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Portuguese Pages [109] Year 2008
· ílLOSOílA DA MODA E: OUTROS ESCRITOS
G[ORG SIMM[L BIBLIOTECA
Goorg Simmel (1858-1918), autor pouco contemplado na edição em llngua portuguesa é, agora, cada vez mais reconhecido internacionalmente no seu valor. Auniversidade alemã condenou-o de certo modo à condição de marginal e nunca ointegrou nas suas estruturas institucionais nem reconheceu aexcepcional criatividade de que ele deu provas como autor e como ínclito professor. Asua existência decorreu no seio de uma 'constelação' de grandes espíritos: Max e Alfred Weber, W. Dilthey, os poetas Stephan George e Rilke, o filósofo Husserl, entre ·outros, e teve por discípulos Ernst Cassirer, Ernst Bloch, Georg Lukócs e Siegfried Kra kouer. Asuo obra foi eainda é para muitos inspiradora. Filosofia da Moda é um dos seus ensaios mais luminosos e mais bem conseguidos; nele avalia e interpreta este fenómeno cultural à luz das categorias básicas da sua visão filosófica.
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ílLOSOFIA DA MODA E OUTROS E:SCRITOS
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Introdução . . . . .
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Origem dos textos
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Filosofia da moda . Psicologia do adorno Psicologia da coqueteria
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Cronologia da vida de Georg Simmel .. .
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Bibliogafia . . . . . . . . . . . . . . .
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FILOSOFIA DA MODA E: OUTROS E:SCRITOS
Autor: George Simmel Tradução, introdução e notas: Artur Morão Grafismo: Cristina Leal Edições Texto & Grafia, Lda. Avenida Óscar Monteiro Torres, n. 0 55, 2. 0 Esq. l 000-217 Lisboa Telefone: 21 797 70 66 Fax: 21 797 8 l 30 E-mail: [email protected] Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda. l.ª edição
Lisboa, Março de 2008 ISBN 978-989-95689-2-I Depósito legal n.0 271898/08 Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, sem a autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor será passível de procedimento judicial.
E\IBLIC>TEC: A
UNIVERSAL
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E em torno da ideia de conhecimento articulado com as necessidades de aquisição de uma cultura geral consistente que se projecta a colecção "Biblioteca Universal". Tendo como base de trabalho uma selecção criteriosa de autore~ e temas - dos quais se destacarão as áreas das ciências sociais e humanas -, pretende-se que a colecção esteja aberta a todos os ramos do saber, sejam de natureza técnica, científica ou artística. O objectivo último é que os volumes que a integram representem um efectivo contributo para a restauração de um ambiente cultural e intelectual à altura das aspirações de uma sociedade moderna, aberta e esclarecida, que o promova e alimente.
INTRODUÇAO
Amoda como sintoma antropológico em Georq Simmel erve a moda a G. Simmel para concertar e jungir núcleos fundamentais e, poderia dizer-se, quase obsessivos do seu pensamento. Primeiro, o tema da sociedade como campo de tensões e interacções, de que a moda em si mesma, na sua expressão, nas suas variações, nos seus ritmos, nos seus mecanismos, na sua ambiguidade, no seu significado, no seu lugar específico dentro da realidade social, é uma manifestação privilegiada, porque sempre presente como factor de socialização e de individualização. O'epois, a antropologia em que a moda assenta, da qual vive, porque expressa e encarna a natureza dualista e tensiva do ser humano que, mergulhado no todo social, dele procura libertar-se, isolar-se, sobressair, sem nunca todavia o poder abandonar. Por fim, a crítica da modernidade, época assinalada pela progressiva e dramática libertação do indivíduo de todas as dependências exclusivas e pessoais, que caracterizavam os tempos pré-modernos. A moda expressa, da forma mais visível e concreta, a realidade essencialmente dialéctica e dinâmica da sociedade, feita de interconexões e liames, mas também de inevitáveis conflitos entre os indivíduos, entre as múltiplas e diferentes formações sociais, entre os indivíduos e os grupos ou as classes. Por isso, nada é mais estranho a Simmel do que a visão da sociedade como um todo orgânico, ao jeito de A. Comte e de H. Spencer, que realçaram a essencial continuidade entre natureza e sociedade, sob o pressuposto de uma
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analogia básica entre o processo social e o processo biológico; decerto porque estavam seduzidos pelo esplendor da clássica e tradicional metáfora da "grande cadeia de ser", que se estendia desde o mais simples fenómeno natural ao mais diferenciado organismo social; terá sido essa também a razão por que eles apresentaram a proposta de uma metodologia comum às ciências da natureza e ào estudo dos homens na sociedade, aliás, de harmonia com o rumo cada vez mais sensível e impositivo de um positivismo triunfante e optimista, casado com uma esperança ingénua no poder regenerador do progresso e da ciência. Mas não se depreenda daí que Simmel tenha optado, sem mais, por uma ~ceitação incondicional da tradição alemã das ciências do espírito (Geisteswissenschajten), acentuada e expressa teoricamente no seu tempo por Wilhelm Dilthey, W. Windelband e H. Rickert, e presente igualmente no seu amigo Max Weber e em muitos outros. Para estes, o método adequado para indagar a cultura e os fenómenos humanos, reino da liberdade na linha do idealismo germânico, era ( segundo a terminologia adaptada) o 'idiográfico', centrado em obras singulares, nos indivíduos e em acontecimentos únicos e irrepetíveis, e não o 'nomotético', formulador de leis gerais e uniformes para todos os casos possíveis, como acontecia no campo das ciências naturais (Naturwissenschaj-ten), afeito à "explicação" (Erklaren) mediante uma nuvem ou rede de hipóteses conjugada ainda, se possível, com uma abordagem matemática, mas estranho ao giro da "compreensão" (Vérstehen). Este último reclamava antes a empatia e a solidariedade identificativa com o autor nas suas obras ou com os seres humanos no drama da sua existência histórica.
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INTRODuçio
O nosso filósofo e sociólogo opunha-se tanto às escolas organicistas como às idealistas; a sociedade não era, para ele, um organismo coeso e unitário, de vibração homogénea ou de intencionalidades e finalidades comuns e harmonicamente compartilhadas, nem um simples rótulo para o entrançado de opções e experiências subjectivas de vária ordem. Constituía antes um emaranhado de múltiplas e díspares relações entre indivíduos, numa incessante interacção de uns com outros, inseridos, por seu turno, em estruturas superindividuais mais amplas - o Estado, o clã, a cidade, a família ou o sindicato - que, afinal, não passam de cristalizações dessa interacção, embora possam obter uma real autonomia e contrapor-se ao indivíduo como poderes estranhos e externos, simultaneamente tutelares e opressores~ Desconfiando, pois, do esforço de conectar to~os os fenómenos numa única visão teórica - o que é impossível, dada a disparidade multiforme dos anelos, propósitos e desejos que configuram e agitam a vida dos homens -, Simmel reconhece e confessa que não é possível nem aconselhável semelhante ciência social .totalizante ou holística. Tal não obsta a que o comportamento humano, enquanto comportamento de indivíduos, se possa elucidar em termos da sua filiação em grupos e associações ou mediante categorias típicas que desenham, de modo plausível, a trama das interacções que entre eles nascem e fluem. A atenção simmeliana centra-se, por isso, na construção de uma galeria de tipos sociais - "o estrangeiro", "o mediador", "o pobre", " o aventureiro . "" '" ' da , o renega d" o e, c1aro esta, o man1aco 1noda" - que, nos seus papéis, se devem complementar com a análise das formas sociais, de que sempre são parte
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e elemento, dentro e fora das quais simultaneamente se encontram, mesmo quando a elas se possam opor. De facto, o seu comportamento e as suas atitudes ou posturas, por vezes anómalas, ambivalentes, cumprem a função de "válvulas de segurança", que lhes permitem baixar o vapor e suportar o peso rígido das relações sociais. Por outro lado, eles só se entendem dentro da realidade do conflito social, que supõe a acção interdependente e se baseia mais na reciprocidade do que na imposição unilateral. Vislumbra-se assim a concepção antropológica que sustém o edifício sociológico do nosso autor. Próximo da filosofia da vida, ele assinala nesta polaridades determinantes e omnipresentes. Caracteriza a vida um dualismo entramado de oposições entre particular e universal, igualdade e diferenciação, imitação e distinção, sujeição e auto-afirmação, coesão e separação. Semelhante dualismo assedia já a fisiologia:
"O primeiro indício é brindado pelo fundamento fisiológico da nossa natureza: ela precisa tanto do movimento como do repouso, da produtividade como da receptividade. Retomando isto para a vida do espírito, seremos guiados, por um lado, pela tendência para o geral e, por outro, pela necessidade de captar o individual; aquela garante o repouso ao nosso espírito, a particularização permite-lhe mover-se de caso para caso. E não é diferente na vida do sentimento: procuramos tanto a dedicação serena aos homens e às coisas como a auto-afirmação enérgica ,, perante am bos .
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INTRODUÇÃO
A vida é, pois, a oscilação entre estes dois pólos, entre a unidade do todo e o ser-para-si de cada elemento do mundo, entre hereditariedade e variabilidade, entre a ordem social e o destino individual. Aqui entronca naturalmente a moda, concretização da tendência para a imitação, mas - de modo paradoxal - daquilo que quase sempre é impessoal e quase nunca nasce da criatividade individual, antes não passa de uma reacção reflexa perante a angústia de permanecer sozinho no seu agir e a dor da responsabilidade. "Ela é imitação de um modelo dado e satisfaz assim a necessidade de apoio social, conduz o indivíduo ao trilho que todos percorrem, fornece um universal, que faz do comportamento de cada indivíduo um simples exemplo. E satisfaz igualmente a necessidade de distinção, a tendência para a diferenciação, para mudar e se separar. E este último aspecto consegue-o, por um lado, pela mudança dos conteúdos, que marca individualmente a moda de hoje em face da de ontem e da de amanhã, consegue-o ainda de modo mais enérgico, já que as modas são sempre modas de classe, porque as modas da classe superior se distinguem das da inferior e são abandonadas no instante em que esta última delas se começa a apropriar. Por isso, a moda nada mais é do que uma forma particular entre muitas formas de vida, graças à qual a tendência para a igualização social se une à tendência para a diferença e a diversidade individuais num . . ,, . " agir un1tano. E insinua-se assim o tema da modernidade, de que Simmel é igualmente um dos grandes intérpretes ou
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FILOSOFIA DA MODA
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hermeneutas, embora sob um ângulo parcialmente trá" gico, e ao qual dedicou numerosos e cintilantes ensaios. E verdade que a idade moderna compõe um complexíssimo novelo cultural passível, como foi e assim continuará a ser, das mais contrastadas interpretações; perante ela e a nossa actualidade social e histórica, o nosso filósofo hesita, pois, entre o progressivismo liberal e o pessimismo cultural. Sublinha com força a libertação cada vez ampla do indivíduo dos vínculos exclusivos e das múltiplas dependências no seio ~os anteriores círculos sociais, que eram poucos e relativamente restritos. De facto, nas sociedades pré-modernas, as associações, como por exemplo as guildas ou corporações medievais, não tinham apenas uma função específica, em vista um propósito claramente articulado; abarcava,m a vida inteira do indivíduo, num plexo de subordinações e lealdades; exigiam a personalidade inteira e um forte sentido identitário, expresso por vezes em sinais . . " . externos mut to v1s1ve1s. A tribo com os seus clãs, as linhagens ou outros grupos exigiam a participação directa, e os círculos sociais não admitiam entre si profundas intersecções, cruzamentos ou sobreposições. Tudo muda com os tempos modernos: multiplicam-se progressivamente as esferas sociais, um indivíduo pode ser membro de muitos círculos bem definidos que se concatenam e co-implicam à maneira de círculos concêntricos, nenhum destes controla já a sua personalidade total. Em vez da simples inclusão num âmbito singular que decretava e determinava a existência pessoal e demarcava o horizonte do seu ~gir ou pensar, o indivíduo descobre-se cada vez mais na encruzilhada ou
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INTRODUÇÃO
na intersecção de muitos círculos com fidelidades diversas e, por vezes, antagónicas. Cessa o nexo entre lugar, parentesco e filiação religiosa que, por seu türno, se torna cada vez mais distinta de outras preocupações e cresce em individualização. Desponta, por conseguinte, uma maior consciência ou um sentimento mais vivo de libertação. O individualismo nasce precisamente desta compenetração de círculos sociais, cujos imperativos e exigências se fazem sentir e se mesclam na consciência do indivíduo. Diminui também a pressão ou a dominação dos outros (por ex. do patrão sobre o trabalhador) e torna-se inevitável a transição da homogeneidade para a heterogeneidade, da uniformidade para a individualização, da fidelidade à tradição para a participação num mundo cheio de novas e inéditas possibilidades .' Do estatuto desliza-se para o contrato, da solidariedade mecânica do grupo restrito e fechado para a solidariedade orgânica entre associações de fins e valores divergentes que obrigam à escolha e à contaminação, da rigidez do costume para um cenário de inúmeros empenhamentos e acordos que fomentam a emergência da unicidade e da autonomia individual. Tudo isto, porém, tem um preço. O indivíduo vê-se confrontado com uma multiplicidade de objectos culturais, desde a religião à moralidade, dos costumes à ciência, da arte aos sistemas económicos, e no seio de um mundo cada vez mais marcado pelo pluralismo, pela diferença, pelo contraste entre estilos de vida. Interioriza, sem dúvida, tais objectos, mas estes surgem cada vez mais aos seus olhos como "alteridades", como poderes extrínsecos que também o ameaçam e podem alienar; não consegue subvertê-los,
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porque a sua riqueza humana singular se conquista justamente através da absorção dos valores culturais exteriores. Além disso, o homem moderno sente-se rodeado por um mundo de objectos que constrangem, acirram e controlam as suas necessidades e os seus desejos. Efeito de semelhante situação será, então, transformar-se ele próprio em peregrino e vagabundo, em jlanêur, sempre in itinere, a caminho ou em debandada, sem fins ou objectivos seguros. A sua vida corre o perigo de se esgotar na paixão do movimento, numa trajectória indefinida, própria de alguém que aprecia u os caminhos sem metas e as metas sem caminhos", como Simmel refere no seu belo ensaio sobre Rodin. Como vemos, embora ele alinhe pela mundividência da concepção liberal progressiva, típica dos pensadores franceses e ingleses que, com a sua fé na perfectibilidade humana, o influenciaram, ressoam igualmente no seu veredicto acerca da cultura moderna sombrios acordes derivados da visão metafísica de Schiller ou de Nietzsche. Paira assim, insolúvel, sobre o seu horizonte mental e filosófico uma contradição, que o leva a anunciar novas prisões em que os indivíduos permanecem enredados e como que congelados nas suas funções sociais. E ressalta igualmente o significado da moda: como forma de vida, como marca das distinções de classe, como jogo da incessante imitação de uma classe por outra, como meio da inserção dos indivíduos num grupo ou numa corrente, traduz justamente essa efervescência sem rumo, porque é indiferente aos conteúdos, inclusive da beleza ou do conveniente; é simples variação, mero arreio, desprovida de motivação, entregue apenas à vertigem do movimento
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INTRODUÇltO
e do momento, da novidade injustificada, porque vive do capricho e da extravagância. Encarnação da nervosa vida moderna, vive do transitório, do fugitivo, do contingente; persiste destruindo, mas é simultaneamente recuperação lúdica de formas do passado e invenção de gestos futuros também ·condenados à evanescência. "A moda, com o seu jogo entre a tendência para uma expansão universal e a aniquilação do seu próprio sentido que comporta justamente essa expansão, possui o atractivo singular do limite, o atractivo simultâneo do começo e do fim, da novidade e, ao mesmo tempo, da caducidade". Porque movimento autónomo, com poder objectivo, alimenta-se das suas próprias forças e, por isso, altera-se, metamorfoseia-se e recorre a novos disfarces fora da intervenção dos indivíduos, sobre os quais plana numa sobreindividualidade indiferente, que constitui precisamente a sua essência. Surge assim como um eterno retorno, sósia da aventura, ávida de experiências e de sensações, mas fora do contexto da vida, a ela estranha e dela distraída. Nesta indiferença ontológica consiste a sua 'tragédia': votada à caducidade, é irmã da morte, como vislumbrou o grande poeta italiano Giacomo Leopardi ("Dialogo della moda e della morte", Operette morali), e o seu reino é o infinito ilimitado, o ápeiron, a ausência de medida ou de modus) em cuja circulação e vórtice imergem, despontam e se aniquilam os perfis, os conteúdos, os rostos. Surge, por isso, não só como emblema da modernidade inquieta e impaciente, mas também como sintoma da contradição profunda e de muitos níveis que caracteriza e define a estrutura dos seres humanos.
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A presente tradução do tratado Phílosophíe der Mode pretende ser fiel ao estilo do autor e baseia-se na sua edição em livro de 190 5, que Simmel republicou mais tarde, em I 9 I 9, sob o título Díe Mode, com alterações bastante reduzidas e integrado no conjunto de estudos editado sob a designação de Philosophísche Kultur, Leipzig, Alfred Kroner Verlag, I 9 I 9; este ensaio, um dos mais notáveis em toda a produção simmeliana, constitui, por sua vez, uma ampliação ou remodelação muito pronunciada de um artigo sociológico mais antigo, intitulado Zur Psychologie der Mode de I 895. As rubricas contidas no parêntesis recto, no início de alguns parágrafos, não aparecem no original alemão; destinam-se tão-só a assinalar pontos nevrálgicos da reflexão de Simmel, para orientação do leitor nos veios do seu complicado discurso. Quem estiver interessado em conhecer todas as vertentes da sua ampla produção e do seu pensamento dispõe agora, se dominar a língua alemão, da totalidade das suas obras no electro-sítio do Instituto Sociológico da Universidade de Zurique: http://socio.ch/sím/. Propõe-se ainda uma cronologia da vida de G. Simmel e, no fim do volume, a lista das suas obras e um conjunto de referências bibliográficas auxiliares.
Artur Morão
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ORIG[M DOS T[XTOS
íilosofia da moda ln: «Reihe Moderne Zeitfragen», dir. de Hans Landberg, Nº l l, Berlim, Pan-Verlag (1905), 41 pgs.
Psicologia do adorno ln: Der Morgen. Wochenschrift für deutsche Kultur, fundado e publicado por Werner Sombart juntamente com Richard Strauís, Georg Brandes e Richard Muther, com o colaboração de Hugo von Hofmannstahl, 2, Nº l 5 de 10 de Abril l 908, PP· 454-459, Berlim.
Psicologia da coqueteria ln: Der Tag. Moderne íllustríerte Zeítung, Nº 344, Morgenblatt l l Maio l 909, Illustrierter Teil, Nº l 09, p. 1-3 e Nº 347, Morgenblatt 12 Maio 1909, Illustrierter Teil, Nº l l O, p. 1-3 (Berlim).
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FILOSOFIA DA MODA
[A vida como dualismo] modo como nos é dado interpretar as manifestações da vida permite-nos, em cada ponto da existência, sentir uma multiplicidade de forças; e de tal maneira que cada uma delas tenta ir além da manifestação real, limita a sua infinidade em relação às outras e transforma-a em simples tensão e anelo. O homem é, de facto, desde o início, um ser dualista; e isto de nenhum modo impede a homogeneidade do seu fazer, antes ele ostenta justamente, como resultado da sua multiplicidade de elementos, uma poderosa unidade. Uma manifestação a que faltasse semelhante ramificação de forças radicais seria para nós pobre e vazia. Só porque cada energia íntima impele para lá da medida da sua exteriorização visível é que a vida ganha aquela riqueza de possibilidades inexauríveis, que completa a sua realidade fragmentária; só assim as suas manifestações deixam pressentir forças mais profundas, tensões mais insolúveis, luta e paz de tipo mais vasto do que deixa adivinhar o seu dado imediato. E~ te dualismo não se pode descrever directamen te, mas apenàs sentir nas oposições singulares, que são típicas da nossa existência, como sua forma derradeira, configuradora. O primeiro indício é fornecido pelo fundamento fisiológico da nossa natureza: ela precisa do movimento e do repouso, da produtividade e da receptividade. Também na vida do espírito somos guiados, por um lado, pela tendência para o geral e, por outro, pela necessidade de captar
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o individual; aquela garante o repouso ao nosso espírito, a particularização permite-lhe mover-se de caso para caso. E não é diferente na vida do sentimento: procuramos tanto a dedicação serena aos homens e às coisas como a auto-afirmação enérgica perante ambos. A história inteira da sociedade pode desenrolar-se na luta, no compromisso, nas conciliações lentamente adquiridas e depressa perdidas, que surgem entre a fusão com o nosso grupo social e o esforço individual por dela sair. Embora a oscilação da nossa alma entre estes dois pólos se possa materializar no antagonismo da doutrina da unidade do todo e do dogma da incomparabilidade, do ser-para-si de cada elemento do mundo, embora eles se digladiem praticamente como os opostos partidários do socialismo e do individualismo, é sempre uma só e a mesma forma fundamental da dualidade que, por fim, se revela na imagem biológica como o antagonismo entre hereditariedade e variabilidade - a primeira como portadora do geral, da unidade, da igualdade consolidada de formas e conteúdos da vida, a outra como a mobilidade, a multiplicidade de elementos particulares, o desdobramento inquieto de um conteúdo de vida individual que gera outro. Cada essencial forma de vida na história do nosso género representa, na sua área, uma forma particular de unir o interesse pela duração, pela unidade e pela igualdade com o interesse pela mudança, pelo particular, pelo único.
[Moda e imitaçãol No interior da materialização social destes opostos, uma das vertentes dos mesmos é sustentada sobretudo pela
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tendência psicológica para a imita{ão. A imitação poderia designar-se como uma transmissão psicológica, como a transição da vida do grupo para a vida individual. O seu fascínio consiste, antes de mais, em que ela nos possibilita um fazer apropriado e significativo mesmo onde, no plano, nada de pessoal e criativo emerge. Ela poderia denominarse como o filho da reflexão e da irreflexão. Proporciona ao indivíduo o sossego de não permanecer sozinho no seu agir, mas apoia-se nos exercícios habituais da mesma actividade como num firme alicerce, que alivia o acto presente da dificuldade de se suster a si próprio. Onde imitamos, deslocamos não só a exigência da energia produtiva de nós para o outro, mas também ao mesmo tempo a responsabilidade por este agir: ela liberta assim o indivíduo da dor da escolha e deixa-o, sem mais, aparecer como um produto do grupo, como um receptáculo de conteúdos sociais. O impulso imitativo enquanto princípio caracteriza um estádio evolutivo, no qual está vivo o desejo de actividade pessoal conveniente, mas falta ainda a capacidade de a esta fornecer conteúdos individuais. O progresso para lá deste estádio consiste em que, fora do dado, do passado, do transmitido, o futuro determina o_ pensamento, a acção e o sentimento: o homem teleológico é o pólo oposto do imitador. Assim a imitação em todas as suas manifestações, para as quais ela é_um factor configurador, corresponde a uma das orientações básicas do nosso ser, àquela que se satisfaz com a fusão do indivíduo na generalidade, que acentua o permanente na mudança. Mas onde a mudança se busca, pelo contrário, no permanente, a diferenciação individual, o separar-se
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da generalidade, a imitação é o princípio negador e inibidor. E porque o anseio de se arrimar ao dado, de fazer o igual e de ser como os outros é o inimigo irreconciliável da ânsia que quer avançar para novas e específicas formas de vida, a vida social surgirá então como o lugar de batalha, onde cada palmo é disputado por ambos, e as instituições sociais como conciliações - nunca duradouras - em que o seu antagonismo persistente toma a forma externa de uma cooperação. As condições vitais da moda como uma manifestação constante na história da nossa espécie podem assim descrever-se. Ela é imitação de um modelo dado e satisfaz assim a necessidade de apoio social, conduz o indivíduo ao trilho que todos percorrem, fornece um universal, que faz do comportamento de cada indivíduo um simples exemplo. E satisfaz igualmente a necessidade de distinção, a tendência para a diferenciação, para mudar e se separar. E este último aspecto consegue-o, por um lado, pela mudança dos conteúdos, que marca individualmente a moda de hoje em face da de ontem e da de amanhã, consegue-o ainda de modo mais enérgico, já que as modas são sempre modas de classe, porque as modas da classe superior se distinguem das da inferior e são abandonadas no instante em que esta última delas se começa a apropriar. Por isso, a moda nada mais é do que uma forma particular entre muitas formas de vida, graças à qual a tendência para a igualização social se une à tendência para a diferença e a diversidade individuais num agir unitário. Se indagássemos a história das modas, que até agora só foi pesquisada na evolução dos seus conteúdos, segundo o seu significado para a forma do processo
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social, então ela seria a história das tentativas de adaptar, cada vez mais perfeitamente, a satisfação destas duas tendências contrárias ao estado da respectiva cultura individual e social. Nesta natureza básica da moda ordenam-se os traços psicológicos individuais que nela observamos. Ela é, como eu dizia, um produto da divisão de classes e comporta-se como muitas outras configurações, sobretudo como a honra, cuja dupla função é formar um círculo social fechado e, ao mesmo tempo, isolá-lo dos outros. Assim como a moldura de um quadro dá à obra de arte o carácter de um todo unitário, em si concentrado, de um mundo para si e, ao mesmo tempo, actuando para o exterior, corta todas as relações com o ambiente espacial, assim como a energia unitária de tais formas não é para nós expressável a não ser enquanto a decompomos na dupla acção para dentro e para fora - assin1 também a honra extrai o seu carácter, e sobretudo os seus direitos morais - direitos que, com muita frequência, são percebidos como injustiça pelo ponto de vista dos que estão fora da classe - do facto de o indivíduo na sua honra representar e preservar simultaneamente a honra do seu círculo social, do seu estado. A moda significa, pois, por um lado, a anexação do igualita~iamente posto, a unidade de um círculo por ela caracterizado, e assim o fechamento deste grupo perante os que se encontram mais abaix_o, a caracterização destes como não pertencendo àquele. Unir e diferenciar são as duas funções básicas que aqui se unem de modo inseparável, das quais uma, embora constitua ou porque constitui a oposição lógica à outra, é a condição da sua realização.
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[Arbitrariedade da moda] Que a moda seja, pois, um mero produto das necessidades sociais talvez não se demonstre de modo mais forte do que pelo facto de, numa relação teleológica objectiva, , . . . estet1ca ou outra, 1numeras vezes se nao encontrar o m1n1mo fundamento para as suas configurações. Embora em geral o nosso vestuário, por ex., se ajuste objectivamente às nossas necessidades, não impera qualquer vestígio de conveniência nas decisões com que a moda as forma: se hão-de usar-se saias compridas ou curtas, penteados pontiagudos ou largos, gravatas coloridas ou pretas. Coisas tão odiosas e adversas são, por vezes, modernas, como se a moda quisesse mostrar o seu poder justamente porque tomamos sobre nós, por causa dela, o mais horroroso; a casualidade com que ela, umas vezes, ordena o conveniente, outras o abstruso, e uma terceira vez o totalmente indiferente do ponto vista objectivo e estético, mostra precisamente a sua plena indiferença em face das normas objectivas da vida, com que justamente se refere a outras motivações, isto é, as formalmente sociais, como as únicas que restam. Pode ela decerto, de vez em quando, alojar conteúdos objectivamente fundados, mas, como moda, actua quando a independência perante qualquer outra motivação se faz sentir de modo positivo, da mesma forma que o nosso agir por dever só se impõe, como totalmente moral, quando o seu conteúdo externo e o seu fim a tal não nos determinam, mas apenas o facto de ele ser justamente dever. Por isso, o domínio da moda é sobretudo intolerável nos recintos em que apenas devem imperar decisões objectivas: religiosidade, interesses científicos, e até socialismo e /
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individualismo, tornaram-se decerto coisas de moda; mas os motivos por que se deveriam acatar estes conteúdos vitais estão em absoluta contradição com a plena insubstancialidade nas mudanças da moda.
[Moda e classes] Quando as formas sociais, o vestuário, os juízos estéticos, o grande estilo em que o homem se expressa, se concebem em contínua remodelação através da moda, então esta, ou seja, a moda recente, compete em tudo apenas às camadas superiores. Logo que as classes inferiores começam a apropriar-se da moda, ultrapassando assim a fronteira institu,í da pelas superiores e rompendo, destas, a homogeneidade da co-pertença assim simbolizada, as classes superiores desviam-se desta moda e viram-se para outra, graças à qual de novo se diferenciam das grandes massas, e na qual o jogo mais uma vez se inicia. Pois, naturalmente, as classes inferiores olham para cima e procuram subir e conseguem isto sobretudo nas áreas que estão sujeitas à moda, porque estas são, de longe, as mais acessíveis à imitação externa. O mesmo processo se desenrola - nem sempre de modo tão evidente como, porventura, entre as senhoras e as criadas - entre as diversas camadas das classes mais altas. Pode observar~se de muitas formas que quanto mais se aproxi~ mam os círculos tanto mais desatinada é a caça da imitação pelos de baixo e a fuga para a novidade pelos de cima; a actual economia financeira acelerará e tornará assaz visível este processo, porque os objectos da moda, tais como as exterioridades da vida, são muito particularmente acessíveis à simples posse do dinheiro, e neles se estabelece, por
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OUTROS E:sCRITOS
isso, de modo mais fácil a paridade com o estrato superior do que em todas as áreas .que exigem uma prova individual, que não se pode comprar com dinheiro. Em que medida este momento da segregação - a par do momento imitativo - . constitui a essência da moda mostram-no as suas manifestações onde a estrutura social não possui nenhumas camadas sobrepostas; então, é dessas camadas postas lado a lado que ela, muitas vezes, se apodera. Conta-se de alguns povos primitivos que grupos muito vizinhos e vivendo em condições exactamente idênticas instituem, por vezes, modas fortemente discriminantes, pelas quais cada grupo assinala tanto o isolamento para dentro como a diferença para fora.
[A moda e o estrangeiro] Por outro lado, a moda é importada do exterior com particular predilecção e é muito mais apreciada dentro de um círculo, se ela não tiver surgido no seu seio; já o profeta Sofonias fala, indignado, da ostentação com a indumentária estrangeira. Na realidade, a origem exótica da moda parece favorecer com especial intensidade a fusão dos círculos em que ela se aplica; justamente por vir de fora, suscita aquela forma particular e significativa de socialização, que se inicia através da comum referência a um ponto situado no exterior. Por vezes, é como se aparentemente os elementos sociais, tal como os eixos dos olhos, convergissem melhor para um ponto que não se encontra demasiado perto. Assim, entre os povos primitivos, o dinheiro, portanto o valor económico sem mais, o objecto do interesse geral mais extremo, consiste muitas vezes em sinais que se
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importam de fora; por isso, em várias regiões ( nas ilhas Salomão, em lho no Níger) existe uma espécie de indústria para elaborar, a partir de conchas ou de outra coisa, sinais pecuniários que circulam como dinheiro, não no lugar de fabrico, mas nas regiões vizinhas, para onde são exportados - tal como as modas são produzidas em Paris com o simples fito de se tornarem modas em qualquer outro lugar. Também em Paris a moda ostenta a mais ampla tensão e reconciliação dos seus elementos dualistas. O individualismo, a adaptação ao assentar-bem pessoal, é muito mais profundo do que na Alemanha; mas persiste aí com força um certo enquadramento mais amplo do estilo geral, da moda vigente, de modo que a aparência individual nunca sai do universal, antes dele se destaca. Quando falta mesmo só uma das duas tendências sociais que se devem reunir para a formação da moda - a necessidade de união, por um lado, e a necessidade de separação, por outro - ela não chegará a constituir-se, acabará o seu reino. Por isso, as classes inferiores têm muito poucas e raras modas específicas; e as modas dos povos primitivos são, por isso, também muito mais estáveis do que as nossas. Falta nas últimas, em virtude da sua estrutura social, o perigo da mistura e da confusão que induz as classes dos povos civilizados a diferenciar-se pela indumentária, pela conduta, pelo gosto, etc.
[O vestuário novo] ,,
E precisamente através destas diferenciações _que os sectores de grupos interessados na separação se mantêm unidos: o modo de andar, . a cadência, o ritmo dos gestos
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são, sem dúvida, essencialmente determinados pelo vestuário; homens vestidos de modo semelhante comportam-se de modo relativamente semelhante. Para a vida moderna, com a sua cisão individualista, isto tem um valor de todo especial. E, entre os povos primitivos, a moda será também menor, ou seja, mais estável, porque a necessidade da novidade das impressões e das formas de vida, abstraindo inteiramente do seu efeito social, é neles muito menor. A mudança da moda mostra a medida do embotamento da sensibilidade; quanto mais nervosa for uma época, tanto mais depressa se alteram as suas modas, porque a necessidade de estímulos diferenciadores, um dos sustentáculos essenciais de toda a moda, caminha de braço dado com o esgotamento das energias nervosas. Esta é já por si uma razão por que as classes superiores constituem o lugar genuíno da moda. Em relação aos motivos puramente sociais que a originam, dois povos primitivos muito chegados entre si fornecem exemplos muito comprovativos para o seu objectivo de inclusão e de exclusão. Os cafres possuem uma hierarquia social ricamente articulada e, no meio deles, encontra-se uma mudança bastante rápida da moda, embora o vestuário e o adorno se achem sujeitos a certas limitações legais; em contrapartida, os bosquímanos, nos quais não teve em geral lugar uma formação de classes, não elaboraram nenhuma moda, ou seja, não há neles nenhum interesse fixo pela mudança de vestuário e ornamento. Estas razões negativas impediram, de vez em quando, justamente nos pináculos da cultura, mas agora com plena consciência, a formação da moda. Em Florença, por volta do ·ano I 390,
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não havia nenhuma moda dominante do vestuário masculino, porque cada um procurava comportar-se de modo particular. Falta aqui, pois, um dos factores, a necessidade da conjunção, sem o qual não se pode chegar a moda alguma. Por outro lado, os nobili venezianos, assim se conta, não dispunham de nenhuma moda, porque todos tinham, em virtude de uma lei, de se vestir de preto, para não tornar demasiado visível às massas inferiores a pequenez do seu número. Também aqui não existia nenhuma moda, porque para ela faltava outro elemento constitutivo, porque se deveria evitar intencionalmente a separação em relação aos que se encontravam mais abaixo.
[A tragédia da moda]
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A essência da moda consiste em que só uma parte do grupo a pratica, enquanto a totalidade se encontra a caminho dela. Uma vez plenamente difundida, isto é, logo que aquilo que, no início, só alguns faziam é exercido realmente por todos, sem excepção, como aconteceu em certos elementos do vestuário e das formas de trato, já não se considera como moda. Cada expansão sua impele-a para o seu fim, porque ela ah-roga assim a possibilidade da diferença. Através deste jogo entre a tendência para a difusão geral e ·a aniquilação do seu sentido, que suscita justamente esta expansão, ela tem o peculiar fascínio das fronteiras, o fascínio do simultâneo começo e fim, o encanto da novidade e, ao mesmo tempo, o da efemeridade. A sua questão não é ser ou não ser; ela é ao mesmo tempo ser e não ser, encontra-se sempre na divisão de águas entre passado e futuro e assim, enquanto persiste no seu clímax,
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dá-nos um sentimento muito forte de presença, como só poucos fenómenos o conseguem. Se no momentâneo auge de consciência social no ponto que ela caracteriza reside já o seu gérmen de morte, o seu destino para a dissolução, ela não desclassifica totalmente este passado, mas acrescenta aos seus encantos outro novo. Pelo menos um objecto só sofre uma degradação em virtude da sua caracterização como "coisa de moda" quando, por outras razões factuais, inspira horror e o desejo de o desprezar; a moda tornase então, por isso, conceito de valor. Além disso, qualquer outra c9isa igualmente nova e difundida com celeridade na práxis da vida não se caracterizará como moda, se se acreditar na sua persistência e na sua justificação substantiva; só assim a designará quem estiver convencido de que a sua evanescência será tão rápida como o seu aparecimento. Por isso, entre as razões por que a moda domina tão fortemente a consciência encontra-se também a de que as convicções grandes, estáveis e indiscutíveis, perderam, a pouco e pouco, a sua força. Os elementos fugidios e mutáveis da vida ganham assim maior espaço. O corte com o passado, que a humanidade civilizada, desde há mais de cem anos, se esforça incansavelmente por levar a cabo, aviva cada vez mais a consciência para actualidade. Esta ênfase do presente é, claro está, ao mesmo tempo a acentuação da mudança, e na medida em que uma classe é portadora da tendência cultural indicada, nessa mesma medida virar-se-á para a moda em todos os domínios, e não apenas no vestuário; de facto, é quase um sinal do poder intenso da modà que ela, em vez dos seus domínios originários, das exterioridades do vesttr-se, arraste cada vez mús para a sua forma mutável
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também o gosto, as convicções teóricas e até os fundamentos morais da vida.
[Moda e inveja] Ora, em virtude de a moda, enquanto cal, não poder justamente ter uma difusão geral, germina no indivíduo a satisfação de que ela representa nele sempre algo de particular e estranho, embora ele se sinta, ao mesmo tempo, interiormente sustentado por uma totalidade, que aspira ao semelhante, e não, como noutras satisfações sociais, por uma totalidade que realiza o semelhante. Por isso, a disposição anímica, que o fenómeno da moda compraz, é uma mescla visivelmente saborosa de aprovação e de inveja. Inveja-se o homem da moda como indivíduo, aprova-se como ser genérico. Mas também essa inveja assume aqui uma coloração particular. Existe um matiz da inveja, que inclui uma espécie de partilha ideal nos objectos cobiçados. O comportamento dos proletários, quando conseguem lançar um olhar para as festas dos ricos, é aqui um exemplo instrutivo. Ao invejar-se um objecto ou um homem, já não se está dele absolutamente excluído, obteve-se uma qualquer relação com ele, entre os dois existe agora o mesmo conteúdo anímico, embora em categorias e formas de sentimento de todo diversas. Este suave apoderar-se do bem invejável - que é também a felicidade do amor infeliz contém uma espécie de antídoto que, por vezes, impede a pior degeneração do sentimento de inveja. E os conteúdos da moda oferecem-se justamente porque eles não são, como muitos outros conteúdos anímicos, de todo negados a quem quer que seja, porque ela pode ainda garantir uma
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viragem do destino, nunca de todo excluída, àquele que provisoriamente está referido apen~s à inveja dela, de modo muito particular a coloração mais apaziguadora da inveja, que também garante aos invejosos uma melhor consciência pelo contentamento que encontram no seu benefício.
[O carácter frenético da moda] De tudo isto se deduz que a moda é a arena apropriada para indivíduos que, interiormente, não são autónomos e que precisam de apoio, mas cujo sentimento de si carece, no entanto, ao mesmo tempo de uma certa distinção, atenção, particularização. Ela eleva também o insignificante, porque faz dele o representante de uma totalidade, ,, a incorporação de um espírito comum a mui tos. E próprio dela - porque, segundo o seu conceito, nunca pode ser uma norma cumprida por todos - possibilitar uma obediência social, que é ao mesmo tempo diferenciação individual. No maníaco da moda as exigências sociais desta são elevadas a uma altura em que ele assume plenamente a aparência do individualizado e do particular. Caracteriza-o o facto de exagerar a tendência da moda para lá da medida, aliás, observada: se a moda são sapatos bicudos, ele permite que os seus terminem em pontas de lança; se a moda são golas altas, usa-as até às orelhas; se a moda é ouvir conferências científicas, então já não encontrará outra coisa em parte alguma. Ele representa, pois, algo de inteiramente individual que consiste na ampliação quantitativa de elementos que, pela sua qualidade, são justamente bem comum do círculo respectivo. Vai à frente dos outros - mas justamente pelo caminho destes. Como ele répresenta os cumes
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extremos do gosto público, parece marchar à frente da sociedade. Na realidade, porém, verifica-se a seu respeito o qu~, inúmeras vezes, define a relação entre indivíduos e grupos: aquele que conduz é, no fundo, o conduzido. Os tempos democráticos favorecem, claro está, esta constelação de modo particularmente forte, pelo que até Bismarck e outros eminentes líderes partidários dos Estados constitucionais sublinharam que eles, por serem líderes de um grupo, o devem seguir. Tais épocas tenderão a alcançar por esta via a dignidade e o sentimento do governo, favorecerão uma mescla e uma confusão das sensações que já não sabem distinguir entre o domínio da massa e o ser-governado por ela. A arrogância do escravo da moda é, portanto, a caricatura de uma constelação, favorecida pela democracia, da relação entre o indivíduo e a totalidade. Mas o herói da moda, através da notoriedade alcançada de forma puramente quantitativa, e que se disfarça numa diferença da qualidade, representa inegavelmente uma relação de equilíbrio deveras original entre o impulso social e o individualizante. Compreendemos por esta razão a loucura da moda, externamente tão abstrusa, de algumas personalidades, de resto ~uito inteligentes e não medíocres. Proporcionalhes uma combinação de relações com coisas e com pessoas que, de outro modo, costumam emergir de modo isolado. Exerce aqui efeito não só a mescla de distinção individual e igualdade social, mas também, de forma por assim dizer mais prática, a mistura do sentimento de dominação e de sujeição ou, por outras palavras, de um princípio masculino e outro feminino; e porque isto ocorre apenas na
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órbita da moda como num meio idealmente diluído, porque tão-só a forma de ambos se realiza, por assim dizer, num conteúdo em si indiferente, empresta àquela uma particular atracção, sobretudo para naturezas sensíveis, que com dificuldade lidam com a robusta realidade. A vida de acordo com a moda é, sob um aspecto objectivo, u1na amálgama de destruição e de construção: na aniquilação de uma forma anterior o seu conteúdo obtém o seu cunho próprio, possui uma unidade peculiar, na qual a satisfação do impulso destrutivo e do impulso para conteúdos positivos se não devem separar.
[A anti-moda] Porque aqui não se trata do significado de um conteúdo único ou de uma satisfação singular, mas do jogo entre ambos e a sua mútua contraposição, é evidente que a mesma combinação obtida por uma extrema obediência à moda se pode alcançar também justamente por meio da oposição a ela. Quem, conscientemente, se veste ou se comporta de forma não moderna adquire o sentimento de individualização a tal associado, não por autêntica qualificação individual, mas pela simples negação do exemplo social. Se a modernidade é imitação deste último, então a não-modernidade deliberada é a sua a imitação com sinais inversos;. mas nem por isso oferece um testemunho menor do poder da tendência social que, de qualquer modo positivo ou negativo, de si nos torna dependentes. O intencionalmente não moderno assume o conteúdo, tal e qual como o maníaco da moda, só que o con~titui noutra categoria: este na intensificação, aquele na da negação. No seio de
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uma sociedade ampla, pode até tornar-se uma moda, em círculos inteiros, vestir-se de modo não moderno - uma das complicações psicossociais mais notáveis, em que o impulso para a distinção individual se satisfaz, primeiro, com uma simples inversão da imitação social e, em segundo lugar, vai de novo buscar a sua força ao apoio num círculo restrito de acento igual; se se fundasse uma associação dos adversários de toda a associação, ela não seria logicamente impossível nem psicologicamente mais possível do que este fenómeno. Assim como do ateísmo se fez uma religião, com o mesmo fanatismo, a mesma intolerância, a mesma satisfação das necessidades anímicas, tal como a religião as contém, assim como a liberdade, pela qual uma tirania foi destroçada, muitas vezes irrompe de uma forma não menos tirânica e violenta, assim também esse fenómeno da não modernidade tendenciosa, mostra como as formas fundamentais do ser humano estão prontas para acolher em si o pleno antagonismo de conteúdos e para mostrar a sua força e o seu estímulo justamente na negação deles, em cuja afirmação estes surgem ainda unidos de forma irrevogável. Por isso, é muitas vezes de todo inexplicável se no complexo de causas de tal antimodernidade predominam os mome~tos da força ou da fraqueza pessoal. Podem brotar da exigência de nada ter em comum com a multidão, exigência que, decerto, não implica independência da multidão, mas antes uma posição interiormente soberana frente a ela; podem também adscrever-se a uma sensibilidade débil, se o indivíduo receia não conseguir preservar a sua pequenina individualidade, no caso de se ajustar às formas, ao gosto e às regras da generalidade. A oposição à última não é, de
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modo algum, sempre um sinal de fraqueza pessoal; pelo ' contrário, esta torna-se tão consciente do seu valor único e indestrutível por qualquer conivência externa que não só se acomoda sem receio às formas gerais, inclusive à moda, mas justamente só nesta obediência se torna consciente da espontaneidade da sua obediência e daquilo que reside para lá da obediência.
[A mulher e a moda] Se a moda expressa e acentua ao mesmo tempo o impulso para a igualização e para a individualização, o estímulo da imitação e o da distinção, isso explica talvez porque é que as mulheres aderem em geral à moda com particular exuberância. Com efeito, a debilidade da posição social a que as mulheres estiveram condenadas durante a maior parte da história gera nelas uma estreita relação com tudo o que é "costume", com aquilo "que fica bem", com a forma de vida geralmente aceite e reconhecida. Pois o débil evita a individualização, o repousar-sobre-si com as suas responsabilidades e com a necessidade de se defender apenas mediante as suas próprias forças. Só a forma típica de vida lhe garante protecção e estorva o forte na expansão das suas forças excepcionais. Mas, neste solo firme do costume, da norma, do nível geral, as mulheres aspiram fortemente à relativa individualização e à caracterização da personalidade individual, que ainda lhes são possíveis. A moda proporcionalhes justamente esta combinação da forma mais venturosa: por um lado, um recinto de imitação geral, um nadar tranquilamente nos amplos canais da sociedade, um alívio
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do indivíduo em face da responsabilidade pelo seu gosto e pelo seu fazer - por outro, no entanto, uma caracterização, um realce, um adorno individual da personalidade. Aparentemente, para cada classe de homens e, porventura, para cada indivíduo existe uma determinada relação quantitativa entre os impulsos de individualização e de imersão na colectividade; por isso, se a fruição de um deles for impedida numa determinada área da vida, ele irá à busca de outra na qual obtenha a medida de que necessita. Segundo parece, a moda seria também, por assim dizer, a válvula donde irrompe a necessidade de as mulheres se distinguirem e realçarem a sua individualidade segundo uma maior ou menor medida, quando tal satisfação lhes é recusada nas outras áreas. Nos séculos XIV e XV a Alemanha apresenta uma evolução extraordinariamente intensa da individualidade. As organizações colectivistas da Idade Média tinham sido, em grande parte, desmembradas em virtude da liberdade da personalidade individual. Mas, no seio deste desenvolvimento individualista, as mulheres não encontraram ainda lugar algum, foi-lhes ainda recusada a liberdade de movimento e desenvolvimento pessoais. Buscaram então uma compensação através das mais extravagantes e hipertróficas modas indumentárias. Em contrapartida, vemo~ que, na Itália, a mesma época garante às mulheres o espaço para o desenvolvimento individual. As mulheres do Renascimento tinham muitas possibilidades de formação cultural, de acção exterior, de diferenciação pessoal como, durante séculos, nunca mais lhes foram concedidas; a educação e a liberdade de movimentos eram quase idênticas para ambos os sexos, sobretudo nas classes superiores da
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sociedade. Ora bem, dos lados da Itália nada se conta acerca de particulares extravagâncias da moda feminina desta época. A necessidade de, neste campo, se comportar com um acento individual e de se obter uma espécie de distinção não emerge, porque o impulso que aqui se exterioriza encontrou a sua cabal satisfação noutras áreas. Em geral, a história das mulhe~es mostra na sua vida exterior e interior, no indivíduo ou na colectividade, uma tão grande uniformidade, nivelamento e homogeneidade que elas, pelo menos na esfera da moda, esfera da mudança pura e simples, precisam de uma participação mais viva para acrescentar um estímulo a si e à sua vida - tanto para ~ ,, . a emoçao propna como para os outros. Tal como entre individualização e impulso colectivista, também entre homogeneidade e mudança dos conteúdos da vida existe uma determinada proporção das necessidades, a qual é inserida e repelida em diferentes áreas, e procura compensar a recusa numa mediante a forçada satisfação noutra. Em suma, poderia dizer-se que a mulher, comparada com o homem, é o ser mais fiel; mas a fidelidade, que, segundo a vertente anímica, expressa a homogeneidade e a unidade do ser, exige ainda, justamente por causa da oscilação das tendências vitais, uma mais intensa variação nas esferas que se deixaram de lado. Ao invés, o homem, mais infiel por natureza, costuma, de modo típico, não respeitar o . compromisso da relação sentimental uma vez encetada, com a mesma incondicionalidade e concentração dos interesses vitais nela fixados; por conseguinte, precisará menos dessa forma exterior da mudança. Sim, a rejeição
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das variações nas esferas exteriores e a indiferença perante as modas na aparência externa são especificamente masculinas - não porque ele seja o ser de maior unidade, mas porque é, no fundo, o mais multiforme e, por isso, pode prescindir dessas modificações meramente exteriores. Por isso, a mulher emancipada da actualidade, que procura acercar-se da índole masculina, da sua diferenciação, da sua personalidade e mobilidade, acentua também justamente a sua indiferença perante a moda. A moda constitui também para as mulheres, em certo sentido, um substituto da posição no seio de uma classe profissional. O homem, que mergulha em semelhante grupo, entrou assim num círculo de relativo nivelamento; dentro desse estado é igual a muitos outros; sob muitos aspectos, é apenas um exemplar para o conceito de tal estado ou profissão. Em contrapartida, e como se aqui se tratasse de uma compensação, ele fica também ornado com todo o significado, com a força material e social desse estado; à sua significação individual acrescenta-se a da sua pertença à classe que, muitas vezes, pode cobrir as deficiências e as insuficiências da existência puramente pessoal. A moda efectua a mesmíssima coisa em conteúdos de todo diferentes; também ela suplementa a insignificânci~ dà pessoa, a sua incapacidade de, só por si mesma, individualizar a existência, através da incorporação num círculo caracterizado justamente pela moda, que por ela sobressai e de algum modo se coaduna para a consciência pública. Também aqui a personalidade enquanto tal fica, sem dúvida, inserida num esquema geral; mas, sob o aspecto social, este esquema tem um matiz individual"
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e, portanto, graças ao giro social, substitui justamente o que está interdito à personalidade alcançar de um modo puramente individual. Que a mulher semi-mundana seja amiúde quem inicia a nova moda deve-se à sua forma de vida peculiarmente desenraizada; a existência de pária que a sociedade lhe destina suscita nela, declarado ou latente, um ódio contra tudo o que já está legalizado, firmemente estabelecido, um ódio que encontra a sua expressão ainda relativamente mais ingénua no empenho em formas de aparição sempre novas; na contínua aspiração a modas novas e até então inauditas, na inconsideração com que se agarra apaixonadamente a mais oposta à usual habita uma forma estética da pulsão destruidora que se afigura própria de todas as existências párias, enquanto não estão ainda de todo escravizadas.
[A moda como máscara] Se tentarmos dirigir o olhar para os derradeiros e mais subtis movimentos da alma, dificilmente apreensíveis com palavras, eles revelam também o mesmo jogo antagónico das tendências essenciais, humanas, que tentam recuperar, por meio de novas,, proporcionalidades, o seu equilíbrio sempre destruído. E decerto essencial à moda medir todas as individualidades pela mesma rasoira; porém, de tal modo que nunca chega a apoderar-se do homem todo, mas sempre ~ este resta algo de exterior, e justamente nas esferas para lá das modas puramente indumentárias; pois a forma da variabilidade em que ela a ele se oferece contrapõe-se, em todas as circunstâncias, à permanência do sentimento do Eu e este último deve, precisamente nesta
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oposição, tornar-se consciente da sua relativa duração; só neste elemento permanente pode a variabilidade destes conteúdos mostrar-se em geral como variabilidade e desfraldar o seu encanto. Justamente por isso ela, como se afirmou, mantém-se sempre na periferia da personalidade que, na sua presença, se sente ou pode sentir, pelo menos em caso de necessidade, como piece de resistance. Este significado da moda é o que a leva a ser adaptada por homens refinados e originais: utilizam-na como máscara. A obediência cega às normas do geral em tudo o que é exterior é para eles o meio consciente e deliberado de reservar a sua sensibilidade e os seus gostos pessoais; querem a tal ponto guardar estes para si que se opõem a uma exibição que os tornaria acessíveis a todos. Por isso, um delicado pejo e pudor em não atraiçoar pela estranheza do comportamento externo a peculiaridade do seu ser mais íntimo levam muitas naturezas a refugiar-se no nivelamento ocultador da moda. Obtém-se assim um triunfo sobre as circunstâncias da vida que, pelo menos quanto à forma, é um dos mais elevados e subtis, a saber: o inimigo transforma-se em auxiliar; o que justamente parecia violentar a personalidade é livremente cativado, porque a violência niveladora se pode aqui deslocar para as camadas mais exteriores da vida, servindo ·assim de véu e de protecção a toda a intimidade e, por isso, tanto mais libertadora. O conflito entre o social e o individual atenua-se aqui, porque os estratos se separam para ambos. Isto corresponde exactamente à trivialidade da exteriorização e da conversação por trás da qual seres huma-· nos muito sensíveis e cheios de pudor, sobretudo mulheres, ocultam muitas vezes a sua alma individual.
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[Moda e vergonha] Todo o sentimento de pudor assenta no separar-se do indivíduo. Nasce quando tem lugar uma acentuação do Eu, um aumento da consciência de um círculo para a personalidade, que a esta se afiguram ao mesmo tempo como inoportunos; por isso, as personalidades débeis e modestas têm uma forte tendência para sentimentos de vergonha; logo que se descobrem como centro da atenção geral, logo que de algum modo se evidenciam, surge nelas uma penosa oscilação entre a exaltação e a quebra do sentimento do Eu. E como este separar-se do geral, enquanto fonte do sentimento de vergonha, é de todo independente do conteúdo particular, vê-se que muitas vezes alguém se envergonha até do melhor e do excelente. Se na sociedade, na acepção estrita do termo, é de bom-tom a banalidade, isso não é apenas consequência da mútua consideração que deixa aparecer como falta de tacto se alguém sobressair com alguma exteriorização individual e exclusiva que os outros não conseguem imitar; mas isso acontece também por se recear um sentimento de vergonha que constitui, por assim dizer, o castigo auto-infligido pelo indivíduo por sair do tom e da participação igual para todos e a todos igualmente acessível. Ora a moda, em virtude da sua peculiar estrutura interna, proporciona um destacar-se que se capta sempre como adequado. A manifestação ou a exteriorização mais extravagante, na medida em que é moda, protege daquele reflexo penoso que o indivíduo geralmente sente, quando é objecto da atenção dos outros. Todas as acções de massas se caracterizam pela perda do sentimento de vergonha. Como elemento de uma massa, o indivíduo é capaz de fazer incontáveis coisas que, se lhe
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fossem propostas na solidão, despertariam nele indomáveis resistências. Um dos fenómenos psicossociais mais notáveis, em que melhor se revela este carácter da acção de massas, são as faltas de pudor em que várias modas incorrem; se cada qual fosse individualmente solicitado a elas, protestaria com indignação; mas, propostas como lei da moda, são docilmente obedecidas. O sentimento de vergonha extingue-se na moda, porque esta é justamente acção de massas, tal como o sentimento de responsabilidade se desvanece nos que participam em crimes de massas, em face dos quais o indivíduo, sozinho diante do acto, muitas vezes recuaria~ Logo que o factor individual da situação predomina sobre o elemento social ou de moda, começa imediatamente a actuar o pudor: muitas mulheres envergonhar-se-iam de aparecer no seu quarto, e diante de um homem estranho, tão decotadas como o fazem em sociedade e de acordo com a moda, na presença de trinta ou cem cavalheiros.
[A libertação pela moda] A moda é também apenas uma das formas pelos quais os homens, ao abandonar o exterior à escravidão do geral, pretendem salvar do modo mais pleno a liberdade interior. Liberdade e submi~são pertencem igualmente àqueles pares antagónicos cuja luta perpétua, cuja inserção e rejeição nas mais variadas esferas, conferem à vida um encanto muito mais fresco, uma maior amplitude e desabrochamento do que a consecução de um equilíbrio das duas, duradoiro e já não removível. Assim como, segundo Schopenhauer, cabe a cada homem uma certa quantidade de prazer e de sofrimento,
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que nem pode ficar vazia nem transbordar, e em toda a variabilidade e oscilação das circunstâncias interiores e exteriores muda ·s ó a sua forma, assim também, mas com menos misticismo, se poderia observar em cada época, em cada classe, em cada indivíduo, ou uma proporção efectiva e constante de submissão e de liberdade ou, pelo menos, a aspiração a ela, perante a qual só nos é dada a possibilidade de mudar as áreas em que as duas se repartem. E a tarefa de uma vida superior consiste decerto em buscar uma partilha tal que os outros valores substanciais da vida consigam, por ela, a possibilidade de um desdobramento mais favorável. A mesma quantidade de submissão e liberdade pode, num caso, fomentar ao máximo os valores morais, intelectuais, , . . ,., . . estet1cos, e noutro, sem vanaçao quant1tat1va e por uma simples mudança das áreas onde se distribui, produzir um efeito contrário. Pode, em geral, dizer-se que o resultado mais favorável para o valor to~al da vida se obtém quando a irremediável submissão se desloca cada vez mais para a periferia da vida, para as suas exterioridades. Goethe, na sua época tardia, é porventura o mais luminoso exemplo de uma existência magnífica que, na conivência com tudo o que é externo, através da estrita observância da forma, pela voluntária sujeição às conven.ções da sociedade, conquista um máximo de liberdade interior, uma plena intangibilidade dos centros da vida, graças à inevitável quantidade de submissão. A moda, nisto comparável ao direito, só enquanto e porque actua na exterioridade da vida, nas vertentes orientadas para a sociedade - é uma forma social de admirável utilidade. Proporciona ao homem um esquema mediante
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o qual pode inequivocamente demonstrar a sua submissão ao geral, a sua obediência às normas que lhe vêem da sua época, da sua classe, do seu círculo próximo; compra assim a liberdade que a vida em geral garante para, retrogressivamente, se poder concentrar cada vez mais nas suas interio..: ridades e essencialidades.
[A moda dentro do indivíduo] Ora, na alma do indivíduo, encontram-se de certo modo reflectidas as condições de unificação igualitária e de auto-exclusão individual, o antagonismo das tendências, que a moda engendra, transfere-se de uma forma inteiramente análoga também para aquelas situações internas de muitos indivíduos, e que nada têm a ver com obrigações sociais. Nos fenómenos a que aludo exibe-se o paralelismo muitas vezes observado, com o qual as relações entre indivíduos se repetem nas relações dos elementos psíquicos do indivíduo. Com maior ou menor deliberação, o indivíduo cria, muitas vezes, para si mesmo uma conduta, um estilo que se caracteriza como moda pelo ritmo da sua manifestação, do seu fazer-se valer e sobressair. Sobretudo os jovens exibem, por vezes, uma bizarria súbita no seu modo de se dar, urh interesse imprevisto, sem fundamento objectivo, que domina todo o recinto da sua consciência e que, de novo, de modo igualmente irracional, se desvanece. Poderia isso designar-se como uma moda pessoal, que constitui um caso limite da moda social. Ela é sustida, por um lado, pela necessidade individual de diferença e documenta a mesma tendência que actua na moda social. Mas a necessidade de
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imitação, de homogeneização, de imersão na generalidade satisfaz-se aqui unicamente dentro do próprio indivíduo, ou seja, através da concentração da consciência pessoal naquela forma ou conteúdo, através da coloração unitária que o ser individual assim obtém, através da imitarão, por assim dizer, de si mesmo, que aqui entra para o lugar da imitação dos outros. Realiza-se assim, em círculos reduzidos, um estádio intermédio entre a moda individual e a moda social. Homens banais adaptam, com frequência, uma expressão qualquer - quase sempre a mesma nos elementos do mesmo grupo - que aplicam em cada ocasião a todos os objectos convenientes ou inconvenientes. Trata-se, por um lado, de uma moda de grupo mas, por outro, também de uma moda individual, porque significa que o indivíduo submete a essa fórmula a totalidade do seu âmbito de representações. A individualidade das coisrs é sujeita a uma violência brutal, todos os cambiantes são esbatidos pela supremacia peculiar dessa única categoria de identificação; assim, por ex., quando as coisas que agradam se dizem, por qualquer motivo, chiques ou "estupendas", coisas que estão muito longe do âmbito em que essas expressões têm um direito de cidadania. O mundo interior do indivíduo fica assim submetido a uma moda, repetindo-se dentro dele a forma do grupo influenciado pela moda~ E isto justamente em virtude do absurdo real de tais modas individuais, que revelam o poder do momento formal, unificador, sobre os motivos racionais e objectivos; assim também, para muitos seres humanos e círculos, apenas se exige que eles
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sejam controlados de modo uniforme, e a questão sobre a qualificação ou o valor desse poder desempenha apenas um papel secundário. Mas não se pode negar o seguinte: ao violentar as coisas por meio dessas modas qualificadoras, ao cobri-las igualmente com uma categoria que lhes aplicamos, o indivíduo exerce sobre elas uma pretensão de poder, adquire um robusto sentimento de soberania, uma acentuação do Eu perante elas. Este fenómeno, proposto aqui como caricatura, pode observar-se em menor medida em quase todas as relações do homem com os objectos. Só os homens verdadeiramente grandes descobrem a ingente profundeza e força do seu Eu quando respeitam a individualidade própria das coisas. Da hostilidade que a alma sente frente ao poder insuperável do cosmos, à sua autonomia e indiferença, nascem também, além dos esforços mais sublimes e meritórios da humanidade, as tentativas para conseguir, por assim dizer, uma violação puramente externa das coisas; o Eu afirma-se perante elas, não através da aceitação e da modelação das suas forças, não através do reconhecimento da individualidade que lhes é própria para, em seguida, as pôr ao seu serviço, mas sujeitando-as exteriormente ao seu esquema subjectivo; é evidente que, em última análise, ele não adquiriu assim · nenhum domínio sobre as coisas, mas apenas sobre a imagem fantasiosa e fraudulenta que delas tem. Mas o sentimento de poder que daqui brota revela a sua falta de fundamento, o seu ilusionismo, na celeridade com que tais expressões de moda passam. E tão ilusório como o sentimento de unidade do ser que, desta esquematização de todas as exteriorizações, nasce para o olhar. /
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[Moda acelerada, moda barata] Demonstrou-se que a moda é uma peculiar convergência das mais diversas dimensões da vida; que é uma criação complexa onde, mais ou menos, todas as tendências antagónicas da alma estão representadas. Torna-se assim compreensível que o ritmo geral com que se movem os indivíduos e os grupos influirá também na sua relação com a moda; que as distintas camadas de um grupo, independentemente dos seus diferentes conteúdos vitais e possibilidades externas, se comportam de modo diferente em relação à moda; que os seus conteúdos vitais se desdobram de uma forma conservadora ou em rápida variabilidade, Por um lado, as massas inferiores são menos móveis e evoluem mais lentamente. Por outro, sabe-se que as classes superiores são conservadoras e, com ·bastante frequência, até arcaizantes; receiam muitas vezes todo o movimento, toda a variação, não porqu,e o conteúdo destes lhes seja adverso e prejudicial, mas tão-só por ser variação, e por lhes parecer suspeitosa e perigosa cada mudança do todo que, na sua actual constituição, lhes garante a posição mais favorável; nenhuma mudança pode aumentar o seu poder; de cada uma, seja ela qual for, poderão, quando muito, antes temer do que esperar algo. Por isso, a verdadeira variabilidade da vida histórica reside na classe média; a história dos movimentos sociais e culturais ganhou um ritmo muito diferente, desde que o terceiro estado assumiu o comando. Eis porque a moda, forma das mudanças e dos antagonismos da vida, se tornou nos últimos tempos màis ampla e mais agitada; inclusive, já por causa das transformações da vida política imediata: pois o ser humano tem
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necessidade de um tirano efémero, quando se libertou do déspota permanente e absoluto. A mudança frequente da moda constitui uma terrível escravidão do indivíduo, e por isso mesmo é um dos complementos necessários para uma amadurecida liberdade social e política. Uma forma de vida, para cujos conteúdos o mo1nento da culminação é já o da decadência, tem o seu lugar próprio numa classe cuja índole é de ritmo muito mais variável, muito mais inquieto do que as camadas inferiores com o seu conservadorismo obscuro e inconsciente, e também do que as classes superiores com o seu tradicionalismo conscientemente intentado. Classes e indivíduos que insistem numa mudança incessante, porque a própria velocidade da sua evolução lhes dá uma vantagem sobre os outros, encontram na moda a cadência dos seus movimentos psíquicos. E, de forma muito directa, o progresso social favorecerá a rápida mudança da moda, porque possibilita com muito maior celeridade às camadas inferiores a imitação das superiores; e assim aquele processo, que antes descrevemos, em que cada classe superior abandona a moda no momento em que a inferior dela se apodera, ganhou uma amplidão e vivacidade outrora insuspeitadas. Isto tem uma influência significativa no conteúdo da moda: Antes de mais, faz que as modas já não sejam tão dispendiosas e, por isso, já não poderão ser tão extravagantes, como eram em épocas anteriores, quando o encarecimento da primeira aquisição ou o esforço na transformação das maneiras e do gosto era compensada por uma maior duração do seu reinado. Quanto mais um artigo estiver sujeito a uma rápida mudança da moda tanto maior é a procura de
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produtos baratos da sua espécie. Não só porque as massas mais numerosas, e portanto mais pobres, têm poder de compra suficiente para arrastar atrás de si a maior parte da indústria, e exigem objectos que, pelo menos, têm a aparência externa e pouco sólida do moderno, mas também porque até as camadas superiores da sociedade não conseguiriam acompanhar a celeridade da variação da moda, que lhes é incutida pela pressão das classes inferiores, se os seus objectos não fossem relativamente baratos. O ritmo da evolução é, nos genuínos artigos da moda, de tal importância que ele se subtrai mesmo a certos progressos da economia, que noutros campos se obtêm de modo gradual. Nos ramos mais antigos da produção da indústria moderna, observou-se que o momento especulativo deixa, a pouco e pouco, de desempenhar um papel determinante. Os movimentos do mercado apreendem-se com maior rigor, as necessidades c1lculam-se previamente com maior exactidão e a produção pode gerir-se de modo mais preciso do que antes, pelo que a racionalização da produção ganha cada vez mais terreno em face do acaso das conjunturas, das oscilações sem plano da oferta e da procura. Só que os artigos da moda parecem ser, a este respeito, uma excepção. As oscilações polares, a que a economia moderna sabe já, de tantos modos, furtar-se, e a partir das quais aspira visivelmente a ordenamentos e desenvolvimentos económicos de todo novos, imperam ainda nas áreas imediatamente sujeitas à moda. A forma de uma mudança febril é aqui tão essencial que ela se encontra numa contradição lógica em face das tendências evolutivas da moderna economia.
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[Moda e eternidade] Mas, perant·e esta característica, a moda apresenta agora esta propriedade muito curiosa: cada moda singular surge, de certo modo, como se pretendesse viver eternamente. Quem compra um mobiliário, que irá durar um quarto de século, compra-o habitualmente segundo a moda mais recente e, em geral, deixa de ter em conta a que predominava dois anos antes. E, no entanto, ao fim de outros dois anos, o encanto da moda terá desertado desse mobiliário, como já acontecera com o anterior, e o agrado ou desagrado que ambas as formas suscitam depende de considerações práticas, de outro tipo. Parece, pois, imperar aqui, para lá do simples preconceito do momento, um processo psicológico peculiar. Existe sempre uma moda, e ela é, enquanto conceito genérico, enquanto factum universal da moda, decerto imortal; e isto parece reflectir-se de algum modo em cada uma das suas configurações, embora a essência de cada uma consista precisamente em não ser imperecível. O facto de a própria mudança não mudar confere aqui a cada um dos objectos, em que ela se realiza, uma certa auréola de perdurabilidade. O que verdadeiramente importa à moda é variar; só que, como qualquer outra criação, ela tem uma tendência para economizar esforço; procura alcançar os seus fins da forma mais plena, porém, com os meios relativamente mais escassos. Foi possível, justamente por isso, comparar o seu caminho com um círculo; ela regressa sempre de novo a formas anteriores - o que se torna muito claro nas modas da indumentária. Logo que uma moda passada se desvaneceu em parte da memória, não há razão para não a reavivar,
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e deixar porventura sentir o encanto da diferença, de que ela vive, em face daquele conteúdo que, por seu turno, na sua apresentação, foi buscar esse encanto à s~a oposição ao precedente e agora reactivado. Além disso, o poder da forma móvel, que alimenta a moda, não vai tão longe que permita também sujeitar a ele todos os conteúdos. Mesmo nas áreas dominadas pela moda, nem todas as configurações são igualmente idóneas para se converter em moda. Em muitas, a sua índole genuína opõe-lhe uma certa resistência. Há que comparar isto com a diferente relação que os objectos da intuição externa têm com a possibilidade de se ,, transformar em obras de arte. E uma opinião muito sedutora, mas não profunda nem defensável, a de que todos os objectos da realidade seriam igualmente apropriados para se tornarem objectos de uma obra artístit:a. As formas da arte, tal como se elaboraram historicamente, condicionadas por mil acasos históricos, frequentemente unilaterais, associadas a perfeições e imperfeições técnicas, não se encontram de modo algum acima de todos os conteúdos da realidade, ·e m imparcial sublimidade; pelo contrário, têm com alguns uma relação mais estreita do que com outros; alguns, como que preformados por natureza para estas formas artísticas, entram nelas com facilidade, e outros, como que renitentes e diversamente orientados pela natureza, esquivam-se à transformação naquelas formas artísticas. A soberania da arte sobre a realidade não significa de modo algum, como pensam o naturalismo e muitas teorias do idealismo, a capacidade de incluir igualmente no seu domínio todos os
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conteúdos da existência. Nenhuma das formações com que o espírito humano domina o estofo da existência e o molda para os seus fins é tão geral e neutra que todos aqueles conteúdos, indiferentes quanto à sua própria estrutura, se ajustem igualmente a ela.
[O conforme e o insubmisso à moda] A moda pode, pois, aparentemente e em abstracto, acolher em si qualquer conteúdo; qualquer forma concreta de vestuário, de arte, de conduta, de opiniões, se pode tornar moda. E, no entanto, na íntima essência de certas formas existe uma particular disposição para se esgotarem como moda, ao passo que muitas outras, a partir do seu íntimo, lhe opõem resistência. Assim, por exemplo, tudo o que se chama "clássico" parece estar relativamente longe e é como estranho à moda, embora por vezes a ela não se esquive. A essência do clássico consiste, de facto, numa concentração dos elementos da representação à volta de um centro imóvel, o classicismo tem sempre algo de recolhido em si que, por assim dizer, não oferece muitos pontos de ataque onde possa iniciar-se a modificação, a ruptura, a destruição do equilíbrio. A plástica clássica caracterizase pela contenção dos membros, o todo é absolutamente dominado · a partir do interior; o espírito e o sentimento vital do todo, graças à solidez concreta da aparência, perpassam de modo proporcionado cada uma das suas partes. Eis a razão por que se fala da "tranquilidade clássica" da arte grega; é tão-só a concentração da aparência que não permite a nenhuma das suas partes uma relação com forças e destinos estranhos a esta manifestação e que desperta,
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por isso, a impressão de que esta configuração se encontra subtraída às mutáveis influências da vida universal. Pelo contrário, tudo o que é barroco, desmedido, extremo, tende intimamente para a moda; sobre coisas assim caracterizadas a moda não cai como um destino estranho, antes, por assim dizer, como a expressão histórica das suas condições internas. Os membros dispersos _da estátua barroca estão, aparentemente, sempre em perigo de se quebrar, a vida interior da figura não os domina suficientemente, mas abandona-os aos acasos do ser exterior. As criações barrocas têm já em si a inquietação, a marca da acidentalidade, a submissão ao impulso momentâneo, que a moda realiza como forma da vida social. Além disso, as formas extravagantes, de individualidade muito acusada, caprichosas, depressa geram cansaço e, por isso, já no plano puramente fisiológico impelem à variação, que na moda encontra o seu esquema. Reside aqui também 4ma das mais profundas relações que se pensa descobrir entre as configurações clássicas e a representação "natural" das coisas. O conceito de "natural" é, muitas vezes, vago e enganador, mas pode ao menos enunciar-se o negativo e dizer que certas formas, tendências, intuições, não têm qualquer pretensão a esse título; e são estas justamente as que com maior rapidez se submetem à variação da moda, porque lhes falta a relação com o centro permanente das coisas e da vida, que justificaria a pretensão a uma existência duradoira. A n1oda de as mulheres se comportarem e serem tratadas como homens e os homens como mulheres chegou à corte de Luís XIV através da sua cunhada, Isabel Carlota do Palatinado, que ,, era uma personalidade inteiramente masculina. E evidente
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que uma coisa assim não passa de simples moda, porque se afasta daquela imprescindível substância das relações humanas a que, ao fim e ao cabo, deve sempre regressar a forma da vida. Não se pode dizer também que toda a moda seja algo de antinatural - porque a própria forma vital da moda é natural ao homem enquanto ser social; mas, em contrapartida, dir-se-á que o antinatural pode subsistir, pelo menos na forma de moda. Em suma, o encanto peculiarmente picante e estimulante da moda reside no contraste entre a sua difusão ampla, que tudo abarca, e a sua transitoriedade brusca e radical, o direito à infidelidade para com ela. Reside tanto na estreiteza com que ela fecha um círculo determinado e cuja afinidade mostra quer a sua causa quer o seu efeito como na decisão com que ela o atira contra outros círculos. Reside, por fim, tanto no ser-sustentada por um círculo social, que impõe aos seus elementos uma imitação recíproca e assim alivia o indivíduo de toda a responsabilidade - ética e estética -, com:o na possibilidade de produzir, agora porém dentro destes limites, um matiz original, quer mediante a intensificação quer até pela recusa dos elementos da moda. A moda revela-se, pois, apenas como uma invenção singular e deveras particularizada entre muitas outras em que a conveniência social objectivou, com igual legitimidade, as correntes antagónicas da vida.
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[Significado do adorno] o desejo do homem de agradar aos que o rodeiam mesclam-se as tendências contrárias em cujo jogo recíproco se desdobra em geral a relação entre os indivíduos: há nisto algo de bom, um desejo de causar alegria aos outros; mas também outra coisa: que esta alegria e esta "deferência" refluam sobre nós como reconhecimento e apreço, que sejam atribuídos à nossa personalidade como um valor. E esta necessidade avulta de tal modo que contradiz inteiramente o inicial altruísmo do querer-agradar: por meio deste agradar queremos justamente distinguir-nos diante dos outros, queremos ser o objecto de µma atenção que não se reparte com os outros - até sermos por eles invejados. Aqui o agradar converte-se em meio da vontade de poder; mostra-se aqui em muitos espíritos a espantosa contradição de que eles precisam das pessoas acima das quais se elevam com o seu ser e o seu fazer, para conseguirem construir o seu sentimento de si sobre a consciência que elas têm de lhes estarem subordinadas. O sentido do adorno reside em peculiares configurações destes motivos, que entrosam a exterioridade e a interioridade das suas formas. Tal sentido visa, de facto, pôr em relevo a personalidade, fazê-la sobressair como de algum modo distinta, mas não mediante uma expressão imediata de poder, através de algo que obrigue o outro a partir de fora, mas apenas por meio do agrado que nele se
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provoca e que, assim, encerra um certo elemento de voluntariedade. Adornamo-nos para nós mesmos, mas só o podemos fazer enquanto nos adornamos para os outros. Uma das combinações sociológicas mais extraordinárias é que um acto ao serviço apenas do relevo e do aumento da importância de quem o realiza alcance este seu objectivo tão-só através do deleite para os olhos que oferece aos outros, exclusivamente como uma forma de gratidão tributada pelos outros. Pois também a inveja do adorno significa apena~ o desejo do invejoso de adquirir para si o mesmo reconhecimento e a mesma admiração, e a sua inveja prova justamente até que ponto, para ele, estes valores estão associados ao adorno. Que o amarelo seja a cor simbólica da inveja depende do amarelo do ouro: o ouro é o esplendor e o belo, cuja vista suscita prazer - mas um prazer por assim dizer objectivo que, do ponto cJ.e vista subjectivo, se converte imediatamente em desejo de posse e de cobiça. O adorno é o simplesmente egoístico, porquanto faz sobressair quem o tem, apoia e intensifica o seu sentimento de si à custa dos outros ( de facto, o adorno idêntico de todos já não serviria para adornar o indivíduo); ao mes~o tempo, porém, ele é o altruístico, que dá aos outros o seu aprazimento - enquanto o próprio portador pode dele fruir só no instante do auto-espelhamento - e só com o reflexo deste dar ganha valor o adorno. Assim como, na configuração estética, as direcções vitais que a realidade põe lado a lado como estranhas ou até frente-a-frente como hostis se revelam em toda a parte como intimamente aparentadas, assim também nas interacções sociológicas, neste campo
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PSICOLOGIA DO ADORNO
de batalha do ser-para-si e do ser-para-outros do homem, a figura estética do adorno indica um lugar em que estas duas direcções antagónicas são referidas uma à outra como meio e fim.
[Adorno e personalidade] O adorno aumenta ou amplia a impressão da personalidade, porquanto actua, por assim dizer, como uma emanação sua. Por isso, os metais reluzentes e as pedras preciosas foram, desde sempre, a sua substância; são "adorno" nu~ sentido mais estrito do que a indumentá-· ria ou o penteado, os quais todavia também "adornam". Pode falar-se de uma radioactividade do homem no sentic{o de que, à volta de cada um, se encontra, por assim dizer, uma esfera mais ou menos ampla de significado irradiante, na qual mergulham todos os que com ele tenham de lidar - uma esfera constituída por uma textura inextricável de elementos corpóreos e anímicos. As influências sensíveis que jorram de um ser humano para o seu ambiente são, de algum modo, portadoras de uma fulguração espiritual; e actuam como símbolos de tal esplendor mesmo onde, na realidade, são apenas exteriores; onde não flúi através deles nenhuma verdadeira força de sugestão ou significado da personalidade. O esplendor do adorno, a atenção sensorial por ele suscitada, facultam à personalidade semelhante ampliação da sua esfera ou também a tornam mais intensa; ela, por assim dizer, é mais quando está adornada. Por ser ao mesmo tempo e de algum modo um objecto de notável valor, o adorno é' uma síntese do ter e do ser dos sujeitos; com ele, a simples posse torna-se tangibilidade sensorial e
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persistente da própria pessoa.:.._ pelo que ·cais significados do adorno, graças à sua moderna banalização, mergulham na imperceptibilidade e só so·~ ressaem ainda no adorno dos príncipes e dos milionários . . Com o vestuário habitual isto não acontece, porque ele não emerge na consciência como distinção individual, nem da parte do ter nem da parte do ser; só o vestuário ornamental - e em prime.iro lugar os preciosos, que concentram num ponto pequeníssimo o seu valor e o seu significado irradiante - faz que o ter da personalidade se torne uma qualidade visível ~o ser. E tudo isto, não apesar de o adorno ser algo de supérfluo, mas justamente porque assim é. O imediatamente necessário está ligado de modo mais ajustado ao homem; rodeia o seu ser com uma periferia mais estreita. O supérfluo, pelo contrário, "sobeja", vai além do seu ponto de partida e porque, apesar de tudo, está nele fixado estende à volta do recinto da simples necessidade uma região mais am.pla que, por princípio, é ilimitada. O supérfluo, segundo o seu conceito, não tem nenhuma medida em si; com o grau de superfluidade daquilo que o · nosso ter nos permite, aumenta a liberdade e o carácter principesco do nosso ser, porque nenhuma estrutura dada, como a que é, ao invés, determinada pelo necessário enquanto tal, lhe impõe qualquer lei que estabeleça limites.
[O diamante e o adorno de metal] Este significado do adorno como irradiação do ser · humano - como documentação do facto de que o homem não termina com os limites geométricos do seu corpo - faz
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PSICOLOGIA DO ADORNO
que o diamante apareça como o adorno mais próprio, mais adequado ao fim. De facto, ele próprio é, por assim dizer, privado de corpo, o seu efeito consiste apenas na irradiação que emite, sem que isso se possa reduzir a uma substância colorida, já em si surpreendente e fascinante, como é o caso da safira e da esmeralda. Por isso, o alto valor do diamante associou-se à sua transparência e à sua limpidez. O carácter do adorno - a ·sua irradiaçã~ - no diamante não é suportado por nenhuma matéria em si e por si de grande efeito; adere da forma mais perfeita ao homem, empresta-lhe a sua força de irradiação do "modo mais altruísta possível". Porque parece invadir o outro como o brilho do olhar que o olho para ele dirige, o raio da pedra preciosa transforma-se em suporte do significado social do adorno, do ser-paraoutro, que retorna ao sujeit·o como ampliação da sua esfera de significado. Mas esta acentuação da personalidade realiza-se justamente mediante um rasgo de impessoalidade. Tudo aquilo que em geral "ornamenta" o homem se ordena numa escala, segundo a estreiteza com que ele está ligado à personalidade física. O adorno totalmente aderente é típico dos povos primitivos: a tatuagem. O extremo oposto é o adorno de pedra e de metal,. que tem um carácter absolutamente não individual e que cada um pode usar. Entre os dois encontra-se o vestuário - embora nem sempre tão inalienável e pessoal como a tatuagem, mas também não tão impessoal e separável como os "adornos" verdadeiros e genuínos. Mas justamente na sua impessoalidade reside a sua elegância. Que este carácter da pedra e do metal, tão
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rigidamente fechado em si mesmo, que não remete para nenhuma individualidade, firmemente imutável, seja obrigado a ajustar-se à pessoa - eis justamente o estímulo mais refinado do adorno. Aquilo que é verdadeiramente elegante evita fazer sobressair a individualidade particular, constitui sempre, à volta do ser humano, uma esfera de generalidade, de estilização, por assim dizer de abstracção - o que decerto não impede o refinamento com que este geral está ligado à personalidade. Os traços particularmente elegantes dos vestidos novos derivam de eles serem ainda "rígidos", isto é, de ainda se não conformarem incondicionalmente a todas as modificações do corpo individual, como, pelo contrário, os· já usados há muito, que já cederam e se conformaram aos movimentos particulares de quem os traz, e que portanto revelam de modo mais evidente a sua particularidade. Esta "novidade", esta resistência à individualidade, é própria de modo muito característico do adorno de metal: ele é sempre novo, encontra-se numa fria intocabilidade acima da singularidade e acima do destino do seu portador - o que se não verifica de modo algum com a indumentária. Uma peça de vestuário que se usou durante muito tempo como que cresceu juntamente com o corpo, possui uma intimidade que contrasta fortemente com a essência da elegância. Pois a elegância é algo "para os outros", é um conceito social, que extrai o seu valor do ser universalmente reconhecido.
[Adorno e estilo] Se o adorno deve ampliar o indivíduo graças a algo de supra-individual que irradia para todos e por todos é
PSICOLOGIA DO ADORNO
acolhido e admirado, então deve ter estilo para lá do seu simples efeito material. O estilo é sempre algo de geral, que reconduz os conteúdos da vida e da criação individuais a uma forma partilhada por muitos e acessível a muitos. Na genuína obra de arte o estilo interessa-nos tanto menos quanto maior for a unicidade pessoal e a vida subjectiva que nela se exprime; de facto, com estas características ela apela à personalidade de quem a contempla; este, por assim dizer, está sozinho no mundo com a obra de arte. Pelo contrário, nós exigimos uma configuração geral, típica para tudo aquilo a que chamamos object:o decorativo, o qual em virtude dos seus fins práticos se vira para uma multiplicidade de seres humanos; no objecto decorativo deve expressar-se não só uma alma assente na sua singularidade, mas também uma disposição e um humor · históricos ou sociais amplos, que tornam possível o seu ordenamento nos sistemas vitais de uma grande multidão de indivíduos. A obra de arte é algo para si, o objecto decorativo é algo para nós; o sentido daquela reside no seu concentrar-se num centro singular, o sentido deste é o alargamento a uma geral acessibilidade e a uma possibilidade prática de reconhecimento. O maior de todos os erros consiste em pensar que o adorno deve ser uma obra de arte individual, já que ele déve ornamentar sempre um indivíduo. Mas acontece justamente o contrário: porque deve servir o indivíduo, o adorno pode tão pouco ter uma naturez_a individual quanto o móvel em que nos sentamos ou o talher que manejamos podem ser obras de arte individuais. Tudo o que ocupa o mais amplo círculo vital em torno do homem - ao contrário da obra de arte que, em
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geral, não está inserida noutra existência, mas é um mundo auto-suficiente - deve antes rodear o indivíduo como em círculos concêntricos que constantemente se ampliam, que a ele conduzem ou que dele derivam. A essência da estilização é este dissolver-se do realce individual, esta generalização para lá da pessoal existência singular, mas que contém sempre o elemento individual como base ou como círculo de irradiação ou que o incorpora como numa ampla e borbulhante torrente; do instinto por tudo isto se formqu sempre o adorno com traços relativamente muito estilizados. Se agora às magníficas peças de Lalique se faz a censura de não serem idóneas para um verdadeiro e genuíno uso, a razão mais profunda é justamente que elas são produtos individualmente artísticos, que já não se podem associar a um indivíduo, que, por assim dizer, não constituem com este já nenhum sistema, nenhuma unidade; de facto, semelhante unidade pode brotar apenas da conjunção orgânica de pessoal e geral, de centro e periferia, enquanto um adorno de Lalique, em virtude do seu carácter singular, é justamente o contrário directo da possibilidade de estilização. Em virtude de a alma do artista, com todas as suas impulsividades e bizarrias, os seus entusiasmos e os seus rasgos inconfessáveis, estar investida nestas peças ornamentais, elas não se adaptam . . a ornamentar outrem, entram em viva concorrenc1a com a sua individualidade, desequilibram a delicada proporção entre pertença e não pertença, na qual reside a essência psicológica do adorno. /\
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[[splendor do adorno] Para lá da estilização formal do ornamento, o meio material do seu fim social é o esplendor do adorno, graças ao qual o seu portador surge como ponto central de um círculo de irradiação em que está inserido quem quer que se encontre na proximidade, qualquer olho que o contemple. Os raios deste círculo revelam, por um lado, a distância que o adorno cria entre os homens: tenho algo que tu não tens - por outro lado, não se limitam apenas a pôr o outro na condição de tomar parte, mas brilham justamente para ele, existem exclusivamente por causa dele. Devido à sua matéria, o adorno é ao mesmo tempo distanciamento e conivência. Por este motivo ele serve_também a vaidade, a qual necessita dos outros para os poder tratar com desprezo. Aqui reside a profunda -diferença entre vaidade e orgulho altaneiro: pois este último, cuja autoconsciência assenta verdadeiramente só em si mesma, despreza o "adorno" sob todos os aspectos. Aqui se mostra, no mesmo sentido, q significado do material "autêntico". O fascínio do "autêntico" consiste em que ele é, em todos os sentidos, mais do que a sua imediata aparência, que partilha com o falso. O primeiro não é algo de isolado, como o segundo, mas tem raízes e um chão para lá de simples aparência; o inautêntico, pelo contrário, é apenas aquilo que dele momentaneamente se vê. De igual modo o homem "autêntico" é aquele em quem se pode confiar, mesmo quando não se tem _d ebaixo dos olhos. Este mais-do-que-aparência constitui o valor do adorno; o valor, de facto, não é para nele se observar, é algo que, em relação à hábil falsificação, se acrescenta à sua aparência.
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Ora, em virtude de este valor ser sempre realizável e reconhecido por todos e possuir uma relativa atemporalidade, o adorno é colocado numa conexão valorativa supracasual e suprapessoal. O adorno de pechisbeque e a quinquilharia são aquilo que eles momentaneamente facultam a quem os usa; o adorno autêntico é um valor que vai além disto, funda as suas raízes na ideia de valor do círculo soci"al in.t eiro e nele se ramifica. O fascínio e o realce, que ele comunica ao seu portador individual, alimentam-se, pois, deste campo supra-individual; o seu valor estético, que aqui é justar , um va1or H para os outros " , transrorma-se mente tambem mediante a autenticidade em símbolo de apreço geral e de pertença a um sistema social de valor.
[Adorno e condição social] Na França medieval existiu, uma vez, uma ordem segundo a qual o uso de enfeites de ouro era proibido a todas as pessoas abaixo de uma certa categoria. Vive aqui, do modo mais inconfundível, a combinação que suporta toda a essência do adorno: com ele, a acentuação sociológica e o realce estético da personalidade sobrepõem-se como num ponto focal, o ser-para-si e o ser-para-outros tornam-se alternadamente causa e efeito. De facto, o relevo na esfera estética, o direito de fascinar e de agradar pode aqui ir muito além do que é determinado pela esfera de importância social do indivíduo; e assim ao fascínio suscitado pela ornamentação em virtude da sua aparência de todo individual, o adorno acrescenta o fascínio sociológico que consiste no facto de ele ser, justamente por isso, um representante d o seu grupo e estar, portanto, Hd a orna d" o
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com o seu pleno significado. A importância da sua condição social, simbolizada por este adorno, é por assim dizer reconduzida ao indivíduo por aquelas mesmas emanações que, surgindo dele, operam a ampliação da sua esfera de efeito e impressão; o adorno aparece aqui como o meio de transformar a força ou a dignidade sociais em perceptível proeminência pessoal. Por fim, as tendências centrípeta e centrífuga no adorno fundem-se numa particular configuração quando se constata que, nos povos primitivos, a propriedade privada das mulheres, ao nascer em geral mais tarde do que a dos homens, se refere em primeiro lugar, e de modo quase exclusivo, ao adorno. Se a propriedade pessoal masculina começa habitualmente com a propriedade das armas, isto revela a natureza mais activa e mais agressiva do homem, o qual alarga a esfera da sua personalidade sem atender à vontade dos outros. Para a mais passiva natureza feminina este efeito - que com todas as diferenças exteriores é formalmente o mesmo - depende em maior medida da boa vontade dos outros. Toda a propriedade é uma ampliação da personalidade;_a minha propriedade é aquilo que obedece à minha vontade, é o lugar em que o meu ·eu se exprime e exteriormente se realiza. Em primeiro lugar e do modo mais completo isto acontece no nosso corpo, e por isso ele é a nossa primeira e absolutamente incondicionada propriedade. No corpo adornado possuímos mais; somos, por assim dizer, senhores de um domínio mais amplo e mais nobre quando dispomos de um corpo ornamentado.
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Tem, portanto, um sentido profundo o facto de o adorno se tornar uma propriedade particular, antes de qualquer outra coisa; ele, efectivamente, produz o alargamento do Eu, a maior expansão à nossa volta, que enchemos com a nossa personalidade, e que consiste no agrado e na atenção daqueles que nos rode_iam - do amb~ente que, sem prestar atenção, passa diante dos fenómenos m:enos adornados e portanto, por assim dizer, menos visíveis, sem ser atraído para a sua esfera. O princípio fundamental do adorno é, mais uma vez, posto em realce pelo facto de que, naquelas condições primitivas, se torna propriedade por excelência das mulheres justamente aquilo que, em conformidade com o seu significado, existe para os outros e só com o seu reconhecimento ( que reflui para quem o usa) pode suscitar um incremento de valor e de significado do Eu. O adorno produziu, na forma do elemento estético, uma síntese muito sua para as grandes pretensões da alma e da sociedade, que interagem uma com a outra e uma contra a outra: o enaltecimento do Eu mediante o existir para os outros e da existência para os outros através do realce e da expansão de si mesmo; quando esta forma em si e por si se coloca acima da possibilidade de conflito das singulares aspirações humanas, estas encontram nela não só uma imperturbável coexistência, mas também o aperfeiçoamento recíproco que, como presságio e penhor da sua mais profunda unidade metafísica, supera a conflitualidade das suas manifestações.
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PSICOLOGIA DA COQU[T[RIA
[[ssência da coque_ teria] sabedoria de Platão sobre o amor, a saber, que ele é um estado intermédio entre ter e não ter, aparentemente não toca na profundeza da sua essência, mas apenas numa forma da sua manifestação. Não tem espaço algum para o amor que diz: 'que te importa a ti que eu te ame?', e só pode, portanto, referir-se àquele amor que, na satisfação do seu anelo, morre. A meio caminho entre ter e não ter, esgotando a sua essência no movimento para a posse, o amor, quando chega à "posse", já não pode ser o mesmo que antes, já não pode ser amor, antes inverte o seu quanto de energia em gozo ou, porventura, em tédio. Mas esta consequência do amor, enquanto anelo de quem não tem pela posse, não exclui a possibilidade de ele nascer de novo no próprio instante da sua extinção: permanece assim, segundo o seu sentido, como enquadrado numa rítmica alternância, em cujas cesuras residem justamente os momentos da plena satisfação. Mas quando o amor está ancorado nas derradeiras profundezas da alma, então essa alternância de posse e não posse descreve apenas a forma da sua exteriorização e superfície. O ser do amor - do qual o desejo não passa de mera aparência - não se anula quando o amor se sacia. Mas seja qual for o sentido do querer-ter, o~a. signifique o elemento definitivo do amor ora sirva apenas para acentuar o ritmo ondulante que actua sobre este elemento definitivo - onde o seu objecto é uma mulher e o
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ílLOSOílA DA MODA E: OUTROS ESCRITOS
seu sujeito um homem, ele eleva-se sobre o facto psíquico próprio do "agrado". O agrado é a fonte onde se alimenta a posse_e a não posse, se tiver de se converter em prazer ou dor, em desejo ou temor. Mas aqui, como em muitos outros casos, a relação de dependência entre o ter e o seu apreço pode estabelecer-se também _em sentido c_ontrário. A importância e o valor não advêm apenas à posse ou· não posse do objecto que nos agrada; mas onde, por qualquer outra razão, ganha para nós significado e importância a posse ou não posse, o seu obj ecto costuma suscitar o nosso agrado. Assim o preço que pagamos por uma mercadoria não é determinado apenas pelo fascínio que ela exerce sobre nós; acontece também inúmeras vezes que o preço exigido, a impossibilidade de ter a coisa de graça, a necessidade de a àdquirir mediante sacrifício e esforço, a tornam atraente e desejável. A possibilidade deste desvio psicológico permite incluir as relações entre os homens e as mulheres na forma da coqueteria. A coquete "quer agradar", mas este desejo, em si e por si, ainda não imprime o selo decisivo ao seu comportamento; traduzir a coqueteria pelo "desejo de agradar" seria c~nfundir o meio adequado para um fim com o impulso para esse fim. Para agradar, uma mulher pode utilizar todos os recursos, desde os mais subtis estímulos espirituais até à mais insistente exibição dos atractivos físicos: com tudo isso pode, todavia, ser ainda muito diferente da coquete. A peculiaridade desta consiste, de facto, em despertar o agrado e o desejo por meio de uma antítese e síntese típicas, através da alteração ou simulcaneidade da cedência e da recusa, dizendo sim e não "como de longe" mediante símbolos e insinuações, dando-se sem
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PSICOLOGIA DA COQUET[RIA
se dar ou, em termos platónicos, mantendo contrapostas a posse e a não posse, embora as deixe sentir como num só toque. No comportamento da coqueteria o homem apreende a justaposição e a compenetração do poder-ganhar e do poder-não-ganhar, que é a essência do "preço", e isto é que faz - graças à torção que converte o valor em epígono do preço - que esse ganho surja como valioso e desejável. A essência da coqueteria, expressando-nos com paradoxal concisão, é esta: onde existe amor, existe também - quer no seu fundamento, quer à sua superfície - posse e não posse; portanto, onde existe posse e não posse - embora não na forma da realidade, mas do jogo - existirá também amor ou, pelo menos, algo que ocupa o seu lugar.
[Formas da coqueteria] . Aplico esta interpretação da coqueteria, primeiro, a ,, alguns factos da experiência. E característico da coqueteria, na sua forma mais trivial, o olhar pelo rabinho do olho, com a cabeça meio virada. Há nesta atitude um afastarse, associado ao mesmo tempo a um efémero dar-se, uma atençã.o que se dirige, por um momento, para o outro ao qual, todavia, nesse mesmo instante, se esquiva simbolicamente mediante a direcção oposta do corpo e da cabeça. Este olhar, no plano fisiológico, só pode durar uns segundos, pelo que na sua doação está já pré-formado, como algo inevitável, o seu desvio. Tem o encanto do clandestino, do furtivo, do que não pode durar muito tempo e em que, por isso, o sim e o não se misturam insepar-áveis. O olhar pleno, de frente, por íntimo e ardente que seja, nunca tem o matiz específico da coqueteria.
F"ILOSOF"IA DA MODA t OUTROS ESCRITOS
Neste mesmo sedimento do efeito coquete se inscreve . o balancear e o bambolear das ancas, o andar "coleante". Não só porque esse movimento acentua de modo concreto as partes sexualmente mais atraentes do corpo, enquanto persiste, todavia, a necessária distância e reserva, mas também porque esse modo de andar _materializa o ritmo alternado e incessante da oferta e da recusa. Nesta sin~.ultaneidade de alusões ao sim e ao não, existe apenas uma modificação técnica, quando a coqueteria transcende os movimentos e a expressão do seu sujeito. Ela gosta de se entreter com objectos que, por assim dizer, se encontram além da pessoa: cães, flores ou crianças. De facto, isto significa, por um _lado, o afastamento daquele para quem se olha e, por outro, torna-lhe patente o valor inestimável da . ,..,, ,, . sua entrega; ou seJa: nao es tu que me interessas, mas estas . . . ,, . coisas aqui - e ao mesmo tempo: isto e um Jogo que para ti represento, pois se me ocupo delas é pelo interesse que sinto por ti. Esta compenetração de posse e não posse simbólicas culmina nitidamente no virar-se da mulher para outro/ homem diferente daquele que ela tem em mente. Não se trata aqui da brutal simplicidade do ciúme. Este situa-se noutro lado, e quando ele se deve soltar sem reservas para transformar em paixão o querer ganhar ou conservar já não se ajusta à forma da coqueteria. Esta tem de fazer sentir àquele a quem está dirigida o jogo lábil entre o sim e o não, o recusar-se, que poderia muito bem ser o rodeio para chegar à entrega, ao dar-se, por detrás do qual, como pano de fundo, como possibilidade, como ameaça, está o afastamento. Mas o coquetismo cessa em cada decisão definitiva;
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PSICOLOGIA DA COÇ>UITE:RIA
e a soberana mestria da sua arte revela-se na cercania de uma resolução última, a que ele se expõe, mas para a deixar, no entanto, oscilar a cada momento, em virtude do seu contrário. O duplo sentido do "com" p~ra designar, p