Da imagem ao clichê, do clichê à imagem: Deleuze, cinema e pensamento 9788581280196

Sumário Prefácio Introdução PARTE I: Cinema e racionalismo 1. O cinema “clássico”: o acontecimento da razão 2. Nietzsche

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Table of contents :
Sumário
Prefácio
Introdução
PARTE I: Cinema e racionalismo
1. O cinema “clássico”: o acontecimento da razão
2. Nietzsche: a impotência do pensamento
• A condenação moral do corpo, do falso e da imagem
1. Bergson
• O universo como metacinema
• Percepção cinematográfica
• Imagem-percepção, imagem-ação, imagem-afecção
• Imagem-pulsão
• Imagem-ação, realismo e sonho americano
PARTE II: Do cinema “clássico” ao “moderno”
1. O neorrealismo e a quebra dos clichês
• As imagens que atuam e falam
• Imagens óticas e sonoras puras (opsignos, sonsignos) e imagens-cristais
• Deleuze, Peirce e o cinema: uma semiótica do movimento
1. Nietzsche e Bergson: moral e clichê
2. O nietzschianismo de Orson Welles
• É possível julgar? De Fritz Lang a Orson Welles
• Grande angulares barrocas: a representação direta do tempo
• Potências do falso, character , dinheiro e cinema
• De Welles a Resnais. Cidadão Kane e Hiroshima Mon Amour : do presente
ao passado por um outro sentido
PARTE III: Sobre o tempo e sobre os filmes
1. Um pouco mais sobre tempo e cinema
• Cristais de tempo, lençóis do passado
• Chronos e Aion
• Santo Agostinho faz cinema: O Ano Passado em Marienbad
• No Decorrer do Tempo e Alice nas Cidades : o bergsonismo de Win
Wenders
1. Para além do fim da história
• O Enigma de Kaspar Hauser: o herói contra o niilismo
• Visconti: cristais em decomposição
• De novo Wenders: melancolia hegeliana?
• Glauber Rocha: a consciência deslocada
• Palhaços de Fellini
1. Corpo, tempo e clichê
• John Cassavetes: cinema dos corpos
• Ainda os corpos da América: Larry Clark, Kimberly Peirce, Gus Van Sant,
Terence Malick e Andy Warhol
• Jean Luc Godard: corpos, clichês e gestus
Conclusão
Bibliografia
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Da imagem ao clichê, do clichê à imagem: Deleuze, cinema e pensamento
 9788581280196

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Da imagem ao clichê do clichê à imagem

Deleuze, cinema e pensamento Rodrigo Guéron Da imagem ao clichê do clichê à imagem Deleuze, cinema e pensamento Rodrigo Guéron

© NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 - CEP 21042-235 - Rio de Janeiro, RJ Fone: (21) 3546-2838 [email protected] www.naueditora.com.br Editoras • Angela Moss e Simone Rodrigues Revisão de texto • Miro Figueiredo Editoração e projeto gráfico • Mariana Lobo Capa • Arte de Simone Rodrigues a partir de fotogramas dos filmes: A Dama de Shangai (Orson Welles), Sombras (John Cassavetes), Acossado (Godard), O Estado das Coisas (Win Wenders) e Tempo de Guerra (Godard) Conselho Editorial • Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara, Pedro Hussak, Vladimir Menezes Vieira CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

G962d Guéron, Rodrigo Da imagem ao clichê, do clichê à imagem : Deleuze, cinema e pensamento / Rodrigo Guéron. Rio de Janeiro : NAU Editora, 2011.

272 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8128-019-6 1. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 2. Cinema Filosofia. 3. Arte e filosofia. 4. Filosofia moderna. I. Título. 11-4129.                                   CDD: 791.4301                                          CDU: 791.01

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da Editora. Tiragem: 1000 exemplares Sumário Prefácio Introdução PARTE I: Cinema e racionalismo 1. O cinema “clássico”: o acontecimento da razão 2. Nietzsche: a impotência do pensamento • A condenação moral do corpo, do falso e da imagem 1. Bergson • O universo como metacinema • Percepção cinematográfica • Imagem-percepção, imagem-ação, imagem-afecção • Imagem-pulsão • Imagem-ação, realismo e sonho americano PARTE II: Do cinema “clássico” ao “moderno” 1. O neorrealismo e a quebra dos clichês • As imagens que atuam e falam

• Imagens óticas e sonoras puras (opsignos, sonsignos) e imagens-cristais • Deleuze, Peirce e o cinema: uma semiótica do movimento 1. Nietzsche e Bergson: moral e clichê 2. O nietzschianismo de Orson Welles • É possível julgar? De Fritz Lang a Orson Welles • Grande angulares barrocas: a representação direta do tempo • Potências do falso, character , dinheiro e cinema • De Welles a Resnais. Cidadão Kane e Hiroshima Mon Amour : do presente ao passado por um outro sentido PARTE III: Sobre o tempo e sobre os filmes 1. Um pouco mais sobre tempo e cinema • Cristais de tempo, lençóis do passado • Chronos e Aion • Santo Agostinho faz cinema: O Ano Passado em Marienbad • No Decorrer do Tempo e Alice nas Cidades : o bergsonismo de Win Wenders 1. Para além do fim da história • O Enigma de Kaspar Hauser: o herói contra o niilismo • Visconti: cristais em decomposição • De novo Wenders: melancolia hegeliana? • Glauber Rocha: a consciência deslocada • Palhaços de Fellini 1. Corpo, tempo e clichê • John Cassavetes: cinema dos corpos • Ainda os corpos da América: Larry Clark, Kimberly Peirce, Gus Van Sant, Terence Malick e Andy Warhol • Jean Luc Godard: corpos, clichês e gestus Conclusão Bibliografia

Prefácio Da imagem ao clichê, do clichê à imagem – Deleuze, cinema e pensamento traz para o leitor de língua portuguesa um fecundo diálogo entre filosofia e cinema. Nesse livro, o leitor certamente encontrará ainda não só uma análise rigorosa do pensamento de Deleuze sobre o cinema, mas também uma abordagem muito singular e própria da significação do clichê na imagem. Diante da perspectiva de uma perda de força da imagem, cristalizada e padronizada no clichê, Rodrigo Guéron faz uma genealogia do clichê, um inventário desse mecanismo de poder que, embora essencial para a constituição da imagem – porque condensa e reorganiza toda a estrutura do pensamento –, é uma operação de poder que paralisa a própria imagem impedindo-a de fazer frente à invenção de outras formas de imagens e consequentemente do próprio pensamento. Trata-se de um texto importante porque, mesmo distinguindo rigorosamente dois campos do pensamento, cinema e filosofia, promove um diálogo indispensável entre eles. Sempre fiel à filosofia de Deleuze e, principalmente, fiel ao seu próprio ponto de vista sobre o cinema, este livro vem enriquecer os debates sobre a filosofia do cinema. Com um texto bem elaborado e de agradável leitura, a interpretação de Rodrigo Guéron é a explicitação da tese de que o clichê tem uma função de poder, nadifica a imagem, enfraquece a sua força artística. Embora, como observa Deleuze, o cinema nunca tenha deixado de se chocar contra os poderes que contrariam sua finalidade estética, o clichê, como bem mostra Rodrigo, é um mecanismo que desloca a imagem de sua função estética para transformá-la em imagem-lei, imagem-moral, perdendo com isso o jogo da criação e destruição que caracteriza o fazer da imagem. O predomínio da imagem congelada no clichê adquire uma função de controle. Para sustentar essa tese, Rodrigo percorre um caminho criativo, discute o cinema desde suas origens no projeto racionalista e aborda com muito cuidado os dois tipos de cinema, o clássico e o moderno. Todo esse caminho é traçado para trazer, com muita pertinência, uma nova função da imagem, uma nova política, uma nova finalidade para a arte. Desse modo o cinema deixa de estar ligado a um “pensamento triunfante e coletivo”, para dar lugar a um pensamento arriscado e singular que enfrenta a nadificação da imagem, afronta o seu esvaziamento e, em prol de novas combinações, abre-o para as revelações poderosas de outras forças e outros signos. E tudo isso com a finalidade de potencializar o pensamento e a vida. Rosa Maria Dias Introdução Escrever sobre cinema e filosofia, filosofia e cinema, e fazê-lo a partir de um conceito que anunciamos logo no título deste livro, o clichê , tem aqui um motivo que é para nós tão filosófico quanto político. Motivo este que nos leva ao cerne da contemporaneidade, de um determinado diagnóstico que dela se faz e do qual sempre desconfiamos, qual seja, aquele que afirma que

viveríamos numa “civilização da imagem”, que a imagem teria substituído a palavra, e que esta seria uma das principais explicações do fato de vivermos numa época em que as condições para o pensamento estariam esvaziadas. Trata-se, portanto, de um diagnóstico que coloca como os grandes vilões da contemporaneidade não só o cinema, mas também todos os mecanismos de produção de imagens – e que aparece como uma espécie de senso comum, de doxa , de opinião rasteira e preguiçosa que prolifera exatamente no ambiente dito “intelectual” e acadêmico. Uma frase, no entanto, meio em tom de provocação, encontrada logo no início do segundo livro de Gilles Deleuze sobre cinema – A Imagem-Tempo –, contemplou de imediato, de forma quase que assustadoramente perfeita, a desconfiança que tínhamos (e temos) em relação a esta posição. Assim, aos que tomam a imagem como a grande inimiga do pensamento, Deleuze instiga: Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê (...) ¹ Somos então levados a pensar que é o clichê – como algo que pode ou tende a acontecer com a imagem –, e não a imagem ela mesma, que funcionaria como uma espécie de agente esvaziador da potência do pensamento. Este é, em primeiro lugar, um pressuposto que nos permitiu escrever um trabalho de filosofia em torno do cinema, para além de todas as condenações morais e rebaixamentos ontológicos que a imagem teve na história da filosofia. Mas também é uma questão que tanto aparece no coração do cinema, quanto coloca o cinema no coração da nossa experiência da realidade. De fato, o cinema não só se apresentará como um extraordinário dispositivo produtor de clichês, porque é antes um dispositivo produtor de imagens, mas também, e justamente por isso, será um extraordinário mecanismo capaz de detectar, desconstruir e superar os clichês como um estágio de impotência da imagem e, consequentemente, de impotência do pensamento. ² Mas tanto como conceito filosófico, quanto como questão que diz respeito ao cinema – divisão que mencionamos apenas provisoriamente –, não existem grandes investigações sobre o clichê. É verdade que não é a primeira vez que este problema é abordado, nem que o conceito é definido para além de um uso mais ou menos cotidiano. O próprio Deleuze fala sobre o clichê, no seu livro sobre o pintor Fancis Bacon, chamando a nossa atenção para o fato que a pintura moderna ter que lidar com todo o tipo de fotos e clichês que se instalariam sobre a tela antes mesmo de o pintor começar o seu trabalho. ³ Já nos seus dois livros sobre cinema, A Imagem-Movimento e A ImagemTempo , também chamados, respectivamente, de “cinema 1” e “cinema 2”, Deleuze vai mencionar o conceito clichê pela primeira vez no último capítulo do primeiro livro, exatamente quando está descrevendo o que entende ser a crise do cinema “clássico”. Mas só vai definir o conceito propriamente dito no início do seu segundo livro, A Imagem- Tempo , dando continuidade ao último capítulo do livro anterior e descrevendo a passagem do “cinema clássico” para o “cinema moderno”. Aí estará a definição de clichê que vamos utilizar como ponto de partida. Esta nos parece filosoficamente instigante, como são também instigantes as reflexões sobre o tema que o filósofo faz nas quatro ou cinco páginas que se seguem à definição do

conceito. Mas, a partir de então, Deleuze não se refere mais de maneira analítica ao clichê. Este é um fato importante já que indica a relação que teremos com Deleuze neste livro. Em primeiro lugar, sabemos que nenhum filósofo chegou sequer perto de desenvolver um estudo aprofundado do cinema como Deleuze o fez, empreendendo uma detalhada “taxonomia” das imagens cinematográficas, ou seja, uma detalhada classificação destas. Por isso a questão que aqui apresentamos só pôde aparecer a partir do pensamento de Deleuze. Além disso, ela será esclarecida à medida que inevitavelmente nos fará voltar a diversos trechos dos estudos do filósofo francês em torno do cinema, como também a alguns trechos de outras de suas obras de filosofia. Ou seja, a concepção de cinema, a partir de uma concepção de realidade, com a qual trabalhamos é, sem dúvida, a de Gilles Deleuze. Mas está inevitavelmente articulada ao pensamento de outros autores – notadamente Henri Bergson e Friedrich Nietzsche, mas não apenas – aos quais Deleuze se refere e nos faz referir. Por isso este livro também pretende esclarecer e ensinar pelo menos os fundamentos do revolucionário pensamento que Deleuze desenvolveu não apenas sobre, mas também com e a partir do cinema. Mas os dois livros de Deleuze sobre o cinema também são um acesso possível ao pensamento deste filósofo. Para ele, cinema e realidade não são duas instâncias distintas. O cinema é, na verdade, descrito como uma possibilidade, uma potência do real. Isso não só porque, no pensamento de Deleuze, o virtual é compreendido como uma potência do ser, mas também porque o estudo que ele faz do pensamento de Henri Bergson nos apresenta todo o universo como uma espécie de “metacinema”. É neste universo, ainda a partir de Bergson, que o mecanismo da percepção e do pensamento humano também é descrito num processo que seria “cinematográfico”, isto é, num funcionamento bastante semelhante ao da máquina cinema. Neste sentido, o pensamento de Deleuze aqui estudado nos permite ir além de suas palavras e definições: ele nos faz pensar, nos abre caminhos e nos conduz explícita ou implicitamente a outros autores; bem como a outros filmes além daqueles que ele menciona. Mais especificamente no que se refere ao conceito de clichê, na maneira como ele ajuda a compreender o cinema e o cinema a compreendê-lo, usamos a definição de Deleuze como base para ir além. Chegaremos então a uma definição de clichê como uma espécie de imagem-lei, de imagem-moral, que age como um mecanismo padronizador e determinador de valor, e veremos o cinema num jogo de criálas e desconstruí-las. Um jogo, portanto, em que o cinema tanto se afirma como um dispositivo de poder que limita e esvazia o pensamento, quanto se afirma como uma notável potência do pensamento na medida em que nos ajuda a identificar os problemas da realidade e da vida e a produzir novas possibilidades para estas. Mas já estamos nos adiantando demais para o que deve ser apenas uma introdução. Vejamos antes a definição que Gilles Deleuze faz do clichê, referência e ponto de partida para o nosso trabalho.

Temos esquemas para nos esquivarmos quando é desagradável demais, para nos inspirar resignação quando nos é horrível, nos fazer assimilar quando é belo demais. Notemos a este respeito que mesmo as metáforas são esquivas sensório-motoras, e nos inspiram algo a dizer quando já não se sabe o que fazer: são esquemas particulares, de natureza afetiva. Ora, isso é um clichê. Um clichê é uma imagem sensório-motora da coisa. ⁴ Notemos que aqui, ao definir o clichê, Deleuze, mesmo estando em pleno estudo filosófico sobre o cinema, em nenhum momento menciona o próprio cinema. Ou seja, o clichê é definido como algo que é parte fundamental da nossa experiência cotidiana do real – constitui inevitavelmente esta –, e não algo que diz respeito exclusivamente ao cinema e a outros mecanismos de produção de imagens. É por isso que este livro não pretende apresentar um problema que é exclusivo do cinema, sobretudo porque não acreditamos que este exista. Trata-se, no entanto de um problema que aparece no cinema de forma privilegiada, quer dizer, não é possível compreender o cinema como uma potência do real sem passar pela questão do clichê. Em outros termos: não compreendemos o cinema como uma linguagem fechada em si mesma e que deveria ser analisada enquanto tal. Ao contrário, insistindo no que afirmamos acima: só nos parece possível estudar profundamente o cinema se o compreendemos como algo que faz a vida passar por ele, e que passa pela vida. Numa reflexão tipicamente deleuziana, diríamos que o cinema é uma possibilidade virtual de um mundo atual (o que chamamos “real”); uma possibilidade que deseja, e tantas vezes consegue, se atualizar: se “tornar real”. Assim, como um livro que se constrói num diálogo entre filosofia e cinema, cinema e filosofia, nos pareceu conveniente começá-lo por uma espécie de “genealogia”, mesmo que resumida, do cinema. E “genealogia” no sentido que Nietzsche deu ao termo, o que significa dizer que faremos, logo na primeira parte do livro, um breve inventário dos valores filosóficos, e do projeto filosófico-histórico, que levaram a civilização ocidental a buscar e a inventar um dispositivo como o cinema. Trata-se de uma investigação que nos levará à maneira como André Bazin e, mais detalhadamente, Paul Virilio descrevem as origens do cinema. Mas, provocado pelo pensamento destes autores, somado mais uma vez ao de Deleuze, a nossa genealogia nos ajudará a descobrir o cinema como um dos pontos mais altos de um processo histórico que Nietzsche vai identificar como o da “vontade de verdade” ou o da busca da “racionalidade a qualquer preço”. Veremos que é precisamente por ser quase que uma consumação final desse processo, que concebe a si mesmo teleologicamente, que o cinema será na sua origem caracterizado por Paul Virilio como a realização do “pseudoacontecimento da razão na história” ⁵ . É como se o cinema fosse capaz de promover uma espécie de efetivação, ou mesmo um aparecimento empírico, da razão. Seria algo semelhante ao que veremos Foucault chamar, talvez com alguma ironia, de “mágica da verdade”. Em suma, a invenção do cinema surge ao mesmo tempo como o resultado, e um dos mais importantes instrumentos, de consumação de um projeto racionalista que está se transformando, à altura do século XIX, numa espécie de “misticismo positivista e tecnicista”, mais uma vez segundo as palavras de Virilio.

Deleuze, no entanto, acha que o cinema vai além desse projeto no coração do qual ele fora criado. Quer dizer, o filósofo francês vê que a crise do projeto racionalista do Ocidente acaba por ser percebida também no cinema, um de seus maiores orgulhos e realizações. Mais do que isso, Deleuze acha que o cinema mesmo torna-se um agente tanto de esgotamento quanto de superação desse projeto. É precisamente nesse momento que o problema do clichê aparece para nós. Ou seja, as imagens dos filmes estão perdendo a força que tinham, estão virando clichês, exatamente porque o projeto racionalista, em que nasceu o cinema, está se esgotando. Isso acontece porque o cinema, a partir de certo momento, já não pode mais nos fazer acreditar que está nos apresentando a verdade empírica, ou potencializando a nossa racionalidade ao máximo, ou ainda contando uma história que, mesmo sendo ficção, aspira a um final em que exista uma verdade-filme em oposição a uma mentira-filme . É por isso que, ao definir clichê, e ao afirmar que determinada maneira de se produzir cinema se transformara em clichê, Deleuze quer nos indicar que não é nem a imagem em si mesma, nem a imagem cinematográfica, mas algo em que elas se transformam ou podem se transformar, que são sintomas e agentes do esvaziamento de nossa potência de pensar. O filósofo nos levará a pensar que, se há uma crise e uma descrença da imagem, descrendo-se da sua capacidade tanto de reproduzir o real quanto de potencializar a nossa capacidade racional, é porque antes há uma crise em relação a esta possibilidade no próprio pensamento. Sabemos que, para Nietzsche, essa crise é gerada, paradoxalmente, pelos valores mesmos que foram fundados pela própria filosofia e dela foram fundadores, e que para ela se mantiveram durante muito tempo como, digamos assim, uma força hegemônica. Esses valores se resumem numa crença na razão tomada como um transcendente, isto é, tomada como uma instância superior à vida e à qual a vida deveria se submeter. Em outros termos: a crença na razão como um modo de ser da própria moral. Esse fenômeno, que para Nietzsche se desdobra num processo ao mesmo tempo existencial e sócio-histórico, por ele identificado como “niilismo europeu”, está absolutamente presente neste diagnóstico que aponta a imagem – a “civilização da imagem” – como uma inimiga do pensamento. Neste sentido, o filósofo tcheco Vilém Flusser nos mostra como a valorização da escrita como instância privilegiada do logos , que tem suas origens tanto entre os profetas judeus quanto nos primeiros filósofos pré-socráticos, traduziu-se num movimento que buscava impor a lógica de um processo às imagens. Flusser percebe aí um empenho histórico em submeter e subjugar as imagens. Empenho este que, segundo ele, fracassara; ou seja, a própria escrita nunca deixou de engendrar as imagens e por elas ser engendrada, alterandose também desde as imagens, em vez de simplesmente submetê-las como inicialmente fora pretendido.

É por isso que só podemos estudar cinema à medida que encontramos uma filosofia que está se descobrindo como arte, isto é, como atividade criadora de realidade. E, além disso, como até mesmo Merleau-Ponty disse em relação a sua fenomenologia, já antes em Nietzsche, e ainda mais notavelmente em Bergson, é na verdade a filosofia e o pensamento que estão se descobrindo como “cinematográficos”. Mas antes mesmo da valorização da ilusão – do falso e do virtual – e da imagem, será para nós fundamental compreender o corpo – e, portanto, a sensibilidade – como lugar de origem da experiência de realidade. O que Nietzsche pioneiramente percebe é que a racionalidade não pode ser vista como uma força que se opõe ao instinto; ao contrário, ela se produz desde o nosso instinto: o instinto do animal homem. É este que “precisou travar a luta pela sobrevivência com o intelecto porque a ele não foi dado garras e dentes”. ⁶ Ou seja, para não serem tragados pelo implacável devir da natureza, nossos ancestrais – como nós ainda hoje – precisaram traduzir e ordenar o caótico movimento do cosmos em esquemas, formas, imagens, palavras, conceitos e leis. Esta é, de forma bastante resumida, a origem de toda a experiência de realidade para Nietzsche. Quer dizer, o real é para ele algo que criamos a partir de uma necessidade física, estética; enfim, algo que se constrói desde uma experiência da aisthesis : da sensibilidade. Nietzsche vai definir esse processo como o de um “impulso nervoso que transformamos em imagem, e uma imagem que transformamos em som”. ⁷ Ou seja, antes mesmo de chegarmos a Bergson, de cujo sistema filosófico Deleuze constrói a sua definição de clichê, já podemos ver que desde Nietzsche a experiência do real nasce como imagem e, mais ainda, como algo que vamos chamar bergsonianamente de um “esquema sensóriomotor”. Por esse motivo, à medida que entrarmos em contato com o pensamento de Nietzsche, será necessário conhecermos mais detalhadamente o pensamento de Bergson, e vice-versa; sobretudo porque Deleuze pensa o cinema num universo – num cosmos – bergsoniano. É o que vamos perceber já nos estudos que faremos do livro Matéria e Memória , de Bergson, mas sobretudo nos estudos do capítulo “O Mecanismo Cinematográfico do Pensamento”, do livro A Evolução Criadora . E aqui Deleuze nos chama a atenção para o fato de Bergson, apesar de ter descrito o mecanismo do pensamento e da percepção como sendo literalmente “cinematográfico”, não ver grande importância no cinema. Apesar disso, Deleuze afirma que vai utilizar o sistema filosófico bergsoniano para analisar o cinema. Descobriremos então em Bergson uma valorização da imagem ainda mais efetiva que em Nietzsche, e absolutamente inédita em toda a história da filosofia. A imagem, que em Platão não tinha quase nenhuma consistência ontológica, será para Bergson o modo de ser de toda a experiência de realidade. Ele nos ensinará que vivemos num universo de partes heterogêneas permanentemente em movimento, e que a percepção nascerá da relação e do encontro dessas partes. A percepção só acontecerá, portanto, se existe movimento, se se produz de um movimento e se produz um movimento. O que aí temos é a experiência da matéria – dos objetos em contato conosco – gerando um impulso nervoso em nós: o movimento dos corpos do cosmos gerando movimento em nosso corpo. Esse impulso

nervoso é sempre uma parte da matéria. Por isso a experiência mais material e objetiva que podemos ter da realidade é, para Bergson, a de uma imagem: de um objeto-imagem. E o universo todo será ele mesmo, originalmente, imagem-movimento. Mas já estamos adiantando, sem que possamos fundamentar e esclarecer melhor, algumas de nossas descobertas. Por ora, o que nos cabe dizer é que será a busca da caracterização do clichê que exigirá a aproximação e o diálogo que faremos entre Bergson e Nietzsche. Esta aproximação virá exatamente de uma importante semelhança que indicaremos existir entre o clichê e a moral nietzschiana. De fato, vimos Deleuze definir o clichê como um esquema para anestesiar parcialmente as mais diversas experiências de realidades que não podemos suportar diariamente na plenitude do que elas podem ter tanto de terríveis e geradoras de sofrimento, quanto de deslumbrantes e geradoras de prazer. Ou seja, o clichê como algo que surge desde o corpo: algo que o corpo cria a partir de uma necessidade vital. Assim, da mesma maneira que a moral segundo Nietzsche, o clichê parece encerrar em si mesmo dois aspectos que, pelo menos a princípio, parecem contraditórios. Observando a definição de Deleuze, concluiremos imediatamente que a vida seria insuportável, impossível mesmo, sem o clichê. É o mesmo que percebemos na genealogia da moral feita por Nietzsche, no livro que leva este título. Parece que também neste caso não poderíamos observar o homem e a sua civilização sem esse processo de introjeção dos instintos – fundador da memória, da consciência e da linguagem – que Nietzsche nos descreve como sendo o da origem da moral. Em outras palavras: a genealogia da moral é na verdade a genealogia da própria civilização. Mas Nietzsche nos mostra também como algo acontece nesse processo, fazendo com que ele acabe por se voltar contra nós mesmos, podendo levar até mesmo ao nosso aniquilamento. Da mesma maneira veremos que o cinema, lá pelos idos da Segunda Guerra Mundial, embora estivesse longe de viver algum tipo de aniquilamento, teve a sua força inventiva comprometida exatamente à medida que os originais e vigorosos projetos das primeiras escolas de cinema transformaram-se em clichês. E tal processo, veremos ainda, se efetivou num triunfo de uma espécie de fórmula moral para os filmes. Uma fórmula que se desenvolveu na proporção em que esses filmes se transformaram numa notável máquina de propaganda dos estados, e do capital, mobilizados pelos dois lados do segundo grande conflito mundial. É aí que se dá a crise do cinema chamado por Deleuze de “clássico”. Temos claro, no entanto, que o enfraquecimento da força artística, inventiva, das imagens do cinema nas imagens-clichês, não é uma característica do cinema clássico e de seus grandes autores e escolas, mas daquilo em que o cinema clássico se transformou. Antes, veremos a força dessas escolas como talvez o último momento vigoroso do projeto racionalista/iluminista do Ocidente. Um vigor que acontece já depois que Nietzsche havia anunciado a derrocada da crença na razão, mas que talvez tenha podido ainda acontecer pela própria originalidade da experiência do cinema.

O cinema será inicialmente, então, quase que a consumação máxima do projeto racionalista do Ocidente na maneira como ele se reinventa no Renascimento e ganha configurações próprias no Iluminismo. Assim, além do cinema apresentado como o grande instrumento para revelar, “fazer aparecer”, a verdade, a “coisa em si”, veremos também escolas cinematográficas que buscavam a experiência do sublime à maneira iluminista como Kant a concebeu. Ou seja, escolas e autores que acreditavam que o cinema, como um autômato do movimento, geraria no nosso cérebro tal impacto sensório-motor, que potencializaria ao máximo o autômato do pensamento que teríamos em nós: a nossa essência racional. Veremos também um cinema que se constituía, era “montado”, num processo que seria fenomenologicamente o do próprio real, ou seja, a montagem dos filmes concebida como uma colisão dialética de forças opostas que se subsumiriam no próprio sentido da história. Assim o concebeu Eisenstein, numa compreensão hegeliano-marxista do cinema que, justamente por revelar e intervir no processo da produção da realidade e da história, deveria conduzir o pensamento, e as massas, à liberdade da desalienação. Veremos ainda o cinema buscando construir histórias independentes, lógicas, que aspiram ao verídico e que, de forma geral, têm como drama central uma “verdade-filme” se opondo a uma “mentira-filme”. Trata-se, portanto, de um binômio racional que é sempre também um binômio moral, movimentando histórias que aspiravam a um final fechado em que os personagens e situações eram “racionalmente” julgados, condenados, salvos, redimidos ou absolvidos. Em outros termos: a fábula racionalista do Ocidente reproduzida, em suas variações, na estrutura dos filmes “clássicos” de ficção. Em segundo lugar, de outro lado, o cinema será também sintoma e agente da crise da crença do Ocidente na razão e na possibilidade de encontrar empiricamente a verdade. Veremos que essa crise se anunciará exatamente quando as imagens dos filmes “clássicos”, outrora potentes, começarem a se transformar em clichês. O que começa a se insinuar aí, então, é uma “passagem”; passagem esta que será o tema da segunda parte deste livro. Na verdade, é compreendendo o que determina essa passagem e essa transformação no cinema que poderemos compreender por que Deleuze usa esta classificação, qual seja, a que divide o cinema entre “clássico” e “moderno”; respectivamente o cinema da imagem-movimento e o cinema da imagem-tempo. É verdade que o próprio autor afirma algumas vezes que esta classificação é um tanto genérica, e que podemos encontrar características de filmes “clássicos” entre os filmes “modernos” e vice-versa; por isso, inclusive, a mencionamos muitas vezes entre aspas. Mas, mesmo assim, é fundamental que possamos compreender o que ela significa. Esta passagem, que teria acontecido por volta da Segunda Guerra Mundial, marca também a passagem da primeira para a segunda obra de Deleuze sobre cinema. Nela, o autor nos indica que o cinema está se descobrindo como uma potência, como uma possibilidade, que até então lhe era parcialmente velada – com exceção do cineasta japonês Ozu, que desde sempre fez filmes de imagemtempo. Esta potência do cinema pode ser resumidamente definida pela capacidade que os diretores descobrem de, em seus filmes, produzirem uma “representação direta do tempo”.

Para isso, veremos como o tempo se representava no cinema clássico – o cinema da imagem-movimento –, e como ele passará a ser representado no cinema “moderno” – o cinema da imagem-tempo. Neste momento, o cinema se tornará capaz de revelar e desconstruir os clichês. E isso acontecerá, sobretudo, porque vamos assistir a um rompimento do vínculo sensóriomotor que havia no cinema “clássico” entre a percepção e a ação e entre os personagens e as imagens dos filmes. Antes, no cinema da imagem-movimento, as imagens apareciam nos filmes em função da narrativa da história: da trajetória percorrida pelos personagens dos filmes. Agora, no cinema da imagem-tempo, as imagens parecem ter vida própria, rompem a independência das histórias que se pretendiam fechadas, e trazem outros sentidos possíveis. Isso significa que as imagens agora “falam”, como se fossem também personagens dos filmes, interrompendo as narrações e liberando a partir de si descrições, pensamentos e leituras. Já os personagens propriamente ditos têm a sua subjetividade enfraquecida e perambulam como videntes por entre tais imagens, que desviam, ou mesmo impedem, o que seria a trajetória de uma história “clássica”. A imagem-tempo será então uma imagem fora do sistema percepção-ação, aparecendo num contexto em que a diferença entre imaginário e realidade, virtual e atual, será muitas vezes indiscernível. É o que veremos de maneira pioneira no neorrealismo italiano. Nesse ponto, traremos mais efetivamente os filmes para serem analisados. Em primeiro lugar, encontraremos o próprio neorrealismo italiano, sobretudo o segundo dos cinco episódios do belíssimo filme de Rossellini , Paisá. Aí veremos a quebra do que chamaremos de “clichês de guerra”, ou seja, dos clichês dos filmes de guerra produzidos num momento em que tanto na Alemanha nazista, quanto em Hollywood, observamos uma grande identidade estética entre a publicidade privada, estatal e os filmes de ficção. Em seguida, iremos àquele cineasta que é, para Deleuze, junto com o neorrealismo, um dos grandes agentes da descoberta do cinema “moderno”, desta vez nos Estados Unidos: Orson Welles. Em Welles, descobriremos um tipo de “nietzschianismo”. Da mesma forma que no neorrealismo veremos as imagens que “falam” – imagens-signos que são como personagens do filme –, veremos aparecer nos filmes de Welles uma questão que por si só será responsável por abrir a história, qual seja, a pergunta sobre a possibilidade do julgamento moral. Descobriremos ainda nos filmes de Welles a possibilidade da representação de vários sentidos possíveis numa mesma imagem, ou seja, exatamente o que Deleuze define como a representação direta do tempo no cinema. É o que o filósofo vê nas imagens de grande profundidade de campo do estadunidense, feitas pelas lentes grande angulares, e que serão relacionadas à arte barroca. Assim, a questão do tempo, na filosofia e no cinema, deverá merecer mais uma análise. Visitaremos algumas concepções clássicas e modernas do tempo para descobrir como a filosofia chegou a compreendê-lo. Veremos em seguida que o cinema “moderno” descobriu o que alguns filósofos, por distintos caminhos, tinham descrito ou, no mínimo, intuído: um tempo que se insurge sobre o movimento e não se conforma em ser representado apenas por intermédio deste. Evocaremos mais uma vez Bergson, desta vez

pensando o tempo, e o encontraremos especialmente em dois filmes de Win Wenders: Alice nas Cidades e No Decorrer do Tempo . Encontraremos até, em Ano Passado em Marienbad , de Alain Resnais e Robert Grillet, a experiência de representar o tempo no cinema à maneira como ele foi concebido por Santo Agostinho. Mais uma vez encontraremos um grande diálogo possível entre cinema e filosofia. O que um nos apresenta por imagens, o outro descobre por meio de conceitos. E entre tantas descobertas, está a de que o real não pode ser reproduzido em si mesmo, não pode ser representado tal qual é – não há mimesis –, ele tem de ser reinventado, recriado. Os cineastas começam a perceber que é saindo em busca de um lugar-limite, onde os sentidos se fecham num mundo sem saída para forçá-los a se abrir em outras perspectivas, que os clichês são desconstruídos. É ali, portanto, onde a necessidade tão existencial quanto física de constituir novos sentidos se impõe, que encontrarão a potência, a força de seus filmes. Força que será identificada por Deleuze no cinema como a “Potência do Falso” e articulada ao que Nietzsche chamou de “Vontade de Potência”. O próprio Orson Welles vai nos dizer que avalia o que ele chama de character de seus personagens pela capacidade que eles têm de agir, de criar, diante da morte. Trata-se de uma concepção de homem virtuoso muito próxima da de Nietzsche: um homem criador de sentidos, um homem com espírito de artista. Ela está para além de uma definição de artista como uma especialidade ou uma “profissão”. Na verdade, ela afirma o próprio filósofo, e o homem de ciência de uma maneira geral, como artista: como construtores e arquitetos de sentido e de realidade. Poderemos então ver uma identidade entre o artista e o filósofo se concebermos o sentido da atividade deste último não como majoritariamente se faz, mas como Deleuze propôs: a filosofia como uma atividade de criar conceitos. Ambos, filósofos e cineastas, estarão numa situação-limite – dramática e existencial – semelhante à que encontraremos em diversos personagens do cinema da imagem-tempo. Por isso teremos um trecho do nosso livro especialmente dedicado, de um lado, a essas figuras-forças do niilismo como elas aparecem no cinema e, de outro, a personagens que chamaremos de “ontológicos”, uma vez que se opõem e/ou se medem com essas forças, à medida que vivem existencialmente a necessidade, o desejo e o drama de ter que reinventar histórias e sentidos. Kaspar Hauser, por exemplo, do filme de Werner Herzog, é um desses personagens. Mas o que de fato atravessará todo o nosso trabalho será a mais importante das articulações entre Bergson e Nietzsche que, instigados pelo tema, fomos levados a fazer: a aproximação da maneira como Deleuze, bergsonianamente, descreve a experiência do clichê e o modo como Nietzsche descreve o nascimento da moral. Pretendemos mostrar que o clichê será uma espécie de imagem-lei ou imagem-moral: imagem que vai funcionar como um índice determinador e padronizador de valor. Mostraremos ainda que, como expressão da moral, o clichê é também uma operação de poder: poder que opera à medida que se instala nos corpos, não só paralizando-os e atemorizando-os, mas fazendo-os perceber, sentir, agir, desejar, imaginar e sonhar dentro de determinados limites e direções.

Veremos então que o clichê será também uma história organizada a partir de uma lei estática, transcendente e a priori – a lei da história – que sempre deverá submetê-la. Em outras palavras: o clichê estará numa história teleologicamente organizada num processo com vistas a um “grande fim” racional. Grande fim este que, por exemplo, o personagem do poeta militante Paulo Martins, em Terra em Transe, de Glauber Rocha, descobrirá ser impossível de se realizar no Brasil, como em qualquer parte. Presos num clichê – que neste caso será semelhante ao que chamaremos de “cristal sintético” de tempo – é como encontraremos também alguns personagens de Visconti. Na verdade, a degradação desses personagens é a degradação deste cristal que se quer sintético, que quer se manter preso a velhos sentidos que já não servem mais à vida: estão em decomposição. É o que acontece, por exemplo, com o músico ultraformalista, racional a ponto de negar a música como arte, e que se degrada junto com a peste que destrói a cidade em Morte em Veneza. A vida, por outro lado, como potência incontrolável e perigosa, vai arrombar a porta do velho professor aposentado que só vivia para o passado em Violência e Paixão , do mesmo diretor. Na verdade, esta é a tensão da antiarte com a arte, do niilismo com a potência criadora de sentido, pensamento e vida. É neste lugar-limite, que precisamos compreender o que é um clichê, para que, em seguida, possamos desconstruí-lo e superá-lo. É neste sentido que o cinema moderno e suas imagens, num movimento exatamente contrário ao equivocado diagnóstico que responsabiliza a imagem pelos males da contemporaneidade, começam a abrir novas possibilidades para o pensamento. A originalidade de suas imagens passa a potencializar novas possibilidades de sentido para a própria filosofia, mas, sobretudo, novos sentidos para a vida. A identidade entre a estrutura do real e a estrutura do cinema, que descobriremos a partir de Deleuze, nos abrirá a possibilidade de entender o cinema como uma máquina que revela os problemas do mundo e é capaz de liberar novas possibilidades para este mundo. Por isso, estudar e buscar entender o cinema só tem sentido como parte de um movimento de estudar e buscar entender a própria vida. É o que convidamos o leitor a fazer. 1   L’Image-Temps (abreviado como I. T. nas próximas referências), p. 32. 2 I. T., p. 218. Deleuze usa aqui tanto o termo impuissance quanto impouvoir . Ambos estão bem próximos um do outro e se referem à mesma questão; o primeiro está no texto corrente; o segundo, destacado entre aspas. 3 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Logique de la Sensation . Paris: Editions du Seuil, 2002, p. 19. Para Deleuze, é como se já não existisse uma superfície branca nas telas diante dos quais os pintores modernos se encontram. Pintar, neste caso, seria reencontrar uma potência instauradora de sentidos das imagens em meio a tantos clichês, caracterizando-se então por uma espécie de “menos”. Ou seja, pintar seria tirar das telas os seus excessos. Para Bacon, estes teriam uma relação direta com as fotos que seriam, segundo ele, “isso que o homem moderno vê”. 4 I. T., p. 31

5 VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema . São Paulo: Editora Página Aberta, 1993. 6 NIETZSCHE, Friedrich. “Sobre Verdade e Mentira num Sentido ExtraMoral”. In: Os Pensadores . São Paulo: Abril Cultural, 1974. 7 Ibidem. PARTE I Cinema e racionalismo 1. O“cinema clássico”: o acontecimento da razão O cinema – a técnica cinema – surgiu, segundo André Bazin, como uma das últimas realizações de um objetivo perseguido desde o Renascimento de encontrar uma técnica para reproduzir perfeitamente o real, algo que nos mostrasse este real tal qual ele é e sempre foi em si mesmo. Para que esta procurada técnica tivesse sucesso, ela deveria tentar eliminar a “perigosa” intermediação do homem, de sua subjetividade e de suas paixões, buscando sempre um tom austero e neutro: correto método da busca da verdade. É como se a câmera do cinema pudesse exercer finalmente a função do observador neutro que a ciência, havia quatro séculos, obcecadamente buscava. Para isso, ela deveria ocupar um lugar estático, sem movimento, desde onde todo o movimento do real poderia ser revelado, mostrado e filmado na sua essencial e completa constituição empírica. Mas é claro que designar o lugar da câmera do cinema como a de um “ lugar sem movimento” parece, já de início, estranho. Sabemos que esta, além de filmar o movimento, move-se para filmar e filma porque se move, quer dizer, o motor girando numa vibração nervosa a 24 quadros (antes a 18) por segundo. Lembremo-nos, no entanto, dos primeiros filmes com câmera parada e cortes imóveis; veremos então que acreditar que o cinema poderia abrigar o lugar sem movimento que revelaria a essência do real tinha algum sentido. André Bazin descreve esse processo num texto denominado “Mito do Cinema Total” ¹ , em que o próprio cinema é mostrado como um desdobramento do mito racionalista europeu moderno do observador neutro. Nesse texto, o cinema é descrito como um dos mais altos momentos de um processo em que o Ocidente e a sua ciência se empenharam em buscar um mecanismo de reprodução do real em si mesmo. E, no caso do cinema, de reprodução automática do real. Esse mecanismo seria, ao mesmo tempo, como um olho e um espelho perfeito, onde a estrutura da realidade pudesse ser empiricamente mostrada tal qual ela realmente seria. É curioso, uma vez que já fazia mais de um século que Kant nos mostrara que a “coisa em si” jamais seria conhecida pela razão, pela subjetividade humana – embora, ainda segundo ele, pudesse ser intuída –, mas o Ocidente insistia em

anunciar aos quatro ventos a apresentação empírica da verdade; como tantos, ainda hoje, o fazem. É curioso também que a arte moderna abandonava, pouco antes do surgimento do cinema, completamente a ideia da mimesis , rejeitando uma série de instrumentos que os pintores usavam desde o Renascimento, além do tradicional método da “perspectiva geométrica”, para projetar o “espaço real” na tela e obter o que seria a sua reprodução perfeita. Mas o cinema, de início, radicalizou a busca da mimesis; por isso, talvez, que os artistas modernos só tenham se interessado pelo cinema na sua segunda década – além, é claro, da desconfiança de boa parte do modernismo em relação aos avanços tecnológicos. Também Paul Virilio identifica um mito , ou uma mistificação nas origens do cinema. No seu Guerra e Cinema ele diz que o cinema surge como uma das principais realizações de uma época em que se constrói um “ materialismo místico e cientificista ”. ² Ou seja, o cinema é fundamental para ajudar a efetivar os prometidos milagres da ciência, aqui realizados pela técnica. Segundo Virilio, o cinema seria fundamental para “ fazer acontecer ”, “ mostrar ” o “ pseudoacontecimento da razão na história ”. Quer dizer, tanto Virilio quanto Bazin nos levam a pensar que o cinema é ao mesmo tempo um instrumento fundamental e um grande achado do positivismo do século XIX. Positivismo este que compreendia a busca da verdade, há séculos empreendida pela filosofia e pela ciência, como a busca de uma manifestação empírica que seria a do próprio real se manifestando, apresentando-se em si mesmo. O cinema nasce, então, como fruto de um processo que criou antes, por exemplo, a fotografia e o gramofone, no empenho de uma palavra de ordem, de uma ensigna , que há alguns séculos mobilizava o Ocidente: “Busquemos a verdade”, ou melhor, “Busquemos mostrar a verdade”. É como fruto dessa palavra de ordem que todas as primeiras imagens de cinema trazem consigo o que chamaremos aqui de um enunciado geral, quer dizer, antes de qualquer enunciado específico que uma imagem possa gerar – e estas sempre geram estes enunciados –, afirmamos que as imagens de cinema, a exemplo da fotografia, geravam nos seus primeiros tempos também um enunciado geral, a saber: “Finalmente vos trago, porque vos mostro, a verdade!”. Ou, para ser mais sintético: “Eis a verdade!” Poderíamos também dizer, criticamente, que o cinema nos seus primeiros anos procura consumar a “mágica da verdade”; expressão à qual chegamos a partir da leitura de um texto de Foucault, ³ em que ele nos mostra que os procedimentos e os objetivos da ciência moderna trazem importantes semelhanças com os velhos objetivos da magia: a de buscar o evento, o aparecimento e o acontecimento da verdade. E isto também estaria presente, como assinala o filósofo, nos procedimentos judiciais modernos e contemporâneos – incluindo aí a busca das confissões de culpa – o que, a propósito, veremos diversas vezes no cinema. “Eis a verdade!” é, portanto, o resultado do grande truque, da grande mágica que a ciência e a tecnologia poderiam realizar através do cinema. Mas que, nos primeiros anos do cinema, exatamente porque traz ainda o vigor desta crença do Ocidente na verdade, não se mostra como truque, como mágica.

Em grande parte, era essa mágica que se aplaudia e admirava nos vaudevilles que exibiam filmes, entre outras atrações. Filmes que também eram exibidos nas feiras, nas praças públicas, nos circos e parques de diversões, onde, nos primeiro anos, o cinema se tornou ele mesmo uma estrela. Quer dizer, o que era aplaudido pelo público, em primeiro lugar, era a máquinacinema; saudada, de alguma maneira, no seu truque, uma mágica. As populações pobres e a classe média emergente, que constituíram o público predominante desses anos pioneiros, tinham diante do cinema uma posição até certo ponto ambígua. De um lado, saldavam o “truque”, a “mágica”, aplaudindo o falsário pelo seu engenho, mas demonstrando não embarcar completamente na ideia de que estariam diante da “verdade” em forma de imagem, exatamente porque estavam diante da “mágica da verdade”. Por outro lado, demonstravam, ao se entusiasmar, admiração, reverência e talvez temor pela exibição de saberpoder que a exibição cinematográfica representava ali. Poder-se-ia objetar, no entanto, que alguns anos depois do seu aparecimento, o cinema passou dos filmes que pretendiam ser apenas documentais – que pretendiam “mostrar o fato”, o “acontecimento” em si mesmo –, para um cinema que descobriu os chamados filmes de ficção e a eles passou intensamente a se dedicar; mesmo que os documentários jamais deixassem de existir e de seguir a sua própria história. Realmente, os maiores estudiosos do cinema, inclusive Deleuze, em grande parte de seus textos, dedicaram-se a pensar – principalmente, mas não só – o cinema de ficção. Mas é o próprio Deleuze que nos chama a atenção para o fato de os filmes de ficção, sobretudo em seus primeiros autores e escolas, se construírem ainda como exemplo e instrumento de afirmação da crença do Ocidente na racionalidade. Trata-se de um diagnóstico que ele estende a todo o cinema que chamará de “clássico”. Isso acontece exatamente por esses serem filmes de ficção, ou seja, por terem uma estrutura que pretende ser absolutamente independente do “mundo real”. Os filmes procuram constituir-se, de maneira geral, como um universo fechado e uma história sempre com vistas a um fim, ou seja, independente do mundo real , mas à imagem e semelhança do que este deveria ser. Buscam assim reproduzir a estrutura e o processo que seriam – na concepção mais tradicional do projeto racionalista ocidental – o da realidade e o da história. É o que, de uma forma geral, está na fase “clássica” do cinema, que vai mais ou menos até a Segunda Guerra Mundial. O que vemos nesta fase são filmes com histórias que “aspiram ao verídico” e se organizam em vistas de um grande fim: filmes em que o próprio drama da história é – para usar uma expressão nossa, que Deleuze não usa – a busca da distinção entre uma verdade-filme e uma mentira-filme . Mas é importante destacar que o próprio Deleuze nos chama a atenção para o fato de a classificação por ele utilizada, que divide o cinema entre “clássico” e “moderno”, ser demasiadamente genérica. Talvez por isso, o filósofo francês se refira a ela, na maioria das vezes, entre aspas. E mais, nos próprios exemplos abaixo, vez por outra, vamos citar alguns filmes como tipicamente clássicos, mesmo que tenham sido rodados depois da época histórica que Deleuze designou como a do início do cinema moderno, qual seja, o fim da Segunda Guerra Mundial. Em todo caso, este cinema “clássico” deve, de maneira geral, ser compreendido como um cinema que

busca constituir um Todo-filme organicamente fechado. É o que vemos, em primeiro lugar, na montagem alternada criada pelo norte-americano Griffith; concepção que veremos o soviético Eisenstein criticar, ainda que reconheça Griffith como um de seus mestres. O que o estadunidense propõe é uma montagem em que se alternem situações binariamente opostas – mas ainda não dialéticas como em Eisenstein – que iriam constituir o filme organicamente fechado: a “antiguidade e a modernidade”, o “sul e o norte”, o “interior e o exterior”, o “pobre e o rico”, o “bem e o mal”, e assim por diante. Trata-se da instauração do que Deleuze vai identificar como o “binômio” que, de uma forma ou de outra, vai caracterizar todo o cinema clássico. Também nos filmes de Hitchcock o que vemos são histórias que “aspiram ao verídico”, à maneira, neste caso, de uma minuciosa construção lógica. De início, o mestre inglês nos põe diante de alguns buracos na ordem de causalidades do filme, cuja trama e dramaticidade se dão exatamente no difícil e perigoso empenho para tapar tais buracos e encontrar um encadeamento lógico. É de onde se constrói o famoso suspense de Hitchcock: a história não se fecha, mas precisa se fechar; a verdade não se mostra, mas precisa se mostrar. O filme termina quando todo o quebracabeça lógico se completa e o encadeamento de causa e efeito se estabelece, mesmo que este se revele numa espécie de esquematismo lógico freudiano, como em Psicose . É uma investigação científica, positiva e empirista e que, a propósito, aproxima a investigação científica pela verdade dos objetivos da investigação policial e judiciária. De novo estamos diante da “mágica da verdade” nomeada por Foucault. É verdade que pelo menos duas vezes na sua obra Hitchcock descobre uma força que pode destruir a ordem lógica. Em Os Pássaros, toda a tranquilidade lógica da vida da pequena cidade litorânea parece ameaçada por uma imponderável “força natural”, um devir pássaro que gera toda a tensão do filme. Já em Festim Diabólico, o que ameaça a ordem e a lógica – e moral – é um aluno de filosofia que, depois de ter aulas sobre Nietzsche e a Vontade de Potência, resolve cometer um assassinato para experimentar o “poder da vontade”, e oferece ao seu professor de filosofia, que lhe “ensinara” Nietzsche, um jantar sobre o baú onde estava escondido o cadáver. Curiosamente, esta talvez seja, do ponto de vista formal, a mais explícita referência a Nietzsche jamais feita na história do cinema. A presença de um “nietzschianismo” no cinema, no entanto, será abordada mais adiante quando, a partir de Deleuze, estudarmos Orson Welles. Além disso, Deleuze vai ver ainda uma importante relação entre Antonioni e o filósofo alemão. Em todo caso, à maneira como compreendia Nietzsche, esta aspiração ao verídico é também, no cinema “clássico” de forma geral, uma aspiração moral. Em grande parte das vezes o filme se constrói com vistas a um duelo final em que o confronto da verdade-filme com a mentira-filme é um duelo entre o bem e o mal. É o que vemos na maioria dos Westerns – mas não só neles –, em que o duelo, o confronto final, é o que vai amadurecendo ao longo de toda a história. Neste sentido, a montagem alternada de Griffith funciona como uma espécie de projeto fundador do cinema americano clássico. Personagens e/ou situações em polos opostos, alternando-se no

filme, conspirando e preparando a oposição final, o conflito final: o duelo como o fechamento moral da história. É por isso que os Westerns , como tantos outros filmes de Hollywood, têm em geral uma estrutura de fábula. Estrutura de fábula que está presente também na grande tradição de filmes judiciários norte-americanos. Para Deleuze, esta constitui a própria tradição do cinema político clássico daquele país, que segue produzindo estes filmes até bem depois da Segunda Guerra Mundial. Diríamos que o que vemos nessas obras são uma espécie de fábula iluminista. São nos filmes judiciários, diz Deleuze, que os norte-americanos encontram a sua unidade de povo. Uma unidade que é conquistada através da objetivação racional feita pelo Estado. Essa é a maneira como, por exemplo, Hegel compreende a função do Estado, ou seja, como um grande instrumento de objetivação e efetivação da racionalidade humana. O que vemos nesses filmes, dos quais o belíssimo Doze Homens e uma Sentença de Sidney Lumet é o mais paradigmático dos exemplos, é que o povo norte-americano encontra a sua unidade, quer dizer, se (re)encontra enquanto povo, exatamente no processo judicial. É através do judiciário que o Estado vai organizar um processo em que todos os conflitos serão expostos, equacionados e resolvidos, uma vez que racionalmente julgados. O que temos então é a lei racionalizando e vencendo as diferenças. Estas então se diluem, ou no mínimo são apaziguadas, através daquilo que deveria unir e constituir um povo: o Estado-Nação. Mas Deleuze nos chama a atenção para o fato de nessa fase “clássica” haver um racionalismo no cinema não só porque os diretores buscam reproduzir em seus filmes uma realidade lógica, verídica e moral, mas também porque muitos deles veem o cinema como um instrumento para provocar nos homens a experiência plena do que seria a nossa essência racional. O cinema deveria, assim, ter a função de provocar o nosso pensamento através de um choque sensorial e fazer a nossa racionalidade funcionar no limite de suas possibilidades. E uma vez no limite, a racionalidade se aproximaria da plenitude do ser: da experiência da universalidade, do Todo, tão almejada pela civilização ocidental desde a Grécia. É esta constatação que faz Deleuze afirmar que as primeiras escolas de cinema eram, de certa maneira, kantianas, mesmo que alguns de seus autores jamais tivessem lido Kant. E isso acontecia porque alguns diretores clássicos do cinema acreditavam provocar o sentimento do sublime em seus espectadores graças a um “choque sensorial” causado por seus filmes. ⁴ Para Kant, o que o sentimento do sublime ⁵ revelaria em nós seria uma tendência da nossa imaginação a um progresso infinito, e uma pretensão da nossa razão a uma totalidade. E isso se daria exatamente pela imensidão, pela incomensurabilidade que parecemos, a princípio, perceber na natureza quando estamos diante de seus fenômenos mais grandiosos. O sentimento dessa incomensurabilidade, diz Kant, não é próprio dos objetos da natureza a qual julgamos sublime, sendo, na verdade, próprio da nossa razão, mas apenas num primeiro movimento desta. Em seguida, estimulada pelos objetos da natureza, a razão, tomada pelo sentimento do sublime, da imensidão e da incomensurabilidade que atribuímos à natureza, ao Todo, mostra uma aspiração para a busca ilimitada do conhecimento destes.

O sentimento do sublime, portanto, nos permitiria intuir uma infinita liberdade e possibilidade da razão: da subjetividade humana como Kant a concebe. O choque sensorial, que o cinema deveria procurar causar, despertaria a potência de pensar comum a todos os homens, mas que normalmente não é usada na plenitude de suas possibilidades. Antes, diz Deleuze, tratava-se de um kantianismo, e da busca do sentimento do sublime, que já atravessava boa parte da pintura e da escultura modernas no final do século XIX. Sem querer causar uma confusão de conceitos, diríamos aqui que o racionalismo e o iluminismo da arte moderna foram, segundo Deleuze, essenciais para o cinema clássico: a arte, e agora em especial o autômato do movimento que o cinema representa, é capaz de provocar o funcionamento da razão e do pensamento no limite de suas possibilidades. O próprio Deleuze lembra um famoso comentário de Eisenstein sobre um projeto de um quadro escrito por Da Vinci, provavelmente jamais pintado, em que este descreve as cenas do que deveria ser uma pintura do Apocalipse. O que vemos nesse texto é bastante semelhante ao que seria, alguns séculos depois, um roteiro de um filme. ⁶ Com o cinema, no entanto, as imagens passam a mover-se por si mesmas, não precisam que a subjetividade humana construa este movimento, como fazemos diante das imagens imóveis de um quadro; ou como no caso da dança quando um corpo humano precisa se mover a cada vez. Assim, o movimento automático do cinema, a mais completa reprodução do Todo em processo que poderíamos ter, à medida que nos atingisse com esse choque sensorial, ⁷ detonaria imediatamente em nós o processo do pensamento – o autômato espiritual que nós mesmos seríamos, ou teríamos em nós . É também esta busca de uma experiência do Todo, segundo Deleuze, que está nas intenções de Eisenstein quando ele propõe um método de “ montagem dialética ”. ⁸ Na verdade, o que o soviético criticava em Griffith é exatamente a montagem compreendida como uma soma das partes, ou seja, como o encadear-se dos elos de uma corrente. Para Eisenstein, Griffith mostrava na história apenas efeitos, sem causas, e não compreendia a relação e a implicação que cada um dos polos em oposição em seus filmes necessariamente tinha. Seria preciso provocar a colisão desses polos para que a própria história seguisse adiante numa síntese dessa colisão. Por isso o soviético preferia comparar a sua montagem dialética a “um motor a explosão” ⁹ : cada parte de um filme, montada numa “colisão” dialética com as outras partes, contribuiria para empurrar o Todo-filme para frente, para o seu fim. E isso quer dizer que cada parte do filme estaria em colisão também com o Todo-filme, que vem a se constituir, por sua vez, das superações e das sínteses dialéticas de todas essas “colisões”. A montagem de um filme seria então para Eisenstein a própria reprodução do processo fenomenológico em que a razão se efetiva, constituindo-se na própria realidade. A própria subsunção final, que fecha o filme, funcionaria dessa forma para Eisenstein: agora não é mais o conceito que vai até a imagem, nem a imagem que vai até o conceito, mas sim o conceito que está em si na imagem, e a imagem que é o para si do conceito. O cinema seria, então, um lugar da realização da autoconsciência, na medida em que nos colocaria diante do processo pelo qual a nossa racionalidade se efetiva. O

autômato espiritual e o autômato do movimento apareceriam aí como a oposição dialética entre subjetividade e objetividade, ou entre espírito humano e natureza. Nesse caso, a relação dialética não aconteceria apenas entre as imagens dos filmes e cada um de seus componentes em oposição (claro e escuro, profundidade de campo e imagem plana, plano aberto e plano detalhe, aceleração do movimento e redução deste, só para ficar em alguns exemplos), mas também entre o filme e o espectador. Eisenstein também buscava, pois, um choque sensorial e uma experiência do sublime, como se fosse um objetivo kantiano buscado por um caminho hegeliano. À maneira hegeliana de definir a arte, o que vemos Eisenstein buscar é a “manifestação sensível da Ideia”. ¹⁰ Assim, mesmo com todas as grandes diferenças entre Hegel e Kant, e das críticas de um ao outro, ambos têm uma posição racionalista. A superação da oposição dialética entre espírito humano e natureza é, na verdade, o “grande fim” dos filmes de Eisenstein. Trata-se do “fim da história” hegeliano que, no caso do soviético, como não poderia deixar de ser, ganha um tom marxista. O cinema seria assim uma exposição do “processo” da verdade, como podemos ver em citação de Marx feito pelo próprio Eisenstein em O Sentido do Filme . ¹¹ É por isso que em O Encouraçado Potemkin , por exemplo, a revolta que a carne estragada servida aos marinheiros vai gerando no espírito desses homens é montada em oposição dialética com imagens do mar revolto, das ondas quebrando no cais e da tempestade que se anuncia. Estando inicialmente o espírito humano em oposição à natureza, o que prepara a revolta dos homens é algo que está na própria “natureza” de seus espíritos. A efetivação da nossa subjetividade racional está exatamente no movimento desta ir de encontro – e ao encontro – à racionalidade da natureza. O sentimento revolucionário funciona, na apropriação de Hegel feita por Marx, como uma espécie de impulso natural da nossa razão subjetiva. Esta age e se efetiva num movimento de liberação que busca superar tudo o que se mantém como intermediário e empecilho ao seu encontro e síntese com a racionalidade natural . Nos filmes de Eisenstein é a revolta dos homens contra a exploração capitalista que os levaria a este destino racional e, portanto, justo do “comunismo ateu”: o “grande fim” em que se produziria o reencontro entre espírito humano e natureza. É nesse momento que a essência racional dos homens se reencontraria com a ordem racional da natureza. Já no expressionismo alemão, o aspecto “clássico” e iluminista dos filmes estaria exatamente no famoso jogo de claro e escuro, de luzes e sombras como expressão de uma luta entre a razão e a desrazão: o bem e o mal. De fato, é da escuridão, da sombra, que vêm, nos filmes expressionistas, forças sinistras que ameaçam a lógica justa dos homens que vivem literalmente à luz da racionalidade. É daí que saem, por exemplo, o vampiro assassino que ameaça Düsseldorf, ¹² ou o terrível ilusionista Doutor Mabuse . O que mostra também o outro aspecto racionalista do expressionismo, num racionalismo muito semelhante ao que Nietzsche identificava como “platonismo”, qual seja, o expressionismo não para de condenar moralmente a figura do falsário, do ilusionista: do inventor de histórias, de imagens, de espectros e ilusões: esses são na verdade sempre os seus grandes vilões. O problema é que esta parece ser também uma condenação moral do próprio cinema, o

que é paradoxal numa escola que ousou as experiências estéticas radicais como o expressionismo. Neste sentido, já no filme pré-expressionista O Estudante de Praga , de Stellan Rye, vemos talvez pela primeira vez o cinema aparecendo como questão em um filme. Numa história que se repetiu diversas vezes mais tarde, nesse filme o mencionado estudante vende o seu reflexo no espelho a um bruxo que faz com que este saia pela cidade a praticar todo o tipo de malfeitos. Notemos que este duplo do estudante se trata exatamente de um spectrum , de uma imagem que vira um autômato do movimento e passa a ter vida própria. Mas este spectrum já é aqui, a exemplo da lista de falsários do expressionismo alemão (incluindo o clone da líder dos operários em Metropolis , também de Lang), um vilão: uma expressão do “mal”. É verdade que a maneira como alterava a perspectiva do jogo de luz e sombras, como criava um descompasso entre este e o lugar que os personagens e a ação ocupavam no quadro, chegando às vezes a abrir uma perspectiva de espirais até o infinito, são sem dúvida sinais de modernidade no expressionismo alemão. Mas ainda em torno da questão do autômato do movimento, não podemos deixar de nos admirar com a maneira como os diretores expressionistas parecem ter tido uma espécie de antevisão inconsciente do terrível futuro próximo que se preparava na Alemanha. De uma forma ou de outra, todos perceberam forças sinistras que maturavam na obscuridade, e estas eram sempre, de certa forma, semelhantes ao autômato do movimento e, portanto, ao cinema. Assim, se Eisenstein havia pensado o cinema como instrumento de libertação das massas assujeitadas, parece que os expressionistas alemães já estavam temendo, pouco antes do surgimento de Hitler, as massas hipnotizadas pelo cinema como parte de um grande dispositivo de sujeição coletiva. Podemos então dizer que, embora façam filmes de ficção, os cineastas das primeiras escolas também estavam empenhados em realizar o que Virilio chama de “ pseudoacontecimento da razão na história ”. Portanto, o enunciado do cinema nos seus primeiros tempos, “Eis a verdade”, pode ser compreendido também como “Eis a razão”. É verdade que existe aí uma diferença em relação ao racionalismo grego, uma vez que esta concepção de razão seria, de maneira geral, mais próxima da que se gera no Renascimento e se desdobra no iluminismo e no positivismo. É isso o que percebe André Bazin quando escreve que o cinema é o desdobramento de um projeto ocidental que começou no Renascimento. É claro que se nos detivermos na descrição das diferenças entre a noção grega e a moderna de “razão”, corremos o risco de iniciar aqui um outro livro só sobre este tema. Sabemos que mesmo entre os filósofos de uma mesma época, as compreensões do conceito de razão têm importantes diferenças. Digamos que, em geral, há uma subjetivação deste conceito na modernidade europeia. Esta tanto ajuda a construir quanto se constrói na cisão entre sujeito e objeto, e a razão tomada como um “universal” é aquela que habita e fundamenta o sujeito. É por isso que dissemos que aquilo que a experiência kantiana do sublime geraria em nós tem um caráter iluminista. A experiência do infinito e superior poder da razão de submeter a natureza é, na verdade, a experiência da superioridade da subjetividade racional: da racionalidade humana, digamos assim.

Mas o próprio fato de Virilio usar expressões como “ pseudoacontecimento da razão ”, mostrando-nos que o processo do Ocidente de busca da verdade teria gerado um “ materialismo místico cientificista ” , deixa claro que para ele o cinema não é a realização daquilo que promete ser. O mesmo podemos observar em relação a Bazin, que também percebe uma mistificação presente no projeto fundador do cinema. É o que denota o próprio título de seu artigo: “Mito do Cinema Total” . Para Virilio, o cinema seria parte constitutiva do processo de formação dos Estados Nacionais pós-revolução industrial e de todas as formas de mistificação que estes construíam à medida que se instalavam. Ele diz, por exemplo, que algumas projeções de filmes que se realizavam na primeira metade do século XX são como missas profanas onde se exaltam os valores laicos desse Estado Nacional industrializado. E o principal dentre esses valores talvez seja o acontecimento da razão. Este é, na verdade, o grande fim , a grande missão civilizatória que esses Estados tomam para si. E, mais do que isso, para Virilio o cinema seria parte de um processo em que o virtual iria ganhando estatuto de real e em que o contato dos homens com o que seria um mundo real iria se tornando cada vez mais distante. Seria exatamente a necessidade de avanço tecnológico dos dispositivos de guerra desses Estados, ou que esses Estados são, que teria detonado tal processo. Virilio percebe que, logo depois das guerras napoleônicas, os equipamentos militares precisaram transpor uma espécie de limite empírico (expressão nossa). É a partir desse momento que os comandantes militares já não podiam mais ver a olho nu o movimento de suas tropas no campo de batalha. Assim, um espaço virtual, não visto, vai se tornando o real da guerra. Em primeiro lugar, são enviados dirigíveis para se fotografar os campos de batalha dos adversários, daí se inicia um processo que aperfeiçoa o uso da fotografia, passa pelo uso do cinema e chega até as guerras videogames que vimos mais recentemente. Para Virilio, o processo de virtualização na vida, que tem no cinema um de seus pontos altos, passou antes pelas imagens em movimento das janelas dos trens a vapor, precursoras de todas as imagens em velocidade das janelas – das “telas” – dos carros e aviões. De fato, essas imagens, artificialmente construídas, passam a ser vistas e experimentadas pela civilização como algo prosaico, simplesmente dado, e não como ilusão; são, portanto, imagens que ganham estatuto de real ainda que sejam criadas de forma artificial. Neste sentido, também seriam exemplos de virtual que vai ganhando um estatuto de real os ambientes climatizados e os jogos de luzes e cores cenografados e assépticos das lojas de departamento, precursoras dos shopping centers . Aí estariam ambientes tão mistificadores da tecnologia quanto o cinema, com suas escadas rolantes de aço reluzente, suas vitrines onde as últimas novidades da indústria do consumo posam como estrelas, seus letreiros de neon e sua música ambiente. Tanto quanto o cinema, os shopping centers seriam centros de isolamento da experiência do mundo real, quer dizer, um espaço capaz tanto de produzir especiais experiências sensoriais em nosso corpo quanto de nos proteger de tantas outras: o que podemos designar, portanto, como uma câmara . E, de fato, a realidade da guerra torna-se virtual para quem a observa e comanda. Mas, é claro, a guerra só deveria ser assim para quem está

destinado a vencê-la. Não há dúvida de que a imposição desse virtual como uma “realidade” é uma medida de força. É Virilio que diz que a verdade é sempre a primeira vítima de uma guerra, e lembra os futuristas italianos que influenciaram os fascistas quando descreveram uma guerra bela, romântica e asséptica: “Hurra! Acabou o contato com a terra imunda.” ¹³ Tal como os cinemas e os shopping centers , climatizados e com som ambiente, eram as cabines dos bombardeiros americanos na Segunda Guerra, onde os pilotos estavam sempre a escutar uma agradável canção ou uma locutora de voz sensual para amenizar os horrores das missões de guerra. É por isso que Stanley Kubrick, na sequência final de Dr. Fantástico , faz tocar uma canção que foi grande sucesso na rádio norte-americana durante a Segunda Guerra, ¹⁴ “We will meet again”, na voz de Very Linn. É até mesmo possível que quando os pilotos lançavam as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki – cujas imagens reais aparecem no final de Dr. Fantástico –, estivessem escutando esta canção, que toca no filme, no momento em que o vilão de Kubrick tenta destruir o mundo. É esta impressionante barreira asséptica, esta redoma sensorial , ¹⁵ que permitiu que recentemente a propaganda de guerra chegasse a nos falar em “ guerra cirúrgica ”. Mas, é claro, os exemplos de Hiroshima e Nagasaki são mais do que suficientes para nos mostrar que, do lado de fora dessa redoma, os horrores da guerra, talvez agora mais do que nunca, estão todos lá. Cabe então perguntar se esses invólucros que os dispositivos de guerra contemporâneos criam para os homens – assim como os ambientes climatizados e cenografados dos shopping centers e, finalmente, o próprio cinema – não seriam todos eles exemplos de clichês . De fato, a princípio, o que estamos descrevendo aqui tem, no mínimo, uma grande semelhança com a descrição do clichê. Todas essas “câmaras” modernas, essas redomas sensoriais que vão dos shopping centers às salas de cinema, dos interiores dos veículos às salas de comando militar das guerras videogames , podem ser vistas como sistemas sensório-motores. Estes tanto produzem em nós uma determinada experiência de realidade quanto nos protegem e, em certos casos, quase nos anestesiam de determinadas experiências sensóriomotoras que seriam “inconvenientes”, digamos assim. E, mais do que isso, Virilio vê nesse processo em que o virtual vai ganhando estatuto de realidade a função política de esvaziar e neutralizar o pensamento, isto é, a função de enfraquecer a capacidade racional dos homens. No seu livro Velocidade e Política , o autor chega a citar Goebels, idealizador e ministro da propaganda nazista, que explicitamente advoga a necessidade de expor o povo alemão à velocidade das imagens e dos discursos para que este não tenha o tempo de se dedicar à leitura e à escrita que os permitiria pensar. ¹⁶ Esta é a experiência que temos, por exemplo, na rotina dos deslocamentos que fazemos nas cidades contemporâneas. A experiência da vida em comum nestas cidades é cada vez menos a experiência do logos que se dá no encontro com o outro e cada vez mais uma experiência sensório-motora semelhante à do cinema. Vivemos cada vez mais sob o efeito de imagens e sons, de um ambiente cenografado e com trilha sonora, de poderosas luzes que passam, faróis em velocidade, outdoors, neons, manchetes e letreiros que Godard, em especial, tantas vezes gostou de nos mostrar em seus filmes. Por isso nossas cidades são

cada vez mais, segundo Virilio, cidades cinemas , em substituição às antigas cidades teatro. Haveria aí todo um esvaziamento da política, tanto no sentido grego quanto iluminista do termo. A própria guerra ganha um certo grau de virtualidade e uma dimensão imagética. No lugar dos confrontos diretos, agora é a imagem que tem a função de paralisar – ou encantar – corpos e atemorizar pensamentos nos embates militares. O cinema, portanto, parece ser, para Virilio, parte de uma estratégia de poder que busca a impotência do pensamento como forma de dominação política. No entanto, esta não é a posição que vamos defender aqui e nem é exatamente a posição que Deleuze defende. Uma das principais preocupações de Deleuze ao falar do clichê como algo que acontece, ou que pode acontecer à imagem, é afirmar que esta não é, em si mesma, a responsável pelo enfraquecimento, pela impotência do pensamento. É verdade que Deleuze examina com atenção as descrições e reflexões de Virilio ¹⁷ – que aqui nos ajudam numa genealogia do cinema –, acolhendo muitos de seus aspectos. Chama a nossa atenção também que Deleuze menciona Virilio exatamente no trecho do A Imagem-Tempo em que volta, ainda que não explicitamente, ao problema do clichê. Trata-se de uma passagem do livro em que Deleuze se pergunta o que teria feito o cinema perder a sua força à altura da Segunda Guerra Mundial; o que teria levado tantos autores a descrerem do cinema, mesmo os que outrora tiveram esperanças nele? Deleuze se pergunta, portanto, o que teria feito com que as outrora potentes concepções de cinema dos mestres do cinema “clássico”, particularmente em filmes que passaram a segui-las como uma fórmula, tivessem se transformado em “clichês”. O interessante é que vemos aí algo que, ao mesmo tempo, produz uma identificação e uma diferença entre Deleuze e Virilio. Nós mesmos os colocamos lado a lado quando mostramos o quanto o cinema, em suas primeiras décadas, representa uma das realizações culminantes do projeto racionalista do Ocidente moderno. Foi o que aconteceu quando falamos de um positivismo empirista que Virilio vê no surgimento do cinema e, logo em seguida, expusemos a maneira como Deleuze vê um “racionalismo” presente no projeto dos primeiros grandes autores e escolas do cinema de ficção. Mas, insistimos, o tom que Virilio dá às suas descrições da origem do cinema é o da denúncia de um misticismo: o acontecimento empírico da razão na história que o cinema teria prometido realizar é, segundo ele, “pseudo” – falso, no sentido mais negativo que este termo pode ter. Virilio parece então, desde o início, identificar uma espécie de “doença originária” no cinema. Esta espécie de “mal de origem” estaria exatamente na identificação que ele faz entre o cinema e os Estados Nacionais que estão a implantar o capitalismo monopolista. Deleuze, lendo Virilio, acha que este dá a entender que o cinema estaria destinado a ser um poder desarticulador e enfraquecedor do pensamento. E isso aconteceria exatamente por ele ter nascido a serviço do expansionismo desses Estados e, mais do que isso, como parte fundamental da própria efetivação do poder desses Estados. O problema é que se por um lado há uma identidade entre Bazin, Virilio e Deleuze, que permite que tenhamos articulado os três na genealogia do cinema que aqui apresentamos, por outro, há uma diferença no tom com que Deleuze fala do racionalismo dos primeiros autores e escolas do cinema

“clássico” que o distingue em especial de Virilio. Sem entrar, a princípio, no mérito desse racionalismo ser falso – “pseudo” – ou não, Deleuze não o acha, digamos assim, impotente. Para Nietzsche, teria sido a busca de uma “racionalidade a qualquer preço” o que gerara uma situação de niilismo e impotência da civilização europeia; já Deleuze não crê que exista nas primeiras escolas e autores de cinema a manifestação de um “esgotamento”, ou de uma “decadência” – expressões que Nietzsche usa frequentemente para caracterizar o niilismo – desse racionalismo. O cinema “clássico” para Deleuze não é, portanto, em si mesmo um clichê: clichê é aquilo em que este cinema se transformou lá pelos idos da Segunda Guerra Mundial. Parece-nos que, para este filósofo, o racionalismo ocidental, já agonizando – cujos sintomas Nietzsche percebe no final do século XIX –, teria experimentado a sua última potência criadora no cinema. Neste sentido, o cinema “clássico” seria para Deleuze a última grande realização do racionalismo ocidental. A crença de que o cinema poderia acionar plenamente as possibilidades da razão – isto é, que o cinema, como um autômato do movimento, produziria um choque sensorial que faria funcionar o autômato do pensamento que nos constitui – teria sido de fato geradora de grandes filmes na fase “clássica”. Mas talvez seja injusto, ou até incorreto, atribuir a Virilio um julgamento tão negativo em relação ao cinema. A diferença que percebemos entre ele e Deleuze – a despeito das importantes semelhanças – talvez venha muito mais de uma diferença de abordagem. Quer dizer, o problema que mobiliza cada um dos autores em cada uma de suas pesquisas é diferente em importantes aspectos. Deleuze nos parece, sobretudo, interessado na diferença qualitativa que grandes filmes de grandes autores trazem, mostrando-nos o quanto produzem pensamento e realidade, e fazendo, a partir desses, o que ele diz ser uma “taxonomia” ¹⁸ das imagens cinematográficas. Virilio, por sua vez, parece estar voltado para os aspectos gerais que nos levam a ser o que se convencionou chamar de uma “civilização da imagem”, mas que, para Deleuze, seria correto chamar de “civilização do clichê”. Neste caso, Paul Virilio não estaria fazendo tanto uma genealogia do cinema, mas sim uma genealogia de uma experiência cinematográfica do real que vai se tornando a de toda a civilização. O cinema então parece parte decisiva de um processo no qual o próprio capitalismo vai se caracterizando cada vez mais por um tráfico de bens desmaterializados, ou seja, onde a imagem é a principal mercadoria que circula pelo mundo e onde a própria experiênciamundo vai se convertendo numa experiência-cinema. Nesse sentido, parecem ser os aspectos quantitativos e gerais do cinema como arte de massa – assim como as experiências de realidade parentes próximas do cinema – que interessam a Virilio. É a partir desse aspecto, inclusive, que se produz uma importante identidade entre os dois autores, isto é, o diagnóstico de Deleuze se encontra com o de Virilio no que se refere exatamente ao momento do cinema por volta da Segunda Guerra Mundial. Para Deleuze, pelo menos aí, o cinema parece ter se reduzido a quase que apenas aquilo que Virilio teria visto desde a sua origem: imagens produzidas em virtude do grande projeto técnico “racional” dos Estados Nacionais expansionistas. E esses Estados são, como sabemos, grandes efetivadores do pseudoacontecimento da razão por meio da tecnologia: o grande fim e a

redenção da civilização. É notável, por exemplo, como Virilio mostra uma grande identidade entre a estética dos filmes, dos cinejornais estatais e da publicidade dos grandes grupos capitalistas, tanto na Alemanha nazista quanto em Hollywood. A propósito, esta característica impressionantemente semelhante da produção de imagens das duas grandes potências capitalistas opostas da Segunda Guerra, para a qual Virilio nos chama a atenção, é percebida também por Deleuze: “ de Hitler a Hollywood, de Hollywood a Hitler ”, ¹⁹ como ele mesmo diz. Já vimos o quanto esse problema chama a atenção de Deleuze, na maneira como ele vê o expressionismo alemão, não por acaso, pôr seguidamente em questão a autômato do movimento nos seus personagens hipnotizadores, mágicos ilusionistas, falsários produtores de imagens duplicadas e autômatas e outras variações do gênero. Mas a verdade é que lendo Virilio temos a impressão de que toda a civilização, à medida que vai mergulhando nessa experiência cinematográfica do real, vai sendo envolvida por clichês. Parece-nos que o autor põe a imagem como algo que em si mesmo é gerador da impotência do pensamento, exatamente porque nos faria mergulhar numa ilusão, numa falsidade, enfim, estaria nos mascarando o que seria a experiência do real numa constituição essencial e verdadeira. Estaríamos assim diante do que Virilio descreve como um processo de transformações da “experiência perceptiva” do real. Chamamos a atenção para esta expressão porque todas as pesquisas e descrições por ele feitas nos parecem uma reafirmação e um aprofundamento do que Walter Benjamin escreve no seu célebre “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”: “a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência.” ²⁰ Esta afirmação de Benjamin expressa uma radicalização da compreensão que o materialismo marxista tem do conceito de ideologia. O que ela busca é o diagnóstico da construção de uma ideologia, mas a construção de uma ideologia compreendida de forma mais radical do que uma falsificação produzida no âmbito do discurso e da escrita: no âmbito do logos . Trata-se da constituição de uma ideologia como uma experiência corporal, afetiva, “nervosa”, do real. Na verdade, parece-nos que todo o trabalho de Virilio descrevendo esse processo de virtualização da experiência perceptiva da realidade tem como importante inspiração e ponto de partida as reflexões de Benjamin. Quando descreve, por exemplo, os mecanismos artificiais de percepção do real, semelhantes ao cinema, proliferando-se nas cidades industrializadas, Virilio se inspira na afirmação de Benjamin de que a arquitetura exerceu durante muito tempo a função que veio a ser exercida pelo cinema, qual seja, a de gerar nos homens uma experiência de percepção coletiva do real. É evidente que ela ainda hoje o faz; mas a própria arquitetura teria se tornado cinematográfica, como vimos Virilio descrever. Em alguns momentos, Virilio chega mesmo a dar a impressão de continuar o trabalho de Benjamin quando este arriscou fazer um texto de filosofia descrevendo, como num roteiro de cinema, ou como se passeasse com uma câmera, as galerias e as imagens de Paris das primeiras décadas do século XX. ²¹

Assim, esta é a forma como Virilio age como um filósofo saindo em defesa da verdade e denunciando um processo de falsificação da realidade. A princípio isso não deveria ser surpreendente, afinal de contas é o que na maioria das vezes se espera de um filósofo. Mas no que se refere, por exemplo, à compreensão de Nietzsche, insistir nesta maneira de avaliação filosófica é um equívoco; ou pelo menos é uma limitação. Quer dizer, a insistência até a exaustão do Ocidente de que a principal tarefa da filosofia, e o grande objetivo moral da civilização, deveria ser a busca implacável da distinção entre verdade e falsidade, seria tanto um sintoma quanto uma força propulsora do niilismo. Assim, se por um lado, expressões como “misticismo cientificista” e “pseudoacontecimento da razão na história” dão momentaneamente um tom até mesmo nietzschiano ao texto de Virilio, de maneira que ele mesmo parece estar descrevendo o processo do niilismo como desdobramento da mistificação da razão; por outro, a ideia de que todo esse processo cinematográfico vai nos afastando do que seria uma experiência do real em si mesmo parece ter, no próprio Virilio, uma certa nostalgia iluminista. Seria o caso de perguntarmos a Virilio onde estaria essa civilização, ou esse período histórico, do qual ele parece um tanto nostálgico, onde o virtual não jogaria um papel decisivo na composição da experiência que se tem da realidade. O filósofo – e arquiteto – francês parece partilhar aí uma condenação moral da falsidade e da ilusão. Uma condenação que, de fato, está na própria origem da filosofia, mas cuja crítica, e a descrição dos problemas que vai gerar, se confunde com a crítica e a descrição do processo filosófico histórico que teria se desdobrado no niilismo europeu, segundo Nietzsche. 1 BAZIN, André. “Le Mythe du Cinema Total”. In: Qu’est-ce que le Cinema? Paris: Les Editions du Cerf, 2002. 2 VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema , op. cit., p. 51. 3 FOUCAULT, Michel. “Casa dos Loucos”. In: Microfísica do Poder . Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 114, 115. 4   L’Image-Mouvement (abreviado como I. M. nas próximas referências), p. 64. Neste trecho, Deleuze nos explica como o cinema buscava, sobretudo através da montagem, a experiência kantiana do sublime. No ImagemTempo (p. 191), ele nos diz que mesmo a “montagem dialética” de Eisenstein, embora a princípio fosse de inspiração hegeliano-marxista, buscava dialeticamente o “Todo” para que este produzisse o choque sensorial e consequentemente a experiência do sublime à maneira como Kant a concebia. KANT, Emmanuel . Critique du Jugement . Paris: PUF, 1955, p. 36. 5 KANT, Emmanuel, op. cit., p. 29. 6 EISENSTEIN, Sergei. “Palavra e Imagem”. In: O Sentido do Filme . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 25.

7 I. T., p. 189-190. Deleuze cita aqui dois autores que explicitam essa posição sobre o cinema, a saber, a do “automatismo material”, do cinema ser capaz de despertar em nós um “automatismo intelectual”: Elie Faure e Epstein. O primeiro escreve isso em Fonction du Cinema ; o segundo é citado por Seghers em Ecrit sur le Cinema . 8 EISENSTEIN, Sergei. “Dramaturgia da Forma do Filme”. In: A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 49. 9 EISENSTEIN, Sergei.”O Princípio Cinematográfico e o Ideograma”. In: A Ideia do Cinema . Organização de José Lino Grünewald. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 109. 10 HEGEL. Curso de Estética, o Belo na Arte . São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 139. 11 EISENSTEIN, Sergei. O Sentido do Filme . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 27. Eis a citação de Marx, que Eisenstein não localiza na obra do filósofo: “À verdade pertence não apenas o resultado, mas também o caminho. A investigação da verdade deve em si ser verdadeira, a verdadeira investigação é a revelação da verdade, cujos membros separados se unem no resultado”. 12 Em relação a O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, veremos mais adiante que esse filme expressionista apresenta aspectos que o aproximam do cinema que Deleuze vai chamar de “ moderno ”. 13 VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 59. Citação de trecho de poesia de Marinetti feita em 1905. 14 VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema . São Paulo: Página Aberta, 1993, p. 45. 15 ALMEIDA, Luiz Guilherme Veiga de. Ritual, risco e arte circense: o homem em situações-limite . Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 2008. 314 p. 16 VIRILIO, Paul. Velocidade e Política, op. cit., p. 21. 17 I. T., p. 199. 18 I. M, p. 7. 19 I. T., p. 199. 20 BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”. In: Magia e Técnica, Arte e Política . São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 169. 21 BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única . São Paulo: Brasiliense, 1997. 2. Nietzsche:

a impotência do pensamento A condenação moral do corpo, do falso e da imagem Sabemos que, com o nascimento da filosofia, a velha busca do homem pela origem de todas as coisas, que de maneira diferente o mito já fazia, e faz, ganhou uma nova configuração. O conhecimento da origem deixou de ser buscado através de efeitos estéticos – de experiências sensíveis – gerados pelas imagens, pelos sons e pela força dramática das histórias míticas. A filosofia no seu nascimento passa a compreender o logos como sendo, ao mesmo tempo, a morada e o processo do real. Passa-se a crer que este constitui a essência dos homens tanto quanto constitui a essência do cosmos; ou melhor, o logos é visto, ao mesmo tempo, como o escopo e a efetivação da essência do real sendo, por isso, a instância da sua presença e da sua manifestação no homem. Seria só através dele que poderíamos ir ao encontro e nos ajustarmos à ordem racional do cosmos (palavra grega que pode ser traduzida por “ordem”). É, portanto, devido a uma espécie de mergulho no logos que os homens poderiam se aproximar da compreensão daquilo que fundamenta e estrutura o próprio logos : a rigor, a estrutura do Todo. Esse mergulho no logos seria, na verdade, um empenho na própria atividade do pensamento, que, por sua vez, podemos descrever como a radicalização da própria experiência da linguagem, mas da “linguagem das palavras”, digamos assim. Talvez até esta expressão, “linguagem das palavras”, seja imprecisa, uma vez que o mito também se constrói por uma “linguagem das palavras”. Mas o que estamos querendo expressar com ela é o fato de o nascimento da filosofia representar uma crença, ou uma aposta numa relativa independência e, sobretudo, numa superioridade desse processo que designamos como logos . Passa-se a acreditar então que a “linguagem das palavras”, o logos , tem em si mesma uma estrutura e uma dinâmica de processo que ao mesmo tempo acolheria e governaria a realidade, o cosmos, o Todo. Alguns talvez preferissem dizer que o que aconteceu foi a passagem do logos mítico para o logos noético , e que a própria compreensão de logos como uma totalidade em processo implicasse também, para alguns filósofos, a experiência dos seres materiais e das imagens. Mas não dá para negar que, já dentro da própria evolução da história da filosofia, o papel central que o conceito de logos vai ocupando significa a decisão por uma predominância, e por uma superioridade moral da operação reflexiva e argumentativa sobre as imagens e a dramaticidade. Além disso, há uma diferença decisiva no modo como a palavra pode ser usada para uma narração – para contar uma história – e como é usada na construção de uma argumentação, sobretudo se esta tiver a característica de uma argumentação filosófica em sua concepção hegemônica, qual seja, aquela que compreende que algumas palavras, elevadas à categoria e ao status de “conceito”, seriam capazes de designar o que seria a própria essência do real. Mas lembremos, no entanto, que para Deleuze o conceito deve designar o acontecimento. E lembremos ainda, finalmente, que não só a própria filosofia é responsável por engendrar diversas mitificações, como

alguns filósofos souberam perceber, mas também que os mitos em suas expressões imagéticas e dramáticas continuaram tendo um papel decisivo na constituição dos diversos regimes de verdade. Digamos então que o logos é onde o pensamento trabalha através do caminho da linguagem das palavras, ou onde o caminho do pensamento é o próprio processo de ordenamento e revelação da essência do real à medida que radicalizamos aquilo que guarda e estrutura esta essência: o processo da linguagem propriamente dito. É a partir deste raciocínio que os gregos passam a acreditar que o logos é, de uma só vez, o escopo e o lugar de revelação da realidade. Nesta compreensão, mesmo que a revelação da essência seja impossível – como, por exemplo, Heráclito ou Górgias sugeriram entre os gregos –, a impossibilidade de encontrá-la será, pelos caminhos do próprio logos , demonstrada. O filósofo tcheco Vilém Flusser, por exemplo, articula o surgimento da escrita – e portanto de uma maneira fundamental de como o logos se expressa – com o de uma “consciência dirigida contra as imagens”. ²² A função da escrita seria para Flusser a de transcodificar o tempo circular das imagens em tempo linear: “traduzir as cenas em processos”. Ele identifica aí o surgimento da “consciência histórica” que inicia uma luta contra o que ele chama de “consciência mágica”, luta que vai caracterizar toda a história humana. Flusser localiza a origem desse processo nos profetas judeus e nos filósofos pré-socráticos. E é exatamente por ele fazer esta articulação com os pré-socráticos que achamos que podemos aproximar o surgimento da escrita, e do valor que a filosofia dá ao logos de forma geral, ao movimento que tenta “lutar contra as imagens”. Trata-se, portanto, de um movimento que acredita que vai se aproximar da essência da realidade na medida em que poderá traduzir e submeter essas imagens a um processo. A crítica que muitos filósofos dirigiam aos mitos não deixa de ser parte disso. Mas é verdade que Flusser mesmo vai dizer que o movimento de se aproximar mais do real através da escrita, na verdade acabou por produzir um afastamento ainda maior desse real. A escrita, exatamente por ser imagem transcodificada, estaria mais aquém do mundo que a própria imagem. Ela estaria num lugar ainda mais abstrato que o próprio pensamento imaginativo. Assim, o que era para travar uma “luta contra as imagens” acabou, segundo Flusser, por instituir uma relação dialética com as imagens: a escrita nunca deixa de se referir às imagens, da mesma maneira que as imagens estão sempre a engendrar sentidos no campo do logos . Essas reflexões de Flusser nos interessam para vermos como nos primórdios da filosofia o que temos é um projeto de rejeição da imagem. E, além disso, o que o filósofo tcheco está nos mostrando são os primórdios da própria relação do Ocidente com o tempo, posto que está se forjando aí uma noção de processo histórico. É verdade que para Flusser esse projeto dá sinais desde o início, exatamente pelo que ele chama de uma relação dialética existente entre escrita e imagem, de que está destinado ao fracasso. Em todo caso, não resta dúvida de que existe a forte intenção dessa rejeição, e que esta assume um tom moral.

Por isso, um estudo de filosofia sobre cinema só será possível se partirmos de filósofos que superaram esta condenação moral da imagem e, mais ainda, “condenaram esta condenação” compreendendo-a como prejudicial ao próprio pensamento: um esvaziamento de suas potências e possibilidades. Poderíamos dizer então que é por isso que um estudo do cinema pela filosofia é possível a partir de um filósofo como Deleuze, uma vez que ele compreende o virtual como uma potência do ser. Evidentemente, como veremos em detalhes, este estudo será possível também a partir de Bergson, particularmente de um Bergson lido, interpretado e repotencializado por Deleuze. Mas é antes Friedrich Nietzsche que está por traz de uma virada histórica na filosofia, exatamente à medida que denuncia o moralismo que está em seu nascedouro: o moralismo que condena o corpo, a imagem e o falso. Será então a partir de Nietzsche que Deleuze verá o cinema descobrindo a potência do falso, conceito que o filósofo francês articula com a Vontade de Potência, que é, por sua vez, um conceito central da filosofia de Nietzsche. E aqui está o primeiro grande motivo da importância de Nietzsche neste nosso texto, assim como a importância de Nietzsche em toda a obra de Deleuze sobre cinema. É o pensamento de Nietzsche que está por traz da virada que Deleuze vê no cinema, qual seja, a passagem da imagem-movimento para a imagem-tempo – do cinema “clássico” para o cinema “moderno” – que vem a ser, respectivamente, o assunto do primeiro e do segundo livro de Deleuze sobre cinema. É como se o cinema tivesse feito nesta passagem uma espécie de “descoberta nietzschiana”, como Deleuze mesmo afirma. Esse moralismo, então, que estaria no nascedouro da filosofia, é que seria o responsável pelo processo de condenação do corpo, da imagem e da ilusão. Ele seria então o grande responsável por um processo que Nietzsche vai designar com expressões como “decadência” , “esgotamento” ²³ e “envelhecimento” ²⁴ da civilização, e que, na verdade, é já uma tipificação do que ele vai denominar “ niilismo”, ou, em alguns momentos, “niilismo europeu”. ²⁵ Trata-se de um moralismo que teria tido a sua origem exatamente em Sócrates e Platão. ²⁶ E aquilo que caracterizaria esse moralismo é, fundamentalmente, o que acabamos de ver acima: um empenho em impor uma ordem, em submeter a um processo causal o que a aparição da imagem tem de surpreendente. A imagem se esvazia como uma ruptura instauradora de realidade, como um acontecimento. Esses dois filósofos gregos – “antigregos” como diria Nietzsche – teriam caracterizado de uma maneira decisiva a atividade filosófica a partir de uma condenação, em primeiro lugar, da experiência dos sentidos. A sensualidade seria a grande vilã, a grande inimiga do pensamento: a grande causa do engano, do erro, da ilusão. ²⁷ E é justamente nessa condenação moral de toda a experiência sensível – a rigor, uma desvalorização do corpo – que se produz, segundo Nietzsche, uma condenação e uma desvalorização moral tão grave quanto a condenação moral da ilusão, da aparência e, consequentemente, das imagens. Se considerarmos, por exemplo, o lugar que a imagem ocupava em Platão, veremos que esta sequer tem o que poderíamos chamar de uma consistência ontológica; em outros termos, a imagem é para esse filósofo grego a expressão de um “menos ser”, experiência de realidade bastante distante de sua plenitude, e que por isso deve ser vista também como uma ilusão e, em

especial, como algo contra o qual devemos manter severas reservas morais. Na divisão hierárquica do real feita por Platão, a imagem ocupa o mais baixo dos patamares, aparecendo como cópia dos corpos, dos objetos que vemos no mundo sensível. Corpos e objetos que, por sua vez, existem já como cópia daquilo que tem as suas essências no mundo inteligível: a dimensão das Ideias, que só poderíamos alcançar pelo processo do logos . Assim, para Platão, antes da imagem, o próprio corpo, que nos dá a percepção das imagens, já é uma instância enganosa e falsificadora por si mesma. É verdade que os corpos e objetos percebidos em si mesmos estariam mais próximos da essência, da “Ideia”, do que as imagens e reflexos que os reproduziriam. Em todas as formas das manifestações de realidade existentes, as imagens seriam, para Platão, as mais “esvaziadas de ser”: as imagens seriam a maior expressão de um “menos-ser” que poderia existir. E usamos a expressão “menos-ser” porque o não-ser num sentido absoluto não existe para este filósofo. O não-ser só existe como um erro da relação, por exemplo, no equívoco da identificação de uma imagem, ou de um objeto, com um modelo ou ideia dos quais estes foram apontados como cópias. A maior expressão do menos-ser em Platão, portanto, seria a de uma imagem identificada erroneamente com um determinado objeto, isto é, uma imagem que parece ser o que ela não é: o fantasma . Antes do fantasma , no entanto, seguindo nossa escala decrescente do menos-ser ao ser – da cópia à Ideia –, encontraremos os eikones . ²⁸ Estes são as imagens propriamente ditas, quer dizer, os reflexos e cópias de objetos e corpos que são corretamente identificados com estes modelos. É por isso que a imagem, na hierarquia platônica, está ainda mais aquém que o corpo: ela é a cópia do corpo que, por sua vez, é a cópia da “Ideia”. A imagem é, portanto, tão distante da essência, do Ser, que para Platão ela é uma espécie de “cópia da cópia”. E o termo que o filósofo usa aqui para definir imagem é eidolon , que, neste caso, se refere tanto aos fantasmas quanto aos eikones . Quer dizer, mesmo representando já um “menos ser” em relação à ideia que é a essência, do ponto de vista de uma relação com a imagem o corpo tem um “mais ser” – mas jamais um “ser pleno”.

E isso nos indica também que os próprios corpos e objetos são, de certa maneira, imagens de algo, posto que são cópias de um modelo inteligível: as Ideias. Com isso, o caminho até a verdade, até a essência, e portanto o caminho até a Ideia, passa necessariamente pela superação de toda a experiência que temos através das sensações, isto é, daquilo que percebemos apenas através da sensibilidade, do corpo. O que acomete a sensibilidade é, em si mesmo, enganoso para Platão; embora, exatamente pela não existência de um “não-ser absoluto” represente o primeiro vestígio, a primeira pista que temos da essência: aquilo que deve ser submetido ao método, ao processo dialético. E esse processo é, por sua vez, a maneira como Platão sistematiza com rigor a imersão no logos como busca da revelação da essência, o que já estava no projeto da filosofia desde o início. O que o método dialético de Platão vai fazer então é, de certa maneira, o que descreve Flusser: “rasgar a imagem”, submetendo-a a um processo que nos conduz à Ideia. É esta que fundamenta a imagem, mas a imagem é apenas uma distante imitação, um vestígio da Ideia. É nessa lógica que o movimento se explica para Platão como algo que existe em função desses pontos de referência perfeitos, desses modelos que o mundo sensível almeja: as Ideias cuja perfeição estão sempre sendo buscadas (desejadas), e em virtude das quais se moveriam os seres sensíveis e aparentes. Para a concepção hegemônica de filosofia antiga, o movimento existiria então com vistas a “instantes privilegiados”, como define Deleuze; o que vale também para Aristóteles que, apesar das críticas fundamentais que fez à Teoria das Ideias de Platão, vê um mundo que se move visando à perfeição divina, numa ordem hierárquica de finalidades – teleológica – que nos levaria até Deus, que assumiria, neste caso de maneira semelhante à Ideia platônica, o lugar de um paradigma privilegiado em função do qual existe o movimento. Para Platão, o trabalho do filósofo é uma espécie de luta contra o corpo. A atividade da razão é “razão contra o corpo” ou, no mínimo, razão que deve submeter e superar as experiências que temos graças ao corpo. Estas seriam sempre ilusórias, falsas, posto que passageiras, móveis. Já a verdade e as essências das quais nos aproximaríamos através do logos deveriam ser eternas, imóveis. Seguindo este raciocínio, mesmo que exista uma diferença hierárquica, nesta lógica do menos-ser ao Ser, entre imagem e corpo, ambos parecem ser legados a um lugar moralmente inferior exatamente por serem da ordem do ilusório, do falso. O que nos conduz à conclusão de Nietzsche, qual seja, que a condenação moral do corpo leva consigo a condenação moral da falsidade e da ilusão, e também a condenação moral da imagem. Por isso, a julgar pelos primeiros tempos da filosofia, uma reflexão sobre este autômato da imagem em movimento – o cinema – não poderia ter nada de positivo: o cinema não teria nada a contribuir para a filosofia. De fato, como uma máquina produtora de imagens, ilusões, sensações e movimento, poderia contribuir para uma atividade que a princípio, e genericamente, deveria buscar a verdade, a essência do Todo como algo que se opõe a tudo isso? Mas há ainda outra coisa que nos chama a atenção nessa condenação moral do corpo, da ilusão e da imagem. Num certo sentido, ela é motivada por aquilo mesmo que também move Nietzsche ao falar do niilismo, do

enfraquecimento e da senilidade do Ocidente, ou seja, lutar contra algo que ameaça o pensamento como uma espécie de força antifilosófica. Desde sempre a filosofia sentiu a necessidade de se contrapor a forças que, a partir do próprio pensamento, agiam para enfraquecê-lo. Esta luta que a filosofia tantas vezes travou é uma das principais forças fundadoras e propulsoras dela. O que nos parece paradoxal é que, a partir das reflexões de Nietzsche, foi exatamente a maneira como a filosofia diagnosticou e decidiu combater a impotência – o impoder ²⁹ – do pensamento, que veio se tornar o próprio agente desta impotência, ou seja, que se tornou um agente do niilismo. Sócrates, por exemplo, travava contra os sofistas e a sofística um combate que se confundia com sua própria ação filosófica e com a sua vida. E Sócrates trava esse combate porque, à sua maneira, via na sofística uma força inimiga da filosofia e do pensamento. E talvez estes tenham sido tão combatidos exatamente porque descobriram a força ilusória, o poder falsificador do logos : o que mais tarde identificaremos e elucidaremos aqui como sendo a potência do falso. Mas talvez Sócrates tenha visto nos sofistas uma ameaça porque eles descobriram, naquilo que deveria existir para nos organizar – num processo que nos conduziria a uma essência, ou seja, no logos –, também uma instância criadora de ilusões e aparências. De fato, para os sofistas o conhecimento e a prática do logos funcionavam como uma atividade criadora de realidade na medida em que tinham um poder ilusionista capaz de, à semelhança do mito, produzir efeitos estéticos e plásticos. O homem virtuoso era o que desenvolvia esta capacidade, isto é, tanto mais virtuoso seria quanto mais dominasse a força criadora e persuasiva do discurso. Assim, a paideia – a educação para a vida política na polis –, na concepção sofística, deveria ser fundamentalmente o aprendizado desses poderes do logos . É por isso que Foucault vai afirmar que os sofistas compreenderam de forma única entre os gregos a articulação existente entre saber e poder: ³⁰ é o que estaria subentendido, por exemplo, na famosa máxima do sofista – do filósofo! – Protágoras quando este afirma que o homem é a medida de todas as coisas. Essa condenação moral da falsidade está de certa maneira presente nas análises que Virilio faz das “transformações das formas de percepção” que são trazidas pelo cinema. Vimos também que esta é uma citação que Virilio faz do que Benjamin escreveu em “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica” quando este diz que as “formas de percepção das coletividades humanas” se transformam ao mesmo tempo que seus modos de existência. ³¹ Assim, para Benjamin – e isso vai marcar fundamentalmente o trabalho de Virilio – a própria experiência perceptiva do real já é, ou já pode ser, em si mesma ideológica. É por isso que as descrições e reflexões sobre esse processo de virtualização e desmaterialização da experiência da realidade, onde está o cinema, têm em Virilio um tom de denúncia de mecanismos que seriam ideológicos exatamente por serem falsificadores da realidade. Como sabemos, é através do conceito de ideologia que Marx denuncia uma falsificação do pensamento. A ideologia é o que mascara, o que obscurece a consciência, mantendo o homem numa condição de menos ser. Isso acontece porque ele é convencido de falsos princípios – e de uma falsa concepção de realidade –

que acabam sendo tomados por essenciais, sagrados e/ou naturais. E, para Marx, as falsificações representadas pela ideologia são sempre construídas no processo de afirmação e estabilização de determinada força social. Aí vemos um dos tantos pioneirismos de Marx para o pensamento, qual seja, o de fazer uma articulação entre pensamento e poder. Marx faz uma articulação entre o que se apresenta como pensamento, mas acaba sendo uma força que o paralisa, posto que na prática intimida sua força poiética , esvaziando sua capacidade produtiva , uma vez que o submete a um determinado sistema produtivo vigente. Foi o que vimos quando Virilio descreveu o nascimento do cinema como um desdobramento tecnológico dos aparelhos e dispositivos de guerra dos Estados Nacionais do capitalismo. Virilio chega a ver o cinema como parte indispensável desses aparelhos, uma vez que é um instrumento de estímulo psicológico e sensório-motor da guerra. Sabemos que Marx denuncia, por exemplo, que a religião é uma ideologia. Mas identificar a religião como uma força anticientífica e antifilosófica, criadora de sistemas de reificação, idolatria e mistificação que intimidam e paralisam a capacidade racional dos homens, não chega a ser uma novidade no século XIX. Alguns iluministas já o faziam cem anos antes. Um dos grandes pioneirismos de Marx está no fato de ele ter descoberto a ideologia grassando no coração da própria ciência e da filosofia. É o que ele faz, por exemplo, nas suas famosas críticas aos economistas ingleses. A impressão que temos aí, então, é que, ao identificar o problema da ideologia, Marx age, de certa maneira, socraticamente. O que há de mais importante nesta sua reflexão é uma denúncia de uma falsificação que se produz exatamente por aqueles que são socialmente reconhecidos como os virtuosos detentores do conhecimento: os cientistas e os filósofos. Há aí, portanto, uma semelhança com a discussão que Sócrates trava com os sofistas: estes não estariam comprometidos com a verdade, visto que vendiam o conhecimento; estariam sim irremediavelmente comprometidos com quem os contratava. Sócrates detectava uma articulação entre saber e poder nesses sábios gregos, mas o fazia à medida que a denunciava e condenava. É verdade que existe aí também uma diferença importante, ou seja, os sofistas talvez não estivessem comprometidos com a verdade no sentido de uma essência para além da vida, que fundamentaria e governaria esta, porque não acreditavam que esta existisse e/ou devesse ser buscada. Neste sentido, o homem sábio e virtuoso seria para eles o que buscaria saber dominar e utilizar a potência persuasiva, ilusória e criadora do logos . Já o que Marx denuncia através do conceito de ideologia são supostos saberes, discursos, estéticas, enfim, toda uma produção que estaria articulada com o que chamava de “superestrutura” e que seria a expressão de uma base econômica, de uma infraestrutura, constituída por uma determinada forma de organização produtiva e as estruturas de poder que se constituíam a partir desta. Concluímos então que, a exemplo de Sócrates, Marx também é um filósofo preocupado, à sua maneira, em combater a impotência do pensamento, e o faz à medida que também detecta a falsidade como a sua grande agente. É

verdade que corpo e matéria ganham no pensamento de Marx um estatuto ontológico que jamais tiveram em nenhum outro filósofo da tradição racionalista. É verdade também que, quando Marx coloca o conceito de “trabalho” no centro de seu pensamento, está afirmando uma dimensão autopoiética do ser em oposição à metafísica e, para usar um modo deleuziano de explicar, em oposição à “filosofia da transcendência”. Mas a descrição que triunfa majoritariamente no marxismo toma a distinção entre verdade e falsidade como fundamental. E isso acontece não só na interpretação do conceito de ideologia, como também na interpretação do que Marx designa como o “fetichismo da mercadoria”, que descamba facilmente para uma condenação ao culto da imagem à maneira do falso testamento hebreu. E aqui não é exatamente em Nietzsche, mas num filósofo que pensa a partir de Nietzsche, que encontramos uma importante crítica ao conceito de ideologia em Marx: Michel Foucault. O pensador francês vê na noção marxista de ideologia “resquícios de metafísica” exatamente porque ela se constrói a partir da ideia de que a história seria movida por leis “universais”. ³² É como se a ideologia fosse para Marx – e sobretudo para os marxistas – a expressão de uma “consciência roubada” pelo poder. Seguindo este raciocínio, o papel da filosofia seria o de restituir esta consciência ou, para ser mais hegeliano, recolocar o homem no caminho da experiência da consciência que leva à autoconsciência. Existe em Marx uma situação limite em que a experiência material da realidade impulsiona os homens para a destruição da ideologia. Esta não deixa de ser uma experiência sensível, que acomete o corpo dos homens, e é a partir dela que a razão efetiva historicamente o avanço da consciência. O que vemos aí, sem dúvida, é o valor do corpo no pensamento de Marx, mas também encontramos, potencialmente, algo que num certo marxismo vigente é interpretado como uma espécie de “lei universal” que moveria a evolução progressista da história em direção à conquista plena da racionalidade: a luta da consciência contra a ideologia. Esta seria a maneira como os homens, segundo Marx, deveriam travar a luta da verdade contra a falsidade. É exatamente nesta “lei universal” que moveria a história que Foucault percebe criticamente um Marx “metafísico” . Neste momento, Marx afirma um valor transcendente, uma lei que, de um lugar estático para além da vida e da história, determinaria todos os seus movimentos. Esta seria, então, a maneira como se expressa em Marx a crença na razão, isto é, a crença e a busca de um princípio para além da vida que deveria fundamentar, justificar e ser a grande aspiração da vida: exatamente o que para Nietzsche é, ao mesmo tempo, uma origem e um sintoma do processo de niilismo. Assim, ainda que todo o tipo de “universal”, tanto em Hegel quanto em Marx, só se manifeste à medida que se efetiva no movimento da razão na história, a rigor, esse movimento, esse processo, visa a um grande fim racional; como o comunismo ateu no caso de Marx. É isso que faz Foucault denunciar também um “positivismo” ³³ no marxismo. Positivismo que é, como sabemos, uma das maiores expressões da “racionalidade a qualquer preço...”, do niilismo denunciado por Nietzsche, e está, como nos ensinou Virilio, nas origens do cinema.

É exatamente quando Foucault nos explica o que no pensamento de Marx o interessa, que podemos aprender como, nietzschianamente, ele constrói um trabalho filosófico que já não tem mais como pressuposto a polarização verdade x falsidade. Ele nos diz no seu Microfísica do Poder que o materialismo histórico de Marx é usado por ele à medida que descreve como as transformações econômicas e sociais operam uma transformação do corpo do trabalhador. É o que, por exemplo, Marx descreve no trecho do Capital denominado “ A Maquinaria e a Grande Indústria”, quando fala que o operário deve “adaptar-se ao movimento contínuo de um autômato” ³⁴ , ou a “ transformação do operário em acessório autoconsciente da máquina”. Foucault, tantas vezes crítico de Marx – e sobretudo dos marxistas –, parece operar aí, à sua maneira, uma radicalização do materialismo marxista. É como se ele quisesse levar o materialismo mais além do que o próprio Marx foi. ³⁵ O que se instaura para Foucault, à medida que as condições materiais da vida do homem se transformam, não é uma ideologia – um pensamento falso – que se apropriaria da consciência – um pensamento verdadeiro. O que aí se constrói é o que Foucault preferia chamar de um “ regime de verdade”. ³⁶ Não se trata de mudar o que está na consciência dos homens, substituindo a ilusão por verdade, mas de desconstruir os processos pelo qual a própria verdade se constitui. E a verdade se constitui, como nos ensina Nietzsche, como uma falsidade, uma ilusão que ganha estatuto de verdade à medida que passa pelo crivo da história. Vimos que Foucault nos mostra como encontrou, em todo o processo de busca e constituição da verdade do Ocidente moderno, procedimentos e objetivos muito semelhantes aos da velha magia, ³⁷ ou seja, a procura do acontecimento da verdade, do evento verdadeiro, e não apenas a procura da verdade como uma argumentação empreendida no âmbito do logos . Essa busca do evento da verdade, da prova empírica desta, é o que encontramos nos laboratórios dos cientistas, mas também nos procedimentos do Estado nos tribunais. O cinema nasceu como um exemplo dessa “mágica” que, obviamente, não era vista como tal, na medida em que o dispositivo não era exaltado como capaz de uma “mágica”, mas da apresentação empírica da verdade propriamente dita. Por outro lado, era de certa forma como um espetáculo de mágica que o cinema dos primeiros anos aparecia como atração nos parques de diversões, circos e vaudevilles: aplaudiam-se a máquina e a invenção técnica, mais importantes talvez do que o próprio filme . Na última sequência de O Enigma de Kaspar Hauser , de Werner Herzog, por exemplo, vemos a ciência e o Estado juntos na autópsia que os médicos legistas – cientistas da lei – empreendem no corpo do herói. Aí eles dizem falaciosamente identificar uma suposta anomalia no cérebro de Kaspar que, por sua vez, é enunciada como uma conveniente e celebrada prova empírica da anormalidade, da desrazão dos pensamentos e atos do herói em vida. É também para o acontecimento da verdade, mais precisamente para os enunciados criados a partir das visibilidades das divisões do espaço urbano, que Foucault nos chama a atenção ao analisar as grandes transformações urbanas dos séculos XVIII e XIX. O que aí se enuncia – o que a divisão urbana faz ver: “fala” – são os limites entre a razão e a desrazão, que são

administrados por estas divisões mesmo, os espaços destinados a uns e a outros, numa operação para a qual é importante o trabalho tanto da arquitetura quanto da medicina. De um lado, a cidade saneada, a pequena burguesia “educada”, a arquitetura ajudando a racionalizar a produção, enfim, a ação do Estado efetivando, mostrando e delimitando o lugar da razão. Do outro, a visão, o mostrar-se da desrazão, também na delimitação de seu espaço: o hospício, o hospital, o gueto, a prisão, a loucura, a doença e a marginalidade. ³⁸ Acreditamos que Foucault faz aí algo que o aproxima de Benjamin e de Virilio, descrevendo a transformação das “formas de percepção coletiva”, mesmo que Foucault seja um crítico por vezes duro da Escola de Frankfurt. Essas transformações são as da experiência sensório-motora – da experiência perceptiva – do real; da própria concepção do real que se altera à medida que o espaço em que os homens vivem é redefinido. O que aí se transforma são também as imagens que estes homens percebem, veem, e os enunciados produzidos por tais imagens. Neste sentido, a própria arquitetura parece exercer também para ele, como para Benjamin e Virilio, a função de gerar uma “percepção coletiva” do real, embora Foucault não use tal expressão. Para Benjamin e Virilio essa função da arquitetura vai passar a ser exercida pelo próprio cinema. É curioso porque o próprio Marx – o Marx que vimos interessar em especial a Foucault – fala em “adaptar-se ao movimento contínuo do autômato”, como expressão da sujeição do operário ao maquinário da indústria. Mas “autômato do movimento” é também a forma como Deleuze define o cinema; um autômato que na sua dimensão liberadora, como acreditaram alguns cineastas clássicos, provocaria, através de uma espécie de choque sensorial, o funcionamento do “autômato espiritual” que nos constituiria. Deleuze se encontra com Virilio, no entanto, quando concorda que em determinado momento o autômato do movimento teria virado um grande instrumento de sujeição social. É como se Virilio tivesse percebido que os corpos sujeitos ao “movimento contínuo dos autômatos” estivessem agora não apenas na linha de montagem da indústria, como descreveu Marx, mas também nas salas de cinema. Mas Deleuze jamais poderia compreender o cinema apenas desta maneira, o que seria contraditório com o gesto de escrever dois grandes livros em que é a imagem cinematográfica que aparece como uma potência do pensamento. Mas há de fato uma relação importante a ser analisada entre cinema e impotência – “impoder” – do pensamento, conforme Deleuze nos dá claramente a entender. Esta relação passa pela questão do clichê e do autômato, sem que sejam necessariamente distintas. E, é claro, esta impotência é muito mais do que uma incapacidade para se fazer filosofia ou para se dedicar às atividades intelectuais em geral, antes é uma impotência que atravessa todas as possibilidades produtivas através das quais a vida se mantém e se reinventa. Essa é, na verdade, a questão política e a questão ética que atravessa toda a filosofia de Deleuze: a de compreender a criação como a condição de realidade da liberdade, identificando e potencializando as forças que atuam nesse sentido, ao mesmo tempo em que identifica e desmonta os poderes constituídos que, como contra-forças da vida, tentam afastá-la de se assumir completamente na sua dimensão autoinventiva.

Personagens automatizados ou forças automatizantes não deixam de ser temas do cinema e, em especial, como nos chama a atenção Deleuze, do expressionismo alemão. Já pouco antes, no primeiro filme alemão importante, o “pré-expressionista” O Estudante de Praga , de Stellan Rye, o espectro do estudante (a imagem duplicada no espelho) vira um personagem autômato e torna-se o vilão do filme. Este é, para muitos, o primeiro filme onde cinema fala de cinema, posto que o vilão nada mais é que uma imagem que passa a mover-se por si só. Curioso exatamente que seja um “vilão”, que esse personifique o mal, estabelecendo o que vai se repetir em quase todos os filmes do expressionismo: das sombras, da escuridão, sempre aparecem personagens hipnotizadores, falsários, ilusionistas, cientistas sinistros que clonam figuras humanas, e clones que são eles mesmos malfeitores. A primeira impressão que nos passa, e que não é falsa, é que o cinema expressionista alemão parece tomado de uma espécie de “platonismo”, insistindo sempre em condenar moralmente a imagem, o falso e o simulacro. Paradoxalmente, é como se o cinema condenasse moralmente o próprio cinema, o que é mais um exemplo do racionalismo do cinema clássico. Mas o mais importante é a maneira quase visionária como os diretores expressionistas anteveem, ainda que inconscientemente, que algo sinistro se prepara obscuramente, maturando-se nos subterrâneos da Alemanha. Por isso talvez existam para Deleuze tantos personagens hipnotizadores, falsários e ilusionistas no expressionismo alemão. É como se o cinema mesmo estivesse percebendo que, no lugar das massas emancipadas pelo autômato do movimento que potencializaria o autômato do pensamento, como sonhou Eisenstein, ele estaria se transformando num grande instrumento hipnotizador das massas, como vai acontecer no nazifascismo, e também de certa forma em Hollywood. E no centro desse movimento estava o grande personagem, inclusive cinematográfico, do Hitler hipnotizador das massas. Não se trata aqui de condenar o que seria a “estetização da política”, como entendeu a Escola de Frankfurt, mas de travar a luta política na dimensão estética que sempre a constitui. Ou, como diz a citação do cineasta alemão Hans-Jürgen Syberberg, autor do belíssimo e controverso filme Hitler, um filme da Alemanha : “derrotar cinematograficamente o Hitler cineasta”. E aqui, voltando a Nietzsche, o grande agente da impotência do pensamento não seria a falsidade, e sim a condenação moral da falsidade. É esta que paralisaria o pensamento na medida em que paralisaria os nossos corpos. Na verdade, Nietzsche, quando se empenha no combate ao niilismo, age como um bom e velho filósofo combatendo algo que estaria impedindo os homens de pensar. Trata-se da denúncia de uma força não apenas antifilosófica, mas de uma contraforça do pensamento de forma geral. Neste sentido, Deleuze é um nietzschiano, mesmo que seja profundamente redutor defini-lo desta maneira. Antes de Deleuze, é em Nietzsche que o pensamento é compreendido como parte de uma força autopoiética pela qual a vida não só se mantém, como também se expande e se reinventa. É esta característica que faz Deleuze colocar Nietzsche como figura central do que ele chama de “linhagem” da filosofia da imanência: a filosofia de Nietzsche como uma força poderosa contra tudo o que na filosofia afirma a transcendência, isto é, que afirma a existência de algo fora da vida que a principia e dirige.

No caso do livro sobre cinema, é o imanentismo de Nietzsche e a compreensão da dimensão autopoiética do Ser que permite a primeira entre tantas aproximações com Bergson que vamos fazer, posto que Bergson vai propor como uma questão central da filosofia a pergunta sobre “como é possível a criação do novo”. Assim, Bergson, que não está nas primeiras relações de filósofos da imanência que Deleuze faz, vai se tornar – pela maneira como compreende o funcionamento do universo e o surgimento da vida no coração deste – um filósofo central para a compreensão do que Deleuze define e descreve como um “plano de imanência”. É Bergson também que vai fazer implicitamente Deleuze perceber que o cinema sempre esteve, potencialmente, como uma possibilidade inventiva no coração desse plano de imanência mesmo. Quanto a Nietzsche, por mais paradoxal que possa parecer, temos a impressão de descobrir nele uma dimensão socrática: o filósofo como um médico dos homens e da civilização. De fato, Nietzsche diagnostica, como Sócrates na época da sofística, uma doença. Mas esta doença não seria o apreço dos homens pelas coisas materiais, nem a proliferação da mentira e da falsidade, como o grego detectara na sofística, e sim o niilismo. E, como vimos, para Nietzsche a origem do niilismo está exatamente nesse movimento socrático de condenar moralmente tudo o que experimentamos através do corpo, isto é, através da experiência dos sentidos: o movimento que levaria consigo a condenação moral da falsidade. É aí que está a grande diferença entre Nietzsche e Sócrates. É como se, para o alemão, o filósofo que deve detectar doenças e propor curas para os homens não devesse ser, como propunha o grego, um médico de almas, e sim um médico de corpos. Bergsonianamente falando, veremos que este será também, de certa forma, um médico de imagens, o que grandes cineastas e grandes filmes buscaram ser à medida que quebraram clichês e restituíram à imagem seu poder instaurador de realidade. A imagem, portanto, experimentada como uma potência do pensamento. 22 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 9. 23 NIETZSCHE, Friedrich. Der Wille zur Macht. Munchen-Wien: Carl Hansen Verlag, 1980, anotações 43 e 44. 24 NIETZSCHE, Friedrich. “Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida”. In: Considerações Intempestivas . Lisboa: Presença, p. 143. 25 NIETZSCHE, Friedrich. Der Wille zur Macht. Munchen-Wien: Carl Hansen Verlag, 1980, anotações 1 e 2. 26 NIETZSCHE, Friedrich. Le Crépuscule des Idoles. Paris, 1904, p. 117. “Eu reconheci em Sócrates e Platão os sintomas da decadência, os instrumentos da decomposição grega, os pseudogregos, os antigregos.” 27 Ibidem, p. 126. “Moral: se livrar das ilusões dos sentidos...” 28 PLATÃO. A República . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, livro VI.

29 I. T., p. 218. Deleuze usa tanto o termo “impouvoir” quanto “impuissance”, para falar do impoder, da impotência do pensamento. Os dois conceitos aparecem num contexto em que está sendo articulado o projeto que Artaud tinha para o cinema com o pensamento de Heidegger. Como veremos mais detalhadamente no final do livro, Deleuze nos mostra que tanto Artaud quanto Heidegger veem que deste “impoder” do pensamento podemos extrair uma potência; ou talvez que seja exatamente daí que ele extraia a sua potência: que ele tenha o seu nascimento. Isso sem dúvida os liga a Nietzsche e ao “niilismo”, pois para este filósofo a superação do niilismo passa necessariamente pela radicalização da própria experiência existencial deste. Mas a verdade é que usamos assumidamente tais termos – “impoder”, “impotência” – num sentido mais genérico que Deleuze, posto que supomos que, de certa maneira, muitas vezes a filosofia teve que se deparar com esta questão, qual seja, a de enfrentar as forças da impotência – do “impoder” – do pensamento, as forças que ela percebia agir contra a própria atividade filosófica, mesmo que, segundo Nietzsche, ao tentar combatê-las, a filosofia possa tê-las fortalecido. 30 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas . Rio de Janeiro: NAU Editora, 2001, p. 140. 31 BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”. In: Magia e Técnica, Arte e Política , op. cit., p. 169. 32 FOUCAULT, Michel. “Verdade e Poder”. In: Microfísica do Poder . Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 10. 33 Ibidem, p. 2. 34 MARX, Karl. “A Maquinaria e a Grande Indústria”. In: O Capital . São Paulo: Abril Cultural, 1983, cap. XIII. 35 FOUCAULT, Michel. “Poder-Corpo”. In: Microfísica do Poder , op. cit., p. 148. 36 Idem, “Verdade e Poder”, p. 12. 37 Idem, “A Casa dos Loucos”, p. 114. 38 Idem, “Sobre a Prisão”, p. 129. Estas reflexões de Foucault serão muito importantes para nós quando analisarmos o filme expressionista O Vampiro de Düsseldorf , de Fritz Lang. 3. Bergson O universo como metacinema Já no primeiro capítulo do livro A Imagem-Movimento , dos quatro que dedica ao pensamento de Henri Bergson nos seus dois livros sobre cinema, Deleuze nos chama a atenção para o fato de que devemos, em primeiro lugar, ver Bergson diante de um impasse. Um impasse que era o da filosofia e da psicologia no século XIX e que, além de Bergson, foi pouco antes

enfrentado por Nietzsche e, de maneiras distintas, também pela fenomenologia e pela psicanálise. O que tínhamos até então era o hábito de articular o movimento dos corpos com o espaço e as imagens com a consciência. As imagens seriam a representação na consciência dos corpos, dos objetos, percebidos em seus movimentos no espaço. De um lado, no espaço, estaria a extensão; de outro, aquilo que a percepção do objeto extenso produziria no espírito, isto é, a imagem como algo absolutamente inextenso. Deleuze resume numa questão o impasse que Bergson tenta resolver com a sua filosofia: como poderíamos explicar, de um lado, a transformação do corpo extenso na representação, isto é, nessa imagem inextensa? Como poderíamos explicar, de outra parte, o fato de a representação produzir no corpo um movimento voluntário que modifica a própria extensão? ³⁹ Assim, como o próprio Kant já tinha percebido bem antes, a filosofia, a psicologia, enfim, a ciência, já não podia mais continuar nesse impasse entre materialismo e idealismo procurando, de um lado ou de outro, a origem, a essência, de todo processo do real. É verdade que se Kant já havia detectado esse problema, autores posteriores a ele, como Hegel, nos mostram o quanto ele mesmo não conseguiu superá-lo. O que tanto Bergson quanto a fenomenologia percebem é que a ciência permanece, século XIX adentro, prisioneira dessa dualidade. E é preciso lembrar que ainda hoje na academia podemos encontrar os pressupostos dessa discussão. O que Bergson faz nesse contexto é, em primeiro lugar, libertar o movimento do espaço. De fato, se para Platão o movimento era algo que existia à medida que se referia e aspirava a instantes privilegiados – as Ideias que, pensadas imageticamente, seriam como poses, modelos –, para a física moderna de Galileu e Newton, o movimento é compreendido a partir de instantes quaisquer no espaço, inerentes à trajetória percorrida por um corpo. Ou seja, através de uma reta, e dos pontos que a constituem, acreditava-se poder reproduzir o movimento de um corpo. Bergson nos chama a atenção, no entanto, para o fato de confundirmos a trajetória percorrida por um corpo com o movimento deste. Para Bergson, o movimento é irreprodutível; é um equívoco tentar reproduzi-lo traçando um risco no espaço, entre tais e tais pontos estáticos, por onde um corpo teria percorrido determinada trajetória. Por exemplo: quando alguém fez determinado movimento, costumamos dizer que esta pessoa foi de tal ponto a tal ponto. Se quisermos ser mais analíticos nesta descrição poderíamos ainda dizer que esta pessoa saiu de tal ponto, passou por tais e tais pontos até que chegou a seu ponto de destino. O que tivemos aí? A descrição apenas do risco, da linha, da trajetória que esta pessoa percorreu no espaço e também dos pontos por onde ela passou. A reta, que marca a trajetória não reproduz o movimento mesmo, e os pontos, menos ainda. Os pontos são sempre a expressão de um estado estático, podem marcar o lugar por onde um corpo passou, ou por onde um corpo poderia se deter; mas acreditar que estes servem para reproduzir o movimento é absolutamente contraditório, nos avisa Bergson, posto que estaríamos usando, para expressar o movimento, algo que se define, em primeiro lugar, pela sua imobilidade. Tentar reproduzir o movimento através de pontos, de golpes (“ coups ” como diz Bergson) é cometer o erro de querer matar o

movimento para descrevê-lo. O movimento aconteceria sempre antes ou depois daquilo mesmo que usamos para representá-lo: por mais que aumentemos esses pontos indefinidamente, o movimento se dará sempre antes ou depois, e nunca neles. Assim, isto que para Zenon constituía um paradoxo é explicado por Bergson pelo simples fato de que os pontos, na verdade, são em si mesmos expressão do antimovimento, do estático. Zenon teria partido, segundo Bergson, desse pressuposto equivocado que crê que é possível reproduzir o movimento através de uma reta e de pontos, de golpes estáticos, marcados nessa reta. Por isso Bergson argumenta em importantes momentos de sua obra que os famosos paradoxos de Zenon simplesmente não existem. ⁴⁰ O mesmo aconteceria se quiséssemos medir o tempo do movimento transformando em instantes os pontos pelos quais este corpo passou. Assim, determinaríamos as horas, os minutos, os segundos, dos instantes em que este corpo passou em cada parte; ou ainda, mediríamos o tempo em horas, minutos, segundos, que o corpo demorou para cumprir tal percurso. O que teríamos aí, mais uma vez, seriam pontos estáticos no tempo, da mesma maneira que tivemos antes pontos estáticos no espaço; de novo mataríamos o movimento exatamente quando estávamos no intuito de tentar descrevê-lo e reproduzi-lo. Além disso, ao medirmos o tempo deste movimento anularíamos toda a sua particularidade, toda a sua diferença qualitativa, criando uma medida abstrata – as horas, os minutos, os segundos – que reduziria todo e qualquer movimento a um único denominador quantitativo. Esta forma de compreender o tempo, criticada ou vista como limitada por Bergson, é expressão de uma definição do tempo que vem desde a Física de Aristóteles, em que afirma-se que o tempo é um “número do movimento” e, portanto, pode ser representado através dele. Uma compreensão do tempo em que este possa ser mais do que simplesmente algo que se representa através do movimento vai ser fundamental, como veremos adiante, para Deleuze construir a sua teoria que fala de um cinema, surgido a partir da Segunda Guerra Mundial, que teria sido capaz de fazer o tempo “se insurgir contra o movimento”. Voltaremos a este assunto oportunamente. Por enquanto, é importante que tenhamos entendido esta conclusão a que Bergson chega, qual seja, que o movimento é sempre uma singularidade: os movimentos são sempre heterogêneos entre si e, portanto, representam sempre qualidades diferentes. Isto significa que, ao estarmos diante do movimento, estamos diante de uma parte da duração, e é exatamente esta parte da duração que é irreprodutível. Logo, o movimento real é para Bergson uma duração concreta. É neste contexto que Bergson vai concluir que movimento é igual à imagem. Quer dizer, a imagem é a expressão do movimento exatamente porque ela é a própria diferença qualitativa. O que Bergson está afirmando aí é que não existe o objeto que gera a imagem, nem mesmo existe um objeto que teria uma qualidade: o que há é um objeto que só pode ser percebido à medida que se move. Toda percepção é já um ato de movimento, ela só existe por causa de um movimento e à medida que provoca um movimento. O que normalmente entendemos como sendo um atributo de um objeto é na verdade o próprio objeto se movendo, vibrando e, com isso, gerando movimento, vibração, no outro objeto.

Há, portanto, uma “percepção” em Bergson que é, em primeiro lugar, a expressão da própria relação existente entre os objetos. Por enquanto, estamos falando de objetos que estão o tempo todo “se percebendo”, isto é, agindo e reagindo uns sobre os outros, ou melhor, interagindo uns com os outros. Por isso ele vai definir esta percepção como uma espécie de fotografia sem suporte, sem papel para imprimi-la, onde todas as coisas reflitam todas as coisas: tudo está sempre fotografando tudo. E nem seria exato dizer que é uma dinâmica de ação e reação, porque seria impossível determinar o que seria ação e o que seria reação. É só num segundo momento que, para Bergson, vai aparecer no universo a percepção subjetiva e consciente. Já antes de compreender esta forma de percepção, no entanto, podemos ver que a experiência de realidade é sempre, para Bergson, a de um objeto-imagem. ⁴¹ É este que estará na origem de uma percepção que será, como define Deleuze, mais do que queriam os idealistas e menos do que queriam os empiristas. ⁴² De fato, o objeto-imagem é extenso, material, mas, por outro lado, não tem nenhuma essência estática – não tem um “substrato” –, posto que só pode ser objeto à proporção que é objeto-imagem e à medida que existe o movimento que vai gerar a percepção: uns objetos indo de encontro aos outros, vibrando e produzindo vibração. Trata-se, na verdade, de um conceito que exprime algo de fundamental que Bergson traz com a sua filosofia: uma consistência ontológica para a imagem que talvez só possa ser comparada, antes, com a que tem para Nietzsche. ⁴³ Estas são posições exatamente contrárias ao lugar que a imagem ocupa no universo de Platão, onde ela é a expressão de um “menos ser”. É como se Bergson estivesse aprofundando e detalhando a “inversão do platonismo” sugerida por Nietzsche. Ao compreender a experiência do objeto material – do mundo material – como sendo, de certa maneira, a de uma imagem, Bergson coloca a imagem na própria gênese do real. Isto ficará mais claro quando examinarmos como se dá a experiência da dobra, este voltar-se para dentro que nasce a partir de um intervalo no cosmos, os “centros de indeterminação” dos quais nós somos o mais complexo de todos. Por enquanto, é importante que tenhamos percebido que o que gera movimento é, para Bergson, o que gera a própria imagem: não há nada que ilumine as coisas, as coisas são iluminadas por elas mesmas. A imagem é assim a própria expressão do movimento, e o movimento é o estado permanente no qual o universo todo sempre se encontra. Consequentemente, esse é também o próprio estado da matéria. Além disso, só há percepção à medida que existe movimento e que se gera um movimento. O que há, então, é uma total identidade entre movimento, matéria e imagem, e a percepção acontece porque existe entre as diferentes partes do universo uma espécie de diferença de energia. O universo seria como uma rede interminável, infinita, de transmissão de energia, de uma maneira que todas as partes se relacionam com todas as partes. Ou seja, estamos aqui diante de um plano de imanência de luz, numa descrição que não poderia deixar de nos lembrar de Heráclito: “ O raio conduz todas as coisas que são ”, ⁴⁴ Por isso dissemos que é como uma fotografia sem

suporte, sem papel ou película para se imprimir. Ou ainda um cosmos cinema sem tela e sem projetor em pontos determinados: todos os objetosimagens estão sempre se projetando uns sobre os outros. É por isso também que podemos falar de imagem, de luz, sem ainda falar de consciência, de olho. É como se todas as partes do universo, ou seja, tudo o que seria o objeto-imagem, fossem uma espécie de olho, ou então aquilo que o rosto é para o corpo humano, isto é, um centro de percepção, um centro de ação-reação, um centro de reflexão. Cada corpo no universo percebe o seu “em torno” como todas as suas partes. Não há, por enquanto, nenhum tipo de seleção nesta percepção. Ao falar da luz como um plano de imanência do universo, Bergson volta a quebrar um antigo dogma da filosofia, qual seja, aquele que separa a luz da matéria, da extensão, pondo-a no pensamento, no espírito e/ou na consciência. Resumindo muito, poderíamos dizer que para a filosofia, tradicionalmente, a matéria só poderia se revelar na sua extensão porque a ela se oporia a luz, o pensamento, o espírito, condição para a sua revelação. A luz assim compreendida seria o inextenso, que se opõe à extensão e constitui a própria representação. Para Bergson, no entanto, luz é matéria e matéria é luz. Não se trata da luz que os homens encontram ao sair da caverna na “Alegoria” de Platão, isto é, ela não é uma espécie de elemento à parte que permite a visão de todos os outros elementos. Para Bergson, a luz não ilumina os objetos, são os objetos que se iluminam a partir de si próprios. Esta iluminação se dá como uma diferença qualitativa que existe entre os objetos: a maneira como cada um deles vibra. A percepção existe, então, porque há entre os objetos essa diferença, quer dizer, a percepção se dá graças a uma diferença de energia. Por isso Bergson vai dizer que o objeto é uma espécie de fotografia da luz, de instantâneo da luz, ou seja, a configuração que a luz, e portanto a matéria, o objeto-imagem, adquire num dado momento da duração. Trata-se aqui de uma operação absolutamente inovadora de Bergson na filosofia, uma vez que ele tira a origem da imagem de dentro da consciência e vai descobri-la nas coisas mesmas, extinguindo inclusive, a distinção e a exterioridade entre matéria e luz. Trata-se de uma operação que a fenomenologia não logrou fazer, posto que se esta ancorou a consciência às coisas, e portanto à extensão (“toda a consciência é consciência de algo”), permaneceu distinguindo-as entre si. É neste ponto inclusive que Deleuze vê o universo bergsoniano como um “metacinema”, isto é, este plano de imanência matéria-luz em que o Todo se identifica como uma duração, um aberto, que não para de se engendrar e se reinventar: o Todo como “matéria escoante”. Mais ainda, Deleuze acrescenta aqui Bergson à lista dos “filósofos da imanência”, que costumava elencar nomes como Heráclito, Espinosa e Nietzsche. Deleuze nos chama a atenção diversas vezes para o fato de Bergson descrever o universo como um grande plano de imanência, onde à identidade por nós já vista entre movimento, matéria e imagem, acrescentase agora a luz. Trata-se da mais eficaz forma de superar o impasse entre idealismo e materialismo que dominava a filosofia há séculos. Arriscaríamos dizer que foi a partir daí que Deleuze constituiu a sua própria concepção de

“plano de imanência”, chegando à concepção do universo como um aberto, o Todo que não para de se engendrar a si mesmo e se identifica como uma duração. Acreditamos que o plano de imanência deleuziano tem mesmo esta consistência que se define na frase de Bergson: “mais do que queriam os idealistas e menos do que queriam os materialistas”. E mesmo sendo “menos” do que queriam os materialistas, Bergson ajuda Deleuze a chegar à sua compreensão peculiar do materialismo em que a matéria é concebida muito além do modelo hilemórfico aristotélico, livrando-se de ser determinada a partir do que seria tanto o seu “atributo essencial” quanto a sua “causa final” (o seu “telos”). A Matéria passa a ser definida então a partir do que, em Mil Platôs , Deleuze, junto com Félix Guattari, vai definir como um “Philum Maquínico”. Deleuze chegaria aí ao que definiríamos como um “materialismo do devir”, o que será, inclusive, fundamental para a filosofia política que ele desenvolve com Félix Guattari em O Anti-Édipo e Mil Platôs , fazendo até mesmo um importante diálogo com Marx – o que boa parte dos deleuzianos estranhamente evita mencionar. É claro que este livro não é especificamente sobre a filosofia política de Deleuze, embora, mais de uma vez, as questões do cinema sejam desdobramentos e se desdobrem nesta filosofia. O próprio problema do clichê como algo que tem a ver com a impotência da imagem – compreendida como parte da expressão da impotência do pensamento – e a desconstrução e superação do clichê como uma espécie de reencontro liberador das plenas possibilidades inventivas da imagem têm uma implicação fatalmente política. Por ora, no entanto, é importante que compreendamos que nesse universo material de Bergson o plano de imanência é um “maquinismo e não um mecanismo”, ⁴⁵ compreendendo que o cinema como dispositivo é uma variação possível desse plano de imanência no desdobramento de uma dinâmica que já era desde sempre a do universo. É por isso que o cinema, como criação de objetos-imagens, pode ser uma potência de transformação do universo a partir de dentro. De fato, o universo material bergsoniano-deleuziano é o “agenciamento maquínico de imagens-movimento”. ⁴⁶ O cinema vai ajudar a engendrar de forma particular essas imagens e também, como acontecerá com o cinema moderno, irá além e desenvolverá a sua capacidade de presentificar diretamente o tempo. Percepção cinematográfica Vejamos então como surgem no universo bergsoniano os seres vivos. Em certo momento desse universo em permanente movimento e radicalmente acentrado, onde tudo reflete tudo, aconteceria uma espécie de intervalo, de hiato: um desses objetos-imagens deixaria de reagir imediatamente a uma ação sofrida. O que aparece aí é o que Bergson chama de “centro de indeterminação”. Ao não reagir imediatamente à ação de qualquer objetoimagem à sua volta, o que esse objeto-imagem faz é um movimento de voltar-se para dentro, criando uma espécie de universo interior. Mas não se trata, na verdade, de um universo radicalmente interior, ou melhor, não existe uma distinção, uma separação absoluta, desse centro de indeterminação para com o resto do universo em permanente movimento. O que existe realmente é uma alteração, um descompasso, no movimento do universo circunscrito por aquele objeto-imagem na medida em que ele se

volta para dentro. É como se a reação do objeto-imagem que deveria suceder imediatamente a uma ação sofrida fosse adiada; o que nos leva a concluir que aquilo que esse centro de indeterminação introduz no cosmos é uma espécie de diferença, de alteração de tempo. O próprio centro de indeterminação é então um objeto-imagem. É por isso, inclusive, que Deleuze vai designá-lo como uma imagem-vivente: a origem dos seres vivos segundo Bergson. Temos então a convivência entre dois regimes de imagem: o primeiro absolutamente acentrado, em que tudo percebe tudo, como descrevemos acima; o segundo, a partir da criação dessa espécie de “imagem central” que é o centro de indeterminação. Na verdade, essa imagem-vivente passa a funcionar como uma imagem central que se refere às outras imagens. No ato mesmo de seu nascimento, o mundo se dobra em torno dela, o que faz aparecer a experiência da perspectiva, do horizonte, como algo que invariavelmente constitui a experiência do real de um ser vivo. Assim, a separação que o centro de indeterminação introduz no universo faz surgir uma percepção especializada, quer dizer, se antes cada objeto-imagem percebia tudo à sua volta, agora ele irá perceber apenas com uma de suas faces. O que aparece aí é o princípio do que vamos chamar de uma “escolha”: uma seleção. O impulso nervoso que antes atravessava o universo acentrado é, a partir da separação que constitui o centro de indeterminação, retido, ou parcialmente retido. O vivente, na medida de suas possibilidades, escolhe como o universo dos objetos-imagens que estão em torno dele vai afetá-lo, procurando escolher o que desse afeto ficará retido e o que se desdobrará numa ação. O surgimento dos centros de indeterminação – o surgimento da vida – é então para Bergson o surgimento de uma percepção especializada: o princípio do que poderíamos chamar de uma percepção subjetiva. Cada um desses centros se constitui à medida mesmo que cria seu próprio mundo. Deleuze, numa longa entrevista gravada num vídeo denominado O Abecedário de Deleuze , está sem dúvida inspirado em Bergson quando nos descreve como, por exemplo, um carrapato constitui o seu mundo, selecionando, para a sua utilidade, três ou quatro percepções que são suficientes para que perceba a proximidade de um animal, possa saltar entre seus pelos e começar a sugar o seu sangue. Todos os restantes fenômenos do universo, diz Deleuze, não interessam em nada para este pequeno e simples ser vivo. A complexidade desse centro de indeterminação, que vem a ser a do vivente, vai ser determinada pela capacidade que ele tem de articular os mais antigos e distantes impulsos nervosos retidos com aqueles que está tendo no presente. É claro, esta complexidade depende do grau de sofisticação de um sistema nervoso, que por sua vez se desdobra na constituição de uma memória e de uma consciência igualmente complexas. Assim, não poderíamos deixar de concluir que o mais complexo dos centros de indeterminação, isto é, o mais sofisticado dos viventes, é o homem. Os centros de indeterminação são a própria origem da nossa experiência do real. Se os seres vivos não fossem dessa forma, a percepção dos objetos em torno deles simplesmente os atravessaria. Ela poderia sofrer até transformações, mas nenhum tipo de retenção: os impulsos nervosos se

perderiam, então, universo afora. Como centros de indeterminação capazes de reter essas imagens, esses impulsos nervosos, os seres vivos – e nós entre eles – funcionam como o papel, o suporte ou mesmo a película da fotografia – ou ainda, a tela do cinema. De fato nós, como qualquer outro centro de indeterminação, somos também um objeto-imagem. Mas, como esses intervalos, somos agora objetos-imagens que selecionam, de todos os objetos-imagens que estão à nossa volta, aquilo que nos é necessário. Bergson está descrevendo com isso a origem da própria consciência, quer dizer, a consciência é exatamente como uma imagem central, uma imagem que regula e se refere a todas as outras imagens. E se ela assim o faz de acordo com as suas necessidades, isso vem a ser exatamente o que chamamos escolha, discernimento. É nesse momento inclusive que Deleuze vai identificar esta descrição do surgimento da consciência com o próprio “plano” no cinema: “o plano, isto é, a consciência”, como repete algumas vezes nos seus dois livros sobre cinema. Assim, se antes descrevemos a relação que existe entre os objetos-imagens como de “fotografias sem suporte”, agora estamos diante da fotografia “impressa” em um suporte. E isso acontece exatamente porque os centros de indeterminação são tipos especiais de objetos-imagens que retêm parcialmente as percepções que têm de outros objetos-imagens. Para Bergson a consciência é uma imagem entre outras, ele não deixa de observar a diferença que existe entre a imagem que produzimos na nossa consciência e a constituição mesma do objeto exterior a nós. Aqui ele nos chama a atenção para o que formula como sendo a diferença existente entre a presença do objeto e a sua representação. Tal questão também havia chamado a atenção da fenomenologia e, influenciado por Husserl, Sartre se debruçou sobre ela no seu O Imaginário . Sartre descreveu o que chamou de “ilusão da imanência”, ⁴⁷ mostrando, com certa perplexidade, o quanto a filosofia e também a psicologia foram por muito tempo vítimas dessa ilusão. O que lhe causou estranhamento é o fato de durante muito tempo estas ciências não perceberem que há uma distinção fundamental – usando aqui uma formulação da fenomenologia – entre a imagem que se produz na consciência e a estrutura do objeto mesmo que esta imagem intenciona. Para Bergson, no entanto, o fenômeno da percepção dos seres vivos continua sendo o que era antes do aparecimento destes – do surgimento dos centros de indeterminação –, ou seja, continuam sendo de natureza motora. Quando escolhemos o que vamos perceber, estamos escolhendo com o que vamos interagir. O que há nesse momento é uma ação imediata e também uma retenção, quer dizer, um movimento que se interioriza e vai constituindo a memória. A memória para Bergson é, então, uma retenção de movimento que, quando evocado por um movimento sofrido pelo corpo no presente (a percepção) literalmente se reincorporará: irá se reapresentar no limite entre memória e matéria (entre passado e futuro), que vem a ser o próprio corpo. Avançando nesse raciocínio, Bergson descobre duas dimensões da memória: a primeira ele chamará de memória motora e a segunda, de memória passada. Esta também terá uma característica fundamentalmente motora, embora apareça num processo bem mais complexo que a primeira. A

chamada memória motora propriamente dita, Bergson nos mostra que é uma memória que se expressa imediatamente em cada um dos movimentos de nosso corpo. Por exemplo, a agilidade ou não de uma ação com a qual respondemos a uma percepção depende, diretamente, do fato de termos bem, ou mal, constituída esta memória motora. É o que expressa o exemplo dado por Bergson: se passeamos pela primeira vez numa cidade, nosso corpo demonstra pouca agilidade, hesitando em cada esquina, olhando para todos os lados, não sabendo exatamente que rumo tomar. Mas se, por outro lado, já estamos familiarizados com esta cidade, os movimentos, ao caminharmos por suas ruas, serão ágeis, com pouca hesitação, quase sempre uma resposta imediata do corpo a cada variação do percurso que estamos fazendo. ⁴⁸ Isso acontece porque a nossa percepção cuidou de guardar na nossa memória o conjunto de objetosimagens que constituem esta cidade; isto, como vimos, é sempre uma interiorização de movimento: percepções passadas da cidade que afetaram motoramente o nosso corpo e que foram fazendo com que nos familiarizássemos com esta ao ponto de, a cada impulso motor das percepções presentes, sabermos responder de imediato com as percepções guardadas – os impulsos motores armazenados na memória que virão ao nosso corpo fazendo-o se movimentar. Bergson avança, em seguida, para um esquema mais complicado que é o que vai nos interessar mais num trabalho sobre cinema. Estamos falando do esquema da percepção atenta. Ao avançarmos para a descrição desta percepção estaremos nos aproximando – ainda que inicialmente, referindonos a um trecho de Matéria e Memória – de uma descrição daquilo que o autor vai chamar, em A Evolução Criadora , de “ mecanismo cinematográfico do pensamento ”. ⁴⁹ De fato, este mecanismo já está presente na primeira descrição à medida que nesta já operamos, entre todos os objetos-imagens que potencialmente podem nos afetar, uma seleção. Percebemos nos objetos aquilo que neles nos interessa, e para determinar este interesse, esta escolha, a ação daquilo que está retido em nossa memória é fundamental. A segunda forma de percepção – a percepção atenta – descrita por Bergson é, a rigor, uma radicalização desse hiato, desse intervalo que nós, como o mais complexo dos centros de indeterminação, introduzimos na duração. Ao escolher, ao tomar da duração apenas aquilo que nos interessa, nós na verdade damos pequenos “golpes”, tiramos pequenos recortes, de forma semelhante aos pontos traçados em uma reta: rápidas “fotos”, instantâneos da duração. Dela só temos, portanto, vestígios, que funcionam para nós como signos que vão operar um mergulho em nossa memória e chamar à superfície do corpo o movimento retido (o objeto-imagem guardado). Assim, como uma câmera de cinema, o nosso mecanismo de conhecimento do real vai tirando uma foto em seguida à outra. Estas são, na verdade, os golpes na duração de que falamos, que, por sua vez, são exatamente como os fotogramas: diversos instantâneos uns após os outros, cujas imagens estáticas vão se imprimindo na película cinematográfica. Mas a experiência que temos da realidade, a percepção consciente, é sempre de uma imagem-movimento. Para a constituição desta imagemmovimento, na verdade uma espécie de reconstituição graças às

necessidades e às escolhas que fazemos, a memória vai ser fundamental. É ela que preenche os espaços entre estes fotogramas, isto é, é ela que faz a liga entre os diversos instantâneos, as diversas fotos, que tiramos da duração recolocando-as em movimento. A nossa percepção, o nosso conhecimento, funciona então, segundo Bergson, de maneira extremamente semelhante à ilusão do movimento que nos dá o cinema. Cada um dos golpes que damos no real, os fotogramas, funcionam como quadros, como signos que enviam imediatamente uma mensagem à nossa memória, que cuida de preencher o movimento do qual esta percepção seletiva nos trouxe apenas vestígios. Para Bergson então, diante da complexidade e da multiplicidade dos movimentos que podem nos afetar, tiramos deles apenas aquilo que nos interessa: os vestígios, os signos, os fotogramas. Estes, por sua vez, remetidos à memória, farão com que esta venha à tona. Este “vir à tona” da memória é literalmente uma “incorporação” de um movimento retido. Aí então a matéria percebida vai ser “montada” com memória evocada, constituindo a experiência do real que se dá no presente. E o lugar do presente vem a ser exatamente este limite entre matéria e memória onde as duas se “editam”: o corpo. O aprofundar-se da observação e do conhecimento do mundo é, a rigor, um aprofundamento desse processo. Bergson nos mostra que quanto mais mergulhamos num processo de questionamento e pesquisa sobre o mundo, à medida que aumentamos a nossa atenção a ele, mais estamos operando um mergulho dentro de nós: uma pesquisa em nossa memória, uma viagem no passado que, uma vez vindo ao presente, preencherá os espaços no mundo sobre o qual aumentamos a nossa atenção. Não há percepção, em Bergson, que não esteja sempre impregnada de memória, assim como não há memória que não seja de alguma maneira evocada por uma percepção presente. Assim, se considerarmos esta descrição de Bergson, podemos entender que todos os processos de conhecimento, toda a experiência do real, tudo que chamamos linguagem, acontece desta maneira. As palavras, por exemplo, os conceitos, as expressões, são também enquadramentos, golpes, fotos – instantâneos – da duração real. Uma vez expressos no presente por este limite entre passado e futuro, entre memória e perspectiva, que é o corpo, eles são maneiras pelas quais constituímos o que chamamos de representação. Assim também a representação é, de forma bastante semelhante à definição que Deleuze faz do clichê, um esquema, um invólucro sensório-motor que criamos para habitar com garantia de alguma segurança, ou talvez, eventualmente, de algum conforto e/ou prazer. Encadeando uma nas outras, ou encadeando um conceito nos outros, recriamos para nós uma duração: um outro devir, uma outra fluência. Estas são sempre tentativas de reduzir a um movimento único a infinidade de movimentos que temos em torno de nós, o que mostra também que seria um equívoco qualquer tentativa de entender a linguagem numa estrutura essencial e inerente a ela mesma, desconsiderando este ponto-limite em que ela se constitui de uma heterogeneidade e uma mobilidade. ⁵⁰ Assim, se Bergson diz que o mecanismo de nosso pensamento é cinematográfico, vejamos então como é o mecanismo do cinema: fotogramas – e portanto fotografias – em intervalos equidistantes num suporte de

película – golpes estáticos no movimento do real – que iluminados e projetados um após o outro em movimento contínuo numa tela produzem ilusoriamente, com a ajuda da persistência retiniana e da memória, uma imagem-movimento, isto é, um objeto-imagem que é ele também uma parte da duração. Bergson está descrevendo, ao detalhar a forma como se dá a percepção, um mecanismo que se assemelha a um “cinematógrafo interior”. Deleuze percebe então que Bergson está nos mostrando que, de certa forma, sempre fizemos cinema. Isso porque para ele o cinema nada mais faz do que reproduzir um mecanismo ilusório que é o da própria percepção. É este inclusive o motivo alegado por Bergson para não demonstrar grande interesse pelo cinema. Mas, curiosamente, é este exatamente o motivo para Deleuze encontrar em Bergson, mais do que apenas potencialmente, a arquitetura de toda a taxonomia das imagens cinematográficas à qual vai se dedicar nos seus dois livros sobre cinema. Para se contrapor ao ceticismo de Bergson em relação ao cinema, Deleuze pergunta, em primeiro lugar, se a reprodução da ilusão da percepção e do pensamento não seria, de certa forma, uma correção desta, como se o mecanismo do cinema descobrisse e explicitasse a ilusão onde sempre estivemos imersos e, em segundo lugar, se a artificialidade dos meios deveria necessariamente nos fazer inferir a artificialidade dos resultados. Abre-se assim o caminho para Deleuze construir toda a sua aliança com Bergson para pensar o cinema. Resumidamente, tivemos até aqui a descrição de um universo onde identificamos dois regimes de imagens. O primeiro é absolutamente acentrado, onde a percepção já se dá como um corte móvel na duração, como uma imagem-movimento, e onde já podemos notar esta identidade bergsoniana entre imagem, matéria, luz e movimento. O segundo regime de imagens é, ao contrário, este que centraliza a percepção, que faz com que o universo se curve e se dobre em torno de uma imagem central que aparece a partir de um intervalo de tempo, uma cisão e um afastamento que se dá no coração do universo antes acentrado, instalando o que Bergson chama de “centro de indeterminação”, e que Deleuze gosta de identificar também como uma imagem-vivente, posto que é a expressão da própria origem dos seres vivos para Bergson. O cinema, no entanto, nos teria dado o privilégio de fazer este caminho numa direção contrária, permitindo-nos ir do segundo regime ao primeiro, posto que a câmera de cinema pôde reencontrar o primeiro regime à medida que se instalou em diversos objetos em movimento, como se fosse o olho desses objetos, instaurando uma experiência da percepção que pode até chegar a ser inumana. E não há dúvida de que este primeiro regime de imagem – o universo onde tudo percebe tudo – apareceu de forma notável no cinema de Dziga Vertov: a “câmera olho” como ele mesmo definiu – e, de maneira particularmente espetacular, no filme Um Homem com uma Câmera . Deleuze, no entanto, nos chama a atenção também para as experiências de Win Wenders no cinema, em que a câmera aparece como um equivalente geral de movimentos de translação, instalando-se em trens, carros, aviões e ao mesmo tempo filmando estes em seus movimentos e circuitos; circuitos que vemos inclusive convergirem, cruzarem, fazerem uma momentânea interseção, correrem paralelamente ou se bifurcarem. Aqui dois belíssimos filmes nos vêm imediatamente à memória: No Decorrer do Tempo e Alices nas Cidades . Mas às observações de Deleuze, acrescentaríamos que, nestes

filmes, esses circuitos e movimentos aparecem no segundo regime de imagens, quer dizer, é como se os movimentos da câmera captassem as relações que se estabelecem entre os universos de vidas distintas: há portanto uma dimensão existencial que não encontramos em Vertov. Dedicaremo-nos mais detalhadamente a estes filmes quando aprofundarmos nossas reflexões sobre o tempo. Imagem-percepção, imagem-ação, imagem-afecção, A primeira imagem que Deleuze distingue é a própria imagem-movimento. A partir do surgimento dos centros de indeterminação, no entanto, ele vai nos propor três tipos de imagens: A imagem-percepção, a imagem-ação e a imagem-afecção. Trata-se de uma classificação que surge ainda no seu primeiro livro sobre cinema, A Imagem-Movimento , e portanto são imagens que caracterizam, em primeiro lugar, o “cinema clássico”. Isso não significa que essas imagens desaparecerão completamente no “cinema moderno”. Veremos que o surgimento deste último é marcado pelo aparecimento de novas formas de imagens, mas por ora, vamos nos concentrar aqui naquelas três formas de imagens expostas no título desta seção. A partir daqui então a imagem-movimento deve ser compreendida em relação aos centros de indeterminação – as imagens-viventes –, ou seja, deve ser compreendida, como nos diz Deleuze a partir de Bergson, em relação ao intervalo de movimento que estes introduzem no Todo. Antes deste intervalo, como vimos, tínhamos um universo radicalmente acentrado, que evidentemente continua a existir, sendo, na verdade, o próprio Todo como uma imagem-movimento. Mas à medida que se funda o centro de indeterminação, funda-se uma percepção subjetiva no bojo mesmo do intervalo que este centro de indeterminação cria. No final das contas, o que está sendo exposto é o problema da nossa percepção – da percepção humana –, já que somos o mais complexo dos centros de indeterminação, das imagens-viventes, que existem. O que temos então é a formação de uma imagem-percepção que não exprime apenas o movimento mas, como diz Deleuze, “a relação do movimento com o intervalo do movimento” ⁵¹ . A imagem-percepção expressa então este afastamento. Ela é uma percepção subjetiva exatamente porque o surgimento do centro de indeterminação é o surgimento de um objeto-imagem que especializa uma de suas faces para a percepção. Ao contrário do que acontecia com os objetos no universo acentrado, o vivente agora percebe apenas com uma de suas partes e por isso também seleciona a percepção que vem a ser o próprio “corte móvel” no Todo de imagemmovimento que tem em torno de si. Assim, se no universo acentrado, tudo percebia tudo – tudo fotografava tudo –, já existindo portanto a percepção, agora, graças ao intervalo introduzido pelas imagens-viventes, temos o que Deleuze chama de “percepção subjetiva”. Esta funciona como um suporte, um papel fotográfico, ou uma espécie de “ecran negro”, uma tela em que parte da percepção ficará retida. ⁵² Permanece assim a identidade entre a nossa experiência perceptiva e o mecanismo do cinema. Há portanto dois polos da percepção, um que se refere ao todo, que é imagem-movimento, e outro que se refere ao intervalo, esse centro de

indeterminação que se produz no todo. A partir deste último, o que se produz também é uma imagem-movimento, mas uma imagem-movimento com referência a uma imagem central que a enquadra e dela obtém um corte móvel: o plano. Esta é a própria definição que Bergson faz da consciência: uma imagem que se refere a outras imagens. Para Deleuze, na dinâmica do cinema, isso é expresso pelo plano. É por isso que ele vai dizer repetidas vezes: “ O plano, isto é, a consciência ”. ⁵³ Evidentemente, nós não apenas absorvemos e retemos as imagens. Este processo que vai da periferia ao centro do universo que se curvou em torno do centro de indeterminação segue adiante. A percepção, que é sempre de natureza motora, aconteceu apenas numa das faces desta imagem-vivente. No outro extremo desta, o que acontece é exatamente a ação retardada, que é um desdobramento dessa percepção. Ou seja, a imagem só se desdobra em ação na outra face do cento de indeterminação porque se deu como uma percepção selecionada: uma percepção com vistas a uma ação, mesmo que esta seja infinitamente adiada ou se expresse numa decisão pela passividade. Estamos portanto diante da imagem-ação. O centro de indeterminação tem então duas faces especializadas: uma perceptiva e outra ativa. Mas entre a percepção e a ação existe uma imagem que ocupa o intervalo e é, de certa forma, sua própria expressão e da espera que ele representa: trata-se da imagem-afecção. Ela é assim exatamente porque não se desdobra imediatamente em ação, por isso quanto maior for o intervalo, mais expressiva será a imagem-afecção. Na verdade, ela nasce de uma hesitação existente entre a percepção que se dá numa extremidade do intervalo – ou seja, quando o objeto-imagem aparece no nosso horizonte – e aquela que se dá na outra extremidade, quando o objeto-imagem está por se desdobrar numa imagem-ação. A imagem-afecção é assim a expressão de uma percepção à qual não se segue uma ação imediata. A seleção que se opera na percepção faz com que a imagem recebida seja interpretada, seja traduzida numa qualidade. Isso acontece porque nós especializamos uma das faces do nosso corpo para a percepção. Assim uma parte do movimento exterior não se traduz nem em objetos de percepção, nem em atos do sujeito, e se instala exatamente nessa face especializada do corpo que é, nas palavras de Deleuze, “condenada à imobilidade”. ⁵⁴ Estamos falando aqui do rosto, da face. É ela que expressa em micromovimentos intensivos a percepção que não se transforma em ação. Por isso Deleuze diz que a imagem-afecção expressa uma “qualidade pura”. É claro que, em parte, imagem-afecção é uma imagem retida no nervo paralisado porque o objeto-imagem que percebe não se encontra no meio e no contexto adequado para a ação. Mas ela é também a expressão de um sentimento interior, ou seja, ela é a maneira como o sujeito percebe a si mesmo diante de um afeto exterior, e expressa este sentimento. O “centro especializado da percepção” que temos em nós é o rosto. É no rosto que o móvel perde seu movimento de extensão e vira movimento de expressão. Deleuze cita então Eisenstein, que dizia que o “gros plan” “oferecia uma leitura afetiva de todo o filme”. ⁵⁵ “Gros plan” é como Deleuze denomina este plano que se articula com a imagem-afecção, chamando-o

também de “plano de rosto”; já a tradução brasileira preferiu designá-lo como “primeiro plano”, o que coloca para nós um problema. De fato, “gros plan” significa para aqueles que trabalham com cinema na França o que nós no Brasil chamamos de “plano detalhe”. Ao contrário do que poderia dar a entender o termo “gros” que designa algo como “gordo” ou “grande” em francês, estamos falando aqui de um plano próximo. Mas Deleuze cuida de esclarecer que o “gros plan” não trata de um objeto parcial (ao contrário de certas interpretações psicanalíticas), mas sim de uma imagem que ao mesmo tempo é uma unidade refletora e refletida. Não por acaso, o exemplo dado por Deleuze para explicar esse caráter do rosto é o de um relógio. Neste caso, o relógio vem a ser um “objeto rostificado”, uma vez que o rosto não é representado e nem apresentado pelo “gros plan”, ele é em si mesmo “gros plan”, o que significa também que estes não são constituídos exclusivamente de planos de rostos humanos propriamente ditos. Mesmo no “plano detalhe” de um rosto o que aparece não é um rosto todo, mas um detalhe, insiste Deleuze, e a função desse “detalhe” (uma boca, uma testa que se franze...) é esta de refletir. O primeiro exemplo de rosto como imagem-afecção está no filme que é composto por excelência por estas imagens, qual seja, A Paixão de Joana D’Arc , de Dreyer. Mas Deleuze avança e divide estas imagens, estes rostos, em dois grandes grupos, as reflexivas e as intensivas, usando uma série de planos de rosto dos filmes de Griffith para exemplificar as primeiras, e de planos de rosto de filmes de Eisenstein para exemplificar as últimas. Em Griffith, o principal exemplo é o da jovem martirizada em Lírio Partido , num rosto que permanece petrificado e reflexivo mesmo diante do sofrimento e da iminência da morte, como se, nas palavras de Deleuze, ela “perguntasse por que”. Em Eisenstein, por sua vez, a série intensiva aparece como exemplar porque constitui parte importante do seu pensamento sobre cinema e, inclusive, uma das críticas dirigidas a Griffith, a quem acusava de não confrontar os afetos com o Todo do filme. A intensidade em Eisenstein é então marcada pela capacidade de se mover, numa série, de uma qualidade a outra, criando novas qualidades. Trata-se de algo que pode se expressar por vários rostos sucessivos, como na revolta dos marinheiros em O Encouraçado Potemkin diante da comida estragada, que se desdobra em explosão revolucionária, ou ainda num rosto que vai mudando seus traços, vai como que trocando de máscaras, como no papa que passa de homem de Deus a explorador dos camponeses, em Outubro . Mas a rostidade, como já vimos, pode estar também num objeto. O exemplo desta vez é o de Caixa de Pandora de Pabst, onde os rostos das personagens Jack e Lula estão sorridentes e sonhadores até que o plano próximo mostra a faca em seu rosto, na sua “face”. Em seguida, vemos o rosto do protagonista horrorizado pelo medo e pelo terror de sua própria dimensão de “estripador” que ele sabe que inevitavelmente virá, ou já veio, à tona, como expressa a resignação que finalmente substitui o horror. A faca é, neste caso, um exemplo perfeito de uma “qualidade pura”, como se o que se expressasse nela não fosse uma “faca cortante”, mas o “cortante da faca”, e por isso ela é também “rosto”. Deleuze chega a citar os estoicos que compreendiam as coisas mesmas como portadoras de acontecimentos que não se confundem necessariamente com as suas propriedades. ⁵⁶

O conceito de rosto – incluindo a noção de “rostidade” – diz muito sobre o pensamento de Deleuze. Ele não é normalmente apresentado com um conceito “central”, mas traz consigo uma característica decisiva para quem quer ter um ponto de partida, um ponto nevrálgico, para compreender Deleuze. Estamos falando do fato do conceito de rosto expressar um limite do corpo – fisiológico como diria Nietzsche, sensório-motor como diria Bergson – onde está a gênese da linguagem. A face – o rosto –, com seus micromovimentos intensivos e reflexivos, “expressa”, “fala”: é um signo. É não só o princípio da escritura no limite do corpo, como também a origem da própria linguagem compreendida como uma “inscrição” no corpo. Compreensão que Deleuze e Guattari desenvolvem em O Anti-Édipo , numa interpretação que fazem da Genealogia da Moral , onde este processo de “inscrição” no corpo – na medida em que é, para Nietzsche, a origem da memória e da consciência –, será também a origem do próprio “socius”. ⁵⁷ Mas o “rosto”, compreendido como lugar-limite da linguagem e expressão da imagem-afecção, é para nós importante sobretudo porque nos ajuda a entender a crítica que Deleuze faz à compreensão da linguagem como “representação”: algo que teria uma estrutura fechada e fundamentada em si mesma, de acordo com o pensamento de grande parte da linguística e da semiologia. E finalmente nos ajuda a compreender por que Deleuze não toma o cinema como uma “linguagem” e sim como potência do real. Este é um assunto ao qual voltaremos mais adiante. Imagem-pulsão Antes disso, não poderíamos deixar de falar de uma outra forma singular de imagem que Deleuze descobre entre a imagem-afecção e a imagem-ação: a imagem-pulsão. Trata-se de uma imagem que não é mais puramente imagem-afecção, que vai além do que caracteriza esta última como “qualidade pura” e do que Deleuze diz ser um idealismo da imagem-afecção. Por outro lado, a imagem-pulsão também ainda não está constituída do realismo típico e do par “comportamento-meio determinado” que vimos caracterizar a imagem-ação. Digamos, de início, que a imagem-pulsão se caracteriza por uma espécie de “ação num meio inadequado”. Talvez por isso Deleuze diga que ela não é uma expressão, como a imagem-afecção, e sim o que ele chama de “impressão forte”. A imagem-pulsão tem assim uma mobilidade: em termos práticos, nela vemos corpos que se movem e num certo sentido “agem”. Mesmo assim, a imagem-ação não serve para representar imagem-pulsão. Isso porque esta não se traduz, mesmo que possa parecer, por um comportamento em um determinado meio, mas exatamente por uma espécie de pulsão elementar num meio derivado e real que está sempre se relacionando com o que Deleuze chama de um “mundo originário” ou “meios originários”. Esta relação se dá, em primeiro lugar, através de objetos que estão nesse meio derivado, mas que se referem àqueles mundos originários dos quais eles são partes ou pedaços; por isso podemos dizer que ídolos e fetiches são os primeiros tipos de signos que vemos na imagem-pulsão. Temos então, diz Deleuze, o único caso no cinema em que o plano detalhe mostra de fato um detalhe, isto é, a parte de um Todo que não é o extracampo da imagem, e sim o mundo original e o “Todo” ao qual esta parte – um fetiche, por exemplo – se refere. Mas há um outro tipo de signo da imagem-pulsão: o

sintoma. Este vem a ser a segunda forma como um mundo original se faz presente num meio derivado onde acontecem os fatos e estão os objetos. O sintoma é um tipo de atualização nos meios onde vivem os personagens, do mundo originário que é tomado como uma espécie de mundo pré-histórico, natural e fluente. Por isso a imagem-pulsão traz sempre personagens bestializados. Isto porque ela precede a divisão homem-bicho, e este mundo originário, que acaba constituindo os procedimentos dos personagens, é na verdade um pano de fundo daquele mundo, daquele meio atual, onde o personagem age. Assim, a ação precisa sempre de alguma forma retornar ao mundo original, que é ao mesmo tempo o princípio e o fim de tudo o que acontece. Trata-se de uma natureza primeira, quase de um puro chronos , por isso Deleuze vai identificar a imagem-pulsão com o naturalismo. Naturalismo que, por sua vez, não se opõe ao realismo, mas o intensifica a tal ponto nesta relação entre meio real e mundo originário que pode chegar até o surrealismo. Seguindo este raciocínio, podemos chamar a imagem-pulsão também de imagem-naturalista; nela, o personagem e seu meio se encontram totalmente impregnados de uma potência natural anterior que será, para Deleuze, exemplar na literatura de Zola, e que no cinema será representado notadamente pelos filmes de Stroheim e Buñuel. De fato, os meios de Buñuel e Stroheim são, a princípio, extremamente realistas, mas é a relação que têm com um mundo originário – como é o caso da sala de O Anjo Exterminador – que trazem este naturalismo e que podem fazê-lo chegar até o surrealismo. Por isso, também, os meios atuais são extremamente violentos, com dois polos bem definidos – “pobres e ricos”, “gente de bem e gente ruim” –, o que só pode acontecer porque estes meios são fundados e sempre voltam a se referir aos meios originários, que são, ao mesmo tempo, o princípio e o fim de onde se desenrolam os fatos. Stroheim, por exemplo, nos apresenta constantemente meios e personagens numa degradação inevitável. Há, portanto, uma espécie de força destruidora que detona o filme e que joga a história nesse declínio que é como um destino que nos leva inexoravelmente a uma “pré-história” natural tomada como puro fluxo não codificado. Degradação que também está presente em Buñuel, mas que neste caso parece ser destacada em seus aspectos cíclicos, ou seja, na dimensão de “eterno retorno” que a pulsão sempre ganha, como na insistência do assédio do protagonista, e da recusa da assediada, em Esse Obscuro Objeto do Desejo ; ou, mais uma vez, em O Anjo Exterminador , na necessidade de se retornar à posição inicial de todos na sala – uma espécie de “latitude zero” –, para que se rompa a inércia instalada. O mundo originário aparece então de maneira pulsional na medida em que sempre retorna como que restaurando esse grau zero, essa pré-história ao mesmo tempo natural e bestial. É evidente que tanto o declínio e a degradação inevitável quanto o eterno retorno são duas imagens fortes do tempo. E é isso que Deleuze diz sobre a imagem-pulsão, a saber, que ela produz uma imagem forte do tempo, inclusive, diríamos nós, pelas alterações, distorções e intensificações que ela nos apresenta. Mas, mesmo que ela possa ser tomada, exatamente por estas características, como exemplo da crise da imagem-tempo, para Deleuze, a imagem-pulsão – ou a imagem-naturalista – não consegue ainda romper

completamente com a imagem-movimento. O tempo, seja cíclico, seja no modo de um declínio e de uma degradação, continua submetido ao movimento: é representado através deste. Imagem-ação, realismo e sonho americano Precisamos ainda refletir sobre, e examinar, alguns exemplos da imagemação nos filmes. Trata-se de uma imagem exemplar do cinema clássico e que, nas suas diferentes formas e variações, mesmo que tenha sido essencial para as três grandes escolas desta primeira fase do cinema europeu – a escola francesa lírica, a escola soviética e o expressionismo alemão –, vai marcar em especial o cinema americano. Isto acontecerá de tal forma que as reflexões que Deleuze faz sobre a imagem-ação serão também, em grande parte, sobre os Estados Unidos da América e o sonho americano. Quando falávamos da imagem-afecção então, nos referíamos a “qualidades puras” antes que estas viessem a se atualizar nos meios; agora é destas atualizações que trataremos. É na verdade uma característica fundamental do cinema clássico que começa a aparecer aqui: uma característica que começa com uma ligação orgânica entre as qualidades e os meios, isto é, uma ligação entre estas qualidades e os espaços onde habitam os personagens. A partir daí, os meios vão agir de maneira decisiva sobre os personagens e esse aspecto do cinema clássico ficará mais claramente definido como uma ligação orgânica entre os meios e os personagens dos filmes. Simplificando, poderíamos dizer também que no cinema clássico existe uma ligação orgânica entre as imagens dos filmes e seus personagens. Ora os meios, os lugares e/ou situações em que os personagens habitam, determinam e mesmo detonam a ação destes, definindo o que Deleuze vai chamar de “grande forma”; ora há uma ação inicial que aparece de maneira ainda indefinida, mas que, pouco a pouco, acabará por desvelar uma situação: a “pequena-forma”. A grande-forma será definida pela fórmula SAS’, isto é, uma situação que detona uma determinada ação que nos leva a uma nova situação. A pequena-forma, por sua vez, pela fórmula ASA’: uma ação que nos leva a uma situação que demanda uma nova ação. A “grande-forma”, conceito que Deleuze toma de Noel Burch a partir de uma análise que este faz do filme O Vampiro de Düsseldorf , de Fritz Lang, se desdobrará nos diversos gêneros de “filmes de ação” que marcarão definitivamente o cinema americano e que servirão como porta de entrada para os cineastas europeus na própria América. Um desses gêneros, no entanto, será um exemplo da “pequena forma”, qual seja, o burlesco, onde normalmente será uma série de ações que fará com que uma determinada situação se apresente: Charles Chaplin, sem dúvida, será aqui o mais notável dos exemplos. Se bem que Deleuze vai ver em Buster Keaton a invenção de uma espécie de “comédia de ação”: o burlesco descobrindo a “grande forma”. Assim, de um lado, a imagem-ação clássica vai se caracterizar por uma série de qualidades-potências que se atualizam num meio definido, num estado de coisas e num “espaço-tempo”, o que Deleuze vai chamar de “synsigno”; de outro, a atividade desta propriamente dita vai definir sua segunda característica fundamental, qual seja, o “binômio”. Aí, na passagem da percepção à ação, onde o personagem se impregna pelo meio, o estado de

coisas que este meio determina vai fazer com que o personagem encontre necessariamente um antagonista, um adversário, muitas vezes ligado à situação inicial S que deve ser modificada por uma ação; quando não, esta situação é, ao contrário, o meio que, por identidade, leva um herói a agir: um herói que ainda não está pronto e que seria um homem comum se não fosse a demanda de sua comunidade e a urgência da situação. Muitas vezes, inclusive, esta demanda restitui um tipo desviante e imoral a uma situação de herói, redimindo-o, como é o caso do ladrão que está sendo levado preso em Nos Tempos da Diligência , de John Ford, mas que é premiado com um pedaço de terra por ter sido decisivo para que a diligência e seus passageiros fizessem a travessia perigosa pela terra dos índios e chegasse a salvo em seu destino final. Dos quatros gêneros que vão aparecer como exemplos da grande-forma, Deleuze vai colocar em primeiro lugar o documentário, do qual Nanouk , de Flaherty, será o exemplo clássico, para em seguida exemplificar com o cinema psicossocial, onde se destacará King Vidor , o filme noir, como Scarface , de Howard Hawks, ou Asphalt Jungle , de John Huston, e, finalmente, o western, sobre o qual se seguirão extensas análises dos filmes de John Ford. E embora não apareça na primeira lista, o filme histórico também vai, para Deleuze, constituir um gênero fundamental do filme clássico de ação em sua “grande forma”. Serão então nestes últimos quatro gêneros de ficção que o cinema clássico vai produzir uma imagem-ação sempre provocada por um enfrentamento condicionado por uma dualidade: o binômio que assume o caráter evidentemente moral e que tem no western , e no duelo, a sua forma mais pura. Diríamos que é um cinema onde os personagens são sempre de certa forma julgados, condenados, absolvidos, ou redimidos – como no citado filme de Ford – no final. Por isso a fórmula se fecha em si mesma e talvez seja também por isso que Deleuze vai chamar este cinema tanto de “ético” – o que nós preferiríamos chamar de “moral” – quanto de “realista”. O realismo teria uma íntima relação com o encadeamento sensório-motor fechado, com essa história que se encadeia na forma de um processo, que vai se definir não apenas numa afecção – numa qualidade – que se impregna no meio – o que por si seria antes um “naturalismo” –, mas também pela maneira como o próprio meio, por sua vez, impregna o personagem, empurrando-o para a ação. Há portanto um “telos” no cinema clássico em geral, e em especial no americano: toda história existe com vistas a um fim que justificará cada uma de suas passagens.

O cinema americano clássico será por isso também um cinema de comportamento, numa espécie de “behaviorismo cinematográfico”, que se expressará em especial na maneira como o Actors Studio vai preparar seus atores e vai constituir um método de direção a partir da leitura que os norteamericanos fizeram do método do dramaturgo russo Constantin Stanislavski. Elias Kazan, diretor fundador do Actors Studio , será o paradigma desse método e consequentemente desse realismo cujo caráter, tanto comportamental quanto realista propriamente dito, vai ser ao mesmo tempo causa e consequência dessa estreita relação sensório-motora entre situação e ação e entre personagem e imagem. Relação que se quebrará de maneira notável no cinema de John Cassavetes, expressão do cinema americano moderno e que se oporá ao Actors Studio na sua relação, maneira de dirigir, filmar e fazer se movimentarem os atores. ⁵⁸ Na verdade, a fórmula do sonho americano em tudo se confunde com o realismo, o caráter comportamental e a relação sensório-motora que vai da coletividade ao indivíduo e do indivíduo à coletividade. Deleuze destaca nessa fórmula dois polos fundamentais: de um lado, as ideias de uma “comunidade unanimista” ou uma “nação-meio”, onde todas as minorias se fundem; de outro, um homem – um chefe – que pode unir toda essa nação respondendo aos desafios do meio e às situações mais graves. Neste sentido, não existe qualquer contradição entre realismo e sonho; ao contrário, diríamos que o sonho americano, na força dos grandes diretores do cinema clássico, partilha de maneira especial o racionalismo – e o iluminismo, como uma de suas maiores expressões, encontra a sua última possibilidade potente no cinema clássico e em suas várias escolas, como Deleuze nos dá a entender. É exatamente porque o cinema não é uma linguagem, mas uma potência do real, que ao pensar o cinema americano ele está, no mesmo movimento, pensando os Estados Unidos. A fórmula do sonho americano expressa, sobretudo, a crença iluminista que se origina no século XVIII – com aspectos de moralismo socrático-cristão na maneira como Nietzsche a denunciara –, efetivando-se como cinema em pleno século XX. Aí está a crença de que os valores racionais expressos na “grande nação” equacionarão todos os conflitos. É por isso, inclusive, que o cinema político clássico estadunidense assumirá quase sempre a forma de um filme judiciário: o Estado como efetivador da razão, como queria Hegel, e por isso restituidor da paz e da justiça. Neste caso, o belíssimo Doze Homens e uma Sentença , de Sidney Lumet, é sem dúvida o mais célebre entre os incontáveis filmes judiciários de Hollywood. Não faltam, é claro, personagens degradados nos filmes americanos, tais como bêbados, gangsters , jogadores etc. Mas quando estes aparecem é de uma maneira bastante diferente do que, por exemplo, no expressionismo alemão ou em certos filmes naturalistas. A violência não é em geral pulsional, mas determinada por um “meio degradado”. O que aparecerá de maneira recorrente – e que poderá ser visto também no burlesco – será a figura do “looser”: o “perdedor nato”. Neste sentido talvez, provoca Deleuze, é o alcoolismo que vai aparecer como uma força racional, posto que impede o sonho americano de acontecer. Os gangsters também seriam perdedores natos, e tanto no caso deles quanto no dos bêbados, haveria com o meio a

mesma relação que o indivíduo teria com a coletividade supostamente “sadia” da nação, mas esses meios seriam, neste caso, “doentes”, degradados: quase que “naturalmente”, moralmente degradados, diríamos nós. Neste sentido, toda a eficiência, na qual a nação como efetivação da racionalidade se expressa também em virtuosismo técnico – tal qual o misticismo tecnicista que vimos Virilio identificar nas origens do cinema –, estará também nesses meios degradados: a eficiência das ações dos gangsters , dos impressionantes assaltos engenhosamente preparados, por exemplo. Mas a “doença” do meio mais cedo ou mais tarde tende a aparecer como algo que começa a sabotar o bom funcionamento da máquina criminosa. Tudo isso vemos com frequência no filme noir : gangsters , meios degradados, bares cheios de bêbados, viciados, jogo ilegal, e assim por diante. Pode acontecer que a situação S se desenvolva por meio da ação desses personagens desviantes para um S’ ainda pior. Mas, mesmo nos filmes noir , a trajetória dos personagens tenderá a ser a de uma recuperação e, no caso do crime, a eficiência do herói, ou do Estado, poderá superar os gangsters , derrotando a degradação, a doença e a irracionalidade. O fato, diz Deleuze, é que de certa forma o cinema americano continuou a rodar O Nascimento de uma Nação , de Griffith, à exaustão. Veremos, é claro, o quanto esta fórmula moral se transformou em clichê, mas já vimos que este cinema, no seu vigor inicial, não sofre uma condenação de Deleuze. Ao contrário, o filósofo demonstra grande entusiasmo pelos primeiros mestres estadunidenses à medida que os descreve de maneira singular, declarando inclusive que: “não se pode condenar o sonho americano apenas por ser um sonho.” É verdade que Deleuze sabia muito bem, por outro lado, o quanto o cinema americano se esvaziou em clichês à medida que foi completamente capturado pela poderosa engrenagem de guerra estadunidense. Mas é fato também que a fórmula de “montagem paralela ou alternada” de Griffith já era, bem antes da crise do cinema clássico, criticada por Eisenstein, mesmo que o seu cinema fosse para Deleuze também “clássico”. De fato, como no cinema americano, havia um “unanimismo” no cinema soviético revolucionário. Eisenstein também fazia um cinema com vistas a um fim: a teleologia dialética-histórica do hegelianismo-marxista de seus filmes. Um dos problemas de Griffith, no entanto, dizia Eisenstein, era exatamente o de não estabelecer a relação dialética entre os polos, não percebendo que bem e mal, pobre e rico, justiça e injustiça, constituirão o todo da história do filme como o todo da história universal, à medida que entrarem em colisão e empurrarem o filme – a história – para frente. O Todofilme se fechará então quando a oposição dialética for subsumida exatamente porque houve conflito, colisão, enfrentamento dos dois polos, transformando a realidade do filme, e da história, em outra. Deleuze destaca ainda que o cinema americano reproduziria as três formas de lidar com a história descritas por Nietzsche – a “monumental”, a “antiquária” e a “crítica” –, formas que, praticadas em excesso, teriam constituído o que Nietzsche havia diagnosticado como uma das principais “doenças” do século XIX . Voltaremos a esse aspecto nos capítulos subsequentes, exatamente quando investigarmos um “nietzschianismo” do

cinema moderno. Por ora, é importante que o cinema histórico seja compreendido como uma das formas fundamentais da imagem-ação e, mais uma vez, como uma das formas fundamentais do cinema americano clássico. O fato de Griffith ser repetido à “exaustão”, como disse Deleuze, estava no caráter seminal que alguns de seus filmes, como O Nascimento de uma Nação e Intolerância, tiveram para os Estados Unidos. No caso deste último, a montagem constituía de tal forma um “Todo” fechado que o que se fechava era a própria história universal. É o que acontece quando a corrida de charretes na Babilônia converge com a corrida de trem e carro no episódio moderno. Já a oposição entre bem e mal na América era desdobramento desta oposição em cada uma das épocas anteriores, quando o “bom” era alguém que preparava uma espécie de “porvir americano” (expressão nossa). Todos esses aspectos seguiriam aparecendo em filmes de Cecil B. DeMille e até mesmo em filmes burlescos como As Três Eras , de Buster Keaton, paródia do próprio Intolerância , de Griffith. Nesse contexto, é claro, não poderíamos deixar de falar um pouco de Charles Chaplin. Deleuze vai ver no cinema de Chaplin o exemplo maior do que ele chamou de “pequena forma”, ação-situação-ação, ou seja, a ação que revela uma situação, caracterizada, como todo o burlesco, por duas ações com uma pequena diferença entre elas – a menor possível – e que, exatamente por isso, vai revelar uma imensa distância entre duas situações. É assim que acontece com Carlitos em Shoulder Arms , quando ele, da trincheira, começa a atirar num inimigo fora de campo ao mesmo tempo que vai marcando com um giz improvisado num pedaço de madeira os diversos pontos que supostamente obtém em cada um dos tiros. Um tiro então atinge seu capacete, que cai no chão, e Carlitos, honestamente, apaga um dos pontos que tinha marcado para si. A pequena diferença entre a ação de atirar na guerra e marcar pontos num jogo revela a imensa diferença entre a guerra e um jogo de bilhar. É dessa pequena diferença de ação, de onde desprende uma grande diferença de situações, que Chaplin consegue ao mesmo tempo fazer rir e liberar uma outra emoção radical bastante diferente do riso. O caso extremo talvez seja o da pequena diferença entre o barbeiro judeu e o ditador, em O Grande Ditador : uma pequena diferença que revela uma situação de uma distância imensa, tão distante quanto a vítima pode estar de seu carrasco. Esta é, afinal de contas, a imensa diferença entre Carlitos e Hitler, em meio a uma notável semelhança, a começar pelo pequeno bigode. Na diferença, no entanto, está também parte do caráter político do cinema de Chaplin, uma vez que, para além da diferença de duas situações, ela é a de duas possibilidades distintas de sociedade. Tais situações em que grandes diferenças aparecem são reveladas também pela ação de Carlitos no uso das ferramentas e, sobretudo, quando ele faz um pequeno desvio no que seria a sua utilidade usual. Chaplin revela então o seu humanismo antimáquina, mostrando a grande diferença que existe entre homens e máquinas, que estas últimas jamais poderiam nos substituir. É o que vemos em Tempos Modernos , tanto quando o operário, condicionado pela serialização fordista à linha de montagem, deixa de apertar os parafusos na máquina para apertar os botões do vestido da madame, quanto no massacre que este sofre da máquina feita para substituir o ato de se alimentar.

A sujeição do homem à máquina como uma espécie de sujeição social, e a situação massacrante da guerra – que também é uma sujeição a uma máquina – exemplarmente denunciada por esta espécie de humanismo socialista de Charles Chaplin, talvez represente um momento em que a imagem-ação, ainda potente na paródia de si mesma, antevê no burlesco os elementos de sua própria crise. O expressionismo alemão, à sua maneira, também faz este movimento. E aqui retorna mais uma vez a pergunta de Deleuze sobre o que teria feito o cinema ter se tornado o grande agente de sujeição das massas numa suposta hipnose coletiva do nazifascismo. Embora o próprio Deleuze tivesse insistido, desta vez com Félix Guattari, que o fascismo não pode ser compreendido apenas como alienação e manipulação das massas. Antes, deveríamos nos perguntar o que as fez, em determinado momento, desejar e agir neste movimento de (auto)destruição e morte. ⁵⁹ Não há dúvida, no entanto, que uma notável identificação estética entre cinema, propaganda de guerra e propaganda das grandes corporações capitalistas se produz dos dois lados em conflito na Segunda Guerra Mundial. Trata-se de uma constatação de Paul Virilio com a qual Deleuze está absolutamente de acordo. Não há dúvida também de que esta identificação, que esvazia a inventividade do cinema, se dá a partir da fórmula racionalista, teleológica e moral que caracteriza o cinema clássico, mesmo que antes a tenhamos visto como potência inventiva e não como máquina de propaganda produtora de serialização, controle e padronizações majoritárias. Deleuze chega mesmo a afirmar que esta espécie de identificação cinema-Estado-capital (expressão nossa) não produziu apenas filmes ruins, decadentes, carregados de clichês, e apresenta Leni Riefenstahl como exemplo. Na nossa opinião, todo o virtuosismo de Leni Riefenstahl não libera uma inventividade cinematográfica tão grande quanto o próprio Deleuze parece afirmar. A violenta assepsia da estética nazi – o “ideal asséptico” duramente criticado por Nietzsche algumas décadas antes – nos dá a impressão de que Riefenstahl foi muito mais uma criadora seminal da publicidade do que uma força inventiva do cinema. Se bem que, poder-se-ia objetar que uma divisão tão rigorosa entre um e outro não é possível neste caso. O fato é que, de alguma maneira, a fórmula do cinema clássico funciona como ideal para a operação disciplinar e biopolítica que caracteriza as mobilizações de guerra. É como se o tempo representado apenas por intermédio do movimento tivesse se tornado um grande instrumento de controle do próprio tempo. E controle do tempo compreendido aqui como controle do acontecimento, ou melhor, como forma de esvaziar a potência de ruptura, de quebra de uma ordem de causalidades, que a potência inventiva da imagem pode ter. De maneira geral é esta potência que será redescoberta pelo cinema moderno: um tempo que vem de fora desse agenciamento que se dá entre os três tipos de imagens – imagem-percepção, imagem-afecção e imagem-ação –, agenciamento este que é feito pela montagem. O cinema clássico, que se caracterizara por uma estrutura em que a história está organizada na forma de um processo com um “fim moral” em que cada uma das passagens do filme está justificada, seria então parte de uma operação de poder que buscaria estabelecer esta experiência como a única possível para a história em geral.

A guerra – a guerra dos Estados Nacionais no capitalismo industrial – é, neste sentido, ao mesmo tempo o triunfo absoluto desta fórmula e o que parece detonar a sua crise. De fato, não deveria haver qualquer quebra de uma ordem de causalidades e nem qualquer desconfiança ou desvio em relação a um “grande fim”, para que uma mobilização de guerra pudesse acontecer. Mas a simplificação da fórmula, que seria ingênua se não fosse violenta, faz com que a evidência do seu fracasso e a possibilidade do aparecimento de uma força que vem desde fora se tornem, especialmente na guerra, uma ameaça iminente. Nela, as cultuadas “verdades” do Estado, da ciência e da técnica, podem cair como um castelo de cartas: estarão sempre por um fio. É portanto a organicidade de que falamos que se encontra ameaçada na crise do cinema clássico, isto é, a ligação sensório-motora que víamos entre as situações e as ações, entre as imagens dos filmes e a subjetividade de seus personagens. O clichê será, de certa forma, a hipertrofia dessa organicidade, ou seja, a organicidade quando se transforma não só numa fórmula moral mas também numa força (num certo sentido, uma contraforça) que nos condiciona de maneira sensório-motora. O esquema de anestesiamento do corpo que o clichê vai expressar será exatamente para que nada possa romper uma ordem de causalidades preestabelecida. No entanto esse rompimento vai fatalmente acontecer. E, neste sentido, o cinema vai até se redescobrir como uma potência liberadora e transformadora, e nós conheceremos novos tipos de imagens, variações destas que caracterizarão o cinema moderno e que Deleuze vai chamar de imagem-tempo. 39 I. M., p. 77. 40 BERGSON, Henry. Matéria e Memória . São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 223; L’Evolution Créatrice . Paris: Puf, 2001, p. 308. 41 BERGSON, Henri. Matéria e Memória . São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 72. A ideia de uma existência de um “objeto-imagem” em Bergson pode, a rigor, ser tirada da leitura de todo o primeiro capítulo do Matéria e Memória que estamos a resumir aqui. Mas nesta página especificamente, Bergson faz a seguinte afirmação: “o que constitui o mundo material, dissemos, são objetos, ou, se preferirem, imagens, cujas partes agem e reagem todas através do movimento umas sobre as outras.” Esta faz com que não reste dúvida para nós que ele encontra uma identidade entre objeto e imagem, o que nos permitirá trabalhar com o conceito de “objeto-imagem”. 42 I. M., p. 76. 43 NIETZSCHE, Friedrich. “Verdade e Mentira num Sentido Extra-Moral”. In: Os Pensadores . São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 55. Nesse texto jovem, Nietzsche diz, por exemplo, que o primeiro sintoma que temos da realidade é um impulso nervoso. Impulso nervoso que arbitrariamente viraria imagem, e uma imagem que viraria som. 44 LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Heráclito”. In: Os Pensadores Originários . Petrópolis: Vozes, 1991, frag. 64.

45 I. T. p. 87. 46 I. T. p. 88. 47 SARTRE, Jean Paul. L’Imaginaire . Paris: Gallimard, 1948, p. 15. 48 BERGSON, Henri. Matéria e Memória , op. cit. 49 BERGSON, Henry. L’Évolution Créatice . Opus.cit. p. 272. 50 Vide o capítulo “Deleuze, Peirce e o cinema: uma semiótica do movimento”. 51 I. T., p. 45. 52 I. M., p. 84. 53 I. M., p. 33. 54 I. M., p. 96. 55 I. M., p. 125. 56 I. M., p. 138 (125). 57 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’AntiÉdipe, capitalismo et schizophrénie. Paris: Lês Editions de Minuit, 1972, p. 225. 58 Trataremos mais detalhadamente do cinema de Cassavetes, e suas críticas ao Actors Studio , no capítulo “John Cassavetes: cinema dos corpos”. 59 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’AntiÉdipe, capitalismo et schizophrénie. Paris: Lês Editions de Minuit, 1972, p. 37. Deleuze e Guattari elogiam aí William Reich por ter colocado a questão do fascismo nestes termos, embora este não tenha, segundo os autores, chegado necessariamente à melhor resposta. PARTE 2 Do cinema “clássico” ao “moderno” 1. Oneorrealismo e a quebra dos clichês As imagens que atuam e falam No segundo episódio do filme Paisá , de Rossellini, um soldado norteamericano negro, conduzido por um menino de rua, perambula bêbado pelas

ruas de uma caótica Napoli que acaba de se ver livre da ocupação alemã. A criança leva o soldado a um teatro de fantoches, onde dois bonecos guerreiros – manipulados por cordas, é claro – lutam no palco. O soldado bêbado confunde o teatro com um saloon de western , invade o palco e, pateticamente, se envolve na briga dos bonecos enquanto ouvimos a música clichê de “ataque de cavalaria”, típica de Hollywood. O caos se instaura e o soldado é expulso do teatro. De novo nas ruas de Napoli, o menino e o soldado vão até uns escombros de guerra perto do porto. O soldado, exausto, senta entre os prédios destruídos e, sob o olhar impressionado da criança, canta o seu lamento num blues . Uma sirene de um navio soa e leva a memória do soldado, em delírio, a repetir um diálogo clichê que poderia ser de algum “otimista” filme de guerra hollywoodiano. “Sim almirante”, “Pois não almirante”, “Vamos para a vitória almirante”... Eufórico, o soldado abre os braços como se voasse, emite os sons dos aviões em ataque aéreo, o barulho das metralhadoras: a guerra é uma grande emoção, uma grande festa. “Estou sobrevoando Nova York”, “Vejo ali o Luna Park”, “Sou um herói de Guerra”, “Wall Street está cheia”, “Todos me esperam”, “Do alto caem chuvas de serpentina”, “A multidão vibra”, “A Broadway é a maior avenida do mundo”. O transe etílico do soldado se transforma em delírio patriótico. Mas os clichês da propaganda de guerra, até mesmo a sonoplastia clichê das batalhas – já próxima dos “divertidos” videogames de guerra contemporâneos – se desfazem quando o soldado escuta o apito de um trem e, no ritmo do motor da locomotiva, começa a repetir: “Voltando para casa, voltando para casa...”. A euforia então se transforma em tristeza: “Não, não é bom voltar para casa, minha casa é um barraco miserável.” Exausto e deprimido, a ressaca da embriaguez se anuncia, e o soldado desmaia. Se o neorrealismo é às vezes apontado como uma espécie de “cinemaverdade”, mesmo que os filmes a princípio não sejam documentários, a descrição dessas sequências do segundo episódio de Paisá é um exemplo, na realidade, de um cinema que está deixando para trás o que podemos chamar de um “racionalismo” do cinema clássico; mais, está deixando para trás um cinema onde o tempo, à maneira como é compreendido pela física moderna, e mesmo desde Aristóteles, contenta-se em ser apenas um número, uma medida do movimento. Mas vamos por partes. Como podemos ter identificado como racionalista um cinema que cresce, se destaca e se torna objeto de pesquisa exatamente como “filme de ficção”? Exatamente porque são filmes de ficção, mas que têm a pretensão de uma “verdade filme”, quer dizer, são fechados sobre si mesmos, e pretendem ser totalmente independentes do que convencionamos chamar de “realidade”. Assim, mesmo que estando do outro lado da “realidade em si”, ou exatamente por isso, estes filmes se constroem dentro dessa concepção. Há aí uma “verdade em si” do filme, o “real do filme”, onde todas as imagens que ali estão em função da ação, da trama em que os personagens se envolvem, são as imagens do filme, da história do filme, das situações dos personagens do filme.

Com a pretensão, portanto, de constituir um “mundo de ficção” distinto do mundo real, este cinema que Deleuze identifica como “clássico” é, na verdade, a imagem e semelhança da concepção hegemônica que se tem desse “mundo real”. Fechados sobre si mesmos, cronologicamente processuais e retilíneos, e organizados desde um binômio, os filmes evoluem para distinguir claramente a verdade em si do filme da mentira do filme: binômio que os caracteriza dramaticamente e que muitas vezes aparece como um conflito entre o bem e o mal. Assim são, como vimos há pouco, as sequências finais de um western . É o que vemos também no exemplo da busca da “lógica da história” nos filmes de Hitchcock: o encadeamento lógico entre causa e efeito na investigação do processo que levou ao crime. De forma geral, é este tipo de cinema que teria se exaurido, segundo Deleuze. Não em si mesmo, ou seja, não existe uma exaustão do cinema clássico nos seus grandes mestres e nas suas escolas fundadoras, mas um esgotamento nos clichês, nas fórmulas prontas nas quais estes filmes se transformaram. Na verdade, o neorrealismo italiano descrê dos clichês tal como o soldado negro norte-americano que, pouco antes de desmaiar, parece descobrir que todas as imagens e histórias de guerra – da propaganda de guerra – que, num desespero, ele acabara de tentar viver no seu delírio alcoolizado, eram clichês, já que, de fato, não foi o que encontrou na Itália. Para Deleuze, não se trata de o neorrealismo voluntariamente “descrer” da maneira clássica de se estruturar um filme. Trata-se de uma abertura, de uma quebra e de um esgotamento de possibilidades de sentidos, que está tanto nos filmes, quanto no próprio sentido da história da Europa na maneira como ela acontece na Itália. É a Itália que, segundo Deleuze, não se encaixa em nenhum sentido fechado, em nenhum clichê de guerra que julga, enquadra, racionaliza e justifica cada acontecimento da história. O clichê se quebra, portanto, porque as imagens não aparecem mais nos filmes neorrealistas apenas em função de uma história que deve se fechar no final. As imagens passam agora a trazer, ou no mínimo a insinuar, novos sentidos para as histórias dos filmes. Elas não aparecem mais apenas em função dos personagens e das histórias, tornando-se agora tanto personagens destes filmes, quanto elementos que ajudam de maneira decisiva a constituir o próprio sentido de suas histórias. Treinado, motivado para a guerra, para fazer o bem e libertar; pronto para ser personagem de um filme de aventura onde o bem, representado por ele mesmo, vencerá o mal no final, o soldado de Paisá não só despenca da embriaguez quando a lembrança do filme propaganda de guerra vira a lembrança de sua casa miserável na América, mas, sobretudo, quando, no dia seguinte, ao reencontrar o menino da véspera que lhe havia roubado as botas e a gaita depois que ele caíra bêbado, faz com que o garoto o leve até sua casa, onde deveriam morar seus pais, para recuperá-las. O soldado então se vê numa miserável favela de Napoli e descobre que os pais do menino haviam morrido num bombardeio. A raiva contra o pequeno ladrão se transforma numa identificação: é seu passado de menino negro e pobre norte-americano que aparece ali e, portanto, são dois distintos circuitos no tempo que se encontram.

Estamos diante de um exemplo de uma imagem no presente que fala: a favela de Napoli atua como um personagem ativo porque traz para o filme, e para o próprio personagem do filme, um outro sentido diferente daquele que deveria estar lá. Este sentido que esta imagem traz muda o próprio sentido da história, na medida mesma em que este sentido é ganho por um passado que ela evoca: uma imagem do presente que traz um outro passado, redefinindo-o e redefinindo-se. Sendo o passado outro, diferente do clichê, o sentido torna-se outro. No mínimo, o que vai acontecer é que o sentido predeterminado se abre. Na verdade, o que a favela miserável de Napoli traz é uma América diferente daquela racional e civilizada que pretende liberar a Itália do fascismo: a América deste soldado, onde a liberdade e a civilização racional não se realizaram; ou, talvez, onde as próprias crenças de superioridade de uma “civilização racional” empurraram o soldado negro e sua gente para o estado de miséria no qual eles viviam. Poder-se-ia até dizer que há neste filme uma luta entre verdade e falsidade, numa desmistificação ideológica à maneira marxista, sobretudo no aspecto de denúncia social que o neorrealismo sem dúvida tem. Quer dizer, o filme desconstrói os clichês de guerra norte-americanos, desconstruindo junto os clichês do american way of life . A verdade trágica da volta para casa miserável na América destrói a ilusão da volta heroica para a bela e grandiosa Nova York em festa. A imagem implacável de Napoli caótica, semidestruída e miserável, com suas crianças órfãs tentando enganar e roubar os soldados americanos, destrói a ilusão do soldado salvador que traria a civilização e a liberdade. É por isso que, a princípio, a denúncia do clichê aconteceria aí segundo a tradição marxista: a denúncia de uma ideologia, de uma farsa que rouba e/ou obscurece a consciência dos homens. Os clichês de Hollywood e da propaganda de guerra, ou da propaganda de guerra de Hollywood, seriam denunciados à semelhança de uma desconstrução semiológica, como as que veremos Roland Barthes propor um pouco mais tarde, quando, em meio às guerras anticoloniais, ele interpreta a capa do Paris Match, onde um soldado africano com uniforme francês observa altivo e circunspecto a bandeira francesa sendo hasteada. ¹ Mas para Deleuze, e mesmo antes para André Bazin, o neorrealismo vai além. Ele nos coloca diante de imagens que falam e homens que, paralisados diante do sentido dessas imagens, já não podem transformá-las, já não podem submetê-las, isto é, já não podem fazer a passagem que, no cinema clássico, os conduz da percepção à ação, passando pela afecção. As imagens já não estão mais lá a serviço desses homens e de suas histórias; ao contrário, ela coloca os homens diante de outras possibilidades, outros sentidos possíveis para essas histórias, ou seja, as imagens são capazes de trazer sentidos para o filme, ao contrário de antes, quando só apareciam em função do sentido da história do filme: da trama, da ação e da subjetividade de seus personagens. E por isso mesmo elas são agora capazes de paralisar, submeter, desviar ou até mesmo abrir o caminho, o sentido da vida dos personagens que se tornam, como diz Deleuze, andarilhos, “perambuladores”, caminhando como videntes entre as imagens que passam a “falar”: produzir sentidos. As imagens se permitem agora, portanto, determinar o sentido dos filmes, tornando-se, de certa maneira, personagens destes. Assim, a parede, o

invólucro, que garantia a independência dos filmes clássicos de ficção, racha: tanto o chamado mundo “real” invade o mundo “fictício” dos filmes, quanto o “mundo fictício” pode aparecer ali onde estaríamos procurando apenas “realidade”. Esse “racha”, essa quebra que observamos nesse momento, acontece não só no sentido fechado dos filmes de ficção, mas no próprio sentido da história: da história que é identificada como “história real”. Os próprios personagens andarilhos – “perambuladores” – não necessariamente se enfraquecem, o que se enfraquece é uma “subjetividade fechada” em íntima ligação com os esquemas fechados da história: os clichês. O que veremos é que essas imagens, ao abrir os esquemas sensóriomotores nos quais os personagens deveriam estar perfeitamente encadeados, trazem novos sentidos, novas imagens, e portanto um outro passado possível, para esses personagens. É o que acontece no exemplo do soldado americano que na Napoli miserável lembra de sua vida igualmente miserável na América. Ou, como veremos, o que se passa com a heroína de Hiroshima Mon Amour , que vive os sentidos de sua paixão atual em Hiroshima confundindo e evocando os sentidos, os signos – as imagens que falam –, com os de sua paixão adolescente por um soldado alemão na França ocupada. Mas essas imagens podem simplesmente atropelar de fora para dentro a subjetividade dos personagens que caem paralisados diante de sentidos que não podem ser recodificados como eram antes as percepções usuais. É o que acontece com a estrangeira, heroína de Stromboli , de Rossellini, diante da violência das imagens da pesca do atum: muitos pescadores numa verdadeira matança coletiva de peixes enormes; ou ainda a tempestade e a erupção vulcânica que presencia quando tenta fugir da ilha onde se sentia virtualmente prisioneira, numa evolução de imagens que vão ficando cada vez mais violentas: “Eu estou no fim, que medo, que mistério, que beleza, meu Deus...”. E, quando não é esta impossibilidade de sentido, esta incompreensão avassaladora, o que vemos é um outro sentido que aparece com um delírio, mas que talvez tenha também um sinal de lucidez, de explicação digna diante de uma compreensão e uma percepção usual que era, ela sim, absolutamente estúpida, inclusive por ser incapaz de se compreender como tal. Este é o caso, de novo num filme de Rossellini, da visão da rica heroína de Europa 51 , diante da fábrica onde vai trabalhar por um dia: “Eu pensei estar vendo condenados...”. Imagens óticas e sonoras puras (opsignos e sonsignos) e imagens-cristais A rigor, é no cinema “clássico” – onde a história é, como dissemos, fechada – que as imagens se montam e se agenciam como se constituíssem um “mundo”: um centro de indeterminação. O que acontece no cinema que Deleuze compreende como “moderno” é o aparecimento de imagens – de fora desse encadeamento sensório-motor e intervindo nele –que quebram, desmontam ou alteram esse encadeamento. São imagens que, como signos, trazem outros sentidos diferentes daqueles que constituem o encadeamento, o esquema sensório-motor fechado. É verdade que no interior de um sistema sensório-motor as imagens agem sempre também como signos, mas neste caso estes agem exatamente em função desse encadeamento. Agora, no

entanto, o que Deleuze vê no cinema “moderno” – o cinema da imagemtempo – são as imagens óticas e as imagens sonoras puras, classificadas por ele, respectivamente, como “ opsignos ” e “ sonsignos ”. De fato, neste esquema das narrações típicas dos filmes clássicos, o tempo só pode ser representado através do movimento. É como define Aristóteles na Física : ² o tempo como um “número do movimento”; definição que segue presente na física moderna. O que temos são duas relações com o tempo, a primeira numa extremidade do intervalo: a relação com o Todo, na qual este intervalo pode ser infinitamente dilatado até o tempo se confundir com o próprio Todo do universo. Neste caso, o Todo vai reunir de uma só vez passado, presente e futuro e vai ser no cinema um Todo-filme buscado pela montagem. E a outra relação, na outra extremidade, na qual um objeto se relaciona com outro dentro do intervalo; neste caso, temos o ritmo do filme, como a marcação do seu andamento em que cada batida é um instante que imediatamente se transforma em passado e aponta para um futuro. Este é o acontecimento particular, o objeto que se relaciona com outro, o tempo que pode ser infinitamente contraído na incomensurabilidade do instante, numa subdivisão do plano da realidade – do Todo – que só poderemos identificar como o que esteve antes – o que passou – ou como o que estará depois – o que virá. É o que acontece, segundo Deleuze, por exemplo, no filme Os Pássaros , de Hitchcock. No início vemos a heroína atravessando tranquilamente a enseada num barquinho enquanto gaivotas voam ao longe, numa percepção de um tempo como a percepção do Todo, uma physis em eterna expansão móvel. Mas eis que, de repente, uma gaivota mergulha na direção da heroína atacando-a e ferindo-a na testa. O tempo aí se torna uma ação de um objeto contra o outro; é o instante, que, por sua vez, desde dentro, e mesmo que de maneira ínfima, vai se constituir como uma mudança no Todo. A “imagem-ótica e sonora pura” é exatamente a expressão da presentificação do tempo. Ela é a primeira e mais genérica classificação que Deleuze faz agora para as imagens do cinema moderno e expressa a importância que Bergson assume também neste segundo livro de Deleuze sobre cinema: A Imagem-Tempo . É a partir dessas imagens que vamos poder entender melhor o que são os opsignos e os sonsignos e, mais adiante, o que vem a ser o que Deleuze vai chamar de imagem-cristal em suas variações. A imagem ótica e sonora pura produz o que Deleuze vai chamar de uma “imagem direta do tempo”, ou seja, o tempo se apresenta sem a intermediação do movimento. O que acontece aí é que o tempo “se insurge sobre o movimento” e se apresenta como um “movimento aberrante”, expressão que, segundo Deleuze, mostra como a filosofia antiga de alguma maneira já percebia esta dimensão do tempo: o tempo que não se deixa subordinar pelo movimento. A diferença então entre a imagem ótica e sonora pura e a imagem sensóriomotora que já estudamos, é que a primeira, exatamente por não se prolongar num movimento, assume a função de uma descrição no lugar de ser uma narração. É verdade que também existe uma dimensão descritiva na imagem sensório-motora – a imagem-movimento –, que aparece na forma de uma imagem-afecção. Mas esta se situa entre a percepção e a ação como

uma qualidade pura, como vimos no capítulo anterior, e é, portanto, sempre articulada ao encadeamento sensório-motor exatamente porque preenche o intervalo que percebe e adia a ação na medida mesma que qualifica a percepção. Por isso a imagem-afecção é normalmente articulada por Deleuze com o rosto e é também a primeira expressão de uma imagem que podemos articular com a subjetividade. Já a imagem ótica e sonora pura desencadeia uma descrição exatamente pela ruptura que provoca no encadeamento sensório-motor. Deleuze nos chama a atenção para o fato de ela nos parecer, à primeira vista, mais confusa que a imagem sensóriomotora, no entanto ela acaba nos permitindo uma concentração que se desdobra numa inventividade que vai constituir a imagem de maneira bem mais complexa do que num certo utilitarismo imediato da percepção motora. Deleuze aprofunda a compreensão das imagens óticas e sonoras puras exatamente quando apresenta o que vem a ser o segundo esquema da percepção segundo Bergson, identificado como o da “percepção atenta” no capítulo II do Matéria e Memória . Antes havíamos nos deparado, para descrever cada uma das três formas de imagens do cinema clássico, com o que Bergson chamava de percepção motora. Neste segundo esquema de Bergson, no entanto, nos concentramos sobre um objeto na mesma proporção em que mergulhamos em nossa memória para construir uma descrição deste objeto, ou seja, quanto maior a atenção que prestamos ao objeto, maior é esta espécie de “mergulho interior”. A diferença do esquema que Bergson prepara para a “percepção atenta”, então, como ele mesmo nos chama a atenção, é que antes esta era compreendida como uma espécie de “marcha em linha reta”, em que o espírito se distanciaria cada vez mais do objeto à medida que o analisava, mergulhando em camadas cada vez mais profundas da memória. Bergson propõe um modelo de percepção que identifica como uma “percepção refletida” ³ . Nesta, o objeto percebido e a memória entram numa espécie de circuito onde cada camada da memória não pode se aprofundar sem retornar ao objeto e aprofundar a percepção deste, retornando por sua vez, enquanto a ação se sustenta, novamente à memória num novo circuito que vai assim, sucessivamente, tanto mais se aprofundando na memória quanto mais se concentrando na descrição do objeto. Ou seja, a memória pode ser infinitamente dilatada e, quanto mais ela o for, mas vai projetar sobre o objeto uma infinidade de detalhes a respeito dele. É o que vemos no esquema a seguir: o Início da percepção A que contém apenas o objeto O, os circuito B, C e D da memória que se aprofunda e que, a cada um deles, corresponde as percepções B’,C’ e D’ do objeto, onde este aparece em circuitos de realidade cada vez mais profundos no que virtualmente aparecerá como a própria realidade do objeto, isto é, como camadas cada vez mais profundas da realidade.

Deleuze chama a atenção para o fato de este esquema mostrar como uma imagem atual – a visão que temos do objeto – vem invariavelmente acompanhada de uma imagem virtual: algo que seria da própria constituição da imagem. Esta forma de percepção refletida nos mostra então uma imagem que é atual, mas que também é ótica e sonora pura, e que, ao invés de se prolongar em movimento, vai constituir um circuito com as imagens abstratas e imateriais presentes na nossa memória: um circuito entre o atual e o virtual, onde, nas palavras de Deleuze, “um não para de correr atrás do outro”. Ou seja, o real não para de trocar de posição com o imaginário, com o sonho ou com o delírio. É verdade que já no cinema clássico não faltavam imagens de lembranças, sonhos e delírios. Na narrativa clássica, no entanto, estas aparecem numa separação bem nítida, numa distinção clara, a ponto de em alguns casos termos a impressão, como assinala Deleuze, de elas estarem demarcadas nos filmes quase como se houvesse um aviso: “agora é a lembrança”, “agora é o sonho”, “agora é o passado”. No cinema moderno, no entanto, tais imagens parecem ganhar um papel ativo bastante distinto. Isso acontece não apenas porque no esquema da percepção atenta, a atenção que prestamos ao objeto faz com que a descrição deste se construa graças às imagens da memória evocadas por esta percepção: imagens chamadas de imagens-lembranças. Mas antes porque, afirma Deleuze, as imagenslembranças só podem existir na medida em que existe o que Bergson designa como uma “lembrança-pura”. A questão é que o passado não é para nós, segundo Bergson, apenas um estado psicológico: ele existe em si mesmo e de maneira anterior a nós. Neste sentido, nós não temos uma memória, mas estamos instalados numa memória. A imagem-lembrança é, neste caso, o modo como se atualiza este passado evocado por uma percepção atual. A verdadeira imagem virtual vem a ser então esta lembrança pura: é ela que dá uma profundidade às nossas descrições. A imagem virtual – a lembrança-pura – existe então fora do que tradicionalmente chamamos de consciência e de memória: ela existe no próprio tempo. Para Bergson, a sua existência é tão real quanto a existência dos objetos materiais que percebemos. É esta espécie de passado puro que nos permite fazer uma descrição de um determinado objeto. De fato, tanto para compreender algo quanto para falar uma determinada língua, nós nos

instalamos num passado. Para uma palavra, por exemplo, o passado é o seu sentido e significado. Ver e compreender algo no presente é estar diante de uma “ponta de presente” por trás da qual se contrai todo o passado. É verdade que houve algumas interpretações de Bergson que deixaram a impressão de que o tempo era para ele um aspecto da interioridade. O esquema da percepção atenta começa a nos mostrar, no entanto, que o que acontece nessa situação ótica e sonora pura é que experimentamos uma abertura para o tempo. Contudo, esta abertura ainda não se apresenta plenamente quando é apenas uma imagem-lembrança, diz Deleuze a partir de Bergson; ao contrário, é uma espécie de falha no esquema da percepção atenta que parece revelá-la. Em outra palavras, é quando um circuito estendido entre uma imagem atual e uma imagem virtual se quebra, ou não consegue se formar, que a imagem pode ser percebida em toda a sua profundidade, isto é, que ela mergulha no tempo, no passado, e se revela como passível de atualizar infinitos tempos. É exatamente o que acontece com a pergunta sobre o que seria “Rosebud” em Cidadão Kane . ⁴ O que se mostra aí é, na verdade, a dupla face da imagem para Bergson. Para compreendê-la, devemos nos aprofundar em mais esta originalidade de seu pensamento: a sua concepção do tempo. Bergson desenvolve uma determinada concepção de passado que vai além daquela que designa apenas um presente que passa. Antes, Bergson concebe um passado que é uma dimensão do presente, ou seja, que é contemporâneo ao presente. Passado e presente têm entre si o que Deleuze designa como uma “coalescência”. É precisamente este passado que é a imagem virtual: uma imagem virtual à qual corresponde uma imagem atual – uma imagem no presente –, ou vice-versa. É este circuito entre a imagem atual e a imagem virtual – o passado e o presente que coabitam num mesmo tempo – que vai formar o que Deleuze chama de “menor circuito” e vai constituir uma “imagem cristalina” que, nas suas variações, será o mais importante tipo de imagem do cinema moderno na taxonomia das imagens feita por Deleuze. As imagens-cristais são o que Deleuze identifica em Bergson como a “operação mais fundamental do tempo”, ainda que o conceito de imagemcristal Deleuze tenha ido buscar em Bachelard. Nesta operação, segundo a concepção bergsoniana do tempo, o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas ao mesmo tempo. O tempo se desdobra a cada instante em presente e passado como se ele se cindisse em dois jatos dissimétricos, um em direção ao futuro como o presente que passa, e o outro que conserva todo o passado. Voltaremos às imagens-cristais mais adiante, encontrando exemplo em alguns filmes, o que ajudará na compreensão da sua constituição. Por ora é importante buscar entender que a imagem-tempo reúne de maneira indiscernível esta coalescência entre a dimensão atual e a virtual da imagem. Uma imagem-lembrança, por exemplo, só trará consigo o signo do passado porque nós fomos buscá-la nesta “lembrança pura”, neste passado puro que é a pura virtualidade. Antes de se apresentar atualizada numa imagem (imagem-lembrança), ela irá buscar esta imagem numa espécie de “virtualidade original”. Por isso mencionamos a pergunta por “Rosebud” em Cidadão Kane como um caso exemplar de lembrança pura. Poder-se-ia

objetar que no final do filme ficamos sabendo que Rosebud era o trenó de Kane quando criança. Mas nenhum personagem do filme jamais o sabe: ele será sempre este ponto virtual como uma linha de fuga no passado que aciona a memória de cada um dos que conviveram com Kane quando perguntados sobre o que seria “Rosebud”. As imagens óticas e sonoras puras fazem então o papel de evocar este passado; são elas que, por não se prolongarem num movimento sensóriomotor – e até por o interromperem –, produzem uma quebra no esquema percepção-ação do cinema clássico. Em termos bergonianos, esta é uma quebra que acontece no centro de indeterminação graças a um outro tempo que vem de fora dele, forçando-o. Num certo sentido, a memória vai ser uma espécie de via para este caminho: um caminho para a lembrança pura, para o passado puro. Por isso não se trata apenas de uma operação da interioridade, mas de uma abertura da interioridade, via memória, para o que ela traz de fora; para o que quebra a subjetividade fechada de cada um de nós, e que nos faz, de certa forma, um portador, um presentificador do tempo: um tempo que se identifica com o Todo da imagem-movimento acentrada, ainda não disciplinado como um “número do movimento”, e portanto ainda não submetido ao movimento. E aqui aparece para nós uma importante aproximação com Nietzsche. Aproximação que neste ponto não está explícita em Deleuze. De fato, o que se quebra com a imagem-tempo, o que não pode continuar existindo quando aparece um opsigno , por exemplo, é uma ordem de causalidades. É como se a imagem-tempo trouxesse um devir estranho ao filme. O soldado norteamericano negro de Paisá , como vimos, tem uma história, uma narração com um fim, para “executar”, para cumprir na Itália. Tudo deveria funcionar como um ator que tivesse estudado cuidadosamente um roteiro e aprendido bem o papel a ser exercido pelo seu personagem. Mas as imagens com as quais ele se depara acabam por explodir a história dos atos e dos acontecimentos justificados de uma guerra: desmonta o que estamos chamando aqui de “clichês de guerra”. É isso que, a partir de Deleuze, podemos designar como o rompimento de um sistema sensório-motor. Antes, no cinema clássico, as imagens vinham no tempo do personagem e, portanto, o passado – a memória de imagens que são sempre enunciados – de um soldado americano em um filme de guerra clichê só poderia ser a da América civilizada e livre que vem libertar a Itália. Neste caso, só há um passado possível porque também só há um futuro possível: o destino, a finalidade da missão de guerra. Todas as imagens deste filme serão em virtude da ação civilizadora e libertadora da América na Itália e no mundo. Agora, no entanto, com o neorrealismo, como vimos no exemplo de Paisá , as imagens ou alteram a ordem de causalidades do filme, ou impedem o encadeamento desta ordem. Isso acontece exatamente porque elas não estão no tempo de uma narração fechada, de uma história com vistas a um fim, isto é, elas não estão ali mais apenas para servir a um sentido que é como um destino lógico: um destino moral dos personagens. Elas trazem outros sentidos possíveis e, por isso, trazem outros tempos e alteram o movimento do filme. Este ato de trazer outros tempos é também um ato de trazer outros passados. De fato, o

sentido de uma palavra, de uma imagem e de um signo em geral, é o passado deste signo. Se, por exemplo, estamos todos numa sala dialogando, falando a mesma língua e nos entendendo, o que temos aí é uma comunhão de passados. As imagens que alteram o movimento e o destino de um personagem de um filme são como signos que trazem a este personagem outros significados. Estes outros significados vêm de outros passados diferentes daquele que deveria constituir o clichê. Quer dizer, é este outro passado, ao trazer um sentido diferente do clichê – um outro sentido possível –, que desmonta a história que era organizada em torno de uma lei. É verdade que no esquema sensório-motor do cinema clássico as imagens também eram signos. De fato, o signo é a própria expressão da foto, do enquadramento, da interpretação que no limite do horizonte do intervalo instaura uma percepção com um sentido selecionado que vai, a partir de então, voltar-se para um encadeamento lógico, ou seja, imobilizar-se numa afecção ou se desdobrar numa ação: uma narração no interior do intervalo. Mas o que agora acontece é que este signo intervém de fora do esquema sensório-motor da narração. No caso de Paisá é o que vemos, por exemplo, na imagem da miséria de Napoli que lembra a vida miserável do soldado na América – e portanto não mais o passado fechado das imagens de uma América paradigma de liberdade e civilização. Tais imagens são sem dúvidas signos óticos – opsignos . Da mesma maneira, é também um signo sonoro – sonsigno – a sirene do navio que surge num sentido diferente do contexto da história do filme, que se desterritorializa e vira o som de um avião de guerra no delírio bêbado do soldado. E “desterritorializar” significa aqui, exatamente, a modulação de sentido que sons e imagens operam, na medida mesma em que estão sempre se reconstituindo como signos. É também um sonsigno o apito que interrompe esta parte do delírio: o apito de um trem. É até um trem de fato que passa pelo porto de Napoli, mas este trem vira um trem que leva o soldado de volta para a casa, numa outra cidade, num outro trilho, num outro sentido diferente do anterior onde ele tentava, embriagado, viver o clichê de herói de guerra que vinha fracassando na Napoli caótica. Neste outro futuro possível para a sua volta, não há nenhuma festa de recepção, nenhum heroísmo, nenhuma Nova York o aclamando, mas só um casebre miserável, num recanto qualquer dos Estados Unidos, de um homem negro nos anos 1940. Na verdade, se formos às descrições de Virilio, veremos que, ainda que os filmes clássicos aspirassem ao verídico, o que Deleuze chama de troca de sentidos entre o atual e o virtual sempre esteve ali. O próprio delírio do soldado norte-americano no filme de Rossellini nos mostra que são as mentiras de guerra – as falácias da propaganda de guerra –que criam, antes de qualquer outra coisa, a realidade terrível da guerra. É o que Virilio percebe quando nos mostra o quanto a estética da propaganda estatal de guerra, da propaganda das grandes corporações privadas que cresceram impulsionando e sendo impulsionadas pelos dispositivos de guerra, e dos filmes de guerra propriamente ditos, são impressionantemente semelhantes. ⁵

Milhões de soldados americanos mobilizados para lutar num lugar estranho além mar (parece que para a ideologia oficial norte-americana é somente em virtude da guerra que se justifica um americano sair de seu país), quase a totalidade da população masculina alemã mobilizada, e a impressionante produtividade industrial das economias de guerra de ambos os países, já são a expressão de algo, no mínimo, muito semelhante ao que estamos chamando de clichê: esquemas sensórios-motores que se instalam à medida que envolvem os homens e suas civilizações em todo um regime narrativo e numa mobilização existencial com vistas a um fim. Quer dizer, trata-se de uma experiência de realidade totalmente fechada em si mesma, onde não há outro sentido possível; sobretudo, a perspectiva deste sentido é a recompensa, e sua justificativa, um grande princípio transcendente. Quanto à possibilidade de fuga, ou seja, a possibilidade de outro sentido, invariavelmente trará uma imagem-signo que evoca uma experiência sensório-motora de castigo, de dor e de culpa. Estas são experiências que veremos Nietzsche descrever na Genealogia da Moral . Já vimos nos capítulos anteriores toda a trajetória histórica de uma experiência perceptiva do real que é, de certa maneira, cinematográfica, ou, pelo menos, pré-cinematográfica. Mas agora, além das imagens em movimento das janelas de trens, carros e aviões, das câmaras climatizadas e cenografadas dos shopping centers , da arquitetura-cinema de nossas cidades-cinemas e das primeiras imensas salas de cinemas – muito maiores antes da guerra –, lugar das “missas profanas onde se exaltavam os valores dos estados laicos”, ⁶ como nos diz Virilio, estamos também diante de uma guerra onde as imagens servem para paralisar ou para mover corpos. Quer dizer, o cinema nunca teve essa independência que os filmes clássicos de ficção pretendiam: estes estavam desde sempre, de alguma maneira, constituindo a experiência perceptiva do real dos povos, inventando realidades, engendrando desejos e despertando temores, mesmo que escondidos por trás deste enunciado de “filme de ficção”. O neorrealismo paralisa os corpos diante de imagens que falam: imagens que trazem um sentido para além da história e do tempo do filme e que acabam por intervir na história e no tempo deste filme. É isso que acontece no momento em que a lembrança de seu casebre miserável nos Estados Unidos faz o soldado negro cair do seu delírio de herói de guerra. Mas, mesmo antes da imagem interromper o delírio do soldado, as imagens deste segundo episódio de Paisá já falavam. Era na verdade aquela estranha cidade caótica, miserável e semidestruída, antes mesmo que o álcool, que arrancara o soldado de sua “realidade”: o mundo onde ele deveria se sentir seguro, o seu clichê. Para isso colabora também o fato de que em toda a perambulação do bêbado conduzido pelo menino existe uma inversão: uma criança lúcida e um adulto delirante. É o mundo adulto – o mundo que tem o estatuto de realidade – que parece delirante e ficcional e, por isso, para o soldado, quase insuportável. Não que a criança seja aí senhora da história, isto é, de uma verdade, de uma consciência da história: mesmo que sóbria o suficiente para conduzir o soldado, ela também perambula pela cidade. Mas talvez ela seja como uma criança nietzschiana, criadora de sua própria moral, diante das situaçõeslimite que a vida apresenta. É por isso que, ao conduzir o soldado na sua

balada pelas ruas da cidade, faz com que este caia em situações que lhe são difíceis de suportar. De fato, o olhar perguntador de qualquer criança sempre vai favorecer as desconstruções dos clichês e dos códigos morais prontos para justificar a vida, ainda que isso possa virar também um clichê. Mas o fato é que diversas vezes o cinema recorre à criança: no próprio neorrealismo, em Ladrões de Bicicleta , de De Sicca, e em Alemanha Ano Zero , de Rossellini, ou no menino de Truffaut em Os Incompreendidos , ou ainda, já nos anos 1980, no garoto que narra a perseguição stalinista que recai sobre seu pai, também stalinista, em Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios , de Emir Kusturica. No mencionado episódio de Paisá , de Rossellini, o próprio fato de os clichês de guerra aparecerem num delírio já nos mostra que algo havia se quebrado. De fato, não é este que deveria ser o lugar do clichê: a função do clichê deveria ser, exatamente, a tranquilidade, o conforto, garantido pelo esquema sensório-motor que ele mesmo é: um esquema para, por exemplo, nos desviar de uma situação quando ela é “desagradável demais”, como diz Deleuze. Toda a aventura delirante, todo o transe do soldado antes de desmaiar, é como se fosse uma tentativa desesperada de realizar a história clichê que não houve. E, por outro lado, o transe do soldado tira o clichê do sentido, do tempo que ele deveria estar: o tempo da aventura pacificadora e civilizatória estadunidense na Europa. É, portanto, um clichê fora de tempo. Um clichê fora de tempo é um clichê que se revela ou, no mínimo, em vias de se revelar: um clichê deixando de ser clichê. Assim, o que altera o soldado não é exatamente um mundo “sem sentido”, e sim outros sentidos que se insinuam e que não são o que deveria ser o sentido do clichê. A imagem – o objeto-imagem, portanto – perde sua função pragmática de revelar uma situação que tenderia a se desdobrar numa ação, e a percepção como que retorna, se concentra e insiste sobre esta imagem. Por isso a imagem é o que desvia, impede ou enfraquece a ação no neorrealismo e nos “novos cinemas” que se seguem a ele. Estas imagens são, portanto, imagens óticas e sonoras puras; ou ainda, essas situações que quebram um esquema sensório-motor percepção-afecção-ação podem ser chamadas de “situações óticas ou sonoras puras”. É verdade que há ainda uma menção à história clássica no neorrealismo: uma lembrança do clichê. Mas é isso que causa dor, perplexidade, paralisia, ou ainda que desvia o caminho do soldado americano, isto é, o clichê que é impedido de se realizar. Como vimos, o soldado chega à Itália para o seu “destino clássico”. É como se ele esperasse que o clichê estivesse lá para poder passear protegido por ele. O clichê pode até ser cheio de aventuras, pode ser emocionante, arriscado, mas apenas como um brinquedo de parque de diversões – destes que os norte-americanos aperfeiçoaram ao extremo. Neste caso, a saída segura da aventura está garantida. A história “prevista” para aquele personagem simplesmente não pode prosseguir porque a imagem diante da qual ele se depara não está ali em função desta história. Ao contrário, é essa imagem mesma, como uma situação ótica e sonora pura, que o lança para fora da história; é ela que opera o que Deleuze chama de insurgência do tempo sobre o movimento: o instante em que o tempo reverte a sua subordinação ao movimento. ⁷ Não se trata de uma “troca de finais” ou de uma mudança nos acontecimentos do

filme, já que aqueles acontecimentos “previstos” teriam um determinado caráter ideológico. É algo mais radical do que isso. É uma alteração no tempo do filme e, mais ainda, uma alteração no lugar que o tempo ocupa em um filme. A imagem opera a insurgência do tempo exatamente porque ela faz uma intervenção no movimento do filme. Movimento ao qual antes, no cinema “clássico”, cabia à imagem apenas se submeter, ou seja, surgir como imagem em função deste movimento e em função da própria ação dos personagens. Neste sentido, André Bazin nos chama a atenção para o fato de este cinema passar a privilegiar o plano em relação à montagem, ⁸ invertendo a subordinação que aquele tinha em relação a esta no cinema clássico. Bazin tinha de fato condenado um privilégio da montagem no cinema clássico, mostrando que era a maneira como esta submetia o plano que fazia muitos dos filmes serem absolutamente previsíveis. A força que o plano, e em particular o plano sequência, adquire teria restituído à realidade as suas lacunas, o seu caráter fragmentar, esvaziado a sua previsibilidade, e restituído ao espectador um caráter ativo ao assistir aos filmes. É contra a lei que o tempo se insurge. Nietzschiano, como a criança, o tempo é aí transmoral: destrói a lei, embora possa até vir a fundar outra. A propósito, Heráclito, o filósofo grego preferido de Nietzsche, já tinha chamado o tempo de “vigência da criança”. ⁹ Mas, para além de Heráclito e de Nietzsche, este é um tempo bergsoniano. Sua intervenção desde fora do esquema sensório-motor se dá porque este é o seu caráter mais essencial, qual seja, o de um movimento que se move exatamente à medida que cria o novo. É vindo de fora do limite do esquema sensório-motor do centro de indeterminação – das imagens-viventes que são a nossa própria experiência de realidade – que o tempo se insurge sobre o movimento. E isto acontece porque no interior do centro de indeterminação – do intervalo – o movimento é sempre limitado e, portanto, um movimento que se dá sempre em função de uma lei. Mas o tempo do Todo não tem lei, ou seja, não tem um esquema sensório-motor que lhe discipline. Neste sentido, a intervenção que este movimento do Todo, enquanto expressão do próprio tempo, faz no esquema sensório-motor que nos constitui tem até o caráter de uma certa violência sensório-motora. Por outro lado, ela é libertadora quando a violência sensório-motora está na própria lei que limita as experiências do centro de indeterminação que nós somos. Enfim, para o nosso soldado, não há mais razão para recuperar suas botas roubadas pela criança durante a bebedeira, no que seria um ato restaurador e moralizador da lei: simplesmente não há mais lei a restaurar. O soldado então silencia em meio à favela onde a criança, que agora se revela órfã de pais perdidos num bombardeio, morava. Ele desiste de “fazer justiça” num gesto que é como uma aceitação trágica da quebra do clichê. Este é até um momento triste do filme; na verdade, é o final dele. Mas é o final do filme, e não da história do soldado. Assim, ele parece se libertar daquele sofrimento típico de quem não vê acontecer o que deveria estar acontecendo: o soldado se liberta porque desiste do grande fim. É como se ele adquirisse uma consciência de sua – nossa – perambulação, caindo na estrada Itália afora: a dimensão on the road que o neorrealismo sem dúvida tem. É também cheios de promessas de grandes recompensas, e por estarem realizando uma grande missão para o rei (a lei), que dois jovens camponeses

são convocados para a guerra em Tempo de Guerra , de Godard. Podemos descrever o clichê como uma experiência – ou a busca de uma experiência – de um sentido que se dirige para uma grande recompensa. É verdade que os soldados do rei do filme de Godard prometem mais ou menos a mesma coisa que a propaganda de guerra norte-americana, e que esta promessa é plena de grandes prazeres, gozos e premiações. Mas tudo isso rigorosamente dentro de uma lei, qual seja, você será recompensado se se sacrificar e servir. É por isso que os soldados do rei que convocam para a guerra têm uma performance diante dos camponeses que varia esquizofrenicamente entre as promessas sedutoras e atos violentos de intimidação, como se quisessem todo o tempo dizer: – Nós vos prometemos uma recompensa, uma felicidade, mas ai de vocês se desejarem outra coisa, se acharem que a felicidade não é esta que nós vos prometemos. Em suma, a performance dos soldados de Godard é exatamente a performance da lei. Mesmo que estes ora sejam violentos, ora sedutores, o que eles dizem o tempo todo é: “Nós somos os juízes. Nós é que castigaremos, nós é que recompensaremos.” Godard nos apresenta assim a performance, o teatro, enfim, todo um conjunto de agires que “falam” – são signos – do esquema sensório-motor de recompensa e castigo da propaganda de guerra. Esta é sempre plena de imagens-signos que visam ora a nos seduzir para os combates, ora a nos ameaçar para que não pensemos em deserção. E uma vez que é impossível falar de uma guerra sem riscos, a propaganda de guerra fala-nos sempre de um risco rigorosamente dentro da lei, ou melhor, um risco pela lei, regido pela lei; enfim, um risco que se justifica na lei e que justifica a lei. Neste sentido, talvez os clichês de guerra não devam ser comparados, como fizemos há pouco, com os brinquedos de parque de diversão. Nestes últimos, paga-se para viver um falso risco e sair vivo; já na guerra há o risco, a dor e a morte, mas que são, para nós, da ordem do clichê porque estão “justificados”: se constituem numa lei em função da qual se organiza a lógica de uma narração, de uma história. Assim, começamos a compreender por que podemos dizer que o cinema clássico contribui para exaurir o projeto de verdade como critério de veracidade do Ocidente e, mais particularmente, por que ajuda a exaurir a noção de busca da verdade como a de uma busca da apresentação empírica desta: é como se a “mágica da verdade” começasse a ser revelada. Talvez tenhamos feito aí um raciocínio até bastante hegeliano, quer dizer, um determinado processo histórico se exaure, se esgota, quando finalmente realiza sua meta. Mas, por outro lado, talvez seja um caráter não linear e não evolucionista da história que ajuda a explicar a vigência, ainda num certo estrato de compreensão de realidade, deste regime de verdades que crê e apregoa uma revelação empírica da verdade como uma espécie de “acontecimento” da razão, como chamou Virilio. Um “acontecimento” que nada tem a ver com o sentido que Deleuze dá a este conceito, posto que designa apenas a prova empírica do que já estava previsto por um transcendente: a razão. Em todo caso, aquilo que identificamos com o que Virilio chama de “misticismo cientificista tecnicista”, ou ainda o que Bazin chama de “mito do cinema total”, de certo modo se realiza em toda a primeira fase do cinema. Mas, ao contrário do que pretendia esta espécie de positivismo empirista,

ele não se realiza como o “fim da história”. Mesmo quando compreendidos como filmes de ficção, o que estes faziam era tentar reconstruir, na independência do filme, uma noção de realidade que teria uma verdade em si que deveria ser revelada no filme – a verdade em si do filme –, tal como buscava o positivismo. Eram filmes que “aspiravam ao verídico” como nos diz Deleuze, tal como os labirintos lógicos que temos que resolver em alguns filmes de Hitchcock: o filme termina, a história se fecha, quando o encadeamento lógico buscado se revela. À maneira nietzschiana, veremos então que o desmonte da crença na verdade em si, da qual o cinema é inicialmente sintoma e meio, é também o desmonte na crença de que a história, assim como todo movimento existente no universo, se organiza em função de leis. É dentro deste raciocínio que percebemos que o esgotamento de uma determinada concepção de verdade é também o esgotamento de uma determinada concepção moral, ainda que percebamos – confirmando as previsões nietzschianas de uma vigência de dois séculos do niilismo – que essas concepções insistem em se manter numa vigência moribunda, esvaziada de potência e, exatamente por isso, nociva. Assim, o cinema, que de início se anuncia como a última grande realização deste processo – sua consumação final –, vai agora surpreendentemente contribuir para levá-lo ao esgotamento. Será, portanto, a crise desse esquema de recompensa e castigo, isso que amarra logicamente o clichê a partir de uma lei – uma história, uma narração com vistas a um fim e em função de um princípio –, que será ainda aprofundado no trecho a seguir. Para isso será fundamental entendermos como as leis, em torno das quais se organiza o clichê, estão num esquema semelhante ao que Nietzsche nos descreve na Genealogia da Moral . Deleuze, Peirce e o cinema: uma semiótica do movimento Falar em opsignos e sonsignos nos leva ao estudo que Deleuze fez do extremamente complexo sistema semiótico de Charles Sanders Peirce, do qual ele mesmo, como esclarece antes de entrar no assunto pela primeira vez em A Imagem-Movimento , faz ali apenas um resumo. Mas o fato é que todo o sistema semiótico de Peirce é fundamental para que Deleuze, mesmo que seja criticando-o e buscando superá-lo em alguns de seus aspectos, empreenda aquilo que é uma das propostas de seus estudos sobre cinema, qual seja, o de empreender esta classificação, esta espécie de taxonomia das imagens cinematográficas. Neste contexto, é importante compreendermos por que Deleuze toma Peirce como base. O francês escolhe este autor norte-americano porque ele constrói toda a sua semiótica a partir de uma crítica que é dirigida à semiologia, crítica com a qual Deleuze está de acordo e que, além disso, permite a aproximação de Peirce com Bergson. Os problemas que Deleuze vê na semiologia, e que pensa terem sido superados por Peirce, pelo menos parcialmente, vêm de uma crítica de inspiração bergsoniana que Deleuze dirige à “ciência dos signos”. O problema desta última seria tentar compreender um esquema estrutural da língua, um sistema de signos, desconsiderando a modulação, o movimento. É como se a semiologia cometesse, para Deleuze, um erro histórico análogo, e mesmo semelhante,

àquele que para Bergson a filosofia e a ciência cometeram ao tentar compreender o movimento: confundir a trajetória percorrida por um corpo, os pontos pelos quais este passa no espaço e os instantes no tempo, com o próprio movimento. A origem dos signos para Deleuze está naquele movimento mesmo que funda o centro de indeterminação. De fato, na relação deste com o Todo da imagem-movimento, esta última sempre estará dando origem a signos, uma vez que a nossa relação com ela é a de uma interpretação, de um enquadramento: a “foto” que tiramos do universo acentrado da imagemmovimento. A origem dos signos está, então, na própria “percepção da percepção” da qual falamos. É o que Deleuze percebe também na semiótica de Peirce. Este empreende uma classificação geral de signos que é, ao mesmo tempo, uma classificação geral de imagens. A própria experiência do signo em Peirce tem sua origem numa imagem. Esta imagem é, segundo Deleuze, semelhante à imagemafecção, ou seja, a imagem-percepção selecionada, especializada, que vai preencher o intervalo: o centro de indeterminação que se constitui no Todo. Deleuze procura assim, a partir de cada uma das três variações da imagemmovimento, encontrar correspondentes na classificação das imagens feita por Peirce. ¹⁰ O norte-americano nos fala de uma primeiridade, uma segundidade e uma terceiridade. Estas corresponderiam, segundo Deleuze, respectivamente, à imagem-afecção, à imagem-ação e à imagem-relação. Como vimos, a imagem-afecção traz consigo a própria origem da percepção que se dá no intervalo: ela é a expressão desta percepção selecionada que acaba por ocupar este intervalo. A segundidade ocorre justamente quando se age, e executa um movimento no meio criado no interior deste intervalo: a imagem-ação. E, por fim, a terceiridade é exatamente o que encadeia a ação que acontece dentro do intervalo com os outros aspectos deste, isto é, com o processo e os sentidos que já estavam ali: a imagem-relação. ¹¹ O signo é, em Peirce, na verdade uma imagem que vale por outra imagem. Temos aí outra tríade que ele compõe para classificar os signos: o representamen , que se constitui num objeto através de um interpretante . Esta relação, no entanto, segue trocando de posição infinitamente. O próprio interpretante não fecha esta relação definitivamente e pode ele mesmo se tornar um signo. Assim como, numa direção contrária, o que chamamos objeto não é jamais “objeto em si mesmo”, mas sempre uma imagem que se constituiu de outra imagem e, precisamente por isso, pode ser interpretada como um signo. Ou seja, é exatamente a percepção especializada do centro de indeterminação, a imagem-afecção, que sempre só poderá se dar como um signo. A seleção, a especialização, que constitui o caráter mesmo desta percepção, é sempre à maneira de uma imagem experimentada como signo, ou seja, uma imagem que tem uma dimensão qualitativa que indica um sentido. É portanto a partir dos estudos que faz de Peirce – aproximando-o de Bergson – que Deleuze diz que a semiologia, com suas codificações, exclui o movimento, logo, a modulação como operação essencial da percepção da imagem-movimento. Peirce, por outro lado, teria compreendido – ainda que

parcialmente – a importância dessa modulação. É aí, nos diz Deleuze, que o sentido se constitui. Esta é a própria operação de se (re)traduzir o Todo acentrado e eternamente móvel numa linguagem, de enquadrá-lo, de recriálo num plano de maneira que ele seja sempre signo. Esta é a experiência que se dá no horizonte do intervalo, do centro de indeterminação: a realidade interpretada tal qual o mundo que criamos para nós. Trata-se exatamente do que Bergson define como uma percepção selecionada , ou seja, a que extrai do Todo apenas uma parte, um enquadramento: uma foto. Para Deleuze, é de acordo com este raciocínio que as codificações às quais se dedica a semiologia são sempre “meio pobres” ¹² para se interpretar uma imagem. Isso aconteceria porque a semiologia se constrói a partir da distinção entre imagem e objeto que é exatamente o “erro histórico”, digamos assim, que a filosofia e a ciência teriam cometido – como apontou Bergson no primeiro capítulo de Matéria e Memória . Os sentidos dos signos, o significado dos significantes, que a semiologia interpreta é, na verdade, o sentido, o significado que estes adquirem como um “corte imóvel”, um “golpe” ( coup ) no movimento que, para assim serem interpretados, precisam ser subtraídos do movimento. O que Bergson nos ensina, no entanto – e Deleuze toma como decisivo para o seu estudo sobre cinema –, é que o objeto só é percebido porque é sempre já um objetoimagem. A percepção é um fenômeno inerente ao movimento, ela se dá a partir do movimento e porque gera movimento, não podendo portanto ser analisada apartada dele. E é exatamente por isso, a propósito, que a experiência da percepção de um objeto é sempre a experiência da percepção de uma imagem. Isto constitui a essência da imagem-movimento: uma matéria bruta de um universo acentrado, onde tudo percebe tudo e que, em referência a estes intervalos que se criam no seu próprio interior – os centros de indeterminação –, torna-se um “enunciável”. ¹³ É aí que se dá o que Peirce designava como percept . ¹⁴ O “enquadramento” que o centro de indeterminação faz nessa matéria bruta é o próprio ato da gênese da linguagem: da realidade que é sempre, para Bergson, e aqui também para Peirce, no modo de ser de uma representação e de uma virtualidade. Este é o momento em que nós nos apoderamos dessa matéria que, insistimos, é uma matéria sempre em movimento. Mas a questão para Deleuze é que este processo que dá gênese à própria linguagem ocorre o tempo todo. De fora do centro de indeterminação, o Todo continua em movimento, e este Todo – a primeira dimensão da imagempercepção – está sempre a afetar, desde o lado de fora, o centro de indeterminação, rompendo, vez por outra, o esquema sensório-motor que o constitui. É por isso que os enunciados e as narrações “ não são um dado da imagem aparente ” ¹⁵ , mas estão fundados nela. Não há lei fechada da narração da mesma maneira que não há estrutura em si da linguagem. Como a gênese da linguagem nunca deixa de estar numa referência a esta matéria bruta em movimento que a princípio é a-significante – ainda que o centro de indeterminação não possa viver sem lhe emprestar significado –, esta se traduz sempre por uma modulação que altera a própria estrutura da linguagem.

É como se existisse aí, diz Deleuze, uma zeroidade , ¹⁶ antes da primeiridade vista por Peirce. Trata-se aí da grande modulação do universo: o tempo sempre produzindo o novo. É esta que instiga, afeta e está sempre a quebrar o esquema sensório-motor do intervalo: do centro de indeterminação. A questão é compreender que tipos de imagens são estas que surgem não mais numa ordem de referências que se constroem no horizonte do centro de indeterminação, ou seja, imagens que não estão mais restritas a um encadeamento lógico que se dá entre imagem-afecção, imagem-ação e imagem-relação. A questão agora é compreender e classificar as imagens de um cinema onde este sistema fechado, à maneira de uma narração, de uma história em virtude de um fim, é quebrado, interrompido e se coloca diante de outros sentidos possíveis. Aqui acontece o que Deleuze vai chamar de “insurgência do tempo sobre o movimento”, que vai se dar a partir do momento em que nos deparamos nos filmes com toda uma série de fenômenos semelhantes àqueles que experimenta o soldado norte americano do filme de Rossellini que mencionamos. É aí que os signos óticos e sonoros puros, os opsignos e os sonsignos, têm a sua gênese . Estes alteram os sentidos à medida mesmo que alteram e/ ou quebram o movimento que se dá dentro do centro de indeterminação. E se o esquema que se dá dentro deste é semelhante a um clichê, ou seja, a um esquema sensório-motor fechado em si mesmo, os sonsignos e opsignos quebram os clichês uma vez que representam a atuação do tempo – o eterno fluir do todo produzindo o novo – sobre o movimento do interior do centro de indeterminação que nós somos. Assim percebemos o quanto a grande questão da interpretação dos sentidos – e isto expressa uma posição filosófica de Deleuze – não está, em relação à filosofia, na compreensão do sentido em si deste ou daquele conceito. Da mesma maneira, em relação ao cinema, a compreensão também não pode acontecer na interpretação do sentido em si desta ou daquela imagem, ou das leis de relação que estas podem estabelecer entre si. A interpretação de um sentido acontece no nosso contato-limite com a imagem-movimento do Todo. O que se dá aí é uma interpretação à maneira nietzschiana: uma criação, uma constituição de sentido. É neste limite da experiência de realidade que podemos ter – no horizonte do mundo, do “intervalo” no qual vivemos – que os próprios sentidos se redefinem. É por isso que podemos ver Deleuze entre aqueles filósofos que recusam todo tipo de transcendência, de “universais”, e se incluindo entre aqueles que ele mesmo chama de “filósofos da imanência”. ¹⁷ É a partir deste raciocínio que ele vai compreender a função e a potência da filosofia numa grande identidade com a potência que ele vê no cinema, qual seja, a de criar conceitos, sentidos e novas dimensões de realidade. É interessante observarmos o quanto Roland Barthes, um dos maiores nomes da semiologia, chega a posições muito próximas às de Deleuze quando, pouco mais de uma década depois de ter exposto o seu projeto semiológico em Mitologias , ¹⁸ o reavalia no texto “Mito Hoje”. ¹⁹ Barthes afirma aí que o discurso que se construíra na busca de sentidos velados – na análise do que se enunciava em determinada imagem que “falava” através de signos fechados – se transformou numa manifestação superficial, também cheia de sentidos velados: a interpretação de um signo acabou virando um

signo de outra coisa diferente do que está sendo dito. Por exemplo: dentro de sua proposta inicial de semiologia, Barthes fez uma famosa análise da capa da revista conservadora Paris Match , onde, em meio à proliferação das guerras anticoloniais, ele analisa a foto de um soldado africano do exército francês que, em posição de sentido, vê a bandeira da França sendo hasteada. O enunciado aí seria aproximadamente este: “todos os que nascem em ‘território francês’, mesmo que nas ‘províncias ultramarinas’ sentem-se cidadãos iguais e se orgulham de pertencer e servir ao estado e ao exército francês.” Mas acaba acontecendo com a semiologia, diz Barthes, um problema semelhante ao que a psicanálise tem que enfrentar: a transformação de suas análises, interpretações e codificações numa certa “vulgata”. Como interpretar se qualquer um pode dizer numa conversa informal e superficial que tal atitude de tal pessoa é uma manifestação do complexo de Édipo? Como compreender o que está por trás de um discurso político, quando qualquer jovem estudante de primeiro período já entra na faculdade dizendo que tal imagem é um “símbolo da ideologia burguesa”, ou do “neocolonialismo”, como no caso da capa da Paris Match ? Fazendo mais uma vez uma aproximação com Peirce, o que veríamos aí é o interpretante virando um signo a ser interpretado: uma imagem que se refere a outra imagem. O fato de Barthes perceber esta troca de posições não significa que ele veja um problema inerente à popularização do conhecimento. O problema está, na verdade, no fato de um discurso que diz “interpretar” – desvendar, revelar –, acabar se tornando a superfície de uma série de outros sentidos. O discurso do estudante, que se diz revolucionário, vira clichê porque ele não só o repete mecanicamente, como também acaba se fechando num esquema sensório-motor em torno de uma lei cuja função é exatamente velar outro sentido possível. Este outro sentido, no entanto, só estará ali para quem tiver força para desconstruir o clichê: a própria superficialidade do discurso do estudante é o signo que nos indicará esta desconstrução. A propósito, é algo semelhante a isso que Godard nos mostra em A Chinesa . Os estudantes que habitavam no aparelho revolucionário indicavam em seus gestos e palavras, todo o tempo, outros sentidos e intenções diferentes da superficialidade aparente dos falsos enunciados revolucionários: o que se enunciava, a partir de falas, gestos – e mesmo da desconexão entre estes – são signos que nos conduzem a outros sentidos. O que o cineasta francês percebeu entre os militantes maoístas foi toda uma maneira de constituir e criar verdades que mais remete aos procedimentos e esquemas sensóriomotores da moral e dos clichês cristãos. Não parece haver qualquer sinal de uma disposição realmente revolucionária naquela célula de esquerda. O que vemos, então, entre os militantes comunistas, é o esquema da “grande causa”, do grande sacrifício pelo “grande fim”. E com ele vem, como de costume, a condenação de todo prazer “pequeno burguês” – a condenação moral do que acomete o corpo ameaçando a “lei” –, enfim, o velho esquema dos cordeiros de Deus, agora travestidos em cordeiros de Mao Tsé-Tung e da revolução socialista. O que Barthes passa a propor então é uma semiologia preocupada com a descrição das reconstituições de sentido, com as transformações de significado que as palavras, as imagens, os signos, vão ganhando através do

tempo e da história. É o caso do filme de Godard, onde o partido revolucionário se transforma numa seita de um moralismo do tipo monoteísta. Esta é, sem dúvida, uma reflexão que se aproxima bastante das reflexões de Deleuze. No Mil Platôs , ²⁰ por exemplo, Deleuze vai afirmar que uma língua só se fecha sobre si mesma em função de uma impotência e que, na verdade, uma língua é sempre a expressão de uma multiplicidade. Multiplicidade que só se define desde o lado de fora definido por um limite abstrato disto que quer se fechar. É este lado de fora que permite o que ele vai chamar de “linhas de fuga” e de movimentos de “desterritorialização”. O que se constrói, então, é todo um novo jogo de conexões com outras “realidades” da multiplicidade, para assim se constituírem novos sentidos. É neste contexto que Deleuze descobre o conceito de “rizoma”, a partir do qual vai construir toda uma complexa maneira de ler esses movimentos de redefinição e transformação de sentidos. Este conceito surge, fundamentalmente, numa crítica a problemas que ele vê nas estruturas para compreender a realidade e a vida em todos os ramos da ciência ocidental. Esta lógica que seria equivocada é, sobretudo, a lógica que ele chama de “arborescente”, desde onde toda diferenciação parece condenada a ser remetida a uma raiz: de novo a “grande origem” tão criticada por Nietzsche na metafísica. Na relação entre o livro e o mundo, por exemplo, Deleuze recusa a lógica binária da mimesis , e diz que o livro não imita o mundo, mas faz rizoma com este: livro e mundo estão numa troca na qual um sempre se reterritorializa e se desterritorializa no outro, num jogo que é como a troca entre o virtual e o atual que encontramos entre cinema e realidade. Mas o que importa aqui é saber como estas reflexões nos ajudam a entender o cinema concebido por Deleuze como algo que passa a realizar conscientemente esta insurgência do tempo sobre o movimento; o cinema como uma máquina constituidora de tempo e sentido. Isto também ajuda a esclarecer por que para Deleuze o cinema não é uma “linguagem”, mas uma possibilidade do real. Além disso, o cinema não poderia mesmo ser considerado uma linguagem, uma vez que Deleuze rejeita qualquer tipo de compreensão de linguagem, ou de língua, como algo estruturado em si mesmo. Assim, se já dissemos aqui que Deleuze se filia ao que ele chama de linhagem de filósofos da imanência, diríamos também que ele se interessa por uma linhagem de linguistas e lógicos que são, de uma forma ou de outra, capazes de entender a gênese da linguagem sempre no limite e na tensão com uma realidade material e corporal em movimento. Nesta “linhagem” colocaríamos também, além de Peirce, o linguista russo Mikhail Bakhtin, o dinamarquês Louis Hjelmslev, as reflexões e provocações lógicas de Lewis Carroll e ainda a maneira como o cineasta e poeta Pier Paolo Pasolini enfrenta a semiologia de Umberto Eco para afirmar o cinema como uma “linguagem do real”. Aqui caberia perguntar como Deleuze poderia estar de acordo com Pasolini, uma vez que afirma que o cinema não é uma linguagem. Mas chamar o cinema de uma “linguagem do real” é negá-lo como uma linguagem em si mesma, e descobrir, por um caminho inverso, o real como sendo, de certa forma, cinematográfico. 1 BARTHES, Roland. Mitologias . São Paulo: Difel, 1982. Voltaremos a este exemplo logo adiante, quando falarmos das críticas de Deleuze à semiologia (e da autocrítica de Barthes).

2 ARISTOTE. La Physyque. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 1999, livro IV, 219bl. 3   Matéria e Memória , p. 118-119. 4 A função de “Rosebud” em “Cidadão Kane”, de Welles, será analisada como exemplo do que Bergson chamava de um “passado ontológico” ou um “passado puro”, no capítulo “Cristais de Tempo, lençóis do passado”. 5 VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema , op. cit., p. 105. Virilio chega a nos apresentar aqui alguns cartazes de propaganda onde símbolos de famosas empresas privadas alemãs, no caso a Mercedes Benz, aparecem orgulhosamente ao lado da suástica nazi. 6 Ibidem, p. 51. 7 I T., p. 50. 8 BAZIN, André. Qu’est-ce que le Cinema? Paris: Les Editions du Cerf, 1999, p. 73. 9 LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Heráclito”. In: Os Pensadores Originários , op. cit., frag. 52. “O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança.” 10 I. M., p. 93 11 I. T., p. 45. 12 I. T., p. 40. 13 I. T., p. 42. 14 VANDENBUNDER, André. La rencontre Deleuze Peirce. In: Lé Cinema Selon Deleuze . Paris: Presses de La Sorbonne Nouvelle, p. 91. 15 I. T., p. 42. 16 I. T., p. 45. 17 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? , op. it. 18 BARTHES, Roland. Mitologias . São Paulo: Difel, 1982. 19 BARTHES, Roland. “O Mito Hoje”. In: O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. 20 DELEUZE, Gilles. Introdução: “Rizoma”. In: Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, v. 1. 2. Nietzsche e Bergson:

moral e clichê À medida que descreve como a moral está na origem da razão, Nietzsche mostra que a experiência primeira da vida – de onde se desdobram todas as outras – é uma experiência corporal, fisiológica, sensorial. Não há para Nietzsche uma instância imaterial, cindida do corpo, e normalmente tida como superior a ele, identificada por conceitos como “razão”, “alma”, “pensamento”, “consciência”, e que constituiriam o que teríamos de mais essencial. Ao contrário, para Nietzsche é uma potência cosmológica que nos afeta fisiologicamente – corporalmente portanto – que está na origem de toda a nossa experiência de realidade. Nós traduziríamos esta experiência naquilo que chamamos de “realidade”, ou até de “verdade”, como se fôssemos um transdutor, ou seja, um dispositivo que transforma a natureza de uma determinada forma de energia em outra: a potência do devir em nossa própria potência. Esta é para Nietzsche ao mesmo tempo a origem da nossa experiência de realidade e, grosso modo, a origem da linguagem e do que chamamos de “cultura” e “civilização”. Neste contexto, a imagem iria aparecer bem no coração desse processo: “Um impulso nervoso que se transforma em imagem, uma imagem que se transforma em som”, ²¹ como ele mesmo diz em “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral”. Por isso, para Nietzsche somos uma força propulsora deste devir cosmológico. Ele se manifesta em nós na medida em que não somos só uma força que quer resistir a ele, mas que quer ser ativa a partir dele e nele: quer criar, se afirmar e se expandir na vida. É aí que transformamos, no limite de nossas possibilidades, a potência da natureza em um “mundo para nós”. Neste instante, no afã de disciplinar esta força, tendemos a criar esquemas, ordem, lei, lógica, forma, articulação de causa e efeito, conhecimento e razão. É como se a potência cosmológica se manifestasse numa espécie de instinto vital. Mas este instinto, por sua vez, teria se afirmado à medida que nós, como um animal que lutava para resistir e se afirmar na vida, tivéssemos precisado controlálo. Somos o “animal que teve que travar a luta pela existência com o intelecto porque não foi dado garras e dentes”. ²² É exatamente neste movimento que nos tornamos, para Nietzsche, um estranho animal que precisou criar um regime para o corpo, precisou disciplinar os instintos num sistema fisiológico: “sensório-motor”, como diria Bergson. É aí, segundo Nietzsche, que se funda – posto que se cria – a moral como aquilo que está na origem da razão e, insistimos: da linguagem, da cultura e da civilização. Há na origem da moral um movimento de “interiorização dos instintos”, uma interiorização que acontece em virtude de um simples adiamento destes, ou à sua transformação em outro sentido que será potencializado mais adiante. Interiorização e transformação vão se dar graças a um sistema de compensações e equivalências de valores que funcionarão como uma espécie de economia de afetos. Este movimento gera a invenção da memória que vai ser, ela mesma, o instrumento de controle dos instintos. É assim, diz Nietzsche, que o homem inventa a memória para poder prometer, ²³ exatamente porque a memória tem, originalmente, a função de prender o homem a um passado que garante para sua vida um destino supostamente fechado, predeterminado. E ela assim o faz à medida que imprime no corpo desse homem o sentimento de dívida, de culpa ( Schuld : em alemão é a

mesma palavra para “dívida” e “culpa” ²⁴ ). Assim, a memória é – do mesmo modo como sugerimos que seja o clichê – um sistema sensório-motor. Graças à memória, o vivente deve saber que tudo o que fizer tem que ser em função dessa promessa, para honrar essa promessa, enfim, para pagar essa dívida. O que a memória funda na vida, portanto, é antes de tudo uma noção de sentido: viverei para cumprir o que prometi, viverei para pagar essa dívida. É neste movimento, diz Nietzsche, que está a origem de toda a objetividade e racionalidade, e antes, como já vimos, da própria linguagem identificada com a nossa experiência de realidade. Esse seria então o momento em que o homem passou a comparar forças, quantificar, buscar equivalências e leis de compensação. ²⁵ Assim, a origem da racionalidade está, em primeiro lugar, no próprio ato de criar leis: de valorar. É assim que a partir dos próprios homens se instaura algo que deve reger – e rege –, que deve governar – e governa – as nossas vidas. E este também é, para Nietzsche, o movimento que origina a própria consciência, ou seja, a origem da memória identificada com a origem da consciência, de maneira semelhante a Bergson. Segundo Nietzsche, funda-se neste momento o homem social. Precisamente à medida que o passado vai lhe parecendo cada vez mais grandioso e os homens vão se sentindo cada vez mais devedores de seus antepassados. Normalmente esta noção de grandeza de seus antepassados é proporcional ao poder e à prosperidade que a sociedade vai alcançando. A dívida então se formula desta maneira: a eles devo tudo o que tenho e tudo o que sou. Este é o movimento que Nietzsche descreve como um voltar-se para dentro dos instintos que teria acontecido com o “homem primitivo”: a “interiorização do homem” e, consequentemente, a origem do que chamamos “alma”, ²⁶ ou melhor, a origem da crença no que chamamos “alma”. Lembremo-nos de que para Platão, por exemplo, a alma é a própria presença da racionalidade no homem: a alma como a nossa porção essencial, inata e eterna, que participa da razão como perspectiva e princípio do universo, e em função da qual deveríamos organizar a vida. Mas esta dívida para com nossos antepassados, segue Nietzsche, vai se tornando cada vez mais longínqua, chega a um tempo fantástico, a outra dimensão, e termina por constituir-se numa transcendência. E aqui Nietzsche levanta a hipótese de ser esta a explicação para a “origem dos Deuses”. ²⁷ Não por acaso, é logo adiante que ele vai afirmar que o advento do Deus cristão é o momento máximo do desenvolvimento, entre os homens, do sentimento de obrigação; portanto, este é também o momento máximo desse processo de interiorização dos instintos que nos leva fundo na constituição de uma memória e de uma consciência. É a partir daí, no entanto, que se dá, para Nietzsche, o drama do homem: tornamo-nos um animal que se castiga por dentro, que se vinga de si mesmo na medida em que se volta contra a própria vida; enfim, como diz o filósofo, somos a fera que tentou se domesticar enjaulando-se e que se feriu nas grades da própria jaula que criou para si. ²⁸ O que se dá aí é um esquecimento, o pior de todos os esquecimentos, que paradoxalmente alimenta um culto fervoroso e cego ao passado, um culto à memória: o esquecimento de que este processo de interiorização dos instintos começou exatamente porque o homem pretendia se expandir e se afirmar na vida.

É por isso que este “voltar-se para dentro” do homem teria chegado a tal ponto que estaríamos vivendo de maneira apenas reativa. Teríamos aí um homem doente de si mesmo na medida em que desenvolvera, graças ao sentimento de dívida, um servilismo em relação ao passado cada vez mais “transcendente”, que o fizera esquecer que esse passado, agora reificado, tinha sido uma criação sua. Ou seja, o homem reativo e devedor – culpado – vive apenas para resistir ao mal, para evitar tudo o que não honra o princípio imaculado ao qual ele deve. Trata-se de um homem acovardado diante de tudo que não está de acordo com o sentido que lhe foi prescrito por um passado que é agora uma lei transcendente que só pode condená-lo ou absolvê-lo. Um homem tomado pelo que Nietzsche chamou de “espírito de vingança”. A rigor, o que temos aí é, resumidamente, a própria tipologia psicológica do que Nietzsche vai chamar de niilismo: a “Vontade de Nada”. Mas esta tipologia é também uma tipologia histórica. A moral como um esquema de controle dos instintos teria se transformado num valor em si mesmo – vivenciado agora como transcendente, anterior e superior aos homens – e ganhado o nome de “razão”. O racionalismo, portanto, teria se deslocado, como Nietzsche nos leva a crer, para uma espécie de reterritorialização do moralismo monoteísta judaico-cristão misturado ao que o próprio Nietzsche identificou como “platonismo”. ²⁹ Este homem que teme o seu próprio passado e para o qual a vida só tem um sentido é um homem incapaz de criar sentidos para si. Para ele, o sentido só pode ter um destino predeterminado, e a não realização desse destino só pode significar uma coisa: dor e castigo. Na verdade, para este homem toda dor é um castigo: a dor, como todo acontecimento, deve estar justificada. Para ele, não há lugar para acaso, nem é possível compreender a dor com o próprio afeto do devir da natureza e da vida. É por isso, inclusive, que para Nietzsche, o sofrimento, como a experiência fisiológica da “falta de sentido”, é uma experiência originária: é como se, antes de qualquer coisa, estivéssemos desde sempre lançados numa existência vã. O próprio niilismo nasce, segundo Nietzsche, da constatação que todo esforço pela vida é vão. O problema é que nós não suportaríamos tal constatação. É neste raciocínio que ele insiste em trazer para a filosofia o que chama de “modo de pensar trágico”. ³⁰ Este, diante da experiência da ausência de sentido, ou seja, da situação-limite para a qual somos conduzidos ao perceber – sentir – que todo o esforço pela vida é vão, faz com que nos lancemos de novo na atividade de criar, constituir sentidos. O homem trágico, quando radicaliza a experiência constitutiva e inevitável do niilismo, age como Zaratustra: “É isso a Vida. Pois muito bem, outra vez!” ³¹ É assim que se aciona a nossa vontade criadora: a Vontade de Potência. É agindo como um filósofo num sentido, digamos, “tradicional”, isto é, investigando onde está a origem da realidade, que Nietzsche chega à conclusão de que a verdade é uma forma de ilusão – de falsidade – que triunfa como verdade; ou ainda que não existe verdade, apenas interpretações. Nietzsche afirma o caráter originalmente virtual da nossa experiência do real. É como filósofo também que ele se mostra preocupado não só em encontrar a origem de toda a experiência da realidade, mas sobretudo em nos fazer capazes de reinventar essa experiência.

Aqui encontraremos mais um grande ponto comum entre Nietzsche e Bergson. Para ambos, a questão da filosofia não é a de investigar como a realidade, o Todo, é em si mesma, e sim tentar compreender como esta realidade se produz. Deleuze, por exemplo, gosta sempre de lembrar que Bergson traz para a filosofia a pergunta sobre como é possível a criação do novo. Também para ambos os filósofos toda a experiência do real se dá a partir do corpo, ou seja, a partir de uma origem “fisiológica” – como diz Nietzsche –, que pode ser também identificada como “sensório-motora” – segundo vocabulário de Bergson. Neste caso, Nietzsche em especial se preocupa, ao diagnosticar o niilismo, com uma situação em que o homem estava se tornando cada vez mais incapaz de produzir realidade. Em todo caso, para ambos os filósofos, a experiência da realidade tem inevitavelmente um caráter de ilusão, de virtualidade: de algo que não é em si mesmo, não possui uma essência, mas está sempre a se produzir. Lembremos que a imagem é, para Bergson, a própria expressão do movimento de um universo heterogêneo num permanente devir autopoiético : autoinventivo. Há em Bergson uma identidade entre matéria e imagem que o leva a criar este conceito absolutamente revolucionário para a filosofia: o objeto-imagem . Um conceito que define a consistência da realidade como sendo mais do que queriam os idealistas e menos do que queriam os empiristas. Neste sentido, toda a experiência que temos do real é sempre a experiência de uma imagem, e a percepção de um objeto é sempre a percepção de um objeto-imagem. Mas aprendemos também que nós somos, segundo Bergson, um “centro de indeterminação” que funciona como uma imagem central à qual todas as outras se referem: um núcleo em torno do qual o universo se dobra. Em outras palavras, somos como imagensviventes, como interpreta Deleuze, que nascem exatamente no momento em que, no coração desse cosmos acentrado onde tudo percebia tudo, aparece um intervalo, um hiato, interiorizando uma parte da percepção graças ao adiamento da reação imediata à percepção. “Imagens-viventes”, “centros de indeterminação”, “matérias vivas”, distintas expressões para definir esse sistema fechado onde o corpo se reconhece como imagem e centraliza a percepção. O que aí vemos é a origem da memória, e da consciência, que em muito se aproxima daquela feita por Nietzsche na Genealogia da Moral : a memória aparece para Bergson no momento em que adiamos e voltamos para dentro o que seria uma reação imediata a uma ação que sofremos de fora.

Também em Nietzsche a origem da memória – da memória e da consciência – é fruto de um adiamento: o adiamento de um impulso instintivo que interiorizamos. O fato de ambos os filósofos verem a origem da memória e da consciência no mesmo movimento já os aproxima. No entanto, Nietzsche nos fala de “interiorização dos instintos” à medida que compara o homem aos outros animais, determinando esta interiorização como o momento em que nós procuramos nos diferenciar das outras bestas da natureza. Bergson, por sua vez, nos fala de um “voltar-se para dentro” que cria o que ele chama de “centros de indeterminação”, que são, a rigor, toda forma de vida, desde o mais simples protozoário. ³² Nós homens seríamos o mais complexo desses centros, dessas zonas de indeterminação. Nosso cérebro teria uma ultracapacidade de armazenamento de percepções, sendo capaz, portanto, de articular percepções presentes com passadas de uma maneira que nenhum outro animal conseguiria. Na verdade, o que aí se produz é, segundo Bergson, a representação. Se num universo ainda sem centros de indeterminação, as percepções atravessavam completamente a matéria, o que passa a acontecer é que parte dessas percepções ficam retidas na matéria: nos centros de indeterminação – nas imagens-viventes – que nossos corpos mesmos são. Portanto, o que o centro de indeterminação funda é um suporte onde imprimimos a “foto” dos objetos à nossa volta e que estão sempre agindo sobre nós. Esta “foto” – fotograma – será encadeada por sua vez num movimento processual ordenado e suportável para o nosso corpo. Essa “foto” é, então, o princípio da própria representação. Ela é aquilo que extraímos de um objeto – sempre um objeto-imagem – no contexto da relação que estabelecemos com ele e por isso ela funciona como um “signo”. Destes objetos, destas imagens, ficam só as partes, os aspectos que nos parecem úteis, que nos interessam: apenas uma pequena parte. Além disso, a memória atua de forma decisiva nessa constituição da representação. É a memória que vai determinar que parte, que vestígio da matéria, será selecionada para formar a representação, assim como o que é aí selecionado irá sempre se relacionar com a memória. A representação é, portanto, uma imagem que tem um importante grau de virtualidade, posto que é uma imagem atual para cuja constituição uma imagem virtual foi evocada. Ela se constitui exatamente a partir do que vimos Bergson descrever na “Evolução Criadora” como sendo o “mecanismo cinematográfico” da percepção e do pensamento. Os vestígios da realidade, que tomamos como um quadro, conectam-se aos vestígios da memória que parecem estar ligados a este, da mesma forma que a memória vai determinar o que, no mundo exterior, vamos escolher para “enquadrar”, para perceber. Trata-se de um jogo de matéria e memória que vai construindo a nossa experiência de realidade graças a uma espécie de “montagem interior”. Na verdade, não há para Bergson percepção humana que não esteja impregnada de lembranças. ³³ São as lembranças que deslocam a nossa percepção de maneira que só temos da matéria pequenos vestígios, “algumas indicações”, “signos” que vão compor, de novo com a ajuda da memória, a representação.

De maneira semelhante a Bergson, Nietzsche também descreve uma experiência de realidade na qual damos golpes estáticos no movimento para lhe impor uma ordem: uma lógica de processo. Isso que é em Bergson a descrição da origem da representação e da nossa experiência de realidade – fotos, fotogramas, instantâneos, palavras, signos – parece ser bastante semelhante àquele movimento descrito por Nietzsche de “dar ordem ao devir” uma vez que não suportaríamos ficar absolutamente à mercê da potência do universo. Este é o movimento fundador da moral, mas também de todo tipo de palavra, conceito, lógica, forma, conhecimento e racionalidade. A moral como uma disciplina para o corpo – e toda a racionalidade que dela se desdobra – também procura organizar a experiência sensível da vida na experiência de um processo e, portanto, num determinado tempo e sentido. E esta experiência, por sua vez, é também sensível, fisiológica: sensóriomotora. O homem constitui aí um passado numa articulação linear de causa e efeito que é fechada e que garante, exatamente por isso, o sentido fechado, predeterminado, para o futuro. Ou seja, a moral nos parece ser um regime de tempo organizado para o corpo como um processo, ou seja, uma experiência do real ordenada em instantes imóveis, fechados em si mesmos nos seus significados, e encadeados uns nos outros, justificando, explicando e julgando uns aos outros: existindo uns em função dos outros. Percebemos então, finalmente, uma grande proximidade entre a moral e o clichê. O clichê, como vimos, é definido por Deleuze como um “esquema sensório-motor”. Ele é, diríamos nós, uma espécie de anestesiamento parcial simplesmente porque – a partir de Bergson e, agora também, a partir de Nietzsche – a experiência plena do real, do mundo em torno de nós, não seria apenas impossível de ser vivida plenamente, seria sobretudo insuportável. Por isso, aliás, notamos uma contradição que nos parece ser mais uma semelhança entre a moral e o clichê: o fato de que, nesta lógica, é tão impossível a experiência do real sem o clichê quanto sem a moral na definição que dela faz Nietzsche, como um esquema de controle e interiorização dos instintos. A contradição está no fato de que os dois, moral e clichê, se voltam absolutamente contra a vida: que aquilo que parece nascer de uma força que constitui a vida, precisa ser quebrado para que esta possa se afirmar. Neste sentido, o cinema pôde efetivar toda a potência da imagem e da arte como formas de expressão do pensamento quando foi – nietzschianamente, amoral ou transmoral – rebelando-se contra aquilo que, no coração dele mesmo, apareceu como uma contraforça do pensamento: uma imagem impotente. E o que faz da questão do cinema moderno – o cinema da imagem-tempo – ser uma questão de forte inspiração nietzschiana é exatamente o fato de este ter surgido como uma impressionante força destruidora de clichês. Dessa maneira, o clichê, como expressão da moral no cinema, funciona exatamente como Nietzsche descreve esta última: um esquema de afetos que age e se instala nos corpos deixando-os parcialmente paralisados e impotentes. Por isso chamamos o clichê aqui de uma imagemmoral, ou mesmo uma imagem-lei, isto é, uma imagem que funciona como uma espécie de índice padronizador e determinador de valor.

21 NIETZSCHE, Friedrich. “Sobre Verdade e Mentira num Sentido ExtraMoral”. In: Os Pensadores . São Paulo: Abril Cultural, 1974. 22 Ibidem. 23 NIETZSCHE, Friedrich. “Culpa, Má Consciência e Coisas Afins”. In: Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 24 Ibidem. 25 Ibidem, p. 53. 26 Ibidem, p. 73. 27 Ibidem, p. 78. 28 Ibidem, p. 73. 29 Nietzsche afirma que o cristianismo seria uma forma de “platonismo para o povo”. NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 30 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, op. cit., p. 87. 31 NIETZSCHE, Friedrich. Da visão e do Enigma. In: Assim Falou Zaratustra . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. 32   Matéria e Memória , p. 28. 33   Matéria e Memória , p. 30. 3. Onietzschianismo de Orson Welles É possível julgar? De Fritz Lang a Orson Welles Embora Deleuze, a princípio, classifique o expressionismo entre o “cinema clássico”, é justamente num dos mais belos filmes de um mestre do expressionismo, O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, que encontramos os sinais de um cinema que parece desconfiar dessa história que julga, dessa história que tem uma lei, história que seria um processo em que o tempo se contentaria em ser um número, um ritmo, do movimento e na qual todo o movimento da história do filme seria o das etapas de um processo (ainda que numa relação dialética, como queria Eisenstein) que levaria a um duelo final em que a verdade do filme e a mentira do filme se enfrentariam. Vimos que o tempo como número do movimento garante a linearidade da história, onde os acontecimentos se articulam num processo linear de causa e efeito que prepara o desfecho final. A lei, a moral do filme, não seria necessariamente, ou apenas, porque os filmes teriam uma lição de moral final, mas ela estaria em todo filme à medida que estes seriam regidos segundo as leis da história: um processo que a todo tempo age e conspira na

preparação do enfrentamento entre a verdade filme e a mentira filme. Todas as imagens estariam ali em virtude disso, ou seja, em virtude do critério de veracidade do filme. As imagens, por só aparecerem em função da ação, não trazem ao filme nenhum sentido por si mesmas. As imagens têm um sentido predeterminado para a história e, precisamente por isso, não intervêm na direção da história: servem a ela. Mas é exatamente o sentido da história de O Vampiro de Düsseldorf que traz um deslocamento em relação a essas leis que deveriam fazer uma história ser compreendida no sentido “clássico”. Um assassino serial de crianças age na cidade, a imprensa noticia, os rumores se espalham. Pressionado pelo pânico da população, o Estado age nos lugares onde, para ele, deveriam estar os criminosos. Assim se sucedem as blitz em guetos, em prostíbulos, em casas clandestinas de jogos, enfim, em todo o território econômico subterrâneo da máfia criminosa da cidade. Agora é a máfia, e não mais o Estado, que se preocupa: o criminoso não pode continuar agindo, é preciso detê-lo, porque está atrapalhando os negócios do crime organizado. A máfia se lança então na busca do criminoso usando como informantes uma rede de mendigos da cidade, que, igualmente organizados em sua máfia, constituem o instrumento perfeito para vigiar tudo e todos: a política disciplinar improvisada da máfia. O desfecho do filme é um julgamento do criminoso organizado pelo crime e, mesmo neste julgamento, há um apelo à ordem: um advogado que o defende perante a turba na plateia que quer simplesmente linchá-lo. Poderíamos nos lembrar do que dissemos no primeiro capítulo: que o expressionismo é parte do cinema clássico e, particularmente em O Vampiro de Düsseldorf , o tempo ainda não encontrou plenamente a sua possibilidade de se rebelar contra o movimento para submetê-lo. Mas esta possibilidade parece se insinuar frequentemente no filme: o tempo parece já estar à espreita. O lugar de quem julga como um lugar privilegiado já aparece em questão na história do filme, mostrando que o que julga, o que busca fazer justiça, só o faz pela história e na história: para sobreviver, para triunfar nela, para reconstituí-la na medida em que reconstituímos seu sentido – e não, ao contrário, como algo que de fora da história a julga para submetê-la. Em primeiro lugar, este deslocamento está no jogo de luz e sombras do próprio expressionismo, que desloca o centro da imagem da mesma maneira que já está deslocando o eixo da história. A princípio, este contraste radical seria exatamente o que o filme, e o expressionismo de uma forma geral, têm de “clássico”. Por trás da limpidez clara e iluminada da vida, da realidade na qual tudo pode ser racionalmente distinguido, há algo sempre à sombra, há algo sempre no subterrâneo temeroso e escuro a conspirar. O conhecido contraste entre o preto e o branco, o claro e o escuro do expressionismo, seria a mais explícita das representações imagéticas do bem e do mal que se poderia ter. Inspirados em Foucault, poderíamos ver aí o próprio limite entre a razão e a desrazão, enunciado expresso a partir das visibilidades da divisão do espaço urbano após a revolução industrial. Mas nos parece que em O Vampiro de Düsseldorf esta dualidade está deslocada. É, de fato, à maneira denunciada por Foucault que o Estado age ao buscar o criminoso. O vampiro, o assassino de crianças, deveria estar no espaço que o Estado julga ser o da desrazão: no gueto, na pobreza, no crime, na zona de prostituição.

Mas é o fracasso da ação do Estado que leva o filme a se encontrar com o pensamento de Foucault. Quer dizer, é aí que se desconstrói e se denuncia a falácia positivista, a simplificação da compreensão polarizada, “razão x desrazão”. De fato, nesse subterrâneo, nesse suposto espaço da “desrazão”, e que o Estado insiste em ver e construir desta forma, vemos emergir uma “outra ordem” (outra razão) que, tão ou mais ameaçada pelo vampiro que o próprio Estado, se empenha em caçá-lo e, mais adiante, em julgálo. A máfia parece ser bem-sucedida na caça ao vampiro exatamente porque caça em função da sua moral – do seu esquema de leis – e não “da moral”, isto é, não do bem e da razão compreendidos como valores em si mesmos aos quais poderíamos empiricamente chegar. O vampiro, o assassino, não é o mal que vem da desrazão, que é sempre igual e vem sempre nos ameaçar: a nós, o bem e a razão, como insiste o Estado. Mas sim, o vampiro, o assassino, é um mal, e um mal apenas porque é uma ameaça ao Estado, à sociedade e, sobretudo, ao suposto lugar da desrazão, que se revelará, na verdade, o lugar da ordem capaz de deter e julgar o bandido: a máfia criminosa de Düsseldorf. A história determinada por leis que a regeriam logicamente a partir de fora seria aquela que aconteceria se o filme fosse o Estado contra o vampiro, isto é, o Estado contra o crime: o bem contra o mal. Mas do escuro, de onde vêm tantas cenas e falas do filme, emerge uma ordem amoral. O vampiro deve ser detido porque ameaça uma ordem criada, e não porque ameaça a lei compreendida como um bem racional em si mesmo. É o sentido, a lei, a história da máfia, que está ameaçada. É baseado nela mesma, baseado numa lei pragmática criada dessa situação particular, que o vampiro é cassado. Por este caminho a máfia acaba por produzir uma identidade com o Estado, qual seja, organiza um julgamento, não porque condene moralmente o linchamento (e seria absurdo falar de “legalidade” num julgamento promovido pela máfia), mas porque o linchamento seria ele também uma ameaça à ordem. Ao longo de todo o filme a história segue seu caminho, mas a todo tempo se depara com as possibilidades de bifurcação: como ela não tem uma lei para além de si mesma, esta lei poderia ser outra e os desdobramentos do acontecimento podiam seguir por outro caminho. Tratase aí das possibilidades virtuais da história: dos outros sentidos possíveis. A princípio diríamos que o caminho seguido e os caminhos por onde se poderia seguir nascem a partir da história mesma. É ela que abre possibilidades e se constitui à medida que faz escolhas: é ela, portanto, a autora de suas leis. Ao longo de todo o filme vemos falas que vêm da penumbra, ou mesmo da escuridão completa, conversando com alguém numa luz estourada. Ou então estas falas estão na penumbra enquanto a luz está sobre um vazio, como numa outra perspectiva possível à história, ou, ao contrário, como o lugar da história que é regido por vozes que conspiram no subterrâneo. A luz deslocada do centro dos acontecimentos nos mostra outros sentidos, outros tempos, que estão sempre em torno dos sentidos e dos tempos do filme. Talvez seja daí que os sentidos do filme nasçam: fora do que se pode ver às claras, mas, por outro lado, numa penumbra ou numa escuridão que é em tudo coalescente com a história. Além disso, enquanto se conspiram e se tramam os próximos passos da história, por diversas vezes a imagem nos mostra imensos gráficos com perspectivas que vão até o infinito, imagens de ciclos que se perdem e que, tal como o jogo de luz e sombras à maneira

como estão no filme, nos deslocam do centro dos acontecimentos: estamos diante de linhas de fuga do tempo que nos levam ao infinito, onde não encontraremos termo final algum, universal e estático, que julgaria a história segundo as suas leis. Há em O Vampiro de Düsseldorf algo que conspira para uma decisão final da história, e nisto ele parece um filme “clássico”. Mas o deslocamento da estrutura de um filme clássico está numa conspiração que, mesmo à sombra – no suposto lugar da “desrazão” –, busca uma ordem, um termo final, que não é a da verdade em si: não é a finalidade moral transcendente, o destino fechado. E somos induzidos a perceber isso porque Lang arrisca alguns descompassos entre a luz do filme – o jogo de luz e sombra – e a narração da história. Ou seja, se há uma verdade-filme nesta obra de Lang, ela não é um “universal”, nem é a vitória do bem sobre o mal. A ordem – a lei – aparece como uma necessidade da história para continuar existindo. Nesse sentido, é na história que se forja a lei: não a partir de um sentimento de justiça, mas, antes, a partir da necessidade de sobrevivência da própria história como farsa. É numa conspiração subterrânea que se forja uma vida que nos pareça segura exatamente porque nos esconde de onde vêm as suas leis (de seus mais obscuros sentimentos subterrâneos), e faz com que acreditemos que seja regida por uma lei universal que o tempo todo a condena ou a absolve. É aí, inclusive, que vemos a única diferença entre a ordem do Estado e a da Máfia. Esta última, pelo menos no filme, faz de forma mais ou menos explícita o seu jogo de controle da vida, de luta contra todo tipo de imprevisibilidade, de fuga de sentido. No fundo, ela quer refazer a sua aliança com o Estado, que lhe permite viver no subterrâneo, onde pode até ser semelhante a ele, mas sem precisar se justificar em cada ato. Foucault nos mostra que é a este “lugar da desrazão” que o Estado recorre quando precisa de um “serviço”, de uma ação que não é justificável. Quer dizer, quando precisa usar da violência, o Estado, que normalmente se apresenta como uma grande realização do “homem verídico”, vai ao gueto, à marginalidade, à suposta zona da desrazão. ³⁴ É por isso que também em Laranja Mecânica , de Kubrick, a disputa entre a violência pulsional dos jovens delinquentes e o Estado é apenas conjuntural. Jamais existem, no filme, duas forças distintas em disputa, na forma de uma dualidade entre bem e mal. Desde sempre a aliança, ou melhor, o encontro e a utilização desta violência pelo próprio Estado, está potencialmente lá. Esta é celebrada nas sequências finais do filme quando um dos delinquentes é visitado por um ministro de Estado no hospital e é contratado para entrar na polícia, onde seguirá se utilizando de sua pulsão assassina. Um ressentimento destruidor, um instinto assassino, celebrando a sua aliança com o discurso “racional” da ordem do Estado é o que vemos também no final de Taxi Driver , de Martin Scorsese. Neste último constatamos – como fizeram Virilio e Deleuze –, não mais na Europa, mas na América, a razão louca e bestializada. Assim, se Deleuze afirma que o jogo de claro e escuro do expressionismo seria expressão da luta entre o bem e o mal, o que faria desses filmes “clássicos”, o deslocamento do centro da ação histórica nesse jogo, a luz estourada onde mal se enxerga, a ação que se dá na penumbra e mesmo as linhas de fuga de perspectivas gráficas que aparecem ao fundo dos planos, mostram o que seriam para nós os primeiros sinais de um esgarçamento em

relação a uma história narrada à maneira clássica, ou seja, os primeiros sinais de um levante do tempo sobre o movimento. O próprio Deleuze vai afirmar mais adiante que Lang coloca o julgamento em questão, alterando a sua forma de luta da verdade contra a mentira que nos conduziria a um universal final, de certa maneira redentor, pacificador e unificador do povo, como acontece, por exemplo, no belo clássico judiciário estadunidense Doze homens e uma Sentença , de Sidney Lumet. ³⁵ Segundo Deleuze, ainda há nos filmes de Lang o julgamento e a possibilidade de julgar, particularmente na fase norte-americana, mesmo que este constate que tudo é aparência: Lang parece crer ainda que as aparências podem se trair, ou que novas aparências podem surgir para julgar as primeiras. ³⁶ Mas para Deleuze, nos Estados Unidos, é Orson Welles que representa esta passagem da imagem-movimento para a imagem-tempo. Entraria aí em questão, pela primeira vez, o cinema que caminha para um duelo final, para um julgamento final, que faria com que triunfasse dentro dele uma verdade em si como um universal do filme, em tudo semelhante a uma concepção de realidade que também conteria uma verdade em si como um termo universal final. E isso se dá exatamente porque a pergunta que Lang sugere no final de O Vampiro de Düsseldorf , Welles radicaliza em seus filmes: É possível julgar? Existe algo fora da história que poderia julgar a história? O que é isso que se ergue contra a história, que quer julgá-la desde fora, que não suporta o seu devir? Deleuze nos fala então de um “nietzschianismo de Orson Welles”. ³⁷ Em A Dama de Shangai , por exemplo, vemos o herói, representado pelo próprio Welles, envolvido num emaranhado de conspirações. É o que ele mesmo percebe quando conta a história de uma pescaria que presenciara no Brasil, na costa do Ceará, onde um tubarão ferido teria ensanguentado a água, o cheiro de sangue atraíra diversos outros tubarões que, enfurecidos, passaram a matar uns aos outros. As conspirações em meio as quais o personagem de Welles se acha, e que ele mesmo compara com esta luta de tubarões, é como a luta voraz das ilusões que se constroem na história com vistas a submeter a história mesma a um controle absoluto. São conspirações, portanto, que têm como projeto a destruição absoluta de tudo que parece se colocar no caminho deste controle. É como a luta voraz pela verdade, que Nietzsche descreve como obsessão do Ocidente, e que busca eliminar da vida tudo que não pareça da ordem estática e universal que deveria ser a da verdade, ou, pelo menos, tudo o que não pareça ser do processo histórico que caminha para a redenção final da verdade. Deleuze, no entanto, nos chama a atenção para o fato de que esses homens que querem o controle absoluto da vida a partir de si mesmos, quer dizer, este tipo de homem tirânico, embora não seja para Nietzsche, a prinfazemcípio, o “homem verídico”, o homem da “Vontade de Verdade”, acabam sendo um tipo do qual este último se aproxima e faz uma aliança. Mais do que isso, é da Vontade de Verdade, do “homem verídico”, que se produzem as tiranias modernas. Ainda que, dos tipos que conspiram contra o herói em A Dama de Shangai , apenas o advogado criminalista pareça explicitamente um tipo de “homem verídico”, o impulso de controle absoluto da vida presente nesses falsários é rigorosamente o mesmo que gera este homem verídico.

É verdade que, para Nietzsche, a luta de ilusões para triunfarem na história é o próprio movimento de constituição da história. Mas o que ele identifica como uma patologia do Ocidente, onde este teria construído a sua própria aniquilação, é a busca da verdade como algo fora da vida e da história, onde tudo que represente o movimento e a negatividade deveria ser banido deste lugar chamado verdade onde a vida deveria se fundamentar e justificar. Em outras palavras, era o que Nietzsche classificava, em tom crítico, de Vontade de Verdade: uma luta voraz pela verdade onde esta deveria derrotar tudo o que parece se opor a ela, como se da constituição dela não fizesse parte. Mas é justamente aqui, nos ensina Nietzsche, que morre a vida, porque morre a própria verdade. Ao desfazer das ilusões, acreditando na verdade em si, impossibilitamos o próprio processo pelo qual as verdades se constroem. O que veremos é que este cinema da imagem-tempo teria feito uma espécie de descoberta nietzschiana, descobrindo a força, a potência do falso, entendendo que, desde sempre, produzir ilusões foi e é produzir realidade. Mas atenção: não estamos dizendo aqui que o filme de Welles é uma espécie de metáfora da história do Ocidente. Seus personagens, no entanto, se assemelham às tipificações psicológicas que Nietzsche faz dos homens do niilismo: os homens dominados pelo “espírito de vingança”. Deleuze vê a presença desses tipos em diversos filmes de Welles, e não só em A Dama de Shangai . São homens que não suportam um mundo que não seja sob seu absoluto controle e que, por isso, tentam eliminar tudo o que na vida significa devir, movimento: homens, portanto, que se vingam da vida. Num certo sentido, são homens que desistem da vida e por isso se erguem contra a vida no momento em que buscam esse triunfo e esse controle absoluto sobre ela. É nesse momento que em A Dama de Shangai , o herói – personagem representado por Welles –, aparentemente a grande vítima da conspiração, escapa. Nas sequências finais há um julgamento, como no filme de Lang, mas é o herói que está sendo julgado por um crime que não cometeu. A rigor, o herói aí é julgado porque amou, porque se entregou a uma ilusão e caiu num esquecimento. Como dissemos, desde o início ele está no meio de três conspiradores. Uma bela mulher – a Dama de Shangai – pela qual está perdidamente apaixonado; o marido desta mulher, um famoso criminalista, que carrega uma paralisia e anda com uma bengala, figura estranha, quase monstruosa; por fim, o sócio deste criminalista, tipo igualmente sinistro, que espreitava as cenas de amor do herói e da bela e fizera questão de revelar isto aos dois. Convidado pelo criminalista que, numa espécie de pulsão de morte, prepara a traição de sua própria bela e sedutora mulher, o herói embarca no iate Circe para um cruzeiro no Caribe: é um embarque num esquecimento. Circe é a Deusa em cuja ilha Odisseu se esqueceu dez anos mergulhado em suas delícias. Na verdade, ele precisou ser chamado por seus companheiros e lembrado que Penélope o esperava para fugir da Ilha. Embora um jogo de seduções, em que mentiras se insinuam por toda parte, esteja presente desde o início no filme, é o sócio do criminalista que convida o herói explicitamente para entrar numa conspiração. Ele deveria simular o assassinato desse sócio, para que este fugisse com o dinheiro da sociedade enquanto todos o tivessem como morto. O herói é convencido a entrar na jogada, para ganhar dinheiro e fugir com a bela loura pela qual está apaixonado. Mas o sócio

conspirador acaba sendo assassinado de fato, ou seja, sua conspiração é vítima de outra, a da própria loura sedutora que, na verdade, fugiria com o sócio e, por sua vez, tinha que enfrentar uma terceira trama, desta vez a do criminalista que fingiria defender o herói no tribunal, mas queria condená-lo à morte para afastá-lo de sua esposa. Resumindo, os três contra o herói: o sócio, a bela mulher e o criminalista. Por tudo isso o herói vai se encontrar prisioneiro: pelo crime que ele deveria fingir cometer e não cometeu, mas que aconteceu, por ter ingenuamente amado a bela mulher e sonhado fugir com ela, que também conspirava contra ele, e finalmente, no próprio julgamento, o criminalista que lhe prometia uma defesa segura, conspirava para a sua condenação. E conspirava para a sua condenação porque, de alguma maneira, temia que o amor ingênuo do herói o fizesse perder a esposa, que esta fugisse da segurança passiva de um casamento de interesses e aceitasse a vida vã do herói. Mas o herói consegue escapar do tribunal e, em meio ao caos, foge pela cidade e se esconde numa casa de espelhos, onde se dá uma das mais célebres sequências de Welles, e mesmo da história do cinema. Temos aqui um exemplo do que Deleuze chama de coalescência entre o virtual e o real. Uma sequência que pode ser até comparada com o delírio do soldado negro em Napoli no episódio de Paisá que descrevemos. De fato, na casa do espelho está o herói representado por Welles e dois de seus perseguidores; tudo reflete tudo, duplicando as imagens ao infinito de uma maneira que nem mesmo o espectador do filme consegue distinguir o real do virtual. Não sabemos qual é a imagem do herói e as suas duplicações, não sabemos qual é a imagem da bela loura e as suas duplicações, assim como não sabemos qual é a imagem do criminalista e as suas duplicações. Todas as conspirações e todo o jogo de mentiras tornaram-se o real da vida do herói: real e virtual são aí indiscerníveis. Agora ele é um prisioneiro de um complicado jogo de mentiras que se superpõem e que determinam a sua vida. Insistimos, porém, que mentiras que nos mobilizam pela vida, que constituem a nossa realidade, nietzschianamente falando, não são em si mesmas moralmente condenáveis. O problema está, para Nietzsche, quando é preciso haver um culpado, quando é preciso condenar alguém por tudo isso, quando alguém precisa pagar, precisa ser o bode expiatório de todos os males que a vida causa em outrem, ou em todos nós. Os três conspiradores que querem a vitória absoluta sobre a vida escolhem o herói para o sacrifício: é um sacrifício por um fim, como afirma o sócio que quer forjar o próprio assassinato – o próprio fim – ao se referir ao fim do mundo: “Vai chegar, tem que chegar”. Mas o herói escapa justamente porque na casa dos espelhos ele destrói um a um os espelhos, como se buscasse destruir as conspirações que querem condená-lo. O herói desfaz as ilusões para continuar vivo, e precisa fazê-lo, insistimos, não por estas serem ilusões, mas porque são ilusões que constituem as conspirações do ressentimento: são ilusões que tramam contra a (sua) vida. Num perigoso e alucinado tiroteio, todos atiram contra todos, não se sabe se o que se atinge é a imagem ou o corpo, mas quando finalmente todos os espelhos estão quebrados, o criminalista e sua bela esposa estão feridos de morte. Ao se destruírem todas as imagens – todas as duplicações possíveis de um corpo –, destrói-se o próprio corpo, como na identidade entre objeto e imagem que aprendemos em Bergson.

Agora, então, o herói está salvo e os conspiradores, feridos de morte, estão diante da fraqueza que eles queriam banir de suas vidas: as suas próprias finitudes. É então a bela loura, agonizante, que dá a pista do seu próprio niilismo: “De que adianta lutar? Não se pode vencer”. Ao que o herói responde: “Não, não se pode vencer”. Ela então dá a sua derradeira fala: “Dê lembranças ao sol por mim”. E o herói, por sua vez, nos dá a senha de sua decisão pela vida: “Mas também não se pode perder, a menos que se desista”. O herói não descrê da vida, embora logo no início do filme ele mesmo anuncie a tragédia que tende a se abater sobre ele cada vez que é apanhado por uma ilusão. No final do filme, o herói escapa às conspirações não porque escapa às ilusões, mas porque escapa aos julgamentos com que queriam submeter a sua vida. É só por isso que ele pode seguir vivo. O herói de A Dama de Shangai é, à maneira de Welles, um herói trágico. Grande angulares barrocas: a representação direta do tempo Poder-se-ia objetar aqui que, a não ser em relação à sequência do espelho, fazemos uma análise da história do filme de Welles e não das imagens – que, ao analisar a história, talvez estivéssemos deixando de falar das imagens do filme – e em que medida elas presentificam o que Deleuze chama de insurgência do tempo sobre o movimento. De fato, encontramos no cinema de Welles planos com uma grande profundidade de campo, profundidade que já havia sido estudada por Bazin, ³⁸ e que Deleuze vai definir como um “convite a se lembrar”. ³⁹ Deleuze diz que Welles ganha uma nova forma de profundidade nos planos de seus filmes; profundidades que vêm presentificar diferentes dimensões do tempo e não apenas do espaço. Com grande angulares, Welles aumenta e deforma as figuras que estão no primeiro plano, diminuindo as que estão no último, estreitando dessa maneira a relação que existe entre ambas. Ou então, lembrando o expressionismo, ele põe em primeiro plano um objeto, deslocando para um plano aparentemente secundário a ação propriamente dita onde se desenrolaria a história do filme; ou ainda, nessa profundidade de campo, diversas ações distintas se desenrolam, como se fossem relações entre tempos diferentes, o que Deleuze vai chamar de “lençóis do passado”, ou seja, períodos diferentes do passado convivendo com ações que estão num único plano com grande profundidade, enquanto antes, no cinema “clássico”, tínhamos uma ação que se desenrolava plano a plano. O plano que no cinema clássico é articulado em primeiro lugar como espaço, passa a ser, em Welles, principalmente tempo. É verdade que vimos o quanto os planos, articulados na montagem, podiam já representar o tempo de duas maneiras: ou o tempo que se abria infinitamente até o todo – o tempo de Chronos –, ou o tempo que se contraía infinitamente no instante – o tempo de Aion –, momento em que um objeto se relaciona com outro. Ambas as maneiras eram ainda representações do tempo intermediadas pelo movimento. Eisenstein inclusive nos lembra que a montagem no filme está antes da atividade que normalmente é assim designada, quer dizer, a montagem já estaria na elaboração do roteiro, na direção dos atores, na definição de suas posições e movimentações em um determinado plano, na organização da luz etc. Mas Deleuze vê nos planos de Welles a

representação direta do tempo. Para isso ele faz uma interessante articulação entre estes planos, e mesmo os cenários dos filmes de Welles, com o barroco do século XVII e a diferença que este trazia na profundidade de seus quadros em relação aos quadros renascentistas do século XVI. O barroco abre a profundidade de seus quadros e estabelece entre os vários planos uma relação que pode chegar mesmo a se estender para fora do quadro, como no célebre As Meninas , de Velasquez, analisado por Foucault em As Palavras e as Coisas. ⁴⁰ Aí vemos os diversos planos do quadro relacionando-se entre si, num jogo que é de espelhos, de personagens em um plano observando os personagens do outro plano, de um pintando (copiando, duplicando) o outro e, finalmente, alguns personagens olhando para aquele que vê o quadro como se o abrisse para o espaço. Este “abrir para o espaço” é típico também do barroco que, segundo Henrich Wölfflin, ⁴¹ tinha a pretensão de uma “arte total”, quer dizer, alguns planos do próprio quadro se relacionavam com planos fora dele; por exemplo, a escultura na igreja, a nave toda, sua arquitetura, e até mesmo a arquitetura da praça da cidade onde estava a igreja. A mesma diferença existente entre a profundidade dos quadros do Renascimento e do barroco, Deleuze via entre a função do plano nos quadros de certos filmes chamados por ele de “clássicos” e este nascente “cinema moderno” de Welles. A profundidade do Renascimento, diz Deleuze, seria como certos planos de Griffith em Intolerância . Aí cada plano do quadro se organizava num conjunto em profundidade, tendo neste conjunto uma função que constituía o todo da imagem. Já como nos quadros barrocos, o que Welles traz é uma interação entre os diversos planos de um mesmo quadro. Atua decisivamente para esta função o uso que ele faz das lentes grande angulares, que aumentam substancialmente aquilo que está em primeiro plano, ampliando a profundidade da imagem, diminuindo o que se encontra num plano ao fundo, mas ao mesmo tempo estabelecendo uma relação entre estes dois planos. Welles recorre também a cenários onde ou o teto fica à mostra, de maneira surpreendentemente baixa para o cinema, ampliando a profundidade horizontal, ou especial-mente alto, numa profundidade vertical vista de um contraplongê, característica que mais uma vez lembra o barroco, segundo a descrição de seus traços arquitetônicos feita por Wölfflin. ⁴² O que vemos, nos seus filmes, são ações acontecendo em planos diferentes do quadro, ou um personagem se deslocando num mesmo quadro de um plano para outro, atravessando massas de sombra e feixes de luz e se dirigindo a um outro personagem em outro plano; ou um determinado personagem surgindo da sombra, com uma informação que intervém numa ação que se dá num plano à luz. Podemos também ter um objeto ampliado em primeiro plano e observarmos uma ação acontecendo num plano que seria aparentemente secundário; ou ver uma ação acontecendo em um plano onde a luz não é suficiente para iluminá-la, como se sobrasse para o escuro, ou para outros planos atravessando massas de luzes e sombras, e assim por diante. Todas estas são, para Deleuze, exemplos de imagens que trazem uma representação direta do tempo. Antes, víamos o tempo representado indiretamente a partir do espaço e do movimento, quer dizer, o tempo se representava à medida que montávamos o filme, de maneira que cada quadro com seus respectivos planos tinha uma função fechada em si mesmo,

contribuindo com este encadeamento para o todo do filme, mesmo que houvesse diferenças entre os modos de se dar este encadeamento, como a existente entre Griffith e Eisenstein. Agora, diz Deleuze, a movimentação de um personagem de um plano a outro de um mesmo quadro seria uma movimentação no tempo, como se este personagem se deslocasse de um tempo a outro. No caso de ações paralelas em planos distintos de um quadro, seriam como ações paralelas no tempo, ações que poderiam se comunicar entre si; assim como aquele personagem que surge da escuridão é algo que vem de outro tempo, de algum ponto longínquo da memória. Quer dizer, Deleuze vê o presente e o passado, a relação entre estes, o deslocamento de um para o outro, de cada ação presente num mesmo quadro, como se ali se representasse a imagem constituída da relação entre Matéria e Memória que dá título à obra de Bergson. Neste sentido, Deleuze vai classificar Welles como um cineasta barroco “ou neoexpressionista”, ⁴³ o que nos ajuda a fazer a vinculação que sugerimos há pouco entre o cinema de Welles e certas características que havíamos identificado no expressionismo de Lang, em O Vampiro de Düsseldorf, onde percebemos, ao menos se insinuando, uma representação direta do tempo na imagem. ⁴⁴ Não há para nós, entretanto, contradição entre analisar a história do filme e as imagens do filme. Não acreditamos que a passagem da imagemmovimento para a imagem-tempo venha a ser a passagem para filmes onde a imagem seja mais importante do que a história – embora isso seja constantemente repetido em análises, por exemplo, de filmes da Nouvelle Vague , movimento que representa a descoberta da imagem-tempo pelo cinema francês. Defendemos aqui que ela representa exatamente outra maneira de se lidar com a história: outra forma de se contar a história. De jeito algum, como costuma se anunciar, trata-se de um cinema onde a história perde importância. Ao contrário, a história ganha uma importância especial exatamente quando a imagem se ergue contra as leis de uma compreensão determinista de história. Talvez o cinema da imagem-tempo seja o mais histórico dos cinemas se nos limitarmos à forma como Nietzsche propõe que seja a relação dos homens com a história. Talvez seja um cinema que constitui a história como uma presentificação do real. Para nós, é outra compreensão, outra experiência da história que se abre nesse cinema exatamente à medida que escapa ao clichê. Este será o tema que analisaremos na parte três; antes, vejamos de que modo Welles traz em seus filmes uma moral que pode ser considerada nietzschiana. 34 FOUCAULT, Michel. “Sobre a Prisão”. In: Microfísica do Poder , p. 132 e 136. Aqui vemos uma análise da maneira como o Estado cria e se utiliza dos delinquentes. Sobre a importância dos conceitos como “desrazão” e “visibilidade” em Foucault, ver a obra: DELEUZE, Gilles. Foucault . São Paulo: Brasiliense, 1998.

35 Trata-se de um grande filme com “estrutura clássica” se tivermos a classificação de Deleuze como referência. O “cinema judiciário” é a maneira como, segundo Deleuze, normalmente se filmes políticos clássicos nos Estados Unidos; um cinema iluminista, como veremos mais adiante, onde o Estado é o grande redentor racional que pacifica e unifica o povo. Mas, lembremo-nos, os filmes clássicos não são em si mesmos sinônimos de clichê, e sim o que eles se tornam, por isso nos permitimos aqui exaltar a força desse filme. 36 I. T., p. 169. Neste caso, Deleuze cita os filmes de Lang produzidos nos Estados Unidos – Suplício de uma Alma e Carrascos Também Morrem –, que introduziriam uma alteração no final dos tradicionais “filmes judiciários” norte-americanos. 37 I. T., p. 168. 38 BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Les Editions du Cerf, 2002, p. 76. 39 I. T., p. 134. 40 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas . São Paulo: Martins Fontes, 1999. 41 WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco . São Paulo: Perspectiva, 2000. 42 Ibidem, p. 74. 43 I. T., p. 132. 44 WELLES, Orson. Entrevista concedida a André Bazin e outros no número 87 (1958) de Cahiers du Cinema . In: Política dos Autores. Lisboa: Assírio e Alvim, 1976. Welles vai recusar a “teoria francesa” (expressão dele) que diz ter a influência de cineastas alemães em sua obra. Deleuze está entre os franceses que partilham desta teoria, embora insistamos que o aprofundamento da análise de O Vampiro de Düsseldorf e dos sinais de “imagem-tempo” que percebemos nele é feita aqui por nossa conta. Em todo caso, estamos de acordo com Deleuze nesta “teoria francesa” porque mesmo que Welles jamais tivesse visto um filme de Lang, o que não acreditamos, o cinema já caminhava em direção à descoberta desta “representação direta do tempo”: esta potência plena do cinema se preparava já entre os autores “clássicos”. Potências do Falso, character , dinheiro e cinema Da mesma maneira que Nietzsche – e Bergson mais adiante – compreende a experiência da realidade como criação, não há em Welles uma condenação moral da falsidade. Ao contrário, vimos que em A Dama de Shangai ele pôde construir um filme de imagem-tempo à medida que fazia a seguinte pergunta moral, ou melhor, uma pergunta à própria moral: É possível julgar? Uma reflexão sobre o tema é proposta ao próprio Welles numa entrevista feita por André Bazin, Charles Bitsch e Jean Domarchi e publicada no

Cahiers du Cinema. ⁴⁵ Ali, questionado se a moral de seus filmes era nietzschiana, Welles diz que eles podem chamar assim se quiserem, mas que ele definiria a moral de seus filmes sobretudo como uma moral aristocrática em oposição à burguesa. ⁴⁶ O que, sem dúvida, nos permite compreendê-la como nietzschiana já que “aristocrática” é, por excelência, a definição da moral nietzschiana, que também é defendida e definida, muitas vezes, num contexto de crítica à moral burguesa, à cultura burguesa e à noção burguesa de cultura de uma forma geral. É exatamente no trecho da entrevista em que Welles define a sua moral como aristocrática, que vamos encontrar duas outras afirmações que nos parecem bem próximas do pensamento de Nietzsche. A primeira vem um pouco antes, quando Welles fala da unidade de sua obra: “ se o que fazemos não nos pertence como a nossa carne e o nosso sangue, então não tem interesse nenhum .” ⁴⁷ Não poderíamos deixar de lembrar aqui a famosa passagem de Nietzsche onde ele fala em “escrever com o próprio sangue”. A segunda vem logo depois de ele definir a sua moral como aristocrática: “ prefiro a coragem a todas as outras virtudes. ” ⁴⁸ Welles usa então um interessante conceito para definir a sua compreensão de moral aristocrática: character . Vejamos como ele define esse conceito um pouco mais adiante na mesma entrevista: “(...) character não é só a maneira como somos feitos, é também o que decidimos ser. É sobretudo a maneira como nos comportamos face à morte ”. ⁴⁹ Observemos, então, que estamos diante de uma avaliação moral que Welles propõe do homem, avaliação que se dá exatamente quando este se encontra diante de sua própria finitude: de sua morte. Ou, como dissemos há pouco, a experiência do real, a experiência da existência, à beira do abismo. É por isso que, quando Deleuze diz que Welles descobre em seus filmes a potência do falso – a Vontade de Potência nietzschiana – e que essa descoberta se estende aos autores “modernos”, ele não está dizendo que exista nestes autores algum tipo de ode ao cinismo e a todo tipo de mentira e falsificação. O que vemos neles é a luta entre as falsificações que potencializam a vida, que são a favor desta, e aquelas que intencionam o seu controle absoluto; ou este jogo, esta dualidade, abatendo-se sobre um mesmo personagem. Este é, por exemplo, o caso de Otelo , tragédia de Shakespeare magnificamente filmada por Orson Welles. Antes de ser tomado pelo ciúme, Otelo é uma espécie de herói ingênuo, de herói amoral – mas não imoral –, um guerreiro vão que luta por Gênova porque em algum momento de sua história produziu-se entre ele e esta cidade o que Espinosa chamaria de um “bom encontro”. Num primeiro momento, a própria aristocracia de Gênova não liga para as palavras do pai da bela moça – ele próprio um aristocrata – que caíra apaixonada e que viria a se casar com Otelo. O pai aristocrata (no sentido sociológico e não nietzschiano) queria convencer os seus pares de que Otelo era um bárbaro, um mouro, e que não poderia se casar com uma herdeira da aristocracia genovesa. Para os outros aristocratas da cidade, ao contrário, Otelo era o seu virtuoso comandante militar, um bom guerreiro, que defendia a cidade de seus inimigos, e isso era suficiente para a cidade amá-lo, admirá-lo e tê-lo como um dos seus. Otelo aí era um bom falsário, o homem criador que fazia a história da cidade e tornava-a mais forte. É como falsário, inclusive, que

seu falso amigo ressentido o amaldiçoa, ao dizer que aquela bela moça se apaixonara por Otelo graças às suas falsas histórias de aventuras, de guerras e viagens passadas. De fato, é um amor desinteressado e vão pela vida que faz de Otelo um herói ingênuo, e talvez tenha sido realmente isso que despertou a paixão da jovem aristocrata pelo mouro. Mas Otelo acaba sendo tocado por esse sentimento ressentido do falso amigo que conspira contra ele e contra o seu casamento. Tomado pelo ciúme, ele mesmo passa a ser uma figura do ressentimento. O caminho que lhe resta só pode ser a destruição de seu amor e de sua vida. Esta passagem da potência criadora do falso para a potência destruidora, que vemos em Otelo , também encontramos, ao menos insinuada, em Cidadão Kane . Mas aqui talvez entrássemos numa polêmica com o próprio Deleuze, que parece concordar com Welles quando este diz que considera Kane um tipo abominável. A princípio, portanto, para Deleuze, Kane seria uma figura do niilismo, aquele que conspira para o controle absoluto da vida. Mas nós vemos pelo menos alguma dubiedade se manifestando em alguns instanteschave da vida de Kane. Sobretudo quando ele decide assumir um jornal e, logo em seguida, quando demonstra não se importar com o prejuízo financeiro que o jornal gera. Seu tutor, um arquibilionário norte-americano, oferece ao seu protegido para que ele escolha e assuma, quando julga que chegou à idade adequada, uma das poderosas empresas de seu imenso holding: poços de petróleo, minas de ouro, complexos industriais, e assim por diante. Qual não é a sua surpresa e decepção quando Kane decide assumir a direção de um então pequeno e deficitário jornal, o Inquirer , do qual o poderoso tutor nem se lembrava de que era proprietário. De fato, Kane toma aí a decisão de se tornar um falsário. De um seguro mundo de coisas prontas que seu tutor lhe oferece, ele escolhe um mundo por fazer. Criar verdades, criar realidades e levar às últimas consequências a potência do falso: esta nos parece ser, a princípio, a decisão de Kane. Por isso é que Cidadão Kane , segundo Deleuze, é o primeiro filme da imagem-tempo: porque trata da vida de um falsário, de um “inventor de verdades”, um inventor de história e, exatamente por isso, um inventor de imagens – uma figura da mídia. Cidadão Kane é um exemplo de cinema que fala de si mesmo, que coloca a potência do falso, que ele mesmo é, em questão. Na verdade, Deleuze vai dizer mais adiante que todo filme que trata de dinheiro é, de certa maneira, cinema falando de si mesmo. De fato, como veremos Win Wenders descobrir em O Estado das Coisas , muitas histórias precisam se mobilizar para que a história de um filme aconteça. É sempre preciso haver muitas “conspirações”, e muito tempo de trabalho, por um minuto de filme. O cinema seria, nesse caso, um grande exemplo de troca injusta com o tempo, que Marx descreve e denuncia como “mais valia”. Nesse momento, Deleuze menciona o consagrado texto de Walter Benjamin, “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” para observar que o grande inimigo do cinema não seria a “reprodutibilidade técnica”, mas o dinheiro. O dinheiro é sempre o outro lado da imagem cinematográfica e esta relação explicita a dura lei do cinema, qual seja, que para um minuto de filme pode ser necessário até mesmo um dia de trabalho. A dura lei do cinema é então a dura lei do Capital, e que faz dele de fato uma arte industrial: “tempo é dinheiro”. É como se a decupagem técnica de um filme, onde se relaciona no

roteiro todo o tipo de trabalho que será necessário mobilizar para se filmar determinada cena, fosse por si só uma demonstração da lei da mais valia em Marx. Na verdade, o que o cinema da imagem-tempo faz é revelar, de dentro dos filmes, esta conspiração e esta relação que o cinema tem com o dinheiro. É como se Deleuze entendesse que a relação entre imagem e dinheiro revelasse o cristal de tempo por excelência do cinema. Neste sentido, para Deleuze, a imagem-movimento se torna imagem-tempo exatamente quando há uma rebelião contra esta lei: esta troca desigual que sempre existe no tempo. Tomando-se então o conceito de character de Welles, é como se os cineastas participassem dessa rebelião, contrapondo imagens ao dinheiro, num ato de coragem criativa. Inventa-se assim o filme dentro do filme, e a imagem límpida, como uma das faces do cristal, ousa revelar o seu outro lado opaco: o dinheiro propriamente dito. Não é por acaso que é um produtor de cinema, vivido por Jack Palance, que sentencia no filme O Desprezo , de Godard: “Quando ouço a palavra cultura, saco logo o meu talão de cheques.” O personagem de Kane, por sua vez, que parece tragicamente aceitar a vitória final do tempo, mesmo assim escolhe viver para ser um homem criador de sentido e tempo, no limite de suas possibilidades. É o que vemos quando ele é advertido por seu tutor de que o jornal que queria assumir dava cerca de um milhão de dólares de prejuízo por ano. Kane então responde: “Eu sei, e isso significa que ainda posso mantê-lo por mais sessenta anos.” Aqui vemos o segundo exemplo de um Kane criador, de um homem de character , numa resposta semelhante à que o herói dá, no final de A Dama de Shangai , diante da fala de sua amada que, moribunda, diz que não se pode vencer o tempo: “É verdade, mas também não se pode perder.” O que acreditamos ver no personagem de Kane é exatamente esta situaçãolimite típica do homem, difícil de determinar com precisão. A sua vontade criadora, a sua Vontade de Potência, nascida de seu desejo de se expandir na vida, de dar vazão à sua força, volta-se contra ele mesmo, posto que se transforma num desejo de controlar toda a vida, de submetê-la, de aniquilar o que ela pode ter de movimento, de imprevisível, de sofrimento, de falta de sentido; enfim, de devir. Na melhor compreensão nietzschiana do homem como um animal doente de si mesmo, Kane nos parece um homem doente de si mesmo. O seu personagem nos mostra que pode estar na nossa própria vontade criadora, na Vontade de Potência mesmo, o germe que a transforma em espírito de vingança e transforma uma criação generosa, que gera, que dá vida, em algo que se volta contra a vida – não obstante, para Deleuze, a impotência seja sempre uma força que vem de fora de nós, ou seja, a inspiração espinosista de Deleuze lhe dá a convicção filosófica de que não existe o que Freud descreve como “pulsão de morte”, ainda que a morte opere o tempo todo na vida, mas, insistimos, como uma força exterior. Por isso, como Deleuze, vemos na maior parte da história também um Kane como expressão do niilismo. Como se este que decidira ser um homem criador, em algum momento tivesse atravessado o que parece ser a mais importante, a mais perigosa e a mais tênue fronteira que a vida tem, e se tornasse um homem que passou a conspirar contra a vida porque quer tê-la sob seu absoluto controle. É o que vemos, por exemplo, no instante em que Kane resolve fazer de sua segunda mulher uma estrela de ópera a qualquer

preço. Essa é exatamente a descrição de uma doença “a partir de nós mesmos”, ⁵⁰ como diz Nietzsche, que todos estamos sujeitos a sofrer. Neste sentido, é o herói de A Dama de Shangai que nos parece se tornar, pela maneira como escapa às conspirações que tramam contra ele, um herói nietzschiano, no sentido de ser um herói que adquire uma consciência do trágico. É verdade que Orson Welles, a princípio, parece não concordar com essa afirmação; sobretudo quando ele se refere ao ato inicial deste personagem de se deixar seduzir pela bela loura e aceitar participar de uma conspiração, da qual seria vítima, para fugir com ela. Mas nós estamos nos referindo aqui à atitude do personagem no final da história e acreditamos, com isso, estar em consonância com Welles quando diz que se conhece o character de um homem na atitude que ele toma diante da morte. Mais do que de Kane e ao contrário de Otelo, O’Hara parece ter adquirido, no final de A Dama de Shangai, o que Nietzsche chamaria de “consciência do trágico”. Embora ele mesmo afirme no filme que, quando entra numa ilusão, age como um tipo de idiota que não sabe até onde esta ilusão vai levá-lo; não resta dúvida, por outro lado, que ele soube agir a tempo contra as ilusões que conspiraram contra sua vida. É por isso que o herói resiste e destrói dois dos conspiradores na casa de espelhos, destruindo, para isso, cada um dos espelhos entre os quais, antes, ele não sabia qual era a imagem real do conspirador, e qual era o duplo deste: a imagem virtual. Na verdade, o herói escapa entre as conspirações e sai com vida entre um emaranhado, uma trama, que era toda contra a sua vida. É desde o início desta sequência, que termina na casa de espelhos, que vemos as imagens que são representações diretas do tempo. Aí temos o herói atravessando um caminho emaranhado de luzes e sombras, como um emaranhado de sentidos – um caminho no tempo –, e justamente para cair na sala dos espelhos, onde todas as imagens refletem todas as imagens num duplicar-se até o infinito, ele mergulha e rola num escorrega (lembrando uma famosa passagem de Alice no País do Espelho , de Lewis Carroll), mergulhando no seu passado, na sua história, atravessando todas as bifurcações de tempo, de sentido, que lhe impuseram as decisões da vida. E lembremos o que falamos há pouco dos clichês de guerra. A princípio, estes nos pareciam como os brinquedos dos parques de diversão, onde todo o temor, todo o perigo, toda a emoção, estão absolutamente previstos e onde não se corre de fato risco algum. Vimos que no caso da guerra, no entanto – e de resto no caso da vida –, por mais glamorosos que sejam estes clichês, por mais emocionante que seja para o soldado de um remoto lugarejo da América a promessa de participar da aventura supostamente libertadora e civilizadora de sua nação pelo mundo, não se pode esconder dele o risco real da morte. Como, a rigor, não se pode esconder de cada um de nós, o tempo todo, este risco e, no entanto, vivemos apesar dele.

Talvez seja esta uma das funções mais importantes do clichê, qual seja, a invenção de uma morte justificada. O clichê da guerra trata então de inventar esta morte justificada: uma morte para uma grande causa, um sacrifício com um fundamento numa lei para além da vida, ou seja, uma dor e um sacrifício justificados numa lei pela qual se pode destruir a própria vida. O clichê é, portanto, a própria experiência da história quando é vivida segundo um determinismo. É por isso que a maneira como Orson Welles tem, inicialmente, de desconstruir o clichê está exatamente na radicalização da questão “É possível julgar?”, como já mencionamos. Os filmes de Welles desconstroem o clichê porque ajudam a desmontar esta estrutura presente no cinema clássico onde a história deve viver em função de um fim: deve justificar e ser justificada pela lei. As próprias imagens que são uma representação direta do tempo – obtidas boa parte das vezes através de lentes grande angulares – são uma descoberta de Welles neste seu empenho em abrir as histórias de seus filmes. Neste caso, o sentidesmo nos chama a atenção, é que antes esta era compreendida como uma espécie de "marcha em linha reta", em que o espírito se distanciaria cada vez mais do objeto à medida quo, o tempo das histórias, não são representados por intermédio do movimento, mas numa mesma imagem já vemos a representação direta do tempo, porque as bifurcações, decisões e cisões de sentidos da história se representam ali diretamente. O que vemos então são, por exemplo, planos profundos, abertos no tempo como se saíssem para fora de seus limites: à maneira da arte barroca. Aí pode estar, por exemplo, um personagem numa situaçãolimite no presente, ou seja, diante de uma decisão de sentido que ele tem que tomar e, ao fundo, uma decisão de sentidos em outro tempo que tem uma ligação com a bifurcação e a decisão de sentidos atual. É, na verdade, a própria situação-limite que o personagem vive atualmente que faz com que ele se desloque num mesmo plano como se fosse deslocado no tempo. É, portanto, a situação-limite atual que evoca a memória, o passado: o virtual que constitui os sentidos criados pelo personagem. E, no final das contas, é segundo a maneira como esses personagens se comportam diante dessas situações-limite que Welles propõe que eles sejam avaliados moralmente. Esses serão homens de character quando determinarem um sentido, afirmarem a vida e não temerem o fim, precisamente no ponto onde o fim, a falta de sentido e o limite parecem ameaçá-los. Foi isso o que nos permitiu articular a moral aristocrática que o próprio cineasta norte-americano define como sendo a sua com a moral nietzschiana. E é isso também que fez Deleuze afirmar que Orson Welles descobre, através de seus filmes e de seus personagens, a potência do falso no cinema. Assim, numa situação-limite onde se encontram diante de seus próprios fins, os personagens de Welles terão character à medida que acionarem a sua vontade criadora: o que Nietzsche chamava de Vontade de Potência. Mas lembremo-nos que a relação com o passado é, para Bergson, o que nos dá o sentido e o que constrói a representação: é o que garante sua compreensão. O clichê constrói o seu sentido, ou se constrói enquanto

sentido, na medida em que evoca um passado que só pode lhe garantir segurança. O passado aí justifica e fecha absolutamente a compreensão do que se percebe da experiência sensório-motora presente do real, colocandoa na lógica de um sentido, de um processo, de uma espécie de destino final. A grande semelhança que vemos entre o que constitui e origina o clichê e a constituição e a origem da moral e da razão para Nietzsche vem exatamente daí. É por isso que Welles é um cineasta pioneiro desse cinema da imagemtempo, quer dizer, de um cinema que produz uma representação direta do tempo. O que o cinema da imagem-tempo faz, a rigor, é lançar-se na contramão da representação, indo em direção a um instante-limite em que esta representação mesma se produz. É como se o cinema tomasse para si a pergunta que Nietzsche faz em tom provocador no início do Além do Bem e do Mal : “Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade (não verdade)?” ⁵¹ É a partir daí também que podemos afirmar que o cinema, que surgira como uma das maiores, senão a maior, realização do projeto positivista de busca e apresentação empírica da verdade – a mágica da verdade –, acaba sendo fundamental para o esgotamento deste projeto. Ou seja, a imagem que antes deveria nos apresentar o real em si mesmo, agora nos coloca diante de sua virtualidade, nos leva no sentido contrário do caminho pelo qual os sentidos mesmos deste real se constituem no modo de ser do objeto-imagem selecionado da representação. E esta virtualidade em devir é para Deleuze “um dos nomes do ser, do ser como devir, puro devir”. ⁵² Se Nietzsche nos leva a perguntar o que em nós quer a verdade, este cinema da imagem-tempo nos leva a perguntar o que em nós quer a representação confundida com a coisa em si, ou seja, o que em nós quer uma experiência objetiva, uma experiência sensório-motora fechada em si mesma: a experiência de um mundo que deve ser “em si” verdadeiro e deve estar em tudo justificado num ponto para além do movimento. Mas o cinema da imagem-tempo é mais do que isso, ou seja, é mais do que simplesmente uma espécie de demonstração e apresentação do processo de constituição de realidade, embora alguns cineastas tivessem tentado isso com belos resultados, mas não sem também perceber o problema que existe nisso. Se o cinema buscasse ser apenas uma apresentação do real se constituindo, ele ia cair mais uma vez no lugar do projeto positivista do “observador neutro”. Por isso, o cinema da imagem-tempo, ao reconhecer o homem como uma espécie de pequeno cosmos capaz de introduzir diferenças de tempo, de criar um real para si, torna-se ele também um lugar dessa experiência. É como se o cinema se tornasse um centro de indeterminação criado pelo centro de indeterminação que nós somos, exercendo, com isso, a função mais radical que podemos exercer – embora nem sempre o façamos. E esta função é a de ser um pequeno cosmos que se cria dentro do cosmos no qual o novo, o real se cria. É neste sentido que o cinema vai passar a ter a função que Deleuze chama de presentificação do real. Welles faz um cinema que descobre, segundo Deleuze, a sua potência de falsário: o falsário vira, em seus filmes, o principal personagem do cinema, senão o próprio cinema como personagem, como agente da potência do

falso. E o cinema descobrindo e exercendo a potência do falso é, para Deleuze, um cinema nietzschiano, nas suas palavras, um cinema que descobre a Vontade de Potência. ⁵³ É como se Deleuze descobrisse em personagens e filmes de Welles o mesmo que Foucault vê em certos personagens da literatura, como Sherazade e Odisseu. Estes últimos seriam personagens que representam a tentativa de uma ontologia da própria linguagem ⁵⁴ : a fala e a escrita vistas e experimentadas na situação-limite de onde elas surgem. É verdade que esses personagens, que podem ser vistos como tentativa de uma ontologia da imagem, existiam já naquele cinema que ainda não tinha descoberto a possibilidade de representação direta do tempo. Este é o caso, por exemplo, do spectrum do estudante em O Estudante de Praga , filme do alemão Stellan Rye, feito em 1913. Trata-se da história de um estudante que vende o seu spectrum , a sua imagem refletida no espelho, a um bruxo que vai levar esta imagem a fazer coisas que este estudante jamais faria. Numa história que vai se tornar mais tarde até um clichê no cinema, esta seria a primeira vez que, segundo Deleuze, o cinema fala de si mesmo, ou seja, que o spectrum ganha vida e começa a inventar realidades. É em Welles, no entanto, e a partir dele de maneiras diferentes em diversos outros cineastas, que esses personagens que fazem o papel de uma tentativa de ontologia da imagem cinematográfica vão ser explicitamente descobertos pelo cinema. Cidadão Kane é, sem dúvida, um grande e paradigmático exemplo disso: um falsário, um criador de ilusões e imagens, um homem de uma atividade muito próxima daquela do homem de cinema. Para Deleuze, é a partir de Welles, portanto, que a imagem passa a ser levada às situações– limite de onde ela surge. E, a rigor, não há diferença entre este lugar ontológico ao qual nos levam tanto certos personagens em suas histórias na literatura, quanto certos personagens em suas histórias no cinema; são os meios que se distinguem aqui. É lógico que a diferença dos meios é muito importante, quer dizer, o cinema como um autômato do movimento nos põe diante da possibilidade de produzir diretamente imagens-movimento e imagens-tempo sem a intermediação da linguagem escrita e mesmo da narração feita pela fala da literatura oral. Nos dois casos, no entanto, somos levados na contramão do processo a partir de onde se constrói toda a representação do real e chegamos tão próximos ao ponto de questionar o próprio sentido desta representação. Trata-se, assim, de um cinema que nos leva até a beira do abismo da existência; levando-nos até o ponto onde o falso, onde as ilusões, conspiram para virar realidade, lugar onde as constituições de sentido se preparam. Veremos ainda outros exemplos desses personagens que são tentativas de uma ontologia do cinema ou, antes, de uma tentativa de, mais do que expressar, reinventar e presentificar a própria experiência do real a partir da experiência cinematográfica. Assim, quando Nietzsche questiona a Vontade de Verdade e se pergunta o que no homem tanto aspira por verdade, a única resposta que para ele parece ter sentido é: pela vida. O que Nietzsche descobre, no entanto, é que a busca pela verdade, pela racionalidade a todo preço, fez o homem voltarse contra a vida, quer dizer, fez o homem voltar-se contra aquilo que garante a própria existência, ou seja, o devir, o movimento, a capacidade de sempre produzir o novo. Personagens tomados pelo “espírito de vingança”, figuras e

situações do niilismo, estão em toda parte no cinema da imagem-tempo. Se existem heróis nesses filmes é exatamente porque, de uma maneira ou de outra, esses estão em combate com o niilismo, isto é, com personagens e situações que de dentro da própria vida se erguem contra ela mesma. Isto é uma qualidade desses filmes. Se dissemos, no início deste trabalho, que a filosofia sempre teve que se deparar com a impotência do pensamento, o clichê é a maneira como esta se expressa na imagem e, aqui especificamente, na imagem em movimento do cinema: nas histórias dos filmes. As figuras do niilismo presentes nesses filmes são tipificações psicológicas que nos mostram quais são os processos existenciais-históricos que agem contra a Vontade de Potência . 45 WELLES, Orson. A Política dos Autores , op. cit., p. 233. 46 Ibidem, p. 257. 47 Ibidem. 48 Ibidem. 49 Ibidem, p. 272. 50 Aqui caberia discutir se este “a partir de nós mesmos” poderia designar que para Nietzsche existiria alguma forma de “pulsão de morte”, ainda que este afirmasse que a vida fosse fundamentalmente Vontade de Potência. Se formos analisar, no entanto, a hipótese que Nietzsche expõe na Genealogia da Moral, e que é tomada por Deleuze e Guattari como a hipótese da origem do socius , veremos que esta nos descreve a instituição da moral como uma forma de poder constituído que opera sobre e no corpo. Trata-se de algo socialmente constituído, que nos acomete de fora para dentro, e não algo que faria parte do que estaria em nossa essência psíquica como uma força autodestrutiva. Não faltam, no entanto, estudos que articulam o “niilismo” em Nietzsche com a “pulsão de morte” em Freud, compreendendo ambos como uma espécie de “ausência de desejabilidade”. 51 NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 9. 52 VASCONCELLOS, Jorge. Deleuze, o Pensamento e o Cinema. op. cit., p. 78. 53 I. T., p. 173. 54 FOUCAULT. “A Linguagem ao Infinito”. In: Ditos e Escritos III: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2001. De Welles a Resnais. Cidadão Kane e Hiroshima Mon Amour : do presente ao passado por um outro sentido Deleuze nos mostra então que os filmes de Orson Welles estão cheio de personagens que são falsários comuns, escroques, golpistas, alcaguetes

ressentidos e assim por diante. Mas nos lembra, por outro lado, de que Nietzsche nos ensina no Zaratustra que o homem verídico – o homem que busca verdade e racionalidade a todo preço – acaba por constituir uma aliança, e mesmo por se confundir, com esses tipos e as suas práticas. ⁵⁵ É por esse caminho que Deleuze vê nos filmes de Welles diversos exemplos dos tipos de niilismo descritos por Nietzsche. Eles estariam ali porque os personagens devem passar por uma espécie de teste moral proposto por Orson Welles: precisam medir-se com seus fins possíveis, com suas mortes. É por isso que, a partir da morte de Kane, como também da morte de Otelo, nos respectivos filmes, somos levados a reviver cada um dos instantes-limite nos quais esses personagens foram dando sentido às suas vidas. Na verdade, não apenas nos filmes de Orson Welles, mas em todo o cinema moderno, vemos personagens na situação-limite entre a memória e o esquecimento. É um cinema pleno de personagens e situações cuja experiência-limite é a de reinventar imagens posto que, de uma maneira ou de outra, estão ali onde elas se esvaem, perdem sentido e pedem novo sentido. É o próprio enfraquecimento da relação orgânica entre personagem e imagem, do qual já falamos, que permite aparecer esse tipo de personagem. E se é verdade que o cinema nos põe diante de uma das mais velhas, senão a mais velha, das situações humanas, qual seja, a de contar uma história, vimos que essas histórias têm no filme de ficção clássico uma estrutura que “aspira ao verídico” e que portanto reproduz uma determinada forma de lidar com a história que, como veremos, é para Nietzsche sintoma de decadência da civilização ocidental. Nietzsche diz que o homem precisa da história porque é “altivo e ambicioso, porque tem prazer de conservar e venerar, e porque sofre e tem necessidade de libertação”. A estas três formas de se lidar com a história corresponderiam, respectivamente, a “história monumental, a história tradicionalista – ou história antiquária – e a história crítica”. ⁵⁶ Nietzsche não critica nenhuma destas três formas em si mesmas. Na verdade, o tom desse texto sobre a história está definido no seu título: “Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida”. Quer dizer, ele está nos falando das “utilidades” e dos “inconvenientes” de cada uma dessas formas de se lidar com a história para a vida. A princípio, cada uma das três formas de lidar com a história são até vistas como virtude e como formas distintas de uma ontológica forma de viver a dinâmica de memória e esquecimento que nos constituiria. Deleuze, por sua vez, percebe que essas formas de lidar com a história – identificadas por Nietzsche – estão presentes no cinema clássico, em especial no estadunidense. Assim vemos a monumentalidade de heróis e acontecimentos que aparecem tanto em Griffith quanto em DeMille como uma espécie de efeito sem causa; já a dimensão antiquária estaria presente no que chamaríamos de uma pseudomuseologia, que se espelha nos detalhes cenográficos – os figurinos “históricos”, panos, chapéus, armas, máquinas, objetos privados, enfim, detalhes supostamente da época. Finalmente, o aspecto “crítico” da relação com a história (que Deleuze prefere chamar de “ético”), num julgamento do passado a partir do que Nietzsche vai identificar como uma perigosa tendência de uma época em acreditar que desenvolveu um critério de justiça superior ao de todas as outras: um típico olhar de superioridade de uma América supostamente incapaz das “barbaridades” de civilizações anteriores.

Mas antes, o que mobiliza Nietzsche na crítica do que ele identifica como uma relação cheia de “excessos” com a história, seria a incapacidade do homem europeu moderno experimentar o esquecimento e assim romper com o seu passado num processo criativo de diferenciação. Nietzsche está mais uma vez identificando o homem enfraquecido e impotente do niilismo que teria submetido seu passado ao mencionado critério de racionalidade e veracidade, segundo suas próprias palavras: “O homem que procura compreender, calcular, apreender, no momento que deveria fixar na sua memória, como um longo sobressalto, o acontecimento incompreensível que o sublime constitui (...) não será capaz de ver o pormenor único, exatamente o mais importante (...).” ⁵⁷ Em termos deleuzianos, portanto, Nietzsche estaria defendendo uma relação potente com a história que se caracterizaria exatamente pela capacidade de apreender e promover uma ruptura no tempo graças a uma ruptura numa determinada ordem de causalidades de uma narrativa fechada. Estamos falando aqui da potência inventiva e instauradora de sentidos do “acontecimento”, que marca decisivamente o pensamento de Deleuze e a sua “filosofia da diferença”’, ou seja, não se trata apenas do nietzschianismo de Welles, mas também – e sobretudo – de Deleuze. De fato, se tivéssemos que escolher apenas um texto em Nietzsche que estaria por trás da importância que o conceito de “acontecimento” ocupa no pensamento de Deleuze, seria esse texto sobre a história, e mais especificamente essa parte que fala do “acontecimento incompreensível” e do “pormenor único”. E, é preciso frisar, o “acontecimento” em Deleuze é algo que precede a história, seria antes como a manifestação do devir que irrompe de fora da história, para só depois ser enquadrado na sua ordem de causalidades. Há aqui então uma relação estreita entre a maneira como Deleuze concebe o conceito de “acontecimento” e a imagem-tempo como uma espécie de expressão deste no cinema. De certa forma, Deleuze nos leva a crer que Orson Welles expressa em Cidadão Kane uma percepção do que seria uma relação potente com a história semelhante à de Nietzsche. Esta apareceria em especial na maneira como Welles mergulha no passado de seu personagem. Trata-se de um processo diferente daquele que o cinema “clássico” sempre fez, qual seja, os tradicionais flashbacks que mantêm a distinção entre presente e passado. De fato, o filme só começa realmente a investigar a vida de Kane depois que assistimos a uma retrospectiva completa, detalhada, “verídica” – “enciclopédica”, como diria Nietzsche – da vida deste grande falsário. O início do filme é exatamente isso: com a morte de Kane temos um documentário biográfico, no melhor estilo “cinema verídico”, desses que trazem o enunciado geral, “Eis a verdade”. O que se percebe nesse documentário? Ele tem inúmeras informações sobre Kane linearmente organizadas, ou seja, uma biografia perfeitamente contada. Trata-se de um documentário tradicional desses que proliferam no jornalismo, e mesmo no cinema, numa versão dessa maneira de lidar com a história que se preocupa apenas, como diz Nietzsche criticamente, em “compreender, calcular e apreender” os fatos passados. Mas, uma vez terminada a exibição desse “filme dentro do filme”, um dos espectadores que o assistia numa sala de cinema, na verdade um personagem responsável por fazer um filme sobre Kane, se levanta e demonstra insatisfação: para ele o filme não respondia quem foi o Cidadão Kane. Não se conhecia através daquela série de notícias jornalísticas o que fez Kane chegar a ser o que foi.

Orson Welles critica aí uma forma de se contar e lidar com a história, e propõe outra. E esta outra forma de se lidar com a história, de ir em busca do que teria feito Kane “vir a ser o que é” (o que foi...), está em algo desconhecido, em algo misterioso, em algo não explicado na sua vida, e não num encadeamento de fatos verídicos já conhecidos e devidamente quantificados e compreendidos como parte de um processo. Este desconhecido, este sem sentido, este vazio está na última palavra dita por Kane antes de morrer: “Rosebud”. Terminado o documentário verídico sobre a vida de Kane, o que o personagem insatisfeito com esse documentário sugere é que se investigue que ponto perdido no passado, que sentido, esta palavra à beira da morte expressava. E aqui a maneira como Nietzsche propõe que lidemos com a história, em contraposição às formas equivocadas de compreender a história que teriam triunfado no Ocidente moderno, encontra-se com a maneira de lidar com o passado e, sobretudo, com a maneira de conceber o tempo que vimos em Bergson ao falarmos das imagens óticas e sonoras puras, das lembrançaspuras e das imagens-lembranças. “Rosebud” representa esse passado ontológico, esse “passado puro”, que não constitui nenhuma forma que nos é interior, e sim algo no qual estamos instalados. Para Deleuze, o filme Cidadão Kane nos oferece literalmente as imagens do mergulho em direção a esse passado, expresso em magníficos movimentos de plongê da câmera, como na cena em que a pergunta por “Rosebud” é feita para Susan, segunda mulher de Kane, agora uma cantora decadente, bêbada, num cabaré; ou ainda em notáveis profundidades de campo dentro das quais um personagem pode até passear como se se movesse de um tempo a outro: é o que vemos na cena onde Kane rompe relações com seu melhor amigo jornalista, exatamente porque este não concordara com a falácia de defender Susan em suas críticas como uma grande cantora de ópera. A guerra e a quebra de seus clichês, trazidas via neorrealismo, que iniciaram esta parte do livro, retornam aqui para que possamos encerrá-la. A quebra dos clichês será como a relação entre presente e passado que se dá numa coalescência e indiscernibilidade entre um e outro – entre o atual e virtual –, como vimos a partir de Bergson: um novo circuito entre presente e passado que vai gerar um novo sentido para o filme. É assim o tempo representado diretamente em Hiroshima Mon Amour , de Alain Resnais, um dos filmes seminais da nouvelle vague francesa, de um diretor que tem, segundo Deleuze, importante influência de Orson Welles. Resnais apresentará neste filme, como poucos, a dinâmica de memória e esquecimento que nos faz ser o que somos, e fará surgir um passado como um peso moral a atormentar a heroína: um passado que deverá ser quebrado como um clichê para que a vida possa continuar. Como na pergunta por “Rosebud” do filme de Welles, o que temos no início de Hiroshima é uma fissura no presente e uma situação-limite que leva ao passado. Essa fissura é como um despertar da vontade que se gera num novo desejo, ⁵⁸ um novo amor que evoca na memória um outro tempo em que vivemos semelhante experiência, gerando uma identificação de sentido, uma ameaça de repetição e, ao mesmo tempo, a aspiração de liberdade, de diferenciação na busca de outro sentido.

O filme se passa em Hiroshima poucos anos depois de sua destruição pela bomba atômica. Ali, uma jovem francesa – que está participando como atriz de um filme-denúncia sobre a bomba – e um japonês da cidade recémarrasada têm um caso de amor. Logo num dos primeiros diálogos, que vêm do romance de Marguerite Duras com o mesmo título, o “amante” japonês afirma: “Você não se lembra dos sofrimentos de Hiroshima. Você não viu os sofrimentos de Hiroshima.” Ao que a bela francesa replica: “Sim; eu me lembro dos sofrimentos de Hiroshima. Eu vi todos esses sofrimentos nas fotos do museu da bomba de Hiroshima.” E começa a descrever, uma a uma, as terríveis fotos do museu da bomba, que são documentalmente mostradas no próprio filme. Mas o japonês insiste que ela não lembra, ela não viu porque não viveu todo o terror da bomba de Hiroshima. E a paixão prossegue na sua busca de sentido, no jogo de memória e esquecimento, e as perguntas em torno da catástrofe de Hiroshima transformam-se ou confundem-se com perguntas em torno da paixão que a heroína francesa vivera no passado. Durante a guerra, em Nevers, na França ocupada, a moça, então uma adolescente, se apaixonara por um jovem oficial do exército de ocupação alemão. O alemão fora morto pela resistência e a heroína punida à maneira de todas as jovens francesas que se relacionaram com alemães: a raspagem humilhante dos cabelos, a execração pública pela cidade e os dias de vergonha trancados no porão de sua casa. Um desejo no presente, uma paixão, é o que lança a heroína em direção ao passado. Trata-se exatamente de uma situação-limite como a que Nietzsche descreve no seu texto sobre a história. Mas aqui vemos as reflexões desse texto mais uma vez se encontrarem com as de A Genealogia da Moral . O que impede de nos livrarmos de um passado é exatamente o sentimento de dívida, de culpa: um medo da dor que vem da recordação de um castigo. No caso específico do filme, assim fora o castigo que a heroína recebeu por ter amado o oficial alemão. Este castigo é a própria presença de um passado que nos prende, nos impede de criar e agir da maneira que é, na compreensão nietzschiana, a virtuosa: a que renova a vida. O que ele nos lembra – e por isso ele nos prende – é que há para além da vida uma lei que sempre punirá quem desejar ir para além disso que a submete. E os dois fatos se misturam não numa relação entre presente e passado típica do cinema clássico, isto é, construída por flashbacks onde a diferença entre cada um destes está bem demarcada. Mas sim numa espécie de indiscernibilidade entre estes, posto que há uma continuidade e mesmo uma identidade possível de sentidos entre os dois fatos. Mas há também a possibilidade de uma diferença: e é exatamente nesta encruzilhada entre identidade e diferença, neste drama de como saber se lembrar e se esquecer no tempo certo, que se encontra a heroína. É por causa de seu desejo, que a levou ao “erro” da paixão pelo oficial alemão, que a heroína foi julgada e castigada. Isso acontece porque o sentido do desejo e do amor dessa heroína torna-se um sentido impossível, interditado, a partir do meio para o final da Segunda Guerra na França. Mas, a rigor, ela vira um bode expiatório de algo que a França prefere não se lembrar e que os filmes de guerra clichê do pósguerra se esforçam por fazer esquecer. Trata-se da força do fascismo na França, da pouca

resistência à ocupação alemã no início e, sobretudo, do considerável apoio ao governo fascista de Vichi, que tinha oficialmente os alemães como aliados, com os quais assinou um armistício, e que tinha como ato de patriotismo o chamado colaboracionismo. Um amor, um desejo, uma atração de uma adolescente que cresceu numa França que era controlada por um pensamento político que tinha os alemães como povo exemplar, que vinham para ajudá-la a ser “salva” dos judeus e dos comunistas, não deveria ser considerado algo tão digno de espanto e condenação. Afinal de contas, a França de Vichi também era “amante” da Alemanha nazista. Se formos discutir quais são as grandes forças propulsoras do fascismo na França, e na Europa em geral, certamente não vamos chegar às jovens mulheres francesas encantadas pelo invasor. É por isso que dissemos que esta, como outras mulheres francesas, viveram o esquema do “bode expiatório”: pagaram pelo “erro” dos outros. Embora Deleuze, neste caso com a ajuda de Michel Foucault e Félix Guattari, nos ensine que o fascismo só se propaga de uma maneira que é antes molecular e micropolítica: se propaga à medida que se instala afetivamente nos corpos que se tornam seus agentes. É esse passado recordado pela heroína que vira uma espécie de imagem-lei: uma imagem que é um índice de valor e que, no caso, é um índice de valor do amor e do desejo, ou do que sempre deveria ser – numa relação de causa e efeito sob a ótica da moral – as consequências do desejo. Ao provocar a identidade entre esses dois instantes de desejo e amor da heroína e trazer a recordação da dor, o que a heroína passa a temer é exatamente a lei da história: uma história que, ela tem a impressão, vai sempre se repetir. É como se ela pensasse assim: “Eu sofri porque eu amei, se eu amo agora, a consequência disso será mais uma vez castigo e dor.” Mas este é exatamente o esquema que gera os sentimentos ressentidos, tão bem descritos por Nietzsche, que em situações extremas se desdobram no próprio fascismo. Ou, como afirma Foucault, o fascismo é “Eros ausente”. ⁵⁹ É nesta lógica que o desejo – a rigor, o movimento diferenciador, a presença do devir – é perigoso: perigoso num sentido potente, promissor para a vida. É por isso que o movimento de julgar a vida, de querer submetê-la a todo preço – do qual o fascismo é um exemplo especialmente violento –, se esforça em introjetar na memória, como uma introjeção no corpo, a lógica de que o desejo levará necessariamente à dor. A confusão e a identificação de sentidos que aí existe é também uma confusão e uma identificação de tempo. No filme isso acontece de tal maneira que a heroína chega a se referir ao amante japonês como se fosse o amante alemão: “Eu amei você em Nevers, na França, durante a Guerra”. Agora, no entanto, o amor da heroína francesa não é mais condenável porque ela está em Hiroshima recém-destruída pela bomba atômica. Mas ela só poderá compreender essa diferença, esse outro sentido que se abre no presente, se compreender que a história não tem lei, é amoral. Seu novo amante é um japonês, a princípio alguém que no clichê histórico da Segunda Guerra também deveria ser considerado um inimigo, mas que a terrível hecatombe nuclear parece, de uma maneira diferente, ter feito “expiar a culpa”. Assim o terror atômico opera uma inversão de sentido e os japoneses tornam-se vítimas.

É deste terror que o japonês de Hiroshima não quer esquecer. Por outro lado, ele quer que sua amante francesa esqueça o terror de seu passado na França para que possa amá-lo. É por isso talvez que em certo momento ele afirma: “Eu me lembrarei de você como do esquecimento do amor, eu amarei no horror do esquecimento”. E essa é também a encruzilhada trágica da francesa, exatamente o que faz com que a consideremos uma heroína. Ela precisa se esquecer para amar, mas precisa também insistir na lembrança para que não se repita nem o terror atômico, nem o fascismo. Neste sentido, o passado que traz uma lei – que insiste numa narrativa em torno de uma lei – é do que ela deve se livrar. Mas, por outro lado, é preciso recordar o que gera na vida tanta destruição, tanto ódio contra a vida, como os do fascismo e da guerra. É nesta problemática, que empresta ao filme de Resnais uma dramaticidade trágica, que aparece o entusiasmo de Deleuze pela máxima nietzschiana: “livre-se de seu passado”. Não há para Nietzsche possibilidade de repetição nem qualitativa nem quantitativa da história, ela é sempre outra. Para ser mais preciso, Nietzsche considera que quantidade é qualidade e vice-versa, para chegar a uma conclusão exatamente inversa da maneira como o capitalismo opera uma igualação entre ambos – quantidade e qualidade –, para reduzir tudo ao valor moeda e ao valor mercadoria. Para Nietzsche, não existem qualidades iguais exatamente porque não existem quantidades iguais: ⁶⁰ um é sempre diferente de um. De novo estamos diante de uma identidade com Bergson e, neste caso, com filósofos como Heráclito: nenhum acontecimento da existência e, portanto, nenhum movimento de nenhum corpo, pode se repetir; ele é sempre outro. A única coisa que se repete na existência é o ato criador. E aí finalmente compreendemos o que é decisivo na relação com o passado que Nietzsche nos propõe: trata-se de uma relação que é capaz de produzir a “identidade da vontade” em outros termos, trata-se de uma relação que aciona a própria Vontade de Potência. O cinema neste caso é então compreendido no contexto da relação entre arte e vida, pretendida tanto por Nietzsche quanto por Deleuze: força produtora, expressão autoinventiva do pensamento, algo que libera em nós uma atividade – que havia se tornado quase impossível de acontecer no moralismo que tomou conta do cinema clássico. 55 I. T., p. 179. Aqui Deleuze, numa nota, localiza cada uma dessas figuras do niilismo como sendo os personagens que Zaratustra se depara no livro IV desta obra de Nietzsche. No entanto, faremos por nossa conta, mais adiante, a identificação dessas figuras do niilismo nos personagens que Kaspar Hauser enfrenta ao longo do filme de Herzog que vamos analisar. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. 56 NIETZSCHE. Considerações Intempestivas . Cap. 2, p. 117. 57 Ibidem, p. 144. 58 Na análise que faremos doravante do filme de Resnais, veremos o que Nietzsche compreende por “vontade” se manifestando no que identificaremos como o “desejo”, ou mesmo o “amor” do casal em Hiroshima . Do ponto de vista do rigor conceitual, não podemos dizer que o conceito

nietzschiano de “vontade” seria o mesmo que “desejo” no sentido, por exemplo, que este termo tem em Freud. Por outro lado, os dois conceitos têm uma importante aproximação possível, e até mesmo um considerável ponto de interseção. Deleuze e Guattari, em Anti-Édipo , aproximam o sentido de “desejo” com a Vontade de Potência em Nietzsche e chegam a opor alguns aspectos fundamentais da constituição do desejo em Freud, aproximando Nietzsche desta vez de Marx: desejo de “produção”. Infelizmente, dado o tema de nosso trabalho, não podemos enveredar por essa discussão. No entanto, nos parece claro que especificamente o desejo e o “amor” (outro conceito um tanto problemático, inclusive segundo Nietzsche) do casal de amantes em Hiroshima pode ser compreendido como uma manifestação da vontade à maneira nietzschiana, ou seja, o que vemos no nascente amor dos dois – até pela beleza como é mostrado no filme – é um sopro de vida, uma força antiniilista, renovadora, quase uma ressurreição em meio aos escombros e a todo o ambiente repleto de morte do pósguerra e, particularmente, de Hiroshima. 59 FOUCAULT, Michel. “Sade, Sargento do Sexo”. In: Ditos e Escritos III: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema , op. cit., p. 269. 60 NIETZSCHE, Friedrich. Wille zur Macht, op. cit., anotações 563, 564 e 565. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia . Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 35. PARTE 3 Sobre o tempo e sobre os filmes Nesta terceira parte vamos nos dedicar a duas tarefas. Em primeiro lugar, vamos aprofundar um pouco mais os estudos sobre o tempo, tanto na leitura que Deleuze faz de Bergson para a sua taxonomia das imagens cinematográficas, quanto na maneira como os filmes abrem para nós sentidos sobre o tempo, num diálogo possível com outros filósofos. Em segundo lugar, vamos prosseguir com as análises de alguns filmes, desta vez numa relação um pouco mais livre do que fizemos até aqui. Assim, as reflexões e conceitos que Deleuze produziu a respeito deste ou daquele filme, deste ou daquele autor, poderão aparecer em análises dos mesmos, ou de outros filmes. Mas seria talvez um tanto limitado dizer que Deleuze desenvolveu um “método” para analisar filmes ou fazer crítica de cinema. Trata-se de uma maneira de se relacionar com o cinema, onde este funciona como uma espécie de espelho anamórfico do mundo, e o mundo, por sua vez, passa pelos filmes para se tornar outro. É claro que o leitor teria aqui o direito de perguntar até que ponto não se está impondo filosofia aos filmes. Mas assim como dissemos que os filmes “anamorfizam” a realidade, a filosofia talvez também faça isso com os filmes e com a própria realidade. O estudo de Deleuze, no entanto, faz com que zelemos para que, uma vez sendo inevitável essa “deformação”, ela também aconteça, na mesma proporção, na direção contrária, ou seja, do cinema para a filosofia. Assim se em certo momento Deleuze e Guattari dizem que o livro e o mundo podem fazer um “rizoma” ¹ , o mesmo talvez possa ser dito

em relação ao cinema. ² Mas o fato é que o cinema como arte e a arte como potência do pensamento não têm, para Deleuze, nenhuma satisfação a dar para a filosofia. O cinema pode até ser, é claro, instigado a criar por uma reflexão filosófica mas, de novo na mão contrária, o “bloco de sensações”, os “perceptos e afetos” ³ que o cinema cria, demandam sempre da filosofia que se esforce mais uma vez no seu tradicional movimento de criar conceitos. 1 Deleuze e Guattari criam o conceito de “rizoma” para se opor ao que eles identificam como uma estrutura “arborescente”, majoritária na forma de estruturação do pensamento ocidental. A estrutura arborescente tende a conceber fenômenos sempre com uma raiz, um tronco e seus galhos (derivações, ramificações...). Por exemplo, tende-se a considerar que as línguas constroem-se como “árvores”. As línguas, no entanto, assim como tantos outros fenômenos, têm para os autores uma estrutura “rizomática”. No lugar onde normalmente identificamos uma “raiz” o que temos é um nó de onde uma haste deriva de outra, e a haste, por sua vez, é o que antes equivocadamente identificávamos como um “tronco”. Mas, na verdade, hastes podem se reencontrar com outras hastes através de novos nós, espalhando-se como se espalha um gramado (a “gramínia” é um exemplo de uma formação rizomática). 2 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille Plateaux, capitalisme et schizophrénie. Paris: Lês Editions de Minuit, 1980, p. 18. 3 Deleuze e Guattari defendem que a arte como uma potência do pensamento é um composto que se conserva como “blocos de sensações” e que tem a função de criar “afetos e perceptos”. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? São Paulo: Editora 34, 1997, p. 213. 1. Um pouco mais sobre tempo e cinema Cristais de tempo, lençóis do passado Deleuze não acha de forma alguma o cinema moderno melhor, ou mais belo, ou superior ao cinema clássico. A questão é, insistimos, aquilo em que o cinema clássico havia se transformado. O cinema teria se tornado incapaz de produzir o novo, incapaz de produzir novas imagens, teria se fechado em clichês. Ou ainda, nas palavras de Deleuze, desta vez com a ajuda de Félix Guattari, “se fechado em virtude de uma impotência”. Todas as variações da crença iluminista do cinema, outrora potentes, haviam se transformado num moralismo rasteiro no movimento mesmo em que o cinema havia se transformado em parte fundamental da máquina de propaganda de guerra nos dois lados do segundo conflito mundial. Mas não foi apenas a guerra. O cinema americano, diz Deleuze, que inicialmente aproveitara muito bem as vantagens de não haver nenhuma tradição por trás dele, desenvolveu-se em poucas décadas para algo tão

sólido que criou uma tradição difícil de ser rompida. Por isso talvez o cinema tenha feito uma espécie de caminho de volta para a Europa para encontrar a sua modernidade. Ou seja, apesar do notável pioneirismo moderno que vimos num diretor como Orson Welles, ou como veremos aprofundado num autor como John Cassavetes e mesmo hoje em David Lynch, não houve exatamente um movimento moderno nos Estados Unidos. Antes, diríamos nós, na concepção realista extrema do método de Stanislavski usado no Actors Studio , o cinema americano voltou a apostar no esquema percepçãoação. É verdade que atores formados no Actors Studio fizeram filmes onde a imagem-tempo aparecia, mesmo que às vezes interrompendo apenas momentaneamente a organicidade das histórias. Esse é o caso de Taxi Driver , de Martin Scorsese e, mais recentemente, do belíssimo Última Noite , de Spike Lee, um filme que Deleuze não conheceu. Este último, diríamos nós, uma espécie de “filme de imagem-tempo clássico”, sem querer causar nenhuma confusão conceitual no leitor. O cinema moderno ganhará complexidade e radicalidade em toda a segunda metade do século XX. Na Europa, são três movimentos especialmente notáveis: na Itália do pós-guerra, na França do final dos anos 1950 e na Alemanha do final dos anos 1960. É claro que o cinema moderno, pensado por Deleuze ainda no início dos anos 1980, não se restringe a estes três países. Correndo o risco de cometer injustiças, acrescentaríamos o cinema espanhol de Luis Buñuel e Carlos Saura – mesmo que o primeiro explore os limites do cinema já antes da guerra e o segundo simplesmente não seja mencionado por Deleuze –, Akira Kurosawa reafirmando um cinema japonês que já era “moderno” desde Ozu, o soviético Andrei Tarkovski como uma das expressões mais radicais da imagem-tempo, Ingmar Bergman na Suécia – que é mencionado apenas em A Imagem- Tempo – e finalmente a força dos novos cinemas do “novo mundo” do qual destacaremos aqui, tal como Deleuze o fez, Glauber Rocha. Lembremos então que o rompimento do encadeamento sensório-motor entre imagem e personagem e entre percepção e ação se dá para nós como um rompimento dos clichês nos quais as imagens do cinema clássico haviam se transformado. Cada um dos exemplos desses rompimentos, à medida que desviam, paralisam ou até tornam impossível a narração, liberam uma descrição das imagens. Isso significa que as imagens deixam de ser apenas vistas para serem também lidas e pensadas. É neste sentido que as imagens óticas e sonoras puras – aquelas que não se desdobram em ação – liberam uma imagem-tempo à medida que nos fazem mergulhar no passado ontológico – no virtual como dimensão não orgânica do real – que nos constitui. É também neste sentido que Deleuze diz que os cronosignos liberam também lectosignos e noosignos , ou seja, imagem-tempo libera respectivamente uma leitura e um pensamento a partir das imagens, mostrando-nos o que e como se constitui o sentido destas. Vimos ainda que essas forças que rompem o encadeamento sensório-motor, que rompem uma zona de indeterminação transformada em clichê, são a expressão de uma realidade virtual que não é menos “realidade” por ser “virtual”. Assim, como Bergson e Deleuze nos ensinaram, existe um passado que é contemporâneo ao presente. É como se o presente se desdobrasse em dois jatos dissimétricos, um em direção ao futuro – e por isso ele “passa” – e

outro que concentra todo o seu passado. Neste sentido, o presente é sempre uma “ponta de presente” e é só porque é assim que ele pode ter um “sentido”: o sentido do presente. De fato, o sentido de algo é passado deste algo. O que estamos falando é mais simples do que parece ser: o sentido de uma palavra é o seu passado, o sentido de uma imagem, é o seu passado, o sentido de um signo é sempre o seu passado. Para compreender algo, instalamo-nos subitamente num passado. Se, por exemplo, um grupo inteiro de pessoas se entende porque fala uma mesma língua, é porque têm uma espécie de comunhão de passados. Esse passado, que estamos chamando de “virtual”, é na verdade uma potência de vida não orgânica que constitui o mundo. Ele é como o afeto do tempo no corpo, no orgânico que, por sua vez, nós designamos como o “atual”. Virtual e atual – passado e presente – constituem o que Deleuze chama, a partir de Bergson, de “menor circuito”. É aí que está o cristal como uma imagem do tempo. Nele, presente e passado, atual e virtual, são indiscerníveis, mesmo que sigam sendo distintos. Não que o tempo seja uma imagem-cristal; na verdade, diz Deleuze, “nós vemos o tempo no cristal”. ⁴ Passamos então a ver o tempo diretamente representado no cinema moderno: o cinema como uma “presentificação do tempo”. O cinema moderno estaria então tomado por essas imagens-cristais. O espelho seria a imagem-cristal em estado “puro” e o primeiro exemplo desta estaria na casa dos espelhos de A Dama de Shangai , de Orson Welles. Ali, a duplicação ao infinito das imagens dos protagonistas nos mostra claramente a indiscernibilidade entre virtual e atual. Mas, por outro lado, a distinção entre ambos continua a existir e se torna mais uma vez perceptível quando todos os espelhos são quebrados e finalmente só restam as imagens atuais: os corpos vivos de fato dos personagens que atiram uns nos outros. É como se fosse necessário destruir a imagem-cristal para o filme encontrar algum encadeamento sensório-motor e alguma ação possível: o último duelo do filme. Diríamos que, neste caso, é um duelo no final, mas não “o” duelo final, visto que não há vitória do bem sobre o mal e nem julgamento possível. Mas, pelo menos na hora do duelo, o filme é quase que apenas presente, posto que se os espelhos foram destruídos, destruiu-se toda a virtualidade e só restaram os corpos: o atual. Nesse momento especificamente, em meio a um filme seminal do cinema moderno como A Dama de Shangai , o tempo pode passar de uma maneira clássica: como um número do movimento. A imagem-cristal nos mostra portanto que, antes desse ou daquele passado, há um passado no qual nos instalamos: um “passado ontológico”, segundo Bergson. É este que dá uma profundidade e sentido à experiência do real. Quando nos instalamos nele somos então imediatamente levados aos “lençóis do passado”, e é só graças a esta operação que se tornam possíveis as imagens-lembranças e as imagens-sonhos. Welles vai nos dar de novo o exemplo primeiro, desta vez em Cidadão Kane , isto é, cada vez que a pergunta por “Rosebud” é feita para cada um dos personagens, estes mergulham num lençol do passado: cada um dos períodos e etapas da vida de Kane. É claro que a maneira relativamente simples como, numa espécie de ingenuidade inaugural, descrevemos essas imagens em Welles, talvez

prejudique um pouco a distinção das inúmeras formas como, particularmente as imagens-cristais, aparecem no cinema moderno. Os exemplos de imagens-cristais, no entanto, seguem sendo mostrados por Deleuze entre os diretores do cinema moderno: elas aparecerão em Fellini, em Herzog, em Visconti e até em diretores que filmam desde o que seria uma época “clássica” do cinema, como Jean Renoir. Nós mencionaremos algumas dessas imagens, mesmo que de maneira transversal, quando falarmos dos filmes de cada um desses autores. Chronos e Aion O próprio Deleuze, refletindo sobre as maneiras de se conceber o tempo, chega, em Lógica do Sentido , a duas denominações que sugerem duas experiências distintas do Tempo: Chronos e Aion. ⁵ Poderíamos definir Chronos como a grande eternidade que, por assim ser, engloba todo o passado e todo o futuro. Quer dizer, do ponto de vista de Chronos não há passado e futuro: só há presente. Este pode se estender sempre mais e mais, incorporando passados e futuros infinitamente como um único acontecimento, chegando então ao movimento eterno que é o próprio acontecimento do universo, do cosmos. Chronos é, portanto, a eternidade enquanto presente, numa definição do tempo que é próxima da que está no Timeu , de Platão: “O tempo como a imagem móvel da eternidade”. Na verdade, o próprio tempo e a própria eternidade como uma imagem móvel: o acontecimento Chronos. Chronos existe então enquanto um movimento, uma mistura, um eterno relacionar-se, compor-se, enfim, o que Deleuze diz ser um permanente “temperar”. E este, chama a atenção ainda o francês, é de caráter material, corporal. É a partir daí, inclusive, que podemos afirmar que o futuro e o passado só existem do ponto de vista desses corpos e graças às relações que se travam entre eles. Quer dizer, como dissemos a partir de Bergson, o futuro e o passado só existem a partir dos cortes móveis que acontecem no interior do cosmos material eternamente em movimento. Por isso o futuro e o passado são, segundo Deleuze, “o que resta de paixão em um corpo”. Assim, se do ponto de vista desse Chronos eterno podemos até dizer que há uma perfeição, um ajuste que é o próprio movimento do Todo que seria, aqui, semelhante ao Deus panteísta de Espinosa: uma força infinitamente perfeita que não tem intelecto nem vontade; do ponto de vista das relações parciais que se travam entre os corpos, exatamente por estes serem um corte móvel do Todo, há sempre a iminência de um desajuste. Quer dizer, estão sob uma ação do tempo que está sempre a lhes afetar, transformar e mesmo a lhes ameaçar. Ou ainda, como diz Deleuze, o passado e o futuro voltam para se vingar. O que aí se gera, então, é o que o filósofo chamou de “Mau Chronos”. Este é como um “devir louco” que está sempre a ameaçar os corpos e as relações parciais que se travam entre eles no cosmos. Como o presente do “bom Chronos”, este devir louco se estende infinitamente, ou seja, todo presente, todo acontecimento, corpo, ou relação entre corpos no universo estão permanentemente ameaçados de destruição ou, no mínimo, de sofrer abalos e degenerações. É nesse instante, nos diz Deleuze, que vemos surgir o

tempo de Aion. Há na gênese de Aion ao mesmo tempo uma contração e uma resistência. O que aí se dá é um intervalo como um lugar que é, em certa medida, imaterial. E é assim imaterial exatamente por ser uma espera. Trata-se, portanto, de um instante que tenta resistir, posto que cinde o devir, o que faz Deleuze concordar com Platão no Parmênides, quando este diz que o instante é “atopon”, quer dizer, atópico: um não-lugar ou um entrelugar imaterial que se instala no cosmos. Aion é, então, a instauração de uma fissura, uma fissura atópica que não para de dividir o devir entre passado e futuro. Este caráter atópico e imaterial da fissura que Aion está sempre a fazer no devir é a própria instauração da possibilidade da linguagem. É verdade que Deleuze nos mostra que a origem da linguagem está, em primeira instância, neste relacionar-se infinito entre as coisas materiais e o devir louco que está sempre a ameaçá-las na sua integridade – o “bom”e o “mau” Chronos. Mas o filósofo emenda que ela só vai se tornar possível quando Aion se instaura à maneira dessa fissura abstrata. Aion instaura assim a linguagem porque a partir dele o que passa a haver é o sentido, isto é, só há agora passado e futuro: duas linhas até o infinito divididas por esse instante atópico que cria a condição definitiva para a gênese da linguagem. E não resta dúvida de que é aí que se instaura também para nós uma impressão de que existe uma dimensão metafísica, abstrata e imaterial de realidade e que nos faz, equivocadamente, compreender tanto a linguagem quanto as imagens (que são signos) num outro polo, cindido da materialidade do universo. De fato, sem este intervalo atópico no devir do cosmos, não existiria uma separação, um distanciamento do ruído direto e imediatamente material que existe graças ao contato e à relação entre as coisas. O intervalo, a contração de Aion, permite na verdade uma transdução, que vem a ser a própria linguagem. Neste sentido, podemos dizer que a câmera de cinema – não o objeto material, mas o filmar em si mesmo – tem o caráter atópico desse intervalo. Neste caso, ela é, porque a linguagem que se instaura no intervalo sempre é, um “transdutor”, isto é, o que na física designa um dispositivo que transporta a energia de uma forma a outra. Assim, esse instante de Aion, ao nos pôr diante do passado e do futuro, nos põe diante da virtualidade: da própria linguagem, portanto. Esta surge da fissura atópica entre os corpos, exatamente porque deles extrai um som, uma imagem, um signo que designa, qualifica e diz algo sobre os corpos. Se não existisse a fissura de Aion, o som e a imagem, por exemplo, se reincorporariam ao corpo imediatamente, dentro da lógica do jogo eterno de relações e choques entre eles. O que se instaura na dimensão atópica de Aion é uma fronteira entre as coisas e as proposições, ou seja, uma fronteira entre as coisas e o que se diz das coisas. Aion cria então uma espécie de um novo mundo. Mas este novo mundo, por sua vez, não deixa de se relacionar e intervir no cosmos de Chronos, ou seja, não deixa de intervir no grande acontecimento, no grande presente. Assim, este sentido que faz existir aquilo que exprime acaba, por insistência, como diz Deleuze, a existir naquilo que exprime. Aion, portanto, que interrompe parcialmente, e fende, a dinâmica dos dois devires em choque de Chronos – o “bom” e o “mau” Chronos –, gera a linguagem e cria algo que, mais cedo

ou mais tarde, vai intervir também na dimensão de Chronos, fazendo parte do grande acontecimento no cosmos. Ou seja, o instante de Aion é o instante da criação e da singularidade. Aí nasce a linguagem, mas também se gera o acontecimento com sentido: a história, a narrativa. É aí que o infinito cosmos de Chronos se renova a partir de dentro, da fissura: a contração, o intervalo que Aion representa. Aion traduz então, numa outra coisa, o passado e o futuro que no “mau Chronos” – no devir louco – voltam para se vingar. Aion é, portanto, a tradução em potência criadora de um devir caótico: por isso ele é também um transdutor e, por isso, a câmera do cinema moderno, do cinema que presentifica e cria realidades, pode ser compreendida como uma câmera Aion. Santo Agostinho faz cinema: O Ano Passado em Marienbad Mas não resta dúvida de que uma das mais importantes reflexões sobre o tempo feitas na filosofia foi a de Santo Agostinho. Estas nos parecem estar na raiz de algumas das reflexões tanto de Bergson, quanto do próprio Deleuze. Agostinho nos diz, por exemplo, que o presente só existe na medida em que se torna passado; ou seja, o presente precisa passar, precisa deixar de existir, para existir. ⁶ O presente não teria assim para ele “lugar”, espaço. A experiência do presente seria sempre, na verdade, da mesma maneira como Bergson vai descrevê-la mais tarde: uma “ponta de presente”, numa notável influência do filósofo norte-africano medieval em relação ao filósofo francês que trabalha no limite da crise da modernidade. Esta ideia da imaterialidade do presente é ainda fortalecida em Santo Agostinho quando ele fala de uma incomensurabilidade deste, isto é, Agostinho afirma que toda medida do presente pode ser, infinitamente, ou distendida, ou dividida. Por exemplo, podemos dizer que o tempo presente é o século, a década ou o ano que vivemos. Mas na verdade também em um ano vivemos apenas num dia deste ano, sobrando para trás os dias do ano que já passaram, e tendo à frente os dias que ainda estão por vir. E mesmo neste dia, o que temos são diversos minutos, vivemos o minuto como o presente, no passado ficaram outros minutos do dia, e no futuro estarão outros tantos. Podemos prosseguir neste raciocínio infinitamente até concluirmos que a medida do presente é impossível. De novo o filósofo medieval parece ter percebido algo que Bergson vai trazer para as suas reflexões muitos séculos mais tarde, a saber: que o tempo só pode ser compreendido como continuidade, como duração, e nunca como uma sucessão de cortes, de pontos e instantes. Agostinho nos fala ainda da presença do que passou, assim como da presença do que virá. Quer dizer, ele se pergunta como podemos dizer que algo existe no passado ou no futuro se, na verdade, trata-se de algo que, respectivamente, ou já passou – e deixou de existir – ou ainda não existe. O que intriga o filósofo cristão é que tanto o passado quanto o futuro, em si mesmos, seriam o não existente – o não ser – e, no entanto, nos relacionamos com ele como algo existente uma vez que temos o hábito tanto de medir quanto de mencionar o passado e prever o futuro.

Agostinho nos propõe então uma nomenclatura que ele julga mais exata para se referir ao tempo. No lugar de falarmos de passado, presente e futuro, deveríamos falar em “presente do passado”, “presente do presente” e “presente do futuro”. De fato, o que Santo Agostinho nos diz é que aquilo que dizemos existir, mesmo que seja dito que está no passado, ou estará no futuro, só pode existir como um presente. ⁷ Há então, ao mesmo tempo, uma imaterialidade do presente – o presente que não ocupa nenhum espaço – e um certo predomínio deste mesmo presente, posto que passado e futuro só podem aparecer como “presentes”: como, digamos, “atualizações”. Estas reflexões sobre o tempo do filósofo cristão medieval são de uma tão notável radicalidade que, justamente num dos filmes que representam a descoberta francesa da imagem-tempo, percebemos uma obra, digamos assim, “agostiniana”. Estamos nos referindo a O Ano Passado em Marienbad , de Robbe-Grillet e Alain Resnais. Deleuze afirma que este filme concilia, de um lado, a experiência das “pontas de presente” típicas da obra de RobbeGrillet, com os “lençóis do passado” que vimos Resnais usar, sob influência de Welles, em Hiroshima Mon Amour . O que mais nos chama a atenção no filme, no entanto, é o fato de ele ser todo no presente. Parece-nos que Robbe-Grillet e Resnais tentam presentificar a experiência de um instante que não passa. Se o filme é, pois, todo no presente e o tempo não passa, ele jamais se decide: jamais ganha um sentido. Por isso ele nos põe diante de todos os sentidos possíveis, e também de todos os passados possíveis. Um instante que não passa – que não se decide por uma direção no futuro – é por si só um presente sem sentido, posto que não sabemos qual é o passado que constitui este sentido. O que teria acontecido no ano passado em Marienbad? Esta pergunta insiste através do filme, gerando inúmeras variações de respostas, quer dizer, inúmeras possibilidades do que poderia ter acontecido. Deleuze diz que a possibilidade de tratar o mundo, a vida, ou mesmo apenas um episódio, como um só acontecimento, é dada justamente pela simultaneidade dos três tipos de presentes distintos nomeados por Santo Agostinho. Assim, saindo de uma observação em que vemos os acontecimentos um depois do outro, ou seja, um como sucessivo ao outro, veremos que estes são constituídos de uma implicação entre o que ainda não aconteceu, o que aconteceu e o que acontecerá. Aí, insistimos, o acontecimento é como o presente descrito por Agostinho: é atópico, sem lugar, mas absolutamente real. O filme nos mostra na verdade um passado absolutamente indefinido e, consequentemente, a impossibilidade da compreensão da própria experiência do presente. Trata-se de um presente que não passa, expresso de maneira notável nas estátuas sem sombra nos jardins do palácio. Assim, todas as possibilidades estão abertas no filme como inúmeras pontas de presente desatualizadas. É por isso que vemos uma angustiante, quase enlouquecedora, experiência de todos os sentidos possíveis. Por isso talvez a heroína, em certo momento, suplique desesperada: “Me deixe, me deixe”. É preciso que o presente passe para ganhar sentido. No Decorrer do Tempo e Alice nas Cidades: o bergsonismo de Win Wenders

E se já apresentamos aqui, entre outras, experiências nietzschianas e até mesmo “agostinianas” no cinema, não poderíamos deixar de falar de dois filmes que nos parecem abrir a possibilidade de uma aproximação singular com Bergson, mesmo que, a partir de Deleuze, todo o cinema seja, de certa maneira, bergsoniano, como é bergsoniana boa parte dos conceitos com os quais estamos trabalhando. Por nossa conta, no entanto, vimos uma espécie de bergsonismo explícito em dois filmes de Win Wenders: No Decorrer do Tempo e Alice nas Cidades . É verdade que Vertov já havia feito um cinema que expressava de certa forma um bergsonismo puro e direto, apresentando-nos a experiência da percepção num universo ainda absolutamente acentrado: imagemmovimento original, onde todas as coisas percebiam todas as coisas. De fato, o soviético parece ter feito, em especial no seu filme Um Homem com uma Câmera , uma espécie de “metacinema”, numa experiência que ele mesmo identificava como a de uma “câmera olho”. É verdade que o projeto de Vertov também poderia ser compreendido como uma original efetivação enquanto imagem do estágio descrito por Marx como “comunismo ateu”, na qual seria subsumida a oposição dialética entre homem e natureza. Nesse raciocínio, Vertov teria ido mais longe até que Eisenstein no seu marxismo. É como se homem-máquina e naturezamáquina experimentassem, em Um Homem com uma Câmera, um agenciamento capaz de constituir um “comum” como uma espécie de “novo cosmos”, e portanto também, num mesmo corpo, uma “nova natureza” e um “novo homem”. Assim, homem e natureza não estariam mais cindidos, superando qualquer oposição dialética entre eles, agenciando o maquinismo que constitui cada um num único e novo socius , que apareceria também como uma espécie de “novo cosmos” na forma de imagem-movimento. Mas é o bergsonismo de Vertov que primeiro nos interessa, isto é, a maneira como este apresentou em seus filmes algo muito semelhante à imagemmovimento originária: o universo como metacinema, segundo Deleuze. Win Wenders, no entanto, parece avançar em direção aos mecanismos cinematográficos da percepção e do pensamento descritos por Bergson no último capítulo da “Evolução Criativa”, interiorizando o metacinema na subjetividade como se percebesse o que Bergson chamou de centro de indeterminação e Deleuze, de imagens-viventes. É como se Wenders descobrisse as quebras, interrupções e desvios que a subjetividade sofre, como um “mecanismo cinematográfico” que sempre pode ser surpreendido pelo que rompe o seu mundo a partir de fora.

O que vemos nestes dois filmes de Wenders são personagens sempre em alguma estrada ou trilho, algum carro ou trem, vendo o mundo de uma janela, de uma tela, de um espelho ou de um projetor. É como se ele descobrisse o próprio sentido de nossas vidas se construindo e se encadeando nestas pistas e circuitos. Estamos sempre acompanhando uma câmera em movimento – e que filma porque move o seu próprio encadeamento de rolos, trilhos e pistas –, filmando homens que se movimentam e percebem – filmam – o mundo: a percepção segundo Bergson. É o próprio Deleuze quem afirma que Win Wenders usa nestes filmes a câmera como uma espécie de “equivalente geral de todos os meios de locomoção”, ⁸ ao que nós acrescentaríamos que a câmera de Wenders ganha um sentido existencial que não havia em Vertov. O encontro dos dois personagens na estrada em No Decorrer do Tempo , por exemplo, é o encontro de dois desses circuitos: dois caminhos, dois trilhos, duas pistas. Este encontro acaba por engendrar novas possibilidades na vida de um e de outro: produz-se uma troca que potencializa novos sentidos para cada um, apresenta-lhes novas possibilidades de bifurcações e, é claro, provisoriamente também a experiência de um sentido comum. De novo, a partir de Bergson, tais trocas entre os sentidos de cada circuito – cada trilho, pista, estrada, filme – são ao mesmo tempo a constituição e a experiência de uma narrativa existencial e histórica. Antes dos personagens se encontrarem, nós mesmos os tínhamos encontrado quando no circuito dos fotogramas impressos no filme – na pista – se encadeavam as imagens do homem na estrada; um homem que, a propósito, vivia de consertar projetores em velhos cinemas da Alemanha. E assim todos os pontos de vista dos personagens a partir das janelas e dos espelhos dos veículos em movimento, como também os nossos vendo-os na tela do cinema, se reorganizam como um filme no circuito da dinâmica de percepção e memória que constitui a nossa experiência de realidade.

Já no caso de Alice nas Cidades, o sentido, a pista, a história, é o que se busca. O fotógrafo jornalista e a menina estão percorrendo as diversas estradas e trilhos da Alemanha, porque estão atrás do circuito, do caminho perdido da vida da criança: um passado que não conseguem encontrar. Mas tanto no caso de Alice quanto no caso de No Decorrer do Tempo , a história nunca para – embora um impasse e uma hesitação vez por outra a ameace –, até porque nos dois filmes o som de um blues serve para restaurar e embalar os ânimos, mantendo-os permanentemente on the road . Neste caso, o blues e o on the road é o que Win Wenders traz da América para perambular por uma Alemanha que parece parada no limite – no fim – da história. É como se o seu país e o seu continente vivessem um tal estado existencial e histórico que seria preciso trazer um movimento de fora. Mesmo quando não é especificamente a América, é por exemplo um movimento alucinado e vão do rapaz que volta no seu fusca a toda velocidade da Itália e se joga no lago à beira do qual o mecânico de projetor de cinemas descansava tranquilo em seu caminhão mambembe. A princípio, Wenders parece parar o filme e parar a história, parando o próprio tempo, mas mesmo esses exemplos já mostram que ele se interessa por todo tipo de movimento que possa atravessar esta paralisia, na qual ele ora é melancólico, ora se delicia. Por isso talvez, como vamos ver mais adiante, ele vai também duvidar do “fim da história”, mesmo que a tenha filmado como ninguém. 4 I. T., p. 109. 5 DELEUZE, Gilles. Logique du Sens, op. cit., p. 190. 6 AGOSTINHO . Confissões . “O Homem e o Tempo”. In: Os Pensadores , op. cit., p. 243. 7 Ibidem, p. 246: “Se existem coisas futuras e passadas quero saber onde elas estão. Se ainda o não posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas, mas presentes.” 8 I. M., p. 35. 2. Para além do fim da história O Enigma de Kaspar Hauser: o herói contra o niilismo O cinema da imagem-tempo descobre que ilusionistas, falsários, potencialmente somos todos nós. Deleuze nos ensina que se este cinema não se preocupa mais em reproduzir o real, é porque de uma maneira ou de outra seus autores passam a compreender, como compreenderam Nietzsche e Bergson, que o real é irreprodutível. O cinema descobre então completamente uma potência que desde sempre foi a sua, qual seja, a da “produção” de realidade, e faz das situações-limite que daí se desdobram o drama de grande parte dos filmes. E este drama, ou cada um destes dramas, se traduz numa disputa contra tudo o que se opõe à potência inventiva da

vida. Ou seja, se Deleuze diz que o cinema moderno descobre a potência do falso como a Vontade de Potência nietzschiana, essa vai precisar se deparar a todo tempo com o que tenta debilitá-la, esvaziá-la. Por isso veremos em muitos filmes, personagens e situações, as expressões do niilismo nas suas diversas variações. O cinema como “produtor’ de realidade tem estreita relação com o que Deleuze descreve como um cinema capaz de produzir uma imagem-tempo direta. É como se o cristal de tempo, com sua troca de posições entre o virtual e o real, estivesse também na relação entre o cinema e o mundo. E uma vez que o próprio Orson Welles nos disse que há uma moral – um character – pelo qual ele avalia os personagens de seus próprios filmes, poderíamos arriscar dizer que não só nos seus filmes, mas também em outros filmes “modernos”, é possível também o surgimento de heróis e vilões. Ambos são falsários, posto que não é a ilusão que é moralmente condenável. Na verdade, esses falsários, entre os quais está o próprio realizador de filmes, podem até ser distinguidos por essa noção moral que aproxima Welles de Nietzsche, qual seja, a que conhece a virtude dos homens na ação que esses são capazes de fazer, ou não, quando se deparam com a possibilidade do seu próprio fim, ou no mínimo de seu enfraquecimento. O leitor talvez se pergunte se não estamos nos contradizendo ao afirmar a importância de certo tipo de ação num cinema que dissemos paralisar a narração e liberar uma descrição através da imagem. Mas é como se esta paralisia ou desvio da ação demandasse, diante da leitura e do pensamento sobre as imagens para os quais é levado por vezes o próprio personagem, a invenção de outra ação numa outra direção. Assim, existem os falsários que conspiram contra a vida, que querem o seu controle absoluto, e cujas ações são no sentido de eliminar da vida tudo o que ela tem de movimento: os falsários que são a expressão ativa de uma vontade de nada, uma espécie de vontade de morte, o niilismo. E, por outro lado, existem aqueles que tomam para si a tarefa de renovar a vida, os homens de ação generosos na concepção que Nietzsche encontra para esta palavra. Estes são homens de um empenho gratuito sem nenhuma justificativa “para além” da vida, como a descrição que fizemos de Otelo antes de ser contaminado pelo ciúme e pelo ressentimento de seu falso amigo. Aí está o homem da “Virtude Dadivosa” ⁹ descrita por Nietzsche. Este é o criador que reinventa e gera a vida, o “ladrão de todos os valores” para reinventar um valor absolutamente gratuito, inútil, que não sirva para nada além dele mesmo, tal como o valor do ouro, símbolo da mais alta virtude: “um valor raro e inútil que está sempre se dando de presente”. ¹⁰ Este homem, que toma para si a tarefa de reinventar a vida, percebe que dela só temos mesmo a certeza de uma imensa gratuidade, de um caráter inexplicável, ou seja, percebe que a vida é antes de tudo amoral. Mantê-la, reinventá-la e fortalecê-la nesta sua gratuidade é a mais nobre e generosa atividade na qual poderíamos nos empenhar. Nietzsche compreende isso como um “saudável egoísmo”. De fato, há inevitavelmente um momento de egocentrismo para o homem criador, qual seja, ainda que de forma ilusória, ele tem a experiência de que a reinvenção da vida é uma função que lhe cabe. E quando ele assim o faz, de uma maneira que sua ação não

represente a tentativa de destruir vontades semelhantes à sua que estão a se manifestar, o seu egocentrismo se converte numa generosidade. Na verdade, o que ele conseguiu produzir aí foi uma identidade com estas vontades criadoras. O contrário, porém, deste “egoísmo generoso” seria, para Nietzsche, um egoísmo doentio. É o egoísmo daqueles que estão sempre à espreita de uma “mesa farta”, de todos os lugares onde a vida se cria, de tudo que parece florescer. É o que vimos com o falso amigo ressentido de Otelo, que age para despertar o seu ciúme, ou como Macbeth conspirando um golpe de Estado para ter a vida de toda a Escócia sob seu controle. Nietzsche nos mostra que onde há uma vontade geradora de vida há, em oposição, este homem ressentido: o homem do espírito de vingança. A expressão deste ato de vingar-se, de voltar-se contra a vida, se dá exatamente na insistência deste homem em afirmar a crença num fundamento para além da vida, noutro plano, ao qual a vida deveria sempre se submeter. Este é um homem impotente que espalha a impotência do niilismo, como o anão, o espírito de peso, que pula nas costas de Zaratustra puxando-o para baixo. Não importa se esses autores leram Nietzsche ou não. O cinema que eles ousaram levar às últimas consequências só poderia levá-los aonde levou: a essa briga de vida e morte que é a dinâmica de memória e esquecimento que Nietzsche descreve no seu famoso texto sobre a história, mostrando-nos o quanto ela é necessária para a vida e o quanto, por outro lado, ela pode agir contra a vida. Como a filosofia que sempre lutou, de uma maneira ou de outra, contra a impotência do pensamento, aqui descobrimos o cinema no limite dessa luta. E, assim como quer Nietzsche em sua filosofia, esta é uma luta contra a impotência da vida e da história, hora em que as imagens estão por se esvair num dispersar que é a própria dispersão da narração. Assim é a sequência final de Morte em Veneza , de Visconti e, de uma maneira diferente, o último passeio em Paris antes do suicídio do protagonista de Trinta Anos esta Noite , de Louis Malle. Para nós, é no calor desta luta, ali onde ela se torna fisicamente – fisiologicamente como diria Nietzsche – insuportável para nós, que precisamos do clichê – da história organizada em torno de uma lei –, mas é nela também que se impõe, de forma igualmente fisiológica, a necessidade vital de destruição do clichê. O que temos aí é a experiência de uma ausência de sentido, de uma nadidade. Esta funciona como a experiência da ideia da nadidade descrita por Bergson na Evolução Criadora : ¹¹ uma experiência que acaba por gerar em nós a própria ideia do Todo. E ela assim o faz exatamente porque nos instala no devir, ali onde as coisas estão perdendo sentido e ali onde elas pedem novo sentido. Quer dizer, esta experiência é a do próprio movimento eterno que Bergson vê no cosmos – o Todo como um devir universal –, movimento este que está a pressionar o centro de indeterminação que nós somos. Nesse momento, vemo-nos diante da necessidade, e mesmo da urgência, de criar: de produzir mais uma vez realidade. Por isso, as imagens do niilismo, as situações do niilismo, ou seja, as “forças que enfraquecem” a vida, e os agentes da impotência da vida que aí se anunciam, acabam exercendo para os filmes e seus personagens uma função

revitalizadora. É diante dessa negatividade, dessa presença da morte, que os personagens têm de se afirmar ou não. No mínimo, são elas que os fazem lutar – ou sucumbir – mas, de uma forma ou de outra, são a fonte geradora da história do filme, que será sempre uma história trágica. E se por acaso os personagens sucumbem ao niilismo, o drama deles traz ao espectador a experiência existencial radical do niilismo, que é, para Nietzsche, etapa fundamental pela qual temos que passar para a superação do próprio niilismo. É como se esta experiência gerasse em nós uma consciência do niilismo. Mas uma “consciência” no sentido que tanto Bergson quanto Nietzsche a compreendem, ou seja, ao mesmo tempo existencial e fisiológica: diante do limite físico suportável do niilismo, ou sucumbimos a ele, ou reinventamos a vida à medida que reinventamos um sentido. Talvez seja isso que explique o frescor e a força da paixão do casal que nasce em meio à destruição de Hiroshima no filme de Resnais que analisamos. Assim, já em Welles, como daí em diante, o cinema da imagem-tempo estará cheio de figuras deformadas, ressentidas, que paralisam, perseguem e esmagam os personagens. O primeiro exemplo que veremos dessas imagens e desses personagens do niilismo estará em O Enigma de Kaspar Hauser , do alemão Werner Herzog. O filme foi lançado no Brasil com este título, mas a tradução literal de seu nome em alemão para o português seria: Cada Um por si e Deus contra Todos . Kaspar Hauser, o protagonista do filme, não é em si mesmo um personagem do niilismo. Ao contrário, diríamos que ele é uma espécie de herói trágico: certamente um dos mais ingênuos heróis já inventados. Mas é como herói que ele se depara e enfrenta uma verdadeira galeria de personagens niilistas, que desfilam diante dele, e de nós, num nietzschianismo quase didático – mas que de forma alguma enfraquece a força dramática do filme. Há no herói Kaspar Hauser uma grande semelhança e uma grande diferença com cada um de nós. Tal como nós, Kaspar Hauser nasce, aparece: vem, ou “cai” no mundo. Mas o faz “fora de tempo”, ou seja, não nasce no tempo, na hora certa, no momento em que se “deve” nascer. Tendo passado os primeiros vinte anos de sua vida trancado e acorrentado no sombrio porão de uma casa, onde recebia apenas uma tigela com comida enquanto dormia, Kaspar é finalmente tirado dali e “jogado” no mundo. Este é, de fato, o seu “nascimento”. Mas com todo este “atraso”, toda a “formação” de Kaspar, todo o processo de sua vida acaba se dando numa série de desvios de sentido, de diferenças, de acontecimentos fora do que deveria ser o “encadeamento lógico” no processo de vida de um homem comum. Por isso, pouco a pouco, Kaspar vai se tornando um incômodo, e mesmo um perigo para a sociedade. A imagem de Kaspar Hauser trancado e acorrentado desde sempre num porão não pode deixar de lembrar a “Alegoria da Caverna” de Platão. Mas o que vemos, no caso do filme de Herzog é uma “Alegoria da Caverna” da inversão do platonismo. O que Kaspar encontra ao sair da caverna não é o “mundo real”, nem as coisas reveladas em suas essências. Ao contrário, o que ele encontra ao sair da sua caverna é uma grande ausência de realidade, um imenso abismo de sentidos: uma história e uma vida por fazer. Por isso dissemos que o seu nascimento é uma “queda” no mundo: uma

“queda” à maneira freudiana. O próprio herói constata isso em certo momento do filme, dizendo ao seu tutor que entendera finalmente que a sua chegada a este mundo fora um acontecimento muito triste. Como em tantas outras vezes, essa afirmação causa grande desconforto. Trata-se de uma experiência de nascimento que poderia ser entendida também à maneira de Heidegger, ou seja, a experiência mais original do herói seria a de um grande vazio, de uma imensa impotência e angústia diante da imensidão do mundo: a experiência da existência desde a própria experiência do não ser e da perplexidade diante da possibilidade de ser. As imagens da primeira visão que o herói tem do mundo quando sai de sua “caverna” já parecem expressar isso. São imagens em formação, paisagens ainda não completamente delineadas, que lembram às vezes um quadro impressionista ou, antes, chegam mesmo a lembrar o que nos parece ser a experiência sensível do mundo a partir dos olhos de uma criança. É como nos ensina Bergson: a experiência das imagens, antes de ser delineada à maneira cinematográfica, é delineada à maneira de um caleidoscópio. É esta percepção caleidoscópica que exige de nós uma “seleção”, ou seja, tiramos dela uma foto e a encadeamos – montamos – no “filme” da consciência, porque precisamos de sentido. Nietzsche, por sua vez, diria que este mundo difuso e caótico precisa aí ganhar sentido, na medida em que precisa ganhar forma: “O amor dos homens pelo belo é o amor dos homens pela forma.” Neste raciocínio, o processo de “aprender a ver” será bastante semelhante ao de aprender a linguagem das palavras. As imagens que são repetidamente vistas, e todo tipo de fenômenos de ordem motora que constituem e se seguem a esta visão, vão se armazenando em nossa memória. É esta memória que vai ser acionada quando uma percepção gerar um fenômeno sensório-motor que parece ser semelhante, ou encadeável, para se constituir um sentido, ao que já está armazenado. A memória vai então preencher a imagem percebida que é, como sabemos, uma percepção parcial, selecionada. E uma vez evocada, é a própria memória que vai orientar a percepção para que esta, na medida do possível, continue percebendo seletivamente – fotografando – para que prossiga o encadeamento entre percepção e memória. Por isso o mundo vai sendo percebido com clareza por uma criança à medida que ela vai constituindo memória, que uma série de percepções sensíveis vão se encadeando num jogo de semelhanças. E mesmo esta repetição, quer dizer, esta semelhança de percepções, é porque a memória está cada vez mais ajudando a selecioná-las. O mundo caleidoscópico vai então ganhando forma, e a criança vai construindo encadeamento imagético lógico – como um filme – em sua consciência. É por isso que dissemos que, a partir de Bergson, essa experiência cinematográfica da consciência é já, de certa maneira, uma experiência de linguagem: é já da ordem da representação. No caso de Kaspar Hauser, o que assistimos, com a sua chegada à cidade, é o aprendizado tradicional da linguagem das palavras, o que, de resto, pode ser observado em qualquer criança. Quando o herói, por exemplo, está tomando o primeiro banho de sua vida e tem a pele fortemente esfregada, ele afirma: “A minha pele está saindo fora.” O problema é que este tipo de desvio de sentido, de descoberta de outro sentido possível, se segue ao longo da história de uma maneira que

vai se tornando socialmente cada vez mais incômoda e perigosa. A rigor, exatamente por estar “fora de tempo” que este espírito ao mesmo tempo infantil e filosófico de Kaspar torna-se problemático. Na verdade, suas afirmações são até bastante inteligentes, espirituosas, e mesmo reveladoras e criadoras de outros sentidos possíveis – como caberia a um filósofo e como se admite numa criança. Mas Kaspar é já um homem com mais de vinte anos e não convém que ele desmonte os sentidos sociais, historicamente aceitos, e sugira ingenuamente outros da maneira como faz. Desde o primeiro momento do filme se instaura uma luta por enquadrar e encadear Kaspar num processo racional. É como se a Vontade de Verdade, descrita e denunciada por Nietzsche, soasse como uma palavra de ordem: isso precisa ser compreendido, racionalizado, objetivado. É por isso que a descoberta de Kaspar na praça principal da cidade é imediatamente seguida de uma “abertura de processo” no sentido literal do termo. Um anão – que é quem vai “fechar o processo” na última sequência do filme –, um funcionário de cartório, e portanto do Estado, começa a registrar cada detalhe sobre Kaspar num documento oficial. Este anão é, sem dúvida, a primeira figura do niilismo com a qual se depara Kaspar. Como um tipo de homem do Estado, trata-se de uma expressão possível do “homem verídico”: o homem que quer a verdade, a racionalidade, a qualquer preço. No filme, a função do anão burocrata é, a princípio, aquela que Hegel designa para o Estado: objetivar. E além do homem de Estado, cada uma das versões, ou das alianças possíveis do homem verídico, vão aparecendo no filme. O homem de ciência, por exemplo, está no encontro de Kaspar com o professor de lógica, que não aceita a saída possível – mas fora das regras formais da ciência – proposta pelo herói à questão de lógica que lhe é apresentada. Kaspar enfrenta ainda os “homens de religião” quando, para horror de uma junta de padres, não pode compreender os dogmas em torno de Deus e da criação. Mais adiante vemos o encontro de Kaspar com um tipo caracterizado – ou caricaturizado – como um “homem culto”. Temos aí um belo exemplo da cultura como “ornamento dos jardins do saber”, como definia Nietzsche em sua ácida ironia. Nesta sequência, um “culto” professor quer adotar Kaspar para leválo para estudar numa capital europeia, mas pretende antes exibi-lo tocando piano – como convém a um menino “educado e culto” – a uma “elegante” plateia burguesa. Mas para desespero do homem “culto”, que então desiste de adotá-lo, Kaspar se recusa diante do público a executar o número para o qual fora treinado. O que vemos então são o Estado, a ciência, a religião e a cultura como “leis”, ou seja, como instâncias enunciadoras de princípios aos quais a vida deve se submeter. E estas leis não são apenas da ordem do discurso; são também da ordem do acontecimento. Além de se submeter e se adequar a princípios, Kaspar precisa se adequar a comportamentos, aprender certas performances e se constituir como imagem: um clichê do que se espera de um Homem. Não é só o que Kaspar fala, como na discussão com o professor de lógica, que se constitui num sentido incômodo: é também o que Kaspar faz e é. Se os tipos e situações do niilismo vão se apresentando, um a um, diante do herói, é porque é preciso a qualquer preço encontrar um “lugar lógico”, um processo e uma justificativa para a sua vida. Mas Kaspar

continua agindo como uma criança nietzschiana: o sentido e as ações que se seguem ao encontro com estas figuras do niilismo são a mais pura expressão da Vontade de Potência de Kaspar. Este seu espírito de criança – afinal de contas, ele “caiu” no mundo faz ainda poucos anos – o leva a insistir sempre na criação de outros sentidos possíveis diante de cada situação ou personagem que é levado de encontro a ele para ensinar-lhe uma lei, uma lógica e/ou um código moral. Como um herói ingênuo, Kaspar está buscando compreender o princípio de cada coisa – e de todas as coisas –, inclusive o que teria feito com que ele “surgisse”, nascesse neste mundo. Mas como nos ensina Nietzsche em O Nascimento da Tragédia , esta é exatamente a pergunta que leva à resposta que nós nunca deveríamos saber. ¹² Por ter nascido fora de tempo, destinando-se assim a viver fora de tempo, Kaspar vive cada vez mais próximo de um limite difícil dos homens e de suas civilizações suportarem. Talvez até o herói pudesse suportar o que se anuncia para ele num sonho que se repete, ou seja, que vivemos numa viagem, num deserto e, enquanto estamos na viagem mesmo, não sabemos qual é o seu fim. O curioso, porém, é que quando Kaspar conta este sonho pela primeira vez alguém lhe diz: “Não Kaspar, você precisa achar um fim para esta história: uma história precisa ter um fim”. É sobretudo a sociedade disciplinar que vai se instaurando na Alemanha, que não pode suportar uma história sem fim e uma vida sem justificativa; mesmo que o Estado ultra centralizado e racional, como uma das mais fortes expressões da Vontade de Verdade, tenha chegado àquele país europeu tardiamente. É provável que se Kaspar tivesse surgido na mesma época em Londres ou em Paris fosse imediatamente recolhido a um hospital: o espaço da “desrazão” como nos ensina Foucault. Em todo caso, desde o momento em que o anão abre o processo, o Estado, como um grande instrumento da Vontade de Verdade, estava lá. Mas é depois do misterioso assassinato de Kaspar, na última grande expressão do niilismo que vemos no filme, que o herói é finalmente capturado: é enquadrado numa ordem de causalidades. O filme pode então se encerrar porque o anão encontra finalmente algo que justifica todos os desvios de sentido de Kaspar ao longo de toda a sua vida. Este encontro está numa “pseudoprova empírica” que é anunciada pelos médicos que fazem a autópsia no corpo do herói morto, qual seja, uma suposta deformação patológica do cérebro de Kaspar. O que vemos aí mais uma vez é o enunciado, “Eis a verdade”. Como vai pretender o cinema pouco mais tarde, os médicos aí fazem a “mágica da verdade”: trata-se de um procedimento semelhante ao da magia que, como nos ensinou Foucault, jamais deixou de perpassar os projetos e intenções da ciência. E lembremos que a autópsia é um procedimento de Estado feito pela ciência: uma ação conjunta de dois dos principais instrumentos da Vontade de Verdade. A “pseudoprova empírica” anuncia uma lei que finalmente explicaria todos os desvios de sentido de Kaspar, ou seja, Kaspar era essencialmente um “deformado”, era “naturalmente” e em si mesmo uma expressão da desrazão, posto que não teria a forma em si do corpo que faz do homem o mais evoluído e racional dos animais. Assim, chegamos à última sequência do filme, onde o anão burocrata de Estado sai satisfeito da sala da autópsia, com o livro do processo da vida de Kaspar finalmente fechado: “Que grande

dia, que grande dia para a civilização e para a ciência: chegamos finalmente à única resposta que poderíamos chegar.” Tudo estava, enfim, objetivado, explicado e justificado. E este anão de Herzog é semelhante ao de Zaratustra de Nietzsche: imagem de homem que não cresceu por completo, espírito de peso que monta às costas de Zaratustra para impedi-lo de subir. A propósito, o próprio Herzog tem um filme onde todos os personagens – todos os homens – são anões reunidos numa comunidade: Também os Anões Começaram Pequenos . Visconti: cristais em decomposição Já os protagonistas, ou as situações centrais, dos filmes de Visconti em geral também trazem algo “fora de tempo”. Mas este “fora de tempo” está num sentido exatamente inverso ao de Kaspar Hauser. Dessa vez são os protagonistas que resistem, e que não querem ver as mudanças de sentido, as transformações de tempo que ocorrem em torno deles. O tempo já é outro, os sentidos aos quais eles estão presos já são impotentes para mantêlos vivos, mas, mesmo moribundos, insistem. Deleuze percebe como este é um tema recorrente em quase todos os filmes de Visconti. É o que veremos em Morte em Veneza , em Ludwig , em Violência e Paixão e Rocco e seus Irmãos . Por isso, na maioria destes filmes são os protagonistas, e não necessariamente o que eles têm que enfrentar, que são os personagens niilistas. Neste caso, é exatamente a insistência em recusar o devir histórico que traz outros sentidos possíveis para a vida: que faz deles “fora de tempo”. Estes personagens estão, portanto, numa posição exatamente contrária à de Kaspar Hauser, isto é, a posição “fora de tempo” deles é de quem quer recusar a todo preço a potência criadora da vida. É o que vemos, por exemplo, no músico ultraformalista de Morte em Veneza , quando ele se retira doente e deprimido para um elegante hotel de veraneio na bela cidade italiana, depois do fracasso de seu último concerto. Do ponto de vista nietzschiano, este músico é, na verdade, o antiartista. É isso o que ele tardiamente percebe em Veneza, ao encontrar ali a sensualidade que ele tentara banir de sua obra. Esta vitalidade, este frescor, esta força criadora da qual ele tanto fugira, está num belo adolescente e sua bela família. Mas como nos diz Deleuze, tudo isso acontece “tarde demais”: ¹³ o que o músico fracassado vê em Veneza é algo que para ele já está definitivamente perdido, inalcançável. Os princípios formais, eruditos, cultos e acadêmicos, ou seja, as leis às quais ele queria submeter a sua arte, estão moribundos como a sua própria vida. O músico se encontra preso a um universo fechado de sentidos que é pressionado e mesmo rompido por todos os lados. Este cristal ao qual o músico está preso seria, a princípio, o que Deleuze chama de “cristal sintético”, ¹⁴ como é, em geral, o mundo da aristocracia que fascina e intriga Visconti em muitos de seus filmes: um mundo fechado em si mesmo, cheio de procedimentos e princípios que só os aristocratas entendem. Mas logo percebemos que estes universos são na verdade “cristais em decomposição”. ¹⁵ A própria situação de Veneza, e do elegante hotel de veraneio onde o músico está hospedado, são como a de um cristal que está se decompondo. A

riquíssima e aristocrática cidade italiana, banhada por uma água imunda, é atingida por uma peste que vai matando as pessoas e faz fugirem os hóspedes do hotel. Mas aquele jovem e sua família, belos e sensuais, não fogem porque parecem ser intocáveis: imunes à peste. Esta, por sua vez, é como um sopro de morte. O próprio músico, sua antiarte, sua antissensualidade radical, é um agente da morte: a rigor ele chega à cidade já doente, já sem forças para continuar vivo. O que ele vê, mas nunca alcança, no jovem e na sua intocável família, é a própria vida indo embora. É por isso que estas imagens o fazem recordar um amor perdido no passado: um tempo em que vivera feliz com sua mulher e sua filha. Assim, a imagem do garoto entrando no mar, última visão do músico antes de sua morte, acaba tendo uma aproximação possível com as imagens do mundo onde Kaspar acabara de cair. Agora, no entanto, as formas que se esvaem à medida que o jovem caminha em direção ao horizonte – tornandose imagens impressionistas, fora de foco, caleidoscópicas – são as dos sentidos fechados do mundo do músico que está definitivamente se abrindo. É a rígida formalidade deste antiartista que se vai junto com sua vida, reencontrando-se finalmente com o sentido, o tempo de um cosmos de objeto-imagens em movimento, para além da percepção formal que os homens organizam para si. A história e a sociedade, que no filme de Herzog acaba por eliminar Kaspar Hauser, jogam nos filmes de Visconti um papel inverso. Mesmo que apareçam como uma potência destruidora, o que elas fazem é uma destruição pela vida. De fato, há algo que sempre morre nestes filmes, diríamos até que existe um sacrifício. Mas este sacrifício pode ser reconstituidor de uma força vital, quer dizer, semelhante à maneira como Nietzsche descreve o sacrifício dionisíaco. Não estamos dizendo que os filmes de Visconti tenham, como às vezes em Herzog, imagens ritualísticas, ou oníricas: são até filmes ainda neorrealistas. Nestes filmes, no entanto, são a vida e a história que sacrificam, destroem algo, porque precisam fazer isso para continuar existindo. Este é o caso, por exemplo, de Rocco e seus Irmãos . Como em Morte em Veneza , há algo que tenta resistir a qualquer preço, mas já não pode. É interessante porque desta vez Visconti descobre um ambiente fechado em seus sentidos – mas em decomposição – fora da aristocracia, ou seja, numa família pobre de camponeses imigrantes do sul da Itália. Uma vez instalados na industrializada Milão, a “Mama” tenta com pulso forte e uma boa dose de sentimento de culpa manter os filhos na velha estrutura familiar. Mas já é tarde demais. É esta velha estrutura que contribui agora para a degeneração das relações de família, sobretudo as relações entre os irmãos. O irmão que acaba por cair na marginalidade, por exemplo, se aproveita o quanto pode do velho esquema de silêncio, fidelidade e cumplicidade absoluta da família para ter seus golpes e crimes acobertados. É ele que instaura de maneira mais veemente do que todos os outros a decomposição, embora seja o que mais recorra à velha estrutura. Neste caso, os velhos princípios e sentidos são sugados, vampirizados pelas “necessidades”, imposições e lógicas típicas da marginalidade urbana. Trata-se de uma troca desigual de tempo e sentido entre dois processos, no qual um precisa do desespero moribundo do outro, isto é, precisa do apego a qualquer preço às

velhas leis – que paradoxalmente é usado para garantir o que numa sociedade industrializada é tido como uma vida sem lei e sem racionalidade. Na verdade, é quando o irmão operário quebra a velha estrutura, quando ele, no entender precipitado de sua mãe, “trai”, que a família se salva. Isso se dá quando o irmão criminoso é finalmente entregue à polícia. Aqui temos um final diferente do triunfo niilista radical de Morte em Veneza ou de Ludwig . O irmão, ao provocar esta verdadeira explosão de sentidos, ao derrubar uma velha lei e portanto ao quebrar o clichê familiar, age amoral e corajosamente. É curioso que Visconti tenha colocado esta atitude justamente no filho proletário: o “operário da Alfa-Romeu”, como afirma em tom irônico o marginal. Trata-se de uma maneira bastante original de compreender a “consciência de classe” marxista. O irmão operário parece entender o que se passa melhor do que os outros porque, também melhor do que todos os outros, encontrou um lugar social definido e reconhecido na nova vida urbana. A partir deste lugar ele compreende que deve agir de uma maneira que é, em certa medida, “revolucionária”, ou seja, destruidora de uma velha ordem que é tão moral quanto social. Assim, na última hora, mas ainda “a tempo”, ele percebe e elimina os sentidos e as leis que tardiamente insistiam em permanecer. Esta salvação a tempo, vinda de um gesto corajoso e criador, não acontece jamais em Ludwig , por isso o Reino da Baviera vai se destruindo enquanto o seu soberano delirante só pensa em construir castelos. Também em Violência e Paixão o professor só quer viver fechado num apartamento de seu prédio, em meio a seus livros e recordações. Neste caso, trata-se de um cristal de sentidos que se quer sintético – como um clichê radicalmente preso ao passado – mas que vai entrar em decomposição. De novo estamos diante do “homem de cultura” como uma das figuras do niilismo nietzschiano. Na relação deste professor, deste intelectual, com o seu passado, estão presentes evidentemente as duas formas de se lidar com a história descritas por Nietzsche – a “história monumental” e a “história antiquária” –, que podem chegar, se exageradas, a um esvaziamento da nossa potência de vida. Mas o drama do filme irrompe, na verdade, quando uma família insiste até a exaustão em alugar a parte de cima de seu prédio, que vivia fechada. Nesse momento começa a decomposição do clichê enciclopédico, erudito, tão radicalmente preso ao passado como presa ao passado era a “mama” imigrante em Rocco e seus Irmãos . Deleuze afirma que estes filmes de Visconti ainda são neorrealistas. Violência e Paixão , por exemplo, é um filme dos anos 1970 e a família que invade a vida do professor representa uma verdadeira implosão de sentidos na vida cristalizada deste intelectual. Mas curiosamente, como num sopro de vida, o velho professor vai desenvolvendo uma inevitável afetividade por aquela estranha gente. E é exatamente o passado, que mantém o velho professor em seu clichê, que faz Deleuze considerar que este filme é ainda neorrealista. Para fundamentar esta afirmação ele usa uma expressão inventada por Antonioni em uma entrevista: o “neorrealismo sem bicicleta”. Isto quer dizer que, se este professor não “perambula” mais, a vida cristalizada que ele leva é resultado de todas essas perambulações. É a historia, as encruzilhadas de sentidos, as imagens-signos – imagens que “falam” – da Itália e da Europa nas últimas décadas, isto é, as imagens que

os personagens “videntes” dos filmes neorrealistas viram, que estão naquele apartamento, naquela imensa biblioteca e naquela desilusão niilista radical do professor. Assim, embora Visconti a princípio pareça ter uma narrativa clássica, ele é na verdade um dos maiores mestres da imagem-cristal, quer dizer, o que vemos nos seus filmes é o tempo, assim como dissemos que vemos o tempo no cristal. Na verdade, o tempo e o cristal acabam por se mostrar de maneira especialmente explícita nos filmes de Visconti à medida mesmo que alguns personagens se esforçam por recusá-los a todo preço. É como se o virtual, uma vez recusado, agisse com ainda mais força sobre o atual, levando-o a um total descontrole. É verdade que tende a haver uma desigualdade, e mesmo uma injustiça, na troca de sentidos entre o virtual e o atual, e mais uma vez elas estão explícitas em Visconti. Elas podem ser, por exemplo, sanguessugas, vampirizadoras de sentidos, como vimos com o irmão marginal aproveitando-se de sua família em Rocco e seus Irmãos . Todo este jogo desigual acaba gerando, então, uma série de transformações, deformações e inversões de sentido. É na troca interminável entre o atual e o virtual que os sentidos estão sempre se reinventando. Eles até têm uma genealogia possível, mas esta não nos leva a nenhum lugar onde os sentidos seriam puros e originais, isto é, a uma gênese essencial. Nunca podemos afirmar que determinado sentido tem uma origem em estado imaculado em oposição ao que seriam erros de interpretação. O que há sempre, como nos ensina Nietzsche, são interpretações. Portanto, o que determina a gênese dos sentidos é a própria modulação que, nietzschianamente falando, seria este movimento de interpretar. Genericamente, é isso que Deleuze diz que o cinema da imagem-tempo faz, quer dizer, é como se este trabalhasse sempre no limite desta modulação e, por causa disso, participa deste movimento interpretador e produtor de sentidos. Isso é exatamente o que os personagens niilistas não percebem, não querem, ou fingem não perceber. Eles são então a força da impotência do pensamento e acabam, por este motivo, jogando um papel muito importante no cinema “moderno”. São eles que trazem o fim, a morte, o abismo – num certo sentido a antiforma, a anti-história, o anticinema – para cada um dos filmes. E mesmo que muitas vezes os personagens não consigam, o espectador do filme consegue ter a consciência do clichê ao qual esses personagens estão presos. O niilismo, a covardia existencial e histórica desses personagens, estão no temor à perda – a perda para o tempo – que na experiência permanente de troca de sentidos da vida é tragicamente inevitável. Mas é exatamente por isso que em alguns casos esses personagens são, da maneira mais radical possível, uma vítima do tempo. Ou, em outras palavras: é exatamente por isso que muitas vezes eles morrem no final. Trata-se, neste caso, de uma morte antes do tempo. Com a ajuda de Nietzsche, poderíamos então definir sinteticamente o niilismo a partir da tipologia psicológica desses personagens, qual seja, uma recusa e um grande temor ao aspecto trágico da vida e da história. ¹⁶ O niilismo surge, portanto, de uma crença de que, se há perda, se há sofrimento e dor na vida e na história, deveria ser com vistas a um “grande fim”: a uma grande lei e finalidade. De novo nas palavras de

Nietzsche, o niilismo nasce rigorosamente da ideia de que tudo na vida e na história deveria estar justificado, seguido, de imediato, de uma constatação exatamente contrária, qual seja, a que todo o esforço pela vida é vão. Os personagens e as situações niilistas são, a rigor, o lugar do “fim”, da morte, nestes filmes. Mas representam, por outro lado, a morte de uma outra ideia de “fim”. Estamos falando precisamente desta “grande finalidade”, desta espécie de fim positivista como um ponto para além da vida e da história, e para o qual estas deveriam se dirigir e no qual deveriam se justificar. O cinema da imagem-tempo descobre que esta grande finalidade, esta perspectiva e lei estática da história, não existe em lugar nenhum. Isso é uma característica fundadora do cinema “moderno”, presente, por exemplo, quando este coloca, já em Lang e mais radicalmente em Welles, a pergunta sobre a possibilidade do julgamento. De novo Wenders: melancolia hegeliana? Mas Deleuze nos chama a atenção para o fato de que a questão do “fim da história” vai mobilizar de maneira especial, mais tarde, Win Wenders. Há inicialmente, segundo o filósofo, o que ele chama de “melancólicas reflexões hegelianas” ¹⁷ nos filmes de Wenders. É como se o diretor alemão tivesse tomado a princípio – e apenas a princípio –, como uma espécie de pressuposto de seus primeiros filmes, a ideia de que o Ocidente teria inevitavelmente chegado, como previa Hegel, ao “fim da história”. ¹⁸ Parece haver até mesmo em alguns de seus filmes uma espécie de nostalgia de uma vida organizada em torno de sentidos fechados: uma espécie de saudade do clichê. Não temos certeza se este é exatamente o sentimento de Wenders, mas não resta dúvida de que é o de alguns de seus personagens. É o que vemos, por exemplo, em Verão na Cidade , onde um preso, depois de muitos anos numa cela de cadeia, sai em liberdade condicional. O personagem tem então uma nostalgia de sua ultradisciplinada rotina de presidiário. Na cidade só há para ele um grande vazio e nenhuma perspectiva: nenhum sentido possível. De fato, é difícil decidir, vendo os primeiros filmes de Win Wenders, até que ponto ele está a denunciar, ou está partilhando, da crença no fim da história como uma espécie de “destino inevitável” da civilização. Deleuze diz que Wenders às vezes quer parar a história, como se os homens não tivessem mais nenhuma história para contar e viver. Não nos pareceu, no entanto, que é isso que está nas duas de suas primeiras grandes obras, No Decorrer do Tempo e Alice nas Cidades , que analisamos há algumas páginas. Não resta dúvida, no entanto, de que o “fim da história” é uma questão que emerge dos filmes de Wenders. Neles podemos perceber o quanto esta noção é, para os ocidentais – e em particular para os europeus –, muito mais do que um conceito filosófico: ela constitui a própria experiência existencial e histórica do homem mediano. Mas é em O Estado das Coisas que Deleuze nos chama a atenção para um Win Wenders que percebe que o fim da história é impossível, ou seja, se uma história para, ou para que uma história pare, é preciso que outra, ou outras, estejam acontecendo em outros lugares. ¹⁹ O filme começa exatamente na costa de Portugal, no limite da Europa, onde uma filmagem é interrompida porque o produtor parou de enviar dinheiro dos Estados Unidos. Num hotel cravado numa falésia à beira

do Atlântico, a história do fazer do filme – a história da história – para, e os membros da equipe se recolhem às suas solidões, quer dizer, a cada uma de suas histórias privadas. O diretor, no entanto, viaja para a América em busca do produtor e do dinheiro para terminar o seu filme: é na América que está a possibilidade de continuidade da história, mas é lá também que está a causa desta história estar paralizada. E uma vez na América, o diretor encontra o produtor envolvido numa complicada e perigosa trama, um verdadeiro esquema mafioso no qual ele entrara justamente para conseguir o financiamento do filme. O próprio diretor acaba então envolvido, e é vítima desse esquema: desta outra história. Ou seja, o que vemos aqui é uma superposição de histórias que estão entre si relacionadas mais uma vez por trocas desiguais. Em Portugal, um filme para – e vemos parar a própria história que se passa no filme que está sendo feito –, parando com isso a própria história na qual a equipe do filme está envolvida: o fazer do filme propriamente dito. Mas estas duas histórias foram interrompidas por causa de uma outra que se desviara de seu sentido original, isto é, a articulação do produtor para conseguir dinheiro que foi capturada pelo sentido das obscuras intenções e histórias da máfia de Los Angeles. É verdade que já falamos de O Estado das Coisas antes, ²⁰ quando relacionamos cinema e dinheiro, percebendo o dinheiro como o que está sempre do outro lado da imagem cinematográfica, e a troca existente entre estes – cinema e dinheiro – como um exemplo de troca desigual no tempo. De fato, se as filmagens no filme de Wenders são interrompidas, foi porque o diretor de meteu numa outra história atrás do dinheiro para o filme. Wenders segue então desconstruindo a possibilidade do “fim da história” nas histórias de seus filmes. Em O Amigo Americano , a ideia de um fim inevitável – a falsa doença terminal do protagonista – aparece graças a uma conspiração. De fato, é preciso que um falso amigo falsifique exames médicos para que o protagonista se meta ele também numa conspiração criminosa. Conspiração na qual ele jamais entraria se não estivesse convencido de que sua morte era inevitável. E não nos parece ser por acaso que o diretor coloca a falsa história da morte, do “fim inevitável” do protagonista, sendo armada por um “amigo” americano. Convencer alguém, ou talvez toda uma civilização, de que só há um sentido possível, quer dizer, de que há um fim inevitável para o qual toda a humanidade marcha – a grande lei da história –, é fechá-la de tal maneira num clichê que tudo pode se conseguir em nome dessa lei, desse “grande fim”. É aí, na verdade, que se constroem as mais injustas das trocas, das inversões e mesmo das vampirizações de sentidos. Em nome da grande lei, do grande fim, tudo é possível: no final das contas a perda de todos os sentidos, o grande descontrole da vida e da história de quem acreditou que ela poderia ser controlada a qualquer preço. Glauber Rocha: a consciência deslocada No Brasil, de uma outra maneira, é Glauber Rocha quem descobre a impossibilidade deste “grande fim” para a história. É o que vemos na angústia e no destino trágico do personagem protagonizado por Jardel Filho

em Terra em Transe . Trata-se, sem dúvida, de uma representação do clássico intelectual iluminista francês, ainda bastante presente no marxismo. O personagem é um poeta, um escritor, envolvido num processo político que deveria ser o da libertação, o da redenção de seu povo. A princípio, ele seria o que “pensa” o povo, o que racionaliza os seus caminhos, o que entende o processo e os sentidos que este deve percorrer. Sua arte é para “servir” a esta causa, entendendo e revelando as belezas e as dores de sua gente. Pois bem, no filme o povo não segue o roteiro preparado pelo intelectual e acaba agindo de uma maneira que não corresponde ao que foi para ele “racionalmente pensado”: o processo com vistas ao grande fim. Entre decepcionado e ressentido, vemos então o poeta militante – agora assessor de um governador populista de esquerda – explodir irado e espancar um líder popular que antes era seu aliado. A polêmica cena, que fez com que muitos marxistas brasileiros chamassem o diretor de “fascista”, nos mostra um Glauber que descobre, a partir do Brasil, uma história anti-hegeliana por excelência. Trata-se de uma descoberta que está em quase todo o cinema de Glauber. “Mas governador, e o povo, como fica o povo?”, pergunta desesperada a bela pequeno-burguesa, namorada do poeta militante. “O povo se ajoelha diante da primeira cruz e da primeira espada que se ergue diante dele”, é a resposta que ouve. O que Deleuze vê Glauber descobrir é um cinema político onde o “povo falta”: ²¹ a ausência de um “povo”, de uma grande unidade e de um grande sentimento de identidade. É exatamente o contrário do que víamos, por exemplo, na ação revolucionária do proletariado, em Eisenstein, que supostamente nos conduziria ao grande fim racional e justo do socialismo. Ou ainda, nos inúmeros filmes judiciários norte-americanos: a maneira clássica de fazer cinema político naquele país. Também nestes últimos, dos quais o belo Doze Homens e uma Sentença , de Sidney Lumet, é paradigmático, encontramos um processo iluminista de busca de um grande fim, de uma redenção. O Estado intervém nas contradições, nas diferenças e nas lutas de uma sociedade, organiza-as num processo e, no final, os ânimos estão apaziguados: o povo se reencontra numa unidade graças à intervenção racional dos poderes constituídos da “nação”.

É interessante como o filósofo francês percebe aí uma questão decisiva que inquieta a arte e o pensamento brasileiro já há algum tempo. É verdade que não o faz sozinho, citando, no momento em que fala sobre Glauber em A Imagem-Tempo , um artigo de Roberto Schwarz ²² em que este analisa e articula as inquietações do cineasta com aquelas que mobilizaram os modernistas brasileiros e, depois, os tropicalistas. É verdade também que esta questão interessa a Deleuze porque não é exclusiva do Brasil, e sim das Américas. Mas o que lhe chama a atenção é a busca de cada uma das “novas” nações por algo que as unifique: a obsessão por uma identidade. Deleuze retoma então, a partir de Glauber, uma das maneiras como pensa a relação social da arte afirmando que um artista está sempre “à procura de um povo”. Mas Deleuze também vê a capacidade que alguns pensadores e artistas do continente tiveram de compreender o quanto esta relação é transitória e de certa maneira inalcançável. Seria interessante se pudéssemos saber qual seria a opinião de Deleuze sobre a solução “antropofágica” que Oswald de Andrade propõe para resolver este dilema da identidade e da diferença, da memória e do esquecimento. Glauber parece ter percebido este lugar de certa forma trágico do brasileiro, e do intelectual latino-americano em geral. De um lado, ele está na função de ser representante de um pensamento, de uma doutrina estrangeira, de algo que representa radicalmente o outro, simplesmente por ser um intelectual: um herdeiro de uma tradição europeia. Do outro, quando se empenha por uma “identidade”, por uma independência que deve ser tão econômica quanto cultural, constrói verdadeiros “mitos fundadores” destas novas nações que são rapidamente reapropriados pelas velhas elites em seus empenhos conservadores. É o que vemos, de novo em Terra em Transe , na cena em que um político entra triunfal no palácio, sambando desajeitado em meio a um carnaval popular. Aí ressoa o mito nacional do brasileiro “povo alegre, pacífico, exemplo de integração racial”, que reaprisiona o movimento de busca de um novo sentido, de uma nova identidade e diferença, num clichê. Ou seja, esta deveria ser agora a “essência” do povo e toda característica que não confirme esta “lei” é inimiga da “identidade” e da “nação”. Mais uma vez estamos diante das trocas trágicas e desiguais de sentido. É o que já estava na cena do intelectual espancando o líder popular, quando todo o seu sentimento oligárquico de superioridade reaparece: “reterritorializa”- se, como diria Deleuze. Logo ele que deveria ter deixado este sentimento para trás uma vez que se tornara um “revolucionário”. É ainda em Terra em Transe que vemos a dificuldade de se identificar precisamente uma classe social como expressão de uma etapa histórica no Brasil. Não se trata de negar o materialismo marxista que o próprio Glauber dizia ser decisivo para os seus filmes, mas de perceber que a organização social da produção irrompe como acontecimento, mostrando-se como uma singularidade para além de qualquer organização histórica em etapas preestabelecidas. Glauber é sem dúvida um cineasta para quem a história é uma atualização, e o próprio transe é, de certa forma, ao mesmo tempo a pulsação e a exposição das forças que estão em luta e/ou em composição em cada uma dessas atualizações. Deleuze nos chama a atenção para o modo como o cineasta bahiano trabalha com os mitos que perpassam os imaginários brasileiros. Não se trata de nos apresentar e de desconstruir as

estruturas arcaicas dos mitos, mas de mostrar como estes se renovam em pulsões absolutamente atuais da sociedade: a fome, a sede, a sexualidade, a adoração e assim por diante. Nietzschianamente, Glauber descobre que é na particularidade do próprio acontecimento histórico que a história do Brasil destrói a “grande lei” da história. A angústia do intelectual de Terra em Transe é que esta lei aqui não se cumpre: ela não pode se cumprir. Há, de início, até uma identificação do próprio Glauber com este personagem, mas ele indica todo o tempo em sua obra que busca estar além das armadilhas desta posição. Quer dizer, é nessas trocas de sentido, nesses acontecimentos “fora de lugar” e amorais em relação ao historicismo europeu, que Glauber tenta encontrar uma potência possível nas diferenças da história do Brasil. Neste sentido, Glauber insiste, em seus manifestos ²³ e declarações, que resistir ao colonialismo é necessariamente resistir ao racionalismo europeu. Algum tipo de cinema iluminista, mesmo que pleno de “boas intenções” revolucionárias, não seria capaz de operar um afeto revolucionário por razões que seriam tão estéticas quanto políticas. Dessa maneira, o poeta de Terra em Transe se assemelha aos companheiros de Glauber do Cinema Novo e aos intelectuais ligados à noção de “nacional-popular”, com os quais Glauber, na nossa opinião, busca marcar claramente uma diferença. Na verdade, Glauber nos parece próximo ao conceito oswaldiano de antropofagia, que também perpassa claramente pelos seus manifestos: a antropofagia entendida como um encontro subjetivo-social na potência da diferença, numa compreensão que achamos ter uma possibilidade de aproximação importante tanto com Nietzsche quanto com Deleuze. Assim, é em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro que encontramos uma singular e trágica “consciência histórica”. Esta aparece exatamente em Antonio das Mortes – protagonista e título do filme na Europa –, que fora o capataz, o matador de cangaceiro, no anterior Deus e o Diabo na Terra do Sol . Na maneira angustiada e lúcida com que o personagem retorna no segundo filme, vemos Glauber, dialeticamente, destruir e reutilizar a dialética marxista. A princípio, uma consciência histórica vinda de um capataz é algo que não está de acordo com a lei, o evolucionismo, o processo em direção a um fim da história que um certo “marxismo positivista”, como diria Foucault, advoga. Mas, por outro lado, é exatamente a situação limite, atópica, esta espécie de entrelugar histórico, econômico, social e cultural ocupado pelo capataz matador de cangaceiro, que gera nele uma consciência histórica: faz com que surja dele a possibilidade de um novo sentido. Esta é, no entanto, uma visão radicalmente trágica, porque se trata do vigor da história nascendo exatamente de seus aspectos mais abomináveis e desenraizados. O matador de cangaceiro é, a princípio, moralmente um covarde, socialmente um despossuído, culturalmente não tem nenhuma tradição: nenhum passado. Sem nenhum passado, tradição e apego moral – sem caráter, como Macunaíma –, sua posição é muito parecida com a do próprio Brasil na história, e mais particularmente com a de nossas “camadas médias” ²⁴ as quais ele como capataz, de certa forma, representa e serve sem tampouco conseguir fazer parte. Mas todo o seu passado, toda a sua vida se deu a partir desta posição. Aí, finalmente, vemos nascer uma

história. As únicas possibilidades de sentido que ele pôde encontrar vieram de suas perambulações pelo Brasil, no lugar-limite, dos conflitos e das contradições do país. A lucidez trágica que Antonio das Mortes alcança faz dele quase um intelectual. Mas um intelectual que, ao contrário da nostalgia iluminista do poeta de Terra em Transe , compreende o Brasil porque adquire uma consciência à maneira que vimos aqui Nietzsche sugerir: livrando-se de seu passado. O passado europeu, iluminista, o capataz obviamente nunca teve. E neste segundo filme, o seu próprio passado de matador de cangaceiro, ele entende que deve ser deixado para trás, ainda que saiba que foi o que lhe deu esta “consciência”. O “Brasil” está em questão nos filmes de Glauber não porque ele busque aí uma grande identidade: um grande passado exageradamente “monumental” ou “antiquário”. Ao contrário, o que ele compreende é exatamente o que faz dele um autor do mundo. Quer dizer: a história do Brasil ajuda Glauber a descobrir que não há um grande destino essencial para a história, um “grande fim” em função de um “grande princípio”, nem aqui, nem em parte alguma. É justamente nesse momento que as nossas particularidades de país não europeu apontam para uma espécie de pós-nacionalidade, permitindo uma reflexão que, a rigor, acaba por nos rearticular – agora não apenas mais como “seguidores” e “discípulos” de uma tradição – com uma compreensão do real e da dinâmica do pensamento e da história, que já estava em Nietzsche e está também em Foucault e Deleuze. Palhaços de Fellini E depois de tantos personagens niilistas e situações trágicas, o “fim da história” talvez mereça aqui uma sonora gargalhada, como a de Os Palhaços , de Federico Fellini, diretor que Deleuze considera como ainda sendo um neorrealista. É verdade que Fellini formou-se no neorrealismo; ele fora, por exemplo, assistente de direção de Rossellini em Paisá . É verdade também que Fellini representa uma continuidade do “cinema de perambulação” que o neorrealismo tinha descoberto. De maneira até mais radical que os primeiros filmes neorrealistas, o que vemos em suas obras são personagens “videntes” nos colocando diante de imagens que “falam”. Quer dizer, as imagens não estão nos filmes só em função da ação, da história, mas ajudam a constituir – ou a desviar – o próprio sentido destas histórias: elas são personagens e até protagonistas dos filmes. Não resta dúvida, portanto, de que Fellini é um dos mais exemplares diretores do cinema da imagemtempo. Mas acreditamos existir uma diferença importante entre Fellini e os outros – sobretudo os primeiros – filmes neorrealistas; uma diferença que o diretor foi construindo ao longo de sua obra e que tem na penúltima sequência de Noites de Cabiria uma marca que nos parece exemplar. Ela está exatamente no momento que, à beira do abismo, a prostituta descobre que fora vítima de um golpe e que aquele que se anunciava como seu futuro marido, roubara todo o seu dinheiro. Acostumados com os finais vistos nos filmes neorrealistas até então, é provável que muitos espectadores tenham acreditado que a pobre mulher ia se atirar pelo tal abismo. Assim é, por exemplo, a sequência final do primeiro episódio de Paisá , quando vemos a jovem siciliana morta à beira do penhasco. Assim é também o terrível

destino da criança no final de Alemanha Ano Zero , ou o fuzilamento do padre que é assistido pelas crianças em Roma, Cidade Aberta , ou ainda a agonia da estrangeira à beira do vulcão em Stromboli . Mas a prostituta de Fellini não se joga no abismo e logo em seguida, na última sequência do filme, podemos vê-la andando por uma estrada por onde passam grupos alegres de jovens, talvez indo para alguma festa. E a personagem – vítima há alguns segundos – vendo aquelas pessoas na estrada, como se reencontrasse o circuito da vida, chega até a sorrir. Talvez porque a crueza da guerra já ia se tornando distante, Fellini parece representar uma Itália que se permite de novo sorrir. É verdade que o diretor é muito mais que um humorista; ao contrário, à sua maneira ele é capaz de se revezar entre o melancólico, o sinistro, o engraçado e o patético. Enfim, Fellini tem toda uma maneira própria, ácida e humorada, de ser um trágico. Numa tragicidade que, não em toda, mas em momentos decisivos de sua obra, ganha certa, digamos assim, solaridade. É por isso que escolhemos para comentar aqui um filme onde esta tragicidade felliniana aparece de maneira exemplar: Palhaços . Em cena, neste filme, o italiano coloca o riso e a morte; ou, mais precisamente, o tema da “morte do riso” representada pela constatação de uma suposta “morte do circo” e “morte do palhaço”. Mais uma vez nos encontramos diante dos enunciados niilistas do “fim inevitável” e do “passado puro e autêntico perdido”, ambos trazidos à cena para serem devidamente desconstruídos e desmoralizados por Fellini. Esta mistura de documentário com falso documentário sobre os palhaços – onde às vezes é impossível discernir um do outro – parte, a princípio, destes dois enunciados. São sobretudo os eruditos, os estudiosos sobre o tema que aparecem no filme, que cuidam de repeti-los, isto é, insistem que o circo e seus palhaços são coisas de uma época boa e pura que ficara para trás. Mas é exatamente este passado idílico e autêntico o primeiro dos clichês destruídos no filme. Evocando uma recordação – ou uma falsa recordação – de infância, Fellini nos mostra que a sua primeira experiência com circo, e particularmente com palhaços, fora traumática e dolorosa. Seu pai o levara a um pequeno circo que ele, curioso, vira se armar num terreno ao lado de sua casa, mas começado o espetáculo, os gritos, caretas e tombos dos palhaços lhe pareceram terríveis e o pequeno Fellini assustado começou a chorar. Não é preciso dizer que ele virou também parte do próprio espetáculo, sendo tirado aos safanões da plateia por seu pai irado com o “vexame”. Esta confusão entre espectador e espetáculo, e esta troca de lugar do patético – que deveria estar apenas no picadeiro – é a senha para entendermos todo o filme e também boa parte da obra de Fellini. Deleuze nos diz que Fellini nos apresenta os “cristais em formação”, ²⁵ ou seja, os sentidos da vida se constituindo. A vida e seus personagens perdem então, em alguns de seus filmes, qualquer possibilidade de serem vistos numa cotidiana e confortável banalidade de sentidos fechados, que é, como sabemos, a experiência para a qual nos conduz o clichê. Ao contrário, vão se descortinando para nós, ainda segundo Deleuze, como num espetáculo: um espetáculo que parece não terminar nunca. ²⁶

É como se Fellini nos instalasse no limite entre a coxia e o palco, isto é, no lugar onde escolhemos, preparamo-nos e assumimos uma função, um personagem, uma imagem-signo: um papel para exercer na vida e em cada uma de suas situações. É literalmente para este lugar que o diretor nos leva também em Ginger e Fred , fazendo-nos descobrir que os bastidores do show de TV é também um show. Tudo o que há de farsesco, patético, caricato, sinistro ou engraçado em Fellini converte-se então num impressionante “realismo”. Todo aquele espetáculo somos nós: nós que precisamos “atuar”, criar, inventar personagens, papéis e realidades para seguir vivos. Ou, em outras palavras: precisamos da potência do falso – da Vontade de Potência – para viver. Esta é também a maneira felliniana de fazer a troca indiscernível entre o real – na verdade o atual – e o virtual. Se em Ginger e Fred o show também está atrás do palco, em Xeique Branco a fã vai em direção ao mundo de fantasia e ficção das fotonovelas e encontra o galã numa rotina tão ou mais banal e medíocre que a sua. E é exatamente nesta troca de posições entre o atual e o virtual que o italiano redescobre, em Os Palhaços , a atualidade dos palhaços e da palhaçada. O que vai se revelando digno de uma boa gargalhada é, de início, a própria trupe da qual Fellini faz parte e comanda: a equipe do “documentário”. Esta se desloca de maneira atabalhoada, é patética quando entra nos lugares atrás de informações e é tola quando inquire as pessoas sobre a verdade “objetiva” da história dos palhaços e do circo. Aos poucos, Fellini nos faz descobrir que o ridículo da vida está em todo canto, colocando-nos diante e dentro do espetáculo, onde palhaços somos todos nós. O diretor organiza então, numa sequência belíssima, um impressionante cortejo de palhaços circulando no picadeiro no enterro do palhaço. É aí que a “morte do palhaço”, encenada pelos maiores palhaços da Europa, revela-se uma gigantesca palhaçada. O palhaço está, enfim, ressuscitado. A exemplo de seus colegas neorrealistas, como tantos outros cineastas “modernos”, Fellini também traz à cena o “fim”, a “morte”, em seus filmes. Nestes “cristais em formação” de que nos fala Deleuze – nas cenas da vida apresentadas como um espetáculo –, o que vemos são as situações-limite em que a história está ganhando forma, as imagens estão se delineando e os personagens que precisamos ser estão se constituindo. Assim, se antes dissemos que na relação cinema-mundo víamos já uma imagem cristalina, Fellini ajuda a descobrir o mundo como cristal e a vida como cinema, onde difícil é encontrar o atual uma vez que a atualidade se parece sempre com a virtualidade e a ficção. A imagem-cristal está ali, no entanto, porque vemos muitas vezes este processo em formação. É por isso que quando não estamos mais vendo a vida como um espetáculo – na verdade a mais cotidiana e comum das situações –, estamos na vigência do clichê. Mas a maneira como Fellini cria estas situações-limite e chama a morte à cena – como em Noites de Cabiria e Os Palhaços – é bastante peculiar. Neste sentido, a figura do palhaço serve, sem dúvida, como uma imagem de boa parte de sua obra. É como se, à beira do abismo, ele preferisse virar uma cambalhota; ou ainda como se, diante da morte, ele fizesse uma careta, mostrasse a língua e soltasse uma gargalhada. O niilismo é portanto,

também em Fellini, chamado à cena, experimentado de maneira limite, e devidamente desconstruído e superado. Mas com um humor – um pathos, como diriam os filósofos antigos – bastante incomum na maior parte do cinema europeu moderno. 9 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra , op. cit., p. 88. 10 Ibidem, p. 89. 11 BERGSON, Henri. L’Évolution Créatice , op. cit., p. 295. Embora Bergson use aí o termo “ideia”, lendo este trecho de sua obra, veremos que esta experiência da “ideia” da nadidade que acaba por gerar em nós a experiência da “ideia” do Todo é, como toda a experiência de realidade em Bergson, de caráter sensório-motor. 12 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia , op. cit., p. 36. 13 I. T., p. 116. 14 I. T., p. 124. 15 Ibidem. 16 NIETZSCHE, Friedrich. “Tentativa de Autocrítica”. In : O Nascimento da Tragédia , op. cit. É o “modo de pensar trágico” que Nietzsche afirma aqui ter sido pioneiro em trazer para a filosofia. 17 I. T., p. 97. 18 A noção de “fim da história” aparece aqui sobretudo na maneira superficial como ela triunfou num certo hegelianismo e, em especial, no positivismo. Mas a questão vai além do hegelianismo e do positivismo, uma vez que esta parece ser uma crença que atravessa toda a civilização ocidental. Mas, devemos dizer, pode haver uma leitura potente da noção hegeliana de fim da história: esta pode ser vista como uma “liberação da história”, ou seja, como uma espécie de fuga daquilo que nos prende à própria ideia da história como algo sistemático e teleológico. Neste caso, o fim da história seria, por exemplo, o fim da grande narrativa histórica, liberando-se então muitas histórias. É uma compreensão próxima a esta que desenvolve o filósofo Arthur Danto quando pensa o “fim da história da arte”. Danto usa então uma expressão de Hegel “além dos limites da História” para falar positivamente das manifestações da arte contemporânea e do fim da grande narrativa histórica. DANTO, Arthur. Após o Fim da Arte . São Paulo: Edusp, 2006. Prefácio. 19 I. T., p. 98. 20 Ver o capítulo: “Potências do Falso, character , dinheiro e cinema”. 21 I. T., p. 261. 22 I. T., p. 260. O artigo está indicado na nota como: SCHWARZ, Roberto. In: Les Temps Modernes, n. º 288, jul. 1970.

23 Referimo-nos a três manifestos escritos por Glauber: “Estética da Fome”, “Estética do Sonho” e “A Revolução é uma Estética”. 24 ROCHA, Glauber. “Ideias Políticas e Filosóficas”. Entrevista com Glauber em 1978. In: O Mito da Civilização Atlântica . Livro de Raquel GERBER. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 231. Numa impressionantemente lúcida análise política do Brasil da época – fora dos clichês da esquerda e da direita –, Glauber nos fala de uma “classe média colonizada pela televisão, pela comunicação de massa, esquizofrênica, não assumida, de forte conteúdo fascista.” 25 I. T., p. 110. 26 I. T., p. 119. 3. Corpo, tempo e clichê John Cassavetes, cinema dos corpos “Se tantas vezes insistimos que “o clichê é um esquema, ou um sistema, sensório-motor”, agora, já próximos do fim, o que se mostra para nós é que a denúncia, a desconstrução e a superação do clichê são também fenômenos de características sensório-motoras. Neste caso, no entanto, o termo “esquema” já não serve mais para preceder o que chamamos de “sensóriomotor”. Na verdade, o que Deleuze vê no cinema que genericamente chama de “moderno” – o cinema da imagem-tempo –, é uma espécie de liberação sensório-motora. E a origem desta descoberta de Deleuze vem, sem dúvida, do fato do próprio pensamento ter para ele uma origem corporal, fisiológica: sensório-motora. Quer dizer, é a partir de uma situação-limite que acomete ao corpo que o pensamento é acionado, age e cria. Foi isso que Deleuze encontrou, guardadas as devidas diferenças, tanto em Nietzsche quanto em Bergson; constituindo, a partir destes dois filósofos, algumas das principais bases de seu projeto filosófico. Diríamos nós que, numa situação-limite, é o próprio corpo que libera uma imagem-tempo posto que, se o clichê é um esquema sensório-motor, o desmonte dos clichês muitas vezes é imediatamente uma operação que se dá a partir dos corpos dos atores e seus respectivos personagens. Em outras palavras: a imagem-tempo é também uma operação do corpo, mesmo que esta, ao contrário da imagem-movimento, não se caracterize por um prolongamento sensório-motor. Exemplar neste sentido é o cinema do norteamericano John Cassavetes. Se Deleuze nos diz que o cinema moderno nasce num retorno à Europa –apesar de toda a importância de Orson Welles na “invenção” deste –, enumerando os grandes movimentos da Itália, da França e da Alemanha, Cassavetes expressa uma radicalização ao mesmo tempo exemplar e singular da imagem-tempo nos Estados Unidos. Em Cassavetes tanto a prisão quanto a liberação dos clichês são expressos imediatamente numa tensão física. É como se a narração, a história, ficasse

em segundo plano para que pudéssemos ver o que os corpos têm a dizer. Temos a impressão de que os corpos, nos filmes de Cassavetes, expressam quase sempre uma necessidade de se livrar de algo, como se todo o gestual, todas as expressões e as performances expressassem ao mesmo tempo uma dimensão opressora e uma linha de fuga; ou pelo menos um desejo desesperado dessa fuga. Se há então história nos filmes é, na maioria das vezes, dos corpos para a história. Deleuze acredita que é disso que Cassavetes está falando quando diz que a história deve vir dos personagens, e não o contrário. ²⁷ Por isso, é comum vermos em seus filmes personagens em situações que deveriam ser corriqueiras, deveriam ter a tranquilidade dos clichês, mas que se revelam de uma tensão permanente, crescente, chegando aos limites do insuportável e da loucura. A tranquilidade ou a fluência de uma conversa entre amigos, de uma relação em família e mesmo de um namoro simplesmente não conseguem acontecer. Sons, expressões, gestos, estranhos movimentos e relações entre os corpos, insinuam sempre um outro sentido, um outro problema, uma outra compreensão, rondando o que deveria ser uma narrativa ou uma situação simples. Por isso, Cassavetes desenvolve uma forma toda peculiar de filmar: trata-se de uma relação entre a câmera e os corpos em que os corpos parecem atrair a câmera de uma forma especial, ao mesmo tempo que a câmera procura se aproximar dos corpos também de uma forma única no cinema. Em certos momentos, os movimentos dos corpos parecem quase esbarrar na câmera, ou transmitir suas tensões para a câmera que, por sua vez, é um corpo tenso: um corpo que procura por outros corpos. É o caso da maneira como é filmada a saída dos atores do teatro em Noite de Estreia : a câmera está entre a pequena multidão de fãs que envolve cada um dos atores que sai do teatro, até que uma jovem mulher se dirige em desespero à protagonista da peça, avança sobre seu corpo, persegue-a até o carro sob chuva, colando suas mãos e sua face ao vidro molhado do veículo. É o que vemos também nas caretas, nos gestos exagerados, nos sons, palavras e frases pela metade da protagonista de Uma Mulher sob Influência . Numa das mais extraordinárias atuações femininas da história do cinema, Gena Rowlands expressa que seu personagem, Mabel, quer sair dali de qualquer maneira, que não suporta aquele lugar psicossocial que lhe é imposto, que um desejo de liberdade quer se atualizar, e parcialmente se atualiza, no seu corpo. Por outro lado, ela força mais uma vez para restaurar a normalidade, como na impressionante sequência da festa de aniversário das crianças, ou como já fizera antes para servir os vários amigos que o marido trouxera de surpresa para comer. A situação se torna então limite, o cristal se abre, e os seus dois polos, seus dois tempos, apresentam-se no drama de Mabel: o de buscar ser desesperadamente uma mãe e mulher de família supostamente “normal” e o de desejar se libertar daquilo que já lhe era impossível suportar. Não é então por acaso que em Cassavetes a face – que é no corpo o “centro especializado da percepção”, como vimos em Bergson – merece um filme só para ela: Faces . Num certo sentido, no entanto, o que o diretor parece descobrir nos seus outros filmes é que o corpo inteiro pode ser “face”, daí esta sua peculiar relação câmera-corpo.

Mas a questão de Cassavetes vai ainda mais longe. Os clichês em questão nos seus filmes são as performances que constituem o way of life americano. Quando Deleuze destaca que Cassavetes representa uma contestação e uma oposição ao Actors Studio ²⁸ está longe, nos parece, de colocar apenas uma questão de dramaturgia; inclusive porque uma verdadeira questão de dramaturgia nunca é apenas uma questão de dramaturgia. Arriscaríamos dizer que a importância do Actors Studio nos Estados Unidos do pós-guerra chega a nos fazer levantar dúvidas sobre a teoria deleuziana da passagem do cinema clássico para o cinema moderno naquele país, apesar da importância de Orson Welles. Só não a questionamos completamente porque o próprio Deleuze assinala, como vimos, que esta passagem se concretiza de forma mais efetiva na Europa. O Actors Studio , de forma geral, representa ainda mais uma vez uma aposta americana num realismo clássico. Não é que a crise do final dos anos 1930 não tenha existido para o cinema americano, mas é como se diante dos clichês em que havia se transformado cada um dos gêneros estabelecidos em suas fórmulas por Hollywood, os Estados Unidos buscassem apostar de novo, e ir ainda mais longe, no esquema percepçãoação, nos westerns , no filme psicológico, no filme histórico, no filme judiciário como filme político e assim por diante. É como se os americanos tivessem pensado: não fomos realistas o suficiente, ou com a competência e a força suficientes. É aí que os métodos de Stanislavski, e a maneira como o Actors Studio os interpretou e repotencializou, têm uma função decisiva. Este é na verdade um caso exemplar do quanto a troca entre o virtual e o atual (a ficção e a realidade, digamos) não é uma questão do cinema, mas da vida; como também é da vida, e não apenas do cinema e da arte, a existência de um ponto de indiscernibilidade entre os dois. Todo o realismo do Actors Studio , com seus métodos psicológicos catárticos de buscar o que seria supostamente uma verossimilhança, deve ser visto como parte da produção de uma performance psicofísica e de uma moral psicossocial que é de certa forma da própria América. Mas, insistimos, isso apenas em parte, uma vez que seria injusto com alguns filmes, ou com partes de filmes, feitos por diretores e atores discípulos de Stanislavski “à americana”, reduzir tudo a uma espécie de projeto político de poder. Trata-se, antes, de uma crença no sonho americano que foi capaz de esticá-lo mais um pouco e, mesmo que minoritariamente, de fazer reverberar a América nos filmes, seus dramas e suas questões, às vezes de forma surpreendente. É verdade, já dissemos, que a imagem-tempo não é incompatível com o realismo e o Actors Studio; este é o caso dos dois exemplos que já demos aqui, Taxi Driver , de Scorsese e, mais recentemente, o belíssimo Última Noite , de Spike Lee. ²⁹ E é verdade também que a imagem-tempo sempre esteve potencialmente na América antes do cinema: na dimensão on the road minoritária e resistente, mas vigorosa, que vai do blues à literatura beat . De fato, num país onde a moral de Estado parece querer capturar tudo de forma macro e micropolítica, chegando ao agir cotidiano de cada cidadão, cair na estrada e permanecer em movimento talvez seja o que resta como possibilidade de liberdade. Mas se a questão do cinema moderno é também, como disse Deleuze, que “não basta apenas fazer paródias”, um cineasta como Cassavetes parece ter ido especialmente longe na imagem-tempo à americana. A oposição do método do Actors Studio feito por Cassavetes é também, de certo modo, a

oposição às performances de corpos-clichês de uma sexualidade pasteurizada e envernizada, expressão de como Hollywood, pelo menos em parte, capturou e reterritorializou até a chamada “revolução sexual”. Não é à toa que Deleuze aproxima Cassavetes de Bertold Brecht e vê no norteamericano um uso “livre”, digamos assim, do conceito de gestus criado pelo dramaturgo alemão. Conceito este, aliás, que será central para Deleuze na obra de Godard, como logo veremos. É verdade que o gestus de Brecht deveria ser predominantemente social, mesmo que ele admitisse outros aspectos. Assim, ainda que de início pareça estranho aproximar Cassavetes de um autor tão predominantemente político como Brecht, já vimos que há uma dimensão psicossocial pujante no cinema de Cassavetes, como se houvesse uma micropolítica, ou até uma biopolítica nos seus filmes: a gestão e a resistência psicossocial dos corpos. Afinal de contas, se Cassavetes se opunha a Actors Studio , Brecht criou boa parte de seu teatro numa oposição política frontal ao naturalismo e ao realismo de Stanislavski e Tchecov, entre outros autores. Ainda os corpos da América: Larry Clark, Kimberly Peirce, Gus Van Sant, Terence Malick e Andy Warhol Se é possível então falar de uma “atualidade” de um cinema da imagemtempo, é impressionante como, de forma diferente do que pôde perceber Deleuze há mais de vinte anos, ela se atualiza na América como um cinema minoritário, mas que continua sendo predominantemente de corpos, dando a impressão de que certos cineastas viram com atenção os filmes de Cassavetes. O que determina isso, no entanto, não é a intenção de diretores mais recentes de serem discípulos de quem quer que seja, e sim a insistência de uma questão que é, a princípio, tipicamente americana, mas que hoje transcende os Estados Unidos: os corpos, a sexualidade, as performances e os gestus , absolutamente sujeitados e servis aos seus próprios clichês. É num lugar transitório, atópico, onde é difícil distinguir ilusão e realidade – o virtual e o atual –, numa confusão de sentidos possíveis ou numa ausência total de sentidos, que Larry Clark vai encontrar os adolescentes da América tanto em Kids quanto em Bully . Aí, de maneira simples, filmando o corpo de perto como se tivesse assistido com atenção aos filmes de Cassavetes, desmonta as mais usuais – e bastante determinantes – imagens-morais: os clichês em que estamos aprisionados. Num gesto simples, Clark aproxima a sua câmera de dois adolescentes se beijando de maneira mais ou menos ruidosa e babada na primeira sequência de Kids e quebra a assepsia puritana da sexualidade envernizada da publicidade. Estética da publicidade esta que está de novo numa impressionante semelhança com a maioria dos filmes de “ficção”, como outrora vimos acontecer à época da Segunda Guerra. O que o diretor nos leva a lembrar aí é igualmente simples, mas um tanto esquecido, a saber: que o sexo envolve poder, constrangimento, dor e secreções no corpo, e que isto constitui a própria lógica do prazer. Prazer que nem sempre é possível, como o clichê do sexo-mercadoria insiste em nos esconder. É o que também vemos na crueza sincera da fala das meninas na cena em que conversam sobre as suas primeiras experiências sexuais, revelando estranheza e às vezes até nojo.

Clark vai ainda mais longe no magnífico Ken Park e arrisca corajosamente explorar uma perigosa fronteira entre as imagens da indústria de filmes pornográficos e outras (ou as mesmas) imagens possíveis de sexo explícito. É como se Clark quisesse inicialmente escancarar o pornô, que supostamente explicitaria todas as possibilidades do sexo, para nos mostrar o quanto este muitas vezes reduz o sexo a muito pouco: ao clichê. Trata-se de um sexo por si só, separado da vida e do corpo. É claro que não estamos falando nem de longe da condenação moralista do “sexo sem amor”, um clichê que quer dizer muito pouca coisa; ao contrário, trata-se do sexo como reificação pura, descolado do mundo, mumificado e fantasmagórico: sexo sem corpo e sem desejo. Por isso, muitas vezes Clark pareceu, em Kids , apresentar o sexo apenas como morte; no entanto, ele parece responder a isso em Ken Park e descobre – em meio a tanto niilismo, ao limite entre perversidade e moralismo, ao desespero dos que só conseguem encontrar a potência da vida como violência, e portanto como impotência ativa – a desejabilidade, a liberdade e a melhor afetividade de novo no sexo: é o que vemos na bela cena de sexo a três que encerra o filme. Neste caso então, a morte desaparece quando o sexo explícito é provocado perigosamente de perto no seu limite com o clichê da indústria pornô, mas escapa como possibilidade de felicidade redescoberta na sua liberdade quase absoluta, e vã. De novo é preciso redescobrir o corpo livre de qualquer assepsia e por isso o garoto que vive sob permanente pressão de um pai violento e fascista encontra a boa intimidade e afetividade enquanto corta as unhas do pé de sua mãe que está com uma imensa barriga de grávida. É como se a situação mais ou menos asquerosa de cortar as unhas do outro, solidária porque ela está grávida, inusitada porque são as unhas da mãe, abrisse a possibilidade do bom encontro entre corpos e espíritos em suas imperfeições – como de fato são –, em oposição à violência moral, e mais uma vez asséptica, que no filme é do pai que não para de afirmar que o filho não é homem, não é forte, não é corajoso, e assim por diante. Já em Meninos não Choram , Kimberly Peirce redescobre a perambulação e coloca o seu personagem principal on the road . A menina que quer ser menino percorre o tédio das pequenas cidades de beira de estrada na América, onde as pessoas não conseguem ver a vida para além da perspectiva de ir ao bar, disputar pegas nas estradas e ver televisão. Mas a menina quer ser menino e não quer ser gay, e o que lhe dá prazer na vida é seduzir e namorar as meninas da região vestida de menino, sem que elas descubram seu verdadeiro gênero. A menina rejeita, portanto, o entediado clichê que aprisiona o interior da América, e prefere o risco de viver num lugar social inexistente, numa experiência-limite que não pode durar muito tempo. Mais uma vez essa lhe parece ser a única potência, a única vitalidade-limite possível: desespero perante o tédio e potência inventiva da vida num ambiente de ausência de desejabilidade. Ao contrário da menina branca da família de negros em Sombras , de Cassavetes, neste caso a personagem magnificamente vivida por Hilary Swank parece atraída por este lugar-limite de uma realidade socialmente impossível. É ainda um cinema de corpos que faz com que o próprio cinema americano sinta, ainda hoje, a necessidade de se opor aos seus insistentes filmes-

clichês de guerra. É o que faz Terence Malick, em Além da Linha Vermelha , desconstruindo completamente as performances glamorosas, heroicas e contidas dos corpos na guerra. Malick nos mostra que a guerra provoca uma alteração sensório-motora completamente diferente daquela que o cinema americano normalmente apresenta, e esvazia parcialmente a história do filme reproduzindo o que talvez seja a própria condição do soldado na guerra: uma quase total impossibilidade de história. O que no clichê, como vimos, é exatamente o contrário: a guerra como uma grande missão e/ou uma grande aventura. Mas, de fato, os soldados parecem estar sempre à mercê de uma cruel oscilação: de um lado, o frenesi aterrorizante das batalhas; de outro, a espera ora delirante, ora desesperadora, entre uma batalha e outra. Já Gus Van Sant parece escolher uma estratégia simples, sensível e brilhante, para quebrar o clichê dos filmes que “denunciam a violência”, ou mostram a “violência nas escolas”, ou ainda “jovens violentos”. Em Elefante , o diretor simplesmente reduz radicalmente a velocidade do filme, introduz planos imensos – às vezes grandes planos-sequências –, repete a mesma cena de diversos ângulos, faz com que conheçamos todos os cantos do espaço da ação – como se quisesse acabar com os extracampos – e elimina os cortes rápidos da montagem. Assim, numa escola americana para adolescentes, onde está prestes a haver um massacre, somos convidados a olhar com calma cada um dos personagens, ver a mesma passagem mais de uma vez, sendo levados para o lado oposto da “linguagem” – e portanto do esquema sensório-motor – do videoclipe. Van Sant constrói um filme sem qualquer vestígio do ritmo do videoclipe ali mesmo onde não nos surpreenderíamos em encontrá-lo: no pátio de uma escola de adolescentes. Trata-se, neste caso, da desconstrução de um clichê que é muito peculiar; quer dizer, se dissemos que o clichê é uma narrativa com vistas a um fim, ou seja, uma experiência de realidade que só tem um sentido possível, Van Sant descobre que o grande clichê ao qual os jovens da América, como todos nós, estão presos, é o de um único ritmo possível. O cineasta quebra, portanto, o clichê de um ritmo só, mostrando-nos que é no videoclipe – na verdade, o grande ausente de seu filme – que estamos devidamente enquadrados, condicionados – sistematizados – num esquema sensório-motor. Elefante é, então, um filme aberto, que não nos permite crer em nenhuma resposta possível para o massacre que acontece na escola, mas exatamente por isso nos tornamos extremamente próximos, neste vazio de sentidos, daquelas pessoas filmadas cuidadosa, lenta e detalhadamente de perto: trata-se de uma proximidade afetiva que paralisa positivamente qualquer impulso ou tendência para o julgamento. Assim, as máquinas de noticiar, “debater”, filmar, reproduzir e julgar de todas as maneiras os atos violentos da contemporaneidade, revelam-se em si mesmas um curioso clichê: um clichê de ritmo. Elefante é um filme que tem uma espécie de silêncio, ou de calma ativa, resistente: é melhor ver as imagens com atenção, e se não encontramos uma resposta rápida para a ignomínia, não devemos nos deixar entrar no seu redemoinho vicioso: vicioso como o clichê. Pelo menos de início, é o que nos resta. A suavidade de Van Sant em Elefante nos lembra de uma consideração que Deleuze faz já na conclusão de A Imagem-Tempo , a de que a informação não

serve para combater o fascismo. Na verdade, Deleuze desenvolve esta reflexão quando está comentando o filme Hitler, um filme da Alemanha , de Hans Jürgen Syberberg. Trata-se de uma reflexão que nos aproxima da conclusão deste livro, qual seja: o problema do autômato no cinema articulado com o problema do clichê, e o combate a estes no contexto da superação da própria “forma-cinema”. É claro, teríamos que examinar, como o próprio Deleuze fez brevemente na sua conclusão, o que vêm a ser as novas formas de imagem comparadas ao cinema. Mas em Elefante , o cinema, mesmo que num estilo bastante distinto dos filmes de Syberberg, guarda a sua potência de combater o clichê na medida em que é uma espécie de “anti-TV”, se considerarmos a TV como a protagonista desta ultraintensificação da informação. É claro, imediatamente, poderíamos objetar que a ultraintensificação da informação se amplia no ambiente cibernético. Mas a TV (antes o jornal e o radio) tem uma forma especial, e hierárquica, de intensificar a informação para aprofundar o que Deleuze chamava de sua “ineficácia radical”. Vejamos as palavras do próprio Deleuze: “A informação joga com a sua ineficácia para fundar a sua força, sua força e potência própria consiste em ser ineficaz, e por isso mais perigosa.” ³⁰ Em todo caso, mantendo a nossa comparação um pouco arbitrária, Van Sant e Syberberg, de maneiras um tanto diferentes, respondem a qualquer evolucionismo tecnológico teleológico simplista, que julga o cinema “superado”, e nos permitem descobrir uma potência do cinema diante das novas tecnologias – sem que, é claro, deixemos de ver potências artísticas também nestas, inclusive para desconstruir o cinema quando ele próprio vira uma forma-clichê. Não é então que o problema do esgotamento da forma-cinema deixe de ser colocado. Este é claramente um assunto muito próximo do tema “cinema de corpos”, uma vez que no final das contas são estes que são automatizados, mesmo que o próprio Deleuze nos fale também de autômatos psicológicos. Por isso, ainda nos Estados Unidos, o corpo é a questão do cinema experimental, fazendo, por exemplo, com que Andy Warhol instale a sua câmera sobre os “corpos cotidianos”, primeiro seis horas e meia filmando o homem que dorme em Sleep , depois 45 minutos filmando um homem que come um cogumelo em Eat . Evidentemente, Warhol já está explorando um lugar-limite e certa hibridez do cinema e das novas formas de produção de imagens: já está fazendo “videoarte”. De novo nos encontramos com o limite da forma-cinema, limite que começou a ser explorado de dentro do cinema na medida em que este sempre foi um assunto para si mesmo. Mas, também aqui, o que dissemos sobre a dramaturgia serve ainda mais para o cinema: nenhuma questão realmente importante que diga respeito ao cinema é apenas uma questão do cinema.

Isso é, na verdade, o que estamos dizendo desde o início. Mesmo o problema do clichê é um problema que, antes de ser do cinema, é fundamentalmente da nossa experiência de realidade. Mas acontece com o clichê o mesmo que com o autômato, a saber: o cinema abre tanto a possibilidade de produção quanto de desconstrução dos clichês. Talvez seja até mesmo um erro distinguir o clichê do autômato, posto que se o clichê é uma imagem-moral – se seu aspecto de se instalar em nós como um esquema sensório-motor foi comparado à maneira como Nietzsche descreveu a moral se instalando em nossos corpos –, este pode ser compreendido, de certa forma, como um processo de automatização. Jean Luc Godard: corpos, clichês e gestus Todos estes problemas – os problemas tratados aqui nas últimas páginas – se encontram de uma forma ou de outra no cinema de Jean Luc Godard. Na verdade, Godard é até aqui o grande ausente deste livro, mesmo que o tenhamos mencionado três ou quatro vezes. Talvez nenhum cineasta tenha entendido tanto quanto ele a questão do cinema como uma questão do mundo e o mundo como um problema cinematográfico. A pouca presença de Godard aqui, que este trecho está longe de remediar, é mais por excesso de méritos e de qualidades, e da imensa pertinência do cineasta franco-suíço em relação ao nosso tema, do que o contrário. Godard é o grande cineasta dos clichês, diríamos que ele “brincou” com os clichês de todas as maneiras que lhe foram possíveis. Por isso, Godard é também o cineasta dos corpos, do gestus à Brecht, do autômato que aparece nos filmes e do cinema que se volta sobre si mesmo para falar do mundo. Não é por acaso que Godard é constantemente vítima da equivocada fala – da “informação” – que afirma que o que ele faz no cinema é sobretudo “pesquisa de linguagem”. De forma alguma Godard é um cineasta voltado para o umbigo do cinema, apenas percebe que o mundo tornou-se outro depois do cinema. Às vezes até, diríamos nós, ele filma o mundo para descobrir o cinema nele e para, de certa forma, extrair (tirar fora) o cinema dele, como se isso fosse possível. E como de fato isso não é possível, isto é, por não haver cinema puro e independente em lugar algum, como Godard bem sabe, o que ele faz é alterar, distorcer, desconstruir o cinema do mundo e o mundo-cinema, particularmente, mas não apenas, onde este aparece como clichê. Não é explicitamente relacionando Godard ao clichê que Deleuze se refere tantas vezes a ele nos seus livros sobre cinema, mas é o que nós vamos fazer aqui: Godard, o cineasta que sabe ver, filmar, desmontar e distorcer como poucos o clichê. Deleuze inclui um de seus grandes trechos sobre Godard na parte que fala dos cineastas dos corpos; antes, em especial, como vimos, Godard, o cineasta do gestus à maneira de Brecht e além. É em Godard que o gestus seria, além de político e social, “bio-vital, metafísico e estético”, ³¹ nos termos do próprio Deleuze; elementos que já estariam no próprio Brecht, que ressalta o elemento estético do gestus quando relaciona este à música. Lembramo-nos então da fala de Deleuze sobre alguns filmes de Fellini quando diz que neles “o espetáculo nunca acaba”, mesmo que ele não mencione neste momento o conceito brechtiano de gestus . No entanto, o gestus é o que libera a possibilidade de encontrarmos um “ator social”, mas

é preciso não restringir este social a um lugar apenas compreendido como uma posição de classe. Fellini, de maneira bem distinta de Godard, faz com que descubramos a subjetividade constituindo-se como um personagem, ou como muitos personagens. A diferença é que Fellini revela este personagem mostrando-o plenamente na sua função; tão pleno que aí aparece o “exagero” felliniano. Godard também, de certa forma, nos apresenta o personagem, mas o faz de maneira distinta da de Fellini. Ele pode fazê-lo entrar e sair do clichê, repetir suas ações de forma mais ou menos obcecada, prolongá-las em devaneios, insistir nelas até o extremo: “o personagem faz de si mesmo um teatro”, como diz Deleuze. Godard é capaz de fazer o clichê soar absurdo com a mesma força que ele é revelado absurdamente cotidiano. É o que vemos, por exemplo, na cena de Pierrot le Fou , onde a fala de cada um na festa da alta burguesia é um slogan de publicidade: o milionário que fala de seu BMW, a loura que explica qual o produto que usa no cabelo e assim por diante. Ou ainda em Made in USA , onde o clichê dos discursos, siglas e documentos políticos dos partidos da esquerda institucionalizada jorram exaustivamente numa fala que nunca acaba. Nestes dois últimos casos encontramos inclusive a maneira godardiana de radicalizar o personagem de perambulação – vidente, que abre a sua subjetividade e passeia entre as imagens – inventado no neorrealismo. Na cena de Pierrot le Fou , a publicidade é o que hipnotiza os personagens, o que os automatiza, mas ao mesmo tempo é a maneira como através deles Godard nos mostra as imagens do mundo: é quase um instante de “neorrealismo esgarçado” (expressão nossa) de Godard, carregado do que Foucault gostava de chamar de “violência do banal”. Já no segundo caso, o de Made in USA , o discurso ininterrupto e maçante são as imagens que “falam” no filme, não pelo seu conteúdo, mas pelo ruído: um discurso que só existe como ruído e é deste modo que se constitui politicamente como poder. Em filmes mais recentes de Godard, que Deleuze não conheceu, a maneira de enfrentar o clichê é criando personagens e situações inexistentes, impossíveis; personagens que se metem entre os clichês e são normalmente compostos de partes deles. Na verdade, a inexistência e a impossibilidade desses personagens vêm exatamente da maneira como eles compõem o incompossível, possibilitando, a partir deste não-lugar, desta atopia criada, desarranjar e desconstruir tudo em torno, revelando os clichês que antes eram por nós experimentados como “realidade”. É assim a personagem de Nossa Música , uma judia francesa que quer fazer um atentado à bomba suicida em Israel pela paz. Ou ainda o personagem de Elogio ao Amor , construído num lugar inexistente entre a resistência à ocupação alemã, o mal-entendido em torno da presença da palavra “livre” no governo fascista e colaboracionista da “França livre”, ou ainda a relação – e o mal-entendido – entre os termos “Bretagne”, região francesa, e “Grã-Bretanha”, nação estrangeira, nacionalismo e influência estrangeira, ressaltada pelas crianças que passam uma petição para que o filme Matrix fosse dublado em bretão. Godard parece então se dirigir à ineficácia da “informação” sobre a qual vimos Deleuze falar há pouco (a insistência na informação como o seu próprio colapso), escapando assim às classificações que nos são apresentadas como clichês pelos “meios de comunicação”, uma vez que ele parece entendê-las como a expressão da impossibilidade do pensamento,

inclusive como imagens. Assim o problema da guerra e da paz não estaria em Israel x Palestina, em judeus x muçulmanos, em Ocidente x Oriente, mas nos interstícios que possamos encontrar entre estas classificações-clichês. Neste sentido, Godard nos mostra que o clichê é muito mais frequente e vai muito mais longe do que normalmente poderíamos imaginar. Deleuze diz que o “método” de Godard é muitas vezes o de “quebrar as imagens”, quebrando na verdade o encadeamento e a associação dos quais normalmente nós nos tornamos dependentes no cinema. Assim entre duas imagens, entre dois sons, ou entre uma imagem e um som, Godard se esforça por nos fazer ver o indiscernível que existe entre ambos, mas que é, de certa forma, de onde os sentidos se constroem. Em outros termos: os sentidos se constroem não pela associação e o encadeamento entre as imagens, mas da diferença entre elas que não só aparece, como também é produzida – uma imagem como uma diferença – quando estas associações e encadeamentos são quebrados. Diríamos nós, mais uma vez nos aproveitando de Deleuze para chegar a uma reflexão que ele não faz explicitamente, que esta operação é uma quebra de clichê porque ela quebra as imagens que antes só poderiam ser compreendidas numa ordem de causalidades fechadas, isto é, as imagens encadeadas num determinado “telos”. Temos mesmo a impressão, em parte, de que Godard trabalha no cinema a relação e o abismo que existem entre enunciados e visibilidades, palavras e coisas, percebidos por Foucault. Nos filmes de Godard estão não apenas os sentidos que se constroem das relações entre ambos, mas também o abismo e a irredutibilidade existentes entre eles – talvez o mais notável dos interstícios – e que, de alguma maneira, contribuem para construir um sentido que não é nem da palavra nem da coisa (da imagem), mas que pode surgir da colisão entre ambas (o que lembra Eisenstein), ou da contradição e do descompasso. Por isso, inclusive, é que Godard afirma em certo momento a preponderância da mixagem sobre a montagem no seu cinema. Deleuze fala sobre a função do interstício no cinema de Godard no capítulo do A Imagem-Tempo intitulado “O pensamento e o cinema”. Mas é no capítulo seguinte, “Cinema, corpo e cérebro, pensamento”, que ele vai dizer que o gestus faz Godard ligar o corpo ao espírito. Nos seus filmes, os movimentos, as performances e as atitudes dos corpos serão sempre, de certo modo, uma imagem-tempo, posto que coloca “o antes e o depois nos corpos”. ³² O próprio gestus será ele mesmo uma imagem-tempo em que convivem e se mostram as pontas do presente e os lençóis do passado. Mas esse aspecto está longe de ser um privilégio de Godard: ele está sem dúvida também em Cassavetes, em Fellini, em Glauber, assim como é frequente num filme um pouco mais recente como Underground: Mentiras de Guerra , de Emir Kusturica. Esta é, afinal de contas, a própria situação do ator na relação com o seu personagem. Na verdade, poderíamos dizer que nós vemos o tempo no ator porque vemos o tempo no cristal, vendo então duas maneiras na qual o cristal mostra as suas duas faces: o virtual e o atual, mas também o opaco e o límpido. De fato, é desta forma que aparece a situação e o drama do ator: de um lado, atualizando o personagem em seu corpo; de outro, atualizando o

seu corpo no personagem. O ator precisa estar à frente do personagem, que lhe aparece como virtual, ao mesmo tempo que só terá sucesso se o atualizar: se o personagem for todo no presente. O personagem, inicialmente opaco, torna-se límpido, enquanto o ator mesmo vai se opacizando. Mas é preciso conservar alguma lucidez para ir adiante, isto é, conservar alguma limpidez em si mesmo que se opacizou pelo personagem, alguma atualidade no que virou virtual para que o personagem mais uma vez se atualize. É semelhante às duas dimensões do tempo descritas por Deleuze a partir de Bergson: de um lado, o tempo que não para de passar indo em direção ao futuro; de outro, o tempo que se conserva todo no passado, que é o que permite que experimentemos o presente – o que acabou de passar – como um sentido. O ator precisa ao mesmo tempo segurar o sentido e fazê-lo passar; ou talvez segurar o sentido para fazê-lo passar. É claro que essa é no fundo a situação de cada um de nós – na maneira como nos constituímos cada vez como um personagem e fazemos o nosso espetáculo nas distintas situações da vida, como tão bem viu Fellini –, mas o ator estica isso ao extremo e, por isso, escancara as duas faces do cristal do tempo. Talvez em nenhum cineasta a relação ator-personagem seja explicitada como em Godard. Diríamos que Godard descobre o gestus dessa transformação, ou talvez o gestus do interstício entre o ator e o personagem, e não apenas o gestus do personagem social de Brecht: Godard dobra o gestus dentro do gestus . Mas vai ainda mais longe e dobra mais uma vez, porque o problema do ator em Godard muitas vezes não está separado do personagem do star system , da “celebridade” que virou, fora dos filmes e das peças, “personagem de si mesmo”. Por isso, Jean-Paul Belmondo é, em parte, JeanPaul Belmondo em Pierrot le Fou – um ponto indiscernível entre o personagem do Pierrot e Belmondo –, assim como Ives Montand e Jane Fonda são também eles mesmos, ou clichês de si mesmos, em Tout va bien – respectivamente, o astro comunista bem comportado que 1968 denunciou como conservador, e a estrela oficial da “esquerda hollywoodiana”, como se fosse possível existir uma. Mas, insistimos, estas últimas observações são por nossa conta, e não de Deleuze. Na verdade, é em outro trecho de seu livro, exatamente quando está falando sobre a imagem-tempo no cinema fantástico, que Deleuze vai afirmar que “o ator é um monstro”, ³³ que faz do excesso ou da falta o seu meio de vida: descobre no seu corpo e nas suas possibilidades psicofísicas um outro virtual que atualiza. Ou então, ainda nas palavras de Deleuze: “os monstros são atores natos”. ³⁴ O gestus em Godard, porém, não está apenas nos movimentos, performances e atitudes dos corpos, ele pode ser encontrado também nas cores, nos sons, nos objetos. Assim, o vermelho do sangue do acidente de carro é explicitamente katchup em Weekend à francesa , o desenho de dois super-homens de história em quadrinhos em Le Gai Savoir traz um com a tradicional marca “USA” no peito, outro com o “CCCP”, e os jovens militantes maoístas dançam uma coreografia meio engraçada, meio patética, num iê iê iê pop em homenagem a Mao Tsé-Tung em A Chinesa (o gestus como música, como queria Brecht). O gestus, mais uma vez, sendo de grande utilidade para detectar e/ou desconstruir os clichês. 27 I. T. p. 250.

28 O Actors Studio foi fundado no início dos anos 1940 nos Estados Unidos, implantando e de-senvolvendo os métodos de formação de atores e diretores de Constantin Stanislavski, que viajara algumas vezes, nos anos 1920, com seu grupo “Teatro de Arte de Moscou” para Nova York. O pioneirismo na implantação e desenvolvimento dos métodos do dramaturgo russo nos Estados Unidos foi de Lee Strasberg, Strella Adler e Sanford Meisner, que conviveram nos anos 1930 no “Group Theatre” em Nova York. Destes, apenas Stella Adler estudou de fato com Stanislavski em Paris, em 1934. Mesmo que mais tarde, Adler e Meisner rompessem com Strasberg e com o Actors Studio , fundando suas próprias escolas, as interpretações possíveis dos métodos de Stanislavski constituíram a base da formação dos atores (e mesmo diretores e dramaturgos) estadunidenses de teatro e de cinema dos anos 1940 até o final do século XX. De uma forma geral, desejava-se um “realismo” e uma verossimilhança que deveriam ser buscados ora num mergulho radical dos atores em si mesmos e nas suas próprias emoções, ora na submissão do ator a uma vivência isolada, e extrema, de uma experiência dramática semelhante a de seu personagem. Elia Kazan foi o mais importante diretor do Actors Studio ; quanto aos atores, passaram por esta escola, e/ou por similares, Marlon Brando, James Dean, Marilyn Monroe, Paul Newman, Dustin Hoffman, Steve McQueen, Al Pacino, Robert de Niro, Jane Fonda, Jack Nicholson, Dennis Hopper, entre outros. 29 Em ambos os casos, o exemplo dos filmes não é dado por causa dos diretores, mas dos estilos dos atores, em especial dos protagonistas, respectivamente Robert de Niro (formado de fato pelo Actors Studio ) e Edward Norton. 30 I. T., p. 352-353. 31 I. T., p. 253. 32 I. T. p. 254 33 I. T., p. 97. 34 Ibidem. Conclusão Chegando ao fim do nosso livro, o clichê vai se configurando não apenas como uma imagem despotencializada, mas também como uma imagem que é uma espécie de agente de um processo de despotencialização. É curioso que o clichê, de uma forma geral, foi descrito por nós como um “menos” da imagem que fica assim esvaziada da sua potência instauradora de realidade e sentido. Esse aspecto nos chama a atenção porque na reflexão que Deleuze faz sobre o clichê no seu livro sobre o pintor Francis Bacon ¹ , boa parte da pintura modernista, e em especial a pintura deste pintor irlandês, passaria necessariamente por uma espécie de resistência e fuga do clichê. Mas esta resistência se daria no que aparentemente é uma certa economia do pintor moderno ao pintar. Deleuze diz então que o pintor moderno – Francis Bacon, sobretudo – não estaria jamais diante de uma “tela branca”. Antes de começar a pintura, a tela já estaria plenamente ocupada pelas imagens que povoavam a imaginação do pintor, pelos objetos de seu ateliê e

pelas fotos e clichês que inflacionavam o mundo. Se normalmente se relaciona a invenção da fotografia com o nascimento do modernismo, uma vez que esta teria sido um dos principais motivos da arte moderna ter abandonado a mimesis , Deleuze, inspirado por palavras do próprio Bacon, insiste que a fotografia jamais deixou de ser um elemento com o qual grande parte dos pintores modernistas teve que lidar. As fotos seriam, segundo o pintor irlandês, o modo como o próprio mundo se mostrava para nós. Pintar, neste caso, seria o ato de “limpar a tela’, ou “esvaziar a tela”, de toda essa espécie de inflação estética. E é justamente aqui que as reflexões que Deleuze faz sobre o clichê no seu livro sobre a pintura de Bacon parecem entrar em contradição com as reflexões que estamos fazendo sobre o problema do clichê a partir do cinema. De fato, no caso da pintura, o “menos” é o que nos levaria até a potência da imagem, numa espécie de “economia” (não no sentido de economia política) que chegaria apenas a alguns poucos elementos na tela, onde o corpo estaria presente não como representação, nem como elemento figurativo ou narrativo, mas quase como um “pré-corpo”, ou um “pré-objeto (expressões nossas), numa intensidade anterior a qualquer formalização. Por isso, inclusive, Deleuze articula os corpos que aparecem na pintura de Francis Bacon com a noção de “corpos sem órgãos”, expressão criada por Artaud e reapropriada pelo filósofo francês. E não há dúvida de que há uma aproximação possível entre a pintura de Bacon e o teatro e a literatura de Artaud. No caso do cinema, nem sempre o restabelecimento da potência de suas imagens passa por uma economia como a da pintura – mesmo que a busca por um “mais”, ou seja, pela reversão de uma impotência seja a mesma. Acontece que na pintura este processo tende a começar com um “menos”, exatamente para nos livrar desta inflação de informações que vimos que o cinema também precisou, ou precisa, enfrentar. Trata-se, neste caso, de um “menos por um mais”, e que pode também acontecer no cinema. É verdade que no cinema a luta contra os clichês pode operar por uma saturação ou por uma intensificação, como nos exageros de Fellini ou na variedade de elementos pop de Godard. Mas também no cinema, o combate aos clichês pode buscar esta espécie de economia de elementos da pintura. Há pouco, por exemplo, vimos o caso do filme “Elefante” de Gus Van Sant. O mestre da “dessaturação” será, no entanto, o italiano Michelangelo Antonioni, com seus brancos, suas nuvens, seus vapores, que invadem os planos, que reduzem personagens e/ou objetos a uns poucos em meio ao vazio. Personagens e objetos que, a qualquer momento, podem se opacizar, ou mesmo se diluir e desaparecer, numa tela que se tornará inteiramente branca, ou inteiramente nuvem. Não é por acaso que é próximo ao final que tenhamos relacionado o corpo com o clichê, o problema do autômato e, finalmente, a própria imagemtempo. É necessário que nos lembremos do que escrevemos na introdução, isto é, daquilo que anunciamos como a questão motivadora, ou pelo menos uma das questões motivadoras deste livro. Há algum tempo, antes mesmo de nos aprofundarmos mais cuidadosamente em Deleuze, a nossa inquietação como “estudante” de filosofia, digamos assim, era a de perceber, de um lado, uma condenação moral da imagem que predominava nas academias e na

suposta intelligentsia ; de outro, uma impressionante potência pensante no cinema. Esta “condenação moral da imagem”, da qual sempre desconfiei, vinha sempre acompanhada da constatação, igualmente majoritária e hegemônica, de que viveríamos na civilização da imagem e que esta seria supostamente a responsável por uma dificuldade para a atividade do pensamento nos dias de hoje. Foi por isso que a afirmação-provocação de Deleuze nos pareceu tão adequada para o início do nosso trabalho: “Civilização da imagem? Na verdade, uma civilização do clichê”. Denunciar que há algo que impede a atividade do pensamento é, de certa forma, a denúncia de uma automatização, numa determinada compreensão que se possa ter do termo. Mas uma automatização neste sentido parece ser exatamente o que é pressuposto pela condenação moral da imagem, isto é, a compreensão equivocada de um descolamento entre a imagem e a matéria, que faria parte do mesmo movimento que nos leva a compreendê-la como linguagem, e a própria linguagem, como representação. Deleuze e Bergson nos mostram, no entanto, que o que percebemos não são as imagens dos objetos, mas os objetos como imagens; que a luz é o que se produz da relação dos objetos em suas diferenças e que o próprio universo é um plano de imanência de luz. O objeto é então para Bergson uma espécie de “fotografia da luz”: um instantâneo desta. Deleuze abre a conclusão do A Imagem-Tempo afirmando que o cinema não é uma linguagem, e esta afirmação, a princípio, como quase todas dos dois livros sobre cinema, não diz respeito apenas ao cinema. Deleuze está nos dizendo não apenas que o cinema não é uma linguagem como também que a linguagem não é para ele aquilo pelo qual majoritariamente ela é tomada. Há, no entanto, uma singularidade do cinema que também é afirmada por Deleuze nas primeiras linhas da sua conclusão: “ele traz à luz uma matéria inteligível, que é como que um pressuposto, uma condição, um correlato necessário através do qual a linguagem constrói seus próprios ‘objetos’.” ² Por outro lado, vimos que não só os seus dois livros sobre cinema, mas também o próprio cinema, ajudaram Deleuze a construir e a descrever a sua concepção do funcionamento da realidade: um “cosmos” deleuziano, digamos assim. Este aparece no contexto de um reexame do materialismo feito por Deleuze: reexame que implicou em parte uma redescoberta e uma reinvenção deste. Percebemos aí, inclusive, uma proximidade de A ImagemMovimento e A Imagem-Tempo com os dois grandes livros de filosofia política que ele escreveu com Félix Guattari, O Anti-Édipo e Mil Platôs , os dois com o mesmo subtítulo: “capitalismo e esquizofrenia”. Não é por acaso que nestes livros, ambos os autores retomem uma discussão com Marx e recoloquem o problema de uma economia política como um problema filosófico chegando, a partir de um problema marxista, até à origem nietzschiana do socius . É nestes livros também que Deleuze e Guattari descrevem um corpo produtivo, pulsante, potente, convergência de diversos fluxos cósmicos, identificado como “corpo sem órgãos”. É Henri Bergson, no entanto, que servirá como grande auxiliar de Deleuze neste trabalho de reexame do materialismo feito nos seus dois livros sobre cinema, mesmo que o próprio Bergson fizesse algumas objeções ao materialismo. Mas é este seu predecessor colega francês que vai ser

decisivo para Deleuze descrever um universo como um “plano de imanência”, que é ao mesmo tempo material e fluido, e onde os movimentos e as potências da matéria estão sempre sendo engendrados por uma dimensão virtual do real. Dimensão imaterial, é verdade, mas que é, por sua vez, nascida da própria matéria naquilo que ela desprende da tensão e da vibração de suas partes heterogêneas em movimento. Ou seja, o virtual como uma espécie de memória cósmica das vibrações e das interrelações dos corpos que, mais uma vez, incidem sobre estes. Para Deleuze então, o lugar para o qual o cinema nos levaria a princípio, como mecanismo e como máquina, é este universo absolutamente acentrado, que inicialmente é apenas imagem-movimento: a primeira fase do universo descrito por Bergson. Há para Deleuze uma identidade do cinema com este Todo da imagemmovimento, uma semelhança de natureza, ou talvez até mais do que isso. É a imagem-movimento que se constitui em primeiro lugar como um automatismo, isto é, uma natureza como máquina e como usina, diríamos nós, posto que produtora e autoprodutora: autopoiética . O cinema seria neste sentido o “automatismo que se tornou arte espiritual”, ³ e isso o diferencia de maneira decisiva do teatro. E mais, o sentido de “automação”, neste caso, está longe de ser negativo; ao contrário, afirma uma positividade e um vitalismo. Aqui devemos recordar brevemente a discussão apresentada na segunda parte deste livro em torno da aproximação que Deleuze faz com a semiótica do estadunidense Sanders Peirce. O que a imagem-movimento designa em primeiro lugar é uma matéria pré-sinalética, uma matéria préamórfica, semelhante ao que o linguista dinamarquês Louis Hjelmslev, segundo citação de Deleuze, define como “‘matéria’ não linguisticamente formada”. ⁴ Mas ela só se torna linguagem, ou aquilo que normalmente chamamos de linguagem, porque em certo momento se instala, no coração da imagemmovimento, um outro regime de imagem que aparece exatamente quando surge o que é para Bergson a origem dos seres vivos e que ele designa como “centro de indeterminação” ou “zona de indeterminação”. Assim, como já vimos insistentemente, a instalação deste se caracteriza por uma interrupção momentânea, por um afastamento e um hiato na dinâmica do universo acentrado e escoante da imagem-movimento. Estamos falando portanto de uma parte deste universo que se volta para dentro, que constitui um mundo interior como uma memória e que, no mais complexo dos seres, os homens, ganhará a dimensão de uma consciência. E estamos falando também de uma percepção que agora passa a ser, na medida das possibilidades do ser vivo, selecionada e centralizada, ou seja, o universo se dobra em torno do centro de indeterminação que passa a experimentá-lo como horizonte e perspectiva. Segundo Bergson, os seres vivos, que Deleuze gostava de designar como imagens-viventes, percebem o real num enquadramento, num plano que, como o do cinema, é um “corte móvel na duração”. Antes de qualquer dispositivo como o cinema, foi no automatismo da imagem-movimento, dentro do qual se operou uma cisão, que se constituiu o autômato espiritual que nós somos. É a imagem-movimento, isto é, a natureza como um universo heterogêneo, escoante e autoprodutivo, que nos

“força a pensar”: a reprocessar o virtual em outros sentidos possíveis. E assim, mesmo que infimamente, como “centros de indeterminações”, como imagens-viventes, somos capazes de modificar o universo desde dentro. Ou seja, como um autômato espiritual e físico criado da tensão e de um hiato da matéria cósmica, de novo intervimos nela e a alteramos. Mas o autômato espiritual, pensante, só pode se constituir enquanto tal à medida que traduz – ou “transduz” – a matéria em linguagem. A partir de Bergson, aprendemos que isso significa não apenas que toda a experiência de realidade é sempre de certa forma de uma imagem, mas também que toda esta experiência só pode acontecer originalmente como um “menos real”, reduzindo a imagem-movimento que nos afeta a um sentido palpável, a um significante que expressará um significado. É nesse momento que Bergson ajuda Deleuze a se aproximar da concepção semiótica que defende, isto é, aproximar-se de certa “linhagem” do estudo da linguagem que se diferencia da semiologia e de uma linguística mais tradicional. Deleuze então distingue a semiótica da semiologia e toma o partido da primeira. A semiótica, diz Deleuze, considera a linguagem sempre em relação a esta matéria-prima da imagem-movimento, a este enunciável que se constitui como imagens e signos, que são, é verdade, transformados em enunciados quando apoderados pela linguagem, mas que tendem a ser sempre de novo redefinidos e reengendrados quando mais uma vez são afetados pela matéria enunciável, pelas imagens e pelos signos. A semiologia, por outro lado, de “inspiração linguística”, segundo Deleuze, tenderia a fazer com que a linguagem se fechasse sobre si mesma, fechando sobre si os significantes, separando-se das imagens e dos signos como se esquecesse que estes constituem a linguagem de maneira anterior a qualquer significante. Usando uma linguagem bergsoniana, é como se a semiologia, para Deleuze, excluísse a modulação que constitui os sentidos no limite entre o atual e o virtual: no limite entre o imaterial e o corpóreo ou ainda entre o anímico e o somático. O que se coloca aí é muito mais do que um problema teórico, ou uma divergência que existe entre aqueles que estudam a linguagem; tratase, na verdade, de uma experiência predominante e majoritária de realidade que acomete, ou pode acometer, cada um de nós. Estamos falando de um automatismo no sentido mais negativo que se possa dar ao termo, que nasce no coração da própria linguagem e acontece quando ela se fecha sobre si mesma se esquecendo deste lugar-limite, que a constitui a partir de uma exterioridade material que não para de instigá-la. A recusa da modulação, a recusa do movimento – que não deixa por isso de ocorrer –, transforma a linguagem num mecanismo redutor e padronizador das experiências de realidade, agindo exatamente sobre o que ela finge recusar como a sua fonte originária: o corpo, a matéria; sempre em movimento. Isso é exatamente o que vimos Deleuze e Guattari definirem como uma “linguagem que se fecha em virtude de uma impotência”, fechando-se num esquema de equivalências, compensações e causalidades afetivas – sensório-motoras, fisiológicas – semelhantes às que Nietzsche descreveu na Genealogia da Moral . Trata-se, insistimos, de um processo de automação no sentido negativo que se possa dar ao termo. Este perde aqui o sentido de “autonomia”, e não se refere mais ao pensamento como um

autômato inventivo e liberador, que assim é instigado pelo automatismo material, maquínico e produtivo da natureza. Deleuze chama a atenção para o fato de que nenhuma arte jamais se deparou tanto com este problema, que constitui a sua própria natureza, quanto o cinema. Por isso, o cinema é, desde o seu início como “ficção”, cheio de personagens mumificados, de seres hipnotizados e hipnotizadores, e de todos os tipos de mecanismos maquínicos que existem desde a relojoaria – que Deleuze diz ter atraído de forma especial a primeira escola francesa. Este mecanismo passa então pelas máquinas industriais vistas em diversos filmes e autores – A Greve , de Eisenstein, Tempos Modernos , de Chaplin, A Besta Humana , de Jean Renoir, só para ficar em alguns exemplos – até as novas máquinas cibernéticas e a antecipação da sociedade de controle, do clone-robô futurista de Metropolis , de Lang, até o sistema de vigilância do último filme da série Dr. Mabuse , do mesmo autor e, finalmente, o mais famoso: o Hal 9000, o computador de 2001 uma Odisséia no Espaço , de Stanley Kubrick. Mas o cinema, de alguma maneira desde o início, se percebeu como este autômato mecânico, agora de novo num sentido liberador, capaz de acionar o autômato espiritual. Deleuze insiste que assim ele era visto por autores das primeiras escolas que buscavam no cinema a função de provocar a experiência do sublime na maneira como esta fora descrita por Kant. Mesmo a colisão dialética entre matéria e espírito, imaginada por Eisenstein a partir de Hegel e Marx, teria essa função. A concepção kantiana do juízo do sublime, que já antes do cinema influenciava grande parte do modernismo, notadamente a pintura, talvez seja a expressão de um entendimento de uma relação-limite entre matéria e pensamento incomum no próprio iluminismo do qual Kant fora um protagonista; mesmo que, no final, o juízo do sublime afirmasse a infinita tendência da razão a não se submeter. Mas o resultado da perda do vigor criativo das primeiras grandes escolas do cinema, a absoluta captura do cinema pelo Capital e pelo Estado, que chega a um ponto extremo à época da Segunda Guerra Mundial, acabaram significando a reversão desta espécie de última utopia iluminista. Assim, no lugar de ser o autômato do movimento que liberaria o autômato da razão, inclusive como uma experiência revolucionária e liberadora das massas como quis Eisenstein, o cinema teria se tornado um dispositivo de automatização, no sentido negativo, quase que como um instrumento de hipnose coletiva, como o expressionismo alemão pareceu intuir e prever em muitos de seus personagens. Esta foi a operação nazifascista do “Hitler cineasta”, como definiu Syberberg, mas esta também foi boa parte da constituição da máquina de poder hollywoodiana carregada da estética asséptica, moral e publicitária cujo pioneirismo esteve na “cineasta de Hitler”, Leni Riefenstahl. Por isso vimos Deleuze afirmar: “De Hitler a Hollywood, de Hollywood a Hitler.” Na verdade, o mesmo movimento que dissemos ser recorrente na linguagem teria acometido o cinema clássico, qual seja, “se fechar em si mesmo”. Como nas críticas que Deleuze faz à semiologia, o cinema tendeu (ou tende) a tomar cada uma das imagens, em suas características, como “dados” da realidade, isto é, como o que existiria em si mesmo em seus sentidos e significados, e não como o que tenha passado, e que não pare de passar, por

processos constituintes de redefinição e remodelação. Não se trata aqui apenas de algo que aconteceu em determinado momento da história do cinema; ao contrário, esta é uma tendência predominante no cinema ainda hoje. Mas, sobretudo, esta é uma tendência da nossa própria experiência de realidade, qual seja, fechar-se em si mesmo como se fosse um “em si” ou a “coisa mesma”, reduzindo todo afeto desestruturante a uma ordem de causalidades e a uma finalidade – um “telos”. Isto acontece, como vimos, desde uma experiência afetiva: fisiológica no vocabulário de Nietzsche, sensório-motora no vocabulário de Bergson. Por isso, a mais detalhada descrição do clichê feita por Deleuze, reproduzida por nós na introdução deste livro, não chega nem a mencionar o cinema ou outro mecanismo de produção de imagens: ela é antes a descrição de um mecanismo da nossa experiência do real. Resumidamente, diríamos que há um “menos” na origem de toda a nossa experiência de realidade, uma “criação de um mundo para nós” como diria Nietzsche, que pode se fechar a ponto de reverter a dinâmica vital dentro da qual ela fora criada, voltando-se contra a própria vida. Ora, como nós percebemos e explicamos mais detalhadamente no interior do livro, esse é o processo de instalação da moral em nós segundo Nietzsche. O clichê é um esquema redutor e padronizador dos afetos e das experiências de realidade em geral, instalando-se a partir de um processo de equivalências e compensações – sempre afetivas, sensóriomotoras, físicas – e por isso funcionando exatamente como uma imagem-lei, uma imagem-moral: uma imagem padronizadora e determinadora de valores. O cinema, por sua vez, como vimos, é uma notável máquina não apenas produtora de clichês, mas também detectora, denunciadora e desconstrutora dos clichês. Em outros termos: o cinema também foi e ainda é uma notável máquina que nos ajuda a nos libertarmos – a nos vermos livres – dos clichês que nos capturam e nos aprisionam, mesmo que isso tenha acontecido sempre de maneira minoritária na história do cinema. Minoritária de fato, mas qualitativamente potente e até significativa e constante de um ponto de vista quantitativo. Não há dúvida, no entanto, que estas foram muitas vezes experiências de risco para seus realizadores, exatamente pela liberação sensório-motora e, portanto, também uma liberação de pensamento que de uma forma ou de outra representavam. É claro que sempre se pode dizer que o público tende a rejeitar certos tipos de filme, mesmo que não tenham sido poucos os filmes que aqui mencionamos que foram inclusive “sucessos de público”. Se o moralismo do cinema que articulamos com o clichê parece ser uma tendência dominante é porque o poder, como Foucault, Deleuze e Guattari bem observaram, passa por dentro: passa pelos corpos. Deleuze e Guattari insistem, por exemplo, que o fascismo não foi fruto da ilusão e da ignorância, mas antes, em certo momento, que se desejou toda aquela violência. ⁵ A pergunta é então sobre o que mobilizaria o desejo e os corpos nessa direção. Pergunta esta que, segundo Deleuze e Guattari, foi colocada por Wilhelm Reich, reverberando de certa forma uma antiga questão política de Espinosa: “Por que os homens combatem por sua servidão como se se tratasse de sua salvação?” ⁶ Na verdade, é a partir de Marx que Deleuze e Guattari vão afirmar que o desejo não existe de maneira independente da produção social, e tudo que

se volta contra o desejo é produzido no coração desta produção e a posteriori. Neste sentido, a moral é uma produção molar – “macro”, digamos assim –, que destitui o desejo de seu objeto, revertendo-o para uma espécie de paixão triste, ou seja, o medo, o sofrimento, a impotência viram o próprio objeto do desejo como se este fosse um movimento de produção da antiprodução. Não é que exista algum vazio a constituir ontologicamente o desejo, como quis a psicanálise, mas as paixões, como objetos naturais e sensíveis, não cessam de se virar contra o desejo. Assim, a falta, cujo correlato subjetivo é o fantasma, é socialmente produzida na medida mesma que se despeja todo o desejo no medo dessa falta, desse vazio, dessa carência. Trata-se, então, de um estado de impotência em que a própria palavra “produção” nos parece por vezes soar contraditória, ou inadequada, visto que o que parece acontecer de fato é uma propagação molecular, micropolítica, de um estado de impotência e improdutividade dos corpos que pode chegar até uma paixão violenta. São então as próprias paixões que aí se espalham, sendo experimentadas, por exemplo, como o medo, como a falta de disposição para qualquer risco, ou como a experiência da própria impotência tomada por “atributo essencial” ou “natural”. Neste movimento a potência transforma-se – reverte-se – no fantasma porque a força passa a ser experimentada como estando sempre alhures e, portanto, deve-se temê-la e obedecê-la. Há na origem da moral esse movimento de autonegação servil produzido no coração do processo social. Por isso, o clichê é sempre também uma experiência que se constrói no socius . Para além de uma paralisia e de um anestesiamento psicossomático, ele pode ser também uma disposição para a violência destrutiva quando produz uma grande mobilização de corpos com vistas a um grande “telos”, a um grande fim que implica sempre o sacrifício, mesmo que às vezes parcial, da potência e da vitalidade destes corpos. Em relação ao clichê no cinema, talvez se possa objetar que nem sempre se chegou a este ponto. Por outro lado, o cinema tantas vezes descambou para um moralismo-limite que, em algumas situações, tornou-se uma peça importante do que Deleuze percebia, não sem ser acusado de estar “exagerando”, como formas diluídas de fascismo; isso ainda nas últimas décadas do século XX. Mas os filmes e os autores analisados nos seus dois livros sobre o cinema, como vimos, são o exato reverso disso: cinema como expressão da potência inventiva e da vitalidade do pensamento. Em todo caso, no que é majoritário e hegemônico, o que observamos é uma tendência de ir ao cinema para se ter exatamente as experiências que são previamente esperadas, como se fosse ir ao cinema apenas para se encontrar com o clichê. E ai do filme se estas experiências não se confirmam nos primeiros dez minutos e algumas sensações estranhas começam a acometer o espectador. O cinema partilha do processo do real, ele é uma potência da realidade porque, antes, para Deleuze, o virtual é uma potência do ser. Mesmo que isso tenha sido repetido algumas vezes no nosso livro, não poderia deixar de estar presente também na conclusão. Aqui está outra função decisiva de Bergson na compreensão que Deleuze constrói do universo como um plano de imanência: graças a ele o virtual pode ser detalhadamente compreendido

–como de certa maneira antes já pretendia Nietzsche – como uma dimensão da realidade sem a qual esta não existiria na sua dinâmica autoprodutiva. O virtual não só constitui o plano de imanência, como é parte fundamental da potência da matéria viva do universo. A identificação do cinema com o processo primeiro da realidade já aparecia quando Deleuze viu em Bergson a descrição de um universo como uma espécie de metacinema, mesmo que Bergson, ele mesmo, não tenha compreendido todas as possibilidades do cinema como arte. Mas é esta identificação que permitiu que se pensasse uma possibilidade liberadora no cinema – liberadora dos clichês, mesmo que não tenha sido formulada desta forma –, num cinema que seria capaz de nos conduzir à experiência mais originária da imagem-movimento. Mas isso só aconteceu pontualmente, como na rara e espetacular experiência de Dziga Vertov no filme Um Homem e sua Câmera . Anterior à despotencialização da imagem no clichê, a experiência instauradora de realidade no cinema aconteceu em primeiro lugar, é claro, no cinema clássico, mesmo que racionalista, platônico e até moralista, quando tudo isso já tinha sido diagnosticado por Nietzsche como uma decadência. Mas o cinema foi sem dúvida vigoroso e inovador nas suas primeiras décadas, em parte pelo ineditismo das experiências fílmicas, em parte pelo ineditismo da experiência psíquica e somática do próprio cinema como máquina: a novidade do autômato do movimento. O cinema, porém, quando viu suas outrora potentes imagens esgotadas em clichês, soube ir mais longe, descobrindo uma nova e mais distante relação com o extracampo, mais profunda e mais radical do que aquela que normalmente aprendemos como típica da “linguagem” do cinema. De fato, ao contrário do quadro na pintura, quase sempre todo voltado para o seu interior, o quadro no cinema não para de se referir e evocar um primeiro e mais convencional tipo de “fora de campo”: um extracampo que é interior ao filme, mesmo que jamais apareça explicitamente na imagem. Por isso, por exemplo, diversos planos fechados ou detalhes de um determinado quarto, pelos objetos que nos são apresentados, fazem com que possamos compor o quarto de um adolescente que pode jamais ter sido mostrado por inteiro no filme, mas que cumpre perfeitamente a sua função narrativa e é experimentado por nós como uma realidade fílmica. Mas há este outro tipo de extracampo que faz referir o detalhe da imagem – ou a particularidade do acontecimento dentro de um plano – ao que está além do filme e que liga o filme ao Todo da imagem-movimento. Essa ligação, esse fio, sempre houve no cinema, mas passa a ser revelado pela imagem-tempo. Ou seja, ele passa a ser revelado quando se interrompe o prolongamento sensório-motor que há entre as imagens do filme, entre os personagens e as imagens, suspendendo a narração e revelando uma descrição. As imagens passam a ser reveladas em seu processo constituinte, no ponto de passagem do virtual para o atual, e vice-versa, de tal maneira que este é experimentado como um ponto de indiscernibilidade. A quebra dos clichês exerce aí um papel liberador que é também eminentemente político, funcionando como uma operação molecular que libera nossos corpos do que os condicionava numa impotência, num “menos”. É a imagem-tempo que quebra a imagem-clichê, revelando a imagem em sua composição cristalina, não só nas suas duas

faces – o atual e o virtual –, mas também na maneira como o tempo a atravessa em dois movimentos: escoando em direção ao futuro e conservando-se todo num passado –num sentido –, nos joga na experiência do aberto descrita por Bergson, isto é, na matéria escoante da imagemmovimento. Trata-se não apenas de pura materialidade, mas de toda a memória cósmica na qual estamos instalados, a potência virtual que a nossa própria memória não para de reprocessar. Assim, a quebra do clichê abre um horizonte múltiplo de sentidos virtuais e demanda de nós uma atividade. É por isso que Deleuze diz que o cinema moderno, quando realiza essa passagem, descobre a potência do falso e a identifica com a Vontade de Potência nietzschiana. O que ele faz de fato é encontrar o lugar-limite onde imagens e sentidos se constituem, sempre instigados por uma potência que é do próprio universo e que, no final das contas, vem a ser aquilo com o qual vai se encontrar a potência do sentido de uma imagem num determinado quadro, num determinado plano. Este é o fio que conduz a vitalidade de um sentido e de um objeto-imagem em particular ao próprio universo como um acontecimento e como matéria viva: o outro e mais profundo “extracampo” de que falamos. É a quebra dos clichês que permite que o cinema se redescubra como produtor de realidade, permitindo, na verdade, que nós nos descubramos neste lugar através do cinema. Neste sentido, o cinema nos ajuda a compreender como o problema da realidade não é colocado para Deleuze – inclusive no que ele tem, ontologicamente, de ético e político – em termos de uma hierarquia entre o verdadeiro e o falso que repercuta imediatamente numa hierarquia entre o bem e o mal, ou seja, uma hierarquia de ordem moral. Antes, o problema ético e político para Deleuze está imediatamente relacionado a uma questão de potência e impotência: de assumir completamente a capacidade autoprodutiva da vida de um lado, ali onde o ser é unívoco e se afirma como singularidade e diferença; e de resistir, detectar e desconstruir tudo o que se opõe a essa potência, isto é, que nos reduz a um “menos”, que nos aparta da imanência como um aberto, e nos torna impotentes e servis a uma realidade experimentada como dada, constituída e transcendente. Neste sentido, a transformação estética que representou a passagem do cinema clássico para o moderno – a descoberta da imagem-tempo, da capacidade do cinema “presentificar” o tempo e produzir realidades – teve, e sempre terá, uma função ética e política. Função ética e política que se constitui a partir de uma operação estética que engendra uma espécie de extraordinariedade. Esta é uma posição de quem não crê que o pensamento, aqui representado em duas de suas potências, arte (cinema) e filosofia, seja a primeira e a mais característica das experiências humanas. Para Deleuze, a experiência primeira e cotidiana do homem não é a do pensamento; ao contrário, para ele normalmente vivemos no hábito, na reprodução pura e simples, na moral e no clichê. É preciso, na verdade, forçar o pensar. Trata-se de uma espécie de antiiluminismo de Deleuze que, neste aspecto, o aproxima inclusive de Heidegger, para quem também a experiência primeira do homem não é a do pensamento, mas a da perplexidade diante da possibilidade de pensar. Talvez o primeiro movimento desta quebra de sentidos, que é também uma quebra de clichês que o cinema opera, seja a dessa perplexidade. O problema é estabelecer o quanto suportamos isso, ou seja, o quanto o limite

disso não seria a nossa própria loucura. Não é por acaso que Deleuze faz esta reflexão exatamente quando está falando das relações de Artaud com o cinema. Artaud que chegou a pensar um cinema cujo “choque sensorial” nos levaria a este lugar-limite, mas que rapidamente se desilude com os rumos que o cinema havia tomado. No limite do cinema, no entanto, o problema ético e político se recoloca diante das novas formas de imagens que constituirão novas formas de autômatos. Deleuze não se alonga muito sobre este tema no final do A Imagem-Tempo , mas se detém o suficiente para fazer uma distinção bastante importante entre os novos dispositivos produtores de imagem e o cinema. Tais dispositivos, na verdade, não seriam dotados de “exterioridade”. Deleuze se refere aí, segundo suas palavras, às “tele”, ao “vídeo” e às “imagens numéricas nascentes”, ⁷ referindo-se à informática ainda nos anos 1980, e constata que normalmente não nos encontramos diante delas, mas dentro delas, como parte de uma máquina onde constituímos apenas mais uma conexão ou uma peça. É como se estivéssemos todo o tempo conectados a um circuito, como se exercêssemos uma função que nos faria semelhantes a um fio que liga um DVD a um monitor, ou como se fôssemos um desses aparelhos conectados que podem, no máximo, produzir uma interferência nas imagens. Trata-se de um fenômeno que, junto com Guattari em Mil Platôs , ⁸ Deleuze identifica como o de uma “servidão maquínica” e que conviveria com a “antiga” forma de sujeição à máquina, isto é, a sujeição social do capitalismo industrial tão bem filmada por Chaplin. A servidão maquínica está presente, por exemplo, quando a televisão não para de confundir o sujeito do enunciado com o sujeito da enunciação, tentando nos convencer a todo momento que somos nós que comandamos e que somos os responsáveis pelos programas de TV: “caro telespectador, aqui você é quem decide...” De alguma maneira foi o que Bill Viola percebeu quando fez o seu Reverse Television , gravando com uma câmera de vídeo colocada sobre a TV dezenas de telespectadores no seu ato cotidiano, e mais ou menos patético, de ver televisão. Deleuze fala em “colocar um meio contra si mesmo” e cita as performances de Volf Wostel como exemplo dessa atitude típica da arte contemporânea. No entanto, já havíamos considerado a possibilidade das novas formas de produção de imagem poderem nos liberar do que o próprio cinema, como forma, tem de clichê. De fato, novas formas de imagem podem ir além da forma-cinema experimentada como um clichê em si mesma, posto que percebem o cinema como uma limitação sensório-motora em virtude, por exemplo, do formato tradicional da sala do cinema, carregado de um perspectivismo renascentista, e da herança de um teatro condicionado pelo palco italiano. Neste sentido, a experiência de Michael Snow, em A Região Central , também citada por Deleuze, pode ser tomada como modelo: a câmera capaz de girar para todos os lados e todas as direções, mesmo que o resultado fosse exibido numa tela plana tradicional. A superação dessa tela plana, que já havia sido tentada pela exibição em 180 graus, e depois em 360 graus, desde os primórdios do cinema, realiza-se na vídeo-instalação e, mais adiante, na maneira como os jogos virtuais e interativos contemporâneos nos lançam numa experiência sensório-motora inédita, passível de ser explorada para além das limitações que o caráter marcadamente de mercadoria destes produtos trazem.

Abrem-se aí, então, novas possibilidades para o que Deleuze chama de “Vontade de Arte”, mais uma variação da Vontade de Potência nietzschiana. Mas também se abre a possibilidade de uma nova automação no sentido negativo do termo, ou seja, um condicionamento sensório-motor semelhante ao que descrevemos como sendo o do clichê. Já discutimos como o cinema – assim como outras artes fizeram em relação a ele – pode ser uma resistência a um clichê de ritmo e a um condicionamento sensóriomotor que as novas tecnologias impõem, e que o próprio cinema impôs outrora, como observou Paul Virilio. Mas a relação da arte com as novas tecnologias não pode ser determinada apenas por alguma forma de negativismo nostálgico, como bem perceberam os artistas contemporâneos e mais especificamente os do movimento “fluxus” (como Wostel e Nam June Paik, por exemplo) na relação que estabeleceram com a TV e com o vídeo. Antes, como diz Deleuze, a própria invenção de uma nova técnica é uma demanda do que ele agora chama de Vontade de Arte. Assim, se é a própria Vontade de Arte que está sempre demandando novas técnicas, quando estas técnicas se voltam contra a Vontade de Arte, é ela mesma que deve ser convocada a agir. 1 DELUZE, Gilles. Francis Bacon, a Lógica da Sensação. 2 I. T., p. 342. 3 I. T., p. 344. 4 Ibidem. 5 DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. L’ Anti-Edipe. Capitalisme et Schizophrénie Paris: Les Editions de Minuit, 1973, p. 37. 6 ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-Político . São Paulo: Martins Fontes, 2003. Prefácio, § 3. 7 I. T., p. 346. 8 DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mille Plateaux . Capitalisme et Schizophrénie Paris: Les Editions de Minuit, 2009, p. 570. Bibliografia ADORNO, Theodor. Teoria Estética . São Paulo: Martins Fontes, 1989. _. Teoria da Cultura de Massa . São Paulo: Martins Fontes, 1988. AGOSTINHO. Confissões. O homem e o tempo. In: Os Pensadores . São Paulo: Editora Abril, 1973. ANTONIONI, RENOIR, ROSSELLINI, LANG, HAWKS, HITCHCOCK, BUÑUEL, WELLES, DREYER, BRESSON. A Política dos Autores. Entrevistas publicadas no Cahiers du Cinema. Lisboa: Assírio e Alvin, 1976. ARISTÓTELES . A Política . São Paulo: Martins Fontes, 1991. _. Poética . Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Editora Abril, 1984.

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Da imagem ao clichê do clichê à imagem

Deleuze, cinema e pensamento Rodrigo Guéron Da imagem ao clichê do clichê à imagem Deleuze, cinema e pensamento Rodrigo Guéron

© NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 - CEP 21042-235 - Rio de Janeiro, RJ Fone: (21) 3546-2838 [email protected] www.naueditora.com.br Editoras • Angela Moss e Simone Rodrigues Revisão de texto • Miro Figueiredo Editoração e projeto gráfico • Mariana Lobo Capa • Arte de Simone Rodrigues a partir de fotogramas dos filmes: A Dama de Shangai (Orson Welles), Sombras (John Cassavetes), Acossado (Godard), O Estado das Coisas (Win Wenders) e Tempo de Guerra (Godard) Conselho Editorial • Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara, Pedro Hussak, Vladimir Menezes Vieira CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

G962d Guéron, Rodrigo Da imagem ao clichê, do clichê à imagem : Deleuze, cinema e pensamento / Rodrigo Guéron. Rio de Janeiro : NAU Editora, 2011.

272 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8128-019-6 1. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 2. Cinema Filosofia. 3. Arte e filosofia. 4. Filosofia moderna. I. Título. 11-4129.                                   CDD: 791.4301                                          CDU: 791.01

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da Editora. Tiragem: 1000 exemplares Sumário Prefácio Introdução PARTE I: Cinema e racionalismo 1. O cinema “clássico”: o acontecimento da razão 2. Nietzsche: a impotência do pensamento • A condenação moral do corpo, do falso e da imagem 1. Bergson • O universo como metacinema • Percepção cinematográfica • Imagem-percepção, imagem-ação, imagem-afecção • Imagem-pulsão • Imagem-ação, realismo e sonho americano PARTE II: Do cinema “clássico” ao “moderno” 1. O neorrealismo e a quebra dos clichês • As imagens que atuam e falam

• Imagens óticas e sonoras puras (opsignos, sonsignos) e imagens-cristais • Deleuze, Peirce e o cinema: uma semiótica do movimento 1. Nietzsche e Bergson: moral e clichê 2. O nietzschianismo de Orson Welles • É possível julgar? De Fritz Lang a Orson Welles • Grande angulares barrocas: a representação direta do tempo • Potências do falso, character , dinheiro e cinema • De Welles a Resnais. Cidadão Kane e Hiroshima Mon Amour : do presente ao passado por um outro sentido PARTE III: Sobre o tempo e sobre os filmes 1. Um pouco mais sobre tempo e cinema • Cristais de tempo, lençóis do passado • Chronos e Aion • Santo Agostinho faz cinema: O Ano Passado em Marienbad • No Decorrer do Tempo e Alice nas Cidades : o bergsonismo de Win Wenders 1. Para além do fim da história • O Enigma de Kaspar Hauser: o herói contra o niilismo • Visconti: cristais em decomposição • De novo Wenders: melancolia hegeliana? • Glauber Rocha: a consciência deslocada • Palhaços de Fellini 1. Corpo, tempo e clichê • John Cassavetes: cinema dos corpos • Ainda os corpos da América: Larry Clark, Kimberly Peirce, Gus Van Sant, Terence Malick e Andy Warhol • Jean Luc Godard: corpos, clichês e gestus Conclusão Bibliografia

Prefácio Da imagem ao clichê, do clichê à imagem – Deleuze, cinema e pensamento traz para o leitor de língua portuguesa um fecundo diálogo entre filosofia e cinema. Nesse livro, o leitor certamente encontrará ainda não só uma análise rigorosa do pensamento de Deleuze sobre o cinema, mas também uma abordagem muito singular e própria da significação do clichê na imagem. Diante da perspectiva de uma perda de força da imagem, cristalizada e padronizada no clichê, Rodrigo Guéron faz uma genealogia do clichê, um inventário desse mecanismo de poder que, embora essencial para a constituição da imagem – porque condensa e reorganiza toda a estrutura do pensamento –, é uma operação de poder que paralisa a própria imagem impedindo-a de fazer frente à invenção de outras formas de imagens e consequentemente do próprio pensamento. Trata-se de um texto importante porque, mesmo distinguindo rigorosamente dois campos do pensamento, cinema e filosofia, promove um diálogo indispensável entre eles. Sempre fiel à filosofia de Deleuze e, principalmente, fiel ao seu próprio ponto de vista sobre o cinema, este livro vem enriquecer os debates sobre a filosofia do cinema. Com um texto bem elaborado e de agradável leitura, a interpretação de Rodrigo Guéron é a explicitação da tese de que o clichê tem uma função de poder, nadifica a imagem, enfraquece a sua força artística. Embora, como observa Deleuze, o cinema nunca tenha deixado de se chocar contra os poderes que contrariam sua finalidade estética, o clichê, como bem mostra Rodrigo, é um mecanismo que desloca a imagem de sua função estética para transformá-la em imagem-lei, imagem-moral, perdendo com isso o jogo da criação e destruição que caracteriza o fazer da imagem. O predomínio da imagem congelada no clichê adquire uma função de controle. Para sustentar essa tese, Rodrigo percorre um caminho criativo, discute o cinema desde suas origens no projeto racionalista e aborda com muito cuidado os dois tipos de cinema, o clássico e o moderno. Todo esse caminho é traçado para trazer, com muita pertinência, uma nova função da imagem, uma nova política, uma nova finalidade para a arte. Desse modo o cinema deixa de estar ligado a um “pensamento triunfante e coletivo”, para dar lugar a um pensamento arriscado e singular que enfrenta a nadificação da imagem, afronta o seu esvaziamento e, em prol de novas combinações, abre-o para as revelações poderosas de outras forças e outros signos. E tudo isso com a finalidade de potencializar o pensamento e a vida. Rosa Maria Dias Introdução Escrever sobre cinema e filosofia, filosofia e cinema, e fazê-lo a partir de um conceito que anunciamos logo no título deste livro, o clichê , tem aqui um motivo que é para nós tão filosófico quanto político. Motivo este que nos leva ao cerne da contemporaneidade, de um determinado diagnóstico que dela se faz e do qual sempre desconfiamos, qual seja, aquele que afirma que

viveríamos numa “civilização da imagem”, que a imagem teria substituído a palavra, e que esta seria uma das principais explicações do fato de vivermos numa época em que as condições para o pensamento estariam esvaziadas. Trata-se, portanto, de um diagnóstico que coloca como os grandes vilões da contemporaneidade não só o cinema, mas também todos os mecanismos de produção de imagens – e que aparece como uma espécie de senso comum, de doxa , de opinião rasteira e preguiçosa que prolifera exatamente no ambiente dito “intelectual” e acadêmico. Uma frase, no entanto, meio em tom de provocação, encontrada logo no início do segundo livro de Gilles Deleuze sobre cinema – A Imagem-Tempo –, contemplou de imediato, de forma quase que assustadoramente perfeita, a desconfiança que tínhamos (e temos) em relação a esta posição. Assim, aos que tomam a imagem como a grande inimiga do pensamento, Deleuze instiga: Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê (...) ¹ Somos então levados a pensar que é o clichê – como algo que pode ou tende a acontecer com a imagem –, e não a imagem ela mesma, que funcionaria como uma espécie de agente esvaziador da potência do pensamento. Este é, em primeiro lugar, um pressuposto que nos permitiu escrever um trabalho de filosofia em torno do cinema, para além de todas as condenações morais e rebaixamentos ontológicos que a imagem teve na história da filosofia. Mas também é uma questão que tanto aparece no coração do cinema, quanto coloca o cinema no coração da nossa experiência da realidade. De fato, o cinema não só se apresentará como um extraordinário dispositivo produtor de clichês, porque é antes um dispositivo produtor de imagens, mas também, e justamente por isso, será um extraordinário mecanismo capaz de detectar, desconstruir e superar os clichês como um estágio de impotência da imagem e, consequentemente, de impotência do pensamento. ² Mas tanto como conceito filosófico, quanto como questão que diz respeito ao cinema – divisão que mencionamos apenas provisoriamente –, não existem grandes investigações sobre o clichê. É verdade que não é a primeira vez que este problema é abordado, nem que o conceito é definido para além de um uso mais ou menos cotidiano. O próprio Deleuze fala sobre o clichê, no seu livro sobre o pintor Fancis Bacon, chamando a nossa atenção para o fato que a pintura moderna ter que lidar com todo o tipo de fotos e clichês que se instalariam sobre a tela antes mesmo de o pintor começar o seu trabalho. ³ Já nos seus dois livros sobre cinema, A Imagem-Movimento e A ImagemTempo , também chamados, respectivamente, de “cinema 1” e “cinema 2”, Deleuze vai mencionar o conceito clichê pela primeira vez no último capítulo do primeiro livro, exatamente quando está descrevendo o que entende ser a crise do cinema “clássico”. Mas só vai definir o conceito propriamente dito no início do seu segundo livro, A Imagem- Tempo , dando continuidade ao último capítulo do livro anterior e descrevendo a passagem do “cinema clássico” para o “cinema moderno”. Aí estará a definição de clichê que vamos utilizar como ponto de partida. Esta nos parece filosoficamente instigante, como são também instigantes as reflexões sobre o tema que o filósofo faz nas quatro ou cinco páginas que se seguem à definição do

conceito. Mas, a partir de então, Deleuze não se refere mais de maneira analítica ao clichê. Este é um fato importante já que indica a relação que teremos com Deleuze neste livro. Em primeiro lugar, sabemos que nenhum filósofo chegou sequer perto de desenvolver um estudo aprofundado do cinema como Deleuze o fez, empreendendo uma detalhada “taxonomia” das imagens cinematográficas, ou seja, uma detalhada classificação destas. Por isso a questão que aqui apresentamos só pôde aparecer a partir do pensamento de Deleuze. Além disso, ela será esclarecida à medida que inevitavelmente nos fará voltar a diversos trechos dos estudos do filósofo francês em torno do cinema, como também a alguns trechos de outras de suas obras de filosofia. Ou seja, a concepção de cinema, a partir de uma concepção de realidade, com a qual trabalhamos é, sem dúvida, a de Gilles Deleuze. Mas está inevitavelmente articulada ao pensamento de outros autores – notadamente Henri Bergson e Friedrich Nietzsche, mas não apenas – aos quais Deleuze se refere e nos faz referir. Por isso este livro também pretende esclarecer e ensinar pelo menos os fundamentos do revolucionário pensamento que Deleuze desenvolveu não apenas sobre, mas também com e a partir do cinema. Mas os dois livros de Deleuze sobre o cinema também são um acesso possível ao pensamento deste filósofo. Para ele, cinema e realidade não são duas instâncias distintas. O cinema é, na verdade, descrito como uma possibilidade, uma potência do real. Isso não só porque, no pensamento de Deleuze, o virtual é compreendido como uma potência do ser, mas também porque o estudo que ele faz do pensamento de Henri Bergson nos apresenta todo o universo como uma espécie de “metacinema”. É neste universo, ainda a partir de Bergson, que o mecanismo da percepção e do pensamento humano também é descrito num processo que seria “cinematográfico”, isto é, num funcionamento bastante semelhante ao da máquina cinema. Neste sentido, o pensamento de Deleuze aqui estudado nos permite ir além de suas palavras e definições: ele nos faz pensar, nos abre caminhos e nos conduz explícita ou implicitamente a outros autores; bem como a outros filmes além daqueles que ele menciona. Mais especificamente no que se refere ao conceito de clichê, na maneira como ele ajuda a compreender o cinema e o cinema a compreendê-lo, usamos a definição de Deleuze como base para ir além. Chegaremos então a uma definição de clichê como uma espécie de imagem-lei, de imagem-moral, que age como um mecanismo padronizador e determinador de valor, e veremos o cinema num jogo de criálas e desconstruí-las. Um jogo, portanto, em que o cinema tanto se afirma como um dispositivo de poder que limita e esvazia o pensamento, quanto se afirma como uma notável potência do pensamento na medida em que nos ajuda a identificar os problemas da realidade e da vida e a produzir novas possibilidades para estas. Mas já estamos nos adiantando demais para o que deve ser apenas uma introdução. Vejamos antes a definição que Gilles Deleuze faz do clichê, referência e ponto de partida para o nosso trabalho.

Temos esquemas para nos esquivarmos quando é desagradável demais, para nos inspirar resignação quando nos é horrível, nos fazer assimilar quando é belo demais. Notemos a este respeito que mesmo as metáforas são esquivas sensório-motoras, e nos inspiram algo a dizer quando já não se sabe o que fazer: são esquemas particulares, de natureza afetiva. Ora, isso é um clichê. Um clichê é uma imagem sensório-motora da coisa. ⁴ Notemos que aqui, ao definir o clichê, Deleuze, mesmo estando em pleno estudo filosófico sobre o cinema, em nenhum momento menciona o próprio cinema. Ou seja, o clichê é definido como algo que é parte fundamental da nossa experiência cotidiana do real – constitui inevitavelmente esta –, e não algo que diz respeito exclusivamente ao cinema e a outros mecanismos de produção de imagens. É por isso que este livro não pretende apresentar um problema que é exclusivo do cinema, sobretudo porque não acreditamos que este exista. Trata-se, no entanto de um problema que aparece no cinema de forma privilegiada, quer dizer, não é possível compreender o cinema como uma potência do real sem passar pela questão do clichê. Em outros termos: não compreendemos o cinema como uma linguagem fechada em si mesma e que deveria ser analisada enquanto tal. Ao contrário, insistindo no que afirmamos acima: só nos parece possível estudar profundamente o cinema se o compreendemos como algo que faz a vida passar por ele, e que passa pela vida. Numa reflexão tipicamente deleuziana, diríamos que o cinema é uma possibilidade virtual de um mundo atual (o que chamamos “real”); uma possibilidade que deseja, e tantas vezes consegue, se atualizar: se “tornar real”. Assim, como um livro que se constrói num diálogo entre filosofia e cinema, cinema e filosofia, nos pareceu conveniente começá-lo por uma espécie de “genealogia”, mesmo que resumida, do cinema. E “genealogia” no sentido que Nietzsche deu ao termo, o que significa dizer que faremos, logo na primeira parte do livro, um breve inventário dos valores filosóficos, e do projeto filosófico-histórico, que levaram a civilização ocidental a buscar e a inventar um dispositivo como o cinema. Trata-se de uma investigação que nos levará à maneira como André Bazin e, mais detalhadamente, Paul Virilio descrevem as origens do cinema. Mas, provocado pelo pensamento destes autores, somado mais uma vez ao de Deleuze, a nossa genealogia nos ajudará a descobrir o cinema como um dos pontos mais altos de um processo histórico que Nietzsche vai identificar como o da “vontade de verdade” ou o da busca da “racionalidade a qualquer preço”. Veremos que é precisamente por ser quase que uma consumação final desse processo, que concebe a si mesmo teleologicamente, que o cinema será na sua origem caracterizado por Paul Virilio como a realização do “pseudoacontecimento da razão na história” ⁵ . É como se o cinema fosse capaz de promover uma espécie de efetivação, ou mesmo um aparecimento empírico, da razão. Seria algo semelhante ao que veremos Foucault chamar, talvez com alguma ironia, de “mágica da verdade”. Em suma, a invenção do cinema surge ao mesmo tempo como o resultado, e um dos mais importantes instrumentos, de consumação de um projeto racionalista que está se transformando, à altura do século XIX, numa espécie de “misticismo positivista e tecnicista”, mais uma vez segundo as palavras de Virilio.

Deleuze, no entanto, acha que o cinema vai além desse projeto no coração do qual ele fora criado. Quer dizer, o filósofo francês vê que a crise do projeto racionalista do Ocidente acaba por ser percebida também no cinema, um de seus maiores orgulhos e realizações. Mais do que isso, Deleuze acha que o cinema mesmo torna-se um agente tanto de esgotamento quanto de superação desse projeto. É precisamente nesse momento que o problema do clichê aparece para nós. Ou seja, as imagens dos filmes estão perdendo a força que tinham, estão virando clichês, exatamente porque o projeto racionalista, em que nasceu o cinema, está se esgotando. Isso acontece porque o cinema, a partir de certo momento, já não pode mais nos fazer acreditar que está nos apresentando a verdade empírica, ou potencializando a nossa racionalidade ao máximo, ou ainda contando uma história que, mesmo sendo ficção, aspira a um final em que exista uma verdade-filme em oposição a uma mentira-filme . É por isso que, ao definir clichê, e ao afirmar que determinada maneira de se produzir cinema se transformara em clichê, Deleuze quer nos indicar que não é nem a imagem em si mesma, nem a imagem cinematográfica, mas algo em que elas se transformam ou podem se transformar, que são sintomas e agentes do esvaziamento de nossa potência de pensar. O filósofo nos levará a pensar que, se há uma crise e uma descrença da imagem, descrendo-se da sua capacidade tanto de reproduzir o real quanto de potencializar a nossa capacidade racional, é porque antes há uma crise em relação a esta possibilidade no próprio pensamento. Sabemos que, para Nietzsche, essa crise é gerada, paradoxalmente, pelos valores mesmos que foram fundados pela própria filosofia e dela foram fundadores, e que para ela se mantiveram durante muito tempo como, digamos assim, uma força hegemônica. Esses valores se resumem numa crença na razão tomada como um transcendente, isto é, tomada como uma instância superior à vida e à qual a vida deveria se submeter. Em outros termos: a crença na razão como um modo de ser da própria moral. Esse fenômeno, que para Nietzsche se desdobra num processo ao mesmo tempo existencial e sócio-histórico, por ele identificado como “niilismo europeu”, está absolutamente presente neste diagnóstico que aponta a imagem – a “civilização da imagem” – como uma inimiga do pensamento. Neste sentido, o filósofo tcheco Vilém Flusser nos mostra como a valorização da escrita como instância privilegiada do logos , que tem suas origens tanto entre os profetas judeus quanto nos primeiros filósofos pré-socráticos, traduziu-se num movimento que buscava impor a lógica de um processo às imagens. Flusser percebe aí um empenho histórico em submeter e subjugar as imagens. Empenho este que, segundo ele, fracassara; ou seja, a própria escrita nunca deixou de engendrar as imagens e por elas ser engendrada, alterandose também desde as imagens, em vez de simplesmente submetê-las como inicialmente fora pretendido.

É por isso que só podemos estudar cinema à medida que encontramos uma filosofia que está se descobrindo como arte, isto é, como atividade criadora de realidade. E, além disso, como até mesmo Merleau-Ponty disse em relação a sua fenomenologia, já antes em Nietzsche, e ainda mais notavelmente em Bergson, é na verdade a filosofia e o pensamento que estão se descobrindo como “cinematográficos”. Mas antes mesmo da valorização da ilusão – do falso e do virtual – e da imagem, será para nós fundamental compreender o corpo – e, portanto, a sensibilidade – como lugar de origem da experiência de realidade. O que Nietzsche pioneiramente percebe é que a racionalidade não pode ser vista como uma força que se opõe ao instinto; ao contrário, ela se produz desde o nosso instinto: o instinto do animal homem. É este que “precisou travar a luta pela sobrevivência com o intelecto porque a ele não foi dado garras e dentes”. ⁶ Ou seja, para não serem tragados pelo implacável devir da natureza, nossos ancestrais – como nós ainda hoje – precisaram traduzir e ordenar o caótico movimento do cosmos em esquemas, formas, imagens, palavras, conceitos e leis. Esta é, de forma bastante resumida, a origem de toda a experiência de realidade para Nietzsche. Quer dizer, o real é para ele algo que criamos a partir de uma necessidade física, estética; enfim, algo que se constrói desde uma experiência da aisthesis : da sensibilidade. Nietzsche vai definir esse processo como o de um “impulso nervoso que transformamos em imagem, e uma imagem que transformamos em som”. ⁷ Ou seja, antes mesmo de chegarmos a Bergson, de cujo sistema filosófico Deleuze constrói a sua definição de clichê, já podemos ver que desde Nietzsche a experiência do real nasce como imagem e, mais ainda, como algo que vamos chamar bergsonianamente de um “esquema sensóriomotor”. Por esse motivo, à medida que entrarmos em contato com o pensamento de Nietzsche, será necessário conhecermos mais detalhadamente o pensamento de Bergson, e vice-versa; sobretudo porque Deleuze pensa o cinema num universo – num cosmos – bergsoniano. É o que vamos perceber já nos estudos que faremos do livro Matéria e Memória , de Bergson, mas sobretudo nos estudos do capítulo “O Mecanismo Cinematográfico do Pensamento”, do livro A Evolução Criadora . E aqui Deleuze nos chama a atenção para o fato de Bergson, apesar de ter descrito o mecanismo do pensamento e da percepção como sendo literalmente “cinematográfico”, não ver grande importância no cinema. Apesar disso, Deleuze afirma que vai utilizar o sistema filosófico bergsoniano para analisar o cinema. Descobriremos então em Bergson uma valorização da imagem ainda mais efetiva que em Nietzsche, e absolutamente inédita em toda a história da filosofia. A imagem, que em Platão não tinha quase nenhuma consistência ontológica, será para Bergson o modo de ser de toda a experiência de realidade. Ele nos ensinará que vivemos num universo de partes heterogêneas permanentemente em movimento, e que a percepção nascerá da relação e do encontro dessas partes. A percepção só acontecerá, portanto, se existe movimento, se se produz de um movimento e se produz um movimento. O que aí temos é a experiência da matéria – dos objetos em contato conosco – gerando um impulso nervoso em nós: o movimento dos corpos do cosmos gerando movimento em nosso corpo. Esse impulso

nervoso é sempre uma parte da matéria. Por isso a experiência mais material e objetiva que podemos ter da realidade é, para Bergson, a de uma imagem: de um objeto-imagem. E o universo todo será ele mesmo, originalmente, imagem-movimento. Mas já estamos adiantando, sem que possamos fundamentar e esclarecer melhor, algumas de nossas descobertas. Por ora, o que nos cabe dizer é que será a busca da caracterização do clichê que exigirá a aproximação e o diálogo que faremos entre Bergson e Nietzsche. Esta aproximação virá exatamente de uma importante semelhança que indicaremos existir entre o clichê e a moral nietzschiana. De fato, vimos Deleuze definir o clichê como um esquema para anestesiar parcialmente as mais diversas experiências de realidades que não podemos suportar diariamente na plenitude do que elas podem ter tanto de terríveis e geradoras de sofrimento, quanto de deslumbrantes e geradoras de prazer. Ou seja, o clichê como algo que surge desde o corpo: algo que o corpo cria a partir de uma necessidade vital. Assim, da mesma maneira que a moral segundo Nietzsche, o clichê parece encerrar em si mesmo dois aspectos que, pelo menos a princípio, parecem contraditórios. Observando a definição de Deleuze, concluiremos imediatamente que a vida seria insuportável, impossível mesmo, sem o clichê. É o mesmo que percebemos na genealogia da moral feita por Nietzsche, no livro que leva este título. Parece que também neste caso não poderíamos observar o homem e a sua civilização sem esse processo de introjeção dos instintos – fundador da memória, da consciência e da linguagem – que Nietzsche nos descreve como sendo o da origem da moral. Em outras palavras: a genealogia da moral é na verdade a genealogia da própria civilização. Mas Nietzsche nos mostra também como algo acontece nesse processo, fazendo com que ele acabe por se voltar contra nós mesmos, podendo levar até mesmo ao nosso aniquilamento. Da mesma maneira veremos que o cinema, lá pelos idos da Segunda Guerra Mundial, embora estivesse longe de viver algum tipo de aniquilamento, teve a sua força inventiva comprometida exatamente à medida que os originais e vigorosos projetos das primeiras escolas de cinema transformaram-se em clichês. E tal processo, veremos ainda, se efetivou num triunfo de uma espécie de fórmula moral para os filmes. Uma fórmula que se desenvolveu na proporção em que esses filmes se transformaram numa notável máquina de propaganda dos estados, e do capital, mobilizados pelos dois lados do segundo grande conflito mundial. É aí que se dá a crise do cinema chamado por Deleuze de “clássico”. Temos claro, no entanto, que o enfraquecimento da força artística, inventiva, das imagens do cinema nas imagens-clichês, não é uma característica do cinema clássico e de seus grandes autores e escolas, mas daquilo em que o cinema clássico se transformou. Antes, veremos a força dessas escolas como talvez o último momento vigoroso do projeto racionalista/iluminista do Ocidente. Um vigor que acontece já depois que Nietzsche havia anunciado a derrocada da crença na razão, mas que talvez tenha podido ainda acontecer pela própria originalidade da experiência do cinema.

O cinema será inicialmente, então, quase que a consumação máxima do projeto racionalista do Ocidente na maneira como ele se reinventa no Renascimento e ganha configurações próprias no Iluminismo. Assim, além do cinema apresentado como o grande instrumento para revelar, “fazer aparecer”, a verdade, a “coisa em si”, veremos também escolas cinematográficas que buscavam a experiência do sublime à maneira iluminista como Kant a concebeu. Ou seja, escolas e autores que acreditavam que o cinema, como um autômato do movimento, geraria no nosso cérebro tal impacto sensório-motor, que potencializaria ao máximo o autômato do pensamento que teríamos em nós: a nossa essência racional. Veremos também um cinema que se constituía, era “montado”, num processo que seria fenomenologicamente o do próprio real, ou seja, a montagem dos filmes concebida como uma colisão dialética de forças opostas que se subsumiriam no próprio sentido da história. Assim o concebeu Eisenstein, numa compreensão hegeliano-marxista do cinema que, justamente por revelar e intervir no processo da produção da realidade e da história, deveria conduzir o pensamento, e as massas, à liberdade da desalienação. Veremos ainda o cinema buscando construir histórias independentes, lógicas, que aspiram ao verídico e que, de forma geral, têm como drama central uma “verdade-filme” se opondo a uma “mentira-filme”. Trata-se, portanto, de um binômio racional que é sempre também um binômio moral, movimentando histórias que aspiravam a um final fechado em que os personagens e situações eram “racionalmente” julgados, condenados, salvos, redimidos ou absolvidos. Em outros termos: a fábula racionalista do Ocidente reproduzida, em suas variações, na estrutura dos filmes “clássicos” de ficção. Em segundo lugar, de outro lado, o cinema será também sintoma e agente da crise da crença do Ocidente na razão e na possibilidade de encontrar empiricamente a verdade. Veremos que essa crise se anunciará exatamente quando as imagens dos filmes “clássicos”, outrora potentes, começarem a se transformar em clichês. O que começa a se insinuar aí, então, é uma “passagem”; passagem esta que será o tema da segunda parte deste livro. Na verdade, é compreendendo o que determina essa passagem e essa transformação no cinema que poderemos compreender por que Deleuze usa esta classificação, qual seja, a que divide o cinema entre “clássico” e “moderno”; respectivamente o cinema da imagem-movimento e o cinema da imagem-tempo. É verdade que o próprio autor afirma algumas vezes que esta classificação é um tanto genérica, e que podemos encontrar características de filmes “clássicos” entre os filmes “modernos” e vice-versa; por isso, inclusive, a mencionamos muitas vezes entre aspas. Mas, mesmo assim, é fundamental que possamos compreender o que ela significa. Esta passagem, que teria acontecido por volta da Segunda Guerra Mundial, marca também a passagem da primeira para a segunda obra de Deleuze sobre cinema. Nela, o autor nos indica que o cinema está se descobrindo como uma potência, como uma possibilidade, que até então lhe era parcialmente velada – com exceção do cineasta japonês Ozu, que desde sempre fez filmes de imagemtempo. Esta potência do cinema pode ser resumidamente definida pela capacidade que os diretores descobrem de, em seus filmes, produzirem uma “representação direta do tempo”.

Para isso, veremos como o tempo se representava no cinema clássico – o cinema da imagem-movimento –, e como ele passará a ser representado no cinema “moderno” – o cinema da imagem-tempo. Neste momento, o cinema se tornará capaz de revelar e desconstruir os clichês. E isso acontecerá, sobretudo, porque vamos assistir a um rompimento do vínculo sensóriomotor que havia no cinema “clássico” entre a percepção e a ação e entre os personagens e as imagens dos filmes. Antes, no cinema da imagem-movimento, as imagens apareciam nos filmes em função da narrativa da história: da trajetória percorrida pelos personagens dos filmes. Agora, no cinema da imagem-tempo, as imagens parecem ter vida própria, rompem a independência das histórias que se pretendiam fechadas, e trazem outros sentidos possíveis. Isso significa que as imagens agora “falam”, como se fossem também personagens dos filmes, interrompendo as narrações e liberando a partir de si descrições, pensamentos e leituras. Já os personagens propriamente ditos têm a sua subjetividade enfraquecida e perambulam como videntes por entre tais imagens, que desviam, ou mesmo impedem, o que seria a trajetória de uma história “clássica”. A imagem-tempo será então uma imagem fora do sistema percepção-ação, aparecendo num contexto em que a diferença entre imaginário e realidade, virtual e atual, será muitas vezes indiscernível. É o que veremos de maneira pioneira no neorrealismo italiano. Nesse ponto, traremos mais efetivamente os filmes para serem analisados. Em primeiro lugar, encontraremos o próprio neorrealismo italiano, sobretudo o segundo dos cinco episódios do belíssimo filme de Rossellini , Paisá. Aí veremos a quebra do que chamaremos de “clichês de guerra”, ou seja, dos clichês dos filmes de guerra produzidos num momento em que tanto na Alemanha nazista, quanto em Hollywood, observamos uma grande identidade estética entre a publicidade privada, estatal e os filmes de ficção. Em seguida, iremos àquele cineasta que é, para Deleuze, junto com o neorrealismo, um dos grandes agentes da descoberta do cinema “moderno”, desta vez nos Estados Unidos: Orson Welles. Em Welles, descobriremos um tipo de “nietzschianismo”. Da mesma forma que no neorrealismo veremos as imagens que “falam” – imagens-signos que são como personagens do filme –, veremos aparecer nos filmes de Welles uma questão que por si só será responsável por abrir a história, qual seja, a pergunta sobre a possibilidade do julgamento moral. Descobriremos ainda nos filmes de Welles a possibilidade da representação de vários sentidos possíveis numa mesma imagem, ou seja, exatamente o que Deleuze define como a representação direta do tempo no cinema. É o que o filósofo vê nas imagens de grande profundidade de campo do estadunidense, feitas pelas lentes grande angulares, e que serão relacionadas à arte barroca. Assim, a questão do tempo, na filosofia e no cinema, deverá merecer mais uma análise. Visitaremos algumas concepções clássicas e modernas do tempo para descobrir como a filosofia chegou a compreendê-lo. Veremos em seguida que o cinema “moderno” descobriu o que alguns filósofos, por distintos caminhos, tinham descrito ou, no mínimo, intuído: um tempo que se insurge sobre o movimento e não se conforma em ser representado apenas por intermédio deste. Evocaremos mais uma vez Bergson, desta vez

pensando o tempo, e o encontraremos especialmente em dois filmes de Win Wenders: Alice nas Cidades e No Decorrer do Tempo . Encontraremos até, em Ano Passado em Marienbad , de Alain Resnais e Robert Grillet, a experiência de representar o tempo no cinema à maneira como ele foi concebido por Santo Agostinho. Mais uma vez encontraremos um grande diálogo possível entre cinema e filosofia. O que um nos apresenta por imagens, o outro descobre por meio de conceitos. E entre tantas descobertas, está a de que o real não pode ser reproduzido em si mesmo, não pode ser representado tal qual é – não há mimesis –, ele tem de ser reinventado, recriado. Os cineastas começam a perceber que é saindo em busca de um lugar-limite, onde os sentidos se fecham num mundo sem saída para forçá-los a se abrir em outras perspectivas, que os clichês são desconstruídos. É ali, portanto, onde a necessidade tão existencial quanto física de constituir novos sentidos se impõe, que encontrarão a potência, a força de seus filmes. Força que será identificada por Deleuze no cinema como a “Potência do Falso” e articulada ao que Nietzsche chamou de “Vontade de Potência”. O próprio Orson Welles vai nos dizer que avalia o que ele chama de character de seus personagens pela capacidade que eles têm de agir, de criar, diante da morte. Trata-se de uma concepção de homem virtuoso muito próxima da de Nietzsche: um homem criador de sentidos, um homem com espírito de artista. Ela está para além de uma definição de artista como uma especialidade ou uma “profissão”. Na verdade, ela afirma o próprio filósofo, e o homem de ciência de uma maneira geral, como artista: como construtores e arquitetos de sentido e de realidade. Poderemos então ver uma identidade entre o artista e o filósofo se concebermos o sentido da atividade deste último não como majoritariamente se faz, mas como Deleuze propôs: a filosofia como uma atividade de criar conceitos. Ambos, filósofos e cineastas, estarão numa situação-limite – dramática e existencial – semelhante à que encontraremos em diversos personagens do cinema da imagem-tempo. Por isso teremos um trecho do nosso livro especialmente dedicado, de um lado, a essas figuras-forças do niilismo como elas aparecem no cinema e, de outro, a personagens que chamaremos de “ontológicos”, uma vez que se opõem e/ou se medem com essas forças, à medida que vivem existencialmente a necessidade, o desejo e o drama de ter que reinventar histórias e sentidos. Kaspar Hauser, por exemplo, do filme de Werner Herzog, é um desses personagens. Mas o que de fato atravessará todo o nosso trabalho será a mais importante das articulações entre Bergson e Nietzsche que, instigados pelo tema, fomos levados a fazer: a aproximação da maneira como Deleuze, bergsonianamente, descreve a experiência do clichê e o modo como Nietzsche descreve o nascimento da moral. Pretendemos mostrar que o clichê será uma espécie de imagem-lei ou imagem-moral: imagem que vai funcionar como um índice determinador e padronizador de valor. Mostraremos ainda que, como expressão da moral, o clichê é também uma operação de poder: poder que opera à medida que se instala nos corpos, não só paralizando-os e atemorizando-os, mas fazendo-os perceber, sentir, agir, desejar, imaginar e sonhar dentro de determinados limites e direções.

Veremos então que o clichê será também uma história organizada a partir de uma lei estática, transcendente e a priori – a lei da história – que sempre deverá submetê-la. Em outras palavras: o clichê estará numa história teleologicamente organizada num processo com vistas a um “grande fim” racional. Grande fim este que, por exemplo, o personagem do poeta militante Paulo Martins, em Terra em Transe, de Glauber Rocha, descobrirá ser impossível de se realizar no Brasil, como em qualquer parte. Presos num clichê – que neste caso será semelhante ao que chamaremos de “cristal sintético” de tempo – é como encontraremos também alguns personagens de Visconti. Na verdade, a degradação desses personagens é a degradação deste cristal que se quer sintético, que quer se manter preso a velhos sentidos que já não servem mais à vida: estão em decomposição. É o que acontece, por exemplo, com o músico ultraformalista, racional a ponto de negar a música como arte, e que se degrada junto com a peste que destrói a cidade em Morte em Veneza. A vida, por outro lado, como potência incontrolável e perigosa, vai arrombar a porta do velho professor aposentado que só vivia para o passado em Violência e Paixão , do mesmo diretor. Na verdade, esta é a tensão da antiarte com a arte, do niilismo com a potência criadora de sentido, pensamento e vida. É neste lugar-limite, que precisamos compreender o que é um clichê, para que, em seguida, possamos desconstruí-lo e superá-lo. É neste sentido que o cinema moderno e suas imagens, num movimento exatamente contrário ao equivocado diagnóstico que responsabiliza a imagem pelos males da contemporaneidade, começam a abrir novas possibilidades para o pensamento. A originalidade de suas imagens passa a potencializar novas possibilidades de sentido para a própria filosofia, mas, sobretudo, novos sentidos para a vida. A identidade entre a estrutura do real e a estrutura do cinema, que descobriremos a partir de Deleuze, nos abrirá a possibilidade de entender o cinema como uma máquina que revela os problemas do mundo e é capaz de liberar novas possibilidades para este mundo. Por isso, estudar e buscar entender o cinema só tem sentido como parte de um movimento de estudar e buscar entender a própria vida. É o que convidamos o leitor a fazer. 1   L’Image-Temps (abreviado como I. T. nas próximas referências), p. 32. 2 I. T., p. 218. Deleuze usa aqui tanto o termo impuissance quanto impouvoir . Ambos estão bem próximos um do outro e se referem à mesma questão; o primeiro está no texto corrente; o segundo, destacado entre aspas. 3 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Logique de la Sensation . Paris: Editions du Seuil, 2002, p. 19. Para Deleuze, é como se já não existisse uma superfície branca nas telas diante dos quais os pintores modernos se encontram. Pintar, neste caso, seria reencontrar uma potência instauradora de sentidos das imagens em meio a tantos clichês, caracterizando-se então por uma espécie de “menos”. Ou seja, pintar seria tirar das telas os seus excessos. Para Bacon, estes teriam uma relação direta com as fotos que seriam, segundo ele, “isso que o homem moderno vê”. 4 I. T., p. 31

5 VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema . São Paulo: Editora Página Aberta, 1993. 6 NIETZSCHE, Friedrich. “Sobre Verdade e Mentira num Sentido ExtraMoral”. In: Os Pensadores . São Paulo: Abril Cultural, 1974. 7 Ibidem. PARTE I Cinema e racionalismo 1. O“cinema clássico”: o acontecimento da razão O cinema – a técnica cinema – surgiu, segundo André Bazin, como uma das últimas realizações de um objetivo perseguido desde o Renascimento de encontrar uma técnica para reproduzir perfeitamente o real, algo que nos mostrasse este real tal qual ele é e sempre foi em si mesmo. Para que esta procurada técnica tivesse sucesso, ela deveria tentar eliminar a “perigosa” intermediação do homem, de sua subjetividade e de suas paixões, buscando sempre um tom austero e neutro: correto método da busca da verdade. É como se a câmera do cinema pudesse exercer finalmente a função do observador neutro que a ciência, havia quatro séculos, obcecadamente buscava. Para isso, ela deveria ocupar um lugar estático, sem movimento, desde onde todo o movimento do real poderia ser revelado, mostrado e filmado na sua essencial e completa constituição empírica. Mas é claro que designar o lugar da câmera do cinema como a de um “ lugar sem movimento” parece, já de início, estranho. Sabemos que esta, além de filmar o movimento, move-se para filmar e filma porque se move, quer dizer, o motor girando numa vibração nervosa a 24 quadros (antes a 18) por segundo. Lembremo-nos, no entanto, dos primeiros filmes com câmera parada e cortes imóveis; veremos então que acreditar que o cinema poderia abrigar o lugar sem movimento que revelaria a essência do real tinha algum sentido. André Bazin descreve esse processo num texto denominado “Mito do Cinema Total” ¹ , em que o próprio cinema é mostrado como um desdobramento do mito racionalista europeu moderno do observador neutro. Nesse texto, o cinema é descrito como um dos mais altos momentos de um processo em que o Ocidente e a sua ciência se empenharam em buscar um mecanismo de reprodução do real em si mesmo. E, no caso do cinema, de reprodução automática do real. Esse mecanismo seria, ao mesmo tempo, como um olho e um espelho perfeito, onde a estrutura da realidade pudesse ser empiricamente mostrada tal qual ela realmente seria. É curioso, uma vez que já fazia mais de um século que Kant nos mostrara que a “coisa em si” jamais seria conhecida pela razão, pela subjetividade humana – embora, ainda segundo ele, pudesse ser intuída –, mas o Ocidente insistia em

anunciar aos quatro ventos a apresentação empírica da verdade; como tantos, ainda hoje, o fazem. É curioso também que a arte moderna abandonava, pouco antes do surgimento do cinema, completamente a ideia da mimesis , rejeitando uma série de instrumentos que os pintores usavam desde o Renascimento, além do tradicional método da “perspectiva geométrica”, para projetar o “espaço real” na tela e obter o que seria a sua reprodução perfeita. Mas o cinema, de início, radicalizou a busca da mimesis; por isso, talvez, que os artistas modernos só tenham se interessado pelo cinema na sua segunda década – além, é claro, da desconfiança de boa parte do modernismo em relação aos avanços tecnológicos. Também Paul Virilio identifica um mito , ou uma mistificação nas origens do cinema. No seu Guerra e Cinema ele diz que o cinema surge como uma das principais realizações de uma época em que se constrói um “ materialismo místico e cientificista ”. ² Ou seja, o cinema é fundamental para ajudar a efetivar os prometidos milagres da ciência, aqui realizados pela técnica. Segundo Virilio, o cinema seria fundamental para “ fazer acontecer ”, “ mostrar ” o “ pseudoacontecimento da razão na história ”. Quer dizer, tanto Virilio quanto Bazin nos levam a pensar que o cinema é ao mesmo tempo um instrumento fundamental e um grande achado do positivismo do século XIX. Positivismo este que compreendia a busca da verdade, há séculos empreendida pela filosofia e pela ciência, como a busca de uma manifestação empírica que seria a do próprio real se manifestando, apresentando-se em si mesmo. O cinema nasce, então, como fruto de um processo que criou antes, por exemplo, a fotografia e o gramofone, no empenho de uma palavra de ordem, de uma ensigna , que há alguns séculos mobilizava o Ocidente: “Busquemos a verdade”, ou melhor, “Busquemos mostrar a verdade”. É como fruto dessa palavra de ordem que todas as primeiras imagens de cinema trazem consigo o que chamaremos aqui de um enunciado geral, quer dizer, antes de qualquer enunciado específico que uma imagem possa gerar – e estas sempre geram estes enunciados –, afirmamos que as imagens de cinema, a exemplo da fotografia, geravam nos seus primeiros tempos também um enunciado geral, a saber: “Finalmente vos trago, porque vos mostro, a verdade!”. Ou, para ser mais sintético: “Eis a verdade!” Poderíamos também dizer, criticamente, que o cinema nos seus primeiros anos procura consumar a “mágica da verdade”; expressão à qual chegamos a partir da leitura de um texto de Foucault, ³ em que ele nos mostra que os procedimentos e os objetivos da ciência moderna trazem importantes semelhanças com os velhos objetivos da magia: a de buscar o evento, o aparecimento e o acontecimento da verdade. E isto também estaria presente, como assinala o filósofo, nos procedimentos judiciais modernos e contemporâneos – incluindo aí a busca das confissões de culpa – o que, a propósito, veremos diversas vezes no cinema. “Eis a verdade!” é, portanto, o resultado do grande truque, da grande mágica que a ciência e a tecnologia poderiam realizar através do cinema. Mas que, nos primeiros anos do cinema, exatamente porque traz ainda o vigor desta crença do Ocidente na verdade, não se mostra como truque, como mágica.

Em grande parte, era essa mágica que se aplaudia e admirava nos vaudevilles que exibiam filmes, entre outras atrações. Filmes que também eram exibidos nas feiras, nas praças públicas, nos circos e parques de diversões, onde, nos primeiro anos, o cinema se tornou ele mesmo uma estrela. Quer dizer, o que era aplaudido pelo público, em primeiro lugar, era a máquinacinema; saudada, de alguma maneira, no seu truque, uma mágica. As populações pobres e a classe média emergente, que constituíram o público predominante desses anos pioneiros, tinham diante do cinema uma posição até certo ponto ambígua. De um lado, saldavam o “truque”, a “mágica”, aplaudindo o falsário pelo seu engenho, mas demonstrando não embarcar completamente na ideia de que estariam diante da “verdade” em forma de imagem, exatamente porque estavam diante da “mágica da verdade”. Por outro lado, demonstravam, ao se entusiasmar, admiração, reverência e talvez temor pela exibição de saberpoder que a exibição cinematográfica representava ali. Poder-se-ia objetar, no entanto, que alguns anos depois do seu aparecimento, o cinema passou dos filmes que pretendiam ser apenas documentais – que pretendiam “mostrar o fato”, o “acontecimento” em si mesmo –, para um cinema que descobriu os chamados filmes de ficção e a eles passou intensamente a se dedicar; mesmo que os documentários jamais deixassem de existir e de seguir a sua própria história. Realmente, os maiores estudiosos do cinema, inclusive Deleuze, em grande parte de seus textos, dedicaram-se a pensar – principalmente, mas não só – o cinema de ficção. Mas é o próprio Deleuze que nos chama a atenção para o fato de os filmes de ficção, sobretudo em seus primeiros autores e escolas, se construírem ainda como exemplo e instrumento de afirmação da crença do Ocidente na racionalidade. Trata-se de um diagnóstico que ele estende a todo o cinema que chamará de “clássico”. Isso acontece exatamente por esses serem filmes de ficção, ou seja, por terem uma estrutura que pretende ser absolutamente independente do “mundo real”. Os filmes procuram constituir-se, de maneira geral, como um universo fechado e uma história sempre com vistas a um fim, ou seja, independente do mundo real , mas à imagem e semelhança do que este deveria ser. Buscam assim reproduzir a estrutura e o processo que seriam – na concepção mais tradicional do projeto racionalista ocidental – o da realidade e o da história. É o que, de uma forma geral, está na fase “clássica” do cinema, que vai mais ou menos até a Segunda Guerra Mundial. O que vemos nesta fase são filmes com histórias que “aspiram ao verídico” e se organizam em vistas de um grande fim: filmes em que o próprio drama da história é – para usar uma expressão nossa, que Deleuze não usa – a busca da distinção entre uma verdade-filme e uma mentira-filme . Mas é importante destacar que o próprio Deleuze nos chama a atenção para o fato de a classificação por ele utilizada, que divide o cinema entre “clássico” e “moderno”, ser demasiadamente genérica. Talvez por isso, o filósofo francês se refira a ela, na maioria das vezes, entre aspas. E mais, nos próprios exemplos abaixo, vez por outra, vamos citar alguns filmes como tipicamente clássicos, mesmo que tenham sido rodados depois da época histórica que Deleuze designou como a do início do cinema moderno, qual seja, o fim da Segunda Guerra Mundial. Em todo caso, este cinema “clássico” deve, de maneira geral, ser compreendido como um cinema que

busca constituir um Todo-filme organicamente fechado. É o que vemos, em primeiro lugar, na montagem alternada criada pelo norte-americano Griffith; concepção que veremos o soviético Eisenstein criticar, ainda que reconheça Griffith como um de seus mestres. O que o estadunidense propõe é uma montagem em que se alternem situações binariamente opostas – mas ainda não dialéticas como em Eisenstein – que iriam constituir o filme organicamente fechado: a “antiguidade e a modernidade”, o “sul e o norte”, o “interior e o exterior”, o “pobre e o rico”, o “bem e o mal”, e assim por diante. Trata-se da instauração do que Deleuze vai identificar como o “binômio” que, de uma forma ou de outra, vai caracterizar todo o cinema clássico. Também nos filmes de Hitchcock o que vemos são histórias que “aspiram ao verídico”, à maneira, neste caso, de uma minuciosa construção lógica. De início, o mestre inglês nos põe diante de alguns buracos na ordem de causalidades do filme, cuja trama e dramaticidade se dão exatamente no difícil e perigoso empenho para tapar tais buracos e encontrar um encadeamento lógico. É de onde se constrói o famoso suspense de Hitchcock: a história não se fecha, mas precisa se fechar; a verdade não se mostra, mas precisa se mostrar. O filme termina quando todo o quebracabeça lógico se completa e o encadeamento de causa e efeito se estabelece, mesmo que este se revele numa espécie de esquematismo lógico freudiano, como em Psicose . É uma investigação científica, positiva e empirista e que, a propósito, aproxima a investigação científica pela verdade dos objetivos da investigação policial e judiciária. De novo estamos diante da “mágica da verdade” nomeada por Foucault. É verdade que pelo menos duas vezes na sua obra Hitchcock descobre uma força que pode destruir a ordem lógica. Em Os Pássaros, toda a tranquilidade lógica da vida da pequena cidade litorânea parece ameaçada por uma imponderável “força natural”, um devir pássaro que gera toda a tensão do filme. Já em Festim Diabólico, o que ameaça a ordem e a lógica – e moral – é um aluno de filosofia que, depois de ter aulas sobre Nietzsche e a Vontade de Potência, resolve cometer um assassinato para experimentar o “poder da vontade”, e oferece ao seu professor de filosofia, que lhe “ensinara” Nietzsche, um jantar sobre o baú onde estava escondido o cadáver. Curiosamente, esta talvez seja, do ponto de vista formal, a mais explícita referência a Nietzsche jamais feita na história do cinema. A presença de um “nietzschianismo” no cinema, no entanto, será abordada mais adiante quando, a partir de Deleuze, estudarmos Orson Welles. Além disso, Deleuze vai ver ainda uma importante relação entre Antonioni e o filósofo alemão. Em todo caso, à maneira como compreendia Nietzsche, esta aspiração ao verídico é também, no cinema “clássico” de forma geral, uma aspiração moral. Em grande parte das vezes o filme se constrói com vistas a um duelo final em que o confronto da verdade-filme com a mentira-filme é um duelo entre o bem e o mal. É o que vemos na maioria dos Westerns – mas não só neles –, em que o duelo, o confronto final, é o que vai amadurecendo ao longo de toda a história. Neste sentido, a montagem alternada de Griffith funciona como uma espécie de projeto fundador do cinema americano clássico. Personagens e/ou situações em polos opostos, alternando-se no

filme, conspirando e preparando a oposição final, o conflito final: o duelo como o fechamento moral da história. É por isso que os Westerns , como tantos outros filmes de Hollywood, têm em geral uma estrutura de fábula. Estrutura de fábula que está presente também na grande tradição de filmes judiciários norte-americanos. Para Deleuze, esta constitui a própria tradição do cinema político clássico daquele país, que segue produzindo estes filmes até bem depois da Segunda Guerra Mundial. Diríamos que o que vemos nessas obras são uma espécie de fábula iluminista. São nos filmes judiciários, diz Deleuze, que os norte-americanos encontram a sua unidade de povo. Uma unidade que é conquistada através da objetivação racional feita pelo Estado. Essa é a maneira como, por exemplo, Hegel compreende a função do Estado, ou seja, como um grande instrumento de objetivação e efetivação da racionalidade humana. O que vemos nesses filmes, dos quais o belíssimo Doze Homens e uma Sentença de Sidney Lumet é o mais paradigmático dos exemplos, é que o povo norte-americano encontra a sua unidade, quer dizer, se (re)encontra enquanto povo, exatamente no processo judicial. É através do judiciário que o Estado vai organizar um processo em que todos os conflitos serão expostos, equacionados e resolvidos, uma vez que racionalmente julgados. O que temos então é a lei racionalizando e vencendo as diferenças. Estas então se diluem, ou no mínimo são apaziguadas, através daquilo que deveria unir e constituir um povo: o Estado-Nação. Mas Deleuze nos chama a atenção para o fato de nessa fase “clássica” haver um racionalismo no cinema não só porque os diretores buscam reproduzir em seus filmes uma realidade lógica, verídica e moral, mas também porque muitos deles veem o cinema como um instrumento para provocar nos homens a experiência plena do que seria a nossa essência racional. O cinema deveria, assim, ter a função de provocar o nosso pensamento através de um choque sensorial e fazer a nossa racionalidade funcionar no limite de suas possibilidades. E uma vez no limite, a racionalidade se aproximaria da plenitude do ser: da experiência da universalidade, do Todo, tão almejada pela civilização ocidental desde a Grécia. É esta constatação que faz Deleuze afirmar que as primeiras escolas de cinema eram, de certa maneira, kantianas, mesmo que alguns de seus autores jamais tivessem lido Kant. E isso acontecia porque alguns diretores clássicos do cinema acreditavam provocar o sentimento do sublime em seus espectadores graças a um “choque sensorial” causado por seus filmes. ⁴ Para Kant, o que o sentimento do sublime ⁵ revelaria em nós seria uma tendência da nossa imaginação a um progresso infinito, e uma pretensão da nossa razão a uma totalidade. E isso se daria exatamente pela imensidão, pela incomensurabilidade que parecemos, a princípio, perceber na natureza quando estamos diante de seus fenômenos mais grandiosos. O sentimento dessa incomensurabilidade, diz Kant, não é próprio dos objetos da natureza a qual julgamos sublime, sendo, na verdade, próprio da nossa razão, mas apenas num primeiro movimento desta. Em seguida, estimulada pelos objetos da natureza, a razão, tomada pelo sentimento do sublime, da imensidão e da incomensurabilidade que atribuímos à natureza, ao Todo, mostra uma aspiração para a busca ilimitada do conhecimento destes.

O sentimento do sublime, portanto, nos permitiria intuir uma infinita liberdade e possibilidade da razão: da subjetividade humana como Kant a concebe. O choque sensorial, que o cinema deveria procurar causar, despertaria a potência de pensar comum a todos os homens, mas que normalmente não é usada na plenitude de suas possibilidades. Antes, diz Deleuze, tratava-se de um kantianismo, e da busca do sentimento do sublime, que já atravessava boa parte da pintura e da escultura modernas no final do século XIX. Sem querer causar uma confusão de conceitos, diríamos aqui que o racionalismo e o iluminismo da arte moderna foram, segundo Deleuze, essenciais para o cinema clássico: a arte, e agora em especial o autômato do movimento que o cinema representa, é capaz de provocar o funcionamento da razão e do pensamento no limite de suas possibilidades. O próprio Deleuze lembra um famoso comentário de Eisenstein sobre um projeto de um quadro escrito por Da Vinci, provavelmente jamais pintado, em que este descreve as cenas do que deveria ser uma pintura do Apocalipse. O que vemos nesse texto é bastante semelhante ao que seria, alguns séculos depois, um roteiro de um filme. ⁶ Com o cinema, no entanto, as imagens passam a mover-se por si mesmas, não precisam que a subjetividade humana construa este movimento, como fazemos diante das imagens imóveis de um quadro; ou como no caso da dança quando um corpo humano precisa se mover a cada vez. Assim, o movimento automático do cinema, a mais completa reprodução do Todo em processo que poderíamos ter, à medida que nos atingisse com esse choque sensorial, ⁷ detonaria imediatamente em nós o processo do pensamento – o autômato espiritual que nós mesmos seríamos, ou teríamos em nós . É também esta busca de uma experiência do Todo, segundo Deleuze, que está nas intenções de Eisenstein quando ele propõe um método de “ montagem dialética ”. ⁸ Na verdade, o que o soviético criticava em Griffith é exatamente a montagem compreendida como uma soma das partes, ou seja, como o encadear-se dos elos de uma corrente. Para Eisenstein, Griffith mostrava na história apenas efeitos, sem causas, e não compreendia a relação e a implicação que cada um dos polos em oposição em seus filmes necessariamente tinha. Seria preciso provocar a colisão desses polos para que a própria história seguisse adiante numa síntese dessa colisão. Por isso o soviético preferia comparar a sua montagem dialética a “um motor a explosão” ⁹ : cada parte de um filme, montada numa “colisão” dialética com as outras partes, contribuiria para empurrar o Todo-filme para frente, para o seu fim. E isso quer dizer que cada parte do filme estaria em colisão também com o Todo-filme, que vem a se constituir, por sua vez, das superações e das sínteses dialéticas de todas essas “colisões”. A montagem de um filme seria então para Eisenstein a própria reprodução do processo fenomenológico em que a razão se efetiva, constituindo-se na própria realidade. A própria subsunção final, que fecha o filme, funcionaria dessa forma para Eisenstein: agora não é mais o conceito que vai até a imagem, nem a imagem que vai até o conceito, mas sim o conceito que está em si na imagem, e a imagem que é o para si do conceito. O cinema seria, então, um lugar da realização da autoconsciência, na medida em que nos colocaria diante do processo pelo qual a nossa racionalidade se efetiva. O

autômato espiritual e o autômato do movimento apareceriam aí como a oposição dialética entre subjetividade e objetividade, ou entre espírito humano e natureza. Nesse caso, a relação dialética não aconteceria apenas entre as imagens dos filmes e cada um de seus componentes em oposição (claro e escuro, profundidade de campo e imagem plana, plano aberto e plano detalhe, aceleração do movimento e redução deste, só para ficar em alguns exemplos), mas também entre o filme e o espectador. Eisenstein também buscava, pois, um choque sensorial e uma experiência do sublime, como se fosse um objetivo kantiano buscado por um caminho hegeliano. À maneira hegeliana de definir a arte, o que vemos Eisenstein buscar é a “manifestação sensível da Ideia”. ¹⁰ Assim, mesmo com todas as grandes diferenças entre Hegel e Kant, e das críticas de um ao outro, ambos têm uma posição racionalista. A superação da oposição dialética entre espírito humano e natureza é, na verdade, o “grande fim” dos filmes de Eisenstein. Trata-se do “fim da história” hegeliano que, no caso do soviético, como não poderia deixar de ser, ganha um tom marxista. O cinema seria assim uma exposição do “processo” da verdade, como podemos ver em citação de Marx feito pelo próprio Eisenstein em O Sentido do Filme . ¹¹ É por isso que em O Encouraçado Potemkin , por exemplo, a revolta que a carne estragada servida aos marinheiros vai gerando no espírito desses homens é montada em oposição dialética com imagens do mar revolto, das ondas quebrando no cais e da tempestade que se anuncia. Estando inicialmente o espírito humano em oposição à natureza, o que prepara a revolta dos homens é algo que está na própria “natureza” de seus espíritos. A efetivação da nossa subjetividade racional está exatamente no movimento desta ir de encontro – e ao encontro – à racionalidade da natureza. O sentimento revolucionário funciona, na apropriação de Hegel feita por Marx, como uma espécie de impulso natural da nossa razão subjetiva. Esta age e se efetiva num movimento de liberação que busca superar tudo o que se mantém como intermediário e empecilho ao seu encontro e síntese com a racionalidade natural . Nos filmes de Eisenstein é a revolta dos homens contra a exploração capitalista que os levaria a este destino racional e, portanto, justo do “comunismo ateu”: o “grande fim” em que se produziria o reencontro entre espírito humano e natureza. É nesse momento que a essência racional dos homens se reencontraria com a ordem racional da natureza. Já no expressionismo alemão, o aspecto “clássico” e iluminista dos filmes estaria exatamente no famoso jogo de claro e escuro, de luzes e sombras como expressão de uma luta entre a razão e a desrazão: o bem e o mal. De fato, é da escuridão, da sombra, que vêm, nos filmes expressionistas, forças sinistras que ameaçam a lógica justa dos homens que vivem literalmente à luz da racionalidade. É daí que saem, por exemplo, o vampiro assassino que ameaça Düsseldorf, ¹² ou o terrível ilusionista Doutor Mabuse . O que mostra também o outro aspecto racionalista do expressionismo, num racionalismo muito semelhante ao que Nietzsche identificava como “platonismo”, qual seja, o expressionismo não para de condenar moralmente a figura do falsário, do ilusionista: do inventor de histórias, de imagens, de espectros e ilusões: esses são na verdade sempre os seus grandes vilões. O problema é que esta parece ser também uma condenação moral do próprio cinema, o

que é paradoxal numa escola que ousou as experiências estéticas radicais como o expressionismo. Neste sentido, já no filme pré-expressionista O Estudante de Praga , de Stellan Rye, vemos talvez pela primeira vez o cinema aparecendo como questão em um filme. Numa história que se repetiu diversas vezes mais tarde, nesse filme o mencionado estudante vende o seu reflexo no espelho a um bruxo que faz com que este saia pela cidade a praticar todo o tipo de malfeitos. Notemos que este duplo do estudante se trata exatamente de um spectrum , de uma imagem que vira um autômato do movimento e passa a ter vida própria. Mas este spectrum já é aqui, a exemplo da lista de falsários do expressionismo alemão (incluindo o clone da líder dos operários em Metropolis , também de Lang), um vilão: uma expressão do “mal”. É verdade que a maneira como alterava a perspectiva do jogo de luz e sombras, como criava um descompasso entre este e o lugar que os personagens e a ação ocupavam no quadro, chegando às vezes a abrir uma perspectiva de espirais até o infinito, são sem dúvida sinais de modernidade no expressionismo alemão. Mas ainda em torno da questão do autômato do movimento, não podemos deixar de nos admirar com a maneira como os diretores expressionistas parecem ter tido uma espécie de antevisão inconsciente do terrível futuro próximo que se preparava na Alemanha. De uma forma ou de outra, todos perceberam forças sinistras que maturavam na obscuridade, e estas eram sempre, de certa forma, semelhantes ao autômato do movimento e, portanto, ao cinema. Assim, se Eisenstein havia pensado o cinema como instrumento de libertação das massas assujeitadas, parece que os expressionistas alemães já estavam temendo, pouco antes do surgimento de Hitler, as massas hipnotizadas pelo cinema como parte de um grande dispositivo de sujeição coletiva. Podemos então dizer que, embora façam filmes de ficção, os cineastas das primeiras escolas também estavam empenhados em realizar o que Virilio chama de “ pseudoacontecimento da razão na história ”. Portanto, o enunciado do cinema nos seus primeiros tempos, “Eis a verdade”, pode ser compreendido também como “Eis a razão”. É verdade que existe aí uma diferença em relação ao racionalismo grego, uma vez que esta concepção de razão seria, de maneira geral, mais próxima da que se gera no Renascimento e se desdobra no iluminismo e no positivismo. É isso o que percebe André Bazin quando escreve que o cinema é o desdobramento de um projeto ocidental que começou no Renascimento. É claro que se nos detivermos na descrição das diferenças entre a noção grega e a moderna de “razão”, corremos o risco de iniciar aqui um outro livro só sobre este tema. Sabemos que mesmo entre os filósofos de uma mesma época, as compreensões do conceito de razão têm importantes diferenças. Digamos que, em geral, há uma subjetivação deste conceito na modernidade europeia. Esta tanto ajuda a construir quanto se constrói na cisão entre sujeito e objeto, e a razão tomada como um “universal” é aquela que habita e fundamenta o sujeito. É por isso que dissemos que aquilo que a experiência kantiana do sublime geraria em nós tem um caráter iluminista. A experiência do infinito e superior poder da razão de submeter a natureza é, na verdade, a experiência da superioridade da subjetividade racional: da racionalidade humana, digamos assim.

Mas o próprio fato de Virilio usar expressões como “ pseudoacontecimento da razão ”, mostrando-nos que o processo do Ocidente de busca da verdade teria gerado um “ materialismo místico cientificista ” , deixa claro que para ele o cinema não é a realização daquilo que promete ser. O mesmo podemos observar em relação a Bazin, que também percebe uma mistificação presente no projeto fundador do cinema. É o que denota o próprio título de seu artigo: “Mito do Cinema Total” . Para Virilio, o cinema seria parte constitutiva do processo de formação dos Estados Nacionais pós-revolução industrial e de todas as formas de mistificação que estes construíam à medida que se instalavam. Ele diz, por exemplo, que algumas projeções de filmes que se realizavam na primeira metade do século XX são como missas profanas onde se exaltam os valores laicos desse Estado Nacional industrializado. E o principal dentre esses valores talvez seja o acontecimento da razão. Este é, na verdade, o grande fim , a grande missão civilizatória que esses Estados tomam para si. E, mais do que isso, para Virilio o cinema seria parte de um processo em que o virtual iria ganhando estatuto de real e em que o contato dos homens com o que seria um mundo real iria se tornando cada vez mais distante. Seria exatamente a necessidade de avanço tecnológico dos dispositivos de guerra desses Estados, ou que esses Estados são, que teria detonado tal processo. Virilio percebe que, logo depois das guerras napoleônicas, os equipamentos militares precisaram transpor uma espécie de limite empírico (expressão nossa). É a partir desse momento que os comandantes militares já não podiam mais ver a olho nu o movimento de suas tropas no campo de batalha. Assim, um espaço virtual, não visto, vai se tornando o real da guerra. Em primeiro lugar, são enviados dirigíveis para se fotografar os campos de batalha dos adversários, daí se inicia um processo que aperfeiçoa o uso da fotografia, passa pelo uso do cinema e chega até as guerras videogames que vimos mais recentemente. Para Virilio, o processo de virtualização na vida, que tem no cinema um de seus pontos altos, passou antes pelas imagens em movimento das janelas dos trens a vapor, precursoras de todas as imagens em velocidade das janelas – das “telas” – dos carros e aviões. De fato, essas imagens, artificialmente construídas, passam a ser vistas e experimentadas pela civilização como algo prosaico, simplesmente dado, e não como ilusão; são, portanto, imagens que ganham estatuto de real ainda que sejam criadas de forma artificial. Neste sentido, também seriam exemplos de virtual que vai ganhando um estatuto de real os ambientes climatizados e os jogos de luzes e cores cenografados e assépticos das lojas de departamento, precursoras dos shopping centers . Aí estariam ambientes tão mistificadores da tecnologia quanto o cinema, com suas escadas rolantes de aço reluzente, suas vitrines onde as últimas novidades da indústria do consumo posam como estrelas, seus letreiros de neon e sua música ambiente. Tanto quanto o cinema, os shopping centers seriam centros de isolamento da experiência do mundo real, quer dizer, um espaço capaz tanto de produzir especiais experiências sensoriais em nosso corpo quanto de nos proteger de tantas outras: o que podemos designar, portanto, como uma câmara . E, de fato, a realidade da guerra torna-se virtual para quem a observa e comanda. Mas, é claro, a guerra só deveria ser assim para quem está

destinado a vencê-la. Não há dúvida de que a imposição desse virtual como uma “realidade” é uma medida de força. É Virilio que diz que a verdade é sempre a primeira vítima de uma guerra, e lembra os futuristas italianos que influenciaram os fascistas quando descreveram uma guerra bela, romântica e asséptica: “Hurra! Acabou o contato com a terra imunda.” ¹³ Tal como os cinemas e os shopping centers , climatizados e com som ambiente, eram as cabines dos bombardeiros americanos na Segunda Guerra, onde os pilotos estavam sempre a escutar uma agradável canção ou uma locutora de voz sensual para amenizar os horrores das missões de guerra. É por isso que Stanley Kubrick, na sequência final de Dr. Fantástico , faz tocar uma canção que foi grande sucesso na rádio norte-americana durante a Segunda Guerra, ¹⁴ “We will meet again”, na voz de Very Linn. É até mesmo possível que quando os pilotos lançavam as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki – cujas imagens reais aparecem no final de Dr. Fantástico –, estivessem escutando esta canção, que toca no filme, no momento em que o vilão de Kubrick tenta destruir o mundo. É esta impressionante barreira asséptica, esta redoma sensorial , ¹⁵ que permitiu que recentemente a propaganda de guerra chegasse a nos falar em “ guerra cirúrgica ”. Mas, é claro, os exemplos de Hiroshima e Nagasaki são mais do que suficientes para nos mostrar que, do lado de fora dessa redoma, os horrores da guerra, talvez agora mais do que nunca, estão todos lá. Cabe então perguntar se esses invólucros que os dispositivos de guerra contemporâneos criam para os homens – assim como os ambientes climatizados e cenografados dos shopping centers e, finalmente, o próprio cinema – não seriam todos eles exemplos de clichês . De fato, a princípio, o que estamos descrevendo aqui tem, no mínimo, uma grande semelhança com a descrição do clichê. Todas essas “câmaras” modernas, essas redomas sensoriais que vão dos shopping centers às salas de cinema, dos interiores dos veículos às salas de comando militar das guerras videogames , podem ser vistas como sistemas sensório-motores. Estes tanto produzem em nós uma determinada experiência de realidade quanto nos protegem e, em certos casos, quase nos anestesiam de determinadas experiências sensóriomotoras que seriam “inconvenientes”, digamos assim. E, mais do que isso, Virilio vê nesse processo em que o virtual vai ganhando estatuto de realidade a função política de esvaziar e neutralizar o pensamento, isto é, a função de enfraquecer a capacidade racional dos homens. No seu livro Velocidade e Política , o autor chega a citar Goebels, idealizador e ministro da propaganda nazista, que explicitamente advoga a necessidade de expor o povo alemão à velocidade das imagens e dos discursos para que este não tenha o tempo de se dedicar à leitura e à escrita que os permitiria pensar. ¹⁶ Esta é a experiência que temos, por exemplo, na rotina dos deslocamentos que fazemos nas cidades contemporâneas. A experiência da vida em comum nestas cidades é cada vez menos a experiência do logos que se dá no encontro com o outro e cada vez mais uma experiência sensório-motora semelhante à do cinema. Vivemos cada vez mais sob o efeito de imagens e sons, de um ambiente cenografado e com trilha sonora, de poderosas luzes que passam, faróis em velocidade, outdoors, neons, manchetes e letreiros que Godard, em especial, tantas vezes gostou de nos mostrar em seus filmes. Por isso nossas cidades são

cada vez mais, segundo Virilio, cidades cinemas , em substituição às antigas cidades teatro. Haveria aí todo um esvaziamento da política, tanto no sentido grego quanto iluminista do termo. A própria guerra ganha um certo grau de virtualidade e uma dimensão imagética. No lugar dos confrontos diretos, agora é a imagem que tem a função de paralisar – ou encantar – corpos e atemorizar pensamentos nos embates militares. O cinema, portanto, parece ser, para Virilio, parte de uma estratégia de poder que busca a impotência do pensamento como forma de dominação política. No entanto, esta não é a posição que vamos defender aqui e nem é exatamente a posição que Deleuze defende. Uma das principais preocupações de Deleuze ao falar do clichê como algo que acontece, ou que pode acontecer à imagem, é afirmar que esta não é, em si mesma, a responsável pelo enfraquecimento, pela impotência do pensamento. É verdade que Deleuze examina com atenção as descrições e reflexões de Virilio ¹⁷ – que aqui nos ajudam numa genealogia do cinema –, acolhendo muitos de seus aspectos. Chama a nossa atenção também que Deleuze menciona Virilio exatamente no trecho do A Imagem-Tempo em que volta, ainda que não explicitamente, ao problema do clichê. Trata-se de uma passagem do livro em que Deleuze se pergunta o que teria feito o cinema perder a sua força à altura da Segunda Guerra Mundial; o que teria levado tantos autores a descrerem do cinema, mesmo os que outrora tiveram esperanças nele? Deleuze se pergunta, portanto, o que teria feito com que as outrora potentes concepções de cinema dos mestres do cinema “clássico”, particularmente em filmes que passaram a segui-las como uma fórmula, tivessem se transformado em “clichês”. O interessante é que vemos aí algo que, ao mesmo tempo, produz uma identificação e uma diferença entre Deleuze e Virilio. Nós mesmos os colocamos lado a lado quando mostramos o quanto o cinema, em suas primeiras décadas, representa uma das realizações culminantes do projeto racionalista do Ocidente moderno. Foi o que aconteceu quando falamos de um positivismo empirista que Virilio vê no surgimento do cinema e, logo em seguida, expusemos a maneira como Deleuze vê um “racionalismo” presente no projeto dos primeiros grandes autores e escolas do cinema de ficção. Mas, insistimos, o tom que Virilio dá às suas descrições da origem do cinema é o da denúncia de um misticismo: o acontecimento empírico da razão na história que o cinema teria prometido realizar é, segundo ele, “pseudo” – falso, no sentido mais negativo que este termo pode ter. Virilio parece então, desde o início, identificar uma espécie de “doença originária” no cinema. Esta espécie de “mal de origem” estaria exatamente na identificação que ele faz entre o cinema e os Estados Nacionais que estão a implantar o capitalismo monopolista. Deleuze, lendo Virilio, acha que este dá a entender que o cinema estaria destinado a ser um poder desarticulador e enfraquecedor do pensamento. E isso aconteceria exatamente por ele ter nascido a serviço do expansionismo desses Estados e, mais do que isso, como parte fundamental da própria efetivação do poder desses Estados. O problema é que se por um lado há uma identidade entre Bazin, Virilio e Deleuze, que permite que tenhamos articulado os três na genealogia do cinema que aqui apresentamos, por outro, há uma diferença no tom com que Deleuze fala do racionalismo dos primeiros autores e escolas do cinema

“clássico” que o distingue em especial de Virilio. Sem entrar, a princípio, no mérito desse racionalismo ser falso – “pseudo” – ou não, Deleuze não o acha, digamos assim, impotente. Para Nietzsche, teria sido a busca de uma “racionalidade a qualquer preço” o que gerara uma situação de niilismo e impotência da civilização europeia; já Deleuze não crê que exista nas primeiras escolas e autores de cinema a manifestação de um “esgotamento”, ou de uma “decadência” – expressões que Nietzsche usa frequentemente para caracterizar o niilismo – desse racionalismo. O cinema “clássico” para Deleuze não é, portanto, em si mesmo um clichê: clichê é aquilo em que este cinema se transformou lá pelos idos da Segunda Guerra Mundial. Parece-nos que, para este filósofo, o racionalismo ocidental, já agonizando – cujos sintomas Nietzsche percebe no final do século XIX –, teria experimentado a sua última potência criadora no cinema. Neste sentido, o cinema “clássico” seria para Deleuze a última grande realização do racionalismo ocidental. A crença de que o cinema poderia acionar plenamente as possibilidades da razão – isto é, que o cinema, como um autômato do movimento, produziria um choque sensorial que faria funcionar o autômato do pensamento que nos constitui – teria sido de fato geradora de grandes filmes na fase “clássica”. Mas talvez seja injusto, ou até incorreto, atribuir a Virilio um julgamento tão negativo em relação ao cinema. A diferença que percebemos entre ele e Deleuze – a despeito das importantes semelhanças – talvez venha muito mais de uma diferença de abordagem. Quer dizer, o problema que mobiliza cada um dos autores em cada uma de suas pesquisas é diferente em importantes aspectos. Deleuze nos parece, sobretudo, interessado na diferença qualitativa que grandes filmes de grandes autores trazem, mostrando-nos o quanto produzem pensamento e realidade, e fazendo, a partir desses, o que ele diz ser uma “taxonomia” ¹⁸ das imagens cinematográficas. Virilio, por sua vez, parece estar voltado para os aspectos gerais que nos levam a ser o que se convencionou chamar de uma “civilização da imagem”, mas que, para Deleuze, seria correto chamar de “civilização do clichê”. Neste caso, Paul Virilio não estaria fazendo tanto uma genealogia do cinema, mas sim uma genealogia de uma experiência cinematográfica do real que vai se tornando a de toda a civilização. O cinema então parece parte decisiva de um processo no qual o próprio capitalismo vai se caracterizando cada vez mais por um tráfico de bens desmaterializados, ou seja, onde a imagem é a principal mercadoria que circula pelo mundo e onde a própria experiênciamundo vai se convertendo numa experiência-cinema. Nesse sentido, parecem ser os aspectos quantitativos e gerais do cinema como arte de massa – assim como as experiências de realidade parentes próximas do cinema – que interessam a Virilio. É a partir desse aspecto, inclusive, que se produz uma importante identidade entre os dois autores, isto é, o diagnóstico de Deleuze se encontra com o de Virilio no que se refere exatamente ao momento do cinema por volta da Segunda Guerra Mundial. Para Deleuze, pelo menos aí, o cinema parece ter se reduzido a quase que apenas aquilo que Virilio teria visto desde a sua origem: imagens produzidas em virtude do grande projeto técnico “racional” dos Estados Nacionais expansionistas. E esses Estados são, como sabemos, grandes efetivadores do pseudoacontecimento da razão por meio da tecnologia: o grande fim e a

redenção da civilização. É notável, por exemplo, como Virilio mostra uma grande identidade entre a estética dos filmes, dos cinejornais estatais e da publicidade dos grandes grupos capitalistas, tanto na Alemanha nazista quanto em Hollywood. A propósito, esta característica impressionantemente semelhante da produção de imagens das duas grandes potências capitalistas opostas da Segunda Guerra, para a qual Virilio nos chama a atenção, é percebida também por Deleuze: “ de Hitler a Hollywood, de Hollywood a Hitler ”, ¹⁹ como ele mesmo diz. Já vimos o quanto esse problema chama a atenção de Deleuze, na maneira como ele vê o expressionismo alemão, não por acaso, pôr seguidamente em questão a autômato do movimento nos seus personagens hipnotizadores, mágicos ilusionistas, falsários produtores de imagens duplicadas e autômatas e outras variações do gênero. Mas a verdade é que lendo Virilio temos a impressão de que toda a civilização, à medida que vai mergulhando nessa experiência cinematográfica do real, vai sendo envolvida por clichês. Parece-nos que o autor põe a imagem como algo que em si mesmo é gerador da impotência do pensamento, exatamente porque nos faria mergulhar numa ilusão, numa falsidade, enfim, estaria nos mascarando o que seria a experiência do real numa constituição essencial e verdadeira. Estaríamos assim diante do que Virilio descreve como um processo de transformações da “experiência perceptiva” do real. Chamamos a atenção para esta expressão porque todas as pesquisas e descrições por ele feitas nos parecem uma reafirmação e um aprofundamento do que Walter Benjamin escreve no seu célebre “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”: “a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência.” ²⁰ Esta afirmação de Benjamin expressa uma radicalização da compreensão que o materialismo marxista tem do conceito de ideologia. O que ela busca é o diagnóstico da construção de uma ideologia, mas a construção de uma ideologia compreendida de forma mais radical do que uma falsificação produzida no âmbito do discurso e da escrita: no âmbito do logos . Trata-se da constituição de uma ideologia como uma experiência corporal, afetiva, “nervosa”, do real. Na verdade, parece-nos que todo o trabalho de Virilio descrevendo esse processo de virtualização da experiência perceptiva da realidade tem como importante inspiração e ponto de partida as reflexões de Benjamin. Quando descreve, por exemplo, os mecanismos artificiais de percepção do real, semelhantes ao cinema, proliferando-se nas cidades industrializadas, Virilio se inspira na afirmação de Benjamin de que a arquitetura exerceu durante muito tempo a função que veio a ser exercida pelo cinema, qual seja, a de gerar nos homens uma experiência de percepção coletiva do real. É evidente que ela ainda hoje o faz; mas a própria arquitetura teria se tornado cinematográfica, como vimos Virilio descrever. Em alguns momentos, Virilio chega mesmo a dar a impressão de continuar o trabalho de Benjamin quando este arriscou fazer um texto de filosofia descrevendo, como num roteiro de cinema, ou como se passeasse com uma câmera, as galerias e as imagens de Paris das primeiras décadas do século XX. ²¹

Assim, esta é a forma como Virilio age como um filósofo saindo em defesa da verdade e denunciando um processo de falsificação da realidade. A princípio isso não deveria ser surpreendente, afinal de contas é o que na maioria das vezes se espera de um filósofo. Mas no que se refere, por exemplo, à compreensão de Nietzsche, insistir nesta maneira de avaliação filosófica é um equívoco; ou pelo menos é uma limitação. Quer dizer, a insistência até a exaustão do Ocidente de que a principal tarefa da filosofia, e o grande objetivo moral da civilização, deveria ser a busca implacável da distinção entre verdade e falsidade, seria tanto um sintoma quanto uma força propulsora do niilismo. Assim, se por um lado, expressões como “misticismo cientificista” e “pseudoacontecimento da razão na história” dão momentaneamente um tom até mesmo nietzschiano ao texto de Virilio, de maneira que ele mesmo parece estar descrevendo o processo do niilismo como desdobramento da mistificação da razão; por outro, a ideia de que todo esse processo cinematográfico vai nos afastando do que seria uma experiência do real em si mesmo parece ter, no próprio Virilio, uma certa nostalgia iluminista. Seria o caso de perguntarmos a Virilio onde estaria essa civilização, ou esse período histórico, do qual ele parece um tanto nostálgico, onde o virtual não jogaria um papel decisivo na composição da experiência que se tem da realidade. O filósofo – e arquiteto – francês parece partilhar aí uma condenação moral da falsidade e da ilusão. Uma condenação que, de fato, está na própria origem da filosofia, mas cuja crítica, e a descrição dos problemas que vai gerar, se confunde com a crítica e a descrição do processo filosófico histórico que teria se desdobrado no niilismo europeu, segundo Nietzsche. 1 BAZIN, André. “Le Mythe du Cinema Total”. In: Qu’est-ce que le Cinema? Paris: Les Editions du Cerf, 2002. 2 VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema , op. cit., p. 51. 3 FOUCAULT, Michel. “Casa dos Loucos”. In: Microfísica do Poder . Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 114, 115. 4   L’Image-Mouvement (abreviado como I. M. nas próximas referências), p. 64. Neste trecho, Deleuze nos explica como o cinema buscava, sobretudo através da montagem, a experiência kantiana do sublime. No ImagemTempo (p. 191), ele nos diz que mesmo a “montagem dialética” de Eisenstein, embora a princípio fosse de inspiração hegeliano-marxista, buscava dialeticamente o “Todo” para que este produzisse o choque sensorial e consequentemente a experiência do sublime à maneira como Kant a concebia. KANT, Emmanuel . Critique du Jugement . Paris: PUF, 1955, p. 36. 5 KANT, Emmanuel, op. cit., p. 29. 6 EISENSTEIN, Sergei. “Palavra e Imagem”. In: O Sentido do Filme . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 25.

7 I. T., p. 189-190. Deleuze cita aqui dois autores que explicitam essa posição sobre o cinema, a saber, a do “automatismo material”, do cinema ser capaz de despertar em nós um “automatismo intelectual”: Elie Faure e Epstein. O primeiro escreve isso em Fonction du Cinema ; o segundo é citado por Seghers em Ecrit sur le Cinema . 8 EISENSTEIN, Sergei. “Dramaturgia da Forma do Filme”. In: A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 49. 9 EISENSTEIN, Sergei.”O Princípio Cinematográfico e o Ideograma”. In: A Ideia do Cinema . Organização de José Lino Grünewald. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 109. 10 HEGEL. Curso de Estética, o Belo na Arte . São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 139. 11 EISENSTEIN, Sergei. O Sentido do Filme . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 27. Eis a citação de Marx, que Eisenstein não localiza na obra do filósofo: “À verdade pertence não apenas o resultado, mas também o caminho. A investigação da verdade deve em si ser verdadeira, a verdadeira investigação é a revelação da verdade, cujos membros separados se unem no resultado”. 12 Em relação a O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, veremos mais adiante que esse filme expressionista apresenta aspectos que o aproximam do cinema que Deleuze vai chamar de “ moderno ”. 13 VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 59. Citação de trecho de poesia de Marinetti feita em 1905. 14 VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema . São Paulo: Página Aberta, 1993, p. 45. 15 ALMEIDA, Luiz Guilherme Veiga de. Ritual, risco e arte circense: o homem em situações-limite . Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 2008. 314 p. 16 VIRILIO, Paul. Velocidade e Política, op. cit., p. 21. 17 I. T., p. 199. 18 I. M, p. 7. 19 I. T., p. 199. 20 BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”. In: Magia e Técnica, Arte e Política . São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 169. 21 BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única . São Paulo: Brasiliense, 1997. 2. Nietzsche:

a impotência do pensamento A condenação moral do corpo, do falso e da imagem Sabemos que, com o nascimento da filosofia, a velha busca do homem pela origem de todas as coisas, que de maneira diferente o mito já fazia, e faz, ganhou uma nova configuração. O conhecimento da origem deixou de ser buscado através de efeitos estéticos – de experiências sensíveis – gerados pelas imagens, pelos sons e pela força dramática das histórias míticas. A filosofia no seu nascimento passa a compreender o logos como sendo, ao mesmo tempo, a morada e o processo do real. Passa-se a crer que este constitui a essência dos homens tanto quanto constitui a essência do cosmos; ou melhor, o logos é visto, ao mesmo tempo, como o escopo e a efetivação da essência do real sendo, por isso, a instância da sua presença e da sua manifestação no homem. Seria só através dele que poderíamos ir ao encontro e nos ajustarmos à ordem racional do cosmos (palavra grega que pode ser traduzida por “ordem”). É, portanto, devido a uma espécie de mergulho no logos que os homens poderiam se aproximar da compreensão daquilo que fundamenta e estrutura o próprio logos : a rigor, a estrutura do Todo. Esse mergulho no logos seria, na verdade, um empenho na própria atividade do pensamento, que, por sua vez, podemos descrever como a radicalização da própria experiência da linguagem, mas da “linguagem das palavras”, digamos assim. Talvez até esta expressão, “linguagem das palavras”, seja imprecisa, uma vez que o mito também se constrói por uma “linguagem das palavras”. Mas o que estamos querendo expressar com ela é o fato de o nascimento da filosofia representar uma crença, ou uma aposta numa relativa independência e, sobretudo, numa superioridade desse processo que designamos como logos . Passa-se a acreditar então que a “linguagem das palavras”, o logos , tem em si mesma uma estrutura e uma dinâmica de processo que ao mesmo tempo acolheria e governaria a realidade, o cosmos, o Todo. Alguns talvez preferissem dizer que o que aconteceu foi a passagem do logos mítico para o logos noético , e que a própria compreensão de logos como uma totalidade em processo implicasse também, para alguns filósofos, a experiência dos seres materiais e das imagens. Mas não dá para negar que, já dentro da própria evolução da história da filosofia, o papel central que o conceito de logos vai ocupando significa a decisão por uma predominância, e por uma superioridade moral da operação reflexiva e argumentativa sobre as imagens e a dramaticidade. Além disso, há uma diferença decisiva no modo como a palavra pode ser usada para uma narração – para contar uma história – e como é usada na construção de uma argumentação, sobretudo se esta tiver a característica de uma argumentação filosófica em sua concepção hegemônica, qual seja, aquela que compreende que algumas palavras, elevadas à categoria e ao status de “conceito”, seriam capazes de designar o que seria a própria essência do real. Mas lembremos, no entanto, que para Deleuze o conceito deve designar o acontecimento. E lembremos ainda, finalmente, que não só a própria filosofia é responsável por engendrar diversas mitificações, como

alguns filósofos souberam perceber, mas também que os mitos em suas expressões imagéticas e dramáticas continuaram tendo um papel decisivo na constituição dos diversos regimes de verdade. Digamos então que o logos é onde o pensamento trabalha através do caminho da linguagem das palavras, ou onde o caminho do pensamento é o próprio processo de ordenamento e revelação da essência do real à medida que radicalizamos aquilo que guarda e estrutura esta essência: o processo da linguagem propriamente dito. É a partir deste raciocínio que os gregos passam a acreditar que o logos é, de uma só vez, o escopo e o lugar de revelação da realidade. Nesta compreensão, mesmo que a revelação da essência seja impossível – como, por exemplo, Heráclito ou Górgias sugeriram entre os gregos –, a impossibilidade de encontrá-la será, pelos caminhos do próprio logos , demonstrada. O filósofo tcheco Vilém Flusser, por exemplo, articula o surgimento da escrita – e portanto de uma maneira fundamental de como o logos se expressa – com o de uma “consciência dirigida contra as imagens”. ²² A função da escrita seria para Flusser a de transcodificar o tempo circular das imagens em tempo linear: “traduzir as cenas em processos”. Ele identifica aí o surgimento da “consciência histórica” que inicia uma luta contra o que ele chama de “consciência mágica”, luta que vai caracterizar toda a história humana. Flusser localiza a origem desse processo nos profetas judeus e nos filósofos pré-socráticos. E é exatamente por ele fazer esta articulação com os pré-socráticos que achamos que podemos aproximar o surgimento da escrita, e do valor que a filosofia dá ao logos de forma geral, ao movimento que tenta “lutar contra as imagens”. Trata-se, portanto, de um movimento que acredita que vai se aproximar da essência da realidade na medida em que poderá traduzir e submeter essas imagens a um processo. A crítica que muitos filósofos dirigiam aos mitos não deixa de ser parte disso. Mas é verdade que Flusser mesmo vai dizer que o movimento de se aproximar mais do real através da escrita, na verdade acabou por produzir um afastamento ainda maior desse real. A escrita, exatamente por ser imagem transcodificada, estaria mais aquém do mundo que a própria imagem. Ela estaria num lugar ainda mais abstrato que o próprio pensamento imaginativo. Assim, o que era para travar uma “luta contra as imagens” acabou, segundo Flusser, por instituir uma relação dialética com as imagens: a escrita nunca deixa de se referir às imagens, da mesma maneira que as imagens estão sempre a engendrar sentidos no campo do logos . Essas reflexões de Flusser nos interessam para vermos como nos primórdios da filosofia o que temos é um projeto de rejeição da imagem. E, além disso, o que o filósofo tcheco está nos mostrando são os primórdios da própria relação do Ocidente com o tempo, posto que está se forjando aí uma noção de processo histórico. É verdade que para Flusser esse projeto dá sinais desde o início, exatamente pelo que ele chama de uma relação dialética existente entre escrita e imagem, de que está destinado ao fracasso. Em todo caso, não resta dúvida de que existe a forte intenção dessa rejeição, e que esta assume um tom moral.

Por isso, um estudo de filosofia sobre cinema só será possível se partirmos de filósofos que superaram esta condenação moral da imagem e, mais ainda, “condenaram esta condenação” compreendendo-a como prejudicial ao próprio pensamento: um esvaziamento de suas potências e possibilidades. Poderíamos dizer então que é por isso que um estudo do cinema pela filosofia é possível a partir de um filósofo como Deleuze, uma vez que ele compreende o virtual como uma potência do ser. Evidentemente, como veremos em detalhes, este estudo será possível também a partir de Bergson, particularmente de um Bergson lido, interpretado e repotencializado por Deleuze. Mas é antes Friedrich Nietzsche que está por traz de uma virada histórica na filosofia, exatamente à medida que denuncia o moralismo que está em seu nascedouro: o moralismo que condena o corpo, a imagem e o falso. Será então a partir de Nietzsche que Deleuze verá o cinema descobrindo a potência do falso, conceito que o filósofo francês articula com a Vontade de Potência, que é, por sua vez, um conceito central da filosofia de Nietzsche. E aqui está o primeiro grande motivo da importância de Nietzsche neste nosso texto, assim como a importância de Nietzsche em toda a obra de Deleuze sobre cinema. É o pensamento de Nietzsche que está por traz da virada que Deleuze vê no cinema, qual seja, a passagem da imagem-movimento para a imagem-tempo – do cinema “clássico” para o cinema “moderno” – que vem a ser, respectivamente, o assunto do primeiro e do segundo livro de Deleuze sobre cinema. É como se o cinema tivesse feito nesta passagem uma espécie de “descoberta nietzschiana”, como Deleuze mesmo afirma. Esse moralismo, então, que estaria no nascedouro da filosofia, é que seria o responsável pelo processo de condenação do corpo, da imagem e da ilusão. Ele seria então o grande responsável por um processo que Nietzsche vai designar com expressões como “decadência” , “esgotamento” ²³ e “envelhecimento” ²⁴ da civilização, e que, na verdade, é já uma tipificação do que ele vai denominar “ niilismo”, ou, em alguns momentos, “niilismo europeu”. ²⁵ Trata-se de um moralismo que teria tido a sua origem exatamente em Sócrates e Platão. ²⁶ E aquilo que caracterizaria esse moralismo é, fundamentalmente, o que acabamos de ver acima: um empenho em impor uma ordem, em submeter a um processo causal o que a aparição da imagem tem de surpreendente. A imagem se esvazia como uma ruptura instauradora de realidade, como um acontecimento. Esses dois filósofos gregos – “antigregos” como diria Nietzsche – teriam caracterizado de uma maneira decisiva a atividade filosófica a partir de uma condenação, em primeiro lugar, da experiência dos sentidos. A sensualidade seria a grande vilã, a grande inimiga do pensamento: a grande causa do engano, do erro, da ilusão. ²⁷ E é justamente nessa condenação moral de toda a experiência sensível – a rigor, uma desvalorização do corpo – que se produz, segundo Nietzsche, uma condenação e uma desvalorização moral tão grave quanto a condenação moral da ilusão, da aparência e, consequentemente, das imagens. Se considerarmos, por exemplo, o lugar que a imagem ocupava em Platão, veremos que esta sequer tem o que poderíamos chamar de uma consistência ontológica; em outros termos, a imagem é para esse filósofo grego a expressão de um “menos ser”, experiência de realidade bastante distante de sua plenitude, e que por isso deve ser vista também como uma ilusão e, em

especial, como algo contra o qual devemos manter severas reservas morais. Na divisão hierárquica do real feita por Platão, a imagem ocupa o mais baixo dos patamares, aparecendo como cópia dos corpos, dos objetos que vemos no mundo sensível. Corpos e objetos que, por sua vez, existem já como cópia daquilo que tem as suas essências no mundo inteligível: a dimensão das Ideias, que só poderíamos alcançar pelo processo do logos . Assim, para Platão, antes da imagem, o próprio corpo, que nos dá a percepção das imagens, já é uma instância enganosa e falsificadora por si mesma. É verdade que os corpos e objetos percebidos em si mesmos estariam mais próximos da essência, da “Ideia”, do que as imagens e reflexos que os reproduziriam. Em todas as formas das manifestações de realidade existentes, as imagens seriam, para Platão, as mais “esvaziadas de ser”: as imagens seriam a maior expressão de um “menos-ser” que poderia existir. E usamos a expressão “menos-ser” porque o não-ser num sentido absoluto não existe para este filósofo. O não-ser só existe como um erro da relação, por exemplo, no equívoco da identificação de uma imagem, ou de um objeto, com um modelo ou ideia dos quais estes foram apontados como cópias. A maior expressão do menos-ser em Platão, portanto, seria a de uma imagem identificada erroneamente com um determinado objeto, isto é, uma imagem que parece ser o que ela não é: o fantasma . Antes do fantasma , no entanto, seguindo nossa escala decrescente do menos-ser ao ser – da cópia à Ideia –, encontraremos os eikones . ²⁸ Estes são as imagens propriamente ditas, quer dizer, os reflexos e cópias de objetos e corpos que são corretamente identificados com estes modelos. É por isso que a imagem, na hierarquia platônica, está ainda mais aquém que o corpo: ela é a cópia do corpo que, por sua vez, é a cópia da “Ideia”. A imagem é, portanto, tão distante da essência, do Ser, que para Platão ela é uma espécie de “cópia da cópia”. E o termo que o filósofo usa aqui para definir imagem é eidolon , que, neste caso, se refere tanto aos fantasmas quanto aos eikones . Quer dizer, mesmo representando já um “menos ser” em relação à ideia que é a essência, do ponto de vista de uma relação com a imagem o corpo tem um “mais ser” – mas jamais um “ser pleno”.

E isso nos indica também que os próprios corpos e objetos são, de certa maneira, imagens de algo, posto que são cópias de um modelo inteligível: as Ideias. Com isso, o caminho até a verdade, até a essência, e portanto o caminho até a Ideia, passa necessariamente pela superação de toda a experiência que temos através das sensações, isto é, daquilo que percebemos apenas através da sensibilidade, do corpo. O que acomete a sensibilidade é, em si mesmo, enganoso para Platão; embora, exatamente pela não existência de um “não-ser absoluto” represente o primeiro vestígio, a primeira pista que temos da essência: aquilo que deve ser submetido ao método, ao processo dialético. E esse processo é, por sua vez, a maneira como Platão sistematiza com rigor a imersão no logos como busca da revelação da essência, o que já estava no projeto da filosofia desde o início. O que o método dialético de Platão vai fazer então é, de certa maneira, o que descreve Flusser: “rasgar a imagem”, submetendo-a a um processo que nos conduz à Ideia. É esta que fundamenta a imagem, mas a imagem é apenas uma distante imitação, um vestígio da Ideia. É nessa lógica que o movimento se explica para Platão como algo que existe em função desses pontos de referência perfeitos, desses modelos que o mundo sensível almeja: as Ideias cuja perfeição estão sempre sendo buscadas (desejadas), e em virtude das quais se moveriam os seres sensíveis e aparentes. Para a concepção hegemônica de filosofia antiga, o movimento existiria então com vistas a “instantes privilegiados”, como define Deleuze; o que vale também para Aristóteles que, apesar das críticas fundamentais que fez à Teoria das Ideias de Platão, vê um mundo que se move visando à perfeição divina, numa ordem hierárquica de finalidades – teleológica – que nos levaria até Deus, que assumiria, neste caso de maneira semelhante à Ideia platônica, o lugar de um paradigma privilegiado em função do qual existe o movimento. Para Platão, o trabalho do filósofo é uma espécie de luta contra o corpo. A atividade da razão é “razão contra o corpo” ou, no mínimo, razão que deve submeter e superar as experiências que temos graças ao corpo. Estas seriam sempre ilusórias, falsas, posto que passageiras, móveis. Já a verdade e as essências das quais nos aproximaríamos através do logos deveriam ser eternas, imóveis. Seguindo este raciocínio, mesmo que exista uma diferença hierárquica, nesta lógica do menos-ser ao Ser, entre imagem e corpo, ambos parecem ser legados a um lugar moralmente inferior exatamente por serem da ordem do ilusório, do falso. O que nos conduz à conclusão de Nietzsche, qual seja, que a condenação moral do corpo leva consigo a condenação moral da falsidade e da ilusão, e também a condenação moral da imagem. Por isso, a julgar pelos primeiros tempos da filosofia, uma reflexão sobre este autômato da imagem em movimento – o cinema – não poderia ter nada de positivo: o cinema não teria nada a contribuir para a filosofia. De fato, como uma máquina produtora de imagens, ilusões, sensações e movimento, poderia contribuir para uma atividade que a princípio, e genericamente, deveria buscar a verdade, a essência do Todo como algo que se opõe a tudo isso? Mas há ainda outra coisa que nos chama a atenção nessa condenação moral do corpo, da ilusão e da imagem. Num certo sentido, ela é motivada por aquilo mesmo que também move Nietzsche ao falar do niilismo, do

enfraquecimento e da senilidade do Ocidente, ou seja, lutar contra algo que ameaça o pensamento como uma espécie de força antifilosófica. Desde sempre a filosofia sentiu a necessidade de se contrapor a forças que, a partir do próprio pensamento, agiam para enfraquecê-lo. Esta luta que a filosofia tantas vezes travou é uma das principais forças fundadoras e propulsoras dela. O que nos parece paradoxal é que, a partir das reflexões de Nietzsche, foi exatamente a maneira como a filosofia diagnosticou e decidiu combater a impotência – o impoder ²⁹ – do pensamento, que veio se tornar o próprio agente desta impotência, ou seja, que se tornou um agente do niilismo. Sócrates, por exemplo, travava contra os sofistas e a sofística um combate que se confundia com sua própria ação filosófica e com a sua vida. E Sócrates trava esse combate porque, à sua maneira, via na sofística uma força inimiga da filosofia e do pensamento. E talvez estes tenham sido tão combatidos exatamente porque descobriram a força ilusória, o poder falsificador do logos : o que mais tarde identificaremos e elucidaremos aqui como sendo a potência do falso. Mas talvez Sócrates tenha visto nos sofistas uma ameaça porque eles descobriram, naquilo que deveria existir para nos organizar – num processo que nos conduziria a uma essência, ou seja, no logos –, também uma instância criadora de ilusões e aparências. De fato, para os sofistas o conhecimento e a prática do logos funcionavam como uma atividade criadora de realidade na medida em que tinham um poder ilusionista capaz de, à semelhança do mito, produzir efeitos estéticos e plásticos. O homem virtuoso era o que desenvolvia esta capacidade, isto é, tanto mais virtuoso seria quanto mais dominasse a força criadora e persuasiva do discurso. Assim, a paideia – a educação para a vida política na polis –, na concepção sofística, deveria ser fundamentalmente o aprendizado desses poderes do logos . É por isso que Foucault vai afirmar que os sofistas compreenderam de forma única entre os gregos a articulação existente entre saber e poder: ³⁰ é o que estaria subentendido, por exemplo, na famosa máxima do sofista – do filósofo! – Protágoras quando este afirma que o homem é a medida de todas as coisas. Essa condenação moral da falsidade está de certa maneira presente nas análises que Virilio faz das “transformações das formas de percepção” que são trazidas pelo cinema. Vimos também que esta é uma citação que Virilio faz do que Benjamin escreveu em “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica” quando este diz que as “formas de percepção das coletividades humanas” se transformam ao mesmo tempo que seus modos de existência. ³¹ Assim, para Benjamin – e isso vai marcar fundamentalmente o trabalho de Virilio – a própria experiência perceptiva do real já é, ou já pode ser, em si mesma ideológica. É por isso que as descrições e reflexões sobre esse processo de virtualização e desmaterialização da experiência da realidade, onde está o cinema, têm em Virilio um tom de denúncia de mecanismos que seriam ideológicos exatamente por serem falsificadores da realidade. Como sabemos, é através do conceito de ideologia que Marx denuncia uma falsificação do pensamento. A ideologia é o que mascara, o que obscurece a consciência, mantendo o homem numa condição de menos ser. Isso acontece porque ele é convencido de falsos princípios – e de uma falsa concepção de realidade –

que acabam sendo tomados por essenciais, sagrados e/ou naturais. E, para Marx, as falsificações representadas pela ideologia são sempre construídas no processo de afirmação e estabilização de determinada força social. Aí vemos um dos tantos pioneirismos de Marx para o pensamento, qual seja, o de fazer uma articulação entre pensamento e poder. Marx faz uma articulação entre o que se apresenta como pensamento, mas acaba sendo uma força que o paralisa, posto que na prática intimida sua força poiética , esvaziando sua capacidade produtiva , uma vez que o submete a um determinado sistema produtivo vigente. Foi o que vimos quando Virilio descreveu o nascimento do cinema como um desdobramento tecnológico dos aparelhos e dispositivos de guerra dos Estados Nacionais do capitalismo. Virilio chega a ver o cinema como parte indispensável desses aparelhos, uma vez que é um instrumento de estímulo psicológico e sensório-motor da guerra. Sabemos que Marx denuncia, por exemplo, que a religião é uma ideologia. Mas identificar a religião como uma força anticientífica e antifilosófica, criadora de sistemas de reificação, idolatria e mistificação que intimidam e paralisam a capacidade racional dos homens, não chega a ser uma novidade no século XIX. Alguns iluministas já o faziam cem anos antes. Um dos grandes pioneirismos de Marx está no fato de ele ter descoberto a ideologia grassando no coração da própria ciência e da filosofia. É o que ele faz, por exemplo, nas suas famosas críticas aos economistas ingleses. A impressão que temos aí, então, é que, ao identificar o problema da ideologia, Marx age, de certa maneira, socraticamente. O que há de mais importante nesta sua reflexão é uma denúncia de uma falsificação que se produz exatamente por aqueles que são socialmente reconhecidos como os virtuosos detentores do conhecimento: os cientistas e os filósofos. Há aí, portanto, uma semelhança com a discussão que Sócrates trava com os sofistas: estes não estariam comprometidos com a verdade, visto que vendiam o conhecimento; estariam sim irremediavelmente comprometidos com quem os contratava. Sócrates detectava uma articulação entre saber e poder nesses sábios gregos, mas o fazia à medida que a denunciava e condenava. É verdade que existe aí também uma diferença importante, ou seja, os sofistas talvez não estivessem comprometidos com a verdade no sentido de uma essência para além da vida, que fundamentaria e governaria esta, porque não acreditavam que esta existisse e/ou devesse ser buscada. Neste sentido, o homem sábio e virtuoso seria para eles o que buscaria saber dominar e utilizar a potência persuasiva, ilusória e criadora do logos . Já o que Marx denuncia através do conceito de ideologia são supostos saberes, discursos, estéticas, enfim, toda uma produção que estaria articulada com o que chamava de “superestrutura” e que seria a expressão de uma base econômica, de uma infraestrutura, constituída por uma determinada forma de organização produtiva e as estruturas de poder que se constituíam a partir desta. Concluímos então que, a exemplo de Sócrates, Marx também é um filósofo preocupado, à sua maneira, em combater a impotência do pensamento, e o faz à medida que também detecta a falsidade como a sua grande agente. É

verdade que corpo e matéria ganham no pensamento de Marx um estatuto ontológico que jamais tiveram em nenhum outro filósofo da tradição racionalista. É verdade também que, quando Marx coloca o conceito de “trabalho” no centro de seu pensamento, está afirmando uma dimensão autopoiética do ser em oposição à metafísica e, para usar um modo deleuziano de explicar, em oposição à “filosofia da transcendência”. Mas a descrição que triunfa majoritariamente no marxismo toma a distinção entre verdade e falsidade como fundamental. E isso acontece não só na interpretação do conceito de ideologia, como também na interpretação do que Marx designa como o “fetichismo da mercadoria”, que descamba facilmente para uma condenação ao culto da imagem à maneira do falso testamento hebreu. E aqui não é exatamente em Nietzsche, mas num filósofo que pensa a partir de Nietzsche, que encontramos uma importante crítica ao conceito de ideologia em Marx: Michel Foucault. O pensador francês vê na noção marxista de ideologia “resquícios de metafísica” exatamente porque ela se constrói a partir da ideia de que a história seria movida por leis “universais”. ³² É como se a ideologia fosse para Marx – e sobretudo para os marxistas – a expressão de uma “consciência roubada” pelo poder. Seguindo este raciocínio, o papel da filosofia seria o de restituir esta consciência ou, para ser mais hegeliano, recolocar o homem no caminho da experiência da consciência que leva à autoconsciência. Existe em Marx uma situação limite em que a experiência material da realidade impulsiona os homens para a destruição da ideologia. Esta não deixa de ser uma experiência sensível, que acomete o corpo dos homens, e é a partir dela que a razão efetiva historicamente o avanço da consciência. O que vemos aí, sem dúvida, é o valor do corpo no pensamento de Marx, mas também encontramos, potencialmente, algo que num certo marxismo vigente é interpretado como uma espécie de “lei universal” que moveria a evolução progressista da história em direção à conquista plena da racionalidade: a luta da consciência contra a ideologia. Esta seria a maneira como os homens, segundo Marx, deveriam travar a luta da verdade contra a falsidade. É exatamente nesta “lei universal” que moveria a história que Foucault percebe criticamente um Marx “metafísico” . Neste momento, Marx afirma um valor transcendente, uma lei que, de um lugar estático para além da vida e da história, determinaria todos os seus movimentos. Esta seria, então, a maneira como se expressa em Marx a crença na razão, isto é, a crença e a busca de um princípio para além da vida que deveria fundamentar, justificar e ser a grande aspiração da vida: exatamente o que para Nietzsche é, ao mesmo tempo, uma origem e um sintoma do processo de niilismo. Assim, ainda que todo o tipo de “universal”, tanto em Hegel quanto em Marx, só se manifeste à medida que se efetiva no movimento da razão na história, a rigor, esse movimento, esse processo, visa a um grande fim racional; como o comunismo ateu no caso de Marx. É isso que faz Foucault denunciar também um “positivismo” ³³ no marxismo. Positivismo que é, como sabemos, uma das maiores expressões da “racionalidade a qualquer preço...”, do niilismo denunciado por Nietzsche, e está, como nos ensinou Virilio, nas origens do cinema.

É exatamente quando Foucault nos explica o que no pensamento de Marx o interessa, que podemos aprender como, nietzschianamente, ele constrói um trabalho filosófico que já não tem mais como pressuposto a polarização verdade x falsidade. Ele nos diz no seu Microfísica do Poder que o materialismo histórico de Marx é usado por ele à medida que descreve como as transformações econômicas e sociais operam uma transformação do corpo do trabalhador. É o que, por exemplo, Marx descreve no trecho do Capital denominado “ A Maquinaria e a Grande Indústria”, quando fala que o operário deve “adaptar-se ao movimento contínuo de um autômato” ³⁴ , ou a “ transformação do operário em acessório autoconsciente da máquina”. Foucault, tantas vezes crítico de Marx – e sobretudo dos marxistas –, parece operar aí, à sua maneira, uma radicalização do materialismo marxista. É como se ele quisesse levar o materialismo mais além do que o próprio Marx foi. ³⁵ O que se instaura para Foucault, à medida que as condições materiais da vida do homem se transformam, não é uma ideologia – um pensamento falso – que se apropriaria da consciência – um pensamento verdadeiro. O que aí se constrói é o que Foucault preferia chamar de um “ regime de verdade”. ³⁶ Não se trata de mudar o que está na consciência dos homens, substituindo a ilusão por verdade, mas de desconstruir os processos pelo qual a própria verdade se constitui. E a verdade se constitui, como nos ensina Nietzsche, como uma falsidade, uma ilusão que ganha estatuto de verdade à medida que passa pelo crivo da história. Vimos que Foucault nos mostra como encontrou, em todo o processo de busca e constituição da verdade do Ocidente moderno, procedimentos e objetivos muito semelhantes aos da velha magia, ³⁷ ou seja, a procura do acontecimento da verdade, do evento verdadeiro, e não apenas a procura da verdade como uma argumentação empreendida no âmbito do logos . Essa busca do evento da verdade, da prova empírica desta, é o que encontramos nos laboratórios dos cientistas, mas também nos procedimentos do Estado nos tribunais. O cinema nasceu como um exemplo dessa “mágica” que, obviamente, não era vista como tal, na medida em que o dispositivo não era exaltado como capaz de uma “mágica”, mas da apresentação empírica da verdade propriamente dita. Por outro lado, era de certa forma como um espetáculo de mágica que o cinema dos primeiros anos aparecia como atração nos parques de diversões, circos e vaudevilles: aplaudiam-se a máquina e a invenção técnica, mais importantes talvez do que o próprio filme . Na última sequência de O Enigma de Kaspar Hauser , de Werner Herzog, por exemplo, vemos a ciência e o Estado juntos na autópsia que os médicos legistas – cientistas da lei – empreendem no corpo do herói. Aí eles dizem falaciosamente identificar uma suposta anomalia no cérebro de Kaspar que, por sua vez, é enunciada como uma conveniente e celebrada prova empírica da anormalidade, da desrazão dos pensamentos e atos do herói em vida. É também para o acontecimento da verdade, mais precisamente para os enunciados criados a partir das visibilidades das divisões do espaço urbano, que Foucault nos chama a atenção ao analisar as grandes transformações urbanas dos séculos XVIII e XIX. O que aí se enuncia – o que a divisão urbana faz ver: “fala” – são os limites entre a razão e a desrazão, que são

administrados por estas divisões mesmo, os espaços destinados a uns e a outros, numa operação para a qual é importante o trabalho tanto da arquitetura quanto da medicina. De um lado, a cidade saneada, a pequena burguesia “educada”, a arquitetura ajudando a racionalizar a produção, enfim, a ação do Estado efetivando, mostrando e delimitando o lugar da razão. Do outro, a visão, o mostrar-se da desrazão, também na delimitação de seu espaço: o hospício, o hospital, o gueto, a prisão, a loucura, a doença e a marginalidade. ³⁸ Acreditamos que Foucault faz aí algo que o aproxima de Benjamin e de Virilio, descrevendo a transformação das “formas de percepção coletiva”, mesmo que Foucault seja um crítico por vezes duro da Escola de Frankfurt. Essas transformações são as da experiência sensório-motora – da experiência perceptiva – do real; da própria concepção do real que se altera à medida que o espaço em que os homens vivem é redefinido. O que aí se transforma são também as imagens que estes homens percebem, veem, e os enunciados produzidos por tais imagens. Neste sentido, a própria arquitetura parece exercer também para ele, como para Benjamin e Virilio, a função de gerar uma “percepção coletiva” do real, embora Foucault não use tal expressão. Para Benjamin e Virilio essa função da arquitetura vai passar a ser exercida pelo próprio cinema. É curioso porque o próprio Marx – o Marx que vimos interessar em especial a Foucault – fala em “adaptar-se ao movimento contínuo do autômato”, como expressão da sujeição do operário ao maquinário da indústria. Mas “autômato do movimento” é também a forma como Deleuze define o cinema; um autômato que na sua dimensão liberadora, como acreditaram alguns cineastas clássicos, provocaria, através de uma espécie de choque sensorial, o funcionamento do “autômato espiritual” que nos constituiria. Deleuze se encontra com Virilio, no entanto, quando concorda que em determinado momento o autômato do movimento teria virado um grande instrumento de sujeição social. É como se Virilio tivesse percebido que os corpos sujeitos ao “movimento contínuo dos autômatos” estivessem agora não apenas na linha de montagem da indústria, como descreveu Marx, mas também nas salas de cinema. Mas Deleuze jamais poderia compreender o cinema apenas desta maneira, o que seria contraditório com o gesto de escrever dois grandes livros em que é a imagem cinematográfica que aparece como uma potência do pensamento. Mas há de fato uma relação importante a ser analisada entre cinema e impotência – “impoder” – do pensamento, conforme Deleuze nos dá claramente a entender. Esta relação passa pela questão do clichê e do autômato, sem que sejam necessariamente distintas. E, é claro, esta impotência é muito mais do que uma incapacidade para se fazer filosofia ou para se dedicar às atividades intelectuais em geral, antes é uma impotência que atravessa todas as possibilidades produtivas através das quais a vida se mantém e se reinventa. Essa é, na verdade, a questão política e a questão ética que atravessa toda a filosofia de Deleuze: a de compreender a criação como a condição de realidade da liberdade, identificando e potencializando as forças que atuam nesse sentido, ao mesmo tempo em que identifica e desmonta os poderes constituídos que, como contra-forças da vida, tentam afastá-la de se assumir completamente na sua dimensão autoinventiva.

Personagens automatizados ou forças automatizantes não deixam de ser temas do cinema e, em especial, como nos chama a atenção Deleuze, do expressionismo alemão. Já pouco antes, no primeiro filme alemão importante, o “pré-expressionista” O Estudante de Praga , de Stellan Rye, o espectro do estudante (a imagem duplicada no espelho) vira um personagem autômato e torna-se o vilão do filme. Este é, para muitos, o primeiro filme onde cinema fala de cinema, posto que o vilão nada mais é que uma imagem que passa a mover-se por si só. Curioso exatamente que seja um “vilão”, que esse personifique o mal, estabelecendo o que vai se repetir em quase todos os filmes do expressionismo: das sombras, da escuridão, sempre aparecem personagens hipnotizadores, falsários, ilusionistas, cientistas sinistros que clonam figuras humanas, e clones que são eles mesmos malfeitores. A primeira impressão que nos passa, e que não é falsa, é que o cinema expressionista alemão parece tomado de uma espécie de “platonismo”, insistindo sempre em condenar moralmente a imagem, o falso e o simulacro. Paradoxalmente, é como se o cinema condenasse moralmente o próprio cinema, o que é mais um exemplo do racionalismo do cinema clássico. Mas o mais importante é a maneira quase visionária como os diretores expressionistas anteveem, ainda que inconscientemente, que algo sinistro se prepara obscuramente, maturando-se nos subterrâneos da Alemanha. Por isso talvez existam para Deleuze tantos personagens hipnotizadores, falsários e ilusionistas no expressionismo alemão. É como se o cinema mesmo estivesse percebendo que, no lugar das massas emancipadas pelo autômato do movimento que potencializaria o autômato do pensamento, como sonhou Eisenstein, ele estaria se transformando num grande instrumento hipnotizador das massas, como vai acontecer no nazifascismo, e também de certa forma em Hollywood. E no centro desse movimento estava o grande personagem, inclusive cinematográfico, do Hitler hipnotizador das massas. Não se trata aqui de condenar o que seria a “estetização da política”, como entendeu a Escola de Frankfurt, mas de travar a luta política na dimensão estética que sempre a constitui. Ou, como diz a citação do cineasta alemão Hans-Jürgen Syberberg, autor do belíssimo e controverso filme Hitler, um filme da Alemanha : “derrotar cinematograficamente o Hitler cineasta”. E aqui, voltando a Nietzsche, o grande agente da impotência do pensamento não seria a falsidade, e sim a condenação moral da falsidade. É esta que paralisaria o pensamento na medida em que paralisaria os nossos corpos. Na verdade, Nietzsche, quando se empenha no combate ao niilismo, age como um bom e velho filósofo combatendo algo que estaria impedindo os homens de pensar. Trata-se da denúncia de uma força não apenas antifilosófica, mas de uma contraforça do pensamento de forma geral. Neste sentido, Deleuze é um nietzschiano, mesmo que seja profundamente redutor defini-lo desta maneira. Antes de Deleuze, é em Nietzsche que o pensamento é compreendido como parte de uma força autopoiética pela qual a vida não só se mantém, como também se expande e se reinventa. É esta característica que faz Deleuze colocar Nietzsche como figura central do que ele chama de “linhagem” da filosofia da imanência: a filosofia de Nietzsche como uma força poderosa contra tudo o que na filosofia afirma a transcendência, isto é, que afirma a existência de algo fora da vida que a principia e dirige.

No caso do livro sobre cinema, é o imanentismo de Nietzsche e a compreensão da dimensão autopoiética do Ser que permite a primeira entre tantas aproximações com Bergson que vamos fazer, posto que Bergson vai propor como uma questão central da filosofia a pergunta sobre “como é possível a criação do novo”. Assim, Bergson, que não está nas primeiras relações de filósofos da imanência que Deleuze faz, vai se tornar – pela maneira como compreende o funcionamento do universo e o surgimento da vida no coração deste – um filósofo central para a compreensão do que Deleuze define e descreve como um “plano de imanência”. É Bergson também que vai fazer implicitamente Deleuze perceber que o cinema sempre esteve, potencialmente, como uma possibilidade inventiva no coração desse plano de imanência mesmo. Quanto a Nietzsche, por mais paradoxal que possa parecer, temos a impressão de descobrir nele uma dimensão socrática: o filósofo como um médico dos homens e da civilização. De fato, Nietzsche diagnostica, como Sócrates na época da sofística, uma doença. Mas esta doença não seria o apreço dos homens pelas coisas materiais, nem a proliferação da mentira e da falsidade, como o grego detectara na sofística, e sim o niilismo. E, como vimos, para Nietzsche a origem do niilismo está exatamente nesse movimento socrático de condenar moralmente tudo o que experimentamos através do corpo, isto é, através da experiência dos sentidos: o movimento que levaria consigo a condenação moral da falsidade. É aí que está a grande diferença entre Nietzsche e Sócrates. É como se, para o alemão, o filósofo que deve detectar doenças e propor curas para os homens não devesse ser, como propunha o grego, um médico de almas, e sim um médico de corpos. Bergsonianamente falando, veremos que este será também, de certa forma, um médico de imagens, o que grandes cineastas e grandes filmes buscaram ser à medida que quebraram clichês e restituíram à imagem seu poder instaurador de realidade. A imagem, portanto, experimentada como uma potência do pensamento. 22 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 9. 23 NIETZSCHE, Friedrich. Der Wille zur Macht. Munchen-Wien: Carl Hansen Verlag, 1980, anotações 43 e 44. 24 NIETZSCHE, Friedrich. “Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida”. In: Considerações Intempestivas . Lisboa: Presença, p. 143. 25 NIETZSCHE, Friedrich. Der Wille zur Macht. Munchen-Wien: Carl Hansen Verlag, 1980, anotações 1 e 2. 26 NIETZSCHE, Friedrich. Le Crépuscule des Idoles. Paris, 1904, p. 117. “Eu reconheci em Sócrates e Platão os sintomas da decadência, os instrumentos da decomposição grega, os pseudogregos, os antigregos.” 27 Ibidem, p. 126. “Moral: se livrar das ilusões dos sentidos...” 28 PLATÃO. A República . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, livro VI.

29 I. T., p. 218. Deleuze usa tanto o termo “impouvoir” quanto “impuissance”, para falar do impoder, da impotência do pensamento. Os dois conceitos aparecem num contexto em que está sendo articulado o projeto que Artaud tinha para o cinema com o pensamento de Heidegger. Como veremos mais detalhadamente no final do livro, Deleuze nos mostra que tanto Artaud quanto Heidegger veem que deste “impoder” do pensamento podemos extrair uma potência; ou talvez que seja exatamente daí que ele extraia a sua potência: que ele tenha o seu nascimento. Isso sem dúvida os liga a Nietzsche e ao “niilismo”, pois para este filósofo a superação do niilismo passa necessariamente pela radicalização da própria experiência existencial deste. Mas a verdade é que usamos assumidamente tais termos – “impoder”, “impotência” – num sentido mais genérico que Deleuze, posto que supomos que, de certa maneira, muitas vezes a filosofia teve que se deparar com esta questão, qual seja, a de enfrentar as forças da impotência – do “impoder” – do pensamento, as forças que ela percebia agir contra a própria atividade filosófica, mesmo que, segundo Nietzsche, ao tentar combatê-las, a filosofia possa tê-las fortalecido. 30 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas . Rio de Janeiro: NAU Editora, 2001, p. 140. 31 BENJAMIN, Walter. “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”. In: Magia e Técnica, Arte e Política , op. cit., p. 169. 32 FOUCAULT, Michel. “Verdade e Poder”. In: Microfísica do Poder . Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 10. 33 Ibidem, p. 2. 34 MARX, Karl. “A Maquinaria e a Grande Indústria”. In: O Capital . São Paulo: Abril Cultural, 1983, cap. XIII. 35 FOUCAULT, Michel. “Poder-Corpo”. In: Microfísica do Poder , op. cit., p. 148. 36 Idem, “Verdade e Poder”, p. 12. 37 Idem, “A Casa dos Loucos”, p. 114. 38 Idem, “Sobre a Prisão”, p. 129. Estas reflexões de Foucault serão muito importantes para nós quando analisarmos o filme expressionista O Vampiro de Düsseldorf , de Fritz Lang. 3. Bergson O universo como metacinema Já no primeiro capítulo do livro A Imagem-Movimento , dos quatro que dedica ao pensamento de Henri Bergson nos seus dois livros sobre cinema, Deleuze nos chama a atenção para o fato de que devemos, em primeiro lugar, ver Bergson diante de um impasse. Um impasse que era o da filosofia e da psicologia no século XIX e que, além de Bergson, foi pouco antes

enfrentado por Nietzsche e, de maneiras distintas, também pela fenomenologia e pela psicanálise. O que tínhamos até então era o hábito de articular o movimento dos corpos com o espaço e as imagens com a consciência. As imagens seriam a representação na consciência dos corpos, dos objetos, percebidos em seus movimentos no espaço. De um lado, no espaço, estaria a extensão; de outro, aquilo que a percepção do objeto extenso produziria no espírito, isto é, a imagem como algo absolutamente inextenso. Deleuze resume numa questão o impasse que Bergson tenta resolver com a sua filosofia: como poderíamos explicar, de um lado, a transformação do corpo extenso na representação, isto é, nessa imagem inextensa? Como poderíamos explicar, de outra parte, o fato de a representação produzir no corpo um movimento voluntário que modifica a própria extensão? ³⁹ Assim, como o próprio Kant já tinha percebido bem antes, a filosofia, a psicologia, enfim, a ciência, já não podia mais continuar nesse impasse entre materialismo e idealismo procurando, de um lado ou de outro, a origem, a essência, de todo processo do real. É verdade que se Kant já havia detectado esse problema, autores posteriores a ele, como Hegel, nos mostram o quanto ele mesmo não conseguiu superá-lo. O que tanto Bergson quanto a fenomenologia percebem é que a ciência permanece, século XIX adentro, prisioneira dessa dualidade. E é preciso lembrar que ainda hoje na academia podemos encontrar os pressupostos dessa discussão. O que Bergson faz nesse contexto é, em primeiro lugar, libertar o movimento do espaço. De fato, se para Platão o movimento era algo que existia à medida que se referia e aspirava a instantes privilegiados – as Ideias que, pensadas imageticamente, seriam como poses, modelos –, para a física moderna de Galileu e Newton, o movimento é compreendido a partir de instantes quaisquer no espaço, inerentes à trajetória percorrida por um corpo. Ou seja, através de uma reta, e dos pontos que a constituem, acreditava-se poder reproduzir o movimento de um corpo. Bergson nos chama a atenção, no entanto, para o fato de confundirmos a trajetória percorrida por um corpo com o movimento deste. Para Bergson, o movimento é irreprodutível; é um equívoco tentar reproduzi-lo traçando um risco no espaço, entre tais e tais pontos estáticos, por onde um corpo teria percorrido determinada trajetória. Por exemplo: quando alguém fez determinado movimento, costumamos dizer que esta pessoa foi de tal ponto a tal ponto. Se quisermos ser mais analíticos nesta descrição poderíamos ainda dizer que esta pessoa saiu de tal ponto, passou por tais e tais pontos até que chegou a seu ponto de destino. O que tivemos aí? A descrição apenas do risco, da linha, da trajetória que esta pessoa percorreu no espaço e também dos pontos por onde ela passou. A reta, que marca a trajetória não reproduz o movimento mesmo, e os pontos, menos ainda. Os pontos são sempre a expressão de um estado estático, podem marcar o lugar por onde um corpo passou, ou por onde um corpo poderia se deter; mas acreditar que estes servem para reproduzir o movimento é absolutamente contraditório, nos avisa Bergson, posto que estaríamos usando, para expressar o movimento, algo que se define, em primeiro lugar, pela sua imobilidade. Tentar reproduzir o movimento através de pontos, de golpes (“ coups ” como diz Bergson) é cometer o erro de querer matar o

movimento para descrevê-lo. O movimento aconteceria sempre antes ou depois daquilo mesmo que usamos para representá-lo: por mais que aumentemos esses pontos indefinidamente, o movimento se dará sempre antes ou depois, e nunca neles. Assim, isto que para Zenon constituía um paradoxo é explicado por Bergson pelo simples fato de que os pontos, na verdade, são em si mesmos expressão do antimovimento, do estático. Zenon teria partido, segundo Bergson, desse pressuposto equivocado que crê que é possível reproduzir o movimento através de uma reta e de pontos, de golpes estáticos, marcados nessa reta. Por isso Bergson argumenta em importantes momentos de sua obra que os famosos paradoxos de Zenon simplesmente não existem. ⁴⁰ O mesmo aconteceria se quiséssemos medir o tempo do movimento transformando em instantes os pontos pelos quais este corpo passou. Assim, determinaríamos as horas, os minutos, os segundos, dos instantes em que este corpo passou em cada parte; ou ainda, mediríamos o tempo em horas, minutos, segundos, que o corpo demorou para cumprir tal percurso. O que teríamos aí, mais uma vez, seriam pontos estáticos no tempo, da mesma maneira que tivemos antes pontos estáticos no espaço; de novo mataríamos o movimento exatamente quando estávamos no intuito de tentar descrevê-lo e reproduzi-lo. Além disso, ao medirmos o tempo deste movimento anularíamos toda a sua particularidade, toda a sua diferença qualitativa, criando uma medida abstrata – as horas, os minutos, os segundos – que reduziria todo e qualquer movimento a um único denominador quantitativo. Esta forma de compreender o tempo, criticada ou vista como limitada por Bergson, é expressão de uma definição do tempo que vem desde a Física de Aristóteles, em que afirma-se que o tempo é um “número do movimento” e, portanto, pode ser representado através dele. Uma compreensão do tempo em que este possa ser mais do que simplesmente algo que se representa através do movimento vai ser fundamental, como veremos adiante, para Deleuze construir a sua teoria que fala de um cinema, surgido a partir da Segunda Guerra Mundial, que teria sido capaz de fazer o tempo “se insurgir contra o movimento”. Voltaremos a este assunto oportunamente. Por enquanto, é importante que tenhamos entendido esta conclusão a que Bergson chega, qual seja, que o movimento é sempre uma singularidade: os movimentos são sempre heterogêneos entre si e, portanto, representam sempre qualidades diferentes. Isto significa que, ao estarmos diante do movimento, estamos diante de uma parte da duração, e é exatamente esta parte da duração que é irreprodutível. Logo, o movimento real é para Bergson uma duração concreta. É neste contexto que Bergson vai concluir que movimento é igual à imagem. Quer dizer, a imagem é a expressão do movimento exatamente porque ela é a própria diferença qualitativa. O que Bergson está afirmando aí é que não existe o objeto que gera a imagem, nem mesmo existe um objeto que teria uma qualidade: o que há é um objeto que só pode ser percebido à medida que se move. Toda percepção é já um ato de movimento, ela só existe por causa de um movimento e à medida que provoca um movimento. O que normalmente entendemos como sendo um atributo de um objeto é na verdade o próprio objeto se movendo, vibrando e, com isso, gerando movimento, vibração, no outro objeto.

Há, portanto, uma “percepção” em Bergson que é, em primeiro lugar, a expressão da própria relação existente entre os objetos. Por enquanto, estamos falando de objetos que estão o tempo todo “se percebendo”, isto é, agindo e reagindo uns sobre os outros, ou melhor, interagindo uns com os outros. Por isso ele vai definir esta percepção como uma espécie de fotografia sem suporte, sem papel para imprimi-la, onde todas as coisas reflitam todas as coisas: tudo está sempre fotografando tudo. E nem seria exato dizer que é uma dinâmica de ação e reação, porque seria impossível determinar o que seria ação e o que seria reação. É só num segundo momento que, para Bergson, vai aparecer no universo a percepção subjetiva e consciente. Já antes de compreender esta forma de percepção, no entanto, podemos ver que a experiência de realidade é sempre, para Bergson, a de um objeto-imagem. ⁴¹ É este que estará na origem de uma percepção que será, como define Deleuze, mais do que queriam os idealistas e menos do que queriam os empiristas. ⁴² De fato, o objeto-imagem é extenso, material, mas, por outro lado, não tem nenhuma essência estática – não tem um “substrato” –, posto que só pode ser objeto à proporção que é objeto-imagem e à medida que existe o movimento que vai gerar a percepção: uns objetos indo de encontro aos outros, vibrando e produzindo vibração. Trata-se, na verdade, de um conceito que exprime algo de fundamental que Bergson traz com a sua filosofia: uma consistência ontológica para a imagem que talvez só possa ser comparada, antes, com a que tem para Nietzsche. ⁴³ Estas são posições exatamente contrárias ao lugar que a imagem ocupa no universo de Platão, onde ela é a expressão de um “menos ser”. É como se Bergson estivesse aprofundando e detalhando a “inversão do platonismo” sugerida por Nietzsche. Ao compreender a experiência do objeto material – do mundo material – como sendo, de certa maneira, a de uma imagem, Bergson coloca a imagem na própria gênese do real. Isto ficará mais claro quando examinarmos como se dá a experiência da dobra, este voltar-se para dentro que nasce a partir de um intervalo no cosmos, os “centros de indeterminação” dos quais nós somos o mais complexo de todos. Por enquanto, é importante que tenhamos percebido que o que gera movimento é, para Bergson, o que gera a própria imagem: não há nada que ilumine as coisas, as coisas são iluminadas por elas mesmas. A imagem é assim a própria expressão do movimento, e o movimento é o estado permanente no qual o universo todo sempre se encontra. Consequentemente, esse é também o próprio estado da matéria. Além disso, só há percepção à medida que existe movimento e que se gera um movimento. O que há, então, é uma total identidade entre movimento, matéria e imagem, e a percepção acontece porque existe entre as diferentes partes do universo uma espécie de diferença de energia. O universo seria como uma rede interminável, infinita, de transmissão de energia, de uma maneira que todas as partes se relacionam com todas as partes. Ou seja, estamos aqui diante de um plano de imanência de luz, numa descrição que não poderia deixar de nos lembrar de Heráclito: “ O raio conduz todas as coisas que são ”, ⁴⁴ Por isso dissemos que é como uma fotografia sem

suporte, sem papel ou película para se imprimir. Ou ainda um cosmos cinema sem tela e sem projetor em pontos determinados: todos os objetosimagens estão sempre se projetando uns sobre os outros. É por isso também que podemos falar de imagem, de luz, sem ainda falar de consciência, de olho. É como se todas as partes do universo, ou seja, tudo o que seria o objeto-imagem, fossem uma espécie de olho, ou então aquilo que o rosto é para o corpo humano, isto é, um centro de percepção, um centro de ação-reação, um centro de reflexão. Cada corpo no universo percebe o seu “em torno” como todas as suas partes. Não há, por enquanto, nenhum tipo de seleção nesta percepção. Ao falar da luz como um plano de imanência do universo, Bergson volta a quebrar um antigo dogma da filosofia, qual seja, aquele que separa a luz da matéria, da extensão, pondo-a no pensamento, no espírito e/ou na consciência. Resumindo muito, poderíamos dizer que para a filosofia, tradicionalmente, a matéria só poderia se revelar na sua extensão porque a ela se oporia a luz, o pensamento, o espírito, condição para a sua revelação. A luz assim compreendida seria o inextenso, que se opõe à extensão e constitui a própria representação. Para Bergson, no entanto, luz é matéria e matéria é luz. Não se trata da luz que os homens encontram ao sair da caverna na “Alegoria” de Platão, isto é, ela não é uma espécie de elemento à parte que permite a visão de todos os outros elementos. Para Bergson, a luz não ilumina os objetos, são os objetos que se iluminam a partir de si próprios. Esta iluminação se dá como uma diferença qualitativa que existe entre os objetos: a maneira como cada um deles vibra. A percepção existe, então, porque há entre os objetos essa diferença, quer dizer, a percepção se dá graças a uma diferença de energia. Por isso Bergson vai dizer que o objeto é uma espécie de fotografia da luz, de instantâneo da luz, ou seja, a configuração que a luz, e portanto a matéria, o objeto-imagem, adquire num dado momento da duração. Trata-se aqui de uma operação absolutamente inovadora de Bergson na filosofia, uma vez que ele tira a origem da imagem de dentro da consciência e vai descobri-la nas coisas mesmas, extinguindo inclusive, a distinção e a exterioridade entre matéria e luz. Trata-se de uma operação que a fenomenologia não logrou fazer, posto que se esta ancorou a consciência às coisas, e portanto à extensão (“toda a consciência é consciência de algo”), permaneceu distinguindo-as entre si. É neste ponto inclusive que Deleuze vê o universo bergsoniano como um “metacinema”, isto é, este plano de imanência matéria-luz em que o Todo se identifica como uma duração, um aberto, que não para de se engendrar e se reinventar: o Todo como “matéria escoante”. Mais ainda, Deleuze acrescenta aqui Bergson à lista dos “filósofos da imanência”, que costumava elencar nomes como Heráclito, Espinosa e Nietzsche. Deleuze nos chama a atenção diversas vezes para o fato de Bergson descrever o universo como um grande plano de imanência, onde à identidade por nós já vista entre movimento, matéria e imagem, acrescentase agora a luz. Trata-se da mais eficaz forma de superar o impasse entre idealismo e materialismo que dominava a filosofia há séculos. Arriscaríamos dizer que foi a partir daí que Deleuze constituiu a sua própria concepção de

“plano de imanência”, chegando à concepção do universo como um aberto, o Todo que não para de se engendrar a si mesmo e se identifica como uma duração. Acreditamos que o plano de imanência deleuziano tem mesmo esta consistência que se define na frase de Bergson: “mais do que queriam os idealistas e menos do que queriam os materialistas”. E mesmo sendo “menos” do que queriam os materialistas, Bergson ajuda Deleuze a chegar à sua compreensão peculiar do materialismo em que a matéria é concebida muito além do modelo hilemórfico aristotélico, livrando-se de ser determinada a partir do que seria tanto o seu “atributo essencial” quanto a sua “causa final” (o seu “telos”). A Matéria passa a ser definida então a partir do que, em Mil Platôs , Deleuze, junto com Félix Guattari, vai definir como um “Philum Maquínico”. Deleuze chegaria aí ao que definiríamos como um “materialismo do devir”, o que será, inclusive, fundamental para a filosofia política que ele desenvolve com Félix Guattari em O Anti-Édipo e Mil Platôs , fazendo até mesmo um importante diálogo com Marx – o que boa parte dos deleuzianos estranhamente evita mencionar. É claro que este livro não é especificamente sobre a filosofia política de Deleuze, embora, mais de uma vez, as questões do cinema sejam desdobramentos e se desdobrem nesta filosofia. O próprio problema do clichê como algo que tem a ver com a impotência da imagem – compreendida como parte da expressão da impotência do pensamento – e a desconstrução e superação do clichê como uma espécie de reencontro liberador das plenas possibilidades inventivas da imagem têm uma implicação fatalmente política. Por ora, no entanto, é importante que compreendamos que nesse universo material de Bergson o plano de imanência é um “maquinismo e não um mecanismo”, ⁴⁵ compreendendo que o cinema como dispositivo é uma variação possível desse plano de imanência no desdobramento de uma dinâmica que já era desde sempre a do universo. É por isso que o cinema, como criação de objetos-imagens, pode ser uma potência de transformação do universo a partir de dentro. De fato, o universo material bergsoniano-deleuziano é o “agenciamento maquínico de imagens-movimento”. ⁴⁶ O cinema vai ajudar a engendrar de forma particular essas imagens e também, como acontecerá com o cinema moderno, irá além e desenvolverá a sua capacidade de presentificar diretamente o tempo. Percepção cinematográfica Vejamos então como surgem no universo bergsoniano os seres vivos. Em certo momento desse universo em permanente movimento e radicalmente acentrado, onde tudo reflete tudo, aconteceria uma espécie de intervalo, de hiato: um desses objetos-imagens deixaria de reagir imediatamente a uma ação sofrida. O que aparece aí é o que Bergson chama de “centro de indeterminação”. Ao não reagir imediatamente à ação de qualquer objetoimagem à sua volta, o que esse objeto-imagem faz é um movimento de voltar-se para dentro, criando uma espécie de universo interior. Mas não se trata, na verdade, de um universo radicalmente interior, ou melhor, não existe uma distinção, uma separação absoluta, desse centro de indeterminação para com o resto do universo em permanente movimento. O que existe realmente é uma alteração, um descompasso, no movimento do universo circunscrito por aquele objeto-imagem na medida em que ele se

volta para dentro. É como se a reação do objeto-imagem que deveria suceder imediatamente a uma ação sofrida fosse adiada; o que nos leva a concluir que aquilo que esse centro de indeterminação introduz no cosmos é uma espécie de diferença, de alteração de tempo. O próprio centro de indeterminação é então um objeto-imagem. É por isso, inclusive, que Deleuze vai designá-lo como uma imagem-vivente: a origem dos seres vivos segundo Bergson. Temos então a convivência entre dois regimes de imagem: o primeiro absolutamente acentrado, em que tudo percebe tudo, como descrevemos acima; o segundo, a partir da criação dessa espécie de “imagem central” que é o centro de indeterminação. Na verdade, essa imagem-vivente passa a funcionar como uma imagem central que se refere às outras imagens. No ato mesmo de seu nascimento, o mundo se dobra em torno dela, o que faz aparecer a experiência da perspectiva, do horizonte, como algo que invariavelmente constitui a experiência do real de um ser vivo. Assim, a separação que o centro de indeterminação introduz no universo faz surgir uma percepção especializada, quer dizer, se antes cada objeto-imagem percebia tudo à sua volta, agora ele irá perceber apenas com uma de suas faces. O que aparece aí é o princípio do que vamos chamar de uma “escolha”: uma seleção. O impulso nervoso que antes atravessava o universo acentrado é, a partir da separação que constitui o centro de indeterminação, retido, ou parcialmente retido. O vivente, na medida de suas possibilidades, escolhe como o universo dos objetos-imagens que estão em torno dele vai afetá-lo, procurando escolher o que desse afeto ficará retido e o que se desdobrará numa ação. O surgimento dos centros de indeterminação – o surgimento da vida – é então para Bergson o surgimento de uma percepção especializada: o princípio do que poderíamos chamar de uma percepção subjetiva. Cada um desses centros se constitui à medida mesmo que cria seu próprio mundo. Deleuze, numa longa entrevista gravada num vídeo denominado O Abecedário de Deleuze , está sem dúvida inspirado em Bergson quando nos descreve como, por exemplo, um carrapato constitui o seu mundo, selecionando, para a sua utilidade, três ou quatro percepções que são suficientes para que perceba a proximidade de um animal, possa saltar entre seus pelos e começar a sugar o seu sangue. Todos os restantes fenômenos do universo, diz Deleuze, não interessam em nada para este pequeno e simples ser vivo. A complexidade desse centro de indeterminação, que vem a ser a do vivente, vai ser determinada pela capacidade que ele tem de articular os mais antigos e distantes impulsos nervosos retidos com aqueles que está tendo no presente. É claro, esta complexidade depende do grau de sofisticação de um sistema nervoso, que por sua vez se desdobra na constituição de uma memória e de uma consciência igualmente complexas. Assim, não poderíamos deixar de concluir que o mais complexo dos centros de indeterminação, isto é, o mais sofisticado dos viventes, é o homem. Os centros de indeterminação são a própria origem da nossa experiência do real. Se os seres vivos não fossem dessa forma, a percepção dos objetos em torno deles simplesmente os atravessaria. Ela poderia sofrer até transformações, mas nenhum tipo de retenção: os impulsos nervosos se

perderiam, então, universo afora. Como centros de indeterminação capazes de reter essas imagens, esses impulsos nervosos, os seres vivos – e nós entre eles – funcionam como o papel, o suporte ou mesmo a película da fotografia – ou ainda, a tela do cinema. De fato nós, como qualquer outro centro de indeterminação, somos também um objeto-imagem. Mas, como esses intervalos, somos agora objetos-imagens que selecionam, de todos os objetos-imagens que estão à nossa volta, aquilo que nos é necessário. Bergson está descrevendo com isso a origem da própria consciência, quer dizer, a consciência é exatamente como uma imagem central, uma imagem que regula e se refere a todas as outras imagens. E se ela assim o faz de acordo com as suas necessidades, isso vem a ser exatamente o que chamamos escolha, discernimento. É nesse momento inclusive que Deleuze vai identificar esta descrição do surgimento da consciência com o próprio “plano” no cinema: “o plano, isto é, a consciência”, como repete algumas vezes nos seus dois livros sobre cinema. Assim, se antes descrevemos a relação que existe entre os objetos-imagens como de “fotografias sem suporte”, agora estamos diante da fotografia “impressa” em um suporte. E isso acontece exatamente porque os centros de indeterminação são tipos especiais de objetos-imagens que retêm parcialmente as percepções que têm de outros objetos-imagens. Para Bergson a consciência é uma imagem entre outras, ele não deixa de observar a diferença que existe entre a imagem que produzimos na nossa consciência e a constituição mesma do objeto exterior a nós. Aqui ele nos chama a atenção para o que formula como sendo a diferença existente entre a presença do objeto e a sua representação. Tal questão também havia chamado a atenção da fenomenologia e, influenciado por Husserl, Sartre se debruçou sobre ela no seu O Imaginário . Sartre descreveu o que chamou de “ilusão da imanência”, ⁴⁷ mostrando, com certa perplexidade, o quanto a filosofia e também a psicologia foram por muito tempo vítimas dessa ilusão. O que lhe causou estranhamento é o fato de durante muito tempo estas ciências não perceberem que há uma distinção fundamental – usando aqui uma formulação da fenomenologia – entre a imagem que se produz na consciência e a estrutura do objeto mesmo que esta imagem intenciona. Para Bergson, no entanto, o fenômeno da percepção dos seres vivos continua sendo o que era antes do aparecimento destes – do surgimento dos centros de indeterminação –, ou seja, continuam sendo de natureza motora. Quando escolhemos o que vamos perceber, estamos escolhendo com o que vamos interagir. O que há nesse momento é uma ação imediata e também uma retenção, quer dizer, um movimento que se interioriza e vai constituindo a memória. A memória para Bergson é, então, uma retenção de movimento que, quando evocado por um movimento sofrido pelo corpo no presente (a percepção) literalmente se reincorporará: irá se reapresentar no limite entre memória e matéria (entre passado e futuro), que vem a ser o próprio corpo. Avançando nesse raciocínio, Bergson descobre duas dimensões da memória: a primeira ele chamará de memória motora e a segunda, de memória passada. Esta também terá uma característica fundamentalmente motora, embora apareça num processo bem mais complexo que a primeira. A

chamada memória motora propriamente dita, Bergson nos mostra que é uma memória que se expressa imediatamente em cada um dos movimentos de nosso corpo. Por exemplo, a agilidade ou não de uma ação com a qual respondemos a uma percepção depende, diretamente, do fato de termos bem, ou mal, constituída esta memória motora. É o que expressa o exemplo dado por Bergson: se passeamos pela primeira vez numa cidade, nosso corpo demonstra pouca agilidade, hesitando em cada esquina, olhando para todos os lados, não sabendo exatamente que rumo tomar. Mas se, por outro lado, já estamos familiarizados com esta cidade, os movimentos, ao caminharmos por suas ruas, serão ágeis, com pouca hesitação, quase sempre uma resposta imediata do corpo a cada variação do percurso que estamos fazendo. ⁴⁸ Isso acontece porque a nossa percepção cuidou de guardar na nossa memória o conjunto de objetosimagens que constituem esta cidade; isto, como vimos, é sempre uma interiorização de movimento: percepções passadas da cidade que afetaram motoramente o nosso corpo e que foram fazendo com que nos familiarizássemos com esta ao ponto de, a cada impulso motor das percepções presentes, sabermos responder de imediato com as percepções guardadas – os impulsos motores armazenados na memória que virão ao nosso corpo fazendo-o se movimentar. Bergson avança, em seguida, para um esquema mais complicado que é o que vai nos interessar mais num trabalho sobre cinema. Estamos falando do esquema da percepção atenta. Ao avançarmos para a descrição desta percepção estaremos nos aproximando – ainda que inicialmente, referindonos a um trecho de Matéria e Memória – de uma descrição daquilo que o autor vai chamar, em A Evolução Criadora , de “ mecanismo cinematográfico do pensamento ”. ⁴⁹ De fato, este mecanismo já está presente na primeira descrição à medida que nesta já operamos, entre todos os objetos-imagens que potencialmente podem nos afetar, uma seleção. Percebemos nos objetos aquilo que neles nos interessa, e para determinar este interesse, esta escolha, a ação daquilo que está retido em nossa memória é fundamental. A segunda forma de percepção – a percepção atenta – descrita por Bergson é, a rigor, uma radicalização desse hiato, desse intervalo que nós, como o mais complexo dos centros de indeterminação, introduzimos na duração. Ao escolher, ao tomar da duração apenas aquilo que nos interessa, nós na verdade damos pequenos “golpes”, tiramos pequenos recortes, de forma semelhante aos pontos traçados em uma reta: rápidas “fotos”, instantâneos da duração. Dela só temos, portanto, vestígios, que funcionam para nós como signos que vão operar um mergulho em nossa memória e chamar à superfície do corpo o movimento retido (o objeto-imagem guardado). Assim, como uma câmera de cinema, o nosso mecanismo de conhecimento do real vai tirando uma foto em seguida à outra. Estas são, na verdade, os golpes na duração de que falamos, que, por sua vez, são exatamente como os fotogramas: diversos instantâneos uns após os outros, cujas imagens estáticas vão se imprimindo na película cinematográfica. Mas a experiência que temos da realidade, a percepção consciente, é sempre de uma imagem-movimento. Para a constituição desta imagemmovimento, na verdade uma espécie de reconstituição graças às

necessidades e às escolhas que fazemos, a memória vai ser fundamental. É ela que preenche os espaços entre estes fotogramas, isto é, é ela que faz a liga entre os diversos instantâneos, as diversas fotos, que tiramos da duração recolocando-as em movimento. A nossa percepção, o nosso conhecimento, funciona então, segundo Bergson, de maneira extremamente semelhante à ilusão do movimento que nos dá o cinema. Cada um dos golpes que damos no real, os fotogramas, funcionam como quadros, como signos que enviam imediatamente uma mensagem à nossa memória, que cuida de preencher o movimento do qual esta percepção seletiva nos trouxe apenas vestígios. Para Bergson então, diante da complexidade e da multiplicidade dos movimentos que podem nos afetar, tiramos deles apenas aquilo que nos interessa: os vestígios, os signos, os fotogramas. Estes, por sua vez, remetidos à memória, farão com que esta venha à tona. Este “vir à tona” da memória é literalmente uma “incorporação” de um movimento retido. Aí então a matéria percebida vai ser “montada” com memória evocada, constituindo a experiência do real que se dá no presente. E o lugar do presente vem a ser exatamente este limite entre matéria e memória onde as duas se “editam”: o corpo. O aprofundar-se da observação e do conhecimento do mundo é, a rigor, um aprofundamento desse processo. Bergson nos mostra que quanto mais mergulhamos num processo de questionamento e pesquisa sobre o mundo, à medida que aumentamos a nossa atenção a ele, mais estamos operando um mergulho dentro de nós: uma pesquisa em nossa memória, uma viagem no passado que, uma vez vindo ao presente, preencherá os espaços no mundo sobre o qual aumentamos a nossa atenção. Não há percepção, em Bergson, que não esteja sempre impregnada de memória, assim como não há memória que não seja de alguma maneira evocada por uma percepção presente. Assim, se considerarmos esta descrição de Bergson, podemos entender que todos os processos de conhecimento, toda a experiência do real, tudo que chamamos linguagem, acontece desta maneira. As palavras, por exemplo, os conceitos, as expressões, são também enquadramentos, golpes, fotos – instantâneos – da duração real. Uma vez expressos no presente por este limite entre passado e futuro, entre memória e perspectiva, que é o corpo, eles são maneiras pelas quais constituímos o que chamamos de representação. Assim também a representação é, de forma bastante semelhante à definição que Deleuze faz do clichê, um esquema, um invólucro sensório-motor que criamos para habitar com garantia de alguma segurança, ou talvez, eventualmente, de algum conforto e/ou prazer. Encadeando uma nas outras, ou encadeando um conceito nos outros, recriamos para nós uma duração: um outro devir, uma outra fluência. Estas são sempre tentativas de reduzir a um movimento único a infinidade de movimentos que temos em torno de nós, o que mostra também que seria um equívoco qualquer tentativa de entender a linguagem numa estrutura essencial e inerente a ela mesma, desconsiderando este ponto-limite em que ela se constitui de uma heterogeneidade e uma mobilidade. ⁵⁰ Assim, se Bergson diz que o mecanismo de nosso pensamento é cinematográfico, vejamos então como é o mecanismo do cinema: fotogramas – e portanto fotografias – em intervalos equidistantes num suporte de

película – golpes estáticos no movimento do real – que iluminados e projetados um após o outro em movimento contínuo numa tela produzem ilusoriamente, com a ajuda da persistência retiniana e da memória, uma imagem-movimento, isto é, um objeto-imagem que é ele também uma parte da duração. Bergson está descrevendo, ao detalhar a forma como se dá a percepção, um mecanismo que se assemelha a um “cinematógrafo interior”. Deleuze percebe então que Bergson está nos mostrando que, de certa forma, sempre fizemos cinema. Isso porque para ele o cinema nada mais faz do que reproduzir um mecanismo ilusório que é o da própria percepção. É este inclusive o motivo alegado por Bergson para não demonstrar grande interesse pelo cinema. Mas, curiosamente, é este exatamente o motivo para Deleuze encontrar em Bergson, mais do que apenas potencialmente, a arquitetura de toda a taxonomia das imagens cinematográficas à qual vai se dedicar nos seus dois livros sobre cinema. Para se contrapor ao ceticismo de Bergson em relação ao cinema, Deleuze pergunta, em primeiro lugar, se a reprodução da ilusão da percepção e do pensamento não seria, de certa forma, uma correção desta, como se o mecanismo do cinema descobrisse e explicitasse a ilusão onde sempre estivemos imersos e, em segundo lugar, se a artificialidade dos meios deveria necessariamente nos fazer inferir a artificialidade dos resultados. Abre-se assim o caminho para Deleuze construir toda a sua aliança com Bergson para pensar o cinema. Resumidamente, tivemos até aqui a descrição de um universo onde identificamos dois regimes de imagens. O primeiro é absolutamente acentrado, onde a percepção já se dá como um corte móvel na duração, como uma imagem-movimento, e onde já podemos notar esta identidade bergsoniana entre imagem, matéria, luz e movimento. O segundo regime de imagens é, ao contrário, este que centraliza a percepção, que faz com que o universo se curve e se dobre em torno de uma imagem central que aparece a partir de um intervalo de tempo, uma cisão e um afastamento que se dá no coração do universo antes acentrado, instalando o que Bergson chama de “centro de indeterminação”, e que Deleuze gosta de identificar também como uma imagem-vivente, posto que é a expressão da própria origem dos seres vivos para Bergson. O cinema, no entanto, nos teria dado o privilégio de fazer este caminho numa direção contrária, permitindo-nos ir do segundo regime ao primeiro, posto que a câmera de cinema pôde reencontrar o primeiro regime à medida que se instalou em diversos objetos em movimento, como se fosse o olho desses objetos, instaurando uma experiência da percepção que pode até chegar a ser inumana. E não há dúvida de que este primeiro regime de imagem – o universo onde tudo percebe tudo – apareceu de forma notável no cinema de Dziga Vertov: a “câmera olho” como ele mesmo definiu – e, de maneira particularmente espetacular, no filme Um Homem com uma Câmera . Deleuze, no entanto, nos chama a atenção também para as experiências de Win Wenders no cinema, em que a câmera aparece como um equivalente geral de movimentos de translação, instalando-se em trens, carros, aviões e ao mesmo tempo filmando estes em seus movimentos e circuitos; circuitos que vemos inclusive convergirem, cruzarem, fazerem uma momentânea interseção, correrem paralelamente ou se bifurcarem. Aqui dois belíssimos filmes nos vêm imediatamente à memória: No Decorrer do Tempo e Alices nas Cidades . Mas às observações de Deleuze, acrescentaríamos que, nestes

filmes, esses circuitos e movimentos aparecem no segundo regime de imagens, quer dizer, é como se os movimentos da câmera captassem as relações que se estabelecem entre os universos de vidas distintas: há portanto uma dimensão existencial que não encontramos em Vertov. Dedicaremo-nos mais detalhadamente a estes filmes quando aprofundarmos nossas reflexões sobre o tempo. Imagem-percepção, imagem-ação, imagem-afecção, A primeira imagem que Deleuze distingue é a própria imagem-movimento. A partir do surgimento dos centros de indeterminação, no entanto, ele vai nos propor três tipos de imagens: A imagem-percepção, a imagem-ação e a imagem-afecção. Trata-se de uma classificação que surge ainda no seu primeiro livro sobre cinema, A Imagem-Movimento , e portanto são imagens que caracterizam, em primeiro lugar, o “cinema clássico”. Isso não significa que essas imagens desaparecerão completamente no “cinema moderno”. Veremos que o surgimento deste último é marcado pelo aparecimento de novas formas de imagens, mas por ora, vamos nos concentrar aqui naquelas três formas de imagens expostas no título desta seção. A partir daqui então a imagem-movimento deve ser compreendida em relação aos centros de indeterminação – as imagens-viventes –, ou seja, deve ser compreendida, como nos diz Deleuze a partir de Bergson, em relação ao intervalo de movimento que estes introduzem no Todo. Antes deste intervalo, como vimos, tínhamos um universo radicalmente acentrado, que evidentemente continua a existir, sendo, na verdade, o próprio Todo como uma imagem-movimento. Mas à medida que se funda o centro de indeterminação, funda-se uma percepção subjetiva no bojo mesmo do intervalo que este centro de indeterminação cria. No final das contas, o que está sendo exposto é o problema da nossa percepção – da percepção humana –, já que somos o mais complexo dos centros de indeterminação, das imagens-viventes, que existem. O que temos então é a formação de uma imagem-percepção que não exprime apenas o movimento mas, como diz Deleuze, “a relação do movimento com o intervalo do movimento” ⁵¹ . A imagem-percepção expressa então este afastamento. Ela é uma percepção subjetiva exatamente porque o surgimento do centro de indeterminação é o surgimento de um objeto-imagem que especializa uma de suas faces para a percepção. Ao contrário do que acontecia com os objetos no universo acentrado, o vivente agora percebe apenas com uma de suas partes e por isso também seleciona a percepção que vem a ser o próprio “corte móvel” no Todo de imagemmovimento que tem em torno de si. Assim, se no universo acentrado, tudo percebia tudo – tudo fotografava tudo –, já existindo portanto a percepção, agora, graças ao intervalo introduzido pelas imagens-viventes, temos o que Deleuze chama de “percepção subjetiva”. Esta funciona como um suporte, um papel fotográfico, ou uma espécie de “ecran negro”, uma tela em que parte da percepção ficará retida. ⁵² Permanece assim a identidade entre a nossa experiência perceptiva e o mecanismo do cinema. Há portanto dois polos da percepção, um que se refere ao todo, que é imagem-movimento, e outro que se refere ao intervalo, esse centro de

indeterminação que se produz no todo. A partir deste último, o que se produz também é uma imagem-movimento, mas uma imagem-movimento com referência a uma imagem central que a enquadra e dela obtém um corte móvel: o plano. Esta é a própria definição que Bergson faz da consciência: uma imagem que se refere a outras imagens. Para Deleuze, na dinâmica do cinema, isso é expresso pelo plano. É por isso que ele vai dizer repetidas vezes: “ O plano, isto é, a consciência ”. ⁵³ Evidentemente, nós não apenas absorvemos e retemos as imagens. Este processo que vai da periferia ao centro do universo que se curvou em torno do centro de indeterminação segue adiante. A percepção, que é sempre de natureza motora, aconteceu apenas numa das faces desta imagem-vivente. No outro extremo desta, o que acontece é exatamente a ação retardada, que é um desdobramento dessa percepção. Ou seja, a imagem só se desdobra em ação na outra face do cento de indeterminação porque se deu como uma percepção selecionada: uma percepção com vistas a uma ação, mesmo que esta seja infinitamente adiada ou se expresse numa decisão pela passividade. Estamos portanto diante da imagem-ação. O centro de indeterminação tem então duas faces especializadas: uma perceptiva e outra ativa. Mas entre a percepção e a ação existe uma imagem que ocupa o intervalo e é, de certa forma, sua própria expressão e da espera que ele representa: trata-se da imagem-afecção. Ela é assim exatamente porque não se desdobra imediatamente em ação, por isso quanto maior for o intervalo, mais expressiva será a imagem-afecção. Na verdade, ela nasce de uma hesitação existente entre a percepção que se dá numa extremidade do intervalo – ou seja, quando o objeto-imagem aparece no nosso horizonte – e aquela que se dá na outra extremidade, quando o objeto-imagem está por se desdobrar numa imagem-ação. A imagem-afecção é assim a expressão de uma percepção à qual não se segue uma ação imediata. A seleção que se opera na percepção faz com que a imagem recebida seja interpretada, seja traduzida numa qualidade. Isso acontece porque nós especializamos uma das faces do nosso corpo para a percepção. Assim uma parte do movimento exterior não se traduz nem em objetos de percepção, nem em atos do sujeito, e se instala exatamente nessa face especializada do corpo que é, nas palavras de Deleuze, “condenada à imobilidade”. ⁵⁴ Estamos falando aqui do rosto, da face. É ela que expressa em micromovimentos intensivos a percepção que não se transforma em ação. Por isso Deleuze diz que a imagem-afecção expressa uma “qualidade pura”. É claro que, em parte, imagem-afecção é uma imagem retida no nervo paralisado porque o objeto-imagem que percebe não se encontra no meio e no contexto adequado para a ação. Mas ela é também a expressão de um sentimento interior, ou seja, ela é a maneira como o sujeito percebe a si mesmo diante de um afeto exterior, e expressa este sentimento. O “centro especializado da percepção” que temos em nós é o rosto. É no rosto que o móvel perde seu movimento de extensão e vira movimento de expressão. Deleuze cita então Eisenstein, que dizia que o “gros plan” “oferecia uma leitura afetiva de todo o filme”. ⁵⁵ “Gros plan” é como Deleuze denomina este plano que se articula com a imagem-afecção, chamando-o

também de “plano de rosto”; já a tradução brasileira preferiu designá-lo como “primeiro plano”, o que coloca para nós um problema. De fato, “gros plan” significa para aqueles que trabalham com cinema na França o que nós no Brasil chamamos de “plano detalhe”. Ao contrário do que poderia dar a entender o termo “gros” que designa algo como “gordo” ou “grande” em francês, estamos falando aqui de um plano próximo. Mas Deleuze cuida de esclarecer que o “gros plan” não trata de um objeto parcial (ao contrário de certas interpretações psicanalíticas), mas sim de uma imagem que ao mesmo tempo é uma unidade refletora e refletida. Não por acaso, o exemplo dado por Deleuze para explicar esse caráter do rosto é o de um relógio. Neste caso, o relógio vem a ser um “objeto rostificado”, uma vez que o rosto não é representado e nem apresentado pelo “gros plan”, ele é em si mesmo “gros plan”, o que significa também que estes não são constituídos exclusivamente de planos de rostos humanos propriamente ditos. Mesmo no “plano detalhe” de um rosto o que aparece não é um rosto todo, mas um detalhe, insiste Deleuze, e a função desse “detalhe” (uma boca, uma testa que se franze...) é esta de refletir. O primeiro exemplo de rosto como imagem-afecção está no filme que é composto por excelência por estas imagens, qual seja, A Paixão de Joana D’Arc , de Dreyer. Mas Deleuze avança e divide estas imagens, estes rostos, em dois grandes grupos, as reflexivas e as intensivas, usando uma série de planos de rosto dos filmes de Griffith para exemplificar as primeiras, e de planos de rosto de filmes de Eisenstein para exemplificar as últimas. Em Griffith, o principal exemplo é o da jovem martirizada em Lírio Partido , num rosto que permanece petrificado e reflexivo mesmo diante do sofrimento e da iminência da morte, como se, nas palavras de Deleuze, ela “perguntasse por que”. Em Eisenstein, por sua vez, a série intensiva aparece como exemplar porque constitui parte importante do seu pensamento sobre cinema e, inclusive, uma das críticas dirigidas a Griffith, a quem acusava de não confrontar os afetos com o Todo do filme. A intensidade em Eisenstein é então marcada pela capacidade de se mover, numa série, de uma qualidade a outra, criando novas qualidades. Trata-se de algo que pode se expressar por vários rostos sucessivos, como na revolta dos marinheiros em O Encouraçado Potemkin diante da comida estragada, que se desdobra em explosão revolucionária, ou ainda num rosto que vai mudando seus traços, vai como que trocando de máscaras, como no papa que passa de homem de Deus a explorador dos camponeses, em Outubro . Mas a rostidade, como já vimos, pode estar também num objeto. O exemplo desta vez é o de Caixa de Pandora de Pabst, onde os rostos das personagens Jack e Lula estão sorridentes e sonhadores até que o plano próximo mostra a faca em seu rosto, na sua “face”. Em seguida, vemos o rosto do protagonista horrorizado pelo medo e pelo terror de sua própria dimensão de “estripador” que ele sabe que inevitavelmente virá, ou já veio, à tona, como expressa a resignação que finalmente substitui o horror. A faca é, neste caso, um exemplo perfeito de uma “qualidade pura”, como se o que se expressasse nela não fosse uma “faca cortante”, mas o “cortante da faca”, e por isso ela é também “rosto”. Deleuze chega a citar os estoicos que compreendiam as coisas mesmas como portadoras de acontecimentos que não se confundem necessariamente com as suas propriedades. ⁵⁶

O conceito de rosto – incluindo a noção de “rostidade” – diz muito sobre o pensamento de Deleuze. Ele não é normalmente apresentado com um conceito “central”, mas traz consigo uma característica decisiva para quem quer ter um ponto de partida, um ponto nevrálgico, para compreender Deleuze. Estamos falando do fato do conceito de rosto expressar um limite do corpo – fisiológico como diria Nietzsche, sensório-motor como diria Bergson – onde está a gênese da linguagem. A face – o rosto –, com seus micromovimentos intensivos e reflexivos, “expressa”, “fala”: é um signo. É não só o princípio da escritura no limite do corpo, como também a origem da própria linguagem compreendida como uma “inscrição” no corpo. Compreensão que Deleuze e Guattari desenvolvem em O Anti-Édipo , numa interpretação que fazem da Genealogia da Moral , onde este processo de “inscrição” no corpo – na medida em que é, para Nietzsche, a origem da memória e da consciência –, será também a origem do próprio “socius”. ⁵⁷ Mas o “rosto”, compreendido como lugar-limite da linguagem e expressão da imagem-afecção, é para nós importante sobretudo porque nos ajuda a entender a crítica que Deleuze faz à compreensão da linguagem como “representação”: algo que teria uma estrutura fechada e fundamentada em si mesma, de acordo com o pensamento de grande parte da linguística e da semiologia. E finalmente nos ajuda a compreender por que Deleuze não toma o cinema como uma “linguagem” e sim como potência do real. Este é um assunto ao qual voltaremos mais adiante. Imagem-pulsão Antes disso, não poderíamos deixar de falar de uma outra forma singular de imagem que Deleuze descobre entre a imagem-afecção e a imagem-ação: a imagem-pulsão. Trata-se de uma imagem que não é mais puramente imagem-afecção, que vai além do que caracteriza esta última como “qualidade pura” e do que Deleuze diz ser um idealismo da imagem-afecção. Por outro lado, a imagem-pulsão também ainda não está constituída do realismo típico e do par “comportamento-meio determinado” que vimos caracterizar a imagem-ação. Digamos, de início, que a imagem-pulsão se caracteriza por uma espécie de “ação num meio inadequado”. Talvez por isso Deleuze diga que ela não é uma expressão, como a imagem-afecção, e sim o que ele chama de “impressão forte”. A imagem-pulsão tem assim uma mobilidade: em termos práticos, nela vemos corpos que se movem e num certo sentido “agem”. Mesmo assim, a imagem-ação não serve para representar imagem-pulsão. Isso porque esta não se traduz, mesmo que possa parecer, por um comportamento em um determinado meio, mas exatamente por uma espécie de pulsão elementar num meio derivado e real que está sempre se relacionando com o que Deleuze chama de um “mundo originário” ou “meios originários”. Esta relação se dá, em primeiro lugar, através de objetos que estão nesse meio derivado, mas que se referem àqueles mundos originários dos quais eles são partes ou pedaços; por isso podemos dizer que ídolos e fetiches são os primeiros tipos de signos que vemos na imagem-pulsão. Temos então, diz Deleuze, o único caso no cinema em que o plano detalhe mostra de fato um detalhe, isto é, a parte de um Todo que não é o extracampo da imagem, e sim o mundo original e o “Todo” ao qual esta parte – um fetiche, por exemplo – se refere. Mas há um outro tipo de signo da imagem-pulsão: o

sintoma. Este vem a ser a segunda forma como um mundo original se faz presente num meio derivado onde acontecem os fatos e estão os objetos. O sintoma é um tipo de atualização nos meios onde vivem os personagens, do mundo originário que é tomado como uma espécie de mundo pré-histórico, natural e fluente. Por isso a imagem-pulsão traz sempre personagens bestializados. Isto porque ela precede a divisão homem-bicho, e este mundo originário, que acaba constituindo os procedimentos dos personagens, é na verdade um pano de fundo daquele mundo, daquele meio atual, onde o personagem age. Assim, a ação precisa sempre de alguma forma retornar ao mundo original, que é ao mesmo tempo o princípio e o fim de tudo o que acontece. Trata-se de uma natureza primeira, quase de um puro chronos , por isso Deleuze vai identificar a imagem-pulsão com o naturalismo. Naturalismo que, por sua vez, não se opõe ao realismo, mas o intensifica a tal ponto nesta relação entre meio real e mundo originário que pode chegar até o surrealismo. Seguindo este raciocínio, podemos chamar a imagem-pulsão também de imagem-naturalista; nela, o personagem e seu meio se encontram totalmente impregnados de uma potência natural anterior que será, para Deleuze, exemplar na literatura de Zola, e que no cinema será representado notadamente pelos filmes de Stroheim e Buñuel. De fato, os meios de Buñuel e Stroheim são, a princípio, extremamente realistas, mas é a relação que têm com um mundo originário – como é o caso da sala de O Anjo Exterminador – que trazem este naturalismo e que podem fazê-lo chegar até o surrealismo. Por isso, também, os meios atuais são extremamente violentos, com dois polos bem definidos – “pobres e ricos”, “gente de bem e gente ruim” –, o que só pode acontecer porque estes meios são fundados e sempre voltam a se referir aos meios originários, que são, ao mesmo tempo, o princípio e o fim de onde se desenrolam os fatos. Stroheim, por exemplo, nos apresenta constantemente meios e personagens numa degradação inevitável. Há, portanto, uma espécie de força destruidora que detona o filme e que joga a história nesse declínio que é como um destino que nos leva inexoravelmente a uma “pré-história” natural tomada como puro fluxo não codificado. Degradação que também está presente em Buñuel, mas que neste caso parece ser destacada em seus aspectos cíclicos, ou seja, na dimensão de “eterno retorno” que a pulsão sempre ganha, como na insistência do assédio do protagonista, e da recusa da assediada, em Esse Obscuro Objeto do Desejo ; ou, mais uma vez, em O Anjo Exterminador , na necessidade de se retornar à posição inicial de todos na sala – uma espécie de “latitude zero” –, para que se rompa a inércia instalada. O mundo originário aparece então de maneira pulsional na medida em que sempre retorna como que restaurando esse grau zero, essa pré-história ao mesmo tempo natural e bestial. É evidente que tanto o declínio e a degradação inevitável quanto o eterno retorno são duas imagens fortes do tempo. E é isso que Deleuze diz sobre a imagem-pulsão, a saber, que ela produz uma imagem forte do tempo, inclusive, diríamos nós, pelas alterações, distorções e intensificações que ela nos apresenta. Mas, mesmo que ela possa ser tomada, exatamente por estas características, como exemplo da crise da imagem-tempo, para Deleuze, a imagem-pulsão – ou a imagem-naturalista – não consegue ainda romper

completamente com a imagem-movimento. O tempo, seja cíclico, seja no modo de um declínio e de uma degradação, continua submetido ao movimento: é representado através deste. Imagem-ação, realismo e sonho americano Precisamos ainda refletir sobre, e examinar, alguns exemplos da imagemação nos filmes. Trata-se de uma imagem exemplar do cinema clássico e que, nas suas diferentes formas e variações, mesmo que tenha sido essencial para as três grandes escolas desta primeira fase do cinema europeu – a escola francesa lírica, a escola soviética e o expressionismo alemão –, vai marcar em especial o cinema americano. Isto acontecerá de tal forma que as reflexões que Deleuze faz sobre a imagem-ação serão também, em grande parte, sobre os Estados Unidos da América e o sonho americano. Quando falávamos da imagem-afecção então, nos referíamos a “qualidades puras” antes que estas viessem a se atualizar nos meios; agora é destas atualizações que trataremos. É na verdade uma característica fundamental do cinema clássico que começa a aparecer aqui: uma característica que começa com uma ligação orgânica entre as qualidades e os meios, isto é, uma ligação entre estas qualidades e os espaços onde habitam os personagens. A partir daí, os meios vão agir de maneira decisiva sobre os personagens e esse aspecto do cinema clássico ficará mais claramente definido como uma ligação orgânica entre os meios e os personagens dos filmes. Simplificando, poderíamos dizer também que no cinema clássico existe uma ligação orgânica entre as imagens dos filmes e seus personagens. Ora os meios, os lugares e/ou situações em que os personagens habitam, determinam e mesmo detonam a ação destes, definindo o que Deleuze vai chamar de “grande forma”; ora há uma ação inicial que aparece de maneira ainda indefinida, mas que, pouco a pouco, acabará por desvelar uma situação: a “pequena-forma”. A grande-forma será definida pela fórmula SAS’, isto é, uma situação que detona uma determinada ação que nos leva a uma nova situação. A pequena-forma, por sua vez, pela fórmula ASA’: uma ação que nos leva a uma situação que demanda uma nova ação. A “grande-forma”, conceito que Deleuze toma de Noel Burch a partir de uma análise que este faz do filme O Vampiro de Düsseldorf , de Fritz Lang, se desdobrará nos diversos gêneros de “filmes de ação” que marcarão definitivamente o cinema americano e que servirão como porta de entrada para os cineastas europeus na própria América. Um desses gêneros, no entanto, será um exemplo da “pequena forma”, qual seja, o burlesco, onde normalmente será uma série de ações que fará com que uma determinada situação se apresente: Charles Chaplin, sem dúvida, será aqui o mais notável dos exemplos. Se bem que Deleuze vai ver em Buster Keaton a invenção de uma espécie de “comédia de ação”: o burlesco descobrindo a “grande forma”. Assim, de um lado, a imagem-ação clássica vai se caracterizar por uma série de qualidades-potências que se atualizam num meio definido, num estado de coisas e num “espaço-tempo”, o que Deleuze vai chamar de “synsigno”; de outro, a atividade desta propriamente dita vai definir sua segunda característica fundamental, qual seja, o “binômio”. Aí, na passagem da percepção à ação, onde o personagem se impregna pelo meio, o estado de

coisas que este meio determina vai fazer com que o personagem encontre necessariamente um antagonista, um adversário, muitas vezes ligado à situação inicial S que deve ser modificada por uma ação; quando não, esta situação é, ao contrário, o meio que, por identidade, leva um herói a agir: um herói que ainda não está pronto e que seria um homem comum se não fosse a demanda de sua comunidade e a urgência da situação. Muitas vezes, inclusive, esta demanda restitui um tipo desviante e imoral a uma situação de herói, redimindo-o, como é o caso do ladrão que está sendo levado preso em Nos Tempos da Diligência , de John Ford, mas que é premiado com um pedaço de terra por ter sido decisivo para que a diligência e seus passageiros fizessem a travessia perigosa pela terra dos índios e chegasse a salvo em seu destino final. Dos quatros gêneros que vão aparecer como exemplos da grande-forma, Deleuze vai colocar em primeiro lugar o documentário, do qual Nanouk , de Flaherty, será o exemplo clássico, para em seguida exemplificar com o cinema psicossocial, onde se destacará King Vidor , o filme noir, como Scarface , de Howard Hawks, ou Asphalt Jungle , de John Huston, e, finalmente, o western, sobre o qual se seguirão extensas análises dos filmes de John Ford. E embora não apareça na primeira lista, o filme histórico também vai, para Deleuze, constituir um gênero fundamental do filme clássico de ação em sua “grande forma”. Serão então nestes últimos quatro gêneros de ficção que o cinema clássico vai produzir uma imagem-ação sempre provocada por um enfrentamento condicionado por uma dualidade: o binômio que assume o caráter evidentemente moral e que tem no western , e no duelo, a sua forma mais pura. Diríamos que é um cinema onde os personagens são sempre de certa forma julgados, condenados, absolvidos, ou redimidos – como no citado filme de Ford – no final. Por isso a fórmula se fecha em si mesma e talvez seja também por isso que Deleuze vai chamar este cinema tanto de “ético” – o que nós preferiríamos chamar de “moral” – quanto de “realista”. O realismo teria uma íntima relação com o encadeamento sensório-motor fechado, com essa história que se encadeia na forma de um processo, que vai se definir não apenas numa afecção – numa qualidade – que se impregna no meio – o que por si seria antes um “naturalismo” –, mas também pela maneira como o próprio meio, por sua vez, impregna o personagem, empurrando-o para a ação. Há portanto um “telos” no cinema clássico em geral, e em especial no americano: toda história existe com vistas a um fim que justificará cada uma de suas passagens.

O cinema americano clássico será por isso também um cinema de comportamento, numa espécie de “behaviorismo cinematográfico”, que se expressará em especial na maneira como o Actors Studio vai preparar seus atores e vai constituir um método de direção a partir da leitura que os norteamericanos fizeram do método do dramaturgo russo Constantin Stanislavski. Elias Kazan, diretor fundador do Actors Studio , será o paradigma desse método e consequentemente desse realismo cujo caráter, tanto comportamental quanto realista propriamente dito, vai ser ao mesmo tempo causa e consequência dessa estreita relação sensório-motora entre situação e ação e entre personagem e imagem. Relação que se quebrará de maneira notável no cinema de John Cassavetes, expressão do cinema americano moderno e que se oporá ao Actors Studio na sua relação, maneira de dirigir, filmar e fazer se movimentarem os atores. ⁵⁸ Na verdade, a fórmula do sonho americano em tudo se confunde com o realismo, o caráter comportamental e a relação sensório-motora que vai da coletividade ao indivíduo e do indivíduo à coletividade. Deleuze destaca nessa fórmula dois polos fundamentais: de um lado, as ideias de uma “comunidade unanimista” ou uma “nação-meio”, onde todas as minorias se fundem; de outro, um homem – um chefe – que pode unir toda essa nação respondendo aos desafios do meio e às situações mais graves. Neste sentido, não existe qualquer contradição entre realismo e sonho; ao contrário, diríamos que o sonho americano, na força dos grandes diretores do cinema clássico, partilha de maneira especial o racionalismo – e o iluminismo, como uma de suas maiores expressões, encontra a sua última possibilidade potente no cinema clássico e em suas várias escolas, como Deleuze nos dá a entender. É exatamente porque o cinema não é uma linguagem, mas uma potência do real, que ao pensar o cinema americano ele está, no mesmo movimento, pensando os Estados Unidos. A fórmula do sonho americano expressa, sobretudo, a crença iluminista que se origina no século XVIII – com aspectos de moralismo socrático-cristão na maneira como Nietzsche a denunciara –, efetivando-se como cinema em pleno século XX. Aí está a crença de que os valores racionais expressos na “grande nação” equacionarão todos os conflitos. É por isso, inclusive, que o cinema político clássico estadunidense assumirá quase sempre a forma de um filme judiciário: o Estado como efetivador da razão, como queria Hegel, e por isso restituidor da paz e da justiça. Neste caso, o belíssimo Doze Homens e uma Sentença , de Sidney Lumet, é sem dúvida o mais célebre entre os incontáveis filmes judiciários de Hollywood. Não faltam, é claro, personagens degradados nos filmes americanos, tais como bêbados, gangsters , jogadores etc. Mas quando estes aparecem é de uma maneira bastante diferente do que, por exemplo, no expressionismo alemão ou em certos filmes naturalistas. A violência não é em geral pulsional, mas determinada por um “meio degradado”. O que aparecerá de maneira recorrente – e que poderá ser visto também no burlesco – será a figura do “looser”: o “perdedor nato”. Neste sentido talvez, provoca Deleuze, é o alcoolismo que vai aparecer como uma força racional, posto que impede o sonho americano de acontecer. Os gangsters também seriam perdedores natos, e tanto no caso deles quanto no dos bêbados, haveria com o meio a

mesma relação que o indivíduo teria com a coletividade supostamente “sadia” da nação, mas esses meios seriam, neste caso, “doentes”, degradados: quase que “naturalmente”, moralmente degradados, diríamos nós. Neste sentido, toda a eficiência, na qual a nação como efetivação da racionalidade se expressa também em virtuosismo técnico – tal qual o misticismo tecnicista que vimos Virilio identificar nas origens do cinema –, estará também nesses meios degradados: a eficiência das ações dos gangsters , dos impressionantes assaltos engenhosamente preparados, por exemplo. Mas a “doença” do meio mais cedo ou mais tarde tende a aparecer como algo que começa a sabotar o bom funcionamento da máquina criminosa. Tudo isso vemos com frequência no filme noir : gangsters , meios degradados, bares cheios de bêbados, viciados, jogo ilegal, e assim por diante. Pode acontecer que a situação S se desenvolva por meio da ação desses personagens desviantes para um S’ ainda pior. Mas, mesmo nos filmes noir , a trajetória dos personagens tenderá a ser a de uma recuperação e, no caso do crime, a eficiência do herói, ou do Estado, poderá superar os gangsters , derrotando a degradação, a doença e a irracionalidade. O fato, diz Deleuze, é que de certa forma o cinema americano continuou a rodar O Nascimento de uma Nação , de Griffith, à exaustão. Veremos, é claro, o quanto esta fórmula moral se transformou em clichê, mas já vimos que este cinema, no seu vigor inicial, não sofre uma condenação de Deleuze. Ao contrário, o filósofo demonstra grande entusiasmo pelos primeiros mestres estadunidenses à medida que os descreve de maneira singular, declarando inclusive que: “não se pode condenar o sonho americano apenas por ser um sonho.” É verdade que Deleuze sabia muito bem, por outro lado, o quanto o cinema americano se esvaziou em clichês à medida que foi completamente capturado pela poderosa engrenagem de guerra estadunidense. Mas é fato também que a fórmula de “montagem paralela ou alternada” de Griffith já era, bem antes da crise do cinema clássico, criticada por Eisenstein, mesmo que o seu cinema fosse para Deleuze também “clássico”. De fato, como no cinema americano, havia um “unanimismo” no cinema soviético revolucionário. Eisenstein também fazia um cinema com vistas a um fim: a teleologia dialética-histórica do hegelianismo-marxista de seus filmes. Um dos problemas de Griffith, no entanto, dizia Eisenstein, era exatamente o de não estabelecer a relação dialética entre os polos, não percebendo que bem e mal, pobre e rico, justiça e injustiça, constituirão o todo da história do filme como o todo da história universal, à medida que entrarem em colisão e empurrarem o filme – a história – para frente. O Todofilme se fechará então quando a oposição dialética for subsumida exatamente porque houve conflito, colisão, enfrentamento dos dois polos, transformando a realidade do filme, e da história, em outra. Deleuze destaca ainda que o cinema americano reproduziria as três formas de lidar com a história descritas por Nietzsche – a “monumental”, a “antiquária” e a “crítica” –, formas que, praticadas em excesso, teriam constituído o que Nietzsche havia diagnosticado como uma das principais “doenças” do século XIX . Voltaremos a esse aspecto nos capítulos subsequentes, exatamente quando investigarmos um “nietzschianismo” do

cinema moderno. Por ora, é importante que o cinema histórico seja compreendido como uma das formas fundamentais da imagem-ação e, mais uma vez, como uma das formas fundamentais do cinema americano clássico. O fato de Griffith ser repetido à “exaustão”, como disse Deleuze, estava no caráter seminal que alguns de seus filmes, como O Nascimento de uma Nação e Intolerância, tiveram para os Estados Unidos. No caso deste último, a montagem constituía de tal forma um “Todo” fechado que o que se fechava era a própria história universal. É o que acontece quando a corrida de charretes na Babilônia converge com a corrida de trem e carro no episódio moderno. Já a oposição entre bem e mal na América era desdobramento desta oposição em cada uma das épocas anteriores, quando o “bom” era alguém que preparava uma espécie de “porvir americano” (expressão nossa). Todos esses aspectos seguiriam aparecendo em filmes de Cecil B. DeMille e até mesmo em filmes burlescos como As Três Eras , de Buster Keaton, paródia do próprio Intolerância , de Griffith. Nesse contexto, é claro, não poderíamos deixar de falar um pouco de Charles Chaplin. Deleuze vai ver no cinema de Chaplin o exemplo maior do que ele chamou de “pequena forma”, ação-situação-ação, ou seja, a ação que revela uma situação, caracterizada, como todo o burlesco, por duas ações com uma pequena diferença entre elas – a menor possível – e que, exatamente por isso, vai revelar uma imensa distância entre duas situações. É assim que acontece com Carlitos em Shoulder Arms , quando ele, da trincheira, começa a atirar num inimigo fora de campo ao mesmo tempo que vai marcando com um giz improvisado num pedaço de madeira os diversos pontos que supostamente obtém em cada um dos tiros. Um tiro então atinge seu capacete, que cai no chão, e Carlitos, honestamente, apaga um dos pontos que tinha marcado para si. A pequena diferença entre a ação de atirar na guerra e marcar pontos num jogo revela a imensa diferença entre a guerra e um jogo de bilhar. É dessa pequena diferença de ação, de onde desprende uma grande diferença de situações, que Chaplin consegue ao mesmo tempo fazer rir e liberar uma outra emoção radical bastante diferente do riso. O caso extremo talvez seja o da pequena diferença entre o barbeiro judeu e o ditador, em O Grande Ditador : uma pequena diferença que revela uma situação de uma distância imensa, tão distante quanto a vítima pode estar de seu carrasco. Esta é, afinal de contas, a imensa diferença entre Carlitos e Hitler, em meio a uma notável semelhança, a começar pelo pequeno bigode. Na diferença, no entanto, está também parte do caráter político do cinema de Chaplin, uma vez que, para além da diferença de duas situações, ela é a de duas possibilidades distintas de sociedade. Tais situações em que grandes diferenças aparecem são reveladas também pela ação de Carlitos no uso das ferramentas e, sobretudo, quando ele faz um pequeno desvio no que seria a sua utilidade usual. Chaplin revela então o seu humanismo antimáquina, mostrando a grande diferença que existe entre homens e máquinas, que estas últimas jamais poderiam nos substituir. É o que vemos em Tempos Modernos , tanto quando o operário, condicionado pela serialização fordista à linha de montagem, deixa de apertar os parafusos na máquina para apertar os botões do vestido da madame, quanto no massacre que este sofre da máquina feita para substituir o ato de se alimentar.

A sujeição do homem à máquina como uma espécie de sujeição social, e a situação massacrante da guerra – que também é uma sujeição a uma máquina – exemplarmente denunciada por esta espécie de humanismo socialista de Charles Chaplin, talvez represente um momento em que a imagem-ação, ainda potente na paródia de si mesma, antevê no burlesco os elementos de sua própria crise. O expressionismo alemão, à sua maneira, também faz este movimento. E aqui retorna mais uma vez a pergunta de Deleuze sobre o que teria feito o cinema ter se tornado o grande agente de sujeição das massas numa suposta hipnose coletiva do nazifascismo. Embora o próprio Deleuze tivesse insistido, desta vez com Félix Guattari, que o fascismo não pode ser compreendido apenas como alienação e manipulação das massas. Antes, deveríamos nos perguntar o que as fez, em determinado momento, desejar e agir neste movimento de (auto)destruição e morte. ⁵⁹ Não há dúvida, no entanto, que uma notável identificação estética entre cinema, propaganda de guerra e propaganda das grandes corporações capitalistas se produz dos dois lados em conflito na Segunda Guerra Mundial. Trata-se de uma constatação de Paul Virilio com a qual Deleuze está absolutamente de acordo. Não há dúvida também de que esta identificação, que esvazia a inventividade do cinema, se dá a partir da fórmula racionalista, teleológica e moral que caracteriza o cinema clássico, mesmo que antes a tenhamos visto como potência inventiva e não como máquina de propaganda produtora de serialização, controle e padronizações majoritárias. Deleuze chega mesmo a afirmar que esta espécie de identificação cinema-Estado-capital (expressão nossa) não produziu apenas filmes ruins, decadentes, carregados de clichês, e apresenta Leni Riefenstahl como exemplo. Na nossa opinião, todo o virtuosismo de Leni Riefenstahl não libera uma inventividade cinematográfica tão grande quanto o próprio Deleuze parece afirmar. A violenta assepsia da estética nazi – o “ideal asséptico” duramente criticado por Nietzsche algumas décadas antes – nos dá a impressão de que Riefenstahl foi muito mais uma criadora seminal da publicidade do que uma força inventiva do cinema. Se bem que, poder-se-ia objetar que uma divisão tão rigorosa entre um e outro não é possível neste caso. O fato é que, de alguma maneira, a fórmula do cinema clássico funciona como ideal para a operação disciplinar e biopolítica que caracteriza as mobilizações de guerra. É como se o tempo representado apenas por intermédio do movimento tivesse se tornado um grande instrumento de controle do próprio tempo. E controle do tempo compreendido aqui como controle do acontecimento, ou melhor, como forma de esvaziar a potência de ruptura, de quebra de uma ordem de causalidades, que a potência inventiva da imagem pode ter. De maneira geral é esta potência que será redescoberta pelo cinema moderno: um tempo que vem de fora desse agenciamento que se dá entre os três tipos de imagens – imagem-percepção, imagem-afecção e imagem-ação –, agenciamento este que é feito pela montagem. O cinema clássico, que se caracterizara por uma estrutura em que a história está organizada na forma de um processo com um “fim moral” em que cada uma das passagens do filme está justificada, seria então parte de uma operação de poder que buscaria estabelecer esta experiência como a única possível para a história em geral.

A guerra – a guerra dos Estados Nacionais no capitalismo industrial – é, neste sentido, ao mesmo tempo o triunfo absoluto desta fórmula e o que parece detonar a sua crise. De fato, não deveria haver qualquer quebra de uma ordem de causalidades e nem qualquer desconfiança ou desvio em relação a um “grande fim”, para que uma mobilização de guerra pudesse acontecer. Mas a simplificação da fórmula, que seria ingênua se não fosse violenta, faz com que a evidência do seu fracasso e a possibilidade do aparecimento de uma força que vem desde fora se tornem, especialmente na guerra, uma ameaça iminente. Nela, as cultuadas “verdades” do Estado, da ciência e da técnica, podem cair como um castelo de cartas: estarão sempre por um fio. É portanto a organicidade de que falamos que se encontra ameaçada na crise do cinema clássico, isto é, a ligação sensório-motora que víamos entre as situações e as ações, entre as imagens dos filmes e a subjetividade de seus personagens. O clichê será, de certa forma, a hipertrofia dessa organicidade, ou seja, a organicidade quando se transforma não só numa fórmula moral mas também numa força (num certo sentido, uma contraforça) que nos condiciona de maneira sensório-motora. O esquema de anestesiamento do corpo que o clichê vai expressar será exatamente para que nada possa romper uma ordem de causalidades preestabelecida. No entanto esse rompimento vai fatalmente acontecer. E, neste sentido, o cinema vai até se redescobrir como uma potência liberadora e transformadora, e nós conheceremos novos tipos de imagens, variações destas que caracterizarão o cinema moderno e que Deleuze vai chamar de imagem-tempo. 39 I. M., p. 77. 40 BERGSON, Henry. Matéria e Memória . São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 223; L’Evolution Créatrice . Paris: Puf, 2001, p. 308. 41 BERGSON, Henri. Matéria e Memória . São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 72. A ideia de uma existência de um “objeto-imagem” em Bergson pode, a rigor, ser tirada da leitura de todo o primeiro capítulo do Matéria e Memória que estamos a resumir aqui. Mas nesta página especificamente, Bergson faz a seguinte afirmação: “o que constitui o mundo material, dissemos, são objetos, ou, se preferirem, imagens, cujas partes agem e reagem todas através do movimento umas sobre as outras.” Esta faz com que não reste dúvida para nós que ele encontra uma identidade entre objeto e imagem, o que nos permitirá trabalhar com o conceito de “objeto-imagem”. 42 I. M., p. 76. 43 NIETZSCHE, Friedrich. “Verdade e Mentira num Sentido Extra-Moral”. In: Os Pensadores . São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 55. Nesse texto jovem, Nietzsche diz, por exemplo, que o primeiro sintoma que temos da realidade é um impulso nervoso. Impulso nervoso que arbitrariamente viraria imagem, e uma imagem que viraria som. 44 LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Heráclito”. In: Os Pensadores Originários . Petrópolis: Vozes, 1991, frag. 64.

45 I. T. p. 87. 46 I. T. p. 88. 47 SARTRE, Jean Paul. L’Imaginaire . Paris: Gallimard, 1948, p. 15. 48 BERGSON, Henri. Matéria e Memória , op. cit. 49 BERGSON, Henry. L’Évolution Créatice . Opus.cit. p. 272. 50 Vide o capítulo “Deleuze, Peirce e o cinema: uma semiótica do movimento”. 51 I. T., p. 45. 52 I. M., p. 84. 53 I. M., p. 33. 54 I. M., p. 96. 55 I. M., p. 125. 56 I. M., p. 138 (125). 57 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’AntiÉdipe, capitalismo et schizophrénie. Paris: Lês Editions de Minuit, 1972, p. 225. 58 Trataremos mais detalhadamente do cinema de Cassavetes, e suas críticas ao Actors Studio , no capítulo “John Cassavetes: cinema dos corpos”. 59 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’AntiÉdipe, capitalismo et schizophrénie. Paris: Lês Editions de Minuit, 1972, p. 37. Deleuze e Guattari elogiam aí William Reich por ter colocado a questão do fascismo nestes termos, embora este não tenha, segundo os autores, chegado necessariamente à melhor resposta. PARTE 2 Do cinema “clássico” ao “moderno” 1. Oneorrealismo e a quebra dos clichês As imagens que atuam e falam No segundo episódio do filme Paisá , de Rossellini, um soldado norteamericano negro, conduzido por um menino de rua, perambula bêbado pelas

ruas de uma caótica Napoli que acaba de se ver livre da ocupação alemã. A criança leva o soldado a um teatro de fantoches, onde dois bonecos guerreiros – manipulados por cordas, é claro – lutam no palco. O soldado bêbado confunde o teatro com um saloon de western , invade o palco e, pateticamente, se envolve na briga dos bonecos enquanto ouvimos a música clichê de “ataque de cavalaria”, típica de Hollywood. O caos se instaura e o soldado é expulso do teatro. De novo nas ruas de Napoli, o menino e o soldado vão até uns escombros de guerra perto do porto. O soldado, exausto, senta entre os prédios destruídos e, sob o olhar impressionado da criança, canta o seu lamento num blues . Uma sirene de um navio soa e leva a memória do soldado, em delírio, a repetir um diálogo clichê que poderia ser de algum “otimista” filme de guerra hollywoodiano. “Sim almirante”, “Pois não almirante”, “Vamos para a vitória almirante”... Eufórico, o soldado abre os braços como se voasse, emite os sons dos aviões em ataque aéreo, o barulho das metralhadoras: a guerra é uma grande emoção, uma grande festa. “Estou sobrevoando Nova York”, “Vejo ali o Luna Park”, “Sou um herói de Guerra”, “Wall Street está cheia”, “Todos me esperam”, “Do alto caem chuvas de serpentina”, “A multidão vibra”, “A Broadway é a maior avenida do mundo”. O transe etílico do soldado se transforma em delírio patriótico. Mas os clichês da propaganda de guerra, até mesmo a sonoplastia clichê das batalhas – já próxima dos “divertidos” videogames de guerra contemporâneos – se desfazem quando o soldado escuta o apito de um trem e, no ritmo do motor da locomotiva, começa a repetir: “Voltando para casa, voltando para casa...”. A euforia então se transforma em tristeza: “Não, não é bom voltar para casa, minha casa é um barraco miserável.” Exausto e deprimido, a ressaca da embriaguez se anuncia, e o soldado desmaia. Se o neorrealismo é às vezes apontado como uma espécie de “cinemaverdade”, mesmo que os filmes a princípio não sejam documentários, a descrição dessas sequências do segundo episódio de Paisá é um exemplo, na realidade, de um cinema que está deixando para trás o que podemos chamar de um “racionalismo” do cinema clássico; mais, está deixando para trás um cinema onde o tempo, à maneira como é compreendido pela física moderna, e mesmo desde Aristóteles, contenta-se em ser apenas um número, uma medida do movimento. Mas vamos por partes. Como podemos ter identificado como racionalista um cinema que cresce, se destaca e se torna objeto de pesquisa exatamente como “filme de ficção”? Exatamente porque são filmes de ficção, mas que têm a pretensão de uma “verdade filme”, quer dizer, são fechados sobre si mesmos, e pretendem ser totalmente independentes do que convencionamos chamar de “realidade”. Assim, mesmo que estando do outro lado da “realidade em si”, ou exatamente por isso, estes filmes se constroem dentro dessa concepção. Há aí uma “verdade em si” do filme, o “real do filme”, onde todas as imagens que ali estão em função da ação, da trama em que os personagens se envolvem, são as imagens do filme, da história do filme, das situações dos personagens do filme.

Com a pretensão, portanto, de constituir um “mundo de ficção” distinto do mundo real, este cinema que Deleuze identifica como “clássico” é, na verdade, a imagem e semelhança da concepção hegemônica que se tem desse “mundo real”. Fechados sobre si mesmos, cronologicamente processuais e retilíneos, e organizados desde um binômio, os filmes evoluem para distinguir claramente a verdade em si do filme da mentira do filme: binômio que os caracteriza dramaticamente e que muitas vezes aparece como um conflito entre o bem e o mal. Assim são, como vimos há pouco, as sequências finais de um western . É o que vemos também no exemplo da busca da “lógica da história” nos filmes de Hitchcock: o encadeamento lógico entre causa e efeito na investigação do processo que levou ao crime. De forma geral, é este tipo de cinema que teria se exaurido, segundo Deleuze. Não em si mesmo, ou seja, não existe uma exaustão do cinema clássico nos seus grandes mestres e nas suas escolas fundadoras, mas um esgotamento nos clichês, nas fórmulas prontas nas quais estes filmes se transformaram. Na verdade, o neorrealismo italiano descrê dos clichês tal como o soldado negro norte-americano que, pouco antes de desmaiar, parece descobrir que todas as imagens e histórias de guerra – da propaganda de guerra – que, num desespero, ele acabara de tentar viver no seu delírio alcoolizado, eram clichês, já que, de fato, não foi o que encontrou na Itália. Para Deleuze, não se trata de o neorrealismo voluntariamente “descrer” da maneira clássica de se estruturar um filme. Trata-se de uma abertura, de uma quebra e de um esgotamento de possibilidades de sentidos, que está tanto nos filmes, quanto no próprio sentido da história da Europa na maneira como ela acontece na Itália. É a Itália que, segundo Deleuze, não se encaixa em nenhum sentido fechado, em nenhum clichê de guerra que julga, enquadra, racionaliza e justifica cada acontecimento da história. O clichê se quebra, portanto, porque as imagens não aparecem mais nos filmes neorrealistas apenas em função de uma história que deve se fechar no final. As imagens passam agora a trazer, ou no mínimo a insinuar, novos sentidos para as histórias dos filmes. Elas não aparecem mais apenas em função dos personagens e das histórias, tornando-se agora tanto personagens destes filmes, quanto elementos que ajudam de maneira decisiva a constituir o próprio sentido de suas histórias. Treinado, motivado para a guerra, para fazer o bem e libertar; pronto para ser personagem de um filme de aventura onde o bem, representado por ele mesmo, vencerá o mal no final, o soldado de Paisá não só despenca da embriaguez quando a lembrança do filme propaganda de guerra vira a lembrança de sua casa miserável na América, mas, sobretudo, quando, no dia seguinte, ao reencontrar o menino da véspera que lhe havia roubado as botas e a gaita depois que ele caíra bêbado, faz com que o garoto o leve até sua casa, onde deveriam morar seus pais, para recuperá-las. O soldado então se vê numa miserável favela de Napoli e descobre que os pais do menino haviam morrido num bombardeio. A raiva contra o pequeno ladrão se transforma numa identificação: é seu passado de menino negro e pobre norte-americano que aparece ali e, portanto, são dois distintos circuitos no tempo que se encontram.

Estamos diante de um exemplo de uma imagem no presente que fala: a favela de Napoli atua como um personagem ativo porque traz para o filme, e para o próprio personagem do filme, um outro sentido diferente daquele que deveria estar lá. Este sentido que esta imagem traz muda o próprio sentido da história, na medida mesma em que este sentido é ganho por um passado que ela evoca: uma imagem do presente que traz um outro passado, redefinindo-o e redefinindo-se. Sendo o passado outro, diferente do clichê, o sentido torna-se outro. No mínimo, o que vai acontecer é que o sentido predeterminado se abre. Na verdade, o que a favela miserável de Napoli traz é uma América diferente daquela racional e civilizada que pretende liberar a Itália do fascismo: a América deste soldado, onde a liberdade e a civilização racional não se realizaram; ou, talvez, onde as próprias crenças de superioridade de uma “civilização racional” empurraram o soldado negro e sua gente para o estado de miséria no qual eles viviam. Poder-se-ia até dizer que há neste filme uma luta entre verdade e falsidade, numa desmistificação ideológica à maneira marxista, sobretudo no aspecto de denúncia social que o neorrealismo sem dúvida tem. Quer dizer, o filme desconstrói os clichês de guerra norte-americanos, desconstruindo junto os clichês do american way of life . A verdade trágica da volta para casa miserável na América destrói a ilusão da volta heroica para a bela e grandiosa Nova York em festa. A imagem implacável de Napoli caótica, semidestruída e miserável, com suas crianças órfãs tentando enganar e roubar os soldados americanos, destrói a ilusão do soldado salvador que traria a civilização e a liberdade. É por isso que, a princípio, a denúncia do clichê aconteceria aí segundo a tradição marxista: a denúncia de uma ideologia, de uma farsa que rouba e/ou obscurece a consciência dos homens. Os clichês de Hollywood e da propaganda de guerra, ou da propaganda de guerra de Hollywood, seriam denunciados à semelhança de uma desconstrução semiológica, como as que veremos Roland Barthes propor um pouco mais tarde, quando, em meio às guerras anticoloniais, ele interpreta a capa do Paris Match, onde um soldado africano com uniforme francês observa altivo e circunspecto a bandeira francesa sendo hasteada. ¹ Mas para Deleuze, e mesmo antes para André Bazin, o neorrealismo vai além. Ele nos coloca diante de imagens que falam e homens que, paralisados diante do sentido dessas imagens, já não podem transformá-las, já não podem submetê-las, isto é, já não podem fazer a passagem que, no cinema clássico, os conduz da percepção à ação, passando pela afecção. As imagens já não estão mais lá a serviço desses homens e de suas histórias; ao contrário, ela coloca os homens diante de outras possibilidades, outros sentidos possíveis para essas histórias, ou seja, as imagens são capazes de trazer sentidos para o filme, ao contrário de antes, quando só apareciam em função do sentido da história do filme: da trama, da ação e da subjetividade de seus personagens. E por isso mesmo elas são agora capazes de paralisar, submeter, desviar ou até mesmo abrir o caminho, o sentido da vida dos personagens que se tornam, como diz Deleuze, andarilhos, “perambuladores”, caminhando como videntes entre as imagens que passam a “falar”: produzir sentidos. As imagens se permitem agora, portanto, determinar o sentido dos filmes, tornando-se, de certa maneira, personagens destes. Assim, a parede, o

invólucro, que garantia a independência dos filmes clássicos de ficção, racha: tanto o chamado mundo “real” invade o mundo “fictício” dos filmes, quanto o “mundo fictício” pode aparecer ali onde estaríamos procurando apenas “realidade”. Esse “racha”, essa quebra que observamos nesse momento, acontece não só no sentido fechado dos filmes de ficção, mas no próprio sentido da história: da história que é identificada como “história real”. Os próprios personagens andarilhos – “perambuladores” – não necessariamente se enfraquecem, o que se enfraquece é uma “subjetividade fechada” em íntima ligação com os esquemas fechados da história: os clichês. O que veremos é que essas imagens, ao abrir os esquemas sensóriomotores nos quais os personagens deveriam estar perfeitamente encadeados, trazem novos sentidos, novas imagens, e portanto um outro passado possível, para esses personagens. É o que acontece no exemplo do soldado americano que na Napoli miserável lembra de sua vida igualmente miserável na América. Ou, como veremos, o que se passa com a heroína de Hiroshima Mon Amour , que vive os sentidos de sua paixão atual em Hiroshima confundindo e evocando os sentidos, os signos – as imagens que falam –, com os de sua paixão adolescente por um soldado alemão na França ocupada. Mas essas imagens podem simplesmente atropelar de fora para dentro a subjetividade dos personagens que caem paralisados diante de sentidos que não podem ser recodificados como eram antes as percepções usuais. É o que acontece com a estrangeira, heroína de Stromboli , de Rossellini, diante da violência das imagens da pesca do atum: muitos pescadores numa verdadeira matança coletiva de peixes enormes; ou ainda a tempestade e a erupção vulcânica que presencia quando tenta fugir da ilha onde se sentia virtualmente prisioneira, numa evolução de imagens que vão ficando cada vez mais violentas: “Eu estou no fim, que medo, que mistério, que beleza, meu Deus...”. E, quando não é esta impossibilidade de sentido, esta incompreensão avassaladora, o que vemos é um outro sentido que aparece com um delírio, mas que talvez tenha também um sinal de lucidez, de explicação digna diante de uma compreensão e uma percepção usual que era, ela sim, absolutamente estúpida, inclusive por ser incapaz de se compreender como tal. Este é o caso, de novo num filme de Rossellini, da visão da rica heroína de Europa 51 , diante da fábrica onde vai trabalhar por um dia: “Eu pensei estar vendo condenados...”. Imagens óticas e sonoras puras (opsignos e sonsignos) e imagens-cristais A rigor, é no cinema “clássico” – onde a história é, como dissemos, fechada – que as imagens se montam e se agenciam como se constituíssem um “mundo”: um centro de indeterminação. O que acontece no cinema que Deleuze compreende como “moderno” é o aparecimento de imagens – de fora desse encadeamento sensório-motor e intervindo nele –que quebram, desmontam ou alteram esse encadeamento. São imagens que, como signos, trazem outros sentidos diferentes daqueles que constituem o encadeamento, o esquema sensório-motor fechado. É verdade que no interior de um sistema sensório-motor as imagens agem sempre também como signos, mas neste caso estes agem exatamente em função desse encadeamento. Agora, no

entanto, o que Deleuze vê no cinema “moderno” – o cinema da imagemtempo – são as imagens óticas e as imagens sonoras puras, classificadas por ele, respectivamente, como “ opsignos ” e “ sonsignos ”. De fato, neste esquema das narrações típicas dos filmes clássicos, o tempo só pode ser representado através do movimento. É como define Aristóteles na Física : ² o tempo como um “número do movimento”; definição que segue presente na física moderna. O que temos são duas relações com o tempo, a primeira numa extremidade do intervalo: a relação com o Todo, na qual este intervalo pode ser infinitamente dilatado até o tempo se confundir com o próprio Todo do universo. Neste caso, o Todo vai reunir de uma só vez passado, presente e futuro e vai ser no cinema um Todo-filme buscado pela montagem. E a outra relação, na outra extremidade, na qual um objeto se relaciona com outro dentro do intervalo; neste caso, temos o ritmo do filme, como a marcação do seu andamento em que cada batida é um instante que imediatamente se transforma em passado e aponta para um futuro. Este é o acontecimento particular, o objeto que se relaciona com outro, o tempo que pode ser infinitamente contraído na incomensurabilidade do instante, numa subdivisão do plano da realidade – do Todo – que só poderemos identificar como o que esteve antes – o que passou – ou como o que estará depois – o que virá. É o que acontece, segundo Deleuze, por exemplo, no filme Os Pássaros , de Hitchcock. No início vemos a heroína atravessando tranquilamente a enseada num barquinho enquanto gaivotas voam ao longe, numa percepção de um tempo como a percepção do Todo, uma physis em eterna expansão móvel. Mas eis que, de repente, uma gaivota mergulha na direção da heroína atacando-a e ferindo-a na testa. O tempo aí se torna uma ação de um objeto contra o outro; é o instante, que, por sua vez, desde dentro, e mesmo que de maneira ínfima, vai se constituir como uma mudança no Todo. A “imagem-ótica e sonora pura” é exatamente a expressão da presentificação do tempo. Ela é a primeira e mais genérica classificação que Deleuze faz agora para as imagens do cinema moderno e expressa a importância que Bergson assume também neste segundo livro de Deleuze sobre cinema: A Imagem-Tempo . É a partir dessas imagens que vamos poder entender melhor o que são os opsignos e os sonsignos e, mais adiante, o que vem a ser o que Deleuze vai chamar de imagem-cristal em suas variações. A imagem ótica e sonora pura produz o que Deleuze vai chamar de uma “imagem direta do tempo”, ou seja, o tempo se apresenta sem a intermediação do movimento. O que acontece aí é que o tempo “se insurge sobre o movimento” e se apresenta como um “movimento aberrante”, expressão que, segundo Deleuze, mostra como a filosofia antiga de alguma maneira já percebia esta dimensão do tempo: o tempo que não se deixa subordinar pelo movimento. A diferença então entre a imagem ótica e sonora pura e a imagem sensóriomotora que já estudamos, é que a primeira, exatamente por não se prolongar num movimento, assume a função de uma descrição no lugar de ser uma narração. É verdade que também existe uma dimensão descritiva na imagem sensório-motora – a imagem-movimento –, que aparece na forma de uma imagem-afecção. Mas esta se situa entre a percepção e a ação como

uma qualidade pura, como vimos no capítulo anterior, e é, portanto, sempre articulada ao encadeamento sensório-motor exatamente porque preenche o intervalo que percebe e adia a ação na medida mesma que qualifica a percepção. Por isso a imagem-afecção é normalmente articulada por Deleuze com o rosto e é também a primeira expressão de uma imagem que podemos articular com a subjetividade. Já a imagem ótica e sonora pura desencadeia uma descrição exatamente pela ruptura que provoca no encadeamento sensório-motor. Deleuze nos chama a atenção para o fato de ela nos parecer, à primeira vista, mais confusa que a imagem sensóriomotora, no entanto ela acaba nos permitindo uma concentração que se desdobra numa inventividade que vai constituir a imagem de maneira bem mais complexa do que num certo utilitarismo imediato da percepção motora. Deleuze aprofunda a compreensão das imagens óticas e sonoras puras exatamente quando apresenta o que vem a ser o segundo esquema da percepção segundo Bergson, identificado como o da “percepção atenta” no capítulo II do Matéria e Memória . Antes havíamos nos deparado, para descrever cada uma das três formas de imagens do cinema clássico, com o que Bergson chamava de percepção motora. Neste segundo esquema de Bergson, no entanto, nos concentramos sobre um objeto na mesma proporção em que mergulhamos em nossa memória para construir uma descrição deste objeto, ou seja, quanto maior a atenção que prestamos ao objeto, maior é esta espécie de “mergulho interior”. A diferença do esquema que Bergson prepara para a “percepção atenta”, então, como ele mesmo nos chama a atenção, é que antes esta era compreendida como uma espécie de “marcha em linha reta”, em que o espírito se distanciaria cada vez mais do objeto à medida que o analisava, mergulhando em camadas cada vez mais profundas da memória. Bergson propõe um modelo de percepção que identifica como uma “percepção refletida” ³ . Nesta, o objeto percebido e a memória entram numa espécie de circuito onde cada camada da memória não pode se aprofundar sem retornar ao objeto e aprofundar a percepção deste, retornando por sua vez, enquanto a ação se sustenta, novamente à memória num novo circuito que vai assim, sucessivamente, tanto mais se aprofundando na memória quanto mais se concentrando na descrição do objeto. Ou seja, a memória pode ser infinitamente dilatada e, quanto mais ela o for, mas vai projetar sobre o objeto uma infinidade de detalhes a respeito dele. É o que vemos no esquema a seguir: o Início da percepção A que contém apenas o objeto O, os circuito B, C e D da memória que se aprofunda e que, a cada um deles, corresponde as percepções B’,C’ e D’ do objeto, onde este aparece em circuitos de realidade cada vez mais profundos no que virtualmente aparecerá como a própria realidade do objeto, isto é, como camadas cada vez mais profundas da realidade.

Deleuze chama a atenção para o fato de este esquema mostrar como uma imagem atual – a visão que temos do objeto – vem invariavelmente acompanhada de uma imagem virtual: algo que seria da própria constituição da imagem. Esta forma de percepção refletida nos mostra então uma imagem que é atual, mas que também é ótica e sonora pura, e que, ao invés de se prolongar em movimento, vai constituir um circuito com as imagens abstratas e imateriais presentes na nossa memória: um circuito entre o atual e o virtual, onde, nas palavras de Deleuze, “um não para de correr atrás do outro”. Ou seja, o real não para de trocar de posição com o imaginário, com o sonho ou com o delírio. É verdade que já no cinema clássico não faltavam imagens de lembranças, sonhos e delírios. Na narrativa clássica, no entanto, estas aparecem numa separação bem nítida, numa distinção clara, a ponto de em alguns casos termos a impressão, como assinala Deleuze, de elas estarem demarcadas nos filmes quase como se houvesse um aviso: “agora é a lembrança”, “agora é o sonho”, “agora é o passado”. No cinema moderno, no entanto, tais imagens parecem ganhar um papel ativo bastante distinto. Isso acontece não apenas porque no esquema da percepção atenta, a atenção que prestamos ao objeto faz com que a descrição deste se construa graças às imagens da memória evocadas por esta percepção: imagens chamadas de imagens-lembranças. Mas antes porque, afirma Deleuze, as imagenslembranças só podem existir na medida em que existe o que Bergson designa como uma “lembrança-pura”. A questão é que o passado não é para nós, segundo Bergson, apenas um estado psicológico: ele existe em si mesmo e de maneira anterior a nós. Neste sentido, nós não temos uma memória, mas estamos instalados numa memória. A imagem-lembrança é, neste caso, o modo como se atualiza este passado evocado por uma percepção atual. A verdadeira imagem virtual vem a ser então esta lembrança pura: é ela que dá uma profundidade às nossas descrições. A imagem virtual – a lembrança-pura – existe então fora do que tradicionalmente chamamos de consciência e de memória: ela existe no próprio tempo. Para Bergson, a sua existência é tão real quanto a existência dos objetos materiais que percebemos. É esta espécie de passado puro que nos permite fazer uma descrição de um determinado objeto. De fato, tanto para compreender algo quanto para falar uma determinada língua, nós nos

instalamos num passado. Para uma palavra, por exemplo, o passado é o seu sentido e significado. Ver e compreender algo no presente é estar diante de uma “ponta de presente” por trás da qual se contrai todo o passado. É verdade que houve algumas interpretações de Bergson que deixaram a impressão de que o tempo era para ele um aspecto da interioridade. O esquema da percepção atenta começa a nos mostrar, no entanto, que o que acontece nessa situação ótica e sonora pura é que experimentamos uma abertura para o tempo. Contudo, esta abertura ainda não se apresenta plenamente quando é apenas uma imagem-lembrança, diz Deleuze a partir de Bergson; ao contrário, é uma espécie de falha no esquema da percepção atenta que parece revelá-la. Em outra palavras, é quando um circuito estendido entre uma imagem atual e uma imagem virtual se quebra, ou não consegue se formar, que a imagem pode ser percebida em toda a sua profundidade, isto é, que ela mergulha no tempo, no passado, e se revela como passível de atualizar infinitos tempos. É exatamente o que acontece com a pergunta sobre o que seria “Rosebud” em Cidadão Kane . ⁴ O que se mostra aí é, na verdade, a dupla face da imagem para Bergson. Para compreendê-la, devemos nos aprofundar em mais esta originalidade de seu pensamento: a sua concepção do tempo. Bergson desenvolve uma determinada concepção de passado que vai além daquela que designa apenas um presente que passa. Antes, Bergson concebe um passado que é uma dimensão do presente, ou seja, que é contemporâneo ao presente. Passado e presente têm entre si o que Deleuze designa como uma “coalescência”. É precisamente este passado que é a imagem virtual: uma imagem virtual à qual corresponde uma imagem atual – uma imagem no presente –, ou vice-versa. É este circuito entre a imagem atual e a imagem virtual – o passado e o presente que coabitam num mesmo tempo – que vai formar o que Deleuze chama de “menor circuito” e vai constituir uma “imagem cristalina” que, nas suas variações, será o mais importante tipo de imagem do cinema moderno na taxonomia das imagens feita por Deleuze. As imagens-cristais são o que Deleuze identifica em Bergson como a “operação mais fundamental do tempo”, ainda que o conceito de imagemcristal Deleuze tenha ido buscar em Bachelard. Nesta operação, segundo a concepção bergsoniana do tempo, o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas ao mesmo tempo. O tempo se desdobra a cada instante em presente e passado como se ele se cindisse em dois jatos dissimétricos, um em direção ao futuro como o presente que passa, e o outro que conserva todo o passado. Voltaremos às imagens-cristais mais adiante, encontrando exemplo em alguns filmes, o que ajudará na compreensão da sua constituição. Por ora é importante buscar entender que a imagem-tempo reúne de maneira indiscernível esta coalescência entre a dimensão atual e a virtual da imagem. Uma imagem-lembrança, por exemplo, só trará consigo o signo do passado porque nós fomos buscá-la nesta “lembrança pura”, neste passado puro que é a pura virtualidade. Antes de se apresentar atualizada numa imagem (imagem-lembrança), ela irá buscar esta imagem numa espécie de “virtualidade original”. Por isso mencionamos a pergunta por “Rosebud” em Cidadão Kane como um caso exemplar de lembrança pura. Poder-se-ia

objetar que no final do filme ficamos sabendo que Rosebud era o trenó de Kane quando criança. Mas nenhum personagem do filme jamais o sabe: ele será sempre este ponto virtual como uma linha de fuga no passado que aciona a memória de cada um dos que conviveram com Kane quando perguntados sobre o que seria “Rosebud”. As imagens óticas e sonoras puras fazem então o papel de evocar este passado; são elas que, por não se prolongarem num movimento sensóriomotor – e até por o interromperem –, produzem uma quebra no esquema percepção-ação do cinema clássico. Em termos bergonianos, esta é uma quebra que acontece no centro de indeterminação graças a um outro tempo que vem de fora dele, forçando-o. Num certo sentido, a memória vai ser uma espécie de via para este caminho: um caminho para a lembrança pura, para o passado puro. Por isso não se trata apenas de uma operação da interioridade, mas de uma abertura da interioridade, via memória, para o que ela traz de fora; para o que quebra a subjetividade fechada de cada um de nós, e que nos faz, de certa forma, um portador, um presentificador do tempo: um tempo que se identifica com o Todo da imagem-movimento acentrada, ainda não disciplinado como um “número do movimento”, e portanto ainda não submetido ao movimento. E aqui aparece para nós uma importante aproximação com Nietzsche. Aproximação que neste ponto não está explícita em Deleuze. De fato, o que se quebra com a imagem-tempo, o que não pode continuar existindo quando aparece um opsigno , por exemplo, é uma ordem de causalidades. É como se a imagem-tempo trouxesse um devir estranho ao filme. O soldado norteamericano negro de Paisá , como vimos, tem uma história, uma narração com um fim, para “executar”, para cumprir na Itália. Tudo deveria funcionar como um ator que tivesse estudado cuidadosamente um roteiro e aprendido bem o papel a ser exercido pelo seu personagem. Mas as imagens com as quais ele se depara acabam por explodir a história dos atos e dos acontecimentos justificados de uma guerra: desmonta o que estamos chamando aqui de “clichês de guerra”. É isso que, a partir de Deleuze, podemos designar como o rompimento de um sistema sensório-motor. Antes, no cinema clássico, as imagens vinham no tempo do personagem e, portanto, o passado – a memória de imagens que são sempre enunciados – de um soldado americano em um filme de guerra clichê só poderia ser a da América civilizada e livre que vem libertar a Itália. Neste caso, só há um passado possível porque também só há um futuro possível: o destino, a finalidade da missão de guerra. Todas as imagens deste filme serão em virtude da ação civilizadora e libertadora da América na Itália e no mundo. Agora, no entanto, com o neorrealismo, como vimos no exemplo de Paisá , as imagens ou alteram a ordem de causalidades do filme, ou impedem o encadeamento desta ordem. Isso acontece exatamente porque elas não estão no tempo de uma narração fechada, de uma história com vistas a um fim, isto é, elas não estão ali mais apenas para servir a um sentido que é como um destino lógico: um destino moral dos personagens. Elas trazem outros sentidos possíveis e, por isso, trazem outros tempos e alteram o movimento do filme. Este ato de trazer outros tempos é também um ato de trazer outros passados. De fato, o

sentido de uma palavra, de uma imagem e de um signo em geral, é o passado deste signo. Se, por exemplo, estamos todos numa sala dialogando, falando a mesma língua e nos entendendo, o que temos aí é uma comunhão de passados. As imagens que alteram o movimento e o destino de um personagem de um filme são como signos que trazem a este personagem outros significados. Estes outros significados vêm de outros passados diferentes daquele que deveria constituir o clichê. Quer dizer, é este outro passado, ao trazer um sentido diferente do clichê – um outro sentido possível –, que desmonta a história que era organizada em torno de uma lei. É verdade que no esquema sensório-motor do cinema clássico as imagens também eram signos. De fato, o signo é a própria expressão da foto, do enquadramento, da interpretação que no limite do horizonte do intervalo instaura uma percepção com um sentido selecionado que vai, a partir de então, voltar-se para um encadeamento lógico, ou seja, imobilizar-se numa afecção ou se desdobrar numa ação: uma narração no interior do intervalo. Mas o que agora acontece é que este signo intervém de fora do esquema sensório-motor da narração. No caso de Paisá é o que vemos, por exemplo, na imagem da miséria de Napoli que lembra a vida miserável do soldado na América – e portanto não mais o passado fechado das imagens de uma América paradigma de liberdade e civilização. Tais imagens são sem dúvidas signos óticos – opsignos . Da mesma maneira, é também um signo sonoro – sonsigno – a sirene do navio que surge num sentido diferente do contexto da história do filme, que se desterritorializa e vira o som de um avião de guerra no delírio bêbado do soldado. E “desterritorializar” significa aqui, exatamente, a modulação de sentido que sons e imagens operam, na medida mesma em que estão sempre se reconstituindo como signos. É também um sonsigno o apito que interrompe esta parte do delírio: o apito de um trem. É até um trem de fato que passa pelo porto de Napoli, mas este trem vira um trem que leva o soldado de volta para a casa, numa outra cidade, num outro trilho, num outro sentido diferente do anterior onde ele tentava, embriagado, viver o clichê de herói de guerra que vinha fracassando na Napoli caótica. Neste outro futuro possível para a sua volta, não há nenhuma festa de recepção, nenhum heroísmo, nenhuma Nova York o aclamando, mas só um casebre miserável, num recanto qualquer dos Estados Unidos, de um homem negro nos anos 1940. Na verdade, se formos às descrições de Virilio, veremos que, ainda que os filmes clássicos aspirassem ao verídico, o que Deleuze chama de troca de sentidos entre o atual e o virtual sempre esteve ali. O próprio delírio do soldado norte-americano no filme de Rossellini nos mostra que são as mentiras de guerra – as falácias da propaganda de guerra –que criam, antes de qualquer outra coisa, a realidade terrível da guerra. É o que Virilio percebe quando nos mostra o quanto a estética da propaganda estatal de guerra, da propaganda das grandes corporações privadas que cresceram impulsionando e sendo impulsionadas pelos dispositivos de guerra, e dos filmes de guerra propriamente ditos, são impressionantemente semelhantes. ⁵

Milhões de soldados americanos mobilizados para lutar num lugar estranho além mar (parece que para a ideologia oficial norte-americana é somente em virtude da guerra que se justifica um americano sair de seu país), quase a totalidade da população masculina alemã mobilizada, e a impressionante produtividade industrial das economias de guerra de ambos os países, já são a expressão de algo, no mínimo, muito semelhante ao que estamos chamando de clichê: esquemas sensórios-motores que se instalam à medida que envolvem os homens e suas civilizações em todo um regime narrativo e numa mobilização existencial com vistas a um fim. Quer dizer, trata-se de uma experiência de realidade totalmente fechada em si mesma, onde não há outro sentido possível; sobretudo, a perspectiva deste sentido é a recompensa, e sua justificativa, um grande princípio transcendente. Quanto à possibilidade de fuga, ou seja, a possibilidade de outro sentido, invariavelmente trará uma imagem-signo que evoca uma experiência sensório-motora de castigo, de dor e de culpa. Estas são experiências que veremos Nietzsche descrever na Genealogia da Moral . Já vimos nos capítulos anteriores toda a trajetória histórica de uma experiência perceptiva do real que é, de certa maneira, cinematográfica, ou, pelo menos, pré-cinematográfica. Mas agora, além das imagens em movimento das janelas de trens, carros e aviões, das câmaras climatizadas e cenografadas dos shopping centers , da arquitetura-cinema de nossas cidades-cinemas e das primeiras imensas salas de cinemas – muito maiores antes da guerra –, lugar das “missas profanas onde se exaltavam os valores dos estados laicos”, ⁶ como nos diz Virilio, estamos também diante de uma guerra onde as imagens servem para paralisar ou para mover corpos. Quer dizer, o cinema nunca teve essa independência que os filmes clássicos de ficção pretendiam: estes estavam desde sempre, de alguma maneira, constituindo a experiência perceptiva do real dos povos, inventando realidades, engendrando desejos e despertando temores, mesmo que escondidos por trás deste enunciado de “filme de ficção”. O neorrealismo paralisa os corpos diante de imagens que falam: imagens que trazem um sentido para além da história e do tempo do filme e que acabam por intervir na história e no tempo deste filme. É isso que acontece no momento em que a lembrança de seu casebre miserável nos Estados Unidos faz o soldado negro cair do seu delírio de herói de guerra. Mas, mesmo antes da imagem interromper o delírio do soldado, as imagens deste segundo episódio de Paisá já falavam. Era na verdade aquela estranha cidade caótica, miserável e semidestruída, antes mesmo que o álcool, que arrancara o soldado de sua “realidade”: o mundo onde ele deveria se sentir seguro, o seu clichê. Para isso colabora também o fato de que em toda a perambulação do bêbado conduzido pelo menino existe uma inversão: uma criança lúcida e um adulto delirante. É o mundo adulto – o mundo que tem o estatuto de realidade – que parece delirante e ficcional e, por isso, para o soldado, quase insuportável. Não que a criança seja aí senhora da história, isto é, de uma verdade, de uma consciência da história: mesmo que sóbria o suficiente para conduzir o soldado, ela também perambula pela cidade. Mas talvez ela seja como uma criança nietzschiana, criadora de sua própria moral, diante das situaçõeslimite que a vida apresenta. É por isso que, ao conduzir o soldado na sua

balada pelas ruas da cidade, faz com que este caia em situações que lhe são difíceis de suportar. De fato, o olhar perguntador de qualquer criança sempre vai favorecer as desconstruções dos clichês e dos códigos morais prontos para justificar a vida, ainda que isso possa virar também um clichê. Mas o fato é que diversas vezes o cinema recorre à criança: no próprio neorrealismo, em Ladrões de Bicicleta , de De Sicca, e em Alemanha Ano Zero , de Rossellini, ou no menino de Truffaut em Os Incompreendidos , ou ainda, já nos anos 1980, no garoto que narra a perseguição stalinista que recai sobre seu pai, também stalinista, em Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios , de Emir Kusturica. No mencionado episódio de Paisá , de Rossellini, o próprio fato de os clichês de guerra aparecerem num delírio já nos mostra que algo havia se quebrado. De fato, não é este que deveria ser o lugar do clichê: a função do clichê deveria ser, exatamente, a tranquilidade, o conforto, garantido pelo esquema sensório-motor que ele mesmo é: um esquema para, por exemplo, nos desviar de uma situação quando ela é “desagradável demais”, como diz Deleuze. Toda a aventura delirante, todo o transe do soldado antes de desmaiar, é como se fosse uma tentativa desesperada de realizar a história clichê que não houve. E, por outro lado, o transe do soldado tira o clichê do sentido, do tempo que ele deveria estar: o tempo da aventura pacificadora e civilizatória estadunidense na Europa. É, portanto, um clichê fora de tempo. Um clichê fora de tempo é um clichê que se revela ou, no mínimo, em vias de se revelar: um clichê deixando de ser clichê. Assim, o que altera o soldado não é exatamente um mundo “sem sentido”, e sim outros sentidos que se insinuam e que não são o que deveria ser o sentido do clichê. A imagem – o objeto-imagem, portanto – perde sua função pragmática de revelar uma situação que tenderia a se desdobrar numa ação, e a percepção como que retorna, se concentra e insiste sobre esta imagem. Por isso a imagem é o que desvia, impede ou enfraquece a ação no neorrealismo e nos “novos cinemas” que se seguem a ele. Estas imagens são, portanto, imagens óticas e sonoras puras; ou ainda, essas situações que quebram um esquema sensório-motor percepção-afecção-ação podem ser chamadas de “situações óticas ou sonoras puras”. É verdade que há ainda uma menção à história clássica no neorrealismo: uma lembrança do clichê. Mas é isso que causa dor, perplexidade, paralisia, ou ainda que desvia o caminho do soldado americano, isto é, o clichê que é impedido de se realizar. Como vimos, o soldado chega à Itália para o seu “destino clássico”. É como se ele esperasse que o clichê estivesse lá para poder passear protegido por ele. O clichê pode até ser cheio de aventuras, pode ser emocionante, arriscado, mas apenas como um brinquedo de parque de diversões – destes que os norte-americanos aperfeiçoaram ao extremo. Neste caso, a saída segura da aventura está garantida. A história “prevista” para aquele personagem simplesmente não pode prosseguir porque a imagem diante da qual ele se depara não está ali em função desta história. Ao contrário, é essa imagem mesma, como uma situação ótica e sonora pura, que o lança para fora da história; é ela que opera o que Deleuze chama de insurgência do tempo sobre o movimento: o instante em que o tempo reverte a sua subordinação ao movimento. ⁷ Não se trata de uma “troca de finais” ou de uma mudança nos acontecimentos do

filme, já que aqueles acontecimentos “previstos” teriam um determinado caráter ideológico. É algo mais radical do que isso. É uma alteração no tempo do filme e, mais ainda, uma alteração no lugar que o tempo ocupa em um filme. A imagem opera a insurgência do tempo exatamente porque ela faz uma intervenção no movimento do filme. Movimento ao qual antes, no cinema “clássico”, cabia à imagem apenas se submeter, ou seja, surgir como imagem em função deste movimento e em função da própria ação dos personagens. Neste sentido, André Bazin nos chama a atenção para o fato de este cinema passar a privilegiar o plano em relação à montagem, ⁸ invertendo a subordinação que aquele tinha em relação a esta no cinema clássico. Bazin tinha de fato condenado um privilégio da montagem no cinema clássico, mostrando que era a maneira como esta submetia o plano que fazia muitos dos filmes serem absolutamente previsíveis. A força que o plano, e em particular o plano sequência, adquire teria restituído à realidade as suas lacunas, o seu caráter fragmentar, esvaziado a sua previsibilidade, e restituído ao espectador um caráter ativo ao assistir aos filmes. É contra a lei que o tempo se insurge. Nietzschiano, como a criança, o tempo é aí transmoral: destrói a lei, embora possa até vir a fundar outra. A propósito, Heráclito, o filósofo grego preferido de Nietzsche, já tinha chamado o tempo de “vigência da criança”. ⁹ Mas, para além de Heráclito e de Nietzsche, este é um tempo bergsoniano. Sua intervenção desde fora do esquema sensório-motor se dá porque este é o seu caráter mais essencial, qual seja, o de um movimento que se move exatamente à medida que cria o novo. É vindo de fora do limite do esquema sensório-motor do centro de indeterminação – das imagens-viventes que são a nossa própria experiência de realidade – que o tempo se insurge sobre o movimento. E isto acontece porque no interior do centro de indeterminação – do intervalo – o movimento é sempre limitado e, portanto, um movimento que se dá sempre em função de uma lei. Mas o tempo do Todo não tem lei, ou seja, não tem um esquema sensório-motor que lhe discipline. Neste sentido, a intervenção que este movimento do Todo, enquanto expressão do próprio tempo, faz no esquema sensório-motor que nos constitui tem até o caráter de uma certa violência sensório-motora. Por outro lado, ela é libertadora quando a violência sensório-motora está na própria lei que limita as experiências do centro de indeterminação que nós somos. Enfim, para o nosso soldado, não há mais razão para recuperar suas botas roubadas pela criança durante a bebedeira, no que seria um ato restaurador e moralizador da lei: simplesmente não há mais lei a restaurar. O soldado então silencia em meio à favela onde a criança, que agora se revela órfã de pais perdidos num bombardeio, morava. Ele desiste de “fazer justiça” num gesto que é como uma aceitação trágica da quebra do clichê. Este é até um momento triste do filme; na verdade, é o final dele. Mas é o final do filme, e não da história do soldado. Assim, ele parece se libertar daquele sofrimento típico de quem não vê acontecer o que deveria estar acontecendo: o soldado se liberta porque desiste do grande fim. É como se ele adquirisse uma consciência de sua – nossa – perambulação, caindo na estrada Itália afora: a dimensão on the road que o neorrealismo sem dúvida tem. É também cheios de promessas de grandes recompensas, e por estarem realizando uma grande missão para o rei (a lei), que dois jovens camponeses

são convocados para a guerra em Tempo de Guerra , de Godard. Podemos descrever o clichê como uma experiência – ou a busca de uma experiência – de um sentido que se dirige para uma grande recompensa. É verdade que os soldados do rei do filme de Godard prometem mais ou menos a mesma coisa que a propaganda de guerra norte-americana, e que esta promessa é plena de grandes prazeres, gozos e premiações. Mas tudo isso rigorosamente dentro de uma lei, qual seja, você será recompensado se se sacrificar e servir. É por isso que os soldados do rei que convocam para a guerra têm uma performance diante dos camponeses que varia esquizofrenicamente entre as promessas sedutoras e atos violentos de intimidação, como se quisessem todo o tempo dizer: – Nós vos prometemos uma recompensa, uma felicidade, mas ai de vocês se desejarem outra coisa, se acharem que a felicidade não é esta que nós vos prometemos. Em suma, a performance dos soldados de Godard é exatamente a performance da lei. Mesmo que estes ora sejam violentos, ora sedutores, o que eles dizem o tempo todo é: “Nós somos os juízes. Nós é que castigaremos, nós é que recompensaremos.” Godard nos apresenta assim a performance, o teatro, enfim, todo um conjunto de agires que “falam” – são signos – do esquema sensório-motor de recompensa e castigo da propaganda de guerra. Esta é sempre plena de imagens-signos que visam ora a nos seduzir para os combates, ora a nos ameaçar para que não pensemos em deserção. E uma vez que é impossível falar de uma guerra sem riscos, a propaganda de guerra fala-nos sempre de um risco rigorosamente dentro da lei, ou melhor, um risco pela lei, regido pela lei; enfim, um risco que se justifica na lei e que justifica a lei. Neste sentido, talvez os clichês de guerra não devam ser comparados, como fizemos há pouco, com os brinquedos de parque de diversão. Nestes últimos, paga-se para viver um falso risco e sair vivo; já na guerra há o risco, a dor e a morte, mas que são, para nós, da ordem do clichê porque estão “justificados”: se constituem numa lei em função da qual se organiza a lógica de uma narração, de uma história. Assim, começamos a compreender por que podemos dizer que o cinema clássico contribui para exaurir o projeto de verdade como critério de veracidade do Ocidente e, mais particularmente, por que ajuda a exaurir a noção de busca da verdade como a de uma busca da apresentação empírica desta: é como se a “mágica da verdade” começasse a ser revelada. Talvez tenhamos feito aí um raciocínio até bastante hegeliano, quer dizer, um determinado processo histórico se exaure, se esgota, quando finalmente realiza sua meta. Mas, por outro lado, talvez seja um caráter não linear e não evolucionista da história que ajuda a explicar a vigência, ainda num certo estrato de compreensão de realidade, deste regime de verdades que crê e apregoa uma revelação empírica da verdade como uma espécie de “acontecimento” da razão, como chamou Virilio. Um “acontecimento” que nada tem a ver com o sentido que Deleuze dá a este conceito, posto que designa apenas a prova empírica do que já estava previsto por um transcendente: a razão. Em todo caso, aquilo que identificamos com o que Virilio chama de “misticismo cientificista tecnicista”, ou ainda o que Bazin chama de “mito do cinema total”, de certo modo se realiza em toda a primeira fase do cinema. Mas, ao contrário do que pretendia esta espécie de positivismo empirista,

ele não se realiza como o “fim da história”. Mesmo quando compreendidos como filmes de ficção, o que estes faziam era tentar reconstruir, na independência do filme, uma noção de realidade que teria uma verdade em si que deveria ser revelada no filme – a verdade em si do filme –, tal como buscava o positivismo. Eram filmes que “aspiravam ao verídico” como nos diz Deleuze, tal como os labirintos lógicos que temos que resolver em alguns filmes de Hitchcock: o filme termina, a história se fecha, quando o encadeamento lógico buscado se revela. À maneira nietzschiana, veremos então que o desmonte da crença na verdade em si, da qual o cinema é inicialmente sintoma e meio, é também o desmonte na crença de que a história, assim como todo movimento existente no universo, se organiza em função de leis. É dentro deste raciocínio que percebemos que o esgotamento de uma determinada concepção de verdade é também o esgotamento de uma determinada concepção moral, ainda que percebamos – confirmando as previsões nietzschianas de uma vigência de dois séculos do niilismo – que essas concepções insistem em se manter numa vigência moribunda, esvaziada de potência e, exatamente por isso, nociva. Assim, o cinema, que de início se anuncia como a última grande realização deste processo – sua consumação final –, vai agora surpreendentemente contribuir para levá-lo ao esgotamento. Será, portanto, a crise desse esquema de recompensa e castigo, isso que amarra logicamente o clichê a partir de uma lei – uma história, uma narração com vistas a um fim e em função de um princípio –, que será ainda aprofundado no trecho a seguir. Para isso será fundamental entendermos como as leis, em torno das quais se organiza o clichê, estão num esquema semelhante ao que Nietzsche nos descreve na Genealogia da Moral . Deleuze, Peirce e o cinema: uma semiótica do movimento Falar em opsignos e sonsignos nos leva ao estudo que Deleuze fez do extremamente complexo sistema semiótico de Charles Sanders Peirce, do qual ele mesmo, como esclarece antes de entrar no assunto pela primeira vez em A Imagem-Movimento , faz ali apenas um resumo. Mas o fato é que todo o sistema semiótico de Peirce é fundamental para que Deleuze, mesmo que seja criticando-o e buscando superá-lo em alguns de seus aspectos, empreenda aquilo que é uma das propostas de seus estudos sobre cinema, qual seja, o de empreender esta classificação, esta espécie de taxonomia das imagens cinematográficas. Neste contexto, é importante compreendermos por que Deleuze toma Peirce como base. O francês escolhe este autor norte-americano porque ele constrói toda a sua semiótica a partir de uma crítica que é dirigida à semiologia, crítica com a qual Deleuze está de acordo e que, além disso, permite a aproximação de Peirce com Bergson. Os problemas que Deleuze vê na semiologia, e que pensa terem sido superados por Peirce, pelo menos parcialmente, vêm de uma crítica de inspiração bergsoniana que Deleuze dirige à “ciência dos signos”. O problema desta última seria tentar compreender um esquema estrutural da língua, um sistema de signos, desconsiderando a modulação, o movimento. É como se a semiologia cometesse, para Deleuze, um erro histórico análogo, e mesmo semelhante,

àquele que para Bergson a filosofia e a ciência cometeram ao tentar compreender o movimento: confundir a trajetória percorrida por um corpo, os pontos pelos quais este passa no espaço e os instantes no tempo, com o próprio movimento. A origem dos signos para Deleuze está naquele movimento mesmo que funda o centro de indeterminação. De fato, na relação deste com o Todo da imagem-movimento, esta última sempre estará dando origem a signos, uma vez que a nossa relação com ela é a de uma interpretação, de um enquadramento: a “foto” que tiramos do universo acentrado da imagemmovimento. A origem dos signos está, então, na própria “percepção da percepção” da qual falamos. É o que Deleuze percebe também na semiótica de Peirce. Este empreende uma classificação geral de signos que é, ao mesmo tempo, uma classificação geral de imagens. A própria experiência do signo em Peirce tem sua origem numa imagem. Esta imagem é, segundo Deleuze, semelhante à imagemafecção, ou seja, a imagem-percepção selecionada, especializada, que vai preencher o intervalo: o centro de indeterminação que se constitui no Todo. Deleuze procura assim, a partir de cada uma das três variações da imagemmovimento, encontrar correspondentes na classificação das imagens feita por Peirce. ¹⁰ O norte-americano nos fala de uma primeiridade, uma segundidade e uma terceiridade. Estas corresponderiam, segundo Deleuze, respectivamente, à imagem-afecção, à imagem-ação e à imagem-relação. Como vimos, a imagem-afecção traz consigo a própria origem da percepção que se dá no intervalo: ela é a expressão desta percepção selecionada que acaba por ocupar este intervalo. A segundidade ocorre justamente quando se age, e executa um movimento no meio criado no interior deste intervalo: a imagem-ação. E, por fim, a terceiridade é exatamente o que encadeia a ação que acontece dentro do intervalo com os outros aspectos deste, isto é, com o processo e os sentidos que já estavam ali: a imagem-relação. ¹¹ O signo é, em Peirce, na verdade uma imagem que vale por outra imagem. Temos aí outra tríade que ele compõe para classificar os signos: o representamen , que se constitui num objeto através de um interpretante . Esta relação, no entanto, segue trocando de posição infinitamente. O próprio interpretante não fecha esta relação definitivamente e pode ele mesmo se tornar um signo. Assim como, numa direção contrária, o que chamamos objeto não é jamais “objeto em si mesmo”, mas sempre uma imagem que se constituiu de outra imagem e, precisamente por isso, pode ser interpretada como um signo. Ou seja, é exatamente a percepção especializada do centro de indeterminação, a imagem-afecção, que sempre só poderá se dar como um signo. A seleção, a especialização, que constitui o caráter mesmo desta percepção, é sempre à maneira de uma imagem experimentada como signo, ou seja, uma imagem que tem uma dimensão qualitativa que indica um sentido. É portanto a partir dos estudos que faz de Peirce – aproximando-o de Bergson – que Deleuze diz que a semiologia, com suas codificações, exclui o movimento, logo, a modulação como operação essencial da percepção da imagem-movimento. Peirce, por outro lado, teria compreendido – ainda que

parcialmente – a importância dessa modulação. É aí, nos diz Deleuze, que o sentido se constitui. Esta é a própria operação de se (re)traduzir o Todo acentrado e eternamente móvel numa linguagem, de enquadrá-lo, de recriálo num plano de maneira que ele seja sempre signo. Esta é a experiência que se dá no horizonte do intervalo, do centro de indeterminação: a realidade interpretada tal qual o mundo que criamos para nós. Trata-se exatamente do que Bergson define como uma percepção selecionada , ou seja, a que extrai do Todo apenas uma parte, um enquadramento: uma foto. Para Deleuze, é de acordo com este raciocínio que as codificações às quais se dedica a semiologia são sempre “meio pobres” ¹² para se interpretar uma imagem. Isso aconteceria porque a semiologia se constrói a partir da distinção entre imagem e objeto que é exatamente o “erro histórico”, digamos assim, que a filosofia e a ciência teriam cometido – como apontou Bergson no primeiro capítulo de Matéria e Memória . Os sentidos dos signos, o significado dos significantes, que a semiologia interpreta é, na verdade, o sentido, o significado que estes adquirem como um “corte imóvel”, um “golpe” ( coup ) no movimento que, para assim serem interpretados, precisam ser subtraídos do movimento. O que Bergson nos ensina, no entanto – e Deleuze toma como decisivo para o seu estudo sobre cinema –, é que o objeto só é percebido porque é sempre já um objetoimagem. A percepção é um fenômeno inerente ao movimento, ela se dá a partir do movimento e porque gera movimento, não podendo portanto ser analisada apartada dele. E é exatamente por isso, a propósito, que a experiência da percepção de um objeto é sempre a experiência da percepção de uma imagem. Isto constitui a essência da imagem-movimento: uma matéria bruta de um universo acentrado, onde tudo percebe tudo e que, em referência a estes intervalos que se criam no seu próprio interior – os centros de indeterminação –, torna-se um “enunciável”. ¹³ É aí que se dá o que Peirce designava como percept . ¹⁴ O “enquadramento” que o centro de indeterminação faz nessa matéria bruta é o próprio ato da gênese da linguagem: da realidade que é sempre, para Bergson, e aqui também para Peirce, no modo de ser de uma representação e de uma virtualidade. Este é o momento em que nós nos apoderamos dessa matéria que, insistimos, é uma matéria sempre em movimento. Mas a questão para Deleuze é que este processo que dá gênese à própria linguagem ocorre o tempo todo. De fora do centro de indeterminação, o Todo continua em movimento, e este Todo – a primeira dimensão da imagempercepção – está sempre a afetar, desde o lado de fora, o centro de indeterminação, rompendo, vez por outra, o esquema sensório-motor que o constitui. É por isso que os enunciados e as narrações “ não são um dado da imagem aparente ” ¹⁵ , mas estão fundados nela. Não há lei fechada da narração da mesma maneira que não há estrutura em si da linguagem. Como a gênese da linguagem nunca deixa de estar numa referência a esta matéria bruta em movimento que a princípio é a-significante – ainda que o centro de indeterminação não possa viver sem lhe emprestar significado –, esta se traduz sempre por uma modulação que altera a própria estrutura da linguagem.

É como se existisse aí, diz Deleuze, uma zeroidade , ¹⁶ antes da primeiridade vista por Peirce. Trata-se aí da grande modulação do universo: o tempo sempre produzindo o novo. É esta que instiga, afeta e está sempre a quebrar o esquema sensório-motor do intervalo: do centro de indeterminação. A questão é compreender que tipos de imagens são estas que surgem não mais numa ordem de referências que se constroem no horizonte do centro de indeterminação, ou seja, imagens que não estão mais restritas a um encadeamento lógico que se dá entre imagem-afecção, imagem-ação e imagem-relação. A questão agora é compreender e classificar as imagens de um cinema onde este sistema fechado, à maneira de uma narração, de uma história em virtude de um fim, é quebrado, interrompido e se coloca diante de outros sentidos possíveis. Aqui acontece o que Deleuze vai chamar de “insurgência do tempo sobre o movimento”, que vai se dar a partir do momento em que nos deparamos nos filmes com toda uma série de fenômenos semelhantes àqueles que experimenta o soldado norte americano do filme de Rossellini que mencionamos. É aí que os signos óticos e sonoros puros, os opsignos e os sonsignos, têm a sua gênese . Estes alteram os sentidos à medida mesmo que alteram e/ ou quebram o movimento que se dá dentro do centro de indeterminação. E se o esquema que se dá dentro deste é semelhante a um clichê, ou seja, a um esquema sensório-motor fechado em si mesmo, os sonsignos e opsignos quebram os clichês uma vez que representam a atuação do tempo – o eterno fluir do todo produzindo o novo – sobre o movimento do interior do centro de indeterminação que nós somos. Assim percebemos o quanto a grande questão da interpretação dos sentidos – e isto expressa uma posição filosófica de Deleuze – não está, em relação à filosofia, na compreensão do sentido em si deste ou daquele conceito. Da mesma maneira, em relação ao cinema, a compreensão também não pode acontecer na interpretação do sentido em si desta ou daquela imagem, ou das leis de relação que estas podem estabelecer entre si. A interpretação de um sentido acontece no nosso contato-limite com a imagem-movimento do Todo. O que se dá aí é uma interpretação à maneira nietzschiana: uma criação, uma constituição de sentido. É neste limite da experiência de realidade que podemos ter – no horizonte do mundo, do “intervalo” no qual vivemos – que os próprios sentidos se redefinem. É por isso que podemos ver Deleuze entre aqueles filósofos que recusam todo tipo de transcendência, de “universais”, e se incluindo entre aqueles que ele mesmo chama de “filósofos da imanência”. ¹⁷ É a partir deste raciocínio que ele vai compreender a função e a potência da filosofia numa grande identidade com a potência que ele vê no cinema, qual seja, a de criar conceitos, sentidos e novas dimensões de realidade. É interessante observarmos o quanto Roland Barthes, um dos maiores nomes da semiologia, chega a posições muito próximas às de Deleuze quando, pouco mais de uma década depois de ter exposto o seu projeto semiológico em Mitologias , ¹⁸ o reavalia no texto “Mito Hoje”. ¹⁹ Barthes afirma aí que o discurso que se construíra na busca de sentidos velados – na análise do que se enunciava em determinada imagem que “falava” através de signos fechados – se transformou numa manifestação superficial, também cheia de sentidos velados: a interpretação de um signo acabou virando um

signo de outra coisa diferente do que está sendo dito. Por exemplo: dentro de sua proposta inicial de semiologia, Barthes fez uma famosa análise da capa da revista conservadora Paris Match , onde, em meio à proliferação das guerras anticoloniais, ele analisa a foto de um soldado africano do exército francês que, em posição de sentido, vê a bandeira da França sendo hasteada. O enunciado aí seria aproximadamente este: “todos os que nascem em ‘território francês’, mesmo que nas ‘províncias ultramarinas’ sentem-se cidadãos iguais e se orgulham de pertencer e servir ao estado e ao exército francês.” Mas acaba acontecendo com a semiologia, diz Barthes, um problema semelhante ao que a psicanálise tem que enfrentar: a transformação de suas análises, interpretações e codificações numa certa “vulgata”. Como interpretar se qualquer um pode dizer numa conversa informal e superficial que tal atitude de tal pessoa é uma manifestação do complexo de Édipo? Como compreender o que está por trás de um discurso político, quando qualquer jovem estudante de primeiro período já entra na faculdade dizendo que tal imagem é um “símbolo da ideologia burguesa”, ou do “neocolonialismo”, como no caso da capa da Paris Match ? Fazendo mais uma vez uma aproximação com Peirce, o que veríamos aí é o interpretante virando um signo a ser interpretado: uma imagem que se refere a outra imagem. O fato de Barthes perceber esta troca de posições não significa que ele veja um problema inerente à popularização do conhecimento. O problema está, na verdade, no fato de um discurso que diz “interpretar” – desvendar, revelar –, acabar se tornando a superfície de uma série de outros sentidos. O discurso do estudante, que se diz revolucionário, vira clichê porque ele não só o repete mecanicamente, como também acaba se fechando num esquema sensório-motor em torno de uma lei cuja função é exatamente velar outro sentido possível. Este outro sentido, no entanto, só estará ali para quem tiver força para desconstruir o clichê: a própria superficialidade do discurso do estudante é o signo que nos indicará esta desconstrução. A propósito, é algo semelhante a isso que Godard nos mostra em A Chinesa . Os estudantes que habitavam no aparelho revolucionário indicavam em seus gestos e palavras, todo o tempo, outros sentidos e intenções diferentes da superficialidade aparente dos falsos enunciados revolucionários: o que se enunciava, a partir de falas, gestos – e mesmo da desconexão entre estes – são signos que nos conduzem a outros sentidos. O que o cineasta francês percebeu entre os militantes maoístas foi toda uma maneira de constituir e criar verdades que mais remete aos procedimentos e esquemas sensóriomotores da moral e dos clichês cristãos. Não parece haver qualquer sinal de uma disposição realmente revolucionária naquela célula de esquerda. O que vemos, então, entre os militantes comunistas, é o esquema da “grande causa”, do grande sacrifício pelo “grande fim”. E com ele vem, como de costume, a condenação de todo prazer “pequeno burguês” – a condenação moral do que acomete o corpo ameaçando a “lei” –, enfim, o velho esquema dos cordeiros de Deus, agora travestidos em cordeiros de Mao Tsé-Tung e da revolução socialista. O que Barthes passa a propor então é uma semiologia preocupada com a descrição das reconstituições de sentido, com as transformações de significado que as palavras, as imagens, os signos, vão ganhando através do

tempo e da história. É o caso do filme de Godard, onde o partido revolucionário se transforma numa seita de um moralismo do tipo monoteísta. Esta é, sem dúvida, uma reflexão que se aproxima bastante das reflexões de Deleuze. No Mil Platôs , ²⁰ por exemplo, Deleuze vai afirmar que uma língua só se fecha sobre si mesma em função de uma impotência e que, na verdade, uma língua é sempre a expressão de uma multiplicidade. Multiplicidade que só se define desde o lado de fora definido por um limite abstrato disto que quer se fechar. É este lado de fora que permite o que ele vai chamar de “linhas de fuga” e de movimentos de “desterritorialização”. O que se constrói, então, é todo um novo jogo de conexões com outras “realidades” da multiplicidade, para assim se constituírem novos sentidos. É neste contexto que Deleuze descobre o conceito de “rizoma”, a partir do qual vai construir toda uma complexa maneira de ler esses movimentos de redefinição e transformação de sentidos. Este conceito surge, fundamentalmente, numa crítica a problemas que ele vê nas estruturas para compreender a realidade e a vida em todos os ramos da ciência ocidental. Esta lógica que seria equivocada é, sobretudo, a lógica que ele chama de “arborescente”, desde onde toda diferenciação parece condenada a ser remetida a uma raiz: de novo a “grande origem” tão criticada por Nietzsche na metafísica. Na relação entre o livro e o mundo, por exemplo, Deleuze recusa a lógica binária da mimesis , e diz que o livro não imita o mundo, mas faz rizoma com este: livro e mundo estão numa troca na qual um sempre se reterritorializa e se desterritorializa no outro, num jogo que é como a troca entre o virtual e o atual que encontramos entre cinema e realidade. Mas o que importa aqui é saber como estas reflexões nos ajudam a entender o cinema concebido por Deleuze como algo que passa a realizar conscientemente esta insurgência do tempo sobre o movimento; o cinema como uma máquina constituidora de tempo e sentido. Isto também ajuda a esclarecer por que para Deleuze o cinema não é uma “linguagem”, mas uma possibilidade do real. Além disso, o cinema não poderia mesmo ser considerado uma linguagem, uma vez que Deleuze rejeita qualquer tipo de compreensão de linguagem, ou de língua, como algo estruturado em si mesmo. Assim, se já dissemos aqui que Deleuze se filia ao que ele chama de linhagem de filósofos da imanência, diríamos também que ele se interessa por uma linhagem de linguistas e lógicos que são, de uma forma ou de outra, capazes de entender a gênese da linguagem sempre no limite e na tensão com uma realidade material e corporal em movimento. Nesta “linhagem” colocaríamos também, além de Peirce, o linguista russo Mikhail Bakhtin, o dinamarquês Louis Hjelmslev, as reflexões e provocações lógicas de Lewis Carroll e ainda a maneira como o cineasta e poeta Pier Paolo Pasolini enfrenta a semiologia de Umberto Eco para afirmar o cinema como uma “linguagem do real”. Aqui caberia perguntar como Deleuze poderia estar de acordo com Pasolini, uma vez que afirma que o cinema não é uma linguagem. Mas chamar o cinema de uma “linguagem do real” é negá-lo como uma linguagem em si mesma, e descobrir, por um caminho inverso, o real como sendo, de certa forma, cinematográfico. 1 BARTHES, Roland. Mitologias . São Paulo: Difel, 1982. Voltaremos a este exemplo logo adiante, quando falarmos das críticas de Deleuze à semiologia (e da autocrítica de Barthes).

2 ARISTOTE. La Physyque. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 1999, livro IV, 219bl. 3   Matéria e Memória , p. 118-119. 4 A função de “Rosebud” em “Cidadão Kane”, de Welles, será analisada como exemplo do que Bergson chamava de um “passado ontológico” ou um “passado puro”, no capítulo “Cristais de Tempo, lençóis do passado”. 5 VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema , op. cit., p. 105. Virilio chega a nos apresentar aqui alguns cartazes de propaganda onde símbolos de famosas empresas privadas alemãs, no caso a Mercedes Benz, aparecem orgulhosamente ao lado da suástica nazi. 6 Ibidem, p. 51. 7 I T., p. 50. 8 BAZIN, André. Qu’est-ce que le Cinema? Paris: Les Editions du Cerf, 1999, p. 73. 9 LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Heráclito”. In: Os Pensadores Originários , op. cit., frag. 52. “O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança.” 10 I. M., p. 93 11 I. T., p. 45. 12 I. T., p. 40. 13 I. T., p. 42. 14 VANDENBUNDER, André. La rencontre Deleuze Peirce. In: Lé Cinema Selon Deleuze . Paris: Presses de La Sorbonne Nouvelle, p. 91. 15 I. T., p. 42. 16 I. T., p. 45. 17 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? , op. it. 18 BARTHES, Roland. Mitologias . São Paulo: Difel, 1982. 19 BARTHES, Roland. “O Mito Hoje”. In: O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. 20 DELEUZE, Gilles. Introdução: “Rizoma”. In: Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, v. 1. 2. Nietzsche e Bergson:

moral e clichê À medida que descreve como a moral está na origem da razão, Nietzsche mostra que a experiência primeira da vida – de onde se desdobram todas as outras – é uma experiência corporal, fisiológica, sensorial. Não há para Nietzsche uma instância imaterial, cindida do corpo, e normalmente tida como superior a ele, identificada por conceitos como “razão”, “alma”, “pensamento”, “consciência”, e que constituiriam o que teríamos de mais essencial. Ao contrário, para Nietzsche é uma potência cosmológica que nos afeta fisiologicamente – corporalmente portanto – que está na origem de toda a nossa experiência de realidade. Nós traduziríamos esta experiência naquilo que chamamos de “realidade”, ou até de “verdade”, como se fôssemos um transdutor, ou seja, um dispositivo que transforma a natureza de uma determinada forma de energia em outra: a potência do devir em nossa própria potência. Esta é para Nietzsche ao mesmo tempo a origem da nossa experiência de realidade e, grosso modo, a origem da linguagem e do que chamamos de “cultura” e “civilização”. Neste contexto, a imagem iria aparecer bem no coração desse processo: “Um impulso nervoso que se transforma em imagem, uma imagem que se transforma em som”, ²¹ como ele mesmo diz em “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral”. Por isso, para Nietzsche somos uma força propulsora deste devir cosmológico. Ele se manifesta em nós na medida em que não somos só uma força que quer resistir a ele, mas que quer ser ativa a partir dele e nele: quer criar, se afirmar e se expandir na vida. É aí que transformamos, no limite de nossas possibilidades, a potência da natureza em um “mundo para nós”. Neste instante, no afã de disciplinar esta força, tendemos a criar esquemas, ordem, lei, lógica, forma, articulação de causa e efeito, conhecimento e razão. É como se a potência cosmológica se manifestasse numa espécie de instinto vital. Mas este instinto, por sua vez, teria se afirmado à medida que nós, como um animal que lutava para resistir e se afirmar na vida, tivéssemos precisado controlálo. Somos o “animal que teve que travar a luta pela existência com o intelecto porque não foi dado garras e dentes”. ²² É exatamente neste movimento que nos tornamos, para Nietzsche, um estranho animal que precisou criar um regime para o corpo, precisou disciplinar os instintos num sistema fisiológico: “sensório-motor”, como diria Bergson. É aí, segundo Nietzsche, que se funda – posto que se cria – a moral como aquilo que está na origem da razão e, insistimos: da linguagem, da cultura e da civilização. Há na origem da moral um movimento de “interiorização dos instintos”, uma interiorização que acontece em virtude de um simples adiamento destes, ou à sua transformação em outro sentido que será potencializado mais adiante. Interiorização e transformação vão se dar graças a um sistema de compensações e equivalências de valores que funcionarão como uma espécie de economia de afetos. Este movimento gera a invenção da memória que vai ser, ela mesma, o instrumento de controle dos instintos. É assim, diz Nietzsche, que o homem inventa a memória para poder prometer, ²³ exatamente porque a memória tem, originalmente, a função de prender o homem a um passado que garante para sua vida um destino supostamente fechado, predeterminado. E ela assim o faz à medida que imprime no corpo desse homem o sentimento de dívida, de culpa ( Schuld : em alemão é a

mesma palavra para “dívida” e “culpa” ²⁴ ). Assim, a memória é – do mesmo modo como sugerimos que seja o clichê – um sistema sensório-motor. Graças à memória, o vivente deve saber que tudo o que fizer tem que ser em função dessa promessa, para honrar essa promessa, enfim, para pagar essa dívida. O que a memória funda na vida, portanto, é antes de tudo uma noção de sentido: viverei para cumprir o que prometi, viverei para pagar essa dívida. É neste movimento, diz Nietzsche, que está a origem de toda a objetividade e racionalidade, e antes, como já vimos, da própria linguagem identificada com a nossa experiência de realidade. Esse seria então o momento em que o homem passou a comparar forças, quantificar, buscar equivalências e leis de compensação. ²⁵ Assim, a origem da racionalidade está, em primeiro lugar, no próprio ato de criar leis: de valorar. É assim que a partir dos próprios homens se instaura algo que deve reger – e rege –, que deve governar – e governa – as nossas vidas. E este também é, para Nietzsche, o movimento que origina a própria consciência, ou seja, a origem da memória identificada com a origem da consciência, de maneira semelhante a Bergson. Segundo Nietzsche, funda-se neste momento o homem social. Precisamente à medida que o passado vai lhe parecendo cada vez mais grandioso e os homens vão se sentindo cada vez mais devedores de seus antepassados. Normalmente esta noção de grandeza de seus antepassados é proporcional ao poder e à prosperidade que a sociedade vai alcançando. A dívida então se formula desta maneira: a eles devo tudo o que tenho e tudo o que sou. Este é o movimento que Nietzsche descreve como um voltar-se para dentro dos instintos que teria acontecido com o “homem primitivo”: a “interiorização do homem” e, consequentemente, a origem do que chamamos “alma”, ²⁶ ou melhor, a origem da crença no que chamamos “alma”. Lembremo-nos de que para Platão, por exemplo, a alma é a própria presença da racionalidade no homem: a alma como a nossa porção essencial, inata e eterna, que participa da razão como perspectiva e princípio do universo, e em função da qual deveríamos organizar a vida. Mas esta dívida para com nossos antepassados, segue Nietzsche, vai se tornando cada vez mais longínqua, chega a um tempo fantástico, a outra dimensão, e termina por constituir-se numa transcendência. E aqui Nietzsche levanta a hipótese de ser esta a explicação para a “origem dos Deuses”. ²⁷ Não por acaso, é logo adiante que ele vai afirmar que o advento do Deus cristão é o momento máximo do desenvolvimento, entre os homens, do sentimento de obrigação; portanto, este é também o momento máximo desse processo de interiorização dos instintos que nos leva fundo na constituição de uma memória e de uma consciência. É a partir daí, no entanto, que se dá, para Nietzsche, o drama do homem: tornamo-nos um animal que se castiga por dentro, que se vinga de si mesmo na medida em que se volta contra a própria vida; enfim, como diz o filósofo, somos a fera que tentou se domesticar enjaulando-se e que se feriu nas grades da própria jaula que criou para si. ²⁸ O que se dá aí é um esquecimento, o pior de todos os esquecimentos, que paradoxalmente alimenta um culto fervoroso e cego ao passado, um culto à memória: o esquecimento de que este processo de interiorização dos instintos começou exatamente porque o homem pretendia se expandir e se afirmar na vida.

É por isso que este “voltar-se para dentro” do homem teria chegado a tal ponto que estaríamos vivendo de maneira apenas reativa. Teríamos aí um homem doente de si mesmo na medida em que desenvolvera, graças ao sentimento de dívida, um servilismo em relação ao passado cada vez mais “transcendente”, que o fizera esquecer que esse passado, agora reificado, tinha sido uma criação sua. Ou seja, o homem reativo e devedor – culpado – vive apenas para resistir ao mal, para evitar tudo o que não honra o princípio imaculado ao qual ele deve. Trata-se de um homem acovardado diante de tudo que não está de acordo com o sentido que lhe foi prescrito por um passado que é agora uma lei transcendente que só pode condená-lo ou absolvê-lo. Um homem tomado pelo que Nietzsche chamou de “espírito de vingança”. A rigor, o que temos aí é, resumidamente, a própria tipologia psicológica do que Nietzsche vai chamar de niilismo: a “Vontade de Nada”. Mas esta tipologia é também uma tipologia histórica. A moral como um esquema de controle dos instintos teria se transformado num valor em si mesmo – vivenciado agora como transcendente, anterior e superior aos homens – e ganhado o nome de “razão”. O racionalismo, portanto, teria se deslocado, como Nietzsche nos leva a crer, para uma espécie de reterritorialização do moralismo monoteísta judaico-cristão misturado ao que o próprio Nietzsche identificou como “platonismo”. ²⁹ Este homem que teme o seu próprio passado e para o qual a vida só tem um sentido é um homem incapaz de criar sentidos para si. Para ele, o sentido só pode ter um destino predeterminado, e a não realização desse destino só pode significar uma coisa: dor e castigo. Na verdade, para este homem toda dor é um castigo: a dor, como todo acontecimento, deve estar justificada. Para ele, não há lugar para acaso, nem é possível compreender a dor com o próprio afeto do devir da natureza e da vida. É por isso, inclusive, que para Nietzsche, o sofrimento, como a experiência fisiológica da “falta de sentido”, é uma experiência originária: é como se, antes de qualquer coisa, estivéssemos desde sempre lançados numa existência vã. O próprio niilismo nasce, segundo Nietzsche, da constatação que todo esforço pela vida é vão. O problema é que nós não suportaríamos tal constatação. É neste raciocínio que ele insiste em trazer para a filosofia o que chama de “modo de pensar trágico”. ³⁰ Este, diante da experiência da ausência de sentido, ou seja, da situação-limite para a qual somos conduzidos ao perceber – sentir – que todo o esforço pela vida é vão, faz com que nos lancemos de novo na atividade de criar, constituir sentidos. O homem trágico, quando radicaliza a experiência constitutiva e inevitável do niilismo, age como Zaratustra: “É isso a Vida. Pois muito bem, outra vez!” ³¹ É assim que se aciona a nossa vontade criadora: a Vontade de Potência. É agindo como um filósofo num sentido, digamos, “tradicional”, isto é, investigando onde está a origem da realidade, que Nietzsche chega à conclusão de que a verdade é uma forma de ilusão – de falsidade – que triunfa como verdade; ou ainda que não existe verdade, apenas interpretações. Nietzsche afirma o caráter originalmente virtual da nossa experiência do real. É como filósofo também que ele se mostra preocupado não só em encontrar a origem de toda a experiência da realidade, mas sobretudo em nos fazer capazes de reinventar essa experiência.

Aqui encontraremos mais um grande ponto comum entre Nietzsche e Bergson. Para ambos, a questão da filosofia não é a de investigar como a realidade, o Todo, é em si mesma, e sim tentar compreender como esta realidade se produz. Deleuze, por exemplo, gosta sempre de lembrar que Bergson traz para a filosofia a pergunta sobre como é possível a criação do novo. Também para ambos os filósofos toda a experiência do real se dá a partir do corpo, ou seja, a partir de uma origem “fisiológica” – como diz Nietzsche –, que pode ser também identificada como “sensório-motora” – segundo vocabulário de Bergson. Neste caso, Nietzsche em especial se preocupa, ao diagnosticar o niilismo, com uma situação em que o homem estava se tornando cada vez mais incapaz de produzir realidade. Em todo caso, para ambos os filósofos, a experiência da realidade tem inevitavelmente um caráter de ilusão, de virtualidade: de algo que não é em si mesmo, não possui uma essência, mas está sempre a se produzir. Lembremos que a imagem é, para Bergson, a própria expressão do movimento de um universo heterogêneo num permanente devir autopoiético : autoinventivo. Há em Bergson uma identidade entre matéria e imagem que o leva a criar este conceito absolutamente revolucionário para a filosofia: o objeto-imagem . Um conceito que define a consistência da realidade como sendo mais do que queriam os idealistas e menos do que queriam os empiristas. Neste sentido, toda a experiência que temos do real é sempre a experiência de uma imagem, e a percepção de um objeto é sempre a percepção de um objeto-imagem. Mas aprendemos também que nós somos, segundo Bergson, um “centro de indeterminação” que funciona como uma imagem central à qual todas as outras se referem: um núcleo em torno do qual o universo se dobra. Em outras palavras, somos como imagensviventes, como interpreta Deleuze, que nascem exatamente no momento em que, no coração desse cosmos acentrado onde tudo percebia tudo, aparece um intervalo, um hiato, interiorizando uma parte da percepção graças ao adiamento da reação imediata à percepção. “Imagens-viventes”, “centros de indeterminação”, “matérias vivas”, distintas expressões para definir esse sistema fechado onde o corpo se reconhece como imagem e centraliza a percepção. O que aí vemos é a origem da memória, e da consciência, que em muito se aproxima daquela feita por Nietzsche na Genealogia da Moral : a memória aparece para Bergson no momento em que adiamos e voltamos para dentro o que seria uma reação imediata a uma ação que sofremos de fora.

Também em Nietzsche a origem da memória – da memória e da consciência – é fruto de um adiamento: o adiamento de um impulso instintivo que interiorizamos. O fato de ambos os filósofos verem a origem da memória e da consciência no mesmo movimento já os aproxima. No entanto, Nietzsche nos fala de “interiorização dos instintos” à medida que compara o homem aos outros animais, determinando esta interiorização como o momento em que nós procuramos nos diferenciar das outras bestas da natureza. Bergson, por sua vez, nos fala de um “voltar-se para dentro” que cria o que ele chama de “centros de indeterminação”, que são, a rigor, toda forma de vida, desde o mais simples protozoário. ³² Nós homens seríamos o mais complexo desses centros, dessas zonas de indeterminação. Nosso cérebro teria uma ultracapacidade de armazenamento de percepções, sendo capaz, portanto, de articular percepções presentes com passadas de uma maneira que nenhum outro animal conseguiria. Na verdade, o que aí se produz é, segundo Bergson, a representação. Se num universo ainda sem centros de indeterminação, as percepções atravessavam completamente a matéria, o que passa a acontecer é que parte dessas percepções ficam retidas na matéria: nos centros de indeterminação – nas imagens-viventes – que nossos corpos mesmos são. Portanto, o que o centro de indeterminação funda é um suporte onde imprimimos a “foto” dos objetos à nossa volta e que estão sempre agindo sobre nós. Esta “foto” – fotograma – será encadeada por sua vez num movimento processual ordenado e suportável para o nosso corpo. Essa “foto” é, então, o princípio da própria representação. Ela é aquilo que extraímos de um objeto – sempre um objeto-imagem – no contexto da relação que estabelecemos com ele e por isso ela funciona como um “signo”. Destes objetos, destas imagens, ficam só as partes, os aspectos que nos parecem úteis, que nos interessam: apenas uma pequena parte. Além disso, a memória atua de forma decisiva nessa constituição da representação. É a memória que vai determinar que parte, que vestígio da matéria, será selecionada para formar a representação, assim como o que é aí selecionado irá sempre se relacionar com a memória. A representação é, portanto, uma imagem que tem um importante grau de virtualidade, posto que é uma imagem atual para cuja constituição uma imagem virtual foi evocada. Ela se constitui exatamente a partir do que vimos Bergson descrever na “Evolução Criadora” como sendo o “mecanismo cinematográfico” da percepção e do pensamento. Os vestígios da realidade, que tomamos como um quadro, conectam-se aos vestígios da memória que parecem estar ligados a este, da mesma forma que a memória vai determinar o que, no mundo exterior, vamos escolher para “enquadrar”, para perceber. Trata-se de um jogo de matéria e memória que vai construindo a nossa experiência de realidade graças a uma espécie de “montagem interior”. Na verdade, não há para Bergson percepção humana que não esteja impregnada de lembranças. ³³ São as lembranças que deslocam a nossa percepção de maneira que só temos da matéria pequenos vestígios, “algumas indicações”, “signos” que vão compor, de novo com a ajuda da memória, a representação.

De maneira semelhante a Bergson, Nietzsche também descreve uma experiência de realidade na qual damos golpes estáticos no movimento para lhe impor uma ordem: uma lógica de processo. Isso que é em Bergson a descrição da origem da representação e da nossa experiência de realidade – fotos, fotogramas, instantâneos, palavras, signos – parece ser bastante semelhante àquele movimento descrito por Nietzsche de “dar ordem ao devir” uma vez que não suportaríamos ficar absolutamente à mercê da potência do universo. Este é o movimento fundador da moral, mas também de todo tipo de palavra, conceito, lógica, forma, conhecimento e racionalidade. A moral como uma disciplina para o corpo – e toda a racionalidade que dela se desdobra – também procura organizar a experiência sensível da vida na experiência de um processo e, portanto, num determinado tempo e sentido. E esta experiência, por sua vez, é também sensível, fisiológica: sensóriomotora. O homem constitui aí um passado numa articulação linear de causa e efeito que é fechada e que garante, exatamente por isso, o sentido fechado, predeterminado, para o futuro. Ou seja, a moral nos parece ser um regime de tempo organizado para o corpo como um processo, ou seja, uma experiência do real ordenada em instantes imóveis, fechados em si mesmos nos seus significados, e encadeados uns nos outros, justificando, explicando e julgando uns aos outros: existindo uns em função dos outros. Percebemos então, finalmente, uma grande proximidade entre a moral e o clichê. O clichê, como vimos, é definido por Deleuze como um “esquema sensório-motor”. Ele é, diríamos nós, uma espécie de anestesiamento parcial simplesmente porque – a partir de Bergson e, agora também, a partir de Nietzsche – a experiência plena do real, do mundo em torno de nós, não seria apenas impossível de ser vivida plenamente, seria sobretudo insuportável. Por isso, aliás, notamos uma contradição que nos parece ser mais uma semelhança entre a moral e o clichê: o fato de que, nesta lógica, é tão impossível a experiência do real sem o clichê quanto sem a moral na definição que dela faz Nietzsche, como um esquema de controle e interiorização dos instintos. A contradição está no fato de que os dois, moral e clichê, se voltam absolutamente contra a vida: que aquilo que parece nascer de uma força que constitui a vida, precisa ser quebrado para que esta possa se afirmar. Neste sentido, o cinema pôde efetivar toda a potência da imagem e da arte como formas de expressão do pensamento quando foi – nietzschianamente, amoral ou transmoral – rebelando-se contra aquilo que, no coração dele mesmo, apareceu como uma contraforça do pensamento: uma imagem impotente. E o que faz da questão do cinema moderno – o cinema da imagem-tempo – ser uma questão de forte inspiração nietzschiana é exatamente o fato de este ter surgido como uma impressionante força destruidora de clichês. Dessa maneira, o clichê, como expressão da moral no cinema, funciona exatamente como Nietzsche descreve esta última: um esquema de afetos que age e se instala nos corpos deixando-os parcialmente paralisados e impotentes. Por isso chamamos o clichê aqui de uma imagemmoral, ou mesmo uma imagem-lei, isto é, uma imagem que funciona como uma espécie de índice padronizador e determinador de valor.

21 NIETZSCHE, Friedrich. “Sobre Verdade e Mentira num Sentido ExtraMoral”. In: Os Pensadores . São Paulo: Abril Cultural, 1974. 22 Ibidem. 23 NIETZSCHE, Friedrich. “Culpa, Má Consciência e Coisas Afins”. In: Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 24 Ibidem. 25 Ibidem, p. 53. 26 Ibidem, p. 73. 27 Ibidem, p. 78. 28 Ibidem, p. 73. 29 Nietzsche afirma que o cristianismo seria uma forma de “platonismo para o povo”. NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 30 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, op. cit., p. 87. 31 NIETZSCHE, Friedrich. Da visão e do Enigma. In: Assim Falou Zaratustra . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. 32   Matéria e Memória , p. 28. 33   Matéria e Memória , p. 30. 3. Onietzschianismo de Orson Welles É possível julgar? De Fritz Lang a Orson Welles Embora Deleuze, a princípio, classifique o expressionismo entre o “cinema clássico”, é justamente num dos mais belos filmes de um mestre do expressionismo, O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, que encontramos os sinais de um cinema que parece desconfiar dessa história que julga, dessa história que tem uma lei, história que seria um processo em que o tempo se contentaria em ser um número, um ritmo, do movimento e na qual todo o movimento da história do filme seria o das etapas de um processo (ainda que numa relação dialética, como queria Eisenstein) que levaria a um duelo final em que a verdade do filme e a mentira do filme se enfrentariam. Vimos que o tempo como número do movimento garante a linearidade da história, onde os acontecimentos se articulam num processo linear de causa e efeito que prepara o desfecho final. A lei, a moral do filme, não seria necessariamente, ou apenas, porque os filmes teriam uma lição de moral final, mas ela estaria em todo filme à medida que estes seriam regidos segundo as leis da história: um processo que a todo tempo age e conspira na

preparação do enfrentamento entre a verdade filme e a mentira filme. Todas as imagens estariam ali em virtude disso, ou seja, em virtude do critério de veracidade do filme. As imagens, por só aparecerem em função da ação, não trazem ao filme nenhum sentido por si mesmas. As imagens têm um sentido predeterminado para a história e, precisamente por isso, não intervêm na direção da história: servem a ela. Mas é exatamente o sentido da história de O Vampiro de Düsseldorf que traz um deslocamento em relação a essas leis que deveriam fazer uma história ser compreendida no sentido “clássico”. Um assassino serial de crianças age na cidade, a imprensa noticia, os rumores se espalham. Pressionado pelo pânico da população, o Estado age nos lugares onde, para ele, deveriam estar os criminosos. Assim se sucedem as blitz em guetos, em prostíbulos, em casas clandestinas de jogos, enfim, em todo o território econômico subterrâneo da máfia criminosa da cidade. Agora é a máfia, e não mais o Estado, que se preocupa: o criminoso não pode continuar agindo, é preciso detê-lo, porque está atrapalhando os negócios do crime organizado. A máfia se lança então na busca do criminoso usando como informantes uma rede de mendigos da cidade, que, igualmente organizados em sua máfia, constituem o instrumento perfeito para vigiar tudo e todos: a política disciplinar improvisada da máfia. O desfecho do filme é um julgamento do criminoso organizado pelo crime e, mesmo neste julgamento, há um apelo à ordem: um advogado que o defende perante a turba na plateia que quer simplesmente linchá-lo. Poderíamos nos lembrar do que dissemos no primeiro capítulo: que o expressionismo é parte do cinema clássico e, particularmente em O Vampiro de Düsseldorf , o tempo ainda não encontrou plenamente a sua possibilidade de se rebelar contra o movimento para submetê-lo. Mas esta possibilidade parece se insinuar frequentemente no filme: o tempo parece já estar à espreita. O lugar de quem julga como um lugar privilegiado já aparece em questão na história do filme, mostrando que o que julga, o que busca fazer justiça, só o faz pela história e na história: para sobreviver, para triunfar nela, para reconstituí-la na medida em que reconstituímos seu sentido – e não, ao contrário, como algo que de fora da história a julga para submetê-la. Em primeiro lugar, este deslocamento está no jogo de luz e sombras do próprio expressionismo, que desloca o centro da imagem da mesma maneira que já está deslocando o eixo da história. A princípio, este contraste radical seria exatamente o que o filme, e o expressionismo de uma forma geral, têm de “clássico”. Por trás da limpidez clara e iluminada da vida, da realidade na qual tudo pode ser racionalmente distinguido, há algo sempre à sombra, há algo sempre no subterrâneo temeroso e escuro a conspirar. O conhecido contraste entre o preto e o branco, o claro e o escuro do expressionismo, seria a mais explícita das representações imagéticas do bem e do mal que se poderia ter. Inspirados em Foucault, poderíamos ver aí o próprio limite entre a razão e a desrazão, enunciado expresso a partir das visibilidades da divisão do espaço urbano após a revolução industrial. Mas nos parece que em O Vampiro de Düsseldorf esta dualidade está deslocada. É, de fato, à maneira denunciada por Foucault que o Estado age ao buscar o criminoso. O vampiro, o assassino de crianças, deveria estar no espaço que o Estado julga ser o da desrazão: no gueto, na pobreza, no crime, na zona de prostituição.

Mas é o fracasso da ação do Estado que leva o filme a se encontrar com o pensamento de Foucault. Quer dizer, é aí que se desconstrói e se denuncia a falácia positivista, a simplificação da compreensão polarizada, “razão x desrazão”. De fato, nesse subterrâneo, nesse suposto espaço da “desrazão”, e que o Estado insiste em ver e construir desta forma, vemos emergir uma “outra ordem” (outra razão) que, tão ou mais ameaçada pelo vampiro que o próprio Estado, se empenha em caçá-lo e, mais adiante, em julgálo. A máfia parece ser bem-sucedida na caça ao vampiro exatamente porque caça em função da sua moral – do seu esquema de leis – e não “da moral”, isto é, não do bem e da razão compreendidos como valores em si mesmos aos quais poderíamos empiricamente chegar. O vampiro, o assassino, não é o mal que vem da desrazão, que é sempre igual e vem sempre nos ameaçar: a nós, o bem e a razão, como insiste o Estado. Mas sim, o vampiro, o assassino, é um mal, e um mal apenas porque é uma ameaça ao Estado, à sociedade e, sobretudo, ao suposto lugar da desrazão, que se revelará, na verdade, o lugar da ordem capaz de deter e julgar o bandido: a máfia criminosa de Düsseldorf. A história determinada por leis que a regeriam logicamente a partir de fora seria aquela que aconteceria se o filme fosse o Estado contra o vampiro, isto é, o Estado contra o crime: o bem contra o mal. Mas do escuro, de onde vêm tantas cenas e falas do filme, emerge uma ordem amoral. O vampiro deve ser detido porque ameaça uma ordem criada, e não porque ameaça a lei compreendida como um bem racional em si mesmo. É o sentido, a lei, a história da máfia, que está ameaçada. É baseado nela mesma, baseado numa lei pragmática criada dessa situação particular, que o vampiro é cassado. Por este caminho a máfia acaba por produzir uma identidade com o Estado, qual seja, organiza um julgamento, não porque condene moralmente o linchamento (e seria absurdo falar de “legalidade” num julgamento promovido pela máfia), mas porque o linchamento seria ele também uma ameaça à ordem. Ao longo de todo o filme a história segue seu caminho, mas a todo tempo se depara com as possibilidades de bifurcação: como ela não tem uma lei para além de si mesma, esta lei poderia ser outra e os desdobramentos do acontecimento podiam seguir por outro caminho. Tratase aí das possibilidades virtuais da história: dos outros sentidos possíveis. A princípio diríamos que o caminho seguido e os caminhos por onde se poderia seguir nascem a partir da história mesma. É ela que abre possibilidades e se constitui à medida que faz escolhas: é ela, portanto, a autora de suas leis. Ao longo de todo o filme vemos falas que vêm da penumbra, ou mesmo da escuridão completa, conversando com alguém numa luz estourada. Ou então estas falas estão na penumbra enquanto a luz está sobre um vazio, como numa outra perspectiva possível à história, ou, ao contrário, como o lugar da história que é regido por vozes que conspiram no subterrâneo. A luz deslocada do centro dos acontecimentos nos mostra outros sentidos, outros tempos, que estão sempre em torno dos sentidos e dos tempos do filme. Talvez seja daí que os sentidos do filme nasçam: fora do que se pode ver às claras, mas, por outro lado, numa penumbra ou numa escuridão que é em tudo coalescente com a história. Além disso, enquanto se conspiram e se tramam os próximos passos da história, por diversas vezes a imagem nos mostra imensos gráficos com perspectivas que vão até o infinito, imagens de ciclos que se perdem e que, tal como o jogo de luz e sombras à maneira

como estão no filme, nos deslocam do centro dos acontecimentos: estamos diante de linhas de fuga do tempo que nos levam ao infinito, onde não encontraremos termo final algum, universal e estático, que julgaria a história segundo as suas leis. Há em O Vampiro de Düsseldorf algo que conspira para uma decisão final da história, e nisto ele parece um filme “clássico”. Mas o deslocamento da estrutura de um filme clássico está numa conspiração que, mesmo à sombra – no suposto lugar da “desrazão” –, busca uma ordem, um termo final, que não é a da verdade em si: não é a finalidade moral transcendente, o destino fechado. E somos induzidos a perceber isso porque Lang arrisca alguns descompassos entre a luz do filme – o jogo de luz e sombra – e a narração da história. Ou seja, se há uma verdade-filme nesta obra de Lang, ela não é um “universal”, nem é a vitória do bem sobre o mal. A ordem – a lei – aparece como uma necessidade da história para continuar existindo. Nesse sentido, é na história que se forja a lei: não a partir de um sentimento de justiça, mas, antes, a partir da necessidade de sobrevivência da própria história como farsa. É numa conspiração subterrânea que se forja uma vida que nos pareça segura exatamente porque nos esconde de onde vêm as suas leis (de seus mais obscuros sentimentos subterrâneos), e faz com que acreditemos que seja regida por uma lei universal que o tempo todo a condena ou a absolve. É aí, inclusive, que vemos a única diferença entre a ordem do Estado e a da Máfia. Esta última, pelo menos no filme, faz de forma mais ou menos explícita o seu jogo de controle da vida, de luta contra todo tipo de imprevisibilidade, de fuga de sentido. No fundo, ela quer refazer a sua aliança com o Estado, que lhe permite viver no subterrâneo, onde pode até ser semelhante a ele, mas sem precisar se justificar em cada ato. Foucault nos mostra que é a este “lugar da desrazão” que o Estado recorre quando precisa de um “serviço”, de uma ação que não é justificável. Quer dizer, quando precisa usar da violência, o Estado, que normalmente se apresenta como uma grande realização do “homem verídico”, vai ao gueto, à marginalidade, à suposta zona da desrazão. ³⁴ É por isso que também em Laranja Mecânica , de Kubrick, a disputa entre a violência pulsional dos jovens delinquentes e o Estado é apenas conjuntural. Jamais existem, no filme, duas forças distintas em disputa, na forma de uma dualidade entre bem e mal. Desde sempre a aliança, ou melhor, o encontro e a utilização desta violência pelo próprio Estado, está potencialmente lá. Esta é celebrada nas sequências finais do filme quando um dos delinquentes é visitado por um ministro de Estado no hospital e é contratado para entrar na polícia, onde seguirá se utilizando de sua pulsão assassina. Um ressentimento destruidor, um instinto assassino, celebrando a sua aliança com o discurso “racional” da ordem do Estado é o que vemos também no final de Taxi Driver , de Martin Scorsese. Neste último constatamos – como fizeram Virilio e Deleuze –, não mais na Europa, mas na América, a razão louca e bestializada. Assim, se Deleuze afirma que o jogo de claro e escuro do expressionismo seria expressão da luta entre o bem e o mal, o que faria desses filmes “clássicos”, o deslocamento do centro da ação histórica nesse jogo, a luz estourada onde mal se enxerga, a ação que se dá na penumbra e mesmo as linhas de fuga de perspectivas gráficas que aparecem ao fundo dos planos, mostram o que seriam para nós os primeiros sinais de um esgarçamento em

relação a uma história narrada à maneira clássica, ou seja, os primeiros sinais de um levante do tempo sobre o movimento. O próprio Deleuze vai afirmar mais adiante que Lang coloca o julgamento em questão, alterando a sua forma de luta da verdade contra a mentira que nos conduziria a um universal final, de certa maneira redentor, pacificador e unificador do povo, como acontece, por exemplo, no belo clássico judiciário estadunidense Doze homens e uma Sentença , de Sidney Lumet. ³⁵ Segundo Deleuze, ainda há nos filmes de Lang o julgamento e a possibilidade de julgar, particularmente na fase norte-americana, mesmo que este constate que tudo é aparência: Lang parece crer ainda que as aparências podem se trair, ou que novas aparências podem surgir para julgar as primeiras. ³⁶ Mas para Deleuze, nos Estados Unidos, é Orson Welles que representa esta passagem da imagem-movimento para a imagem-tempo. Entraria aí em questão, pela primeira vez, o cinema que caminha para um duelo final, para um julgamento final, que faria com que triunfasse dentro dele uma verdade em si como um universal do filme, em tudo semelhante a uma concepção de realidade que também conteria uma verdade em si como um termo universal final. E isso se dá exatamente porque a pergunta que Lang sugere no final de O Vampiro de Düsseldorf , Welles radicaliza em seus filmes: É possível julgar? Existe algo fora da história que poderia julgar a história? O que é isso que se ergue contra a história, que quer julgá-la desde fora, que não suporta o seu devir? Deleuze nos fala então de um “nietzschianismo de Orson Welles”. ³⁷ Em A Dama de Shangai , por exemplo, vemos o herói, representado pelo próprio Welles, envolvido num emaranhado de conspirações. É o que ele mesmo percebe quando conta a história de uma pescaria que presenciara no Brasil, na costa do Ceará, onde um tubarão ferido teria ensanguentado a água, o cheiro de sangue atraíra diversos outros tubarões que, enfurecidos, passaram a matar uns aos outros. As conspirações em meio as quais o personagem de Welles se acha, e que ele mesmo compara com esta luta de tubarões, é como a luta voraz das ilusões que se constroem na história com vistas a submeter a história mesma a um controle absoluto. São conspirações, portanto, que têm como projeto a destruição absoluta de tudo que parece se colocar no caminho deste controle. É como a luta voraz pela verdade, que Nietzsche descreve como obsessão do Ocidente, e que busca eliminar da vida tudo que não pareça da ordem estática e universal que deveria ser a da verdade, ou, pelo menos, tudo o que não pareça ser do processo histórico que caminha para a redenção final da verdade. Deleuze, no entanto, nos chama a atenção para o fato de que esses homens que querem o controle absoluto da vida a partir de si mesmos, quer dizer, este tipo de homem tirânico, embora não seja para Nietzsche, a prinfazemcípio, o “homem verídico”, o homem da “Vontade de Verdade”, acabam sendo um tipo do qual este último se aproxima e faz uma aliança. Mais do que isso, é da Vontade de Verdade, do “homem verídico”, que se produzem as tiranias modernas. Ainda que, dos tipos que conspiram contra o herói em A Dama de Shangai , apenas o advogado criminalista pareça explicitamente um tipo de “homem verídico”, o impulso de controle absoluto da vida presente nesses falsários é rigorosamente o mesmo que gera este homem verídico.

É verdade que, para Nietzsche, a luta de ilusões para triunfarem na história é o próprio movimento de constituição da história. Mas o que ele identifica como uma patologia do Ocidente, onde este teria construído a sua própria aniquilação, é a busca da verdade como algo fora da vida e da história, onde tudo que represente o movimento e a negatividade deveria ser banido deste lugar chamado verdade onde a vida deveria se fundamentar e justificar. Em outras palavras, era o que Nietzsche classificava, em tom crítico, de Vontade de Verdade: uma luta voraz pela verdade onde esta deveria derrotar tudo o que parece se opor a ela, como se da constituição dela não fizesse parte. Mas é justamente aqui, nos ensina Nietzsche, que morre a vida, porque morre a própria verdade. Ao desfazer das ilusões, acreditando na verdade em si, impossibilitamos o próprio processo pelo qual as verdades se constroem. O que veremos é que este cinema da imagem-tempo teria feito uma espécie de descoberta nietzschiana, descobrindo a força, a potência do falso, entendendo que, desde sempre, produzir ilusões foi e é produzir realidade. Mas atenção: não estamos dizendo aqui que o filme de Welles é uma espécie de metáfora da história do Ocidente. Seus personagens, no entanto, se assemelham às tipificações psicológicas que Nietzsche faz dos homens do niilismo: os homens dominados pelo “espírito de vingança”. Deleuze vê a presença desses tipos em diversos filmes de Welles, e não só em A Dama de Shangai . São homens que não suportam um mundo que não seja sob seu absoluto controle e que, por isso, tentam eliminar tudo o que na vida significa devir, movimento: homens, portanto, que se vingam da vida. Num certo sentido, são homens que desistem da vida e por isso se erguem contra a vida no momento em que buscam esse triunfo e esse controle absoluto sobre ela. É nesse momento que em A Dama de Shangai , o herói – personagem representado por Welles –, aparentemente a grande vítima da conspiração, escapa. Nas sequências finais há um julgamento, como no filme de Lang, mas é o herói que está sendo julgado por um crime que não cometeu. A rigor, o herói aí é julgado porque amou, porque se entregou a uma ilusão e caiu num esquecimento. Como dissemos, desde o início ele está no meio de três conspiradores. Uma bela mulher – a Dama de Shangai – pela qual está perdidamente apaixonado; o marido desta mulher, um famoso criminalista, que carrega uma paralisia e anda com uma bengala, figura estranha, quase monstruosa; por fim, o sócio deste criminalista, tipo igualmente sinistro, que espreitava as cenas de amor do herói e da bela e fizera questão de revelar isto aos dois. Convidado pelo criminalista que, numa espécie de pulsão de morte, prepara a traição de sua própria bela e sedutora mulher, o herói embarca no iate Circe para um cruzeiro no Caribe: é um embarque num esquecimento. Circe é a Deusa em cuja ilha Odisseu se esqueceu dez anos mergulhado em suas delícias. Na verdade, ele precisou ser chamado por seus companheiros e lembrado que Penélope o esperava para fugir da Ilha. Embora um jogo de seduções, em que mentiras se insinuam por toda parte, esteja presente desde o início no filme, é o sócio do criminalista que convida o herói explicitamente para entrar numa conspiração. Ele deveria simular o assassinato desse sócio, para que este fugisse com o dinheiro da sociedade enquanto todos o tivessem como morto. O herói é convencido a entrar na jogada, para ganhar dinheiro e fugir com a bela loura pela qual está apaixonado. Mas o sócio

conspirador acaba sendo assassinado de fato, ou seja, sua conspiração é vítima de outra, a da própria loura sedutora que, na verdade, fugiria com o sócio e, por sua vez, tinha que enfrentar uma terceira trama, desta vez a do criminalista que fingiria defender o herói no tribunal, mas queria condená-lo à morte para afastá-lo de sua esposa. Resumindo, os três contra o herói: o sócio, a bela mulher e o criminalista. Por tudo isso o herói vai se encontrar prisioneiro: pelo crime que ele deveria fingir cometer e não cometeu, mas que aconteceu, por ter ingenuamente amado a bela mulher e sonhado fugir com ela, que também conspirava contra ele, e finalmente, no próprio julgamento, o criminalista que lhe prometia uma defesa segura, conspirava para a sua condenação. E conspirava para a sua condenação porque, de alguma maneira, temia que o amor ingênuo do herói o fizesse perder a esposa, que esta fugisse da segurança passiva de um casamento de interesses e aceitasse a vida vã do herói. Mas o herói consegue escapar do tribunal e, em meio ao caos, foge pela cidade e se esconde numa casa de espelhos, onde se dá uma das mais célebres sequências de Welles, e mesmo da história do cinema. Temos aqui um exemplo do que Deleuze chama de coalescência entre o virtual e o real. Uma sequência que pode ser até comparada com o delírio do soldado negro em Napoli no episódio de Paisá que descrevemos. De fato, na casa do espelho está o herói representado por Welles e dois de seus perseguidores; tudo reflete tudo, duplicando as imagens ao infinito de uma maneira que nem mesmo o espectador do filme consegue distinguir o real do virtual. Não sabemos qual é a imagem do herói e as suas duplicações, não sabemos qual é a imagem da bela loura e as suas duplicações, assim como não sabemos qual é a imagem do criminalista e as suas duplicações. Todas as conspirações e todo o jogo de mentiras tornaram-se o real da vida do herói: real e virtual são aí indiscerníveis. Agora ele é um prisioneiro de um complicado jogo de mentiras que se superpõem e que determinam a sua vida. Insistimos, porém, que mentiras que nos mobilizam pela vida, que constituem a nossa realidade, nietzschianamente falando, não são em si mesmas moralmente condenáveis. O problema está, para Nietzsche, quando é preciso haver um culpado, quando é preciso condenar alguém por tudo isso, quando alguém precisa pagar, precisa ser o bode expiatório de todos os males que a vida causa em outrem, ou em todos nós. Os três conspiradores que querem a vitória absoluta sobre a vida escolhem o herói para o sacrifício: é um sacrifício por um fim, como afirma o sócio que quer forjar o próprio assassinato – o próprio fim – ao se referir ao fim do mundo: “Vai chegar, tem que chegar”. Mas o herói escapa justamente porque na casa dos espelhos ele destrói um a um os espelhos, como se buscasse destruir as conspirações que querem condená-lo. O herói desfaz as ilusões para continuar vivo, e precisa fazê-lo, insistimos, não por estas serem ilusões, mas porque são ilusões que constituem as conspirações do ressentimento: são ilusões que tramam contra a (sua) vida. Num perigoso e alucinado tiroteio, todos atiram contra todos, não se sabe se o que se atinge é a imagem ou o corpo, mas quando finalmente todos os espelhos estão quebrados, o criminalista e sua bela esposa estão feridos de morte. Ao se destruírem todas as imagens – todas as duplicações possíveis de um corpo –, destrói-se o próprio corpo, como na identidade entre objeto e imagem que aprendemos em Bergson.

Agora, então, o herói está salvo e os conspiradores, feridos de morte, estão diante da fraqueza que eles queriam banir de suas vidas: as suas próprias finitudes. É então a bela loura, agonizante, que dá a pista do seu próprio niilismo: “De que adianta lutar? Não se pode vencer”. Ao que o herói responde: “Não, não se pode vencer”. Ela então dá a sua derradeira fala: “Dê lembranças ao sol por mim”. E o herói, por sua vez, nos dá a senha de sua decisão pela vida: “Mas também não se pode perder, a menos que se desista”. O herói não descrê da vida, embora logo no início do filme ele mesmo anuncie a tragédia que tende a se abater sobre ele cada vez que é apanhado por uma ilusão. No final do filme, o herói escapa às conspirações não porque escapa às ilusões, mas porque escapa aos julgamentos com que queriam submeter a sua vida. É só por isso que ele pode seguir vivo. O herói de A Dama de Shangai é, à maneira de Welles, um herói trágico. Grande angulares barrocas: a representação direta do tempo Poder-se-ia objetar aqui que, a não ser em relação à sequência do espelho, fazemos uma análise da história do filme de Welles e não das imagens – que, ao analisar a história, talvez estivéssemos deixando de falar das imagens do filme – e em que medida elas presentificam o que Deleuze chama de insurgência do tempo sobre o movimento. De fato, encontramos no cinema de Welles planos com uma grande profundidade de campo, profundidade que já havia sido estudada por Bazin, ³⁸ e que Deleuze vai definir como um “convite a se lembrar”. ³⁹ Deleuze diz que Welles ganha uma nova forma de profundidade nos planos de seus filmes; profundidades que vêm presentificar diferentes dimensões do tempo e não apenas do espaço. Com grande angulares, Welles aumenta e deforma as figuras que estão no primeiro plano, diminuindo as que estão no último, estreitando dessa maneira a relação que existe entre ambas. Ou então, lembrando o expressionismo, ele põe em primeiro plano um objeto, deslocando para um plano aparentemente secundário a ação propriamente dita onde se desenrolaria a história do filme; ou ainda, nessa profundidade de campo, diversas ações distintas se desenrolam, como se fossem relações entre tempos diferentes, o que Deleuze vai chamar de “lençóis do passado”, ou seja, períodos diferentes do passado convivendo com ações que estão num único plano com grande profundidade, enquanto antes, no cinema “clássico”, tínhamos uma ação que se desenrolava plano a plano. O plano que no cinema clássico é articulado em primeiro lugar como espaço, passa a ser, em Welles, principalmente tempo. É verdade que vimos o quanto os planos, articulados na montagem, podiam já representar o tempo de duas maneiras: ou o tempo que se abria infinitamente até o todo – o tempo de Chronos –, ou o tempo que se contraía infinitamente no instante – o tempo de Aion –, momento em que um objeto se relaciona com outro. Ambas as maneiras eram ainda representações do tempo intermediadas pelo movimento. Eisenstein inclusive nos lembra que a montagem no filme está antes da atividade que normalmente é assim designada, quer dizer, a montagem já estaria na elaboração do roteiro, na direção dos atores, na definição de suas posições e movimentações em um determinado plano, na organização da luz etc. Mas Deleuze vê nos planos de Welles a

representação direta do tempo. Para isso ele faz uma interessante articulação entre estes planos, e mesmo os cenários dos filmes de Welles, com o barroco do século XVII e a diferença que este trazia na profundidade de seus quadros em relação aos quadros renascentistas do século XVI. O barroco abre a profundidade de seus quadros e estabelece entre os vários planos uma relação que pode chegar mesmo a se estender para fora do quadro, como no célebre As Meninas , de Velasquez, analisado por Foucault em As Palavras e as Coisas. ⁴⁰ Aí vemos os diversos planos do quadro relacionando-se entre si, num jogo que é de espelhos, de personagens em um plano observando os personagens do outro plano, de um pintando (copiando, duplicando) o outro e, finalmente, alguns personagens olhando para aquele que vê o quadro como se o abrisse para o espaço. Este “abrir para o espaço” é típico também do barroco que, segundo Henrich Wölfflin, ⁴¹ tinha a pretensão de uma “arte total”, quer dizer, alguns planos do próprio quadro se relacionavam com planos fora dele; por exemplo, a escultura na igreja, a nave toda, sua arquitetura, e até mesmo a arquitetura da praça da cidade onde estava a igreja. A mesma diferença existente entre a profundidade dos quadros do Renascimento e do barroco, Deleuze via entre a função do plano nos quadros de certos filmes chamados por ele de “clássicos” e este nascente “cinema moderno” de Welles. A profundidade do Renascimento, diz Deleuze, seria como certos planos de Griffith em Intolerância . Aí cada plano do quadro se organizava num conjunto em profundidade, tendo neste conjunto uma função que constituía o todo da imagem. Já como nos quadros barrocos, o que Welles traz é uma interação entre os diversos planos de um mesmo quadro. Atua decisivamente para esta função o uso que ele faz das lentes grande angulares, que aumentam substancialmente aquilo que está em primeiro plano, ampliando a profundidade da imagem, diminuindo o que se encontra num plano ao fundo, mas ao mesmo tempo estabelecendo uma relação entre estes dois planos. Welles recorre também a cenários onde ou o teto fica à mostra, de maneira surpreendentemente baixa para o cinema, ampliando a profundidade horizontal, ou especial-mente alto, numa profundidade vertical vista de um contraplongê, característica que mais uma vez lembra o barroco, segundo a descrição de seus traços arquitetônicos feita por Wölfflin. ⁴² O que vemos, nos seus filmes, são ações acontecendo em planos diferentes do quadro, ou um personagem se deslocando num mesmo quadro de um plano para outro, atravessando massas de sombra e feixes de luz e se dirigindo a um outro personagem em outro plano; ou um determinado personagem surgindo da sombra, com uma informação que intervém numa ação que se dá num plano à luz. Podemos também ter um objeto ampliado em primeiro plano e observarmos uma ação acontecendo num plano que seria aparentemente secundário; ou ver uma ação acontecendo em um plano onde a luz não é suficiente para iluminá-la, como se sobrasse para o escuro, ou para outros planos atravessando massas de luzes e sombras, e assim por diante. Todas estas são, para Deleuze, exemplos de imagens que trazem uma representação direta do tempo. Antes, víamos o tempo representado indiretamente a partir do espaço e do movimento, quer dizer, o tempo se representava à medida que montávamos o filme, de maneira que cada quadro com seus respectivos planos tinha uma função fechada em si mesmo,

contribuindo com este encadeamento para o todo do filme, mesmo que houvesse diferenças entre os modos de se dar este encadeamento, como a existente entre Griffith e Eisenstein. Agora, diz Deleuze, a movimentação de um personagem de um plano a outro de um mesmo quadro seria uma movimentação no tempo, como se este personagem se deslocasse de um tempo a outro. No caso de ações paralelas em planos distintos de um quadro, seriam como ações paralelas no tempo, ações que poderiam se comunicar entre si; assim como aquele personagem que surge da escuridão é algo que vem de outro tempo, de algum ponto longínquo da memória. Quer dizer, Deleuze vê o presente e o passado, a relação entre estes, o deslocamento de um para o outro, de cada ação presente num mesmo quadro, como se ali se representasse a imagem constituída da relação entre Matéria e Memória que dá título à obra de Bergson. Neste sentido, Deleuze vai classificar Welles como um cineasta barroco “ou neoexpressionista”, ⁴³ o que nos ajuda a fazer a vinculação que sugerimos há pouco entre o cinema de Welles e certas características que havíamos identificado no expressionismo de Lang, em O Vampiro de Düsseldorf, onde percebemos, ao menos se insinuando, uma representação direta do tempo na imagem. ⁴⁴ Não há para nós, entretanto, contradição entre analisar a história do filme e as imagens do filme. Não acreditamos que a passagem da imagemmovimento para a imagem-tempo venha a ser a passagem para filmes onde a imagem seja mais importante do que a história – embora isso seja constantemente repetido em análises, por exemplo, de filmes da Nouvelle Vague , movimento que representa a descoberta da imagem-tempo pelo cinema francês. Defendemos aqui que ela representa exatamente outra maneira de se lidar com a história: outra forma de se contar a história. De jeito algum, como costuma se anunciar, trata-se de um cinema onde a história perde importância. Ao contrário, a história ganha uma importância especial exatamente quando a imagem se ergue contra as leis de uma compreensão determinista de história. Talvez o cinema da imagem-tempo seja o mais histórico dos cinemas se nos limitarmos à forma como Nietzsche propõe que seja a relação dos homens com a história. Talvez seja um cinema que constitui a história como uma presentificação do real. Para nós, é outra compreensão, outra experiência da história que se abre nesse cinema exatamente à medida que escapa ao clichê. Este será o tema que analisaremos na parte três; antes, vejamos de que modo Welles traz em seus filmes uma moral que pode ser considerada nietzschiana. 34 FOUCAULT, Michel. “Sobre a Prisão”. In: Microfísica do Poder , p. 132 e 136. Aqui vemos uma análise da maneira como o Estado cria e se utiliza dos delinquentes. Sobre a importância dos conceitos como “desrazão” e “visibilidade” em Foucault, ver a obra: DELEUZE, Gilles. Foucault . São Paulo: Brasiliense, 1998.

35 Trata-se de um grande filme com “estrutura clássica” se tivermos a classificação de Deleuze como referência. O “cinema judiciário” é a maneira como, segundo Deleuze, normalmente se filmes políticos clássicos nos Estados Unidos; um cinema iluminista, como veremos mais adiante, onde o Estado é o grande redentor racional que pacifica e unifica o povo. Mas, lembremo-nos, os filmes clássicos não são em si mesmos sinônimos de clichê, e sim o que eles se tornam, por isso nos permitimos aqui exaltar a força desse filme. 36 I. T., p. 169. Neste caso, Deleuze cita os filmes de Lang produzidos nos Estados Unidos – Suplício de uma Alma e Carrascos Também Morrem –, que introduziriam uma alteração no final dos tradicionais “filmes judiciários” norte-americanos. 37 I. T., p. 168. 38 BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Les Editions du Cerf, 2002, p. 76. 39 I. T., p. 134. 40 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas . São Paulo: Martins Fontes, 1999. 41 WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco . São Paulo: Perspectiva, 2000. 42 Ibidem, p. 74. 43 I. T., p. 132. 44 WELLES, Orson. Entrevista concedida a André Bazin e outros no número 87 (1958) de Cahiers du Cinema . In: Política dos Autores. Lisboa: Assírio e Alvim, 1976. Welles vai recusar a “teoria francesa” (expressão dele) que diz ter a influência de cineastas alemães em sua obra. Deleuze está entre os franceses que partilham desta teoria, embora insistamos que o aprofundamento da análise de O Vampiro de Düsseldorf e dos sinais de “imagem-tempo” que percebemos nele é feita aqui por nossa conta. Em todo caso, estamos de acordo com Deleuze nesta “teoria francesa” porque mesmo que Welles jamais tivesse visto um filme de Lang, o que não acreditamos, o cinema já caminhava em direção à descoberta desta “representação direta do tempo”: esta potência plena do cinema se preparava já entre os autores “clássicos”. Potências do Falso, character , dinheiro e cinema Da mesma maneira que Nietzsche – e Bergson mais adiante – compreende a experiência da realidade como criação, não há em Welles uma condenação moral da falsidade. Ao contrário, vimos que em A Dama de Shangai ele pôde construir um filme de imagem-tempo à medida que fazia a seguinte pergunta moral, ou melhor, uma pergunta à própria moral: É possível julgar? Uma reflexão sobre o tema é proposta ao próprio Welles numa entrevista feita por André Bazin, Charles Bitsch e Jean Domarchi e publicada no

Cahiers du Cinema. ⁴⁵ Ali, questionado se a moral de seus filmes era nietzschiana, Welles diz que eles podem chamar assim se quiserem, mas que ele definiria a moral de seus filmes sobretudo como uma moral aristocrática em oposição à burguesa. ⁴⁶ O que, sem dúvida, nos permite compreendê-la como nietzschiana já que “aristocrática” é, por excelência, a definição da moral nietzschiana, que também é defendida e definida, muitas vezes, num contexto de crítica à moral burguesa, à cultura burguesa e à noção burguesa de cultura de uma forma geral. É exatamente no trecho da entrevista em que Welles define a sua moral como aristocrática, que vamos encontrar duas outras afirmações que nos parecem bem próximas do pensamento de Nietzsche. A primeira vem um pouco antes, quando Welles fala da unidade de sua obra: “ se o que fazemos não nos pertence como a nossa carne e o nosso sangue, então não tem interesse nenhum .” ⁴⁷ Não poderíamos deixar de lembrar aqui a famosa passagem de Nietzsche onde ele fala em “escrever com o próprio sangue”. A segunda vem logo depois de ele definir a sua moral como aristocrática: “ prefiro a coragem a todas as outras virtudes. ” ⁴⁸ Welles usa então um interessante conceito para definir a sua compreensão de moral aristocrática: character . Vejamos como ele define esse conceito um pouco mais adiante na mesma entrevista: “(...) character não é só a maneira como somos feitos, é também o que decidimos ser. É sobretudo a maneira como nos comportamos face à morte ”. ⁴⁹ Observemos, então, que estamos diante de uma avaliação moral que Welles propõe do homem, avaliação que se dá exatamente quando este se encontra diante de sua própria finitude: de sua morte. Ou, como dissemos há pouco, a experiência do real, a experiência da existência, à beira do abismo. É por isso que, quando Deleuze diz que Welles descobre em seus filmes a potência do falso – a Vontade de Potência nietzschiana – e que essa descoberta se estende aos autores “modernos”, ele não está dizendo que exista nestes autores algum tipo de ode ao cinismo e a todo tipo de mentira e falsificação. O que vemos neles é a luta entre as falsificações que potencializam a vida, que são a favor desta, e aquelas que intencionam o seu controle absoluto; ou este jogo, esta dualidade, abatendo-se sobre um mesmo personagem. Este é, por exemplo, o caso de Otelo , tragédia de Shakespeare magnificamente filmada por Orson Welles. Antes de ser tomado pelo ciúme, Otelo é uma espécie de herói ingênuo, de herói amoral – mas não imoral –, um guerreiro vão que luta por Gênova porque em algum momento de sua história produziu-se entre ele e esta cidade o que Espinosa chamaria de um “bom encontro”. Num primeiro momento, a própria aristocracia de Gênova não liga para as palavras do pai da bela moça – ele próprio um aristocrata – que caíra apaixonada e que viria a se casar com Otelo. O pai aristocrata (no sentido sociológico e não nietzschiano) queria convencer os seus pares de que Otelo era um bárbaro, um mouro, e que não poderia se casar com uma herdeira da aristocracia genovesa. Para os outros aristocratas da cidade, ao contrário, Otelo era o seu virtuoso comandante militar, um bom guerreiro, que defendia a cidade de seus inimigos, e isso era suficiente para a cidade amá-lo, admirá-lo e tê-lo como um dos seus. Otelo aí era um bom falsário, o homem criador que fazia a história da cidade e tornava-a mais forte. É como falsário, inclusive, que

seu falso amigo ressentido o amaldiçoa, ao dizer que aquela bela moça se apaixonara por Otelo graças às suas falsas histórias de aventuras, de guerras e viagens passadas. De fato, é um amor desinteressado e vão pela vida que faz de Otelo um herói ingênuo, e talvez tenha sido realmente isso que despertou a paixão da jovem aristocrata pelo mouro. Mas Otelo acaba sendo tocado por esse sentimento ressentido do falso amigo que conspira contra ele e contra o seu casamento. Tomado pelo ciúme, ele mesmo passa a ser uma figura do ressentimento. O caminho que lhe resta só pode ser a destruição de seu amor e de sua vida. Esta passagem da potência criadora do falso para a potência destruidora, que vemos em Otelo , também encontramos, ao menos insinuada, em Cidadão Kane . Mas aqui talvez entrássemos numa polêmica com o próprio Deleuze, que parece concordar com Welles quando este diz que considera Kane um tipo abominável. A princípio, portanto, para Deleuze, Kane seria uma figura do niilismo, aquele que conspira para o controle absoluto da vida. Mas nós vemos pelo menos alguma dubiedade se manifestando em alguns instanteschave da vida de Kane. Sobretudo quando ele decide assumir um jornal e, logo em seguida, quando demonstra não se importar com o prejuízo financeiro que o jornal gera. Seu tutor, um arquibilionário norte-americano, oferece ao seu protegido para que ele escolha e assuma, quando julga que chegou à idade adequada, uma das poderosas empresas de seu imenso holding: poços de petróleo, minas de ouro, complexos industriais, e assim por diante. Qual não é a sua surpresa e decepção quando Kane decide assumir a direção de um então pequeno e deficitário jornal, o Inquirer , do qual o poderoso tutor nem se lembrava de que era proprietário. De fato, Kane toma aí a decisão de se tornar um falsário. De um seguro mundo de coisas prontas que seu tutor lhe oferece, ele escolhe um mundo por fazer. Criar verdades, criar realidades e levar às últimas consequências a potência do falso: esta nos parece ser, a princípio, a decisão de Kane. Por isso é que Cidadão Kane , segundo Deleuze, é o primeiro filme da imagem-tempo: porque trata da vida de um falsário, de um “inventor de verdades”, um inventor de história e, exatamente por isso, um inventor de imagens – uma figura da mídia. Cidadão Kane é um exemplo de cinema que fala de si mesmo, que coloca a potência do falso, que ele mesmo é, em questão. Na verdade, Deleuze vai dizer mais adiante que todo filme que trata de dinheiro é, de certa maneira, cinema falando de si mesmo. De fato, como veremos Win Wenders descobrir em O Estado das Coisas , muitas histórias precisam se mobilizar para que a história de um filme aconteça. É sempre preciso haver muitas “conspirações”, e muito tempo de trabalho, por um minuto de filme. O cinema seria, nesse caso, um grande exemplo de troca injusta com o tempo, que Marx descreve e denuncia como “mais valia”. Nesse momento, Deleuze menciona o consagrado texto de Walter Benjamin, “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” para observar que o grande inimigo do cinema não seria a “reprodutibilidade técnica”, mas o dinheiro. O dinheiro é sempre o outro lado da imagem cinematográfica e esta relação explicita a dura lei do cinema, qual seja, que para um minuto de filme pode ser necessário até mesmo um dia de trabalho. A dura lei do cinema é então a dura lei do Capital, e que faz dele de fato uma arte industrial: “tempo é dinheiro”. É como se a decupagem técnica de um filme, onde se relaciona no

roteiro todo o tipo de trabalho que será necessário mobilizar para se filmar determinada cena, fosse por si só uma demonstração da lei da mais valia em Marx. Na verdade, o que o cinema da imagem-tempo faz é revelar, de dentro dos filmes, esta conspiração e esta relação que o cinema tem com o dinheiro. É como se Deleuze entendesse que a relação entre imagem e dinheiro revelasse o cristal de tempo por excelência do cinema. Neste sentido, para Deleuze, a imagem-movimento se torna imagem-tempo exatamente quando há uma rebelião contra esta lei: esta troca desigual que sempre existe no tempo. Tomando-se então o conceito de character de Welles, é como se os cineastas participassem dessa rebelião, contrapondo imagens ao dinheiro, num ato de coragem criativa. Inventa-se assim o filme dentro do filme, e a imagem límpida, como uma das faces do cristal, ousa revelar o seu outro lado opaco: o dinheiro propriamente dito. Não é por acaso que é um produtor de cinema, vivido por Jack Palance, que sentencia no filme O Desprezo , de Godard: “Quando ouço a palavra cultura, saco logo o meu talão de cheques.” O personagem de Kane, por sua vez, que parece tragicamente aceitar a vitória final do tempo, mesmo assim escolhe viver para ser um homem criador de sentido e tempo, no limite de suas possibilidades. É o que vemos quando ele é advertido por seu tutor de que o jornal que queria assumir dava cerca de um milhão de dólares de prejuízo por ano. Kane então responde: “Eu sei, e isso significa que ainda posso mantê-lo por mais sessenta anos.” Aqui vemos o segundo exemplo de um Kane criador, de um homem de character , numa resposta semelhante à que o herói dá, no final de A Dama de Shangai , diante da fala de sua amada que, moribunda, diz que não se pode vencer o tempo: “É verdade, mas também não se pode perder.” O que acreditamos ver no personagem de Kane é exatamente esta situaçãolimite típica do homem, difícil de determinar com precisão. A sua vontade criadora, a sua Vontade de Potência, nascida de seu desejo de se expandir na vida, de dar vazão à sua força, volta-se contra ele mesmo, posto que se transforma num desejo de controlar toda a vida, de submetê-la, de aniquilar o que ela pode ter de movimento, de imprevisível, de sofrimento, de falta de sentido; enfim, de devir. Na melhor compreensão nietzschiana do homem como um animal doente de si mesmo, Kane nos parece um homem doente de si mesmo. O seu personagem nos mostra que pode estar na nossa própria vontade criadora, na Vontade de Potência mesmo, o germe que a transforma em espírito de vingança e transforma uma criação generosa, que gera, que dá vida, em algo que se volta contra a vida – não obstante, para Deleuze, a impotência seja sempre uma força que vem de fora de nós, ou seja, a inspiração espinosista de Deleuze lhe dá a convicção filosófica de que não existe o que Freud descreve como “pulsão de morte”, ainda que a morte opere o tempo todo na vida, mas, insistimos, como uma força exterior. Por isso, como Deleuze, vemos na maior parte da história também um Kane como expressão do niilismo. Como se este que decidira ser um homem criador, em algum momento tivesse atravessado o que parece ser a mais importante, a mais perigosa e a mais tênue fronteira que a vida tem, e se tornasse um homem que passou a conspirar contra a vida porque quer tê-la sob seu absoluto controle. É o que vemos, por exemplo, no instante em que Kane resolve fazer de sua segunda mulher uma estrela de ópera a qualquer

preço. Essa é exatamente a descrição de uma doença “a partir de nós mesmos”, ⁵⁰ como diz Nietzsche, que todos estamos sujeitos a sofrer. Neste sentido, é o herói de A Dama de Shangai que nos parece se tornar, pela maneira como escapa às conspirações que tramam contra ele, um herói nietzschiano, no sentido de ser um herói que adquire uma consciência do trágico. É verdade que Orson Welles, a princípio, parece não concordar com essa afirmação; sobretudo quando ele se refere ao ato inicial deste personagem de se deixar seduzir pela bela loura e aceitar participar de uma conspiração, da qual seria vítima, para fugir com ela. Mas nós estamos nos referindo aqui à atitude do personagem no final da história e acreditamos, com isso, estar em consonância com Welles quando diz que se conhece o character de um homem na atitude que ele toma diante da morte. Mais do que de Kane e ao contrário de Otelo, O’Hara parece ter adquirido, no final de A Dama de Shangai, o que Nietzsche chamaria de “consciência do trágico”. Embora ele mesmo afirme no filme que, quando entra numa ilusão, age como um tipo de idiota que não sabe até onde esta ilusão vai levá-lo; não resta dúvida, por outro lado, que ele soube agir a tempo contra as ilusões que conspiraram contra sua vida. É por isso que o herói resiste e destrói dois dos conspiradores na casa de espelhos, destruindo, para isso, cada um dos espelhos entre os quais, antes, ele não sabia qual era a imagem real do conspirador, e qual era o duplo deste: a imagem virtual. Na verdade, o herói escapa entre as conspirações e sai com vida entre um emaranhado, uma trama, que era toda contra a sua vida. É desde o início desta sequência, que termina na casa de espelhos, que vemos as imagens que são representações diretas do tempo. Aí temos o herói atravessando um caminho emaranhado de luzes e sombras, como um emaranhado de sentidos – um caminho no tempo –, e justamente para cair na sala dos espelhos, onde todas as imagens refletem todas as imagens num duplicar-se até o infinito, ele mergulha e rola num escorrega (lembrando uma famosa passagem de Alice no País do Espelho , de Lewis Carroll), mergulhando no seu passado, na sua história, atravessando todas as bifurcações de tempo, de sentido, que lhe impuseram as decisões da vida. E lembremos o que falamos há pouco dos clichês de guerra. A princípio, estes nos pareciam como os brinquedos dos parques de diversão, onde todo o temor, todo o perigo, toda a emoção, estão absolutamente previstos e onde não se corre de fato risco algum. Vimos que no caso da guerra, no entanto – e de resto no caso da vida –, por mais glamorosos que sejam estes clichês, por mais emocionante que seja para o soldado de um remoto lugarejo da América a promessa de participar da aventura supostamente libertadora e civilizadora de sua nação pelo mundo, não se pode esconder dele o risco real da morte. Como, a rigor, não se pode esconder de cada um de nós, o tempo todo, este risco e, no entanto, vivemos apesar dele.

Talvez seja esta uma das funções mais importantes do clichê, qual seja, a invenção de uma morte justificada. O clichê da guerra trata então de inventar esta morte justificada: uma morte para uma grande causa, um sacrifício com um fundamento numa lei para além da vida, ou seja, uma dor e um sacrifício justificados numa lei pela qual se pode destruir a própria vida. O clichê é, portanto, a própria experiência da história quando é vivida segundo um determinismo. É por isso que a maneira como Orson Welles tem, inicialmente, de desconstruir o clichê está exatamente na radicalização da questão “É possível julgar?”, como já mencionamos. Os filmes de Welles desconstroem o clichê porque ajudam a desmontar esta estrutura presente no cinema clássico onde a história deve viver em função de um fim: deve justificar e ser justificada pela lei. As próprias imagens que são uma representação direta do tempo – obtidas boa parte das vezes através de lentes grande angulares – são uma descoberta de Welles neste seu empenho em abrir as histórias de seus filmes. Neste caso, o sentidesmo nos chama a atenção, é que antes esta era compreendida como uma espécie de "marcha em linha reta", em que o espírito se distanciaria cada vez mais do objeto à medida quo, o tempo das histórias, não são representados por intermédio do movimento, mas numa mesma imagem já vemos a representação direta do tempo, porque as bifurcações, decisões e cisões de sentidos da história se representam ali diretamente. O que vemos então são, por exemplo, planos profundos, abertos no tempo como se saíssem para fora de seus limites: à maneira da arte barroca. Aí pode estar, por exemplo, um personagem numa situaçãolimite no presente, ou seja, diante de uma decisão de sentido que ele tem que tomar e, ao fundo, uma decisão de sentidos em outro tempo que tem uma ligação com a bifurcação e a decisão de sentidos atual. É, na verdade, a própria situação-limite que o personagem vive atualmente que faz com que ele se desloque num mesmo plano como se fosse deslocado no tempo. É, portanto, a situação-limite atual que evoca a memória, o passado: o virtual que constitui os sentidos criados pelo personagem. E, no final das contas, é segundo a maneira como esses personagens se comportam diante dessas situações-limite que Welles propõe que eles sejam avaliados moralmente. Esses serão homens de character quando determinarem um sentido, afirmarem a vida e não temerem o fim, precisamente no ponto onde o fim, a falta de sentido e o limite parecem ameaçá-los. Foi isso o que nos permitiu articular a moral aristocrática que o próprio cineasta norte-americano define como sendo a sua com a moral nietzschiana. E é isso também que fez Deleuze afirmar que Orson Welles descobre, através de seus filmes e de seus personagens, a potência do falso no cinema. Assim, numa situação-limite onde se encontram diante de seus próprios fins, os personagens de Welles terão character à medida que acionarem a sua vontade criadora: o que Nietzsche chamava de Vontade de Potência. Mas lembremo-nos que a relação com o passado é, para Bergson, o que nos dá o sentido e o que constrói a representação: é o que garante sua compreensão. O clichê constrói o seu sentido, ou se constrói enquanto

sentido, na medida em que evoca um passado que só pode lhe garantir segurança. O passado aí justifica e fecha absolutamente a compreensão do que se percebe da experiência sensório-motora presente do real, colocandoa na lógica de um sentido, de um processo, de uma espécie de destino final. A grande semelhança que vemos entre o que constitui e origina o clichê e a constituição e a origem da moral e da razão para Nietzsche vem exatamente daí. É por isso que Welles é um cineasta pioneiro desse cinema da imagemtempo, quer dizer, de um cinema que produz uma representação direta do tempo. O que o cinema da imagem-tempo faz, a rigor, é lançar-se na contramão da representação, indo em direção a um instante-limite em que esta representação mesma se produz. É como se o cinema tomasse para si a pergunta que Nietzsche faz em tom provocador no início do Além do Bem e do Mal : “Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade (não verdade)?” ⁵¹ É a partir daí também que podemos afirmar que o cinema, que surgira como uma das maiores, senão a maior, realização do projeto positivista de busca e apresentação empírica da verdade – a mágica da verdade –, acaba sendo fundamental para o esgotamento deste projeto. Ou seja, a imagem que antes deveria nos apresentar o real em si mesmo, agora nos coloca diante de sua virtualidade, nos leva no sentido contrário do caminho pelo qual os sentidos mesmos deste real se constituem no modo de ser do objeto-imagem selecionado da representação. E esta virtualidade em devir é para Deleuze “um dos nomes do ser, do ser como devir, puro devir”. ⁵² Se Nietzsche nos leva a perguntar o que em nós quer a verdade, este cinema da imagem-tempo nos leva a perguntar o que em nós quer a representação confundida com a coisa em si, ou seja, o que em nós quer uma experiência objetiva, uma experiência sensório-motora fechada em si mesma: a experiência de um mundo que deve ser “em si” verdadeiro e deve estar em tudo justificado num ponto para além do movimento. Mas o cinema da imagem-tempo é mais do que isso, ou seja, é mais do que simplesmente uma espécie de demonstração e apresentação do processo de constituição de realidade, embora alguns cineastas tivessem tentado isso com belos resultados, mas não sem também perceber o problema que existe nisso. Se o cinema buscasse ser apenas uma apresentação do real se constituindo, ele ia cair mais uma vez no lugar do projeto positivista do “observador neutro”. Por isso, o cinema da imagem-tempo, ao reconhecer o homem como uma espécie de pequeno cosmos capaz de introduzir diferenças de tempo, de criar um real para si, torna-se ele também um lugar dessa experiência. É como se o cinema se tornasse um centro de indeterminação criado pelo centro de indeterminação que nós somos, exercendo, com isso, a função mais radical que podemos exercer – embora nem sempre o façamos. E esta função é a de ser um pequeno cosmos que se cria dentro do cosmos no qual o novo, o real se cria. É neste sentido que o cinema vai passar a ter a função que Deleuze chama de presentificação do real. Welles faz um cinema que descobre, segundo Deleuze, a sua potência de falsário: o falsário vira, em seus filmes, o principal personagem do cinema, senão o próprio cinema como personagem, como agente da potência do

falso. E o cinema descobrindo e exercendo a potência do falso é, para Deleuze, um cinema nietzschiano, nas suas palavras, um cinema que descobre a Vontade de Potência. ⁵³ É como se Deleuze descobrisse em personagens e filmes de Welles o mesmo que Foucault vê em certos personagens da literatura, como Sherazade e Odisseu. Estes últimos seriam personagens que representam a tentativa de uma ontologia da própria linguagem ⁵⁴ : a fala e a escrita vistas e experimentadas na situação-limite de onde elas surgem. É verdade que esses personagens, que podem ser vistos como tentativa de uma ontologia da imagem, existiam já naquele cinema que ainda não tinha descoberto a possibilidade de representação direta do tempo. Este é o caso, por exemplo, do spectrum do estudante em O Estudante de Praga , filme do alemão Stellan Rye, feito em 1913. Trata-se da história de um estudante que vende o seu spectrum , a sua imagem refletida no espelho, a um bruxo que vai levar esta imagem a fazer coisas que este estudante jamais faria. Numa história que vai se tornar mais tarde até um clichê no cinema, esta seria a primeira vez que, segundo Deleuze, o cinema fala de si mesmo, ou seja, que o spectrum ganha vida e começa a inventar realidades. É em Welles, no entanto, e a partir dele de maneiras diferentes em diversos outros cineastas, que esses personagens que fazem o papel de uma tentativa de ontologia da imagem cinematográfica vão ser explicitamente descobertos pelo cinema. Cidadão Kane é, sem dúvida, um grande e paradigmático exemplo disso: um falsário, um criador de ilusões e imagens, um homem de uma atividade muito próxima daquela do homem de cinema. Para Deleuze, é a partir de Welles, portanto, que a imagem passa a ser levada às situações– limite de onde ela surge. E, a rigor, não há diferença entre este lugar ontológico ao qual nos levam tanto certos personagens em suas histórias na literatura, quanto certos personagens em suas histórias no cinema; são os meios que se distinguem aqui. É lógico que a diferença dos meios é muito importante, quer dizer, o cinema como um autômato do movimento nos põe diante da possibilidade de produzir diretamente imagens-movimento e imagens-tempo sem a intermediação da linguagem escrita e mesmo da narração feita pela fala da literatura oral. Nos dois casos, no entanto, somos levados na contramão do processo a partir de onde se constrói toda a representação do real e chegamos tão próximos ao ponto de questionar o próprio sentido desta representação. Trata-se, assim, de um cinema que nos leva até a beira do abismo da existência; levando-nos até o ponto onde o falso, onde as ilusões, conspiram para virar realidade, lugar onde as constituições de sentido se preparam. Veremos ainda outros exemplos desses personagens que são tentativas de uma ontologia do cinema ou, antes, de uma tentativa de, mais do que expressar, reinventar e presentificar a própria experiência do real a partir da experiência cinematográfica. Assim, quando Nietzsche questiona a Vontade de Verdade e se pergunta o que no homem tanto aspira por verdade, a única resposta que para ele parece ter sentido é: pela vida. O que Nietzsche descobre, no entanto, é que a busca pela verdade, pela racionalidade a todo preço, fez o homem voltarse contra a vida, quer dizer, fez o homem voltar-se contra aquilo que garante a própria existência, ou seja, o devir, o movimento, a capacidade de sempre produzir o novo. Personagens tomados pelo “espírito de vingança”, figuras e

situações do niilismo, estão em toda parte no cinema da imagem-tempo. Se existem heróis nesses filmes é exatamente porque, de uma maneira ou de outra, esses estão em combate com o niilismo, isto é, com personagens e situações que de dentro da própria vida se erguem contra ela mesma. Isto é uma qualidade desses filmes. Se dissemos, no início deste trabalho, que a filosofia sempre teve que se deparar com a impotência do pensamento, o clichê é a maneira como esta se expressa na imagem e, aqui especificamente, na imagem em movimento do cinema: nas histórias dos filmes. As figuras do niilismo presentes nesses filmes são tipificações psicológicas que nos mostram quais são os processos existenciais-históricos que agem contra a Vontade de Potência . 45 WELLES, Orson. A Política dos Autores , op. cit., p. 233. 46 Ibidem, p. 257. 47 Ibidem. 48 Ibidem. 49 Ibidem, p. 272. 50 Aqui caberia discutir se este “a partir de nós mesmos” poderia designar que para Nietzsche existiria alguma forma de “pulsão de morte”, ainda que este afirmasse que a vida fosse fundamentalmente Vontade de Potência. Se formos analisar, no entanto, a hipótese que Nietzsche expõe na Genealogia da Moral, e que é tomada por Deleuze e Guattari como a hipótese da origem do socius , veremos que esta nos descreve a instituição da moral como uma forma de poder constituído que opera sobre e no corpo. Trata-se de algo socialmente constituído, que nos acomete de fora para dentro, e não algo que faria parte do que estaria em nossa essência psíquica como uma força autodestrutiva. Não faltam, no entanto, estudos que articulam o “niilismo” em Nietzsche com a “pulsão de morte” em Freud, compreendendo ambos como uma espécie de “ausência de desejabilidade”. 51 NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 9. 52 VASCONCELLOS, Jorge. Deleuze, o Pensamento e o Cinema. op. cit., p. 78. 53 I. T., p. 173. 54 FOUCAULT. “A Linguagem ao Infinito”. In: Ditos e Escritos III: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2001. De Welles a Resnais. Cidadão Kane e Hiroshima Mon Amour : do presente ao passado por um outro sentido Deleuze nos mostra então que os filmes de Orson Welles estão cheio de personagens que são falsários comuns, escroques, golpistas, alcaguetes

ressentidos e assim por diante. Mas nos lembra, por outro lado, de que Nietzsche nos ensina no Zaratustra que o homem verídico – o homem que busca verdade e racionalidade a todo preço – acaba por constituir uma aliança, e mesmo por se confundir, com esses tipos e as suas práticas. ⁵⁵ É por esse caminho que Deleuze vê nos filmes de Welles diversos exemplos dos tipos de niilismo descritos por Nietzsche. Eles estariam ali porque os personagens devem passar por uma espécie de teste moral proposto por Orson Welles: precisam medir-se com seus fins possíveis, com suas mortes. É por isso que, a partir da morte de Kane, como também da morte de Otelo, nos respectivos filmes, somos levados a reviver cada um dos instantes-limite nos quais esses personagens foram dando sentido às suas vidas. Na verdade, não apenas nos filmes de Orson Welles, mas em todo o cinema moderno, vemos personagens na situação-limite entre a memória e o esquecimento. É um cinema pleno de personagens e situações cuja experiência-limite é a de reinventar imagens posto que, de uma maneira ou de outra, estão ali onde elas se esvaem, perdem sentido e pedem novo sentido. É o próprio enfraquecimento da relação orgânica entre personagem e imagem, do qual já falamos, que permite aparecer esse tipo de personagem. E se é verdade que o cinema nos põe diante de uma das mais velhas, senão a mais velha, das situações humanas, qual seja, a de contar uma história, vimos que essas histórias têm no filme de ficção clássico uma estrutura que “aspira ao verídico” e que portanto reproduz uma determinada forma de lidar com a história que, como veremos, é para Nietzsche sintoma de decadência da civilização ocidental. Nietzsche diz que o homem precisa da história porque é “altivo e ambicioso, porque tem prazer de conservar e venerar, e porque sofre e tem necessidade de libertação”. A estas três formas de se lidar com a história corresponderiam, respectivamente, a “história monumental, a história tradicionalista – ou história antiquária – e a história crítica”. ⁵⁶ Nietzsche não critica nenhuma destas três formas em si mesmas. Na verdade, o tom desse texto sobre a história está definido no seu título: “Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida”. Quer dizer, ele está nos falando das “utilidades” e dos “inconvenientes” de cada uma dessas formas de se lidar com a história para a vida. A princípio, cada uma das três formas de lidar com a história são até vistas como virtude e como formas distintas de uma ontológica forma de viver a dinâmica de memória e esquecimento que nos constituiria. Deleuze, por sua vez, percebe que essas formas de lidar com a história – identificadas por Nietzsche – estão presentes no cinema clássico, em especial no estadunidense. Assim vemos a monumentalidade de heróis e acontecimentos que aparecem tanto em Griffith quanto em DeMille como uma espécie de efeito sem causa; já a dimensão antiquária estaria presente no que chamaríamos de uma pseudomuseologia, que se espelha nos detalhes cenográficos – os figurinos “históricos”, panos, chapéus, armas, máquinas, objetos privados, enfim, detalhes supostamente da época. Finalmente, o aspecto “crítico” da relação com a história (que Deleuze prefere chamar de “ético”), num julgamento do passado a partir do que Nietzsche vai identificar como uma perigosa tendência de uma época em acreditar que desenvolveu um critério de justiça superior ao de todas as outras: um típico olhar de superioridade de uma América supostamente incapaz das “barbaridades” de civilizações anteriores.

Mas antes, o que mobiliza Nietzsche na crítica do que ele identifica como uma relação cheia de “excessos” com a história, seria a incapacidade do homem europeu moderno experimentar o esquecimento e assim romper com o seu passado num processo criativo de diferenciação. Nietzsche está mais uma vez identificando o homem enfraquecido e impotente do niilismo que teria submetido seu passado ao mencionado critério de racionalidade e veracidade, segundo suas próprias palavras: “O homem que procura compreender, calcular, apreender, no momento que deveria fixar na sua memória, como um longo sobressalto, o acontecimento incompreensível que o sublime constitui (...) não será capaz de ver o pormenor único, exatamente o mais importante (...).” ⁵⁷ Em termos deleuzianos, portanto, Nietzsche estaria defendendo uma relação potente com a história que se caracterizaria exatamente pela capacidade de apreender e promover uma ruptura no tempo graças a uma ruptura numa determinada ordem de causalidades de uma narrativa fechada. Estamos falando aqui da potência inventiva e instauradora de sentidos do “acontecimento”, que marca decisivamente o pensamento de Deleuze e a sua “filosofia da diferença”’, ou seja, não se trata apenas do nietzschianismo de Welles, mas também – e sobretudo – de Deleuze. De fato, se tivéssemos que escolher apenas um texto em Nietzsche que estaria por trás da importância que o conceito de “acontecimento” ocupa no pensamento de Deleuze, seria esse texto sobre a história, e mais especificamente essa parte que fala do “acontecimento incompreensível” e do “pormenor único”. E, é preciso frisar, o “acontecimento” em Deleuze é algo que precede a história, seria antes como a manifestação do devir que irrompe de fora da história, para só depois ser enquadrado na sua ordem de causalidades. Há aqui então uma relação estreita entre a maneira como Deleuze concebe o conceito de “acontecimento” e a imagem-tempo como uma espécie de expressão deste no cinema. De certa forma, Deleuze nos leva a crer que Orson Welles expressa em Cidadão Kane uma percepção do que seria uma relação potente com a história semelhante à de Nietzsche. Esta apareceria em especial na maneira como Welles mergulha no passado de seu personagem. Trata-se de um processo diferente daquele que o cinema “clássico” sempre fez, qual seja, os tradicionais flashbacks que mantêm a distinção entre presente e passado. De fato, o filme só começa realmente a investigar a vida de Kane depois que assistimos a uma retrospectiva completa, detalhada, “verídica” – “enciclopédica”, como diria Nietzsche – da vida deste grande falsário. O início do filme é exatamente isso: com a morte de Kane temos um documentário biográfico, no melhor estilo “cinema verídico”, desses que trazem o enunciado geral, “Eis a verdade”. O que se percebe nesse documentário? Ele tem inúmeras informações sobre Kane linearmente organizadas, ou seja, uma biografia perfeitamente contada. Trata-se de um documentário tradicional desses que proliferam no jornalismo, e mesmo no cinema, numa versão dessa maneira de lidar com a história que se preocupa apenas, como diz Nietzsche criticamente, em “compreender, calcular e apreender” os fatos passados. Mas, uma vez terminada a exibição desse “filme dentro do filme”, um dos espectadores que o assistia numa sala de cinema, na verdade um personagem responsável por fazer um filme sobre Kane, se levanta e demonstra insatisfação: para ele o filme não respondia quem foi o Cidadão Kane. Não se conhecia através daquela série de notícias jornalísticas o que fez Kane chegar a ser o que foi.

Orson Welles critica aí uma forma de se contar e lidar com a história, e propõe outra. E esta outra forma de se lidar com a história, de ir em busca do que teria feito Kane “vir a ser o que é” (o que foi...), está em algo desconhecido, em algo misterioso, em algo não explicado na sua vida, e não num encadeamento de fatos verídicos já conhecidos e devidamente quantificados e compreendidos como parte de um processo. Este desconhecido, este sem sentido, este vazio está na última palavra dita por Kane antes de morrer: “Rosebud”. Terminado o documentário verídico sobre a vida de Kane, o que o personagem insatisfeito com esse documentário sugere é que se investigue que ponto perdido no passado, que sentido, esta palavra à beira da morte expressava. E aqui a maneira como Nietzsche propõe que lidemos com a história, em contraposição às formas equivocadas de compreender a história que teriam triunfado no Ocidente moderno, encontra-se com a maneira de lidar com o passado e, sobretudo, com a maneira de conceber o tempo que vimos em Bergson ao falarmos das imagens óticas e sonoras puras, das lembrançaspuras e das imagens-lembranças. “Rosebud” representa esse passado ontológico, esse “passado puro”, que não constitui nenhuma forma que nos é interior, e sim algo no qual estamos instalados. Para Deleuze, o filme Cidadão Kane nos oferece literalmente as imagens do mergulho em direção a esse passado, expresso em magníficos movimentos de plongê da câmera, como na cena em que a pergunta por “Rosebud” é feita para Susan, segunda mulher de Kane, agora uma cantora decadente, bêbada, num cabaré; ou ainda em notáveis profundidades de campo dentro das quais um personagem pode até passear como se se movesse de um tempo a outro: é o que vemos na cena onde Kane rompe relações com seu melhor amigo jornalista, exatamente porque este não concordara com a falácia de defender Susan em suas críticas como uma grande cantora de ópera. A guerra e a quebra de seus clichês, trazidas via neorrealismo, que iniciaram esta parte do livro, retornam aqui para que possamos encerrá-la. A quebra dos clichês será como a relação entre presente e passado que se dá numa coalescência e indiscernibilidade entre um e outro – entre o atual e virtual –, como vimos a partir de Bergson: um novo circuito entre presente e passado que vai gerar um novo sentido para o filme. É assim o tempo representado diretamente em Hiroshima Mon Amour , de Alain Resnais, um dos filmes seminais da nouvelle vague francesa, de um diretor que tem, segundo Deleuze, importante influência de Orson Welles. Resnais apresentará neste filme, como poucos, a dinâmica de memória e esquecimento que nos faz ser o que somos, e fará surgir um passado como um peso moral a atormentar a heroína: um passado que deverá ser quebrado como um clichê para que a vida possa continuar. Como na pergunta por “Rosebud” do filme de Welles, o que temos no início de Hiroshima é uma fissura no presente e uma situação-limite que leva ao passado. Essa fissura é como um despertar da vontade que se gera num novo desejo, ⁵⁸ um novo amor que evoca na memória um outro tempo em que vivemos semelhante experiência, gerando uma identificação de sentido, uma ameaça de repetição e, ao mesmo tempo, a aspiração de liberdade, de diferenciação na busca de outro sentido.

O filme se passa em Hiroshima poucos anos depois de sua destruição pela bomba atômica. Ali, uma jovem francesa – que está participando como atriz de um filme-denúncia sobre a bomba – e um japonês da cidade recémarrasada têm um caso de amor. Logo num dos primeiros diálogos, que vêm do romance de Marguerite Duras com o mesmo título, o “amante” japonês afirma: “Você não se lembra dos sofrimentos de Hiroshima. Você não viu os sofrimentos de Hiroshima.” Ao que a bela francesa replica: “Sim; eu me lembro dos sofrimentos de Hiroshima. Eu vi todos esses sofrimentos nas fotos do museu da bomba de Hiroshima.” E começa a descrever, uma a uma, as terríveis fotos do museu da bomba, que são documentalmente mostradas no próprio filme. Mas o japonês insiste que ela não lembra, ela não viu porque não viveu todo o terror da bomba de Hiroshima. E a paixão prossegue na sua busca de sentido, no jogo de memória e esquecimento, e as perguntas em torno da catástrofe de Hiroshima transformam-se ou confundem-se com perguntas em torno da paixão que a heroína francesa vivera no passado. Durante a guerra, em Nevers, na França ocupada, a moça, então uma adolescente, se apaixonara por um jovem oficial do exército de ocupação alemão. O alemão fora morto pela resistência e a heroína punida à maneira de todas as jovens francesas que se relacionaram com alemães: a raspagem humilhante dos cabelos, a execração pública pela cidade e os dias de vergonha trancados no porão de sua casa. Um desejo no presente, uma paixão, é o que lança a heroína em direção ao passado. Trata-se exatamente de uma situação-limite como a que Nietzsche descreve no seu texto sobre a história. Mas aqui vemos as reflexões desse texto mais uma vez se encontrarem com as de A Genealogia da Moral . O que impede de nos livrarmos de um passado é exatamente o sentimento de dívida, de culpa: um medo da dor que vem da recordação de um castigo. No caso específico do filme, assim fora o castigo que a heroína recebeu por ter amado o oficial alemão. Este castigo é a própria presença de um passado que nos prende, nos impede de criar e agir da maneira que é, na compreensão nietzschiana, a virtuosa: a que renova a vida. O que ele nos lembra – e por isso ele nos prende – é que há para além da vida uma lei que sempre punirá quem desejar ir para além disso que a submete. E os dois fatos se misturam não numa relação entre presente e passado típica do cinema clássico, isto é, construída por flashbacks onde a diferença entre cada um destes está bem demarcada. Mas sim numa espécie de indiscernibilidade entre estes, posto que há uma continuidade e mesmo uma identidade possível de sentidos entre os dois fatos. Mas há também a possibilidade de uma diferença: e é exatamente nesta encruzilhada entre identidade e diferença, neste drama de como saber se lembrar e se esquecer no tempo certo, que se encontra a heroína. É por causa de seu desejo, que a levou ao “erro” da paixão pelo oficial alemão, que a heroína foi julgada e castigada. Isso acontece porque o sentido do desejo e do amor dessa heroína torna-se um sentido impossível, interditado, a partir do meio para o final da Segunda Guerra na França. Mas, a rigor, ela vira um bode expiatório de algo que a França prefere não se lembrar e que os filmes de guerra clichê do pósguerra se esforçam por fazer esquecer. Trata-se da força do fascismo na França, da pouca

resistência à ocupação alemã no início e, sobretudo, do considerável apoio ao governo fascista de Vichi, que tinha oficialmente os alemães como aliados, com os quais assinou um armistício, e que tinha como ato de patriotismo o chamado colaboracionismo. Um amor, um desejo, uma atração de uma adolescente que cresceu numa França que era controlada por um pensamento político que tinha os alemães como povo exemplar, que vinham para ajudá-la a ser “salva” dos judeus e dos comunistas, não deveria ser considerado algo tão digno de espanto e condenação. Afinal de contas, a França de Vichi também era “amante” da Alemanha nazista. Se formos discutir quais são as grandes forças propulsoras do fascismo na França, e na Europa em geral, certamente não vamos chegar às jovens mulheres francesas encantadas pelo invasor. É por isso que dissemos que esta, como outras mulheres francesas, viveram o esquema do “bode expiatório”: pagaram pelo “erro” dos outros. Embora Deleuze, neste caso com a ajuda de Michel Foucault e Félix Guattari, nos ensine que o fascismo só se propaga de uma maneira que é antes molecular e micropolítica: se propaga à medida que se instala afetivamente nos corpos que se tornam seus agentes. É esse passado recordado pela heroína que vira uma espécie de imagem-lei: uma imagem que é um índice de valor e que, no caso, é um índice de valor do amor e do desejo, ou do que sempre deveria ser – numa relação de causa e efeito sob a ótica da moral – as consequências do desejo. Ao provocar a identidade entre esses dois instantes de desejo e amor da heroína e trazer a recordação da dor, o que a heroína passa a temer é exatamente a lei da história: uma história que, ela tem a impressão, vai sempre se repetir. É como se ela pensasse assim: “Eu sofri porque eu amei, se eu amo agora, a consequência disso será mais uma vez castigo e dor.” Mas este é exatamente o esquema que gera os sentimentos ressentidos, tão bem descritos por Nietzsche, que em situações extremas se desdobram no próprio fascismo. Ou, como afirma Foucault, o fascismo é “Eros ausente”. ⁵⁹ É nesta lógica que o desejo – a rigor, o movimento diferenciador, a presença do devir – é perigoso: perigoso num sentido potente, promissor para a vida. É por isso que o movimento de julgar a vida, de querer submetê-la a todo preço – do qual o fascismo é um exemplo especialmente violento –, se esforça em introjetar na memória, como uma introjeção no corpo, a lógica de que o desejo levará necessariamente à dor. A confusão e a identificação de sentidos que aí existe é também uma confusão e uma identificação de tempo. No filme isso acontece de tal maneira que a heroína chega a se referir ao amante japonês como se fosse o amante alemão: “Eu amei você em Nevers, na França, durante a Guerra”. Agora, no entanto, o amor da heroína francesa não é mais condenável porque ela está em Hiroshima recém-destruída pela bomba atômica. Mas ela só poderá compreender essa diferença, esse outro sentido que se abre no presente, se compreender que a história não tem lei, é amoral. Seu novo amante é um japonês, a princípio alguém que no clichê histórico da Segunda Guerra também deveria ser considerado um inimigo, mas que a terrível hecatombe nuclear parece, de uma maneira diferente, ter feito “expiar a culpa”. Assim o terror atômico opera uma inversão de sentido e os japoneses tornam-se vítimas.

É deste terror que o japonês de Hiroshima não quer esquecer. Por outro lado, ele quer que sua amante francesa esqueça o terror de seu passado na França para que possa amá-lo. É por isso talvez que em certo momento ele afirma: “Eu me lembrarei de você como do esquecimento do amor, eu amarei no horror do esquecimento”. E essa é também a encruzilhada trágica da francesa, exatamente o que faz com que a consideremos uma heroína. Ela precisa se esquecer para amar, mas precisa também insistir na lembrança para que não se repita nem o terror atômico, nem o fascismo. Neste sentido, o passado que traz uma lei – que insiste numa narrativa em torno de uma lei – é do que ela deve se livrar. Mas, por outro lado, é preciso recordar o que gera na vida tanta destruição, tanto ódio contra a vida, como os do fascismo e da guerra. É nesta problemática, que empresta ao filme de Resnais uma dramaticidade trágica, que aparece o entusiasmo de Deleuze pela máxima nietzschiana: “livre-se de seu passado”. Não há para Nietzsche possibilidade de repetição nem qualitativa nem quantitativa da história, ela é sempre outra. Para ser mais preciso, Nietzsche considera que quantidade é qualidade e vice-versa, para chegar a uma conclusão exatamente inversa da maneira como o capitalismo opera uma igualação entre ambos – quantidade e qualidade –, para reduzir tudo ao valor moeda e ao valor mercadoria. Para Nietzsche, não existem qualidades iguais exatamente porque não existem quantidades iguais: ⁶⁰ um é sempre diferente de um. De novo estamos diante de uma identidade com Bergson e, neste caso, com filósofos como Heráclito: nenhum acontecimento da existência e, portanto, nenhum movimento de nenhum corpo, pode se repetir; ele é sempre outro. A única coisa que se repete na existência é o ato criador. E aí finalmente compreendemos o que é decisivo na relação com o passado que Nietzsche nos propõe: trata-se de uma relação que é capaz de produzir a “identidade da vontade” em outros termos, trata-se de uma relação que aciona a própria Vontade de Potência. O cinema neste caso é então compreendido no contexto da relação entre arte e vida, pretendida tanto por Nietzsche quanto por Deleuze: força produtora, expressão autoinventiva do pensamento, algo que libera em nós uma atividade – que havia se tornado quase impossível de acontecer no moralismo que tomou conta do cinema clássico. 55 I. T., p. 179. Aqui Deleuze, numa nota, localiza cada uma dessas figuras do niilismo como sendo os personagens que Zaratustra se depara no livro IV desta obra de Nietzsche. No entanto, faremos por nossa conta, mais adiante, a identificação dessas figuras do niilismo nos personagens que Kaspar Hauser enfrenta ao longo do filme de Herzog que vamos analisar. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. 56 NIETZSCHE. Considerações Intempestivas . Cap. 2, p. 117. 57 Ibidem, p. 144. 58 Na análise que faremos doravante do filme de Resnais, veremos o que Nietzsche compreende por “vontade” se manifestando no que identificaremos como o “desejo”, ou mesmo o “amor” do casal em Hiroshima . Do ponto de vista do rigor conceitual, não podemos dizer que o conceito

nietzschiano de “vontade” seria o mesmo que “desejo” no sentido, por exemplo, que este termo tem em Freud. Por outro lado, os dois conceitos têm uma importante aproximação possível, e até mesmo um considerável ponto de interseção. Deleuze e Guattari, em Anti-Édipo , aproximam o sentido de “desejo” com a Vontade de Potência em Nietzsche e chegam a opor alguns aspectos fundamentais da constituição do desejo em Freud, aproximando Nietzsche desta vez de Marx: desejo de “produção”. Infelizmente, dado o tema de nosso trabalho, não podemos enveredar por essa discussão. No entanto, nos parece claro que especificamente o desejo e o “amor” (outro conceito um tanto problemático, inclusive segundo Nietzsche) do casal de amantes em Hiroshima pode ser compreendido como uma manifestação da vontade à maneira nietzschiana, ou seja, o que vemos no nascente amor dos dois – até pela beleza como é mostrado no filme – é um sopro de vida, uma força antiniilista, renovadora, quase uma ressurreição em meio aos escombros e a todo o ambiente repleto de morte do pósguerra e, particularmente, de Hiroshima. 59 FOUCAULT, Michel. “Sade, Sargento do Sexo”. In: Ditos e Escritos III: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema , op. cit., p. 269. 60 NIETZSCHE, Friedrich. Wille zur Macht, op. cit., anotações 563, 564 e 565. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia . Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 35. PARTE 3 Sobre o tempo e sobre os filmes Nesta terceira parte vamos nos dedicar a duas tarefas. Em primeiro lugar, vamos aprofundar um pouco mais os estudos sobre o tempo, tanto na leitura que Deleuze faz de Bergson para a sua taxonomia das imagens cinematográficas, quanto na maneira como os filmes abrem para nós sentidos sobre o tempo, num diálogo possível com outros filósofos. Em segundo lugar, vamos prosseguir com as análises de alguns filmes, desta vez numa relação um pouco mais livre do que fizemos até aqui. Assim, as reflexões e conceitos que Deleuze produziu a respeito deste ou daquele filme, deste ou daquele autor, poderão aparecer em análises dos mesmos, ou de outros filmes. Mas seria talvez um tanto limitado dizer que Deleuze desenvolveu um “método” para analisar filmes ou fazer crítica de cinema. Trata-se de uma maneira de se relacionar com o cinema, onde este funciona como uma espécie de espelho anamórfico do mundo, e o mundo, por sua vez, passa pelos filmes para se tornar outro. É claro que o leitor teria aqui o direito de perguntar até que ponto não se está impondo filosofia aos filmes. Mas assim como dissemos que os filmes “anamorfizam” a realidade, a filosofia talvez também faça isso com os filmes e com a própria realidade. O estudo de Deleuze, no entanto, faz com que zelemos para que, uma vez sendo inevitável essa “deformação”, ela também aconteça, na mesma proporção, na direção contrária, ou seja, do cinema para a filosofia. Assim se em certo momento Deleuze e Guattari dizem que o livro e o mundo podem fazer um “rizoma” ¹ , o mesmo talvez possa ser dito

em relação ao cinema. ² Mas o fato é que o cinema como arte e a arte como potência do pensamento não têm, para Deleuze, nenhuma satisfação a dar para a filosofia. O cinema pode até ser, é claro, instigado a criar por uma reflexão filosófica mas, de novo na mão contrária, o “bloco de sensações”, os “perceptos e afetos” ³ que o cinema cria, demandam sempre da filosofia que se esforce mais uma vez no seu tradicional movimento de criar conceitos. 1 Deleuze e Guattari criam o conceito de “rizoma” para se opor ao que eles identificam como uma estrutura “arborescente”, majoritária na forma de estruturação do pensamento ocidental. A estrutura arborescente tende a conceber fenômenos sempre com uma raiz, um tronco e seus galhos (derivações, ramificações...). Por exemplo, tende-se a considerar que as línguas constroem-se como “árvores”. As línguas, no entanto, assim como tantos outros fenômenos, têm para os autores uma estrutura “rizomática”. No lugar onde normalmente identificamos uma “raiz” o que temos é um nó de onde uma haste deriva de outra, e a haste, por sua vez, é o que antes equivocadamente identificávamos como um “tronco”. Mas, na verdade, hastes podem se reencontrar com outras hastes através de novos nós, espalhando-se como se espalha um gramado (a “gramínia” é um exemplo de uma formação rizomática). 2 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille Plateaux, capitalisme et schizophrénie. Paris: Lês Editions de Minuit, 1980, p. 18. 3 Deleuze e Guattari defendem que a arte como uma potência do pensamento é um composto que se conserva como “blocos de sensações” e que tem a função de criar “afetos e perceptos”. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? São Paulo: Editora 34, 1997, p. 213. 1. Um pouco mais sobre tempo e cinema Cristais de tempo, lençóis do passado Deleuze não acha de forma alguma o cinema moderno melhor, ou mais belo, ou superior ao cinema clássico. A questão é, insistimos, aquilo em que o cinema clássico havia se transformado. O cinema teria se tornado incapaz de produzir o novo, incapaz de produzir novas imagens, teria se fechado em clichês. Ou ainda, nas palavras de Deleuze, desta vez com a ajuda de Félix Guattari, “se fechado em virtude de uma impotência”. Todas as variações da crença iluminista do cinema, outrora potentes, haviam se transformado num moralismo rasteiro no movimento mesmo em que o cinema havia se transformado em parte fundamental da máquina de propaganda de guerra nos dois lados do segundo conflito mundial. Mas não foi apenas a guerra. O cinema americano, diz Deleuze, que inicialmente aproveitara muito bem as vantagens de não haver nenhuma tradição por trás dele, desenvolveu-se em poucas décadas para algo tão

sólido que criou uma tradição difícil de ser rompida. Por isso talvez o cinema tenha feito uma espécie de caminho de volta para a Europa para encontrar a sua modernidade. Ou seja, apesar do notável pioneirismo moderno que vimos num diretor como Orson Welles, ou como veremos aprofundado num autor como John Cassavetes e mesmo hoje em David Lynch, não houve exatamente um movimento moderno nos Estados Unidos. Antes, diríamos nós, na concepção realista extrema do método de Stanislavski usado no Actors Studio , o cinema americano voltou a apostar no esquema percepçãoação. É verdade que atores formados no Actors Studio fizeram filmes onde a imagem-tempo aparecia, mesmo que às vezes interrompendo apenas momentaneamente a organicidade das histórias. Esse é o caso de Taxi Driver , de Martin Scorsese e, mais recentemente, do belíssimo Última Noite , de Spike Lee, um filme que Deleuze não conheceu. Este último, diríamos nós, uma espécie de “filme de imagem-tempo clássico”, sem querer causar nenhuma confusão conceitual no leitor. O cinema moderno ganhará complexidade e radicalidade em toda a segunda metade do século XX. Na Europa, são três movimentos especialmente notáveis: na Itália do pós-guerra, na França do final dos anos 1950 e na Alemanha do final dos anos 1960. É claro que o cinema moderno, pensado por Deleuze ainda no início dos anos 1980, não se restringe a estes três países. Correndo o risco de cometer injustiças, acrescentaríamos o cinema espanhol de Luis Buñuel e Carlos Saura – mesmo que o primeiro explore os limites do cinema já antes da guerra e o segundo simplesmente não seja mencionado por Deleuze –, Akira Kurosawa reafirmando um cinema japonês que já era “moderno” desde Ozu, o soviético Andrei Tarkovski como uma das expressões mais radicais da imagem-tempo, Ingmar Bergman na Suécia – que é mencionado apenas em A Imagem- Tempo – e finalmente a força dos novos cinemas do “novo mundo” do qual destacaremos aqui, tal como Deleuze o fez, Glauber Rocha. Lembremos então que o rompimento do encadeamento sensório-motor entre imagem e personagem e entre percepção e ação se dá para nós como um rompimento dos clichês nos quais as imagens do cinema clássico haviam se transformado. Cada um dos exemplos desses rompimentos, à medida que desviam, paralisam ou até tornam impossível a narração, liberam uma descrição das imagens. Isso significa que as imagens deixam de ser apenas vistas para serem também lidas e pensadas. É neste sentido que as imagens óticas e sonoras puras – aquelas que não se desdobram em ação – liberam uma imagem-tempo à medida que nos fazem mergulhar no passado ontológico – no virtual como dimensão não orgânica do real – que nos constitui. É também neste sentido que Deleuze diz que os cronosignos liberam também lectosignos e noosignos , ou seja, imagem-tempo libera respectivamente uma leitura e um pensamento a partir das imagens, mostrando-nos o que e como se constitui o sentido destas. Vimos ainda que essas forças que rompem o encadeamento sensório-motor, que rompem uma zona de indeterminação transformada em clichê, são a expressão de uma realidade virtual que não é menos “realidade” por ser “virtual”. Assim, como Bergson e Deleuze nos ensinaram, existe um passado que é contemporâneo ao presente. É como se o presente se desdobrasse em dois jatos dissimétricos, um em direção ao futuro – e por isso ele “passa” – e

outro que concentra todo o seu passado. Neste sentido, o presente é sempre uma “ponta de presente” e é só porque é assim que ele pode ter um “sentido”: o sentido do presente. De fato, o sentido de algo é passado deste algo. O que estamos falando é mais simples do que parece ser: o sentido de uma palavra é o seu passado, o sentido de uma imagem, é o seu passado, o sentido de um signo é sempre o seu passado. Para compreender algo, instalamo-nos subitamente num passado. Se, por exemplo, um grupo inteiro de pessoas se entende porque fala uma mesma língua, é porque têm uma espécie de comunhão de passados. Esse passado, que estamos chamando de “virtual”, é na verdade uma potência de vida não orgânica que constitui o mundo. Ele é como o afeto do tempo no corpo, no orgânico que, por sua vez, nós designamos como o “atual”. Virtual e atual – passado e presente – constituem o que Deleuze chama, a partir de Bergson, de “menor circuito”. É aí que está o cristal como uma imagem do tempo. Nele, presente e passado, atual e virtual, são indiscerníveis, mesmo que sigam sendo distintos. Não que o tempo seja uma imagem-cristal; na verdade, diz Deleuze, “nós vemos o tempo no cristal”. ⁴ Passamos então a ver o tempo diretamente representado no cinema moderno: o cinema como uma “presentificação do tempo”. O cinema moderno estaria então tomado por essas imagens-cristais. O espelho seria a imagem-cristal em estado “puro” e o primeiro exemplo desta estaria na casa dos espelhos de A Dama de Shangai , de Orson Welles. Ali, a duplicação ao infinito das imagens dos protagonistas nos mostra claramente a indiscernibilidade entre virtual e atual. Mas, por outro lado, a distinção entre ambos continua a existir e se torna mais uma vez perceptível quando todos os espelhos são quebrados e finalmente só restam as imagens atuais: os corpos vivos de fato dos personagens que atiram uns nos outros. É como se fosse necessário destruir a imagem-cristal para o filme encontrar algum encadeamento sensório-motor e alguma ação possível: o último duelo do filme. Diríamos que, neste caso, é um duelo no final, mas não “o” duelo final, visto que não há vitória do bem sobre o mal e nem julgamento possível. Mas, pelo menos na hora do duelo, o filme é quase que apenas presente, posto que se os espelhos foram destruídos, destruiu-se toda a virtualidade e só restaram os corpos: o atual. Nesse momento especificamente, em meio a um filme seminal do cinema moderno como A Dama de Shangai , o tempo pode passar de uma maneira clássica: como um número do movimento. A imagem-cristal nos mostra portanto que, antes desse ou daquele passado, há um passado no qual nos instalamos: um “passado ontológico”, segundo Bergson. É este que dá uma profundidade e sentido à experiência do real. Quando nos instalamos nele somos então imediatamente levados aos “lençóis do passado”, e é só graças a esta operação que se tornam possíveis as imagens-lembranças e as imagens-sonhos. Welles vai nos dar de novo o exemplo primeiro, desta vez em Cidadão Kane , isto é, cada vez que a pergunta por “Rosebud” é feita para cada um dos personagens, estes mergulham num lençol do passado: cada um dos períodos e etapas da vida de Kane. É claro que a maneira relativamente simples como, numa espécie de ingenuidade inaugural, descrevemos essas imagens em Welles, talvez

prejudique um pouco a distinção das inúmeras formas como, particularmente as imagens-cristais, aparecem no cinema moderno. Os exemplos de imagens-cristais, no entanto, seguem sendo mostrados por Deleuze entre os diretores do cinema moderno: elas aparecerão em Fellini, em Herzog, em Visconti e até em diretores que filmam desde o que seria uma época “clássica” do cinema, como Jean Renoir. Nós mencionaremos algumas dessas imagens, mesmo que de maneira transversal, quando falarmos dos filmes de cada um desses autores. Chronos e Aion O próprio Deleuze, refletindo sobre as maneiras de se conceber o tempo, chega, em Lógica do Sentido , a duas denominações que sugerem duas experiências distintas do Tempo: Chronos e Aion. ⁵ Poderíamos definir Chronos como a grande eternidade que, por assim ser, engloba todo o passado e todo o futuro. Quer dizer, do ponto de vista de Chronos não há passado e futuro: só há presente. Este pode se estender sempre mais e mais, incorporando passados e futuros infinitamente como um único acontecimento, chegando então ao movimento eterno que é o próprio acontecimento do universo, do cosmos. Chronos é, portanto, a eternidade enquanto presente, numa definição do tempo que é próxima da que está no Timeu , de Platão: “O tempo como a imagem móvel da eternidade”. Na verdade, o próprio tempo e a própria eternidade como uma imagem móvel: o acontecimento Chronos. Chronos existe então enquanto um movimento, uma mistura, um eterno relacionar-se, compor-se, enfim, o que Deleuze diz ser um permanente “temperar”. E este, chama a atenção ainda o francês, é de caráter material, corporal. É a partir daí, inclusive, que podemos afirmar que o futuro e o passado só existem do ponto de vista desses corpos e graças às relações que se travam entre eles. Quer dizer, como dissemos a partir de Bergson, o futuro e o passado só existem a partir dos cortes móveis que acontecem no interior do cosmos material eternamente em movimento. Por isso o futuro e o passado são, segundo Deleuze, “o que resta de paixão em um corpo”. Assim, se do ponto de vista desse Chronos eterno podemos até dizer que há uma perfeição, um ajuste que é o próprio movimento do Todo que seria, aqui, semelhante ao Deus panteísta de Espinosa: uma força infinitamente perfeita que não tem intelecto nem vontade; do ponto de vista das relações parciais que se travam entre os corpos, exatamente por estes serem um corte móvel do Todo, há sempre a iminência de um desajuste. Quer dizer, estão sob uma ação do tempo que está sempre a lhes afetar, transformar e mesmo a lhes ameaçar. Ou ainda, como diz Deleuze, o passado e o futuro voltam para se vingar. O que aí se gera, então, é o que o filósofo chamou de “Mau Chronos”. Este é como um “devir louco” que está sempre a ameaçar os corpos e as relações parciais que se travam entre eles no cosmos. Como o presente do “bom Chronos”, este devir louco se estende infinitamente, ou seja, todo presente, todo acontecimento, corpo, ou relação entre corpos no universo estão permanentemente ameaçados de destruição ou, no mínimo, de sofrer abalos e degenerações. É nesse instante, nos diz Deleuze, que vemos surgir o

tempo de Aion. Há na gênese de Aion ao mesmo tempo uma contração e uma resistência. O que aí se dá é um intervalo como um lugar que é, em certa medida, imaterial. E é assim imaterial exatamente por ser uma espera. Trata-se, portanto, de um instante que tenta resistir, posto que cinde o devir, o que faz Deleuze concordar com Platão no Parmênides, quando este diz que o instante é “atopon”, quer dizer, atópico: um não-lugar ou um entrelugar imaterial que se instala no cosmos. Aion é, então, a instauração de uma fissura, uma fissura atópica que não para de dividir o devir entre passado e futuro. Este caráter atópico e imaterial da fissura que Aion está sempre a fazer no devir é a própria instauração da possibilidade da linguagem. É verdade que Deleuze nos mostra que a origem da linguagem está, em primeira instância, neste relacionar-se infinito entre as coisas materiais e o devir louco que está sempre a ameaçá-las na sua integridade – o “bom”e o “mau” Chronos. Mas o filósofo emenda que ela só vai se tornar possível quando Aion se instaura à maneira dessa fissura abstrata. Aion instaura assim a linguagem porque a partir dele o que passa a haver é o sentido, isto é, só há agora passado e futuro: duas linhas até o infinito divididas por esse instante atópico que cria a condição definitiva para a gênese da linguagem. E não resta dúvida de que é aí que se instaura também para nós uma impressão de que existe uma dimensão metafísica, abstrata e imaterial de realidade e que nos faz, equivocadamente, compreender tanto a linguagem quanto as imagens (que são signos) num outro polo, cindido da materialidade do universo. De fato, sem este intervalo atópico no devir do cosmos, não existiria uma separação, um distanciamento do ruído direto e imediatamente material que existe graças ao contato e à relação entre as coisas. O intervalo, a contração de Aion, permite na verdade uma transdução, que vem a ser a própria linguagem. Neste sentido, podemos dizer que a câmera de cinema – não o objeto material, mas o filmar em si mesmo – tem o caráter atópico desse intervalo. Neste caso, ela é, porque a linguagem que se instaura no intervalo sempre é, um “transdutor”, isto é, o que na física designa um dispositivo que transporta a energia de uma forma a outra. Assim, esse instante de Aion, ao nos pôr diante do passado e do futuro, nos põe diante da virtualidade: da própria linguagem, portanto. Esta surge da fissura atópica entre os corpos, exatamente porque deles extrai um som, uma imagem, um signo que designa, qualifica e diz algo sobre os corpos. Se não existisse a fissura de Aion, o som e a imagem, por exemplo, se reincorporariam ao corpo imediatamente, dentro da lógica do jogo eterno de relações e choques entre eles. O que se instaura na dimensão atópica de Aion é uma fronteira entre as coisas e as proposições, ou seja, uma fronteira entre as coisas e o que se diz das coisas. Aion cria então uma espécie de um novo mundo. Mas este novo mundo, por sua vez, não deixa de se relacionar e intervir no cosmos de Chronos, ou seja, não deixa de intervir no grande acontecimento, no grande presente. Assim, este sentido que faz existir aquilo que exprime acaba, por insistência, como diz Deleuze, a existir naquilo que exprime. Aion, portanto, que interrompe parcialmente, e fende, a dinâmica dos dois devires em choque de Chronos – o “bom” e o “mau” Chronos –, gera a linguagem e cria algo que, mais cedo

ou mais tarde, vai intervir também na dimensão de Chronos, fazendo parte do grande acontecimento no cosmos. Ou seja, o instante de Aion é o instante da criação e da singularidade. Aí nasce a linguagem, mas também se gera o acontecimento com sentido: a história, a narrativa. É aí que o infinito cosmos de Chronos se renova a partir de dentro, da fissura: a contração, o intervalo que Aion representa. Aion traduz então, numa outra coisa, o passado e o futuro que no “mau Chronos” – no devir louco – voltam para se vingar. Aion é, portanto, a tradução em potência criadora de um devir caótico: por isso ele é também um transdutor e, por isso, a câmera do cinema moderno, do cinema que presentifica e cria realidades, pode ser compreendida como uma câmera Aion. Santo Agostinho faz cinema: O Ano Passado em Marienbad Mas não resta dúvida de que uma das mais importantes reflexões sobre o tempo feitas na filosofia foi a de Santo Agostinho. Estas nos parecem estar na raiz de algumas das reflexões tanto de Bergson, quanto do próprio Deleuze. Agostinho nos diz, por exemplo, que o presente só existe na medida em que se torna passado; ou seja, o presente precisa passar, precisa deixar de existir, para existir. ⁶ O presente não teria assim para ele “lugar”, espaço. A experiência do presente seria sempre, na verdade, da mesma maneira como Bergson vai descrevê-la mais tarde: uma “ponta de presente”, numa notável influência do filósofo norte-africano medieval em relação ao filósofo francês que trabalha no limite da crise da modernidade. Esta ideia da imaterialidade do presente é ainda fortalecida em Santo Agostinho quando ele fala de uma incomensurabilidade deste, isto é, Agostinho afirma que toda medida do presente pode ser, infinitamente, ou distendida, ou dividida. Por exemplo, podemos dizer que o tempo presente é o século, a década ou o ano que vivemos. Mas na verdade também em um ano vivemos apenas num dia deste ano, sobrando para trás os dias do ano que já passaram, e tendo à frente os dias que ainda estão por vir. E mesmo neste dia, o que temos são diversos minutos, vivemos o minuto como o presente, no passado ficaram outros minutos do dia, e no futuro estarão outros tantos. Podemos prosseguir neste raciocínio infinitamente até concluirmos que a medida do presente é impossível. De novo o filósofo medieval parece ter percebido algo que Bergson vai trazer para as suas reflexões muitos séculos mais tarde, a saber: que o tempo só pode ser compreendido como continuidade, como duração, e nunca como uma sucessão de cortes, de pontos e instantes. Agostinho nos fala ainda da presença do que passou, assim como da presença do que virá. Quer dizer, ele se pergunta como podemos dizer que algo existe no passado ou no futuro se, na verdade, trata-se de algo que, respectivamente, ou já passou – e deixou de existir – ou ainda não existe. O que intriga o filósofo cristão é que tanto o passado quanto o futuro, em si mesmos, seriam o não existente – o não ser – e, no entanto, nos relacionamos com ele como algo existente uma vez que temos o hábito tanto de medir quanto de mencionar o passado e prever o futuro.

Agostinho nos propõe então uma nomenclatura que ele julga mais exata para se referir ao tempo. No lugar de falarmos de passado, presente e futuro, deveríamos falar em “presente do passado”, “presente do presente” e “presente do futuro”. De fato, o que Santo Agostinho nos diz é que aquilo que dizemos existir, mesmo que seja dito que está no passado, ou estará no futuro, só pode existir como um presente. ⁷ Há então, ao mesmo tempo, uma imaterialidade do presente – o presente que não ocupa nenhum espaço – e um certo predomínio deste mesmo presente, posto que passado e futuro só podem aparecer como “presentes”: como, digamos, “atualizações”. Estas reflexões sobre o tempo do filósofo cristão medieval são de uma tão notável radicalidade que, justamente num dos filmes que representam a descoberta francesa da imagem-tempo, percebemos uma obra, digamos assim, “agostiniana”. Estamos nos referindo a O Ano Passado em Marienbad , de Robbe-Grillet e Alain Resnais. Deleuze afirma que este filme concilia, de um lado, a experiência das “pontas de presente” típicas da obra de RobbeGrillet, com os “lençóis do passado” que vimos Resnais usar, sob influência de Welles, em Hiroshima Mon Amour . O que mais nos chama a atenção no filme, no entanto, é o fato de ele ser todo no presente. Parece-nos que Robbe-Grillet e Resnais tentam presentificar a experiência de um instante que não passa. Se o filme é, pois, todo no presente e o tempo não passa, ele jamais se decide: jamais ganha um sentido. Por isso ele nos põe diante de todos os sentidos possíveis, e também de todos os passados possíveis. Um instante que não passa – que não se decide por uma direção no futuro – é por si só um presente sem sentido, posto que não sabemos qual é o passado que constitui este sentido. O que teria acontecido no ano passado em Marienbad? Esta pergunta insiste através do filme, gerando inúmeras variações de respostas, quer dizer, inúmeras possibilidades do que poderia ter acontecido. Deleuze diz que a possibilidade de tratar o mundo, a vida, ou mesmo apenas um episódio, como um só acontecimento, é dada justamente pela simultaneidade dos três tipos de presentes distintos nomeados por Santo Agostinho. Assim, saindo de uma observação em que vemos os acontecimentos um depois do outro, ou seja, um como sucessivo ao outro, veremos que estes são constituídos de uma implicação entre o que ainda não aconteceu, o que aconteceu e o que acontecerá. Aí, insistimos, o acontecimento é como o presente descrito por Agostinho: é atópico, sem lugar, mas absolutamente real. O filme nos mostra na verdade um passado absolutamente indefinido e, consequentemente, a impossibilidade da compreensão da própria experiência do presente. Trata-se de um presente que não passa, expresso de maneira notável nas estátuas sem sombra nos jardins do palácio. Assim, todas as possibilidades estão abertas no filme como inúmeras pontas de presente desatualizadas. É por isso que vemos uma angustiante, quase enlouquecedora, experiência de todos os sentidos possíveis. Por isso talvez a heroína, em certo momento, suplique desesperada: “Me deixe, me deixe”. É preciso que o presente passe para ganhar sentido. No Decorrer do Tempo e Alice nas Cidades: o bergsonismo de Win Wenders

E se já apresentamos aqui, entre outras, experiências nietzschianas e até mesmo “agostinianas” no cinema, não poderíamos deixar de falar de dois filmes que nos parecem abrir a possibilidade de uma aproximação singular com Bergson, mesmo que, a partir de Deleuze, todo o cinema seja, de certa maneira, bergsoniano, como é bergsoniana boa parte dos conceitos com os quais estamos trabalhando. Por nossa conta, no entanto, vimos uma espécie de bergsonismo explícito em dois filmes de Win Wenders: No Decorrer do Tempo e Alice nas Cidades . É verdade que Vertov já havia feito um cinema que expressava de certa forma um bergsonismo puro e direto, apresentando-nos a experiência da percepção num universo ainda absolutamente acentrado: imagemmovimento original, onde todas as coisas percebiam todas as coisas. De fato, o soviético parece ter feito, em especial no seu filme Um Homem com uma Câmera , uma espécie de “metacinema”, numa experiência que ele mesmo identificava como a de uma “câmera olho”. É verdade que o projeto de Vertov também poderia ser compreendido como uma original efetivação enquanto imagem do estágio descrito por Marx como “comunismo ateu”, na qual seria subsumida a oposição dialética entre homem e natureza. Nesse raciocínio, Vertov teria ido mais longe até que Eisenstein no seu marxismo. É como se homem-máquina e naturezamáquina experimentassem, em Um Homem com uma Câmera, um agenciamento capaz de constituir um “comum” como uma espécie de “novo cosmos”, e portanto também, num mesmo corpo, uma “nova natureza” e um “novo homem”. Assim, homem e natureza não estariam mais cindidos, superando qualquer oposição dialética entre eles, agenciando o maquinismo que constitui cada um num único e novo socius , que apareceria também como uma espécie de “novo cosmos” na forma de imagem-movimento. Mas é o bergsonismo de Vertov que primeiro nos interessa, isto é, a maneira como este apresentou em seus filmes algo muito semelhante à imagemmovimento originária: o universo como metacinema, segundo Deleuze. Win Wenders, no entanto, parece avançar em direção aos mecanismos cinematográficos da percepção e do pensamento descritos por Bergson no último capítulo da “Evolução Criativa”, interiorizando o metacinema na subjetividade como se percebesse o que Bergson chamou de centro de indeterminação e Deleuze, de imagens-viventes. É como se Wenders descobrisse as quebras, interrupções e desvios que a subjetividade sofre, como um “mecanismo cinematográfico” que sempre pode ser surpreendido pelo que rompe o seu mundo a partir de fora.

O que vemos nestes dois filmes de Wenders são personagens sempre em alguma estrada ou trilho, algum carro ou trem, vendo o mundo de uma janela, de uma tela, de um espelho ou de um projetor. É como se ele descobrisse o próprio sentido de nossas vidas se construindo e se encadeando nestas pistas e circuitos. Estamos sempre acompanhando uma câmera em movimento – e que filma porque move o seu próprio encadeamento de rolos, trilhos e pistas –, filmando homens que se movimentam e percebem – filmam – o mundo: a percepção segundo Bergson. É o próprio Deleuze quem afirma que Win Wenders usa nestes filmes a câmera como uma espécie de “equivalente geral de todos os meios de locomoção”, ⁸ ao que nós acrescentaríamos que a câmera de Wenders ganha um sentido existencial que não havia em Vertov. O encontro dos dois personagens na estrada em No Decorrer do Tempo , por exemplo, é o encontro de dois desses circuitos: dois caminhos, dois trilhos, duas pistas. Este encontro acaba por engendrar novas possibilidades na vida de um e de outro: produz-se uma troca que potencializa novos sentidos para cada um, apresenta-lhes novas possibilidades de bifurcações e, é claro, provisoriamente também a experiência de um sentido comum. De novo, a partir de Bergson, tais trocas entre os sentidos de cada circuito – cada trilho, pista, estrada, filme – são ao mesmo tempo a constituição e a experiência de uma narrativa existencial e histórica. Antes dos personagens se encontrarem, nós mesmos os tínhamos encontrado quando no circuito dos fotogramas impressos no filme – na pista – se encadeavam as imagens do homem na estrada; um homem que, a propósito, vivia de consertar projetores em velhos cinemas da Alemanha. E assim todos os pontos de vista dos personagens a partir das janelas e dos espelhos dos veículos em movimento, como também os nossos vendo-os na tela do cinema, se reorganizam como um filme no circuito da dinâmica de percepção e memória que constitui a nossa experiência de realidade.

Já no caso de Alice nas Cidades, o sentido, a pista, a história, é o que se busca. O fotógrafo jornalista e a menina estão percorrendo as diversas estradas e trilhos da Alemanha, porque estão atrás do circuito, do caminho perdido da vida da criança: um passado que não conseguem encontrar. Mas tanto no caso de Alice quanto no caso de No Decorrer do Tempo , a história nunca para – embora um impasse e uma hesitação vez por outra a ameace –, até porque nos dois filmes o som de um blues serve para restaurar e embalar os ânimos, mantendo-os permanentemente on the road . Neste caso, o blues e o on the road é o que Win Wenders traz da América para perambular por uma Alemanha que parece parada no limite – no fim – da história. É como se o seu país e o seu continente vivessem um tal estado existencial e histórico que seria preciso trazer um movimento de fora. Mesmo quando não é especificamente a América, é por exemplo um movimento alucinado e vão do rapaz que volta no seu fusca a toda velocidade da Itália e se joga no lago à beira do qual o mecânico de projetor de cinemas descansava tranquilo em seu caminhão mambembe. A princípio, Wenders parece parar o filme e parar a história, parando o próprio tempo, mas mesmo esses exemplos já mostram que ele se interessa por todo tipo de movimento que possa atravessar esta paralisia, na qual ele ora é melancólico, ora se delicia. Por isso talvez, como vamos ver mais adiante, ele vai também duvidar do “fim da história”, mesmo que a tenha filmado como ninguém. 4 I. T., p. 109. 5 DELEUZE, Gilles. Logique du Sens, op. cit., p. 190. 6 AGOSTINHO . Confissões . “O Homem e o Tempo”. In: Os Pensadores , op. cit., p. 243. 7 Ibidem, p. 246: “Se existem coisas futuras e passadas quero saber onde elas estão. Se ainda o não posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas, mas presentes.” 8 I. M., p. 35. 2. Para além do fim da história O Enigma de Kaspar Hauser: o herói contra o niilismo O cinema da imagem-tempo descobre que ilusionistas, falsários, potencialmente somos todos nós. Deleuze nos ensina que se este cinema não se preocupa mais em reproduzir o real, é porque de uma maneira ou de outra seus autores passam a compreender, como compreenderam Nietzsche e Bergson, que o real é irreprodutível. O cinema descobre então completamente uma potência que desde sempre foi a sua, qual seja, a da “produção” de realidade, e faz das situações-limite que daí se desdobram o drama de grande parte dos filmes. E este drama, ou cada um destes dramas, se traduz numa disputa contra tudo o que se opõe à potência inventiva da

vida. Ou seja, se Deleuze diz que o cinema moderno descobre a potência do falso como a Vontade de Potência nietzschiana, essa vai precisar se deparar a todo tempo com o que tenta debilitá-la, esvaziá-la. Por isso veremos em muitos filmes, personagens e situações, as expressões do niilismo nas suas diversas variações. O cinema como “produtor’ de realidade tem estreita relação com o que Deleuze descreve como um cinema capaz de produzir uma imagem-tempo direta. É como se o cristal de tempo, com sua troca de posições entre o virtual e o real, estivesse também na relação entre o cinema e o mundo. E uma vez que o próprio Orson Welles nos disse que há uma moral – um character – pelo qual ele avalia os personagens de seus próprios filmes, poderíamos arriscar dizer que não só nos seus filmes, mas também em outros filmes “modernos”, é possível também o surgimento de heróis e vilões. Ambos são falsários, posto que não é a ilusão que é moralmente condenável. Na verdade, esses falsários, entre os quais está o próprio realizador de filmes, podem até ser distinguidos por essa noção moral que aproxima Welles de Nietzsche, qual seja, a que conhece a virtude dos homens na ação que esses são capazes de fazer, ou não, quando se deparam com a possibilidade do seu próprio fim, ou no mínimo de seu enfraquecimento. O leitor talvez se pergunte se não estamos nos contradizendo ao afirmar a importância de certo tipo de ação num cinema que dissemos paralisar a narração e liberar uma descrição através da imagem. Mas é como se esta paralisia ou desvio da ação demandasse, diante da leitura e do pensamento sobre as imagens para os quais é levado por vezes o próprio personagem, a invenção de outra ação numa outra direção. Assim, existem os falsários que conspiram contra a vida, que querem o seu controle absoluto, e cujas ações são no sentido de eliminar da vida tudo o que ela tem de movimento: os falsários que são a expressão ativa de uma vontade de nada, uma espécie de vontade de morte, o niilismo. E, por outro lado, existem aqueles que tomam para si a tarefa de renovar a vida, os homens de ação generosos na concepção que Nietzsche encontra para esta palavra. Estes são homens de um empenho gratuito sem nenhuma justificativa “para além” da vida, como a descrição que fizemos de Otelo antes de ser contaminado pelo ciúme e pelo ressentimento de seu falso amigo. Aí está o homem da “Virtude Dadivosa” ⁹ descrita por Nietzsche. Este é o criador que reinventa e gera a vida, o “ladrão de todos os valores” para reinventar um valor absolutamente gratuito, inútil, que não sirva para nada além dele mesmo, tal como o valor do ouro, símbolo da mais alta virtude: “um valor raro e inútil que está sempre se dando de presente”. ¹⁰ Este homem, que toma para si a tarefa de reinventar a vida, percebe que dela só temos mesmo a certeza de uma imensa gratuidade, de um caráter inexplicável, ou seja, percebe que a vida é antes de tudo amoral. Mantê-la, reinventá-la e fortalecê-la nesta sua gratuidade é a mais nobre e generosa atividade na qual poderíamos nos empenhar. Nietzsche compreende isso como um “saudável egoísmo”. De fato, há inevitavelmente um momento de egocentrismo para o homem criador, qual seja, ainda que de forma ilusória, ele tem a experiência de que a reinvenção da vida é uma função que lhe cabe. E quando ele assim o faz, de uma maneira que sua ação não

represente a tentativa de destruir vontades semelhantes à sua que estão a se manifestar, o seu egocentrismo se converte numa generosidade. Na verdade, o que ele conseguiu produzir aí foi uma identidade com estas vontades criadoras. O contrário, porém, deste “egoísmo generoso” seria, para Nietzsche, um egoísmo doentio. É o egoísmo daqueles que estão sempre à espreita de uma “mesa farta”, de todos os lugares onde a vida se cria, de tudo que parece florescer. É o que vimos com o falso amigo ressentido de Otelo, que age para despertar o seu ciúme, ou como Macbeth conspirando um golpe de Estado para ter a vida de toda a Escócia sob seu controle. Nietzsche nos mostra que onde há uma vontade geradora de vida há, em oposição, este homem ressentido: o homem do espírito de vingança. A expressão deste ato de vingar-se, de voltar-se contra a vida, se dá exatamente na insistência deste homem em afirmar a crença num fundamento para além da vida, noutro plano, ao qual a vida deveria sempre se submeter. Este é um homem impotente que espalha a impotência do niilismo, como o anão, o espírito de peso, que pula nas costas de Zaratustra puxando-o para baixo. Não importa se esses autores leram Nietzsche ou não. O cinema que eles ousaram levar às últimas consequências só poderia levá-los aonde levou: a essa briga de vida e morte que é a dinâmica de memória e esquecimento que Nietzsche descreve no seu famoso texto sobre a história, mostrando-nos o quanto ela é necessária para a vida e o quanto, por outro lado, ela pode agir contra a vida. Como a filosofia que sempre lutou, de uma maneira ou de outra, contra a impotência do pensamento, aqui descobrimos o cinema no limite dessa luta. E, assim como quer Nietzsche em sua filosofia, esta é uma luta contra a impotência da vida e da história, hora em que as imagens estão por se esvair num dispersar que é a própria dispersão da narração. Assim é a sequência final de Morte em Veneza , de Visconti e, de uma maneira diferente, o último passeio em Paris antes do suicídio do protagonista de Trinta Anos esta Noite , de Louis Malle. Para nós, é no calor desta luta, ali onde ela se torna fisicamente – fisiologicamente como diria Nietzsche – insuportável para nós, que precisamos do clichê – da história organizada em torno de uma lei –, mas é nela também que se impõe, de forma igualmente fisiológica, a necessidade vital de destruição do clichê. O que temos aí é a experiência de uma ausência de sentido, de uma nadidade. Esta funciona como a experiência da ideia da nadidade descrita por Bergson na Evolução Criadora : ¹¹ uma experiência que acaba por gerar em nós a própria ideia do Todo. E ela assim o faz exatamente porque nos instala no devir, ali onde as coisas estão perdendo sentido e ali onde elas pedem novo sentido. Quer dizer, esta experiência é a do próprio movimento eterno que Bergson vê no cosmos – o Todo como um devir universal –, movimento este que está a pressionar o centro de indeterminação que nós somos. Nesse momento, vemo-nos diante da necessidade, e mesmo da urgência, de criar: de produzir mais uma vez realidade. Por isso, as imagens do niilismo, as situações do niilismo, ou seja, as “forças que enfraquecem” a vida, e os agentes da impotência da vida que aí se anunciam, acabam exercendo para os filmes e seus personagens uma função

revitalizadora. É diante dessa negatividade, dessa presença da morte, que os personagens têm de se afirmar ou não. No mínimo, são elas que os fazem lutar – ou sucumbir – mas, de uma forma ou de outra, são a fonte geradora da história do filme, que será sempre uma história trágica. E se por acaso os personagens sucumbem ao niilismo, o drama deles traz ao espectador a experiência existencial radical do niilismo, que é, para Nietzsche, etapa fundamental pela qual temos que passar para a superação do próprio niilismo. É como se esta experiência gerasse em nós uma consciência do niilismo. Mas uma “consciência” no sentido que tanto Bergson quanto Nietzsche a compreendem, ou seja, ao mesmo tempo existencial e fisiológica: diante do limite físico suportável do niilismo, ou sucumbimos a ele, ou reinventamos a vida à medida que reinventamos um sentido. Talvez seja isso que explique o frescor e a força da paixão do casal que nasce em meio à destruição de Hiroshima no filme de Resnais que analisamos. Assim, já em Welles, como daí em diante, o cinema da imagem-tempo estará cheio de figuras deformadas, ressentidas, que paralisam, perseguem e esmagam os personagens. O primeiro exemplo que veremos dessas imagens e desses personagens do niilismo estará em O Enigma de Kaspar Hauser , do alemão Werner Herzog. O filme foi lançado no Brasil com este título, mas a tradução literal de seu nome em alemão para o português seria: Cada Um por si e Deus contra Todos . Kaspar Hauser, o protagonista do filme, não é em si mesmo um personagem do niilismo. Ao contrário, diríamos que ele é uma espécie de herói trágico: certamente um dos mais ingênuos heróis já inventados. Mas é como herói que ele se depara e enfrenta uma verdadeira galeria de personagens niilistas, que desfilam diante dele, e de nós, num nietzschianismo quase didático – mas que de forma alguma enfraquece a força dramática do filme. Há no herói Kaspar Hauser uma grande semelhança e uma grande diferença com cada um de nós. Tal como nós, Kaspar Hauser nasce, aparece: vem, ou “cai” no mundo. Mas o faz “fora de tempo”, ou seja, não nasce no tempo, na hora certa, no momento em que se “deve” nascer. Tendo passado os primeiros vinte anos de sua vida trancado e acorrentado no sombrio porão de uma casa, onde recebia apenas uma tigela com comida enquanto dormia, Kaspar é finalmente tirado dali e “jogado” no mundo. Este é, de fato, o seu “nascimento”. Mas com todo este “atraso”, toda a “formação” de Kaspar, todo o processo de sua vida acaba se dando numa série de desvios de sentido, de diferenças, de acontecimentos fora do que deveria ser o “encadeamento lógico” no processo de vida de um homem comum. Por isso, pouco a pouco, Kaspar vai se tornando um incômodo, e mesmo um perigo para a sociedade. A imagem de Kaspar Hauser trancado e acorrentado desde sempre num porão não pode deixar de lembrar a “Alegoria da Caverna” de Platão. Mas o que vemos, no caso do filme de Herzog é uma “Alegoria da Caverna” da inversão do platonismo. O que Kaspar encontra ao sair da caverna não é o “mundo real”, nem as coisas reveladas em suas essências. Ao contrário, o que ele encontra ao sair da sua caverna é uma grande ausência de realidade, um imenso abismo de sentidos: uma história e uma vida por fazer. Por isso dissemos que o seu nascimento é uma “queda” no mundo: uma

“queda” à maneira freudiana. O próprio herói constata isso em certo momento do filme, dizendo ao seu tutor que entendera finalmente que a sua chegada a este mundo fora um acontecimento muito triste. Como em tantas outras vezes, essa afirmação causa grande desconforto. Trata-se de uma experiência de nascimento que poderia ser entendida também à maneira de Heidegger, ou seja, a experiência mais original do herói seria a de um grande vazio, de uma imensa impotência e angústia diante da imensidão do mundo: a experiência da existência desde a própria experiência do não ser e da perplexidade diante da possibilidade de ser. As imagens da primeira visão que o herói tem do mundo quando sai de sua “caverna” já parecem expressar isso. São imagens em formação, paisagens ainda não completamente delineadas, que lembram às vezes um quadro impressionista ou, antes, chegam mesmo a lembrar o que nos parece ser a experiência sensível do mundo a partir dos olhos de uma criança. É como nos ensina Bergson: a experiência das imagens, antes de ser delineada à maneira cinematográfica, é delineada à maneira de um caleidoscópio. É esta percepção caleidoscópica que exige de nós uma “seleção”, ou seja, tiramos dela uma foto e a encadeamos – montamos – no “filme” da consciência, porque precisamos de sentido. Nietzsche, por sua vez, diria que este mundo difuso e caótico precisa aí ganhar sentido, na medida em que precisa ganhar forma: “O amor dos homens pelo belo é o amor dos homens pela forma.” Neste raciocínio, o processo de “aprender a ver” será bastante semelhante ao de aprender a linguagem das palavras. As imagens que são repetidamente vistas, e todo tipo de fenômenos de ordem motora que constituem e se seguem a esta visão, vão se armazenando em nossa memória. É esta memória que vai ser acionada quando uma percepção gerar um fenômeno sensório-motor que parece ser semelhante, ou encadeável, para se constituir um sentido, ao que já está armazenado. A memória vai então preencher a imagem percebida que é, como sabemos, uma percepção parcial, selecionada. E uma vez evocada, é a própria memória que vai orientar a percepção para que esta, na medida do possível, continue percebendo seletivamente – fotografando – para que prossiga o encadeamento entre percepção e memória. Por isso o mundo vai sendo percebido com clareza por uma criança à medida que ela vai constituindo memória, que uma série de percepções sensíveis vão se encadeando num jogo de semelhanças. E mesmo esta repetição, quer dizer, esta semelhança de percepções, é porque a memória está cada vez mais ajudando a selecioná-las. O mundo caleidoscópico vai então ganhando forma, e a criança vai construindo encadeamento imagético lógico – como um filme – em sua consciência. É por isso que dissemos que, a partir de Bergson, essa experiência cinematográfica da consciência é já, de certa maneira, uma experiência de linguagem: é já da ordem da representação. No caso de Kaspar Hauser, o que assistimos, com a sua chegada à cidade, é o aprendizado tradicional da linguagem das palavras, o que, de resto, pode ser observado em qualquer criança. Quando o herói, por exemplo, está tomando o primeiro banho de sua vida e tem a pele fortemente esfregada, ele afirma: “A minha pele está saindo fora.” O problema é que este tipo de desvio de sentido, de descoberta de outro sentido possível, se segue ao longo da história de uma maneira que

vai se tornando socialmente cada vez mais incômoda e perigosa. A rigor, exatamente por estar “fora de tempo” que este espírito ao mesmo tempo infantil e filosófico de Kaspar torna-se problemático. Na verdade, suas afirmações são até bastante inteligentes, espirituosas, e mesmo reveladoras e criadoras de outros sentidos possíveis – como caberia a um filósofo e como se admite numa criança. Mas Kaspar é já um homem com mais de vinte anos e não convém que ele desmonte os sentidos sociais, historicamente aceitos, e sugira ingenuamente outros da maneira como faz. Desde o primeiro momento do filme se instaura uma luta por enquadrar e encadear Kaspar num processo racional. É como se a Vontade de Verdade, descrita e denunciada por Nietzsche, soasse como uma palavra de ordem: isso precisa ser compreendido, racionalizado, objetivado. É por isso que a descoberta de Kaspar na praça principal da cidade é imediatamente seguida de uma “abertura de processo” no sentido literal do termo. Um anão – que é quem vai “fechar o processo” na última sequência do filme –, um funcionário de cartório, e portanto do Estado, começa a registrar cada detalhe sobre Kaspar num documento oficial. Este anão é, sem dúvida, a primeira figura do niilismo com a qual se depara Kaspar. Como um tipo de homem do Estado, trata-se de uma expressão possível do “homem verídico”: o homem que quer a verdade, a racionalidade, a qualquer preço. No filme, a função do anão burocrata é, a princípio, aquela que Hegel designa para o Estado: objetivar. E além do homem de Estado, cada uma das versões, ou das alianças possíveis do homem verídico, vão aparecendo no filme. O homem de ciência, por exemplo, está no encontro de Kaspar com o professor de lógica, que não aceita a saída possível – mas fora das regras formais da ciência – proposta pelo herói à questão de lógica que lhe é apresentada. Kaspar enfrenta ainda os “homens de religião” quando, para horror de uma junta de padres, não pode compreender os dogmas em torno de Deus e da criação. Mais adiante vemos o encontro de Kaspar com um tipo caracterizado – ou caricaturizado – como um “homem culto”. Temos aí um belo exemplo da cultura como “ornamento dos jardins do saber”, como definia Nietzsche em sua ácida ironia. Nesta sequência, um “culto” professor quer adotar Kaspar para leválo para estudar numa capital europeia, mas pretende antes exibi-lo tocando piano – como convém a um menino “educado e culto” – a uma “elegante” plateia burguesa. Mas para desespero do homem “culto”, que então desiste de adotá-lo, Kaspar se recusa diante do público a executar o número para o qual fora treinado. O que vemos então são o Estado, a ciência, a religião e a cultura como “leis”, ou seja, como instâncias enunciadoras de princípios aos quais a vida deve se submeter. E estas leis não são apenas da ordem do discurso; são também da ordem do acontecimento. Além de se submeter e se adequar a princípios, Kaspar precisa se adequar a comportamentos, aprender certas performances e se constituir como imagem: um clichê do que se espera de um Homem. Não é só o que Kaspar fala, como na discussão com o professor de lógica, que se constitui num sentido incômodo: é também o que Kaspar faz e é. Se os tipos e situações do niilismo vão se apresentando, um a um, diante do herói, é porque é preciso a qualquer preço encontrar um “lugar lógico”, um processo e uma justificativa para a sua vida. Mas Kaspar

continua agindo como uma criança nietzschiana: o sentido e as ações que se seguem ao encontro com estas figuras do niilismo são a mais pura expressão da Vontade de Potência de Kaspar. Este seu espírito de criança – afinal de contas, ele “caiu” no mundo faz ainda poucos anos – o leva a insistir sempre na criação de outros sentidos possíveis diante de cada situação ou personagem que é levado de encontro a ele para ensinar-lhe uma lei, uma lógica e/ou um código moral. Como um herói ingênuo, Kaspar está buscando compreender o princípio de cada coisa – e de todas as coisas –, inclusive o que teria feito com que ele “surgisse”, nascesse neste mundo. Mas como nos ensina Nietzsche em O Nascimento da Tragédia , esta é exatamente a pergunta que leva à resposta que nós nunca deveríamos saber. ¹² Por ter nascido fora de tempo, destinando-se assim a viver fora de tempo, Kaspar vive cada vez mais próximo de um limite difícil dos homens e de suas civilizações suportarem. Talvez até o herói pudesse suportar o que se anuncia para ele num sonho que se repete, ou seja, que vivemos numa viagem, num deserto e, enquanto estamos na viagem mesmo, não sabemos qual é o seu fim. O curioso, porém, é que quando Kaspar conta este sonho pela primeira vez alguém lhe diz: “Não Kaspar, você precisa achar um fim para esta história: uma história precisa ter um fim”. É sobretudo a sociedade disciplinar que vai se instaurando na Alemanha, que não pode suportar uma história sem fim e uma vida sem justificativa; mesmo que o Estado ultra centralizado e racional, como uma das mais fortes expressões da Vontade de Verdade, tenha chegado àquele país europeu tardiamente. É provável que se Kaspar tivesse surgido na mesma época em Londres ou em Paris fosse imediatamente recolhido a um hospital: o espaço da “desrazão” como nos ensina Foucault. Em todo caso, desde o momento em que o anão abre o processo, o Estado, como um grande instrumento da Vontade de Verdade, estava lá. Mas é depois do misterioso assassinato de Kaspar, na última grande expressão do niilismo que vemos no filme, que o herói é finalmente capturado: é enquadrado numa ordem de causalidades. O filme pode então se encerrar porque o anão encontra finalmente algo que justifica todos os desvios de sentido de Kaspar ao longo de toda a sua vida. Este encontro está numa “pseudoprova empírica” que é anunciada pelos médicos que fazem a autópsia no corpo do herói morto, qual seja, uma suposta deformação patológica do cérebro de Kaspar. O que vemos aí mais uma vez é o enunciado, “Eis a verdade”. Como vai pretender o cinema pouco mais tarde, os médicos aí fazem a “mágica da verdade”: trata-se de um procedimento semelhante ao da magia que, como nos ensinou Foucault, jamais deixou de perpassar os projetos e intenções da ciência. E lembremos que a autópsia é um procedimento de Estado feito pela ciência: uma ação conjunta de dois dos principais instrumentos da Vontade de Verdade. A “pseudoprova empírica” anuncia uma lei que finalmente explicaria todos os desvios de sentido de Kaspar, ou seja, Kaspar era essencialmente um “deformado”, era “naturalmente” e em si mesmo uma expressão da desrazão, posto que não teria a forma em si do corpo que faz do homem o mais evoluído e racional dos animais. Assim, chegamos à última sequência do filme, onde o anão burocrata de Estado sai satisfeito da sala da autópsia, com o livro do processo da vida de Kaspar finalmente fechado: “Que grande

dia, que grande dia para a civilização e para a ciência: chegamos finalmente à única resposta que poderíamos chegar.” Tudo estava, enfim, objetivado, explicado e justificado. E este anão de Herzog é semelhante ao de Zaratustra de Nietzsche: imagem de homem que não cresceu por completo, espírito de peso que monta às costas de Zaratustra para impedi-lo de subir. A propósito, o próprio Herzog tem um filme onde todos os personagens – todos os homens – são anões reunidos numa comunidade: Também os Anões Começaram Pequenos . Visconti: cristais em decomposição Já os protagonistas, ou as situações centrais, dos filmes de Visconti em geral também trazem algo “fora de tempo”. Mas este “fora de tempo” está num sentido exatamente inverso ao de Kaspar Hauser. Dessa vez são os protagonistas que resistem, e que não querem ver as mudanças de sentido, as transformações de tempo que ocorrem em torno deles. O tempo já é outro, os sentidos aos quais eles estão presos já são impotentes para mantêlos vivos, mas, mesmo moribundos, insistem. Deleuze percebe como este é um tema recorrente em quase todos os filmes de Visconti. É o que veremos em Morte em Veneza , em Ludwig , em Violência e Paixão e Rocco e seus Irmãos . Por isso, na maioria destes filmes são os protagonistas, e não necessariamente o que eles têm que enfrentar, que são os personagens niilistas. Neste caso, é exatamente a insistência em recusar o devir histórico que traz outros sentidos possíveis para a vida: que faz deles “fora de tempo”. Estes personagens estão, portanto, numa posição exatamente contrária à de Kaspar Hauser, isto é, a posição “fora de tempo” deles é de quem quer recusar a todo preço a potência criadora da vida. É o que vemos, por exemplo, no músico ultraformalista de Morte em Veneza , quando ele se retira doente e deprimido para um elegante hotel de veraneio na bela cidade italiana, depois do fracasso de seu último concerto. Do ponto de vista nietzschiano, este músico é, na verdade, o antiartista. É isso o que ele tardiamente percebe em Veneza, ao encontrar ali a sensualidade que ele tentara banir de sua obra. Esta vitalidade, este frescor, esta força criadora da qual ele tanto fugira, está num belo adolescente e sua bela família. Mas como nos diz Deleuze, tudo isso acontece “tarde demais”: ¹³ o que o músico fracassado vê em Veneza é algo que para ele já está definitivamente perdido, inalcançável. Os princípios formais, eruditos, cultos e acadêmicos, ou seja, as leis às quais ele queria submeter a sua arte, estão moribundos como a sua própria vida. O músico se encontra preso a um universo fechado de sentidos que é pressionado e mesmo rompido por todos os lados. Este cristal ao qual o músico está preso seria, a princípio, o que Deleuze chama de “cristal sintético”, ¹⁴ como é, em geral, o mundo da aristocracia que fascina e intriga Visconti em muitos de seus filmes: um mundo fechado em si mesmo, cheio de procedimentos e princípios que só os aristocratas entendem. Mas logo percebemos que estes universos são na verdade “cristais em decomposição”. ¹⁵ A própria situação de Veneza, e do elegante hotel de veraneio onde o músico está hospedado, são como a de um cristal que está se decompondo. A

riquíssima e aristocrática cidade italiana, banhada por uma água imunda, é atingida por uma peste que vai matando as pessoas e faz fugirem os hóspedes do hotel. Mas aquele jovem e sua família, belos e sensuais, não fogem porque parecem ser intocáveis: imunes à peste. Esta, por sua vez, é como um sopro de morte. O próprio músico, sua antiarte, sua antissensualidade radical, é um agente da morte: a rigor ele chega à cidade já doente, já sem forças para continuar vivo. O que ele vê, mas nunca alcança, no jovem e na sua intocável família, é a própria vida indo embora. É por isso que estas imagens o fazem recordar um amor perdido no passado: um tempo em que vivera feliz com sua mulher e sua filha. Assim, a imagem do garoto entrando no mar, última visão do músico antes de sua morte, acaba tendo uma aproximação possível com as imagens do mundo onde Kaspar acabara de cair. Agora, no entanto, as formas que se esvaem à medida que o jovem caminha em direção ao horizonte – tornandose imagens impressionistas, fora de foco, caleidoscópicas – são as dos sentidos fechados do mundo do músico que está definitivamente se abrindo. É a rígida formalidade deste antiartista que se vai junto com sua vida, reencontrando-se finalmente com o sentido, o tempo de um cosmos de objeto-imagens em movimento, para além da percepção formal que os homens organizam para si. A história e a sociedade, que no filme de Herzog acaba por eliminar Kaspar Hauser, jogam nos filmes de Visconti um papel inverso. Mesmo que apareçam como uma potência destruidora, o que elas fazem é uma destruição pela vida. De fato, há algo que sempre morre nestes filmes, diríamos até que existe um sacrifício. Mas este sacrifício pode ser reconstituidor de uma força vital, quer dizer, semelhante à maneira como Nietzsche descreve o sacrifício dionisíaco. Não estamos dizendo que os filmes de Visconti tenham, como às vezes em Herzog, imagens ritualísticas, ou oníricas: são até filmes ainda neorrealistas. Nestes filmes, no entanto, são a vida e a história que sacrificam, destroem algo, porque precisam fazer isso para continuar existindo. Este é o caso, por exemplo, de Rocco e seus Irmãos . Como em Morte em Veneza , há algo que tenta resistir a qualquer preço, mas já não pode. É interessante porque desta vez Visconti descobre um ambiente fechado em seus sentidos – mas em decomposição – fora da aristocracia, ou seja, numa família pobre de camponeses imigrantes do sul da Itália. Uma vez instalados na industrializada Milão, a “Mama” tenta com pulso forte e uma boa dose de sentimento de culpa manter os filhos na velha estrutura familiar. Mas já é tarde demais. É esta velha estrutura que contribui agora para a degeneração das relações de família, sobretudo as relações entre os irmãos. O irmão que acaba por cair na marginalidade, por exemplo, se aproveita o quanto pode do velho esquema de silêncio, fidelidade e cumplicidade absoluta da família para ter seus golpes e crimes acobertados. É ele que instaura de maneira mais veemente do que todos os outros a decomposição, embora seja o que mais recorra à velha estrutura. Neste caso, os velhos princípios e sentidos são sugados, vampirizados pelas “necessidades”, imposições e lógicas típicas da marginalidade urbana. Trata-se de uma troca desigual de tempo e sentido entre dois processos, no qual um precisa do desespero moribundo do outro, isto é, precisa do apego a qualquer preço às

velhas leis – que paradoxalmente é usado para garantir o que numa sociedade industrializada é tido como uma vida sem lei e sem racionalidade. Na verdade, é quando o irmão operário quebra a velha estrutura, quando ele, no entender precipitado de sua mãe, “trai”, que a família se salva. Isso se dá quando o irmão criminoso é finalmente entregue à polícia. Aqui temos um final diferente do triunfo niilista radical de Morte em Veneza ou de Ludwig . O irmão, ao provocar esta verdadeira explosão de sentidos, ao derrubar uma velha lei e portanto ao quebrar o clichê familiar, age amoral e corajosamente. É curioso que Visconti tenha colocado esta atitude justamente no filho proletário: o “operário da Alfa-Romeu”, como afirma em tom irônico o marginal. Trata-se de uma maneira bastante original de compreender a “consciência de classe” marxista. O irmão operário parece entender o que se passa melhor do que os outros porque, também melhor do que todos os outros, encontrou um lugar social definido e reconhecido na nova vida urbana. A partir deste lugar ele compreende que deve agir de uma maneira que é, em certa medida, “revolucionária”, ou seja, destruidora de uma velha ordem que é tão moral quanto social. Assim, na última hora, mas ainda “a tempo”, ele percebe e elimina os sentidos e as leis que tardiamente insistiam em permanecer. Esta salvação a tempo, vinda de um gesto corajoso e criador, não acontece jamais em Ludwig , por isso o Reino da Baviera vai se destruindo enquanto o seu soberano delirante só pensa em construir castelos. Também em Violência e Paixão o professor só quer viver fechado num apartamento de seu prédio, em meio a seus livros e recordações. Neste caso, trata-se de um cristal de sentidos que se quer sintético – como um clichê radicalmente preso ao passado – mas que vai entrar em decomposição. De novo estamos diante do “homem de cultura” como uma das figuras do niilismo nietzschiano. Na relação deste professor, deste intelectual, com o seu passado, estão presentes evidentemente as duas formas de se lidar com a história descritas por Nietzsche – a “história monumental” e a “história antiquária” –, que podem chegar, se exageradas, a um esvaziamento da nossa potência de vida. Mas o drama do filme irrompe, na verdade, quando uma família insiste até a exaustão em alugar a parte de cima de seu prédio, que vivia fechada. Nesse momento começa a decomposição do clichê enciclopédico, erudito, tão radicalmente preso ao passado como presa ao passado era a “mama” imigrante em Rocco e seus Irmãos . Deleuze afirma que estes filmes de Visconti ainda são neorrealistas. Violência e Paixão , por exemplo, é um filme dos anos 1970 e a família que invade a vida do professor representa uma verdadeira implosão de sentidos na vida cristalizada deste intelectual. Mas curiosamente, como num sopro de vida, o velho professor vai desenvolvendo uma inevitável afetividade por aquela estranha gente. E é exatamente o passado, que mantém o velho professor em seu clichê, que faz Deleuze considerar que este filme é ainda neorrealista. Para fundamentar esta afirmação ele usa uma expressão inventada por Antonioni em uma entrevista: o “neorrealismo sem bicicleta”. Isto quer dizer que, se este professor não “perambula” mais, a vida cristalizada que ele leva é resultado de todas essas perambulações. É a historia, as encruzilhadas de sentidos, as imagens-signos – imagens que “falam” – da Itália e da Europa nas últimas décadas, isto é, as imagens que

os personagens “videntes” dos filmes neorrealistas viram, que estão naquele apartamento, naquela imensa biblioteca e naquela desilusão niilista radical do professor. Assim, embora Visconti a princípio pareça ter uma narrativa clássica, ele é na verdade um dos maiores mestres da imagem-cristal, quer dizer, o que vemos nos seus filmes é o tempo, assim como dissemos que vemos o tempo no cristal. Na verdade, o tempo e o cristal acabam por se mostrar de maneira especialmente explícita nos filmes de Visconti à medida mesmo que alguns personagens se esforçam por recusá-los a todo preço. É como se o virtual, uma vez recusado, agisse com ainda mais força sobre o atual, levando-o a um total descontrole. É verdade que tende a haver uma desigualdade, e mesmo uma injustiça, na troca de sentidos entre o virtual e o atual, e mais uma vez elas estão explícitas em Visconti. Elas podem ser, por exemplo, sanguessugas, vampirizadoras de sentidos, como vimos com o irmão marginal aproveitando-se de sua família em Rocco e seus Irmãos . Todo este jogo desigual acaba gerando, então, uma série de transformações, deformações e inversões de sentido. É na troca interminável entre o atual e o virtual que os sentidos estão sempre se reinventando. Eles até têm uma genealogia possível, mas esta não nos leva a nenhum lugar onde os sentidos seriam puros e originais, isto é, a uma gênese essencial. Nunca podemos afirmar que determinado sentido tem uma origem em estado imaculado em oposição ao que seriam erros de interpretação. O que há sempre, como nos ensina Nietzsche, são interpretações. Portanto, o que determina a gênese dos sentidos é a própria modulação que, nietzschianamente falando, seria este movimento de interpretar. Genericamente, é isso que Deleuze diz que o cinema da imagem-tempo faz, quer dizer, é como se este trabalhasse sempre no limite desta modulação e, por causa disso, participa deste movimento interpretador e produtor de sentidos. Isso é exatamente o que os personagens niilistas não percebem, não querem, ou fingem não perceber. Eles são então a força da impotência do pensamento e acabam, por este motivo, jogando um papel muito importante no cinema “moderno”. São eles que trazem o fim, a morte, o abismo – num certo sentido a antiforma, a anti-história, o anticinema – para cada um dos filmes. E mesmo que muitas vezes os personagens não consigam, o espectador do filme consegue ter a consciência do clichê ao qual esses personagens estão presos. O niilismo, a covardia existencial e histórica desses personagens, estão no temor à perda – a perda para o tempo – que na experiência permanente de troca de sentidos da vida é tragicamente inevitável. Mas é exatamente por isso que em alguns casos esses personagens são, da maneira mais radical possível, uma vítima do tempo. Ou, em outras palavras: é exatamente por isso que muitas vezes eles morrem no final. Trata-se, neste caso, de uma morte antes do tempo. Com a ajuda de Nietzsche, poderíamos então definir sinteticamente o niilismo a partir da tipologia psicológica desses personagens, qual seja, uma recusa e um grande temor ao aspecto trágico da vida e da história. ¹⁶ O niilismo surge, portanto, de uma crença de que, se há perda, se há sofrimento e dor na vida e na história, deveria ser com vistas a um “grande fim”: a uma grande lei e finalidade. De novo nas palavras de

Nietzsche, o niilismo nasce rigorosamente da ideia de que tudo na vida e na história deveria estar justificado, seguido, de imediato, de uma constatação exatamente contrária, qual seja, a que todo o esforço pela vida é vão. Os personagens e as situações niilistas são, a rigor, o lugar do “fim”, da morte, nestes filmes. Mas representam, por outro lado, a morte de uma outra ideia de “fim”. Estamos falando precisamente desta “grande finalidade”, desta espécie de fim positivista como um ponto para além da vida e da história, e para o qual estas deveriam se dirigir e no qual deveriam se justificar. O cinema da imagem-tempo descobre que esta grande finalidade, esta perspectiva e lei estática da história, não existe em lugar nenhum. Isso é uma característica fundadora do cinema “moderno”, presente, por exemplo, quando este coloca, já em Lang e mais radicalmente em Welles, a pergunta sobre a possibilidade do julgamento. De novo Wenders: melancolia hegeliana? Mas Deleuze nos chama a atenção para o fato de que a questão do “fim da história” vai mobilizar de maneira especial, mais tarde, Win Wenders. Há inicialmente, segundo o filósofo, o que ele chama de “melancólicas reflexões hegelianas” ¹⁷ nos filmes de Wenders. É como se o diretor alemão tivesse tomado a princípio – e apenas a princípio –, como uma espécie de pressuposto de seus primeiros filmes, a ideia de que o Ocidente teria inevitavelmente chegado, como previa Hegel, ao “fim da história”. ¹⁸ Parece haver até mesmo em alguns de seus filmes uma espécie de nostalgia de uma vida organizada em torno de sentidos fechados: uma espécie de saudade do clichê. Não temos certeza se este é exatamente o sentimento de Wenders, mas não resta dúvida de que é o de alguns de seus personagens. É o que vemos, por exemplo, em Verão na Cidade , onde um preso, depois de muitos anos numa cela de cadeia, sai em liberdade condicional. O personagem tem então uma nostalgia de sua ultradisciplinada rotina de presidiário. Na cidade só há para ele um grande vazio e nenhuma perspectiva: nenhum sentido possível. De fato, é difícil decidir, vendo os primeiros filmes de Win Wenders, até que ponto ele está a denunciar, ou está partilhando, da crença no fim da história como uma espécie de “destino inevitável” da civilização. Deleuze diz que Wenders às vezes quer parar a história, como se os homens não tivessem mais nenhuma história para contar e viver. Não nos pareceu, no entanto, que é isso que está nas duas de suas primeiras grandes obras, No Decorrer do Tempo e Alice nas Cidades , que analisamos há algumas páginas. Não resta dúvida, no entanto, de que o “fim da história” é uma questão que emerge dos filmes de Wenders. Neles podemos perceber o quanto esta noção é, para os ocidentais – e em particular para os europeus –, muito mais do que um conceito filosófico: ela constitui a própria experiência existencial e histórica do homem mediano. Mas é em O Estado das Coisas que Deleuze nos chama a atenção para um Win Wenders que percebe que o fim da história é impossível, ou seja, se uma história para, ou para que uma história pare, é preciso que outra, ou outras, estejam acontecendo em outros lugares. ¹⁹ O filme começa exatamente na costa de Portugal, no limite da Europa, onde uma filmagem é interrompida porque o produtor parou de enviar dinheiro dos Estados Unidos. Num hotel cravado numa falésia à beira

do Atlântico, a história do fazer do filme – a história da história – para, e os membros da equipe se recolhem às suas solidões, quer dizer, a cada uma de suas histórias privadas. O diretor, no entanto, viaja para a América em busca do produtor e do dinheiro para terminar o seu filme: é na América que está a possibilidade de continuidade da história, mas é lá também que está a causa desta história estar paralizada. E uma vez na América, o diretor encontra o produtor envolvido numa complicada e perigosa trama, um verdadeiro esquema mafioso no qual ele entrara justamente para conseguir o financiamento do filme. O próprio diretor acaba então envolvido, e é vítima desse esquema: desta outra história. Ou seja, o que vemos aqui é uma superposição de histórias que estão entre si relacionadas mais uma vez por trocas desiguais. Em Portugal, um filme para – e vemos parar a própria história que se passa no filme que está sendo feito –, parando com isso a própria história na qual a equipe do filme está envolvida: o fazer do filme propriamente dito. Mas estas duas histórias foram interrompidas por causa de uma outra que se desviara de seu sentido original, isto é, a articulação do produtor para conseguir dinheiro que foi capturada pelo sentido das obscuras intenções e histórias da máfia de Los Angeles. É verdade que já falamos de O Estado das Coisas antes, ²⁰ quando relacionamos cinema e dinheiro, percebendo o dinheiro como o que está sempre do outro lado da imagem cinematográfica, e a troca existente entre estes – cinema e dinheiro – como um exemplo de troca desigual no tempo. De fato, se as filmagens no filme de Wenders são interrompidas, foi porque o diretor de meteu numa outra história atrás do dinheiro para o filme. Wenders segue então desconstruindo a possibilidade do “fim da história” nas histórias de seus filmes. Em O Amigo Americano , a ideia de um fim inevitável – a falsa doença terminal do protagonista – aparece graças a uma conspiração. De fato, é preciso que um falso amigo falsifique exames médicos para que o protagonista se meta ele também numa conspiração criminosa. Conspiração na qual ele jamais entraria se não estivesse convencido de que sua morte era inevitável. E não nos parece ser por acaso que o diretor coloca a falsa história da morte, do “fim inevitável” do protagonista, sendo armada por um “amigo” americano. Convencer alguém, ou talvez toda uma civilização, de que só há um sentido possível, quer dizer, de que há um fim inevitável para o qual toda a humanidade marcha – a grande lei da história –, é fechá-la de tal maneira num clichê que tudo pode se conseguir em nome dessa lei, desse “grande fim”. É aí, na verdade, que se constroem as mais injustas das trocas, das inversões e mesmo das vampirizações de sentidos. Em nome da grande lei, do grande fim, tudo é possível: no final das contas a perda de todos os sentidos, o grande descontrole da vida e da história de quem acreditou que ela poderia ser controlada a qualquer preço. Glauber Rocha: a consciência deslocada No Brasil, de uma outra maneira, é Glauber Rocha quem descobre a impossibilidade deste “grande fim” para a história. É o que vemos na angústia e no destino trágico do personagem protagonizado por Jardel Filho

em Terra em Transe . Trata-se, sem dúvida, de uma representação do clássico intelectual iluminista francês, ainda bastante presente no marxismo. O personagem é um poeta, um escritor, envolvido num processo político que deveria ser o da libertação, o da redenção de seu povo. A princípio, ele seria o que “pensa” o povo, o que racionaliza os seus caminhos, o que entende o processo e os sentidos que este deve percorrer. Sua arte é para “servir” a esta causa, entendendo e revelando as belezas e as dores de sua gente. Pois bem, no filme o povo não segue o roteiro preparado pelo intelectual e acaba agindo de uma maneira que não corresponde ao que foi para ele “racionalmente pensado”: o processo com vistas ao grande fim. Entre decepcionado e ressentido, vemos então o poeta militante – agora assessor de um governador populista de esquerda – explodir irado e espancar um líder popular que antes era seu aliado. A polêmica cena, que fez com que muitos marxistas brasileiros chamassem o diretor de “fascista”, nos mostra um Glauber que descobre, a partir do Brasil, uma história anti-hegeliana por excelência. Trata-se de uma descoberta que está em quase todo o cinema de Glauber. “Mas governador, e o povo, como fica o povo?”, pergunta desesperada a bela pequeno-burguesa, namorada do poeta militante. “O povo se ajoelha diante da primeira cruz e da primeira espada que se ergue diante dele”, é a resposta que ouve. O que Deleuze vê Glauber descobrir é um cinema político onde o “povo falta”: ²¹ a ausência de um “povo”, de uma grande unidade e de um grande sentimento de identidade. É exatamente o contrário do que víamos, por exemplo, na ação revolucionária do proletariado, em Eisenstein, que supostamente nos conduziria ao grande fim racional e justo do socialismo. Ou ainda, nos inúmeros filmes judiciários norte-americanos: a maneira clássica de fazer cinema político naquele país. Também nestes últimos, dos quais o belo Doze Homens e uma Sentença , de Sidney Lumet, é paradigmático, encontramos um processo iluminista de busca de um grande fim, de uma redenção. O Estado intervém nas contradições, nas diferenças e nas lutas de uma sociedade, organiza-as num processo e, no final, os ânimos estão apaziguados: o povo se reencontra numa unidade graças à intervenção racional dos poderes constituídos da “nação”.

É interessante como o filósofo francês percebe aí uma questão decisiva que inquieta a arte e o pensamento brasileiro já há algum tempo. É verdade que não o faz sozinho, citando, no momento em que fala sobre Glauber em A Imagem-Tempo , um artigo de Roberto Schwarz ²² em que este analisa e articula as inquietações do cineasta com aquelas que mobilizaram os modernistas brasileiros e, depois, os tropicalistas. É verdade também que esta questão interessa a Deleuze porque não é exclusiva do Brasil, e sim das Américas. Mas o que lhe chama a atenção é a busca de cada uma das “novas” nações por algo que as unifique: a obsessão por uma identidade. Deleuze retoma então, a partir de Glauber, uma das maneiras como pensa a relação social da arte afirmando que um artista está sempre “à procura de um povo”. Mas Deleuze também vê a capacidade que alguns pensadores e artistas do continente tiveram de compreender o quanto esta relação é transitória e de certa maneira inalcançável. Seria interessante se pudéssemos saber qual seria a opinião de Deleuze sobre a solução “antropofágica” que Oswald de Andrade propõe para resolver este dilema da identidade e da diferença, da memória e do esquecimento. Glauber parece ter percebido este lugar de certa forma trágico do brasileiro, e do intelectual latino-americano em geral. De um lado, ele está na função de ser representante de um pensamento, de uma doutrina estrangeira, de algo que representa radicalmente o outro, simplesmente por ser um intelectual: um herdeiro de uma tradição europeia. Do outro, quando se empenha por uma “identidade”, por uma independência que deve ser tão econômica quanto cultural, constrói verdadeiros “mitos fundadores” destas novas nações que são rapidamente reapropriados pelas velhas elites em seus empenhos conservadores. É o que vemos, de novo em Terra em Transe , na cena em que um político entra triunfal no palácio, sambando desajeitado em meio a um carnaval popular. Aí ressoa o mito nacional do brasileiro “povo alegre, pacífico, exemplo de integração racial”, que reaprisiona o movimento de busca de um novo sentido, de uma nova identidade e diferença, num clichê. Ou seja, esta deveria ser agora a “essência” do povo e toda característica que não confirme esta “lei” é inimiga da “identidade” e da “nação”. Mais uma vez estamos diante das trocas trágicas e desiguais de sentido. É o que já estava na cena do intelectual espancando o líder popular, quando todo o seu sentimento oligárquico de superioridade reaparece: “reterritorializa”- se, como diria Deleuze. Logo ele que deveria ter deixado este sentimento para trás uma vez que se tornara um “revolucionário”. É ainda em Terra em Transe que vemos a dificuldade de se identificar precisamente uma classe social como expressão de uma etapa histórica no Brasil. Não se trata de negar o materialismo marxista que o próprio Glauber dizia ser decisivo para os seus filmes, mas de perceber que a organização social da produção irrompe como acontecimento, mostrando-se como uma singularidade para além de qualquer organização histórica em etapas preestabelecidas. Glauber é sem dúvida um cineasta para quem a história é uma atualização, e o próprio transe é, de certa forma, ao mesmo tempo a pulsação e a exposição das forças que estão em luta e/ou em composição em cada uma dessas atualizações. Deleuze nos chama a atenção para o modo como o cineasta bahiano trabalha com os mitos que perpassam os imaginários brasileiros. Não se trata de nos apresentar e de desconstruir as

estruturas arcaicas dos mitos, mas de mostrar como estes se renovam em pulsões absolutamente atuais da sociedade: a fome, a sede, a sexualidade, a adoração e assim por diante. Nietzschianamente, Glauber descobre que é na particularidade do próprio acontecimento histórico que a história do Brasil destrói a “grande lei” da história. A angústia do intelectual de Terra em Transe é que esta lei aqui não se cumpre: ela não pode se cumprir. Há, de início, até uma identificação do próprio Glauber com este personagem, mas ele indica todo o tempo em sua obra que busca estar além das armadilhas desta posição. Quer dizer, é nessas trocas de sentido, nesses acontecimentos “fora de lugar” e amorais em relação ao historicismo europeu, que Glauber tenta encontrar uma potência possível nas diferenças da história do Brasil. Neste sentido, Glauber insiste, em seus manifestos ²³ e declarações, que resistir ao colonialismo é necessariamente resistir ao racionalismo europeu. Algum tipo de cinema iluminista, mesmo que pleno de “boas intenções” revolucionárias, não seria capaz de operar um afeto revolucionário por razões que seriam tão estéticas quanto políticas. Dessa maneira, o poeta de Terra em Transe se assemelha aos companheiros de Glauber do Cinema Novo e aos intelectuais ligados à noção de “nacional-popular”, com os quais Glauber, na nossa opinião, busca marcar claramente uma diferença. Na verdade, Glauber nos parece próximo ao conceito oswaldiano de antropofagia, que também perpassa claramente pelos seus manifestos: a antropofagia entendida como um encontro subjetivo-social na potência da diferença, numa compreensão que achamos ter uma possibilidade de aproximação importante tanto com Nietzsche quanto com Deleuze. Assim, é em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro que encontramos uma singular e trágica “consciência histórica”. Esta aparece exatamente em Antonio das Mortes – protagonista e título do filme na Europa –, que fora o capataz, o matador de cangaceiro, no anterior Deus e o Diabo na Terra do Sol . Na maneira angustiada e lúcida com que o personagem retorna no segundo filme, vemos Glauber, dialeticamente, destruir e reutilizar a dialética marxista. A princípio, uma consciência histórica vinda de um capataz é algo que não está de acordo com a lei, o evolucionismo, o processo em direção a um fim da história que um certo “marxismo positivista”, como diria Foucault, advoga. Mas, por outro lado, é exatamente a situação limite, atópica, esta espécie de entrelugar histórico, econômico, social e cultural ocupado pelo capataz matador de cangaceiro, que gera nele uma consciência histórica: faz com que surja dele a possibilidade de um novo sentido. Esta é, no entanto, uma visão radicalmente trágica, porque se trata do vigor da história nascendo exatamente de seus aspectos mais abomináveis e desenraizados. O matador de cangaceiro é, a princípio, moralmente um covarde, socialmente um despossuído, culturalmente não tem nenhuma tradição: nenhum passado. Sem nenhum passado, tradição e apego moral – sem caráter, como Macunaíma –, sua posição é muito parecida com a do próprio Brasil na história, e mais particularmente com a de nossas “camadas médias” ²⁴ as quais ele como capataz, de certa forma, representa e serve sem tampouco conseguir fazer parte. Mas todo o seu passado, toda a sua vida se deu a partir desta posição. Aí, finalmente, vemos nascer uma

história. As únicas possibilidades de sentido que ele pôde encontrar vieram de suas perambulações pelo Brasil, no lugar-limite, dos conflitos e das contradições do país. A lucidez trágica que Antonio das Mortes alcança faz dele quase um intelectual. Mas um intelectual que, ao contrário da nostalgia iluminista do poeta de Terra em Transe , compreende o Brasil porque adquire uma consciência à maneira que vimos aqui Nietzsche sugerir: livrando-se de seu passado. O passado europeu, iluminista, o capataz obviamente nunca teve. E neste segundo filme, o seu próprio passado de matador de cangaceiro, ele entende que deve ser deixado para trás, ainda que saiba que foi o que lhe deu esta “consciência”. O “Brasil” está em questão nos filmes de Glauber não porque ele busque aí uma grande identidade: um grande passado exageradamente “monumental” ou “antiquário”. Ao contrário, o que ele compreende é exatamente o que faz dele um autor do mundo. Quer dizer: a história do Brasil ajuda Glauber a descobrir que não há um grande destino essencial para a história, um “grande fim” em função de um “grande princípio”, nem aqui, nem em parte alguma. É justamente nesse momento que as nossas particularidades de país não europeu apontam para uma espécie de pós-nacionalidade, permitindo uma reflexão que, a rigor, acaba por nos rearticular – agora não apenas mais como “seguidores” e “discípulos” de uma tradição – com uma compreensão do real e da dinâmica do pensamento e da história, que já estava em Nietzsche e está também em Foucault e Deleuze. Palhaços de Fellini E depois de tantos personagens niilistas e situações trágicas, o “fim da história” talvez mereça aqui uma sonora gargalhada, como a de Os Palhaços , de Federico Fellini, diretor que Deleuze considera como ainda sendo um neorrealista. É verdade que Fellini formou-se no neorrealismo; ele fora, por exemplo, assistente de direção de Rossellini em Paisá . É verdade também que Fellini representa uma continuidade do “cinema de perambulação” que o neorrealismo tinha descoberto. De maneira até mais radical que os primeiros filmes neorrealistas, o que vemos em suas obras são personagens “videntes” nos colocando diante de imagens que “falam”. Quer dizer, as imagens não estão nos filmes só em função da ação, da história, mas ajudam a constituir – ou a desviar – o próprio sentido destas histórias: elas são personagens e até protagonistas dos filmes. Não resta dúvida, portanto, de que Fellini é um dos mais exemplares diretores do cinema da imagemtempo. Mas acreditamos existir uma diferença importante entre Fellini e os outros – sobretudo os primeiros – filmes neorrealistas; uma diferença que o diretor foi construindo ao longo de sua obra e que tem na penúltima sequência de Noites de Cabiria uma marca que nos parece exemplar. Ela está exatamente no momento que, à beira do abismo, a prostituta descobre que fora vítima de um golpe e que aquele que se anunciava como seu futuro marido, roubara todo o seu dinheiro. Acostumados com os finais vistos nos filmes neorrealistas até então, é provável que muitos espectadores tenham acreditado que a pobre mulher ia se atirar pelo tal abismo. Assim é, por exemplo, a sequência final do primeiro episódio de Paisá , quando vemos a jovem siciliana morta à beira do penhasco. Assim é também o terrível

destino da criança no final de Alemanha Ano Zero , ou o fuzilamento do padre que é assistido pelas crianças em Roma, Cidade Aberta , ou ainda a agonia da estrangeira à beira do vulcão em Stromboli . Mas a prostituta de Fellini não se joga no abismo e logo em seguida, na última sequência do filme, podemos vê-la andando por uma estrada por onde passam grupos alegres de jovens, talvez indo para alguma festa. E a personagem – vítima há alguns segundos – vendo aquelas pessoas na estrada, como se reencontrasse o circuito da vida, chega até a sorrir. Talvez porque a crueza da guerra já ia se tornando distante, Fellini parece representar uma Itália que se permite de novo sorrir. É verdade que o diretor é muito mais que um humorista; ao contrário, à sua maneira ele é capaz de se revezar entre o melancólico, o sinistro, o engraçado e o patético. Enfim, Fellini tem toda uma maneira própria, ácida e humorada, de ser um trágico. Numa tragicidade que, não em toda, mas em momentos decisivos de sua obra, ganha certa, digamos assim, solaridade. É por isso que escolhemos para comentar aqui um filme onde esta tragicidade felliniana aparece de maneira exemplar: Palhaços . Em cena, neste filme, o italiano coloca o riso e a morte; ou, mais precisamente, o tema da “morte do riso” representada pela constatação de uma suposta “morte do circo” e “morte do palhaço”. Mais uma vez nos encontramos diante dos enunciados niilistas do “fim inevitável” e do “passado puro e autêntico perdido”, ambos trazidos à cena para serem devidamente desconstruídos e desmoralizados por Fellini. Esta mistura de documentário com falso documentário sobre os palhaços – onde às vezes é impossível discernir um do outro – parte, a princípio, destes dois enunciados. São sobretudo os eruditos, os estudiosos sobre o tema que aparecem no filme, que cuidam de repeti-los, isto é, insistem que o circo e seus palhaços são coisas de uma época boa e pura que ficara para trás. Mas é exatamente este passado idílico e autêntico o primeiro dos clichês destruídos no filme. Evocando uma recordação – ou uma falsa recordação – de infância, Fellini nos mostra que a sua primeira experiência com circo, e particularmente com palhaços, fora traumática e dolorosa. Seu pai o levara a um pequeno circo que ele, curioso, vira se armar num terreno ao lado de sua casa, mas começado o espetáculo, os gritos, caretas e tombos dos palhaços lhe pareceram terríveis e o pequeno Fellini assustado começou a chorar. Não é preciso dizer que ele virou também parte do próprio espetáculo, sendo tirado aos safanões da plateia por seu pai irado com o “vexame”. Esta confusão entre espectador e espetáculo, e esta troca de lugar do patético – que deveria estar apenas no picadeiro – é a senha para entendermos todo o filme e também boa parte da obra de Fellini. Deleuze nos diz que Fellini nos apresenta os “cristais em formação”, ²⁵ ou seja, os sentidos da vida se constituindo. A vida e seus personagens perdem então, em alguns de seus filmes, qualquer possibilidade de serem vistos numa cotidiana e confortável banalidade de sentidos fechados, que é, como sabemos, a experiência para a qual nos conduz o clichê. Ao contrário, vão se descortinando para nós, ainda segundo Deleuze, como num espetáculo: um espetáculo que parece não terminar nunca. ²⁶

É como se Fellini nos instalasse no limite entre a coxia e o palco, isto é, no lugar onde escolhemos, preparamo-nos e assumimos uma função, um personagem, uma imagem-signo: um papel para exercer na vida e em cada uma de suas situações. É literalmente para este lugar que o diretor nos leva também em Ginger e Fred , fazendo-nos descobrir que os bastidores do show de TV é também um show. Tudo o que há de farsesco, patético, caricato, sinistro ou engraçado em Fellini converte-se então num impressionante “realismo”. Todo aquele espetáculo somos nós: nós que precisamos “atuar”, criar, inventar personagens, papéis e realidades para seguir vivos. Ou, em outras palavras: precisamos da potência do falso – da Vontade de Potência – para viver. Esta é também a maneira felliniana de fazer a troca indiscernível entre o real – na verdade o atual – e o virtual. Se em Ginger e Fred o show também está atrás do palco, em Xeique Branco a fã vai em direção ao mundo de fantasia e ficção das fotonovelas e encontra o galã numa rotina tão ou mais banal e medíocre que a sua. E é exatamente nesta troca de posições entre o atual e o virtual que o italiano redescobre, em Os Palhaços , a atualidade dos palhaços e da palhaçada. O que vai se revelando digno de uma boa gargalhada é, de início, a própria trupe da qual Fellini faz parte e comanda: a equipe do “documentário”. Esta se desloca de maneira atabalhoada, é patética quando entra nos lugares atrás de informações e é tola quando inquire as pessoas sobre a verdade “objetiva” da história dos palhaços e do circo. Aos poucos, Fellini nos faz descobrir que o ridículo da vida está em todo canto, colocando-nos diante e dentro do espetáculo, onde palhaços somos todos nós. O diretor organiza então, numa sequência belíssima, um impressionante cortejo de palhaços circulando no picadeiro no enterro do palhaço. É aí que a “morte do palhaço”, encenada pelos maiores palhaços da Europa, revela-se uma gigantesca palhaçada. O palhaço está, enfim, ressuscitado. A exemplo de seus colegas neorrealistas, como tantos outros cineastas “modernos”, Fellini também traz à cena o “fim”, a “morte”, em seus filmes. Nestes “cristais em formação” de que nos fala Deleuze – nas cenas da vida apresentadas como um espetáculo –, o que vemos são as situações-limite em que a história está ganhando forma, as imagens estão se delineando e os personagens que precisamos ser estão se constituindo. Assim, se antes dissemos que na relação cinema-mundo víamos já uma imagem cristalina, Fellini ajuda a descobrir o mundo como cristal e a vida como cinema, onde difícil é encontrar o atual uma vez que a atualidade se parece sempre com a virtualidade e a ficção. A imagem-cristal está ali, no entanto, porque vemos muitas vezes este processo em formação. É por isso que quando não estamos mais vendo a vida como um espetáculo – na verdade a mais cotidiana e comum das situações –, estamos na vigência do clichê. Mas a maneira como Fellini cria estas situações-limite e chama a morte à cena – como em Noites de Cabiria e Os Palhaços – é bastante peculiar. Neste sentido, a figura do palhaço serve, sem dúvida, como uma imagem de boa parte de sua obra. É como se, à beira do abismo, ele preferisse virar uma cambalhota; ou ainda como se, diante da morte, ele fizesse uma careta, mostrasse a língua e soltasse uma gargalhada. O niilismo é portanto,

também em Fellini, chamado à cena, experimentado de maneira limite, e devidamente desconstruído e superado. Mas com um humor – um pathos, como diriam os filósofos antigos – bastante incomum na maior parte do cinema europeu moderno. 9 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra , op. cit., p. 88. 10 Ibidem, p. 89. 11 BERGSON, Henri. L’Évolution Créatice , op. cit., p. 295. Embora Bergson use aí o termo “ideia”, lendo este trecho de sua obra, veremos que esta experiência da “ideia” da nadidade que acaba por gerar em nós a experiência da “ideia” do Todo é, como toda a experiência de realidade em Bergson, de caráter sensório-motor. 12 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia , op. cit., p. 36. 13 I. T., p. 116. 14 I. T., p. 124. 15 Ibidem. 16 NIETZSCHE, Friedrich. “Tentativa de Autocrítica”. In : O Nascimento da Tragédia , op. cit. É o “modo de pensar trágico” que Nietzsche afirma aqui ter sido pioneiro em trazer para a filosofia. 17 I. T., p. 97. 18 A noção de “fim da história” aparece aqui sobretudo na maneira superficial como ela triunfou num certo hegelianismo e, em especial, no positivismo. Mas a questão vai além do hegelianismo e do positivismo, uma vez que esta parece ser uma crença que atravessa toda a civilização ocidental. Mas, devemos dizer, pode haver uma leitura potente da noção hegeliana de fim da história: esta pode ser vista como uma “liberação da história”, ou seja, como uma espécie de fuga daquilo que nos prende à própria ideia da história como algo sistemático e teleológico. Neste caso, o fim da história seria, por exemplo, o fim da grande narrativa histórica, liberando-se então muitas histórias. É uma compreensão próxima a esta que desenvolve o filósofo Arthur Danto quando pensa o “fim da história da arte”. Danto usa então uma expressão de Hegel “além dos limites da História” para falar positivamente das manifestações da arte contemporânea e do fim da grande narrativa histórica. DANTO, Arthur. Após o Fim da Arte . São Paulo: Edusp, 2006. Prefácio. 19 I. T., p. 98. 20 Ver o capítulo: “Potências do Falso, character , dinheiro e cinema”. 21 I. T., p. 261. 22 I. T., p. 260. O artigo está indicado na nota como: SCHWARZ, Roberto. In: Les Temps Modernes, n. º 288, jul. 1970.

23 Referimo-nos a três manifestos escritos por Glauber: “Estética da Fome”, “Estética do Sonho” e “A Revolução é uma Estética”. 24 ROCHA, Glauber. “Ideias Políticas e Filosóficas”. Entrevista com Glauber em 1978. In: O Mito da Civilização Atlântica . Livro de Raquel GERBER. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 231. Numa impressionantemente lúcida análise política do Brasil da época – fora dos clichês da esquerda e da direita –, Glauber nos fala de uma “classe média colonizada pela televisão, pela comunicação de massa, esquizofrênica, não assumida, de forte conteúdo fascista.” 25 I. T., p. 110. 26 I. T., p. 119. 3. Corpo, tempo e clichê John Cassavetes, cinema dos corpos “Se tantas vezes insistimos que “o clichê é um esquema, ou um sistema, sensório-motor”, agora, já próximos do fim, o que se mostra para nós é que a denúncia, a desconstrução e a superação do clichê são também fenômenos de características sensório-motoras. Neste caso, no entanto, o termo “esquema” já não serve mais para preceder o que chamamos de “sensóriomotor”. Na verdade, o que Deleuze vê no cinema que genericamente chama de “moderno” – o cinema da imagem-tempo –, é uma espécie de liberação sensório-motora. E a origem desta descoberta de Deleuze vem, sem dúvida, do fato do próprio pensamento ter para ele uma origem corporal, fisiológica: sensório-motora. Quer dizer, é a partir de uma situação-limite que acomete ao corpo que o pensamento é acionado, age e cria. Foi isso que Deleuze encontrou, guardadas as devidas diferenças, tanto em Nietzsche quanto em Bergson; constituindo, a partir destes dois filósofos, algumas das principais bases de seu projeto filosófico. Diríamos nós que, numa situação-limite, é o próprio corpo que libera uma imagem-tempo posto que, se o clichê é um esquema sensório-motor, o desmonte dos clichês muitas vezes é imediatamente uma operação que se dá a partir dos corpos dos atores e seus respectivos personagens. Em outras palavras: a imagem-tempo é também uma operação do corpo, mesmo que esta, ao contrário da imagem-movimento, não se caracterize por um prolongamento sensório-motor. Exemplar neste sentido é o cinema do norteamericano John Cassavetes. Se Deleuze nos diz que o cinema moderno nasce num retorno à Europa –apesar de toda a importância de Orson Welles na “invenção” deste –, enumerando os grandes movimentos da Itália, da França e da Alemanha, Cassavetes expressa uma radicalização ao mesmo tempo exemplar e singular da imagem-tempo nos Estados Unidos. Em Cassavetes tanto a prisão quanto a liberação dos clichês são expressos imediatamente numa tensão física. É como se a narração, a história, ficasse

em segundo plano para que pudéssemos ver o que os corpos têm a dizer. Temos a impressão de que os corpos, nos filmes de Cassavetes, expressam quase sempre uma necessidade de se livrar de algo, como se todo o gestual, todas as expressões e as performances expressassem ao mesmo tempo uma dimensão opressora e uma linha de fuga; ou pelo menos um desejo desesperado dessa fuga. Se há então história nos filmes é, na maioria das vezes, dos corpos para a história. Deleuze acredita que é disso que Cassavetes está falando quando diz que a história deve vir dos personagens, e não o contrário. ²⁷ Por isso, é comum vermos em seus filmes personagens em situações que deveriam ser corriqueiras, deveriam ter a tranquilidade dos clichês, mas que se revelam de uma tensão permanente, crescente, chegando aos limites do insuportável e da loucura. A tranquilidade ou a fluência de uma conversa entre amigos, de uma relação em família e mesmo de um namoro simplesmente não conseguem acontecer. Sons, expressões, gestos, estranhos movimentos e relações entre os corpos, insinuam sempre um outro sentido, um outro problema, uma outra compreensão, rondando o que deveria ser uma narrativa ou uma situação simples. Por isso, Cassavetes desenvolve uma forma toda peculiar de filmar: trata-se de uma relação entre a câmera e os corpos em que os corpos parecem atrair a câmera de uma forma especial, ao mesmo tempo que a câmera procura se aproximar dos corpos também de uma forma única no cinema. Em certos momentos, os movimentos dos corpos parecem quase esbarrar na câmera, ou transmitir suas tensões para a câmera que, por sua vez, é um corpo tenso: um corpo que procura por outros corpos. É o caso da maneira como é filmada a saída dos atores do teatro em Noite de Estreia : a câmera está entre a pequena multidão de fãs que envolve cada um dos atores que sai do teatro, até que uma jovem mulher se dirige em desespero à protagonista da peça, avança sobre seu corpo, persegue-a até o carro sob chuva, colando suas mãos e sua face ao vidro molhado do veículo. É o que vemos também nas caretas, nos gestos exagerados, nos sons, palavras e frases pela metade da protagonista de Uma Mulher sob Influência . Numa das mais extraordinárias atuações femininas da história do cinema, Gena Rowlands expressa que seu personagem, Mabel, quer sair dali de qualquer maneira, que não suporta aquele lugar psicossocial que lhe é imposto, que um desejo de liberdade quer se atualizar, e parcialmente se atualiza, no seu corpo. Por outro lado, ela força mais uma vez para restaurar a normalidade, como na impressionante sequência da festa de aniversário das crianças, ou como já fizera antes para servir os vários amigos que o marido trouxera de surpresa para comer. A situação se torna então limite, o cristal se abre, e os seus dois polos, seus dois tempos, apresentam-se no drama de Mabel: o de buscar ser desesperadamente uma mãe e mulher de família supostamente “normal” e o de desejar se libertar daquilo que já lhe era impossível suportar. Não é então por acaso que em Cassavetes a face – que é no corpo o “centro especializado da percepção”, como vimos em Bergson – merece um filme só para ela: Faces . Num certo sentido, no entanto, o que o diretor parece descobrir nos seus outros filmes é que o corpo inteiro pode ser “face”, daí esta sua peculiar relação câmera-corpo.

Mas a questão de Cassavetes vai ainda mais longe. Os clichês em questão nos seus filmes são as performances que constituem o way of life americano. Quando Deleuze destaca que Cassavetes representa uma contestação e uma oposição ao Actors Studio ²⁸ está longe, nos parece, de colocar apenas uma questão de dramaturgia; inclusive porque uma verdadeira questão de dramaturgia nunca é apenas uma questão de dramaturgia. Arriscaríamos dizer que a importância do Actors Studio nos Estados Unidos do pós-guerra chega a nos fazer levantar dúvidas sobre a teoria deleuziana da passagem do cinema clássico para o cinema moderno naquele país, apesar da importância de Orson Welles. Só não a questionamos completamente porque o próprio Deleuze assinala, como vimos, que esta passagem se concretiza de forma mais efetiva na Europa. O Actors Studio , de forma geral, representa ainda mais uma vez uma aposta americana num realismo clássico. Não é que a crise do final dos anos 1930 não tenha existido para o cinema americano, mas é como se diante dos clichês em que havia se transformado cada um dos gêneros estabelecidos em suas fórmulas por Hollywood, os Estados Unidos buscassem apostar de novo, e ir ainda mais longe, no esquema percepçãoação, nos westerns , no filme psicológico, no filme histórico, no filme judiciário como filme político e assim por diante. É como se os americanos tivessem pensado: não fomos realistas o suficiente, ou com a competência e a força suficientes. É aí que os métodos de Stanislavski, e a maneira como o Actors Studio os interpretou e repotencializou, têm uma função decisiva. Este é na verdade um caso exemplar do quanto a troca entre o virtual e o atual (a ficção e a realidade, digamos) não é uma questão do cinema, mas da vida; como também é da vida, e não apenas do cinema e da arte, a existência de um ponto de indiscernibilidade entre os dois. Todo o realismo do Actors Studio , com seus métodos psicológicos catárticos de buscar o que seria supostamente uma verossimilhança, deve ser visto como parte da produção de uma performance psicofísica e de uma moral psicossocial que é de certa forma da própria América. Mas, insistimos, isso apenas em parte, uma vez que seria injusto com alguns filmes, ou com partes de filmes, feitos por diretores e atores discípulos de Stanislavski “à americana”, reduzir tudo a uma espécie de projeto político de poder. Trata-se, antes, de uma crença no sonho americano que foi capaz de esticá-lo mais um pouco e, mesmo que minoritariamente, de fazer reverberar a América nos filmes, seus dramas e suas questões, às vezes de forma surpreendente. É verdade, já dissemos, que a imagem-tempo não é incompatível com o realismo e o Actors Studio; este é o caso dos dois exemplos que já demos aqui, Taxi Driver , de Scorsese e, mais recentemente, o belíssimo Última Noite , de Spike Lee. ²⁹ E é verdade também que a imagem-tempo sempre esteve potencialmente na América antes do cinema: na dimensão on the road minoritária e resistente, mas vigorosa, que vai do blues à literatura beat . De fato, num país onde a moral de Estado parece querer capturar tudo de forma macro e micropolítica, chegando ao agir cotidiano de cada cidadão, cair na estrada e permanecer em movimento talvez seja o que resta como possibilidade de liberdade. Mas se a questão do cinema moderno é também, como disse Deleuze, que “não basta apenas fazer paródias”, um cineasta como Cassavetes parece ter ido especialmente longe na imagem-tempo à americana. A oposição do método do Actors Studio feito por Cassavetes é também, de certo modo, a

oposição às performances de corpos-clichês de uma sexualidade pasteurizada e envernizada, expressão de como Hollywood, pelo menos em parte, capturou e reterritorializou até a chamada “revolução sexual”. Não é à toa que Deleuze aproxima Cassavetes de Bertold Brecht e vê no norteamericano um uso “livre”, digamos assim, do conceito de gestus criado pelo dramaturgo alemão. Conceito este, aliás, que será central para Deleuze na obra de Godard, como logo veremos. É verdade que o gestus de Brecht deveria ser predominantemente social, mesmo que ele admitisse outros aspectos. Assim, ainda que de início pareça estranho aproximar Cassavetes de um autor tão predominantemente político como Brecht, já vimos que há uma dimensão psicossocial pujante no cinema de Cassavetes, como se houvesse uma micropolítica, ou até uma biopolítica nos seus filmes: a gestão e a resistência psicossocial dos corpos. Afinal de contas, se Cassavetes se opunha a Actors Studio , Brecht criou boa parte de seu teatro numa oposição política frontal ao naturalismo e ao realismo de Stanislavski e Tchecov, entre outros autores. Ainda os corpos da América: Larry Clark, Kimberly Peirce, Gus Van Sant, Terence Malick e Andy Warhol Se é possível então falar de uma “atualidade” de um cinema da imagemtempo, é impressionante como, de forma diferente do que pôde perceber Deleuze há mais de vinte anos, ela se atualiza na América como um cinema minoritário, mas que continua sendo predominantemente de corpos, dando a impressão de que certos cineastas viram com atenção os filmes de Cassavetes. O que determina isso, no entanto, não é a intenção de diretores mais recentes de serem discípulos de quem quer que seja, e sim a insistência de uma questão que é, a princípio, tipicamente americana, mas que hoje transcende os Estados Unidos: os corpos, a sexualidade, as performances e os gestus , absolutamente sujeitados e servis aos seus próprios clichês. É num lugar transitório, atópico, onde é difícil distinguir ilusão e realidade – o virtual e o atual –, numa confusão de sentidos possíveis ou numa ausência total de sentidos, que Larry Clark vai encontrar os adolescentes da América tanto em Kids quanto em Bully . Aí, de maneira simples, filmando o corpo de perto como se tivesse assistido com atenção aos filmes de Cassavetes, desmonta as mais usuais – e bastante determinantes – imagens-morais: os clichês em que estamos aprisionados. Num gesto simples, Clark aproxima a sua câmera de dois adolescentes se beijando de maneira mais ou menos ruidosa e babada na primeira sequência de Kids e quebra a assepsia puritana da sexualidade envernizada da publicidade. Estética da publicidade esta que está de novo numa impressionante semelhança com a maioria dos filmes de “ficção”, como outrora vimos acontecer à época da Segunda Guerra. O que o diretor nos leva a lembrar aí é igualmente simples, mas um tanto esquecido, a saber: que o sexo envolve poder, constrangimento, dor e secreções no corpo, e que isto constitui a própria lógica do prazer. Prazer que nem sempre é possível, como o clichê do sexo-mercadoria insiste em nos esconder. É o que também vemos na crueza sincera da fala das meninas na cena em que conversam sobre as suas primeiras experiências sexuais, revelando estranheza e às vezes até nojo.

Clark vai ainda mais longe no magnífico Ken Park e arrisca corajosamente explorar uma perigosa fronteira entre as imagens da indústria de filmes pornográficos e outras (ou as mesmas) imagens possíveis de sexo explícito. É como se Clark quisesse inicialmente escancarar o pornô, que supostamente explicitaria todas as possibilidades do sexo, para nos mostrar o quanto este muitas vezes reduz o sexo a muito pouco: ao clichê. Trata-se de um sexo por si só, separado da vida e do corpo. É claro que não estamos falando nem de longe da condenação moralista do “sexo sem amor”, um clichê que quer dizer muito pouca coisa; ao contrário, trata-se do sexo como reificação pura, descolado do mundo, mumificado e fantasmagórico: sexo sem corpo e sem desejo. Por isso, muitas vezes Clark pareceu, em Kids , apresentar o sexo apenas como morte; no entanto, ele parece responder a isso em Ken Park e descobre – em meio a tanto niilismo, ao limite entre perversidade e moralismo, ao desespero dos que só conseguem encontrar a potência da vida como violência, e portanto como impotência ativa – a desejabilidade, a liberdade e a melhor afetividade de novo no sexo: é o que vemos na bela cena de sexo a três que encerra o filme. Neste caso então, a morte desaparece quando o sexo explícito é provocado perigosamente de perto no seu limite com o clichê da indústria pornô, mas escapa como possibilidade de felicidade redescoberta na sua liberdade quase absoluta, e vã. De novo é preciso redescobrir o corpo livre de qualquer assepsia e por isso o garoto que vive sob permanente pressão de um pai violento e fascista encontra a boa intimidade e afetividade enquanto corta as unhas do pé de sua mãe que está com uma imensa barriga de grávida. É como se a situação mais ou menos asquerosa de cortar as unhas do outro, solidária porque ela está grávida, inusitada porque são as unhas da mãe, abrisse a possibilidade do bom encontro entre corpos e espíritos em suas imperfeições – como de fato são –, em oposição à violência moral, e mais uma vez asséptica, que no filme é do pai que não para de afirmar que o filho não é homem, não é forte, não é corajoso, e assim por diante. Já em Meninos não Choram , Kimberly Peirce redescobre a perambulação e coloca o seu personagem principal on the road . A menina que quer ser menino percorre o tédio das pequenas cidades de beira de estrada na América, onde as pessoas não conseguem ver a vida para além da perspectiva de ir ao bar, disputar pegas nas estradas e ver televisão. Mas a menina quer ser menino e não quer ser gay, e o que lhe dá prazer na vida é seduzir e namorar as meninas da região vestida de menino, sem que elas descubram seu verdadeiro gênero. A menina rejeita, portanto, o entediado clichê que aprisiona o interior da América, e prefere o risco de viver num lugar social inexistente, numa experiência-limite que não pode durar muito tempo. Mais uma vez essa lhe parece ser a única potência, a única vitalidade-limite possível: desespero perante o tédio e potência inventiva da vida num ambiente de ausência de desejabilidade. Ao contrário da menina branca da família de negros em Sombras , de Cassavetes, neste caso a personagem magnificamente vivida por Hilary Swank parece atraída por este lugar-limite de uma realidade socialmente impossível. É ainda um cinema de corpos que faz com que o próprio cinema americano sinta, ainda hoje, a necessidade de se opor aos seus insistentes filmes-

clichês de guerra. É o que faz Terence Malick, em Além da Linha Vermelha , desconstruindo completamente as performances glamorosas, heroicas e contidas dos corpos na guerra. Malick nos mostra que a guerra provoca uma alteração sensório-motora completamente diferente daquela que o cinema americano normalmente apresenta, e esvazia parcialmente a história do filme reproduzindo o que talvez seja a própria condição do soldado na guerra: uma quase total impossibilidade de história. O que no clichê, como vimos, é exatamente o contrário: a guerra como uma grande missão e/ou uma grande aventura. Mas, de fato, os soldados parecem estar sempre à mercê de uma cruel oscilação: de um lado, o frenesi aterrorizante das batalhas; de outro, a espera ora delirante, ora desesperadora, entre uma batalha e outra. Já Gus Van Sant parece escolher uma estratégia simples, sensível e brilhante, para quebrar o clichê dos filmes que “denunciam a violência”, ou mostram a “violência nas escolas”, ou ainda “jovens violentos”. Em Elefante , o diretor simplesmente reduz radicalmente a velocidade do filme, introduz planos imensos – às vezes grandes planos-sequências –, repete a mesma cena de diversos ângulos, faz com que conheçamos todos os cantos do espaço da ação – como se quisesse acabar com os extracampos – e elimina os cortes rápidos da montagem. Assim, numa escola americana para adolescentes, onde está prestes a haver um massacre, somos convidados a olhar com calma cada um dos personagens, ver a mesma passagem mais de uma vez, sendo levados para o lado oposto da “linguagem” – e portanto do esquema sensório-motor – do videoclipe. Van Sant constrói um filme sem qualquer vestígio do ritmo do videoclipe ali mesmo onde não nos surpreenderíamos em encontrá-lo: no pátio de uma escola de adolescentes. Trata-se, neste caso, da desconstrução de um clichê que é muito peculiar; quer dizer, se dissemos que o clichê é uma narrativa com vistas a um fim, ou seja, uma experiência de realidade que só tem um sentido possível, Van Sant descobre que o grande clichê ao qual os jovens da América, como todos nós, estão presos, é o de um único ritmo possível. O cineasta quebra, portanto, o clichê de um ritmo só, mostrando-nos que é no videoclipe – na verdade, o grande ausente de seu filme – que estamos devidamente enquadrados, condicionados – sistematizados – num esquema sensório-motor. Elefante é, então, um filme aberto, que não nos permite crer em nenhuma resposta possível para o massacre que acontece na escola, mas exatamente por isso nos tornamos extremamente próximos, neste vazio de sentidos, daquelas pessoas filmadas cuidadosa, lenta e detalhadamente de perto: trata-se de uma proximidade afetiva que paralisa positivamente qualquer impulso ou tendência para o julgamento. Assim, as máquinas de noticiar, “debater”, filmar, reproduzir e julgar de todas as maneiras os atos violentos da contemporaneidade, revelam-se em si mesmas um curioso clichê: um clichê de ritmo. Elefante é um filme que tem uma espécie de silêncio, ou de calma ativa, resistente: é melhor ver as imagens com atenção, e se não encontramos uma resposta rápida para a ignomínia, não devemos nos deixar entrar no seu redemoinho vicioso: vicioso como o clichê. Pelo menos de início, é o que nos resta. A suavidade de Van Sant em Elefante nos lembra de uma consideração que Deleuze faz já na conclusão de A Imagem-Tempo , a de que a informação não

serve para combater o fascismo. Na verdade, Deleuze desenvolve esta reflexão quando está comentando o filme Hitler, um filme da Alemanha , de Hans Jürgen Syberberg. Trata-se de uma reflexão que nos aproxima da conclusão deste livro, qual seja: o problema do autômato no cinema articulado com o problema do clichê, e o combate a estes no contexto da superação da própria “forma-cinema”. É claro, teríamos que examinar, como o próprio Deleuze fez brevemente na sua conclusão, o que vêm a ser as novas formas de imagem comparadas ao cinema. Mas em Elefante , o cinema, mesmo que num estilo bastante distinto dos filmes de Syberberg, guarda a sua potência de combater o clichê na medida em que é uma espécie de “anti-TV”, se considerarmos a TV como a protagonista desta ultraintensificação da informação. É claro, imediatamente, poderíamos objetar que a ultraintensificação da informação se amplia no ambiente cibernético. Mas a TV (antes o jornal e o radio) tem uma forma especial, e hierárquica, de intensificar a informação para aprofundar o que Deleuze chamava de sua “ineficácia radical”. Vejamos as palavras do próprio Deleuze: “A informação joga com a sua ineficácia para fundar a sua força, sua força e potência própria consiste em ser ineficaz, e por isso mais perigosa.” ³⁰ Em todo caso, mantendo a nossa comparação um pouco arbitrária, Van Sant e Syberberg, de maneiras um tanto diferentes, respondem a qualquer evolucionismo tecnológico teleológico simplista, que julga o cinema “superado”, e nos permitem descobrir uma potência do cinema diante das novas tecnologias – sem que, é claro, deixemos de ver potências artísticas também nestas, inclusive para desconstruir o cinema quando ele próprio vira uma forma-clichê. Não é então que o problema do esgotamento da forma-cinema deixe de ser colocado. Este é claramente um assunto muito próximo do tema “cinema de corpos”, uma vez que no final das contas são estes que são automatizados, mesmo que o próprio Deleuze nos fale também de autômatos psicológicos. Por isso, ainda nos Estados Unidos, o corpo é a questão do cinema experimental, fazendo, por exemplo, com que Andy Warhol instale a sua câmera sobre os “corpos cotidianos”, primeiro seis horas e meia filmando o homem que dorme em Sleep , depois 45 minutos filmando um homem que come um cogumelo em Eat . Evidentemente, Warhol já está explorando um lugar-limite e certa hibridez do cinema e das novas formas de produção de imagens: já está fazendo “videoarte”. De novo nos encontramos com o limite da forma-cinema, limite que começou a ser explorado de dentro do cinema na medida em que este sempre foi um assunto para si mesmo. Mas, também aqui, o que dissemos sobre a dramaturgia serve ainda mais para o cinema: nenhuma questão realmente importante que diga respeito ao cinema é apenas uma questão do cinema.

Isso é, na verdade, o que estamos dizendo desde o início. Mesmo o problema do clichê é um problema que, antes de ser do cinema, é fundamentalmente da nossa experiência de realidade. Mas acontece com o clichê o mesmo que com o autômato, a saber: o cinema abre tanto a possibilidade de produção quanto de desconstrução dos clichês. Talvez seja até mesmo um erro distinguir o clichê do autômato, posto que se o clichê é uma imagem-moral – se seu aspecto de se instalar em nós como um esquema sensório-motor foi comparado à maneira como Nietzsche descreveu a moral se instalando em nossos corpos –, este pode ser compreendido, de certa forma, como um processo de automatização. Jean Luc Godard: corpos, clichês e gestus Todos estes problemas – os problemas tratados aqui nas últimas páginas – se encontram de uma forma ou de outra no cinema de Jean Luc Godard. Na verdade, Godard é até aqui o grande ausente deste livro, mesmo que o tenhamos mencionado três ou quatro vezes. Talvez nenhum cineasta tenha entendido tanto quanto ele a questão do cinema como uma questão do mundo e o mundo como um problema cinematográfico. A pouca presença de Godard aqui, que este trecho está longe de remediar, é mais por excesso de méritos e de qualidades, e da imensa pertinência do cineasta franco-suíço em relação ao nosso tema, do que o contrário. Godard é o grande cineasta dos clichês, diríamos que ele “brincou” com os clichês de todas as maneiras que lhe foram possíveis. Por isso, Godard é também o cineasta dos corpos, do gestus à Brecht, do autômato que aparece nos filmes e do cinema que se volta sobre si mesmo para falar do mundo. Não é por acaso que Godard é constantemente vítima da equivocada fala – da “informação” – que afirma que o que ele faz no cinema é sobretudo “pesquisa de linguagem”. De forma alguma Godard é um cineasta voltado para o umbigo do cinema, apenas percebe que o mundo tornou-se outro depois do cinema. Às vezes até, diríamos nós, ele filma o mundo para descobrir o cinema nele e para, de certa forma, extrair (tirar fora) o cinema dele, como se isso fosse possível. E como de fato isso não é possível, isto é, por não haver cinema puro e independente em lugar algum, como Godard bem sabe, o que ele faz é alterar, distorcer, desconstruir o cinema do mundo e o mundo-cinema, particularmente, mas não apenas, onde este aparece como clichê. Não é explicitamente relacionando Godard ao clichê que Deleuze se refere tantas vezes a ele nos seus livros sobre cinema, mas é o que nós vamos fazer aqui: Godard, o cineasta que sabe ver, filmar, desmontar e distorcer como poucos o clichê. Deleuze inclui um de seus grandes trechos sobre Godard na parte que fala dos cineastas dos corpos; antes, em especial, como vimos, Godard, o cineasta do gestus à maneira de Brecht e além. É em Godard que o gestus seria, além de político e social, “bio-vital, metafísico e estético”, ³¹ nos termos do próprio Deleuze; elementos que já estariam no próprio Brecht, que ressalta o elemento estético do gestus quando relaciona este à música. Lembramo-nos então da fala de Deleuze sobre alguns filmes de Fellini quando diz que neles “o espetáculo nunca acaba”, mesmo que ele não mencione neste momento o conceito brechtiano de gestus . No entanto, o gestus é o que libera a possibilidade de encontrarmos um “ator social”, mas

é preciso não restringir este social a um lugar apenas compreendido como uma posição de classe. Fellini, de maneira bem distinta de Godard, faz com que descubramos a subjetividade constituindo-se como um personagem, ou como muitos personagens. A diferença é que Fellini revela este personagem mostrando-o plenamente na sua função; tão pleno que aí aparece o “exagero” felliniano. Godard também, de certa forma, nos apresenta o personagem, mas o faz de maneira distinta da de Fellini. Ele pode fazê-lo entrar e sair do clichê, repetir suas ações de forma mais ou menos obcecada, prolongá-las em devaneios, insistir nelas até o extremo: “o personagem faz de si mesmo um teatro”, como diz Deleuze. Godard é capaz de fazer o clichê soar absurdo com a mesma força que ele é revelado absurdamente cotidiano. É o que vemos, por exemplo, na cena de Pierrot le Fou , onde a fala de cada um na festa da alta burguesia é um slogan de publicidade: o milionário que fala de seu BMW, a loura que explica qual o produto que usa no cabelo e assim por diante. Ou ainda em Made in USA , onde o clichê dos discursos, siglas e documentos políticos dos partidos da esquerda institucionalizada jorram exaustivamente numa fala que nunca acaba. Nestes dois últimos casos encontramos inclusive a maneira godardiana de radicalizar o personagem de perambulação – vidente, que abre a sua subjetividade e passeia entre as imagens – inventado no neorrealismo. Na cena de Pierrot le Fou , a publicidade é o que hipnotiza os personagens, o que os automatiza, mas ao mesmo tempo é a maneira como através deles Godard nos mostra as imagens do mundo: é quase um instante de “neorrealismo esgarçado” (expressão nossa) de Godard, carregado do que Foucault gostava de chamar de “violência do banal”. Já no segundo caso, o de Made in USA , o discurso ininterrupto e maçante são as imagens que “falam” no filme, não pelo seu conteúdo, mas pelo ruído: um discurso que só existe como ruído e é deste modo que se constitui politicamente como poder. Em filmes mais recentes de Godard, que Deleuze não conheceu, a maneira de enfrentar o clichê é criando personagens e situações inexistentes, impossíveis; personagens que se metem entre os clichês e são normalmente compostos de partes deles. Na verdade, a inexistência e a impossibilidade desses personagens vêm exatamente da maneira como eles compõem o incompossível, possibilitando, a partir deste não-lugar, desta atopia criada, desarranjar e desconstruir tudo em torno, revelando os clichês que antes eram por nós experimentados como “realidade”. É assim a personagem de Nossa Música , uma judia francesa que quer fazer um atentado à bomba suicida em Israel pela paz. Ou ainda o personagem de Elogio ao Amor , construído num lugar inexistente entre a resistência à ocupação alemã, o mal-entendido em torno da presença da palavra “livre” no governo fascista e colaboracionista da “França livre”, ou ainda a relação – e o mal-entendido – entre os termos “Bretagne”, região francesa, e “Grã-Bretanha”, nação estrangeira, nacionalismo e influência estrangeira, ressaltada pelas crianças que passam uma petição para que o filme Matrix fosse dublado em bretão. Godard parece então se dirigir à ineficácia da “informação” sobre a qual vimos Deleuze falar há pouco (a insistência na informação como o seu próprio colapso), escapando assim às classificações que nos são apresentadas como clichês pelos “meios de comunicação”, uma vez que ele parece entendê-las como a expressão da impossibilidade do pensamento,

inclusive como imagens. Assim o problema da guerra e da paz não estaria em Israel x Palestina, em judeus x muçulmanos, em Ocidente x Oriente, mas nos interstícios que possamos encontrar entre estas classificações-clichês. Neste sentido, Godard nos mostra que o clichê é muito mais frequente e vai muito mais longe do que normalmente poderíamos imaginar. Deleuze diz que o “método” de Godard é muitas vezes o de “quebrar as imagens”, quebrando na verdade o encadeamento e a associação dos quais normalmente nós nos tornamos dependentes no cinema. Assim entre duas imagens, entre dois sons, ou entre uma imagem e um som, Godard se esforça por nos fazer ver o indiscernível que existe entre ambos, mas que é, de certa forma, de onde os sentidos se constroem. Em outros termos: os sentidos se constroem não pela associação e o encadeamento entre as imagens, mas da diferença entre elas que não só aparece, como também é produzida – uma imagem como uma diferença – quando estas associações e encadeamentos são quebrados. Diríamos nós, mais uma vez nos aproveitando de Deleuze para chegar a uma reflexão que ele não faz explicitamente, que esta operação é uma quebra de clichê porque ela quebra as imagens que antes só poderiam ser compreendidas numa ordem de causalidades fechadas, isto é, as imagens encadeadas num determinado “telos”. Temos mesmo a impressão, em parte, de que Godard trabalha no cinema a relação e o abismo que existem entre enunciados e visibilidades, palavras e coisas, percebidos por Foucault. Nos filmes de Godard estão não apenas os sentidos que se constroem das relações entre ambos, mas também o abismo e a irredutibilidade existentes entre eles – talvez o mais notável dos interstícios – e que, de alguma maneira, contribuem para construir um sentido que não é nem da palavra nem da coisa (da imagem), mas que pode surgir da colisão entre ambas (o que lembra Eisenstein), ou da contradição e do descompasso. Por isso, inclusive, é que Godard afirma em certo momento a preponderância da mixagem sobre a montagem no seu cinema. Deleuze fala sobre a função do interstício no cinema de Godard no capítulo do A Imagem-Tempo intitulado “O pensamento e o cinema”. Mas é no capítulo seguinte, “Cinema, corpo e cérebro, pensamento”, que ele vai dizer que o gestus faz Godard ligar o corpo ao espírito. Nos seus filmes, os movimentos, as performances e as atitudes dos corpos serão sempre, de certo modo, uma imagem-tempo, posto que coloca “o antes e o depois nos corpos”. ³² O próprio gestus será ele mesmo uma imagem-tempo em que convivem e se mostram as pontas do presente e os lençóis do passado. Mas esse aspecto está longe de ser um privilégio de Godard: ele está sem dúvida também em Cassavetes, em Fellini, em Glauber, assim como é frequente num filme um pouco mais recente como Underground: Mentiras de Guerra , de Emir Kusturica. Esta é, afinal de contas, a própria situação do ator na relação com o seu personagem. Na verdade, poderíamos dizer que nós vemos o tempo no ator porque vemos o tempo no cristal, vendo então duas maneiras na qual o cristal mostra as suas duas faces: o virtual e o atual, mas também o opaco e o límpido. De fato, é desta forma que aparece a situação e o drama do ator: de um lado, atualizando o personagem em seu corpo; de outro, atualizando o

seu corpo no personagem. O ator precisa estar à frente do personagem, que lhe aparece como virtual, ao mesmo tempo que só terá sucesso se o atualizar: se o personagem for todo no presente. O personagem, inicialmente opaco, torna-se límpido, enquanto o ator mesmo vai se opacizando. Mas é preciso conservar alguma lucidez para ir adiante, isto é, conservar alguma limpidez em si mesmo que se opacizou pelo personagem, alguma atualidade no que virou virtual para que o personagem mais uma vez se atualize. É semelhante às duas dimensões do tempo descritas por Deleuze a partir de Bergson: de um lado, o tempo que não para de passar indo em direção ao futuro; de outro, o tempo que se conserva todo no passado, que é o que permite que experimentemos o presente – o que acabou de passar – como um sentido. O ator precisa ao mesmo tempo segurar o sentido e fazê-lo passar; ou talvez segurar o sentido para fazê-lo passar. É claro que essa é no fundo a situação de cada um de nós – na maneira como nos constituímos cada vez como um personagem e fazemos o nosso espetáculo nas distintas situações da vida, como tão bem viu Fellini –, mas o ator estica isso ao extremo e, por isso, escancara as duas faces do cristal do tempo. Talvez em nenhum cineasta a relação ator-personagem seja explicitada como em Godard. Diríamos que Godard descobre o gestus dessa transformação, ou talvez o gestus do interstício entre o ator e o personagem, e não apenas o gestus do personagem social de Brecht: Godard dobra o gestus dentro do gestus . Mas vai ainda mais longe e dobra mais uma vez, porque o problema do ator em Godard muitas vezes não está separado do personagem do star system , da “celebridade” que virou, fora dos filmes e das peças, “personagem de si mesmo”. Por isso, Jean-Paul Belmondo é, em parte, JeanPaul Belmondo em Pierrot le Fou – um ponto indiscernível entre o personagem do Pierrot e Belmondo –, assim como Ives Montand e Jane Fonda são também eles mesmos, ou clichês de si mesmos, em Tout va bien – respectivamente, o astro comunista bem comportado que 1968 denunciou como conservador, e a estrela oficial da “esquerda hollywoodiana”, como se fosse possível existir uma. Mas, insistimos, estas últimas observações são por nossa conta, e não de Deleuze. Na verdade, é em outro trecho de seu livro, exatamente quando está falando sobre a imagem-tempo no cinema fantástico, que Deleuze vai afirmar que “o ator é um monstro”, ³³ que faz do excesso ou da falta o seu meio de vida: descobre no seu corpo e nas suas possibilidades psicofísicas um outro virtual que atualiza. Ou então, ainda nas palavras de Deleuze: “os monstros são atores natos”. ³⁴ O gestus em Godard, porém, não está apenas nos movimentos, performances e atitudes dos corpos, ele pode ser encontrado também nas cores, nos sons, nos objetos. Assim, o vermelho do sangue do acidente de carro é explicitamente katchup em Weekend à francesa , o desenho de dois super-homens de história em quadrinhos em Le Gai Savoir traz um com a tradicional marca “USA” no peito, outro com o “CCCP”, e os jovens militantes maoístas dançam uma coreografia meio engraçada, meio patética, num iê iê iê pop em homenagem a Mao Tsé-Tung em A Chinesa (o gestus como música, como queria Brecht). O gestus, mais uma vez, sendo de grande utilidade para detectar e/ou desconstruir os clichês. 27 I. T. p. 250.

28 O Actors Studio foi fundado no início dos anos 1940 nos Estados Unidos, implantando e de-senvolvendo os métodos de formação de atores e diretores de Constantin Stanislavski, que viajara algumas vezes, nos anos 1920, com seu grupo “Teatro de Arte de Moscou” para Nova York. O pioneirismo na implantação e desenvolvimento dos métodos do dramaturgo russo nos Estados Unidos foi de Lee Strasberg, Strella Adler e Sanford Meisner, que conviveram nos anos 1930 no “Group Theatre” em Nova York. Destes, apenas Stella Adler estudou de fato com Stanislavski em Paris, em 1934. Mesmo que mais tarde, Adler e Meisner rompessem com Strasberg e com o Actors Studio , fundando suas próprias escolas, as interpretações possíveis dos métodos de Stanislavski constituíram a base da formação dos atores (e mesmo diretores e dramaturgos) estadunidenses de teatro e de cinema dos anos 1940 até o final do século XX. De uma forma geral, desejava-se um “realismo” e uma verossimilhança que deveriam ser buscados ora num mergulho radical dos atores em si mesmos e nas suas próprias emoções, ora na submissão do ator a uma vivência isolada, e extrema, de uma experiência dramática semelhante a de seu personagem. Elia Kazan foi o mais importante diretor do Actors Studio ; quanto aos atores, passaram por esta escola, e/ou por similares, Marlon Brando, James Dean, Marilyn Monroe, Paul Newman, Dustin Hoffman, Steve McQueen, Al Pacino, Robert de Niro, Jane Fonda, Jack Nicholson, Dennis Hopper, entre outros. 29 Em ambos os casos, o exemplo dos filmes não é dado por causa dos diretores, mas dos estilos dos atores, em especial dos protagonistas, respectivamente Robert de Niro (formado de fato pelo Actors Studio ) e Edward Norton. 30 I. T., p. 352-353. 31 I. T., p. 253. 32 I. T. p. 254 33 I. T., p. 97. 34 Ibidem. Conclusão Chegando ao fim do nosso livro, o clichê vai se configurando não apenas como uma imagem despotencializada, mas também como uma imagem que é uma espécie de agente de um processo de despotencialização. É curioso que o clichê, de uma forma geral, foi descrito por nós como um “menos” da imagem que fica assim esvaziada da sua potência instauradora de realidade e sentido. Esse aspecto nos chama a atenção porque na reflexão que Deleuze faz sobre o clichê no seu livro sobre o pintor Francis Bacon ¹ , boa parte da pintura modernista, e em especial a pintura deste pintor irlandês, passaria necessariamente por uma espécie de resistência e fuga do clichê. Mas esta resistência se daria no que aparentemente é uma certa economia do pintor moderno ao pintar. Deleuze diz então que o pintor moderno – Francis Bacon, sobretudo – não estaria jamais diante de uma “tela branca”. Antes de começar a pintura, a tela já estaria plenamente ocupada pelas imagens que povoavam a imaginação do pintor, pelos objetos de seu ateliê e

pelas fotos e clichês que inflacionavam o mundo. Se normalmente se relaciona a invenção da fotografia com o nascimento do modernismo, uma vez que esta teria sido um dos principais motivos da arte moderna ter abandonado a mimesis , Deleuze, inspirado por palavras do próprio Bacon, insiste que a fotografia jamais deixou de ser um elemento com o qual grande parte dos pintores modernistas teve que lidar. As fotos seriam, segundo o pintor irlandês, o modo como o próprio mundo se mostrava para nós. Pintar, neste caso, seria o ato de “limpar a tela’, ou “esvaziar a tela”, de toda essa espécie de inflação estética. E é justamente aqui que as reflexões que Deleuze faz sobre o clichê no seu livro sobre a pintura de Bacon parecem entrar em contradição com as reflexões que estamos fazendo sobre o problema do clichê a partir do cinema. De fato, no caso da pintura, o “menos” é o que nos levaria até a potência da imagem, numa espécie de “economia” (não no sentido de economia política) que chegaria apenas a alguns poucos elementos na tela, onde o corpo estaria presente não como representação, nem como elemento figurativo ou narrativo, mas quase como um “pré-corpo”, ou um “pré-objeto (expressões nossas), numa intensidade anterior a qualquer formalização. Por isso, inclusive, Deleuze articula os corpos que aparecem na pintura de Francis Bacon com a noção de “corpos sem órgãos”, expressão criada por Artaud e reapropriada pelo filósofo francês. E não há dúvida de que há uma aproximação possível entre a pintura de Bacon e o teatro e a literatura de Artaud. No caso do cinema, nem sempre o restabelecimento da potência de suas imagens passa por uma economia como a da pintura – mesmo que a busca por um “mais”, ou seja, pela reversão de uma impotência seja a mesma. Acontece que na pintura este processo tende a começar com um “menos”, exatamente para nos livrar desta inflação de informações que vimos que o cinema também precisou, ou precisa, enfrentar. Trata-se, neste caso, de um “menos por um mais”, e que pode também acontecer no cinema. É verdade que no cinema a luta contra os clichês pode operar por uma saturação ou por uma intensificação, como nos exageros de Fellini ou na variedade de elementos pop de Godard. Mas também no cinema, o combate aos clichês pode buscar esta espécie de economia de elementos da pintura. Há pouco, por exemplo, vimos o caso do filme “Elefante” de Gus Van Sant. O mestre da “dessaturação” será, no entanto, o italiano Michelangelo Antonioni, com seus brancos, suas nuvens, seus vapores, que invadem os planos, que reduzem personagens e/ou objetos a uns poucos em meio ao vazio. Personagens e objetos que, a qualquer momento, podem se opacizar, ou mesmo se diluir e desaparecer, numa tela que se tornará inteiramente branca, ou inteiramente nuvem. Não é por acaso que é próximo ao final que tenhamos relacionado o corpo com o clichê, o problema do autômato e, finalmente, a própria imagemtempo. É necessário que nos lembremos do que escrevemos na introdução, isto é, daquilo que anunciamos como a questão motivadora, ou pelo menos uma das questões motivadoras deste livro. Há algum tempo, antes mesmo de nos aprofundarmos mais cuidadosamente em Deleuze, a nossa inquietação como “estudante” de filosofia, digamos assim, era a de perceber, de um lado, uma condenação moral da imagem que predominava nas academias e na

suposta intelligentsia ; de outro, uma impressionante potência pensante no cinema. Esta “condenação moral da imagem”, da qual sempre desconfiei, vinha sempre acompanhada da constatação, igualmente majoritária e hegemônica, de que viveríamos na civilização da imagem e que esta seria supostamente a responsável por uma dificuldade para a atividade do pensamento nos dias de hoje. Foi por isso que a afirmação-provocação de Deleuze nos pareceu tão adequada para o início do nosso trabalho: “Civilização da imagem? Na verdade, uma civilização do clichê”. Denunciar que há algo que impede a atividade do pensamento é, de certa forma, a denúncia de uma automatização, numa determinada compreensão que se possa ter do termo. Mas uma automatização neste sentido parece ser exatamente o que é pressuposto pela condenação moral da imagem, isto é, a compreensão equivocada de um descolamento entre a imagem e a matéria, que faria parte do mesmo movimento que nos leva a compreendê-la como linguagem, e a própria linguagem, como representação. Deleuze e Bergson nos mostram, no entanto, que o que percebemos não são as imagens dos objetos, mas os objetos como imagens; que a luz é o que se produz da relação dos objetos em suas diferenças e que o próprio universo é um plano de imanência de luz. O objeto é então para Bergson uma espécie de “fotografia da luz”: um instantâneo desta. Deleuze abre a conclusão do A Imagem-Tempo afirmando que o cinema não é uma linguagem, e esta afirmação, a princípio, como quase todas dos dois livros sobre cinema, não diz respeito apenas ao cinema. Deleuze está nos dizendo não apenas que o cinema não é uma linguagem como também que a linguagem não é para ele aquilo pelo qual majoritariamente ela é tomada. Há, no entanto, uma singularidade do cinema que também é afirmada por Deleuze nas primeiras linhas da sua conclusão: “ele traz à luz uma matéria inteligível, que é como que um pressuposto, uma condição, um correlato necessário através do qual a linguagem constrói seus próprios ‘objetos’.” ² Por outro lado, vimos que não só os seus dois livros sobre cinema, mas também o próprio cinema, ajudaram Deleuze a construir e a descrever a sua concepção do funcionamento da realidade: um “cosmos” deleuziano, digamos assim. Este aparece no contexto de um reexame do materialismo feito por Deleuze: reexame que implicou em parte uma redescoberta e uma reinvenção deste. Percebemos aí, inclusive, uma proximidade de A ImagemMovimento e A Imagem-Tempo com os dois grandes livros de filosofia política que ele escreveu com Félix Guattari, O Anti-Édipo e Mil Platôs , os dois com o mesmo subtítulo: “capitalismo e esquizofrenia”. Não é por acaso que nestes livros, ambos os autores retomem uma discussão com Marx e recoloquem o problema de uma economia política como um problema filosófico chegando, a partir de um problema marxista, até à origem nietzschiana do socius . É nestes livros também que Deleuze e Guattari descrevem um corpo produtivo, pulsante, potente, convergência de diversos fluxos cósmicos, identificado como “corpo sem órgãos”. É Henri Bergson, no entanto, que servirá como grande auxiliar de Deleuze neste trabalho de reexame do materialismo feito nos seus dois livros sobre cinema, mesmo que o próprio Bergson fizesse algumas objeções ao materialismo. Mas é este seu predecessor colega francês que vai ser

decisivo para Deleuze descrever um universo como um “plano de imanência”, que é ao mesmo tempo material e fluido, e onde os movimentos e as potências da matéria estão sempre sendo engendrados por uma dimensão virtual do real. Dimensão imaterial, é verdade, mas que é, por sua vez, nascida da própria matéria naquilo que ela desprende da tensão e da vibração de suas partes heterogêneas em movimento. Ou seja, o virtual como uma espécie de memória cósmica das vibrações e das interrelações dos corpos que, mais uma vez, incidem sobre estes. Para Deleuze então, o lugar para o qual o cinema nos levaria a princípio, como mecanismo e como máquina, é este universo absolutamente acentrado, que inicialmente é apenas imagem-movimento: a primeira fase do universo descrito por Bergson. Há para Deleuze uma identidade do cinema com este Todo da imagemmovimento, uma semelhança de natureza, ou talvez até mais do que isso. É a imagem-movimento que se constitui em primeiro lugar como um automatismo, isto é, uma natureza como máquina e como usina, diríamos nós, posto que produtora e autoprodutora: autopoiética . O cinema seria neste sentido o “automatismo que se tornou arte espiritual”, ³ e isso o diferencia de maneira decisiva do teatro. E mais, o sentido de “automação”, neste caso, está longe de ser negativo; ao contrário, afirma uma positividade e um vitalismo. Aqui devemos recordar brevemente a discussão apresentada na segunda parte deste livro em torno da aproximação que Deleuze faz com a semiótica do estadunidense Sanders Peirce. O que a imagem-movimento designa em primeiro lugar é uma matéria pré-sinalética, uma matéria préamórfica, semelhante ao que o linguista dinamarquês Louis Hjelmslev, segundo citação de Deleuze, define como “‘matéria’ não linguisticamente formada”. ⁴ Mas ela só se torna linguagem, ou aquilo que normalmente chamamos de linguagem, porque em certo momento se instala, no coração da imagemmovimento, um outro regime de imagem que aparece exatamente quando surge o que é para Bergson a origem dos seres vivos e que ele designa como “centro de indeterminação” ou “zona de indeterminação”. Assim, como já vimos insistentemente, a instalação deste se caracteriza por uma interrupção momentânea, por um afastamento e um hiato na dinâmica do universo acentrado e escoante da imagem-movimento. Estamos falando portanto de uma parte deste universo que se volta para dentro, que constitui um mundo interior como uma memória e que, no mais complexo dos seres, os homens, ganhará a dimensão de uma consciência. E estamos falando também de uma percepção que agora passa a ser, na medida das possibilidades do ser vivo, selecionada e centralizada, ou seja, o universo se dobra em torno do centro de indeterminação que passa a experimentá-lo como horizonte e perspectiva. Segundo Bergson, os seres vivos, que Deleuze gostava de designar como imagens-viventes, percebem o real num enquadramento, num plano que, como o do cinema, é um “corte móvel na duração”. Antes de qualquer dispositivo como o cinema, foi no automatismo da imagem-movimento, dentro do qual se operou uma cisão, que se constituiu o autômato espiritual que nós somos. É a imagem-movimento, isto é, a natureza como um universo heterogêneo, escoante e autoprodutivo, que nos

“força a pensar”: a reprocessar o virtual em outros sentidos possíveis. E assim, mesmo que infimamente, como “centros de indeterminações”, como imagens-viventes, somos capazes de modificar o universo desde dentro. Ou seja, como um autômato espiritual e físico criado da tensão e de um hiato da matéria cósmica, de novo intervimos nela e a alteramos. Mas o autômato espiritual, pensante, só pode se constituir enquanto tal à medida que traduz – ou “transduz” – a matéria em linguagem. A partir de Bergson, aprendemos que isso significa não apenas que toda a experiência de realidade é sempre de certa forma de uma imagem, mas também que toda esta experiência só pode acontecer originalmente como um “menos real”, reduzindo a imagem-movimento que nos afeta a um sentido palpável, a um significante que expressará um significado. É nesse momento que Bergson ajuda Deleuze a se aproximar da concepção semiótica que defende, isto é, aproximar-se de certa “linhagem” do estudo da linguagem que se diferencia da semiologia e de uma linguística mais tradicional. Deleuze então distingue a semiótica da semiologia e toma o partido da primeira. A semiótica, diz Deleuze, considera a linguagem sempre em relação a esta matéria-prima da imagem-movimento, a este enunciável que se constitui como imagens e signos, que são, é verdade, transformados em enunciados quando apoderados pela linguagem, mas que tendem a ser sempre de novo redefinidos e reengendrados quando mais uma vez são afetados pela matéria enunciável, pelas imagens e pelos signos. A semiologia, por outro lado, de “inspiração linguística”, segundo Deleuze, tenderia a fazer com que a linguagem se fechasse sobre si mesma, fechando sobre si os significantes, separando-se das imagens e dos signos como se esquecesse que estes constituem a linguagem de maneira anterior a qualquer significante. Usando uma linguagem bergsoniana, é como se a semiologia, para Deleuze, excluísse a modulação que constitui os sentidos no limite entre o atual e o virtual: no limite entre o imaterial e o corpóreo ou ainda entre o anímico e o somático. O que se coloca aí é muito mais do que um problema teórico, ou uma divergência que existe entre aqueles que estudam a linguagem; tratase, na verdade, de uma experiência predominante e majoritária de realidade que acomete, ou pode acometer, cada um de nós. Estamos falando de um automatismo no sentido mais negativo que se possa dar ao termo, que nasce no coração da própria linguagem e acontece quando ela se fecha sobre si mesma se esquecendo deste lugar-limite, que a constitui a partir de uma exterioridade material que não para de instigá-la. A recusa da modulação, a recusa do movimento – que não deixa por isso de ocorrer –, transforma a linguagem num mecanismo redutor e padronizador das experiências de realidade, agindo exatamente sobre o que ela finge recusar como a sua fonte originária: o corpo, a matéria; sempre em movimento. Isso é exatamente o que vimos Deleuze e Guattari definirem como uma “linguagem que se fecha em virtude de uma impotência”, fechando-se num esquema de equivalências, compensações e causalidades afetivas – sensório-motoras, fisiológicas – semelhantes às que Nietzsche descreveu na Genealogia da Moral . Trata-se, insistimos, de um processo de automação no sentido negativo que se possa dar ao termo. Este perde aqui o sentido de “autonomia”, e não se refere mais ao pensamento como um

autômato inventivo e liberador, que assim é instigado pelo automatismo material, maquínico e produtivo da natureza. Deleuze chama a atenção para o fato de que nenhuma arte jamais se deparou tanto com este problema, que constitui a sua própria natureza, quanto o cinema. Por isso, o cinema é, desde o seu início como “ficção”, cheio de personagens mumificados, de seres hipnotizados e hipnotizadores, e de todos os tipos de mecanismos maquínicos que existem desde a relojoaria – que Deleuze diz ter atraído de forma especial a primeira escola francesa. Este mecanismo passa então pelas máquinas industriais vistas em diversos filmes e autores – A Greve , de Eisenstein, Tempos Modernos , de Chaplin, A Besta Humana , de Jean Renoir, só para ficar em alguns exemplos – até as novas máquinas cibernéticas e a antecipação da sociedade de controle, do clone-robô futurista de Metropolis , de Lang, até o sistema de vigilância do último filme da série Dr. Mabuse , do mesmo autor e, finalmente, o mais famoso: o Hal 9000, o computador de 2001 uma Odisséia no Espaço , de Stanley Kubrick. Mas o cinema, de alguma maneira desde o início, se percebeu como este autômato mecânico, agora de novo num sentido liberador, capaz de acionar o autômato espiritual. Deleuze insiste que assim ele era visto por autores das primeiras escolas que buscavam no cinema a função de provocar a experiência do sublime na maneira como esta fora descrita por Kant. Mesmo a colisão dialética entre matéria e espírito, imaginada por Eisenstein a partir de Hegel e Marx, teria essa função. A concepção kantiana do juízo do sublime, que já antes do cinema influenciava grande parte do modernismo, notadamente a pintura, talvez seja a expressão de um entendimento de uma relação-limite entre matéria e pensamento incomum no próprio iluminismo do qual Kant fora um protagonista; mesmo que, no final, o juízo do sublime afirmasse a infinita tendência da razão a não se submeter. Mas o resultado da perda do vigor criativo das primeiras grandes escolas do cinema, a absoluta captura do cinema pelo Capital e pelo Estado, que chega a um ponto extremo à época da Segunda Guerra Mundial, acabaram significando a reversão desta espécie de última utopia iluminista. Assim, no lugar de ser o autômato do movimento que liberaria o autômato da razão, inclusive como uma experiência revolucionária e liberadora das massas como quis Eisenstein, o cinema teria se tornado um dispositivo de automatização, no sentido negativo, quase que como um instrumento de hipnose coletiva, como o expressionismo alemão pareceu intuir e prever em muitos de seus personagens. Esta foi a operação nazifascista do “Hitler cineasta”, como definiu Syberberg, mas esta também foi boa parte da constituição da máquina de poder hollywoodiana carregada da estética asséptica, moral e publicitária cujo pioneirismo esteve na “cineasta de Hitler”, Leni Riefenstahl. Por isso vimos Deleuze afirmar: “De Hitler a Hollywood, de Hollywood a Hitler.” Na verdade, o mesmo movimento que dissemos ser recorrente na linguagem teria acometido o cinema clássico, qual seja, “se fechar em si mesmo”. Como nas críticas que Deleuze faz à semiologia, o cinema tendeu (ou tende) a tomar cada uma das imagens, em suas características, como “dados” da realidade, isto é, como o que existiria em si mesmo em seus sentidos e significados, e não como o que tenha passado, e que não pare de passar, por

processos constituintes de redefinição e remodelação. Não se trata aqui apenas de algo que aconteceu em determinado momento da história do cinema; ao contrário, esta é uma tendência predominante no cinema ainda hoje. Mas, sobretudo, esta é uma tendência da nossa própria experiência de realidade, qual seja, fechar-se em si mesmo como se fosse um “em si” ou a “coisa mesma”, reduzindo todo afeto desestruturante a uma ordem de causalidades e a uma finalidade – um “telos”. Isto acontece, como vimos, desde uma experiência afetiva: fisiológica no vocabulário de Nietzsche, sensório-motora no vocabulário de Bergson. Por isso, a mais detalhada descrição do clichê feita por Deleuze, reproduzida por nós na introdução deste livro, não chega nem a mencionar o cinema ou outro mecanismo de produção de imagens: ela é antes a descrição de um mecanismo da nossa experiência do real. Resumidamente, diríamos que há um “menos” na origem de toda a nossa experiência de realidade, uma “criação de um mundo para nós” como diria Nietzsche, que pode se fechar a ponto de reverter a dinâmica vital dentro da qual ela fora criada, voltando-se contra a própria vida. Ora, como nós percebemos e explicamos mais detalhadamente no interior do livro, esse é o processo de instalação da moral em nós segundo Nietzsche. O clichê é um esquema redutor e padronizador dos afetos e das experiências de realidade em geral, instalando-se a partir de um processo de equivalências e compensações – sempre afetivas, sensóriomotoras, físicas – e por isso funcionando exatamente como uma imagem-lei, uma imagem-moral: uma imagem padronizadora e determinadora de valores. O cinema, por sua vez, como vimos, é uma notável máquina não apenas produtora de clichês, mas também detectora, denunciadora e desconstrutora dos clichês. Em outros termos: o cinema também foi e ainda é uma notável máquina que nos ajuda a nos libertarmos – a nos vermos livres – dos clichês que nos capturam e nos aprisionam, mesmo que isso tenha acontecido sempre de maneira minoritária na história do cinema. Minoritária de fato, mas qualitativamente potente e até significativa e constante de um ponto de vista quantitativo. Não há dúvida, no entanto, que estas foram muitas vezes experiências de risco para seus realizadores, exatamente pela liberação sensório-motora e, portanto, também uma liberação de pensamento que de uma forma ou de outra representavam. É claro que sempre se pode dizer que o público tende a rejeitar certos tipos de filme, mesmo que não tenham sido poucos os filmes que aqui mencionamos que foram inclusive “sucessos de público”. Se o moralismo do cinema que articulamos com o clichê parece ser uma tendência dominante é porque o poder, como Foucault, Deleuze e Guattari bem observaram, passa por dentro: passa pelos corpos. Deleuze e Guattari insistem, por exemplo, que o fascismo não foi fruto da ilusão e da ignorância, mas antes, em certo momento, que se desejou toda aquela violência. ⁵ A pergunta é então sobre o que mobilizaria o desejo e os corpos nessa direção. Pergunta esta que, segundo Deleuze e Guattari, foi colocada por Wilhelm Reich, reverberando de certa forma uma antiga questão política de Espinosa: “Por que os homens combatem por sua servidão como se se tratasse de sua salvação?” ⁶ Na verdade, é a partir de Marx que Deleuze e Guattari vão afirmar que o desejo não existe de maneira independente da produção social, e tudo que

se volta contra o desejo é produzido no coração desta produção e a posteriori. Neste sentido, a moral é uma produção molar – “macro”, digamos assim –, que destitui o desejo de seu objeto, revertendo-o para uma espécie de paixão triste, ou seja, o medo, o sofrimento, a impotência viram o próprio objeto do desejo como se este fosse um movimento de produção da antiprodução. Não é que exista algum vazio a constituir ontologicamente o desejo, como quis a psicanálise, mas as paixões, como objetos naturais e sensíveis, não cessam de se virar contra o desejo. Assim, a falta, cujo correlato subjetivo é o fantasma, é socialmente produzida na medida mesma que se despeja todo o desejo no medo dessa falta, desse vazio, dessa carência. Trata-se, então, de um estado de impotência em que a própria palavra “produção” nos parece por vezes soar contraditória, ou inadequada, visto que o que parece acontecer de fato é uma propagação molecular, micropolítica, de um estado de impotência e improdutividade dos corpos que pode chegar até uma paixão violenta. São então as próprias paixões que aí se espalham, sendo experimentadas, por exemplo, como o medo, como a falta de disposição para qualquer risco, ou como a experiência da própria impotência tomada por “atributo essencial” ou “natural”. Neste movimento a potência transforma-se – reverte-se – no fantasma porque a força passa a ser experimentada como estando sempre alhures e, portanto, deve-se temê-la e obedecê-la. Há na origem da moral esse movimento de autonegação servil produzido no coração do processo social. Por isso, o clichê é sempre também uma experiência que se constrói no socius . Para além de uma paralisia e de um anestesiamento psicossomático, ele pode ser também uma disposição para a violência destrutiva quando produz uma grande mobilização de corpos com vistas a um grande “telos”, a um grande fim que implica sempre o sacrifício, mesmo que às vezes parcial, da potência e da vitalidade destes corpos. Em relação ao clichê no cinema, talvez se possa objetar que nem sempre se chegou a este ponto. Por outro lado, o cinema tantas vezes descambou para um moralismo-limite que, em algumas situações, tornou-se uma peça importante do que Deleuze percebia, não sem ser acusado de estar “exagerando”, como formas diluídas de fascismo; isso ainda nas últimas décadas do século XX. Mas os filmes e os autores analisados nos seus dois livros sobre o cinema, como vimos, são o exato reverso disso: cinema como expressão da potência inventiva e da vitalidade do pensamento. Em todo caso, no que é majoritário e hegemônico, o que observamos é uma tendência de ir ao cinema para se ter exatamente as experiências que são previamente esperadas, como se fosse ir ao cinema apenas para se encontrar com o clichê. E ai do filme se estas experiências não se confirmam nos primeiros dez minutos e algumas sensações estranhas começam a acometer o espectador. O cinema partilha do processo do real, ele é uma potência da realidade porque, antes, para Deleuze, o virtual é uma potência do ser. Mesmo que isso tenha sido repetido algumas vezes no nosso livro, não poderia deixar de estar presente também na conclusão. Aqui está outra função decisiva de Bergson na compreensão que Deleuze constrói do universo como um plano de imanência: graças a ele o virtual pode ser detalhadamente compreendido

–como de certa maneira antes já pretendia Nietzsche – como uma dimensão da realidade sem a qual esta não existiria na sua dinâmica autoprodutiva. O virtual não só constitui o plano de imanência, como é parte fundamental da potência da matéria viva do universo. A identificação do cinema com o processo primeiro da realidade já aparecia quando Deleuze viu em Bergson a descrição de um universo como uma espécie de metacinema, mesmo que Bergson, ele mesmo, não tenha compreendido todas as possibilidades do cinema como arte. Mas é esta identificação que permitiu que se pensasse uma possibilidade liberadora no cinema – liberadora dos clichês, mesmo que não tenha sido formulada desta forma –, num cinema que seria capaz de nos conduzir à experiência mais originária da imagem-movimento. Mas isso só aconteceu pontualmente, como na rara e espetacular experiência de Dziga Vertov no filme Um Homem e sua Câmera . Anterior à despotencialização da imagem no clichê, a experiência instauradora de realidade no cinema aconteceu em primeiro lugar, é claro, no cinema clássico, mesmo que racionalista, platônico e até moralista, quando tudo isso já tinha sido diagnosticado por Nietzsche como uma decadência. Mas o cinema foi sem dúvida vigoroso e inovador nas suas primeiras décadas, em parte pelo ineditismo das experiências fílmicas, em parte pelo ineditismo da experiência psíquica e somática do próprio cinema como máquina: a novidade do autômato do movimento. O cinema, porém, quando viu suas outrora potentes imagens esgotadas em clichês, soube ir mais longe, descobrindo uma nova e mais distante relação com o extracampo, mais profunda e mais radical do que aquela que normalmente aprendemos como típica da “linguagem” do cinema. De fato, ao contrário do quadro na pintura, quase sempre todo voltado para o seu interior, o quadro no cinema não para de se referir e evocar um primeiro e mais convencional tipo de “fora de campo”: um extracampo que é interior ao filme, mesmo que jamais apareça explicitamente na imagem. Por isso, por exemplo, diversos planos fechados ou detalhes de um determinado quarto, pelos objetos que nos são apresentados, fazem com que possamos compor o quarto de um adolescente que pode jamais ter sido mostrado por inteiro no filme, mas que cumpre perfeitamente a sua função narrativa e é experimentado por nós como uma realidade fílmica. Mas há este outro tipo de extracampo que faz referir o detalhe da imagem – ou a particularidade do acontecimento dentro de um plano – ao que está além do filme e que liga o filme ao Todo da imagem-movimento. Essa ligação, esse fio, sempre houve no cinema, mas passa a ser revelado pela imagem-tempo. Ou seja, ele passa a ser revelado quando se interrompe o prolongamento sensório-motor que há entre as imagens do filme, entre os personagens e as imagens, suspendendo a narração e revelando uma descrição. As imagens passam a ser reveladas em seu processo constituinte, no ponto de passagem do virtual para o atual, e vice-versa, de tal maneira que este é experimentado como um ponto de indiscernibilidade. A quebra dos clichês exerce aí um papel liberador que é também eminentemente político, funcionando como uma operação molecular que libera nossos corpos do que os condicionava numa impotência, num “menos”. É a imagem-tempo que quebra a imagem-clichê, revelando a imagem em sua composição cristalina, não só nas suas duas

faces – o atual e o virtual –, mas também na maneira como o tempo a atravessa em dois movimentos: escoando em direção ao futuro e conservando-se todo num passado –num sentido –, nos joga na experiência do aberto descrita por Bergson, isto é, na matéria escoante da imagemmovimento. Trata-se não apenas de pura materialidade, mas de toda a memória cósmica na qual estamos instalados, a potência virtual que a nossa própria memória não para de reprocessar. Assim, a quebra do clichê abre um horizonte múltiplo de sentidos virtuais e demanda de nós uma atividade. É por isso que Deleuze diz que o cinema moderno, quando realiza essa passagem, descobre a potência do falso e a identifica com a Vontade de Potência nietzschiana. O que ele faz de fato é encontrar o lugar-limite onde imagens e sentidos se constituem, sempre instigados por uma potência que é do próprio universo e que, no final das contas, vem a ser aquilo com o qual vai se encontrar a potência do sentido de uma imagem num determinado quadro, num determinado plano. Este é o fio que conduz a vitalidade de um sentido e de um objeto-imagem em particular ao próprio universo como um acontecimento e como matéria viva: o outro e mais profundo “extracampo” de que falamos. É a quebra dos clichês que permite que o cinema se redescubra como produtor de realidade, permitindo, na verdade, que nós nos descubramos neste lugar através do cinema. Neste sentido, o cinema nos ajuda a compreender como o problema da realidade não é colocado para Deleuze – inclusive no que ele tem, ontologicamente, de ético e político – em termos de uma hierarquia entre o verdadeiro e o falso que repercuta imediatamente numa hierarquia entre o bem e o mal, ou seja, uma hierarquia de ordem moral. Antes, o problema ético e político para Deleuze está imediatamente relacionado a uma questão de potência e impotência: de assumir completamente a capacidade autoprodutiva da vida de um lado, ali onde o ser é unívoco e se afirma como singularidade e diferença; e de resistir, detectar e desconstruir tudo o que se opõe a essa potência, isto é, que nos reduz a um “menos”, que nos aparta da imanência como um aberto, e nos torna impotentes e servis a uma realidade experimentada como dada, constituída e transcendente. Neste sentido, a transformação estética que representou a passagem do cinema clássico para o moderno – a descoberta da imagem-tempo, da capacidade do cinema “presentificar” o tempo e produzir realidades – teve, e sempre terá, uma função ética e política. Função ética e política que se constitui a partir de uma operação estética que engendra uma espécie de extraordinariedade. Esta é uma posição de quem não crê que o pensamento, aqui representado em duas de suas potências, arte (cinema) e filosofia, seja a primeira e a mais característica das experiências humanas. Para Deleuze, a experiência primeira e cotidiana do homem não é a do pensamento; ao contrário, para ele normalmente vivemos no hábito, na reprodução pura e simples, na moral e no clichê. É preciso, na verdade, forçar o pensar. Trata-se de uma espécie de antiiluminismo de Deleuze que, neste aspecto, o aproxima inclusive de Heidegger, para quem também a experiência primeira do homem não é a do pensamento, mas a da perplexidade diante da possibilidade de pensar. Talvez o primeiro movimento desta quebra de sentidos, que é também uma quebra de clichês que o cinema opera, seja a dessa perplexidade. O problema é estabelecer o quanto suportamos isso, ou seja, o quanto o limite

disso não seria a nossa própria loucura. Não é por acaso que Deleuze faz esta reflexão exatamente quando está falando das relações de Artaud com o cinema. Artaud que chegou a pensar um cinema cujo “choque sensorial” nos levaria a este lugar-limite, mas que rapidamente se desilude com os rumos que o cinema havia tomado. No limite do cinema, no entanto, o problema ético e político se recoloca diante das novas formas de imagens que constituirão novas formas de autômatos. Deleuze não se alonga muito sobre este tema no final do A Imagem-Tempo , mas se detém o suficiente para fazer uma distinção bastante importante entre os novos dispositivos produtores de imagem e o cinema. Tais dispositivos, na verdade, não seriam dotados de “exterioridade”. Deleuze se refere aí, segundo suas palavras, às “tele”, ao “vídeo” e às “imagens numéricas nascentes”, ⁷ referindo-se à informática ainda nos anos 1980, e constata que normalmente não nos encontramos diante delas, mas dentro delas, como parte de uma máquina onde constituímos apenas mais uma conexão ou uma peça. É como se estivéssemos todo o tempo conectados a um circuito, como se exercêssemos uma função que nos faria semelhantes a um fio que liga um DVD a um monitor, ou como se fôssemos um desses aparelhos conectados que podem, no máximo, produzir uma interferência nas imagens. Trata-se de um fenômeno que, junto com Guattari em Mil Platôs , ⁸ Deleuze identifica como o de uma “servidão maquínica” e que conviveria com a “antiga” forma de sujeição à máquina, isto é, a sujeição social do capitalismo industrial tão bem filmada por Chaplin. A servidão maquínica está presente, por exemplo, quando a televisão não para de confundir o sujeito do enunciado com o sujeito da enunciação, tentando nos convencer a todo momento que somos nós que comandamos e que somos os responsáveis pelos programas de TV: “caro telespectador, aqui você é quem decide...” De alguma maneira foi o que Bill Viola percebeu quando fez o seu Reverse Television , gravando com uma câmera de vídeo colocada sobre a TV dezenas de telespectadores no seu ato cotidiano, e mais ou menos patético, de ver televisão. Deleuze fala em “colocar um meio contra si mesmo” e cita as performances de Volf Wostel como exemplo dessa atitude típica da arte contemporânea. No entanto, já havíamos considerado a possibilidade das novas formas de produção de imagem poderem nos liberar do que o próprio cinema, como forma, tem de clichê. De fato, novas formas de imagem podem ir além da forma-cinema experimentada como um clichê em si mesma, posto que percebem o cinema como uma limitação sensório-motora em virtude, por exemplo, do formato tradicional da sala do cinema, carregado de um perspectivismo renascentista, e da herança de um teatro condicionado pelo palco italiano. Neste sentido, a experiência de Michael Snow, em A Região Central , também citada por Deleuze, pode ser tomada como modelo: a câmera capaz de girar para todos os lados e todas as direções, mesmo que o resultado fosse exibido numa tela plana tradicional. A superação dessa tela plana, que já havia sido tentada pela exibição em 180 graus, e depois em 360 graus, desde os primórdios do cinema, realiza-se na vídeo-instalação e, mais adiante, na maneira como os jogos virtuais e interativos contemporâneos nos lançam numa experiência sensório-motora inédita, passível de ser explorada para além das limitações que o caráter marcadamente de mercadoria destes produtos trazem.

Abrem-se aí, então, novas possibilidades para o que Deleuze chama de “Vontade de Arte”, mais uma variação da Vontade de Potência nietzschiana. Mas também se abre a possibilidade de uma nova automação no sentido negativo do termo, ou seja, um condicionamento sensório-motor semelhante ao que descrevemos como sendo o do clichê. Já discutimos como o cinema – assim como outras artes fizeram em relação a ele – pode ser uma resistência a um clichê de ritmo e a um condicionamento sensóriomotor que as novas tecnologias impõem, e que o próprio cinema impôs outrora, como observou Paul Virilio. Mas a relação da arte com as novas tecnologias não pode ser determinada apenas por alguma forma de negativismo nostálgico, como bem perceberam os artistas contemporâneos e mais especificamente os do movimento “fluxus” (como Wostel e Nam June Paik, por exemplo) na relação que estabeleceram com a TV e com o vídeo. Antes, como diz Deleuze, a própria invenção de uma nova técnica é uma demanda do que ele agora chama de Vontade de Arte. Assim, se é a própria Vontade de Arte que está sempre demandando novas técnicas, quando estas técnicas se voltam contra a Vontade de Arte, é ela mesma que deve ser convocada a agir. 1 DELUZE, Gilles. Francis Bacon, a Lógica da Sensação. 2 I. T., p. 342. 3 I. T., p. 344. 4 Ibidem. 5 DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. L’ Anti-Edipe. Capitalisme et Schizophrénie Paris: Les Editions de Minuit, 1973, p. 37. 6 ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-Político . São Paulo: Martins Fontes, 2003. Prefácio, § 3. 7 I. T., p. 346. 8 DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mille Plateaux . Capitalisme et Schizophrénie Paris: Les Editions de Minuit, 2009, p. 570. Bibliografia ADORNO, Theodor. Teoria Estética . São Paulo: Martins Fontes, 1989. _. Teoria da Cultura de Massa . São Paulo: Martins Fontes, 1988. AGOSTINHO. Confissões. O homem e o tempo. In: Os Pensadores . São Paulo: Editora Abril, 1973. ANTONIONI, RENOIR, ROSSELLINI, LANG, HAWKS, HITCHCOCK, BUÑUEL, WELLES, DREYER, BRESSON. A Política dos Autores. Entrevistas publicadas no Cahiers du Cinema. Lisboa: Assírio e Alvin, 1976. ARISTÓTELES . A Política . São Paulo: Martins Fontes, 1991. _. Poética . Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Editora Abril, 1984.

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