunha a proximidade da palavra falada. Transporta para um outro meio de comunicagao, continua-se a mesma discussào para, mediante a leitura, reingressar no meio anterior, que era a conversa9ào (...).» (Habermas 1984, 59).

176

A gènese dessa opiniào pública, entretanto, vai se dar a partir da chegada da familia real com a cria?ào da imprensa,47 quando os jomáis come?am a ser cada vez mais disponiveis à populagào. Naturalmente a opiniào pública em desenvolvimento era de origem burguesa, estando o povo excluido desse processo dados os altos índices de analfabetismo da época. Ainda em 1817 padre Joào Ribeiro,48 líder do movimento republicano de Pernambuco, falava da necessdade de se publicar urna gazeta «(...) para doutrinar o povo, que nào compreendia o que queriam os revolucionarios (...).» (Lima 1904b, 501). Para se ter urna idéia, em 1830 em todo o impèrio publicavam-se cerca de cinqüenta jomáis, sendo apenas onze governistas e o restante representava idéias de f e d e r a l o e de república (Calógeras 1935,145). Esses jornais costuraram todas as intrigas, desde a luta da independencia,49 passando pela dissolu§ào da assembléia constituinte de 1823 e todo o período da regencia, ou seja, anterior ao inicio do Segundo Reinado. O crescimento dessa opiniào foi favorecido pela ampliagào das possibilidades de intercomunicafáo e da conversado, que nesse período comegam a se expandir, saindo dos ambientes mais tradicionais e ganhando os salòes, as sociedades que se formavam, os clubes e a rúa. Na segunda metade do século XIX, depois do fim do tráfico de escravos, cometa a mudar mais intensamente a origem dos individuos que exerciam influencia na forma5ào da opiniào pública, através dos escritos nos jornais. Com a modernizado nesse período, favorecida pelo extraordinàrio desenvolvimento da produgào cafeeira e a conseqüente i migrarlo européia nào-tradicional, cresce a vida urbana e os valores dessas populares come^am a se diferenciar daqueles das dos campos. Nessa época desenvolvem-se outros meios de comunicafào e transporte, que vem ampliar o poder que a imprensa come?ara antes a adquirir. Os telégrafos, as estradas de ferro, os navios a vapor favorecem a veicula?ào de noticias e estimulam a discussào mais intensa, favorecendo a opiniào pública numa sociedade onde a concentrafào de pessoas e a difusào de idéias sào a nova marca (Queiroz 1990,68-69). Novos doutores, jornalistas e oradores pobres - a plebe intelectual - surgem de quase todos os pontos do país com a palavra e com a a?ào em nome do pensamento liberal. Estes come?am a substituir os filhos dos senhores de engenho, dos viscondes, marqueses e baròes na batalha polítca e da imprensa. Sào sobretudo individuos, que saem da faculdade de Direito do Recife e de Sào Paulo, da

47

48 49

Ainda, durante o período (entre 1823 e 1826) de discussào sobre os locáis que iam abrigar as faculdades de Direito, «(...) Alegava-se que Sao Paulo, por nào ter imprensa, nào possuía opiniào pública, o que tornava desaconselhável a instalado de urna escola de Direito na cidade.» (Martins 1977/78, 128). Padre Joáo Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro ( 1 7 6 6 - 1 8 1 7 ) . Para Armitage (1965, 235), entretanto, pela época da independencia era evidente a inexistencia de urna opiniào pública formada, pois o único meio de se adquirir instru5ào no Brasil da época era a imprensa, que apresentava periódicos exagerados no estilo e faltos de lógica ñas suas conclusóes.

177

Faculdade de M e d i c i n a da B a h i a , da E s c o l a Militar, tomando significativa parte na i n s t a u r a l o da R e p ú b l i c a (Freyre 1968, voi. II, 585).

4.5

A c o n s t i t u i d o da lingua esenta

4.5.1

Oralidade, j o r n a l i s m o e literatura

É fato reconhecido que os folhetins 5 0 possibilitaram a publica§ào dos primeiros romances brasileiros. D o ponto de vista da c i r c u i a m o do texto, eles eram primeiramente publicados p e l o jornal, e m f a s c í c u l o s , e, do ponto de vista técn i c o e material, as oficinas depois os imprimiam sob f o r m a de r o m a n c e s (Sodré 1976a, 3 2 1 - 3 2 2 ) ; A n t e s , a partir de 1836, aparecem as tradu?5es de folhetins franceses e m f a c e do grande sucesso desse genero na Europa. E s s e acontecimento p ò e e m e v i d e n c i a a influencia da literatura francesa na forma? à o da brasileira c o m o literatura nacional (Sodré 1976a, 322), 5 1 exatamente n o contexto do d e s e n v o l v i m e n t o da imprensa. Posteriormente, os folhetins deram nascimento à crònica, que se constituiu à é p o c a do M o d e r n i s m o no m a i o r e mais importante gènero literario brasileiro. E l e s entretanto v è m ao encontro de urna l o n g a tradigào brasileira, a do contador de historias, e eram lidos nos seròes domésticos, e m que os ouvintes se reuniam para dar continuidade ao enredo, que era d e i x a d o e m suspenso para o p r ó x i m o capítulo (Pinto

50

51

Para os folhetins publicados nos jomáis brasileiros desde os anos 30 do século XIX, v. Tinhorâo (1994). A influência do folhetim ainda se sente hoje no Brasil através das telenovelas, cuja concepçâo e forma de apresentaçâo lembra a daqueles textos precursores da literatura brasileira. Sobre esta origem, escrevem Rector e Trinta (1981, 70): «La telenovela descend du écrit du XIXe siècle et, plus près de nous, du roman radiophonique brésilien dont le déclin s'est amorcé au cours des années cinquante avec l'introduction dans le pays de la première chaîne de télévision, la T V Tupi de Sâo Paulo. Nées de la fusion de deux formes littéraires anciennes: le feuilleton écrit et le théâtre, et d'une technique moderne: la radio (Pignatari, p. 243), les premières dramatiques télévisées ressemblaient beaucoup à des pièces de théâtre (O Direito de Nascer, T V Tupi, Sâo Paulo, 1964). Elles ont trouvé une nouvelle forme d'expression par la suite grâce à la technique du videotape, qui a amélioré la qualité de l'image et a rendu ainsi la telenovela très proche du langage cinématographique.» Coutinho (1984a, 290-291), depois de citar Machado de Assis sobre a origem do folhetim e do folhetinista como gerados pelos jomáis, afirma, comentando o aparecimento da crònica: «Ora, a partir dai é que o folhetim, tornado crònica, nao só assume personalidade de gènero, cresce de importâneia literaria, mas também reveste-se de cor nacional cada vez mais. Foi essa, aliás, talvez a sua principal característica. É dos géneros que mais se abrasileiraram, no estilo, na lingua, nos assuntos, tomando proporçôes inéditas na literatura brasileira.» A seguir, no mesmo lugar, afirma: «A crónica brasileira começou com Francisco Otaviano, no Jornal do Comercio do Rio de Janeiro em dois de dezembro de 1852 e a ele se seguiram José de Alencar, Manuel Antonio de Almeida (...).» 178

1989,29). Dessa forma, como o texto estava em fungao dessa leitura acompanhada pelos leitores-ouvintes, a sua oralizagáo alterou a própria estrutura do texto como, por exemplo, o equilibrio dos capítulos; a importancia dos eventos de primeiro plano como cadeia de eventos; em consequéncia desse último, a multiplicado dos personagens; e por fim o crescimento da movimentagao dramática, para prender a atengáo do leitor52. Essa análise deixa claro, pois, o significado do jornal para o contato da populagáo com a língua escrita, sua importancia para o surgimento de urna literatura nacional e para a alfabetizad o de vários setores da populafáo. Assim, importantes romances da historia da literatura brasileira foram publicados como folhetins, tais como «Memorias de um Sargento de Milicias», de Manuel Antonio de Almeida, «O Guaraní», de José de Alencar, «O Mogo Loiro» e «A Moreninha», de Joaquim Manuel de Macedo, «A Máo e a Luva» e «Iaiá García», de Machado de Assis e «O Ateneu», de Raúl Pompéia (Pinto 1989, 29). Considerando a influencia da língua do jornal sobre a literatura, Preti (1987) escreve: «Os escritores románticos foram os primeiros, entre nós, a reagir contra a tirania da gramática, opondo-se ao arcádico com um estilo que pendía para coloquial. Quase todos receberam urna influencia decisiva do estilo das reda^oes dos jomáis, pelas quais, invariavelmente, passaram e onde se impregnavam da linguagem do diaa-dia da imprensa.» (Preti 1987, 78)

Apesar de a génese da literatura brasileira romántica estar evidentemente relacionada com o texto jornalístico - num período em que se constituí efetivamente urna literatura brasileira, pela preocupagáo com temas e língua nacionais - essa vinculagáo tem sido deixada de lado, centrando-se os estudos que procuram analisar a constituigáo de urna língua-padráo no Brasil apenas na língua literária (Roth 1978; Woll 1994), esquecendo-se quase completamente o papel dos jomáis. Sobre essa relagáo, Pinto (1986) escreve: «No exercício dessa fun§áo é que se constituiu o modelo jornalístico, calcado, bilateralmente, na tradifáo da língua escrita náo-literária - a do ensaio, por exemplo - , e na da oralidade, em seu nivel culto nao requintado. Esse modelo, que acabou sendo assumido por muitos literatos, pode ser exemplificado na crónica, cuja aceitafao, ñas antologías escolares, com prejuízo dos textos intencionalmente literários, comprova o éxito de urna receita que a fic9áo, em grande parte, adotou.» (Pinto 1986, 48)

A mesma autora, em outra passagem, analisa a presenga da língua do jornal na literatura, escrevendo:

52

Sodré (1976a, 330).

179

«Em certos casos, avulta incisivamente a presenta do popular; noutros, a fala culta nao-formal ou o coloquial comum deixam seus tragos menos fácilmente identificáveis. E ai que o modelo jornalístico se insinúa, através da constru?ao simplificada, da ordem direta, do caráter denotativo do vocabulario, e da relativa observancia das prescrifoes gramaticais, enquanto nao decididamente afrentosas ao uso normal brasileiro.» (Pinto 1986, 46)

Se está demonstrado que existe urna vinculado histórica entre a língua do jornal e a da literatura, é preciso também se investigar melhor a natureza de cada urna dessas normas na sua historia para a compreensao do processo de constituido de urna língua escrita no Brasil. 4.5.2

A língua do jornal

Fagamos agora urna incursáo pela natureza da língua do jornal no século XIX, ali precisamente onde jornalismo e literatura se confundem no contexto da imensa oralidade do povo brasileiro. Quando se procura analisar o jornal quanto á natureza da língua por ele veiculada, um fato nos chama a aten9ao, a saber: diferentes tipos de textos o compóem, o que a principio aponta para urna certa variedade lingüística de língua escrita. Especificamente no período que nos interessa, primeira metade do século XIX, os jomáis brasileiros eram ainda artesanais, por assim dizer, mantendo-se ainda dentro de padróes pouco desenvolvidos de sua elaboragáo. Por outro lado, como nao poderia deixar de ser, eles refletem o nivel de desenvolvimento da civilizado brasileira, refletindo conseqüentemente as diferentes rela?oes sociais que se estabeleciam no interior daquela sociedade. Tomando o caso específico da cidade do Recife, podemos resumir as características dos textos dos jomáis de entao como voltadas para a batalha política que se travava em torno das idéias de monarquía e república, (textos do tipo editorial ou comentário político); textos literários (o folhetim ou novela seqüenciada a cada edi?áo, acompanhada pelos leitores); e textos de interesse para a atividade comercial (diferentes anuncios de compra e venda; avisos diversos). Se quisermos também resumir a natureza lingüística de cada um tipo desses textos, de urna forma geral, apontaríamos o que dissemos no capítulo anterior sobre as variedades em jogo na época. Há urna tendencia nos editoriais e comentários para o predominio da variedade mais prestigiada á época; nos folhetins, pela natureza narrativa do texto, predomina um estilo pouco diferenciado dos primeiros, porque o ideal lingüístico é ainda a variedade dominante, sendo evidente a influencia francesa;53 por fim, nos anuncios muitas vezes se evidencia um texto mais nitidamente influenciado pela oralidade.

53

O folhetim brasileiro vai aparecer depois de 1850. O primeiro foi «Memórias de um Sargento de Milicias», de Manuel Antonio de Almeida, sob o pseudònimo de «um brasileiro», entre 2 7 . 0 6 . 1 8 5 2 e 3 1 . 0 7 . 1 8 5 3 (Pinto 1989, 29).

180

No inicio do século XX, o maior expoente da corrente da preocupado formal, posterior ao Romantismo, o escritor e jurista Rui Barbosa,54 sentenciava, transmitindo a visáo que os setores conservadores tinham ainda da lingua do jornal: «A vida parlamentar, a administrado e o jornalismo tem sido, em toda a parte (quanto mais entre nós!), os mais poderosos corruptores da lingua e do bom gosto.» (Pinto 1978, 383)

Mas se os jomáis facultam aos escritores románticos a possibilidade de trabalhar conscientemente a lingua com os objetivos aqui descritos, havia também aqueles que nao sendo escritores, nem tendo o objetivo consciente de trabalhar as formas lingüísticas numa diregào específica, escreveram a lingua portuguesa como lhes era familiar. Nesse sentido, é importante chamar a atengao para o fato de que novas carnadas sociais come^aram a ampliar o seu contato com a lingua escrita, para além do manuseio das cartas privadas, até entáo o único instrumento de exercício mais constante dos setores alfabetizados ou semi-alfabetizados. Prova disso é o que se encontra no editorial do jornal O Nicolau, publicado no Recife em 1841 e apresentado por Nascimento (1969, 165), quando apresenta a folha que «vinha engrossar as fileiras do jornalismo em Pernambuco, onde há pouco ninguém escrevia e onde agora todos escrevem».55 Dentro de urna perspectiva propriamente lingüística, passemos agora a arrolar alguns usos, que presumivelmente refletem a interferencia da lingua falada na escrita, evidencia de que, embora os autores quisessem elaborar o texto numa concepfào escrita, percebem-se alguns sinais de sua vincula9ào à natureza da oralidade. Pelo novo contato que a popularizado dos jomáis propicia, é possível que certos «erros» que até entao se mantinham a nivel privado estivessem passando a aparecer nos textos jornalísticos.56 a) repetido desnecessária: «Esta fólha vai tornar-se mais interessante por conter nela noticias de toda a Europa (...).» (145- 1836)

b) uso do pronome indefinido tudo de coisas para pessoas: «Tudo que fór marreco57 deve ter èsse Diabo em sua casa, para se livrar de o ser (49)58; «Que absolutistas, colunas, caramurus, cabanos, regressistas ou fìdalgos, era .» (142,1836)

54 55 56

57 58

Rui Caetano Barbosa de Oliveira (1849-1923). Esta passagem corrobora a cita?ào de O Carapuceiro, capítulo 3, item 3.2.2.3. Os números após as citafòes referem-se às páginas de Nascimento (1969), seguidas dos anos em que os fenómenos aparecem. O termo se referia a membro de urna determinada fac9áo política local. O Diabo foi um jornal publicado no Recife de 1 a 30.05.1836. 181

c) apagamento do pronome objeto anafórico: «Será crível que os pernambucanos recebam e dem posse a um Chanceler e um Bispo, ambos marinheiros (3), quando se trata de nao admitir essa gente que é nossa inimiga? (...) A obediencia nao obriga a tanto (...) Ninguém receba . Fora! fora! (...).» (47, 1823) «Quem quizer comprar o Parlamentar, (...).» (289, 1848) «A Mentira recebe mentiras e vende

procure

na rúa do Rosário Estreita

a 40 réis.» (293, 1848)

d) problemas de natureza sintética (concordancia verbal, sintaxe problemática): «Temos a satisfagáo de anunciar aos leitores que os jomáis chegados no vapor «Imperador» trouxe-nos a noticia (...).» (194,1843) «Nao entrava por certo nos meus cálculos que o partido , mais conhecido nesta provincia por , saindo da posigáo miserável a que o haviam reduzido seus principios, e, mais do que tudo, osfatos monstruosos por éle mesmo praticados, galgasse (...).»(183, 1848)

Concluindo, a partir dos anos 20 do século XIX, desenvolve-se em algumas cidades brasileiras urna imprensa periódica, que cresce assustadoramente á luz dos debates políticos que a partir da independencia em 1822 vao se aprofundar. Pela natureza do texto jornalístico, diferentes géneros textuais constituem a sua dimensáo lingüística, apresentando desde os mais gramaticalmente elaborados aos mais espontáneamente formulados. 4.5.3

A língua da literatura

Inicialmente, antes de falarmos da língua literária propriamente, se faz importante urna nota sobre os tipos de textos que preparam o aparecimento dos romances. Anteriormente ao surgimento de urna literatura brasileira no século XIX, as novelas divulgadas no Brasil foram as traduces francesas, que representavam urna espécie de antecipagáo romántica. Em seguida aparecem tradu?oes de romances, herdados da tradifáo oral, tais como «Historia da Donzela Teodora» e «Historia Verdadeira da Princesa Magalona», que vao até á publica?áo dos primeiros romances románticos.59 Por outro lado, ojiroblema da língua do Brasil se apresenta pela primeira vez no século XIX. É exatamente no ámbito do Romantismo que a questáo se coloca, no bojo da formagáo da nacionalidade.6" O escritor que se destaca nesse período é José de Alencar, que associando o sentimento de nacionalida-

59 60

Cf. Sodré (1976a, 329). Antes, como já vimos, á época da independencia, a relajáo entre língua e nacionalidade já tinha sido colocada; e depois, em 1825, também. Mas com o Romantismo o problema tem outra dimensao.

182

de ao instrumento de expressào do escritor, buscava elevar traaos da lingua falada no Brasil ao status de lingua literaria. Ele nào só produz o pròprio texto, mas também teoriza sobre lingua e nacionalidade,61 por exemplo. Como se trata de um autor oriundo do jornalismo, a oralidade por ele incorporada nào é algo artificial ou inadequado, mas pelo contràrio se vincula efetivamente a um certo nivel da lingua falada, ou pelo menos a um estilo de lingua escrita em fun§ào da oraliza?ào. Um aspecto interessante a se discutir na produgào de Alencar é a idéia de «estilo frouxo» de que sua obra é acusada. A classificagào foi pela primeira vez utilizada por Pinheiro Chagas62 como resposta ao que o escritor chamava de «estilo moderno». Depois outros críticos se apoderaram da expressào para exercer também a sua crítica, como Antonio Henriques Leal.63 Rebatendo urna de tantas críticas ao estilo por ele inaugurado, Alencar acusa os autores clássicos de abusarem de c o n j u n t e s que servem de elo à longa sèrie de oragoes amontoadas em um só periodo. Para exemplificar o que ele entendía por «estilo clàssico» e «estilo moderno», toma um texto de Frei Luís de Sousa,64 escritor portugués, e o reconstrói segundo a sua proposta: O estilo clàssico: a) «Era urna árvore de tao desmesurada grandeza, que dentro do tronco, que de muita antigüidade tinha aberto e oco se armou urna mesa, e o arcebispo se assentou a eia em urna cadeira, e por memoria no mesmo sitio e assento visitou a freguesia, e tinha também lugar dentro a testemunha que vinha dizer seu dito.» (Pinto 1978, 82-83)

O estilo moderno: b) «Era urna árvore de tao desmesurada grandeza, que dentro do tronco da muita antigüidade aberto e oco, armou-se urna mesa: a eia assentou-se o arcebispo em urna cadeira, onde por memoria visitou a freguesia, havendo ai lugar também para a testemunha que vinha dizer seu dito.» (Pinto 1978, 83)

Depois de apresentar a proposta, Alencar comenta: «De oito ora^oes ficaram seis, e estas em vez de serem uniformemente unidas pelo relativo ou pela copulativa como eram as oito, ao contràrio, tém todas um vínculo diverso. A segunda une-se pela copulativa que, a terceira pelo pronome regido de preposifào a eia, a quarta pelo advérbio de lugar onde, a quinta pelo participio havendo, a sexta pelo relativo que.» (Pinto 1978, 83) 61

62 63 64

V. coletánea de textos nao-literários sobre as idéias lingüísticas do autor apresentada por Pinto (1978). Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895). Antonio Henriques Leal (1828-1885). Manuel de Sousa Coutinho (1555-1632).

183

A esse estilo entáo chamado «moderno», que apresenta urna nova sintaxe e, conseqüentemente, urna coesao textual diferente, é que alguns críticos á época classificaram de «frouxo», 65 além de «relaxado». Sem dúvida, tal estilo representava urna inova§ao á época. Para Antonio Henriques Leal, 66 a frouxidao do texto alencarino residía sobretudo na ausencia dos «ñervos do estilo», cuja imagem evoca a idéia de marcadores de coesao textual. Entretanto, o texto proposto por Alencar prima por uma simplificagao no tamanho das ora?6es com o auxilio da pontuagáo e outras estratégias coesivas. Em resumo, se poderia dizer até que o texto de Alencar é mais conciso e «visivelmente» marcado pela pontua?áo, que coincide com certas estratégias de conexao (a ela, onde, havendo) em comparado ao estilo «tenso» e «enfadonho» dos clássicos. Parece que na versao «a» se escreve como se fala, mas em «b» a maneira de distribuido das ora§oes dentro do período favorece o papel do olho - por causa do público leitor emergente - , ao mesmo tempo que favorece a leitura em voz alta. Disso trataremos mais adiante.

4.6

A semi-oralidade 67

Ainda nos anos 7 0 na lingüística européia, Solí (1974) 6 8 já houvera encontrado uma solu?áo para o problema aparentemente indecifrável da distingo/ relagáo entre o oral e o escrito, quando propós uma explica§áo que tomava

65

66

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68

Sobre a relaçâo entre estilo «frouxo» e oralidade; estilo «tenso» e lingua escrita, veja-se Badia i Margarit (i960). Antonio Henriques Leal assim definiu estilo «frouxo»: «sabe onde estäo o estilo frouxo e as incorreçôes gramaticais da frase? estäo na má construçâo e urdidura irregular do período, na imperfeiçâo e no incompleto dele, na impropriedade dos termos, na colocaçâo abstrusa dos membros da oraçâo, das palavras, dos complementos e das preposiçôes contrarias à açâo e ao que pedem os verbos, finalmente na anfibologia, nos neologismos escusados e opostos à índole da lingua, na pontuaçâo irregular, ñas repetiçôes ociosas, na falta de concisâo etc. A ausência destes e outros predicados, que sao os ñervos do estilo, afrouxam-no, o entorpecem e tiram-lhe toda a louçania, elegância e energia.» (Pinto 1978, 177-178). Schlieben-Lange (1995, 1 1 5 ) assim se refere à semi-oralidade: «Qu'est-ce que c'est qu'un texte sémi-oral? J'emploie ici un terme proposé en 1979 par Fritz Nies pour désigner un mode de production et de tradition de textes qu'on trouve fréquemment pendant la Révolution Française, à mi-chemin entre oral et écrit. Le terme s'est révélé être d'une grande qualité heuristique puisqu'il permet de cerner un phénomène complexe.» O conceito já houvera sido explicitado em SchliebenLange (1983,46-51). Também na Germanistica o conceito foi explorado por vários autores, veja-se sobre isso Polenz (1995). No nosso caso especificamente, o conceito de semi-oralidade está inteiramente associado ao de «semi-alfabetizaçâo». Trata-se do livro «Gesprochenes und geschriebenes Französisch», que na bibliografia vai aparecer na ediçâo preparada por Franz J. Hausmann, v. Söll/Hausmann (1985).

184

por base quatro elementos distribuidos em dois planos, inspirando-se no exemplo do francés, isto é, para se compreender claramente a natureza das duas modalidades, devia-se primeiramente compreender que elas se concretizam num médium e numa concepgáo. Quer dizer, o médium representa o canal em que as modalidades se realizam e a concepgáo, a natureza cognitiva de sua organizado. Dessa forma, Solí distribui os quatro elementos acima citados da seguinte forma: do ponto de vista do médium, tém-se o code fonique e o code graphique e do ponto de vista da concepgáo, tém-se o code oral e o code écrit. Na perspectiva do médium, a distin§áo entre oral e escrito é evidente, pois ou algo se realiza pelo canal fónico ou pelo canal gráfico, sendo o gráfico filogeneticamente urna representad 0 do fónico, pelo menos nos estágios iniciáis de c o d i f i c a d o de certos sistemas de escrita numa tentativa de representado unívoca. Em face da evolu?ao dos sistemas e do conservadorismo da representado gráfica, acontece em estágios posteriores urna alter a d o na r e l a d o de um para um, deixando de existir essa simetría.69 Na perspectiva da concepgáo, as duas formas de organizado textual, embora diferentes, podem se perpassar. Essa distinf áo, aprofiindada a seguir, esclarece com relativa facilidade as diferentes caracterizafóes entre as duas modalidades ou as passagens de urna para a outra, como no caso da semi-oralidade. A semi-oralidade, pois, se concretiza como um processo que implica na passagem do oral para o escrito ou vice-versa. Os textos que se fixam ñas tradifóes discursivas das sociedades em que ela se dá podem ser rotulados de textos semi-orais, como classifica?ao geral, e se constituem em tipos específicos. Considerando com Sóll/Hausmann (1985) e Koch/Oesterreicher (1990) a distribuido dos quatro elementos acima apontados e sua r e l a d o ñas passagens das modalidades, temos: A

(concep§ao)

oral

? B 1 f ó n i c o (médium = m) 1 o¡ escrito 1 1 1 g r á f i c o (m)

C

D

A parte superior da figura acima está separada por urna linha cheia horizontal para mostrar como a distin§ao entre oral e escrito se dá num continuum, sendo 69

Um bom exemplo disso é o caso da vogai átona final da lingua portuguesa /o/, que no Brasil na maioria das regióes transformou-se em /u/. A representaíáo «o» da ortografia revela, pois, a persistència de urna grafia etimológica, que no Brasil nao corresponde mais a urna relaijào de um para um, sendo esse fenòmeno para muitos alfabetizandos urna dificuldade para o dominio satisfatório da escrita.

185

impossível precisar urna separagao rígida; o ponto o (zero) representa urna separagáo teórica entre as duas; ao realizar seu percurso, essa linha deixa separada a parte superior da inferior, onde se encontram o fónico e o gráfico, respectivamente. A linha pontilhada m, que representa o médium, se movimenta em concomitancia com o eixo concepcional, mostrando as diversas combinagóes possíveis e como médium e concepgáo se inter-relacionam nos diversos tipos de textos produzidos; a linha m se encontra na altura do ponto o (zero) para indicar apenas sua posigáo de repouso, perpassando os dois planos mediáis, para indicar que serve para os representar. Dessa forma, m pode se manifestar na parte superior ou inferior (fónico ou gráfico, respectivamente) combinada com a concepgáo á esquerda ou á direita, se se trata de concepgáo oral ou escrita respectivamente. Assim, no quadrante superior A se encontrariam os textos que se realizam como fónicos e sao concebidos como oráis; no quadrante superior B se encontrariam os textos realizados fónicamente e concebidos como escritos; no quadrante inferior esquerdo C se encontrariam os textos realizados gráficamente e concebidos como oráis; por fim, no quadrante D, os textos realizados gráficamente e concebidos como escritos. Em cada uma dessas representagóes é através de m que nos devemos nos orientar para a compreensáo do que se quer representar, embora isso nao indique uma prevaléncia do médium sobre a concepgáo. Como exemplo do que se encontra em A, ter-se-ia uma conversa informal e ocasional entre dois conhecidos; como exemplo do que se encontra em D, um artigo para publicagao, previamente pensado, elaborado e revisado. Essas duas realizagóes seriam pois as formas ideáis de distingáo absoluta teórica entre oralidade e escrita, porque tanto o médium como a concepgáo de A sao diferentes dos dois elementos de D. De outra forma, podemos afirmar que há textos em que o médium de realizagáo gráfica e a concepgáo oral se tocam. Uma carta privada70, embora seja do ponto de vista medial, realizada pelo gráfico, é, por outro lado, organizada, de um certo modo estruturada, pensada, num tom de conversa, como se fora portanto realizada no espago da oralidade. É o que se encontra em C. Há também textos que embora se realizem de forma fónica, foram pensados, elaborados como se tivessem sido escritos, porque planejados segundo a natureza e organizagáo da língua escrita mais concepcional. Pensemos numa conferencia. Embora seu autor a pronuncie oralmente, nao se trata efetivamente de uma conversa ou de um discurso improvisado, mas foi previamente planejada, contendo na sua origem alguma forma de elaboragáo escrita. E o que encontramos no quadrante B. Dentro dessa escala - que se pode associar aos níveis de informalidade e formalidade, respectivamente em cada extremo - se arranjam os textos, que em algum ponto encontram seu lugar. Esse movimento na produgao textual dentro de uma dada sociedade se altera em volume e qualidade. Considerando que a

70

Para uma anälise pragmätica do tipo de texto «carta», v. Langeheine ( 1 9 8 3 ) . 186

comunicado, a?ao ou intera?ao através de textos concepcionalmente escritos é urna inven?áo da humanidade posterior ao desenvolvimento da comunicad o concepcionalmente oral, o desenvolvimento da escrita concepcional levou séculos para atingir um grau de aperfei§oamento que satisfizesse ou correspondesse a sua necessidade real como substituido da oralidade quando esta nao era absolutamente possível. Na Idade Média, como nao se concebia a leitura como hoje a concebemos,71 o texto escrito estava em fun?áo da oraliza^áo do que se escrevia e este era entáo escrito na perspectiva da oralidade, o que implicava o papel da voz para dar vida ao texto, que nao se lia silenciosamente.72 Assim, ou se escrevia para se 1er em voz alta ou se registrava o oral para ser re-oralizado. Daí a produgao textual medieval estar a meio caminho entre os dois extremos da escala acima apresentada (Zumthor 1985b). Hoje, diferentemente, as circunstancias da produ^áo textual escrita ensejam certos textos que medeiam na escala esbozada acima, constituindo-se ora como «normáis», ora como «mal escritos», dependendo das circunstancias e competencia do produtor. Dessa forma, seja como texto - o produto - , seja como processo de realizado oral ou escrita, a produgáo textual preenche aquela escala, em ambas as dire£5es ou nos níveis superior ou inferior. Com o desenvolvimento da leitura silenciosa pelos fins da Idade Média e durante o Renascimento, o texto «ditado»73 para ser oralizado perdeu em parte seu sentido, pois novas necessidades se estabeleceram. A perspectiva da oralidade desapareceu - mas nao de todo - e a elaborado do texto sofreu urna profunda altera§ao. As técnicas de «escrituraliza?áo da vida»74 come5aram a ser aprimoradas porque o texto passou a ser veiculado em lugares e épocas diferentes daqueles da situa§ao de onde brotou. Do ponto de vista lingüístico, a pontua§áo foi um dos níveis mais atingidos nessa alterado, porque se antes ela desempenhara um papel auxiliar na oralizagáo do texto,75 posteriormente é dirigida em fungao da organizado do seu conteúdo e se constituí em elemento de coesao textual, colaborando para a estrutura§ao sintática do texto,

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72

73 74

75

Para a relaçâo entre oralidade e escrita ou suas formas de veiculaçâo no passado, v. os artigos publicados na revista New Literary History, Vol X V I (1), 1984; também Müller (1995); Grosse (1993); Wright (1976). A leitura silenciosa é reflexo de um estágio posterior ao desenvolvimento da leitura em voz alta. Embora na Idade Média a leitura para meditaçâo levasse a uma outra forma de leitura que nao a em voz alta, essa na verdade só se desenvolveu mais plenamente a partir da invençâo da imprensa, v. Saenger (1982). V. Schlieben-Lange (1979). A expressäo se encontra em Giesecke (1980), ao comentar a passagem da «fala popular» à escrita no contexto do surgimento dos primeiros textos técnicos na Alemanha ao final da Idade Média. Pontuaçâo näo deve ser vista no sentido exclusivo de hoje, porque queremos com isso também designar marcas auxiliares para representaçâo do componente suprasegmental.

187

constituindo-se dessa forma num instrumento auxiliar do desenvolvimento da cultura escrita ñas sociedades modernas. 4.6.1

Contextos onde é significativa a nogáo de semi-oralidade

As noyóes, acima esbo?adas, servem muito bem para explicar o uso da oralidade/escrita em certos contextos sócio-históricos, que aqui queremos destacar. Em primeiro lugar a nogáo é fundamental em certos momentos históricos na génese de línguas que se impuseram em contextos onde havia outra ou outras, seja o caso mais significativo o das línguas románicas (Koch/ Oesterreicher 1 9 9 0 , 1 2 7 - 1 3 2 ) . Esse fenómeno encontrou com certeza muitos paralelos em outras culturas e sociedades como nos países europeus nao-latinos. Um exemplo ilustrativo seria o das línguas eslavas, em face da diversificagáo étnica e conseqüentemente da diversidade de línguas.76 Na Alemanha também tradÍ9Óes semelhantes sao encontradas na história (Semenjuk 1990; Grosse 1993; Polenz 1995). Esse fenómeno também encontra paralelo no período de imposi§áo do espanhol na América do Sul no século X V I (Oesterreicher 1994). As crónicas escritas por soldados revelam do ponto de vista lingüístico certos fenómenos que devem ser associados necessariamente com o que aconteceu na Europa na Idade Média, embora a perspectiva seja outra. Um exemplo dinámico e contemporáneo muito típico de situagáo histórica onde se observa plenamente o mesmo fenómeno é aquele das línguas crioulas. Embora nao tenha a ver necessarimente com o nascimento de urna língua, porque os crioulos já existiam há séculos nessas realidades históricas, o fenómeno se refere direta e específicamente á passagem da oralidade para a escrita, alterando as características dessas línguas, principalmente no que diz respeito á reaproxima§áo entre elas e seus ancestrais, ou seja, as línguas dominantes nesses contextos. A vida exclusiva dos crioulos no plano da língua de proximidade sofre alteragáo na medida em que ao adotarem elementos das situa?6es de distáncia, na área da integratividade, muitas vezes tém de recorrer a meios disponíveis ñas línguas dominantes, perdendo dessa forma algo de sua natureza. Nao é demais acrescentar que a introdujo desses elementos leva a um processo de descrioulizafao mais intensa na medida em que mais individuos tém acesso á educa§áo formal e conseqüentemente as formas mais elaboradas da língua escrita, o acroleto77. Embora qualquer alusáo á filia§áo crioula do portugués brasileiro esteja fora de cogitado neste capítulo, algumas semelhangas entre os contextos tornam as análises de Ludwig (1989b) inte-

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77

É possível que a paulatina emergencia do polonés em textos escritos em latim entre os séculos X e X V tenha também propiciado o aparecimento de textos produzidos em condifoes de semi-oralidade num contexto semelhante ao descrito por Koch/ Oesterreicher (1990), veja-se Milewski (1959). Sobre esse problema, v. Come (1989). 188

ressantes para o que vamos fazer aqui. Do ponto de vista do papel da relaçâo entre oralidade e esenta e o estado da sociedade em que esse confronto se dà, a sua afirmaçâo abaixo nos permite a associaçâo: «Cet abord des problèmes de l'oral et l'écrit nous amène à deux constatations. Premièrement: les sociétés antillaises, et créoles en général, sont en voie de transformation, et le clivage entre l'oral et l'écrit joue un rôle important dans ce contexte.» (Ludwig 1989b, 14)

Embora o autor nâo aprofunde essa constataçâo, eia poderia ser muito bem apropriada à situaçâo brasileira. Adiante vamos discutir com mais vagar essa questâo para depreendermos entâo o significado do contato entre oralidade e escrita. Dessa forma, como as dimensôes agregaçâo-integraçâo têm a ver com os tipos de textos, 0 corpus analisado no capítulo 5 revela muitos fenómenos associados a elas, principalmente a agregaçâo, em face do tipo de texto predominante. Uma última situaçâo a que gostaríamos de nos referir é o caso da formaçâo de normas lingüísticas quando certas variedades dialetais extremamente presas à situaçâo de proximidade no ámbito regional se encaixam num processo de urbanizaçâo e passam a se configurar como normas locáis com um certo prestigio. Nesse caso elas se configurant como realizaçôes regionais de uma variedade nacional que se apresenta relativamente uniforme em face do papel da lingua escrita. É o caso do Brasil, onde as normas urbanas de certas cidades populosas sâo estudadas dentro do projeto NURC. Embora a escrita esteja unificada pelos agentes de normalizaçào, a manifestaçâo da oralidade concepcional em textos do século X I X em pleno processo de urbanizaçâo da vida social revela em que medida a oralidade se realizava naquele momento histórico, evidenciando o surgimento de uma norma, conforme o caso estudado no capítulo 3. Em resumo, pode-se afirmar que da mesma forma que os individuos experimentam uma fase em que précisant fazer uma ponte entre a oralidade e a escrita - quando a combinaçâo dessas técnicas é visível - , também as comunidades históricas experimentam etapa semelhante no desenvolvimento de uma longa tradiçâo até a aquisiçâo de um nivel de produçâo escrita como instrumento de intercomunicaçâo entre seus individuos. Quando, por outro lado, a escrita nivela todos os usos regionais, a variaçâo oral originària pode ser recuperada por certos textos que se tornaram marginais na história da variedade estudada, muitas vezes porque foram escritos por aqueles incapazes de neutralizar as marcas da oralidade em seus textos. Entretanto, nâo se deve esquecer, determinados géneros permanecem a meio caminho, quando nâo a pròpria literatura, que, como símbolo nacional, se renova muitas vezes pela reincorporaçâo de técnicas da oralidade para alcançar a sua originalidade.

189

4.6.2

Diferengas constitutivas entre oralidade e escrita

Antes de discutirnos as passagens entre as modalidades, urge fazer alguma diferenciado do oral/escrito, para melhor compreendermos qual a natureza da semi-oralidade. Partindo, pois, dos dois extremos - oral/escrito vamos estabelecer a distingao/relagao entre as duas modalidades a partir de alguns aspectos definidores do modo de ser de cada urna délas numa perspectiva pragmática. A preocupado com as diferen?as entre oralidade e escrita ganhou a partir dos anos 6o nova dimensáo.78 Com os trabalhos de inspirado antropológica de Goody/Watt (1963) se passou a incluir esses estudos numa perspectiva mais científica. Inicialmente, a oralidade em si só ganha a atengao definitiva com o desenvolvimento da sociolingüística ao final dos anos 50 e depois nos anos 60, sobretudo com a énfase nos estudos que se concentraran! sobre a fala, favorecidos pelo terreno preparado pela dialetologia. Já o estruturalismo norte-americano, que vigorara no período - levado pelo interesse em descrever as línguas indígenas - , considerara os dados de natureza oral, mas o gerativismo mostrara a sua dificuldade de trabalhar com os dados colhidos em situasoes normáis de fala. Nos anos 70 se estabeleceram estudos mais rigorosos sobre a caracterizado das duas modalidades. Seguindo o caminho já trabado pela sociolingüística, pode no final dos anos 60 e nos anos 70 emergir a análise da conversad 0 * que, por sua vez, abriu definitivamente as perspectivas sobre a análise da fala, agora estudada do ponto de vista de sua organizado. Esse extraordinário desenvolvimento da lingüística da fala levou paulatinamente a urna recuperado do estudo da escrita, que favorecido pelo trabalho dos antropólogos e pelos lingüistas aplicados, passou a tomar grande impulso. Toda essa preocupad 0 com a relado entre oralidade e escrita enfatizou sempre a concepgao apriorística de que entre as duas modalidades de manifestado das línguas há um verdadeiro fosso separando-as.79 Dessa forma, as pesquisas se concentraram em mostrar a diferenga, alistando as características de urna em contraste e oposifáo á outra, ou seja, o que pertencia a urna nao pertencia, por exclusáo, á outra. Essa visáo dicotómica teve quase a intengao de separar a escrita - com que preponderantemente se preocupava a lingüística - da oralidade, justificando portanto a imprestabilidade desta última para os estudos lingüísticos, o que foi muito valorizado por uma lingüística orientada pedagógicamente.80 Hoje as pesquisas lingüísticas se apóiam sobretudo

78

79

So

Para um resumo histórico dos estudos da língua falada, leia-se Schank/Schoenthal (1976, 1 - 6 ) Veja-se a concepfäo subjacente em Helmig ( 1 9 7 2 , 5): «Die Ergebnisse der Linguistik in den letzten zehn Jahren legen eine grundsätzliche Trennung der gesprochenen und geschriebenen Sprache nahe.» Quando o estruturalismo propunha um estudo de estruturas oráis, isso se dava ä base de frases-modelo, de modo que os exercícios se apresentavam de forma mecanica, onde as estruturas treinadas eram repetidas, ficando quase nenhum espado

190

na lingua oral. Além disso, ampliando-se outros aspectos desse relacionamento, segundo o percurso histórico de várias sociedades no desenvolvimento da sua tradigào escrita,81 essa visào dicotòmica revelou-se falsa e experiencias como a aqui descrita apontam para urna fusáo de técnicas típicas da oralidade e da escrita, em vez dessa alegada dicotomia.82 4.6.2.1

A situagào83

Por situagào entendemos o espago lingüístico em que se movimentam falante/ ouvinte, em que o «aqui» e o «agora» determinam as relagSes entre os dois e as condigòes de alteragào recíprocas délas. Ai o «eu» e o «tu» se alternam reciprocamente. A situagào é fundamental para a realizagào da oralidade, que se concretiza no momento da fala, onde se estabelecem relagòes de natureza espacial, temporal com implicagòes de natureza deifica. A simultaneidade da situagào/produgào do discurso implica numa diferenga fundamental comparativamente à escrita. Enquanto na oralidade os individuos estáo inseridos na mesma situagào, o papel deste componente e o contexto imediato da interagào conduzem a construgào do significado e da referencia, resultando a compreensào, por sua vez, sobremaneira das relagóes ai estabelecidas e dos significados também ai construidos. Na escrita, dada a ausencia de um interlocutor, a referencia é construida intratextualmente, devendo para isso serem tecidas relagóes coesivas e anáforicas responsáveis pela progressáo temática e pela coeréncia textual. Dessa forma, como se trata no texto escrito de conexoes que se baseiam em urna seqüéncia, o sistema anafórico identificado no texto se baseia em certos marcadores que explicitam precisamente essas conexoes, estabelecendo a teia coesiva. Para se perceber o papel da situagào, a passagem da oralidade à escrita representa exatamente esse afastamento da situagào face-a-face para a criagào de urna autonomizagào relativa do texto. Curiosamente, o proprio desenvolvimento filogenètico das línguas, das suas origens aos estágios posteriores, tem nesse afastamento a sua motivagào (Bühler

para a percepçâo real da fala, quanto a sua organizaçâo. Em sintese, esse exercicio de estruturas estava voltado para a frase e por trâs disso estava a imagem da lingua escrita, veja-se Genouvrier (1970): Expression libre et apprentissage des mécanismes. L'exercice structurel à l'école élémentaire. 8 ' Sobre a originalidade e riqueza de textos produzidos por falantes de uma lingua norte-americana recentemente «mise en écrit», veja-se Mithun (1985). 82 Ainda no final dos anos 80, entretanto, a linguistica norte-americana revelava uma certa perplexidade em face da confluência de fenômenos semelhantes nas duas modalidades como na passagem: «In examining varied samples of spoken and written language, one may even be led to wonder whether that distinction makes any sense at all, or whether there are just many varieties of a language which are available to its speakers, most of all of which varieties may be either spoken or written depending on the circumstances.» (Chafe/Danielewicz 1987, 84). 83 Situaçâo, dêixis e perdurabilidade da escrita no tempo sâo baseadas em SchliebenLange ( 1 9 8 3 , 4 6 - 5 1 ) , veja-se também Klein (1985); Coseriu (1994); Vater (1992).

191

1982). Na escrita, portanto, essa autonomizagáo relativamente á situagao da produgao do discurso implica numa utilizagáo diferente dos entornos (Coseriu 1979a), sobretudo aqueles que implicam o contexto histórico, social ou cultural, por exemplo. 4.6.2.2

A déixis

Em face da situagao que caracteriza a fala e da possibilidade que tém falante e ouvinte de alterarem seus papéis durante a interagao, emerge ao mesmo tempo o papel da déixis, responsável pela identificagáo clara dos elementos referidos dentro da situagáo. Assim, a déixis pessoal, corporificada pelos pronomes pessoais - eu/tu preponderantemente; a déixis espacial, corporificada pelos advérbios de lugar do tipo aqui/ali\ a déixis temporal como o agora/ neste momento/entao assumem papel fundamental na construgáo do texto oral. Da situagáo e de seu reflexo, a déixis, resultam diferentes manifestagoes na oralidade e na escrita, resultando em cada modalidade diferentes empregos. 4.6.2.3

A perdurabilidade da escrita no tempo

Enquanto o texto oral está preso á situagáo de onde brotou, o aparecimento da escrita significou a possibilidade de veiculagáo de mensagens de uma forma muito mais duradoura do que antes, porque a partir de entao a dimensao tempo passou a ser dinámcia, podendo um texto projetar-se para além ou aquém do presente. Embora no texto oral a referéncia seja possível, esta se faz entretanto sempre a partir do presente, ou seja, o discurso continua girando em torno de uma situagáo presente. Com o aparecimento da escrita, póde-se passar a 1er em várias épocas o mesmo texto que embora escrito no passado, pode manter seu significado em épocas posteriores. Seja o exemplo da literatura. A s grandes obras literárias da historia da humanidade conservam o seu significado de forma perdurável no tempo, residindo exatamente nisso o seu caráter de obra literária. Da mesma forma, através das possiblidades oferecidas pela língua escrita, pode-se reconstituir situagoes do passado e até reconstruirse aspectos da oralidade.84 Dessa maneira, oferecendo a possibilidade de afastamento da realidade onde a oralidade é produzida, os sistemas escritos tém um funcionamento e um significado diferentes do que ocorre naquela modalidade e sua produgáo exige portanto outras habilidades que somente á custa de um esforgo intelectual superior é possível alcangar. Essas habilidades pressupóem a consciéncia e o dominio portanto das técnicas de oralidade e escrita, já que os diferentes tipos de textos que compoem o conceito de língua

84

Isso é, entretanto, parcialmente conseguido, porque nunca se é possível reproduzir fielmente por escrito a concepfáo oral, simplesmente porque, ao se mudar o médium, produz-se de alguma forma alguma diferen?a na concepíao. 192

escrita pressupóem urna utilizado diferente dos recursos lingüísticos oferecidos pela modalidade oral. 4.6.3

A natureza da concepgao ñas duas modalidades

Deixando de lado a caracterizagáo quanto ao médium, fagamos urna reflexáo sobre as implicagoes que a compreensáo da concepgao traz para a resolugáo do problema da distingáo/semelhanga entre oralidade e escrita. Estabelecer urna distingáo rigorosa entre as duas modalidades quanto á concepgao é portanto urna tarefa inglória, porque é exatamente a concepgao que vai determinar um conjunto de variagoes, configurando no fundo diferentes estágios de organizagáo textual com efeitos positivos na constituigáo de urna tipología textual. A partir dessa perspectiva, pode-se tomar dois extremos concepcionais. Enquanto na oralidade a forma de organizado e produgao do discurso se dá no momento mesmo da sua exteriorizagáo, possibilitando-se perceber sinais do processamento textual, na escrita essas marcas nao existem porque a situagáo se caracteriza como outra. O produtor do texto sentado diante do papel utiliza o tempo necessário e revisa seu texto quantas vezes forem necessárias para que o produto seja finalmente apresentado ao leitor. Pode-se dizer que enquanto na oralidade o produto apresentado traz consigo as marcas do processo de produgao, na escrita essas marcas - na maioria transferencias da oralidade - sao apagadas para que o produto possa ser apresentado sem as incoveniéncias que tornariam o trabalho de recepgao deveras problemático. Muitas vezes a dificuldade para muitos iniciantes em produgao textual reside exatamente em nao ter a consciéncia e ao mesmo tempo a competencia para identificar as marcas do processamento do texto escrito no seu produto final. A penetragao dessas marcas no produto final - observada na prática cotidiana de muitos individuos, sobretudo iniciantes - acontece na primeira ou ñas primeiras vers5es dos textos elaborados e sua superagao deve-se a um momento fundamental na finalizagáo do texto representado pelo processo de revisao. Por fim, nao é demais acrescentar que alguns vestigios dessas marcas discutidas tém em muitos textos valor estilístico, quando nao caracterizam a semi-oralidade propriamante. A utilizagao de tais elementos com efeito estilístico pressupóe absolutamente a experiencia no trato com a escrita e o uso com certa consciéncia dos efeitos buscados. Esse procedimento nao precisa ocorrer em textos necessariamente literários, podendo ser utilizado produtivamente em textos cotidianos. 4.6.4

Proximidade e distancia comunicativas - agregagao/integragao

Esclaregamos agora os conceitos de «agregagáo» e «integragao». Para estabelecermos diferengas entre o oral e o escrito, podemos adotar duas perspectivas diferentes. Urna primeira seria urna abordagem externa do problema, tomando em consideragáo o uso da oralidade e da escrita em relagao a diferentes contextos sociais e a diferentes situagoes. Assim Koch/Oesterreicher 193

(1985) falam de «Sprache der Nähe» e «Sprache der Distanz» (proximidade e distância comunicativas), referindo-se aos dois polos da escala do continuum oralidade-escrita, inspirados em Chafe (1982). Uma manifestaçâo lingüística que se encontra no extremo oral da escala é classificada de «Sprache der Nähe», mesmo que realizada pelo medium «graphique». Da mesma forma, uma manifestaçâo que se encontra no extermo oposto do continuum é classificada de «Sprache der Distanz», mesmo que realizada pelo medium «fonique». Essa visäo a partir do uso se reflete, por sua vez, na estrutura interna do texto. Dessa forma, numa segunda perspectiva das diferenças entre as modalidades, o texto caracterizado pela «Sprache der Nähe» é também caracterizado do ponto de vista interno através da classificaçâo «agregaçâo»-, da mesma forma, o texto que se apresenta como típico da «Sprache der Distanz» é caracterizado pela «integraçâo». Essas duas dimensôes sâo concretizadas através de diversos aspectos da estrutura textual, tais como o léxico e a sintaxe. Quanto mais elementos agregativos se encontram num texto, menos típico da natureza da escrita ele é, tomando essas dimensöes como prototípicas. Por outro lado, como o próprio Ludwig (1989b) escreve, há textos que sao mais ou menos agregativos ou integrativos, dependendo da quantidade de técnicas de uma das duas dimensöes usadas. 4.6.5

As passagens

Persistindo na visäo histórica - que se persegue neste trabalho - , façamos uma incursäo pelos processos e tipos de textos que se realizam entre os dois polos da escala. Schlieben-Lange (1995), a propósito do que aconteceu na Revoluçâo Francesa, concebeu quatro tipos de passagem:85 A. De 1 ' oralité à 1 ' écriture A i . Passagemédial C'est le cas des notations, des transcriptions, des protocoles (...).86 Al. Passage conceptionnel. Il s'agit de la mise en écrit des expériences révolutionnaires par des personnes récemment alphabétisées qui ne connaissent pas à fond les techniques conceptionnelles requises par l'écriture.87

85

Se quisermos estabelecer uma distinfäo de perspectiva entre a visäo de SchliebenLange e a de Koch/Oesterreicher, diríamos o seguinte: enquanto a autora vé a relafào entre oralidade e escrita numa perspectiva mais dinàmica, ou seja, o processo, que é responsável pela m a n i f e s t a l o da semi-oralidade, terminologia que emprega, os dois autores focam o resultado desse processo, ou seja, o produto, dai a denomin a l o «mündlich geprägte Schreibkompetenz». Talvez isso explique a preferència de seus autores por denominares diferentes.

86

Essa passagem, que exige menor competencia comparativamente à passagem concepcional, dependendo naturalmente da finalidade, tem grande produtividade hoje no dia-a-dia de escolares e estudantes em geral. Veja-se sobre isso Janda (1985). Esse tipo de passagem é crucial para um novo tipo de escrita influenciada pela oralidade. E de se esperar que, na perspectiva da semi-oralidade, ao se passar da

87

194

B. De l'écriture à l'oralité B i . Passage médial C'est le cas de la lecture à voix haute (,..).88 B2. Passage conceptionnel II s'agit de la construction de textes, proches aux possibilités conceptionnelles d'un public non-alphabétisé, sous forme de dialogue et de narration surtout.89 Para compreenderaios essas passagens de f o r m a ilustrativa e melhor percebermos

a sua dinámica,

consideremos

inicialmente

os dois

extremos

concepcionais, ou seja, o da oralidade e o da escrita, representados p e l a linha horizontal, e o comportamento do medium. A representafào a b a i x o ( i ) mostra o que acontece no quadrante A , onde medium

f ò n i c o e concepgào

orai se

combinami m fònico (concepçâo)

oral

.escrito

gráfico (i)

O b s e r v e - s e que a linha m se d e s l o c a totalmente para o extremo esquerdo no plano c o n c e p c i o n a l e, concomitantemente, na parte superior, no plano f ò n i c o , acomodando-se no quadrante A.

88

89

concepçâo do oral para a da escrita, nâo se realizem as transformaçôes que tal passagem requer; se este problema, ao contràrio, foi superado pelos produtores de textos, entâo a semi-oralidade nâo se dá. Como a habilidade de fazer bem a referida passagem pertence a urna minoría em muitas sociedades, é de se supor que a semioralidade exerceu e exerce importante papel na pràtica lingüística dessas sociedades. Embora a leitura em voz alta tenha perdido sua força nos dias de hoje, há outras formas de passagem medial da escrita para a oralidade. Por exemplo na atividade jurídica, quando juízes usam estratégias de explicitaçâo dos procedimentos jurídicos aos réus (Philips 1985). A passagem B2 exige boa competencia na elaboraçâo do texto narrativo, sobretudo na construçâo do diálogo, o que pressupòe urna aguda consciência da natureza da lingua falada. Nâo é à toa que certos escritores se destacam pela sua capacidade de trabalhar os diálogos em seus romances. Mesmo assim a passagem nâo é total, porque as estratégias do escrito sâo limitadas demais para simularem urna outra concepçâo. A mudança total de concepçâo se dà quando um texto concebido como escrito se transforma numa conversa e os seus temas sâo vivenciados como diálogos. Mesmo assim algo de sua origem escrita persiste.

195

(2) mostra o que acontece no quadrante D, onde medium gráfico e concepgao do escrito se combinam. Observe-se que a linha m se desloca totalmente para o outro extremo, ao lado direito, no plano concepcional e, concomitantemente, na parte inferior, no plano gráfico, acomodando-se no quadrante D: fònico (concepgao)

oral

i Oj

escrito

gráfico im (2) Em resumo, partindo-se do ponto zero (o), ou seja, o lugar da escala onde virtualmente oralidade e escrita se encontram, exatamente na passagem de uma para a outra, tem-se para a esquerda o predominio da oralidade concepcional realizada pelo medium fònico e representada idealmente por uma conversa espontanea; para a direita, tem-se o predominio da escrita concepcional realizada pelo medium gráfico e representada idealmente por um artigo para publica?ào, segundo as representa§òes ( i ) e (2), respectivamente. A semi-oralidade, por outro lado, que se concretiza ñas passagens descritas em A e B acima, deve ser explicada de outra forma. Essas passagens, na verdade, pressupoem dois tipos de atividades, urna mais passiva, que denominamos de execugao ( A i e B1); e outra mais ativa, que denominamos de transformagào (A2 e B2). Obtém-se uma nova realizagào textual na medida em que ou o medium ou a concepgao mudam ou se combinam, propiciando-se uma sèrie de possibilidades de manifestares textuais. Em A i , por exemplo, quando a fala espontànea é transcrita, altera-se o medium, pois este nào é mais fònico, mantendo-se a forma de organiza?ào do texto tal como originariamente concebido (mas nao totalmente). O que acontece neste caso é uma atividade de execugao, sem implicar o emprego de uma atividade de superior qualidade. O papel do produtor do texto se resume em transcrever, reproduzindo o que ouviu. E claro que alguma transformagào acontece, pois a alteragao do medium tem um caráter radicalmente diferente. A transcribo executada nào consegue captar as marcas do medium original, porque ele é de outra natureza, e muito dessa natureza original inevitavelmente se perde nesse processo; a figura abaixo (3) representa o que acontece em A i :

196

fónico (concep?ào)

esento

oral

gráfico m (3) Note-se que, diferentemente das representares ( i ) e (2), a linha m se desloca para o pòlo da oralidade concepcional, mas concomitantemente na parte inferior no plano gráfico, acomodando-se no quadrante C numa nova combinagào de medium e conceptúo. De outra forma, em A 2 a atividade propriamente de transformado implica algumas habilidades, dentre elas a capacidade de transformado da concepto original, ou seja, o que foi concebido como oral, deve adquirir as características de outra concepgáo, a da escrita, o que exige conhecimento do funcionamento desta. Dependendo da habilidade do produtor de textos, a transformado pode ser tao bem feita que aqueles que nao participaram da situado original onde o texto foi gerado nao tém dificuldade em compreendè-lo. Se isso acontece, tem-se um texto concepcionalmente escrito realizado pelo medium gráfico, que correspondería ao extremo direito inferior da escala concepcional (quadrante D). 9 ° Abaixo, temos a transformado da concepgáo oral para a escrita, ou seja, o processo que leva ao representado na figura (2): m

fònico

v

•s. (concepgáo)

oral

^

^

n1

escrito

gráfico (4) O percurso que se tem de fazer na transformado concepcional da oralidade para a escrita implica também urna passagem no medium. Observe-se que a

90

Aqui reside urna das grandes tarefas da educagáo lingüística, ou seja, formar educandos conscientes dessa possibilidade de transformado, considerando as circunstancias da produfao lingüística. Por outro lado, também a habilidade pode lhes facultar a competencia de fugir desse rigor aparente, criando um texto sob muitos aspectos agradável, mas claro. 197

linha m emigra de um extremo a outro, deslocando-se do quadrante A, sua origem, para a parte inferior à direita, quadrante D, seu objetivo. Paralelamente, o medium tem de ser transformado do fonico para o gráfico, transformado representada pela ultrapassagem da linha horizontal da concepgüo. Entretanto, a falta de sucesso no alcance desse desiderato tem duas formas de explicado. Em primeiro lugar, do ponto de vista histórico, quando o ideal de lingua escrita tal como hoje se concebe ainda nao existia - pense-se nos textos medievais - esse processo de «escrituralizagào» do texto, que nasce no oral e que dele depende, também nào existia; em segundo lugar, e isso vale para muitas sociedades hodiernas, o sucesso dessa tarefa depende do nivel de capacitado do autor, se ele foi bem treinado para isso, se tem consciencia da diferen^a concepcional entre oral e escrito. Obviamente, entre individuos semi-analfabetos ou em processo de alfabetizado, essa manifestado é muito comum. Assim, quando a transformado ideal nào ocorre, trata-se de um texto semi-oral, que poderia ser representado da seguinte forma, como caracterizado em A2: 91 m

\

fónico \ \

(concep5ao)

oral

\

^

n1 "

escrito

gráfico (5) Na figura acima a linha m mostra urna alterado do medium, que ultrapassou o fònico, atingindo o gráfico, acomodando-se no quadrante C, nào chegando ao escrito concepcional, cujo inicio está marcado acima pela fronteira o (passagem concepcional). Isto é, embora tenha havido uma transformado do medium a isso nào correspondeu uma transformado total da concepgào. Quanto ao descrito em B, tem-se também duas atividades de natureza semelhante a A, embora em sentido contràrio. Em B i , executa-se o que está escrito, oralizando-o. Normalmente essa atividade nào é tào complexa quanto a segunda, constituindo-se como execugào, mas implica também alguma alter a d o , como por exemplo, transmitir aos que ouvem certas características típicas da oralidade, que se concretizam através de entonares e gestos, vinculando dessa forma leitor e ouvinte numa tentativa de intera?ào que é diferente daquela situado do leitor solitàrio com o texto diante dos olhos. Dessa forma

91

Do ponto de vista da representaçâo em quadrantes, nao há distinçâo entre A i e A2, porque o que as distingue, a rigor, é a intençâo (em A l nao se quer transformar a concepçào; em A2 se quer). Como em A2 o produtor nao consegue seu intento, a representaçâo da combinaçâo de medium e concepçào nos quadrantes acaba sendo a mesma.

198

um texto concebido como escrito é realizado no plano fónico. Quanto à representado ilustrativa, temos, comparativamente com a firgura 3, urna localizad o da linha m numa posi?ào contrària, ou seja, na parte superior direita, no plano medial fònico e no escrito concepcional, quadrante B, portante. Para B i, o caso típico de oraliza§ào do texto, temos: m fònico (concep§ào)

escrito

oral.

gráfico (6) Para B2, tem-se de novo urna situado ideal. De um texto concebido como escrito fazè-lo apresentar-se como concebido no plano da oralidade por intermèdio do medium gráfico. Essa tarefa só é conseguida em parte, porque o medium de que se dispSe é ainda o gráfico. Entretanto um exemplo ideal é o texto do teatro posto em cena, porque, quando oralizado, pode ganhar, dependendo da competencia dos atores, urna impressào da concepgüo oral, porque o ator tem de preenche-lo com elementos que nào estào representados pelo texto básico, o que pressupòe alterado do medium para se atingir a concepgño oral. A oraliza§ào do texto enquanto leitura em voz alta seria um primeiro passo, o que, entretanto, atinge apenas o medium como para B i . Vejamos a representado abaixo: fònico v.

(concepto)

oral

|

escrito

x V.

•V.

grafico (7) Aqui nào se trata de mera oraliza^ào do texto, senao da transformado de sua concepgüo e paralelamente de seu medium numa representado exatamente contrària ao que ocorre na transformado concepcional do oral para o escrito (4). Por outro lado, textos como os citados em B2, embora se aproximem da natureza concepcional oral, permanecem, entretanto, no medium gráfico. Porque sao textos representados graficamente, mas concebidos somente em parte como oráis - na verdade sao textos simulados e nào espontáneos - se encontram no ponto mèdio (zero) da escala, pois participam sobretudo da natureza da escrita concepcional, porque foram ai concebidos. O que poderia se representar da seguinte forma: 199

fónico (concepgào)

oral

^

escrito \

gráfico

s

N

s.

(8) Partindo de um texto concebido como escrito - e realizado no medium gráfico - se tenta fazè-lo simular um texto concepcionalmente oral. Note-se que diferentemente da figura 5, que atingiu o medium gráfico - se consegue apenas uma aproximado do desejado, na medida em que a concepgño permanece dentro da natureza da escrita e o medium fònico nao consegue ser atingido. A linha m continua na parte inferior e nào ultrapassa o ponto o (zero), permanecendo no quadrante D, embora se aproxime da concepgño oral (o que se deve aos diálogos e certas marcas da narrativa oral que ele tenta simular). O processo de oralizagáo de textos concepcionalmente escritos, por outro lado, apresenta varios estágios, concretizados em diferentes situares. Chafe (1986), tratando da fala académica, portanto aquela que pressupòe na sua origem um texto escrito, mostra alguns desses diferentes estágios, que ora se aproximam da escrita concepcional, ora da oralidade concepcional, todos naturalmente no terreno do medium fònico. O texto nào é mais lido, mas marcas de sua concepfào ainda se encontram na consciència do falante. Assim, em quatto amostras de lingua falada em situagào de aula, o autor vai de um texto bem aproximado do escrito até o mais distante, quando traaos típicos da lingua falada cada vez mais se acentuam. Evidentemente, nessa relagào há tragos concepcionais do escrito até no mais afastado, constituindo-se portanto uma paulatina transformagào que implica na formagào de um tipo de texto de certa forma a meio caminho da oralidade, que poderíamos também classificar de semi-oral. Com a representado abaixo, podemos identificar très formas de realizad o do texto. Em mi tem-se o texto concepcionalmente escrito, mas realizado como oral (leitura em voz alta); em m2 tem-se o texto realizado como oral (plano fónico) e a sua concepteo se desloca na dire?ao do oral, seja o caso da declamado ou do sermào memorizado ou ainda uma aula previamente preparada. Neste caso, como no exemplo de Chafe, citado, embora a c o n c e p t o se desloque na dire?áo do oral, eia ainda guarda marcas da c o n c e p d ° escrita; m2 seria uma representado típica da semi-oralidade ainda marcada pela conc e p t o do escrito, estágio intermediàrio entre a leitura em voz alta e a fala espontánea; 1113 representaría concepgño oral e realizad 0 oral no extremo esquerdo da escala concepcional, porém ainda com algum residuo de sua origem, pelo menos no plano do vocabulário, dada a motivad 0 inicial da produgào textual, que se inspirou num texto escrito Aqui é difícil de isolar comple200

tamente o oral do escrito, porque um certo vocabulário originado da conceppao do escrito pode num dado momento ganhar popularizado e passar a pertencer á esfera da espontaneidade. Vejamos entáo a representarao do que acabamos de discutir: IT13 m2 mi fònico (concep$áo)

escrito

oral. gráfico

(9) Conforme aludimos acima, numa sociedade onde impera o analfabetismo, o manuseio do material escrito se restringe a urna minoría da sociedade como foi o caso do Brasil durante todo o período de sua colonizafào e ainda por muito tempo durante o Impèrio. Um sistema de educarào deficiente e ausència de imprensa vào ainda mais agravar o problema do contato com a esenta, refor§ando o acesso a esta como atividade de urna elite. Por isso com a introdufáo de urna imprensa a partir de 1808 acontece urna certa alterafào nessa relagào. Dentro desse contexto de analfabetismo e oralidade, o aparecimento da imprensa no Brasil vai ter quase o significado da introduco da escrita na sociedade92, se consideramos a divulgalo crescente dos jomáis no país. Em 1821, havia em circulagào no país apenas oito jornais, para urna popula§ào composta de 95% de analfabetos; em 1832 já eram cinqüenta; em 1835 já se chegava a cinqüenta e seis; em 1846 já havia setenta e oito circulando pelo país (Martins 1977/78, 8). Era através desse meio que as popula?6es mantinham maior contato com a escrita, já que por esse tempo nao haviam surgido os romances brasileiros, o que vai acontecer alguns anos mais tarde. A situa?ào, pois, descrita acima é extremamente favorável ao desenvolvimento de manifestares de semi-oralidade, que já existia no meio popular e que agora assume importancia na medida em que a literatura emergente no país se apóia nessa estratégia. A popularizarlo da palavra escrita - se nao pudermos falar absolutamente de sua introdujo - vai proporcionar manifes-

92

O significado da inexistencia de urna imprensa para o contato com a lingua escrita e a cultura de urna forma geral em 1805 é também aludida por D'Azevedo (1892, 152): «Era deplorável n'essa época a instrufào publica no Brazil. A politica dispotica de Portugal nào tolerava, que houvesse typographia alguma em sua colonia da America, de sorte que o povo achava-se no mesmo estado como si nunca se houvera inventado a imprensa. Raros eram os livros que circulavam, e nao havia o menor gosto pela leitura. As escolas eram poucas e mal dirigidas; havia diminuta frequencia de alumnos e geralmente as mulheres nào aprendiam a 1er.»

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tagóes semi-orais, porque oralidade e escrita sao postas em contato, como foi comum em outras realidades históricas (Schlieben-Lange 1983, 80-81). 93 4.6.6

Leitura em voz alta e protocolo: urna perspectiva histórica

Conforme já referimos, a leitura em voz alta desempenhou papel significativo em certas situa?5es comunicativas e na transmissào de textos na Idade Mèdia, sobretudo aqueles classificados como «monumentos literários» (Zumthor 1985b; Koch 1993). Além disso, a leitura em voz alta e o protocolo também tiveram um papel importante para a constituido e desenvolvimento das línguas rómanicas, conforme mostraram Lüdtke (1964) e Wunderli (1965). O primeiro havia mostrado o papel e significado da leitura em voz alta e do protocolo para o desenvolvimento das línguas románicas escritas, enquanto o segundo, apoiando a mesma tese, tentou corrigir o valor atribuido a cada urna dessas práticas, apontando a precedencia da primeira em rela?áo ao segundo. Numa perspectiva de tipologia de textos, mas nao os de natureza tipicamente escrita, nem os de natureza típicamente oral, Schlieben-Lange (1983) estudou a importáncia do papel da semi-oralidade para a R e v o l u t o Francesa de 1789, ou seja, aqueles textos que se encontram a meio caminho entre os dois extremos. Identificando a leitura em voz alta e o protocolo como as duas técnicas mais importantes dentro dessa categoria, a autora mostrou como as duas atividades exerceram urna fun§ao constitutiva dentro daquele movimento revolucionário. As atividades de leitura em voz alta,94 que eram vitáis para as reunioes dos clubes, e o registro por escrito das discussSes serviam como elementos fundamentáis para a divulgagao das idéias pelo país. Apoiando-se também na situa?áo da alfabetizado francesa no século XVIII, a autora mostra ainda como havia naquele momento praticamente duas culturas que conviviam lado a lado: a dos letrados, leitores de filosofia e de literatura; e a dos

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Esse contato entre oralidade e escrita vai ser sobremaneira favorecido pela urbaniz a d o conforme já referimos. Interessantemente em outras sociedades que viveram experiencia semelhante também formas de semi-oralidade se manifestaram. Vejase o caso de Zwickau, quando da escrituraliza9äo das regulamenta^es para funcionamento da atividade dos artífices no século XIV (Metzler 1989,56): «Es gibt also ein öffentliches Leben in der Stadt, in dem vorgelesene Schriftlichkeit (SemiOralität) eine Rolle spielt, und wenn auch der größte Teil der Zunfthandwerker von den meisten dieser Schriften nur indirekt oder gar zufällig betroffen gewesen sein sollte, - ganz fremd ist ihnen die Situation des Vorlesens nicht.» E: «Die kommunikativen Bedürfnisse in der Stadt drängen auf schriftliche Fixierung von Gewohnheitsrechten, einerseits wegen der wachsenden Kompliziertheit der innerstädtischen Organisation, andererseits wegen der Notwendigkeit, Machtbefugnisse nach innen und nach außen abzugrenzen und beweiskräftig reproduzierbar festzulegen.» (Metzler 1989, 59). Também na Península Ibérica a leitura em voz alta teve sua tradifäo. Diégues (1973, 1 0 - 1 1 ) refere-se à pràtica numa passagem da novela D. Quixote, de Cervantes.

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setores apoiados na cultura popular transmitida pelos livros de colportage. Esse fundo cultural vai servir como determinante para o papel da oralidade naquela sociedade. Ademáis, com a necessidade de levar o pensamento revolucionario para as regiòes rurais mais afastadas, onde o dominio das técnicas de leitura eram mínimos, os jomáis procuraram adaptar os temas mais importantes sob forma de diálogos para permitir àquelas carnadas imersas no mundo da oralidade o acesso a textos. 4.6.7

A semi-oralidade brasileira no século XIX

Neste tópico vamos caracterizar as formas de semi-oralidade mais típicas no Brasil do século XIX. Diferentemente do objetivo do capítulo 5 - quando os textos serao analisados na sua natureza interna, isto é, como se constituem do ponto de vista de sua caracterizado gramatical - , nossa abordagem neste tópico se deterá nos aspectos externos. Partindo do grande pano de fundo da oralidade do povo brasileiro, foi entáo em funijáo déla que essas formas se manifestaram. Isso quer dizer que a produ§ào escrita da minoría culta precisava da media?ào oral para atingir o público. Dai, ao seguirnos as passagens apresentadas por Schlieben-Lange (1995), cométannos pelos processos classificados como B, isto é, do escrito para o oral, embora os textos a serem analisados no capítulo 5 pertengam àqueles descritos pela autora como A2, por causa do teor de espontaneidade que os caracteriza e pelo seu significado para a compreensào do desenvolvimento da variedade urbana recifense, descrito no capítulo 3. 4.6.7.1

Do escrito para o oral: a leitura em voz alta

Como o surgimento do público leitor só vai existir à época do Romantismo, todo o período anterior significou urna época onde a lingua escrita nào se fez importante para a grande maioria, prevalecendo a eloqüéncia sobretudo sagrada como a forma mais desenvolvida da literatura. Esse imenso período solidifica a declama9ào e a leitura em voz alta, que cresce em importancia, estando dessa forma a lingua escrita em funsào da oralidade predominante.95 No Brasil sua pràtica foi extensa e duradoura. No Nordeste, foi hábito a reuniao familiar, à noite, depois do jantar, na sala de visitas, à luz do candeeiro. Todos se reuniam para ouvir a leitura - feita pelo alfabetizado da familia - de poesías, novelas, historias, constituindo-se urna grande tradi?ao (Diégues I 973)- O hábito dessa forma de leitura nào é apenas urna tradÌ9ào ibérica, como foram as primeiras formas da literatura oral trazida pelos colonizadores, mas o pròprio ambiente cultural do Brasil colònia apresentava urna certa

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Como os romances románticos surgiram como folhetins em cada edÍ9ao do jornal, em Sao Paulo os jovens se reuniam na pra9a onde um deles os lia em voz alta para que os outros ouvissem (Menezes 1982, 200-201).

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semelhança com aquela regiâo em face do analfabetismo; da quase inexistência de escolas; da ausência de meios de impressâo tipográfica; e, ao que tudo indica, no plano lingüístico, em face da condiçâo diglóssica. Mas a leitura em voz alta fazia parte de todas as formas de contato com a escrita no Brasil colonial. Naturalmente forçada pelo analfabetismo, que obrigava os alfabetizados a exercê-la. Dessa forma, até mesmo quanto ao aspecto da religiosidade, se proporcionava essa pràtica de leitura, pois era costume no Brasil da época afixar-se ñas portas e janelas das casas papéis com oraçôes, santinhos ou reproduçôes de gravuras religiosas. Quando chovia forte ou havia tempestades, esse material era lido am voz alta dentro de casa. Além disso, circulava um material publicado pela Igreja, do tipo folhinhas e almanaques, que registravam nomes dos santos dos dias e outras informaçôes como as referentes a safras e colheitas, que naturalmente eram também lidos em voz alta - muito desse material era usado na educaçâo promovida pela Igreja porque essa era a forma mais popular de leitura no país. Se o livro era difícil e o jornal, quando nâo inexistente, raro, é evidente que todo esse material era objeto de interesse para leitores incipientes ou já iniciados. E ñas familias mais abastadas, onde trabalhavam muitos escravos, a leitura desse material decerto era ouvida por aqueles, que assim devem ter assimilado o conteúdo de muitos textos (Moysés 1994, 209-210). A perda da força da leitura em voz alta no Brasil se deu sem dúvida alguma com a chegada da luz elétrica. Essa atividade realizada à noite - praxe ñas familias brasileiras depois do jantar e pràtica favorecida pela ausência de luz elétrica - passou a perder o sentido com o aparecimento dessa nova invençâo tecnológica, que, por sua vez, possibilitou outras formas de audiçâo do texto, através do ràdio e da televisâo, dando ensejo à chamada oralidade mediatizada. Por outro lado, a iluminaçâo completa da casa da familia, com luz em todos os aposentos, fez com que os individuos, capazes de 1er silenciosamente, se dispersassem em suas próprias leituras, reduzindo dessa forma drasticamente a pràtica da leitura em voz alta, tao necessària aos nâo-alfabetizados (Diégues 1973, 15). A pràtica dessa forma de leitura marcou tâo significativamente a cultura do Brasil que Luiz Costa Lima classificou o sistema cultural brasileiro de «cultura auditiva» (Lima 1981). Esse autor distingue cultura oral de civilizaçâo escrita e a predominância da primeira dentro da segunda ele classificou de «cultura auditiva». Identifica a origem dessa cultura com o ensino jesuítico, defendendo que a dominância oral que lhe é característica visa suscitar um efeito de impacto sobre o leitor. Dessa forma ainda classifica certos textos como rebuscados, que deixam a impressâo de terem sido elaborados nâo para serem efetivamente lidos, mas para serem discursados depois do jantar, aludindo ao velho costume brasileiro da leitura em voz alta à noite. Como prototipo dessa cultura aludida, o autor refere-se à crónica, que sintetiza a mais genuina forma de narrativa brasileira, que se aperfeiçoou durante o Modernismo. Especialmente o tom de «conversa à beira da rede ou ao pé do fogo», portanto o tom de oralidade de certos textos, é o ponto que o autor 204

encontra para justificar a sua critica, identificando-o com urna forma de «sedufào», que no período barroco se realizava de outra forma. Esse estilo auditivo, para eie, leva à produ9§o de um texto sem «cadeias demonstrativas», «sem elos»96 (Lima 1981, 10-17). Infelizmente nessa passagem o autor nào esclarece o seu pensamento com maior nitidez, mas se sua crítica baseia-se na influencia da oralidade no texto escrito, entào podemos afirmar que se trata de urna falsa compreensào de como os «elos» sào gerados na oralidade e de que eles podem em parte ser aproveitados também na esenta, principalmente em certos tipos de textos. Nesse sentido a coerència ou coesào textual da oralidade residem em estratégias pragmáticas diferentes e muitas vezes exigem do ouvinte um conhecimento da situa^ào para a clara compreensào do enunciado.97 A transposifào de certas estratégias orais para o escrito pode ser feita, naturalmente com bastante habilidade, exigindo por isso do leitor um esforzó mais rigoroso para reconstituido da situa9ào, visando a compreensào do texto. A critica exercida por Costa Lima é, entretanto, equivocada, senào preconceituosa, porque ve urna espécie de separa§ào rígida entre o oral e o escrito. Pelo contràrio, o diálogo e o contato entre as duas formas foram urna constante na historia, tendo em algumas culturas essa aproxima9ào entre as duas desenvolvido papel importante na formafào de urna nova literatura. Paul Zumthor (1985a), por exemplo, mostra que a diferen?a entre uma cultura oral e uma escrita é muito mais teórica do que a experiencia tem demonstrado, pois muitas vezes a realidade se coloca num ponto intermediàrio entre os dois extremos. Históricamente, em muitas sociedades os homens da palavra oral e os da palavra escrita sempre conviveram e colaboraram.98 Podemos colocar o caso brasileiro numa situa?ào semelhante à experiencia histórica de outras na?5es. A longa tradigào oral brasileira desempenhou papel fundamental na elaborado da literatura, tanto no Romantismo como no Modernismo, e foi isso que conferiu a renova9ào cultural que levou a uma literatura de expressào nacional e cujo movimento por certo ainda nào terminou. A fusào pois desses

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O autor parece com isso querer afirmar que o texto escrito em funfáo da oralidade marcou profundamente esse período. Assim, pode-se inferir, a oralidade está na origem de um certo género de textos escritos. Sobre a necessidade do conhecimento da situado para a compreensáo do texto, veja-se o exemplo do texto jomalístico (Dreike 1993). Na cultura basca, por exemplo, a tradifao oral e a escrita se encontram de alguma maneira fundidas pelo papel da oralidade na esséncia daquela cultura. Nos séculos XVIII e XIX, com o crescente prestigio do profano no ámbito da literatura escrita e o gosto pelo clássico na tradifáo oral, aconteceu uma espécie de fusáo entre as duas tradifóes, ao mesmo tempo no sentido da inova9áo e da conservado. No século X X esse movimento ganhou outra dimensáo, porque a qualidade da literatura basca teve de se inspirar na experiencia de outras literaturas cuja referencia era a tradifáo escrita. Por outro lado, ainda, a busca de criagáo de uma literatura nacional levou inevitavelmente á oralidade como ponto de referencia (Lekuona 1985).

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dois elementos deve ser vista como positiva, porque no fundo reflete claramente que oralidade e escrita nao sao duas entidades separadas, mas constantemente se perpassam. Esse fenòmeno foi o segredo do foijamento da escrita das línguas románicas e continuou atuando em muitas outras sociedades." 4.6.7.2

Leitura em voz alta e alfabetizado

Ao entrarmos numa parte decisiva de nosso trabalho, ou seja, no processo de alfabetizado no contexto da oralidade com predominio da leitura em voz alta, temos de considerar as condigoes básicas para a alfabetizado num ambiente onde o contato com a palavra escrita é algo restrito a pequeñas parcelas da populagáo. Na primeira metade do século XIX o Brasil é urna civilizado sem livros em comparado com algumas nagSes com urna tradigao cultural já secular. Se considerarmos a distribuido de jomáis e livros na primeira metade do século XIX, a situagao do país era extremamente caótica, porque o pròprio processo de distribuigào desse material era limitado pelas condigòes da escassa rede de comunicagòes terrestres e marítimas e de um precàrio servigo de correios. Nào havia até 1825 servigo postai para o interior e, com excegào da correspondencia oficial, portada por milicianos, o restante era extremamente irregular e providenciado pelos próprios interessados.100 As iniciativas para abertura de bibliotecas eram de particulares, como fazia o padre Joào Ribeiro no Seminàrio de Olinda, única instituido de ensino secundário em 1817. Quando o Seminàrio já adquirira urna certa consolidagao e sua influencia se fizera notar sobre a mentalidade da pequeña burguesía local, alguma mudanga se comegou a observar, quando por causa da falta de acesso a livros em Pernambuco - pois os únicos existentes encontravam-se aferrolhados no interior dos conventos, onde o cidadào comum nào podia entrar - , o padre, ajudado por amigos, formava na sua casa urna biblioteca particular, mas aberta ao público (Tavares 1969, 31). Com a abertura desse centro de formagáo comegava a mudar um pouco aquela situagao. Havia também urna biblioteca no mosteiro de Olinda, e alguns particulares estavam formando outras mais modernas, sendo dominantes as obras francesas da filosofia do século XVIII (Lima 1904a, 436). Livraria, propriamente, era a portaría de um dos conventos, onde eram vendidos folhinhas, santinhos e agiológios. 101

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Para se ter urna idéia do significado da atividade de contar historias ainda no Brasil, no momento em que escrevemos este trabalho, desenvolve-se um projeto no Rio de Janeiro, cujo objetivo é treinar pessoas nessa atividade. Veja-se «Era urna vez (...) Oficina no Rio ensina a forma correta de contar historias para criabas e adultos», Revista Isto é, n° 1382, 27.03.96, p. 78. Sodré (1966, 239). Nota de Lima (1969, 258).

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O grande dilema do Brasil independente foi a alfabetizado da populagao dada a quantidade insuficiente de pessoas capacitadas para isso e a inexistencia de material didático. Sem bibliotecas e sem tipografías destinadas para isso, era urna situagáo difícil se ensinar a 1er a filhos de semi-alfabetizados (Menezes 1 9 8 2 , 1 1 ) . Desde 1823 que recomendava-se a constituido brasileira e a historia do Brasil como material de leitura. Depois sao utilizados os Lusíadas,102 que, possivelmente por inspirado de Jean Joseph Jacotot 103 , criador do método universal de língua materna, eram decompostos depois de memorizados verso por verso, quando o método lancasteriano foi desaparecendo. Mas para a maioria da populado e sobretudo antes desse período de maior impulso cultural a alfabetizado era feita por manuscritos. Assim, ainda se recorría em algumas localidades aos volumes dos arquivos dos cartórios, cartapácios volumosos e esfarelados de processos crimináis referentes a escravos desertores e quilombos (Menezes 1982, 64-65), diferentemente das ordens religiosas que usavam material religioso como os catecismos. Ao mesmo tempo, em face dos métodos de inspirado religiosa, os Néris vendiam um material que servia de leitura fora também da sala de aula. As folhinhas de algibeira, de reza e de porta e parede (agendas de porta e parede) eram as mais procuradas pelos pobres. Com a independencia do Brasil, interrompe-se o comércio dessas folhinhas entre os religiosos do Brasil e Portugal (Andrade 1965). Esse era o quadro das condi^oes culturáis em que se come?ava a formar um público mais ampio do que aquele até ali existente. Para isso era preciso se estabelecer urna ponte entre oralidade e escrita. A leitura em voz alta, entao, constituiu a esséncia do processo de alfabetizagao. Quanto ao método utilizado pelos oratorianos, partia-se das letras, depois das sílabas, a seguir dos nomes para se chegar aos períodos seguidos, que sao os das oragoes mais usadas na Igreja, entre elas a Salve Rainha, a Ave María, o Credo, que compunham dessa forma o catecismo, que servia como cartilha de 1er. Portanto os textos - essas ora^oes - já sabidos de cor pelos alunos facilitavam o reconhecimento da palavra escrita. Isto quer dizer que o texto que era pronunciado em voz alta na Igreja aparecía escrito e o aluno devia associar os sons - já aprendidos na primeira carta referente as letras - ao material escrito, numa passagem típica do oral para o escrito. Um outro caminho usado pela pedagogia do final da primeira metade do século XIX, foi o «método portuguez», de Feliciano de Castilho,104 depois do fracasso do método lancasteriano. O método baseava-se na palavra falada, quer dizer, na pronuncia em voz alta dos sons, «na leitura auricular» e na «leitura auricular alternada». Esse método deu origem no Brasil aos coráis didáticos e aos estudos em voz alta, comuns ainda hoje entre estudantes em preparado em vés-

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Trata-se do poema épico de Camóes escrito no século X V I .

103

Jean Joseph Jacotot ( 1 7 7 0 - 1 8 4 0 ) . Antonio Feliciano de Castilho ( 1 8 0 0 - 1 8 7 5 ) .

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peras de exame. Segundo justitificativa do autor, quando o aluno aprendía a ler, aprendía também a escrever, pontuando, já que a pontuafào se inspira na pausa da lingua oral (Menezes 1982, 12). Assim, de urna forma geral, pode-se afirmar que houve urna aproxima?ao entre o oral e o escrito nos métodos utilizados a partir de 1850. Os romances em folhetins, os almanaques, ou folhinhas com historias apresentavam estruturas tanto léxicas quanto sintéticas, inspiradas na oralidade, que foram utilizadas nos métodos citados acima. Esse material impresso de alguma maneira serviu como meio de alfabetizado pela repetifào de elementos dos textos oráis e permitiu a associalo com o conhecido, como no traballio dos oratorianos. 4.6.7.3

Outra forma de oralizagáo do texto: o teatro

Dentre as transformares da vida social depois de 1808 o teatro tem um papel importante. Se considerarmos que ele representa urna forma de oraliza9ào da palavra escrita, compreende-se o seu aparecimento antes do romance e paralelamente ao aparecimento dos jomáis. Em 1 8 1 0 o rei D. Joào VI, de hábitos semi-orais,105 publica o decreto que organiza as atividades teatrais no país e tres anos depois inaugura-se o teatro Sào Joào no Rio de Janeiro (Martins 1977/78,62). Mas para compreender a precedencia do teatro à literatura, basta recorrer a sua origem no Brasil. A atividade teatral comefa com a vinculado religiosa, o que promove a sua popularizado, assim como o sermào, dado o significado e a influencia da Igreja na formado do povo brasileiro. Para levar a efeito a doutrina§ao religiosa, os primeiros jesuítas chegados ao Brasil se valeram de autos armados em espasos abertos onde as representar e s dramáticas procuravam incutir determinados comportamentos de ordem moral na populagáo local, seja para indios, seja para colonos de vida desregrada (HesselTRaeders 1972, 1 1 - 3 1 ) . Em Pernambuco, somente em 1772 se constrói a «casa da Opera», depois de cerca de dois sáculos de atividade teatral, tal como introduzida pelos jesuítas, isto é, sem casas de espetáculos especialmente construidas para esse firn. Era ao que parece urna casa de espetáculos de natureza popular, cuja reputad o estava sempre em dúvida. Por toda a primeira metade do século XIX, as representa§oes ali levadas a efeito foram repetidas vezes alvo de críticas pela licenciosidade e escándalos das pefas representadas ou alvo de censura dada a apresentagao de espetáculos com o objetivo de atingir o sistema institucional. Depois de 1839 - quando a casa existente, denominada popular-

,0

5 «Dom Joäo VI, é sabido, dormía no teatro e deliciava-se na igreja: a missa cantada era a sua forma de música, a sua forma de literatura era o sermäo. Nao admira, em conseqüéncia, que tenham sido incontáveis, no seu reinado brasileiro, os oradores sacros, cujos nomes e obras pela maior parte se perderam; (...)». Assim escreve Martins (1977/78, 7 6 ) sobre os hábitos semi-orais do monarca.

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mente de «capoeira», é renovada, passando a se chamar «Theatro de Sao Francisco» - em face do crescimento urbano do Recife e sua constituÍ9áo como centro regional, comefa a preocupa9§o com a construgáo de um novo teatro mais adequado as novas necessidades da popula?ao local. Disso resultou finalmente em 1850 a abertura do teatro «Santa Isabel», que ainda hoje mantém a sua tradifáo local.106 4.6.7.4

A oralidade elaborada: a importancia da Retórica

Antes de descrevermos o papel histórico da Retórica107 no Brasil, fagamos uma caracterizagao déla na rela9áo oralidade-escrita. Embora essa disciplina tenha sua realizafáo no terreno da oralidade, a fun^ao ai desempenhado pela memoria pode muitas vezes ser evidencia do papel da escrita na origem da produ9áo oral. Depois que muitas sociedades aperfeÍ9oaram seus sistemas de escrita, é plausível admitir que esse potencial viesse servir ao melhor planejamento do texto, facilitando também o papel da memória, diferentemente da trad¡9ao popular, onde as diversas gera§oes fixam as suas tradÍ9Óes textuais dentro do terreno da oralidade. Esse apoio no texto escrito pode assim melhor explicar o caráter elaborado da oralidade dentro da Retórica, que seria assim um segundo passo em rela9áo á leitura em voz alta na passagem do escrito ao oral. Se nao é assim ñas origens da disciplina, esse fato pode, entretanto, ter ocorrido no Brasil, porque essa prática era sobretudo exercida pela minoría que manuseva textos escritos. Concomitantemente com o período em que a leitura em voz alta desempenha uma fun9áo importante na vida brasileira, no nivel culto dominava também a declama9áo com o prestigio da Retórica ou eloqüéncia. A partir da reforma pombalina esse estudo tinha ganhado grande prestigio e no século XIX se popularizado ainda mais. Na época dos jesuítas já a Retórica desempenhava um papel importante no currículo das escolas, mas com a influencia de Verney com o seu «Verdadeiro Método de Estudar», ela passou a ganhar mais valor. Segundo esse autor, ela era encontrada nao apenas no texto literario, mas pertencia á linguagem do dia-a-dia também (Carvalho 1978,77-79). Verney revoluciona a situa9ao da disciplina, mostrando os equívocos em rela9ao ao seu ensino e propóe novas formas de tratá-la. Um dos erros mais graves era ensiná-la em latim, porque nada tinha a ver com essa língua, pois podia se exercitar em todas as línguas. Esse equívoco dificultava a compreensáo da disciplina aos alunos, pois, nao entendendo latim, nao a podiam entender (Vemey 1949, vol. II, 3-4). Em seguida define as partes (sic) da disciplina: a) procurar meios de persuadir; b) dispó-los; c) falá-los bem; d) estudá-los de memória;

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Ainda como reflexo desse período, surgem mais outras duas casas, tais como o «Theatro Apollo», inaugurado em 1842 e o «Theatro Nacional», de 1848, v. Campello (1925); Costa (1944). Para uma historia da Retórica, v. Fumaroli (1980).

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e) e pronunciá-los com as agdes que se devem. Acrescentava a isso os très meios de persuadir, que sào «as pravas, os costumes; e as paixóes dos ouvintes» (Verney 1949, voi. II, 135). Verney (1949, voi. II, 167) se dirige ao estudante portugués, aconselhando-o a entender bem o que ele exp5e sobre a matèria para entender a idéia da distribuÌ9ào da ora§ào, assim expressa: exordio, narragño, provas, epílogo. Nesse ponto, o autor propSe um exercício pràtico ao mestre, para tornar mais efetivo o ensino da disciplina. Ele escolhe um exercício em que as atividades de acusar e defender ofere^am aos estudantes as condi§oes de desenvolverem as suas habilidades retóricas. Depois dessa pràtica oral, o mestre devia fornecer algumas no9òes sobre o tema e pedir que os alunos o fizessem por escrito. Nesse momento o mestre corrigiria os erros, tanto de lingua quanto de Retórica, explicando tudo o que ñzesse. Assim, para ele, aprendia-se mais a disciplina em uma semana do que em dez anos pelo método vulgar (Verney 1949, voi. II, 170). O autor também propoe ao mestre a leitura dos livros de Cicero, Quintiliano e Aristóteles. Sugere também a leitura dos panegíricos latinos come?ando-se por Plinio Vóssio com suas «Institui?5es Latinas» (Verney 1949, voi. II, 171-174). O pensamento de Verney se difundiu pelo Brasil. Um dos casos mais importantes dessa divulgado - senáo o mais - é a obra de Azeredo Coutinho. Nos seus escritos se ve nitidamente o pensamento do oratoriano. Em primeiro lugar deve-se destacar o significado da Retórica, que naquele autor assumira um grande papel e em Azeredo Coutinho tem também o mesmo relevo. É nítido o interesse dos estatutos na formagào do pregador, como, por exemplo, através da pràtica da leitura em voz alta de um capítulo da Sagrada Escritura, todos os dias antes do almo§o sob forma de exercício, que os estudantes alternadamente realizavam no pulpito. (Coutinho 1798a, 13). A seguir conceitua: «A Retórica é a que ensina a falar bem, supondo já a ciencia das palavras, dos termos, e das frazes: eia é a que ordena os pensamentos, a distribuisáo, e o ornato; e com isto ensina todos os meios, e artificios para persuadir os ánimos, e atrair as vontades.» (Coutinho 1798a, 58)

Quanto à pràtica da disciplina, o professor dará aos seus alunos as li§oes: «(...) por algum compendio tirado de Quintiliano, e de Cicero, para se exercitarem principalmente em fazer composifòes oratorias, e epistolares: mandará fazer elojios dos ómens grandes, e dará regras sobre o exercicio do Pulpito, por ser este o ministerio a que mais alta, e proveitozamente deve servir quanto á de melhor na eloquencia. Quando o Professor tratar da elocusào deverà explicar os diversos estilos das Cartas, dos Diálogos da Istoria, dos Panejiricos, das Declamasòes &c. Dará asuntos para sobre eles discorrerem aos Dicipulos, e argumentarem uns com os outros na aula, (...).» (Coutinho 1798a, 58)

210

Essa preparalo - que devia acontecer em parte por toda a segunda metade do século XVIII - vai formar as bases do prestigio da Retòrica durante todo o século XIX. Com o clima de independencia que vai se estabelecer no Brasil desde 1808, esse estudo vai fornecer o aparato teorico para a pràtica do discurso político e da oratoria jurídica, além do evidente prestigio que já ganhara dentro da Igreja com o significado do sermào. O ambiente que lhe era favorável com o predominio da oralidade já se revelava desde o período do barroco brasileiro, quando Vieira108 representava o expoente da arte do sermào. Nesse contexto, um poeta se destaca pela sua originalidade, revelando ainda de forma mais ampia o ambiente cultural desse predominio. Trata-se de Gregorio de Matos,109 que nunca escrevera seus versos, e pertenceu a urna época em que a transmissào das tradi?6es culturáis e artísticas se fazia via oralidade, num ambiente onde os versos eram declamados em festas, com tocadores de viola, cantadores, concorrendo com os sermòes. No século XVIII esse clima nao se altera significativamente, pois o portugués nào era a lingua da maioria e somente a partir dai cometa a ser. Inexistindo um público leitor, suficiente para estimular outras formas de contato com o texto escrito, a predominancia literaria é a declama9ào de versos e a literatura se resume na prosa histórica. Em tal ambiente cultural os pregadores foram o ponto alto da produ£ào literária. (Sodré 1976a, 86-111). Desse modo, com a reforma pombalina, a Retórica assume papel importante, paralelamente aos esforgos de se promover o dominio da leitura/escrita para a formagao dos quadros burocráticos dentro da reforma do Estado. Assim a técnica de impressionar o público com os discursos elaborados e cheios de imagens passa a se difundir entre os individuos que estudam ñas escolas da reforma. Depois da independencia, essa disciplina ganha ainda um grande prestigio, porque corresponde à época da formadlo do país como na?ao. Com a fundado das faculdades de Direito de Olinda e Sào Paulo, estáo criados dois centros de preparalo das elites, onde a eloqiiencia desempenha papel fundamental. Em resumo, esse momento corresponde a uma época em que os oradores tinham grande prestigio e o número de leitores era evidentemente muito baixo. 110

108 m

'10

Padre Antonio Vieira (1608-1697). Gregorio de Matos e Guerra (1623-1696). A importancia da oralidade para uma sociedade pode ser medida de várias maneiras, uma délas certamente é o papel do orador, que supre num certo sentido a lacuna deixada pela ausencia de uma cultura escrita, servindo ao grande número de analfabetos. Isso pode se deduzir das observares de Armitage na primeira metade do século XIX: «A escassez de leitores era enorme e correlacionado com isso o papel do orador era extremamente significativo a tal ponto de um parlamentar pelo seu talento de orador ter se constituido como chefe da o p o s i t o e o seu primeiro orador.» (Armitage 1965, 238-239).

211

4.6.7.5

O significado do sermào

A reflexào que fizemos acima sobre o papel que o texto escrito podia desempenhar no exercício da Retórica transparece numa passagem histórica, descrita por Alves (1894), sobre o Frei Xavier de Santa Rita Bastos. 111 Por outro lado o nivel de elaboragào do texto, muito diferente da manifestagao espontánea, também reforga o seu apoio em alguma base escrita, sendo preponderantemente o texto bíblico que executava essa fungào. É dessa forma que a Retórica populariza-se no Brasil através do sermào. Considerando a passagem histórica narrada por Alves ( 1894), a nossa análise nào vai perder de vista esse virtual papel do texto escrito, que auxiliava a oralidade elaborada. Assim, antes do surgimento do teatro com a oralizagào do texto, a Igreja foi ambiente importante para veiculagào de formas de semioralidade. O sermào foi a forma mais representativa da eloqüéncia na história dos géneros textuais até o século XIX no Brasil. Trata-se do primeiro grau de distanciamento em relagào à leitura em voz alta propriamente, quando o papel da memoria é preponderante. O texto nào era lido, mas quase que encenado, reproduzindo da melhor forma possível o seu original, isto é, o texto-motivagào. A sua diferenga em relagào à leitura em voz alta é exatamente a preponderancia do papel da voz, que dava vida ao texto, de forma teatral. Era possível, pois, que o texto sendo assim concebido, pressupusesse a sua oraliza§ào nesse nivel mais elevado do ponto de vista formal, sendo até mesmo elaborado nessa perspectiva.112 Por outro lado, se o sermào era o gènero par excellence representativo da eloqüéncia, tragar a história dessa disciplina é referir-se constantemente à história do género. Por isso fagamos urna incursào pela história da disciplina e do género no Brasil. O pulpito comega no Brasil com Vieira, pela metade do século XVII, e termina praticamente com o surgimento do Romantismo, com o afastamento de Monte Alverne, 1 ' 3 quando este perde a vi sao em 1836. Curiosamente a perda da visào do orador se dá exatamente quando o movimento romántico eclode e paralelamente ao desenvolvimento de um público leitor.

' " Francisco Xavier Bastos de Santa Rita Baraúna (1771-1844). O autor conta que para urna certa festa popular religiosa o Frei Bastos foi incubido de orar ao Evangelho e o vigário local, ao Te-Deum. Este, no dia anterior, foi ao convento e leu a Frei Bastos o sermào que ia pregar, pedindo-lhe a opiniào. No dia da festa, o Frei Bastos prega ispsis verbis o sermào que ouvira no dia anterior, lido pelo vigário, deixando este desapontado. (Alves 1894, 139). 1.2 É plausível entäo se admitir que depois do predominio da eloqüéncia, os textos concepcionalmente escritos, do ponto de vista interno, apresentassem outras características, porque eles nao väo ser mais produzidos em funçào de sua oralizaçâo, desaparecendo, por exemplo, certas estratégias mnemónicas que favoreciam a sua recuperaçâo ou reconstituiçào oral do que houvera sido elaborado como escrito, além de outras características que implicassem aspectos entonacionais, calcados sobretudo na pontuaçâo. 1.3 Frei Francisco de Monte Alveme (1784-1858).

212

Se com o Romantismo se solidifica esse público, é de se supor que na raiz desse fato estivesse a passagem da época do predominio da oralidade para a da concorrència e difusào da esenta, quando a oralizafào dos textos perde sua primazia e se formam dois tipos de públicos, um ouvinte, ligado à antiga tradito, e um novo, leitor dos folhetins e romances románticos. E exatamente no calor dessa difusào da escrita que sào publicadas as obras completas de Monte Alverne. As obras, pois, daquele pregador condensam uma atividade que desde os primeiros anos do século XIX deveu seu sucesso à oraliza^ào de textos concepcionalmente escritos e, portanto, previamente elaborados. Aparecem como obra escrita propriamente dita no inicio da segunda metade do século. E sem dúvida uma nova era. Com a introduco do estudo da Retórica no Brasil já no século XVI, as sementes plantadas pelos jesuítas, contudo, só váo dar seus frutos depois da segunda metade do século XVII na forma do pulpito, enquanto pràtica social numa sociedade em desenvolvimento. É por esse período que come§a a historia do pulpito brasileiro (Galvào 1 9 2 6 , 1 3 - 1 4 ) . Antes disso dominava a literatura produzida pelos missionários, quando o teatro popular religioso come£ara a sua tradi§áo por causa dos fins catequéticos a que ele servia. Depois de Vieira, forma-se uma certa tradito, surgindo em seguida vários nomes. Galvao (1926) estabelece até mesmo fases do desenvolvimento da eloqüencia brasileira, partindo de Vieira num primeiro momento, que classifica de período de «pompas», marcado pelo discurso religioso, dada naturalmente à influencia barroca; num segundo, em que a ora?ào evangélica perde o prestigio acompanhando a poesia profana; essa segunda época entre os séculos XVII e X V f f l funciona como uma certa transigo, quando o efeito literário do texto desaparece e surge um sermào mais popular religioso, representado por Eusebio de Mattos" 4 e Bartolomeu Louren§o de Gusmào;" 5 numa terceira fase, pelo final do século XVIII e inicio do século XIX; é o grande momento da eloqüencia brasileira, cujo expoente é Monte Alverne (Galvao 1926, 6669). Nessa época, reflexo dos efeitos do trabalho de Verney - com a consciencia do papel da lingua portuguesa, come5a a se buscar seu aperfeigoamento se exerce uma crítica à Retórica e à eloqüencia tradicionais e sào apresentadas novas propostas. No bojo dessa visào crítica, Vieira é recuperado em 1821 como clàssico da lingua portuguesa (Martins 1977/78, 178). Por volta do inicio da segunda metade do século XIX a eloqüencia cometa a entrar em declínio. Em 1865 já era percebida a decadencia total da importancia do pùlpito (Galvao 1926). Confirmando essa decadencia, ao final do século XIX se comenta a má qualidade dos oradores em comparado aos do inicio do mesmo século (Alves 1894,65). Uma evidencia da decadencia dessa atividade é a perda de prestigio do sermào, que até metade do século era um verdadeiro espétáculo ñas igrejas. Porque este, muito mais do que pe$a religi-

" 4 Eusebio de Matos (1629-1692). "s Padre Bartolomeu Lourenío de Gusmao (1685-1726).

213

osa, tinha o significado de diversâo, comparado até com uma representaçâo teatral. E nesse sentido tinha um significado muito especial na sociabilidade de uma populaçâo retraída e ainda possibilitava a instruçâo pela discussâo de problemas moráis. Esse género de apresentaçâo da palavra lida ou declamada caiu pouco a pouco no lugar comum pela enfadonha repetiçâo de seu estilo e todo o seu conjunto de características. Esse aspecto negativo estava aliado à falta de interesse ou indiferença da populaçâo; à vulgarizaçâo da imprensa; e ao conseqüente desenvolvimento da capacidade de leitura. A medida em que o livro, embora de conteúdo religioso, foi se espalhando entre as populaçôes antes imersas na oralidade, foi o sermâo perdendo prestigio já à época do Roman tismo. Uma leitura desse tema por outra perspectiva revela a relaçâo entre o papel do Estado e a importância do pulpito, além da relaçâo entre oralidade e escrita. Com D. Joâo VI, que chega ao Brasil em 1808, o pulpito é por demais cultivado e o Brasil teve seu pregador régio, bem adaptado ao gosto e à formaçâo do rei; na segunda metade do mesmo século, com o imperador D. Pedro II, homem de outra formaçâo cultural, já o pulpito perdía prestigio e a literatura ganhava o seu apoio. O contexto pois de sucesso do pulpito é produto do tempo e das condiçôes de difusâo da escrita. Prova disso é a grande produtividade de uma forma de literatura de feiçâo oral, como os textos lidos oralmente, as declamaçôes, as odes e a música, que, exatamente no período em que floresceu o sermâo de Monte Alverne, tiveram também grande sucesso. Por outro lado, o que fazia de Monte Alverne o grande expoente de seu tempo nâo era a qualidade do texto em si, mas o cunho pessoal de seu desempenho. Ora, se nâo se tratava do conteúdo do texto em si, mas do desempenho, deduz-se que a performance do texto, realizado oralmente, se compunha da pronunciaçâo e do gesto, evidencias do «carisma»1'6 do orador, o que vinculava o texto à pessoa que o produzia ou executava. Enquanto em Vieira estava a qualidade do texto, em Monte Alverne estva a actio,117 com temas puramente religiosos e de mais fácil acompanhamento popular (Martins 1977/78, 77). Pelo que ficou dito, há nitidamente no Brasil duas tradiçôes de natureza lingüística desde o século XVII. Ao lado da tradiçâo composta pela poesia popular, pelas historias que se fundem ñas suas très origens de que se compôe a populaçâo, há também a semi-oralidade realizada através da mediaçâo de textos de origem concepcional escrita, exercida por uma minoría, que igualmente atrai o interesse do povo. Na verdade nâo se pode falar de um cultura escrita, mas sim de sua mediaçâo via oralidade. Somente, pois, com o Romantismo, se percebe uma distinçâo mais nítida: permanece a tradiçâo oral e a ora-

" 6 Schlieben-Lange (1983, 46). 117 Na Retórica ao lado da pronuntiatio, a actio desempenha um papel central, desde os romanos até os tempos atuais. Sobre isso, v. Saftien (1995, 197), que escreve: «Die römische Rhetorikterminologie gliederte die Lehre vom Vortrag in pronuntiatio, d. h. Stimmschulung, und actio, d.h. Schulung der Gestik.»

214

tória perde espaço na comparaçâo com a escrita, na medida que se desenvolve urna carnada média que lê. Apesar disso, a literatura romántica é, quanto a esse respeito, bivalente. Ela serve à leitura silenciosa, mas serve também à leitura em voz alta. Ao final do século XIX começa a ser impressa a literatura de cordel, alargando entre o povo o acesso à leitura depois que os manuscritos já haviam sido espalhados. A cultura de base oral que desde os primeiros colonizadores se desenvolve no Brasil vai gerar portante très tradiçôes vigorosas no século XIX, a saber: o pulpito religioso; depois, por ocasiâo da independência, a tribuna política em 1823 com os oradores; e em 1827, com a criaçâo das faculdades de Direito, a atuaçâo política do bacharel na esfera das elites governamentais. 4.6.8

A semi-oralidade na política e na advocacia

Além do papel do sermâo, a semi-oralidade brasileira vai pois se realizar em duas esferas importantes. Na política e na advocacia. Ela vai também se concretizar específicamente aqui no caso da oralidade medial com base na escrita concepcional. Assim, em primeiro lugar, cresce em importância o papel do orador político e, em segundo, o do advogado ou bacharel. Dessa forma, depois da independencia, o papel da Retórica vai ser fundamental dentro dos objetivos de formaçâo do Estado nacional que pressupunha a formaçâo de urna classe política por ocasiâo da institucionalizaçâo da vida política. Notase como a figura do orador ganha relevo, porque discurso e política se combinam no ideal da nacionalidade, e a sua Retórica tem o objetivo de impressionar pelo efeito da palavra discursada, criando ou reforçando uma tradiçâo do discurso pomposo (Martins 1977/78,77). O orador tem um papel importante, nao só como declamador dos próprios versos, mas como escritor de panfletos ou poemas arrebatados no exercício de sua vocaçâo patriótica, o que lhe garante um lugar na burocracia estatal. Em 1827, quando da abertura das Academias jurídicas de Olinda e Sao Paulo, a formaçâo dos hacharéis encontra no seu cerne o papel da Retórica, que vai fornecer as bases para esses agentes da palavra discursada. No fundo o bacharelismo vai estar a serviço da formaçâo das elites políticas, fazendo-se confluir política e advocacia. Nesse contexto, a criaçâo dos cursos jurídicos, onde as familias das classes superiores preparavam seus jovens, nâo só para a vida jurídica, mas também para a política (Freyre 1985, 112), significava a emancipaçâo da formaçâo brasileira da Universidade de Coimbra (Bittencourt 1953,44-45). 4.6.9

Passagem concepcional do escrito para o oral. O romance romántico

Assim como acontece no século XVIII francés, também no Brasil, com base no fundo da tradiçâo oral dominante, se forma uma cultura oral no nivel mais elevado, que se confunde com a própria produçâo literária. O fato de os críticos literários verem a produçâo literária setecentista como atividade sem importância parece implicar esse nivel de semi-oralidade, reflexo da cultura oral 215

predominante. No período, aquela produgao se resume em versos, ao lado dos sermoes, enquanto a prosa permanece como crónica histórica, o que em certo sentido dá continuidade á tradÍ£áo de contar historias, que desde cedo se desenvolveu no Brasil (Sodré 1976a, 1 1 0 - 1 1 1 ) . Esse caráter da literatura vai se prolongar pelo século XIX com o Romantismo. Em primeiro lugar, pela influencia do folhetim na formagáo do romance brasileiro, cuja forma de public a d o na imprensa periódica impoe um tipo de leitura que altera a estrutura narrativa normal do romance, como, por exemplo, o corte no momento culminante de urna cena ou seqüéncia de cenas (Sodré 1976a, 330). Em segundo, pela simplificado do texto, pela criagao de um estilo de mais fácil consumo (Lima 1981, 16-17). Além disso, é deveras reveladora da influencia do oral a avaliafáo do estilo de diferentes escritores románticos pelos críticos, a saber: a rotula?áo de «A Moreninha» como romance «primitivo»; a de Macedo como «romancista de sala de jantar», por referencia ao costume de as familias se reunirem para os longos seroes do século XIX (Martins 1977/78, 301; 308); e a de Bernardo Guimaráes,118 um dos representantes da corrente romántica denominada «sertanismo», como «um contador de historias» muito mais do que um romancista. Toda essa tradigáo de semi-oralidade vai reaparecer depois durante o Modernismo, porque a autonomía literária pressupunha uma nova forma, que passava a ser buscada na oralidade, onde o nacional se confunde muitas vezes com o popular. Conhecendo-se o contexto da divulgado da escrita na sociedade brasileira de entáo, a literatura nao teria tido sucesso algum se nao tivesse ido de encontró á realidade cultural das populares. O texto que seria lido como folhetim na mais das vezes em voz alta era portanto adaptado á oralidade para garantir a continuidade da leitura a cada edigao do jornal, mas ao mesmo tempo era elaborado em fun?áo da leitura silenciosa, que os alfabetizados do inicio do século comegavam a praticar, sendo por isso adaptado as possibilidades concepcionais desse leitor incipiente. Daí a tendencia narrativa do contador de historias e naturalmente a utilizado do diálogo como aproximado do oral. 119 Isso aponta dois tipos de públicos no Brasil de entáo. Um ouvinte do que era lido em voz alta; outro, a pequeña burguesía, leitor120 em formagáo. José de Alencar alude a esse público emergente,121 que fazia pouco houvera sido alfabetizado ñas cartilhas e que portanto nao era capaz de 1er mais do que

118

Sobre cuja obra se afirmou que «a organizaçâo da narrativa é, quase sempre, a de uma historia contada em voz alta» (Sodré 1976a), 331. "9 É curioso notar que no jornal O Carapuceiro, que tomamos por base para muitas das nossas afirmaçôes, aparecem muitos textos sob forma de diálogo (veja-se por exemplo o «dialogo entre a Ponte da Boa Vista, e o novo caes do Colegio» (citado), além da reproduçâo de cartas ou pequeñas narrativas, do tipo «anedotas». 120 Para o perfil do leitor em todo o período colonial, v. Araújo (1989). 121 A intençâo de escrever em funçâo desse público emergente é comprovada por uma referência de José de Alencar ao leitor intencionado «embalando na macia e cómoda rede, folheando o seu escrito» (Lima 1981, 7-8).

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romances narrativos dialogizados e de feitura simples. Era em síntese urna escritura diferente da dos textos clássicos ainda presentes na literatura portuguesa do período, vista ainda como modelo para o que se deveria produzir no Brasil. A associa?áo do Romantismo brasileiro á oralidade foi como vimos o elo de liga§áo do estado da cultura brasileira com o incipiente surgimento dos leitores. Quando a atividade da leitura ainda nao estava ao mínimo divulgada entre a popula?ao, já circulavam entre ela historias populares, que compunham urna rica literatura oral, quer nascida no Brasil, quer oriunda de Portugal ou da África. Nesse sentido as historias, que foram muitas no período colonial, funcionavam como fonte de conhecimento para todos, inclusive para os analfabetos. 1 " Sejam exemplos o Sertanismo e o Indianismo, ambas correntes do Romantismo, que buscavam popularizar a literatura brasileira utilizando certas tradi^oes nacionais. Foijaram, dessa forma, a prosa brasileira (Sodré 1976a, 279-280). Assim, paralelamente á escrita espontánea de individuos semi-alfabetizados que produzem textos oralmente concebidos, há o texto que representa a passagem concepcional do escrito ao oral, tanto para urna leitura silenciosa mais fácil, quanto para a leitura em voz alta. Dessa forma, a escala, extremada pelos polos da concepgáo oral e da concep?áo escrita, vai se enriquecer com duas atividades do século XIX, dentro do médium fónico, por um lado, no caso da oratoria; e dentro do médium gráfico, por outro, no caso da prosa romántica, que, ao tentar aproximar-se da concep§ao oral para efeito de captar o público, amplia a escala no seu interior, através de um texto simplificado. Urna representagáo gráfica do exposto seria a seguinte: m fónico

(concepçâo)

oral.

* eloqüéncia jurídica e parlamentar escrito

* prosa romántica (10)

122

gráfico

Os seroes brasileiros, que constituíram urna fabulosa tradiçâo brasileira, eram a oportunidade também da leitura dessas historias, muitas délas trazidas de Portugal, que se distribuíram pelos meios rurais e urbanos (Diégues 1973, 33). Ainda no século XVIII, Caldas Barbosa, o divulgador da modinha brasileira, j á se iniciara na tradiçâo oral, embora nao narrativa. Esse padre mulato criou trovas populares inspirando-se na tradiçâo oral e atingiu o público nos salôes de Lisboa com urna obra que foi publicada desde o final do século XVIII até 1825 (Sodré 1976a, 113).

217

4-6. io

A passagem do oral para o escrito: oralidade concepcional

Com a introdujo dos professores régios - substitutos dos jesuítas - a partir dessa época, comefou o ensino público das técnicas de leitura e escrita, como vimos, mas de forma bastante problemática, como revelam textos históricos sobre os problemas entre professores régios e alunos em Pernambuco.123 Nao se deve deixar de levar em considerado que esse momento significa o declínio de urna situa§ao de bilingüismo para muitos setores da popula?áo brasileira, o que significa dizer que para muitos o manuseio de material de leitura de língua portuguesa era algo ainda difícil porque se tratava da aquisigáo de uma nova habilidade, que se em grande parte era apenas oral, restava o desafio do mundo da escrita. Para considerarmos o desenvolvimento do portugués brasileiro, devemos considerar as duas práticas já referidas. A oralizagáo do texto previamente concebido como escrito e o registro escrito do texto concebido como oral. Esse último fenómeno, entretanto, só se vai encontrar em textos marginais, por assim dizer, no inicio do século XIX. Porque naquela época havia uma grande distancia entre a língua falada e a escrita e só entáo muitos comegam a experimentar um contato mais íntimo com essa última modalidade. Considerando o portugués falado pela maioria da populagao - e até por setores em processo de alfabetizado - este estava muito distanciado daquilo que procuravam impor os agentes da instrugáo pública, que tentavam sujeitar a língua escrita aos cánones estabelecidos pelos puristas da metróple. As atas da Assembléia Constituinte de 1823 e as da Cámara de Deputados comprovam essa inten^áo (Castro 1984, 326). Esse vácuo124 entre língua oral e língua escrita apresenta-se menos ampio no Romantismo e menor ainda no Modernismo, quando se cria a língua literária, diferente daquele padráo lingüístico sustentado pelo magistério, que se achava muito distanciado da modalidade falada até mesmo no nivel culto (Rodrigues 1968,47). Nos anúncios das gazetas que surgiram com a criagáo das tipografías, percebe-se outro tipo de texto, que se aproxima da realidade lingüística da maioria da populagáo. Freyre faz uma comparagáo da língua dos anúncios de jornais de 1825 com a dos discursos dos primeiros constituintes do império, afirmando que sao «duas línguas inimigas».125 Aqui especificamente se trata

123 124

125

Veja-se a esse respeito Carvalho (1978, 1 9 3 - 2 2 9 ) e Andrade (1978b). Sobre esse vácuo, assim se expressa Cunha (1968, 2 1 - 2 2 ) : «Entramos, assim, no século X I X com um vácuo entre língua escrita e língua falada. A luta por diminuí-lo vai confundir-se, nos espíritos mais lúcidos, com a pròpria luta pela formagào de uma literatura verdaderamente brasileira (pois que entendemos como harmoniosa concilia§ào de temática e forma expressional), e só chegará a bom tèrmo, em nossos dias, com as atitudes radicais do Modernismo.» E esta a passagem de Freyre ( 1 9 7 9 , 7 ) : «Nos anúncios das gazetas que nossos bisavós liam pacatamente à luz de vela ou de candeeiro, já se escrevia como se falava: já se escrevia portugués brasileramente. Compare-se a lingua dos anúncios de 1 8 2 5 com a

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das primeiras experiencias de contato com a escrita de setores da populafao que para isso nao foram devidamente preparados. Nesse sentido, deve-se destacar, além dos anuncios, os documentos da devassa da revolu?ao pemambucana de 18x7. Com essas duas amostras de textos, é possível se ter urna idéia da língua escrita espontánea no Brasil do século XIX. A primeira mostra como textos de divulgado de informagao expostos a um certo público revelam o esfor£o de setores da populafao nao bem alfabetizados ou em processo de alfabetizado, cuja consciéncia da natureza da língua escrita em certos tipos de textos é ingenua. A outra aponta como setores tidos por instruidos se encontram em situagáo de dificuldade semelhante áquela dos produtores de anuncios de jomáis. No primeiro anuncio de jornal publicado no Brasil em 1808 na «gazeta do Rio de Janeiro», a estrutura textual - que tem semelhanga com outros anúncios a aparecer posteriormente - remete á oralidade, específicamente á natureza dos pregoes, que muito antes da imprensa eram pronunciados pelos escravos pelas rúas dos centros urbanos"6 (Pinto 1989, 30). Apenas confirmando essa relagáo do anuncio de jornal com a oralidade, pode-se dizer que ele apresenta um vocabulário de origem indígena e africana bem especifico do portugués do Brasil. É claro que esse vocabulário para o ideal de portugués da época era naturalmente de cunho popular e estava portanto associado a segmentos desprestigiados daquela sociedade, denunciando marcas de uma variedade brasileira da língua portuguesa que ganhava prestigio lentamente (Freyre 1979, 3-7). Com rela?áo aos textos da devassa da revolugáo pernambucana de 1817, Carlos Guilherme Mota, ao estudar a consciéncia social dos revolucionários, se deparou com certos textos que, pela sua natureza concepcionalmente oral, dificultavam de alguma forma a análise pretendida. Os autos da devassa daquela revoluto revelam especificidades lingüísticas de parcelas importantes da populafao, como o desempenho lingüístico dos militares (Mota 1972). Dentre algumas características citadas pelo pesquisador, desta-

Ií6

dos discursos dos constituintes do Impèrio, ainda rançosa de casticismo: sâo duas línguas inimigas. E, no mesmo jornal, a frase dos artigos políticos e literários com a dos anuncios: a superioridade de força e, direi mesmo, de beleza de expressäo dos anuncios é enorme. No Brasil George Borrow teria dito o mesmo que na Espanha: a língua deste povo é maior, muito maior, que sua literatura. A lingua dos anuncios de jornais brasileiros do tempo do Reinado e da época do Impèrio parece-me às vezes maior, como expressäo nacional, do que toda a nossa literatura do mesmo período, incluindo o romance com suas moreninhas e as suas iaiás já meio desaportuguesadas.» O primeiro anuncio publicado no refendo periodico é o seguinte: «Quem quizer comprar uma morada de casas de sobrado com frente para Santa Rita, fale com(...).» (Pinto 1989, 30). Reconhecendo que anuncios semelhantes já deviam antes circular em jornais portugueses, pode-se contudo admitir - pela especificidade do texto do anuncio na realidade brasileira - que estamos diante do nascimento de um novo tipo de texto, que se constituí numa tradiçâo textual durante todo o século X I X brasileiro. Sobre este interessante tema, veja-se para a Alemanha Beckmann/König (1995).

219

cam-se a recorréncia ao diálogo, o vocabulário e a elaboragáo da frase. No primeiro, o texto transcreve a narrativa do depoente,127 quando este narra um acontecimento sob forma de diálogo; no segundo, utilizam-se vocabulário e expressóes ou imagens próprias da vida rural; no terceiro caso, tem-se a frase muitas vezes de difícil compreensao, favorecida pela pontua^áo, cujo uso muitas vezes altera o próprio sentido do texto ou impede a coerente coadunado entre os períodos (Mota 1972,71-81). Naquele movimento revolucionário se surpreende ora a alusáo ao próprio contato dos individuos com a escrita, ora a alusáo ao processo de transformado do oral no escrito. No primeiro caso, o Desembargador Joáo Osório de Castro Souza Falcáo escreve: «Tinha-me o general dito no dia trinta e um de mar§o que os negocios internos e externos da capitanía exigiam mandar á Córte pessoa hábil que expendesse de palavra o que por escrito era difícil e arriscado, e que ninguém estava ao fato de tudo. nem era tao capaz como o José Carlos Mairink (...).» (DH, CIII, 1 2 1 )

No segundo, o «Corregedor Ouvidor da comarca» revela a origem oral do texto quando escreve: «Ilustrissimo e Excelentíssimo Senhor = E m observancia da ordem de Vossa Exceléncia, datada de dois do corrente, em que me manda ponha por escrito os fatos praücados por Padre Pedro de Souza Tenorio na tomada da fortaleza de Itamaracá, tenho a dizer que achando na ilha (...).» (DH, CH, 7 2 )

Feitas essas considera§5es fináis sobre diferentes tipos de textos que circulavam na sociedade brasileira na primeira metade do século XIX, analisaremos no próximo capítulo diferentes tipos de anuncios, publicados em jomáis recifenses do período, constituindo-se como típicos da semi-oralidade brasileira aqui largamente discutida. Enquanto aqui se deu énfase á semi-oralidade como processo, no próximo analisaremos o texto semi-oral, ou seja, o produto, manifestado concreta da língua, que pela persisténcia durante o século revela-se como manifesta§áo da realidade lingüística local e se oferece, portante, como subsidio para a compreensao do desenvolvimento da variedade urbana recifense, resultando dessa forma como fonte imprescindível para a historia do portugués brasileiro.

127

Trata-se do tipo de texto «processo verbal». 220

5

A Semi-oralidade em Textos: urna análise de jornais recifenses do periodo

5.1

Introdu?áo

Neste capítulo trataremos de textos, até agora deixados de lado no estudo da história do PB, que compdem a amostra escolhida, fechando este estudo com a investigagáo de dados lingüísticos. A análise serve a dois propósitos. Em primeiro lugar, para exemplificar fenómenos de semi-oralidade tais como os discutidos no capítulo 4; em segundo, para mostrar como a constituifáo da variedade recifense e do portugués comum brasileiro se desenvolviam na primeira metade do século XIX, tomando textos que revelam a natureza desse processo constitutivo em diferentes aspectos. O corpus composto de anuncios publicados em jomáis da época revela o contato de popula§5es com o instrumento da escrita numa sociedade em processo de transformado. É interessante nesse sentido a divulga?áo pública que tais textos ganhavam em face da sua veiculagao em periódicos, diferentemente do que acontecía em cartas, que mesmo revelando aspectos do desenvolvimento lingüístico, permanecem muitas vezes no nivel anedótico, pelo caráter privado de sua veiculafáo. 1 Partindo de urna ampia caracterizado da história extema do portugués brasileiro e ampliando essa visao com um levantamento das formas de semioralidade no século XIX, chegamos agora ao momento de investigarmos textos com todas as peculiaridades lingüísticas que interessam á discussáo, dentro do contexto sócio-histórico e lingüístico descrito no capítulo 3. Assim, depois de termos feito urna abordagem das diferen?as constitutivas entre oralidade e escrita e da semi-oralidade e sua natureza no capítulo 4, faremos agora urna caracterizafáo do corpus, apontando a sua natureza do ponto de vista da oralidade concepcional; depois, abordaremos as especificidades dos textos, associando-as, noutra se§ao, á natureza do portugués brasileiro, dentro do qual se encaixa naturalmente a variedade recifense. Os textos parecem ter sido escritos por pessoas com pouca experiencia com as técnicas da escrita e se encaixam bem no que Oesterreicher (1994) classifica de «competencia escrita de impronta oral»,2 embora aqui estejamos usando a terminología de

1 2

Sobre o papel da carta como documento para a lingüística histórica, v. Elizaincín/ Groppi (1991). Do alemäo «nähesprachlich geprägte Schreibkompetenz» («competencia escrita concepcionalmente marcada por el lenguaje de lo imediato»). 221

«semi-orais», para caracterizá-los. Um exemplo do corpus a ser analisado é o seguinte texto: «Srs redactores - Tendo eu ha 17 para 18 annos, um escravo de nome Manoel, fúgido, e tendo sido ha tempos preso no centro da cidade da Paraíba do Norte, os apprehendedores interrogando o dito escravo, elle disse que seu Senhor era eu, corno de facto sou, os apprehendedores trataram de m'o trazer, porém passando pelo logar Poeiras, e pelo sitio Bebedor, propriedade do capitào Manoel Pereira de Mello, este fez logo tenjáo de se apossar do escravo, fosse porque meios fosse, corno de facto assim succedeu, passando o dito Pereira recibo aos apprehendedores, que ficava com elle, e dizendo que mandaría saber de mim se o quería vender, e do contrario m'o remetteria, o que até hoje ainda nao fez, pois o que quería era pilhar o negro, e como os apprehendedores o nào entregassem de muito boa vontade, trataram de me participar do ocorrido, pelo Sr. Joào Victorino, a quem immediatamente dei todos os poderes, e escrevi ao dito Mello para entregar o meu escravo, o que elle nào quiz executar, depois disto autorisei com todos os meus poderes ao Sr. José Lopes de Sampaio, que là foi por duas vezes, e até em urna della, levou urna carta de um mano do mesmo Mello, dizendo-lhe, que nao pozesse duvida alguma em entregar o escravo, entào o Snr. Mello nesta occasiáo mandou armar o escravo de bacamarte e faca de ponta, e disse entao ao Sr. Sampaio que o prendesse, o que nào o pode executar a vista do perigo em que se ia metter, pois bem conhecia quaes eram as intenfòes desse homem, portanto, o abaixo assignado protesta ir contra o dito Sr. Mello com todo o rigor da lei, caso quanto antes nào Ihe remetter o seu escravo, visto ter tomado o dito escravo e ficar por elle responsavel. O abaixo assignado roga encarecidamente os Illms. Srs juizes competentes, delegados e subdelegados do mesmo destricto, para que sendo o dito escravo capturado, possa o abaixo assignado apresentar os seus títulos e receber o seu escravo. O escravo tem os signaes seguintes, 35 annos de idade, altura regular, corpo mais secco que grosso, rosto tirado, cor entre fula e preta, bem feito de pés e maos, tem um taco pequeño tirado na orla de uma das orelhas, e a letra A queimada com ferro em cima de um dos peitos. O dito escravo parece crioulo, por ter vindo de Angola muito pequeño, pois é nafào Benguella.» Antonio Coelho da Silva (III, 134)

5.2 5.2.1

Análise do corpus Caracterizagáo do corpus

Inicialmente uma palavra deve ser dita sobre a escolha de jornais para esta investigado e nao outro tipo de fonte. Como nosso objetivo é estudar o desenvolvimento lingüístico no contexto da rela§áo oralidade/escrita, identificamos os jornais como a melhor fonte para atingir esse objetivo. Como o jornal é um meio de comunicagáo onde varios tipos de textos sao veiculados, escolhemos primeiramente os anuncios sobretudo e mais alguns tipos de textos que, embora em regra mais bem elaborados do que os primeiros, se encai-

222

xavam dentro do que buscávamos.3 Dada a especificidade sócio-histórica do período delineado para a nossa pesquisa, selecionamos urna amostra de textos que circularam na cidade do Recife entre 1829 e 1850. Em face da dificuldade de aquisi§ào de textos anteriores a 1829, cometamos por esse ano e dividimos o período em très etapas, a saber: 1829, 1835 e 1850. Assim, escolhemos inicialmente 800 textos da seguinte forma: no primeiro ano, lemos os primeiros 300 textos; no segundo, lemos os primeiros 250; e no terceiro ano, também os primeiros 250. Para selecionarmos a nossa amostra (anexada ao firn do traballio como corpus) em cada ano adotamos os seguintes critérios: a) textos que se repetiam integralmente foram eliminados; b) textos diferentes, mas com fenómenos já bastante incidentes na amostra nào foram mais transcritos; c) textos em que a interpreta?áo do fenòmeno gerava dúvida em face da qualidade da reprodu9ào no microfilme foram deixados de lado. Dessa forma, selecionamos um corpus composto de 154 textos, sendo 79 (300/26, 33%) do jornal O Cruzeiro para o ano de 1829; 39 (250/15, 6%) do jornal A Quotidiana Fidedigna para 1835; e 36 (250/14, 4%) do jornal O Commercial para 185o.4 Outras observa?oes ainda se fazem necessárias: 1) a grande incidencia de textos curtos (em face do tipo de texto produzido, isto é, o anuncio) nào favorecia muitas vezes a recolha de mais manifesta?oes de um mesmo fenòmeno.

3

Giberto Freyre (1979, XIII), que foi o único a chamar a atenfào para o significado lingüístico dos anuncios aparecidos nos primeiros jomáis brasileiros, escreve: «Entretanto, os anuncios apresentados considerei-os, de inicio - desde que empreendi as primeiras pesquisas que resultariam no meu constante uso, em livros e ensaios - , nào só desde o cometo da década de trinta, como desde os estados realizados na década anterior, de considerável importancia do ponto de vista lingüístico: inclusive do ponto de vista do desenvolvimento, no nosso país, de urna lingua literária a que nao faltasse oralidade, e esta vinha da boca dos iletrados. Inclusive dos brasileiros de todo inacadémicos que, desde o aparecimento, no Brasil, dos primeiros jomáis - no Rio, na Bahia, em Pernambuco - , passaram a redigir, eles próprios com toda a espontaneidade, anuncios relativos a vários objetos ou a vários sujeitos. Inclusive os relativos a escravos.»

4

Os jomáis estáo microfilmados e foram cedidos pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O Cruzeiro - Jornal político, literario e noticioso - come^ou a circular no dia 4 de maio de 1829. Redigido principalmente pelo padre Francisco Ferreira Barreto. Circulou até o dia 6.05.1831, n° 98; A Quotidiana Fidedigna circulou entre 1833 e 1835. Em pequeño formato de 30X20, com quatro páginas em duas colunas. Os assinantes tinham anuncios gratis; O Commercial - Jornal de interesses comerciáis, agrícolas e industriáis, e de literatura. Apareceu no dia 15.01.1850, em formato de 45X28, com quatro páginas de quatro colunas. Tinha como dirctor o médico Sabino Olegário Ludgero. Sua última edi?ào se deu no dia 01.06.1869, n° 108. (Nascimento 1966, voi. II, 17-67).

223

É de se supor que se certos individuos - que escreveram anuncios curtos tivessem a necessidade de se alongar mais nos seus textos, certamente deixariam mais marcas de sua competencia lingüística semi-oral; 2) a t r a d i t o desses textos ao longo dos anos e o seu conteúdo possibilitaram a cria?ào de certos modelos para certos tipos de anúncios, o que mais urna vez inibia a manifestalo mais espontanea de certos individuos, encobrindo possíveis fenómenos característicos da semi-oralidade; 3) por firn, só foram investigados tres jomáis em très anos na primeira metade do século XIX. Se tivéssemos tido um interesse quantitativista na recolha dos dados, teríamos investigado um maior número de jomáis em mais anos, o que certamente ofereceria uma abundancia muito maior de dados. Do ponto de vista de urna tipologia textual, o corpus compòe-se de um grande conjunto de anúncios de compra, venda, arrendamento, aluguel e troca; de um segundo conjunto de textos também de anúncios, mais específicos, sobre fuga e apreensào de escravos\ de outra categoria de avisos particulares, avisos em geral e declaragdes-, de 2 textos denominados ordem do dia e artigo d'oficio-, de alguns com o título correspondencias', de 1 texto de d i v u l g a l o de um leilào', de mais outros denominados de perdas, furtos e desaparecimento de objetos ou escravos. Cada texto recebeu um número de acordo com a ordem de aparecimento no corpus, precedido de um dos algarismos romanos I, II ou III, que representam nessa seqiiència os respectivos jomáis em ordem cronologica, de modo que o leitor, de posse dessa informafào, poderá identificá-lo de forma rápida no anexo final. No corpus o número ao final dos anúncios representa a página do jornal onde eles se encontram.5 Partindo das reflexòes históricas mais gerais sobre a relagáo entre o medium e a concepgao esbozadas no capítulo 4, como poderiam se caracterizar os textos dos jornais recifenses da primeira metade do século XIX, segundo o contexto pràtico ou ocasional? 6 Para esclarecer essa questào, levantaremos très hipóteses: a) Em primeiro lugar, como ficou claro no capítulo 4, a leitura em voz alta foi dominante no Brasil naquele periodo, o que implica dizer que a pontua^ao arbitrària daqueles textos poderia revelar um texto escrito em fungào da sua oraliza?ao, apesar de uma cultura paralelamente dominante - mas nao majoritária - que se valia da leitura silenciosa; b) Em segundo lugar, deve se considerar o nivel cultural da populagào e seu conseqüente grau de acesso ao letramento, o que poderia evidenciar textos

5

6

Os jornais apresentavam em média cerca de quatro páginas por ediçâo (A Quotidiana Fidedigna e O Commercial). Algumas numeraçôes mais elevadas (O Cruzeiro) se devem ao fato de que foram encadernados em vários números, nào apresentando, entretanto, a numeraçâo original de cada ediçâo. «O contexto pràtico ou ocasional é a «ocasiâo» do falar: a particular conjuntura subjetiva em que ocorre o discurso;» (Coseriu 1955/19798, 233).

224

ditados - por aqueles que nao possuíam conhecimentos suficientes para redigi-los - e anotados por outros individuos mais preparados, que ao realizarem tal tarefa, nao planejavam eles mesmos os textos, mas deixavam-se levar pelo planejamento do autor, que o ditava, seguindo-se naturalmente um planejamento mais típico da oralidade; c) Em terceiro lugar, deve se considerar que o próprio anunciante escreveu seu texto e que, dependendo do grau de seu letramento, pode ter construido um texto mais ou menos apropriado á natureza da língua escrita, ou, como na maioria, a meio caminho entre o oral e o escrito, constituindo-se típicamente competencia escrita concepcionalmente marcada pela língua de proximidade, representada pelo texto semi-oral. 5.2.2

Aspectos processuais do oral concepcional

Em diversos sentidos, pode-se associar aspectos desses textos a fenómenos próprios da oralidade. Nao se trata de urna separado estrita entre aspectos universáis e específicos. Antes se trata de fenómenos que revelam urna conc e p t o oral na sua formulagáo. No item 5.4, entretanto, aponíamos aspectos específicos do portugués brasileiro - diferentemente do portugués europeu segundo os autores que tém investigado a variedade brasileira.7 Como frisamos no capítulo anterior, a própria estrutura da maioria dos anuncios revela urna realizado típicamente oral «quem quizer comprar...», que seria a forma de os escravos anunciarem sob forma de pregao os produtos pelas rúas (Pinto 1989; Pragana 1981). Curiosamente essa forma contrasta significativamente com as expressoes mais formáis e já existentes na língua tal como o «se» com sentido apassivador (vende-se). Hoje aquela forma de anunciar desapareceu completamente dos anuncios de jomáis, sendo substituida ora pela passiva, ora pelo uso da forma verbal de terceira pessoa (vende) ou primeira pessoa (vendo). Outro aspecto que liga esses textos a certa tradi pronome pessoal em substituido a tu) que hoje caracteriza o portugués comum brasileiro.

228

«Ouem quizer comprar huma Escrava Crióla de boa figura, e boa ama para o trafico de huma caza, boa Cuzinheira, sabe engomar sofrivelmente, e coze chao, quem a pretender dirija-se a rúa da Cadeia Velha no largo da ConceÍ9aó caza n° 24 que lá achara com quem tratar.» (I, 75)

O aparecimento da segunda expressáo sublinhada nos dois casos parece evidenciar que a frase típica introdutória da maioria dos anuncios foi esquecida ao final, quando aparece a segunda. Esse fenómeno revela a falta de planejamento da escrita, ou essa retomada de oferta do homem-objeto como produto á venda nao foi percebida por aqueles envolvidos na sua produ?áo, sobretudo se o texto foi gerado numa situa^ao de fala. A o que parece, depois de apresentar urna série de características da escrava, o autor reformulou o anúncio, reiniciando-o, embora com alguma mudanza. Esse procedimento encontra semelhan?a na oralidade, onde a repeti?áo, a reformulagao e a paráfrase desempenham papel crucial. Ainda, associando a estratégia aos processos oráis, pode-se também relacionar os dois exemplos acima citados com fenómenos de «falsos comeaos», pois apagando-se as estruturas iniciáis «quem quizer comprar»,10 percebe-se como elas eram excessivas e desnecessárias para a seqüéncia textual, conseguindo-se urna estrutura§ao mais planejada. Sao também típicos da semi-oralidade, podendo ter sido produtos mais urna vez de urna situagao de ditado. b) a repetido Na língua oral a repetifao desempenha fungao importante quanto á progressáo temática, fazendo parte portanto do estabelecimento das relagoes coesivas. Como na língua escrita essas rela?oes podem ser estabelecidas por outros meios, tais como a substituido lexical, a sinonimia ou os processos de anaforizagáo, essa estratégia é em geral vista como um defeito da modalidade escrita, evidenciando em muitos casos falta de maior elaboragao textual, já que urna das características dessa modalidade é a possibilidade de aperfeigoamento do texto devido á situagáo de produgáo, diferente do que acontece na produgao oral. Por outro lado, na semi-oralidade, sobretudo nos casos em que textos sao escritos em fungao de sua oralizagao, a consciéncia do produtor de textos determina em muitas ocasióes certas estratégias de elaboragao textual para facilitar o acompanhamento dos ouvintes. A repetigao pode ser um desses recursos." Dessa forma, destacamos no corpus fenómenos de repetigao elucidativos do que afirmamos:

10

11

Neste sentido, se se apagasse a ora§áo «quem quizer comprar» nos dois anúncios, eles passariam a se assemelhar com outros como 8 ou 12 (v. corpus), necessitando apenas serem antecedidos por um título como «vendas». V. Gregory (1967).

229

- repetigào de lexemas: «No Largo da rua da Conceifào (...) há avender chicolate (...) cada huma arroba: (...) que por esse pre§o sò se entende de arroba (...) urna porfío de arroba (...).» (I, 3 3 ) «Na rua da Conceifào do Recife (...) hum sortimento de Livros chegados de Lisboa, e entre elles todos os livros pertencentes a Gràmatica Latina, e alguns livros Francezes, Inglezes, e outros de Direito.» (I, 54)

- repetigào de estruturas: «(...) da minha onra assim se faz precizo (...) porque assim se é precizo (...).» (II, 97) «Ora, a vista disto, como se atreveo o Padre Luiz (...) como se atreveo. digo, (...).» (II, no)

5.3

Tragos semi-orais nos níveis de análise lingüística

Depois de caracterizado o corpus segundo alguns fenómenos que o vinculam a situa?5es em que a oralidade exerceu grande influencia na elaboralo do texto, isolando-a e enfatizando-a, é necessàrio agora estender a análise, identificando dados do corpus onde outras marcas da estruturagao oral do texto sobressaem. Assim, nesta se§ào os fenómenos arrolados serào apresentados segundo os seguintes níveis de análise: pragmático, textual, morfossemántico e sintático. 5.3.1

O pragmático

Sob o aspecto pragmático, a consideralo a se fazer é a forte relagáo dos textos com o contexto histórico-social. Essa constatado deriva de dois fatores principáis: primeiro, porque os textos estào vazados numa lingua de proximidade, o que favorece essa dependencia do contexto; segundo, pelos tipos de texto, por se tratar na maioria de anúncio, cuja inten^áo é sobremaneira estar em fungáo do «leitor/ouvinte», potencial consumidor do produto anunciado. Afora essas observa$5es, devemos acrescentar que dessa significativa vinculado dos textos com o contexto extraverbal,12 deriva também o significado favorecido pelo contexto verbal, cujo bom exemplo é o emprego do artigo com valor de possessivo, exatamente por urna relagáo de referencia ao possuidor citado no inicio do texto. Dada a simplicidade da sociedade à época, as referencias ao contexto extralingüístico sao muito incidentes. Os individuos citados parecem muitas vezes conhecidos e os lugares sao também

12

«O contexto extraverbal é constituido por todas as circunstancias náo-lingüísticas que se percebem diretamente ou sao conhecidas pelos falantes. Pode-se distinguir vários subtipos: físico, empírico, natural, prático, histórico e cultural.» (Coseriu 1979, 232).

230

suficientemente conhecidos. Esse conhecimento do mundo referido pode muitas vezes deixar implícitas as informales que para outros individuos de outras sociedades tornariam talvez a decodifica§ào mais difícil. O mesmo se pode dizer para o leitor afastado no tempo. Ademáis a natureza do assunto tratado pode levar a uma elaborado textual onde certas expectativas sao frustradas e se estabelece uma mistura de estilos, de que evidentemente os autores nào se davam conta pelo modo como estavam integrados nessa situa?ào de proximidade e conhecimento num momento em que, dentro das redes comunicativas, a densidade se tornava baixa. 13 Um caso bem característico do que estamos afirmando deixa-se perceber pelos exemplos abaixo: «O abaixo assignado faz sciente ao público; que como proprietàrio da Caza tenia N ° 195, Decima 1 2 , sitas na Rúa da Gloria do bairo da Boa Vista, deze-ja saber a quem deve pagar competentemente os foros da dita caza; que pertenciào ao falecido Padre Bazílio Aranha do Espirito Santo, e como aparesse mais de hum herdeiro a cobrar os foros lhe e precizo, que o verdadeiro proprietario se declare por esta Folha, e o direito que tem, e sem esta declarado nao pagará a ninguem; sem que seja judicialmente.» (I, 14) «O propietario da caza N ° 195 Decima 1 2 na Rúa da Gloria, nao ignora a quem deve pagar os foros, vencidos desde Junho de 1828 athé 2 3 de Abril de 1 8 3 2 , e nem menos ignora quem foi o Testamenteiro do Padre Bazilio a quem pertenciao os xaòs da sua caza, e pelo título que deve ter da mesma caza, verá a quem pagou o Laudemio, e por morte do mesmo Pade Bazilio, veja pelo Cartono do Excrivaó Pereira Juizo dos Orfaòs, a quem pertenfe o mencionado xao que de tudo foi já inteirado, e por isso que tanto mais se faz suspeita, asua duvida.» (I, 20)

Observe-se que os textos vém rotulados como «Avizos particulares». De inicio pode-se chamar a aten9ào para o fato de eles revelarem essa vida de proximidade onde os individuos e os assuntos citados parece serem conhecidos de todos («ao falecido padre Bazilio Aranha do Espirito Santo»). Por outro lado, como os dois se relacionam, sendo o segundo urna resposta ao primeiro, há indicios de que o tom objetivo que se procura estabelecer, sobretudo no segundo, é logo abandonado em favor de um envolvimento evidente, que reflete quase a intera§ào cotidiana no plano oral daquela sociedade em fase de complexificafào; no segundo dos exemplos acima, percebe-se bem como aquele que responde era verdaderamente o alvo do «avizo particular». As ora^oes negativas («nào ignora»/»nem menos ignora»), as formas verbais com modalizasao («deve»/»verá») e o tom interativo («veja») revelam portanto uma situa9ào prèvia, que pode em parte ser reconstruida. Em outros casos, encontramos fenómenos como o possessivo, pressupondo um possuidor nào citado, tendo de ser meramente decodificado pelas condifòes do discurso. Seja o exemplo:

13

Com relafào ao tema, veja-se o estado de Bortoni (1989) sobre m i g r a l o rural-urbana.

231

«Duas vacas paridas de proximo muito boas leiteras com crias ambas, em fora de portas defronte do beco largo, ou na Typographia desta Folha, para tratar do seo ajuste.» (I, 2)14 Ainda, os anuncios sao na 3a. pessoa e quando o pròprio autor os escreve, identifica-se ao final do texto, assinando-o, por exemplo. Dessa forma, nào é comum o aparecimento desses textos em primeira pessoa. Surpreendentemente na nossa amostra encontramos um exemplo que contradiz essa regularidade, porque o autor, embora procure manter o texto dentro das suas características típicas, perde essa perspectiva inserindo a sua subjetividade no corpo do texto: «Dezaparecerao, a trez por quatro annos quatro Escravos desta Cidade do Recife de Pemambuco cendo dois pretos e dois moleques, que (...) os pretos hum seco do corpo que representa 25, a 30, annos de idade, que me consta (...).» (1,74) Esses fenómenos de expressáo da subjetividade ocorrem como resultado da insinua?áo da oralidade no texto escrito como expressáo também da vinculado sujeito-texto. Além disso, destacamos neste tópico a influencia da realidade social externa, concretizada nos exemplos abaixo pelo contexto extraverbal empírico 15 . Vejam-se os casos: a) pessoa Normalmente, quando se trata de anuncio ou documento burocrático-administrativo, a pessoa, que anuncia ou escreve o texto, aparece como terceira pessoa e ao final fornece o enderezo para realizado do negocio ou assina o texto, conforme o caso. Sejam os exemplos: «OS Snrs Officiaes dos Corpos de 1. e 2. Linha, que tem cavalos pelos seus exercícios fiquem (...) Assignado - Antero Joze Ferreira de Brito - Governador das Armas.» (1,6) «Dois pretos, um de 15 annos, que serve para todo o trabalho (...). Quem os pertender comprar fale com Joao Antonio de Miranda (...).» (I, 8) «No fim do passado Abril deixarao em caza de Arcenio Fortunato da Silva morador na rúa da Cadeia do Recife, hum papel (...).» (I, 17) No caso de «aviso particular», texto da mesma natureza, o autor se autodenomina «o abaixo assignado», estabelecendo um tipo de referencia interna ao texto com a assinatura identificando a pessoa: 14

15

Este anuncio é precedido de outro de venda. Assim, o leitor fica sabendo que as vacas estao á venda. A ambigüidade do «seo», entretanto, constituí outro problema. Coseriu (i955/i979a, 232-233) define assim esse contexto: «O contexto empírico é constituido pelos objetivos que sao conhecidos por quem fala num lugar e num momento determinados, ainda que nao estejam á vista; por exemplo, o fato de haver uma rúa do lado de fora da porta; de esta casa ter cinco andares; de haver um mar, uma praia, um bosque perto desta cidade, etc.»

232

«avizo particular O abaixo assignado faz sciente ao público; que (...)•» (I, 14)

Em alguns casos, como um aviso sobre perda de algum objeto, a referencia ao anunciante se realiza de forma ambigua e somente no desenvolvimento do texto se percebe a quem se refere precisamente, sobretudo pela forma verbal do tipo «roga», o que passa a caracterizar claramente um pedido do autor: «Tendo sido passada huma Letra de quatro contos setenta e tantos mil reis (...) por Joze Cavalcante D'Albuquerque Rumeiro, a favor de Joze Antonio de Souza Gomes, que a inbolsou a Manoel Lourengo; (...) previne-se assim ao publico que nao faga negocio algum com tal Letra, pois (...) ella só pode ser tranzaccionada, offerecendo a verdadeira firma do mesmo Manoel Lourengo. que protestando (...), roga (...).» (I, 15)

Acontece também o caso de o individuo publicar algum aviso, referindo-se a si em primeira pessoa e assinando ao final do texto: «Achando-me a juizado por urna letra falsa (...). Sou de Vm. Muito Reverente e Criade Domingos Pires Ferreira» (I, 7)

b) lugar Como já ficou claro no tópico «pessoa» que os textos contém essa alusào aos individuos da sociedade local - pressupostamente conhecidos 16 - , que sao citados nominalmente com muita freqüéncia, também a referencia ao lugar é feita com os pontos conhecidos da cidade, muitas vezes apoiada ainda no elemento «pessoa»; outras vezes a pròpria tipografía que imprime o jornal é também citada como ponto de referencia: «Duas vacas paridas de próximo muito boas leiteras com crias ambas, em fora de portas de fronte do beco largo, ou na Tvpographia desta Folha (...).» (I, 2) «Na loje de fronte da Madre-Deos N. 201 tem para vender Rapé (...).» (1,9) «Na Botica de Miguel Joze Ribeiro: rúa do queimado, sevende (...).» (I, 10) «Quem tiver pegas de 6, 400 para vender dirija ao Armazem do Machado na rúa do Vigarion" 14 ou anucie por esta folha para ser procurado.» (I, 24)

Um fato que chama a atenfáo na informado sobre a localizado dos negócios anunciados é a indicafào sob a forma de dire?oes por meio de estratégias 16

Nâo é muito claro se os individuos eram conhecidos ou se era necessària alguma referencia sobre eles para a sua identificaçâo (como profissâo, moradia, etc.). Tratava-se de urna fase de expansâo urbana e o surgimento dos jomáis apontava a complexificaçâo das relaçôes sociais, quando a comunicaçâo predominantemente oral começa a perder sua força.

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oráis em que se narra o percurso em vez de simplesmente se indicar, como acontece na maioria dos casos no proprio corpus; talvez a inexistencia ainda de nomes de certas rúas - numa fase de expansao urbana - tenha favorecido esse tipo de elemento do contexto extraverbal empírico: «Arenda-sehum sitio com caza de vivenda no lugar do Arraial na estrada que divide para caza forte e Monteiro (...).» (1,11) «Vende-se a caza de Sobrado, que foi do Padre Manoel do muro (...) sita no Bairro baixo desta Cidade hindo para o Forte das sinco pontas. (...).» (I, 41) «Vende-se huma sorte de terra, sem pensaò alguma (...); sita na Magdalena comfronte a estrada do Lucca, que segue para a Matris da Várzea (...).» (I, 42) «Quem quizer comprar hum moleque (...) procure no principio do atterro do Afogado na ultima caza junto a os sobrados novos de Joze Gonsalves (...).» (I, 52)

c) tempo O elemento tempo é dado pelo contexto histórico17 em que se relacionan! os individuos que utilizam o jornal para a troca de informa§5es. Assim, tal elemento do contexto extraverbal está marcado na altura da página referente à edi§ào do dia. Partindo dessa referencia, estabelece-se urna sèrie de outras também temporais, que orientam o leitor: «OS Snrs. Officiaes (...) fiquem (...) de os fazerem matricular na Thezoraria das Tropas ate o ultimo deste mes: e os dos Corpos de 2. Linha (...) ate o último do mes, que vem (...).» (I, 6) «No fim do passado Abril deixarao em caza de Arcenio Fortunato da Silva (...) e athe ao prezente nao lho tenhaó (...).» (I, 17) «A pessoa, que por engano tirasse huma Carta (...) queira (...). E de hoje emdiante se ficará (...).» (1,68)

Além disso, a alusào ao tempo aparece marcada por datas anteriores ou futuras, além de expressoes que para serem identificadas baseiam-se também no dia de aparecimento da edigào do jornal: «Segue viajem para o Rio de Janeiro até o dia 10 de maio (...).» (I, 4) «Como nao foi possível anticipar o Prospecto desta Folha (...) anuncia-se por isso, que as pessoas que mandarem verificar brevimente (...).» (I, 5) «Tendo sido passada huma Letra (...) em 20 de septembro de 1827. a 20 mezes precizos (...) devendo verificar-se o vencimento, e paga em 20 do corrente mez de Maio (...).» (1,15)

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Incluimos a categoría tempo dentro do «contexto histórico», também sugerido por Coseriu (i955/i979a. 233).

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5-3- 2

O textual

Para fugir um pouco de urna análise atomística do corpus, resolvemos introduzir este tópico, já que se trata de urna análise de textos. Dessa forma, para o componente textual a análise se apoiará em dois aspectos básicos gerais, a saber: a coesao referencial e a seqüencial. O primeiro trata das rela?oes entre as partes, de como certos elementos sao retomados para criar a harmonía textual; o segundo trata da progressáo textual, ou seja, como se dá a expansáo das idéias dentro do texto para que o acréscimo de outras novas o fa?a prosseguir. 5.3.2.1 5.3.2.1.1

Coesao referencial Referencia

A coesao referencial nao é propriedade exclusiva da língua escrita. Ela pertence ao discurso, quer oral, quer escrito. Entretanto, dada a riqueza de elementos da língua oral que excedem os da representado escrita - seja o caso do nivel supra-segmental - além da insergáo do individuo na situa£áo de comunica?áo, o que favorece outras formas de referencia nao acessíveis na língua escrita, a coesao referencial é uma estratégia que na língua escrita precisa ser utilizada com bastante cautela pelo autor do texto. Na semi-oralidade, entretanto, marcas das estratégias da língua oral naturalmente se insinuam no texto escrito, caracterizando-se, muitas vezes, como problemáticas. Seja o exemplo: «Nodia Sexta Feira 29 de maio p. p. desappareceo hum didal de ouro de huma caza, hindo huma negra vender huns ovos, o sunegou, e ha noticia de ella o ter vendido, a pessoa. que o comprou, poderá levar a Tipographia desta folha. que la achara quem lhe restitua o seu valor que lhe custou. O dito didal tem este nome escripto María Ofrasia.» (I, 5 5 )

Inicialmente a narrativa se desenvolve com a seqüéncia de quatro realiza^oes do artigo indefinido, ou seja, a cada frase aparece um elemento novo sem nenhuma rela§áo com algo escrito antes, o que provoca uma expectativa de uma conexao temática que nao se realiza. A seguir aparece uma seqüéncia do mesmo pronome anafórico «o», que pela inexistencia de qualquer outro nome masculino singular, nao provoca nenhum tipo de ambigüidade. Entretanto, a seqüéncia do mesmo pronome cria uma impressáo de algo repetitivo, o que normalmente na língua escrita é susbtituído por outros marcadoes da referencia. Ainda ao final com a introdu5áo de mais um elemento novo - a pessoa que porventura tivesse comprado o dedal referido - se dá inicio a outra seqüéncia, agora marcada pelo pronome «lhe», separada por um «seu» ambiguo. Por fim a apresenta?áo de uma característica do objeto através do demonstrativo «este» sugere a sua apresenta?áo visual, como se se estivesse mostrando neste caso o nome (a ausencia de dois pontos nessa passagem con-

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tribuí para tornar a construyo problemática). É o inusitado dessa cadeia de referencia que transmite a impressáo de algo pouco apropriado á natureza da língua escrita. A no?áo de referencia é, pois, crucial para a constituÍ5áo de textos concepcionalmente escritos e sua realizagao é dessa forma diferente do que se dá na oralidade. Da análise que realizamos, resulta que naquele momento predominavam como anafóricos da referencia o dito (sozinho ou acompanhado), o mesmo (sozinho ou acompanhado), o abaixo assignado, o mencionado, o sobre dito, tal, o próprio, semelhante, individualizadores, na terminología de Coseriu (i955/i979a). Comparativamente com o que acontece hoje, o aparecimento de «este, esse», por exemplo, era significativamente diminuto, levando-nos a hipotetizar que no PB atual esses últimos marcadores substituirán! ou estao substituindo vários daqueles anáforicos do século XIX. 18 Para o que discutimos seja o exemplo: «Furtaram do sitio do abaixo assignado, na Ponte d'Uchoa, um relogio de ouro de vidro, patente inglez de Danniels, Liverpool n° 8705, com urna corrente tambem de ouro. Gratifica-se com 50&000 a quem der noticia que se ache o mesmo relogio. assim como se dá a quantia que alguem tenha dado sobre o mesmo por penhor ou compra, na falta promette-se perseguir com todo o rigor das leis o possuidor do dito relogio, logo que saiba quem é (...).» (III, 144)

Observa-se nesse texto que o referente relogio é identificado pelo anáforico «o mesmo», seguido da palavra repetida (o mesmo relogio); depois repete-se o anafórico com apagamento do referente (o mesmo); a seguir se usa urna variante «o dito»19 (o dito relógio). Por outro lado, em re!a§áo a textos semiorais - em fungao da ambigüidade da situagao - embora o médium seja o gráfico, a sua utilizado está de alguma maneira vinculada á oralidade, resultando daí urna referencia problemática, como no seguinte caso: «Na padaria de Joao Antonio Prior, no Porto das Canoas ha urna pequeña por^aó de louga vidrada da Bahia para Vender, as talhas a prefo de 2000 rs. e tao bem recebe cascos de pipas empagamento, quem quizer comprar procure o dono da mesma no Armazem do Machado, rúa do Vigario n° 14.» (I, 69)

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É comum ñas reda9oes de estudantes brasileiros, sejam secundários ou universitarios, o emprego de «mesmo» como anafórico, ainda presente em alguns tipos de textos, sobretodo de caráter burocrático ou jurídico. Esse emprego soa muitas vezes inapropriado ao texto produzido na escola ou na universidade. Essa impressáo se deve, ao que parece, á restri$áo de seu uso a certos tipos de textos e conseqüentemente ao seu paulatino desaparecimento. A tentativa de produzir um texto adequado á natureza da escrita pode levar a esse tipo de fenómeno, que se caracterizaría como urna espécie de hipercorregáo. Ainda com relafáo aos individualizadores citados acima, Castilho (1993b), referindo-se as gramáticas normativas, enumera os seguintes: tal, mesmo, próprio, semelhante, deixando de fora dito, o dito, já desaparecidos do PB.

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No anuncio se oferecem dois tipos de objetos. O primeiro para vender e o segundo como meio de pagamento. Como a rela§áo entre «lou?a» e «talha» nao foi bem estabelecida, o emprego de «táo bem» leva a urna primeira interpretado do segundo tipo de objeto como também á venda, mas o verbo «recebe» muda essa interpretado. O apagamento do pronome objeto anafórico depois de «comprar» parece ser compensado pelo individualizador «a mesma», que se refere a «por§áo de lou?a». Em resumo, numa primeira leitura, a rela?áo mal estabelecida entre dois elementos acima apontada e o apagamento do pronome exigem mais esforzó do leitor para compreender o significado veiculado pelo texto. No outro caso abaixo, temos: «Illm. Snr. - Sendo hum dos meos deveres vigiar sobre os Quilombos na conformidade da Ley mormente por se ter sumariado Vicente Ferreira pardo, e outros negros pela morte feita no dia 26 do p. p. Agosto deste presente anno no lugar de Aguasinha neste Destricto no preto forro de nome Joao' de Angolla, que foi escravo do Convento de Santa Theresa de Olinda, e pelo depoimento das testemunahs forao' sugeitos a prisao' e livramento. Depois q'entrarao as tropas para baterem ñas mattas evadirao' se este Vicente e o negro Bento escravo de Vicente Caetano, e mais dois que ainda os nao' pude pegar, e_aquilombarao' se ñas capoeiras deste Destricto, e tendo já officiado ao Commandante da Forsa que existe no catucá, vi-me ñas circunstancias de por emboscadas até os pegar, os quaes os remetto a disposifao de V. S. na conformidade da Ley a fim de conservar a paz, e o socego neste Destricto, pois que nao' ignoro os meios de dar as providecias urna vez