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Portuguese Pages 150 [107] Year 2000
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Contracapas: não foram poucos os que se deixaram seduzir por monstos e criaturas fantásticas: Plínio, o Velho; Alexandre, o Grande; Aristóteles; Santo Agostinho; Isidoro de Sevilha; Marco Pólo; Gesner; Theodor de Bry; Rabelais; Bosch; Dante Alighieri; Jorge Luis Borges; Câmara Cascudo. Testemunos eloqüentes de mentalidades e visões de mundo, os monstros acompanham a humanidade há séculos – e pode-se dizer que chegam até mesmo a fazer parte dela. Esquecidos por Deus, história das criaturas fabulosas, é também uma história da humanidade, sob um dos seus aspectos mais poderosos: a imaginação. ESQUECIDOS POR DEUS Este livro pode ser lido como uma história das representações alegóricas dos medos e desejos da humanidade. Pode ser entendido também como um relato saboroso da errância das criaturas fantásticas por este mundo. Mas a leitura sugere que se trata, acima de tudo, de uma chave original e eficiente para compreender OS mecanismos de herança do imaginário ao longo da história. Mary Del Priore nasceu em 1952, no Rio de Janeiro, e é professora de história do Brasil na Universidade de São Paulo. É autora de diversos livros, entre eles História das mulheres no Brasil (Contexto/Editora da UNESP, prémio jabuti 1998) e História das crianças no Brasil (Contexto, 1999). Para a Companhia das Letras, organizou a edição crítica de Monstros e monstrengos do Brasil, de Afonso d’Escragnolle-Taunay (1998). ESQUECIDOS POR DEUS MARY DEL PRIORE Esquecidos por Deus Monstros no mundo europeu e ibero-americano (séculos XVI-XVIII) COMPANHIA DAS LETRAS Copyright © zooo by Mary Dei Priore Capa Ettore Bottini sobre detalhes de gravuras de Theodor de Bry (séc. XVI-XVII) Índice remissivo Maria Claudia Carvalho Mattos Preparação Isabel Jorge Cury Revisão Carlos Alberto Inada Carmen S. da Costa Ana Maria Barbosa Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cli’)
(Câmara Brasileira do Livro, si’, Brasil) Del Priore, Mary Para os meus três monstrinhos adorados: Pedro Augusto, Paulo Fernando e Isabel Esquecidos por Deus : monstros no mundo europeu e ibero-americano uma história dos monstros do Velho e do Novo Mundo (séculos XVI-XVIII) / Mary Del Priore. — São Paulo Companhia das Letras, zooo. Bibliografia. ISBN 85-7164-992-8 i. Literatura fantástica — História e crítica 2. Monstros 1. Título. li. Título: Monstros no mundo europeu e Iberoamericano: uma história dos monstros do Velho e do Novo Mundo (séculos XVI – XVIII) 00-1035 CISD-39&45 Índices para catálogo sistemático: 1. Monstros: Folclore 398.45 2. Seres fantásticos: Folclore 398.45 [20001 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista 702 Cj. 32 04532-002 — São Paulo — SP Telefone (11) 3846-0801 Fax(11) 3846-0814 e-mail: [email protected] Índice I. Introdução 11 ii. Monstros: o espelho das trevas no Ocidente medieval 17 iii. A ambígua vitória da razão e as armadilhas da natureza 39 iv. No reino, sem limites, do insólito 61 v. Monstros e maravilhas no Brasil colonial 77 vi. As diabólicas criaturas da noite: vampiros, lobisomens e outros abantesmas 102 vii. Conclusão 123 Pequeno anexo 127 Notas 129 Índice remissivo 141 Agradecimentos Sou profundamente grata ao cNPq; sem a bolsa de auxílio à pesquisa integrada teria sido impossível o estudo bibliográfico que resultou neste livro. Agradeço, igualmente, às bibliotecárias da Fundação Calouste Gulbenkian Paris pelo paciente e caloroso auxílio prestado nas consultas que ali realizei sobre os monstros na literatura de cordel setecentista. Meus pedidos, muitas vezes apressados, foram sempre atendidos com extrema gentileza. Tenho também uma dívida
intelectual com Luís da Câmara Cascudo, cujo centenário de nascimento se celebrou em 1998. Suas deliciosas histórias sobre monstros e afins alimentaram minhas próprias histórias e aquelas que contei aos meus monstrinhos. 9 i. Introdução O tempo presente é mais monstruoso do que natural. François Belleforest (1570) Imaginemos a cena: o uivo distante de lobos, no vale escuro e no silêncio da noite, O luar trêmulo e a vaga imagem de fantasmas. Mulheres com cabelos desgrenhados e o pavoroso cerco de trevas, sombras e temores. Rasgando a escuridão espectral, um grito: “Monstro, dá-me a minha criança!” É o uivo angustiado de um dos personagens de Bram Stocker, em Drácula, que se ouve. O clássico da literatura de terror interroga ao historiador: de onde as sociedades extraem a matéria para seus sonhos? O simples prazer de sentir medo explicaria a presença de representações monstruosas na literatura e na arte ocidentais? As monstruosidades terão sido sempre as mesmas? E os homens comportaram-se habitualmente da mesma maneira em face de animais e homens compósitos, assombrações da imaginação humana, que parecem ter sido esquecidos por Deus? Esquecidos por Deus mas normalmente presentes, pois a 11 humanidade nunca deixou de amar os monstros. E hoje mais do que nunca. A cultura contemporânea acabou por torná-los familiares, trazendo-os para nosso cotidiano e privacidade. A manifestação mais evidente desse interesse é o desenvolvimento de uma enorme curiosidade em relação a pintores, movimentos artísticos ou épocas em que se criaram monstros. Há cada vez mais livros e exposições consagradas aos “fazedores de horrores” como Bosch, Brueghel, Hans Baldung, Peter Huys, Arcimboldo, Ensor, Füssli e outros. Descobrem-se antecessores do surrealismo, como CharlesGermain de Saint Aubin, pintor de borboletas com corpos semihumanos. A grande imprensa, o cinema, a televisão, a publicidade, as histórias em quadrinhos, mecanismos elaboradores de novas formas de conhecimento, deram espaço aos monstros, industrializando imagens e sonhos fantásticos. Neles, as estátuas se animam, homens e animais gigantescos invadem o cotidiano, os mortos revivem, os vampiros se multiplicam, seres híbridos ou pré-históricos escapam de suas reservas naturais, do fundo do mar, de selvas sombrias. Monstros resultam da radiação atômica ou chegam de outros planetas. Outros, em vez de provocar angústia, provocam o riso, encontrando lugar tanto nos pesadelos de nossa sociedade como em suas brincadeiras. O riso não lhes é mais fatal, como o amanhecer é fatal à noite,
aos vampiros e aos fantasmas.’ Examinado superficialmente, o fenômeno poderia ser descartado como mero escapismo. No entanto, numa era que se caracteriza pela ciência e pela tecnologia, é impressionante constatar o fascínio pelos símbolos e motivos monstruosos, que trazem de volta a noção de um universo encantado e fantástico. Mais um dos fenômenos sintomáticos da profunda crise que se instalou no pensamento ocidental, o interesse por monstros revela quanto nossa veneranda crença no racionalismo e no mecanicismo, bem como na visão de progresso inevitável, está fragmentada. Para agravar esse dilema, sobreveio a escalada tecnológica, que parece reduzir ainda mais o significado do indivíduo.2 Homens são substituídos por telas de computador e máquinas. Eis por que monstros, como bem diz José Gil,3 existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser, pois vivemos tempos em que não sabemos mais distinguir com nitidez o contorno de nossa identidade em meio a diferentes pontos de referência, que antes devolviam uma imagem estável de nós mesmos. É como se acima deste mundo, onde se afirma a revanche da carne e da natureza, houvesse outro menos familiar: o reino dos monstros. Imaginemos outra cena: vivemos num ambiente aparentemente claro, sólido, tranqüilizador. Vemo-nos, então, diante de um ser estranho, assustador, inexplicável. Conhecemos, assim, o singular frisson provocado pelo conflito entre o real e o possível. É preciso crer no inacreditável. O monstro, personagem fantástico, é o homem que abandonou a humanidade para encontrar- se com a fera. Só participamos de sua existência pelo horror que ele nos inspira. A diferença entre nosso olhar sobre os monstros e aquele de nossos antepassados é que hoje sabemos que a narrativa sobre o monstruoso não passa — quiçá, para muitos — de fantasia: trata-se de uma simples história. O leitor de outrora conhecia um estado de alma ambíguo diante do monstro que a mentalidade moderna fez aparentemente desaparecer. Por um lado, ele se perguntava se a história era mesmo verdadeira. Ele aplicava de modo rudimentar as regras da crítica histórica: uma narrativa verdadeira era relatada por uma testemunha digna de fé e estava de acordo com as tradições ancestrais e as crenças religiosas? Se a resposta fosse positiva, o monstro, de fato, existia. Divididos entre o desejo de adesão à verdade e a sedução do imaginário, nossos antepassados muito provavelmente acreditavam em monstros, para gozar do medo que a narrativa sobre essas 12 13
criaturas fantásticas oferecia, e que o narrador dessas histórias também se oferecia.4 O passeio para o qual o convido, leitor, embora não tenha nenhuma pretensão teórica, é representativo da importância do tema da teratologia e de como sua função na sociedade variou através dos tempos. Nele não exponho teses complexas, atendome simplesmente a costurar, com gosto, uma sucessão de imagens a algumas questões, num quase inventário cronológico. Só. Contrariando a tradição que exige do historiador uma relação fria entre pesquisa e problemática, resolvi me dar prazer, deleitando-me com um assunto que embalou o sono dos meus filhos durante anos. Já disse alguém que o prazer do historiador deve ser um dos motores de sua pesquisa, e que uma relação de simpatia — mesmo de gulodice ou de jubilação — com o objeto de suas indagações serve, sobretudo, para fazê-lo entender melhor os homens e a sociedade sobre a qual trabalha.5 Não me utilizei, no texto, de fontes primárias nem de documentos originais. Graças, contudo, à abundante produção historiográfica estrangeira, pude visitar, ainda que de forma esquemática, duzentos anos de fascinantes monstruosidades, que me permitiram resgatar do fundo cultural europeu, dos séculos xvi ao XVIII, algumas estruturas mentais por meio das quais se concebiam os monstros e sua diferença. O importante é, no entanto, perceber que as imagens literárias ou artísticas recolhidas, além de sobreviverem no interior de determinados sistemas de pensamento, sempre resumiram as tendências de certas correntes de idéias, estabelecendo a continuidade de uma tradição. Escrito com prazer — o mesmo que, espero, terá o leitor em lêlo —, este livro não se propõe a pensar a teratologia como um dos mitos edênicos, ausentes ou presentes, no universo mental luso-brasileiro, fazendo eco a preocupações inauguradas por Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso.6 Não se trata aqui de interpretar a presença de monstros na dispersa porém ampla documentação que vai do século XVI ao XVIII como “mito”, pois para nossos antepassados os monstros não eram uma representação, e sim um fato. Não eram mistério, mas concretude. Sua materialidade, para nós hoje uma quimera, um sonho, fazia parte daquele senso do possível ou do saber empírico posto em prática por marinheiros e colonos no período das navegações ultramarinas. 7 Diante dessa questão, nossas interpretações esposam a da historiografia francesa, que vem examinando homens e idéias, na era moderna, como seres que se debatiam em meio a um universo sem limites, onde tudo estava por conhecer, onde tudo era enigma e problema. Como bem diz Lucien Fèbvre,8 havia “excesso de plantas, de animais, de corpos minerais, de doenças, de tudo. O possível não se distinguia do impossível” Os cronistas e viajantes afirmavam,
mão sobre o coração, ser verdade o que diziam. Em nome de sua experiência pessoal? Raramente. Com freqüência, em nome da experiência de outrem, de alguém digno de fé, de quem se ouvira uma história “de verdade” sobre monstros e monstrengos. Viviase num mundo de “mais ou menos” de ouvir dizer. Do ouvir dizer que restará solidamente encravado mesmo entre os homens doutos e sábios, ou entre os navegantes empíricos que foram os portugueses, até o dia em que os primeiros fisiologistas começaram a construir o edifício de uma ciência fundada na observação e na experiência, dando início à prudente marcha do conhecido em direção ao desconhecido.9 A história de monstros e outros esquecidos de Deus obriga a um percurso mais longo na matéria histórica em busca do que teria inspirado a pluma de tantos fazedores de monstros no mundo luso-americano. Tais autores nos convidam a voltar ao passado para entender o que se conhecia sobre os monstros na Europa, na mesma época em que os cronistas coloniais os encontravam por toda parte. 14 15 Passeio por um universo insólito e ao mesmo tempo cotidiano, passeio pelas “marcas de nossos medos”,10 essa história dos monstros esforça-se por penetrar e descobrir no espírito do passado o porquê de o imaginário ser tão importante, tão digno de interesse e de poder quanto o visível. Afinal, reflexo do tempo presente mais do que do passado, a história, como diz Pierre Chaunu,” tem por missão fornecer à nossa memória, à nossa cultura, à nossa inteligência, os alimentos de que elas necessitam para viver; o imaginário constituindo-se, sem dúvida, no pão nosso de cada dia. ii. Monstros: o espelho das trevas no Ocidente medieval A rmantícora: a mantícora é um animal que vive na Índia, possui fisionomia humana, cor de sangue, olhos amarelos, corpo de leão, cauda de escorpião e corre tão rápido que nenhum outro animal pode lhe escapar. Mais do que qualquer alimento, ela gosta de carne humana. As mantícoras se acasalam de tal maneira que ora uma fica embaixo, ora outra. Brunetto Latini, Livro do Tesouro (1263) Durante a Idade Média, quando a maior parte do mundo era considerada terra incógnita, momento em que as fronteiras do mistério ainda não tinham sido devassadas pelas novas descobertas científicas e enquanto a razão não dominava o universo, uma vida intensa fervilhava nos quatro elementos.
Vindos do caos, os seres que aí se debatiam povoavam as mitologias, nutriam as superstições, agitavam os espíritos e tomavam forma graças ao pincel dos artistas e ao martelo de escultores. O universo romano que precede a Idade Média gótica era sobrehumano. Ele se desenvolvera como uma espécie de 16 17 apocalipse, sob o signo da besta, do medo e do mistério. Ele era também especulação, geometria e números. Foram os raciocínios e cálculos mais rígidos então desenvolvidos que suscitaram os mais desabridos transbordamentos da imaginação. Todos os prodígios e monstros da Terra reuniram-se em seu úbere. E isso porque foi nesse período que o Oriente transmitiu ao Ocidente uma série de ornamentos abstratos e um bestiário fantástico que ele assimilou e integrou a seus sistemas culturais.1 A arte, com sua decoração exuberante, seus monstros, sua fauna, sua humanidade que parece pertencer menos à natureza que a algum reino inventado e às regiões da imaginação sem limites, instalou-se numa arquitetura de admirável estabilidade.2 O mundo gótico irá, em compensação, buscar as proporções e as medidas humanas. Na arte e na literatura, a fisionomia da vida será perquirida no entrelaçamento entre natureza e espírito. Redescoberta como imagem especular da ordem divina, a realidade expressa nas formas materiais traduzia a mais intensa espiritualidade. Mas esse mundo possuía também uma face monstruosa, presente tanto na arte como na narrativa literária.3 Ora, ao longo dos períodos romano e gótico, o Ocidente medieval acreditou que nos confins da Terra viviam raças fabulosas. Viajantes europeus como Nicollo, Matteo e Marco Polo, Giovanni Pián del Carpini ou Guilherme de Rubrouck, homens que cruzaram rotas de caravana através da Ásia, ligando a China à Europa durante o século xiii, confirmavam a existência de maravilhas e bizarrias nunca dantes vistas. Pián del Carpini, por exemplo, dizia ter sido testemunha ocular de um ciclope, criatura com um só braço, mão no meio do peito e um único pé que, ao juntar as extremidades, locomovia-se como uma roda.4 Vale, contudo, lembrar que a visão trazida na bagagem por negociantes, embaixadores, missionários, artesãos e soldados que estiveram no Oriente vinha embebida no olhar que já tinham os gregos sobre a Índia. Um deles, Ctésias de Cnido (398 a. C.), médico e prisioneiro na corte de Ataxerxes ii,5 escreveu um manuscrito graças ao qual a Índia, território de prodígios, é empurrada para os confins da
Terra. Ele aí consigna todas as histórias fabulosas que existiam desde Homero, povoando o país de raças fantásticas: os pigmeus, combatentes de gruas, aves com pescoço longo como o da girafa; os ciápodes, donos de um único e veloz pé que lhes servia de guarda-sol com o qual se protegiam das intempéries; os cinocéfalos, homens com cabeça de cachorro, comunicando-se por latidos por serem incapazes de usar linguagem articulada; homens peludos e sem cabeça, com olhos nos ombros, conhecidos como blêmias; homens com oito dedos e oito artelhos, cujos cabelos, brancos até os trinta anos, paradoxalmente enegreciam com o passar do tempo; homens com orelhas tão grandes que lhes caíam sobre as costas, como melenas. Quanto aos animais fabulosos, Ctésias descreve a antropófaga mantícora, com cabeça de homem, corpo de leão, cauda de escorpião e três fileiras de dentes; os grifos e os unicórnios, guardiães de montanhas de ouro; as gigantescas formigas, dotadas de pinças e capazes de voar.6 Suas Histórias do Oriente tiveram tão longa fortuna que o famoso paleontólogo francês Georges Cuvier, inspirado em Ctésias, discutiu até morrer, em 1832, se o unicórnio não passaria de uma imagem deformada do rinoceronte. Depois das campanhas de Alexandre, o Grande (326 a. C.), um geógrafo de nome Megastenes foi enviado como embaixador à corte de Chandragupta, primeiro rei da Índia, morador de Patna, cidade situada às margens do Ganges. Fragmentos de sua obra sobreviveram graças a Plínio, que serviu de referência a todos os teratólogos latinos que escreveram entre os séculos iii e xiii: Solinos, Macróbio, Marciano Capela, santo Agostinho, Isidoro de Sevilha, Tomás de Cantimpré, Vicente de Beauvais e outros. 7 No momento em que Ctésias e Megastenes escreviam, a 18 19 crença na existência de monstros estava tão disseminada que se expunham no Partenon, de Atenas, as “mandíbulas” das gigantescas formigas indianas, buscadoras de ouro. Um pouco mais tarde, Scaurus, genro de Sila (138-78 a. C.), transportava para Roma os ossos do monstro marinho que, segundo se acreditava, guardava Andrômeda. Mas vejamos como Plínio, o Velho, descrevia em 77 d. C. as monstruosas “maravilhas” avistadas na Índia por Ctésias e Megastenes:8 Próximo aos citas que vivem no Norte, não longe do lugar onde se levanta o vento Aquilon (seu antro, dizem) vivem os arimaspes, que têm como signo distintivo um único olho no meio da testa. Por causa das minas de metal, eles movem guerras incessantes aos grifos, espécie de monstros alados que, a crer
nas lendas, extraem ouro das galerias; seu empenho em defendêlo só se iguala à vontade dos arimaspes em roubá-lo [...] Os primeiros antropófagos vivem a dez dias de viagem para além do rio Boristene e bebem em crânios humanos, servindo-se de sua cabeleira como de uma toalha dobrada sobre o peito. Para além do país dos citas antropófagos, num grande vale do monte Imavus, encontra-se uma região chamada Abarimon, onde vivem homens selvagens com pés virados para trás na companhia de animais selvagens. Na Albânia nascem seres com olhos de cor indecisa, com cabelos brancos desde a infância e que enxergam melhor à noite do que de dia. Os sauromatas, enfim, a treze dias de viagem de Boristenes, só comem um dia a cada três [...] o povo dos psilas tem um poder estranho: seu corpo é naturalmente dotado de um veneno fatal cujo odor adormece as serpentes [...] além do país de Nasamons [...] existem os andróginos, que carregam seus dois sexos e fazem nas relações sexuais ora papel de mulher, ora de homem. Aristóteles acrescenta que possuem o seio direito masculino, e o esquerdo feminino [...] Megastenes inclui entre os indianos nômades uma espécie de homens a quem chama de ciritas. Têm buracos no lugar das narinas e pés flexíveis como o corpo das serpentes. Segundo ele, na extremidade oriental da Índia, na direção da nascente do Ganges, encontra-se a nação dos astomos, homens sem boca e cobertos de pêlos que se vestem com folhas; vivem apenas da respiração e do cheiro, não bebendo nem comendo; no decorrer de suas longas viagens, levam diferentes odores de raízes, de flores e de macieiras selvagens para que, caso tenham necessidade, isso não lhes falte [...] No país dos calinge, outro povo da Índia, as mulheres concebem aos cinco anos e só vivem até os oito. Ctésias [...] fala ainda de uma espécie de homens que possuem apenas uma perna e saltam com espantosa ligeireza; chamam-se a eles próprios ciápodes porque deitados de costas durante a canícula se protegem à sombra do próprio pé. São vizinhos dos trogloditas. Um pouco a ocidente destes, existem vários homens sem cabeça; têm os olhos nos ombros [...] Ctésias cita várias montanhas habitadas por homens com cabeça de cão; vestem-se com peles de animais e ladram em vez de falar; armados de garras, alimentam-se de aves e quadrúpedes que caçam; são os cinocéfalos. Mas quem foi Plínio, o Velho, pai criador de tantas histórias de monstros? Um romano, absorvido por seu trabalho militar e burocrático e decidido a escrever uma enciclopédia dos conhecimentos humanos. Trata-se, sem dúvida, de um curioso personagem originário de Como, nascido na classe dos cavaleiros, amigo do imperador Vespasiano, oficial de cavalaria na Germânia, procurador de finanças na Espanha e autor de 37 volumes escritos em latim, nos quais cita outros 146 autores latinos e 327 não latinos. A edição princeps de sua História
natural foi publicada em Veneza em 1469, seguida de traduções em várias línguas — italiano em 1476, francês em 1566, inglês em 1601 e espanhol em 1 624 —, que inauguraram a longa série de Mirabilia e de Curiosa, 20 21 manuscritos iluminados e depois publicados, florescentes durante a Idade Média e o Renascimento. Elas alimentaram ainda, durante o período clássico, a pintura de belos objetos e de tesouros exóticos, como testemunha a “Alegoria dos quatro continentes”, de Jan van Kessel, no qual aparece um dos volumes de Plínio. Engrossaram, igualmente, a tradição pictural das Vanitas, que por preterição celebravam as riquezas às quais era preciso renunciar para a própria salvação. A herança de Plínio não pára aí: a amizade entre golfinhos e homens, os banhos de leite de mula de Messalina, a invenção do vidro inquebrável, o enigma da construção das pirâmides, o jantar de pérolas de Cleópatra, os contos e histórias sobre lobisomens constituíamse num estoque sem fim de imagens mais tarde reutilizadas. Sua preocupação em fixar datas, estabelecer filiações, discorrer sobre genealogias deu lugar a monstros e heróis fabulosos nos anais da humanidade. A História natural acolheu todas as fábulas fundadoras que séculos de reescritura e empréstimos irão remodelar, dotando-as por vezes de significações novas.10 No decorrer dos tempos, essas representações monstruosas sofreram algumas transformações ligadas ao espírito da época; mas, no conjunto, permaneceram inalteradas até o século xvi. Seu poder de sedução era tão grande que, até finais da Idade Média, elas irão obcecar os cartógrafos, os moralistas, os viajantes utópicos, como Mandeville ou Thomas de Cantimpré, ou os verdadeiros viajantes, como Marco Polo, que afirmava ter visto cinocéfalos nas ilhas Andamam.11 Oferecendo grande diversidade na monstruosidade, os povos exóticos repertoriados e divulgados por Plínio invadiram a literatura erudita, as narrativas de viagem ou as epopéias exaltando a idéia de cruzada, em que encarnavam o paganismo. Moradores dos confins da Terra, fato que, aliás, tranqüilizava, não fariam mais que algumas breves incursões ao Ocidente medieval. Numa delas impressionaram santo Agostinho, um dos primeiros a perceber a importância dos monstros no imaginário das populações. E ele perguntava-se: seriam os monstros simultaneamente homens e criaturas de Deus? Se a inquestionável autoridade de Plínio estivesse correta, seriam eles filhos de Adão? A pergunta seguinte: por que razão interferiam na harmonia da Criação? Resposta: como monstros, tinham algo a
“mostrar”. Eles mostravam (monstra = monstrare) , manifestavam (ostenta ostentare), prediziam (portenta = pra-ostendere) e anunciavam (prodigia = pro-dicere) antecipadamente tudo o que Deus ameaçara realizar futuramente no tocante aos corpos humanos. Monstros mostravam, portanto, o que poderia acontecer aos homens e os instigavam a pensar como seriam se não fossem como eram. Essa etimologia é aceita por santo Agostinho na medida em que ele não via nos monstros mais do que a expressão da vontade de Deus. Ao discutir a existência de raças monstruosas, a preocupação agostiniana é manter a unidade da espécie humana e, por meio dela, garantir a salvação para todos os filhos de Deus. E santo Agostinho retoma a Bíblia para explicar essa questão à luz da teologia: Pergunta-se, além disso, se é crível que dos filhos de Noé ou melhor, de Adão, de quem esses também procedem, se hajam propagado certas raças de homens monstruosos de que a história dos povos dá fé. Assegura-se, com efeito, que alguns têm um olho no meio da testa, que outros têm os pés virados para trás, que outros possuem ambos os sexos, a mamila direita de homem e a esquerda de mulher, e que, servindo-se carnalmente deles, alternativamente geram e dão à luz.13 O filósofo que escrevera entre 413 e 426 e que dizia que 22 23 tudo o que surge no mundo e aparece na história emana da fé repete a lista de povos monstruosos adotada por Plínio, mas ressalta: “Não é necessário acreditar em todos esses gêneros humanos que dizem existir”14 Esse comentário em alguém tão inclinado a crer cegamente em fatos estranhos e acontecimentos insólitos e que encheu sua obra de uma vasta coleção de mirabilia chama a atenção. Para melhor compreendê-lo, observemos que santo Agostinho aborda a questão dos monstros a partir do problema da descendência de Noé. Pois se o dilúvio teria renovado toda a população da Terra, essas raças monstruosas descenderiam, elas também, do patriarca. Todavia, reais ou não, tais seres lhe eram úteis e ele não se esquivava de afirmar que sua possível existência não lhe pareceria absurda. Não apenas os monstros concorreriam para dar variedade à harmoniosa beleza do universo como também ajudavam a fortificar a tese agostiniana segundo a qual a aparição de um homem monstruoso não deveria ser considerada um erro da natureza, melhor dizendo, de Deus. No interior de um pensamento que reconhecia um Deus criador de todas as coisas, fazia-se
necessário inocentá-Lo de qualquer equívoco. Eis por que Agostinho denuncia a vaidade dos filósofos que, apalermados diante de eclipses ou monstros, procuravam interpretá-los com outras razões que não a vontade divina ou o supremo desejo do Criador. Mas, como tornar Deus responsável pelos monstros?15 Partindo da idéia da beleza harmoniosa do todo, santo Agostinho propõe uma curiosa abordagem: os nascimentos monstruosos podem explicar os povos monstruosos. É, pois, por uma gradação mínima que se passa de ligeiras diferenças — mais de cinco dedos nos pés e nas mãos, por exemplo — a seres muito diferentes de nós. A lógica do santo homem era mais ou menos a seguinte: se não caíssemos na loucura de imaginar que “o Criador enganou-se na contagem dos dedos”, por quê, então, pensar que a monstruosidade de povos inteiros foi um erro? Não conhecemos as razões para tal escolha, mas não conhecemos, tampouco, as razões pelas quais uma criança nasceria com mais dedos do que outra. Sem dúvida, Deus obedece apenas a uma exigência de sua arte, aperfeiçoando, assim, o mosaico do universo. O pensamento de Agostinho é coerente; os monstros, homens ou raças, faziam parte do mundo e concorriam para sua beleza. Mesmo se não pudermos explicar por que Deus os criou, devemos confessar nossa ignorância e recusar a idéia de considerá-los erros da natureza. Mas Agostinho separa-se de Plínio quando este pretende explicar os fenômenos pela “força e majestade da natureza” Para o autor de A cidade de Deus, a majestade só pertence ao Criador, e a força é um dom que Ele dá à natureza. Foi unicamente Deus que imprimiu, a tantas coisas que vemos, “qualidades tão admiráveis e tão variadas que apenas seu grande número nos impede de admirá-las”. Foi Ele quem fez este “mundo repleto, céu e terra, águas e ares, de inúmeros milagres” 16 E se soubéssemos olhar sua obra não nos cansaríamos de admirá-la. O resultado das reflexões agostinianas é que as raças monstruosas vão poder ser tratadas como mira bilia, o que santo Agostinho não desejava exatamente. Contudo, ele era um grande admirador dessas curiosidades maravilhosas da natureza, exaustivamente inventariadas pelos autores latinos. Subtraindo às raças de monstros o estatuto de realidade, que na tradição clássica era realmente o seu, fazendo de sua existência algo de provável e de incompreensível, ele as tornava maravilhosas ao mesmo tempo que as integrava ao sistema de representações exigido pela Bíblia. A hesitação do texto agostiniano é, quanto a isso, característica: é preciso acreditar nessas raças não porque os autores antigos as mencionassem, mas porque a crença em sua existência ajudava a compreender os nascimentos monstruosos. Aliás, não era nem mesmo preciso acreditar na existência de 24
25 todas as raças monstruosas descritas. Será que elas existem? Não existem? A prudência recomendava não evitar nem uma nem outra posição. Os monstros seriam criações estranhas da natureza e de Deus. Limitando, pois, a crença a um certo nível de realidade, Agostinho abria as portas para a admiração diante das maravilhas incompreensíveis da Criação. Ele situava o monstro no espaço terrestre, ainda que os preparando para que se tornassem fabulosos. Santo Agostinho foi um dos primeiros a apontar o problema da dismorfia dos corpos, mais tarde desenvolvido por Isidoro de Sevilha (576-636).17 Num dos capítulos de seu Etimologias, espécie de síntese dos saberes antigos, religiosos e profanos a respeito da terrível selva em que se moviam os monstros, o bispo espanhol determina quatro grandes famílias: aquela dos monstros individuais, a das raças monstruosas, a dos monstros fictícios e a dos homens animais ou bestas humanas. Os critérios utilizados para tais classificações baseavam-se no tamanho anormal ou na pequenez extraordinária dos membros do corpo, na ausência ou no excesso de membros, nas modificações parciais ou na reunião de várias deformidades.18 Primeiro enciclopedista cristão, Isidoro tornou-se a fonte fecunda na qual vários autores se abasteceram e constituiu, ao mesmo tempo, a autoridade atrás da qual estes se entrincheiravam quando se tratava de contar histórias quase inacreditáveis. Suas obras inspiraram compilações em língua vulgar que colocavam a ciência ao alcance de leigos. De homens como Plínio, santo Agostinho e Isidoro, os compiladores medievais sentiam-se devedores, mas também herdeiros. Seus textos eram uma espécie de tesouro da civilização no qual teólogos e cientistas iriam beber. A partir dos séculos xii e xiii, monstros e maravilhas penetraram no domínio da arte religiosa. Se antes eram considerados apanágio dos textos clássicos sobre os confins da Terra, nos quais se localizava a Índia ou os povos pagãos, eles passaram então a ser considerados, como desejava santo Agostinho, criaturas de Deus. No tímpano da igreja de Vezelay, na França, a passagem da pregação missionária de Mateus à integralidade dos povos é representada por Deus abençoando todos os filhos de Adão, inclusive as raças monstruosas.19 No deambulatório da catedral de Sens, seres fantásticos e homens se combinam na melhor tradição estilística. Um ciápode agarrase ao próprio pé, enquanto uma sereia segura a cauda, adaptando-se à mesma curva em que se misturam elefantes e camelos. Em Paris, na igreja de São Julião, o Pobre, sereias e
esfinges imobilizam-se nas saliências dos capitéis. No portal da igreja de São Denis, em Chartres, uma fita recheada de criaturas vivas, quimeras, centauros, grifos, entrelaça-se à verdura esculpida na pedra. Nos baixos-relevos da catedral de Lyon pululam gárgulas com longos pescoços, híbridas de lobos, lagartas e morcegos. Outros milhares de figuras que iluminam os textos sagrados dos manuscritos litúrgicos parecem simultaneamente engenhosos e elevados espiritualmente: é, por exemplo, o caso do filósofo com cabeça de porco que, mandíbula na mão, medita introspectivo, ou o jovem mestre de música, meio homem, meio galo, que dá uma lição de órgão a um centauro. Largamente representados, tais monstrengos acabaram por tornarse familiares a seus contemporâneos.20 É bom não esquecer que durante a Idade Média o ensino da religião se fazia de maneira audiovisual. A palavra, pregada do púlpito, predominava, mas a parte da figuração era considerável. Os devotos tinham mais prazer em “ler” na pedra e no mármore uma vasta e estupefaciante variedade de formas heteróclitas do que ver isso em manuscritos. O importante é que além de enfeitar capitéis, pórticos e iluminuras, os monstros passaram a encontrar seu lugar em 26 27 bestiários — livros que somavam histórias e descrições de animais verdadeiros e imaginários —, fazendo com que a erudição enciclopédica e o pensamento religioso se reunissem.21 Nesses bestiários, a ênfase na moralidade, apregoada pela Igreja católica, passa a dar novo sentido alegórico aos monstros. Vale ainda lembrar que o método de interpretação que consistia em emprestar à teratologia um sentido edificante remonta pelo menos aos estóicos. Seu ardente desejo de conciliar a filosofia com a religião popular os conduziu a buscar nas entidades mitológicas um significado espiritual; e em suas aventuras um ensinamento sobre os bons costumes.22 Num desses livros, por exemplo, datado do século xiii e depositado em Westminster, Inglaterra, os pigmeus simbolizam a humildade; os gigantes, o orgulho; os cinocéfalos, a discórdia; os homens com beiços pendurados, a mentira etc.23 Passou-se a considerar os monstros como prodígios morais numa época em que uma interpretação alegórica do mundo se erigia em sistema de pensamento. Ora, tais fábulas intercambiáveis — alguns autores associavam as orelhas grandes à melhor audição da palavra divina, ou os cinocéfalos precariamente vestidos a humildes pregadores — permitiam denunciar de forma satírica as fraquezas dos contemporâneos. No Livro dos homens monstruosos, de Thomas
de Cantimpré, que vem à luz no século xiv, os latidos inarticulados dos cinocéfalos são associados à calúnia, e os homens sem cabeça, aos cobradores de impostos que só pensavam em encher a própria barriga. Como Isidoro, Cantimpré também acreditava em monstros e redigiu durante quinze anos uma enciclopédia, De nature, cujo terceiro volume, mencionado acima e fartamente ilustrado, lhes é consagrado. Junto com esses homens eruditos, que não se contentavam em reproduzir informações conhecidas, mas iam buscar nos países submetidos ao Islã, ou na Grécia, maiores informações, o campo dos saberes sobre a teratologia aumentava. Os bestiários só faziam ampliar a curiosidade sobre uma enorme quantidade de animais, reais ou imaginários, pertencentes à fauna do orbe então conhecido. Por exemplo: o bestiário de Marcotelius, abade e filho natural de Filipe, o Bom, incluía, entre a fauna fantástica já conhecida, o alpido, criatura com rosto de demônio, dentes de morsa, patas de grifo, representado a coçar prosaicamente a orelha com a ponta da cauda. Ou o cardeal do mar: imenso peixe dotado de cabeça humana coroada por uma mitra que, segundo uma história relatada por Pretorius, teria aparecido em 1433 no litoral da Polônia. Depois de ter entretido bispos locais, com os quais se comunicara por gestos, abençoou a todos, desaparecendo a seguir num sonoro e elegante mergulho.24 Transformados em outra face desses mundos, onde terror e encantamento se misturavam, os volumes magnificamente decorados por grandes artistas da época combinavam a reprodução da imagem e o texto em forma de fábula. A fauna dos eruditos não era a mesma dos pintores, mas, graças a seu aspecto fantástico, elas acabavam por se sobrepor. Aí vemos desfilar o prodígio da hiena com uma pedra no olho, homens com oito dedos em cada mão, elefantes com bico em lugar da tromba, a anfisbena, serpente com uma cabeça em cada extremidade, as serpentes da India com cornos de bode e pedras preciosas na cabeça, o basilisco com cabeça de galo e corpo de cobra.25 O bestiário era fundamental, pois ele transmitia as características de animais fabulosos, como a fênix ou o unicórnio, a sereia, o centauro, a salamandra ou o peixe-serra, que acabavam colorindo manuscritos iluminados comuns nas bibliotecas de conventos e mosteiros. As fábulas somavam-se às já mencionadas considerações morais, e cada animal transmutava-se em símbolo também decifrado pelos clérigos, com a ajuda das sagradas escrituras. A notoriedade desses animais, que serviam de suporte à exegese, encontrava 28 29 se assim reforçada. Os textos dessa tradição erudita formavam a
espinha dorsal da crença em monstros e permitiram sua instalação na literatura narrativa, conferindo-lhe credibilidade.26 Uma das mais fecundas fontes de inspiração sobre os monstros, nessa época, foi o Romance de Alexandre, um conjunto de cartas supostamente escritas por Alexandre a sua mãe, Olímpia, e a seu preceptor, Aristóteles. Traduzidas para o latim pelo arcipreste Léon em 850 d. C., tornaram-se, depois de buriladas por Lambert de Tours e Alexandre de Bernay, leitura obrigatória. As campanhas e conquistas do grande rei serviam como pretexto para tratar de mil prodígios e maravilhas ocorridos na longínqua Índia. Tal como nos mapas do período, considerados capazes de dar uma imagem fiel do mundo, as fantásticas aventuras de Alexandre eram vistas como páginas fiéis da história. As afirmações aí contidas não eram colocadas em dúvida. Em torno de Alexandre passeava toda uma fauna antropomórfica cuja descrição era capaz de provocar vertigens.27 Além dos “comedores de carne humana” que o rei fez prender para que não se dispersassem pelo mundo, ele teve de enfrentar o assalto de dragões, de porcos voadores dotados de afiados dentes, de pássaros-tigres, de leões de quatro cores e sagitários, de homens e mulheres possuidores de seis braços e seis pernas, de gigantes e blêmias. Mas além desses monstros habituais aparecem ainda homens misteriosos com cabeça de cavalo (hipocéfalos), cabeça de touro ou de leão, outros com patas de cavalo, mulheres barbadas e outras com cauda que lhes saía do umbigo. Um mundo digno de um filme de terror ou de uma tela de Bosch salta das páginas da sua história: os phytoi, com braços em serra; os ochlites, altos, calvos e magros como lanças; as lascivas ondinas capazes de arrastar para imensos sorvedouros d’água suas armadas inteiras. Bem mais variados e interessantes do que as histórias eruditas, esses textos provocavam a fascinação do público; cada autor procurava, assim, tirar partido do sucesso da história anterior acrescentando novos personagens ou novos monstros à sua versão do romance do famoso governante. 28 Contudo, ressaltavam sempre o vigor espiritual de Alexandre, que lhes permitia entrever na beleza dessas coisas o rosto de Deus. O sucesso das histórias em torno dele foi tão grande que estas circularam até o século xvii acompanhando os progressos da imprensa em toda a Europa. O Romance de Alexandre é muito representativo do interesse que a Idade Média tem pelos monstros e da crença que lhes é devotada. Talvez seja uma questão mal colocada procurar saber se, então, os homens acreditavam cegamente na existência das raças monstruosas; melhor seria dizer que para eles existiam diversos modos de crença, que variavam segundo a dignidade de seus objetos. Se as evidências cotidianas não lhes assegurava a existência desses seres fantásticos, eles aceitavam os
testemunhos que os descreviam se tais descrições fossem portadoras de uma razoável dose de realidade. Outro canal de transmissão sobre as histórias de monstros, a meio caminho entre a literatura erudita e os romances, eram os pequenos opúsculos manuscritos contando viagens ao Oriente nas quais se constatavam fatos ignorados em outras regiões. Teodofrido, monge de Luxeuill, enviado em 657 ao monastério de Corbie, fundado pela rainha Batilde, redige seu De Asia et de universi mundi rota, no qual cita a maior parte de animais estranhos que povoavam o Oriente. Um certo Dicuil, professor na corte de Carlos Magno, termina seu De mensuris orbis terrae enumerando enguias de trezentos pés, unicórnios, ciclopes, homens com a cabeça no peito etc.29 Outra lenda que teve importante papel no sentido de disseminar os conhecimentos existentes sobre os monstros foi a do Preste João. Esse soberano mítico, reinando em alguma parte da Ásia ou do Norte da África, teria escrito, na época das primeiras 30 31 Cruzadas, uma longa carta na qual descrevia seu país. Essa carta apócrifa tomou formas diversas e teve enorme sucesso. Seu conteúdo não se acanhava em fazer circular riquezas jamais vistas nem em acumular uma fauna real, só que proveniente de diferentes regiões: camelos, leões, tigres, ursos, águias, serpentes. O preste, senhor de fabulosos tesouros, habitava um palácio de ébano e cristal cujo teto era recoberto de pedras preciosas e as colunas, de ouro. Utilizando o grande patrimônio da teratologia ocidental, a carta acrescenta ao já conhecido imaginário fantástico histórias sobre Gog e Magog, gigantes encarregados de guardar as portas do Paraíso,30 as amazonas e monstros indeterminados, cujos nomes parecem capazes de nos fazer sonhar: camethurnus, methagallinari, thinsirite...31 No século xiii, entre o advento dos mongóis com a invasão de Gêngis Khan e aquele, em 1368, da dinastia Ming, que fechou as portas da Ásia, os europeus lançaram-se a descobrir o Oriente. Antes houve alguns viajantes, mas nada parecido com essa idade de ouro das explorações européias. Estas foram incentivadas pelas missões enviadas pelo papa Inocêncio iv aos bárbaros que haviam invadido desde a China até a Hungria. Esses homens contavam o que viram e o que não viram. Registram sua curiosidade sobre as raças monstruosas e sua decepção por não se confrontar diretamente com os monstros descritos por Plínio e outros “antigos” Contudo, eles ouviam novas histórias que acrescentavam às anteriores, transformando seus relatos de viagem em verdadeiros romances. A primeira geração é
constituída por Gian del Pian Carpini (1245), Nícolass Ascelín (1246), Simão de Saint-Quentin (1247) e Guilherme de Rubrouck (1253), os Polo (1271), Giovanni de Montecorvino (1289), Odorico de Pordenone (1314), Jourdain de Séverac (1320), Pascal de Vitória (1338) e Giovanni di Marignoli (1342). Depois do fechamento da China, seguiram ainda na direção oeste Hans Schiltberger (1396), Ruy González de Clavijo (1403), Guillebert de Lannoy (1413), Niccolò de Conti (1419), entre outros.32 O melhor exemplo de curiosidade pelo assunto é o de Jean de Mandeville (c. 1360), que descreveu com sensível habilidade o mundo oriental, suas maravilhas e seus monstros. As Viagens de Mandeville, originalmente um manuscrito oferecido a João Sem Medo, foram uma compilação livresca, traduzida em dez línguas européias, que teve noventa edições até o ano de 1600 e se aproveitava enormemente das informações compiladas por Isidoro de Sevilha, por Solino, pelos romances de Alexandre, pelas histórias do Preste João e outros.33 O autor apresenta-se como destruído pelo reumatismo, achacado pela gota e pela artrose e dotado de um caráter delicadamente covarde que contrasta de modo engraçado com o de outros viajantes, descritos com as cores da audácia e da coragem. Sem jamais ter ido muito longe, Mandeville insistia na veracidade de relatos que lhe teriam sido transmitidos por íntimos, dignos da maior confiança: “disseram-lhe” que perto da ilha de Milstorak moravam gigantes de 28 ou trinta pés de altura, que se vestiam com peles e comiam carne crua. Mais ao sul, existiriam mulheres “cruéis que portavam pedras preciosas nos olhos”35 O sucesso de sua obra deve-se ao fato de ter sabido preparar um concentrado de histórias “maravilhosas”, povoadas de personagens fantásticos, que publicou em língua vulgar: “E há, também na ilha de Trapobana, grandes montanhas de ouro cuidadosamente guardadas por formigas que separam o ouro das impurezas. Essas formigas são tão grandes quanto cachorros”,36 Ao sul do rio Fison ficaria o vale “encantado, perigoso ou do diabo”, onde se ouvia, sem cessar, o ruidoso barulho das hostes demoníacas e era considerado uma das entradas para o inferno: “No meio desse vale, há um rochedo e sobre esse rochedo uma cabeça do diabo, horrível de ver”. O Livro das maravilhas foi iluminado por Jean de Berry, nos 32 33 primeiros anos do século xv, que nele fez desfilar diversos dragões voadores, serpentes comedoras de crianças, ciápodes, blêmias, centauros e outras tantas criaturas que fecundavam a ciência medieval com pura fantasmagoria e poesia da imaginação.
Como se pode ver, a Dante, Rabelais, Bosch e Brueghel não faltaram precursores.37 Não é preciso lembrar que o desenvolvimento da imprensa proporcionou a tais novidades uma difusão imensa. Como bem diz Claude Lecouteaux, as tradições se transmitiam de século em século com uma constância impressionante, enriquecendo-se à medida que se descobriam as literaturas gregas e árabes e as narrativas das Cruzadas acordavam na imaginação o gosto pelo exotismo. A partir do século xiv o cenário mudou radicalmente sob o efeito de várias calamidades. À Peste Negra de 1348, que matou um terço da população européia, sucederam-se o Grande Cisma e a interminável Guerra dos Cem Anos. A inquietação era geral. As crenças milenaristas e a angústia em face da chegada iminente do Anticristo multiplicavam o mal-estar social. Revoltas urbanas e rurais devastavam um Ocidente mais aberto do que nunca às epidemias. Inicia-se uma invasão demoníaca à qual o incipiente Renascimento dará uma coerência, um relevo e uma difusão nunca dantes vistos. A crença nos lobisomens tornava-se universal, enquanto se tinha por autêntica a existência de dragões e de criaturas fantásticas. Nesse quadro, agudizam-se as noções formais de bem e de mal, passando-se a atribuir as origens monstruosas à influência positiva ou nefasta de Deus ou do diabo. Um delírio místico apoderou-se, assim, das interpretações sobre a origem genética dos monstros. Para dar um exemplo: o rei de França, Roberto, o Piedoso, casou-se com Berta de Borgonha, uma prima em quarto grau, e viu-se excomungado pela Cúria Romana, que declarou a união ilegítima sob pretexto de parentesco. O cardeal Damiano, bispo de Ravena, assinalava que o signo indelével da cólera divina com tal contravenção foi o nascimento de um filho com o pescoço e a fisionomia de ganso, o qual a rainha dera à luz. Se a punição divina permitia tal transformação do produto da concepção, não era menos plausível acreditar que Deus, à imagem e semelhança das divindades pagãs, se servia de monstros para advertir sobre as calamidades iminentes.38 Ou, ainda, que Satã interferia diretamente na obra divina. Os gênios do bem e do mal, em permanente rixa, acabavam por criar seres perfeitos. Ou monstros e deformidades. Se, na Bíblia, Deus anunciara que faria o homem à sua imagem e semelhança, o monstro significava uma ruptura com esse princípio. Mais além, o Levítico anunciava que os homens marcados por sinais físicos não poderiam oferecer serviços a Deus. Nessa lógica, o mudo revelaria, no silêncio da boca, as marcas de sua intimidade com o inferno, onde pinças de ferro lhe teriam arrancado a língua. O surdo, insensível à palavra de Deus, seria sensível unicamente aos rumores infernais. O cego tivera os olhos queimados pelo calor do inferno. O aleijado
deveria seu desequilíbrio àquele de sua alma. O corcunda traria o peso de sua maldição às costas, sobre a qual se sentava, de tempos em tempos, seu mestre, o diabo. A crença nas forças demoníacas era tão profunda que mesmo a ciência classificava os poderes do demônio e suas formas de intervenção na fabricação de monstruosidades. O maligno, por um sortilégio, seja suprimindo a criança, seja por uma falsa gravidez, podia substituir o feto por um monstro; ele podia, ainda, enviar ao corpo do feto uma doença que deformaria sua imagem, dando-lhe a aparência de um monstro; ele podia também introduzir no útero a semente fecunda de animais, gerando criaturas zoomorfas. Tais crenças, entre outras, consagradas por uma lei da Sorbonne de 1318, depois pelo demonólogo Jacques 34 35 Spreanger, grande inquisidor da Alemanha, e posteriormente pelo papa Inocêncio VIII, tiveram por resultado a destruição impiedosa de crianças com anomalias e, muitas vezes, da própria mãe. Quanto ao restante da família, ficava submetido a inúmeras práticas de purificação. A mulher que desse à luz uma criança malformada era imediatamente suspeita de ter contraído um casamento oculto ou de ter conhecido carnalmente o diabo, sob um dos aspectos venerados pela magia negra. A mão de Satã era capaz de deformar os corpos segundo leis que só existiriam no inferno. Qualquer marca visível sobre uma das partes do corpo era signo sutil de uma aliança infernal.39 Além da crença em animais e homens monstruosos, gerados pela vontade de Deus ou do demônio, a teratologia medieval seguia outros caminhos para tratar as monstruosidades. Pensava-se que o cruzamento de espécies diferentes produzia monstros tanto entre animais como entre homens. Por sua vez, esses indivíduos insólitos assim concebidos engendrariam seres que lhes seriam semelhantes, dando origem à teoria das monstruosidades hereditárias.40 Alguns séculos antes, Aristóteles afirmara que, em regra geral, os filhos se pareciam com os pais em suas anomalias. Tal opinião era compreensível, pois a Antiguidade clássica tinha uma concepção singular sobre a origem da semente: o líquido seminal era secretado por todo o corpo. Eis por quê, em seu A geração dos animais, Aristóteles afirmava que o membro ausente de um dos pais deveria faltar à criança, uma vez que a parte faltosa não poderia ter secretado os genes nescessários a sua reprodução. 41 Houve autores que ao final da Idade Média e a partir da direta observação da realidade matizaram tal asserção; foi o caso de Tiago de Vitry. Mas nas mentalidades
populares a miséria física de tantos marginalizados era confundida com monstruosidade ou prodígio. Eis por que em 1413 se apregoava em Sandersdorf, Baviera, o nascimento de uma menina com duas cabeças, quatro pés e quatro braços; em 1493, que uma mulher dera à luz uma criança morta que tinha nas costas uma serpente viva; em 1544, o nascimento de uma criança com chifres, e assim por diante.42 O nascimento de monstros interessara vivamente a Sebastião Brandt. O autor da célebre A nau dos loucos escreveu, entre os anos de 1495 e 1496, folhetos de cordel nos quais tentava interpretar acontecimentos políticos de sua época, relacionando-os aos monstros biológicos nascidos na Alsácia e na Alemanha. Irmãs siamesas em Worms, um porco com seis patas, um ganso de duas cabeças serviam-lhe para incentivar o rei Maximiliano a bater-se contra os hostis franceses e reunir o Reich, tão dividido nesse momento quanto o corpo desses monstros. Quando nasceu um porco com dois corpos e uma só cabeça, Brandt acreditou num presságio. O monstro, segundo ele, instrumento da fecunda natureza, deveria significar um espelho da realidade. Decifrar seu segredo significaria entrar na posse de um saber sobre o passado e o futuro: “Creio sinceramente que Deus veio inaugurar o tempo em que o reino será unificado e onde a espada espiritual e a espada temporal estarão reunidas numa só cabeça”43 O mitológico monstro de Ravena inspirou, ele também, interpretação singular. Dotado de um chifre, duas asas, garras de ave de rapina, olhos nos joelhos, sendo ainda hermafrodita e trazendo no peito a marca de um Y e de uma cruz, ele semeava o terror e inspirava toda sorte de fantasmas. Estando na época a Itália mergulhada na guerra, os eruditos concluíram que o chifre simbolizava o orgulho e a ambição; as asas, a leviandade e a inconstância; as garras, a usura e a rapina; os olhos, a avareza; os dois sexos, a sodomia. O ípsilon redentor indicava, contudo, que as virtudes ainda eram possivelmente recuperáveis. 44 Nessas circunstâncias, como não acreditar em monstros? Claude Kappler lembra muito bem que o mundo parecia saturado 36 37 de coisas pasmosas, incentivando à descoberta diuturna de maravilhas, umas mais impressionantes que as outras.45 Longe de se mostrarem incrédulas, as pessoas seguiam manifestando uma impressionante capacidade de assombrar-se, de admirar-se e seguiam reproduzindo as fábulas com as quais se deleitavam. 38
iii. A ambígua vitória da razão e as armadilhas da natureza Monstros não são homens; e se o são, também são filhos de Adão. Santo Agostinho, A cidade de Deus, XVI, 8 Ao longo do século xiv, homens como Nicolau Oresme e Henrique de Hesse abriram fogo contra o que consideravam superstições. Malgrado tais esforços, a crença em monstros teve vida longa. Nem os conhecimentos proporcionados pela expansão ultramarina puseram fim a essa tradição. E mais: obras ligadas a ela continuavam a ser repetidamente editadas, como é o caso do Livro da natureza, de Conrado Megenberg (1475), fartamente ilustrado com ciápodes, mulheres barbadas e homens com seis braços, enquanto autores modernos insistiam nas velhas interpretações. Que lugar teriam, então, o extraordinário e o inabitual no interior da ordem da natureza proposta pelos homens do Renascimento? Na verdade entre ciência e magia, o pensamento renascentista oscilava. Cometas, monstros, diabos, feiticeiras, poderes misteriosos eram seriamente discutidos por homens 39 doutos. Entre a magia natural, que era a arte de produzir efeitos maravilhosos graças ao saber superior do mago, e a ordem habitual dos eventos as fronteiras eram tênues. O progresso da consciência decididamente não passava pela rejeição do obscuro, do vago e do bizarro em detrimento do racionalismo triunfante. O ponto de vista de dois cosmógrafos do século xvi — ou seja, de especialistas modernos em astronomia descritiva —, Sebastião Munster e André Thevet, comprova como era difícil afastar-se da autoridade dos autores ditos “antigos” sobre os monstros. Thevet (1502-90) foi cosmógrafo da corte durante o reinado de Catarina de Médicis e o de Carlos ix. Em 1571 e 1575 ele publicou sua Cosmografia universal: dois imponentes in-fólios que pareciam bem à altura de sua pretensão em conhecer o mundo na totalidade: “Posso assegurar, afirmava, que a maior parte das bibliotecas francesas e estrangeiras foram por mim visitadas a fim de cobrir todas as singularidades e raridades possíveis”2 Megando ter visto a mantícora nas costas do mar Vermelho, ele aproveita para reproduzi-la em sua obra, tal como ela já tinha sido impressa no mapa de Heresford a partir da descrição feita por Ctésias.3 A única diferença é que na nova versão ela não mostrava seu rabo de escorpião, nem seu apetite antropofágico. O francês tem, contudo, de onde extrair tanta informação. Na introdução de sua História universal, Thevet cita o Polyhistor,
de Solinus, essa espécie de versão portátil da imensa obra de Plínio, como sua melhor fonte.4 Senhor de uma pena prolífica e gozando de grande prestígio, o cartógrafo foi, contudo, duramente atacado por sua ignorância e credulidade, pois, além de recorrer à tradição inaugurada pelo autor da História natural, Thevet colocava-se como testemunha ocular da mesma. O procedimento não era, todavia, vão ou ingênuo. Um dos pontos comuns à maior parte das histórias do Renascimento é a autoridade que elas procuram extrair da experiência pessoal ou, mais exatamente, do reconhecimento óptico. O fato de ter visto com os próprios olhos bastava para garantir os testemunhos mais inverossímeis. A precedência da visão sobre os outros sentidos, como o demonstrou François Hartog,5 representou uma constante epistemológica da cultura grega, de Homero a Aristóteles, subsistindo no seio das práticas históricas da Idade Média. Bernard Guenée também demonstrou a perenidade da hierarquia visa, audicta, lecta, e nesse sentido os viajantes do início do Renascimento pertencem, na maioria, a essa cultura histórica fundada no primado do olhar, que se alternava com o ouvirdizer, O mesmo procedimento encontraremos entre os cronistas de monstrengos de nosso mundo luso-americano, que, tal como seus contemporâneos europeus, remetiam ao estoque de imagens acumuladas nas visões de Plínio ou Heródoto menos para recolher dele uma informação do que para reafirmar um olhar, uma voz que tudo justificaria.6 Não se trata apenas de testemunhos da sensibilidade real, mas de um lugar obrigatório de toda a retórica descritiva. Para o “filósofo natural”, tal prática consistia num imperativo categórico: “Eu vi, então é assim!” O olhar, fonte de certezas intelectuais, como bem sublinha Frank Lestringant, derivava de uma problemática de autoridade, e não do registro de uma percepção. O imperativo do olhar pessoal acompanhava-se muito eficazmente do trabalho de compilação enciclopédica, associando-se inextricavelmente a este. Apenas a partir do momento em que a observação direta fará alguns progressos é que o monopólio do olhar será colocado em questão. 7 “Não há”, dizia Thevet no prefácio de sua Cosmografia do Levante, “saber mais acertado do que aquele que nos é dado pela visão.” Ou ainda: “De todos os sentidos da natureza, o olhar humano é o mais ativo”.8 E aproveita para contar de seu encontro com a mantícora, que descreve como “um monstro grande como um tigre, mas sem cauda, cuja cabeça era como a de um homem 40 41
adulto” e de outros encontros mais com lobisomens atacados de melancolia que vagavam entre sepulcros de cemitérios, com pigmeus combatentes de gruas, com elefantes africanos e dragões que se atacavam mutuamente, por aí afora. Sebastião Munster de Ingelheim9 foi, como Thevet, um dos autores mais lidos do Renascimento. Professor em Basiléia, Suíça, esse grande erudito ensinava hebreu, teologia, geografia, astronomia e matemática nessa cidade. Sua fascinante Cosmografia, publicada em 1544, continha descrições de todos os países e de todos os povos, de suas leis e instituições, merecendo traduções em italiano, francês e latim e reedições sucessivas para atender ao interesse de leitores até o século xviii. Munster reproduz várias histórias sobre grifos, formigas guardiãs de ouro, entre outras lendas, argumentando, porém, que “os antigos inventaram vários monstros estranhos que fizeram viver na Índia. Todavia, ninguém no Ocidente nunca viu tais maravilhas. Mas eu não teria a audácia de duvidar do poder de Deus, que é maravilhoso em suas obras e inefável paciência” A desconfiada observação expressa no texto é, contudo, esvaziada pelo poder das ilustrações de monstros: nos livros ilustrados, ciclopes, ciápodes, blêmias e cinocéfalos hipnotizavam leitores seiscentistas.10 Essas representações não deixavam nenhuma dúvida quanto à existência de tão fantástica fauna. Munster vivia na mesma cidade que um terceiro erudito chamado Conrado Wolffhart, mais conhecido como Licostenes. Este publica em 1557 o Prodigiorum ad ostentaorum chronicon, com o recenseamento detalhado de monstros e maravilhas que assombravam a Terra em meio a abundantes pranchas ilustradas, mais numerosas do que as da obra de Munster. Inspirando- se em Munster e Schedel, que já repetiam a tradição, Licostenes só fez remontar suas histórias mais longe no tempo. Renunciando ao pensamento cosmológico e enciclopédico que vicejava na época em que escreveu, Licostenes preferiu renovar laços com o mundo da magia. O subtítulo da edição alemã é: “Impenetráveis maravilhas que Deus criou e dotou de significação particular: as estranhas criaturas, monstros e horrendos fenômenos que desde o início do mundo nos advertem como signos da cólera divina”. Nessa que é uma das mais curiosas obras do século XVI, não se sabe o que mais admirar: a certeza do autor que, sem nenhum embaraço, afirma que os prodígios são legião ou o zelo paciente com que passou vinte anos a reuni-los? Apontando como marco cronológico para o surgimento de raças monstruosas a construção da torre de Babel, Licostenes discorda daqueles que, como Agostinho de Hipona, viam nesse evento uma prova da variedade do mundo. Ele seria, ao contrário, uma prova da cólera de Deus e do merecido castigo de seus filhos. Iniciando e terminando seu livro com duas séries de monstros, Conrado Licostenes busca provar que eles
eram o testemunho permanente dos açoites com os quais, de tempos em tempos, o Senhor fustigava a humanidade. A prova mais evidente, segundo ele, estava nas repetidas gravuras representando a raça de homens andróginos que ilustram, ao longo do livro, os casos de hermafroditismo com os quais o sábio suíço se defrontou.11 Nesse período, assiste-se na verdade a um curioso paradoxo: se a visão agostiniana tornara tais monstros tão aceitáveis durante a Idade Média que esta não hesitou em reproduzi-los em sua arquitetura, transformando-os em alegorias da sociedade humana, o século do humanismo, abandonado à crença em demônios e na perseguição a bruxas e hereges, passa a ver nos monstros uma ameaça do Mal. Se a Idade Média se esforçara por abrir o coração a essas imundas criaturas, porque elas faziam parte da obra de Deus, alguns autores da Idade Clássica as consideravam símbolos da fúria divina e augúrios de eventos terríveis. Como era de esperar, o desenvolvimento da imprensa e a 42 43 posse de uma enorme massa de informações recolhidas pelas viagens de exploração fizeram nascer uma nova onda de obras sobre zoologia, comparável aos tratados em ordem alfabética sobre os conhecimentos do mundo, espécie de enciclopédias avant la lettre do século xiii.12 Se a maioria dos autores da Idade Média eram clérigos, os do século xvi eram médicos.13 Conrad Gesner nasceu em Zurique em 1516, fez seus estudos em Paris e Strasbourg e publicou em 1549 o seu Historia animalium, um calhamaço de 1100 páginas contendo inúmeras gravuras. O livro, mais tarde publicado em francês, italiano e alemão, trazia uma infindável lista, em ordem alfabética, de animais descritos com inúmeros detalhes. O hipopótamo, por exemplo, é apresentado como pertencente a uma raça de cavalos, provavelmente em função de seu nome. Entre os animais do Novo Mundo, Gesner destaca o arctophitecus, assim descrito: Existe na América uma fera extremamente disforme que os habitantes chamam de haut e os franceses, guenon, tão grande quanto um enorme macaco africano. Seu ventre é caído, sua cabeça e seu rosto são como os de uma criança, [...] e quando é capturado grita como uma criancinha. Sua pele, de cor cinza, é aveludada como a de um urso; ela só tem três garras em cada pé, tão longas quanto quatro dedos, que lhe permitem subir nas mais altas árvores. As expressões “aveludada como a de um urso” e as três garras dão a solução: trata-se da prosaica preguiça, que Gesner “vira” empalhada e, portanto, de pé. O interessante é que o haut de
Gesner deve ter se inspirado na terrível fera homônima com que Thevet ilustrara sua viagem ao Brasil. Confundida com a mantícora antropofágica do Oriente, a preguiça observada pelo cosmógrafo nos trópicos estava longe até do inofensivo parente registrado por ele mesmo no Levante! Gesner conta, com alguma freqüência, histórias fantásticas, especialmente aquelas narradas pela autoridade dos clássicos, mas tende a abandonar a idéia da existência de “homens monstruosos”, matizando, todavia, que em diversos momentos “alguns espécimes de macacos” haviam sido confundidos com “homens bizarros”. Embora aborde o assunto com certa precaução, não resiste em ir buscar, no território da fábula, o indefectível unicórnio, cuja tradição literária era imensa e que contava ainda com uma menção na Bíblia:14 Chegamos, finalmente, à história de um animal mencionado por diversas gentes em todas as partes do mundo por causa de suas grandes virtudes; conseqüentemente, convém comparar com certa atenção os diversos testemunhos sobre esse animal para a boa satisfação daqueles que vivem e a fim de que se resolva para eles a principal questão que se coloca: existe o unicórnio? Gesner cita as descrições de Plínio, o Velho, e de Eliano sobre o chifre do fantástico animal, comparando-o aos cornos dos “burros selvagens” da Índia, dos quais se faziam copos mágicos: “Se um homem bebe num tal copo, ele não ficará jamais doente; mesmo se ferido, não sofrerá; ele poderá atravessar o fogo sem queimar-se, pois não sentirá nada, nem morrerá se colocarem veneno nesse copo” Gesner confirma também que os unicórnios eram atraídos por virgens, mas acrescenta uma história posterior, atribuída à autoridade de um certo Joannes Tzetzes: um jovem mancebo teria se vestido de mulher, se adornado de jóias e se enchido de perfumes para seduzir um unicórnio. Os caçadores não mataram o quadrúpede, limitando-se a extrair o precioso chifre. E Gesner conclui: “Ninguém jamais viu tal animal na Europa, e mesmo os romanos, que faziam vir toda sorte de animais para seus triunfos militares, nunca mostraram um unicórnio ao povo 44 45 de Roma [...] Mas devemos nos fiar na palavra dos viajantes, daqueles que vão muito longe, pois o animal deve existir em algum lugar sobre a Terra, uma vez que seus chifres existem. Digamos”, afirma, empurrrando-o para o que eram então os confins da Terra, “que ele circule na Índia, na Arábia ou no país dos mouros”. Os famosos chifres que convenceram Gesner podiam encontrar-se
na loja de qualquer boticário bem abastecido e valiam seu peso em ouro. Sabemos hoje que se tratava de presas de narval. Alguns anos após a morte de Gesner, fulminado por uma epidemia de peste bubônica em 1565, descobriu-se a verdadeira natureza do chifre, que foi imediatamente batizado de Unicornum falsum e declarado sem valor. Os boticários reagiram apregoando as virtudes do Unicornum verum, encontrado debaixo da terra e de coloração marrom e não branca, como seu antecessor. Na realidade, tratava-se de defesas de mamutes, utilizadas então para reconfortar os doentes ricos e manter crescente a receita dos boticários. Quando se conheceu, finalmente, a natureza do Unicornum verum, as pessoas já tinham perdido a fé nas virtudes medicinais do chifre, branco ou marrom, do unicórnio. Outro animal mítico a ser mencionado por Gesner é a “ave-doparaíso”. Ele não pudera observá-la diretamente, mas “vira” um desenho enviado por um certo Conrad Peutinger provando que tal maravilha existia. Chamada de manucodiatam pelos nativos das “ilhas Moluchis” a ave-do-paraíso não podia jamais ser vista porque não tinha patas, mesmo que Aristóteles não admitisse a existência de pássaros sem patas [...] Ela não as tem, pois voa muito alto no céu. Seu corpo e sua cabeça parecem, pelas dimensões e forma, com a andorinha, mas as asas e a cauda abertas são maiores do que as do falcão e lembram as da águia. O dorso do macho possui um buraco no qual a fêmea coloca os ovos, possuindo ela também no ventre um buraco análogo; os ovos são, assim, chocados. A cauda do macho tem um longo fio de cor preta, nem completamente redondo, nem inteiramente quadrado, mas semelhante ao usado pelos cordoeiros: a fêmea fica presa por esse fio enquanto choca. Quando Gesner escreve, sabia-se já que o pássaro em questão existia e que ele tinha patas anormalmente grandes para uma ave do seu tamanho. Antonio Pigafetta, o viajante italiano que acompanhara Magalhães, o vira em seu hábitat e o descrevera quando de seu retorno à Europa. Carlos v fez imprimir sua crônica, mas Gesner não a lera. Outra história contada por Gesner sobre animais fantásticos originou, cem anos mais tarde, algumas descrições do jesuíta Simão de Vasconcellos sobre o beija-flor brasileiro. Trata-se do “ganso das árvores” Inspirado na descrição feita por Conrad van Megenberg e nas opiniões de Alberto, o Grande, sobre a ave, Gesner reproduz um trecho da Topographia hibernica, que Sylvester Giraldus Canbrensis redigira trezentos anos antes: Nessa região, a natureza produz numerosos pássaros de forma milagrosa. Parecem-se com os gansos dos pântanos, mas são menores. Eles saem de pedaços de madeira boiando no mar. Tais passarinhos, protegidos por conchas, aí ficam presos pelo bico e, quando suas penas crescem, alçam vôo. Vi, com meus próprios olhos, mais de 1 milhão dessas avezitas, unidas a um pau à
deriva, ainda protegidas por suas conchas, mas já plenamente formadas. Gesner tinha um amigo inglês: o eclesiástico, médico e botânico William Turner15 que tinha dúvidas sobre essa história, dúvidas que só faziam aumentar diante das perguntas de Gesner. “Cheio de desconfiança”, conta, 46 47 perguntei a um padre, chamado Octavianus, irlandês por nascimento, que eu sabia digno de fé, o que pensava sobre a história contada por Giraldus. Ele jurou-me sobre os Evangelhos que tudo o que Giraldus escrevera sobre os pássaros era verdadeiro; que ele tinha visto e tocado, ele mesmo, as avezinhas ainda não formadas e que se eu ficasse em Londres por mais um ou dois meses ele me traria algumas dessa espécie. Turner transmitiu essa resposta ao amigo suíço e este a transcreveu em latim no seu livro: “Per ipsum, quod profitebatur Evangelium, respondit verissimum esse” O que quer que tenha pensado anteriormente, Gesner não podia duvidar da palavra de um padre, jurando sobre os Evangelhos e afirmando ter tido em mãos ele mesmo tal maravilha da natureza. Sua descrição do maravilhoso pássaro certamente inspirou, no Brasil colonial, a do padre Simão de Vasconcellos sobre o beija-flor, igualmente capaz de incríveis metamorfoses: misto de pássaro e borboleta, ele ficava com o biquinho preso ao tronco de uma árvore até brotarem as flores das quais se alimentaria.16 Gesner teve um contemporâneo e sucessor, nascido seis anos depois dele. A diferença é que o italiano Ulisse Aldrovandi sobreviveu a ele por quarenta anos e concebeu sua obra depois da morte de Gesner.17 Aldrovandi nasceu em Bolonha, em 11 de setembro de 1522, e, diferentemente de Gesner, pertencia a uma família rica que gozava de grande prestígio na cidade. Aos dezessete anos começou a estudar direito e artes liberais, indo depois para Pádua, onde se formou em filosofia e medicina. Em 1549 foi denunciado à Inquisição como herético, sendo obrigado a partir para Roma a fim de se explicar. É então que encontra o grande naturalista francês Rondelet, que inspirou, definitivamente, seu interesse pelo colecionismo e pelo estudo das mirabilia. Os elementos dessa influência encontram-se no seu Historia monstrorum, publicado em 1642, 37 anos depois de sua morte. Além de conter todas as informações zoológicas, históricas, culturais e mitológicas possíveis sobre cada animal, o alfarrábio discutia as raças monstruosas, as “monstra gentium”; nem tão monstruosas assim, pois os filhos sempre se pareciam com os pais:
“Podemos, certamente, chamá-las monstros, mas para os habitantes dos países onde vivem elas não têm esse nome, pois não lhes inspiram nenhum espanto”18 E mais: muitos monstros nasciam em desertos onde não podiam advertir ninguém. Com essa lógica, Aldrovandi renunciava à idéia de que os monstros eram puros presságios, empurrando os estudos teratológicos em nova direção. Segundo ele, a importância das causas físicas, de mudanças na história da Europa e das descobertas geográficas e climáticas permitia apresentar novas conclusões. Os tradicionais cinocéfalos seriam, em seu raciocínio, macacos capazes de imitar o homem. E os sátiros e centauros, apenas demônios que tomavam essa aparência para enganar os homens; mas, afinal, em tempos em que o cristianismo havia vencido o paganismo, estava-se livre de tais ameaças! Na época em que viveram Gesner e Aldrovandi, notícias sobre animais e maravilhas das regiões recentemente descobertas chegavam à Europa. Não havia abundância de informações por razões banais, como a dificuldade de circulação de livros e impressos, mas, aqui e ali, viajantes e cronistas descreviam, com o olhar europeu, o que imaginavam estar vendo. O médico e botanista francês Charles Lécluse,19 conhecido também por Carolus Clusius, a quem se atribui a introdução da batata no Velho Continente, foi provavelmente o primeiro a descrever um pingüim, sob o nome de “ganso de Magalhães”. Ele menciona igualmente os espantosos peixe-boi, o pássaro dodo e o lêmure. Os espanhóis, por sua vez, enviavam relatórios minuciosos, como foi o caso da pioneira Historia general y natural de las Índias, de 48 49 Gonzalo Fernandez Oviedo y Valdy. Passagens foram impressas em Salamanca, em 1535, mas a edição completa só apareceu em 1835. O jesuíta José de Acosta, de retorno pouco depois à Espanha, publicou em 1588 um curto livro consagrado a problemas aparentemente complicados: como os animais encerrados na Arca de Noé teriam chegado à América? Ou a que gigantes pertenceriam os ossos que encontrara no Novo Mundo? Filipe ii provavelmente leu essa obra. Em todo caso, desejoso de informar-se melhor sobre os novos domínios, ele enviou seu médico, Francesco Hernandez, ao México para recensear animais, plantas e minerais. Hernandez consagrou muitos anos a essa pesquisa, mandando fazer mais de 1200 ilustrações para o livro. Redigido em latim, este foi finalmente impresso, mas de maneira incompleta, em Roma, no ano de 1628. Os holandeses também se interessaram em descobrir a natureza e
seus segredos no Novo Mundo e, em 1637, o conde João Maurício de Nassau enviou dois homens ao Brasil. Todos os dois eram médicos: o holandês Guilherme Piso, da cidade de Leiden, íntimo das disciplinas médicas e mineralógicas, e o alemão Jorge Margrave, de Liebstad, perto de Meissen, na Saxônia, igualmente preparado para a tarefa. Embora tivesse apenas 27 anos quando de sua partida, ele conhecia bastante bem o livro de Gesner a ponto de referir-se várias vezes a ele em sua obra sobre a zoologia sul-americana. Era também um astrônomo amador muito hábil, mas, infelizmente, suas observações sobre o céu austral jamais foram publicadas. Em 1644, voltando para a Europa, Margrave passa pela África Ocidental, onde cai doente e morre. Piso reuniu todos os seus escritos, levando-os para os Países Baixos e entregando-os a João de Laet, um dos diretores da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, que os publicou em 1648. A obra continha quatro partes, redigidas por Piso, sobre os problemas médicos do que é hoje o Brasil setentrional e 50 oito partes, escritas por Margrave, sobre a história natural da mesma região. Um ano depois, João Maurício de Nassau comprou todas as ilustrações originais da Companhia, oferecendo-as como presente ao grande eleitor, Frederico Guilherme de Brandemburgo. Margrave dá a primeira descrição dos numerosos animais do Novo Mundo e acrescenta outros detalhes àqueles que já eram conhecidos, como o lhama e os beija-flores. Ele faz, sobretudo, uma declaração capital cuja importância só foi reconhecida mais tarde: nenhum dos animais americanos é idêntico aos europeus. Dos cronistas portugueses que escrevem no Brasil colonial, como é o caso de Ambrósio Fernandes Brandão ou frei Vicente de Salvador, nenhum ficou conhecido fora de Portugal como o foram esses dois autores.20 A observação das maravilhas da natureza continuou a obcecar o Ocidente moderno, e estas seguiam sendo matéria sobre a qual se sonhava. Em 1602, nascia em Geisa, na Alemanha, o futuro padre jesuíta Athanasius Kircher. Instalado em Roma, ele ensinou matemática e hebraico até 1643, quando resolveu abandonar o ensino para dedicar-se ao estudo da arqueologia e dos hieróglifos. Pouco tempo depois de ter se aposentado, inventa a lanterna mágica. Posteriormente, Kircher é cativado por notícias e estudos sobre animais, vulcões e planetas. Desse seu interesse resultaram três livros. O primeiro é o curioso Viagem estática, publicado em 1656, em que o autor, conduzido pelo anjo Cosmiel, analisa as condições de vida nos planetas, baseado em concepções astrológicas. Os animais são analisados em A arca de Noé, datada de 1675. Ele enumera todos os animais embarcados, tendo assim “escapado ao dilúvio” e reproduz as
jaulas em que viajaram até as águas baixarem. Aquele sobre os vulcões compreende dois volumes in-fólio: Dos mundos subterrâneos, em que tenta explicar os vulcões pela existência de numerosas grutas 51 submersas, normalmente inundadas de água ou de fogo. Algumas eram habitadas por dragões, o que explicava a raridade dos ditos monstros. Alguns deles, encontrados por heróis, pertenciam a espécies que tinham cometido o erro de sair à superfície da Terra, não encontrando depois o caminho de volta, pois terremotos teriam obstruído sua passagem para o centro da Terra. Autores como Gesner e Aldrovandi, entre os demais citados, são os mais representativos da literatura científica do período. Percebemos como seus textos, marcados pela visualização, emprestam extratos da natureza para materializá-los em sonhos ou em pesadelos. É como se, à força de olhar a vida com excessiva curiosidade, tais autores a vissem mudar de rosto, transformando-se e recompondo-se no plano do onírico, do feérico e do fantasmagórico. Nada parece arbitrário na construção desse outro mundo que só eles conhecem. Mundo que se constitui à imagem e semelhança do mundo sensível, mas apoiado em aparências, erigido para além da lógica e da razão pensante, à margem da biologia: humanidades, faunas e floras monstruosas ou maravilhosas cuja bizarria parece fundar-se num íntimo e transcendente conhecimento dos três reinos da natureza. Durante o Renascimento, os monstros saltaram da zoologia para os espetáculos e os textos literários. Da Inglaterra vêm os exemplos mais representativos. Nesse caso, exorcizar a angústia diante da insegurança política e econômica que se vivia no século xvi e no início do xvii parece ter sido uma das funções das imagens fantásticas e monstruosas.21 Homens e mulheres pertencentes às classes subalternas, em busca do “nunca dantes visto” empurravam-se nas feiras para ver os adestradores de ursos ou de babuínos recentemente chegados da África. Em A tempestade, de Shakespeare, Trinculo argumenta com Caliban: Ó estranho peixe! Se estivesse na Inglaterra, como estava outrora, eu não precisaria mais do que exibir uma pintura deste peixe para que todos os idiotas e curiosos me atirassem uma moeda de prata. Lá, este monstro nos enriqueceria; lá, basta um estranho animal para tornar um homem conseqüente. Tais pessoas não dariam um centavo para socorrer um mendigo estropiado, mas dariam dez para ver um índio morto. O peixe-cardeal ou um índio nas ruas dacapital não permitiam às pessoas mais simples participar de longínquas viagens aventurescas? Otelo não entretém Desdêmona contando-lhe sobre
canibais e blêmias? Caliban, ele mesmo, não é um ser monstruoso, obra de uma feiticeira?22 Prodígios e monstros circulavam tanto em peças de teatro como em brochuras baratas que anunciavam nascimentos monstruosos e aparições no céu. Ben Jonson refere-se a esse gosto pelo insólito no final do prólogo de Cada homem com seu humor, quando interpela os espectadores: “Vós que tantas honras fazeis aos monstros, poderíeis amar os homens?” Em 1594, Thomas Nashe publica uma curiosa brochura, intitulada Os terrores da noite, na qual se sucedem, entre a ironia e o bom senso, as idéias correntes da época: a noite, o mal, o príncipe das trevas, o inferno. Por meio delas, o autor busca explicar os sonhos, esse “fervilhamento de espuma da fantasia que o dia não digeriu”, bem como as “visões e aparições” noturnas.23 As lentes do olhar à noite equivaleriam a lentes de aproximação, capazes de transformar cada raio de luar num gigante. O humor melancólico, por sua vez, seria o responsável por engendrar “várias coisas deformadas em nossa imaginação” No período elisabetano, o monstruoso e o inexplicável enraízam-se na sombra e associam-se aos terrores da noite. No primeiro ato de Júlio César, de Shakespeare, Casca descreve a acumulação de prodígios que inundaram a noite 52 53 romana: um sombrio leão que, mirando-o com um olhar extraordinário, cruzou seu caminho sem fazer-lhe mal, uma tempestade de gotas de fogo, a mão esquerda de um escravo que ardeu como vinte tochas, cem mulheres transformadas em espectros que assistiram a uma ciranda de homens em fogo. “Que não se diga que são coisas naturais e que se podem explicar”, pondera, “pois para mim são presságios de grandes transformações.” Aqui, o monstruoso é aquilo que escapa à ordem natural. O mesmo ponto de vista é confirmado por Ben Jonson, que, em O alquimista, critica os desvios da norma, que “fogem à natureza”. O monstro libera todas as possibilidades, criando angústias, enquanto a razão oscila. Tanto na literatura como no teatro, o superlativo e o aterrorizador se unem ao maléfico para criar visões alegóricas como aquela de Brutus, no mesmo Júlio César, sobre a abstração corporificada que é a “conspiração” liderada por encapuzados que chegam à noite. E ele pergunta: “Encontrarás tu uma caverna bastante escura para esconder tua face monstruosa?”: Edmond Spencer, outro autor teatral inglês do final do século XVI, fabricava, ele também, personagens extraídos dos bestiários medievais, mas tratados na forma maneirista de sua
época. Na mais importante de suas peças, A rainha das fadas, o personagem Fantastes, misto de sábio e melancólico dedicado às atividades intelectuais, é um criador de monstros e de animais fantásticos. 24 Entre os textos satíricos que proliferam paralelamente às querelas religiosas que sacodem a Inglaterra, alguns atores sociais são transformados em monstros. É o caso, por exemplo, dos jesuítas descritos por Dekker, na tradição dos monstros compósitos, com “uma fisionomia de harpia, a cabeça de uma raposa, o corpo coberto de pele de cordeiro, a voz de mandrágora, cujos gritos transpassam a ponto de matar quem os ouve”: Mais além, confundindo o monstruoso e o demoníaco, o padre da Companhia de Jesus não “é nem um pássaro, nem Leviatã, mas a essência do diabo e mostra cores mais variadas do que um arco-íris”. Dentro da mesma tradição, na Alemanha, Melanchton faz imprimir um folheto com a imagem de mula escamosa, de cujas nádegas brota um repugnante demônio, simbolizando o papado.25 Criando uma atmosfera de tons bruxuleantes e sombrios, na qual todos os excessos e traições parecem possíveis, teatro e literatura colocam em cena espíritos do mal e fúrias, transformando a inquietação social em ameaçador pressentimento da revolução puritana que grunhia às portas da Inglaterra. Na mesma época, um médico autodidata escreveu um livro que revolucionou o campo da monstruosidade no Renascimento. Tratase de Ambroise Paré.26 Nascido na pequena localidade de BourgHersent, França, em 1502, Paré interessa-se desde cedo pela medicina, instalando-se, em 1532, como “barbeiro” em Paris. Como resultado de seus conhecimentos sobre hemorragias e métodos de amputação de membros postos em prática durante o cerco de Carlos v a Metz, foi recomendado por Isabel de Albret a Henrique ii, que o converteu em cirurgião real. Paré serviu sucessivamente a Francisco ii, Carlos ix, quando deve ter cruzado com Thevet, e a Henrique iii. Em 1554 foi nomeado membro do Colégio de São Cosme, apesar da resistência dos professores da Sorbonne, que não podiam tolerar que fosse elevado a tal dignidade quem nem sequer falava latim. Seu livro, Monstros e prodígios, publicado em 1575, suscitou a ira da faculdade de medicina e uma autêntica querela por atentado aos bons costumes que só terminou diante do Parlamento. Em 1590, quando Henrique iv, o Bearnês, conclui seu assédio à capital, morre Ambroise Paré.27 Em seu tratado sobre os monstros, ele enumera as causas que provocavam deformações e desvios orgânicos nos homens ou nos animais. Elas eram, segundo ele, treze: as duas primeiras ligavam a monstruosidade a um presságio. No primeiro caso, o 54
55 presságio proclamava a glória de Deus; no segundo, anunciava um signo de sua cólera como foi o caso do filho de Roberto, o Piedoso, nascido com cara e pescoço de ganso. Seguiam-se outras razões comumente admitidas na época, como a excessiva quantidade de sêmen, a mistura de vários semens, a corrupção e podridão de certos resíduos no útero feminino, as enfermidades acidentais ou hereditárias. A décima segunda explicava-se pela imaginação excessiva da mãe durante a gravidez. Crianças de pele escura, nascidas de mães brancas, eram atribuídas à contemplação de quadros ou pinturas sobre mouros. Em 1517 — ele exemplifica — nascera na cidade de Bois-le-Roy, França, um menino com cara de sapo, pois sua mãe tivera uma rã nas mãos pouco antes de conceber. Uma menina coberta de pêlos, disforme e repulsiva, era conseqüência de uma imagem, em que são João aparecia coberto de peles de urso, fixada aos pés da cama de sua mãe. A décima terceira razão pela qual se engendravam monstros era a participação ativa do diabo e de bruxos: “Há bruxos e magos, envenenadores, malvados, astutos, enganadores que realizam o dito pacto que fizeram com os demônios, de quem são escravos e vassalos”28 O que é um monstro no Renascimento? Paré explicava como um “desvio” em relação ao curso normal da natureza. Algo para além da natureza e do ordinário das coisas. Dessa forma, concordava com Agostinho, que dizia que nada era “contra a natureza”: “Como pode ser contra a natureza o que se produz por vontade de Deus, no momento em que a vontade de um tão imenso Criador é a natureza de todas as coisas criadas?”29 Essa definição, segundo Jean Céard,30 funda a equivalência entre o raro e o monstruoso. Ora, o raro podia ser tanto o que acontecia esporadicamente como o que fosse singular: assim, a virtude do ímã é rara, mesmo que ela jamais deixe de se manifestar. Assim também o curso natural das coisas é ao mesmo tempo o comum, o que acontece habitualmente e, mais especificamente, aquilo que se conforma à ordem da natureza. Esta, por sua vez, realizando as formas criadas por Deus, tinha o poder de trazer à luz seres que reproduziam um arquétipo, diversificando-o. Essa capacidade de variação, longe de ameaçar a ordem da natureza, ajuda em sua constituição, pois, afinal, o que seria dela se todos os seres, entre si, fossem absolutamente idênticos? Não haveria mais ordem, mas confusão. O curso natural das coisas determinava precisamente essa composição de semelhanças e diferenças que liga cada coisa a seu gênero enquanto assegura sua singularidade. Correlativamente, o monstro é o ser no qual a diferença tende a acentuar-se em detrimento da semelhança. Tal definição alargava enormemente o campo da monstruosidade. Eram
consideradas monstruosas as raças de homens que supostamente viviam em longínquas paragens, distanciados da forma comum de homens: os arimaspes, dotados de um único olho; os astomes, sem boca, que viviam de perfumes; os ciápodes, donos de um único e imenso pé, e ainda os gigantes, anões e todos aqueles cuja configuração física, ou os mores, afastavam-se do comum, como os trogloditas ou os antropófagos. Da mesma maneira tinham- se por monstros seres vivos que, semelhantes aos pais, se afastavam da forma comum de seu gênero: assim o avestruz, um pássaro, mas um pássaro que não voa. Ou o peixe-voador, que, como o nome indica, voa, ou ainda o tucano, cujo bico é desproporcional em comparação aos outros pássaros. Indo mais longe, a ciência não se limitava aos seres vivos. Em relação às chuvas, uma chuva de sangue ou de rãs seria um monstro. Em relação aos meteoros, um cometa ou um eclipse mereceriam a mesma denominação etc. No que diz respeito à participação do demônio na fabricação de monstros, Paré encontrou um severo antagonista no célebre 56 57 alquimista Paracelso. Este se recusava a admitir a intervenção tangível e material do maligno, fosse como íncubo ou súcubo no ato da geração, considerando-a impossível. Em seu Tratado das moléstias, estende-se sobre os malefícios que podiam exercer os demônios, mas para ele tudo não passava de uma ação espiritual. Em se tratando de puras abstrações privadas de carne, o único poder que podiam exercer era aquele de movimentar os corpos e mudá-los de lugar, mas era-lhes impossível tocá-los. Paracelso compara sua influência à dos astros sobre os fenômenos naturais.31 Mas se Paracelso se opõe tão claramente à teoria da gênese demoníaca é porque ele tem um sistema teratogênico próprio, exposto no seu Da geração humana. Partindo da existência de monstros duplos, ele se coloca a pergunta: como homens podem vir ao mundo com duas cabeças, membros e dedos em excesso? E responde que isso se relaciona a acidentes com o “licor vital”. O processo seria o seguinte: a semente destinada à cabeça, por exemplo, separa-se em duas correntes, enquanto aquelas que devem formar as outras partes do corpo seguem juntas, resultando, naturalmente, na aparição de anomalias. Quanto a outras monstruosidades relacionadas com a figura de tal e qual animal, supõe-se que estas se deviam à ingestão de bebidas ou alimentos que continham um germe de qualquer bicho; esse germe, evoluindo no seio de uma espécie diferente, levaria à produção de um monstro.
Havia ainda outra teoria teratológica sobre a qual o alquimista se manifestou: a de que os astros podiam ser responsabilizados por nascimentos monstruosos. Endossada por vários astrólogos, a tese propugnava não ser raro o aparecimento mais freqüente de monstros nos países quentes. São Jerônimo já tinha esse ponto de vista. Para o renomado cenobita, a doçura do clima gaulês explicava a raridade dos híbridos que pululavam, ao contrário, na África Equatorial. Os astrólogos, por sua vez, eram categóricos: tratava-se do distanciamento que Vênus tomava do zodíaco. Outros calculavam que, se a Lua se encontrasse em certa conjunção no momento em que a mulher concebesse, resultaria um ser disforme, como os que vemos retratados nas gravuras “científicas” de Dürer e Hans Burgkmair.32 Podemos, talvez, nos perguntar como a Igreja permitiu o desenvolvimento da astrologia, pois nesse nível ela ameaçava diretamente a fé. Não apenas a ciência das estrelas trazia para o Ocidente cristão uma das formas mais desmoralizantes de idolatria, como, colocando-se sob a dependência dos astros, a Igreja deixava o cristianismo no mesmo nível de outras crenças. A poderosa instituição, todavia, reagiu: Cecco d’Ascoli foi queimado na fogueira porque ousara interrogar as estrelas para ajudá-lo a calcular a data do nascimento de Cristo. Mas, como já o demonstrou Burckhardt em sua obra clássica,33 nunca, desde a Antiguidade, a astrologia foi tão considerada: o papa Júlio ii não fizera calcular por astrólogos o dia de seu coroamento? Paulo iii, a hora de cada consistório? O humanismo, na verdade, favoreceu enormemente o papel da astrologia, cujo saber confirmava, por mil testemunhos, a concepção astrológica da causalidade; essa concepção penetrou toda a filosofia da natureza, da mesma maneira que deu bases para a construção das idéias de enciclopedistas e teólogos, da física e das ciências naturais. A idéia da estreita relação entre o microcosmo e o macrocosmo seguia em vigor, sendo o fundamento da história natural e daquela dos monstros.34 A bordo dos mais variados textos sobre a natureza, a medicina, o teatro, os astros ou a religião, toda uma constelação de idéias teratológicas atravessou incólume o período medieval e renascentista. Os monstros, eles mesmos, não tiveram de “ressuscitar” numa ou noutra época, pois eles jamais haviam desaparecido da memória e da imaginação dos homens. Qualquer que 58 59 fosse sua forma, filhos da desordem e da deformidade, inimigos do belo, eles pareciam investidos de uma missão especial.
Objeto fabuloso, incapturável e inexprimível, foram considerados, ao longo desses tempos, como um aviso divino ou um presságio funesto. iv. No reino, sem limites, do insólito Na Teogonia de Hesíodo, as harpias são divindades aladas, e de cabeleira longa e solta, mais velozes que os pássaros e os ventos; no terceiro livro da Eneida, aves com cara de donzela, garras encurvadas e ventre imundo, pálidas de uma fome que não podem saciar. Descem das montanhas e conspurcam as mesas dos festins. São invulneráveis e fétidas; tudo devoram, guinchando, e tudo transformam em excremento. Jorge Luis Borges, O livro dos seres imaginários Seria pueril imaginarmos que os naturalistas e biólogos do século xvii, os mais arraigados às formas tradicionais do saber, tenham dado as costas à natureza, passando a considerar a ciência como pura ginástica ou contorcionismo lógico. Eles continuavam convencidos de que a experiência era o único meio para compreender os fatos e a primeira virtude do sábio. Pensavam, ainda, que a autoridade dos antigos, como Plínio ou Aristóteles, não podia continuar sendo um argumento decisivo. No tocante às monstruosidades, contudo, a experiência 60 61 continuava a pregar peças e as certezas pareciam cada vez mais distantes. Fortunio Liceti, médico do século XVII, afirmava, por exemplo, que “todos os filósofos deviam seguir o julgamento dos sentidos nas coisas da natureza”. O sentido e a experiência permitiam-lhe descrever, com muita seriedade, que, “depois que um celerado tivera relações sexuais com uma vaca, esta ficara cheia e dela nascera um menino, absolutamente idêntico a um homem, inclinado apenas, como a mãe, a pastar e ruminar as ervas do campo”. Em 1639, quando um grupo de médicos se reuniu na cidade de Adresse para examinar o caso de “dois irmãos monstruosos vivendo num mesmo corpo” as conclusões não foram muito melhores: a criatura se originara “de uma constelação extraordinária que se encontrava nos céus quando de sua concepção”.1 Voltava-se às teses de Paracelso de que a concepção do “ovo humano”, microcosmo do corpo, poderia ser influenciado pelo mundo astral ou sideral. Mas o que significaria, finalmente, para esses sábios e doutores a tal “experiência” e o “testemunho dos sentidos”, capazes de explicar-lhes a origem e a causa das monstruosidades? É preciso, inicialmente, lembrar as condições em que essas observações eram feitas. Não se tratava de
experiências metódicas, mas sim de constatações que os médicos iam fazendo ao longo de sua prática, ao sabor dos acidentes que poderiam advir à sua clientela. Se o doente se curasse, agradecia-se a Deus, distribuíam-se felicitações e não se pensava mais no assunto. Se, ao contrário, ele morresse, era preciso, para entender alguma coisa, fazer uma autópsia. Esta era condenada pelos costumes da época e, ademais, se tivesse de fazer uma autópsia em cada doente que morresse, a vida inteira de um médico não seria suficiente. Apenas os fatos excepcionais chamavam a atenção do prático. Eis por que a literatura médica abundava em casos surpreendentes envolvendo 62 criaturas consideradas, então, monstruosas. A elite médica européia não se reunira em torno de um feto descoberto petrificado no abdômen de uma mulher sexagenária e viúva havia muito tempo? É preciso sublinhar também que o médico muitas vezes não era testemunha ocular do caso que descrevia. A maior parte das crianças monstruosas que ornamentam a literatura médica do século xvii nascera em áreas rurais, longe de qualquer médico. Elas entraram no mundo científico tendo como passaporte um atestado assinado por um velho padre, um cirurgião barbeiro ou uma parteira. O dito certificado era encaminhado ao médico da cidade mais próxima, que, em vez de se mexer para constatar se de fato a criança tinha cabeça de elefante, duas asas de águia e pés de galinha, preferia dissertar doutamente sobre os erros da faculdade formadora do útero feminino num monstro que ele jamais viu, mas sobre o qual não parava de falar. Eis por que Fortunio Liceti não hesita em acreditar que uma serpente podia copular com uma galinha; e que dos ovos, em vez de pintinhos, saíam cobrinhas. Afinal fora Júlia, uma empregada, que o vira! Como não acreditar que um ovo de galinha pudesse conter uma cabeça de homem eriçada de serpentes, quando se sabia que esse ovo fora descoberto em Autun, na casa de um advogado chamado Baucheron, por uma criada que preparava uma omelete? O ovo foi enviado ao barão de Sénechey, que o ofereceu, por sua vez, ao rei Carlos ix, que se encontrava, nesse momento, em Metz, cidade importante no Nordeste da França. Ora, o raciocínio era lógico: se é verdade que o rei Carlos ix, cuja existência jamais foi colocada em dúvida, esteve em Metz, cidade lorena conhecida por todos, e se é verdade que para preparar-se uma omelete é preciso quebrar ovos, o que é de notoriedade pública, é verdade também que o ovo em questão continha uma cabeça de homem eriçada de serpentes.2 63
Dentro dessa lógica, se um monstro rural de formas incertas encontrasse em seu caminho um médico desconhecido, amigo de um doutor importante na cidade, e o segundo quisesse fazer dessa história uma boa ocasião para tornar-se famoso, sua fortuna estava garantida! O “causo” seria recolhido por um erudito nos menores detalhes. Um sábio como Paré, Liceti ou qualquer outro o retomaria, publicando-o. Sua imagem seria engenhosamente ilustrada por um gravador que nunca vira nada parecido pela frente, mas que substituiria o testemunho dos sentidos pela força da imaginação. O monstro entrava pomposamente na tradição como um fato universalmente reconhecido, cujo exame se impunha a qualquer um que quisesse refletir sobre os poderes da natureza. Nessa perspectiva, Liceti chega a concluir que o ovo de Metz era o resultado do ajuntamento entre um homem e uma galinha, explicando: a semente humana, corrompendo-se, formara a cabeça e as serpentes, pois a semente retida se transformava num perigoso veneno. Ele mesmo vira um gato morrer depois de ingerir a clara do dito ovo. Não era isso seguir docilmente as lições da experiência, para explicar os monstros e outros fenômenos da natureza? Lembremos que Liceti, falecido em 1657, era um dos mais importantes professores de Pádua e que seu célebre tratado De monstrorum causis, natura et diferentiis, publicado pela primeira vez em 1616, teve reedições em 1634, 1665 e 1668 antes de ser traduzido para o francês, em 1708. O que aconteceu entre o fim do Renascimento e o início dos tempos modernos é que o médico ou o sábio do século xvii dispunha de uma massa considerável de fatos, alguns remontando a Hipócrates, Heródoto, Aristóteles, Plínio e tantos outros, espécie de tesouro comum, continuamente enriquecido. O leitor aí encontrava, misturadas, informações sobre um embrião semelhante a um ovo descoberto por Hipócrates; a criança negra, de 64 Heródoto, nascida de pais brancos; as fecundas uniões entre homens e animais relatadas por Plutarco e por Plínio; o boi caído do céu e observado por Avicena; a gravidez de uma mulher graças a um banho de piscina, contada por Averróis; a história de outra que tivera sete filhos de uma vez, na versão de Troguio Pompeu, cinqüenta, na de Alberto, o Grande, e setenta, na de Avicena, e outras centenas de “causos”. Os sábios modernos não hesitavam em apropriar-se dessas informações, animados pelo mesmo gosto do maravilhoso que já inspirara autores durante a Idade Média. Aldrovandi, em seu Monstrorum historia, chega a felicitar-se porque “tritões, sereias, nereidas e outros monstros do mesmo gênero, alguns
outrora considerados fabulosos, revelaram-se, todavia, tal como tinham sido vistos e descritos” Não imaginemos, contudo, que esses homens não tivessem nenhum senso crítico. Quando repetiam um fato extraordinário, não o levavam inteiramente a sério. Sobre a história da mulher que parira setenta filhos de uma vez, o padre Jean Riolan justifica, em 1605, que Avicena não “vira’ apenas “ouvira” a informação. Quando Liceti lê em Plínio que uma mulher copulara com um elefante, dando à luz um elefantinho, ele, ceticamente, nega-se a acreditar. E por quê? Porque, como todos sabiam, o elefante era um animal considerado muito casto, tendo por hábito esconder-se para realizar o ato sexual; como poderia ele, descaradamente, engravidar uma mulher?!3 e4 Para separar a verossimilhança daquilo que já se sabia, era necessário o apoio de sólidas bases de espírito crítico. São exatamente essas bases que faltam no século xvii. Liceti apenas reage à história de Plínio porque ela é contrária ao que, então, se conhecia sobre a vida dos elefantes. O bom senso não resistia à erudição de enormes bibliotecas constituídas sobre textos dos antigos e eis por que se continuava acreditando, com Plínio, que uma menina tinha nascido dos amores de um homem e uma égua, ou 65 com Célio Rodígio, que uma ovelha parira um leão. Na falta do bom senso, assassinado pela erudição, faltava aos homens de ciência acreditar que a natureza tinha leis regulares e acessíveis à razão humana. Mas essa convicção fundamental lhes era absolutamente estrangeira. A concepção de natureza que se exprime, com maior ou menor clareza, entre grande parte dos médicos da primeira metade do século XVII revela uma imensa confusão de posições. O contraste entre o dogmatismo com que pensavam as doenças e as incertezas com que se debatiam ao refletir sobre as operações gerais da natureza é incrível. O que se sabe é que raros eram aqueles que a consideravam um conjunto de fenômenos materiais, sensíveis e mensuráveis. O exemplo de Galileu passava longe da maioria dos estudiosos de monstros e de outros assuntos. Para estes, exercer sua ciência significava confrontar-se com um lado da natureza no qual a matéria servia de suporte a toda sorte de forças ocultas. Tais forças misteriosas tanto podiam ser instrumento direto da vontade divina quanto podiam ser, ainda, expressão de harmonias e relações dissimuladas entre as diferentes partes do universo, igualmente incompreensíveis,5 Se quisesse explicar a formação de um monstro, o médico podia recorrer a Deus, Ele mesmo, à alma do mundo, às influências dos corpos celestes, à alma da semente fecundante, ao calor inato
do corpo humano, à faculdade formadora do útero, e por aí afora. Ele podia descartar explicações sobrenaturais, mas nada lhe permitia rejeitar as teses indecifráveis baseadas no que seria uma manifestação da natureza. Em meio a esse combate nas trevas, a questão da monstruosidade passa a ser relacionada, no século xvii, a problemas de hereditariedade. Nesse período, a hereditariedade — conhecida entre biólogos como similitudo ou semelhança dos filhos com os pais — é explicada de acordo com Galeno, que a distinguia em três formas: a semelhança por espécie, a semelhança por sexo, a semelhança pela fisionomia. Um homem engendraria um homem, um cavalo, outro cavalo. Por quê? Segundo Aristóteles, tratava-se de um efeito da alma, essa “forma” de embrião, que, saída da alma dos pais, não podia gerar outra coisa senão sua própria forma. Mas, nesse quadro, como ficavam os híbridos e os monstros? Já vimos que os biólogos do século XVII acreditavam piamente no cruzamento de espécies diferentes; o ovo de Metz, analisado por Liceti, não os deixava mentir! Segundo Aristóteles, insistentemente invocado, o produto seria sempre parecido ao pai. Com efeito, para ele, uma vaca emprenhada por um homem podia parir um homem perfeito. Não se negava que o calor e as qualidades da semente masculina o permitissem. A vaca, por sua vez, entrava como um segundo agente; o calor de seu corpo ajudaria a organizar as partes do corpo humano. Aliás, não havia nada de chocante nisso, uma vez que o leite das vacas alimentava crianças! Mas o monstro tornava-se embaraçoso, pois ele era precisamente aquele que não se parecia com seus pais. Fortunio Liceti, retomando conceitos já expostos, explicava que sua causa tanto podia ser “o bom Deus” como “o corpo celeste, que por seu movimento perpétuo, e por meio de sua luz, governa e rege tudo o que se faz aqui embaixo” Outra causa seria o calor da “matriz da mãe” ou problemas com “a virtude formadora, constitutiva e reorganizadora das partes do corpo do animal”. A classificação de Liceti distingue dez tipos de monstros repartidos em dois grandes grupos: monstros uniformes (por excesso, mutilados, de natureza ou sexo duvidoso, disformes, sem formas e enormes) ou monstros com várias formas (da mesma espécie, de espécies diversas do mesmo gênero: crianças-lobo; de diferentes gêneros próximos: criança-ganso-rã; de espécies diferentes: homem-diabo). Cada tipo de monstro tinha suas causas 66 67 particulares
que
se
dividiam
em
causas
materiais:
semente
insuficiente em quantidade ou qualidade, útero materno muito estreito, falta ou excesso de alimentação, doença do embrião. Mas havia, também, as causas “formais”: ausência de virtude formadora, ação da imaginação materna. Um carneiro com cara de homem ou um homem com cara de cavalo seriam atribuídos ao fato de que a alma da semente degenerara em outra natureza. Por outro lado, se uma mulher que tivesse visto lagostas durante a gravidez desse à luz uma criança e uma lagosta, atribuía-se o fato à força de sua imaginação. Os ajuntamentos irregulares geravam, comumente, seres perfeitos da espécie paterna, assegurando o poder fecundante do macho. Por outro lado, uma fêmea que tivesse se acasalado duas vezes sucessivamente, uma de forma regular e a outra de forma irregular, poderia parir um monstro duplo. Mas as classificações de Liceti não são originais e devem muito a Paré. Sua originalidade reside em certa precisão de análises e na sutileza das pesquisas sobre as “causas” que não se encontra em seus predecessores.6 Seus princípios mantiveram-se por muito tempo. E as duas ordens de causas, materiais e formais, foram, por longo tempo, unanimemente adotadas. A existência de gêmeos cujos corpos estivessem grudados será, normalmente, explicada pela quantidade excessiva de semente para um embrião mas insuficiente para dois. A pilosidade excessiva de uma “menina barbada” era atribuída à imaginação materna, que, tratando-se de um agente superior, impedia com freqüência a virtude formadora de realizar seu programa original. Pois a imaginação nascia das virtudes da alma sensível: uma boa alma engendrava bela imaginação e vice-versa. Ora, vejamos como se dava a ação da imaginação. Apresentava-se à mulher algo de seu agrado; tal objeto excitava seu apetite. Este, por sua vez, movia e comandava a potência motriz executora das vontades da dita mulher. Tal potência agitava os espíritos, que recebiam no cérebro a imagem cobiçada, fecundando a seguir o embrião e imprimindo-lhe a imagem que lhe fora consignada. Apesar das dificuldades, explicações de Liceti como essa acima evitavam as teses astrológicas e mantinham-se no domínio do “natural”. Já não eram mais tempos em que o nascimento de uma criança disforme era necessariamente atribuído ao comércio sexual entre a mãe e o diabo, levando a primeira direto à fogueira. O próprio Liceti só acreditava em monstros provenientes de apenas três ou quatro animais diferentes como expressão do estigma satânico. Em seu entender, se bem que Deus Todo-Poderoso fosse a “causa primeira distante” da existência de monstros, sobrava outra causa suficientemente distante para que a questão continuasse, mais tarde, a suscitar interrogações. A faculdade formadora, agente da causa final, tinha conexão direta com a matéria para que qualquer erro fosse caracterizado como de responsabilidade direta da Providência
divina. Graças à “faculdade formadora”, a questão dos monstros afastava-se do âmbito teológico e restringia-se, pouco a pouco, aos domínios das “questões naturais”. Nesses tempos, este não era um mérito negligenciável. Se qualquer pessoa afirmasse que “a verdadeira causa do nascimento de monstros é a cólera divina”, poder-se-ia responder, respeitosa mas firmemente, que isso era sem dúvida verdadeiro, mas que a ciência não podia responsabilizar-se por uma causa dessa ordem. Como bem diz Jacques Roger,7 assim se apresentava no século xvii o problema da geração dos animais e, por conseguinte, da fabricação de monstros. Ao final do século xvii, a ciência já era servida por um grupo exclusivo de homens que lhe eram inteiramente consagrados, dotados de meios de comunicação relativamente rápidos e com todo o apoio do poder do Estado, das universidades e das academias aos quais serviam. Mas para que houvesse, de fato, progressos era preciso mudar o espírito científico. 68 69 E este, pelo visto, embora capaz de manusear com facilidade o microscópio recém-inventado, custava a digerir as novas exigências da ciência. Não é preciso sublinhar que para os novos sábios todo conhecimento exigia experiência. Na esteira de Descartes ou de Locke, não havia médico, biólogo ou literato que não proclamasse a necessidade de consultar e de seguir o conhecimento empírico. Muito em breve, seria necessário prevenir-se contra a imaginação dos modernos, fecunda em tentar legitimar suas experiências, pois se aceitava como empírica toda sorte de histórias fantásticas. O primeiro passo dado foi no sentido de rejeitar em bloco a massa de fatos herdados do passado, dos antigos. O desprezo pela erudição, signo distintivo do espírito moderno, permitia reconhecer imediatamente os acólitos da nova ciência, aqueles que renegavam a tradição, vista então com maus olhos. Contudo, havia muitos que misturavam os canais e apoiavam as observações de Leeuwenhoek, o inventor do microscópio, com teses extraídas de Alberto, o Grande. Ao comentar, em 1684, um nascimento múltiplo, o Jornal dos Sábios, hebdomadário francês, comparavao ao caso de uma condessa holandesa que teria dado à luz 365 filhos, de uma única vez.8 O jornalista matizava: o caso não era totalmente comprovado. Reações como essa marcavam a rejeição, ainda que tímida, às velhas fábulas. Mas não as descartavam inteiramente, uma vez que era preciso substituir o antigo acervo pelo que se consideravam fatos reais. As
publicações estavam cheias deles, O Jornal dos Sábios, mais uma vez, fornecia aos leitores uma farta colheita, cuidadosamente selecionada entre as cartas dos leitores e os melhores autores da época. Alguns dos tais “fatos” parecem surpreendentes Em 1678, por exemplo, uma jovem miava, saltava e perseguia camundongos depois de ter ingerido sangue de gato quente. Em 1679, uma menininha espirrava pedras pelos olhos. Em 1681, tratou-se de um ovo recheado de 70 estrelas, depois, de outro contendo a cabeça de um homúnculo. Decididamente esse era o ano dos monstros, anunciava o jornal! Em 1684 escreviam da Inglaterra contando a cópula de um rato com uma gata. O resultado: híbridos de gato e rato, preciosa contribuição ao estudo dos monstros. Em 1685, um camponês engolira um camundongo vivo, guardando-o no ventre durante nove meses, para expeli-lo vivo oito dias antes de entregar a alma a Deus. O Jornal da Inglaterra anunciava o nascimento de xifópagos com a cabeça transparente sob a manchete: “É do Norte que vem a luz!” Ainda no mesmo ano, divulgou-se o caso instigante de um macróbio holandês, com 120 anos, que teve a grata surpresa de ver crescer de novo todos os seus dentes. O caso do Jornal dos Sábios está longe de ser isolado. As Atas filosóficas publicadas em Londres manifestam o mesmo gosto pelos monstros, mas a fleugma britânica exigia que fossem, pelo menos, autênticos ingleses. As Efemérides germânicas, publicadas pela Academia dos Curiosos da Natureza, formigavam, por sua vez, de histórias maravilhosas no mais puro estilo de Alberto, o Grande. Os prodígios mais comumente aceitos eram aqueles creditados à imaginação das mulheres. Ovos de galinha geravam milhafres, uma criança parecia-se com uma vaca, outra com um lobo, outra com um macaco, sem que isso parecesse inacreditável. A muito sisuda História da Academia Real de Ciências, na França, conta como uma criança nascera com um rim na cabeça porque sua mãe não satisfizera o desejo de comer tal iguaria; como uma ovelha nascera com pêlos de lobo no lugar do tosão; um menino sem os olhos ou um veado com escamas de crocodilo em função de sustos sofridos por suas genitoras. Tudo isso se explicava muito naturalmente. Mais difícil era compreender como uma mulher pode dar à luz uma cadelinha sem interromper a gravidez e apesar dos maus-tratos que lhe infligia o marido; ou explicar o caso do menino que nascera com um único olho, 71 resultante da união dos outros dois, e com um membro sexual
masculino na testa. A explicação? “Sua mãe, grávida, imaginou vivamente tal vara [sic] pendurada à sua fronde ao esforçar-se em aproximar um olho do outro num sonho, brincando com seu marido ou olhando figuras relativas às festas de Príapo.” Vê-se, com nitidez, como esse final de século XVII oferecia todas as nuances possíveis entre a credulidade mais ingênua e a prudência científica mais rigorosa. Com relação a isso, vale ressaltar as reações suscitadas por uma aventura que fez bastante barulho em 1697. Um certo sr. Saint-Donat, cirurgião na pequena cidade de Sisteron, informa a Academia francesa sobre um caso de gravidez masculina que ele teria acompanhado. Tratava- se de um jovem rapaz a quem uma dama teria agraciado com seus favores, impedindo-o, contudo, de chegar às vias de fato. Nove meses depois desse evento, o jovem apresentava uma intumescência no baixo-ventre, operada pelo dito cirurgião. Para surpresa de ambos, aí se acharam os rudimentos de um embrião, em particular de um crânio. A Academia decidiu que, se o fato era bem esse, não se tratava de um embrião mas de um “pólipo”. No ano seguinte, um especialista concluiu por um “sarcoma” explicando que o corpo estranho era composto de matérias de diferentes cores, que davam a ilusão de um rosto de criança, “da mesma forma que a imaginação descobria figuras de animais no mármore jaspeado”. Outro sábio redargüiu, atacando os colegas que não viam nessa matéria mais do que “simples carnosidades” explicando que se tratava de uma migração complicada do útero da mãe para o ventre do pai, do ovo no qual se gestavam as criaturas vivas. Foram necessários dez anos desse tipo de debate para que a história fosse aposentada como inverossímil. Casos como esse, afirma Jacques Rogier, ilustram o interesse da medicina e da biologia pelos monstros, tanto mais quanto a ausência de espírito crítico tornava esses seres absolutamente extraordinários. A idéia, bastante divulgada nesse período, de que a natureza era ativa e, portanto, suscetível de cometer erros de todo tipo permitia eximir o Criador das responsabilidades em relação ao nascimento de seres monstruosos. Na falta de toda e qualquer explicação, restava o diabo, para quem se empurravam e a quem atribuíam os casos muito complexos, embora houvesse quem argumentasse que Deus, em sua onipotência, não admitiria ver seus desígnios contrariados por qualquer força demoníaca. Os monstros, afinal, só existiam por sua ordem. O tiroteio atingiu adeptos do mecanicismo, que defendiam a idéia de uma natureza passiva, incapaz de sair de seu funcionamento preciso e regulado, enquanto alguns diziam que Deus deixava agir as causas naturais para tornar os homens mais atentos à perfeição com que foram concebidos. O problema dos monstros não era novidade para a ciência; tão antigo quanto o problema do mal, ele se tornara uma de suas
faces. A partir dos finais do século xvii, todavia, ele ganha uma importância particular, e isso sobretudo porque os monstros são alvo de exames cada vez mais detalhados.10 Sabe-se que o gosto pelas mirabilia não tinha decididamente desaparecido, a julgar pelos vários exemplos extraídos do Jornal dos Sábios e de outras publicações de sociedades científicas. Mas os progressos do espírito científico não permitiam mais que se dissertasse sobre um monstro que não tivesse sido visto com os próprios olhos. As Academias passam a examinar, por intermédio de suas juntas, os monstros que lhes são enviados: anatomistas os dissecam cuidadosamente e registros iconográficos não deixam escapar o menor detalhe. Tudo é cuidadosamente desenhado, pintado, aquarelado. Os sábios passam a tentar determinar a natureza e a ação das causas que os teriam engendrado. Para toda uma categoria de deformidades, continua-se a 72 73 supor a intervenção da imaginação materna. Conhece-se a história relatada por Nicolau de Malebranche, adepto do racionalismo de inspiração divina, sobre a criança que teria nascido toda retorcida, pois sua mãe assistira ao suplício de um condenado na famigerada roda. Malgrado sua grande autoridade, explicações como a do famoso oratoriano não tinham mais crédito. Não apenas porque houve abusos e porque ficava difícil acreditar em tal poder da imaginação, mas porque no caso de crianças semelhantes a animais tais similitudes desapareciam diante de exames realizados com seriedade e sem preconceitos. A idéia que se conservava era a de que o “germe”, semente ou ovo, teria sofrido um acidente durante a gestação. O acidente considerado mais banal dizia respeito ao esmagamento de dois germes gêmeos, cuja conseqüência era um monstro total ou parcialmente duplo. Tal como as duas menininhas, inteiramente distintas mas ligadas do peito ao umbigo, de que fala o Jornal dos Sábios em 1672. A causa mais natural para o esmagamento seria uma contração excessiva do útero. Segundo o grau dessa contração, dois germes poderiam desenvolver-se completamente continuando soldados um ao outro, ou então um deles se desenvolvia, apenas parcialmente, o que geraria seres de duas cabeças com um mesmo tronco, duas bacias e quatro pernas ligadas ao mesmo tronco etc. Essa explicação, confirmada em 1700 pelo exame de vários monstros apresentados à Academia francesa, tornou-se oficial. Para os adeptos da teoria animalculista espermática, acreditava-se que o monstro duplo provinha de dois animálculos introduzidos excepcionalmente no mesmo ovo. De qualquer maneira, duas convicções formais deviam ser respeitadas: a primeira, que não se formava no monstro nenhuma matéria
organizada que não viesse de germes preexistentes; a segunda, que apenas o acaso era responsável pelo ajuntamento de tais germes e pela obliteração de algumas de suas partes. Essa explicação satisfazia ao senso comum, o que não era exatamente uma virtude para uma teoria científica. Rapidamente, ela vai bater de frente com uma dupla dificuldade: de ordem metafísica e experimental. A dificuldade metafísica residia na noção mesma de monstro. Espontaneamente, aos olhos dos homens, os monstros significavam uma desordem na natureza. O sábio, por sua vez, negava-se a responsabilizar Deus diretamente e preferia atribuir tal desordem ao acaso. Mas, ao poupar Deus da acusação de injustiça, acusavam-No de impotência. O acaso interferia nos desígnios do Criador, o que era considerado inadmissível. Olhando a questão de mais perto, percebia-se que o verdadeiro escândalo estava no homem e na temeridade que o fazia conceber a justiça divina à imagem da humana, impondo a Deus os limites de nosso espírito. Novas querelas animaram o ambiente intelectual. Enquanto uns viam nos monstros um espelho da ordem visível da sabedoria divina, outros os percebiam como marcas da infinita liberdade de Deus perante a impotência radical dos homens. Para aqueles que acreditavam que Deus agia por meio de vontade simples, eterna e imutável, capaz de abraçar indivisivelmente o presente e o futuro, os germes dos monstros foram produzidos, no início, como aqueles dos animais perfeitos [...] não há nada no mundo, afora o mal moral, que não tenha Deus por autor e que ele não tenha produzido positiva e livremente. De nada serviria dizer que Deus produziu monstros, mesmo querendo que estes não existissem, pois foi obrigado a fazê-lo para satisfazer à simplicidade das leis da natureza. Não que autores como Régis, dono da opinião expressa acima, recusassem fornecer aos monstros causas acidentais: eles 74 75 admitiam que um útero muito estreito desse origem a crianças corcundas ou mancas, que a imaginação materna engendrasse crianças-macaco, ou que os monstros duplos proviessem de dois germes colados um contra o outro. Mas tais acidentes não podiam ser atribuídos ao acaso independente da vontade divina, que reinaria sozinha, livre e absoluta no mundo e incompreendida dos homens, incapazes de julgar seus poderosos desígnios. Ainda em meados do século XVIII, em plena época das Luzes, a natureza dos monstros e os objetivos de Deus ou da natureza continuavam a ser discutidos. O flamengo Jean Palfn, em 1703, não hesitava
em dizer que tinha certeza de que existiam e sempre existiram monstros humanos, citando inúmeras fontes da Antiguidade para dar legitimidade a sua opinião. Seu longo inventário inclui uma imensa diversidade, desde “os vários monstros que foram deixados para trás, quando os construtores da torre de Babel se dispersaram”, até uma criada romana que “deu à luz um monstro que consistia unicamente de uma mão”.11 De toda maneira, diretamente ou não, os monstros vêm de Deus e de sua vontade una e simples. E tratar-se-ia realmente de monstros, ou seria o limitado entendimento humano que via tais criaturas assim? v. Monstros e maravilhas no Brasil colonial E se quereis ouvir das naturezas e qualidades das alimárias que há na terra natural de cá, dai-me atenção e pode ser que vos faça arcar as sobrancelhas de espantado. Ambrósio Fernandes Brandão, Diálogos das gratidezas do Brasil Ao longo da Idade Moderna, as variações de combinações possíveis tiradas de diferentes reinos da natureza, pareciam simultaneamente infinitas e saídas do insólito, pois o monstro era considerado um ser composto de partes irracionalmente e antiorganicamente ligadas entre si. Ele era, como bem diz Marcel Brion,1 um ludus naturae, um jogo da natureza. Presentes em todo o Ocidente cristão, monstros e monstrengos fariam a rota de tantos navegadores em direção ao Oeste, chegando junto com os primeiros colonizadores à terra brasilis. E eles não vinham sós. Acompanhavam-se do olhar que os europeus tinham sobre a América. O Ocidente cristão ora achava que o Novo Mundo era habitado por seres que, de fato, descendiam de 76 77 Moisés, ora pensava que o novo continente era o endereço fixo do demônio e, por isso mesmo, uma fábrica de monstrengos em permanente produção. Razão, aliás, pela qual o magistrado bordelês Pierre de Lancre, encarregado de julgar processos de feitiçaria, reconhecera nas bruxas francesas resquícios dos diabos caçados e expulsos do Novo Mundo. As malignas criaturas teriam voltado à Europa para vingar-se de seus perseguidores. Para definir as características das novas terras, multiplicaram-se as obras de cartógrafos, cosmógrafos e corografistas, autores de mapas-múndi, de livros de viagem, de grossos tratados ou simples monografias que deveriam representar a verdadeira e então nova imagem do urbe terrestre. Tais imagens fizeram o balanço do conhecido e do desconhecido, permitindo analisar de que forma noções geográficas, botânicas
e etnográficas se integraram ao patrimônio cultural da Europa. Os primeiros “descobridores” mostravam-se, em seus relatos, menos impressionados pela grandeza da natureza americana e muito atentos à originalidade de seus habitantes. Colombo, por exemplo, utiliza sobre as Bahamas o mesmo vocabulário empregado no célebre romance de cavalaria Amadis de Gaula para pintar ilhas imaginárias. Sua tendência foi embelezar a realidade, mencionando apenas o que era positivo e escondendo o resto: os canibais, os répteis e os animais ferozes. A natureza americana foi reduzida pelo navegador genovês a alguns elementos de base que pontilham seu texto com freqüência: a água, a brisa, as árvores e o canto dos pássaros. Mas se Colombo dá uma idéia imperfeita e às vezes irreal do espaço fí’sico, ele soube, ao contrário, fazer uma descrição bastante completa dos americanos. Chega a ponto de reconhecer que, diferentemente do que anunciava o Livro das maravilhas de Marco Polo, ele não encontrara ali raças monstruosas3 embora tivesse visto à distância três sereias menos belas do que imaginara que pudessem ser. Para a maior parte dos viajantes, a terra era a mesma de um lado e de outro do mundo; o Novo Mundo físico não podia ser mais do que um prolongamento do Antigo. Nele, deveriam encontrar-se as mesmas pedras, árvores, climas, plantas... mas os homens! São eles o problema: conheceriam Deus? A que espécie pertenciam? Comem-se entre si? Haveria monstros entre eles? Os primeiros “descobridores”, quer se tratasse dos portugueses na África ou nas Índias, dos espanhóis, franceses ou italianos na América, todos obedeciam a uma tendência natural do espírito humano, que consiste em trazer o desconhecido para o conhecido. Diante do novo, ele tende a apegar-se aos raros elementos que lhe permitem evocar realidades familiares. Faz-se, então, referência ao que se conhece pessoalmente ou indiretamente, pelos textos de outrem. Assim, as realidades raramente são descritas por si mesmas, mas em termos de semelhanças ou diferenças, quer dizer, comparação. Essa abordagem, como veremos adiante, aparece com freqüência nos cronistas sobre a América portuguesa. Um deles, Gabriel Soares de Souza, destacava, por exemplo, a semelhança de climas que permitiu a precocidade genética de várias espécies importadas da Europa e aclimatadas ao Brasil: vacas, cavalos, galinhas, ovelhas e cana-de-açúcar, laranjeiras, arroz. Tudo dava mais abundante e rapidamente. Mas, quanto aos homens, os resultados podiam surpreender e fugir à semelhança. Descrevendo a presença de franceses na América portuguesa, ele conta: Os quais se amancebaram na terra onde morreram, sem querer voltar para a França e viveram como os gentios, com muitas mulheres. Dos quais e dos que vinham todos os anos à Bahia e ao rio de Sergipe, em naus de França, se inchou a terra de
mamelucos que nasceram, viveram e morreram como gentios, dos quais há hoje muitos descendentes que são louros e alvos e sardos, e havidos 78 79 por índios tupinambás e são mais bárbaros que eles. E não é de espantar serem esses descendentes dos franceses alvos e louros pois que saem a seus avós. Mas é de maravilhar trazerem do sertão, entre outros tupinambás, um menino de idade de dez anos para doze, no ano de 1586, que era tão alvo que deo ser muito não podia olhar para a claridade e tinha os cabelos da cabeça, pestanas e sobrancelhas tão alvos quanto algodão. Filho de índios, considerados pelo autor luso “muito pretos” e sem nenhum antecedente francês, o garoto albino não chegava a ser considerado exatamente um monstro. Mas tratava- se, com certeza, de um ser bizarro! Se alguns autores insistem nos aspectos familiares, outros, ao contrário, sublinham o insólito, o maravilhoso e o diferente. Paulmier de Gonneville, comerciante que vem ao Brasil em 1503 e leva o filho de um cacique carijó para a França, fica extasiado diante do que chama de “produções da natureza”: o país é fértil, dotado de animais, pássaros, árvores e outras coisas singulares, desconhecidas da cristandade. A noção de singularidade ou de prodígio aparece com muita insistência nos textos do período. Ao largo da foz do Amazonas, Vespúcio considerou-se diante de um prodígio dos grandes, pois a 25 léguas da costa ainda navegava sobre as águas doces do gigantesco rio. Outro caso emblemático do prestígio das “singularidades” é o livro do nosso já conhecido André Thevet. Depois do périplo ao Levante entre 1549 e 1552, quando é sagrado cavaleiro do Santo Sepulcro, o franciscano volta à França. É então convidado para outra viagem, dessa vez ao Novo Mundo, na companhia de um cavaleiro da Ordem de Malta, ninguém menos do que Nicolas Durand de Villegaignon. A aventura da Fránça Austral, fundada numa ilhota da baía do Rio de Janeiro, reduziu-se a um curto verão passado, segundo ele, “entre os mais selvagens do 80 universo”, de 15 de novembro de 1555 a 31 de janeiro de 1556. Tendo adoecido logo que pisou nas praias cariocas, acabou repatriado no mesmo barco que o trouxera ao Brasil. Dessa breve estada nos trópicos, ele levou material para um segundo livro, mais cheio de novidades do que o precedente e que o tornou uma celebridade. As singularidades da França
Antártica apareceram em fins de 1557, foram traduzidas em alemão e inglês e suscitaram, a longo prazo, empréstimos e imitações polêmicas. A qualidade da documentação sobre a fauna, a flora e os mores dos índios meridionais somou-se à fantasiosa descrição do autor sobre as amazonas, os antropófagos e o hay, já mencionados por sábios antigos e modernos, de Plínio a Gesner. As amazonas, é bom não esquecer, são citadas na carta apócrifa do Preste João e quando não são encontradas no Norte da África deslizam para as Américas. Os antropófagos fazem pensar nos “comedores de carne humana” mencionados no Romance de Alexandre, presos e punidos pelo poderoso monarca. O fato de nossos índios não serem cobertos “dos pés à cabeça” por pêlos os afastava dos astomos, cabeludos moradores da Índia. O hay lembra muito a famosa mantícora vista pelo mesmo Thevet nas costas do mar Vermelho e representada em sua Cosmografia universal. Na rica ilustração que acompanha o novo livro, cenas decoradas com artefatos indígenas acotovelam-se com pranchas botânicas consagradas à mandioca, à bananeira e ao abacaxi, assegurando ao conjunto da obra sucesso na corte francesa entre amadores de curiosidades e poetas.6 A redução de seres considerados prodigiosos, como as amazonas, os antropófagos, o tucano e a preguiça, a um modelo conhecido, bem como sua inclusão em frisas e gravuras decorativas, não excluía a fascinação exercida sobre Thevet por uma estranheza na qual o medonho e o admirável se misturavam. Nesse período, a singularidade era justamente reconhecida por essa 81 tensão entre horror e esforço. Esforço para compreender o que era desconhecido. E horror pelo espetáculo que as criaturas exóticas sempre suscitaram. Dentre os europeus capazes de detectar monstros no Brasil encontrou-se também o renomado gravador Theodor de Bry. A coleção denominada Grandes viagens revela quanto esse artista sabia que a imagem é necessária ao texto; que ela lhe é um complemento indispensável e uma espécie de luz viva projetada sobre a narrativa da história. Protestante e originário de Liège, na Bélgica, ele bem compreendera o interesse da gravura, a talho- doce ou em cobre, utilizada pelos editores flamengos para a propaganda católica durante as Guerras de Religião que varreram a França. A utilização desse recurso fez o sucesso de sua empresa e permitiu-lhe formar um conjunto quase enciclopédico com as primeiras narrativas de viagem que ele fez questão de ilustrar a fim de melhor colorir os textos. De Bry era, de fato, um artista antes de ser um editor; perseguido e exilado em Strasburgo, ele aí adquiriu uma técnica de desenho e reprodução quase perfeita. Seu encontro em Londres
com Richard Hackluit, um misto de diplomata e espião, autor de um livro sobre as navegações da nação inglesa, foi decisivo. Os fundos iniciais para suas Grandes viagens vieram da coleção Hackluit, até então sem ilustrações. Vale sublinhar que o objetivo de De Bry era ilustrar as viagens de protestantes, espectadores das atrocidades cometidas pelos espanhóis em nome do papa, na América. A história da América, segundo De Bry, devia servir para o prazer do leitor: este que durante o Renascimento é um curioso, ávido sobretudo por colecionar singularidades. Mas servia, também, para incitar a meditação sobre a bondade de Deus e sobre os ensinaméntos que se podiam tirar do espetáculo de povos infelizes e bárbaros. Eles teriam sido conduzidos ao Novo Continente por um dos filhos de Noé, aparentemente Chã, e portanto não tinham conhecimento de Deus. Seus corpos eram elegantes e harmoniosos. Eram grandes, robustos, corajosos e ágeis, mas dissimulados e sem palavra. Diferentemente da dos africanos, sua pele era considerada baça e suja, daí o emprego de tintas para ornamentá-la. No final do terceiro livro da coleção há uma importante gravura, denominada O inferno brasileiro. Ela reproduz outra gravura, esta impressa por Jean de Léry, para acompanhar seu texto escrito em 1585 e que explica: “Durante sua vida os pobres selvagens são terrivelmente afligidos pelo espírito maligno (o qual eles chamam kaagerre) que, como vi, várias vezes os ataca. [... ] eles dizem que visivelmente os vêem em forma de besta ou ave, ou em outra forma estranha”.7 O tema fantástico da cena é uma transferência dos códigos europeus sobre a monstruosidade, que De Bry traduziu usando o filtro da leitura religiosa.8 A cena abre-se sobre uma paisagem litorânea, na qual o mar faz a linha do horizonte com o céu. Uma suave montanha dobra-se sobre a costa. Duas meias palmeiras fazem a borda da imagem, espécie de janela para a esplanada infernal. Uma pirâmide humana amontoa corpos atormentados. Um deles inclina-se sob os golpes desferidos por um monstruoso e sarcástico demônio. Misturando o zoomorfo ao antropomorfo, ele possui todos os atributos hediondos de seus congêneres. Soberbamente enfeitado com asas escamosas, chifres, garras, cauda bifurcada, coxas peludas e sexo ornado com uma cabeça diabólica, parece cristalizar todos os vícios da natureza humana. Dois outros monstros rasgam os céus, de olho em suas vítimas: um, meio pássaro, meio serpente, tem a pele coberta de escamas e um bico pontudo. Outro, asas enormes abertas, escarra seu veneno. Lembra um dos monstros alados descritos nos bestiários da Idade Média. Próximos aos barcos, ao largo, pululam peixesvoadores que ganharam bicos, chifres e tamanho como se 82
83 pertencessem a uma zoologia fantástica. O hay aparece no centro da gravura com uma explicação extraída do livro de Jean de Léry: “O maior [animal] que os selvagens chamam hay é grande como um cão d’água com a face de um macaco, próxima daquela do homem; o ventre pendente como o de uma porca prenhe, o pêlo cinzaesfumaçado como o da lã do carneiro negro, a cauda bem curta, as pernas peludas como as do urso e as garras muito longas”: 9 Dois novos monstros foram acrescentados por De Bry. Uma das criaturas voando sobre um dos selvagens lembra, estranhamente, o demônio que fizera Eva comer do fruto proibido: ele é possuidor de corpo de serpente, seios pendentes e asas de morcego. Esses elementos provêm de um fundo oriental apropriado pelo Ocidente cristão no momento das já mencionadas viagens no século xiii. A China exportou então, em imagens, hordas de diabos com asas de morcego e seios de mulheres; exportou, também, dragões com asas membranosas, gigantes com orelhas e chifre único na fronte.10 Os monstrengos de De Bry metamorfoseavam, portanto, parte das formas que uniram o Oriente e o Ocidente. Outro diabo barbudo fustiga, com um galho de palmeira, um acuado selvagem reclinado sob os duros golpes. Pinçado dos bestiários medievais, ele está aí para lembrar a figura animal do bode: acusado de fornicador, orgulhoso e debochado. Os monstros zoomorfos pareciam ter saído dos tratados de Paré, Aldrovandi ou Gesner que circulavam na Europa, ensejando discussões sobre o hibridismo. As várias espécies de demônios não deixavam dúvidas: eram cruzamentos entre o diabo e certos animais. Numa prancha, dessa vez emprestada de De Bry e publicada por seu genro, Matheus Mérian, em 1630, a horda de monstros assassinos aumenta. Aqui, temos um demônio com corpo de mulher, cabeça de batráquio e asas de libélula. Lá, um outro com cabeça de ave de rapina e corpo de gente. As forças do mal estão representadas por asas de morcego, cabeças de sapo e coruja, corpos ondulantes como o das serpentes: empréstimos emblemáticos da bruxaria e das práticas daqueles que compactuavam com o maligno, por meio de quem atormentavam os homens. Fantástico e real continuavam a coexistir na cultura e na geografia dos séculos xvi e xvii, e seu banimento só foi decretado no século xviii, quando a cartografia já desvendara a maior parte do planeta. Nesse momento, os monstros não têm muito mais onde esconder-se. Há, todavia, autores portugueses que antes disso demonstraram ceticismo com a leitura fantástica que se fazia do mundo. Frei Gaspar da Cruz, escrevendo em 1569,
criticava os que acreditavam que os pigmeus fossem descendentes dos citas, acostumados a se bater, montados em gruas, por bocados de ouro. O mesmo autor contradiz a existência dos ciápodes e de outros seres fabulosos, concluindo: “Isso e outras tantas coisas tidas por fabulosas desde que a Índia foi descoberta por portugueses”: A observação da realidade permitia que se rasgasse a diáfana cortina da fantasia. Mas a verdade é que nem todos os viajantes beberam da taça da razão com a mesma sede. E houve outros tantos que viam monstros e monstrengos em toda parte. Garcia de Resende, por exemplo, persistia em acreditar em prodígios e maravilhas. Num memorial rimado, feito em 1534, dizia: E sobre a terra vimos monstros e no céu, grandes presságios e coisas sobrenaturais.11 Prova disso é que em pleno século xvi, auge das viagens ultramarinas portuguesas, um certo João Afonso descreve, em sua cosmografia sobre a África, angolanos com a cabeça no peito como as blêmias de Plínio, homens monóculos, cinocéfalos e sátiros cuja presença podia ser constatada no cabo da Boa Esperança. Outro viajante, João Galvão, capaz de observações muito 84 85 criteriosas sobre gêiseres nas ilhas Molucas, anotara, com igual interesse, a presença de “uns homens a que chamam dará que dará, que têm rabos como carneiros” e outros possuidores de esporões, nos artelhos, como os galos. A Descrição histórica dos três reinos de Congo, Matamba e Angola, escrita e publicada entre 1645 e 1670 pelo padre João Antonio Cavazzi de Montecuccolo, reproduzia um tipo de monstro que Gabriel Soares de Souza também reconheceria nas costas brasileiras. Tidos por “fantasmas ou homens marinhos”, tais medonhas criaturas afogavam pescadores e mariscadores, mordendo-lhes a boca, os narizes e “a natura”: Na África, o monstro avistado era uma fêmea: Em primeiro lugar um há que os europeus chamam peixe-mulher e os naturais ngulu-a-maza, bonito de nome mas horrendo de forma. Tem o focinho escancarado, mas pequeno em comparação com um outro que parece ser o macho. Julgo ser esse o tritão afamado nas fábulas da mitologia, podendo a fêmea considerar-se uma náiade dos antigos. Os dentes parecem-se com os de um cão; as barbatanas à semelhança de braços chegam até a metade do corpo acabando com cinco dedos de matéria cartilaginosa e malfeitos. O rabo tem mais de três palmos e os seios, donde suponho vir o
nome, parecem-se com os de uma mulher [...] Tal peixe, como pude verificar, tem uma pele que desce da nuca até o começo do rabo, cobrindo-o à maneira de manta. Julgo que ele se enrola nela e também abriga suas crias para amamentar. Com as costelas fabricam-se contas furadas e enfiadas como as de um terço, ótimo remédio contra a corrupção do ar e contra as fluxões do sangue. Porém, para que tenham essa propriedade é preciso que o animal não tenha tido comércio com outro e que as contas sejam feitas com as duas últimas costelas. Estas observações são fruto da experiência, como também a propriedade de dois pequenos ossos próximos das orelhas, que são úteis contra numerosas doenças. 12 Pena que Gesner não tenha tido acesso às milagrosas costelas do ngulu-a-maza, que teriam sido fortes concorrentes do afamado unicornum verum! O fantástico e o real seguiam coexistindo, mesmo entre os habituados navegadores portugueses e mesmo que as viagens e os “descobrimentos” tenham ajudado a infundir um novo conceito de natureza baseado nas semelhanças entre o Velho e o Novo Mundo. 13 No Brasil colonial e até o século xix, segundo Luís da Câmara Cascudo,14 dizia-se existir no alto rio Branco e na fronteira da Venezuela e Guianas uma família de homens que não tinham cabeça e com os olhos no tórax, descendente direta das blêmias descritas por Plínio e santo Agostinho. No século xvi, sir Walter Raleigh, navegador inglês que levou, em 1585, o tabaco para a Europa, dizia tê-los avistado na Guiana, localizando-os como moradores de Caora. O livro de Raleigh, publicado em 1596 e divulgado dois anos depois pela coleção de Hackluit, obrigou o geógrafo holandês Hondiu, em 1599, a verter a famosa história, ilustrando-a com desenhos convencionais de homens com olhos, boca e nariz no peito. Von Martius, quase duzentos anos depois, 15 encontrou a tradição das blêmias americanas, e de outras criaturas míticas, entre os indígenas da Amazônia: “As lendas das amazonas, de homens sem cabeça e com a cara no peito, de outros que têm o terceiro pé no peito ou possuem cauda do conúbio das índias com os macacos coatás etc. são idênticos produtos da fantasia sonhadora dessa raça de homens”. 16 A hibridez, ou confusão fisiológica, como diz Cascudo, entre os monstros europeus e o fabulário indígena resultou, segundo ele, num “novo mosaico de pavores”.17 Vejamos alguns: Hans Staden cita o Geuppawy e o Ingange; André Thevet, o Agnan e o Kaagerre; Jean de Léry, o Kaagerre e o Aygan; Anthony Knivet, o Coropio e o Avassaty ou Ayasaty; Yves d’Evreux, o onipotente Jeropari, o Jurupari, 86
87 o Curupari, o Taguaiba, o Temoti, o Taulimana; e Johannes de Laet, anotando-o, incluiu o Curupira, a Macaxera e o Marangigoana; Rolox Baro, o Houcha, o Curupira, o Macachera, o Iurupari, o Anhanga, o Taguari. Segundo Câmara Cascudo, tais mitos viveriam na memória indígena e mestiça, “adaptados, assimilados, confundidos”.18 Segundo nosso etnólogo, Geuppawy, Iurupari, Geopary, Ieropary; Curupira, Curipira, Coropio, Curupari; Agnan, Aygnan, Ingange, Anganga, Anhanga são, evidentemente, os conhecidos Jurupari, Curupira e Anhanga. O primeiro, senhor do culto mais vasto, comum a todas as tribos, filho e embaixador do Sol, nascido de mulher sem contato masculino, regenerador, dono de rito exigente e precauções misteriosas, logo foi identificado pelos jesuítas catequistas como o diabo, contra quem se construiu o erudito, europeu, branco e artificial Tupã, mencionado entre outros por Nóbrega, Anchieta, Azpicuelta Navarro, Abbeville, Thevet e D’Evreux:19 “Quando o trovão ribombava, a que chamavam Tupã, assustavam-se e nós aproveitávamos o lance para dizer-lhes que era Deus quem fazia assim tremer o céu e a terra, a fim de mostrar sua grandeza e poder”.20 Nos Diálogos das grandezas do Brasil, Juruparim aparece como sendo a única identidade assombradora para os índios no remoto século xvii. Gaspar Barléus o chama Urupari e, na senda de Marcgrave, rotulou-o de diabo. Segundo Câmara Cascudo, em 1613, Jurupari assumira o posto satânico com toda a pompa e circunstância, fundindo “o mito ameríndio com os detalhes que cercam a figura de Lusbel”: Pensam que os diabos estão sob o domínio de Jeropary, que era criado por Deus e que, por suas maldades, Deus desprezou, não querendo mais vê-lo, nem aos seus. Dizem também que Jeropary e os seus [acólitos] têm certos animais que nunca se vê, que só andam à noite, soltando gritos horríveis, que abalam todo o interior **Nota da digitalização: aqui, o texto é interrompido e seguem-se várias imagens com as seguintes legendas: 1. As tentações de Santo Antônio. Os fazedores de monstros como Bosch, Brueghel e Baldung se utilizavam das formas mais repulsivas para desfigurar as obras da criação de Deus. Ao espectador de seus quadros, lembravam que a monstruosidade e a feiúra eram máscaras do diabo.
88 2. Gravuras que ilustram folhetos de cordel do século XVIII, chamados em Portugal de “papéis volantes”. Nelas, a função decorativa é também alegórica: os monstros designam uma realidade que lhes é exterior, anunciando presságios, desastres naturais e mudanças de dinastia. 3. Folha de rosto de um papel volante, sublinhando a existência e a morte de um monstro. A imprensa ajudou a multiplicar as histórias sobre monstros, inaugurando um mercado de consumo em torno da fascinação pelo horror.**Nota da Digitalização: conteúdo da dita folha de rosto: RELAÇAM DE HUN FORMIDAVEL, e horrendo MONSTRO SILVESTRE, que foy visto, e morto nas vizinhanças de Jerusalém, traduzido fielmente de huma, que se imprimio em Palermo no Reyno de Sicília, e se reimprimio em Genova, e em Turin., a que se accreseenta huma carta, escrita de Alepo sobre esta mesma matéria. Com o retrato verdadeiro do dito bicho. Por J. F. M. M. Lisboa Occidental, 4. Centauros e outros monstros compósitos, meio homens, meio animais, sempre habitaram a imaginação da humanidade: eram manifestações do poder dos deuses e dos demônios. 5. Embora esta gravura sobre a mulher africana date do século XVIII, aofundo vêem-se representantes das raças monstruosas descritas durante a Idade Média. Jean de Mandeville foi um dos cronistas que as localizou entre a África e a Ásia. 6. Ao lado. O ciclope é um dos personagens dos bestiários medievais inspirados em Plínio e Solinos. O pensamento cristão, contudo, não se contentou em assimilar a herança geográfica e etnográfica da antigüidade pagã, mas procurou revesti-la da autoridade bíblica. Monstros como o ciclope eram tidos como descendentes dos filhos de Noé. 7. Nascimentos monstruosos como o da mulher revestida de pêlos eram atribuídos à imaginação materna. 8. Ao lado. O bispo do mar: monstro capaz de falar, nascido da
tradição imagens.
clássica
e
difundido
por
narrativas
de
viagem
e
9. Antes da “descoberta” do índio americano, o homem selvagem ou silvestre vivia nas florestas européias e cobria-se de folhas e peles. 10. As raças monstruosas: originalmente habitantes dos confins da Terra e mais tarde “transportadas” por Ctésias de Cnide para a Índia, têm sua existência confirmada, na Idade Moderna, por enciclopédias e cosmografias. As viagens ultramari nas se encarregam de espalhá-las pelo mundo. Ao se deparar com os restos de um banquete antropofágico, Colombo acredita ter chegado à terra dos cinocéfalos: homens com cabeça de cão. 11. Na capa da Phísica Curiosa, de Gaspar Schott, os sátiros convivem amigavelmente com a lhama sul-americana, numa mostra de que a observação empírica e a tradição não eram consideradas contraditórias entre si. 12. As sereias, monstros marinhos que migraram da tradição grega para as descrições feitas sobre a monstruosa Ipupiara das costas brasileiras. 13. Ao lado. Mulheres serpentes, entidades ctônicas ligadas ao Mal desde o jardim do Éden. 14. Nesta gravura sobre os índios brasileiros vê-se afigura do “homem selvagem”: sua imagem foi trazida das florestas européias para as praias da América portuguesa. 15. Mulher africana. Ao fundo, imagens que caracterizavam a África como a terra de monstros por excelência: blêmias e hermafroditas. 16. As observações do médico Ambroise Pare não deixavam dúvidas: no final do século XVI, crianças eram engendradas pelo demônio e traziam as marcas do coito infernal. **Nota da digitalização: a seguir, retoma-se o texto.
( o que ouvi infinitas vezes) com os quais convivem, e por isso os chamam Soo Joropary, “animal de Joropary’ e crêem que esses animais servem aos diabos ora de homens, ora de mulheres, e por isso nós os chamamos Succubes e Incubes, e os selvagens Kugnam Jeropary, a mulher do diabo, Aua Jeropary, o homem do diabo. Há também certos pássaros noturnos que não cantam, mas que têm um piado queixoso, enfadonho e triste, que vivem sempre escondidos, não saindo dos bosques, chamados pelos índios Uyra Jeropary, pássaros do diabo, e dizem que os diabos com eles convivem, que quando põem é um ovo em cada lugar, e assim por diante, que são cobertos pelo diabo e que só comem terra, contava assombrado Yves d’Evreux, minucioso cronista de criaturas fantásticas da Terra de Santa Cruz.21 o Curupira, explica Câmara Cascudo, foi o primeiro duende selvagem que a mão branca do europeu fixou em papel e comunicou aos países distantes. Em carta de São Vicente, em 31 de maio de 1560, citava-o José de Anchieta. A maioria dos cronistas coloniais o inclui entre os entes mais temidos pelos indígenas. Os guerreiros, aliados aos portugueses no convívio dos acampamentos e nas longas marchas sertão adentro, contavam-lhes seus pavores. O nome de Curupira era mencionado entre sussurros de medo. Sob sua batuta curvavam-se as árvores e os animais. Obedeciam-no Anhanga, responsável pela caça de porte, e Caapora, entidade protetora da caça miúda, além de Mboitáta, senhor das relvas e arbustos. Curupira (“o espírito dos pensamentos’ como o denominava padre Simão de Vasconcellos) ficou chefiando, indiscutivelmente, todos os assombros da floresta tropical.22 Índio pequeno, de cabelo vermelho ou de cabeça pelada, poderoso senhor da caça e dono das matas cujos segredos sabe e 89 defende, o Curupira tem, contudo, uma característica física que o aproxima de nossos velhos e conhecidos ciápodes: tem os pés tornados ao avesso, dedos atrás e calcanhar para a frente lembrando os monstrengos habitantes da longínqua Índia, egressos da cartografia e da crônica medieval pintados por Plínio, Agostinho ou Aulo Gélio. Pois essa raça assombrosa cá vivia também: Cristóvão de Acosta, o sacerdote que acompanhou Pedro Teixeira, em 1639, em sua descida do rio Amazonas, de Quito a Belém, ouviu dos tupinambás relatos estupefacientes. Viviam para o sul seus vizinhos, os Matuicés, com os calcanhares para diante, deixando rastros às avessas. O jesuíta missionário Simão de Vasconcellos não esqueceu essa gente estranha em sua Crônica da Companhia de jesus no Estado do Brasil e explicava, em 1663, que essa “casta de gente nasce com os pés às avessas de maneira
que quem houver de seguir seu caminho há de andar ao revés do que vão mostrando as pisadas; chama-se Matuiús”. Sobre o Coropio ou Curupira conclui Câmara Cascudo: Vigiando árvores, dirigindo as manadas de porcos-do-mato, arrancadas de veados e pacas, assobiando estridentemente, passa a figura esguia e torta do Curupira, o mais vivo deus da floresta tropical, presente às histórias infantis, aos episódios de caça, aos acidentes de luta do homem [...] é o explicador dos mistérios, passando seus cabelos de fogo, seus pés virados como os Enotocetos de Megastenes, registrados em Estrabão, seus dentes azuis, seus assobios açoitantes, na memória de todas as recordações.23 Já Anhanga, o espírito malfazejo, encontra-se nas cartas de Anchieta, Nóbrega e Fernão Cardim. Staden, por seu turno, chamava-o Ingange. Thevet observou em 1558 que o monstrengo não tinha forma positiva, O certo era atormentar os vivos: “Vêem muitas vezes um mau espírito ora numa forma, ora em outra, o qual nomeiam em sua língua Agnan e os persegue freqüentemente dia e noite, não apenas a alma, mas também, o corpo”.24 Alma sem repouso, espírito errante, significando diabrura, malefício, feitiçaria, o Anhanga, Anga ou Agnan define-se, segundo Câmara Cascudo, como a coisa má, o medo sem forma e sem nome possível. Pero de Magalhães Gândavo, no seu História da Província Santa Cruz,25 publicado em 1576, refere-se a um medo bem palpável, lembrando em suas formas e curvas o ngulu-a-maza, visto mais tarde nas costas africanas. O pavor provocado pelo aparecimento de um monstro marinho, a Ypupiara, numa praia em São Vicente: Foi causa tão nova e tão desusada aos olhos humanos a semelhança daquele fero e espantoso monstro marinho que nesta província se matou no ano de 1564, que, ainda que por muitas partes do mundo se tenha notícia dele, não deixarei, todavia, de a dar aqui outra vez de novo, relatando por extenso tudo o que acerca disto passou; porque na verdade a maior parte dos retratos ou quase todos em que querem mostrar a semelhança de seu horrendo aspecto, andam errados, e além disso, conta-se o sucesso de sua morte por diferentes maneiras, sendo a verdade uma só... O autor acompanha seu texto de uma imagem do monstro “tirada pelo natural”: cabeça e focinho de cão, seios femininos, mãos e braços humanos e patas de ave de rapina. No meio do corpo, uma cloaca. A Ipupiara estaria longe de sugerir a beleza das sereias capazes de seduzir incautos marinheiros. Se Gândavo se colocava apenas como narrador de uma história que dizia estar “sepultada em silêncio”, Gabriel Soares de Souza apresenta-se como alguém dotado de grande intimidade com o assunto e como testemunha “quase” direta da existência do monstro:
90 91 Não há dúvida que se encontram na Bahia e nos recôncavos dela muitos homens marinhos a que os índios chamam pela sua língua ipupiara, os quais andam pelo rio de águas doces pelo tempo do verão, onde fazem muito dano aos índios pescadores e mariscadores que andam em jangadas, onde os tomam, e aos que andam pela borda da água, metidos nela. A uns e outros apanham, metem-nos debaixo da água, onde os afogam, os quais saem à terra com a maré vazia, afogados e mordidos na boca, narizes e na sua natura [...] os quais fantasmas ou homens marinhos mataram por cinco vezes índios meus.26 o jesuíta Fernão Cardim, escrevendo em 1590, faz questão de dar maiores detalhes sobre os monstros: os homens teriam boa estatura, embora olhos encovados. As “fêmeas”, formosas de longos cabelos, pareceriam mulheres. “O modo que tem em matar” explica, meticuloso, é: abraçam-se com a pessoa, tão fortemente, beijando-a e apertando-a consigo que a deixam feita toda em pedaços [...] e como a sentem morta dão alguns gemidos como de sentimento, e largando-a fogem; e se levam alguns comem-lhe somente os olhos, narizes, pontas do dedos dos pés e mãos, e as genitálias e assim os acham de ordinário pelas praias com essas coisas menos.27 Outro jesuíta, Francisco Soares, além de concebê-los como monstrengos ruivos, reproduz algumas informações de seu colega, no livro De algumas cousas mais notáveis do Brasil, alertando que esses haviam “de muitas maneiras; e se os naturais dizem que os vêem, vêem assombrados e muitos morrem de pasmo”28 Frei Vicente de Salvador repete a história que vem desde Gândavo, diferenciando, todavia, os monstros marinhos de tubarões, pois estes preferiam, às tenras extremidades, comer pernas e braços dos desavisados índios pescadores. Para Anthony Knivet, marinheiro inglês à caça de ouro e de paubrasil, ele era uma “imensa coisa” com “escamas no dorso, garras medonhas e cauda comprida” que avançara em sua direção, “lançando fora a língua longa como um arpão”.29 Seu retrato dá a familiar impressão de um dragão demoníaco tão vivo e agressivo quanto aqueles pintados, alguns anos antes, por Hans Memling. Tal como ocorreu na Europa, à época de Fortunio Liceti, a ciência se defrontava com uma face da natureza na qual se escondia a vontade de Deus. Essa vontade deveria ser decifrada a partir da experiência e do “testemunho dos sentidos”, este mesmo que tantas vezes era capaz de pregar peças nos sábios. Eis por que a Ipupiara, já parte integrante da “tradição” sobre
teratologia nas terras brasileiras, quase cem anos depois, mereceu por parte de outro jesuíta, o padre Valentino Stancel, uma leitura mais “científica”: No litoral próximo ao mar, num lugar dito Espírito Santo, onde nossos padres possuem uma residência, foi visto um monstro marinho, o qual creio nunca antes foi visto semelhante na terra. Iam ao mar índios nossos para pescar quando de repente, jogado à terra, perceberam um grande ser dormindo. Estavam persuadidos inicialmente de que se tratava de um animal terrestre, ou de um homem dormindo profundamente. Certamente porque não havia luz suficiente, eles se aproximaram e viram um monstruoso aborto da natureza pego pelo sono. Assim como o monstro dormia de costas, eles tentaram capturá-lo. Mas um cachorrinho que estava com eles latiu intempestivamente e acordou o monstro, que então viu a armadilha preparada contra si e os índios armados, prontos para atacar. Ergueu-se o monstro em pé, naquele lugar 92 93 mesmo como está mostrado na figura, como quem quer lutar. Contudo, logo percebeu o perigo e precipitou-se rapidamente para o mar. Apenas começou a fugir e um índio mais audaz atingiu-o pelas costas, na espátula. Assim ferido, o monstro jorrou sangue profusamente e, atingido diversas outras vezes, entregou a alma naquela praia. Uma novidade tão extraordinária não pôde escapar por muito tempo à nossa cidade da Bahia. Não haviam passado dois dias e ela se espalhou pelo vulgo, e depois chegou até nós. Escrevi rapidamente aos padres da missão para receber a notícia certa do acontecido. O que me foi contado só foi controvertido no que respeita a tamanho, porque os índios, mais rudes, não o mediram satisfatoriamente, dizendo que o monstro media dezessete palmos. No mais a descrição do monstro é a seguinte: a cabeça, quase como a dos outros semi-homens, era em forma de cachorro, com o nariz em forma de focinho; possui duas séries de dentes agudos. Era horrível, sem pêlos, e sem nada que respeitasse a audição, sem orelhas. Os olhos tinham pálpebras e eram oblongos, como os dos gatos ou felinos; o pescoço era circular, como o dos homens, um pouco mais longo. Os braços eram mais curtos. Não tinha mamas, ao contrário do que costuma ter a sereia. Os dois dedos eram de carne cartilaginosa, com uma pele unindo-os entre si, como os pés dos patos. Debaixo dos braços havia longos cabelos, como pode ser visto na figura. A pele do corpo até o umbigo era áspera e grossa; não era branca mas fosca, como a dos elefantes ou dos peixes que chamamos tubarões. A partir da cintura ou do umbigo
ele se fazia em peixe, com escamas duras. Quanto ao aparelho genital, ao contrário dos outros semihomens, que o têm abaixo do umbigo, ele tinha como que um tubinho passando pela cauda; parece que também se servia disso para os excrementos. Solicitei uma anatomia mais cuidadosa desse monstro, mas não foi possível por ausência de habilidade dos índios, ou de curiosidade do padre que lá residia, que deixou de lado uma coisa tão diferente e exótica, não segundo o meu querer, como se a idade avançada lhe desviasse a atenção para outras coisas. 30 O padre Stansel foi missionário no Brasil durante a segunda metade do século xvii. Era matemático, filósofo, formado em Praga e no Colégio Romano da Companhia de Jesus. Desde sua chegada ao Brasil, trabalhou no Colégio da Bahia e publicou na Europa alguns livros escritos na Colônia. Dentre estes, o Mercurius Brasiliensis, que não chegou a ser impresso mas ficou guardado na biblioteca de Athanasius Kircher, seu professor e correspondente em Roma, já nosso conhecido por escrever sobre dragões e vulcões no centro da Terra. O mais curioso é que Ambroise Paré, ao reproduzir a imagem de um monstro marinho em seu Tratado, opta por uma imagem muito semelhante à do hay, já reproduzida pelos viajantes franceses Thevet e Léry, só que ele lhe dá um rabo de leão e a pele de escamas de tartaruga, voltando ao estoque de imagens que Ctésias deixara sobre a manticora. No século xviii a mesma história se transformara, em função talvez da tradição de “quem conta um conto aumenta um ponto” O terror perdurava, mas quem o inspirava era um monstrengo na forma de menino “de três ou quatro anos”, da cor dos índios, de feições disformes e grosseiras, “a cabeça pouco povoada de cabelos” e hábil na arte de escapar de tiros e perseguições que lhe eram movidas. Era tão horripilante que causava desmaios naqueles que cruzavam seu caminho, contava, impressionado, o frade Antônio de Santa Maria Jaboatão.31 Os monstros marinhos, que tanto impacto causaram entre colonos na América portuguesa, constituíam a pedra de toque da autêntica experiência da viagem ou da estada no Novo Mundo. O encontro com a “coisa” inesperada era, na realidade, esperado, pois vinha precedido, no espírito do viajante, da tradição escrita ou oral. Não havia regras para o encontro com o monstro; 94 95 bastava encontrar um testemunho digno de fé que anunciasse como fato seguro a presença de tal e tal monstruosidade.32 A
erudição européia, por seu turno, tratava de dar respaldo à existência de tais criaturas, confundindo muitas vezes o real e o imaginário. Guilherme Rondelet (1507-66), por exemplo, foi capaz de descrever com a precisão de um taxionomista o peixeboi; mas incluiu em sua História completa dos peixes, publicada em 1588, tanto o monstro marinho com chapéu cardinalício como as nereidas. Duzentos anos mais tarde, em pleno século das Luzes, caberia a Jean-Marje Robinet33 continuar confirmando a existência de homens marinhos, agora a partir de “observações”. Um registro que amarra bem a história da Ipupiara é o do já mencionado viajante Von Martius, que, no início do século XIX, soma a observação natural com o julgamento crítico sobre a ingenuidade dos índios brasileiros e a relação de seus medos com o imponderável. Os monstros que descreveu são entidades poderosas e invisíveis mas também ilógicas e antinaturais no mundo selvagem: Além do curupira que infesta as matas, tornando-as pouco seguras, crêem os indígenas que as águas dos grandes rios são infestadas por outros demônios, chamados ipupiaras. Esse termo, que significa “senhor das águas”, é o mesmo que usam os habitantes do interland para um monstro de pés virados para trás ou tendo uma terceira coxa a sair-lhe do peito, de quem a gente, tanto mais se aproxima, quanto mais crê afastar-se dele, saciando seu ódio no viandante solitário, a quem arrocha com os braços até sufocá-lo. Quando um índio adormece e desaparece na água, puxado por algum jacaré, dizem eles que isso é obra do malvado ipupiara. O monstro de marinho passa a fluvial, e seu corpo escamoso passa a ter anomalias podais. A tradição, tão presente na longa e metamórfica história da ipupiara, tinha, aliás, enorme importância na constituição do maravilhoso, aparecendo, com recorrência, nos textos dos cronistas que escrevem sobre o Brasil. A História natural, repositório de fábulas fundadoras que séculos de reescrita remodelaram, continuava a inspirar relatos, agora dotados de novas significações. Ao mencionar que se encontravam salamandras nas fornalhas dos engenhos brasileiros, por exemplo, Ambrósio Fernandes Brandão demonstra conhecer Plínio, que afirmava que esse misterioso animal, frio como gelo, era o único capaz de apagar o fogo. O amor conjugal do peixe camaropin à sua companheira teria se inspirado num dos capítulos escritos pelo almirante romano sobre a simpatia e a antipatia entre “animais da água”. O choco do jacaré pelos olhos é, igualmente, apropriado das afirmações de Plínio sobre o crocodilo africano, bem como as explicações sobre o lagarto sinimbu — que só se alimentava de vento, como um Astome ou um Sauromata — são idênticas às que a História natural traz sobre o camaleão africano.
Quanto ao âmbar, produto de árvores submarinas das quais se apascentavam as baleias, Brandônio, o personagem principal dos Diálogos da grandeza do Brasil, afasta-se tanto de Plínio como de Eliano, o mais eloqüente dos cronistas da tradição ao explicar que este provinha das árvores marinhas das quais se alimentavam as baleias. O primeiro afirmava que o produto, vindo das terras do Norte, era extraído da “medula” dos pinheiros. O segundo explicava tratar-se de excrementos perfumadíssimos das baleias, encontrados flutuando sobre o mar sob a forma de ceráseo conglomerado. No século xvi, o grande botânico André Cesalpini, contemporâneo de Brandônio, diria que o âmbar era uma pedra preciosa, espécie de enxofre natural. A idéia de que o âmbar era um mineral, vomitado pelas fontes subaquáticas ou expelido das entranhas da Terra, vai prevalecer entre os meios 96 97 eruditos europeus dos séculos seguintes. É a ela que vai ligarse o jesuíta Gaspar Schott, no seu Phisica curiosa, de 1667. Nem mesmo Buifon, em pleno século xviii, saberia dizer se o âmbar era um “betume” de origem animal ou mineral.36 os capuchinhos franceses Claude d’Abbeville e Ivo d’Evreux demonstram, igualmente, quanto o peso da tradição estava arraigado. O primeiro menciona um pássaro, o ouyra-ouassu, cujas características considera comparáveis às da ave-roca, descrita por Marco Polo. O segundo vale-se das interpretações que se davam, na Europa, aos fenômenos de panspermia — ou capacidade dos germes de se desenvolverem sob condições favoráveis — para contar sobre peixes gerados espontaneamente por influência de determinados astros, insistindo na influência dos signos celestes sobre o reino animal.37 Plínio inspira-se no ato então insubstituível para contar que a fúria das águias amazônicas era tão terrível que persistia em suas penas, capazes de destroçar passarinhos miúdos. Coreal, outro viajante estrangeiro, retoma as lendas sobre o hay, acrescentando-lhe as características do lagarto sinimbu, de Brandônio, que as emprestara do camaleão africano de Plínio: o bicho passa a não comer nem beber, vivendo de ar, como alguns membros de raças fantásticas! Niuhof mistura as peças do quebra-cabeça, parecendo brincar com o jogo da natureza: os monstros que avistara no Brasil são uma mistura de raposa com tamanduá, queixada com tatu, lagarto e libélula com face humana. o jesuíta português Simão de Vasconcellos volta a Plínio. Por quê? Porque o sábio romano considerava que tudo que existia devia ou servir ao homem ou servir-lhe como lição de moral.
Idéia que tornara a seguintes. denominar localizara 98
vai ao encontro do primeiro livro da Bíblia, o que obra de Plínio aceitável pela Igreja nos séculos Pois bem, Simão de Vasconcellos volta a Plínio para “matuyuís” os homens de pé virado que o romano em
Abarimon e ele, observador jesuíta, no interior do Brasil. Usa o mesmo procedimento com as amazonas e os gigantes que chama de “gabaras”, nome de um personagem estudado por Plínio. Os “goazis” ou anões, personagens constantes da História natural e posteriormente das crônicas medievais de Ruisbrouck e Odorico de Pordenone, pululavam igualmente em nossos matos. Se os monstros já não são tão abundantes na América portuguesa, a história natural passa a ser espaço do maravilhoso, do prodígio, para os cronistas e viajantes, fossem eles nacionais ou estrangeiros. No momento em que tais cronistas escrevem, o conhecimento consistia em reconstituir a rede de semelhanças e diferenças produzida pela natureza: é esse, por exemplo, o procedimento de Gândavo. Uma e outras são constitutivas da ordem do mundo. No menor dos seres elas se entrelaçam e imbricam. Compreende-se, pois, a razão pela qual os homens eram, nessa época, tão atentos ao que chamavam de singularidade; quer dizer, a qualidade própria a cada coisa que jamais é absolutamente a mesma e que entretém com o universo uma íntima relação.38 Eis por que o título mesmo do livro de Thevet: As singularidades. . . Mas não imaginemos essa totalidade imóvel. O dinamismo da natureza e a plenitude da vida se comunicariam a cada uma de suas partes. Assim, cada coisa, pelo fato de sua diferença, seria um núcleo de forças próprias que, pelo jogo de semelhanças, capturaria as energias do todo, que a seu turno fecundaria o conjunto. O menor sintoma da natureza seria também o signo dos movimentos da natureza inteira. Um vento, o grito de um pássaro, a cor de um lagarto assinalariam, ao homem que conhecesse a linguagem dos signos, transformações que ele poderia prever no mundo natural. É isso que entende o homem do final do século xvi ou xvii quando ele fala, por exemplo, em “máquina do mundo”. Essa suposta mecânica nada tinha de mecanicista. A máquina do mundo 99 era justamente essa íntima conspiração de todas as partes que uma vida poderosa inspirava e animava; o agenciamento harmonioso do grande animal ou do imenso ser vivente que era o globo. Por isso D’Abbeville podia mencionar, sem ferir a própria inteligência, a existência de um lagarto capaz de viver
simultaneamente na terra, no mar e no ar. Compreende-se, nessa perspectiva, o interesse que o período tem pelos prodígios e monstros que eram assimilados, quer a maravilhas, quer a presságios. Num e noutro caso o prodígio seria um signo da espécie particularmente digno de atenção. Mesmo se as causas naturais de sua produção fossem verificáveis e sua produção, regular, ele continuava raro. Tal qualificativo referia-se, paralelamente, aos fenômenos pouco freqüentes ou contrastantes com os habituais. Nesse sentido, a passagem de um cometa ou um eclipse eram considerados prodígios, mas uma tempestade fora das características normais também podia sê-lo. Mas os que, entre os fenômenos já conhecidos, aconteciam mais raramente, eram vistos como “mais” prodigiosos. Era, por exemplo, o caso de monstros e monstrengos, para quem o jogo das diferenças e semelhanças que constituía a ordem da natureza parecia estar de ponta-cabeça. Eis por que havia monstros que pareciam reunir em si os traços animais de espécies diferentes, como o hay descrito por Coreal: cabeça antropomorfa, corpo de cachorro, cauda de réptil, mamas pendentes e garras afiadas, como se a natureza, presa da vertigem da semelhança, não a controlasse mais. Havia outros monstros que só pertenciam a uma espécie, mas cujas partes estavam dispostas de tal maneira que a natureza parecia ter esquecido a arte da composição: era o caso dos homens marinhos. Outros, como o “macaxera”, não se pareciam com nada, fazendo pensar que uma obsessão pela diferença se apossara da natureza. Outros, enfim, eram simplesmente informes, como um peixe gelatinoso e transparente, citado por D’Abbeville; como se, dividida em contrários, a natureza se tivesse tornado impotente. De todas as maneiras, a natureza parecia estar entregue a uma violência estranha a seu curso regular, o que exigia desses homens uma explicação. Essa vontade de reconhecer uma significação nos efeitos extraordinários, ou melhor, de medi-los segundo sua maior ou menor regularidade, tornou-se cada vez mais clara ao longo dos séculos xvi e xvii. Essa prática constituiu a grande novidade dos tempos. A noção de maravilhoso não perdia nada de sua sedução; mas ela se revestia de novo sentido. Para viajantes, cronistas ou homens de ciência, só havia maravilha se seu espanto pudesse converter-se em pesquisa, em crônica sobre a singularidade. O espanto relativizava-se, então: não era mais a natureza que espantava os homens, mas estes que se espantavam com a natureza. Assistiu-se, nesse contexto, a uma cisão: se por um lado ainda era possível aos seguidores de santo Agostinho continuar a admirar a natureza como obra de Deus, extraindo de seu maravilhamento novas oportunidades de glorificar o Senhor, por outro, os homens de ciência eram confrontados com um universo
de coisas. Não com um mundo feito apenas de signos e presságios a ser decifrados. A meditação do piedoso era diferente daquela do cético. Ambos, contudo, ainda viam a natureza como um grande enigma. Foi preciso esperar o século xix para que ela fosse tratada como um problema. 100 101 VI. As diabólicas criaturas da noite: vampiros, lobisomens e outros abantesmas Tendo ouvido, várias vezes, que no vilarejo de Medwegaya, na Sérvia, os ditos vampiros faziam morrer um grande número de pessoas sugando-lhes o sangue, recebi ordens e a missão do comando superior de sua Majestade para esclarecer essa questão... J. Flückinger, Visum et repertum, 1732 Entre os séculos XVI e xviii, o maravilhoso Continuou a estender-se sobre o continente europeu, colorindo esses tempos de grandes transformações econômicas, sociais e políticas. Tempos em que os homens conheceram epidemias, guerras ou fomes com seu cortejo de ruínas, incêndios, cadáveres corrompendo-se nas ruas e estradas e aproximando os vivos e os mortos. Nesse mundo que estava, aparentemente, de ponta-cabeça, os monstros seguiam multiplicando-se.1 A publicação do tratado de demonologia Malleus maleficarum, em 1484, aprovado pelo papa Inocêncio viii, abriu as portas para o aparecimento de uma coorte de novas e assustadoras criaturas. Nesse texto, a Igreja reconhecia legitimamente a existência de mortos-vivos. Foi o suficiente para que almas do outro mundo, vampiros e lobisomens invadissem os sonhos e as realidades dos homens modernos, tornando-se elementos constitutivos de sua maneira de ser e pensar. Coube à Reforma protestante oficializar o que poderíamos considerar como protovampirismo. Acreditava-se, nessa época, que os defuntos, mortos de peste, reputados por autodevorar-se dentro de seus túmulos, eram capazes de, por meio de artifícios mágicos, provocar a distância a morte de pessoas vivas.2 Algumas testemunhas, dentre elas o próprio Lutero, afirmavam ter ouvido os cadáveres “mastigar” em suas tumbas. Na Prússia e na Alemanha, essas estranhas criaturas, em cuja boca se passou a colocar uma pedra ou uma moeda para impedi-las de mascar, receberam o nome alemão de Naschzeher. predadores ou parasitas. A tese ganhou força, pois na Suíça teólogos reformistas, como Calvino e Lavater, insistindo em que apenas a feitiçaria era capaz de trazer os mortos de volta ao seio dos vivos, acabaram por incentivar a crença em que espectros e espíritos noturnos
não eram almas de mortos mas, sim, demônios que tomavam a aparência de entes falecidos. Assim, os mortos-vivos, reconhecidos como acólitos de Satã, ganhavam direito de cidadania na cultura européia invadindo, com sua horrenda mas sedutora imagem, grande parte do Velho Mundo. Nos Bálcãs, na Grécia, na parte oriental do Império AustroHúngaro e na Rússia, o século xvii foi um período capital para a propagação de crenças relativas aos vampiros. Manifestações de mortos-vivos tinham sido anteriormente atestadas em quase toda a Europa ocidental, em países como a Inglaterra, a França, a Espanha e Portugal. Segundo Jean Marigny,3 os países do Leste europeu, particularmente pobres e possuidores de regiões montanhesas de difícil acesso, tornaramse, por excelência, “terras de vampiros”. Afastados das conquistas científicas do Renascimento, do progresso material resultante do aparecimento da burguesia, 102 103 possuíam uma população majoritariamente constituída por camponeses analfabetos. Estes passaram a ser o público-alvo das narrativas e de histórias sobre vampiros contadas por viajantes. Um segundo fator, de ordem religiosa, colaborava para empurrar os vampiros na direção desses altos e sombrios picos, protegidos por lagos gelados: enquanto nos países latinos de obediência católica a Igreja, graças à Inquisição, movia uma luta sem tréguas contra a heresia e a superstição e, nos países protestantes, os Stuart perseguiam bruxas numa caçada nunca dantes vista, no Oriente as igrejas de rito ortodoxo bizantino tinham uma atitude bem mais condescendente em relação às crenças sobrenaturais, chegando a integrá-las na liturgia, como no caso dos brucolacos gregos. Mas quem eram tais brucolacos, antepassados de nossos atuais vampiros? Na Grécia, a opinião segundo a qual os mortos podiam ser preservados de toda corrupção cadavérica e sair de suas tumbas era bem antiga. Dava-se a esses “não-mortos” o nome de vrykolakas, rapidamente afrancesado para broucolaques. Tratavase, geralmente, de pessoas que não tinham sido inumadas em terra consagrada porque haviam cometido suicídio ou sido excomungadas. Inicialmente inofensivas, essas almas penadas só buscavam deixar seu envelope corpóreo; bastava que a Igreja anulasse a sentença de excomunhão para que tivessem paz. Mas a crença em lobisomens e em mortos-vivos — predadores aos quais ainda não se dava o nome de vampiros — modifica-se rapidamente a partir do século XVI. Etimologicamente, a palavra vrykolakas, termo emprestado da
língua eslava, significava lobisomem. Assim, no século xvi, do litoral dos Bálcãs aos Cárpatos, utiliza-se indistintamente o mesmo termo para designar os inofensivos mortos-vivos e os perigosos lobisomens. A crença nestes últimos, seres humanos capazes de metamorfosear-se em lobos, tinha, por sua vez, raízes na demonologia medieval. Sigismundo (1368-1437), rei da Hungria e chefe do Santo Império Romano-Germânico, fizera a Igreja reconhecer oficialmente sua existência no Concílio Ecumênico de 1414. Cem anos mais tarde, o fenômeno ganhara tal amplitude em toda a Europa que a Igreja romana decidiu realizar uma avaliação oficial. Entre 1520 e os meados do século xvii verificaram- se 30 mil casos de licantropia no continente europeu.5 Os países mais atingidos eram a França, na Europa ocidental, e a Sérvia, a Boêmia e a Hungria, na Europa oriental. O rumor era de que os lobisomens, após a morte, se tornavam famintos mortos-vivos, a sugar impiedosamente o sangue de suas vítimas. Cada país empregava uma terminologia para designar esses temidos predadores, pois a palavra vampiro ainda não existia. Histórias sobre o fenômeno circulavam por todas as capitais européias, a ponto de a revista francesa Le Mercure Galant dedicar-lhe, em outubro de 1694, um número inteiro. No fim do século xviii, o vampirismo se espraiara por todos os países do Leste e o pavor que inspirava era transmitido por notícias que não deixavam marcas na documentação oficial. Foi preciso esperar as primeiras décadas do século xviii para que surgissem relatórios e testemunhos pioneiros, registrados por escrito, que dariam enfim legitimidade ao que era então considerado uma superstição sem fundamento. Portugal teve, ele também, sua constelação do que um etnólogo chamou de “entidades estranhas”.6 Aí era freqüente a familiaridade com diabretes que revoluteavam nas águas ou nos roda- moinhos de vento, diabólicos alaridos nos telhados em noite de tempestade, choro de crianças mortas, bruxas metamorfoseadas em morcegos ou em borboletas, almas do outro mundo a arrastar-se nas estradas desertas portando luzinhas acesas,7 mouras encantadas a indicar tesouros enterrados.8 O lobisomem, por exemplo, aparece desde o século xv, no Cancioneiro de Garcia de Resende: “Sois danado lobisomem! Primo d’Isaac Nafu”.9 Cem anos mais tarde ressurge nos versos de Francisco de Sá de Miranda: 104 105 Bento, maus lobos são homens E mais os d’essas montanhas, Que há cem mil lobisomens;
Cuidava eu que eram patranhas. No século xviii, coube aos médicos lusos atestar a existência desses seres pálidos, sétimos filhos a quem não foi dado por padrinho o irmão mais velho, cujo fadário se cumpria às sextasfeiras. Braz Luís de Abreu, em seu Portugal médico, editado em 1726, explicava: Estão sujeitos os homens a um delírio melancólico, lupino e noturno, a que vulgarmente chamam os doutores licantropia; e se define: uma ação depravada das faculdades retrices [sic] que representam o homem debaixo da espécie de lobo. Por força desse delírio se obrigam os que o padecem a romper em todas as ações do lobo; e especialmente os inclina essa melancolia ferina a andar de noite, como lobos, por lugares obscuros, tristes e fúnebres e até pelos cemitérios e adros desenterrando os mortos e cevando-se nos corpos fétidos e corruptos.10 Histórias de lobisomens existiram em grande profusão em todo o país, reproduzindo-se os mesmos episódios fundamentais com alguns elementos destacados variando de lugar para lugar. Tais criaturas podiam nascer da vontade das fadas ou das feiticeiras, de coitos incestuosos, sobretudo entre padrinhos e afilhadas, de razões ignoradas. Mergulhadas em tristeza profunda, eram também reconhecíveis por ter orelhas mais compridas, ventas arrebitadas, tez amarelada e os cabelos de cor parda, com laivos escuros. Depois de transformados em animal, o que ocorria sempre à noite, e depois de espojar-se numa encruzilhada, tinham de correr por sete freguesias, visitando sete cemitérios, sete outeiros e as sete partidas do mundo.11 Na desabrida correria, iam apagando as luzes que encontravam pelo caminho e pedindo às pessoas com que cruzavam para quebrar-lhes a maldição. Ouvindo por três vezes “AveMaria”, o cão satânico arrebentava e sumia. O sino-saimão (signo de Salomão) era a maior arma contra seus malefícios. No Brasil permaneceu a justificativa do castigo por ligações sexuais incestuosas, consistindo sua sina em chupar sangue de criança de peito e de animaizinhos novos. Não há, contudo, na nossa tradição etnográfica referências à necrofagia detectada pelos médicos setecentistas. Estes, por sua vez, insistiam em ser essa a especialidade de lobisomens e de suas irmãs, as bruxas, “asseclas de Belzebu”, como dizia o já mencionado Abreu, capazes, elas também, de devorar “corpos mortos de pouco tempo”, ou de “roer as partes dos cadáveres já corruptos”.12 Transformadas em borboletas noturnas, de espécie amarelada e crepuscular, bruxas como a pernambucana Anna Jacome, denunciada ao Santo Ofício da Inquisição em 1593, eram capazes de enfeitiçar crianças deixando-as “com a boca chupada em ambos os cantos tendo em cada canto [...] uma nódoa negra com sinal de dentada”, além das virilhas marcadas por “chupaduras negras” e, pobrezinhas, incapazes de mamar.13
O mesmo interesse que moveu médicos e sábios portugueses no diagnóstico desses filhos da noite incentivou autoridades de todos os tipos a comprovar, além-Pireneus, a existência de vampiros. A explosão do vampirismo na primeira metade do século xviii — espécie de idade de ouro do sanguessuga — teve, contudo, um cenário bem preciso. Em 1710, uma epidemia de peste arrasou a Prússia. Em Marselha, na França, entre 1720 e 1730, a Peste Negra foi extraordinariamente mortífera. Na Sérvia, à mesma época, grassava a peste bovina, fatal para os animais e, igualmente, para os homens. Do momento em que se contassem muitos mortos suspeitos num mesmo vilarejo, pensava-se 106 107 imediatamente na presença de um morto-vivo. Representantes do poder público procediam a investigações sistemáticas sobre casos de vampirismo, chegando até a abrir tumbas nos cemitérios à cata dos presumíveis culpados pela calamidade.14 Eis por que na Áustria, na Sérvia, na Prússia, na Polônia, na Morávia e na Rússia só se falava naqueles que eram, segundo Alfredo Taunay, “abantesmas sugadores de sangue”.15 Dois casos espetaculares vêm jogar água nesse moinho: o primeiro envolve um camponês húngaro, Pedro Plogojowitz, acusado de ter se tornado vampiro depois de morto, em 1725, e de ter provocado a morte de oito pessoas no pequeno vilarejo de Kizilova; o segundo tem como protagonista Arnaldo Paole, falecido ao cair de uma charrete em 1726, transformado posteriormente em vampiro e a quem se creditava o desaparecimento de grande parte dos habitantes da cidadezinha de Medwegya, bem como de seu gado. O primeiro caso foi alvo de um relatório oficial, em língua alemã. É nele que aparece, pela primeira vez, o termo vampiro, ortografado como vanpir.16 O caso de Arnaldo Paole teve maior repercussão e abriu-se, sobre ele, uma investigação oficial em dezembro de 1731. Comandado pelo médico militar Flückinger e endossado por vários oficiais da companhia do arquiduque, o documento final foi apresentado ao conselho de guerra de Belgrado. Publicado em 1732 e inúmeras vezes reeditado, o relatório intitulado Visum e repertum suscitou o maior interesse entre os dirigentes da Europa ocidental; nele, os médicos descreviam, com pormenores, a abertura de túmulos e as condições nas quais encontravam os cadáveres. Daí seu título em latim. O sucesso do assunto foi de tal ordem que trechos inteiros eram transcritos e reproduzidos em revistas, dentre as quais a renomada Mercure Historique et Politique. O imperador austríaco Carlos iv acompanhou com grande atenção o caso Plogojowitz enquanto Luís xv pedia ao
duque de Richelieu 108 notícias circunstanciadas sobre os resultados finais da enquete. Os dois “vampiros”, Plogojowitz e Paole, fizeram correr bastante tinta em toda a Europa. Le Glaneur, por exemplo, revista holandesa muito lida na corte de Versalhes, expunha com requinte de detalhes o caso Arnaldo Paole no número de 3 de março de 1732. A palavra vampiro, então ortografada como “vampyre”, foi empregada pela primeira vez em francês e, no mesmo ano, o London Journal, num artigo publicado no dia 11 de março de 1732, adaptou-a para o inglês. Esses dois casos e outros tantos similares inspiraram toda uma longa série de tratados e de “dissertações” sobre a questão do vampirismo, provocando infindáveis polêmicas nos círculos literários e científicos. Os debates, por sua vez, atravessaram de novo os Pireneus e chegaram até Portugal. Dessa vez na pena da curiosíssima figura de Pedro Norberto de Arcourt e Padilha. Fidalgo da casa real, cavaleiro professo na Ordem de Cristo e secretário da Mesa do Desembargo do Paço, descendente pelo lado paterno de uma das mais ilustres famílias espanholas e pelo lado materno de uma estimada criada da infanta dona Isabel, Pedro de Arcourt e Padilha é autor de Raridades da natureza e da arte, uma impressionante coletânea de bizarrias e curiosidades tão ao gosto do século xviii,17 publicadas em Lisboa no ano de 1759. Passeando pela intrincada floresta de fenômenos naturais, entre os quais se destacam inquietantes casos de “simpatia e antipatia” entre vegetais, animais e minerais ou sinistros episódios de magia natural e artificial, o sábio luso demonstrava sua intimidade com a literatura estrangeira que então circulava no pachorrento Portugal. Seus textos são pontilhados de alusões que vão de Alberto Magno e Plínio, o Velho, a Lavoisier, Kirker (sic) — o nosso já conhecido Kirschner — e aos Messieurs Henrion, famoso anatomista ou Réamur, célebre por suas experiências com incubação artificial. 109 Seu alentado volume termina com uma série de páginas consagradas aos vampiros, que nelas adotam sua forma afrancesada — vampires — e demonstram o extraordinário interesse que o tema vinha despertando na península. Não era para menos. Nessa mesma época, uma série de tratados já tinha percorrido os gabinetes de leitura do lado de cá dos Pireneus e eram folheados por nosso fidalgo,18 que não hesitou em posicionar-se no debate internacional que procurava explicar o que eram, finalmente, tais criaturas noturnas.
Mas de que debate se tratava? Um primeiro tratado, publicado no final do século XVII, em Leipzig, a Dissertatio historicaphilosophica de masticatione mortuorum (1679), de autoria de um certo Phillip Rohr, tentara explicar o fenômeno dos mortos que mascavam nas tumbas pela possessão diabólica de seus corpos. Esse livro despertou uma incendiária controvérsia entre os que admitiam a explicação sobrenatural de Rohr e aqueles que a rejeitavam, considerando os fatos aí descritos como fruto da ignorância e da superstição.19 Num tratado que se tornou célebre, o De masticatione mortuorum in tumulis liber, também publicado em Leipzig em 1728, Michaej Ranft refuta as teses de seu antecessor, alegando que, se os mortos podiam agir sobre os vivos, eles não podiam de forma alguma aparecer sob forma palpável; e que os demônios não póssuíam nenhum poder para habitar os corpos dos defuntos. Dentre os numerosos tratados editados após o caso Arnaldo Paole vale citar, ainda, a Dissertatiophisica de cadaveribus sanguisugus, de Johann Christian Stock (Iena, 1732), e a Dissertatio de vampiris serviensisibus, de Johann Heinrich Zopft (Halie, 1733), capazes, juntamente com outros tantos, de transformar o vampirismo num dos mais animados assuntos de conversa nas universidades e salões europeus na segunda metade do século xviii. Dos autores citados, Padilha mostra conhecer monsieur Ranft, bem como outro autor que em pouco tempo faria fortuna: dom Calmet (1672-1757). Esse monge beneditino da abadia de Senone, célebre exegeta da Bíblia, interlocutor de Voltaire, celebrizou- se por trazer à luz uma das mais polêmicas obras da época, o Traité sur les revenants en corps, les excommuniés, les oupires ou vampires, broucolaques de Hongrie, de Moravie etc., publicado em dois volumes em Paris, no ano de 1746.20 Pretendendo iluminar a questão e refutar a crença no vampirismo, dom Calmet acabou por repertoriar um número avassalador de exemplos, bem como por discorrer sobre questões práticas relativas aos hábitos do monstro: “Um homem realmente morto poderia aparecer em seu próprio corpo?” Segundo o cioso beneditino, sim. Há cerca de sessenta anos, explicava, na Hungria, Polônia, Silésia e Morávia assistia-se ao retorno de mortos que não apenas falavam e andavam, mas que infestavam os vilarejos, atacavam homens e animais, sugavam-lhes o sangue até torná-los doentes e matálos. Depois de “vistos e reconhecidos”, eles eram exumados, processados, empalados, degolados e, finalmente, queimados. Um dos casos que relata é bem específico sobre o tratamento dispensado ao sanguinário “morcegão”. Um pastor da cidade de Blow, na Boêmia, depois de morto insistia em “chamar” pessoas suas conhecidas que, passados oito dias, vinham a falecer. Seus vizinhos o desenterraram, atravessaramlhe o coração com uma estaca. O pastor-vampiro, contudo,
prosseguia com seus ataques noturnos rindo-se, perguntando por que lhe dispensavam tal tratamento e agradecendo por lhe terem dado um pau para defender-se contra “cães raivosos”. Apesar da medida saneadora da vizinhança, ele continuou “assustando e sufocando mais do que fizera até então”. O morto-vivo foi, então, entregue aos cuidados de um carrasco, que o transportou, aos gritos e ainda empalado, numa charrete para fora da cidade. Segundo Calmet, “le cadavre hurloit comme un furieux & remuoit les pieds & les mains comme vivant; & lorsqu’on le perça de nouveaux avec des pieux, li jetta des très grands cris & rendit du sang très vermeil & en grande quantité. Enfim on le brula & cette execution mit fim aux apparitions & aux infestactions de ce spectre”.21 Segundo o mesmo Calmet, o exame físico dos vampiros revelava-os, sempre, com tez avermelhada, possuidores de membros flexíveis e dobradiços sem nenhuma marca de rigor mortis, sem vermes nem podridão; mas não sem horrível e nauseabundo fedor. Os capítulos se sucedem com títulos bem diretos: “Mortos da Hungria que sugam o sangue dos vivos”, “Crônica de um vampiro, extraída de cartas judias”, “Vestígios do vampirismo na Antiguidade”, “Mortos- vivos na Inglaterra” e até na América do Sul: mais especificamente, no distante Peru. Outros eclesiásticos que ocupavam altos cargos na hierarquia da Igreja acabaram, junto com dom Calmet, por consagrar involuntariamente o vampirismo. Foi o caso de Giuseppe Davanzati, arcebispo de Florença e patriarca de Alexandria, com sua Dissertatione sopra i vampiri (Nápoles, 1774) e do próprio papa Bento xiv, Próspero Lambertini, que dedicou algumas páginas a tais entidades para refutar sua existência, na segunda edição do volumoso De servorum Dei beatificatione et de beatorum canonizatione (Roma, 1749). Pela pena de Pedro Norberto de Arcourt e Padilha, o debate sobre os vampiros integrou as sensibilidades no Portugal setecentista, aumentando a constelação de monstros que habitou a mentalidade de nossos antepassados. Padilha explicava a existência dos abantesmas sugadores de sangue como coisa do demônio, manifestação de diabolismo. Nada mais verdadeiro. Afinal, em Portugal, “o místico e o profano não viviam lado a lado, mas interpenetravam-se. O plano do real e o do sobrenatural mergulhavam, sem se desligar, no pensamento das maiorias”.22 Acreditava-se na volta dos mortos, nos exorcismos, em bruxas e feitiços, em lobisomens e nas “vexações” impostas por Satã. O diabo, como suas crias, os vampiros e os fantasmas, era, por excelência, habitante de um universo insondável, lugar em que o normal desaparecia em benefício de fenômenos incompreensíveis, espaço em que os limites físicos, mas também morais, do homem se eclipsavam. Qualquer leitor que se debruçar sobre as Raridades da natureza e da arte perceberá, rapidamente que as histórias de Pedro de Arcourt e Padilha têm uma
significação simultaneamente histórica e social, na medida em que traduzem a curiosidade e o fascínio que exerciam tantos personagens imaginários. Boa razão para recontá-las, dirá o historiador! No Brasil vários ritos, cercando o enterro e os cuidados com defuntos, tinham por objetivo evitar sua transformação em mortos-vivos, em zumbis, como acontecera ao pastor boêmio mencionado por dom Calmet. Se nossa tradição não menciona vampiros setecentistas, ela guardou, contudo, histórias de seres agressivos, comedores de crianças, portadores de unhas em garra próprias para girar o alimento entre os dentes, mastigando presas pequeninas ou grandes: o mapinguiri, o quibungo, o papa-figo, o capelobo. Todos, entre lobisomens e devoradores de gente, bem vivos e reais na memória dos moradores de zonas rurais, como que a nos lembrar o pavor que a antropofagia inspirava aos narradores e cronistas coloniais. O desenvolvimento de uma literatura monstruosa, tal como a de Arcourt e Padilha, continuava articulado com um procedimento mental corrente na Idade Moderna: a vontade de reconhecer uma significação nos efeitos insólitos e extraordinários e de medilos, segundo sua maior ou menor regularidade. Tanto em Portugal como no restante da Europa ocidental, a noção de maravilhoso, como já demonstrei, revestiu-se de um novo sentido para os homens de letras e de ciências. Não existiam maravilhas a seus olhos se estas não pudessem converter-se em crônica, em texto narrativo. Por outro lado, para as camadas subalternas 112 113 da população e também para as parcelas letradas resistentes à “revolução científica”, a maravilha e a teratologia a ela associada seguiam tributárias da versão de santo Agostinho ou Ambroise Paré; ou seja, a natureza consistia, fundamentalmente, num universo de signos divinos a ser decifrados. Mesmo com o advento do Iluminismo, no restante da Europa, e da Ilustração, em Portugal, esse sistema de representações continuava a vicejar com incrível vigor na literatura setecentista, dando mostras da resistência de certas categorias mentais ao avanço da razão. O interessante é que as classes subalternas vão encontrar na “literatura de cordel” — e nos chamados papéis — um excelente instrumento de mediação cultural, capaz de introduzi-las na literatura teratológica consumida pelas elites letradas, tão bem representadas pela figura de Pedro Norberto de Arcourt e Padilha. É nesta sementeira que proliferaram outros monstros capazes de assustar gostosamente NOSSOS antepassados.
Chamavam-se papéis os folhetos de cordel vendidos, geralmente, nas feiras urbanas por cegos cantadores de seu conteúdo, de acordo com um privilégio concedido por dom João v. Segundo Mário Cesarini,23 a literatura de cordel foi vítima do poder que, em pleno Renascimento luso, veio monopolizar o ensino da língua portuguesa. Cinqüenta anos depois de impresso o primeiro livro em Portugal, tanto o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição como a Companhia de Jesus impuseram as primeiras gramáticas (1536-40), e com elas uma espécie de língua oficial, que cobrava o banimento de expressões consideradas pagãs ou atentatórias às suspeitas de Roma, então egressa do Concílio de Trento e de suas demandas sulfurosas. Diz ele que “todo um imenso espaço cultural, ao longo de séculos bem mais vivo do que o latinório que impõe a retórica, é punido pelo fogo ou atirado ao nada durante trezentos anos”. Em seu entender, a literatura de cordel ou “os papéis” tornaram-se um território de revanche contra o autoritário monopólio lingüístico controlado pelos jesuítas e por outras ordens religiosas. Mas não só revanche contra o autoritarismo lingüístico; como no resto da Europa, a literatura de cordel — em forma de small ou chap books (Inglaterra), romances (Espanha), canards (França) ou Volksbuch (Alemanha) — constituiu um território consagrado às histórias sobre a desordem dos elementos, aos crimes abomináveis e às execuções que se lhes seguiam e aos fenômenos que transgrediam as leis naturais.24 Publicados em tiragens que atingiam até 2 mil exemplares, em papel barato e formato in octavo, os textos de cordel portugueses serviam aos leitores para uma utilização rápida e fácil, funcionando, no mais das vezes, como uma “literatura de escape”. Nesse estado, furtavamse a uma leitura que gerasse inquietação e pudesse destruir as convicções habituais ou as idéias já estabelecidas. Vendidos muito baratos, em torno de “oito ou dez vinténs”, os folhetos de cordel cruzaram o Atlântico em direção às Américas.25 Tais publicações, editadas pelo livreiro Cromberger em Sevilha, eram expedidas com o nome de pliegos sueltos, sendo presença corriqueira nas embarcações que vinham para o Brasil ou para os portos espanhóis.26 Entre as aventuras de Sergias de Esplandian ou de Amadis de Gaula, as facécias da Serração da velha ou do Testamento de Clara Lopes, ou ainda as desventuras da Giganta de Coimbra, figuravam curiosas Relações sobre o aparecimento de monstros e monstrengos, nas quais o maravilhoso zoológico e teratológico resgatava referências extraídas de textos difundidos ao longo da Idade Moderna; referências estas que teriam freqüentado a literatura dos salões letrados e sobrevivido à vitória ambígua da razão, abrigadas no seio dessa literatura de preços modestos e de largo consumo. Entre elas há, por exemplo, a Relação do monstruoso peixe que nas praias do Tejo apareceu em 16 de maio deste presente ano
114 115 de 1748, oferecida ao público por Manoel da Conceição, livreiro morador na rua do Loreto; ou ainda a Relação verdadeira de espantosa fera que há tempos a esta parte tem aparecido nas vizinhanças de Chaves, os estragos que tem feito e diligências que se fazem para apanhá-la, segundo as notícias participadas por cartas de pessoas fidedignas daquela província, Lisboa, na Oficina de João Felipe, ano de 1760. Vale destacar que, apesar da especificidade de cada caso teratológico aí narrado, o prólogo de muitos papéis era idêntico, revelando uma tendência da imprensa da época de apropriação de parte de textos já publicados, numa forma prática de poupar os gastos com a impressão; o mesmo se dava com as gravuras que, sofrendo pequenas modificações, serviam para ilustrar histórias diferentes. Por meio de imagens assustadoras, os textos enunciavam a crônica do prodigioso e do maravilhoso incentivando a participação do leitor num jogo de signos a decifrar. Tanto a gravura como o prólogo deveriam sugerir-lhe a correta compreensão do texto, sua justa significação. Ambos constituíam um lugar de memória na qual se cristalizava uma história, um ensinamento, uma propaganda, ou bem correspondia a uma metáfora do texto inteiro, evitando que uma leitura descontínua e irrequieta pudesse fugir de seu contexto. Por trás da decifração de tão curiosas manifestações naturais, os textos revelavam crenças comuns às classes letradas ou subalternas no que diz respeito à existência e ao significado dos monstros: “Prodigiosa é a natureza na criação de seus indivíduos, assim terrestres como aquáticos, sendo tanta sua variedade que, por mais que os naturalistas se empenharam em sua descrição, foi essa matéria muito superior às suas forças”, inaugura um desses preâmbulos, comum a duas histórias diferentes. A descrição dos monstros é propositadamente impressionante. Um tem mais de dez palmos de alto, com grossura proporcionada. As pernas com um côvado de altura, grossas, roliças, sem feitio de barriga [...] e cobertas de uma cor cinza e escamosa. As unhas dos pés fendidas como alguns animais quadrúpedes, e da mesma matéria, mas formando com ela, em cada, uma meia lua. Todo o resto do corpo, excetuando meios braços, peito e barriga, era coberto de pena cinzenta [...] A cabeça com feição humana, mas disforme, os olhos grandes, redondos e com cor de alhambre. O nariz pendente e comprido como bico de águia. A boca muito rasgada e em lugar de dentes um osso que corria ambos os
queixos [...] sendo notáveis todos os membros deste animal eram ainda mais notáveis os ombros. De cada um nascia uma cabeça de águia com olhos e bicos perfeitos com um pescoço tão comprido que se punham quase na altura da cabeça principal. Ambos cobertos de penas sobre o negro [...] O peito e ventre, liso e luzidio que de noite nos lugares escuros lançava de si um resplendor sobre o qual se divisava perfeitamente uma cruz...27 Outro monstro que fez sua aparição no Paraguai em 1735 tinha, por sua vez, “nove varas de altura, o rosto de homem, mas tão disforme que causava horror; o peito largo, a pele como concha de tartaruga antes de colhida. As pernas compridas e delgadas, os pés de unhas fendidas como de boi [...] Um rabo como às vezes se costuma pintar o demônio, comprido, cabeludo e cheio de nós. Trazia na mão direita uma pena e na esquerda, uns cadernos de papel escrito”.28 Em Jerusalém, em 1763, surgiu um “monstruoso animal”, misto de elefante, leão, grifo, galo e serpente, como que saído do célebre quadro de Frans Floris de Vriend, A queda dos anjos rebeldes, pintado duzentos anos antes. José Freire Montarroio Mascarenhas foi autor de papéis excitantes, com compridos e desafiadores títulos: O maior monstro da Natureza aparecido na costa da 116 117 Tartária setentrional no mês de agosto de 1739 ou Notícia de um portentoso monstro daAnatólia, impresso em Lisboa em 1727, ou da Relação de um formidável monstro silvestre na vizinhança de Jerusalém. Pelos títulos avalia-se o estilo e a matéria do texto, adubado de pormenores maravilhosos, postos umas vezes em prosa, outras em verso, em português ou em castelhano. É o caso, por exemplo, da Verdadera Relacion y Nuevo Romance que refiere la horrorosa figura de un Monstruo Pescado, que el dia ocho de agosto de este año passado se descobrió en la orilla del Mar à distância de sete milias de la ciudad de Fermo, del Señorio de Venecia. O monstruo era realmente coisa estupenda: com cara de gente, uma tumba com caveira no dorso, espadas, âncoras e luas gravadas no ventre, além de três ppp sibilinos, setas em vez de unhas, cornos, juba e tetas. Nada escapou ao desenhista para fazer vibrar a imaginação dos leitores. Um Romance contava como se dera a pesca do “fenômeno” em meio de um temporal desfeito, e descreve-o depois em redondilha maior, pondo o enigma à conta de Deus: Sobre que pueda ser esto dudo que alcance ninguna
mente, por capaz que sea à resolver esta duda, este enigma, ó este encanto por que el mas docto se ofusca, hasta que Diós, si conviene com su poder lo descubra.29 Aviso celestial, aceno frenético da mão de Deus, essas aparições não deixavam nenhuma dúvida quanto a seu significado. Ora “açoite da Divina Justiça”, ora “símbolo, emblema, compêndio de calamidade e ruínas” enviado pela “Providência Divina”, a história do aparecimento do monstro prepara o leitor para uma mensagem moralizante: seja a necessidade de lutar pela conversão dos muçulmanos, seja o incremento da fé católica, seja a torcida pelo “mau sucesso das armas otomanas na Pérsia”, seja ainda a necessidade de maior caridade cristã. O texto do folheto jamais omitia um recado do Todo-Poderoso! O horror do monstro, tantas vezes reproduzido numa xilogravura ilustrativa, deveria incitar quer à crença nesses prodigiosos fenômenos da natureza, quer no terrível julgamento do Senhor, que a tudo assistia. Além de fazer circular muitas informações extraídas de obras eruditas entre as camadas médias e subalternas, consumidoras desse tipo de entretenimento moralizante, os papéis faziam o caminho inverso: levavam aos letrados histórias de gosto “popular”. A Cópia de uma carta escrita da cidade de Galloway no reino da Escócia, de autoria de um obscuro G. Vander P., em 1733, avança temas maravilhosos que foram, posteriormente, retomados por Arcourt e Padilha. Os Vampires da Sérvia ou cadáveres chupadores de sangue que saindo das tumbas vêm esgotar o humor aos vivos, o Bicho prodigioso de Constantinopla ou o singularíssimo indivíduo que “dormia sobre os próprios pés”, passava a pão e água, não ria nem chorava, prognosticava o futuro e descendia de um passageiro clandestino da arca de Noé, são assuntos extraídos de papéis e mais tarde reaproveitados, ou rearranjados, no Raridades da natureza e da arte... E quanto ao prazer de sentir medo? Espécie de literatura de edificação, tais folhetos prendiam a atenção e a respiração dos leitores, enquanto narravam seus casos, mergulhando-os num mundo de eventos fantásticos e de fantasmagorias sem limites. Para aqueles que pertenciam às classes subalternas, a presença de tais monstros era lida e decodificada como um castigo ou advertência. Para as elites letradas, porém, renitentes à chegada da 118 119
mecanização do mundo e à laicização, significava uma “salutífera prova” de que, naqueles tempos, a física podia ser sinônimo de magia natural. A maior parte dos anônimos autores desses folhetos volantes procurava atingir dois públicos com uma só cajadada. Em suas opiniões sobre os abantesmas iam, assim, das afirmações peremptórias ao humor sutil, do relato empírico ao “divertimento”: Ajustemo-nos a crer que tem havido no mundo muitos monstros em diversos tempos; mas que nunca houve nele propagação de espécies monstruosas. O monstro de que vos dou notícia é um dos raros que têm visto os séculos; se vos parecer inverossímil, eu vola não dou por artigo de fé; se tiverdes por sem sabor a sua narração, supra esse defeito a vontade que tenho de vos mandar de tão longe este divertimento; e porque não seja também enfadonha por dilatada, a Deus que vos guarde.30 A mal conhecida produção de folhetos de cordel, espécie de avesso da literatura técnica nascida durante o Renascimento luso, teve, segundo Cesarini, um florescimento espetacular entre os séculos xvi e xviii. Mas é preciso destacar que, apesar dos avanços técnicos obtidos num período anterior com as navegações ultramarinas, ou com o advento do ideário iluminista racionalista, o que era considerado por grande parte da população maravilhoso, insólito, bizarro seguiu multiplicandose. Tais “signos inquietantes” — como aparecem qualificados em vários papéis — referendavam nefastos acontecimentos econômicos e políticos. A relação entre o aparecimento de monstros e o empobrecimento de Portugal devia parecer lógica; todos os contratempos indicavam a necessidade de arrependimento, todos os percalços eram provas às quais o povo deveria submeter-se. Eram eles: o desastre de Alcácer-Quibir, a união das coroas ibéricas, os terríveis 120 impostos cobrados por prepostos de Filipe ii a Filipe iv, os levantes de Évora, o reino atribulado de Afonso vi (rei impotente que vê o irmão usurpar-lhe a mulher e o poder), o empobrecimento dos agricultores do Norte, que tiveram de entregar seus campos para o plantio da uva, atendendo assim às demandas do tratado de Methuen, o terremoto de Lisboa, a conspiração dos Távora, a execução de Malagrida e tantos outros fatos que pareciam completar o retrato de uma parcela da humanidade impotente para combater calamidades e enfrentar prodígios, acreditando na possibilidade de um julgamento divino. A relação entre a teratologia e as dificuldades
materiais da vida devia parecer plausível em tempos em que se habitava um país que vivia sob o terror da Inquisição, da ditatura da escolástica e do obscurantismo religioso. Um papel datado de 1734 e de autoria de um certo João Veloso sobre o nascimento de “dous animais monstruosos” dá bem a medida da acolhida e do crédito que possuíam tais folhetos de cordel. Diz ele: Não reparem V. M. em que somente lhes dou notícias de nossa terra, sucedendo no mesmo tempo nos reinos estranhos, outras deste gênero [...] pois como verdadeiro português não admito na minha casa drogas de fora do reino. Só escrevo o que se pode ver e examinar, e não me sirvo de notícias de terras para donde é difícil a correspondência e a verificação; porque lá dizem, de longas terras, longas mentiras.31 Os monstros portugueses eram, pois, bem “verdadeiros” e não conheciam imitações. Explicações para sua existência não faltavam. Diga-o o guarda-mor da Torre do Tombo, João Couceiro de Abreu e Castro, que em pleno século xviii sublinhava: 121 Como Deus é autor da natureza, todas as suas produções assim perfeitas, como imperfeitas, são objetos da Divina Providência, que costuma prognosticar a raridade dos sucessos com a diversidade dos nascimentos e dos meteoros, e não é justo se despreze por acaso da natureza, o que é regulado pelo seu Autor, como nos têm mostrado as histórias de semelhantes monstros. Judicioso guarda-mor! vii. Conclusão Cemitérios silenciosos de túmulos gretados, capelas em ruínas cobertas de musgo, velhas mansões assombradas cujas portas gemem se tocadas pelo vento, pântanos mergulhados em brumas, grutas úmidas e escuras, encruzilhadas que levam a lugar nenhum e onde se ouve a coruja piar: é em tais lugares que costumamos colocar esses seres diferentes, seres inquietantes, nossos monstros. O monstro evoca a idéia de ilusão e de fantasmagoria, a noção de medo e horror, a perplexidade humana diante de manifestações inexplicáveis. A palavra monstro é ambígua, pois recobre realidades diferentes: na Idade Média, ela evoca a idéia de diferença, de estranhamento, mas também de emanação do poder do Criador. Durante o Renascimento, a de maravilha e prodígio e, igualmente, a de força maléfica e abismo devorador. Durante o século xvii, ela se reveste de credulidade científica, envolvendo, contudo, as armadilhas da razão. No xviii segue oscilando entre o tratado médico e o tratado teológico. Diferentemente de hoje, os monstros no passado não se
122 123 dissipavam diante de exorcistas munidos de crucifixo e água benta, de armas saídas da ficção científica ou da intervenção de um super-herói a rasgar os céus. Eram personagens cotidianos que integravam a vida social, o imaginário político e religioso. Aquilo que podia parecer um epifenômeno tinha, no entanto, raízes em motivações históricas, permitindo-nos, tantos anos depois, redescobrir as estruturas mentais de uma época. Duzentos anos de literatura nos revelam as rupturas e permanências das idéias, das mentalidades e dos comportamentos em face dos monstros. Há nessa trajetória uma quase universalidade de imaginação sobre os monstros em todas as sociedades, do passado e do presente. O que leva a pensar que eles têm, aí, um papel importante; os homens, todos eles, obrigam-se a construir mentalmente algo que lhes dê medo. E esse medo pode ter suas fontes na religião, na ciência ou na política. A história de nossos medos, e por conseguinte de nossos monstros, nos introduz no “maravilhoso” como categoria de análise e no imaginário como “território” de pesquisa. Ambos, bem o sabemos, fenômenos constantemente renovados e em processo de permanente reinvenção, no qual se encontram, contudo, estruturas notáveis de estabilidade e de recorrência.1 O domínio do imaginário é constituído pelo conjunto de representações que transbordam do limite imposto pelas constatações da experiência e do encadeamento dedutivo que estas autorizam. Quer dizer que cada cultura, e cada sociedade, possui seu imaginário. Em outras palavras, o limite entre o real e o imaginário revela-se variável, enquanto o território por ele atravessado continua, por tudo e em tudo, idêntico, pois ele não é outro senão aquele da experiência humana, do mais coletivamente social ao mais intimamente pessoal: a curiosidade de longínquos horizontes no espaço e no tempo, terras e mares nunca dantes vistos, angústia inspirada pelo desconhecimento do futuro, em seres extraordinários, atenção aos sonhos.2 Por fim, é importante ter em conta as várias — insisto, várias — funções do imaginário teratológico no seio de uma dada sociedade; por que é que ele foi produzido e consumido? Não há dúvida de que havia certa função de compensação. O imaginário teratológico servia como contrapeso à regularidade e à banalidade do cotidiano. Servia, também, para contrabalançar as duras condições de vida na qual bracejava a maior parte da
população da Metrópole portuguesa ou da Colônia, assim como das capitais e do mundo rural no restante da Europa, entre os séculos xvi e xviii. Outra serventia foi a de resistência às categorias racionalistas impostas pelo humanismo. O escapismo para um universo de monstros ou de bichos fantásticos amenizava o impacto das descobertas científicas e a ditadura da experiência. Outro uso, ainda, foi o do prazer de sentir medo. A literatura teratológica, relatando fatos estranhos e aterradores, prontos para arrepiar ou para fazer suar frio, dirigia-se a um público apreciador de emoções fortes. Poderíamos, hoje, aproximá-la da “imprensa marrom” ou dos reality shows, mas não encontramos, aí, nem a poesia, nem o pitoresco dos textos, nem o frescor ingênuo de seu estilo. Às vezes cruel, outras, cômica ou emocionante, às vezes fantasmagórica ou extravagante, a literatura sobre monstros nos ensina, mais do que muitos tratados eruditos, sobre as mentalidades e a cultura entre os séculos xvi e xviii. Ela mergulha no mais profundo do inconsciente coletivo, do qual extrai as aspirações, os recalques e os terrores de diferentes grupos sociais. Vale, por fim, dizer que, dentre suas muitas tarefas, cabe também ao historiador conhecer de onde as sociedades extraem a matéria para os próprios sonhos. 124 125 Pequeno anexo teratológico para estudiosos, curiosos e afins Texto: “Relatam de hum formidavel e horrendo monstro silvestre que foy visto e morto nas vizinhanças de Jerusalem, traduzido fielmente de huma que se imprimio em Palermo no Reino de Sicilia e se reimprimio em Genova, e em Turim; a que se acrescenta uma carta escrita de Alepo sobre a mesma matéria” Com o retrato verdadeiro do dito Bicho. Lisboa Ocidental, na oficina de Joseph Antonio da Sylva, 1726. 127 Notas 1. INTRODUÇÃO (pp 1-6) 1. Obrigatório para a compreensão do tema da teratologia na arte é o livro de Gilbert Lascault, Le monstre dans l’art occidental: un problème esthéthique. Paris, Klincksieck, 1973, do qual empresto algumas idéias. 2. Sobre o colapso da crença na ciência e a emergência do fantástico, veja- se o ensaio de Katleen Agena, “O retorno do encantamento”, em O Estado de S. Paulo, 8/1/84, n 187, pp. 2-4.
3. José Gil, Monstros. Lisboa, Quetzal, 1994, p. 10. 4. Essa é a opinião que, aliás, compartimos com Louis Vax, em seu L’art et la littérature fantastiques. Paris, PUF, 1974, p. 5. 5. Trata-se de Michel Pastoureau, em seu artigo “L’Histoire en couleurs’ in L’ogre historien — autour de Jacques le Goff org. Jacques Revel. Paris, Gallimard, 1998, p. 127. 6. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977. 7. Sobre uma reflexão sobre “Sérgio Buarque de Holanda: historiador das representações mentais”, ver Ronaldo Vainfas, in Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil, org. Antonio Candido. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1998, pp. 49-58. 8. Ver seu artigo “De l’à peu prés à la précision en passant par oul-dire”, in La sensibilité dans l’Histoire, org. Roger Chartier et alii. Paris, Gérard Monfort, 1987, pp. 79-93. 129 9. São as observações de Lucien Fébvre no artigo supracitado, p. 85. 10. Empresto aqui o título do livro de Georges Duby, An 1000 au 2000: sur les traces de nos peurs. Paris, Textuel, 1995. 11. Pierre Chaunu, prefácio de Certitudes et incertitudes de l’histoire, dir. Gilbert Gadoffre. Paris, PUF, 1987, p. 9. II. MONSTROS: O ESPELHO DAS TREVAS NO OCIDENTE MEDIEVAL (pp• 17-38) 1. Jurgis Baltrusaitis, Réveils et prodiges — les métamorphoses du gothique. Paris, Flammarion, 1988, p. 10. 2. Idem, Formations et déformations — la stylistique ornamentale dans la sculpture romane. Paris, Flammarion, 1986, prefácio, p. 7. 3. Ver idem, Le Moyen Age fantastique — antiquités et exotismes dans l’art gothique. Paris, Flammarion, 1981. 4. Para compreender a construção da teratologia no pensamento medieval, ver o clássico de Claude Lecouteaux, Les monstres dans la pensée médiévale européenne. Paris, Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 1993. 5. Ctésias, Histoires de l’Orient, prefácio de Charles Malamud. Paris, Les Belles Lettres, 1991. 6. Ibidem, livro i, pp. 106-29. 7. Rudolf Wittkower, L’Orientfabuleuz Paris, Thames & Hudson, 1991, p. 25. 8. Plínio, o Velho, Histoires de la nature. Paris, Jérôme Milion, 1984, pp. 60 e passim. 9. Willy Ley, Ces bêtes qui firent nos légendes. Paris, France-
Empire, 1968, pp. 56-7. 10. Plínio, o Velho, Histoires de la nature. Paris, Jérôme Millon, 1994, prefácio de Danielle Sonnier, p. 15. 11. José Gil, op. cit., pp. 24-5. 12. Sobre os monstros exóticos e a literatura erudita, ver Claude Lecouteaux, de cuja obra empresto informações, op. cit., pp. 62 e passim. 13. A cidade de Deus (Contra os pagãos). Petrópolis, Vozes, em co-edição com a Federação Agostiniana Brasileira. São Paulo, 1990, livro XVI, VIII, p. 229. 14. Ibidem. 15. Reproduzo aqui idéias de Jean Céard, em seu belo La nature et les prodiges — L’insolite au XVI’ siècle, en France. Genebra, Droz, 1977, pp. 27-9. 16. Ibidem, cap. xxi, p. 566. 17. Sobre o bispo espanhol, ver o artigo de Ruy de Oliveira Andrade Filho, “‘A respeito dos homens e dos seres prodigiosos”, in Revista da USP, n 94, set.-out.-nov. 1994, pp. 76-83. 18. Isidoro, Etymologiae, XI, 3. Oxford, W. M. Lindsay, 1911. 19. Emile Mâle, L’art religieux du XIII’ siècle en France. Paris, Armand Colin, 1902, p. 468. 20. Jean Héritier, Le martyre des affreux. Paris, Denoél, 1991, p. 49. 21. Ver sobre essa questão RudolfWittkower, Marvels of the East, Journal ofthe Warburg e Courtauld Institutes 5(1942), principalmente o capítulo dedicado à moralização das raças fabulosas nas artes e na literatura medieval. 22. Sobre a tradição moral nas artes plásticas medievais, ver Jean Seznec, La survivance des dieux antiques. Paris, Flammarion, 1980, cap. III, pp. 81 e passim. 23. Ver também Bestiaires du Moyen Age. Paris, Stock, 1980, com a reprodução dos bestiários escritos por Pedro de Beauvais, Guilherme le Clerc, Ricardo de Fournival, Brunetto Latini e Corbechon. 24. Paul Fierens, em Lefantastique dans l’artflamand. Bruxelas, Le Cercle d’Art, 1947, p. 7. 25. Jurgis Baltrusaitis, Réveils etprodiges, op. cit., pp. 137-8. 26. Claude Lecouteaux, op. cit., p. 25. 27. É o que Jean Céard diz sobre o Romance de Alexandre, op. cit., p. 56. 28. Claude Lecouteaux, op. cit., pp. 25-38. 29. Ibidem. 30. Sobre o assunto, ver Jeffrey Jerome Cohen, Of ginats, sex, monsters and middle ages. Londres, University of Minnesota Press, 1999.
31. Sobre o tema, ver o pequeno mas obrigatório livro de Jacqueline Pirenne, La légende du “prêtre Jean”. Strasbourg, Presses Universitaires de Strasbourg, 1992. 32. Claude Kappler, Monstruos, demonios e maravilias a fines de la Edad Media. Madri, AkaI, 1986, p. 51. 33. Sobre o controvertido autor medieval, veja-se o estudo de M. Letts, Sir John Mandeville: the man and his book. Londres, 1949, e J. Bennet, The discovery of Sir John Mandeville. Nova York, 1954. Paul Fierens, em Lefantastique dans l’artflamand. Bruxelas, Le Cercle d’Art, 1947, insiste que Mandeville teria viajado pela Terra Santa, Egito e Ásia, morando por 34 anos fora de sua Inglaterra natal. Tese discutida por autores que o sucederam, como é o caso de Claude Kappler e Christiane Deluz, citados neste capítulo. 34. É o que afirma Christiane Deluz em sua introdução a Voyage autour de la Terre. Paris, Les Belles Lettres, 1993, p. XIV. 35. Jean de Mandeville, Voyage autour de la Terre. Paris, Les Belles Lettres, 1993, p. 212. 36. Ibidem, p. 226. 37. Esta é a opinião de Paul Fierens, op. cit., p. 24. 38. C. Lecouteaux, op. cit., p. 118. 130 131 39. Martin Monestier, Les monstres. Paris, Tchou, 1996. 40. C. Lecouteaux, op. cit., pp. 115-7. 41. Histoire des animaux, vu, 6, trad. P. Louis. Paris, 1969. 42. C. Lecouteaux, op. cit. 43. Apud Claude Kappler, “Interprétation polítique du monstre chez Sébastien Brandt”, in Mt. T. Davies, op. cit., pp.100-9, 103. 44. Apud Jean Héritier, op. cit., pp. 80-1. 45. John Block Friedman, em seu The monstrous races in medieval art and thought. Cambridge, Mass./ Londres, Harvard University Press, 1988, lembra ainda que o mito das raças monstruosas foi tão difícil de descartar que ele proveu uma maneira familiar de olhar os nativos do Novo Mundo. Na falta de blêmias ou cinocéfalos, os europeus passaram a buscar homens selvagens, tal como eles aparecem no Romance de Alexandre. 46. Claude Kappler, op. cit., p. 75. III. A AMBÍGUA VITÓRIA DA RAZÃO E AS ARMADILHAs DA NATUREZA (PP. 39-60) 1. O livro de Megenberg foi seis vezes reeditado em um quarto de século, segundo W. Ley, em Ces bêtes quifirent nos légendes. Paris, France-Empire, 1968, p. 153.
2. Citado por Rudolf Wittkower, in L’Orientfabuleux. Paris, Thames & Hudson SARL, 1990, p. 51. 3. Cf. vol. 1, pp. 390, 442 e passim. Apud Rudolf Wittkower, op. cit., p. 53. 4. O Polyhistor, de Solinus, constituía uma versão abreviada da obra de Plínio, o Velho, que, por ser editada em latim, estava fora do alcance da maior parte dos leitores. Destinado a suscitar a curiosidade do leitor, o livro de Solinus ensinavao, também, a maravilhar-se diante do espetáculo da natureza. Sobre Thevet, ver o clássico de Frank Lestringant, L’atelier du cosmographe ou l’image du monde à la Renaissance. Paris, Albin Michel, 1991. 5. Ver seu ensaio Le miroir d’Hérodote Essai sur la répresentation de l’autre. Paris, Gallimard, 1980, p. 272. 6. Bernard Guenée, Histoire et culture dans l’Occident médiéval. Paris, Aubier, 1981,p. 132. 7. Franck Lestringant, edição crítica da Cosmographie du Levant de André Thevet. Genebra, Droz, 1985, pp. XLIX-L. 8. Cosmographie du Levant de André Thevet. Genebra, Droz, 1985, prefácio, p. 13, e epístola, p. 3. 9. 1489-1552. 10. Apud Rudolf Wittkower, op. cit., p. 53. 11. Ver o capítulo sobre Licostenes escrito por Jean Céard em seu La nature et les prodiges, op. cit., pp. 186-91. 12. Passo a aproveitar aqui informações colhidas na obra de Willy Ley” Ces bêtes qui firent nos légendes. Paris, FranceEmpire, 1968. 13. Reproduzo informações extraídas de Wily Ley, op. cit., pp. 156 e passim. 14. Wily Ley explica que o texto bíblico original se refere ao Re’em, que é um tipo de boi selvagem, o aurochs; mas os tradutores, ignorando a palavra grega correspondente, traduziram por monokeros, que se tornou unicornus em latim vulgar. 15. 1510-68. 16. Pe. Simão de Vasconcellos, Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, 2’ ed. Lisboa, 1865, 1, p. cxliv. A primeira edição é de 1663. 17. As informações sobre Aldrovandi são também extraídas da obra de Willy Ley, op. cit., pp. 199 e passim. 18. Apud Jean Céard, La nature et les prodiges, op. cit., p. 455. 19. 1526-1609. 20. Sobre o maravilhoso e os cronistas da América portuguesa, ver o clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo, Editora Nacional/ Secretaria de Cultura, Ciência e
Tecnologia, 1977. 21. Empresto aqui informações desenvolvidas por Marie Thérêse JonesDavies em “Le monstre: expression de l’insecurité dans la littérature et les spectacles de la Renaissance anglais’ in Monstres et prodiges au temps de la Renaissance, org. Marie Thérèse Jones-Davies. Paris, Université Paris-Sorbonne/Centre de Recherches sur la Renaissance/ Jean Touzot, 1980, pp. 26-38. 22. O mundo elisabetano povoado por gênios maus e bons, fadas, demônios, feiticeiras, fantasmas e conjuradores foi analisado por Frances A. Yates em seu The occultphilosophy in the Elizabethan age. Londres, Warburg Institute, 1987. 23. M. T. Jones Davies, op. cit., p. 27. 24. Bernard Tannier, “Un bestiaire maniériste: monstres et animaux fantastiques dans La reine des fées d’Edmond Spencer, in Monstres et prodiges, op. cit., pp. 55-65. 25. Apud Jurgis Baltrusaitis, Le Moyen Age fantastique, op. cit., p. 33. 26. Ambroisé Paré, Monstruos yprodigios, introducción, traducciôn y notas de Ignacio Malaxecheverría. Madri, Ediciones Siruela, 1987. 27. Ignacio Malaxecheverría, Introdução, in Monstruos y prodigios, op. cit., pp. 12-3. 28. Ambroisé Paré, op. cit., p. 77. 29. Apud Jean Céard, “Tératologie et téromancie au xvi’ sièc1e’ in M. T. Jones-Davies, op. cit., pp. 5-15, 6. 132 133 30. Ibidem. 31. Sobre as idéias de Paracelso (1493-1541), ver Patrice Duvi, Monstres et monstruosités. Paris” Albin Michel, 1973, pp. 129-31. 32. Apud Jurgis Baltrusaitis, Le Moyen Age fantastique, op. cit., p. 64. 33. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, cap. II da quarta parte, p. 213. 34. Jean Seznec, op. cit., estudou muito bem a tradição astrológica e a tradição física, pp. 41 e passim, de que faço uso neste parágrafo. IV. NO REINO, SEM LIMITES, DO INSÓLITO (pp 61-76) 1. Apud Jacques Roger, Les sciences de la vie dans la pensée française du XVIIIéme siècle. Paris, Armand Colin, 1963, p. 31. Reproduzirei, a partir daqui, várias informações extraídas dessa obra. 2. A mesma história, com algumas variações, é repetida por um
incrível personagem luso: Pedro de Arcourt e Padilha, em seu Raridades da natureza e da arte divididas pelos quatro elementos. Lisboa, Francisco Luís Aveiro, 1759. Só que na obra do autor português o fato acontece na casa do cônsul da França em Lisboa, Monsieur de Montagnac, e do ovo, posto por um “galo muito velho”, nascera um pinto com rabo de lagartixa. 3. Apud Jacques Roger, op. cit., p. 36. 4. Essa informação será repetida no Brasil setecentista pelo médico pernambucano Francisco Nunes, em seu Tratado do Parto Humano, por mim analisado em “A maternidade da mulher negra no período colonial”. Estudos do CEDHAL, n 4. São Paulo, FFLCH/ USP, 1989. 5. Jacques Roger, op. cit., p. 40. 6. Apud ibidem, pp. 90 e passim. 7. Ibidem, p. 91. 8. Esse e outros exemplos a Seguir emprestados de Jacques Roger, op. cit., pp. 186 e passim. 9. Sigo aproveitando as informações de Jacques Roger, op. cit., p. 188. 10. Empresto a seguir mais informações de Jacques Roger, extraídas de um capítulo intitulado “Les monstres”, op. cit., pp. 397 e passim. 11. Apud Clara Pinto-Correia, O ovário de Eva — a origem da vida. Rio de Janeiro, Campus, 1999, p. 201. Trata-se de uma vigorosa pesquisa sobre a história das teorias da concepção entre os séculos XVII e XVIII. V. MONSTROS E MARAVILHAS NO BRASIL COLONIAL (PP. 77 – 101) 1. Em L’Artfantastique. Paris, Albin Michel, 1989, p. 33. 2. Sobre o Brasil colônia como a morada do diabo, ver Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo, Companhia das Letras, 1986. 3. John Block Friedman, op. cit., p. 199. 4. Para conhecer melhor esse texto, ver Leyla Perrone Moysés, Vinte luas — Viagem de Paulmier de Gonne-ville ao Brasil 1 503-1505. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. 5. As singularidades da França Antártica. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1978. 6. Sobre a obra de Thevet, ver Frank Lestringant, L’atelier du cosmographe ou l’image du monde à la Renaissance. Paris, Albin Michel, 1991, e Les singularitez de la France Antarctique — Le Brésil des cannibales au XVI” siècle — Choix de textes, introduction e notes. Paris, Maspero, 1983. 7. Essa passagem encontra-se no capítulo XVI da tradução de Jean de Léry feita por Sérgio Milliet, Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 205. 8. Reproduzo aqui idéias de Frank Lestringant em seu Le
huguenot et le sauvage — L’Amérique et la controverse coloniale en France aux temps des Guerres de Religion. Paris, Aux Amateurs de Livres/Klincksieck, 1990, pp. 7-9, e de Jacques Farge, “Naissance d’une image’ in Michelle Duchet, L’Amérique de Théodore de Bry. Paris, CNRS, pp. 114-25. 9. Na tradução já citada, encontra-se no capítulo x, p. 144. 10. Veja-se, sobre a migração de formas orientais, Jürgis Baltrusaitis, Le Moyen Age fantastique — Antiquités et exotismes dans l’art gothique. Paris, Flammarion, 1981. 11. Apud Luís Felipe Barreto, Descobrimentos e Renascimento — Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983, p. 231. 12. Agradeço ao professor Luís de Barros Mott a gentil indicação deste documento. 13. Sobre esse tema é obrigatório o livro de Luís de Albuquerque et alii, O confronto do olhar — O encontro dos povos na época das navegações portuguesas. Lisboa, Editorial Caminho, 1991. 14. Ver seu Geografia dos mitos brasileiros. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1983, p. 187. 15. Suas viagens pelo Brasil se realizaram entre 1817 e 1820. 16. Viagem pelo Brasil vol. III, apud Luís da Câmara Cascudo, op. cit., p. 187. 17. Luís da Câmara Cascudo, op. cit., p. 185. 134 135 18. Ibidem, p. 142. 19. Ibidem, p. 45. 20. Apud Luís da Câmara Cascudo, op. cit., p. 45. 21. Ibidem, p. 56. 22. É a conclusão a que chega Câmara Cascudo, op. cit., p. 84. 23. Ibidem, p. 88. 24. Apud Luís da Câmara Cascudo, op. cit., p. 77. 25. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 119. O tema das sereias foi muito bem analisado por Carlos Alberto Zeron e Carlos Ziller Camenietzki em “Quem conta um conto, aumenta um ponto: a sereia, o conquistador, o contador e o sábio’, mimeo., 1995, a quem empresto algumas idéias. 26. Gabriel Soares de Souza, Notícia do Brasil. São Paulo, s. d., t. i, p. 190. 27. Fernão Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, p. 50. 28. Lisboa, 1989, pp. 183-4. 29. Vária fortuna e estranhos fados. São Paulo, Brasiliense, 1974, pp. 37-8.
30. Apud Carlos Alberto Zeron e Carlos Z. Camenietzki, op. cit., p. 34. 31. Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Crônica dos frades menores da Província do Brasil (1761), vol. i. Rio de Janeiro, Tipografia Brasiliense de Maximiniano Gomes Ribeiro, 1858, pp. 118-9. 32. Sobre monstros, ver Keppler, op. cit., p. 121, e Giulia Bogliolo Bruna, Visbooc’: pesci, monstri marini e ‘savages of the northe Una testimonianza etnostorica sugli eschimesi in europa neslla seconda metá del cinquecento’ in Miscellanea di storia delle esplorazioni XIX. Gênova, 1994, pp. 157-65. 33. Em seu Considérations philosophiques sur la gradation naturelle des formes de l’être f...j ou les essais de la nature, de 1768, citado por Vic de Donder, em seu Le chant de la sirène. Paris, Gallimard, s. d., p. 111. 34. Sobre a viagem de Spix e Martius, ver de Karen Macknow Lisboa, A Nova Atlântica de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo, Hucitec, 1997. 35. É essa, pelo menos, a opinião de Câmara Cascudo, op. cit., p. 342. 36. B. Heuvelmans, Dans le siliage des monstres marins. Paris, Plon, 1958, p. 187. 37. Sobre a panspermia e outros casos em que se acreditava que germes de vida flutuavam no ar, ao sabor dos ventos, engravidando até as mulheres incautas, ver Pierre Darmon, Le mythe de la procréation à l’âge baro que. Paris, Seuil, 1981, especialmente o capítulo vii, “Peut-on procréer sans homme’ pp. 107 e passim. 38. Empresto aqui considerações feitas por Jean Céard, em seu La nature et les prodiges. Genebra, Droz, 1977, pp. 487 e passim. VI. AS DIABÓLICAS CRIATURAS DA NOITE: VAMPIROS, LOBISOMENS E OUTROS ABANTESMAS (pp• 102-22 1. Sobre esse período, ver Jean Delumeau, La peur en Occident. Paris, Fayard, 1978. 2. Emprestarei aqui várias informações extraídas de Jean Marigny, Sang pour sang, le réveil des vampires. Paris, Gallimard, s. d., especialmente a partir da p. 33, em que o autor desenvolve a tese de que na Idade Moderna o vampiro é visto como um “acólito de Satã’ 3. Op. cit., p. 39. 4. Para entender as relações entre a Igreja, os fantasmas e os mortos-vivos, ver Claude Lecouteaux, Fantômes et revenants au Moyen Ãge. Paris, Imago, 1986, especialmente o cap. iii, p. 51. 5. Sobre licantropia são obrigatórios os livros de Claude Lecouteaux, Fées, sorcières et loups-garous au Moyen Âge Paris, Imago, 1992, e de Gaël Milin, Les chiens de Dieu. Brest, Centre
de Recherche Bretonne et Celtique, 1993. 6. Refiro-me a José Leite de Vasconcellos, “Turquel folclórico’ in Revista Lusitana, vol. xxv. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1925, p. 54. 7. Sobre o imaginário do invisível é necessário conhecer a coletânea organizada por José Mattoso, O reino dos mortos na Idade Média peninsular. Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1996. 8. Sobre as mouras encantadas, ver meu “Melusinas, sereias e mulheres- serpentes na literatura sacra do século xvii”. in Cadernos PAGU, (4), 1995, pp. 49-76. 9. Apud J. Leite de Vasconcellos, Tradições populares de Portugal. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s. d., p. 289. 10. Braz Luís de Abreu, Portugal médico ou Monarquia médico lusitana prática, simbólica, ética e política. Lisboa, João Antunes, 1726, p. 588. Agradeço ao aluno e amigo Orlando Marcondes Ferreira, bolsista do cNPq, por ter compilado esse documento. 11. É essa, pelo menos, a descrição de Consiglieri Pedroso em Contribuições para uma mitologia popular portuguesa e outros escritos etnográficos. Lisboa, D. Quixote, 1988, pp. 188-9. 12. Braz Luís de Abreu, op. cit., p. 628. 13. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil — Denunciações e Confissões de Pernambuco, 1593-1595. Recife, Fundarpe, 1984, p. 25. 14. Empresto aqui algumas informações extraídas da obra de Jean Marigny, op. cit., pp. 46-50. 15. Ver a reedição de sua obra Monstros e monstrengos do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, col. Retratos do Brasil, introdução Mary Del Priore. 136 137 16. Segundo Marigny, op. cit., p. 46, esse manuscrito encontrase em arquivos austríacos e foi descoberto pelo professor Antoine Faivre. 17. Nascido em 1704, o autor sobreviveu ao terremoto de Lisboa, pois em 1759 entregou ao rei, dom José, e ao prelo o seu Efeitos raros eformidáveis dos quatro elementos, dedicados ao infante dom Manuel. As armas de sua família traziam: em azul, três pás, postas em pala e dispostas em faixa, sobrepostas a três minguantes sustentados por outros três dispostos em faixas, sendo os dois da direita volvidos e cada um posto à direita de uma das pás e o da esquerda voltado e posto à esquerda da
última pá, tudo de prata. Timbre: uma águia nascente, de negro. Agradeço à aluna Priscilla G. de Miranda, bolsista do cNPq, pelas informações sobre esse obscuro autor. O prestígio do mesmo permitia-lhe ter na igreja do Convento do Carmo, logo no princípio da nave, defronte do claustro, uma capela particular. 18. Sobre as práticas de leitura em Portugal, ver Fernando Guedes, O livro e a leitura em Portugal — Subsídios para a sua história — Séculos XVIII-XIX. Lisboa, Verbo, 1987. Ver também João Luís Lisboa, Ciência e política — Ler nos finais do Antigo Regime. Lisboa, INIC, 1990. 19. Emprestarei aqui informações de Jean Marigny, op. cit., pp. 50-2. 20. Uma edição deste tratado encontra-se à disposição dos interessados na seção de manuscritos da Bibliothèque Nationale de Paris, sob a cota M 12 446 2. 21. Op. cit., pp. 34-5. 22. Sobre a mentalidade portuguesa, ver Teresa Bernardino, Sociedade e atitudes mentais em Portugal. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s. p. 124. 23. Mário Cesarini, Horta da literatura de cordel. Lisboa, Assírio e Alvim, 1983. 24. Para o estudo dessa literatura na Europa moderna, vejam-se, por exemplo, Sppuford, Margareth Sppuford, Small books and pleasant histories — Popular fiction and its readership in XVII” century. Londres, Methuen, 1983; Michelle Simonsen, Le conte populaire. Paris, pus’, 1984; Roger Chartier (cd.), Les usages de l’imprimé. Paris, Fayard, 1987; idem, Les figures de la gueuserie. Paris, Montalba, 1982; Hans Jürgen Lüserbrink (org.), Histoires curieuses et véritables de Cartouche et de Mandrin. Paris, Montalba-Artaud, 1984; e Catherine VelayVallantin, Histoires des contes. Paris, Fayard, 1993. 25. Sobre essas e outras informações, ver meu “A história cultural entre monstros e maravilhas’ in Tania Navarro Swain (org.), História no plural. Brasília, Edunb, 1995, pp. 69-98. 26. É Henri-Jean Martin, em Pour une histoire du livre (XVe-X VIIIe). Paris, Bibliopolis, 1987, quem o confirma. 27. Em Emblema vivente ou Notícia de um portentoso monstro que na província da Anatólia foi mandado ao sultão dos turcos, por J. F. M. M. Lisboa ocidental, na Oficina de Pedro Ferreira, ano 1772. 28. Relação de hum prodígio sucedido em huma das cidades do Paraguay neste anno passado de 1735. Traduzida fielmente de outra mandada do próprio paiz a hum cavalheiro da primeira grandeza de Hespanha. Lisboa Occidental, na oficina de Antonio
Correa Lemos, 1736. 29. Apud Gustavo de Matos Sequeira, Relação de vários casos notáveis e curiosos sucedidos em tempo na cidade de Lisboa e em outras terras de Portugal, agora reunidos, comentados e dados à luz. Coimbra, Imprensa da Universidade Olisiponense, 1925, p. 260. 30. Onomatopéia oanense ou Anedótica do monstro anfíbio que na memorável noite de 14 para 15 de outubro do presente ano de 1732 apareceu no mar Negro... divulgada em português por “monsieur” Roberto Wainger. Lisboa ocidental, na oficina de Maurício Vicente de Almeida, morador no Arco das Pedras Negras, 1732. 31. Apud Gustavo de Matos Sequeira, op. cit., p. 266. VII. CONCLUSÃO pi’. 123-5 1. Ver a esse respeito M. Cazenave et alii, Histoire et l’imaginaire. Paris, Pojesis, 1986. 2. Empresto aqui algumas idéias do artigo de Evelyne Patlagean, “L’histoire de l’imaginaire”, in Jacques le Goff (org.), La nouvelle histoire. Paris, Complexe, 1988. 139 138 Índice Remissivo Abreu, Brás Luís de, 106-7 Abreu e Castro, João Couceiro, 121 Academia dos Curiosos da Natureza 71 Acosta, Cristóvão de, 9° Acosta, José de, 50 Afonso vi, 121 Agnan, 87-8, 91; ver também Anhanga Agostinho de Hipona, 43 Agostinho, santo, 19, 23-7, 39, 56, 87, 90, 101, 114; “beleza harmoniosa do todo” 24 Albânia, 20 Alberto, o Grande, 47, 65, 70-1, 109 Albret, Isabel de, 55 Aldrovandi, Ulisse, 48-9, 52, 65, 84 Alegoria dos quatro continentes (Kessei), 22 Alemanha, 36, 37, 51, 55, 103, 115 Alexandre de Bernay, 30 Alexandre, o Grande, 19, 30-1, 33 Alquimista, O (Jonson), 54
Amadis de Gaula, 78 Anchieta, José de, 88-90 andróginos, ao, 43 Andrômeda, 20 anfisbena, 29 Anhanga, 88-91; ver também Agnan animalculista espermática, teoria, 74 Anticristo, 34 antropofagia/antropófagos, 19-20, 57, 57, 81, 113 Aquilon, vento, 20 Arca de Noé, A (Kircher), 51 Arcimboldo, 12 Arcourt e Padilha, Pedro Norberto de, 109-10, 112-4, 119 arctophitecus, 44 arimaspes, 20, 57 Aristóteles, 20,30, 36, 41, 46, 61, 64,67 Ascelín, Nícolas, 32 astomes, 21, 57, 81, 97 Atas filosóficas, 71 alpido, 29 141 Ataxerxes li, 19 Aulo Gélio, o Áustria, 108 autoritarismo lingüístico, 115 Avassaty (ou Ayasaty), 87 Averróis, 65 Avicena, 65 Baldung, Hans, 12 Barléus,Gaspar, 88 Baro, Rolox, 88 basilisco, 29 Batilde, rainha, 35 Beauvais, Vicente de, 19 Bento xiv, papa, 112 Berry, Jean de, 33 Berta de Borgonha, bestiários, 18, 27-9, 54, 83-4; de Marcotelius, 29 Bíblia, 23, 98, iii; Levítico, 35; menciona o unicórnio, 45; sistema de representações, 25 blêmias, 19, 30, 34, 42, 53, 85, 87 Borges, Jorge Luis, 61 Bosch, 12, 30, 34
Brandão, Ambrósio Fernandes, 51, 77, 97 Brandt, Sebastião, Brasil, 44, 47-8, 50-1, 77, 79-82, 86-7, 93, 95-9, 107, 113, 115 Brion, Marcel, 77 brucolacos, 104 Brueghel, 12, 34 Buarque de Holanda, Sérgio, 14 Buifon, George Louis Leclerc, conde de, 98 Burckhardt, 59 Burgkmair, Hans, 59 Caapora, 89 Cada homem com seu humor (Jonson), 53 calinge, 21 Calmet, dom, 111-3 Calvino, João, 103 Câmara Cascudo, Luís da, 6, 87-91 camethurnus, 32 Canbrensis, Sylvester Giraldus, Cancioneiro (Garcia de Resende), 105 Cantimpré, Tomás de, 19” 22, 28 Capela” Marciano, 19 cardeal do mar, 29 Cardim, Fernão, 90, 92 Carlos iv, 108 Carlos ix” 40, 55, 63 Carlos Magno, 31 Carlos v, 47, 55 Carolus Clusius, 4 Cavazzi de Montecuccolo, João Antonio, 86 Céard, Jean, 56 centauros, 27, 29, 34, 49 Cesalpini, André, Cesarini, Mário, 114, 120 Chandragupta, rei da Índia, 19 Chaunu, Pierre, 16 China, 18” 32, 84 ciápodes, 19,21, 27, 34,39,42,57, 8, 90 ciclope” 18, 31, 42 Cidade de Deus, A (Agostinho), 25,39 cinocéfalos, 19, 21-2, 28, 42, 49, 85 ciritas, 21 citas, 20, 85 Cleópatra, 22 Cnide, Ctésias de, 19-21, 40, 95 Colombo, Cristóvão, 78
cometas, 39, 57, 100 Companhia de Jesus, 114 Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, 50 Concílio de Trento, 114 conhecimentos humanos, enciclopédia dos” 21 Conti, Niccolà de” 33 cordel, literatura de, 6, 37, 114-7, 119-21 Coreal (viajante), 98, 100 Coropio, 87-8” 90 corpos, dismorfia dos, 26 Cosmografia (Munster), 42 Cosmografia do Levante (Thevet), 41 Cosmografia universal (Thevet), 40,81 Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil (Vasconcellos), 90 Cruz, frei Gaspar da, 85 Curiosa (Plinio), 21-2 Curupira, 88-90, 96 Cuvier” Georges, 19 D’Abbeville, Claude, 88, 98, 100-1 D’Ascoli, Cecco, 59 D’Evreux, Yves, 87-9, 98 Da geração humana (Paracelso), 8 Damiano” cardeal, 34 Dante Alighieri, 34 Davanzati, Giuseppe, 112 De algumas cousas mais notáveis do Brasil (Soares), 92 De Asia et de universi mundi rota (Teodofrido), 31 De Bry, Theodor, 82-4 De mensuris orbis terrae (Dicuil), 31 De monstrorum causis (Liceti), 64 De nature (Cantimpré), 28 Dekker, Thomas, 54 demônio, 29,36,43,49, 55, 58, 78,834, 96, 110, 112; aparência de entes falecidos, 103; características, 117; classificação científica dos poderes do, 35; cruzamentos entre diabos e animais” 84; participação na fabricação de monstros” 57; pacto com, 56; ver também gênese demoníaca, teoria da Descartes, René, 70 Descrição histórica dos três reinos de Con’o, Matamba e Angola (Cavazzi de Montecucclo), 86 Diálogos das grandezas do Brasil (Brandão), 77, 88” 97 Dicuil (professor), 31 Dissertatio de vampiris serviensisibus (Zopft), 110
Dissertatio historica-philosophica de masticatione mortuorum (Rohr), ‘10 Dissertato phisica de cadaveribus sanguisugus (Stock)” 110 Dissertatione sopra i vampiri (Davanzati), 112 Dos mundos subterrâneos (Kircher), 51 Drácula (Stocker), li Dürer, Albrecht, 59 Efemérides germânicas, 71 Eliano, 45, 97 Eneida (Virgílio), 61 Ensor, James, 12 esfinges, 27 Espanha, 21, 50, 103, 115 Etimologias (Isidoro de Sevilha), 26 Fèbvre, Lucien, 15 feitiçaria” processos de, 78 fênix, 29 Filipe ii, 50, 121 Filipe iv, 121 Filipe, o Bom, 29 Flückinger, J., 102, 108 formigas” 19-20, 33, 42 França, 27, 55, 56, 63, 71, 79, 80, 82” 103, 105” 107, 115 142 143 Francisco ii, Füssli, Johan Heinrich, 12 Gabaras, 99 Galeno, Cláudio, 66 Galileu, 66 gárgulas, 27 gêiseres, 86 gênese demoníaca, teoria da, 58 Gengis Khan, 32 Geração dos animais, A (Aristóteles), 36 Gesner, Conrad, 44-50, 52, 81, 84, 87 Geuppawy, 87-8 Gil, José, 13 Glaneur, Le, revista holandesa, 109 goazis, 99 Gog e Magog, 32 Gonneville, Paulmier de, 80 González de Clavijo, Ruy, 33 gótico, 17-8
Grande Cisma, 34 Grandes viagens, coleção (De Bry), 82 Grécia, 28, 103, 104 grifos, 19-20, 27, 42, 117 Guenée, Bernard, 41 Guerra dos Cem Anos, 34 Guerras de Religião, 82 Hackluit, Richard, 82, 87 harpias,61 Hartog,François, 41 hay, 81, 84, 95, 98, 100 Henrique ii, Henrique iii, 5 Henrique Iv, hereditariedade, monstruosidade relacionada à, 66 hermafroditismo, 43 Hernandez, Francisco, 50 Heródoto, 41, 64-5 Hesíodo, 61 Hesse, Henrique de, 39 Hipócrates, 64 Historia animalium (Gesner), 44 História completa dos peixes (Rondelet), 96 História da Academia Real de Ciências, 71 História da Província Santa Cruz (Gândavo), 91 Historia general y natural de las Índias (Oviedo y Valdy), 49 Historia monstrorum (Aldrovandi), 48-9 História natural (Plínio), 22, 40, 97, 99; edição princeps, 21 História universal (Thevet), 40 Histórias do Oriente (Cnide), 19 Homero, 19, 41 Hondiu, geógrafo, 87 Hungria, 32, 104-5, 111-2 Huys, Peter, 12 Igreja, 104-5, 112 aceita a obra de Plínio, 98; Concílio Ecumênico de 1414, 105; ênfase na moralidade, 28; permissão para o desenvolvimento da astrologia, 59; reconhecimento da existência de mortos-vivos, 102; ver também Inquisição Império Austro-Húngaro, 103 imprensa, desenvolvimento da, 31, 34, 43, 116 Índia, 17-21, 27, 29-30, 42, 45-6, 81, 90 Inferno brasileiro, O (gravura), 83 Ingange, 87-8, 90 Inglaterra, 28, 52-5, 71, 103, 112, 115 Inocêncio VIII, papa, 36, 102
Inocêncio iv, papa, 32 Inquisição, 48, 104, 107, 114, 121 Ipupiara, 91-3, 96-7 Isidoro de Sevilha, 19, 26, 33 Itália, 20, 37, 46, 48, 50, 112, 114 Jaboatão, Antônio de Santa Maria, Jacome, Anna, 107 Jerônimo, São, 58 Jeropari, 87 Jerusalém, 117 João v, dom, 114 Jonson, Ben, 53, 54 Jornal da Inglaterra, 71 Jornal dos Sábios, 70-1, 73-4 Júlio César (Shakespeare), 53-4 Júlio II, 59 Kaagerre, 87 Kappler, Claude, 37 Kessel, Jan Van, 22 Kircher, Athanasius, 51, 95, 109 Knivet, Anthony, 87, 93 Laet, João de, 50, 88 Lambert de Tours, 30 Lambertini, Próspero, 112 Lancre, Pierre de, 78 Lannoy, Guillebert de, 33 Latini, Brunetto, 17 Lavater, Johan Kaspar, 103 Lavoisier, Antoine Laurent de, 109 Lécluse, Charles (Carolus Clusius), 49 Lecouteaux, Claude, 34 Leeuwenhoek, Antoine Van, 70 Léry, Jean de, 83-4, 87, 95 Lestringant, Frank, 41 licantropia, 105-6 Liceti, Fortunio, 62-5, 67-9, 93 Licostenes, 42, 43 literatura de cordel, ver cordel, literatura de Livro da natureza (Megenberg), 39 Livro das maravilhas (Polo), 33, 78 Livro do Tesouro (Latini), 17 Livro dos homens monstruosos (Cantimpré), 28 Livro dos seres imaginários, O (Borges), 61 lobisomens, 22, 34, 42, 102-7, 112-3 Locke, John, 70 London Journal, 109 Luís xv, 108
Lutero, Martinho, 103 Macaxera, 88, 100 Macróbio, 19 Magalhães, Fernão de, 47 Magalhães Gândavo, Pero de, 91-2, 99 Malebranche, Nicolau de, 74 Malleus maleficarum, 102 Mandevilie, Jean de, 22, 33 mandrágora, 54 mantícora, 17, 19, 40-1, 81, 95 Marangigoafla, 88 Marcotelius, abade, 29 Margrave, Jorge, 50-1 Marignoli, Giovanni di, 32 Marigny, Jean, 103 Mascarenhas, José Freire MontarroiO, 117 Masticatione mortuorum in tumulis liber, De (Ranft), 110 Matteo (viajante), 18 Matuicés, 90 matUyUíS, 98 Maximiliano, rei, 37 Mboitáta, 89 mecanicismo, 12, 73 Médicis, Catarina de, 40 144 145 vlegastenes (geógrafo), 19-20, 90 Megenberg, Conrad van, 39, 47 Melanchton, 55 Memling, Hans, 93 Mercure Galant, Le, revista, 105 Mercure Historique et Politique, revista, 108 Mercurius Brasiliensis (Stansel), 95 Mérian, Matheus, 84 Messalina, 22 methagallinari, 32 Ming, dinastia, 32 mira bilia, 24-5, 48, 73 Mirabilia (Plínio), 21 monstra gentium, 49 Monstrorum historia (Aldrovandi), 65 monstros: compósitos, 54; definição, 57; nascimento de, 37; reino dos, 13; significado da palavra, 123; ver
também monstruosidades hereditárias, teoria das; nascimentos monstruosos; raças monstruosas Monstros e prodígios (Paré), 55 monstruosidades hereditárias, teoria das, 36 Montecorvino, Giovanni de, 32 Morávia, 108, 111 morcegos, 27, 84, 105; ver também vampiros mores, 57 mortos-vivos, existência reconhecida pela Igreja, 102 Munster, Sebastião, 40, 42 Naschzeher, 103 nascimentos monstruosos, 24-5, 53, 58, 122 Nashe, Thomas, Nassau, João Maurício de, 50-1 Nau dos k”ucos, A (Brandt), 37 Navarro, Azpicuelta, 88 nereidas, 65, 96 ngulu-a-maza, 86-7, 91 Nicollo, i8 Niuhof (viajante), 98 Nóbrega, Manuel da, 88, 90 ochlites, 30 olhar pessoal, 18, 1; fonte de certezas intelectuais, 1; monopólio do, 41 ondinas, 30 Oresme, Nicolau, 9 Oviedo y Valdy, Gonzalo Fernandez, 49-50 paganismo, 22, 27, 35, 49, 114 Palfyn, Jean, 76 panspermia, 98 Paracelso, 58, 62; “licor vital’ 58 Paraguai, 117 Paré, Ambroise, 55-7, 64, 68,84, 95, 114 Paulo tu, 59 pestes, 34, 107 Peutinger, Conrad, 46 Phisica curiosa (Schott), 98 phytoi, 30 Pián del Carpini, Giovanni, 18, 32 Pigafetta, Antonio, 47 pigmeus, 19, 28, 42, 85 Piso, Guilherme de, 50 Plínio, 19, 21-4, 26, 32, 40, 61, 64-5, 81, 85, 87, 90, 109; força e majestade da natureza, 25 Plutarco, 6 Polo, Marco, 18, 22” 32, 78, 98
Polônia, 29, 108, 111 Polyhistor (Solinus), 40 Pompeu, Troguio, 65 Pordenone, Odorico de, 32, 99 Portugal, 51, 103, 105, 109, 112-4, 120 Portugal médico (Abreu), io6 Preste João, 31, 33, 81 Pretorius, 29 Prodigiorum ad ostentaorum chronicon (Licostenes), 42 protovampirismo, 103 Prússia, 103, 107-8 psilas, 20 Queda dos anjos rebeldes, A (Vriend), 117 Rabelais, François, 34 raças monstruosas, 23-7, 31-2, 43, 49, 78 racionalismo, 12, 40, 74 Rainha das fadas, A (Spencer), 54 Raleigh, sir Walter, 87 Ranft, Michael, 110-1 Raridades da natureza e da arte (Arcourt e Padilha), 109, 113, 119 reconhecimento óptico, 41 Reforma protestante, 103 Régis, 76 religião, ensino da, na Idade Média, 27 Renascimento, 22, 34, 39-42, 52, 55-6, 64, 82, 103, 114, 120, 123 Resende, Garcia de, 85, 105 Riolan, Jean, 65 Roberto, o Piedoso, rei de França, Robinet, Jean-Marie, 96 Rodígio, Célio, 66 Roger, Jacques, 69, 72 Rohr, Phillip, “o Romance de Alexandre”, 30-1, 81 Rondelet, Guilherme, 48, 96 Rubrouck, Guilherme de, 18, 32, 99 Rússia, 103, 108 Sá de Miranda, Francisco de, 105 Saint Aubin, Charles-Germain de, 12 Saint-Quentin, Simão de, 32 salamandras, 29,97 Salvador, frei Vicente de, 51, 92 Santo Ofício da Inquisição (1539), 107 sauromatas, 20, 97 Scaurus, 20 Schedel, 42
Schiltberger, Hans, 32 Schott, Gaspar, 98 sereias, 27, 29, 65, 78, 91, 94 Sérvia, 102, 105, 107-8, 119 Servorum Dei beatificatione et de beatorum canonizatione, De (Lambertini), 112 Séverac, Jourdain de, 32 Shakespeare, William, 52-3 Sigismundo, rei da Hungria, 104 Sila, 20 similitudo, 66 Singularidades da França Antártica, As (Thevet), 81 Soares de Souza, Gabriel, 79, 86, 91 Soares, Francisco, 92 Solinos, 19, 33, 40 Sorbonne, 55; lei de 1318, 35 Spencer, Edmond, 54 Spreanger, Jacques, 35-6 Staden, Hans, 87” 90 Stansel, padre Valentino, 93, 95 Stock” Johann Christian, 110 Stocker, Bram, 11 Taguaiba, 88 Taunay, Alfredo, ,o8 Teixeira, Pedro, 90 Tempestade, A (Shakespeare), 52 Teodofrido (monge de Luxeuill), 31 Teogonia (Hesíodo), 61 146 147 teratologia, 14, 19, 28, 32, 36, 49, 58- 9, 93, 114-6, 121, 125 Terrores da noite, Os (Nashe), 53 Thevet, André, 40-2, 44, 55, 80-1, 87- 8, 90, 95, 99 thinsirite, 32 Topographia hibernica (Canbrensis), 47 Traité sur les rëvenants en corps, les excommuniés les oupires ou vampires, broucolaques de Hongrie, de Moravie etc. (Calmer), 111 Tratado das moléstias (Paracelso), 58 Tribunal do Santo Oficio da Inquisição, 114 tritões, 65, 86 trogloditas, 21, 57 Tupã, 88 tupinambás, índios, 80, 90
Turner, William, 47-8 Tzetzes, Joannes, 45 unicórnios, 19, 29, 31, 45-6 Uni cornum falsum, 46 Unicornum verum, 46, 87 Vampiros, 12, 102-5, 107-10, 112-3 Vanitas, 22 Vasconcellos, Simão de, 47-8, 89, 90, 98 Vespasiano, imperador, 21 Vespúcio, Américo, 80 Viagem estática (Kircher), 51 Viagens de Mandeville, Viajantes, 15, ,8, 22, 32-3, 41, 46-7, 49, 79, 8, 95-6, 98-9, 101, 104 Villegaignon, Nicolas Durand de, 8o Visões do Paraíso (Buarque de Holanda), 14 Visum et repertum (Flückinger), 102, 108 Vitória, Pascal de, 32 Vitry, Tiago de, 36 Voltaire, 111 Von Martius, 87, 96 Vriend, Frans Floris de, 117 vrykolakas, ver brucolacos Wolffhart, Conrado, ver Licostenes zoologia, 44, 50, 52, 84 Zopft, Johann Heinrich, 110 ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELO GRUPO DE CRIAÇÃO EM MINION, TEVE SEUS FILMES GERADOS PELA VISUALE FOTOLITO E EDITORA E FOI IMPRESSA PELA PROL EDITORA GRÁFICA EM OFF-SET SOBRE PAPEL PRINT MAX DA VOTORANTIM PARA A EDITORA SCHWARCZ EM ABRIL DE 2000