Crença cristã avalizada(Warranted Christian belief) [1 ed.] 9788527508186

Em Crença cristã avalizada, Alvin Plantinga trata a noção de aval, que ele define como “aquilo que distingue o conhecime

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Crença cristã avalizada(Warranted Christian belief) [1 ed.]
 9788527508186

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ALVIN P LA N T IN G A

CRENÇA CRISTÃ

AVALIZADA Tradução

Desidério Orlando Figueiredo Murcho (Universidade Federal de Ouro Preto)

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VIDA NOVA

ALVIN P LA N T IN G A

CRENÇA CRISTÃ

AVALIZADA Tradução Desidério Orlando Figueiredo Murcho CUniversidade Federal de Ouro Preto)

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VIDA NOVA

®2000, de Alvin Plantinga Título do original: WaiTanted Christian belief, edição publicada pela Z ondervan P ublishing H ouse (Grand Rapids, Michigan, EUA). Todos os direitos em língua portuguesa reservados por S ociedade R eligiosa E dições Vida N ova Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020 vidanova.com.br | [email protected] l .a edição: 2018 Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte. Impresso no Brasil / P rin ted in B r a zil Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram extraídas da Almeida Século 21. As citações bíblicas com indicação da versão in loco foram traduzidas diretamente da King James Version (KJV) e da Revised Standard Version (RSV). D ireção executiva Kenneth Lee Davis G erência editorial Fabiano Silveira Medeiros E dição de texto Marcelo Brandão Cipolla Leandro Bachega P reparação de texto Mauro Nogueira Marcia B. Medeiros R evisão técnica Bruno Uchôa, doutor em filosofia, com conhecimento técnico na epistemología de Alvin Plantinga R evisão de provas Sylmara Beletti G erência de produção Sérgio Siqueira Moura D iagramação Sandra Reis Oliveira C apa Souto Crescimento da Marca

Para P. A l s t o n , mentor, modelo, amigo W

il l ia m

Sumário Apresentação da edição brasileira......................................................................................11 Nota à edição brasileira....................................................................................................... 13 Prefácio................................................................................................................................. 16 Primeira parte: A QUESTÃO EXISTE? 1. Kant ...................................................................................................................29 I. O problem a.................................................................................................... 29 II. Kant..................................................................................................................34 A. Dois mundos ou um ?..............................................................................36 B. Argumentos ou razões?.......................................................................... 45

2 . Kaufman e H ic k .......................................................

57 I. Kaufman..........................................................................................................57 A. O verdadeiro referente e o referente disponível....................................57 B. A função da linguagem religiosa............................................................64 II. H ic k ................................................................................................................. 68 A. O Real....................................................................................................... 68 B. Coerente?..................................................................................................74 C. Religiosamente relevante?.......................................................................80 D. Existe tal coisa?........................................................................................ 84

Segunda parte: QUAL É A QUESTÃO? 3. A justificação e a imagem clássica........................................................................91 I. John Locke...................................................................................................... 94 A. Viver de acordo com a razão.................................................................. 98 B. Revelação................................................................................................103 II. Evidencialismo clássico, deontologismo e fundacionalismo.....................104 A. Fundacionalismo clássico......................................................................105 B. Deontologismo clássico........................................................................108 III. Voltando ao presente....................................................................................I l l IV. Problemas com a imagem clássica.............................................................. 115 A. Problemas de autorreferência............................................................... 116 B. A maior parte das nossas crenças não está justificada?...................... !!9 V. A crença cristã é justificada.......................................................................... !2 1 VI. Variações analógicas..................................................................................... !24 A. Variações do fundacionalismo clássico...............................................

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

B. Variações da deontologia....................................................................... 125 C. Será esta a questão de jure?..................................................................127 4.

Racionalidade.................................................................................................... 121 Algumas versões sortidas de racionalidade................................................ 131 A. Racionalidade aristotélica......................................................................132 B. Racionalidade como funcionamento apropriado................................132 C. Os produtos da razão............................................................................ 135 D. Racionalidade de meiose fins............................................................... 138 II. Racionalidade prática alstoniana................................................................ 139 A. A questão inicial.....................................................................................139 B. Práticas doxásticas................................................................................. 140 C. Circularidade epistêmica...................................................................... 141 D. O argumento a favor da racionalidade prática...................................142 E. Caracterização inicial da racionalidade prática...................................143 F. A posição original ................................................................................ 144 G. A posição original am pla..................................................................... 146 H. Uma posição original restrita?............................................................ 148 I.

5. Aval e a queixa Freud-e-M arx......................................................................... 137 I. A queixa F & M ............................................................................................ 138 A. F re u d ...................................................................................................... 138 B. M arx ...................................................................................................... 162 C. O utros..................................................................................................... 163 D. Como entender a queixa F & M ?........................................................ 165 II. Aval: a verdade sóbria..................................................................................173 III. De novo a queixa F& M .............................................................................. 181 Terceira parte: CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA 6. Crença em Deus avalizada.................................................................................185 I. O modelo Tomás Aquino/Calvino............................................................ 186 A. M odelos.................................................................................................. 186 B. Apresentação do modelo....................................................................... 188 II. A crença em Deus é básica e avalizada?.....................................................203 A. Se for falsa, provavelmente n ão ............................................................ 203 B. Se for verdadeira, provavelmente sim .................................................. 205 III. A questão de jure não é independente da questão de facto.....................206 IV. A queixa F& M revisitada........................................................................... 208 7. O pecado e suas consequências cognitivas...................................................... ^15 I. Preliminares.................................................................................................. ^15

SUMÁRIO

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II. Formulação inicial do modelo estendido.................................................. 218 III. A natureza do pecado.................................................................................. 221 IV. Os efeitos noéticos do pecado.................................................................... 227 A. A consequência básica...........................................................................227 B. Pecado e conhecimento........................................................................ 231

8. O modelo Tomás Aquino/Calvino estendido: revelado aos nossos espíritos ...255 I. A fé................................................................................................................ 260 II. Como opera a fé?......................................................................................... 262 III. Fé e status epistêmico positivo....................................................................265 IV. Basicidade apropriada e o papel da escritura............................................ 270 V. Comparação com Locke............................................................................. 277 VI. Por que é necessário?...................................................................................279 VII. Renovação cognitiva.................................................................................. 290 9. O modelo testemunhai: selado nos nossos corações........................................ 301 I. Crença e afeição.......................................................................................... 301 II. Jonathan Edwards.......................................................................................304 A. Intelecto e vontade: qual tem precedência?....................................... 305 B. As afirmações da f é .............................................................................. 313 III. Análogo do aval........................................................................................... 318 IV Eros...............................................................................................................320 10. Objeções.............................................................................................................. 333 I. O aval e o argumento da experiência religiosa......................................... 334 II. O que a experiência pode mostrar?............................................................340 III. Um argumento fatal?................................................................................... 343 IV. Filho da grande Abóbora?...........................................................................350 V. Circularidade?.............................................................................................. 359 Quarta parte: ANULAD O RES? 1 1 . Anuladores e anulação........................................................................................363 I. A natureza dos anuladores...........................................................................364 II. Anuladores da crença cristã ou teísta......................................................... 371 III. As teorias projetivistas constituem um anulador da crença cristã?.........372

12 . Dois (ou mais) tipos de estudos bíblicos.......................................................... 379 I. Escritura de inspiração divina.................................................................... 380 II. Comentário bíblico cristão tradicional...................................................... 385 III. Crítica histórico-bíblica............................................................................... 389 A. Tipos de crítica histórico-bíblica..........................................................393

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

B. Tensões com ocristianismo tradicional................................................ 401 IV. Por que a maior parte dos cristãos não se preocupa?.................................403 A. Força maior............................................................................................ 405 B. Um imperativo moral?..........................................................................408 C. A crítica histórico-bíblica é mais inclusiva?...................................... 412 V. Não é motivo de preocupação..................................................................... 413 A. Crítica histórico-bíbbca troeltschiana de novo...................................413 B. Crítica histórico-bíbbca não troeltschiana......................................... 415 C . Condicionahzação................................................................................. 419 VI. Coda conclusiva............................................................................................420 13. Pós-modernismo e plurahsmo......................................................................... 423 I. Pós-modernismo......................................................................................... 423 A. O pós-modernismo é incompatível com a crença cristã?..................424 B. Estas afirmações anulam a crença cristã?............................................ 426 C. O pós-modernismo como falta de fibra..............................................436 II. Pluralismo.................................................................................................... 437 A. Um anulador probabilístico?................................................................440 B. A acusação de arbitrariedade moral.....................................................442 14. O sofrimento e o mal........................................................................................457 I. Argumentos evidenciais ateológicos.......................................................... 463 A. Os argumentos de Rowe...................................................................... 463 B. O argumento de Draper....................................................................... 467 II. Anuladores não argumentativos?................................................................479 índice remissivo...................................................................................................497

Apresentação da edição brasileira Em Crença cristã avalizada, Plantinga — um dos mais renomados filósofos cristãos da atualidade — segue o exemplo da tradição neocalvinista holandesa, que buscou desenvolver um pensamento distintamente cristão no contexto da filosofia continental, e também abraça a mesma tarefa dessa tradição, no contexto da filosofia analítica, de promover um amplo diálogo crítico com as interpretações modernas da religião. Na presente obra, o terceiro volume de sua magnum opus, o “Teísta Analítico” apresenta, como ele mesmo define, um “esforço para considerar e responder a questões filosóficas em perspectiva cristã” e nos brinda com uma defesa sagaz da racionalidade da fé cristã à luz de sua genial teoria do conhecimento como “crença avalizada”. Trata-se de uma obra clássica e fundamental para a renovação do diálogo entre o cristianismo e as ciências naturais e humanas. E é com grande alegria que a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência apoia Edições Vida Nova na publicação dessa obra no Brasil! D r. R oberto C ovolan ,

físico e professor da Unicamp, vice-diretor do Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN) e atual presidente da ABC 2 R ev. G uilherme

de

C arvalho ,

teólogo evangélico e pastor, diretor da L’Abri Fellowship Brasil e vice-presidente da ABC 2

Associação Brasileira de Cristãos na Ciência A Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2) é uma iniciativa da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares (AKET), com o apoio da Templeton World Charity Foundation (TW CF), e tem por objetivo promover a comunicação e a integração entre a comunidade cristã e o campo científico no Brasil. A missão da ABC 2 é, portanto, operar como uma embaixada entre os universos da fé cristã e da ciência. Nesse papel, ela busca promover o diálogo aberto, honesto e respeitoso entre esses dois universos, levando sempre em conta a liberdade e a soberania das respectivas esferas sociais e as finalidades intrínsecas e próprias de cada esfera, mas

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buscando — de uma perspectiva cristã — o avanço do conhecimento integral acerca do homem e de sua relação com Deus e a natureza. Seus interesses são: • • •

dar testemunho cristão; promover a teologia pública, ou seja, a integração entre igreja, academia e sociedade; fomentar o ensino e a divulgação científica de forma contextualizada ao universo da fé.

A ABC 2 não pretende controlar ou interferir nos procedimentos, processos ou instituições internas aos dois campos, nem se arvorar legisladora sobre a natureza da ciência ou da fé. Deseja tão somente auxiliar os cristãos que pertencem aos dois campos para que possam melhor integrar suas vocações científica e espiritual. Portanto, não será seu papel arbitrar sobre pontos controversos na interação entre fé cristã e ciência, mas, sim, oferecer‫־־‬se como fórum aberto para debates de alto nível, de forma que eventuais discordâncias entre seus associados possam resultar em diálogo produtivo e aprofundamento dos temas em questão.

Nota à edição brasileira Segundo o próprio Alvin Plantinga, Warranted Christian belief — obra agora acessível ao leitor brasileiro — é seu principal livro. Um questionamento sensato do público que lê Plantinga, ou já leu sobre ele, será a respeito da escolha da tradução do título do livro. Muitos questionarão: “Crença cristã avalizada? Por que não Crença cristã garantida?”. Esse questionamento é pertinente e será feito pelo público que já leu artigos, teses ou dissertações que tratem de aspectos da obra de Plantinga, sabendo que muitas delas traduzem warrant por “garantia”. Contudo, embora seja uma tradução frequente, ela não representa o que Plantinga quis expressar com o termo. Para explicar isso, permita-me apenas fazer uma breve incursão na epistemología contemporânea. Até 1963, era praticamente consenso definir conhecimento proposicional como crença verdadeira justificada. Edmund Gettier, segundo boa parte dos epistemólogos, mostrou por meio de dois contra-exemplos que a justificação (termo emprestado do deontologismo ético) não era suficiente para se ter conhecimento. Surgiram imediatamente várias teorias para remediar o problema: teorias causais, anulabilistas e evidencialistas, até o surgimento do confiabilismo em torno de 1979. O confiabilismo divergia das outras teorias por propor que, em situações específicas, nossa falta de conhecimento se dava por algo que estava fora de nosso alcance epistêmico ou, mais específicamente, algo de que não estávamos diretamente conscientes. A década de 1980 foi dominada, então, por um entrave entre teorias internalistas e externalistas, em que aquelas defendiam, grosso modo, uma espécie de acesso interno direto àquilo que justifica nossas crenças, e estas defendiam que não temos tal acesso, uma vez que podemos deixar de ter conhecimento pelo fato de algo do ambiente cognitivo fazer com que nossas faculdades cognitivas envolvidas no processo de formação de crença não fossem confiáveis naquela situação específica. Nesse contexto, Plantinga apresenta, ainda em 1986,1 uma teoria inicial que se vincula ao externalismo. Contudo, ele acreditava que o termo justificação¡ mesmo usado por alguns externalistas, tinha uma tradição internalista muito forte, concluindo assim que seria melhor usar outro termo para se separar dessas teorias de caráter evidencialista e deontológico. Ele acreditava que, ao agir assim, já sairia com uma vantagem inicial sobre as teorias rivais. Em seus primeiros trabalhos de epistemología,2 Plantinga tomou de empréstimo o status epistêmico positivo (positive epistemic status') de Chisholm para designar aquela propriedade que distingue o conhecimento da mera crença verdadeira. Esse termo foi

,Alvin Plantinga, “Epistemic justification”, Notts 20 (1986): 3 1 8 ‫־‬ 2Cf., por exemplo, seu “Justification and theism”, Faith and Philosophy 4, η. 4 (1987): 403-26 e seu “Positive epi6temic status and proper function”, Philosophical Perspectives 2 (1988): 1-50.

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abandonado em seus trabalhos principais3 por ser muito longo, segundo ele. Ernest Sosa, também um externalista, sugeriu que Plantinga adotasse aptidão epistêmica, mas o termo que ele considerou melhor para construir sua teoria foi warrant. E certo que warrant é termo j á usado na literatura epistemológica e, até certo ponto, embutida de pressuposições internalistas. Plantinga, contudo, acredita que esse termo estivesse menos relacionado ao internalismo que seu equivalentz justificação e assim o adotou com a advertência de não lhe fazermos nenhuma espécie de associação deontológica ou internalista. Ao traduzir o termo no Brasil, vários estudiosos supuseram de início que Plantinga estava usando um termo mais forte do que justification para servir de condição suficiente para a definição de conhecimento proposicional, mas, como vimos, o propósito foi apenas se desvencilhar de quaisquer embaraços internalistas e não apresentar um termo com caráter mais forte. Alguém poderia perguntar, contudo, por que não continuar com o termo garantia, que já vem sendo usado? A resposta é que ele não capta o sentido que Plantinga intencionou com o termo e, mais que isso, garantia é desencorajado pelo próprio Plantinga. Garantia traz a ideia do que é certo, evocando o sentido de certeza cartesiana. Em Warrant and properfunction (p. 55), Plantinga nos diz: Em uma explicação mais satisfatória de aval {warrant), o que conta não é se minha experiência, de algum modo, garante {guarantees) a verdade da crença em questão (e como ela poderia fazer algo assim?), mas se eu a sustento com confiança suficiente e se ela é produzida em mim por faculdades cognitivas que têm por alvo a verdade e estão funcionando apropriadamente em um ambiente apropriado. Desse modo, ela tem aval {warrant) e, se for verdadeira, constitui-se em conhecimento...”. Veja que warrant (aval) pode ser sinônimo de garantee (garantia). A este termo traduzimos em português claramente por garantia. Contudo, em inglês, warrant tem outras acepções, e Plantinga adverte que não é a acepção de guarantee que ele tem em mente, ou seja, o termo não remete a uma certeza cartesiana, uma espécie de garantia que se tem para o conhecimento desfrutar dessa propriedade epistêmica. Tanto isso é verdade que alguém pode ter warrant (aval) para sua crença e ela ainda não ser conhecimento, caso não seja também verdadeira. Como o próprio Plantinga condiciona, mesmo com warrant alguém só tem conhecimento “se ela [a crença] for verdadeira”.4Ao aceitar a ideia de que Ό que chamo de seus trabalhos principais em epistemología são os que compõem a sua trilogia ·warrant·. Warrant: the current debate (Oxford: Oxford University Press, 1993), Warrant and properfunction (Oxford: Oxford University Press, 1993) e Warranted Christian belief (New York: Oxford University Press, 2000). Todos os scus artigos publicados entre 1990 e 2000 também usam o termo warrant. E, contudo, a partir de seu “Justification in the 20th century", Philosophy and Phenomenological Research 1 (Supplement, Fall 1990): 45-71, que ele tratajustification e warrant como duas coisas distintas. *Há uma discussão sobre warrant implicar ou não verdade. Um dos alunos que Plantinga formou, Trenton Merricks, defende que sim em um debate com Sharon Ryan, embora a posição de Plantinga sempre tenha sido negativa neste aspecto. Cf. Trenton Merricks, “Warrant entails truth”, Philosophy and Phenomenological Research 55, n. 4 (1995): 8 4 1 5 5 ‫“ ;־‬More on warrant’s entailing truth”, Philosophy and Phenomenological Research 57, n. 3 (1997): 62731; Sharon Ryan, “Does warrant entail truth?”, Philosophy and Phenomenological Research 56, η. 1 (1996): 183-92.

NOTA À EDIÇÃO BRASILEIRA

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·warrant vem em graus, a depender do seu nível de confiança na crença, como defende Plantinga, podemos descartar qualquer termo que nos remeta a certeza, como seria o caso de garantia. Depois de explicar a não adoção da tradução garantia, pode-se perguntar: “Mas por que aval?'. E verdade que aval é um dos termos que vêm sendo usados no Brasil há bem menos tempo que garantia, mas o termo já vem sendo usado em artigos e trabalhos acadêmicos. Muitos estudiosos estão entrando em um consenso de que esse termo capta melhor a ideia de Plantinga. Em 2011, Plantinga veio ao Brasil por ocasião do Simpósio de Filosofia da Religião, Ontologia e Epistemología: Diálogo com Alvin Plantinga, que se deu na UNB e na PUC-RS. No evento de Porto Alegre, em uma conversa que tive com Roberto Pich, ele propôs a mudança do termo para aval. Na mesma noite, em um jantar com Plantinga, Pich relatou a inquietação com a tradução do termo e Plantinga acenou positivamente que o significado jurídico que damos para aval aqui no Brasil corresponde ao que ele tinha em mente com ·warrant, o que justificou a inclusão do termo com a nova tradução ainda na edição da Veritas de 2011 (publicada, de fato, em 2012 ).5 Faço um mea culpa, pois confesso que ainda utilizei garantia por um tempo depois dessa interação com Plantinga. Eu tinha publicado minha dissertação de mestrado em 2009 e ainda alguns artigos depois disso, o que fez com que eu continuasse usando o termo apenas para padronizar meus trabalhos. Contudo, pesei que a padronização do termo aqui no Brasil seria mais valiosa do que a padronização dos meus trabalhos. Desse modo, fazendo uma pesquisa sobre a terminologia e atendo-nos à orientação de Plantinga no texto supracitado, achamos por bem abandonar de vez o termo garantia e adotar o termo acordado ainda em 2 0 11 , qual seja: aval. Ele também desfruta da vantagem de poder ser empregado nas variações usadas por Plantinga, como avalizar, avalizada. Desse modo, esperamos que o público brasileiro dê aval à escolha e desfrute da leitura deste magnífico livro. Edições Vida Nova, assim, apresenta a principal obra de Alvin Plantinga, o mais destacado filósofo cristão contemporâneo: Crença cristã avalizada. D r . B runo U chôa , doutor em filosofia, com conhecimento técnico na epistemología de Alvin Plantinga

5Veritas 56, n. 2 (2011).

Prefácio Este livro trata da aceitabilidade intelectual ou racional da crença cristã. Quando falo aqui de crença cristã, tenho em mente o que é comum aos grandes credos dos ramos principais da igreja cristã, aquilo que une Calvino e Tomás de Aquino, Lutero e Agostinho, Menno Simons e Karl Barth, Madre Teresa e São Máximo, o Confessor, Billy Graham e São Gregorio Palamas — a crença cristã clássica, como poderiamos chamá-la. A crença cristã clássica inclui, em primeiro lugar, a crença de que há uma pessoa que é Deus. Deus é uma pessoa: isto é, um ser com intelecto e vontade. Uma pessoa tem (ou pode ter) conhecimento e crença, mas também afetos, amores e ódios; uma pessoa, além disso, tem ou pode ter intenções, e pode agir para efetivá-las. Deus tem todas essas qualidades, algumas delas (conhecimento, poder e amor, por exemplo) em grau máximo. Deus é, portanto, onisciente e onipotente; é também perfeitamente bom e totalmente amoroso. Além disso, criou o universo, sustenta-o constantemente e guia-o providencialmente. Esse é o componente teísta da crença cristã. Mas há tam bém o componente unicamente cristão: que nós, seres humanos, estamos de algum modo afundados na rebelião e no pecado; que, portanto, precisamos de libertação e salvação; e que Deus providenciou essa libertação por meio do sofrimento sacrificial, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, que era um homem e, ao mesmo tempo, o segundo membro da Trindade, o divino e sem igual filho de Deus. Usarei a expressão “crença cristã” para designar esses dois componentes tomados conjuntamente. Sei, é claro, que outros autores podem usar essa expressão de um modo mais estrito ou mais amplo. Não precisamos discutir aqui sobre palavras: as crenças que mencionei são as que irei discutir, seja qual for o grau de exatidão do uso que proponho dar ao termo “cristão”. Reconheço também que há aproximações parciais à crença cristã entendida dessa forma, assim como casos limítrofes, crenças cuja classificação como “cristãs” não é clara e simples. Tudo isso é verdade, mas, tanto quanto consigo ver, nada disso compromete o meu projeto. Assim, a nossa questão é esta: acaso uma crença desse gênero é intelectualmente aceitável? Em particular, é intelectualmente aceitável para nós> hoje? Para pessoas instruídas e inteligentes que vivem no século 2 1 , com tudo o que aconteceu nos últimos quatro ou cinco séculos? Haverá quem admita que a crença cristã era aceitável e até apropriada para os nossos antepassados,1 pessoas que pouco sabiam de outras religiões, que nada sabiam da evolução e da nossa ascendência animal, que nada sabiam da física subatômica contemporânea nem do mundo estranho, fantasmagórico e inquietante 1

1E talvez até (poderíam acrescentar) para os nossos contemporâneos que vivem vidas isoladas em lugares culturaímente retrógrados — por exemplo, na área compreendida entre a costa leste e a costa oeste dos Estados Unidos.

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

por ela postulado, que não conheciam Nietzsche, M arx e Freud — esses grandes mestres da suspeita — nem haviam tido contato com a acidez da crítica histórico-bíblica moderna. Contudo, para nós, intelectuais contemporâneos esclarecidos (continuam os que defendem tal tese), as coisas são completamente diferentes; pois, para quem sabe dessas coisas (pessoas que alcançaram nosso impressionante nível intelectual), há algo de ingênuo e tolo, talvez de obstinado e irresponsável, ou até de vagamente patológico, em sustentar tal crença. Entretanto, não podemos ser um pouco mais precisos quanto à objeção? Qual é, exatamente, o problema? A resposta, penso, é que se alega haver dois problemas principais. O pensamento ocidental desde o Iluminismo do século 18 evidenciou pelo menos dois estilos distintos de objeção. Primeiro, existem as objeções defacto: objeções à veracidade. da crença cristã. Talvez a mais importante objeção defacto seja o argumento baseado no sofrimento e no mal. Essa objeção remonta a Demócrito no mundo antigo, mas também, na época contemporânea, é a mais eminente objeção defacto (cf. cap. 14). Tem sido muitas vezes formulada filosoficamente, mas recebeu ainda poderosas expressões na literatura (por exemplo, em The brothers Karamazov,2 de Dostoievski). A objeção é a seguinte: segundo a crença cristã, os seres humanos foram criados por um Deus sumamente poderoso e onisciente que nos ama o suficiente para nos ter enviado o seu filho, a segunda pessoa da Trindade divina, para sofrer e morrer em nosso nome; no entanto, dadas a quantidade e a diversidade imensas do sofrimento humano e do mal no nosso triste mundo, isso simplesmente não pode ser verdadeiro. O argumento do mal talvez seja a mais importante objeção defacto, mas não é a única. H á também as teses de que as principais doutrinas cristãs — a Trindade, a Encarnação e a Expiação, por exemplo — são incoerentes ou necessariamente falsas. Muitos autores defenderam que a doutrina cristã de três pessoas divinas com uma única natureza não pode ser formulada de modo coerente; muitos afirmaram não ser logicamente possível que um ser humano, Jesus de Nazaré, seja também a segunda pessoa da Trindade divina; e muitos consideraram impossível que o sofrimento de uma pessoa — ainda que divina — possa expiar os pecados de outra. Chega-se a afirmar que o avanço da ciência mostrou, de algum modo, que a esfera sobrenatural simplesmente não existe — não existe um Deus que nos tenha criado e que reja o nosso mundo, quanto mais uma trindade de pessoas divinas, uma das quais tornou-se humana, morreu e ressuscitou dos mortos, redimindo assim os seres humanos do pecado e do sofrimento. As objeções defacto são, portanto, muitas, e gozam de uma história longa e marcante no pensamento ocidental. Ainda mais disseminadas, contudo, têm sido as objeções dejure. Trata-se nesse caso de argumentos que concluem que a crença cristã, seja verdadeira, seja falsa, é de qualquer modo injustificável, ou não tem justificação racional, ou é irracional, ou não é intelectualmente respeitável, ou é contrária a uma moralidade saudável, ou não tem evidências suficientes a seu favor, ou é, de algum outro modo, inaceitável 2Edição em português: Os irmãos Karamazov (São Paulo: Editora 34,2008).

PREFÁCIO

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para a razão, não sendo adequada da perspectiva intelectual. Há, por exemplo, a tese freudiana de que a crença em Deus é na realidade o resultado da realização de um desejo; há a tese evidenciai de que não há evidências suficientes a favor da crença cristã; e há a tese pluralista de que há algo de arbitrário e até de arrogante em sustentar que a crença cristã é verdadeira e que é falso tudo o que com ela for incompatível. As objeções defacto e de jure pertencem a diferentes espécies, mas às vezes coincidem. Assim, há também uma objeção dejure, além da defacto, baseada no sofrimento e no mal: afirma-se muitas vezes que a existência do sofrimento e do mal no mundo torna irracional sustentar que a crença cristã seja, de fato, verdadeira. As objeções defacto são relativamente claras e inicialmente descomplicadas: a tese é que a crença cristã deve ser falsa (ou, pelo menos, improvável) em vista de uma coisa ou outra que supostamente sabemos. Muitas vezes, a tese é de que se trata de algo que sabemos hoje, algo que nossos antepassados supostamente não sabiam, como neste comentário amplamente citado de Rudolf Bultmann: “É impossível usar a luz elétrica e a telegrafia sem fios, e lançar mão das descobertas médicas e cirúrgicas modernas, e ao mesmo tempo acreditar no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento ”.3 As objeções dejure, por sua vez, apesar de serem talvez mais amplamente apresentadas que as suas homólogas defacto, são muito menos claras. A conclusão de uma objeção desse tipo é sempre a de que há algo de errado na crença cristã — algo que não a sua falsidade — ou então que há algo de errado no crente cristão: a crença ou o crente não têm justificação, ou são irracionais, ou racionalmente inaceitáveis, ou deixam a desejar de algum modo. Mas de que modo, exatamente? O que significa, na realidade, não ter justificação ou ser irracional? Certamente é ruim sustentar crenças que careçam de justificação racional: mas qual é exatamente o problema? Onde está o mal? Em geral, esse ponto não é esclarecido. Segundo os críticos evidencialistas, por exemplo, as evidências a favor da crença cristã são insuficientes: mas insuficientes para quéi E suponhamos que você acredite em algo a favor do qual as evidências são insuficientes: qual é, exatamente, o seu problema? Estará você por isso sujeito à culpa moral, ou isso mostra que você é de algum modo incompetente, ou que é extraordinariamente ignorante, ou que está sujeito a algum tipo de patologia, ou o quê? Segundo Freud e alguns dos seus seguidores, a crença cristã e teísta é um produto da realização de um desejo (wunscherfüllung) ou de algum outro mecanismo de projeção. Bem, suponha-se (ao contrário de como me parece que as coisas são) que isso seja verdadeiro: qual é exatamente o problema? Será que tal crença é provavelmente falsa? Será que, ao aceitar uma crença formada com base na realização de um desejo, você fez algo que mereça censura? Ou será você apenas digno de piedade? Qual é, precisamente, o problema? Responder a essas perguntas é muito mais difícil do que se podería pensar. Um dos projetos deste livro é procurar respondê-las: tentarei encontrar uma objeção de jure séria e viável à crença cristã, ou seja, tentarei encontrar uma objeção de jure que ‫נ‬Kerygma and myth (New York; Harper and Row, 1961), p. 5.

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seja uma objeção real e, ao mesmo tempo, se aplique pelo menos de modo plausível à crença cristã. Entretanto, há uma questão prévia: acaso a crença cristã, concebida como os cristãos a concebem, realmente existe? Alguns pensadores (citando muitas vezes a autoridade do grande filósofo Immanuel Kant, do século 18) argumentam que não poderiamos sequer conceber um ser como o Deus cristão, supostamente infinito e transcendente. Isso porque os nossos conceitos demasiado humanos não poderíam aplicar-se a tal ser; nossos conceitos só podem aplicar-se a seres finitos, seres que não sejam transcendentes como os cristãos concebem que Deus seja. Mas se for realmente verdadeiro que nossos conceitos não se podem aplicar a um ser infinito e transcendente, se não podemos sequer conceber tal ser, a conclusão é que tampouco temos crenças acerca desse ser. Na verdade, não podemos ter crenças acerca de tal ser. Se assim for, a crença cristã simplesmente não existe: os cristãos pensam que têm crenças acerca de um ser infinito e transcendente, mas na verdade estão enganados. Na primeira parte, “A questão existe?” (caps. 1 e 2 ), argumento que não há razão alguma para aceitar essa tese cética: o próprio Kant não fornece qualquer razão, e aqueles contemporâneos que apelam à sua autoridade certamente não se saem melhor. Essa conclusão limpa o terreno para a questão principal do livro: há alguma objeção dejure viável à crença cristã? Uma objeção que seja independente das objeções defacto e que não pressuponha que a crença cristã é falsa? Penso que há fundamentalmente três candidatas principais: que a crença cristã é injustificada, que é irracional e que não é avalizada. Essas candidatas serão introduzidas a seu tempo; por ora, note-se apenas que três das principais personagens desse drama são, portanto, a justificação, a racionalidade e o aval. Na segunda parte, “Qual é a questão?” (caps. 3 e 4), começo perguntando se uma crítica dejure viável pode ser desenvolvida em torno das idéias de justificação e racionalidade; e concluo que não. Volto-me então (cap. 5) para as objeções oferecidas por Freud, Marx e Nietzsche; e é aqui que encontramos finalmente uma candidata inicialmente promissora a objeção dejure. Essa crítica está nas imediações do aval. Para saber o que é o aval, note-se que nem todas as crenças verdadeiras constituem conhecimento. Você é um fã ardente dos Detroit Tigers; por mera fanfarronice e lealdade deslocada, acredita que eles irão ganhar o campeonato, apesar do fato de terem ficado em último lugar no ano anterior e de terem perdido o seu melhor jogador durante as férias. Acontece então que os Tigers ganham mesmo, inexplicavelmente, o campeonato, por causa de uma série improvável de incríveis acasos felizes. A sua crença de que ganhariam não era, obviamente, conhecimento; assemelhava-se mais a um palpite incrivelmente sortudo. Para poder ser considerada um caso de conhecimento, não basta apenas que a crença acabe por se revelar verdadeira; está claro que algo mais é necessário. Esse algo mais é o que chamo “aval”. Tal como vejo as coisas, se há objeções dejure genuínas à crença cristã, elas se encontram nas imediações do aval. Isso talvez não surpreenda, dado que este livro está na sequência de Warrant: the current debate [Aval: o debate atual] e Warrant and properfunction [Aval e funcionamento

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apropriado].4No primeiro desses livros, introduzí o termo “aval” (warrant) como designação daquela propriedade — ou melhor, quantidade — que, sendo suficiente, é o que faz a diferença entre o conhecimento e a mera crença verdadeira. Passei então a examinar as várias teorias contemporâneas do aval: qual é exatamente a propriedade que distingue o conhecimento da mera crença verdadeira? Examinei as teorias contemporâneas disponíveis: será a justificação? A coerência? A racionalidade? Ser resultado de faculdades ou processos confiáveis de produção de crenças? A resposta, argumentei, é nenhuma das anteriores; nenhuma dessas teorias está correta. Em Warrant and properfunction, passei a fornecer a resposta que me parecia correta: o aval está intimamente ligado ao fu n cionamento apropriado. Mais detalhadamente, uma crença só tem aval se for produzida por processos cognitivos ou faculdades que estejam funcionando apropriadamente, em um ambiente cognitivo propício a esse exercício dos poderes cognitivos, segundo um plano que vise com êxito à produção de crenças verdadeiras. (Para uma explicação desta fórmula talvez desconcertante, cf. cap. 5.) Segundo Freud e Marx, consequentemente, o verdadeiro problema da crença teísta (e, portanto, da crença cristã) é carecer de aval. Na terceira parte, “Crença cristã avalizada” (caps. 6— 10), enfrento essa objeção. No final das contas, essa objeção de jure depende, na realidade, de uma objeção defacto. Isso porque (segundo meu argumento), se a crença cristã for verdadeira, ela também será avalizada; afinal, a tese de que a crença teísta (e, logo, a cristã) não tem aval parte do pressuposto de que a crença cristã é falsa. Por isso, Freud e M arx não nos oferecem uma objeção de jure que seja independente da veracidade da crença cristã; a objeção deles pressupõe a sua falsidade. Prossigo (no cap. 6) oferecendo um modelo, o modelo Aquino/Calvino (A/C), de o que seria a crença teísta ser avalizada; e argumento que, se a crença teísta for de fato verdadeira, esse modelo, ou outro parecido, é realmente correto. Nos capítulos 7 a 10, estendo o modelo A /C para abranger a crença cristã propriamente dita (em oposição à crença teísta simpliciter) começando (no cap. 7) com uma explicação do lugar do pecado nesse modelo. Em seguida (nos caps. 8 e 9), proponho o modelo A /C estendido; segundo esse modelo, a crença cristã é avalizada porque atende às condições de aval especificadas em Warrant and properfunction, ou seja, a crença cristã é produzida por um processo cognitivo (a “instigação interna do Espírito Santo” [Tomás de Aquino] ou o “testemunho interno do Espírito Santo” [Calvino]) que funciona apropriadamente, em um ambiente epistêmico adequado, em harmonia com um plano que visa com êxito à verdade. O capítulo 8, “O modelo Aquino/Calvino estendido: revelado aos nossos espíritos”, estabelece o lado cognitivo desse processo. O processo, contudo, envolve tanto a razão como os afetos (ou seja, envolve tanto o intelecto como a vontade); e o capítulo 9, “O modelo testemunhai: selado nos nossos corações”, explica alguns dos 4Ambos pubbcados pela Oxford University Press (New York, 1993). Este livro constitui também, e em uma direção ligeiramente diferente, uma sequência de God and other minds (Ithaca: Cornell University Press, 1967) e de “Reason and belief in God”, in: A. Plantinga; N. Wolterstorff, orgs., Faith and rationality (Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1983).

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vínculos entre a razão e os afetos. O capítulo 10 conclui a terceira parte examinando várias objeções ao modelo, tanto efetivamente existentes como meramente possíveis; nenhuma é bem-sucedida. O que oficialmente defendo quanto ao modelo A /C estendido não é que ele seja verdadeiro, mas antes que é epistemicamente possível (ou seja, nada do que sabemos nos compromete com a sua falsidade); acrescento que, se a crença cristã for verdadeira, é muito provável que esse modelo, ou outro parecido, seja também verdadeiro. Se eu tiver razão, não há nenhuma objeção dejure viável independente das objeções de facto. E se isso for verdadeiro, a atitude expressa pela declaração “Não sei se a crença cristã é verdadeira (afinal, quem poderia saber uma coisa dessas?), mas sei que ela é irracional (ou intelectualmente injustificada, ou irrazoável, ou intelectualmente questionável)” — essa atitude, se eu tiver razão, é indefensável. Por fim, na quarta parte, “Anuladores?” (caps. 11— 14), confronto a seguinte tese: mesmo admitindo-se que a crença cristã possa emprincípio ser avalizada como o modelo sugere, pode=se alegar que, na prática, há vários anuladores do aval que a crença cristã poderia ter. Um anulador de uma crença A é outra crença B tal que a aceitação de B impediría a aceitação de A sem implicar irracionalidade. No nosso caso, esses supostos anuladores seriam crenças que se esperariam de um cristão informado; seriam também crenças tais que quem as aceitasse não poderia racionalmente continuar a aceitar firmemente a crença cristã. Depois de explorar a natureza dos anuladores, examino os principais candidatos: primeiro, os resultados supostamente arrasadores da crítica histórico-bíblica; segundo, um reconhecimento da diversidade e da importância das religiões incompatíveis com a crença cristã, junto com algumas teses pós-modernas correlatas; e, terceiro, um reconhecimento profundo dos fatos do sofrimento e do mal. Procuro provar que nenhum desses candidatos a anulador da crença cristã clássica é bem-sucedido. Este livro pode ser visto de pelo menos duas maneiras bastante diferentes. Por um lado, é um exercício de apologética e filosofia da religião, uma tentativa de demonstrar que várias objeções à crença cristã não são bem-sucedidas. As objeções dejure, argumento, ou são obviamente implausíveis — como as que se baseiam na tese de que a crença cristã não é ou não pode ser justificada — ou então pressupõem que a crença cristã não é verdadeira, como acontece nas que se baseiam na tese de que a crença cristã carece de racionalidade externa ou de aval. Logo, não há objeções de jure decentes que não dependam de objeções defacto. Tudo depende, na realidade, da veracidade, ou não, da crença cristã; mas isso refuta a ideia comum de que a crença cristã, verdadeira ou não, é intelectualmente inaceitável. Por outro lado, este livro é um exercício de filosofia cristã, à medida que tenta levar em consideração e responder questões filosóficas — questões do tipo que os filósofos levantam e respondem — de uma perspectiva cristã. Afirmo duas coisas acerca do modelo A /C estendido dos capítulos 8 e 9: esse modelo mostra que a crença cristã pode perfeitamente ter aval e como pode tê-la, refutando assim várias objeções dejure à crença cristã; entretanto, defendo também que ele fornece uma boa maneira de os cristãos pensarem sobre a epistemología da crença cristã, em particular sobre a questão de a crença cristã

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ser ou não avalizada. Nesse sentido, há dois projetos, ou dois argumentos simultâneos. O primeiro dirige-se a qualquer pessoa, crente ou não; pretende ser uma contribuição para uma discussão pública em curso sobre a epistemología da crença cristã; não apela a premissas ou pressupostos específicamente cristãos. Procurarei mostrar que, deste ponto de vista público, não há a menor razão para pensar que a crença cristã carece de justificação, racionalidade ou aval — pelo menos, não há qualquer razão que não pressuponha afalsidade da crença cristã. O outro projeto, contudo — o de propor, de uma perspectiva cristã, uma explicação epistemológica da crença cristã —, será especialmente interessante para os cristãos. Nesse caso, o projeto consiste em partir do pressuposto da veracidade da crença cristã e, dessa perspectiva, investigar a sua epistemología, perguntando se tal crença é avalizada e de que modo o é. Podemos ver este projeto como uma imagem simétrica do projeto filosófico naturalista, quando se pressupõe a veracidade do naturalismo e depois se tenta desenvolver uma epistemología que se harmonize bem com esse ponto de vista naturalista. Espero que os cristãos considerem atraente este segundo projeto; espero também que os outros possam estar interessados — como acontece com quem, embora não aceite o naturalismo filosófico, está interessado em saber que tipo de epistemología se harmoniza melhor com o naturalismo. O cerne de ambos os projetos — o projeto apologético e o projeto de filosofia cristã — é o modelo A/C estendido. Do primeiro ponto de vista, esse modelo é uma defesa da ideia de que a crença cristã é avalizada e um esforço para mostrar que, se a crença cristã for verdadeira, é muito provável que seja avalizada; do segundo ponto de vista, é uma recomendação quanto ao modo pelo qual os cristãos devem compreender e conceber o aval que, a seu ver, a crença cristã tem. Devo desculpas ao leitor pela extensão desmedida deste livro. Tudo o que posso dizer é que isso se deve à minha determinação de não perpetrar uma tetralogía: uma trilogia talvez já seja um indício de autogratificação ou deleite, mas uma tetralogía é indesculpável. (Calculo que um cínico podería questionar a diferença entre uma tetralogía e uma trilogia cujo último membro é duas vezes mais extenso que os anteriores.) De todo modo, nem todos os leitores precisam ler todas as páginas. Por exemplo, aqueles leitores que não se sintam tentados a pensar que os nossos conceitos não se poderíam aplicar a Deus podem seguramente saltar a primeira parte, e aqueles que querem ler apenas a parte central da linha narrativa podem limitar-se aos capítulos de 6 a 9. Além disso, apesar de o livro ser extenso, estou ciente de que ele abrange um território terrivelmente vasto e de que, em quase todos os capítulos (mas especialmente nos caps. 8 e 12 ), um trabalho realmente apropriado teria de entrar em muitos mais pormenores. A minha desculpa é que é importante ver não somente as árvores, mas também a floresta; Deus pode estar nos detalhes, mas está também no panorama abrangente da epistemología da crença cristã. Os leitores mais atentos poderão notar dois estilos de impressão: grande e pequeno. Os argumentos principais do livro estão declarados na impressão grande; a pequena acrescenta análises, argumentos subsidiários e outros aspectos que os especialistas podem

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considerar interessantes. Este livro não foi escrito especialmente para os especialistas em Filosofia. A minha esperança e objetivo é que ele seja inteligível e proveitoso para, por exemplo, estudantes de um curso de Filosofia ou Apologética, assim como para o mítico leitor geral com interesse no tema. Apesar de ser o terceiro membro dc uma trilogia, o livro foi concebido para ser relativamente independente de Warrant: the current debate e Warrant ajidproperfunction (e, consequentemente, traz às vezes breves descrições do que se encontra neles). De um modo ou de outro, a maior parte dos bvros é um empreendimento conjunto; todo autor tem mil dívidas com outras pessoas. (Isto é especialmente evidente naqueles autores — vem-nos à memória aqui uma longa linha de filósofos modernos e contemporâneos, começando talvez com Descartes — que aparentemente acreditam que se hvraram de tudo o que já fora pensado e escrito e tornaram a abordar seu tema a partir do nada.) Este livro não é exceção; é, em grande medida, um empreendimento cooperativo. E é assim pelas razões habituais, mas também por uma razão especial. Em vários momentos, limitei-me a invocar obras alheias — sobretudo as de William P. Alston e Nicholas WolterstoríF— para declarar um elemento particular do argumento. Isso acontece em especial quando nada tenho a acrescentar ao que eles já disseram sobre o tema em questão, mas também, às vezes, quando eu próprio tenho uma maneira ligeiramente diferente de encarar o tópico discutido. O bvro é também um empreendimento cooperativo em virtude dos conselhos, instruções e críticas que recebí de outros — um número embaraçosamente elevado de outros (estou plenamente ciente do fato de que, com tanta ajuda, deveria ter me saído melhor). Sou grato a todos aqueles que me ajudaram com os primeiros dois volumes e também a Jonathan Kvanvig e aos autores dos ensaios do seu Warrant in contemporary epistemology: essays in honor o f Plantinga's theory o f knowledge [Aval na epistemología contemporânea: ensaios em honra à teoria do conhecimento de Plantiga]. Entre aqueles a quem sou particularmente agradecido pela ajuda com este terceiro volume contam-se Karl Ameriks, Jim Beilby (que também gentilmente preparou o índice remissivo), David Burrell, Kelly Clark, John Cooper, Kevin Corcoran, Andrew Cortens, Fred Crosson, Paul Draper, Steve Evans, Ronald Feenstra, Fred Freddoso, Richard Gale, Lee Hardy, John Hare, Van Harvey, David Hunt, Hugh McCann, Greg Mellema, Ric Otte, Neal Plantinga, Bill Prior, Tapio Puolimatka, Philip Quinn, Del Ratzsch, Dan Rieger, Robert Roberts, Bill Rowe, John Sanders, Henry Schuurman, James Sennett, Ernie Sosa, Michael Sudduth, Richard Swinburne, Bill Talbott, James VanderKam, Bas van Fraassen, Calvin Van Reken, Rene van Woudenberg, Steve Wykstra e Henry Zwaanstra. (Omiti certamente pessoas que pertencem a esta lista; a elas, apresento simultaneamente a minha gratidão e as minhas desculpas.) William Alston, Dewey Hoitenga, Eleonore Stump e Nicholas WolterstoríF leram e comentaram todo o manuscrito; a eles sou especialmente grato. Uma das minhas dívidas mais significativas é para com um núcleo rotativo de estudantes de pós-graduação de Notre Dame que, como grupo, e ao longo de vários anos, leram todo o manuscrito e submeteram-no ao género de crítica penetrante e detalhada

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que só pós-graduandos animados e beligerantes conseguem pôr em ação. Esse grupo inclui, entre outros, Mike Bergmann, Tom Crisp, Pat Kain, Andy Koehl, Kevin Meeker, Trenton Merricks, Marie Pannier, Mike Rea, Ray Van Arragon e David VanderLaan. Estou igualmente em dívida para com os membros do seminário de pós-graduação de Nicholas Wolterstorff em Yale, no outono de 1997 (especialmente Andrews Chignell e Dole), que (junto com o seu mentor) leram o manuscrito e forneceram comentários esclarecedores e valiosos. E uma vez mais agradeço a Martha Detlefsen, cujos esforços corajosos para manter a mim e a este manuscrito adequadamente organizados foram engenhosos e incansáveis. Estes três volumes nasceram como Palestras Gifford na Universidade de Aberdeen, em 1986 e 1987, e como Palestras Wilde em Oxford, em 1988. Agradeço aos dois conjuntos de responsáveis pelos convites; sou igualmente grato pela hospitalidade desfrutada pela minha esposa e por mim enquanto visitamos Aberdeen e Oxford. Agradeço também à Universidade de Notre Dame pelo ano sabático que me concedeu em 1995 e 1996 e à National Endowment for the Humanities por uma bolsa nesse mesmo ano. Alguns trechos deste volume já viram a luz da publicação: o capítulo 13 contém algumas páginas de “Pluralism: a defense of religious exclusivism”, em The rationality o f belief and the plurality o f faith [A racionalidade da crença e a pluralidade da fé], editado por Thomas Señor (Ithaca: Cornell University Press, 1995), e o capítulo 14 contém alguns parágrafos de “O n being evidentially challenged” [Sobre ser desafiado de modo evidente], em The evidential argumentfrom evil [O argumento probatorio para o mal], editado por Daniel Howard-Snyder (Bloomington: Indiana University Press, 1996). Por fim, uma menção especial a William P. Alston. Bill foi meu professor quando comecei os estudos de pós-graduação em 1954 (se fui incapaz de compreender Process and reality [Processo e realidade] de Alfred Whitehead, o tema desse primeiro seminário, a culpa foi minha [ou talvez de Whitehead], e não de Bill). Aprendí muito com ele naquela ocasião e muito mais desde então. A generosidade com que leu a totalidade deste manuscrito foi característica, assim como a argúcia e a perspicácia dos seus comentários. As contribuições de Alston para a filosofia contemporânea e para a filosofia da religião (seu papel de destaque na fundação da Sociedade de Filósofos Cristãos e da revista Faith and Philosophy [Fé e Filosofia], suas obras esplêndidas em epistemología e filosofia da religião) são, é claro, bem conhecidas; não é preciso enumerá-las aqui (e, de qualquer modo, elas são quase incontáveis). E a ele que dedico este livro. A.P., Notre Dame, Indiana Setembro de 1998

PRIMEIRA PARTE A QUESTÃO EXISTE?

Kant Com quem me comparareis? A quem me igualareis e me comparareis, para que sejamos comparados? (Is 46.5)

I. O problema O nosso interesse, neste livro, é a questão dejurei1 a aceitação da crença cristã, tal como esta foi delineada no prefácio, será racional, razoável, justificável, avalizada? O u haverá algo de epistemicamente inaceitável em fazê-lo, algo de tolo, ou ingênuo, ou incauto, ou estúpido, ou injustificado, ou irrazoável, ou epistemicamente deplorável de outro modo qualquer? Mas há uma questão prévia: será que a própria ideia da crença cristã é coerente? A crença cristã é algo cuja existência é possível? Por outro lado, por que isso seria uma questão? Não é óbvio que muitas pessoas têm precisamente essas crenças mencionadas no prefácio? Eis o problema: aceitar a crença cristã, afirmo, é acreditar que há uma pessoa todo-poderosa, que tudo sabe e é completamente boa (uma pessoa sem corpo), que criou a nós e a nosso mundo, que nos ama e se dispôs a enviar o seu filho ao mundo para sofrer, ser humilhado e morrer a fim de nos redimir. E acreditar também, é claro, que não há mais de um ser com essas propriedades. E a crença cristã inclui não apenas a ideia de que h á tal ser, mas também que somos capazes de nos dirigir a ele em oração, referir a ele, pensar e falar acerca dele e atribuir-lhe propriedades. Temos algum tipo de acesso cognitivo a ele e uma apreensão cognitiva dele. Podemos nos referir a ele, por exemplo, como a pessoa todo-poderosa e que tudo sabe, que criou e conserva o mundo, e podemos atribuir-lhe propriedades como ser todo-poderoso, ser onisciente e haver criado 0 mundo. Podemos usar uma descrição clara e distinta como essa para nos referir a este ser, para selecioná-lo, para identificá-lo como objeto de pensamento; e podemos dar um nome próprio ao ser que assim selecionamos. Por exemplo, podemos usar o termo “Deus” para nomeá-lo. Desse modo, os cristãos geralmente têm por certo que é possível nos referir a Deus por meio de descrições como “o criador do Universo, onipotente e onisciente”; e que é possível, além do mais, atribuir propriedades (sabedoria, bondade) ao ente assim referido. Claro que essa descrição só poderá se referir efetivamente a algo se realmente houver um ser onipotente e onisciente que tenha criado o Universo. Além disso, para que eu possa1

1Sobre a diferença entre as questões dejure e defacto, veja Prefácio, p. 12.

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pensar acerca de Deus e atribuir-lhe propriedades, não é necessário somente que tal ser exista, mas também que os meus conceitos se apliquem a ele. Caso contrário, não estou autorizado a afirmar qualquer das proposições mencionadas anteriormente, a acreditar nelas ou até a formulá-las mentalmente — se é que elas realmente existem. Ora, os cristãos também têm por certo que Deus é infinito, transcendente e absoluto (seja como for que entendamos tais termos). E é aqui que o suposto problema ocorre. Parece que muitos teólogos, e outras pessoas, pensam que há uma genuína dificuldade na ideia de que os nossos conceitos poderíam aplicar-se a Deus — isto é, poderíam aplicar-se a um ser dotado das propriedades de ser infinito, transcendente e absoluto. A ideia é que, se houvesse um ser assim, não poderiamos falar dele, não poderiamos pensar sobre ele, não poderiamos atribuir-lhe propriedades. Se isso for verdadeiro, contudo, a crença cristã, pelo menos como os cristãos a entendem, será a rigor impossível, pois os cristãos acreditam que há um ser infinito, transcendente, absoluto, acerca do qual eles têm crenças; mas se os nossos conceitos não se podem aplicar a um ser desse tipo, então não pode haver crenças acerca de um ser desse tipo. Vê-se essa ideia muitas vezes publicada e ela é ainda mais presente na tradição oral. Num espírito de ecumenismo interdisciplinar, portanto, quero começar pelo exame dessa questão. Considere-se, por exemplo, o teólogo Gordon Kaufman: O problema central do discurso teológico, que não é partilhado por nenhum outro “jogo de linguagem”, é o significado do termo “Deus”. “Deus” suscita problemas especiais de significado porque é um substantivo que, por definição, refere-se a uma realidade que transcende a experiência e que, nesse sentido, não pode ser situada dentro dela.2 Em particular, parece largamente aceito entre os teólogos que Kant mostrou que a referência a tal ser (mesmo que exista) ou o pensamento acerca dele são impossíveis ou, pelo menos, profundamente problemáticos;3 no mínimo, seriam muito mais problemáticos do que a ideia de que podemos nos referir a nós mesmos e a outras pessoas, a árvores e montanhas, planetas e estrelas, e assim por diante, e de que podemos pensar acerca dessas coisas. Os teólogos que pensam ou suspeitam que Kant demonstrou tal coisa não desenvolvem habitualmente essa ideia em detalhes;4 em geral, limitam-se a acenar ritualmente na sua direção. Não explicam como pensam que tais coisas foram demonstradas ou quais são os argumentos que as estabelecem; talvez considerem (muito apropriadamente) que essa tarefa cabe aos filósofos. Alguns desses teólogos passam então 2God the problem (Cambridge: Harvard University Press, 1972), p. 8. 3Toda a tradição medieval de teologia negativa também considera problemática a referência a Deus. A diferença é que os medievais tinham por certo que, evidentemente,podemos nos referir a Deus; o problema era explicar como isso era possível. Para os contemporâneos que tenho em mente, contudo, as dificuldades (aparentes ou reais) levam-nos a duvidar que possamos, de fato, referir-nos a um ser absoluto e transcendente e falar a respeito dele. 4Como veremos no cap. 2, contudo, John Hick é uma exceção.

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a afirmar que todo linguajar que aparentemente se refere a um Deus transcendente não é de modo algum o que parece; serve, na verdade, a um propósito muitíssimo diferente. Outros afirmam que esse linguajar, tal como se apresenta, não serve a nenhum propósito útil; o que precisamos fazer é encontrar um propósito proveitoso para ele.Talvez possa ser usado, de algum modo, para promover o florescimento humano e uma atitude humana ,5 ou a tolerância religiosa,6ou urna praxis libertadora, ou os direitos da mulher,7 ou a luta contra a opressão. Mas o importante para o que agora tenho em mente não é explorar os modos pelos quais a linguagem religiosa poderia ser reconstruída ou reestruturada quando nos damos conta de que (a nosso ver) ela não pode funcionar como os crentes comuns pensam que funciona; quero, em vez disso, examinar a tese prévia de que ela efetivamente não pode funcionar como os crentes comuns pressupõem que funciona. Haverá, de fato, algo de especialmente problemático em nos referirmos a Deus ou pensarmos a respeito dele? Acaso Kant realmente demonstrou que, se a pessoa de Deus realmente existe, não podemos nos referir a ela nem pensar acerca dela? Ou, se “demonstrou” for uma palavra demasiado forte, deu-nos ele uma razão poderosa ou pelo menos plausível para acreditar que os nossos conceitos não se poderíam aplicar a Deus, se é que tal ser existe? Ou ainda, se o próprio Kant não o fez, acaso alguns dos seus seguidores na época atual — Gordon Kaufman, por exemplo, ou John Hick — nos fornece uma razão para pensar que essa tese é realmente verdadeira? Por fim, será que a tese em questão — que os nossos conceitos não se aplicam a Deus — é coerente? (Ou melhor, haverá uma tese coerente em algum lugar nas imediações, dado que há várias teses diferentes escondidas nessa região da filosofia?) Inicialmente, a resposta parece ser “não”; quem afirma essa tese parece estabelecer preliminarmente certo objeto para predicação — Deus — e depois declarar que os nossos conceitos não se aplicam a tal ser. Mas se isso for verdadeiro, é de se presumir que pelo menos um dos nossos conceitos — o de que esse ser é tal de modo que nossos conceitos não se lhe aplicam — aplicase realmente a ele. O u quem tenta declarar essa tese é bem-sucedido ao fazê-la, ou não. Se não é bem-sucedido, a questão toda nem sequer se apresenta; se o é, contudo, parece estar predicando uma propriedade a um ser a que se referiu, caso em que pelo menos alguns dos nossos conceitos se lhe aplicam, ao contrário da tese defendida. Assim, se ele for bem-sucedido ao afirmar a sua tese, torna a tese falsa. Note-se quão difícil é, inicialmente, formular a tese em questão: a tese de que, se existe um ser com as propriedades que os cristãos atribuem a Deus, os nossos conceitos não se lhe aplicam. Considere-se a proposição

5Como cm Gordon Kaufman: veja cap. 2, p. 57. 6Como em John Hiele veja cap. 2, p. 57. 7Veja Sallic McFaguc, Models o f Cod (Philadelphia: Fortress 1987).

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(1) Se houvesse um ser infinito, transcendente e absoluto, os nossos conceitos não se lhe aplicariam. Mas agora suponhamos que (1 ) seja verdadeira. A ideia, ao que parece, é que temos pelo menos alguma apreensão das propriedades de infinitude, transcendência e absoluto (caso contrário, não conseguiriamos compreender a frase ou apreender a proposição que esta exprime). Um ser infinito é, podemos dizer, um ser ilimitado — ilimitado no que se refere a certas propriedades. Entre estas propriedades poderíam estar o poder, o conhecimento, a bondade, o amor e outras semelhantes. (Um ser é ilimitado com respeito ao poder e ao conhecimento [proposicional], por exemplo, se há um grau máximo de poder e conhecimento e o ser em questão goza dessas propriedades nesse grau máximo. E difícil dizer precisamente qual é o grau máximo dessas propriedades; com respeito ao conhecimento, poderiamos começar por dizer que um ser exibe esse atributo em grau máximo se conhece todas as proposições verdadeiras e não acredita em nenhuma proposição falsa.) Talvez possamos também explicar o que é ser um ser transcendente, tal ser transcende o universo criado; e um ser transcende o universo criado se não é idêntico a qualquer ser nesse universo (ou seja, se não for criado) e se de nada depende para que exista. Assim, conseguimos conceber as idéias de transcendência e infinitude (e se não conseguíssemos, (1 ) não faria sentido de qualquer modo). A ideia subjacente a (1 ) é que, se houvesse um tal ser (ou seja, se houvesse um ser infinito e transcendente), nenhum dos nossos conceitos se lhe poderia aplicar. Em particular, pois, os conceitos de infinitude e transcendência não se lhe poderíam aplicar. Mas como seria isso possível? Como pode acontecer que exista um ser infinito e transcendente (ou seja, um ser a que os nossos conceitos de infinitude e transcendência se aplicam), mas que, apesar disso, os conceitos infinitude e transcendência não se lhe apliquem? Tratar-se-á da ideia, talvez, de que tais conceitos são impossíveis, incoerentes, como o conceito de um quadrado redondo? De que são conceitos que evidentemente, a priori, não se poderíam aplicar a coisa alguma, que não poderia haver algo a que se aplicassem?8Isso tornaria (1 ) trivialmente verdadeira, pelo menos se for possível que uma condicional com um antecedente impossível seja verdadeira. E, obviamente, tornaria também verdadeira a seguinte proposição (1*): ( 1 *) Se houvesse um ser infinito, transcendente e absoluto, os nossos conceitos se lhe aplicariam. Assim, é de presumir que não é essa a ideia em causa. Qual é então a ideia? Penso que o melhor que podemos fazer ao tentar formular essa perspectiva coerentemente é dizer com John Hick (veja a seguir, p. 68ss.) que há um ser ao qual nenhum dos nossos conceitos positivos, nãoformais se aplica (um ser que não tem qualquer das propriedades 8Assim, alguns filósofos afirmaram que a noção de onipotência é incoerente; outros dispensaram o mesmo cumprimento à noção de onisciência (veja Patrick Grim; Alvin Plantinga, “Truth, omniscience, and Cantonan arguments: an exchange”, Philosophical Studies 70 [Agosto 1993]); outros ainda defenderam a mesma ideia com respeito à noção de que Deus é uma pessoa sem corpo.

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positivas, não formais, das quais temos conceitos) e que este ser é, de algum modo, aquele com o qual os cristãos e outros estão em contato na prática religiosa. Isso talvez seja o melhor que podemos fazer; defenderei (p. 84ss.), contudo, a ideia de que essa tese não basta; enfrenta dificuldades sérias e, na verdade, fatais. Assim, o que se afirma ou se dá a entender é que Kant nos mostrou, de algum modo, que há problemas genuínos, talvez insuperáveis, na ideia de que exista um ser como o que é reconhecido no cristianismo tradicional, ao qual podemos nos referir e ao qual os nossos conceitos se aplicam. Esta é uma questão de considerável importância para o nosso projeto, pois, se essa tese estiver correta, a questão que me proponho discutir realmente não existe; nesse caso, os enunciados que os cristãos proferem para exprimir (pensam eles) as suas crenças não expressam realmente as proposições ou pensamentos que eles pensam que expressam. Na verdade, talvez não expressem nenhuma proposição ou pensamento, sendo antes disparates disfarçados: parece que exprimem proposições, mas de fato não o fazem. Antes de nos voltarmos explícitamente para Kant, contudo, vale a pena relembrar que a tese em questão não é de modo algum nova no contexto histórico atual. A partir da década de 1930, os positivistas lógicos gostavam de insistir em que os enunciados que os cristãos tipicamente proferem — “Deus nos ama” ou “O Universo foi criado por Deus” ou “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo” —, tal como são comumente usados, não dizem seja o que for; não exprimem proposição alguma; são apenas disparates disfarçados.9Parece que dizem algo, e os cristãos, entre outros,pensam que dizem algo; de fato, contudo, eles não exprimem em absouto proposição alguma, tal como acontece em expressões obviamente sem sentido como “Era briluz; as lesmolisas touvas / roldavam e reviam nos gramilvos”.10*Os positivistas apelavam para o intimidante “Critério Verificacionista do Significado”, segundo o qual um enunciado só terá sentido, terá significado literal ou será cognitivamente dotado de significado se for “empiricamente verificável” (ou falsificável) — ou seja, apenas se a sua veracidade (ou falsidade) puder ser estabelecida por métodos parecidos com os das ciências naturais e empíricas. A partir da década de 1940, aproximadamente, as principais questões levantadas e a que davam resposta os filósofos da religião no mundo de língua inglesa eram se a referência a Deus é possível e se os enunciados tipicamente proferidos pelos cristãos e outros crentes em Deus fazem realmente sentido, ou se são, ao contrário, destituídos de sentido, cognitivamente vazios de significado.11 Claro que não se segue que tais enunciados sem significado sejam completamente inúteis; talvez possam cumprir outra função. Rudolf Carnap, por exemplo, perguntou-se se os enunciados sem significado da metafísica e da teologia não

9Veja, p. ex., A. J. Ayer, Language, truth and logic (New York: Dover Publications, 1946), p. 115ss. [edição em português: Linguagem, verdade e lógica (Barcarena: Presença, 1991)]. 10Do poema “Jabbcrwocky”, de Lewis Carrol, na tradução para o português de Augusto de Campos. (N. do E.) 1‫נ‬Veja, p. ex., Antony Flew; Alasdair MacIntyre, orgs., New essays inphilosophical theology (London: SCM, 1955).

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poderíam de fato constituir uma forma de música}1 (Não se sabe se ele esperava que tais coisas suplantassem Mozart ou Bach, ou mesmo Wagner. Quanto a mim, duvido que a metafísica um dia venha a substituir Mozart, mas talvez a possamos ver como uma forma peculiarmente vanguardista de rock.) Hoje em dia, o positivismo lógico bateu em retirada para a obscuridade que tão abundantemente merece.12 13 Persiste ainda, contudo, a impressão largamente disseminada de que a referência a Deus é problemática; é tempo de nos voltarmos explícitamente para Kant, a fonte principal dessa ideia. Acaso sua obra é preocupante para quem se propõe a pensar em um ser descrito da maneira que os cristãos descrevem Deus — um ser pessoal que é transcendente e infinito — , ou a ele se referir, orar ou prestar culto?

II. Kant Immanuel Kant foi quase um titã entre os filósofos e exerceu uma influência absoluta‫״‬ mente imensa em toda a filosofia e teologia subsequentes. Isto se deve sem dúvida à sua enorme perspicácia e à pura força da sua filosofia; deve-se também, talvez, às graves dificuldades hermenêuticas que acompanham o estudo 'de sua obra. O filósofo inglês David Hume escreve com certa clareza aparente que nos decepciona quando desaparece ao passar por exame mais rigoroso. Com Kant, há boas e más notícias: a boa é que não sofremos essa decepção; a má é que isso ocorre porque não há qualquer clareza aparente desde o início. Não podemos recorrer a uma interpretação estabelecida de Kant para ver se ele demonstrou ou mesmo se sustentou que os nossos conceitos não se aplicam a Deus, pois não existe nenhuma interpretação estabelecida. A primeira coisa a notar, contudo, é que Kant escreve muitas vezes como se pudéssemos perfeitamente nos referir a Deus. Na Critique of pure reason e em outras obras {Religion within the boundary o f pure reason\ Lectures on philosophical theology), Kant parece referir-se regularmente a Deus e considera, sem sombra de dúvida, que está fazendo precisamente isso. Mesmo na Critique o f pure reason, a sua obra de maior influência nesta direção cética, Kant parece muitas vezes dar a entender que podemos realmente nos referir a Deus e refletir acerca dele. Parece sugerir que o problema não é que não 12Talvez a metafísica possa ter também outras funções estéticas, como acontece com a obra do próprio Carnap. Apesar de, pelo que sei, ninguém ter jamais usado os escritos de Carnap como música (ou nem sequer os musicado), em 1976 o Museu de Arte Moderna de Oxford exibiu uma página do livro Logical syntax of language, de Carnap, ampliada cerca de vinte vezes e afixada em uma parede. Certamente um fragmento de um texto de metafísica poderia servirao-mesmo propósito. 13Sobre as traumáticas vicissitudes do Critério Verificacionista, veja Carl Hempel, “Problems and changes in the empiricist criterion o f meaning”, in: Leonard Linsky, org., Semantics and the philosophy of language (Urbana: University of Illinois Press, 1952), e o meu God and other minds (Ithaca: Cornell University Press, 1967), cap. 7. Algo semelhante a esse critério permanece, não apenas entre alguns teólogos que se propõem a reconstruir a linguagem religiosa de modo que ela não se refira a Deus, mas também no fideísmo wittgensteiniano de D. Z. Phillips, entre outros, que constitui uma espécie de prolongamento do positivismo por outros meios. Apesar de alguns desses trabalhos serem eminentemente dignos de discussão, não os debatarei aqui, remetendo antes o leitor para o perspicaz artigo de Nicholas Wolterstorff, “Philosophy of religion after foundationalism I: Wittgensteinian fideism" (ainda não publicado), ao qual pouco tenho a acrescentar.

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possamos pensar acerca de Deus, mas que não podemos alcançar um conhecimento especulativo ou metafísico de Deus. O seu objetivo na Critique, segundo ele próprio, é conter o conhecimento para dar lugar à fé.14 Presume-se que a fé em questão seja semelhante à expressa na Critique o f practical reason e em outras obras; envolvería certamente a referência a Deus e a consideração de que sua existência e atributos são postulados da razão prática, pressupostos da realidade e seriedade da vida moral. Na verdade, alguns dos autores que o entendem desse modo pensam que Kant era um teísta, sustentando que as coisas em si são apenas as coisas tal como são conhecidas por Deus, ou seja, as coisas tal como são realmente.15 Claro está que, se esse modo de pensar sobre Kant estiver correto, não resta dúvida de que, do ponto de vista dele, é perfeitamente possível nos referirmos a Deus; se isso é possível, é também possível atribuir-lhe propriedades e qualidades; e se isso é possível, conclui-se que os nossos conceitos se lhe aplicam de fato. Por exemplo, os conceitos negativos não estar no espaço nem no tempo e não depender dos seres humanos para existir lhe seriam aplicáveis. Além disso, nesse entendimento de Kant, conceitos positivos como ter conhecimento e terpoder aplicar-se-iam a Deus, assim como ter criado 0 mundo. Desse ponto de vista, seria um erro supor que Kant mostrou que os nossos con‫״‬ ceitos não se podem aplicar a Deus — a menos que estejamos preparados para sustentar que Kant o demonstrou sem perceber que o fazia e, por isso, considerava erroneamente estar se referindo a algo a que ele próprio mostrara não ser possível se referir. Isso é, evidentemente, uma possibilidade, apesar de pressupor, da parte do filósofo, um nível extraordinariamente elevado de distração. Apesar disso, a ideia de que, segundo Kant, os nossos conceitos não se poderíam aplicar a Deus não é uma mera invenção, não é uma incompreensão irrefletida — ou, mais exatamente, se é uma incompreensão, tem uma base considerável no texto kantiano. Há muitos elementos na Critique o f pure reason que sugerem essa ideia ou outra parecida; no mínimo, há muitos elementos que sugerem que as categorias do entendimento, que são conceitos de primeira importância, não se aplicam às coisas em si (e, por isso, não se aplicam a Deus). Por exemplo: Se, consequentemente, tentarmos aplicar as categorias a objetos que não são vistos como aparências, teremos de postular uma intuição além da sensível, e o objeto seria assim um númeno no sentidopositivo. Contudo, uma vez que tal tipo de intuição, a intuição intelectual, não faz parte em absoluto da nossa faculdade cognitiva, segue-se que o emprego das categorias nunca pode ir além dos objetos da experiência (A353, B309, grifo de Kant). Nessa passagem, como em outras, Kant sugere que as categorias do entendimento não se aplicam fora do domínio da aparência, o mundo dos fenômenos (“sugere”, digo 14Critique of pure reason, tradução para o inglês de Norman Kemp Smith (New York: St. Martin’s Press, 1965), Prefácio à segunda edição, Bxxx, p. 29: “Considerei consequentemente necessário negar o conhecimento para dar lugar zfe" (grifos de Kant) [edição em português: Crítica da razão pura (Petrópolis: Vozes, 2012)]. 15Veja Merold Westphal,“In defense o f the thing in itself”, Kant-sludien 59/1 (1968), p. 118ss.

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eu, pois essas passagens, como todas as outras, deixam a porta mais que entreaberta para possíveis ambiguidades). Mas se essas categorias não se aplicam ao númeno, à Dinge an sich, talvez o mesmo ocorra com o resto dos nossos conceitos. E se os nossos conceitos não têm aplicação para além do mundo da experiência, do mundo da aparência, então não se aplicam a Deus, o qual, é claro, seria um númeno in excelsis. Assim, a tese seria que Kant demonstra ou crê (pelo menos na Critique o f pure reason) que os nossos conceitos não se aplicam a Deus, caso em que não podemos nos referir a ele ou pensar a respeito dele.

A. Dois mundos ou um? Como defender esse entendimento de Kant? Obstáculos hermenêuticos de proporções formidáveis surgem diante de nossos olhos. Primeiro, como conceber a distinção entre o númeno e o fenômeno, as coisas em si e as coisas para nós? Infelizmente, os comentadores não são unânimes. H á um imenso divisor de águas interpretativo, uma verdadeira muralha, entre duas interpretações ou imagens básicas fundamentalmente divergentes do que Kant tinha em mente, cada uma delas com muitas variações no que respeita aos detalhes. Do ponto de vista da primeira imagem, mais tradicional, Kant sustentava que há dois domínios de objetos, dois tipos fundamentalmente diferentes de coisas. Tratase dos fenômenos, por um lado, e dos númenos, por outro; as coisas em si e as coisas fü r uns. (Estas duas distinções não coincidem exatamente em Kant; os modos pelos quais não coincidem não são pertinentes à nossa investigação atual.) Por um lado, desse ponto de vista, há mesas e cadeiras, cavalos e vacas, estrelas e planetas, o carvalho do nosso jardim, tal como comumente pensamos. Essas coisas existem realmente e estão realmente onde parecem estar. São fenomenalmente reais, constituintes reais do mundo da experiência. Mas são também transcendentalmente ideais, isto é, não fazem parte do mundo tal como este é independentemente da experiência humana. Por outro lado, há os númenos, que são transcendentalmente reais. Estes são as coisas tal como são em si; a sua existência ou caráter não depende dos seres humanos nem da experiência humana. Esses dois domínios são separados: nenhum dos objetos fenomenais é um númeno e nenhum dos objetos numênicos é um fenômeno. Eis um par de passagens que sustentam esta interpretação: Ora, precisamos ter em mente que o conceito de aparências, limitado pela Estética Transcendental, já por si estabelece a realidade objetiva dos númenos e justifica a divisão dos objetos em fenômenos e númenos e, portanto, do mundo em um mundo dos sentidos e em um mundo do entendimento (mundus sensibilis et intelligibilis); na verdade, justífica essa divisão de um modo tal que a distinção não se refere apenas à forma lógica do nosso conhecimento de uma mesma coisa, segundo seja ela distinta ou indistinta, mas à diferença no modo pelo qual os dois mundos são dados por primeiro ao nosso conhecimento; e em conformidade com esta diferença, à maneira que em si mesmos são genericamente distintos entre si (A249, grifos de Kant).

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As aparências são os únicos objetos que nos podem ser dados imediatamente, e aquilo que neles se relaciona imediatamente com o objeto denomina-se intuição. As aparências não são coisas em si mesmas; são apenas representações, que por sua vez têm o seu objeto — um objeto que não pode ser intuído por nós, e que pode, consequentemente, ser denominado o objeto = x não empírico, ou seja, transcendental (A109). Os fenômenos são objetos, objetos que existem no tempo e no espaço. Os númenos, ao contrário, não são temporais nem espaciais; o espaço e o tempo são formas da nossa intuição e não realidades que caracterizem as coisas em si. Os númenos e os fenômenos são, consequentemente, distintos. Além disso, só temos experiência dos fenômenos e não dos númenos: Provamos suficientemente na Estética Transcendental que tudo o que é intuído no espaço ou no tempo, e consequentemente todos os objetos de qualquer experiência possível para nós, nada são senão aparências, isto é, meras representações, Mais ainda, os fenômenos, o mundo das estrelas e planetas, árvores e animais, dependem de nós para existir. A passagem anterior continua: ... as quais, do modo que são representadas, como seres com extensão, ou como uma série de alternâncias, não têm existência independente fora dos nossos pensamentos (A491, B519). Em outra passagem: Que a natureza deva comportar-se segundo a nossa base subjetiva da apercepção, e que deva na verdade depender desta com respeito à sua conformidade à lei, soa muito estranho e absurdo. Mas quando consideramos que essa natureza não é uma coisa em si, mas apenas um agregado de aparências, outras tantas representações da mente... (A114). Ora, afirmar deste modo que todas estas aparências, e consequentemente todos os objetos com os quais nos ocupamos, estão em mim, isto é, são determinações do meu eu idêntico, é apenas outra maneira de dizer que eles devem ter uma unidade completa em uma mesma apercepção (A129). Esse é o modo mais tradicional de entender Kant, o modo que Kant foi entendido pelos seus grandes sucessores. Exprimindo-o sintéticamente e sem nenhum detalhamento, há dois domínios de objetos; a nossa experiência refere-se a apenas um domínio, o domínio dos fenômenos, que em si depende de nós para existir; se deixássemos de existir, o mesmo aconteceria com eles. Isso porque o domínio fenomenal é de algum modo construído por nós a partir dos dados, do material cru da experiência. O domínio numênico, contudo, não depende de nós desse modo, mas é também tal que não temos nenhuma intuição dele, nenhuma experiência direta. Por fim, há uma conexão entre os

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dois mundos, à medida que uma espécie de transação causai entre os mímenos e o ego transcendental (que é em si um númeno) produz em nós os dados a partir dos quais construímos o mundo fenomenal. Denomine-se essa maneira de ver as coisas a imagem de dois mundos: esta é a interpretação dominante. Contudo, sempre houve outra interpretação básica de Kant, que mais recentemente se tornou talvez majoritária. Segundo essa imagem, no fim das contas não há realmente dois mundos: um mundo de fenômenos e, subjacente a este, um mundo de mímenos. H á apenas um mundo e um tipo de objeto, mas há (pelo menos) duas maneiras de pensar e considerar esse mundo único. Todos os objetos são, na realidade, numênicos, e falar dos fenômenos é apenas uma maneira pitoresca de falar do modo pelo qual os númenos, as únicas coisas que existem, aparecem para nós. A distinção entre fenômenos e númenos não ocorre entre dois tipos de objetos, mas, antes, entre como as coisas são em si e como aparecem a nós. Assim, veja-se, por exemplo, Graham Bird: Tais expressões [p. ex., “objetos transcendentais e objetos empíricos”] não devem ser entendidas como referências a dois tipos de entidade, mas, antes, como duas maneiras diferentes de falar sobre uma e a mesma coisa.16 E Michael Devitt: E tentador equacionar uma aparência com o dado dos sentidos dos fundacionalistas, tomando a coisa-em‫־‬si como uma causa externa incognos cível dessa entidade mental. O texto de Kant muitas vezes estimula essa tentação. Contudo, os especialistas parecem concordar em geral — e convenceram-me — que essa interpretação de dois mundos está errada. O que Kant tem em mente é a seguinte perspectiva de um só mundo, influente, mas misteriosa. Uma Aparência não é um dado mental dos sentidos, mas antes um objeto externo tal como 0 conhecemos. Em contraposição, a coisa-em‫־‬si é o objeto independente do nosso conhecimento dele; não é um segundo objeto e não é a causa da aparência, na verdade não poderia causá-la...17 Apesar de essa segunda imagem ser talvez atualmente a opinião majoritária, parece um pouco difícil conciliá-la com a perspectiva do próprio Kant de que o seu Kant's theory of knowledge (New York; Humanities Press, 1962), p. 37. 17Realism and truth (Princeton: Princeton University Press, 1984), p. 59. Veja também D. P. Dryer, Kant's soltttion fo r verification in metaphysics (Toronto: University o f Toronto Press, 1966), cap. 11, seção vi; H. E. Matthews, “Strawson on transcendental idealism”, Philosophical quarterly 19 (1969), p. 204-20; Henry Allison, Kant's transcendental idealism (New Haven: Yale University Press, 1983). Devo o conhecimento dessas referências a Karl Ameriks (“Recent work on Kant’s theoretical philosophy”, American Philosophical Quarterly 19 [1982], e “Kantian idealism today”, History of Philosophy Quarterly 9 [1992]) e a James Van Cleve, Problems from Kant (New York: Oxford University Press, 1999).

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pensamento constituía uma revolução— a sua famosa segunda revolução copernicana.18 Afinal, grande parte dessa segunda imagem seria aceite mesmo por pré-revolucionários devotos como Aristóteles e Tomás de Aquino. Ambos concordariam que há ou pode haver uma diferença entre o mundo (ou qualquer outro objeto menos impressionante) tal como é em si e o mundo tal como nos aparece, o que não é mais do que admitir que podemos estar enganados acerca do mundo ou das coisas no mundo, e é claro que Aristóteles e Tomás dificilmente negariam isso. No entanto, ambos concordariam com algo muito mais forte: que o mundo pode ter muitas propriedades de que não temos qualquer concepção, de sorte que o nosso modo de pensar acerca do mundo, as propriedades que lhe atribuímos, não são necessariamente todas as propriedades que o mundo tem nem apenas as que tem. Para Tomás e qualquer outro teísta, isso seria quase um truismo: Deus, como é suficientemente óbvio, tem muitas propriedades que não conhecemos, e presumivelmente muitas de que não poderiamos nem sequer formar uma concepção. Os elementos essenciais da perspectiva de um só mundo parecem talvez por demais incontroversos (pelo menos no que se refere aos predecessores de Kant) para que tal perspectiva possa constituir uma revolução, seja copernicana, seja de outro tipo qualquer. Segundo M erold Westphal: Por fim, todas as doze categorias, uma vez que constituem o mundo da experiência humana e não são meras características formais do juízo, esquematizam-se com uma referência essencial ao tempo. Assim, o objeto e a propriedade que desapareceríam do mundo na ausência de agentes cognitivos humanos não são objeto e propriedade per se, mas antes substância e acidente tais como são definidas pela temporalidade humana. Do mesmo modo, a verdade e a falsidade que desapareceríam derivam das categorias de realidade e negação tal como estão essencialmente ligadas à nossa experiência do tempo. Assim, regressamos à tautología de que, na ausência da cognição humana, o mundo, tal como apreendido por mentes humanas, desaparecería.19 Isso parece realmente uma tautología, ou pelo menos uma verdade trivialmente necessária; poderiamos acrescentar que, na ausência da cognição bovina, o mundo tal como é apreendido pelas mentes bovinas desaparecería. Mas como podería Kant pensar que isso constituía uma revolução, segundo a qual os objetos devem se conformar às nossas mentes (ao invés de, como se pensava antes, serem as mentes a se conformar aos objetos) para que tenhamos conhecimento? Poderá uma tautología constituir uma revolução?

18“Até agora tem-se pressuposto que todo o nosso conhecimento deve se conformar aos objetos. Entretanto, aceito esse pressuposto, as tentativas de estender o nosso conhecimento dos objetos estabelecendo algo a priori a respeito deles, por meio de conceitos, sempre redundaram em fracasso. Temos consequentemente de ver se não seremos mais bem-sucedidos na tarefa da metafísica se supusermos que os objetos devem se conformar a nosso conhecimento. Seguiriamos assim, com exatidão, as linhas da hipótese principal de Copérnico.” (Bxvii) 19“In defense o f the thing in itself”, p. 170.

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1. A im agem d e u m m u n d o e a referência a o s n ú m en os O nosso interesse principal não é tentar resolver a questão do que Kant tinha em mente: isso talvez esteja necessariamente além da nossa capacidade. Em vez disso, queremos ver se há uma boa razão, seja dada por Kant, seja construída com base em materiais por ele fornecidos, a favor da conclusão de que os nossos conceitos não se aplicam a Deus. E que impacto nessa questão tem a diferença entre essas duas interpretações da filosofia de Kant? Para começar considere-se a segunda imagem e note-se que, nela, se os nossos conceitos se aplicam a algo, é às Dinge que eles se aplicam sendo elas as únicas coisas existentes. Analogamente, se conseguimos de algum modo nos referir a algo e pensar em algo, é às Dinge que nos referimos e é nelas que pensamos, pois elas são tudo o que há. Assim, como podería acontecer de as categorias e os nossos outros conceitos não se lhes aplicarem? Bem, o que é um conceito aplicar-se a algo e o que é algo ser subsumido num conceito? Considere-se o conceito ser sábio. Esse conceito aplica-se a algo (uma coisa é subsumida nesse conceito) tão somente se esse algo for sábio, ou seja, se tiver a propriedade de ser sábio. As propriedades e os conceitos são, assim, correlativos. Só tenho o conceito ser sábio se capto, apreendo, entendo a propriedade ser sábio. Tenho o conceito ser um número primo se e apenas se capto ou apreendo a propriedade ser um número primo. Para cada propriedade ou atributo que apreendo, tenho um conceito. Claro que há propriedades das quais não tenho conceito algum. As crianças pequenas em geral carecem do conceito de ser um filósofo; ou seja, não têm apreensão da propriedade ser umfilósofo. Os filósofos adultos muitas vezes carecem do conceito de ser um quark; ou seja, não têm apreensão da propriedade ser um quark. Sem dúvida que há propriedades que nenhum de nós, seres humanos, apreende. Eis mais um fato conhecido acerca das propriedades e conceitos: eles têm negações e complementos. H á a propriedade ser vermelho; há também o seu complemento, que, como é natural, é ser não vermelho, não ser vermelho. Há a propriedade de ser sábio, mas também a propriedade de ser não sábio, de não ser sábio. Assim, se um dos meus conceitos (p. ex., ser sábio) não se aplica a uma coisa, o complemento desse conceito (ser não sábio, não ser sábio) se lhe aplica. Talvez o leitor queira observar que este modo de pôr as coisas pressupõe a existência de propriedades negativas, como ser não vermelho, ser não sábio, e outras semelhantes; e o leitor podería objetar que na realidade só há propriedades positivas, mas não negativas. (Você podería também levantar objeções a propriedades disjuntivas e conjuntivas.) Não é este o lugar para resolver tal questão. E claro que há o conceito de uma coisa não ser sábia (sei o que é uma coisa não ser sábia), mesmo que não haja a propriedade negativa não sabedoria. Assim, se o leitor levantar objeções às propriedades negativas, dirá que uma coisa se subsume no conceito não sabedoria apenas no caso em que não se subsuma no conceito sabedoria', em geral, para qualquer propriedade P, uma coisa subsume-se no conceito P se e somente se tem a propriedade P, e subsume-se no conceito não P se e somente se não se subsume no conceito P.

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Em vista dessas observações elementares acerca de conceitos e propriedades, como podería acontecer de as categorias e nossos outros conceitos não se aplicarem às Dinge? Considere-se primeiro as categorias — a categoria da causalidade, por exemplo. O que significaria a afirmação de que essa categoria não se aplica às Dinge? Tanto quanto consigo ver, isso significaria que os mímenos não teriam relações causais entre si ou com qualquer outra coisa. Considere-se a propriedade ter uma relação causai com algo\ se a categoria da causalidade não se aplica aos númenos, necessariamente nenhum deles tem essa propriedade. Assim, o nosso conceito ter uma relação causai com algo não se aplicaria às coisas tais como são em si. Segue-se, contudo, que o complemento dessa categoria ou conceito aplicar-se-ia às coisas tais como são em si: cada uma delas seria tal que não teria relação causai com qualquer outra coisa. O mesmo aconteceria para os nossos outros conceitos. Segundo esse modo de pensar a questão, os nossos conceitos “positivos”, poder-se‫־‬ia dizer, não se aplicam às coisas tais como são em si, o que na verdade é o mesmo que dizer que não há qualquer propriedade positiva por nós apreendida que caracterize qualquer coisa tal como é em si. Tal como está, contudo, esse argumento ainda precisa ser desenvolvido um pouco mais: há problemas com a distinção entre propriedades positivas e negativas. H á também problemas de outros gêneros: o que dizer de propriedades positivas como ser idêntico a si mesmo, por exemplo? Será o de pensar que cada uma das Dinge não é idêntica a si própria? Bem, talvez essas questões possam ser corrigidas (veja cap. 2, p. 57). Por ora, o que precisamos notar é que, segundo essa maneira de pensar, não seria realmente verdadeiro que os nossos conceitos não se aplicam a Deus de tal modo que não possamos nos referir a ele e pensar acerca dele. O que realmente se seguiría, dado que ele é um númeno (claro que, nessa maneira de pensar, tudo é um númeno), é que Deus não teria nenhuma das propriedades positivas das quais temos apreensão. Não seria verdadeiro que não poderiamos nos referir a Deus e atribuir-lhe propriedades: poderiamos perfeitamente fazê-lo, mas estaríamos enganados se lhe atribuíssemos qualquer propriedade positiva apreendida por nós. Assim, cometeriamos um erro se disséssemos que Deus é sábio, ou bom, ou poderoso, ou amoroso. Isso porque nada é sábio, bom, poderoso, amoroso etc. (Na imagem de um mundo, as Dinge são tudo o que existe; assim, se as propriedades positivas não podem ser atribuídas às Dinge, não podem ser atribuídas a seja o que for.) Aqui nada há de especial acerca de Deus; o que vale para ele também vale para tudo o mais. Mas os teólogos segundo os quais Kant mostrou que não podemos nos referir a Deus e refletir acerca dele pensam, segundo me parece, que Kant demonstrou que o caso de Deus é um caso especial·, não pensam que o que Kant teria demonstrado realmente é que não podemos falar ou pensar a respeito de coisa alguma. Como escreve Kaufman na passagem que citei (p. 30), “O problema central do discurso teológico, que não é partilhado por nenhum outro ‘jogo de linguagem’, é o significado do termo ‘Deus’”. Assim, Kant, entendido desse modo, não corrobora essa maneira de ver as coisas; não nos fornece um caminho pertinente para constatar que os nossos conceitos não se aplicam a Deus.

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2. A im a g em d e do is m u n d o s e a referên cia a o s m ím e n o s Consideremos agora a outra interpretação principal de Kant: a imagem de dois mundos. Essa é a maneira mais tradicional de entender Kant e talvez ainda mereça o status prioritário. (Não me interessa aqui qual das duas imagens é uma representação mais exata da filosofia de Kant, mas antes saber se Kant, entendido de um modo qualquer que seja plausível, dá sustentação à ideia de que não podemos nos referir a Deus e pensar acerca dele.20) Segundo essa imagem, há dois domínios separados: o dos fenômenos e o dos númenos, o das Dinge e o das coisas da experiência. Eis mais uma citação: Desse modo, aquilo que está no espaço e no tempo é uma aparência; nada é em si, antes consistindo meramente em representações que, se não forem dadas em nós — ou seja, na percepção —, não se encontram em lugar algum (A494, B522). Ora, quando pensamos na aplicação dos nossos conceitos aos númenos, vemos que essa imagem de dois mundos se divide em duas subimagens: (a) A subimagem moderada. Neste modo de pensar, os nossos conceitos (ou alguns deles) aplicam-se às coisas em si; podemos pensar acerca delas e nos referir a elas, mas não podemos ter qualquer conhecimento delas. Quando pensamos acerca delas, quando lhes predicamos propriedades, o que temos é apenas especulação, mero schein transcendental, e enganamo-nos a nós mesmos quando pensamos que temos mais do que isso. O nosso conhecimento não vai além da experiência; assim, não alcança o domínio das coisas em si. Isso explicaria a espantosa proliferação e diversidade das perspectivas metafísicas que Kant considerava tão chocante. A razão, fundamentalmente, é que na verdade os metafísicos não fizeram nada senão meras adivinhações, por mais que pretendam haver chegado a conclusões apodíticas e certezas conclusivas. A nossa razão não pode operar na atmosfera rarefeita dos númenos, e o resultado de tentar fazê-lo não passa de um bater de asas no vazio. Claro que Kant também apresenta o seu próprio labor na Critique o f pure reason como um caso de conhecimento e como algo certo e conclusivo. E nessa Crítica ele nos parece dizer muito sobre as Dinge: que não estão no espaço nem no tempo, que o mundo da experiência é (em parte) o resultado de uma “transação causai”21 entre as Dinge e o ego transcendental, e que este último não tem qualquer intuição intelectual das primeiras. Assim, a imagem não é completamente coerente. Seja-0 ou não, contudo, essa imagem não chega nem sequer a indicar que não possamos pensar acerca de Deus e predicar-lhe

20Claro que não pretendo afirmar que as imagens de um mundo e de dois mundos, tais como as apresento, sejam as únicas interpretações possíveis (ou existentes) de Kant; sem dúvida, há várias complicações e extensões de cada uma das imagens. O que sustento é que nenhuma delas oferece ajuda e conforto a quem defende que os nossos conceitos não se aplicam a Deus. 2’Precisamos das aspas porque a perspectiva oficial de Kant é que o conceito de causalidade não se aplica às Dinge.

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propriedades. Em vez disso, o que ela dá a entender é que, quando o fazemos, não estamos no caminho seguro do conhecimento, mas na trilha íngreme e muito mais arriscada da mera opinião. Assim, a subimagem moderada tampouco oferece ajuda e conforto a quem defende que os nossos conceitos não se aplicam a Deus. (b) A subimagem radical H á uma versão mais chocante da imagem de dois mundos, contudo, da qual obtemos o resultado de que não podemos nos referir a Deus nem lhe predicar propriedades (chamemos-lhe de “subimagem radical”). Nas duas versões da imagem de dois mundos, as aparências diferem das coisas em si. As aparências são objetor, existem; são empíricamente reais. Mas são também transcendentalmente ideais. E o que isso significa, em parte, é que elas dependem de nós (do ego transcendental) e da nossa atividade cognitiva para existir. Nós próprios somos simultaneamente númenos e fenômenos: assim como existe um eu empírico, existe um eu numênico. As coisas em si impõem-se de algum modo a nós (na qualidade de egos transcendentais), causando-nos a experiência; há uma interação produtiva entre o ego transcendental e as Dinge (as outras Dinge, dado que o ego transcendental é em si um númeno), cujo resultado é a experiência, a multiplicidade da experiência. Tal como nos é inicialmente dada, esta multiplicidade da experiência é uma confusão imensa e tumultuosa, sem estrutura alguma. Talvez contenha, entre outras coisas, aquilo a que Kant chama “representações” ( Vorstellungen); estas pertencem a mais de um tipo, mas entre elas poderão encontrar-se os qualia fenoménicos, algo como os dados dos sentidos, ou as impressões e idéias humianas. A multiplicidade deve ser “trabalhada” (termo de Kant) e sintetizada pela aplicação das categorias e outros conceitos. E assim que lhe impomos estrutura e forma, e ao fazê-lo construímos os fenômenos, as aparências. O u seja, os fenômenos, as coisas ju r uns, são construídos a partir da multiplicidade da experiência. Mas como fazemos isso? Como construímos um fenômeno (um cavalo, por exempio) a partir da multiplicidade da experiência? Nesse ponto, a subimagem radical diverge da versão mais prosaica da imagem de dois mundos, pois na subimagem radical construímos os objetos aplicando conceitos (representações, Vorstellungen) à multiplicidade. O mundo das aparências é construído em virtude de sintetizarmos a multiplicidade, o que é feito aplicando-se conceitos — tanto as categorias como outros conceitos — à multiplicidade. Não podemos perceber ou testemunhar de qualquer outro modo essa construção; Kant afirma que, em grande parte, não temos consciência da atividade por meio da qual estruturamos a multiplicidade e construímos os fenômenos. Ainda assim, essa estruturação consiste na aplicação de conceitos à multiplicidade confusa e tumultuosa da experiência. Essa ideia pressupõe uma maneira de pensar acerca dos conceitos e da sua função que é muito diferente da anteriormente delineada (segundo a qual um conceito é fundamentalmente apreender uma propriedade). E Kant sugere um modo diferente de pensar acerca de conceitos: por vezes, chama-lhes regras. Ele afirma que o entendimento

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é a faculdade dos conceitos; é a fonte dos nossos conceitos. Mas também, referindo-se ao entendimento, afirma: “Podemos agora caracterizá-lo como afaculdade das regras [...] A sensibilidade nos dá formas (da intuição), mas o entendimento nos dá regras” (A126, grifo de Kant). E prossegue do seguinte modo: As regras, tendo em vista que são objetivas [...] denominam-se leis. Apesar de deseobrirmos muitas leis pela experiência, elas são apenas determinações especiais de leis mais gerais, as mais gerais das quais, sob as quais todas as outras se subsumem, emergem a priori do próprio entendimento. Não são tomadas de empréstimo da experiência; ao contrário, têm de conferir às aparências a sua conformidade à lei para tornar a experiência possível. Assim, o entendimento é algo mais do que uma faculdade que formula regras por meio da comparação das aparências; é em si o legislador da natureza (A127). Nem por um momento pretendo fingir que essa passagem, ou outras que poderíam ser citadas, seja fácil de interpretar. Apesar disso, ela parece dar a entender que os conceitos são regras e que estas são leis. Que gênero de regras e que gênero de leis? Talvez sejam regraspara sintetizar a multiplicidade, regraspara construir osfenômenos. Esse é o coração da subimagem radical. Repito: não tenho a pretensão de afirmar que seja esta a perspectiva de Kant, mas algo do que ele diz sugere essa interpretação. (Algo do que ele diz também sugere que isso seja falso; o que faz parte do seu charme.) Por exemplo: “O que primeiro nos é dado é a aparência. Quando combinada com a consciência, ela se chama percepção...”. As dificuldades interpretativas são muitas; a ideia básica, contudo, é que os conceitos são regras, regras para a síntese da multiplicidade e para a construção dos fenômenos. (São também leis, leis pelas quais os fenômenos são construídos a partir da multiplicidade da experiência.) Essas regras aplicam-se a porções ou fragmentos da experiência e, por meio da sua aplicação, os fenômenos são construídos. Uma regra desse gênero especifica talvez que certas porções da multiplicidade devem ser combinadas ou “pensadas conjuntamente” como um único objeto. Assim, por exemplo, considere-se o seu conceito de cavalo: trata-se de uma instrução para você associar, pensar conjuntamente, uma diversidade de representações, uma diversidade de itens da experiência, unificando esse pedaço da multiplicidade num objeto empírico: um cavalo. E uma regra que diria mais ou menos o seguinte: pense conjuntamente esse feixe particular de representações como uma unidade. Uma vez mais, não pretendo afirmar que essa imagem seja coerente ou que essa seja uma maneira coerente de pensar acerca dos conceitos; ao contrário, penso que não é. Mas note-se que, se ela fo r coerente, então (pelo menos se todos os nossos conceitos tiverem essa função22 e apenas essa função) os nossos conceitos não se aplicam aos mímenos. Considere-se o conceito ser um cavalo. Entendido desse modo, esse conceito é uma regra para construir objetos fenoménicos a partir da multiplicidade da experiência. Claro que ele não se aplica aos númenos, pois não pode ser usado para construir um objeto a partir 22Como Karl Amenles (em comunicação privada) me lembrou, a dedução metafísica de Kant cortamente parece ter a intenção de revelar conceitos que são regras para juízos de qualquer gênero, limitem-se ou não à experiência.

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deles\ os mímenos não nos são dados (o que nos é dado é a experiência, a multiplicidade), e de qualquer modo não são um gênero de coisas a partir do qual os objetos fenoménicos possam ser construídos. Assim, não se trata apenas de o conceito ser um cavalo não se aplicar às Dinge, já que nenhuma delas, de fato, é um cavalo (todas são não cavalos), pois nesse caso o complemento desse conceito — ser um não cavalo — aplicar-se-ia. Mas este último conceito tampouco se aplica: também ele é uma regra para construir objetos a partir da multiplicidade, é mais uma maneira de unificar, sintetizar a multiplicidade. Vistas as coisas desse modo, nenhum conceito poderia aplicar-se às Dinge, da mesma forma que nenhum cavalo pode ser um número. Na subimagem radical, consequentemente, os nossos conceitos certamente não se aplicariam a Deus, se houvesse tal pessoa, pois Deus seria um númeno. Deus não seria algo que construímos aplicando conceitos à multiplicidade da experiência (foi Deus quem nos criou, não fomos nós que o construímos). Assim, na subimagem radical, não podemos nos referir a Deus, pensar nele nem lhe predicar propriedades. Essa maneira de pensar é claramente caracterizada por uma incoerência profunda: nessa imagem, Kant sustenta que as Dinge têm uma relação causai ou interativa conosco, sendo nós tomados aqui como egos transcendentais;23 e também afirma que elas não estão no espaço nem no tempo. Entretanto, pela subimagem radical, Kant (pelo menos se o seu equipamento intelectual for como o nosso) não deveria ser capaz de se referir às Dinge nem sequer de especular sobre a existência de tais coisas. No mínimo, ele não seria capaz de se referir a elas nem de lhes atribuir as propriedades de serem atemporais e a-espaciais ou a propriedade de afetar o ego transcendental, produzindo assim experiências nele. Não deveria sequer ser capaz de se referir a nós (ou seja, a egos transcendentais) afirmando que não somos dotados daquela intuição intelectual divina que seria necessária para termos um conhecimento sintético a priori do mundo tal como é em si. (Segundo esse entendimento, poderiamos dizer que o pensamento de Kant fracassa pelo fato de a imagem pressupor que ele, Kant, tinha um conhecimento que a própria imagem lhe nega.) Se essa imagem fosse realmente correta, os númenos desapareceríam completamente de cena, restando apenas o que foi estruturado por nós. A ideia de que poderia haver uma realidade para lá do que nós mesmos construímos com base na experiência não seria nem sequer pensável.24 B. A rg u m e n to s ou razões?

H á aqui, claramente, problemas de coerência. Porém ignoremo-los por enquanto: que tipos de razões dá Kant para a alegação de que não podemos pensar nas Dinge, 23Em todo caso, quantos desses egos transcendentais há? Como muitas outras questões de exegese kantiana, esta também é controversa. Aliás, na subimagem radical, ela é mais do que controversa. Sea categoria do número não se aplica aos númenos, é de presumir que não haja qualquer número n, finito ou infinito, tal que a resposta correta à pergunta “Quantos desses egos transcendentais hái”seja n. 24Além disso, é claro, há o problema de ser preciso muito esforço para acreditar que somos realmente responsáveis pela existência do Sol, da Lua e das estrelas, para não mencionar os dinossauros e outras coisas que (pensamos nós) existiram muito antes de haver quaisquer seres humanos.

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referirmo-nos a elas ou predicar-lhes propriedades? Ou, se ele não dá razões (talvez porque pense quapodemos pensar acerca das Dinge), que gêneros de razões ou argumentos a favor dessa conclusão a sua obra sugere? Esta conclusão — que os nossos conceitos são na verdade regras para sintetizar a multiplicidade em objetos fenoménicos e que as únicas coisas sobre as quais podemos pensar são objetos que nós mesmos, de algum modo, construímos — é, no mínimo, alarmante. Para apoiá-la, argumentos muitíssimo poderosos seriam necessários. No entanto, os argumentos a favor dessa perspectiva são aflitivamente escassos. É por demais difícil encontrar algo que possa ser considerado um argumento, ou mesmo uma dessas “considerações determinantes do intelecto” que John Stuart Mill propunha quando, como ele próprio admitia, não tinha qualquer argumento. Nada há aqui que seja como os argumentos ontológicos ou cosmológicos a favor da existência de Deus, ou o argumento de Descartes de que uma pessoa não é idêntica ao seu corpo (sendo, em vez disso, uma substância imaterial), ou o argumento a favor da conclusão de que as proposições, as coisas em que acreditamos e a que assentimos, não são objetos contingentes.25 Talvez tenhamos de considerar a subimagem radical uma espécie de hipótese proposta como a melhor explicação de certos fenômenos. O mais provável é que quem propõe isso se sinta simplesmente maravilhado pela mera beleza e poder intelectual que dela lhe parecem emanar; não sente necessidade de argumentos. Na verdade, considera a imagem tão deslumbrante que está disposto a aceitar, além da ausência de argumentos, uma dose bem forte de incoerência. Se você considera a subimagem radical maravilhosamente atraente, então (independentemente da incoerência interna) calculo que terá de aceitá-la. Por outro lado, isso não constitui grande razão para que as outras pessoas — aquelas que ficam mais impressionadas com a incoerência da imagem do que com a sua beleza — a aceitem. Há, contudo, um conjunto de considerações kantianas que, no entender de alguns, nos conduziríam parcialmente àquela conclusão. Encontramo-las no que ele afirma sobre as antinomias: argumentos supostamente poderosos a favor de ambos os lados de determinada questão. Assim, há um argumento antinómico supostamente poderoso a favor da tese de que o mundo teve começo no tempo, mas um argumento igualmente poderoso a favor da antítese de que não o teve. Do mesmo modo, há argumentos poderosos a favor das teses de que o mundo é composto de elementos simples, de que a agência causai existe (sendo um agente causal um ser que dá origem livremente a uma nova série causai) e de que há um ser absolutamente necessário; infelizmente, há argumentos igualmente poderosos a favor das antíteses de que o mundo não é composto de elementos simples, de que não existe agência causai alguma e de que não há nenhum ser absolutamente necessário. Parece que caímos aqui em uma dificuldade séria; podemos provar quatro teses importantes (em Critique, tudo vem em grupos de quatro) e, para cada uma delas, podemos também provar a sua negação. 25Veja o meu Warrant and properfunction (WPF), p. 117ss.

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Ora, Kant aparentemente deseja que estas antinomias constituam uma parte essencial do argumento a favor do seu idealismo transcendental, a doutrina de que as coisas com as quais lidamos (estrelas e planetas, árvores, animais e outras pessoas) são transcendentalmente ideais (dependem de nós para que tenham realidade e estrutura), ainda que sejam empíricamente reais. Caímos no problema posto pelas antinomias, diz Kant, apenas porque consideramos que estamos pensando sobre as coisas em si e não sobre as coisas tal como são para nós, consideramos que estamos pensando nos mímenos e não nas meras aparências: Se, ao pôr em ação os princípios do entendimento, não nos limitarmos a aplicar a nossa razão aos objetos da experiência, mas antes corrermos o risco de estender aqueles princípios para além dos limites da experiência, surgirão doutrinas pseudorracionais que nem podem ter a esperança de serem confirmadas pela experiência nem recear que esta as refute. Cada uma delas não só não tem nenhuma contradição interna, mas também encontra condições da sua necessidade na própria natureza da razão — acontece apenas que, infelizmente, a afirmação oposta tem, do seu lado, fundamentos igualmente válidos e necessários (A421, B449). Para resolver o problema, devemos reconhecer as nossas limitações, dando-nos conta de que não podemos pensar acerca das Dinge ou, pelo menos, não podemos pensar nelas com qualquer propósito vantajoso. Ao apresentar as antinomias, Kant não argumenta explícitamente a favor da subimagem radical. Mas suponhamos que nós tentemos encontrar aí uma espécie de argumento, seja a favor da subimagem radical, seja a favor da conclusão que derivamos da subimagem radical, qual seja, a conclusão de que os nossos conceitos não se aplicam aos mímenos, de modo que não podemos nos referir a esses númenos nem pensar acerca deles. As premissas seriam talvez as seguintes: (2) Se somos capazes de pensar nas Dinge e nos referir a elas, as premissas dos argumentos antinómicos (as premissas dos argumentos a favor das teses e das antíteses) têm as Dinge por objetos e são todas verdadeiras, e (3) Se essas premissas são todas verdadeiras, as teses e antíteses são todas verdadeiras, de modo que há contradições verdadeiras. Como é natural, contudo, (4) Nenhuma contradição é verdadeira.

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Logo: (5) Não podemos pensar acerca das Dinge nem nos referir a elas. Poderiamos talvez enfraquecer a primeira premissa (2) para a tornar um pouco mais plausível: (2*) Se somos capazes de pensar acerca das Dinge e nos referir a elas, cada uma das premissas dos argumentos antinómicos tem as Dinge por objetos e é corroborada decisivamente pela intuição. (Esta formulação é mais fraca porque não afirma que as premissas antinómicas são verdadeiras se pudermos pensar acerca das Dinge, mas apenas que elas nos dão a forte impressão de serem verdadeiras.) A segunda premissa seria então a seguinte: (3*) Se cada uma das premissas é corroborada decisivamente pela intuição, temos uma razão decisiva para aceitar cada uma das teses e das antíteses, e vemos que cada tese é contradita pela sua antítese. Contudo, enfraquecida a primeira premissa, precisamos reforçar uma das outras duas. Talvez possamos reforçar a terceira do seguinte modo: (4*) Nã0 poderia dar-se o caso de termos razão decisiva para aceitar uma proposição p e também a sua contraditória, não p. E a conclusão seria igual à anterior. Será realmente verdadeiro que (como (4*) afirma) não poderiamos ter uma razão decisiva para aceitar simultaneamente uma proposição p e também a sua rejeição, não p ?26 Essa investigação seria interessante, mas nos levaria demasiado longe; de qualquer modo, não é necessário para os nossos propósitos do momento, pois esses argumentos têm pelo menos dois problemas graves, um dos quais é debilitante e o outro, fatal. Esboçarei brevemente o primeiro e, depois, lançarei um olhar mais detalhado sobre o segundo. 26Parece que poderiamos ter boas razões para aceitar cada um dos membros de um conjunto C de crenças tal que não haja qualquer mundo possível no qual todos os membros de C sejam verdadeiros (a conjunção dos membros de C é impossível), como mostra o paradoxo do prefácio. Escrevo um livro acreditando, é claro, em todas as proposições aí afirmadas. A experiência anterior e meu conhecimento de mim mesmo, contudo, levam-mc a pensar que c muito provável que o livro contenha pelo menos uma afirmação falsa. (Todos os meus livros anteriores, como descobri consternado, contêm afirmações falsas.) No prefácio, consequentemente, concedo com tristeza que pelo menos uma frase do livro é falsa. Logo, o conjunto total das minhas crenças — as afirmações presentes no livro mais a afirmação de que pelo menos uma frase do livro é falsa — deve conter pelo menos uma falsidade; contudo, tenho boas razões para aceitar cada um dos seus membros.

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A primeira objeção, debilitante, é que mesmo que não sejamos capazes de pensar acerca dos mímenos,podemos pensar a respeito dos fenômenos; e se as primeiras premissas desses argumentos forem verdadeiras acerca dos mímenos, o que as impede de serem também verdadeiras a respeito dos fenômenos? As duas versões da primeira premissa ((2) e (2*)) do argumento afirmam o seguinte: se for verdadeiro que podemos pensar acerca dos númenos, então as premissas antinómicas se referem aos mímenos e ou elas são verdadeiras, ou são decisivamente corroboradas pela intuição. Não é igualmente evidente que, se podemos pensar a respeito dos fenômenos, então as premissas antinómicas se referem aos fenômenos e ou elas são verdadeiras ou são decisivamente corroboradas pela intuição? Se assim for, contudo, o argumento provaria também que não podemos nos referir às aparências. Assim, o que ele provaria realmente, se provasse algo, seria que não podemos nos referir nem aos númenos nem aos fenômenos, nem tampouco pensar acerca deles. Uma vez que os númenos e os fenômenos são todas as coisas que há, a conclusão seria que não podemos pensar acerca de coisa alguma; e isso parece um pouco exagerado. M uito mais podería se dizer sobre essa objeção ao argumento, mas quero voltar-me para a objeção fatal. E esta afirma somente que os argumentos antinómicos — vistos do modo mais simpático possível — não são convincentes de modo algum. Argumentarei aqui apenas com respeito às premissas da primeira antinomia; comentários exatamente análogos aplicar-se-iam às outras. Na primeira antinomia, há um argumento a favor da conclusão de que “O mundo teve um começo no tempo e é também limitado no que respeita ao espaço” (A426, B454); essa é a tese. Há também um argumento a favor da antítese: “O mundo não tem começo e não tem limites no espaço; é infinito no que respeita tanto ao tempo como ao espaço” (A426, B454). A ideia (em harmonia com as premissas (2) e (2*)) é que, se podemos pensar acerca das Dinge e nos referir a elas, ambas as antinomias são verdadeiras ou são ambas decisivamente corroboradas pela intuição. Mas quais são os argumentos em si? Lamento dizer que é difícil levá-los a sério. O argumento a favor da tese é o seguinte: Se partirmos do pressuposto de que o mundo não teve começo no tempo, concluiremos que, até qualquer momento dado, uma eternidade terá transcorrido e uma série infinita de estados sucessivos de coisas ter-se-á escoado no mundo. Ora, a infinitude de uma série qualquer consiste no fato de ela nunca poder ser completada por meio de sínteses sucessivas. Segue-se, portanto, ser impossível que uma série infinita de estados mundanos tenha transcorrido, e que um começo do mundo é consequentemente uma condição necessária para a existência deste (A426, B454). Esse argumento procede por reductio adabsurdum: mostra que a negação da conclusão conduz a uma contradição, provando assim a conclusão. A primeira premissa é que, se o mundo não teve começo no tempo, em qualquer momento do tempo uma quantidade infinita de tempo já terá transcorrido. Isso é dúbio, porque é pelo menos abstratamente possível que o tempo e o mundo tenham começado juntos, há dado número finito de anos

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(ou de segundos). Nesse caso, deveriamos dizer que o mundo não teve um começo no tempo, apesar de ter tido um começo com o tempo. Mas deixemos isso para lá. A segunda premissa afirma que “a infinitude de uma série qualquer consiste no fato de ela nunca poder ser completada por meio de sínteses sucessivas”; ou seja, é característico de uma série infinita que ela não possa ser completada começando no início (ou, de modo mais geral, em qualquer ponto apenas finitamente distante do início) e acrescentando-se uma coisa (acontecimentos, por exemplo) de cada vez (ou, de modo mais geral, um número finito de coisas de cada vez). Isso é verdadeiro desde que as coisas em questão (os acontecimentos, no caso) sejam acrescentadas a um ritmo constante. Se começarmos com o primeiro acontecimento (ou com o enésimo, para qualquer n) e acrescentarmos outro acontecimento a cada segundo, nunca completaremos a série: a cada momento subsequente do tempo, só terá ocorrido um número finito de acontecimentos. Segundo as teorias atuais sobre o infinito, contudo, não há nenhum obstáculo desse tipo à tentativa de completar a série infinita em um limite finito de tempo se o tempo de cada sucessivo acontecimento for diminuindo em um ritmo adequado. Por exemplo, o primeiro acontecimento demora um segundo; o segundo demora meio segundo; o terceiro, um quarto; o quarto, um oitavo de segundo; e assim por diante. Nesse ritmo, não demorará muito para que um número infinito de acontecimentos tenha ocorrido — uma questão de dois segundos apenas. Porém, o verdadeiro problema do argumento encontra-se em outra direção. Kant observa que uma série infinita não pode ser completada a partir de um ponto finitamente distante do início e acrescentando-se elementos em número finito a cada momento e a um ritmo constante; isso é razoável. Mas ele então conclui: “Segue-se, portanto, ser impossível que uma série infinita de estados mundanos tenha transcorrido, e que um começo do mundo é consequentemente uma condição necessária para a existência deste”. Ora, isso não se segue de modo algum. Afirmar que se segue é afirmar apenas o que se está por provar: que a série em questão teve um início. A premissa nos diz que, se começarmos de um ponto finito qualquer em uma série — isto é, um ponto finitamente afastado do início da série — e acrescentarmos um número finito de elementos por unidade de tempo, nunca completaremos a série. Isso é razoável; mas, se o mundo existiu durante um período infinito de tempo, então não houve qualquer momento primeiro, não houve qualquer acontecimento primeiro nem qualquer início da série de momentos ou da série de acontecimentos; de maneira mais geral, a cada momento precedente, uma quantidade infinita de tempo teria j á transcorrido. Concluir, como Kant, que é impossível que uma série infinita de acontecimentos tenha ocorrido é apenas pressupor que a série em questão teve um início — isto é, que é finita —, e isso é precisamente o que estava para ser provado. Assim, o argumento não tem, na verdade, força alguma. Não é que o grau de plausibilidade intuitiva de suas premissas seja baixo; é, antes, que ele transita para a conclusão por meio de uma flagrante petição de princípio, pressupondo o que estava para ser provado: que a série em questão tem um início. Logo, o argumento não estabelece a sua conclusão; limita-se a pressupô-la. Ou seja, não nos dá qualquer razão para aceitar tal conclusão.

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O argumento a favor da antítese não é nada melhor. Eis o modo pelo qual Kant o formula: Admitamos que ele [o mundo] teve um inicio. Dado que o início é uma existência precedida por um tempo em que a coisa não era, houve necessariamente um tempo precedente no qual o mundo não era, ou seja, um tempo vazio. Ora, nenhum vir-a-ser de urna coisa é possível num tempo vazio, porque nenhuma parte de tal tempo tem, comparada com qualquer outra, uma condição que distinga a existência da inexistência... (A427, B455). O argumento é uma vez mais por reductio: presume-se a negação da nossa conclusão e mostra-se que isso é impossível, estabelecendo-se assim a conclusão. Nesse caso, as duas premissas são as seguintes: (6) O início de um acontecimento ou coisa é sempre precedido por um momento do tempo na qual a coisa não é, ou seja, um momento do tempo em que a coisa em questão não existe. e (7) Num tempo vazio (um tempo no qual nada existe) nada poderia vir a ser, porque não haveria mais razão para ela começar a ser em uma parte desse tempo vazio do que em outra parte qualquer. Nenhuma das premissas é convincente. Quanto à primeira, é verdadeira apenas se não for possível que o tempo e o mundo (o primeiro acontecimento) passem a existir juntos, simultaneamente. Sabe-se que isso não é possível? Certamente que não. Na verdade, algumas das teorias do tempo mais comuns (as teorias relacionais) pressupõem não apenas que isso é possível, mas também que é verdadeiro. A segunda premissa é igualmente decepcionante. Suponha-se (em harmonia com a imagem que domina o argumento) que uma quantidade infinita de tempo tenha transcorrido antes de o primeiro acontecimento do mundo ter tido lugar — antes da sua criação, digamos. A objeção é que não haveria mais razão para Deus criar o mundo em um momento do que em qualquer outro; logo, ele não o teria ou poderia tê-lo criado em qualquer momento. Uma vez mais, por que acreditar nisso? Se Deus se propôs a criar o mundo, e nenhum momento do tempo era mais propício do que qualquer outro, por que não poderia ele limitar-se a escolher arbitrariamente um momento qualquer do tempo?27 Este argumento é como os que começam pela premissa de que Deus, se houvesse criado o mundo, teria criado o melhor mundo que pudesse; acrescenta-se então que, para qualquer 27Compare-se a resposta de Agostinho a quem queria saber o que Deus fazia antes de haver criado o mundo {lhe confessions o f Sí. Augustine, tradução para o inglês de Rex Warner [New York; New American Library, 1963], livro 11, cap. 12, p.265-6) [edição em português; Confissões (Petrópolis: Vozes, 2011)].

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mundo que Deus pudesse haver criado (que tivesse fracamente efetivado,28 digamos) há outro mundo ainda melhor que ele podería ter criado ou fracamente efetivado; logo, concluem, ele não teria fracamente efetivado mundo algum, e o mundo existente não foi fracamente efetivado por Deus. Uma vez mais, não parece haver razão alguma para acreditarmos na primeira premissa. Se havia apenas um número finito de mundos entre os quais Deus estivesse obrigado a escolher, talvez ele fosse obrigado, de algum modo, a escolher o melhor (apesar de até essa ideia ser, na melhor das hipóteses, dúbia).29Mas se não há qualquer mundo que seja o melhor entre os que ele podería ter escolhido (se para cada mundo que ele pudesse ter escolhido, há um mundo melhor que ele podería ter escolhido), por que pensar que “não ser o melhor mundo” é razão suficiente para que Deus seja incapaz de o efetivar? Suponha-se um homem com o benefício da imortalidade e uma garrafa de vinho que melhorasse a cada dia, por mais que ele esperasse para o beber. Estaria ele obrigado racionalmente a nunca bebê-10 porque, fosse qual fosse o dia em que ele se sentisse tentado a bebê-lo, seria melhor ainda esperar pelo dia seguinte? Suponha-se que um burro se encontrasse exatamente a meio caminho entre dois fardos de palha: estaria ele racionalmente obrigado a ficar ah e a morrer de fome porque não há uma razão melhor para se deslocar para um dos fardos do que para se deslocar para o outro? Os argumentos a favor das outras antinomias não se saem melhor. Nenhum dos argumentos apresentados é conclusivo (dado o pressuposto de que estamos pensando sobre as Dinge), seja a favor da tese, seja a favor da antítese. Em alguns casos, podemos não saber ou não ser capazes de dizer qual delas (a tese ou a antítese) é verdadeira: mas isso não é um grande argumento a favor da conclusão de que não podemos pensar acerca dos númenos. O que seria necessário para que o argumento funcionasse seria um argumento realmente poderoso a favor da tese e um argumento igualmente poderoso a favor da antítese. Em nenhum dos casos isso se verifica. Suponha-se que pensemos um pouco mais sobre as antinomias e paradoxos, relacionando-os à questão de concluir que não podemos pensar acerca de determinada área ou tópico. Considerem-se os paradoxos de Russell, na versão simples da teoria de conjuntos. Como Frege, todos temos a tendência inicial de pensar que, dada qualquer condição ou propriedade, há um conjunto exato das coisas que obedecem a essa condição ou têm tal propriedade. Observa-se então que há a propriedade de não ser membro de si mesmo, a propriedade que uma coisa tem exclusivamente se não for membro de si mesma; assim, deve haver um conjunto C de conjuntos que não são membros de si mesmos; mas, nesse caso, C somente será um membro de si mesmo se não for um membro de si mesmo, o que é uma contradição. Seria sinal de um entusiasmo inadequado concluir, a partir disso, que não podemos realmente pensar e falar acerca dos conjuntos tal como são em si, podendo apenas pensar acerca de conjuntos que nós mesmos construímos, conjuntos tal como nos aparecem a nós. O que o argumento prova é apenas 28Para a noção de “efetivação fraca” (weak actualization), veja o meu The nature of necessity (Oxford: Clarendon, 1974), p. 173, e James Tomberlin; Peter van Inwagen, orgs., Alvin Plantinga (Dordrecht: D. Reidel, 1985), p. 49. 29Veja Robert Adams, “Must God create the best?”, Philosophical Review 81 (1972), p. 317-32.

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que o conjunto dos conjuntos que não são membros de si mesmos não existe e que, ao contrário da nossa primeira impressão, não é verdadeiro que, para cada propriedade ou condição, há um conjunto exato das coisas que satisfazem essa condição ou exibem essa propriedade. Tome-se, ao contrário, o paradoxo de Russell especificado para propriedades, em vez de conjuntos; sob alguns aspectos, esse paradoxo é mais sério. Temos, a priori, a tendência de pensar que algumas propriedades (por exemplo, a propriedade de ser uma propriedade) exemplificam a si mesmas, de modo que existiría a propriedade da autoexemplificação; e que toda a propriedade tem um complemento. Tomadas em conjunto, essas idéias conduzem a dificuldades: implicam que existe também a propriedade da não autoexemplificação, que tem a desfaçatez de se exemplificar e não se exemplificar a si mesma.30 Uma vez mais, contudo, não parece decorrer daí que não podemos pensar e falar acerca das propriedades an sich. Não é preciso sustentar que, se podemos pensar acerca das propriedades an sich, necessariamente há uma propriedade que se exemplifica e não se exemplifica a si mesma. Podemos concluir sem nenhum problema, em vez disso, que um grupo de proposições que tendemos inicialmente a aceitar deve ser falso, e procuramos a que tem menos aval ou suporte intuitivo, aquela que menos tendemos a acreditar. (Podemos concluir, por exemplo, que na realidade não existe a propriedade da não autoexemplificação [ainda que pareça existir], de modo que ou a propriedade da autoexemplificação também não existe ou é falso que toda propriedade tenha um complemento.) Isso é ligeiramente inquietante e dá-nos motivo para sermos humildes em relação aos produtos da razão; mas não nos obriga, de modo algum, a sustentar que não podemos nos referir às propriedades an sich e nelas pensar. Em que condições seria correta essa conclusão drástica? Talvez em nenhuma, e, se o seria em alguma, é difícil dizer qual seja. Ela incluiría pelo menos, contudo, uma forte tendência da nossa parte de aceitar cada membro de um conjunto de proposições sobre dado tema, conjunto esse que (por meio de formas argumentativas que teríamos forte tendência de aceitar) implicaria uma contradição. Também seria necessário que houvesse vários conjuntos de proposições desse tipo sobre o tema em questão. Cada uma das premissas e argumentos incluídos precisaria ter uma sustentação intuitiva muitíssimo poderosa, máxima ou quase máxima; de outro modo, seria mais razoável sustentar que uma premissa (ou forma argumentativa) com sustentação intuitiva meramente moderada é falsa (ou inválida). Se houvesse vários conjuntos de proposições desse tipo — sobre propriedades, por exemplo — e cada uma dessas proposições e formas argumentativas tivesse o grau de sustentação intuitiva que têm, por exemplo, a soma 2 + 1 = 3 e o modusponens, talvez a conclusão correta fosse a de que ou pura e simplesmente os objetos desse suposto domínio não existem ou a de que, se existem, somos incapazes de pensar acerca deles. Mesmo aqui, contudo, haveria razão para duvidar do êxito do argumento. Este incluiria como premissa algo como o seguinte:

30Se você rejeita propriedades como as da autoexemplificação e da não autoexemplificação, conduza o argumento em relação a condições-, veja Tomberlin; van Inwagen,/7/wi Plantinga, p. 320.

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8) Se há vários conjuntos de premissas sobre propriedades, cada membro de cada conjunto com máximo aval intuitivo, e se os membros de cada conjunto implicam uma contradição, não podemos nos referir às propriedades an sich nem pensar acerca delas. A premissa seguinte seria a antecedente de (8) e a conclusão seria a sua consequente — isto é, a proposição de que não podemos nos referir às propriedades an sich nem pensar acerca delas. Mas se tal conclusão fosse verdadeira, como poderiamos apreender (8), a primeira premissa? Parece que essa premissa fala, entre outras coisas, das propriedades an sich‫׳‬, se a apreendemos, portanto, somos capazes de pensar acerca das propriedades an sich. O argumento parece refutar a si mesmo de modo autorreferencial: se for bem-sucedido, sua primeira premissa ao mesmo tempo se referirá aos mímenos e poderá ser apreendida por nós, caso em que ela será necessariamente falsa. A conclusão kantiana sensata, parece-me, é que se realmente podemos nos referir às Dinge e pensar acerca delas, a razão só por si não basta para nos dizer se o mundo teve um início no tempo ou se existem substâncias simples. Parece mais provável do que improvável, talvez, que existam substâncias simples e agentes livres que dão início a cadeias causais no mundo, mas não se pode demonstrar que as negações dessas proposições sejam equivocadas. O mais certo é não se dar o caso de tanto essas proposições como as suas rejeições serem, ambas, demonstráveis, de modo que cada uma delas seja, a um tempo, demonstravelmente verdadeira e, além disso, demonstravelmente falsa. E também preciso não nos esquecermos de que todo esse esquema, toda a subimagem radical, parece incoerente de um modo bem conhecido. Quem formula e propõe esse esquema faz várias afirmações acerca das Dinge: que elas não estão no tempo nem no espaço, por exemplo, e, mais ainda, que os nossos conceitos não se lhes aplicam (aplicam-se apenas aos fenômenos), de modo que não podemos nos referir a elas nem pensar acerca delas. Porém, se as Dinge realmente não podem ser pensadas, nós não podemos pensá-las (assim como não podemos, por exemplo, assobiá-las); se não podemos pensá-las, não podemos nem sequer cogitar a existência ou inexistência de tais coisas. A incoerência é patente. Seria possível produzir coerência recusando a distinção entre fenômeno e númeno, falando então apenas do que, caso fizéssemos tal distinção, seriam os fenômenos e afirmando que a realidade, seja ela o que for, ou é um pedaço da experiência ou um objeto construído por nós com base em pedaços da experiência, por meio de conceitos (ou seja, regras para construir coisas a partir da experiência)? E muitíssimo difícil acreditar em tal coisa: será que as estrelas, por exemplo — as quais, pelo que nos parece, existiram desde muito antes de nós — , seriam pedaços da experiência humana ou objetos construídos por nós a partir de pedaços da experiência humana? Como entender tal ideia? Desse ponto de vista, além disso, a objeção à crença cristã não seria que os cristãos sérios consideram erroneamente que podem se referir a Deus; a objeção seria que não há Deus.

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Se houvesse tal pessoa, ela certamente não seria um pedaço da experiência humana ou algo que construímos com base nela. Ainda mais, desse ponto de vista nós mesmos (porque estamos entre as coisas que existem) nos teríamos construído a partir de pedaços da experiência ou seriamos somente pedaços da experiência; mas é claro que não nos poderiamos ter construído antes de havermos existido, de modo que precisaríamos ter começado, pelo menos, como pedaços de experiência com o poder de construir coisas. Não é uma imagem atraente. E mesmo que pudéssemos de algum modo produzir aqui algum tipo de coerência, por que haveriamos de nos sentir obrigados a acreditar em tal coisa? Que força um esquema tão bizarro poderia exercer sobre nós? Assim, à guisa de conclusão: não parece que haja uma boa razão, quer em Kant, quer em suas imediações, a favor da conclusão de que os nossos conceitos não se aplicam a Deus, de modo que não possamos pensar acerca dele. Os teólogos de hoje em dia, entre outros contemporâneos nossos, queixam-se às vezes de que os filósofos contemporâneos da religião escrevem como se nunca tivessem hdo Kant. Talvez a razão de escreverem desse modo, contudo, não seja por que nunca leram Kant, mas antes porque o leram e não se convenceram. Podem não estar convencidos de que Kant tenha efetivamente defendido a tese de que os nossos conceitos não se aplicam a Deus. Alternativamente, podem admitir que Kant a tenha defendido, mas continuam pensando que ele não tinha razão\ afinal, a tese “Kant sempre tem razão” não é um ponto de partida da vida intelectual. De um modo ou de outro, eles não pensam que Kant nos tenha dado razão para sustentar que não podemos pensar acerca de Deus.

Kaufman e Hick O nosso tema é a questão dejure quanto à crença cristã: se é racional, ou razoável, ou racionalmente justificável, ou intelectualmente defensável aceitar tal crença. Uma questão prévia, como vimos no capítulo anterior, é a de saber se há alguma questão dejure quanto à crença cristã, ou mesmo alguma questão defacto. A crença cristã é, entre outras coisas, uma crença na existência de Deus. E os cristãos acreditam que Deus é infinito: ilimitado com respeito a propriedades importantes como o conhecimento, a bondade e o poder. Acreditam também que Deus é transcendente: diferente do universo criado, de nenhum modo dependente dele, sendo antes este dependente de Deus. Por fim, pressupõem que é possível nos referirmos a Deus, falarmos e pensarmos acerca dele, dirigir-nos a ele em oração e adorá-lo. Muitos teólogos contemporâneos, contudo, acreditam aparentemente que essas idéias são excessivamente ingênuas: sustentam que há problemas profundos na própria ideia de que podemos nos referir a um ser caracterizado como os cristãos caracterizam Deus e pensar acerca dele. Em particular, parecem acreditar que Immanuel Kant nos deu excelentes razões para (na melhor das hipóteses) desconfiar fortemente desse ingênuo realismo no pensamento acerca de Deus ou na linguagem religiosa. Como vimos no capítulo anterior, contudo, nada há realmente em Kant que sugira que de fato não possamos pensar ou falar acerca de Deus. De modo mais geral, é extremamente difícil ver como construir um argumento — um argumento a favor da conclusão de que não podemos nos referir a Deus e pensar acerca dele — com base nos escritos e na obra de Kant. Claro que isso não demonstra que não se pode encontrar um argumento desses: mas, caso se possa encontrá-lo, o ônus de fornecê-lo e desenvolvê-lo compete, diria eu, a quem pensa que tal argumento existe. Neste capítulo, vou trazer esta questão para a atualidade: se Kant não nos dá razão para aceitar um tal agnosticismo conceituai, nós a encontraremos nos teólogos contemporâneos (ou outros autores de estudos religiosos)? Escolhí dois representantes: Gordon Kaufman e John Hick. I. K a u f m a n

A. O verdadeiro referente e o referente disponível Segundo Gordon Kaufman, O problema central do discurso teológico, que não é partilhado por nenhum outro “jogo de linguagem”, é o significado do termo “Deus”. “Deus” suscita problemas especiais de

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significado porque é um substantivo que, por definição, refere-se a uma realidade que transcende a experiência e que, nesse sentido, não pode ser localizada dentro dela. Um recém-convertido pode ter vontade de se referir ao “sentimento caloroso” no seu coração quanto a Deus, mas Deus não se identifica com essa emoção; o biblista pode considerar que a Bíblia é a Palavra de Deus, o moralista pode acreditar que Deus fala por meio da consciência humana, o pastor pode acreditar que Deus está presente no seu rebanho — mas todos concordariam que o próprio Deus transcende o locus referido. Como Criador e Fonte de tudo o que é, Deus não deve ser identificado com qualquer realidade particular finita; como objeto adequado de lealdade ou fé últimas, devemos distinguir Deus de todo ser ou valor próximo ou penúltimo. Mas se absolutamente nada no seio da nossa experiência se pode identificar diretamente com aquilo a que o termo “Deus” propriamente se refere, que significado tem ou pode ter a palavra?1 Assim, a tese é que Deus não deve ser identificado com nenhuma realidade finita — com base, presumivelmente, na ideia de que Deus não é de fato idêntico a nenhuma realidade finita particular. Do ponto de vista cristão, isso não é nada mais que a pura verdade: Deus é infinito e, consequentemente, não é idêntico a nenhuma realidade finita. Até aqui, tudo bem. Kaufman aparentemente infere disso, contudo, que “absolutamente nada no seio da nossa experiência se pode identificar diretamente com aquilo a que o termo ‘Deus’propriamente se refere” e acrescenta que, nesse caso, há um problema sério quanto à referência do nosso termo “Deus”: se “nada no seio da nossa experiência se pode identificar diretamente com aquilo a que o termo ‘Deus’propriamente se refere, que significado tem ou pode ter a palavra?”. Dou-me conta de que esta última é uma pergunta, mas parece uma pergunta retórica·, a ideia é que, se nada no seio da nossa experiência se pode identificar diretamente com aquilo a que o termo “Deus” propriamente se refere, esse termo não se refere a coisa alguma ou, no mínimo, é séria a questão de saber se ele se refere a alguma coisa. Temos aqui, consequentemente, duas teses: (a) Se Deus não é uma realidade finita, absolutamente nada no seio da nossa experiência se pode identificar diretamente com aquilo a que o termo “Deus” propriamente se refere. e (b) Se nada no seio da nossa experiência se pode identificar diretamente com aquilo a que o termo “Deus” propriamente se refere, este termo não se refere a coisa alguma, ou pelo menos é problemática a questão de saber se ele se refere a algo ou não.

1Godtbeproblem (Cambridge: Harvard University Press, 1972), p. 7. Daqui em diante, GP.

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Estas teses despertam ecos kantianos — ecos que se tornam mais fortes à medida que avançamos no pensamento de Kaufman. E certamente que ambas são inicialmente dúbias. Considere-se (a). Primeiro, devemos perguntar o que significa dizer que “nada no seio da nossa experiência se pode identificar diretamente com aquilo a que o termo ‘Deus’propriamente se refere”. No modo de pensar de Kaufman, o que seria “algo estar no seio da nossa experiência e ser tal que se possa identificar diretamente com aquilo a que um certo termo propriamente se refere”? Que dizer de Maynard, o gato de um amigo meu: será que ele é algo no seio da nossa experiência que se possa identificar diretamente com aquilo a que o termo “Maynard” propriamente se refere? Penso que sim: caso contrário, o problema não diria respeito apenas a Deus, mas a tudo; a ideia de Kaufman, penso, é que o problema diz respeito específicamente a Deus. Segundo (a), é porque Deus é infinito que o termo “Deus” não se refere propriamente a algo no seio da nossa experiência. Ora, qual é a razão exata pela qual isso é verdadeiro? Maynard, suponho, é algo no seio da nossa experiência, e isso porque podemos ter a experiência de Maynard. Podemos ter percepções dele: podemos vê-lo, ouvi-lo, tocar-lhe e por vezes cheirá-lo. A ideia tem de ser, então, que, se Deus não é uma realidade finita, não podemos ter a experiência dele; não podemos ter percepções dele (não podemos vê-lo, ouvi-lo ou tocar-‫־‬lhe) ou ter a experiência dele de qualquer outro modo. Será isso realmente verdadeiro? Como é que o fato de Deus ser infinito significa que não podemos ter a experiência dele? Muitos cristãos e judeus acreditam que Deus falou a Moisés da sarça ardente; Moisés ouviu-o. Deus falou a Abraão em sonhos; falou a várias pessoas quando disse “Este é o meu Filho amado, de quem me agrado”; todas essas pessoas o ouviram. Os cristãos podem também acreditar que o Espírito Santo labora nos seus corações, produzindo a convicção e a fé, assim como as emoções religiosas de que falou Jonathan Edwards; não estão eles, pois, tendo a experiência de Deus? O termo “experiência” (tomado como substantivo ou formando um verbo) é sabidamente ambíguo; mas, se essas coisas acontecem de fato, acaso as pessoas envolvidas não têm a experiência de Deus? Os cristãos podem ir ainda mais longe e sustentar que, em algumas circunstâncias, algumas pessoas ttm percepção de Deus, um tema que recebeu um tratamento explícito e poderoso em Perceiving God, de William P. Alston. Se eles tiverem razão, também nesses casos as pessoas têm a experiência de Deus. Ora, Kaufman parece pensar que o fato de Deus ser infinito — ilimitado em todas as suas dimensões — significa que essas pessoas estão enganadas: ao contrário do que pensam, elas não tiveram a experiência de Deus. De novo, por quê? Deus é infinito com respeito ao poder, ou seja, é onipotente: de que modo isso podería acarretar, ainda que por consequência indireta, que Deus não possa fazer-se ouvir ou que não possa ser objeto de experiência? Ele é infinito com respeito ao conhecimento, ou seja, onisciente; isso mostra de algum modo que não poderia falar a Abraão nem a qualquer outra pessoa? Seria talvez a combinação da onipotência com a onisciência que o impediría? E difícil ver como isso seria um obstáculo. Se Deus é onipotente, infinitamente poderoso, não será capaz de se manifestar na nossa vida, fazendo-nos ter a experiência dele? Sob essas condições, é de presumir que só

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será incapaz de o fazer se for logicamente impossível (impossível no sentido amplamente lógico) que um ser onisciente e onipotente seja capaz dc falar e de se fazer ouvir. Todavia, tanto quanto consigo ver, não há sequer a mais leve razão para concluir isso; e é certo que Kaufman não nos apresenta nenhuma. Entrarei na questão da natureza da experiência de Deus mais detalhadamente nos capítulos 6, 8 e 9; aqui, quero apenas fazer notar que parece a priori implausível que Deus, se for infinito e onipotente, não possa fazer-nos ter a experiência dele. A segunda premissa, (b) — a tese de que, se nada no seio da nossa experiência pode ser diretamente identificado como aquilo a que o termo “Deus” se refere, este termo não se refere a coisa alguma (ou pelo menos é problemático que se refira a algo) — , parece igualmente dúbia. Os cosmólogos falam-nos do Big Bang, um acontecimento que teria ocorrido há vários bilhões de anos e no qual uma explosão de imensa energia causou a expansão de uma configuração inicial de imensa densidade. Suponho que o Big Bang não seja algo no seio da nossa experiência, algo que se possa identificar diretamente com aquilo a que o termo “o Big Bang” corretamente se refere. Segue-se daí que esse termo é profundamente problemático? Será que o verdadeiro problema da cosmología contemporânea não é apenas a natureza especulativa das idéias acerca dos universos múltiplos e do que aconteceu no intervalo do tempo de Planck, mas antes a própria ideia de podermos nos referir ao Big Bang e pensar acerca dele? Não é fácil ver o motivo: pelo menos, seria necessário um argumento poderoso para nos levar a crer nisso. E se nenhum problema há aqui, por que haveria um problema especial no caso de Deus?2 Muito bem, poderia alguém dizer; se não há nenhum problema em nos referirmos a um ser infinito, como nos referimos a Deus? No capítulo 1 afirmei que poderiamos fazê-lo, primeiro, por meio de descrições definidas como “o criador dos céus e da Terra”, “o criador onipotente e onisciente do mundo”, “o pai divino do nosso senhor e salvador Jesus Cristo”, “a pessoa divina que falou a Abraão”, “a pessoa divina de que agora tenho experiência” etc. Cada uma dessas descrições se referirá a algo se houver exatamente uma coisa que exemplifique as propriedades mencionadas na descrição; caso contrário, a descrição não se referirá a nada. (Se a crença cristã for verdadeira, é claro, cada um desses termos se refere realmente a algo; na verdade, referem-se todos à mesma coisa.) Além disso, podemos usar o nome próprio “Deus” para nos referirmos ao ser denotado por essas descrições. Esse termo pode servir como nome próprio de Deus, para mim, de diversos modos. Por exemplo, eu poderia “fixar a referência” do termo “Deus” usando uma das descrições anteriores, como “o criador dos céus e da Terra”; se, de fato, apenas uma pessoa criou os céus e a Terra, e se essa pessoa for também denotada pelas outras descrições, o nome “Deus” — um nome que eu dei — será um nome próprio da mesma JUma das fontes das perspectivas de Kaufman talvez seja uma espécie de lealdade residual ao “Critério Verificacionista do Significado”, já mencionado (p. 33): “Dado que, ao que parece, nenhuma evidência experimental pode ser citada a favor ou contra aquilo a que a palavra ‘Deus’ supostamente se refere, tem-se levantado repetidamente a questão de o discurso sobre ele não ser, no sentido estrito, cognitivamente dotado de significado”(p. 8). Como vimos no cap. 1, contudo, pouco se pode dizer a favor do Critério Verificacionista.

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coisa denotada por essas descrições. Esse nome, o nome que eu dei, será um nome próprio de um ser que é onisciente, onipotente, o criador do mundo, o pai de nosso senhor e salvador Jesus Cristo etc. Sob essas condições, o nome “Deus”, que eu dei, exprimirá uma essência desse ser.3Talvez o nome que eu dei, introduzido desse modo, não exprima a mesma essência de Deus expressa pelo nome que você deu, introduzido por meio de uma descrição diferente. Mesmo assim, contudo, os dois nomes irão exprimir essências de Deus logicamente equivalentes (ainda que não sejam epistemicamente equivalentes).4 Há uma alternativa para eu obter o meu nome próprio de Deus. Em vez de usar uma descrição definida para fixar a referência e depois batizar oficialmente a coisa a que se refere a descrição, posso simplesmente “apanhar” o nome, por assim dizer, dos outros. De fato, esse é o modo mais habitual. Os nomes próprios, como os resfriados, são comumente apanhados das pessoas ao nosso redor. Na infância, ouço falar de Deus, ouço discursos nos quais o nome “Deus” ocorre; apanho o nome, tencionando usá-lo tácita ou implicitamente para me referir ao mesmo ser referido por aqueles de quem peguei o nome. Se eles forem realmente bem-sucedidos em se referir a Deus ao usar esse nome, também eu o serei. (Este é outro modo pelo qual o bom sucesso dos meus empreendimentos noéticos depende do bom sucesso de empreendimentos similares da parte de quem me rodeia: veja Warrant andproperfunction, p. 7 7 8 ‫־‬.) De qualquer forma, Kaufman sustenta que não podemos ter conhecimento nem experiência daquilo a que ele chama “o verdadeiro referente” do termo “Deus”: O verdadeiro referente de “Deus” nunca nos é acessível nem está de algum modo aberto à nossa observação ou experiência. Tem de permanecer sempre um desconhecido X... (GP, p. 85). Consequentemente, quando os cristãos usam o termo “Deus”, não se referem ao verdadeiro referente desse termo (mas então por que chamar-lhe “verdadeiro referente”?). A que ou a quem se referem (se é que se referem a algo) quando dizem coisas como “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo” ou “Deus criou os céus e a Terra”, ou “Deus é o nosso pai fiel e afetuoso”? A resposta, afirma Kaufman, é que, quando afirmam essas coisas, as pessoas se referem ao “referente disponível” do nome “Deus”, e o referente disponível é um construto imaginativo, algo que de algum modo críamos: Para todos os propósitos práticos, é o referente disponível — um construto imaginativo particular — que tem presença significativa na vida e no pensamento humanos. E o “Deus disponível” que temos em mente quando oramos ou adoramos [...] é do Deus disponível que falamos e pensamos sempre que usamos a palavra “Deus”. Nesse sentido, para todos os efeitos práticos, “Deus” denota essencialmente um construto mental ou imaginativo (GP, p. 85-6). 3Veja o meu The nature of necessity (Oxford: Oxford University Press, 1974), p. 77ss. 4Vieja o meu “The Boethian compromise”, American Philosophical Quarterly (1978).

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Deus é um símbolo — um construto imaginativo — que permite aos homens ver ao mundo e a si mesmos de um modo que dê significado último (metafísico) à ação e à moralidade (GP, p. 109). Assim, o Deus disponível, o Deus que temos em mente quando oramos e adoramos, o ser a que nos referimos quando usamos o termo “Deus” — este ser é uma criação humana, um construto imaginativo, algo que nós próprios criamos. A ideia inicial parece ser a de que, além deste referente disponível, há também um verdadeiro referente do termo “Deus”, um ser com o qual não temos contato noético e acerca do qual não podemos falar. Mas, pensando bem, a ideia é que talvez haja um verdadeiro referente, e que, se tal coisa existe, ela é um ser acerca do qual não podemos pensar: Este fato, que o Deus efetivamente disponível às pessoas é um construto imaginativo, não significa necessariamente que Deus seja “irreal” ou “meramente imaginário” ou algo desse gênero. Essa questão permanece aberta a investigações ulteriores (GP, p. 86) Significa isso, afinal, que a conclusão é que Deus não existe realmente, que Ele é apenas um produto da nossa imaginação? Se essas palavras visam formular uma questão especulativa quanto à natureza última das coisas, então, como vimos, não há maneira possível de se dar uma resposta (GP, p. 111). Assim, parece que a perspectiva de Kaufman em God theproblem [Deus, o problema] é essencialmente a seguinte. O termo “Deus” tem um referente disponível: trata-se de uma construção humana, algo que criamos; quando falamos de Deus ao adorá-lo ou quando lhe falamos ao orar, é acerca desse referente disponível, ou com ele, que estamos falando. Talvez o termo tenha também um verdadeiro referente. Se o tem, contudo, tal referente transcende a nossa experiência e por isso é algo ao qual os nossos conceitos não se aplicam: um mero desconhecido X, para adotar a terminologia kantiana de Kaufman. Ora, já argumentei que não parece haver boas razões para aceitar essa posição. Aqui devo acrescentar que há uma excelente razão para não a aceitar. Da forma apresentada, a posição é incoerente. Primeiro, o “referente disponível”: a ideia é que, quando os cristãos oram a Deus ou o adoram ou falam acerca dele, estão falando acerca do referente disponível. Quando dizem, por exemplo, que “Deus criou os céus e a Terra”, estão na verdade atribuindo essa propriedade — a propriedade de haver criado os céus e a Terra — ao referente disponível. Mas o referente disponível é um construto humano e por isso presumivelmente não existia antes de existirem seres humanos. Como, então, conseguiu ele criar os céus e a Terra? Podería de algum modo fazê-lo antes de haver existido? De qualquer modo, um construto imaginativo, um símbolo, uma estrutura qualquer de significados, não é pura e simplesmente o tipo de coisa que poderla criar os céus e a Terra ou, na verdade, qualquer outra coisa. Um símbolo, um construto imaginativo, pode ter propriedades: ser um construto, por exemplo, ou ser um símbolo, ou ser apropriadamente usado pelos seres humanos para tal e tal propósito‫׳‬, mas certamente não terá propriedades

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como ser onisciente ou ser criador do mundo. Suponho que poderia acontecer de os cristãos estarem se confundindo: eles pensam que estão se referindo a algo que os criou e falando disso, mas a verdade é que estão se referindo a algo que eles mesmos criaram. Será realmente plausível pensar, contudo, que estão confundidos a esse ponto? Quem crê que a pessoa divina não existe considera que os cristãos estão enganados ao pensar que há tal pessoa, e talvez seja pelo menos sensato pensar que estão enganados desse modo. Porém, será realmente sensato considerar que estão de tal modo enganados que predicam as propriedades de Deus de um mero construto? Bem, talvez isso fosse possível, mas seria preciso um argumento bem forte para torná-lo ao menos razoavelmente plausível. Digamos que uma propriedade P implica uma propriedade Q apenas se for necessário no sentido amplamente lógico que tudo o que exemplifique P também exemplifique Q; e digamos que um conceito C contém uma propriedade P se a propriedade que C capta implica P Então, é claro que um conceito poderia conter propriedades como as de ser onisciente ou ter criado o mundo (ainda que não pudesse exemplificá-las), e é igualmente claro que o conceito que corresponde à descrição definida “o criador onisciente do mundo” contém as propriedades ser onisciente e ser 0 criador do mundo. Será que Kaufman não quis, na verdade, dizer que os cristãos afirmam que o referente disponível — um conceito contendo propriedades notáveis de Deus — exemplifica essas propriedades, mas, antes, que as contém? Também essa ideia parece errada. E realmente verdadeiro que alguns conceitos, entre eles conceitos associados a descrições de Deus, contêm essas propriedades. Quando os cristãos fazem as suas afirmações características, contudo, não estão meramente dizendo, por exemplo, que o conceito ser 0 criador onisciente dos céus e da Terra contém as propriedades ser onisciente e ser 0 criador dos céus e da Terra. Isso seria, é claro, verdadeiro, mas seria também completamente trivial. Não seria de modo algum algo que distinguisse os cristãos ou os teístas: mesmo o mais radical dos ateus concordaria que este conceito contém aquelas propriedades. O que os cristãos afirmam implica, antes, que essas propriedades sejam exemplificadas, que exista realmente um ser que as tem. Esse entendimento parece ser a interpretação literal das palavras de Kaufman, mas é claro que há outras possibilidades nas imediações. Por exemplo, talvez ele conceba o referente disponível não como um ser com as propriedades que os cristãos atribuem a Deus, mas como um tipo com o qual essas propriedades estão associadas.5 Essa interpretação pode dar a impressão de ser mais caridosa para com Kaufman, entretanto, duvido que o seja de fato. Se a tese de Kaufman é que os cristãos adoram esse tipo, então a sua tese é escandalosa, tal como afirmei acima. Contudo, se a sua tese é apenas que os cristãos acreditam adorar um ser que tem as propriedades associadas ao tipo, mas talvez estejam enganados, será que a tese vai além da simples e desinteressante ideia de que os cristãos talvez estejam enganados quanto à existência da pessoa divina? Considere-se agora o verdadeiro referente. A ideia é que os nossos conceitos não se aplicam ao verdadeiro referente, se é que existe realmente tal coisa. Segue-se que esse ser 5Veja Nicholas Woltcrstorff, From presence to practice; mind, world, and entitlement to believe, cap. 1 (inédito).

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não é sábio, todo-poderoso ou o criador dos céus e da Terra. Considere-se pois o nosso conceito de sabedoria. Ele se aplica a uma coisa apenas se essa coisa for sábia. Assim, um ser ao qual esse conceito não se aplicasse não seria sábio, ainda que seja muitas outras coisas. Consequentemente, se nenhum conceito nosso se aplica ao verdadeiro referente do termo “Deus”, é claro que os nossos conceitos particulares de ser amoroso, todo-poderoso, sábio, criador e redentor não se lhe aplicam, de modo que ele não é amoroso, todo-poderoso, sábio, criador ou redentor. Ele não teria nenhuma das propriedades que os cristãos atribuem a Deus. E é claro que, até aqui, isso está em harmonia com as intenções de Kaufman. Suspeito, contudo, que essa posição oficial tem outras consequências que Kaufman não deseja. Se esse ser, este verdadeiro referente, é realmente tal que nenhum dos nossos conceitos se lhe aplica, então não terá também propriedades como a identidade consigo mesmo, a existência e ser um objeto material ou !material, dado que todas estas são propriedades das quais temos conceitos. Na verdade, ele não teria nem mesmo a propriedade de ser o verdadeiro referente do termo “Deus” ou de qualquer outro termo; o nosso conceito ser 0 referente de um termo não se lhe aplicaria. O fato é que este ser não teria nenhuma propriedade, porque o próprio conceito de ter pelo menos uma propriedade não se lhe aplica. A perspectiva de Kaufman parece implicar que poderia haver um ser que não tivesse propriedades, não existisse, não fosse idêntico a si mesmo, e não fosse um objeto material ou !material. Consequentemente, estritamente entendida, a posição de Kaufman é incoerente.

B. A função da linguagem religiosa Talvez seja por razões como essas que, nas suas obras mais recentes, em particular The theological imagination [A imaginação teológica],6 Kaufman parece ter abandonado o verdadeiro referente. Em vez disso, afirma que “é um erro reificar Deus, tornando-o um ser independente” (77, p. 38); que “Encarar Deus como um tipo de objeto descritível ou cognoscível diante de nós seria ao mesmo tempo uma degradação de Deus e um sério erro categorial” (77, p. 244); e que E um erro, consequentemente, encarar as qualidades atribuídas a Deus (p. ex., asseidade, santidade, onipotência, onisciência, providência, amor, revelação de si) como se fossem características ou atividades desse ser particular. Ao contrário, na construção mental da imagem/conceito de Deus, a relação comum de sujeito e predicado se inverte. Em vez de o sujeito (Deus) ser um dado ao qual os vários predicados são então atribuídos, os termos descritivos em si são aqui os elementos de construção que a imaginação usa ao gerar a sua concepção. [...] A construção teológica contemporânea precisa reconhecer que esses termos e conceitos não se referem diretamente a “objetos” ou “realidades” ou às suas 6Cujo subtítulo é Constructing the concept o f God (Philadelphia: Westminster Press, 1981; doravante 77). Veja também o seu Essay on theological method (Missoula: Scholars Press, 1975/1979).

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qualidades e relações, funcionando antes como elementos de construção ou pontos de referência que articulam a cosmovisão ou perspectiva teísta da vida (77, p. 244). Por que devemos pensar que esses termos, na verdade, não denotam um criador todo-poderoso e sumamente sábio do Universo? Aparentemente, é porque Kaufman não acredita que tal ser exista: ele pensa, segundo vejo, que as únicas atitudes apropriadas diante dessa proposição são a descrença ou a suspensão da crença, ou seja, o ateísmo ou o agnosticismo. Como é natural, se não há um ser desse gênero, nenhum dos nossos termos denotará um ser desse gênero. Essa posição talvez seja surpreendente para um teólogo; um teólogo que não acredita em Deus é como um montanhista para quem a existência de montanhas é uma questão em aberto, ou um encanador agnóstico em relação a canos: um espetáculo de encher os olhos, mas difícil de levar a sério.7 E por que pensa ele que não há tal pessoa? Uma vez mais, ele quase não apresenta argumentos. Cita primeiro “a ascensão de uma nova consciência do significado do pluralismo religioso”;8 depois, no mesmo artigo, afirma que “novas teorias sobre os modos pelos quais os quadros de referência culturais e linguísticos, de natureza conceituai ou simbólica, influenciam toda a nossa experiência e pensamento [...] deram origem nos teólogos a uma nova consciência do caráter extraordinariamente complexo e problemático das chamadas proposições religiosas com pretensão de veracidade’(religions truth-claims), entre elas as da fé cristã”; terceiro, menciona o problema tradicional do mal, mas com uma surpresa: os próprios cristãos, ao contrário do que gostariam de pensar, são responsáveis por uma boa parte do mal do mundo. (Esta última afirmação é infelizmente verdadeira, e talvez [para dar só um exemplo] uma parte da razão de ser da apostasia moderna, no Ocidente, seja o triste espetáculo dos cristãos a lutar entre si nos séculos 16 e 17.) E um salto imenso, contudo, retirar daí a conclusão de que a pessoa de Deus provavelmente não existe. No capítulo 14 examinaremos a questão de o mal constituir um anulador da crença cristã e no capítulo 13 faremos o mesmo com respeito à pluralidade de religiões que o mundo conhece. Quanto à segunda alegação — a afirmação de que muitas pessoas pensam atualmente que “os quadros de referência culturais e linguísticos, de natureza conceituai ou simbólica, influenciam toda a nossa experiência e pensamento”— talvez seja verdadeira: mas, se ela põe em dúvida toda a nossa experiência e pensamento, incluindo assim o cristianismo, não fará o mesmo com qualquer outra maneira de pensar, incluindo o pensamento de que põe em dúvida o que pensamos? Se assim for, parece deixar tudo exatamente como estava, e não funciona como razão para duvidar específicamente do teísmo (ou, na verdade, seja do que for). Seria de esperar de quem é ateu ou agnóstico quanto a Deus que se afastasse completamente da religião, encarando a devoção e a crença religiosas com um olhar de 7Infelizmente, este espetáculo não é raro na época atual. Compare-se, por exemplo, Don Cupltt, que tem idéias semelhantes, às vezes expressas com uma certa excentricidade afável: “Exigir de Deus uma realidade extrarreligiosa é espiritualmente grosseiro e imaturo” (p. 10 do seu Taking leave of God [New York: Crossroad, 1981]); e acrescenta: “A verdadeira existência externa de Deus não tem interesse religioso” (p. 96). 8“Evidentialism: a theologian’s response”, Faith and Philosophy (Janeiro 1989), p. 30.

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hostilidade ou, na melhor das hipóteses, de dó. Não é essa a rota de Kaufman. Em vez disso, ele argumenta que a prática e devoção religiosas "tem ainda uma função importante a desempenhar na vida”. Essa função, é claro, não consiste em nos pôr em contato com um ser que tenha as propriedades tradicionalmente atribuídas a Deus ou permitir que nos apropriemos da salvação em Jesus Cristo que Deus nos prometeu. Essa nova função exige, isso sim, que os teólogos construam ou reconstruam o conceito de Deus. A linguagem religiosa ainda é importante, mas deve ser reformulada para deixar de lado a vã tentativa de se referir a um ser que não existe. Em vez disso, deve ser usada para promover o florescimento humano, “a realização humana e o sentido” (77, p. 34). A palavra “Deus” deve ser associada a um símbolo, ou imagem, ou conceito que os teólogos constroem; a tarefa deles é reconstruir o conceito ou símbolo “Deus” de um modo apropriado à nossa situação histórica atual. (Assim, em Theologyfo r a nuclear age, ele sugere que nesta era nuclear moderna devemos conceber Deus como “a força histórica evolutiva que nos trouxe todos à existência”.9) A palavra “Deus”, consequentemente, não deve continuar a ser entendida como se fizesse referência a uma pessoa todo-poderosa, sumamente sábia e plenamente amorosa que criou o mundo; não deve ser entendida como se fizesse referência a uma pessoa de modo algum. Ela deve ser vista como uma espécie de símbolo de certos estados de coisas. Por exemplo, os cristãos entenderam a transcendência como uma propriedade de Deus; Kaufman recomenda que, ao construir o novo símbolo, mantenhamos a transcendência:10 O que parece estar em causa aqui é a tese de que os indivíduos humanos, e as comunidades, precisam de um centro de orientação e devoção fora de si mesmos e dos seus desejos e necessidades para que encontrem genuína realização {TI, p. 35-6). Deus simboliza aquilo que, no processo histórico evolutivo, fundamenta o nosso ser como algo distintamente humano e que nos estimula (ou motiva) em direção à realização humana autêntica (salvação). [...] A devoção ritualizada a Deus no culto religioso, assim como nas disciplinas privadas da oração e meditação, tem ainda uma importante função a desempenhar na vida {TI, p. 41). De modo mais geral: “Deus”é o símbolo personificador dessa atividade cósmica que criou a nossa humanidade e continua a insistir na sua completa realização. Tal personificação tem, sob alguns aspeetos, uma vantagem considerável em comparação com conceitos abstratos como “forças cósmicas” ou “fundamentação da nossa humanidade na natureza última das coisas”:

9Manchester: Manchester University Press, 1985, p. 43. 10Como se relacionam propriedades como a transcendência ou a asseidade com os símbolos por nós construídos? Limitamo-nos a fazer uma lista de propriedades e declaramo-las associadas ao termo “Deus”? Está longe de ser fácil ver como isso deveria funcionar, e Kaufman não nos diz como seria.

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o símbolo “Deus” é concreto e definido, uma imagem nitidamente delineada, e como tal pode prontamente tornar-se o foco central da devoção e do serviço. [...] “Deus” é um símbolo que junta a si e concentra para todos nós essas forças cósmicas que conspiram para que tenhamos aquela existência plenamente humana que almejamos (TI, p. 50). O discurso segundo o qual o Deus cristão é “real” ou “existente” exprime simbolicamente a convicção de que as pessoas-na-comunidade livres e amorosas têm um fundamento metafísico substancial, de que há forças cósmicas conspirando para esse gênero de humanização (TI, p. 49). A imagem/conceito cristã de Deus, como a apresentei aqui, é um construto imaginativo que orienta as personalidades e as comunidades para facilitar o desenvolvimento pessoal rumo ao amor e ao carinho plenos, e o desenvolvimento das comunidades rumo à abertura, ao amor e à liberdade (TI, p. 48). A ideia, conforme posso entendê-la, é a seguinte: talvez aquela pessoa em quem os teístas tradicionalmente acreditavam simplesmente não exista. Apesar disso, é uma boa ideia continuar usando a palavra “Deus” e, ainda, continuar proferindo muitas das mesmíssimas palavras, expressões e frases usadas por aqueles que acreditam em Deus; se isso for feito do modo adequado, promoverá o florescimento humano. Como, exatamente? Talvez da seguinte maneira: damo-nos conta, primeiro, de que a pessoa de Deus provavelmente não existe. Temos então a liberdade de selecionar um conceito/imagem de “Deus”, associá-lo a certas propriedades — existência e transcendência, talvez — e usá-lo para simbolizar coisas como a ideia de que o mundo acolhe, pelo menos em parte, aspirações, propósitos, necessidades e desejos caracteristicamente humanos. Devemos dizer coisas como “Deus existe” para exprimir a ideia de que realmente há forças no mundo que contribuem para o florescimento humano. (Devemos acrescentar, suponho, que o diabo também existe, simbolizando a existência de forças que conspiram contra o florescimento humano.) Devemos dizer “Deus é independente de nós” para exprimir a ideia de que tanto a comunidade quanto a pessoa precisam de um foco de interesse situado fora de si para florescer. (Talvez devamos acrescentar “Estamos justificados pelo sofrimento e morte de Jesus Cristo”, simbolizando assim o fato de que nem sempre nos sentimos culpados, ou “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo”, simbolizando assim que as coisas são atualmente mais propícias ao florescimento humano do que o foram em alguns momentos do passado.) E dizer essas coisas promoverá por si o florescimento humano. Podemos levar alguma parte disso a sério? Não se trata de pôr vinho novo em odres velhos: o que há aqui não se parece de modo algum com o vinho rico, poderoso e perfumado das grandes verdades cristãs; o que temos é algo prosaico, trivial e insípido. Não é sequer uma questão de jogar fora o bebê com a água do banho; trata-se, antes, de jogar fora o bebê e ficar com a água tépida do banho — na melhor das hipóteses, uma poção desagradável que não é quente nem fria; na pior, uma mistura nauseabunda,

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imprópria para consumo, seja de homens, seja de animais. Além disso, esta reedição de secularidade disfarçada de "reconstrução” do cristianismo encoraja a desonestidade e a hipocrisia; tem como resultado uma espécie dc código privado no qual se proferem as mesmas expressões de quem aceita a crença cristã, mas querendo dizer algo inteiramente diferente. Parece assim que estamos em harmonia com quem aceita a crença cristã, mas, na realidade, rejeitamo-la completamente. Podemos então agir com superioridade para com os fiéis (que não atingiram o nosso grau de iluminação), no entanto, sem pagar desnecessariamente o preço de os perturbar. O fato é que essa duplicidade verbal é na melhor das hipóteses confusa e enganadora, contribuindo apenas para mal-entendidos, desonestidade e hipocrisia. Não seria muitíssimo mais honesto seguir o exemplo de, por exemplo, Bertrand Russell, A. J. Ayer, Daniel Dennett, ou até Madalyn Murray O ’Hair e declarar sem meias palavras que Deus não existe e que o cristianismo é um erro enorme?

II. H ick As obras de John H ick são interessantes tanto por elas mesmas quanto no que diz respeito ao nosso tópico; também ele defende uma perspectiva que muito deve a Kant, perspectiva que pode ser entendida (com restrições consideráveis) como a ideia de que os nossos conceitos não se aplicam a Deus ou a “O Real”. Há aqui ecos evocativos de Kant e também ecos evocativos de algumas das dificuldades e tribulações que assediam qualquer esforço para encontrar uma interpretação ou entendimento coerente de Kant.

A. O Real A doutrina tradicional da inefabilidade divina encontra-se tanto no cristianismo como em outras tradições religiosas. Hick pensa que essa doutrina é na verdade o reconhecímento de uma distinção quase kantiana entre Deus (o Real, o Absoluto11) tal como é em si e tal como épara nós (tal como o conhecemos ou dele temos a experiência): Cada uma das grandes tradições fez uma distinção, ainda que com diferentes graus de ênfase, entre o Real (entendido como Deus, Brahma, o Dharmakaya...) em si e o Real tal como se manifesta no seio do domínio intelectual e experiencial dessa tradição (p. 236). Até aqui, tudo bem; essa afirmação — que há uma distinção entre o Real tal como é em si e tal como é para nós — é relativamente fraca. Exige apenas que o modo de entendermos Deus não coincida completamente com o que Deus efetivamente é; para que essa afirmação fosse verdadeira, bastaria que, por exemplo, Deus tivesse certas*

uAn interpretation o f religion (New Haven: Yale University Press, 1989), p. 236-9. A menos que seja dada indicação em contrário, as indicações de páginas referem-se a este livro.

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propriedades de que não temos conhecimento ou, o que é mais forte, que tivesse propriedades que não pudéssemos conhecer. Mas Hick vai muito além: o Real é tal que não podemos dizer seja o que for a respeito dele, já que nenhum dos nossos conceitos pode se aplicar a ele literalmente (e corretamente): Assim, apesar de não podemos falar do Real an sich em termos literais, vivemos inescapavelmente em uma relação com ele (p. 351). E no seio do domínio fenoménico ou da experiência que a linguagem se desenvolveu e é aí que se aplica literalmente. Com efeito, o sistema de conceitos integrados na linguagem humana contribuiu reciprocamente para a formação do mundo percebido pelos seres humanos. Há aqui tanto de construído como de dado. Mas a nossa linguagem não pode aplicar-se a uma postulada realidade numênica que nem mesmo parcialmente é formada por conceitos humanos. Isso está além do âmbito das nossas capacidades cognitivas (p. 350). Isso parece a interpretação dos dois mundos em Kant (ver p. 42). Há o domínio fenoménico, ao qual a nossa linguagem se aplica; este “mundo percebido pelos seres humanos” tem tanto de construído como de dado e é construído, em parte, em virtude da nossa aplicação de conceitos. Contudo, há também um mundo numênico (“O Real”), o qual “nem mesmo parcialmente é formado por conceitos humanos” e, por isso, está além do domínio das nossas capacidades cognitivas. E aqui se levantam algumas questões que surgiram com respeito à interpretação dos dois mundos em Kant: por que pensar que algo só está no domínio das nossas capacidades cognitivas se for parcialmente formado por conceitos humanos? Por acaso os cavalos e dinossauros são (parcialmente) formados pelos nossos conceitos? (Em que partes?) E se os mímenos estão fora do domínio das nossas capacidades cognitivas, como sabemos algo sobre eles ou mesmo sabemos que essas coisas existem? Contudo, ele adota mais frequentemente a imagem de um só mundo: Kant fez uma distinção entre o númeno e o fenômeno, ou entre uma Ding an sich e essa coisa tal como aparece na consciência humana. [...] Nessa linha do pensamento de Kant — não é a única, mas é a que pretendo pôr a serviço da epistemología da religião —, o mundo numênico existe independentemente da nossa percepção e o mundo fenomênico é esse mesmo mundo à medida que aparece à nossa consciência humana. [...] Quero dizer que o Real numênico é experimentado e pensado pelas diferentes mentalidades humanas (que formam e são formadas pelas diferentes tradições religiosas) como a plêiade de deuses e absolutos que a fenomenología da religião relata (p. 241-2). Além do mais, não está claro se Hick pensa que podemos perceber esse ser ou não, se o percebemos de fato, ou se temos algum outro modo de experiência dele. Do lado do “não”, temos

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Se do Real em si não temos nem podemos ter experiência humana, por que postular uma tal Ding an sich desconhecida e incognoscível? A resposta é que o númeno divino é um postulado necessário da vida religiosa pluralista da humanidade (p. 249). Do lado do “sim”, temos, por exemplo, Analogamente, quero dizer que o Real numênico é experimentado e pensado pelas diferentes mentalidades humanas (que formam e são formadas pelas diferentes tradições religiosas) como a plêiade de deuses e absolutos que a fenomenología da religião relata (p. 242). e O real numênico é tal que temos dele a experiência autêntica sob a forma de fenômenos teístas e não teístas (p. 247-7). H á várias outras passagens que poderiamos citar a favor de cada um dos lados; está claro que H ick é ambivalente quanto à resposta à questão. Mas talvez isso não seja fatal; a sua resposta, parece-me, seria “De certo modo, sim, e de outro modo, não”. O real numênico dá uma contribuição causai crucial para a nossa experiência; talvez não faça diferença dizer que temos efetivamente a experiência dele ou, em vez disso, dizer que ele contribui para a nossa experiência. O utra ambiguidade, contudo, não é tão fácil de descartar. No capítulo 19, Hick pare‫״‬ ce dizer que os nossos conceitos não se aplicam ao númeno ou, para seguir de modo exato sua própria formulação, nenhum dos nossos termos se lhe aplica literalmente. Ele cita Buda, que, com respeito a onde ou em que esfera um Tathagata (um ser completamente iluminado) renasce depois da morte, afirma que nenhuma das expressões “renasce”, “não renasce”, “renasce e não renasce” e “nem renasce nem não renasce” se aplica à condição do Tathagata (p. 346). Hick aparentemente aprova essa formulação e acrescenta: “Temos aqui a ideia de realidades e circunstâncias que transcendem as categorias disponíveis dos nossos pensamento e linguagem não iluminados. A total impossibilidade de captá-las é assinalada pelo fato de o Buda rejeitar não apenas as asserções diretamente positivas e negativas, mas também sua combinação e disjunção” (p. 347). Hick afirma também que “não podemos falar do Real an sich em termos literais” (p. 351). Se ele realmente quer dizer que nenhum dos nossos termos se aplica literalmente ao Real, o que ele afirma simplesmente não faz sentido. Suponho que o termo “triciclo” não se aplica ao Real; o Real não é um triciclo. Mas se o Real não é um triciclo, então “não é um triciclo” se lhe aplica literalmente; ele é um não triciclo. Não podería scr nem um triciclo nem um não triciclo, nem tampouco me parece que Hick pretenda aventar essa possibilidade. No capítulo 14, contudo, Hick faz uma proposta bastante diferente. Nas suas palavras, “não faria realmente sentido dizer de X que nenhum dos nossos conceitos se lhe aplicam” (p. 239); por exemplo, pelo menos o nosso conceito de ser tal que possamos nos referir a ele

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teria de aplicar-se a qualquer X do qual estejamos dispostos a dizer algo, seja o que for, inclusive que os nossos conceitos não se lhe aplicam. Em vez disso, a ideia, afirma Hick, é que, entre os nossos conceitos, só osformais e os negativos se aplicam ao Real, ou seja, das propriedades que apreendemos, só as que são formais, como ter algumas propriedades, ser idêntico a si mesmo e ser tal que 7 + 5 = 12, e as que são negativas, como não ser um cavalo, não ser um triciclo e não ser bom, se lhe aplicariam. Hick acrescenta que há uma tradição substancial no cristianismo e em outras religiões segundo a qual devemos distinguir ...entre o que poderiamos chamar propriedades substanciais, como “ser bom”, “ser poderoso”, “ter conhecimento”, e propriedades puramente formais e logicamente geradas, como “ser um referente de um termo” e “ser tal que os nossos conceitos substanciais não se lhe aplicam”. O que queriam afirmar era que as caracterizações substanciais não se aplicam a Deus no ser autoexistente de Deus, para lá do alcance da experiência humana. Exprimem muitas vezes esta ideia dizendo que só podemos fazer afirmações negativas sobre o Absoluto. [...] Esta via negativa (ou via remotionis) consiste em aplicar conceitos negativos ao Absoluto —* o conceito de não ser finito etc. — para indicar que ele está além do alcance de todas as nossas caracterizações positivas substanciais. E nesse sentido restrito que faz perfeito sentido dizer que os nossos conceitos substanciais não se aplicam ao Absoluto (p. 239). H ick está aqui, aparentemente, assinando embaixo do que entende que essas tradições defendem. Não sei se há alguma maneira de harmonizar o capítulo 14 com o 19; se não há, sugiro que aceitemos o 14. Em algumas passagens, ao caracterizar essas tradições, Hick comete erros de historiografia. Por exemplo, ele afirma que “Calvino defendia que não conhecemos a essência de Deus, mas apenas o Deus que nos é revelado” (p. 250), e refere-se às Institutes de Calvino, I: xiii: 21. Mas Calvino não defende que não podemos saber coisa alguma da essência de Deus. No capítulo referido, ele começa por defender que A doutrina das Escrituras a respeito da essência infinita e espiritual de Deus deveria ser suficiente não apenas para banir as ilusões populares, mas também para refutar as sutilezas da filosofia secular.12 Calvino passa então a observar que não podemos “medir Deus “pelos nossos próprios sentidos Mas mesmo que Deus, para que permaneçamos sóbrios, pouco fale da sua essência, por meio dos dois títulos que usei [“infinito” e “espiritual”] ele a um tempo afasta

12Tradução para o inglês de Ford Lewis Battles, edição de John T. M cNeill (Philadelphia: Westminster Press, 1960), I,xiii, Ι,ρ . 120 [edição em português:Λ instituição da religião cristã (São Paulo: Unesp, 2008), 2 vols.].

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imagens estúpidas e impõe limites à afoiteza da mente humana. Sem dúvida que a sua infinitude deveria fazer-nos ter medo de tentar medi-lo pelos nossos próprios sentidos (p. 121). A ideia seguinte de Calvino é que, por ser Deus um espírito, não podemos a rigor atribuir-lhe características corpóreas. Calvino admite que a Escritura parece realmente atribuir-lhe tais características (uma boca, um braço, ouvidos, olhos, mãos), mas quem, em consequência, considera que ele tem essas características corpóreas não entende que “como as amas fazem frequentemente com as crianças, Deus tem o hábito de como que ‘cecear’ ao falar conosco” (p. 121). Aqui, Calvino pensa claramente que sabemos que Deus “em si” é infinito, espiritual e incorpóreo; a sua essência inclui a infinitude e a incorporeidade. Na passagem a que Hick se refere, além disso, o objetivo de Calvino é fazer-nos ter o cuidado de não tentar desvendar a essência de Deus usando exclusivamente os recursos da razão; dadas as limitações desta, tal tarefa está condenada a revelar-se fútil: Pois como pode a mente humana medir a essência incomensurável de Deus segúndo a sua própria medida minúscula, uma mente ainda incapaz de determinar com exatidão a natureza do corpo solar, apesar de este ser diariamente visto pelos olhos dos homens? [...] Deixemos então voluntariamente a Deus o conhecimento de si mesmo. [...] Porém só o estaremos “deixando a ele” se o concebermos como ele se nos revela, sem inquirir acerca dele de outros modos que não por meio da sua Palavra (I, xiii, 1, p. 146). O que Calvino quer dizer é que a Escritura é uma fonte muito melhor do conhecimento de Deus (inclusive do conhecimento da sua essência) do que a especulação racional. Ele não pensava, de modo algum, que nenhum dos nossos conceitos positivos substanciais se aplicava a Deus; claramente acreditava que Deus é na realidade o criador dos céus e da Terra, que ele realmente nos ama, que é incorpóreo, sábio, poderoso, amoroso e assim por diante. Desse ponto de vista, a tese de Hick sobre o Real não é que nenhum dos nossos conceitos se lhe aplica; isso seria claramente incoerente. Sua tese é que só os nossos conceitos e termosformais e negativos se lhe aplicam, ou seja, as únicas propriedades dele que apreendemos são as formais e as negativas. Considere-se primeiro os conceitos formais. Incluem-se neles, em primeiro lugar, conceitos de propriedades tais que todas as coisas as têm, e as têm necessariamente.13 Hick está pensando (parece-me) em propriedades tais que seja necessário que tudo as tenha: propriedades como ser idêntico a si mesmo, ter propriedades, ter propriedades essenciais, ser um cavalo ou um não cavalo e ser tal que 7 + 5 = 12. Essas propriedades são tais que todas as coisas as têm necessariamente. ‫ ״‬Um conceito que obedeça à primeira condição, mas não à segunda (ou seja, que seja tal que tudo se subsuma nele, mas não que tudo se subsuma nele necessariamente), não pode ser considerado formal. Por exemplo, o conceito não viver na Lua ou não ser humano aplica-se a tudo (não há qualquer ser humano na Lua), mas não é um conceito formal no sentido em questão.

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Poderiamos acrescentar que são essenciais a tudo. Uma propriedade essencial de um objeto é aquela sem a qual não é possível que o objeto exista: a propriedade de ser idêntico a si mesmo seria um exemplo. Poderiamos acrescentar, ainda, que cada uma dessas propriedades é tal que é necessário que todas as coisas a tenham essencialmente. Assim, tome-se qualquer uma das propriedades sob consideração: todas as coisas a têm, é necessário que todas elas a tenham, todas a têm essencialmente e é necessário que todas a tenham essencialmente. A existência é outra dessas propriedades formais: tudo existe, a existência é uma propriedade essencial de tudo e é uma verdade necessária que a existência é essencial a tudo. Mas essas não são as únicas propriedades que Hick quer incluir sob a rubrica “formal”. As outras são propriedades como ser referido por seres humanos e ser pensado pelo João. Assim, a ideia não é que não podemos falar ou pensar acerca do ser em questão. Ao contrário: podemos pensar sobre ele, referir-nos a ele e afirmar que existe. Podemos, além disso, dizer que podemos nos referir a ele. Em segundo lugar, além das propriedades formais, podemos predicar propriedades negativas desse ser — isto é, podemos corretamente predicar-lhe propriedades negativas. Isso é implicado pela posição de Hick, tal como até agora a expliquei. Podemos demonstrá-lo da seguinte maneira. Primeiro, note-se que toda propriedade tem um complemento, e o complemento de uma propriedade P é a propriedade de não ter P Cada uma das propriedades de que temos um conceito tem um complemento: a propriedade de não ter essa propriedade. Assim, o complemento da propriedade da sabedoria é a propriedade de não ser sábio, propriedade essa que caracteriza tudo o que não é sábio. E se apreendemos a propriedade em questão (a sabedoria, por exemplo), se temos dela uma concepção, então também apreendemos o seu complemento. Ora, considere-se qualquer propriedade P e o seu complemento, —P, “ter a propriedade P ou —P ’é uma dessas propriedades formais que todas as coisas têm necessariamente. Claro, tudo o que tem essa propriedade tem a propriedade P ou então o seu complemento - P (Dada uma coisa qualquer por nós escolhida, ou ela é sábia ou não é.) Do ponto de vista de Hick, tal como o explicamos, contudo, o Real não tem qualquer propriedade positiva não formal que seja apreensível. Segue-se, então, que, para todas as propriedades positivas P que apreendemos, o Real tem -P. Estamos falando aqui das propriedades que a coisa em questão tem, não da nossa capacidade ou incapacidade de saber ou acreditar avalizadamente algo acerca de suas propriedades. Afirmo que, para qualquer propriedade P, qualquer objeto tem essencialmente a propriedade de ter apropriedade P ou -P, afirmo ainda que, se um ser tem essa propriedade, segue-se que ele tem ou a propriedade P ou a propriedade - P Apesar disso, podemos saber (ou ter uma crença justificada, ou uma crença avalizada) que um ser tem a propriedade de ter as propriedades P ou -P sem sabermos (ou sem termos uma crença justificada etc.) se ele tem a propriedade P e sem sabermos se tem a propriedade -P Não sei e não tenho qualquer opinião sobre a questão de saber se Sócrates alguma vez teve um cavalo; contudo, ou ele teve um cavalo ou não teve. Ao desenvolver o ponto de vista de Hick, pois, estou pressupondo um gênero de realismo: a ideia de que as coisas (algumas

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coisas) podem ser de certo modo, ainda que nem eu nem qualquer outro ser humano saibamos se são desse modo ou não. Em tudo o que Hick afirma, não há indício algum que sugira que a sua posição o obrigue a pôr em dúvida esse truismo. Assim, a ideia é que podemos predicar propriedades negativas desse ser. Além disso, a ideia é que podemos predicar-lhe corretamente propriedades negativas: ele tem propriedades negativas. Na verdade, para cada uma das propriedades positivas não formais que apreendemos, o Real tem o complemento dessa propriedade (que é uma propriedade negativa). Entre os nossos conceitos positivos, só os puramente formais se aplicam a esse ser; quanto ao resto dos nossos conceitos, só os negativos se lhe aplicam. O Real não tem sabedoria: logo, tem não sabedoria; não tem amor: logo, tem não amor; e assim por diante para todas as outras propriedades positivas não formais que apreendemos. Porém, dirá o leitor, não é possível haver um ser que tenha apenas propriedades formais e negativas. Isso é certamente verdadeiro; apesar disso, não vem ao caso no que diz respeito à tese de Hick. O ser em questão pode muito bem ter propriedades positivas, além das formais; tudo o que a posição de H ick exige é que elas sejam propriedades positivas de que não temos qualquer conceito, propriedades que não apreendemos. E é certo que não podemos afirmar que não haja nenhuma propriedade positiva como essas. Devemos aqui fazer duas perguntas. Primeira: esta posição hickiana é coerente? Segunda: há alguma razão para aceitá- la?

B. Coerente? 1. P oderá h a v e r u m s e r q u e só ten h a p ro p rie d a d e s fo rm a is e n egativas?

Tal ser, afirma Hick, não tem propriedades positivas não formais das quais tenhamos um conceito; as únicas propriedades positivas dele são aquelas que não apreendemos. Isso não é flagrantemente incoerente. Não conseguimos ver, penso, que não poderia haver um ser assim; e isso porque temos uma apreensão muito frágil das propriedades que não apreendemos. Não sabemos o suficiente sobre elas para ter certeza de que não é possível que exista um ser assim. Claro que não temos também razão alguma para pensar que pode haver um tal ser: o fato de não podermos ver que não pode haver um ser assim é uma razão muito fraca, ou nenhuma, para pensar quepodemos ver que pode haver. (Uma coisa é não conseguir ver que algo é impossível; outra, muitíssimo diferente, é ver que algo é possível.) Nesse caso, ao que parece, não sabemos o suficiente para sermos capazes de dizer se é possível que haja tal ser. Assim, suponha-se que concedemos, provisoriamente, pelo menos para efeito de discussão, que é possível que tal ser exista. Se tal ser existe, como seremos capazes de nos referir a ele, de o selecionar de algum modo como sujeito de predicação? Como fazer isso? Não será, certamente, pelas descrições estabelecidas por meio das quais os cristãos creem que conseguem indicar Deus — descrições como “o criador onipotente e onisciente do mundo”, digamos; essas

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descrições incluem propriedades positivas não formais das quais temos concepção. Poderiamos, em vez disso, usar a descrição “o ser que não tem nenhuma propriedade positiva substancial que seja apreendida por nós”? Não; pois se há um tal ser, então talvez haja vários outros, nenhum com quaisquer propriedades positivas não formais que possamos apreender, mas diferindo entre si com respeito a outras propriedades positivas não formais que não podemos apreender. Assim, não há razão alguma para pensar que essa descrição funcionará. (Claro que, uma vez mais, não sabemos com certeza se não funciona; tanto quanto sabemos ou podemos dizer, há um e apenas um ser com nenhuma propriedade positiva não formal da qual tenhamos apreensão.) Ora, a ideia de Hick, penso, é que os praticantes das grandes religiões se referem realmente a este ser (o Real, que não tem propriedades positivas não formais de que tenhamos apreensão) quando (segundo lhes parece) se referem a Deus, Alá, Brahma, Shiva, Vishnu, Dharmakaya ou seja o que for. Assim, os cristãos pensam que se referem a um ser pessoal, amoroso, sábio etc.; o fato, contudo, é que não se referem a tal ser, mas antes a um ser que não tem nenhuma dessas propriedades ou, aliás, nenhuma outra propriedade positiva por nós apreendida. Será isso realmente possível? Será possível que estejamos nos referindo a um ser, pensando que tem as propriedades P , ..., P , quando, de fato, ele não tem nenhuma dessas propriedades nem nenhuma outra propriedade positiva de que tenhamos concepção? Também isso não é, pelo menos, claramente impossível. Pode certamente acontecer de nos referirmos a um ser e estarmos muitíssimo enganados quanto às suas propriedades. Nunca me encontrei com o leitor; em uma carta, digo-lhe que sou um jogador de tênis mundialmente famoso e um atleta de talentos invejáveis; a realidade é que sou uma desgraça completa no tênis e em qualquer atividade semelhante. Afirmo, além disso, que tenho uma voz de tenor que rivaliza com a de Pavarotti, ganhei o prêmio Nobel de Economia, sou bonito e escrevo poemas esplêndidos; tudo isso é brutalmente falso (na realidade, sou incapaz até de apreciar qualquer poesia acima do nível de William E. McGonagall, poeta e ator trágico,14 não sei coisa alguma de economia, sou incapaz de cantar uma nota e tenho uma aparência perfeitamente comum). Nesse caso, tenho poucas das propriedades que você me atribui; mesmo assim, você consegue se referir a mim. Claro que é preciso haver algum tipo de conexão entre nós. Você não pode me seledonar como aquele atraente tenor-poeta-economista que mora (digamos) em Jamestown, Dakota do Norte; essa descrição não se aplica a mim.15 Contudo, você pode se referir a 14Veja, da autoria de McGonagall, Poetic gems (Dundee: David Winter and Son; London: Gerald Duckworth, publicado inicialmente em duas partes em 1890 e publicado pela primeira vez num só volume em 1934). Veja também os seus More poetic gems, Still more poetic gems, Yet more poetic gems e Poetic gems once again. 15Mas mesmo isso não seria impossível: se tenho outra maneira de me referir a você, mas penso também que essa descrição se aplica a você, pode acontecer de eu usá-la e efetivamente conseguir referir-me a você. Suponhamos que Deus não tenha algumas propriedades que pensamos que tem: suponhamos, por exemplo, que ele não é simples, no sentido clássico, mas antes composto, fazendo-se então uma distinção entre ele e suas propriedades, entre ele e sua existência e assim por diante. Mesmo assim, se um credo como a Confissão Belga se refere a ele como o criador espiritual simples do Universo, o fato de a descrição não lhe ser aplicável não significa que a referência não ocorra.

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mim como aquela pessoa que lhe escreveu uma carta afirmando ser todas essas coisas (supondo que você tenha recebido apenas uma carta assim). E talvez algo semelhante ocorrería no caso do Real. Como se dará, supostamente, a referência, nesse caso? Bem, a ideia de Hick, segundo parece, é que podemos nos referir ao Real como aquele ser a que os praticantes das grandes religiões se referem quando pensam que estão se referindo a seres com as propriedades atribuídas a Deus, Alá, Brahma, Vishnu e outros semelhantes. Como é óbvio, isso apenas retarda o problema: como eles se referem a ele?’ Como é possível que os cristãos, ao usar o tenno “Deus”, estejam na realidade referindo-se a este ser que não tem propriedades positivas que eles apreendam, apesar do fato de eles pensarem que estão se referindo a um ser com muitas propriedades positivas desse gênero? Uma vez mais, é preciso haver alguma conexão entre elas e o Real. (Evidentemente, os praticantes do cristianismo não se limitam a formular a hipótese de que há um ser sem propriedades positivas das quais tenhamos apreensão, ao qual eles realmente se referem quando pensam que estão se referindo a um criador totalmente bom, onipotente e onisciente do Universo; isso não faria sentido.) Sendo assim, como se referem eles a esse ser? Em tese, isso só podería ocorrer se eles tivessem algum tipo de contato experiencial com ele, tivessem a experiência desse ser de um ou de outro modo (seja o que for que signifique dizer que um ser tem experiência de outro). Eles pensam que estão em contato com um ser com as propriedades atribuídas a Deus; estão enganados, contudo — não ao pensar que estão em contato com algo, mas ao pensar que o algo com o qual estão em contato tem as propriedades que atribuem a Deus. Ora, talvez isso seja possível: mesmo assim, exige uma modificação — bastante significadva, aliás — da posição de Hick. Se as coisas são assim, o Real tem pelo menos uma propriedade positiva não formal da qual temos concepção: a propriedade de ser objeto da nossa experiência. Tem pelo menos uma relação positiva não formal da qual temos concepção: a relação ser objeto de experiência. (Assim, a ambiguidade que observamos nas p. 69 e 70 deve ser resolvida a favor da alternativa segundo a qual temos experiência do Real.) E essa modificação pode levar a outras, pois o que significa dizer que algo é objeto da nossa experiência, ou da experiência dos praticantes das grandes religiões? O que é algo ser objeto da nossa experiência? Aqui há várias perspectivas. Uma delas é que a coisa em questão aparece a nós, de um modo que resiste a qualquer análise complementar. Outra é que ela causa em nós a experiência dela própria, ou causa algum outro tipo de experiência (e obedece a algumas outras condições). O que há em comum entre elas é pelo menos a ideia de que, para ter experiência do Real, devemos estar em contato causal com ele, devemos ter uma relação causal com ele. Talvez a história da Filosofia nos forneça uma alternativa: a ideia de que poderiamos ter a experiência de algo, talvez “experiência” num sentido ampliado por analogia, se houvesse uma harmoniapreestabelecida entre os nossos estados experienciais e os estados da coisa em questão.16Mas também isso exigiría que a coisa em questão estivesse em uma 16A objeção de Kant a essa tese leibniziana é que tal harmonia preestabelecida não seria uma relação cognitiva; não poderia sustentar, assim, o nosso conhecimento das coisas em questão. Porém, c muito difícil ver por que haveria de ser assim. Suponhamos que Deus faça com que os nossos estados cognitivos estejam em sintonia com o

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relação causal com a coisa ou pessoa (no pensamento de Leibniz, Deus) que instituiu a harmonia preestabelecida. Também aqui, consequentemente, seria exigida uma relação causai entre a coisa de que temos experiência e algo mais, de modo que também aqui essa coisa seja capaz de manter relações causais de maneira geral e tenha relações causais (talvez mais indiretas) com o sujeito que tem a experiência. E isso significa que Hick, ou um hickiano (pois talvez estejamos indo além da posição de Hick), também precisa atribuir outra propriedade positiva não formal ao Real: a propriedade de estar causalmente relacionado conosco, seres humanos. Essa propriedade não é meramente formal e tampouco é negativa. Além disso, pode incluir propriedades adicionais: aquelas que estiverem necessariamente ligadas à propriedade de estar em relação causai com os seres humanos. A coisa em questão não poderia ser, por exemplo, como normalmente se pensa que são os números e as proposições: objetos abstratos incapazes de ter relações causais. Assim, o ser em questão deve ter a propriedade de ser um objeto conereto, e não abstrato. A propriedade de ser um objeto concreto é também uma propriedade não formal (muitas coisas não a têm); como veremos, não é fácil dizer se é uma propriedade positiva ou negativa. E é claro que poderá haver ainda mais propriedades necessariamente ligadas à propriedade de estar em relação causai com os seres humanos.

2. P ro p rie d a d e s p o s itiv a s e n eg a tiva s Deveremos dizer talvez que esta última propriedade — ser um objeto concreto — é na verdade uma propriedade negativa? Por que não podemos considerar que a propriedade ser concreto é simplesmente o complemento da propriedade ser abstrato, sendo esta última positiva e a primeira, negativa? Talvez ser concreto seja na verdade apenas não ser abstrato. Mas isso conduz a uma dificuldade séria: por que ir nessa direção? Não poderemos considerar a propriedade ser abstrato como a propriedade não ser concreto, de modo que ser concreto seja a propriedade positiva e ser abstrato a negativa? Como determinar qual das duas propriedades é a positiva e qual é a negativa? Na verdade, há alguma garantia de que esta distinção entre propriedades positivas e negativas se aplica realmente às propriedades? Haverá realmente essa distinção no que respeita às propriedades? Claro que há uma distinção entre predicados positivos e negativos, itens linguísticos ou expressões como “é um cavalo”, “não é um gato” e outras semelhantes (tanto “não ser abstrato” como “não ser concreto” são predicados negativos; tanto “é concreto” como “é abstrato” são predicados positivos). Porém sabemos se esta distinção entre positivo e negativo vai além dos predicados, abrangendo também as propriedades? O que torna um predicado negativo (em português) é a presença de uma partícula negativa, como “não”, ou “im-”ou “i-” (como em “ilimitado”), ou “a-” (como em mundo que nos rodeia, e suponhamos ainda que as outras condições do aval sejam observadas (tal como são delineadas, p. ex., em Warrant and properfunction)·, por que não seria isso suficiente para que tenhamos conhecimento dessas coisas?

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“assimétrico”), ou “des-”, ou “anti‫(”־‬como em “antidesinstitucionalista”). Contudo, as propriedades presumivelmente não contêm partículas ou outros fragmentos de linguagem. O que distinguiría as propriedades positivas das negativas? Haverá realmente tal distinção? Não é fácil responder a essa questão. Poderá talvez o hickiano defender que não nos deve qualquer resposta? H á uma distinção entre a positividade e a negatividade de propriedades, afirma ele, e não há como ir aos fundamentos dessa distinção para dizer em que ela consiste, o que faz uma propriedade ser positiva ou qualquer outra coisa do genero. Essa distinção é fundamental e elementar e não pode ser explicada levando em conta qualquer outra coisa. H á exemplos claros: a sabedoria é uma propriedade positiva, e o seu complemento, a não sabedoria (que caracteriza tanto as coisas capazes de sabedoria, mas que não a têm, como as coisas incapazes de tê~la), é claramente uma propriedade negativa; a distinção em si é derradeira e não pode ser explicada em outros termos. Bem, talvez. Contudo, podemos dizer algo mais geral para definir quais propriedades são positivas e quais são negativas? Presumivelmente, a ideia é que: (1) toda propriedade é positiva ou negativa, (2) toda propriedade tem um complemento, (3) o complemento de uma propriedade P tem o sentido oposto de P (ou seja, o complemento de uma propriedade positiva é negativo e o complemento de uma propriedade negativa é positivo), (4) a propriedade equivalente17a determinada propriedade tem o mesmo sentido dessa propriedade, (5) o Real não tem nenhuma propriedade positiva da qual tenhamos concepção. (Vimos já que há exceções a este último princípio, mas deixemos isso de lado por ora.) Além disso, (6) nenhuma propriedade negativa de que tenhamos concepção implica18uma propriedade positiva de que tenhamos concepção; pois, de outro modo, o Real teria essas propriedades positivas implicadas pelas propriedades negativas de que temos concepção. E o que dizer das propriedades conjuntivas e disjuntivas? Uma propriedade conjuntiva P & Qé negativa se e somente se P e Q forem ambas negativas. (Se P ¿5‫ ׳‬Q fosse negativa e P ou Q fosse positiva, a negativa P & Q implicaria uma propriedade positiva, caso em que o Real teria essa propriedade positiva.) E o que dizer das propriedades disjuntivas? Uma disjunção P V Q de propriedades das quais temos concepção não podería ser positiva se P fosse negativa, ou se Q o fosse: de outro modo, P V Q seria implicada pela negativa P ou pela negativa Q. Até agora, à medida que me é dado ver, nada há de problemático quanto a (l)-(6) em relação à lógica apenas. Na verdade, note-se que podemos fazer uma “tabela-verdade” (na realidade, uma “tabela de positividade”) para o complemento de uma propriedade e para a disjunção e conjunção entre propriedades, e note-se também que a tabela de positividade da conjunção é a tabela-verdade da disjunção, e a tabela de positividade da disjunção é a tabela-verdade da conjunção. Mapeando a disjunção de propriedades na conjunção de proposições e a conjunção de propriedades na disjunção de proposições, os resultados da lógica preposicional nos mostrarão que a lógica das propriedades gerada por (l)-(6) é coerente, completa, decidível e assim por diante. 17Sendo P equivalente a Q se e somente se for necessário, no sentido amplamente lógico, que tudo quanto exemplifique P ou Q exemplifique conjuntamente P e Q. 18Uma propriedade A implica uma propriedade B se c somente se for necessário que todo objeto que tem Λ tenha também B.

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Contudo, ainda resta um problema de coerência. Parece, pelo menos inicialmente, que algumas propriedades positivas não formais são implicadas por propriedades negativas (dada a existência dessa distinção no que respeita às propriedades). Por exemplo, segundo Hick, o Real é absoluto e infinito: O ilimitado, ou o infinito, é um conceito negativo, a negação da limitação. Que essa negação se aplique à Realidade Ultima é um pressuposto básico de todas as grandes tradições. E um pressuposto natural e razoável: pois uma realidade absoluta que seja de algum modo limitada sê-10‫־‬ia por algo além de si mesma; e isto implicaria que não seria absoluta (p. 237-8) Entretanto, o que dizer da propriedade de “ser absoluto”? Antes de tudo, o que significa “ser absoluto”? Ora, trata-se, no mínimo, de ser independente de todos os outros seres, não depender de outros seres para existir nem para ter propriedades intrínsecas. E isso soa apropriadamente negativo. Contudo, tal independência implica a propriedade de ser autossuficiente; e ela soa positiva. Assim, aparentemente a propriedade negativa ser independente de todos os outros implica a propriedade positiva ser autossuficiente. Claro, talvez seja possível engolir em seco e sustentar que a propriedade de ser autossuficiente, ao contrário do que parece, é na realidade negativa. Bem, talvez possamos fazer isso. Mas o que dizer da infinitude? Segundo Hick, a propriedade de ser ilimitado, ser infinito, é uma propriedade negativa: é o complemento da propriedade positiva de ser limitado ou finito. (Este é outro caso em que está longe de ser óbvio, à primeira vista, qual das duas propriedades em questão é positiva e qual é negativa; vamos supor, para fins de discussão, que ser limitado seja uma propriedade positiva.) Aqui colidimos com um problema sério. O que é a propriedade de ser ilimitado? E a propriedade negativa não ser limitado. E o que é ser limitado? No caso do espaço, de onde a noção é analógicamente retirada, é ter limites ou fronteiras. Um país que fosse ilimitado, consequentemente, não teria fronteiras e ocuparia todo o espaço. (Também aqui não terfronteiras parece negativo, ao passo que ocupar todo 0 espaço parece positivo.) Ora, é claro que a ideia não é que o Real seja espacialmente ilimitado, ocupando todo o espaço. Mas, então, como se aplica aqui a analogia? No caso espacial, há duas características: um país ilimitado o é quanto a certo aspecto ou relativamente a certa dimensão: o espaço. E é também ilimitado por qualquer outro país ou entidade que ocupe espaço. Do mesmo modo, pois, o Real, se é ilimitado, é ilimitado em determinadas dimensões e é ilimitado por qualquer outro ser. Os cristãos entenderam tradicionalmente que Deus é ilimitado, infinito, desses dois modos. Começando pela segunda característica, Deus é ilimitado por qualquer outro ser: ou seja, é ilimitado em seu poder ou na capacidade de fazer cumprir a sua vontade; nenhum ser o pode obstruir, nenhum pode impedi-lo de fazer o que quer. E claro que essa propriedade, ainda que a entendamos como negativa, implica propriedades positivas. Se Deus é ilimitado em seu poder, isso significa que ele tem poder, o que é certamente uma propriedade positiva. Se ele é ilimitado na capacidade

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de fazer cumprir a sua vontade, ele tem a propriedade positiva de ser capaz de cumprir a sua vontade. E se nada pode impedi-lo de fazer o que deseja, ele tem a propriedade positiva de ser capaz de fazer o que deseja. Ser ilimitado em certas dimensões ou em certos aspectos importantes é semelhante. Deus não é ilimitado em todos os aspectos: isso só podería acontecer se ele tivesse todas as propriedades no grau máximo, o que é impossível. Se, por exemplo, ele tem a propriedade de ser um espírito, então não tem a propriedade de ser um objeto material — uma árvore, por exemplo. Em vez disso, a ideia tradicional é que Deus tem todas as propriedades engrandecedoras no grau máximo.19 Assim, Deus é ilimitado com respeito, por exemplo, ao conhecimento. E um ser que não seja limitado com respeito ao conhecimento tem o grau máximo de conhecimento, é onisciente, conhece tudo. Tal ser, é claro, teria a propriedade ser sujeito de conhecimento.20 H á alguma maneira de o hickiano escapar dessa dificuldade? Talvez. Ele poderá tentar afirmar acerca desse ser que, apesar de ele ser absoluto e ilimitado, ele o é apenas com respeito a propriedades das quais não temos qualquer apreensão. Com respeito a todas as propriedades que apreendemos, ele é na verdade limitado — limitado no sentido-limite de não exemplificar a propriedade em absoluto. Ele tem o complemento de todas as propriedades que apreendemos; tem outras propriedades que não apreendemos; e é infinito porque tem no grau máximo algumas propriedades que não apreendemos. Isso parece meio bizarro, mas talvez evite a incoerência (e, de qualquer modo, quem disse que a realidade não pode ser bizarra?). A ideia é que há um ser que não tem nenhuma propriedade positiva das quais tenhamos concepção, exceto no que diz respeito ao seu envolvimento na experiência humana e quaisquer propriedades que isso implique. Esse ser é também ilimitado porque tem no grau máximo propriedades de que não temos concepção.

C. Religiosamente relevante? Ainda que essa perspectiva não seja incoerente, ela tem outro problema. Suponha-se que acreditemos que há um ser desse gênero. Para nós, ele é uma ideia vazia; mesmo assim, isso não significa que não possa existir. Não sei se é possível que haja um ser assim e não tenho base para fazer um juízo, quer favorável, quer desfavorável, quanto a essa possibilidade. Vamos admitir, por ora, que seja possível. A questão essencial aqui é: que razão há para pensar que tal ser, caso possa existir e de fato exista, esteja ligado de modo especial à religião? Segundo Hick, “acerca do Real an sich que postulamos, podemos dizer que ele é a base numênica das divindades encontradas e dos absolutos dos quais se teve a1 1,É essa ideia que alimenta o argumento ontológico; veja o meu The nature o f necessity, cap. 10. 20Na verdade, o ser em questão teria pelo menos um número indefinido de tais propriedades: para cada proposição P, ele teria a propriedade de saber se P é verdadeira. Pressuponho aqui que há pelo menos um número indefinido de proposições diferentes. Isso parece relativamente incontroverso, tendo cm vista o fato de haver, para cada número real diferente, r, a proposição r não é idéntico ao Taj Mahal.

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experiência, testemunhados pelas tradições religiosas” (p. 246). Por que pensar tal coisa? Que razão há para pensar que esse ser está conectado de algum modo com o cristianismo ou com qualquer outra religião? Por que dizer que é a esse ser que os cristãos se referem ou que é ele de quem testemunham? Talvez ele esteja ligado, ao contrário, à guerra, à prostituição, à violência familiar, ao sectarismo ou ao racismo. E por que pensar que esse ser, ou que o contato com ele, esteja de alguma forma relacionado com a “transformação da existência humana, que assim deixa de ser centrada em si e passa a centrar-se na Realidade” (p. 355)? Talvez seja especialmente quando os seres humanos são presas do engrandecimento de si, do ódio, do egoísmo e de sentimentos semelhantes que estão mais em contato com esse ser. Se ele não tem propriedades positivas de que tenhamos concepção, por que uma das suposições seria melhor que qualquer outra, ainda que ligeiramente? O problema básico, aqui, é que, se o Real não tem propriedades positivas de que tenhamos concepção, não há razão alguma para pensar que é na religião que os seres humanos entram em contato experiencial com ele, em vez de ser em qualquer outra atividade humana: na guerra ou na opressão, por exemplo. Tal ser não tem nenhuma das propriedades atribuídas pelos praticantes da maior parte das grandes religiões aos seres que veneram: não é bom, amoroso, preocupado com os seres humanos, sábio ou poderoso; não criou o Universo, não o sustém e não presta atenção nem a ele nem às criaturas que o Universo contém. E um X desconhecido e incognoscível. Mas então por que associar este incognoscível X à religião e não à guerra, à violência, ao sectarismo e às coisas horríveis que os seres humanos fazem frequentemente uns aos outros? Podemos pôr essa questão de outro modo. Hick assevera que, quando os cristãos fazem as suas elocuções características dizendo, por exemplo, “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo”, o que afirmam não pode ser literalmente verdadeiro, mas pode ser mitológicamente verdadeiro. Por verdade “literal” ele entende apenas a verdade tal como normalmente a concebemos, a veracidade comum: “A veracidade ou falsidade literais de uma asserção factual [...] consistem na sua conformidade ou ausência de conformidade com um fato: a proposição está chovendo aqui, agora será literalmente verdadeira se e somente se estiver chovendo aqui, agora” (p. 348). A verdade mitológica de uma afirmação é algo completamente diferente: “Uma afirmação, ou conjunto de afirmações, sobre X será mitologicamente verdadeira se não for literalmente verdadeira, mas tender, apesar disso, a invocar uma atitude disposicional adequada perante X” (p. 348). Isso significa que algumas atitudes disposicionais perante o Real são adequadas e outras (pelo que parece) não o são; algumas maneiras de lhe responder são adequadas e outras (pelo que parece) não o são: Assim, apesar de não podermos falar do Real an sich em termos literais,21 vivemos inelutavelmente em relação com ele e temos de lidar com ele em tudo o que fazemos e em tudo o que nos acontece, tal como temos de lidar com as nossas situações mais próximas 21Recorde-se que estamos corrigindo essa afirmação do cap. 19 à luz do cap. 14: podemos falar literalmente do Real, mas apenas para lhe predicar propriedades negativas e puramente formais, junto com aquelas propriedades positivas implicadas pelo fato de ele ser tal que nós, seres humanos, temos contato experiencial com ele.

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(e é no contexto dessas situações que precisamos lidar com ele). As nossas ações são adequadas ou inadequadas não apenas em relação aos nossos meios físico e social, mas também em relação ao nosso meio último, o Real. Os mitos religiosos verdadeiros são, assim, aqueles que invocam em nós atitudes e comportamentos que são adequados à nossa situação vis-à-vis com o Real (p. 351). E agora a nossa questão pode ser formulada no quadro dessa ideia. Por que pensar que “vivemos [...] em relação com [...] o Real”, seja de que modo for? Ou a relação viver em relação com é meramente formal ou não é. Se fosse formal, não teria qualquer conexão com a religião. Logo, não é. Mas se não é, então: (1) o Real tem mais uma propriedade positiva, a de ser tal que vivemos em relação com ele; e (2) e (o que é mais perturbador) por que pensar que vivemos em relação com o Real, seja de que modo for? Afinal, não vivemos em relação com toda e qualquer coisa, seja ela qual for — a montanha mais alta de M arte, por exemplo, ou o mais feroz tubarão do Oceano Indico. Se o Real não tem propriedades positivas das quais tenhamos apreensão, que razão há para pensar que vivemos em relação com ele? Segundo, por que pensar que alguns comportamentos são adequados ao Real e outros não? Repito: a menos que essa relação seja puramente formal, não é em relação a uma coisa qualquer que alguns comportamentos são adequados ou inadequados. Nenhum comportamento meu, penso, é adequado ou inadequado com respeito à montanha mais alta de M arte ou ao mais feroz tubarão do Oceano Indico. Se o Real não tem propriedades positivas de que tenhamos apreensão, como poderiamos saber ou ter base para acreditar que alguns comportamentos em relação a ele são mais adequados do que outros? Hick, é claro, pensa que alguns comportamentos com relação ao Real são mais adequados do que outros, e passa então a especificar quais são eles: comportamo-nos adequadamente com respeito ao Real quando deixamos de nos centrar em nós mesmos e aprendemos a nos afastar do egoísmo (“a transformação da existência humana, que assim deixa de se centrar em si e passa a se centrar na Realidade”). Porém, por que pensar tal coisa? Isso de fato faria sentido se o Real tivesse os atributos de Deus: se fosse, de fato, uma pessoa que nos ama e quer que nos afastemos do amor exclusivo por nós mesmos, aproximando-nos do amor por ele acima de tudo e do amor pelo nosso próximo como se fôssemos nós, tendo nos criado e formado de modo que só nesse caminho alcancemos a nossa finalidade e felicidade. Porém, o Real não tem nenhuma dessas propriedades (sendo elas propriedades positivas de que temos concepção). E, se não tem propriedades positivas de que tenhamos apreensão, por que não supor que o comportamento odioso e egoísta são adequados com relação a ele? O u aquele comportamento fraco, manhoso e invejoso que Nietzsche considerava característico dos cristãos? Não podemos ter as duas coisas. Se este ser é realmente tal que literalmente nada sabemos de positivo acerca dele (se não tem nenhuma propriedade positiva de que tenhamos apreensão), não temos razão alguma para pensar que o comportamento

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autocentrado é menos adequado com respeito a ele (isso se admitirmos que alguns comportamentos são mais adequados com relação a ele do que outros) do que viver uma vida de amor. Podemos pôr a questão de outro modo ainda. Hick aparentemente pensa que algumas concepções ou idéias religiosas são manifestações ("personae’ ou uimpersonae‫)״‬ autênticas do Real: E à medida que “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” é na verdade uma persona autêntica do Real, constituindo a forma em que o Real é validamente entendido e experienciado no seio da corrente cristã da história religiosa, nessa mesma medida a resposta disposicional adequada a essa persona constitui uma resposta adequada ao Real... e, acerca da natureza eterna de Buda, afirma: E como ela é uma impersona autêntica do Real, validamente entendida e experienciada no seio da tradição budista, a vida de acordo com o Dharma é igualmente uma resposta adequada ao Real (p. 353). Uma vez mais, a questão principal aqui é óbvia: se o Real não tem propriedades positivas não formais de que tenhamos apreensão, como poderiamos saber ou ter razão para acreditar que qualquer dessas personae ou impersonae são autênticas ou, o que dá no mesmo, inauténticas? A autenticidade implica uma certa adequação entre a (im) personae em questão e o Real; mas se não temos nenhuma ideia positiva acerca do Real, não temos razão alguma para pensar que certas personae ou impersonae são mais adequadas do que outras. Hick pensa não apenas que algumas realmente são mais adequadas do que outras, mas também que temos alguma ideia de quais elas são: o Deus e Pai do nosso Senhor Jesus Cristo, por exemplo, e outras de outras tradições. No entanto, que razão poderiamos ter para pensar tal coisa? Se tudo o que sabemos acerca do Real é o que H ick diz que sabemos, estamos perfeitamente autorizados a dizer que Deus, Vishnu e Buda são inauténticos e que, por exemplo, Ares (o deus da guerra), Lúcifer e Stálin (ou, por que não, Uriah Heep ou Beavis e Butthead) é que são as personae autênticas do Real. Uma vez mais, não podemos ter as duas coisas. Se nada sabemos sobre o Real, não temos razão para escolher as personae que H ick escolhe como as manifestações autênticas dele. O ponto principal é que, se o Real não tem propriedades positivas não formais de que tenhamos apreensão, então, tanto quanto nos é dado ver, qualquer departamento da vida humana é tão revelador do Real quanto qualquer outro. E ‫־‬nos completamente impossível escolher entre eles e pensar, por exemplo, que é nas grandes religiões do mundo que o Real se manifesta ou que é nelas que os seres humanos têm experiência do Real.Tanto quanto sabemos, de acordo com essa maneira de ver as coisas, é ao viver como bandidos ou como membros da Ku Klux Klan que mais autenticamente ficamos em contato com o Real.

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D. Existe tal coisa? Assim, a perspectiva parece ter uma coerência dúbia. Formulada cuidadosamente, ela não é incoerente à primeira vista. Segundo Hick, contudo, a característica mais importante desse suposto ser é estai‫ ־‬de algum modo especialmente associado à religião; é a este ser que realmente se referem as pessoas que adoram ou reconhecem a Deus, Brahma e assim por diante; os fiéis das grandes religiões do mundo entram em uma relação especial com ele. E isso parece inteiramente gratuito; pode ser que, na verdade, o Real esteja mais ligado às pessoas que atendem apenas a seus próprios interesses, ou às que servem ao poder ou à supremacia branca. Porém é agora que chego, finalmente, à questão: que razão tem Hick para postular esse ser? Por que pensa ele que há um ser sem propriedades positivas de que tenhamos apreensão? Eis sua resposta: O Real an sich é postulado por nós como um pressuposto, não da vida moral, mas da experiência religiosa e da vida religiosa, sendo os deuses, assim como os místicamente conhecidos Brahma, Sunyata e outros, manifestações fenoménicas do Real que ocorrem no domínio da experiência religiosa. Combinando essas duas teses, podemos dizer que o Real é experienciado pelos seres humanos, mas experienciado de uma maneira análoga àquela pela qual, segundo Kant, temos experiência do mundo: a saber, por meio das contribuiçoes informacionais de uma realidade externa, contribuições que são interpretadas pela mente em razão de seu próprio esquema categorial, vindo assim à consciência como experiências fenoménicas dotadas de significado (p. 243). Por que haveriamos de querer postular tal coisa, algo sem propriedades positivas de que não temos qualquer apreensão, mas que é experienciado por nós, seres humanos, nas grandes religiões? E, o que é mais importante, por que Hick postula tal ser? A resposta, penso, precisa ser explicada dialeticamente. Hick começa sua odisséia espiritual como um cristão tradicional, ortodoxo, aceitando aquilo que tenho chamado de “crença cristã”. Então se dá conta do fato de haver outras religiões, nas quais as teses do cristianismo ortodoxo — Trindade, encarnação, expiação — são rejeitadas. Além disso, tanto quanto conseguimos ver de fora, digamos, as teses dessas outras religiões, entendidas literalmente, são tão respeitáveis do ponto de vista epistêmico, quanto as teses do cristianismo. E ainda, segundo o próprio Jesus, “Pelos frutos os conhecereis”. Os frutos mais importantes, pensa Hick, são práticos: o afastamento de uma vida de egoísmo e a entrega a uma vida de serviço; nesse ponto, essas outras religiões parecem sair-se tão bem quanto o cristianismo. A conclusão a que ele chega é que, com base naquilo que o cristianismo difere das outras religiões, não podemos sustentar que ele seja literalmente verdadeiro e as outras, literalmente falsas; isso seria, ele acredita, uma espécie de arrogância intelectual, de imperialismo espiritual, uma questão de exaltarmos a nós mesmos e a nossas crenças à custa dos outros. Em vez disso, devemos sustentar que as grandes religiões são igualmente valiosas e igualmente verdadeiras. Como o faremos? Eis a resposta de Hick:

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Mas se o Real em si não é e não pode ser objeto de experiência humana, por que postular essa Ding an sich desconhecida e incognoscível? A resposta é que o númeno divino é um postulado necessário da vida religiosa pluralista da humanidade, pois no seio de cada tradição encaramos como real o objeto da nossa adoração ou contemplação. Se, como já defendí, é também adequado encarar como reais os objetos de adoração ou contemplação das outras tradições, somos levados a postular o Real em si como o pressuposto do caráter verídico dessa gama de formas de experiência religiosa. Sem esse postulado, ficaríamos com uma pluralidade de personae e impersonae, afirmantío-se de cada uma delas que é a Realidade Absoluta, e nenhuma delas pode sê-la à exclusão das demais. Ou teríamos de considerar todas as experiências relatadas como ilusórias, ou então regressar à posição confessional na qual afirmamos a autenticidade da nossa própria corrente de experiência reügiosa ao mesmo tempo que afastamos como ilusórias as experiências ocorridas no seio de outras tradições. Entretanto, para quem nenhuma dessas opções parece realista, a afirmação pluralista torna-se inevitável, e com ela o postular do Real an sich■, que é pensado de diferentes maneiras e objeto de diferentes experiências... (p. 249). Ora, essa passagem aparentemente pretende ser um argumento, um argumento a favor da conclusão de que há um ser (o Real) do gênero que Hick diz que há. O argumento parece partir de duas premissas: (1) todas as grandes religiões são “verídicas”2) ,‫ )־‬nenhuma delas é mais verídica do que as outras. Como procede o argumento? A ideia, penso, é que, se supusermos que há um ser como Hick diz que há, então, segúndo ele, poderemos ver como (1) e (2) poderíam ser verdadeiras. Não sei exatamente de que modo se espera que isso aconteça, mas deixemos esse probleminha de lado. O que não é tão fácil de ignorar é uma espécie de incoerência: “No seio de cada tradição”, afirma Hick, “encaramos como real o objeto da nossa adoração ou contemplação”. Assim, no seio da tradição cristã encaramos Deus como real; é também “adequado encarar como reais os objetos de adoração ou contemplação das outras tradições”. Isso, é claro, conduz à um problema, pois algumas das personae e impersonae são tais que, se forem reais (existirem de fato) e tiverem as propriedades que lhes são atribuídas, as outras (im)personae serão irreais ou, por sua vez, não terão as propriedades que lhes são atribuídas. Talvez a ideia, como Hick sugere em algum lugar, seja considerar cada uma das (im)personae como empíricamente reais, mas não transcendentalmente reais (não de fato reais); e talvez isso signifique que cada ser adorado é tal que, por meio dele, os praticantes da religião em questão entram de algum modo em contato com o Real. O ponto essencial, contudo, é que não devemos pensar que uma dessas religiões, ou algumas delas, são mais valiosas ou estão mais próximas da verdade do que as outras; isso seria arbitrário e não teria aval algum. Não devemos continuar a encarar os objetos de adoração da nossa própria tradição como realmente reais (ou, antes, como reais simpliciter). Temos de tratar todas as tradições do mesmo modo. Ora, o modo pelo qual Hick se propõe a conseguir tal coisa é declarar que todas as tradições estão de fato enganadas; as crenças de cada uma são em sua maioria falsas (“literalmente” falsas, afirma ele; mas a verdade e a falsidade “literais”, tais como Hick as

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concebe, não são nada mais, nada menos que a verdade e a falsidade tout court). Mesmo assim, há algo de correto ou válido na religião — o reconhecimento de que há algo além do mundo natural e o encorajamento para viver uma vida na qual o egocentrismo seja ultrapassado. No final das contas, tudo isso nasce do fato de Hick não conseguir pensar que uma religião — o cristianismo, digamos — é verdadeira e as outras, falsas, ou que uma está mais próxima da verdade do que as outras. No fundo de toda a sua teoria há o desejo generoso de evitar o engrandecimento e exaltação de si que ele vê associados à declaração de que as nossas próprias crenças religiosas são verdadeiras e as dos outros, falsas. Aqui cabem três comentários ou questões. Primeiro, é essa postura de fato possível para um ser humano? Pode uma pessoa aceitá-la, e aceitá-la autenticamente, sem má-fé ou duplicidade mental? Continuarei cristão, participando do culto cristão, aceitando as doutrinas esplêndidas e poderosas do cristianismo tradicional, contudo, entenderei também que essas doutrinas são apenas mitológicamente verdadeiras: são literalmente falsas, apesar de que aceitá-los (ou seja, aceitá-las como verdadeiras, como literalmente verdadeiras) me ponha ou tenda a me pôr na relação certa com o Real. E como posso aceitá-las, adotar essa atitude perante elas, se eu pensar que são apenas mitológicamente verdadeiras —‫־‬- isto é, realmente falsas? Eu poderia, com efeito, acreditar que são mitológicamente verdadeiras; entretanto, acreditar nisso não nos leva na direção do tipo certo de vida; só a crença na doutrina em si tem supostamente esse efeito salutar. Uma vez suficientemente esclarecido, quando vejo que essas doutrinas não são verdadeiras, não posso ter diante delas a atitude que conduz ao resultado prático desejado. Fico, em vez disso, na posição de um gnóstico triste e desiludido. Já não tenho a crença cristã; reconheço, ao refletir, que na realidade ela é falsa. E vejo também que quem a aceita como verdadeira está enganado, iludido, mas, pelo menos, essa pessoa tem a felicidade de participar do conforto, da força e da consolação que essas crenças falsas proporcionam; aproxima-se também do tipo certo de vida. Mas nem o conforto22, nem a consolação, nem a eficácia prática estão ao meu dispor. Segundo, a postura de Hick me parece ter um aspecto profundamente autocontraditório. Se assumirmos sua posição, não poderemos dizer, por exemplo, que o cristianismo está certo e o budismo, errado; embora cristãos, não discordamos dos budistas; assumimos essa postura num esforço para evitar a autoexaltação e o imperialismo. No entanto, do ponto de vista do imperialismo intelectual e da autoexaltação, fazemos algo muito pior: declaramos agora que todo mundo está enganado, exceto nós mesmos e algumas outras, poucas, almas iluminadas. Nós e os nossos estudantes de pós-graduação sabemos a verdade; todas as outras pessoas estão erradas. Não é isso uma maneira de exaltarmos a nós mesmos à custa de quase todas as outras pessoas? Quem pensa que a pessoa de Deus realmente existe está nas trevas e não tem sofisticação, não está ciente da verdade genuína, a saber, que não há tal pessoa (ainda que a crença em sua existência possa dar bons 22De acordo com o Catecismo de Heidelberg ( Q il ) ,“Mcu único conforto na vida e morte é que não pertenço a mim mesmo, antes pertenço — de corpo e alma, na vida e da morte — ao meu fiel Salvador Jesus Cristo”. Segundo Hick, contudo, meu único conforto na vida e na morte é que tenho conhecimento desta triste verdade: acreditar nas doutrinas grandiosas do cristianismo tem efeitos benéficos, mas as doutrinas são, de fato, falsas.

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frutos práticos). Consideramos que os cristãos estão profundamente enganados. Claro que dispensamos o mesmo elogio aos praticantes das outras grandes religiões; somos críticos igualitários. Consideramos benevolentemente que todo o resto da humanidade está desencaminhado; todos têm o coração no lugar certo, sem dúvida, apesar disso, estão tristemente enganados acerca daquilo que consideram mais importante e precioso. E difícil, para mim, encarar essa atitude como uma manifestação de tolerância ou de humildade intelectual: parece-me mais uma atitude de desdém e arrogância. O problema básico é que, dada a nossa efetiva situação intelectual e espiritual, simplesmente não é possível evitar a discordância séria com os outros. Se algumas pessoas acreditam em p e outras acreditam em algum q incompatível com p, não há como evitar a discordância. Se afirmamos^», discordamos de quem afirma q\ se afirmamos q, discordamos de quem afirma p\ se propomos uma resolução de ordem mais elevada dizendo que nemp nem q são verdadeiras (apesar de ambas serem talvez "mitológicamente verdadeiras”), então discordamos de ambos os grupos.23 Mas se é imperialista ou inadequado afirmarp , desrespeitando assim os partidários de q, por que razão seria melhor desrespeitar os partidários d e p e quo declará-los errados em bloco? Terceiro, Hick não oferece, é claro, nenhum argumento a favor da tese de que nenhuma religião está mais próxima da verdade do que outras; essa proposição se assemelha mais a um postulado prático, fruto da intenção benevolente e caridosa de evitar o imperialismo e o autoengrandecimento. Porém, será esta a maneira de o fazer? Não há dúvida de que, na maior parte das áreas da vida, algumas pessoas estão mais próximas da verdade do que outras. Se os nominalistas estiverem certos, todos nós, realistas estamos errados; se os céticos modais estiverem certos, nós que acreditamos na modalidade estamos errados; se os partidários da supremacia branca estiverem certos, grande parte do resto de nós, que nos inclinamos para a tolerância, estamos errados e seriamente enganados. Por que haveria de ser diferente no caso da religião? A ideia de que na religião temos todos de estar igualmente certos e igualmente errados não me parece mais atraente do que a ideia de que, ao pensar acerca da religião, temos todos de estar igualmente certos e igualmente errados. A razão de Hick para considerar que todas as religiões estão igualmente certas parece ser um desejo de evitar o autoengrandecimento; não deveria o mesmo desejo levá-lo a sustentar que as suas perspectivas acerca da religião — a sua tese, por exemplo, de que todas estão igualmente certas e igualmente erradas — não estão na realidade mais próximas da verdade do que qualquer outra perspectiva (por exemplo, a perspectiva de que só o cristianismo, digamos, está certo)? Ele não o faz, e tem razão em não o fazer; mas tampouco, em matéria de crença religiosa, podemos fazê-lo. Na crença religiosa, como em outras questões devemos correr riscos, reconhecendo que podemos estar errados, profundamente errados. Não há garantias: a vida religiosa é uma aposta; o erro tolo e debilitante é uma possibilidade permanente (se podemos estar errados, contudo, também podemos estar certos). 23O mesmo acontece quando nos propomos a permanecer agnósticos acerca dcp e de q\ veja o cap. 13.

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Neste livro, o nosso tópico é a questão dejure com respeito à crença cristã — não a questão da veracidade da crença religiosa (ainda que, é claro, seja esta a questão mais importante), mas a da razoabilidade ou racionalidade ou justificação racional da sua aceitação. Examinamos até agora uma questão preliminar: há realmente uma questão? A crença cristã de fato existe como tal? Ou será que, mesmo que Deus existisse, não poderiamos nos referir a ele, nem pensar acerca dele, nem llie predicar propriedades positivas não formais? Os nossos resultados, até agora, indicam que não há a menor razão para sustentar esta última tese. Não há razão alguma para sustentar que não é possível pensar acerca de Deus; não há razão alguma para sustentar que não podemos predicar-lhe propriedades positivas não formais, como a sabedoria, o conhecimento, o amor e todas as demais. E óbvio que há muitíssimo mais a dizer; este tópico merece um livro por si só. Não há espaço para isso neste livro; assim, precisamos nos contentar com o que temos. De todo modo, podemos ficar descansados: se há razão para pensar que a nossa questão está mal formulada ou que é de algum modo logicamente inadequada, esses problemas estão, pelo menos, muito bem escondidos. Podemos, por isso, passar com uma confiança razoável ao problema seguinte: o que é, precisamente, essa questão dejure?

SEGUNDA PARTE QUAL Ê A QUESTÃO?

A justificação e a imagem clássica Na primeira parte, abordei um certo tipo de objeção à questão de jure com respeito à crença cristã — a saber, a questão da racionalidade, ou razoabilidade, ou respeitabilidade intelectual de aceitar a crença cristã. Segundo tal objeção, a questão dejure é, no mínimo, prematura: a rigor, nem sequer é realmente possível ter uma crença do gênero que os cristãos tradicionais pensam que têm. Isso porque os cristãos consideram que Deus é absoluto e infinito, e há um erro conceituai na própria ideia de que é possível haver uma crença qualquer acerca de um ser que seja absoluto e infinito. Concluí que essa objeção não é cogente; não há aqui qualquer obstáculo à questão dejure. Entretanto, o que precisamos analisar agora é que está longe de ser óbvio qual é exatamente a questão ou objeção dejure\ que questão (ou questões) os críticos têm em mente quando perguntam se a crença cristã e teísta é racional, ou racionalmente defensável, ou racionalmente justificável, ou seja o que for? Os críticos afirmam que a crença cristã não tem justificação racional, ou que não é racionalmente justificável: qual é, exatamente, a fraqueza ou defeito que atribuem ao crente cristão? Qual é, exatamente, a questão? Vamos chamar essa investigação de “metaquestão”. Um problema das discussões contemporâneas sobre a justificação da crença cristã é que a metaquestão quase nunca é levantada. As pessoas perguntam se a crença cristã é racional ou razoável ou racionalmente justificável; e passam imediatamente a responder à pergunta, sem considerar primeiro qual é exatamente a questão. E qual é a questão? Não é fácil dizer; contudo, é esse o tema desta segunda parte. Este capítulo é dedicado ao exame de certa resposta à metaquestão: a questão de jure diría respeito à justificação da crença cristã. Essa questão surge no fundacionalismo clássico, uma maneira de pensar acerca destes tópicos que foi extremamente influente no decorrer da história e ainda está muito presente na época atual. Segundo os fundadonalistas clássicos, a questão de jure é, na verdade, a questão de saber se a crença cristã é justificada; mas como entender o termo “justificada”? Vou examinar as raízes seiscentistas do fundacionalismo clássico, explorar o vínculo entre justificação e evidencialismo que os fundacionalistas clássicos postulam e esboçar brevemente alguns das doutrinas contemporâneas que daí descendem. Depois, na segunda parte do capítulo, vou defender a tese de que o fundacionalismo clássico enfrenta problemas insuperáveis e que a noção de justificação não oferece uma versão satisfatória da questão dejure. Devemos começar com uma narrativa histórica — primeiro, um exame retrospectivo do passado relativamente recente e, depois, um exame mais aprofundado do passado

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mais remoto. Com respeito ao primeiro, posso formular a minha idéia mais facilmente referindo-me a trabalhos que fiz anteriormente; seja-me desculpada a referência pessoal. Este livro, como afirmei no prefácio, é uma continuação de Warrant: the current debate (daqui em diante WCD) e Warrantedproperfunction (daqui em diante WPE)‫׳‬, é também, e talvez isso seja mais importante, uma continuação de God and other minds1 [Deus e outras mentes] e “Reason and belief in G od” [Razão e crença em Deus].2 O tópico principal de God and other minds, como escrevi na época, é a “justificação racional” da crença em Deus. Propus-me então a responder à questão dejure·, como todas as outras pessoas, contudo, nem sequer levantei a metaquestão. Seguindo os passos dos mais experientes e competentes, parti do princípio de que a questão da justificação racional da crença teísta era idêntica à questão de haver provas, ou pelo menos bons argumentos, a favor ou contra a existência de Deus (ou pelo menos que tinha uma conexão íntima com essa questão). Para discutir a questão da racionalidade da crença em Deus, devem-se consultar as evidências: sustentam estas, no computo geral, a crença religiosa? (Se a resposta for sim [e se essa sustentação for suficientemente forte], essa crença é racional; de outro modo, é irracional.) Essa questão, por sua vez, era entendida de tal modo que a maneira de lhe responder consistia em considerar os argumentos a favor e contra a existência de Deus. A favor, havia as provas teístas tradicionais: os argumentos cosmológicos, teleológicos e ontológicos, para seguir a classificação de Kant. Contra, havia, antes de tudo, o problema do mal (entendido como a tese de que a existência do mal é logicamente incompatível com a existência de um Deus sumamente bom, todo-poderoso e onisciente). Havia depois também algumas teses bastante opacas quanto ao progresso da ciência moderna, ou quanto às atitudes necessárias para o seu cultivo, ou talvez algo semelhante ocultando-se nas imediações, ou talvez outra coisa qualquer que o “homem emancipado” descobriu — a ideia de que algo nessas imediações oferece também evidências contra a existência de Deus. E era também claramente pressuposto que a crença em Deus seria racional e apropriada apenas se, no computo geral, as evidências, entendidas desse modo, a favorecessem. Assim, eis uma resposta possível à metaquestão e um candidato ao posto de questão de jure·, as evidências sustentam a crença cristã? Neste capítulo, quero pensar acerca dessa resposta à metaquestão. Acaso ela representa um problema sério para os crentes cristãos ou uma crítica séria da crença cristã? Em God and other minds, argumentei primeiro que as provas ou argumentos teístas não são bem-sucedidos. Ao avaliar esses argumentos, usei um padrão tradicional, mas completamente inadequado: considerei que esses argumentos seriam bem-sucedidos apenas se partissem de proposições que obrigassem ao assentimento de qualquer pessoa honesta e inteligente e prosseguissem majestosamente rumo à conclusão por meio de1

1Ithaca: Cornell University Press, 1967. ‫־‬Τη: Alvin Plantinga; Nicholas WolterstorfF, orgs., Faith and rationality (Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1983).

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formas argumentativas que só poderíam ser rejeitadas sob pena de insinceridade ou irracionalidade. Como é natural, juntei-me ao coro contemporâneo, sustentando que nenhum dos argumentos tradicionais era bem-sucedido. (Não reparei, na época, que nenhum argumento filosófico importante obedece a esse padrão; logo, o fato de os argumentos teístas tampouco lhe obedecerem é menos significativo do que eu pensava.) Defendí então que as objeções à crença teísta são igualmente débeis; em particular, o argumento dedutivo do mal (o argumento de que há uma contradição entre a existência de Deus e a existência do mal), afirmei, é inteiramente malsucedido. De modo que vi, ou assim o pensei, que nem os argumentos afavor da existência de Deus, nem os argumentos contra ela eram conclusivos; mas então, em que pé ficamos com respeito à questão da racionalidade ou justificação racional da crença em Deus? Será que se segue, como a opinião majoritária aparentemente defendia, que o agnosticismo era a resposta correta e que a crença em Deus, nessas circunstâncias, é irracional, contrária à razão, ou não é racionalmente justificável? Isso parecia-me errado, mas como poderiamos aprofundar a questão? Como poderiamos fazer avançar o inquérito? Perante esse impasse, decidi comparar a crença em Deus com outras crenças — em particular, a nossa crença em outras mentes. Alega-se que as outras mentes constituem um problema filosófico tradicional: dado que não podemos perceber diretamente os pensamentos e sentimentos das outras pessoas, será que sabemos se elas têm realmente pensamentos e sentimentos? E como o sabemos? De modo mais perturbador, como sabemos que o que tomamos como pessoas (seres com pensamentos, sentimentos e intenções) são realmente pessoas e não, por exemplo, robôs astuciosamente construídos?3 Reparei que a estrutura dialética posta a nu no caso dos argumentos teístas é recapitulada no caso das mentes alheias: as objeções à crença nas mentes alheias não parecem formidáveis de modo algum, mas infelizmente não há também bons argumentos afavor da crença em outras mentes — sobretudo se usarmos os mesmos padrões elevados de boa argumentação que aplicamos comumente aos argumentos teístas. Defendí que o argumento mais forte a favor da existência de Deus e o argumento mais forte a favor de outras mentes são semelhantes e que, do mesmo modo, ambos também não são bem-sucedidos. Daí a minha “conclusão provisória”: “se a minha crença em outras mentes for racional, também a minha crença em Deus o é. Mas é óbvio que a primeira é racional; assim, consequentemente, também a última o é”. H á aqui duas coisas dignas de nota. Primeiro, eu estava de algum modo aceitando, mas também questionando, o que era então axiomático: que a crença em Deus, para ser racionalmente aceitável, deve ter boas evidências a seu favor. Essas evidências seriam proposicionais, ou seja, decorrentes de outras proposições em que acreditamos, e precisariam vir na forma de argumentos. Essa tese não foi defendida: foi apenas afirmada, ou melhor,

3Na verdade, esse não é um problema filosófico tradicional no sentido de ser um problema para todos os filó60fos ou para todas as posições em Filosofia; só o consideraremos urgente se aceitarmos alguma versão do funda-

cionalismo clássico.

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pressuposta como evidente por si ou pelo menos completamente óbvia. O que foí então considerado como ponto pacífico é agora denominado '1evidencialismo' (um título melhor seria “evidencialismo com respeito à crença em Deus”, mas esse nome é meio comprido). O evidencialismo é a perspectiva de que a crença em Deus só é racionalmente justificável ou aceitável se houver boas evidências a seu favor, em que boas evidências seriam argumentos baseados em outras proposições que conhecemos. Se a crença em Deus for aceita na ausência de tais evidências ou argumentos, ela será intelectualmente de terceira categoria, na melhor das hipóteses: irracional, não razoável ou contrária às nossas obrigações intelectuais. Em segundo lugar, não perguntei por que a questão da justificação racional seria importante ou mesmo qual seria a questão. Não lancei a esta questão — a saber, a questão de saber 0 que é essa justificação racional de que estou falando — mais que um olhar superficial. Além disso, por que havería a justificação racional, seja ela o que for, de ba‫־‬ sear-se em evidências? Qual é a conexão entre evidências e justificação? E, se esta última exige realmente evidências, por que haveríam elas de assumir a forma de argumentos (dedutivos ou probabilísticos), evidências que partem de outras proposições em que já acreditamos? E, se assim fosse, que gêneros de proposições poderíam funcionar como premissas adequadas para esses argumentos? Não fiz essas perguntas. Não, contudo, porque as suas respostas fossem bem conhecidas, de modo que mais investigação nessa área seria como querer ensinar o pai-nosso ao vigário. Ao contrário: ninguém fazia aquelas perguntas nem lhes respondia; em vez disso, as pessoas voltavam-se diretamente para os argumentos a favor e contra a crença teísta, tomando como ponto absolutamente pacífico que aquela era a maneira certa de investigar a sua justificação racional.4 Pressupor tácitamente o evidencialismo era uma exigência da etiqueta da época e ainda é popular atualmente. Porém, 0 que é a justificação racional no fim das contas? E por que ela exige evidências, evidências preposicionais? E como aconteceu de todo mundo aceitar como ponto de partida essa conexão entre a justificação e as evidências preposicionais? Estas são algumas das perguntas que temos de fazer. I. J o hn L ocke

O que precisamos aqui é de outra pequena narrativa histórica, de um pouco mais dessa arqueologia de que fala Foucault (apesar de que, outra vez [ WCD, p. 11], duvido de que descobriremos alguma conspiração política oculta ou uma tentativa subterrânea de tomar o poder). A questão da justificação racional da crença cristã remonta à reação iluminista à atividade espiritual e intelectual gerada (parcialmente) pela Reforma; o início da resposta 4A exceção era William James, cujo “Tlie will to believe", in: The will to believe and other essays in popular philosophy (New York: Longmans, Green, 1897), muitíssimo presente em antologias, assumia a linha (como na altura se pensava) de que, se a crença religiosa é uma opção viva c forçosa para determinada pessoa, seria desculpável essa pessoa acreditar, mesmo sem evidências. Veja p. 105 [Incluído em A ética da crença, edição e tradução de Desiderio Murcho (Bizâncio, 2010)].

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característicamente moderna a essa atividade se manifesta nas obras de René Descartes e John Locke. Tanto um como outro ficaram impressionados com o grau de discordância que havia em questões religiosas e filosóficas; isso significa, é claro, que o erro afeta a nossa crença nessas áreas. Também ficaram impressionados (como os seus sucessores) com o escasso progresso alcançado em questões filosóficas. A filosofia, afirmou Descartes, “tem sido cultivada desde há vários séculos pelos melhores espíritos que jamais viveram, contudo nenhuma coisa encontramos nela que não seja objeto de disputa, e em consequência que não seja dúbia”.5 Descartes tem o seu remédio (um remédio caracteristicamente moderno): começar tudo de novo. Jogue fora tudo o que não seja objeto de certeza e reconstrua a sua estrutura noética com base naquilo que é objeto de certeza. Recordem-se aquelas palavras famosas na introdução das Meditations [Meditações]: Passaram-se já alguns anos de quando me dei conta de que muitas são as crenças falsas que, desde a mais precoce juventude, admiti como verdadeiras; e de que era duvidoso tudo o que desde então havia erigido sobre tais fundamentos. Desde aquela altura, fiquei convencido de que teria, de uma vez por todas, de me dedicar seriamente a livrar-me de todas as opiniões previamente tomadas como verdadeiras e começar a construir de novo a partir dos alicerces. [...]6 E John Locke, contudo, e não Descartes, que provavelmente desempenhará o papel principal em nosso entendimento da questão de jure e da compulsão moderna para a levantar.7 Na “Epístola ao Leitor” que prefacia o seu longo e deambulante Ensaio sobre 0 entendimento humano, Locke relata um encontro com “cinco ou seis amigos” no qual foi discutido um certo tópico que ele não identifica nessa passagem: [Eles] viram-se rapidamente impedidos pelas dificuldades que surgiam de todos os lados. Depois de nos batermos com esse enigma por alguns momentos, sem chegar mais perto de uma resolução dessas dúvidas que nos atormentavam, veio-me a ideia de que tínhamos enveredado por um caminho errado e de que, antes de nos dedicarmos a inquéritos dessa natureza, era necessário examinar as nossas capacidades e ver que objetos se adequavam ao nosso entendimento. Essa foi a minha proposta à companhia, à qual todos prontamente deram o seu assentimento; e concordamos então que esse deveria ser o nosso primeiro inquérito.8

5Primeira parte do Discourse on the method of rightly conducting the reason and seeking truth in the sciences, in: The philosophical works of Descartes, tradução e edição de Elizabeth S. Haldane; G.R.T. Ross (New York: Dover, 1955 [originalmente publicado pela Cambridge University Press em 1931]), p. 85-6 [edição em português: Discurso do método e meditações (São Paulo: Martin Claret, 2008)]. bThephilosophical works ofDescartes, p. 144. 7Veja o ensaio brilhante e esclarecedor de Nicholas Wolterstorff sobre Locke em John Locke and the ethics of ¿?//?/'(Cambridge: Cambridge University Press, 1996). *Ân essay concerning human understanding, edição com “Prolegomena” de Alexander Fraser (New York: Dover, 1959 [publicado pela primeira vez pela Oxford University Press em 1894]), vol. 1, p. 9 [edição em portugués: Ensato sobre o entendimento humano (São Paulo: Martins Editora, 2012)].

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Essa discussão foi a gênese do Ensaio‘, ocorreu provavelmente no inverno de 167071,9 e que grandiosa reunião foi essa! O próprio livro demorou cerca de dezoito anos para ser acabado (ou pelo menos publicado), o que explica em parte a sua enorme dimensão e o seu caráter desorganizado e repetitivo. Locke não diz qual era o tópico da discussão, mas James Tyrell, um dos cinco ou seis amigos presentes no encontro, anotou na margem de seu exemplar do Ensaio (agora no Museu Britânico) que o tema era “os princípios da moral e da religião revelada”.10 E o Ensaio de Locke exerceu imensa influência no pensamento moderno acerca desse tópico; talvez não seja exagero dizer que a sua obra é a fonte mais importante do modo de pensar sobre esses temas que dominou o pensamento ocidental nos últimos três séculos. Esse livro introduz a epistemología no Ocidente. Não que, como é evidente, os filósofos anteriores nada tivessem a dizer acerca de epistemología. Afinal, o Teeteto de Platão faz uma das perguntas principais na teoria do conhecimento: o que se deve acrescentar à mera crença verdadeira para se obter o conhecimento? Qual é a qualidade ou quantidade que será suficiente para fazer a diferença entre a crença verdadeira e o conhecimento? Aristóteles e Tomás de Aquino, além disso, tinham muito a dizer sobre a scientia, o conhecimento científico, e ainda muito a dizer sobre como o processo de intelecção funciona — o que ocorre quando alguém sabe algo ou acredita em algo. Não obstante, as perguntas que Locke fez e as respostas que deu têm um sabor peculiarmente moderno; e apesar das proclamações pós-modernas da morte ou fim da epistemología, é ainda dessa maneira, em sua maior parte, que pensamos nesses temas. Locke viveu em um dos períodos mais turbulentos da história intelectual e espiritual britânica; em particular, foi a fermentação e a diversidade religiosas, a imensa diversidade de opinião religiosa, que lhe chamou a atenção. Claro que ele sabia que em outras partes do mundo além da Europa havia religiões bastante diferentes do cristianismo, mas ficou especialmente impressionado com a variedade de opiniões religiosas em seu país. Além do debate católico-protestante, no próprio seio do protestantismo havia inúmeras denominações, infindáveis discordâncias e controvérsias; foi um período em que cada pessoa pensava no que era correto para si mesma. Locke propõe-se a inquirir a respeito das bases daquelas opiniões facciosas que encontramos entre os homens, tão variadas, diferentes e totalmente contraditórias; e, contudo, afirmadas em um ou outro lugar com tal segurança e confiança que quem observar as opiniões da humanidade, quem observar a sua oposição, e ao mesmo tempo considerar a preferência e a devoção com que são abraçadas, a resolução e o zelo com que são mantidas, talvez tenha razão para suspeitar que ou a verdade é coisa que não existe, ou a humanidade não tem meios suficientes para atingir um conhecimento certo dela (Introdução de Locke ao Essay [Ensaio], parág. 2, p. 27).

9Nota de rodapé η. 1 de Fraser, p. 9. 10“Prolegomena” de Fraser, p. xvii.

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Um dos problemas aqui presentes, afirma Lockc, é o fideísmo', muitos opõem a fé à razão, declarando que a fé prescreve o que a razão proscreve e que é a fé que devemos aceitar e seguir: Pois é a este elogio da fé em oposição [grifo de Locke] à razão que podemos, parece-me, adequadamente atribuir os absurdos que preenchem quase todas as religiões que possuem e dividem a humanidade. Pois os homens, tendo sido educados na ideia de que não devem consultar a razão nas coisas religiosas, por mais aparentemente contrárias ao senso comum e aos próprios princípios de todo o seu conhecimento, deram livre curso às suas fantasias e superstições naturais; e por elas foram levados a tão estranhas opiniões, e práticas religiosas tão extravagantes, que um homem ponderado não pode senão ficar espantado com as suas tolices, e considerar que estão de tal modo longe de serem aceitáveis ao Deus grandioso e sábio, que não pode evitar considerá-las ridículas e ofensivas a um homem sóbrio e bom. De modo que, na verdade, a religião, que deveria melhor nos distinguir dos quadrúpedes, e que deveria de modo mais peculiar elevar-nos, como criaturas racionais, acima dos brutos, é precisamente onde os homens mais frequentemente parecem mais irracionais, e até mais destituídos de sensatez do que os próprios animais (livro IV, cap. xviii, parág. 11, p. 426). Outra fonte de erro e confusão cacofónicos na religião seria a tradição', acreditar em uma proposição apenas porque nos foi ensinada ou porque as pessoas à nossa volta acreditam nela: A grande obstinação que encontramos nos homens que acreditam firmemente em opiniões totalmente contrárias, ainda que muitas vezes igualmente absurdas, nas várias religiões da humanidade, é tanto uma prova evidente quanto uma consequência inevitável deste modo de raciocinar partindo de princípios tradicionais. De modo que os homens irão desacreditar nos seus próprios olhos, renunciar à evidência dos seus sentidos e declarar que é a sua própria experiência que introduz a mentira, antes de admitir seja o que for que discorde dessas doutrinas sacrossantas (IV, xx, 10, p. 450). A tradição afirma (com um desprezo característicamente iluminista), mantém na ignorância ou no erro mais pessoas do que todas as outras [fontes de erro] juntas [...] Tenho em mente o ato de dar o nosso assentimento às opiniões comuns tradicionais, seja dos nossos amigos, seja do nosso partido, bairro ou país. Quantos homens não têm outra base para as suas doutrinas senão a suposta honestidade, ou erudição, ou número daqueles que também as professam? (IV, xx, 17, p. 456-7). Os apelos à tradição para resolver a discordância tornaram-se ineficazes; há demasiadas tradições. Seria preciso escolher qual dessas muitas tradições em conflito deveria ser sancionada. Locke considerava escandaloso esse pluralismo desordenado; e considerava-o ainda mais escandaloso pelo fato de não parecer haver uma maneira racional de pôr fim às disputas vexatórias.

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O Essay foi a tentativa de Locke de fazer o possível para pôr as coisas nos eixos. O livro IV, “Do conhecimento e probabilidade”, é o fim do livro — não apenas porque constitui as últimas cerca de trezentas páginas, mas também porque lida com a questão cuja resolução é o objetivo de Locke; e mesmo no livro IV ele demora duzentas páginas para abordá-la explícitamente. A questão principal é: como devemos regular a nossa opinião com respeito à crença em geral} Em particular; como devemos regular a nossa opinião com respeito à crença religiosa? Segundo afirma A. D. Woozley,11 esse é o tópico principal do Ensaio. Como ele também afirma, os leitores muitas vezes não chegam lá, pois ficam desconsolados ao terem de passar a duras penas por algo que, no fim das contas, acaba sendo um prefácio de seiscentas páginas. Mesmo assim, é o que Locke diz aqui que é o mais crucial para entender seu empreendimento e também para entender a nossa metaquestão.

A. Viver de acordo com a razão O problema inicial, é claro, é essa multidão desordenada de opiniões: “os homens, estendendo o seu inquérito além das suas capacidades e deixando o seu pensamento deambular naquelas profundezas em que já não encontram apoio para os pés, não admira que levantem questões e multipliquem disputas que, por nunca chegarem a qualquer resolução clara, não têm outro efeito senão o de fazer persistir e aumentar as suas dúvidas, solidificando por fim o seu ceticismo” (Introdução de Locke ao Essay, parág. 7, p. 31). Como Hume e Kant depois dele, Locke pensa que, como remédio, devemos fazer primeiro uma apreciação mais justa e rigorosa das nossas capacidades e faculdades intelectuais: Se as capacidades do nosso entendimento fossem bem consideradas, e fosse descoberto o domínio do nosso conhecimento, e se encontrasse o horizonte que estabelece os limites entre as partes iluminadas e as partes obscuras das coisas, entre aquelas que são e aquelas que não são compreensíveis para nós, os homens aceitariam talvez com menos escrúpulo a ignorância manifesta das últimas, empregando os seus pensamentos e discursos com mais vantagem e satisfação nas primeiras (Introdução de Locke ao Essay, parág. 7, p. 31). O objetivo não é chegar à certeza cartesiana (sobre a qual ele faz vários comentários depreciativos). Em vez disso, “Se pudermos encontrar aqueles padrões pelos quais uma criatura racional, colocada naquele estado em que o homem se encontra neste mundo,1 11Introdução da sua versão abreviada de Essay (New York; NAL Penguin, 1974 [originalmente publicada pela Collins, 1964]), p. 15. Essay é longo e confiiso; foi composto ao longo de muitos anos e não recebeu a revisão final de que precisava. Em consequência, foi publicado em edições abreviadas logo desde 1694 (Boston: Impresso por Manning Sc Loring, para J. White, Thomas Sc Andrews, D. West, E. Larkin, J. West e o proprietário da livraria de Boston), cerca de quatro anos depois da sua publicação e dez anos antes da morte de Locke. Essas edições abreviadas eliminam por vezes passagens muitíssimo importantes para um entendimento adequado do Essay, por exemplo, A. D. Woozley omite a passagem absolutamente crucial citada na p. 109, a seguir.

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pode e deve reger as suas opiniões, e as ações que delas dependem, não precisaremos nos preocupar com a existência de outras coisas que escapam ao nosso conhecimento” (Introdução, parág. 6, p. 31). O que precisamos encontrar é como podemos e devemos reger e regular a nossa opinião, ou assentimento. E a resposta dele, de um modo tipicamente iluminista, é que devemos reger a nossa opinião seguindo a razão. Mas o que isso significa? O que é a opinião e o que é a razão? E como podemos reger a primeira pela segunda? 1. Opinião

Para que tenhamos qualquer esperança de ultrapassar a horda polêmica de opiniões conflituosas que nos afligem, afirma Locke, temos todos de aprender a reger apropriadamente a opinião e o assentimento. Seguindo Platão, Locke contrapõe a opinião ao conhecimento; para saber o que ele pensa sobre a opinião, precisamos consequentemente ver primeiro as suas idéias quanto ao conhecimento. Segundo ele, temos quatro tipos de conhecimento, e todos envolvem a certeza. Primeiro, há o que ele considera o próprio paradigma do conhecimento: a percepção do “acordo e desacordo das nossas idéias”. Não é fácil entender o que precisamente ele tem em mente, mas o gênero principal de conhecimento aqui em causa é o conhecimento de proposições autoevidentes, proposições como 2 + 1 = 3.12 Um ser humano em estado normal é capaz de simplesmente notar que essas proposições são verdadeiras (e também que não poderíam ser falsas). Não há qualquer necessidade de regular esse tipo de crença, diz Locke, porque um ser humano apropriadamente formado não pode pura e simplesmente inibir-se de acreditar em proposições autoevidentes: “Essa parte do conhecimento é irresistível e, como o Sol brilhante, impõe-se imediatamente à percepção, mal a mente se volta na sua direção; e não deixa espaço à hesitação, dúvida ou exame, sendo antes a mente preenchida com a sua clara luz” (IV, ii, 1, p. 177). Tal conhecimento é certo\ está “além de qualquer dúvida, e não precisa de prova, nem pode tê-la; e essa é a maior certeza humana” (IV, xvii, 14, p. 407). Em segundo lugar, há o conhecimento de proposições acerca dos conteúdos da nossa mente, ou seja, proposições acerca das idéias das quais somos os sujeitos. Um exemplo seria o conhecimento de que temos uma dor moderada no cotovelo esquerdo, ou que temos a impressão de estar vendo algo branco (ou seja, as coisas têm para nós o aspecto que têm quando estamos de fato vendo algo branco). Esse conhecimento, afirma Locke, é infalível(IV, i, 4, p. 169, e alhures). Isso significa pelo menos que não podemos acreditar erroneamente em tal proposição; se você acredita que tem a impressão de estar vendo algo branco, segue-se que realmente tem a impressão de estar vendo algo branco (apesar de que você pode estar enganado, é claro, ao pensar que está realmente perante algo branco). Seguindo o costume posterior, digamos que as proposições desse gênero sobre meus próprios estados mentais são incorrigíveis para mim. 12Para um tratamento da autoevidência, veja fVPF, cap. 6.

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Em terceiro lugar, há também um gênero de conhecimento de "outras coisas”, de objetos externos que encontramos à nossa volta: Quanto a isso, a mais firme segurança que posso ter, e que as minhas faculdades podem alcançar, é o testemunho dos meus olhos, que são os juizes adequados, e únicos, dessa coisa; em cujo testemunho tenho razão para me basear por ser tão certo que, ao escrever estas linhas, o fato de eu estar vendo o branco e o preto, e que algo realmente existe que causa essa sensação em mim, não é de forma alguma mais duvidoso do que o fato de eu estar escrevendo ou movendo a minha mão; sendo esta a certeza máxima de que a natureza humana é capaz no que respeita à existência de algo, exceto o nosso próprio eu e Deus (IV, xi, 2, p. 326-7; veja também IV, ii, 14, p. 186). Não é inteiramente claro qual é o conhecimento que tenho aqui: sei que o pedaço de papel é branco, que a minha mão está se movendo e que a tinta é preta? Locke vacila. Por vezes (por exemplo, ao comentar a relação entre a fé e a razão), ele fala como se o nosso conhecimento dos objetos externos incluísse o gênero de conhecimento quotidiano que obtemos pela percepção: que a minha mão está se movendo, que as árvores do jardim estão em flor e assim por diante. Outras vezes, e talvez quando está sendo mais cuidadoso ou pelo menos mais “oficial”, dá a entender que o que sabemos do mundo externo é bem menos — algo como As minhas idéias momentâneas de árvore e de verde são causadas por algo que me é exterior. Posso não saber como são esses objetos externos (não sei se são árvores, ou rebentos, ou objetos verdes), mas sei que há algo externo que me faz causalmente ter estas idéias. Em quarto lugar, há o conhecimento demonstrativo. Posso conhecer uma proposição deduzindo-a de proposições dos três gêneros anteriores ou vendo que é implicada por elas (onde uma proposição p implica q apenas se não for possível, no sentido amplamente lógico, que/> seja verdadeira e q, falsa).13 Assim, algumas proposições que podemos deduzir das proposições autoevidentes, incorrigíveis ou evidentes aos sentidos são também certas para nós; entre essas proposições, pensa Locke, está a existência de Deus (IV, x, 1-6, p. 306-10). Na verdade, acrescenta ele, “Do que se disse, é claro para mim que temos um conhecimento mais certo da existência de Deus do que de seja o que for que os nossos sentidos não puseram imediatamente a nu para nós”. Logo, no que respeita ao conhecimento, não temos controle sobre o nosso assentimento; o assentimento ocorre, queiramo-lo ou não; consequentemente, a questão de como devemos regular o assentimento nessa área não se põe (não podemos regulá-lo em absoluto, tal como não posso regular a direção em que caio se eu despencar de um precipício). Claro que o conhecimento constitui apenas uma parte das crenças que encontramos na

13Não sei nem posso conhecer todas as proposições implicadas pelas proposições do gênero anterior; algumas poderão ser demasiado complicadas e difíceis para o meu entendimento, outras poderão ser tal que pura e simplesmente não vejo a conexão entre elas e as proposições dos três gêneros anteriores. Para outras ainda, o argumento a favor delas é tão longo e complexo que não tenho a certeza exigida pelo conhecimento.

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estrutura noética humana e, segundo Locke, uma parte relativamente pequena (“Sendo o nosso conhecimento, como mostramos, bastante reduzido”, IV, xv, 2, p. 364). E a opinião que inclui a maior parte daquilo em que acreditamos comumente; e é com respeito à opinião — aquilo em que acreditamos, mas que não sabemos com certeza —‫ ־‬que a questão da regulação efetivamente se põe.

2. R a zã o A tese crucial de Locke é que, na formação da opinião, precisamos ser guiados pela razão. Mas o que é a razão? Primeiro, é “uma faculdade do homem, a faculdade pela qual o homem se distingue supostamente dos animais, e onde é evidente que os ultrapassa” (IV, xvii, 1, p. 386). Em segundo lugar, a razão é o poder pelo qual discernimos relações lógicas amplas entre proposições (IV, xviii, 3, p. 417) que sejam, é claro, candidatas ao nosso assentimento, a ser coisas em que acreditamos. Em particular, em virtude do uso da razão, distinguimos dois tipos de relações entre proposições: A maior parte do nosso conhecimento depende de deduções e idéias intermediárias; e naqueles casos em que estamos dispostos a substituir o conhecimento pelo assentimento, tomando proposições como verdadeiras sem estarmos certos de que o sejam, precisamos descobrir, examinar e comparar as bases da sua probabilidade. Nesses dois casos, a faculdade que descobre os meios e os aplica corretamente, para descobrir a certeza em um caso e a probabilidade no outro, é aquilo a que chamamos razão. Pois assim como a razão percebe a conexão necessária e indubitável de todas as idéias ou provas entre si, em cada passo de qualquer demonstração que produza conhecimento, ela também percebe a conexão provável entre todas as idéias ou provas às quais pense que o assentimento é devido em cada passo de um discurso (IV, xvii, 2, p. 387). E pela razão, consequentemente, que percebemos as relações dedutivas e probabilísticas entre proposições. Aqui, não precisamos dizer nada sobre as relações dedutivas entre proposições; e embora seja preciso dizer muito acerca da probabilidade, Locke praticamente nada diz. Contudo, diz um pouco, começando por declarar, de modo pouco auspicioso: “A probabilidade é a forte possibilidade de algo ser verdadeiro” (IV, xv, 3, p. 365). O caráter altamente não informativo dessa definição é compensado, entretanto, pela observação14 de que a probabilidade diz respeito ao que ocorre “na maior parte das vezes” na nossa experiência; e ele acrescenta que o testemunho alheio também estabelece a probabilidade (IV, xv, 4, p. 3 6 5 6 ‫)־‬. Locke parece ver a probabilidade como uma relação objetiva entre proposições; provavelmente também pensa que se trata de uma relação quase lógica entre elas. Essas perspectivas, consequentemente, talvez sejam precursoras das de J. M . Keynes e Rudolf Carnap, entre outros.15 Além disso, há graus de probabilidade: ” Feita igualmente por Aristóteles; veja WPF, p. 159. 15O que ele afirma é compatível com outras perspectivas, contudo, como a proposta no cap. 9 de WPF.

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“É destas bases que depende a probabilidade de qualquer proposição; e à medida que a conformidade com o nosso conhecimento, a certeza das observações, a frequência e constância da experiência e o número e credibilidade dos testemunhos concordam ou discordam mais ou menos com ela, assim a proposição será mais ou menos provável” (IV, XV, 6 , p. 367). Nessa passagem, Locke parece dar a entender que uma proposição é provável em algum grau “em si mesma”, mas parece mais acertado, penso, considerar que, na opinião dele, a probabilidade é uma relação entre proposições. Uma proposição tem um certo grau de probabilidade “para mim” (ou seja, relativamente às proposições que são certas para mim); o que conta em relação à formação da minha opinião é a probabilidade da candidata em questão no que diz respeito ao que é certo para mim. 3. R egu la n d o a

opinião p e la ra zã o

A tese de Locke é que devemos regular nossa opinião ou assentimento pela razão. Mas o que significa isso? Como fazemos tal coisa? A sua resposta, fundamentalmente, é que devo regular a minha opinião para aceitar como opinião apenas o que for provável com respeito ao que é certo para mim. Não tenho controle sobre o meu assentimento no que se refere ao conhecimento, no que refere ao que é certo para mim (ou seja, ao que é objeto de certeza); contudo, tenho controle sobre o meu assentimento no que se refere à opinião, que não é certa. E a regra é que não devo assentir a uma proposição a menos que esta seja provável no que concerne ao que é certo para mim. Além disso, há graus de assentimento16 (IV, xvi, 1, p. 369). Mais exatamente, pois, a regra é que devo adequar 0 meu grau de assentimento à probabilidade da proposição em questão‘. “As bases da probabilidade foram estabelecidas no capítulo anterior; como são as fundações a partir das quais o nosso assentimento se constrói, são também a medida pela qual os seus vários graus são, ou devem ser, regulados” (IV, xvi, 1, p. 369). Mais específicamente, para qualquer proposição a que eu dê atenção, devo adequar o meu grau de assentimento a ela ao grau de probabilidade que essa proposição tem com respeito ao que é certo para mim. O procedimento adequado aqui é “não aceitar qualquer proposição com mais segurança do que o garantam as provas [dedutivas ou indutivas] que estão na sua base” (IV,xix, l,p . 429) (não somente provas dedutivas, mas também provas probabilísimas). O utra maneira de o exprimir: devo adequar o grau de assentimento às evidências; isto é, devo acreditar em uma proposição^» com uma firmeza proporcional ao grau em que p é provável com respeito ao que é certo para mim. E isso que é regular ou reger a opinião segundo a razão.1

1‘Nesse ponto, penso que Locke visa apontar para dois fenômenos: primeiro, que acreditamos em algumas proposições mais firmemente do que em outras e, segundo, que julgamos que algumas proposições são mais prováveis do que outras. Para ilustrar o primeiro caso, eu acredito que 7 + 5 = 12 mais firmemente do que acredito que Glasgow fica a oeste de Aberdeen, mas acredito nas duas proposições. Quanto ao segundo, acredito que é razoavelmente provável que todos os continentes da Terra formaram em tempos um supercontinentc; acredito também que d mais provável que as obras atribuídas a Shakespeare foram realmente escritas por ele c não por Bacon.

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B. Revelação A questão que desencadeou toda a discussão presente nas novecentas páginas do Ensaio tratava dos “princípios da moral e da religião revelada”. Mas agora vemos que devemos regular a nossa opinião pela razão, ou seja, adequar a nossa crença em uma proposição ao grau da sua probabilidade com respeito ao que é certo para nós. Significa isso, então, que a revelação divina, a “religião revelada”, não desempenha nenhum papel na correta regulação da opinião? Se essa regulação exige a adequação do grau de assentimento às evidências, que espaço há para assentir às “coisas grandiosas do Evangelho”, como Jonathan Edwards lhes chama — a encarnação, a expiação e outras características centrais do cristianismo? Teremos de concluir que Deus não podería revelar-nos proposições indisponíveis pelo uso das faculdades naturais? Certamente que não: “Deus, ao conceder-nos a luz da razão, não atou desse modo as suas próprias mãos, impedindo-se de nos conceder a luz da revelação quando o considera adequado” (IV, xviii, 8, p. 423). Mesmo que nos conceda a luz da revelação, contudo, não devemos nós regular o assentimento de modo a acreditar no que ele revela apenas no caso de isso ser provável com respeito ao que é certo para nós? Se assim for, como podemos aceitar o que ele nos ensina por meio da revelação? A encarnação, a expiação e a Trindade não parecem particularmente prováveis à luz do que é autoevidente ou do meu conhecimento de meus próprios estados mentais. Locke responde, primeiro, que Deus pode realmente revelar-nos tais verdades e efetivamente as revela, devendo nós certamente acreditar no que nos for revelado: “bem podemos duvidar do nosso próprio ser, se duvidarmos que qualquer revelação de Deus é verdadeira” (IV, xvi, 14, p. 383); “O que Deus revelou, seja isso o que for, é verdadeiro: nenhuma dúvida pode surgir a esse respeito” (IV, xviii, 10, p. 425). Mas, então, pensa ele que essas grandiosas verdades são prováveis com respeito ao que é certo para nós? Primeiro, ele declara repetidamente que não podemos acreditar no que vai contra a razão no sentido de ser contrário aos princípios do conhecimento: Um homem nunca pode ter um conhecimento tão certo de que uma proposição que contradiz os princípios claros e a evidência do seu próprio conhecimento foi revelada por Deus, ou de que entende corretamente as palavras em que foi transmitida, quanto pode ter certeza do contrário; por isso, é obrigado a considerá-la e apreciá-la como matéria de razão, não a simplesmente engoli-la [...] (IV, xviii, 8, p. 424). Contudo, não se exige que, para ser digna de assentimento, tal doutrina tenha de ser provável com respeito ao que é certo para mim. Em vez disso, o que deve ser provável é que a doutrina em questão seja realmente revelada, seja realmente proposta para nosso assentimento pelo Senhor: Assim, a fé é um princípio estabelecido e seguro de assentimento c garantia, não dcixando lugar algum à dúvida ou hesitação. Porém, devemos ter a certeza de que se trata de uma

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revelação divma e de que a entendemos corretamente·, caso contrário, ficaremos à mercê de toda a extravagância do fanatismo [...] (IV,xvi, 14, p. 383). e O que Deus revelou, seja o que for, é verdadeiro: nenhuma dúvida pode surgir a esse respeito. Este é o objeto apropriado da fé: mas se se trata de uma revelação divina ou não, cabe à razão ajuizar (IV, xviii, 10, p. 425). A pergunta constante de Locke é “como sabe você que isso vem de Deus?”; “Como sei que é Deus quem me revela isto, que essa impressão é introduzida na minha mente por seu Espírito Santo e que, portanto, devo obedecer-lhe? Se não o souber, por maior que seja a minha segurança, ela não tem qualquer base; seja qual for a luz que pretendo ter, ela não passa de fanatismo' (IV, xix, 10, p. 435). “A razão", afirma, atem de ser 0 nosso últitno ju iz eguia em tudo" (IV, xix, 14, p. 438, grifo dele). Locke prossegue: Não quero dizer que devemos consultar a razão e examinar se uma proposição revelada por Deus pode ser estabelecida por princípios naturais e, se não o puder, que devemos então rejeitá-la: mas temos de a consultar e examinar se é uma revelação de Deus: e se a razão descobre que foi revelada por Deus, ela mesma a sanciona como a qualquer outra verdade, tornando-a um dos seus ditames (IV, xix, 14, p. 439). Assim, no computo geral, a perspectiva dele é a seguinte: Deus pode certamente revelar-nos verdades. Não somos obrigados a aceitar como revelações, contudo, qualquer coisa contrária ao que sabemos por outros meios, mesmo a respeito do mais baixo nível de conhecimento. Além disso, uma proposição p que se pretenda revelada, se não for confirmada por evidências extraídas daquilo que é certo, não terá mais probabilidade epistêmica do que aquela que caracteriza a proposição de que^> é realmente uma revelação de Deus (IV,xvi, 14, p. 383). Assim, devemos seguir a razão na formação da opinião religiosa, mas fazê-lo não impede a aceitação de certas proposições como revelações especiais de Deus, aceitando-as nessa base. II. E v id e n c ia l is m o c l á ssic o , d e o n t o l o g ism o e f u n d a c io n a l is m o

Em God and other minds, aceitei como ponto pacífico algo que era então axiomático: que a crença em Deus somente será racionalmente justificável se tiver bons argumentos a seu favor, e apenas se tais argumentos forem mais fortes do que os argumentos contra ela. A origem — pelo menos, a origem próxima — dessa ideia encontra-se na obra de Locke de que estou tratando. Uma crença é aceitável, afirma ele, apenas se for ela mesma certa, ou se for provável (ou seja, mais provável do que improvável) com base em proposições que são certas para mim. A crença cristã, como é claro, não é certa para mim: não é autoevidente, não é incorrigível e não é um produto dos sentidos. Logo, para que ela

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seja aceitável, tem de ser provável com respeito a proposições desses gêneros. Locke não se pergunta explícitamente, pelo que sei, se tenho de conhecer ou acreditar que a crença é provável desse modo para que seja aceitável para mim; penso que ele pressupõe que sim. Locke entende a questão da perspectiva da aplicação de um teste: temos contato com certa crença p\ passamos então a investigar se ela é provável com respeito ao que é certo para nós, a fim de determinarmos se ela é aceitável para nós. Então, só a aceitaremos se virmos ou acreditarmos que ela passa nesse teste. O evidencialismo é a tese de que a crença religiosa somente será racionalmente aceitável se houver bons argumentos a seu favor; Locke é simultaneamente um evidencialista paradigmático e a fonte próxima de toda a tradição evidencialista,17 que parte dele e abrange Hume, Reid, Kant e todo o século 19 até o presente. O evidencialismo clássico de Locke é um elemento de um todo mais vasto que também inclui o fundacionalismo clássico e o deontologismo clássico. Este complexo interconectado de teses e atitudes tem sido imensamente influente em epistemología desde o Iluminismo, em especial no que concerne à nossa questão, a questão da justificação racional da crença religiosa: chamemos-lhe opacote clássico. Esse pacote abrange maneiras de pensar acerca da fé, da razão, da racionalidade, da justificação, do conhecimento, da natureza da crença e de outros tópicos relacionados. E difícil exagerar a importância dessa maneira de pensar no que se refere à questão dejure. Vimos como Locke é a fonte da tradição evidencialista, um dos elementos do pacote clássico; mas ele é também uma das fontes principais, para nós, modernos (e também para os pós-modernos), de dois outros elementos: o fundacionalismo clássico e o deontologismo clássico. E para esses que agora me volto.18

A. Fundacionalismo clássico Primeiro, o fundacionalismo clássico é um fundacionalismo. A noção crucial aqui é a de acreditar em uma proposição com base nas evidências fornecidas por outras. Como qualquer noção filosófica importante, ela tem problemas, complicações e perplexidades. Ignoremo-las. A noção é útil ainda que esteja longe de ser completamente clara e, de qualquer modo, há exemplos claros. Acredito que 32 χ 94 é 3008 (acabei de fazer o cálculo); acredito nessa proposição com base em evidências fornecidas por outras, como 4 χ 2 = 8 ,4 x 3 = 12, 8 + 2 = 10 e assim por diante. Contudo, não acredito nestas últimas com

17Em “Reason and belief in God”, apresentei a tese de que Tomás de Aquino era também um evidencialista neste sentido; várias pessoas (Alfred Freddoso, Norman Kretzmann, Eleonore Stump, Linda Zagzebski e John Zeis em “Natural theology: reformed?”, in: Linda Zagzebski, org., Rationalfaith: catholic responses to reformed epistemology [Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1993], p. 72) protestaram, observando que as coisas eram muito mais complexas do que eu pensava. O fato é que Tomás é um evidencialista com respeito à scientia, ao conhecimento científico. Entretanto, não se segue que ele pensava que uma pessoa só poderia aceitar apropriadamente a crença em Deus, digamos, se tivesse bons argumentos teístas (ou se houvesse tais argumentos). Ao contrário, Tomás considcrava que era perfectamente sensato e razoável aceitar essa crença somente com base na fé. 1“Examino o fundacionalismo clássico detalhadamente em WCD e em “Reason and belief in God"; aqui, serei breve e esquemático.

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base nas evidências fornecidas por quaisquer outras proposições; ao contrário, elas são para mim “básicas”. Limito-me a constatar que são verdadeiras e aceito-as. Aceito muitas proposições desta maneira básica: que há neve no meu jardim, por exemplo, e que ela continua branca. Acredito também, de maneira básica, que me parece que estou vendo algo branco (tenho uma impressão de brancura), que comi cornflakes no café da manhã e mil outras coisas. As proposições que aceito de maneira básica são, digamos, pontos de partida do meu pensamento. (Isso não é o mesmo que dizer, evidentemente, que o que você toma como básico não depende de outras coisas que você sabe ou nas quais acredita. Eu acredito de maneira básica que o que vejo vindo na minha direção é um caminhão; uma pessoa sem qualquer familiaridade com caminhões ou veículos motorizados não poderia formar essa crença de modo algum, quanto mais tê-la do modo básico.) As proposições que aceito desse modo básico são as fundações da minha estrutura de crenças — a minha “estrutura noética”, como a denominarei por uma questão de facilidade de expressão.19 E, segundo os fundacionalistas, em uma estrutura noética aceitável, apropriadamente formada, toda proposição ou está nas fundações ou acreditamos nela evidencialmente, com base nas evidências fornecidas por outras proposições. Na verdade, até aqui isto é trivialmente verdadeiro; uma proposição está nas fundações da minha estrutura noética se e somente se for básica para mim, e ela é básica para mim se e somente se eu não a aceito evidencialmente, com base em outras proposições. Esse aspecto do fundacionalismo não deveria ser controverso e todos o deveriam aceitar.20 Além disso (e ainda dentro de um domínio incontroverso), para cada proposição da minha estrutura noética que não esteja nas fundações, há um caminho evidenciai que termina nas fundações: ou seja, se A não for básica para mim, acredito cm A com base em outra proposição B, em que acredito com base em outra proposição C, e assim por diante até chegar a uma ou mais proposições fundacionais.21 Ora, Locke aceita claramente tudo isso; mas aceita ainda mais. Um fimdacionalista também afirmará tipicamente que nem toda crença é apropriadamente básica; algumas proposições são tais que, se eu as aceitar de um modo básico, é porque há algo de errado, algo distorcido, algo injustificado na minha estrutura noética. Imagine-se, por exemplo, que, dada uma admiração exagerada por Picasso, dou-me subitamente conta de que acredito que ele não morreu; como Elias, foi diretamente transportado para o céu (em uma espécie de carruagem peculiarmente distorcida e com um imenso olho desfigurado no meio de sua parte lateral). Se eu não acreditar nessa proposição evidencialmente com base em quaisquer outras, ela é básica para mim. Porém há algo de defeituoso, errado, infeliz em acreditar nessa proposição de maneira básica: ela não é apropriadamente básica. Vendo que só algumas proposições parecem apropriadamente básicas, um fundacionalista pode passar a estabelecer condições de basicidade apropriada, admitindo que alguns

19Para um tratamento das estruturas noéticas, veja WCD, p. 72ss. 20Incluindo os coerentistas: veja WCD, p. 78ss. 21Veja “Reason and belief in God”, p. 54.

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tipos de proposição têm esta condição proeminente e rejeitando que outras a tenham. E o fundacionalista clássico sustenta que as únicas proposições que são apropriadamente básicas para mim são as que me dão certeza. A certeza é outra noção difícil e muito discutida; uma vez mais, ignoremos as diAcuidades e confrontações observando que os fundacionalistas clássicos nem sempre concordam quanto a quais proposições envolvem realmente essa certeza. Descartes admite apenas proposições que sejam autoevidentes ou incorrigíveis. Locke aceita-as como apropriadamente básicas, mas acrescenta também, como afirmei, proposições que são “evidentes aos sentidos” — pelo menos proposições como algo me está causalmente fazendo ter as idéias que tenho, e possivelmente também proposições mais robustas como 0 chão do meu jardim está cheio de neve. De modo meio vago, podemos afirmar que, segundo os fundacionalistas clássicos, uma proposição é apropriadamente básica, para uma pessoa S, se e somente se for autoevidente para S, ou incorrigível para S, ou evidente aos sentidos para S. Além disso, segundo os fundacionalistas clássicos (e qualquer outra pessoa), não podemos acreditar em qualquer proposição com base em não importa qual outra proposição. Não posso acreditar apropriadamente, por exemplo, na proposição de que Abraão viveu por volta de 1800 a.C. com base na proposição de que Bruto apunhalou Júlio César; sob o aspecto evidenciai, esta em nada diz respeito à primeira. Em vez disso, acredito apropriadamente em A com base em B se e somente se B sustenta A , se e somente se B é de fato uma evidência a favor de A. Uma vez mais, esta noção de sustentação evidenciai é difícil e controversa;22 contudo, ignoremos de novo as dificuldades e controvérsias observando que diferentes fundacionalistas clássicos exigem diferentes relações evidenciais para que a minha crença em A com base na crença B seja apropriada. Descartes parece afirmar que uma proposição só é aceitável na superestrutura da minha estrutura noética se a deduzi das proposições fundacionais ou se vi que estas a implicam. Esse é um padrão extremamente exigente (e de fato pouquíssimas das nossas crenças se revelam aceitáveis segundo esse padrão). Locke admitia a sustentação ou evidências probabilísticas, e admitia também o testemunho. Mais tarde, Charles Sanders Peirce e outros foram ainda mais longe e admitiram também aquilo a que ele chama por vezes “abdução” — algo como a relação entre uma teoria científica e as evidências em que se baseia. Assim, entendendo o fundacionalismo clássico na sua versão mais abrangente, suponha-se que o formulemos do seguinte modo: (FC) Uma crença é aceitável para uma pessoa se (e somente se) for apropriadamente básica (ou seja, autoevidente, incorrigível ou evidente aos sentidos dessa pessoa), ou se ela tiver essa crença evidencialmente, com base nas evidências fornecidas por proposições que sejam aceitáveis e que a sustentem dedutiva, indutiva ou abdutivamente. “ Veja WCD, p. 69ss.

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Consequentemente, em uma estrutura noética apropriada, se tomarmos qualquer crença B que não seja básica (que não esteja nas fundações), B será aceita evidencialmente com base em outras crenças que são aceitáveis e que sustentam B (seja dedutiva, seja indutiva, seja abdutivamente); se essas outras não estiverem nas fundações, serão aceitas com base em outras ainda que são aceitáveis e que as sustentam, e assim por diante, até as fundações — isto é, até as proposições que são autoevidentes, incorrigíveis ou evidentes aos sentidos. O fundacionalismo clássico, como afirmei, tem sido muitíssimo influente do Iluminismo até o presente. Para muitos filósofos e não filósofos (e também para mim, inicialmente), ele tem sido como que um pressuposto que não se põe em questão, pois não é visto com clareza suficiente que permita ao menos reconhecê-lo como um pressuposto. As perspectivas de Locke nesse caso, em particular com respeito à religião, atingiram o status de ortodoxia, e a maior parte das discussões da justificação racional da crença religiosa foi e ainda é conduzida aceitando-se acriticamente esse quadro de referência. Pode haver modificações de um ou outro gênero, extensões analógicas do quadro de referência original, afastamentos de um ou outro tipo; pode haver uma espécie de mal-estar quanto a esse quadro de referência, uma impressão vaga de que nele nem tudo vai bem; apesar disso, na sua maior parte, o quadro de referência básico permanece nas imediações do fundacionalismo clássico.

B. Deontologism o clássico Devemos fazer agora a pergunta que desde o início insistentemente chama a nossa atenção. Suponha-se que as nossas crenças não correspondam aos padrões que os fundacionalistas ou evidencialistas clássicos nos apresentam: e então? Qual é exatamente nosso problema? Será dito a nós que a estrutura de nossas crenças é inaceitável e que não tem justificação racional, e que nós mesmos somos irracionais. Contudo, torno a perguntar: qual é o problema? O que há de errado em ser irracional ou em ter crenças que não tenham justificação racional? Certamente que isso soa repreensível, mas qual é exatamente o problema? E isso que precisamos saber para entender nossa questão de jure. Considere-se, por exemplo, John Mackie em The miracle of theism [O milagre do teísmo].23 Ele acredita haver demonstrado que as doutrinas centrais do teísmo não são racionais ou “racionalmente defensáveis” porque (pensa ele) demonstrou que não são prováveis com respeito ao que ele considera serem as evidências relevantes. O que ele quer dizer aqui com a palavra “racional”? Como está ele usando este termo camaleônico? Suponha-se que ele tenha razão ao pensar que será irracional ser teísta se a crença teísta não for provável com respeito às evidências (o que quer que isso queira dizer): o que é essa propriedade da irracionalidade que afligiría então o teísmo ou os teístas? Mackie não nos diz. E Mackie não é o único a permanecer em silêncio nessa matéria. Muitos 23Oxford: Oxford University Press, 1982.

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objetores evidencialistas alegam que a crença teísta é irracional porque não há evidências suficientes a seu favor; é óbvio que pensam que ser irracional é mau, mas quase nunca dizem o que há de mau nisso. Em vez disso, passam imediatamente para a tarefa de mostrar, pensam eles, que há evidências insuficientes a favor da crença em Deus. Esta questão prévia, contudo, permanece crucial: insuficientes para quê? O que há de supostamente mau em uma crença cujas evidências não sejam suficientes? Os objetores evidencialistas contemporâneos não o dizem explícitamente (em sua maior parte); contudo, Locke, o seu progenitor, o diz. A sua questão, recorde-se, é como “uma criatura racional, colocada naquele estado em que o homem se encontra neste mundo, pode e deve reger as suas opiniões e as ações que delas dependem”. E a sua resposta, como vimos, é que uma criatura racional, nas nossas circunstâncias, deve reger as suas opiniões pela razão — ou seja, deve regular a sua crença pelo que é certo para ela. Mas como entender o “pode” e o “deve” que Locke usa ao formular o seu projeto? A primeira vista, as suas palavras têm ecos deontológicos: lembram o dever, a obrigação, a permissão, ter o direito e todo o resto do pacote deontológico. Um exame mais apurado mostra que realmente é assim que devem ser entendidas. A ideia de Locke é de que temos o dever, a obrigação de regular a opinião do modo por ele sugerido. Temos um status elevado como criaturas racionais, criaturas capazes de crença e conhecimento. Noblesse oblige, contudo; o privilégio tem as suas obrigações, e estamos obrigados a conduzir a nossa vida intelectual ou cognitiva de um certo modo. A nossa posição exaltada como criaturas racionais, criaturas com razão, acarreta deveres e exigências: ...a fé não passa de um assentimento firme da mente: que, se for regulada, como é do nosso dever, não pode ser concedida a seja o que for a não ser por uma boa razão; e por isso não pode ser oposta à boa razão. Quem acredita sem razão pode estar apaixonado pelas suas próprias fantasias; mas nem procura a verdade, como tem o dever de fazer, nem presta a obediência devida ao Criador, que preferiría que ele usasse aquelas faculdades de discernimento que lhe deu para se manter fora do engano e do erro. Quem não o faz o melhor que puder, por mais que às vezes acerte na verdade, tem razão apenas por acaso; e eu não sei se a sorte do acidente desculpará a irregularidade do seu modo de proceder. Pelo menos isto é certo: ele tem de responder pelos erros que cometer, ao passo que quem faz uso da luz e das faculdades que Deus lhe deu, e procura sinceramente descobrir a verdade por meio dos amparos e habilidades que tem, pode ter a satisfação de cumprir o seu dever como criatura racional que, ainda que não acerte na verdade, não perderá a sua recompensa. Pois rege corretamente o seu assentimento, e concede-o como é do seu dever, quem, em todos os casos ou questões, acredita ou desacredita segundo os ditames da razão. Quem fizer o contrário é um transgressor da sua própria luz e usa inadequadamente aquelas faculdades que lhe foram dadas para nenhum outro fim senão a procura e o acatamento das mais claras evidências e da maior probabilidade (IV,xvii, 24, p. 413-4). Nessa passagem, Locke não está se referindo específicamente à fé religiosa (a fé em contraste com a razão, digamos), mas ao assentimento ou à opinião em geral; e a sua

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tese central é de que há deveres e obrigações com respeito à sua gestão e regulação. Em particular, temos a obrigação de dar assentimento apenas àquilo a favor do qual tivermos boas razões, boas evidências: só devemos aceitar proposições que sejam prováveis à luz daquilo de que temos certeza. Quem não regular a sua opinião dessa maneira "nem procura a verdade, como tem o dever de fazer, nem presta a obediência devida ao Criador” (grifos meus); Deus nos ordena que procuremos a verdade e regulemos a opinião dessa maneira. Quem procurar a verdade desse modo, mesmo que não a encontre, ainda “pode ter a satisfação de cumprir o seu dever como criatura racional”. Você rege o seu assentimento "corretamente”, afirma Locke, e concede-o como "é do seu dever”, se acreditar ou desacreditar de acordo com o que a razão mandar. E se você não fizer isso, estará violando as próprias luzes. Quem rege a sua opinião desse modo, age de acordo com o dever, está em seu direito, não foge às suas obrigações, não é culpável — em uma palavra, está justificado. Os termos ingleses correspondentes a “justificado”, “justificação” e semelhantes remontam pelo menos à King James Version da Bíblia. Segundo o emprego deles nesse contexto, estamos justificados se o sacrifício expiador de Cristo se aplicou a nós, de modo que deixamos de ser culpados e o nosso pecado foi encoberto, eliminado, obliterado, removido; já não somos culpados; é como se (no que diz respeito à culpa) o nosso pecado nunca tivesse existido. Na verdade, tomado nesse sentido, o termo remonta à tradução da Bíblia de Wycliffe, de 1382; o Oxford English dictionary [Dicionário inglês de Oxford] cita especialmente Romanos 5.16. E Locke está na realidade afirmando que, ao acreditarmos em uma proposição p, só estamos justificados nesse sentido (não somos culpados, estamos cumprindo nossas obrigações e deveres) se tivermos certeza dep ou se p for provável à luz das proposições das quais temos certeza. Mais precisamente, o nosso assentimento ap só está justificado se o grau desse assentimento for proporcional ao grau de probabilidade de p com respeito às proposições de que temos certeza. Se acreditarmos de qualquer outro modo, estaremos indo contra as nossas obrigações epistêmicas; seremos culpados, estaremos fugindo aos nossos deveres epistêmicos. Essa é a ideia original e básica da tradição justificacionista, o palimpsesto segundo o qual outras noções justificacionistas são entendidas como extensões analógicas. E é claro que há extensões analógicas. Por exemplo, se seguirmos os passos de Locke ao pensar que temos tal dever, nossa tendência será transferir o termo “justificado” do crente para a crença, falando, como de fato falamos, da justificação de uma proposição, ou de ela estar justificada para alguém, querendo dizer que a pessoa em questão tem alguma boa evidência a favor da proposição em questão. Diremos também, sem dúvida, que há uma boa justificação ou justificação racional a favor de determinada proposição, querendo com isso dizer que há um bom número de evidências a seu favor.24

24Há muitas outras extensões analógicas, ou restrições, dessa noção original de justificação, e muitos outros usos analógicamente estendidos do termo; veja WCD, cap. 1.

A JUSTIFICAÇÃO E A IMAGEM CLÁSSICA

III. V

Ill

o l t a n d o a o p r e se n t e

O pensamento de Locke dá início ao pacote clássico: evidencialismo, deontologismo e fundacionalismo clássico. E de acordo com os primeiros dois elementos que a crença cristã exige evidências; ou seja, os crentes cristãos só terão direitos intelectuais e só estarão cumprindo seus deveres intelectuais se tiverem evidências suficientes a favor dessa crença. E é graças ao terceiro elemento que as evidências devem remontar, finalmente, ao que é certo para eles: o que é autoevidente ou incorrigível ou evidente aos sentidos. Há tempos que essa conexão entre justificação e evidências está no centro de toda a tradição justificacionista da epistemología ocidental; ela foi especialmente importante no pensamento subsequente acerca da questão dejure quanto à crença cristã. Segundo essa tradição, a questão dejure é na realidade a questão de a crença cristã ter justificação racional ou não — ou seja, de os crentes terem ou não justificação para sustentar tais crenças e de estarem ou não cumprindo seu dever intelectual ao sustentá-las. O dever intelectual principal é o de adequar a crença às evidências, ao que é certo. Assim, a primeira versão da questão dejure vê-se transformada em uma segunda: acaso os crentes têm evidências suficientes a favor das suas crenças? Vemos agora a conexão entre essas duas formas da questão dejure', a primeira é a questão básica, mas se acrescentarmos (com Locke e a tradição clássica) que o dever principal nesse caso é o de adequar a crença às evidências, obtemos a segunda questão. Afirmo que a influência de Locke — e do pacote clássico — tem sido dominante nas discussões da questão dejure. Se eu estiver certo, há pelo menos duas coisas a se esperar. Em primeiro lugar, a de que quem levanta a questão de jure a formule da perspectiva de evidências, argumentos, evidências proposicionais e evidências oriundas de outras coisas que pensamos. Em segundo lugar, a de que formule também a questão quanto à justificação — justificação entendida deontologicamente ou em relação a alguma extensão analógica da deontologia. Essas duas expectativas veem-se amplamente cumpridas. Claro que não espero que o leitor se limite a aceitar a minha palavra, mas como não disponho aqui de espaço para documentar extensamente o que afirmo, vou oferecer apenas alguns dados que corroboram as minhas afirmações. Nos últimos cem anos, o ensaio “A ética da crença”, de W. K. Clifford, tem sido constantemente citado em discussões da questão dejure‘, Clifford (este “delicioso enfant terrible', como William James lhe chamou) sustentou (com charmosa e cingida discrição) que “é sempre errado, em todo o lado e para qualquer pessoa, acreditar em seja o que for sem evidências suficientes”.25 Aqui há a combinação entre o deontologismo e o evidencialismo. Essa passagem não evidencia o fundacionalismo clássico (não diz em que as evidências devem consistir), mas sem dúvida Clifford era um fimdacionalista clássico; pelo menos pensava que a crença em Deus exige evidências. O ensaio “A vontade de acreditar”,26 de 25Lectures and essays (London: Macmillan, 1901), p. 183. 2*In: The ·will to believe, and other essays in popular philosophy (New York: Longmans, Green, 1897) [Os ensaios de Clifford e James, assim como um ensaio de Plantinga, estão disponíveis em português na antologia A ética da crença, organização e tradução de Desiderio Murcho (Bizâncio,2010)].

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William James, é uma espécie de complemento ao de Clifford. Nas discussões sobre a nossa questão, é citado há quase tanto tempo quanto este último e, uma vez que James comenta e critica Clifford, os dois têm sido incluídos em conjunto em várias antologias. James deu a seu ensaio o título “A vontade de acreditar”; “O direito de acreditar” teria sido mais preciso. A sua tese central é de que, em certas condições, não é contrário ao dever acreditar em uma proposição (que não seja certa) mesmo que não tenhamos evidências a seu favor. Se acreditar nesta proposição for uma opção forçosa (forced) e viva (live) para a pessoa, e se não houver evidências contrárias, a pessoa tem o direito de acreditar nela, ainda que não tenha evidências favoráveis. Desse modo, James tenta deixar espaço para a crença em Deus (embora não seja uma crença cristã integral) inserindo-a nos hiatos das evidências. O evidencialismo e o deontologismo são, uma vez mais, pressupostos e evidentes.27 James e Clifford escreveram há mais de cem anos, mas vários objetores evidencialistas à crença cristã surgiram no último meio século, pensadores que sustentam que uma crença desse tipo, para ser racional, deve ser aceita com base em evidências proposicionais, e que as evidências são insuficientes (entre eles estariam Brand Blanshard,28 Bertrand Russell,29Michael Scriven,30Antony Flew,31Wesley Salmon,32J. C. A. Gaskin,33 Anthony O ’Hear34 e, em certa medida, Richard Gale35*e John Mackie no seu livro póstumo The miracle o f theismik). Apesar de o componente deontológico dessas posições ser frequentemente menos visível do que o evidencialismo, ele está claramente presente e é, às vezes, totalmente explícito. E o caso de Blanshard: ... a crença tem sempre e em todo o lado um aspecto ético. Há urna ética geral do intelecto. Considero que o princípio primeiro dessa ética é o mesmo na religião e fora dela. Esse principio é simples e abrangente: nosso assentimento deve ser proporcional às evidências.37

27“Já não se insiste nisso, mas um dos propósitos originais de James ao promover o pragmatismo não era livrar-se de crenças empíricamente inverificáveis, e sim deixar espaço, em uma cosmovisão cientificista, à fé e a Deus. [...] Este era, explícitamente, o contexto da palestra de 1898” (Louis Menand, “An american prodigy”, New York Review of Books [2 de dezembro de 1993], p. 33). A “palestra de 1898”é “A vontade de acreditar”. 28Reason and belief (Lonáon: Allen and Unwin, 1974), p. 400ss. 29“Why I am not a Christian”, in: Why 1 am not a Christian (New York: Simon and Schuster, 1957), p. 3ss. [edição em português: Por que não sou cristão (Porto Alegre: L&PM Editores, 2011)]. 50Primary philosophy (New York: McGraw-Hill, 1966),p. 87ss. 31The presumption of atheism (London: Pemberton, 1976), p. 22ss. 32“Religion and science: a new look at Hume’s Dialogues”, Philosophical studies 33 (1978), p. 176ss. ™The questfor eternity: an outline ofthe philosophy o f religion (New York: Penguin, 1984). 24Experience, explanation, and faith: an introduction to the philosophy of religion (London/Boston: Routledge and Kegan Paul, 1984). 35On the nature and existence of God (Cambridge: Cambridge University Press, 1991). 3Oxford: Oxford University Press, 1982. 37Reason and belief, p. 401. Mais evidências da influência profunda do componente deontológico do pacote clássico encontram-se no cap. 1 de WCD. Aí afirmo que tanto a prevalência do internalismo na epistemología contemporânea como o variadíssimo e confuso aglomerado de conceitos de justificação entre os epistemólogos contemporâneos podem ser entendidos quanto a sua relação com a deontologia.

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Claro que não são apenas os objetores evidencialistas da crença cristã que abraçam o evidencialismo. O próprio John Locke era evidencialista, mas não era um objetor. Locke pensava que a crença religiosa era “essencialmente evidenciai”38 na medida em que só poderia ser racionalmente aceita caso fosse baseada em boas evidências; também pensava que as evidências exigidas estavam disponíveis. Vários autores contemporâneos seguem os seus passos: aceitam o evidencialismo, mas pensam que as evidências são suficientes (ou pelo menos não têm a certeza de que não sejam suficientes). Entre eles encontramos, por exemplo, Basil Mitchell39 e William Abraham;40 Stephen Wykstra defende um evidencialismo “mais sensato”.41 Anthony Kenny mostra alguma simpatia pelo evidencialismo,42 tal como Richard Swinburne: “O uso de símbolos [...] permite-me tornar patentes as semelhanças profundas entre as teorias religiosas e as hipóteses abrangentes”.43Terence Penelhum não é evidencialista, mas as considerações evidenciais desempenham um papel de destaque no seu God and skepticism [Deus e o ceticismo];44 e o mesmo se pode dizer do livro Religious beliefand religious skepticism [Crença religiosa e o ceticismo religioso], de Gary Gutting.45 Apesar de tudo, são os objetores evidencialistas que mais claramente patenteiam o evidencialismo. The miracle of theism, de John Mackie, representa o evidencialismo em sua plenitude; como conclusão, pois, vamos esclarecer brevemente a forma assumida pelo evidencialismo nesse livro. Mackie propõe-se a “examinar, cuidadosamente e com algum detalhe, os argumentos a favor e contra a existência de Deus, considerando tanto o conceito tradicional de Deus e as provas tradicionais da sua existência como as interpretações e abordagens mais recentes”. E prossegue: Se concordarmos que as asserções centrais do teísmo são literalmente dotadas de significado, temos também de admitir que não foram diretamente verificadas nem são diretamente verificáveis. Segue-se que qualquer consideração racional quanto à sua veracidade ou falsidade envolverá argumentos. [...] A questão [da existência de Deus] deve ser examinada por raciocínio dedutivo ou indutivo ou, se isso não der lugar a qualquer decisão, por meio de argumentos a favor da melhor explicação; pois, em tal contexto, nada mais pode ter qualquer relação coerente com a questão (p. 4,6).

38Para usar o termo do próprio Stephen Wykstra; veja o seu “Towards a sensible evidentialism: on the notion o f ‘needing evidence”1, in: William Rowe; William Wainwright, orgs., Philosophy of religion: selected readings, 2. ed. (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1989). 39Veja o seu The existence of God (New York: Oxford University Press, 1981). 40An introduction to the philosophy of religion (Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1985). 41“Towards a sensible evidentialism”. 42Veja o seu Faith and reason (New York: Columbia University Press, 1983), especialmente os caps. 3 e 4. 43Veja o seu The existence of God (Oxford: Clarendon Press, 1979). Swinburne, contudo, não pode ser considerado um evidencialista por causa de seu “princípio de credulidade”: o principio de “que (na ausência de considerações especiais), se parece (epistemicamente) a um sujeito que x está presente, então provavelmente x está presente” (p. 254). 44Dordrecht: D. Reidel, 1983. 45Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1982.

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Mackie pressupõe que a aceitabilidade racional da crença cristã depende do resultado deste exame: se, no computo geral, as evidências favorecerem o teísmo, a crença teísta será racionalmente aceitável; se as evidências favorecerem o ateísmo, o teísmo não será racionalmente aceitá\‫׳‬el. O evidencialismo é palpável. Ora, Mackie pensa que o teísmo é uma hipótese, algo como uma hipótese científica muitíssimo abrangente (algo como a teoria da evolução, talvez, ou a teoria geral da relatividade). Pressupõe, além disso, que a sua aceitabilidade racional depende do seu sucesso como hipótese. Falando da experiência religiosa, faz o seguinte comentário característico: “Neste caso, como em outros, a hipótese sobrenatural não é bem-sucedida porque há uma alternativa naturalista adequada e muito mais econômica” (p. 198). E claro que esse comentário só é relevante se entendermos a crença em Deus como uma hipótese científica ou semelhante a isso, uma teoria concebida para explicar um conjunto qualquer de dados, que só é aceitável se conseguir explicá-los. Desse ponto de vista, os crentes e os descrentes partilham um conjunto de dados pertinentes a essa questão; o teísmo é uma hipótese concebida para explicar esse conjunto de dados e será racionalmente defensável apenas se o explicar bem. Mackie pensa que ele não é uma boa explicação, concluindo: “No fim das contas, portanto, podemos concordar com o que Laplace disse sobre Deus: não precisamos dessa hipótese” (p. 253); e continua: “O computo geral das probabilidades, portanto, revela-se fortemente contra a existência de um deus”. Além disso, Mackie toma ciaramente como ponto pacífico que, se o computo geral das probabilidades for como ele diz, não há esperança de defesa para o teísmo, revelando-se o teísta como irracional, intelectualmente deficiente ou, talvez, como uma espécie de delinquente intelectual; nas palavras de Mackie: “Parece que a nossa discussão até agora mostra que as doutrinas centrais do teísmo, interpretadas literalmente, não podem ser racionalmente defendidas”.46 No entanto, por que aceitar tais pressupostos? Por que pensar que o teísmo só é racionalmente aceitável se houver bons argumentos a seu favor? Por que pensar que se trata de uma hipótese científica ou de algo significativamente semelhante a uma hipótese científica? Claro que esses pressupostos fazem parte do pacote clássico: bem, por que haveremos de aceitar esse pacote? E claro que há alternativas sensatas. Considerem-se as nossas crenças quanto à nossa memória, por exemplo: é óbvio que também poderiamos assumir aqui uma posição como a de Mackie. Acredito que comi uma banana no café da manhã; poder-se-ia sustentar que o melhor é considerar que uma crença dessas (e, na realidade, mesmo a crença de que o passado existiu de fato) ? Qual é a sua razão para acreditar em p T . Veja “Reason and belief in God”, p. 51. 12Para sugestões de como o modelo poderia ser desenvolvido nessa direção, veja Michael Sudduth, “Prospects for ‘mediate’ natural theology in John Calvin”, Religious studies 31, η. 1 (Março de 1995), p. 53.

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aos próprios elementos e às coisas geradas deles, pensando que o movimento e a fiinção natural desses elementos não estão presentes neles como efeito de outro autor da ordem, mas, antes, que as outras coisas são ordenadas por eles. Os naturalistas contemporâneos, como Daniel Dennett e Richard Dawkins,13 concor‫־‬ dariam presumivelmente com quem pensa que “o movimento e a função natural desses elementos não estão presentes neles como efeito de outro autor da ordem”. Tomás os incluiría aparentemente entre aqueles que têm um conhecimento natural de Deus — pelo menos se acreditarem também que há algo (mesmo que seja apenas, p. ex., as leis da natureza) que dá ordem às coisas que vemos. Aparentemente esse tipo de conhecimento de Deus, por mais estranho que seja, não impede que sejamos ateus ou naturalistas. Talvez possamos entender Tomás da seguinte maneira. Considere-se a descrição aquilo que dá ordem ao que vemos. Essa descrição aplica-se de fato a Deus. Quem acredita que se aplica de fato a algo pode consequentemente ter um conhecimento de re de Deus; por exemplo, essa pessoa pode acreditar que aquilo que dá ordem ao que vemos tem outras propriedades — existe, é poderoso e, de fato, dá ordem ao que vemos. Isso seria ter uma crença de re de que Deus existe, é poderoso e dá ordem ao que vemos. Mas esse conhecimento também “admite muitos erros”: por exemplo, o naturalista pensa que o que dá ordem ao que vemos é, de fato, o conjunto das leis da natureza; consequentemente, ele acredita de re que Deus é o conjunto das leis da natureza. A perspectiva de Calvino do conhecimento natural de Deus seria um pouco diferente. Nos passos de Paulo em Romanos 1, Calvino sustenta que o conhecimento natural em questão é suficiente para tornar os seres humanos culpados — culpados de não prestarem culto a Deus, de não lhe obedecerem nem se entregarem a ele. Logo, esse conhecimento inclui a ideia de que devemos prestar culto a Deus e obedecer-lhe, de modo que Deus não poderia,por exemplo, ser o conjunto das leis da natureza. (Claro que há um sentido no qual obedecemos às leis da natureza — se é que existem14—, mas nesse sentido não podemos deixar de lhes obedecer, e não seríamos necessariamente culpados se pudéssemos desobedecer-lhes e o fizéssemos.)

2. B asicidade a p ro p ria d a co m resp eito à ju stifica ção Assim, no modelo A/C a crença teísta, quando produzida pelo sensus divinitatis, é básica. E também apropriadamente básica e em ao menos dois sentidos. Por um lado, uma crença pode ser apropriadamente básica para uma pessoa no sentido de ser realmente básica para ela (pois ela não a aceita com base evidenciai em outras proposições) e de ela ter, além disso, justificação para sustentá-la da maneira básica: a pessoa tem esse direito epistêmico, não é irresponsável, não está violando quaisquer deveres epistêmicos ou de 13Veja, do primeiro, Darwins dangerous ideia (New Yourk: Simon and Schuster, 1995) [edição em português: A ideia perigosa de Darwin (Rio de Janeiro: Rocco, 1998) c, do segundo, lhe blind watchmaker (New York: W. W. Noreton, 1986) [edição em português: O relojoeiro cego (São Paulo: Companhia das Letras, 2001). 14Para argumentos que lançam dúvidas sobre a existência de leis da natureza, veja Bas van Fraassen, Laws and symmetry (Oxford: Clarendon Press, 1989), p. 17ss.

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outra ordem ao sustentar essa crença desse modo. Esse é o sentido de basicidade apropriada que estava em destaque em “Reason and belief in God”. Esse sentido estava ali em destaque porque eu estava contestando as perspectivas dos objetores evidencialistas à crença teísta. Eles quase nunca diziam precisamente qual era o problema que pensavam haver em acreditar em Deus da maneira básica (sem indícios proposicionais), mas, tanto quanto consigo ver, defendiam que a crença em Deus, tomada desse modo, carecia de justificação. Além disso, entendiam aparentemente a justificação e a falta de justificação da perspectiva deontológica: não estar justificado é ser epistemicamente irresponsável, desprezar um dever epistêmico ou outro requisito qualquer. Como argumentei no capítulo 3, contudo, é na verdade perfeitamente óbvio que um crente em Deus está ou pode estar deontologicamente justificado. O leitor pensa na questão cuidadosa e detidamente, considerando a queixa F& M e todo o resto, mas mesmo assim parece-lhe claro ou óbvio (talvez até irresistivelmente óbvio) que a pessoa de Deus existe: como poderia alguém defender sensatamente que você estava sendo irresponsável ou negligente com respeito a um dever epistêmico qualquer? Isso seria praticamente impossível. 3. B asicidade a p ro p ria d a co m respeito ao aval

Há outro sentido em que uma crença pode ser apropriada ou inapropriadamente básica: p é apropriadamente básica para S nesse sentido se e somente se S aceita p do modo básico, e além disso/‫ ׳‬tem aval para S se for aceita desse modo. As crenças perceptivas são apropriadamente básicas neste sentido: tais crenças são tipicamente aceitas da maneira básica e muitas vezes têm aval (são muitas vezes produzidas por faculdades cognitivas que funcionam apropriadamente em um ambiente epistêmico adequado segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade). O mesmo acontece com as crenças de memória, as crenças a priori e muitas outras crenças. Suponho que a maior parte das nossas crenças que têm aval o têm desse modo básico; só em uma área muitíssimo pequena da nossa vida cognitiva o aval que uma crença tem para nós deriva do fato de ela ser aceita com base evidenciai em outras crenças. Claro que, por vezes, as crenças são aceitas da maneira básica, mas não têm aval. Como vimos no capítulo 4, isso pode dever-se a uma disíunção cognitiva ou à obstrução que estados como a raiva, a luxúria, a ambição, o luto e outros semelhantes provocam nessa faculdade cognitiva; também pode ser porque o aspecto do plano de desígnio que rege a produção da crença não visa à verdade, mas a outra coisa (à sobrevivência, p. ex.), ou porque algo na cadeia testemunhai correu mal (um dos nossos amigos mentiu para nós), ou por outras razões ainda. Segundo o modelo A /C que estou apresentando, a crença teísta produzida pelo sensus divinitatis pode também ser apropriadamente básica com respeito ao aval.15 Não se trata *

‫ ״‬E dado que uma crença só tem aval se for produzida por processos ou faculdades que funcionem apropriadamente, uma crença apropriadamente básica com respeito ao aval também será apropriadamente básica com re6peito à racionalidade (i6to é, racionalidade no sentido de funcionamento apropriado; veja p. 132),

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apenas de o crente em Deus estar no seu direito epistêmico ao aceitar a crença teísta da maneira básica. Isso é realmente assim; além disso, contudo, essa crença pode ter aval para a pessoa em questão, um aval que muitas vezes é suficiente para o conhecimento. O sensus divinitatis é uma faculdade de produção de crenças (ou poder, ou mecanismo) que, nas condições certas, produz crenças que não se baseiam em outras crenças de forma evidenciai. Nesse modelo, as nossas faculdades cognitivas foram concebidas e criadas por Deus; o plano de desígnio, consequentemente, é um plano no sentido literal e paradigmático. E um diagrama ou projeto de nossas maneiras de funcionar e foi desenvolvido e instituído por um agente consciente e inteligente. O propósito do sensus divinitatis é permitir-nos ter crenças verdadeiras sobre Deus; quando funciona apropriadamente, produz realmente, na maioria das vezes, crenças verdadeiras sobre Deus. Essas crenças satisfazem consequentemente as condições do aval; se as crenças produzidas forem suficientemente fortes, constituirão conhecimento.16 Haverá uma interação complicada e multifacetada entre os produtos do sensus divinitatis e os produtos de outras fontes de crença, tal como há uma interação entre os produtos da percepção, que aceitamos da maneira básica, e outras fontes de crença. Não se trata de dizer, é claro, que quem adquire uma crença por meio do sensus divinitatis precisa ter idéias bem formadas sobre a fonte ou origem da crença, ou ter noção de que a faculdade do sensus divinitatis existe (tal como a maior parte de nós não tem idéias bem desenvolvidas sobre a fonte e origem das nossas crenças a priori). Além disso, tal pessoa não aceitaria a crença em questão com base no seguinte argumento: esta crença parece um produto do sensus divinitatis; este é um mecanismo confiável de produção de crenças; logo, provavelmente esta crença é verdadeira. Claro que não; aqui, como no caso de outras fontes originais de crença (memória, percepção, crença a priori etc.), a crença em questão não é tipicamente aceita com base em qualquer argumento, e a crença pode ter aval mesmo que o crente não tenha crenças de segunda ordem sobre a crença em questão.

4. C on h ecim en to natural d e D e u s Essa capacidade para o conhecimento de Deus faz parte do nosso equipamento cognitivo original, faz parte do perfil epistêmico fundamental com que Deus nos criou. Nesse aspecto, contrasta com um dos temas do capítulo 8, a instigação interna do Espírito Santo. Como veremos nesse capítulo, essa instigação é um elemento da resposta divina ao pecado humano e ao aperto em que nos encontramos, e ambos exigem cura, restauração e salvação. Segundo as doutrinas cristãs fundamentais, a resposta divina central ao aperto em que nos encontramos é a encarnação e a expiação: a vida, a morte sacrificial e a ressurreição de Jesus Cristo, o filho divino de Deus. Em virtude dessa resposta divina, os 16Claro que não se segue que a crença teísta não possa obter aval por meio de argumentos baseados em outras crenças; nem se segue que a teologia natural e os argumentos teístas mais informais não sejam importantes para a vida intelectual e espiritual do crente. Note-se além disso que, segundo o modelo, o pecado danifica o sensus divinitatis e prejudica sua operação; veja a seguir p. 200 e cap. 7.

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seres humanos podem acertar as coisas com Deus e viver em triunfo com ele nesta vida e na próxima. Outra parte da resposta de Deus à nossa condição, contudo, é a Escritura e o testemunho do Espírito Santo. Deus nos fala na Escritura, ensinando-nos a sua resposta à nossa condição caída e o modo pelo qual podemos nos apropriar dessa resposta. Em virtude da instigação interna do Espírito Santo, vemos que as doutrinas da Escritura são verdadeiras. Essa obra do Espírito Santo, consequentemente, é um tipo muito especial de instrumento ou agência cognitiva; é um processo de produção de crenças, certamente, mas um processo muitíssimo fora do comum. Não faz parte do nosso equipamento noético original (não faz parte da nossa constituição tal como saímos das mãos do Criador), faz parte sim de uma resposta divina especial à nossa condição (não natural) de pecado. Depois veremos essas noções em pormenor; aqui, o que importa é o contraste entre a atividade do Espírito Santo na nossa vida cognitiva, por um lado, e o sensus divinitatis., por outro. A primeira faz parte de uma resposta especial à condição caída na qual a humanidade se pôs; o segundo faz parte da nossa dotação epistêmica original. A primeira é uma resposta divina especial ao pecado; não existiría se não tivesse havido pecado. O último sem dúvida faria parte do nosso perfil epistêmico mesmo que a humanidade não tivesse caído no pecado.

5. C on h ecim en to perceptivo ou da experiência? Suponha-se que o modelo A/C, ou outro parecido, seja de fato correto: o conhecimento de Deus não nos vem, habitualmente, por meio de inferências que partem de outras crenças, mas de um sensus divinitatis, tal como o caracterizamos. Seguir-se-ia que nosso conhecimento de Deus é perceptivo? Ou seja, seguir-se-ia que o aval de que goza a crença teísta é perceptivo? Não necessariamente. E não porque haja qualquer questão genuína acerca da possibilidade ou, na verdade, da efetividade da percepção de Deus. Penso que William Alston demonstrou que, se a pessoa de Deus efetivamente existe, a percepção dessa pessoa também pode existir e efetivamente existe. A poderosa discussão de Alston mostra que as objeções habituais à percepção de Deus (não há maneira independente de verificação, desacordo quanto ao que é Deus, diferenças em relação à percepção sensorial, relatividade aparente das crenças teológicas de quem supostamente tem a percepção e assim por diante) têm pouco a seu favor.17 Claro que a natureza da percepção não é inteiramente clara (há muitas controvérsias acerca disso, como acontece com qualquer outro tópico filosófico); é concebível que a percepção, tomada estritamente, envolva essencialmente imagens sensoriais. Essas imagens não precisam ser do gênero que acompanha a nossa percepção sensorial; outros tipos são certamente possíveis (talvez a ecolocalização dos morcegos inclua imagens sensoriais, um tipo de imagens que nos são completamente estranhas). 17Perceiving God: the epistemology of religious experience (Ithaca: Cornell University Press, 1991), caps. 1 ,2 ,5 e 6 (PG, daqui em diante).

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Entretanto, pode ser necessário ter imagens sensoriais de algum tipo para que haja percepção, e talvez também seja necessário que essas imagens desempenhem certo papel causai específico (e difícil de especificar) na gênese daquelas crenças que seriam candidatas a ser crenças perceptivas. O que Alston concebe como a hipotética percepção de Deus, contudo, parece frequentemente não envolver imagens sensoriais.18 Nesse caso, pois, estritamente falando, não haveria percepção de Deus; o que a discussão de Alston demonstraria então é que (dada a existência de Deus) podería certamente haver e provavelmente há algo parecido com a percepção de Deus (algo que seja epistemicamente equivalente à percepção no sentido em que, como esta, pode ser uma fonte de aval). Esse algo, consequentemente, pode denominar-se “percepção” em um sentido analógicamente ampliado do termo. Para o crente, a presença de Deus é muitas vezes palpável Um número surpreendente de pessoas relata que já sentiu a presença de Deus, em um ou em outro momento, ou pelo menos pareceu^lhe que sentiu a presença de Deus — em que esse “sentir” também não parece envolver imagens sensoriais. Muitos outros (de modo algum, na sua maior parte, heróis espirituais ou nem sequer crentes sérios) relatam ouvir Deus falar com eles. E entre esses casos, casos em que parece correto ou quase correto falar depercepcionarT)ç\xs (sentir a sua presença, talvez ouvir a sua voz), há uma grande variação. H á experiências devastadoras e grandiosas como a de Paulo (quando ainda era “Saulo”) na estrada para Damasco e as relatadas por místicos e outros mestres da vida interior. Nesses casos pode haver imagens sensoriais vividas de vários tipos. Apesar disso, há também um gênero de consciência de Deus na qual parece correto dizer que sentimos a sua presença, mas em que há poucas ou nenhuma imagem sensorial que tipicamente acompanha a percepção; é mais parecido com uma impressão não sensorial de uma presença. E (aparentemente) há inúmeros tipos de exemplos entre esses dois extremos. Assim, não tenho dúvida de que a percepção de Deus, ou algo parecido, ocorre realmente, sendo aliás bastante comum. Contudo, será que as crenças obtidas por meio do sensus divinitatis do modelo A /C seriam perceptivas — isto é, será que o conhecimento de Deus obtido (no modelo A/C) pelo sensus divinitatis seria obtido por meio da percepção? Tendo a pensar que não. H á diferentes explicações do que é essencial na percepção; penso que a de Alston é tão boa quanto qualquer outra. Como ele escreve, o que considero definir a consciência perceptiva é que algo (pelo menos do ponto de vista do sujeito) se apresenta à consciência do sujeito como tal-e-tal — como vermelho, redondo, amoroso ou seja o que for. Quando estou perante minha mesa com os meus olhos fechados e depois os abro, a diferença mais significativa na minha consciência é que aqueles itens nos quais eu antes apenas pensava ou dos quais me recordava, se acaso tinha consciência deles, são-me agorapresentes (PG, p. 36).

,‫“״‬Apesar de a percepção mística poder envolver conteúdo sensorial, centrar-me-ei no tipo não sensorial, uma vez que, penso, é mais provável que se trate de uma percepção direta genuína de Deus” (PG, p. 36).

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Claro que não é fácil dizer, em todos os casos, quando o objeto parece apresentar-se ao sujeito; suponhamos que apreendemos mais ou menos essa noção e que podemos dizer, dentro de limites razoáveis, quando isso acontece. Se assim for, penso que é óbvio que em algumas das experiências que são, no modelo, operações do sensus divinitatis, há uma acepção na qual Deus se apresenta efetivamente, está efetivamente presente, à nossa consciência, mas em outras acepções isso não acontece. Nos gêneros de casos de que fala Calvino (o céu noturno, as montanhas, o oceano), é por vezes como se sentíssemos ou percepcionássemos a própria presença de Deus. Isso seria o que Alston chama (p. 21) percepção indireta de Deus — a percepção de Deus mediada pela percepção de outra coisa (o céu noturno, as montanhas). Em outros casos desse gênero, contudo, Deus não parece exatamente presente, não parece apresentar-se, ainda que surjam várias crenças acerca dele — que é poderoso, glorioso, digno de adoração, obediência e gratidão. E em alguns dos outros gêneros de manifestações do sensus divinitatis — situações de culpa, perigo, gratidão — a impressão de que Deus se nos apresenta efetivamente, na acepção de Alston, parece mais rara. Assim, segundo o modelo, a operação do sensus divinitatis não envolve necessariamente a percepção de Deus. Ora, mesmo que esse gênero de conhecimento de Deus não seja perceptivo, podemos pelo menos dizer que ocorre por meio de uma experiência religiosa? Podemos dizer que o aval que ele obtém vem da experiência? A primeira coisa a notar é que este termo, “experiência religiosa”, é entendido de mil maneiras diferentes e abrange uma vasta e confusa diversidade de casos; no ponto em que está a questão, é muitíssimo ambíguo e, de fato, talvez fiquemos melhor se boicotarmos o termo.19 Mesmo assim, talvez possamos dizer ao menos o seguinte: a operação do sensus divinitatis sempre envolverá a experiência, seja qual for o tipo de experiência em causa, e mesmo que as imagens sensoriais não estejam sempre presentes. Por vezes há imagens sensoriais; por vezes sente-se a presença de Deus, ou algo assim, não parecendo haver quaisquer imagens sensoriais, mas talvez haja algo (necessariamente difícil de descrever) parecido com elas; muitas vezes há também o gênero de experiência que temos quando temos medo ou quando sentimos gratidão ou deleite, quando nos sentimos tolos, irados, satisfeitos etc. Um componente comum é uma espécie de admiração: sente-se o numinoso,20 sentimos que estamos na presença de um ser de arrebatadora majestade e grandiosidade. Em nenhum desses casos há uma conexão inevitável com a operação do sensus divinitatis, ainda que talvez nenhuma ocasião da operação deste deixe de patentear um desses tipos de experiência. Contudo, há outro gênero de experiência que está sempre presente na operação do sensus divinitatis. Recorde-se a distinção introduzida anteriormente entre as imagens sensoriais e aquilo a que chamei experiência doxástica, o gênero de experiência que temos quando consideramos qualquer proposição em que acreditamos. Por exemplo, quando pensamos na proposição de que

19Como Alston (PG, p. 34) sugere. 20Veja Rudolf Otto, The idea of the holy (New York: Oxford University Press, 1958) [edição cm português: 0 sagrado (Petrópolis: Vozes, 2007)].

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3 + 2 = 5 ou que o Monte Everest é mais alto do que o Monte Branco sentimos algo de diferente do que quando pensamos em uma proposição que acreditamos ser claramente falsa — 3 +2 = 6, por exemplo, ou 0 Monte Branco c mais alto do que 0 Monte Everest. Nos dois primeiros casos, sentimos que a proposição é natural, correta, aceitável; nos dois segundos, sentimos que há nela algo de objetável, errado, eminentemente rejeitável.21 Na minha opinião, essa experiência está sempre relacionada às operações do sensus divinitatis, porque está sempre ligada à formação ou sustentação de qualquer crença. Assim, na operação do sensus divinitatis encontramos todos esses tipos de experiência; a experiência doxástica acompanha quaisquer crenças formadas pela operação do sensus divinitatis, tal como acompanha a formação de qualquer outra crença. Regressemos então à nossa questão: deveremos portanto afirmar que o conhecimento obtido por meio do sensus divinitatis surge da experiência religiosa? Trata-se de um conhecimento obtido pela experiência? Deveremos dizer que (no modelo) o aval desse conhecimento é dado pela experiência? Não me proponho a responder a essa pergunta. A resposta obrigaria a um esforço longo e essencialmente descabido para responder a outra pergunta: “O que significa dizer que o aval de uma crença vem da experiência (ou é obtido por meio dela), religiosa ou não?”. Essa pergunta é interessante e difícil (a experiência doxástica acompanha sempre a formação de crenças a priori e é tipicamente acompanhada por fragmentos de imagens sensoriais; será então que o aval da crença a priori vem da experiência?). Contudo, para os nossos propósitos, não precisamos responder a essa pergunta. Podemos nos dar por satisfeitos com uma explicação de como (no modelo) o sensus divinitatis realmente funciona; dada essa explicação, responder à questão de saber se o sensus divinitatis funciona por meio da experiência não é importante e é opcional. 6 . 0 p e c a d o e o co n h ecim en to n atu ral d e D eu s

Por fim, segundo o modelo A/C, esse conhecimento natural de Deus foi comprometido, enfraquecido, reduzido, sufocado, coberto ou obstruído pelo pecado e pelas suas consequências. No próximo capítulo exploraremos em pormenor os efeitos noéticos do pecado e, no capítulo 8, veremos que (no modelo) o sensus divinitatis é restaurado, passando a funcionar apropriadamente, pela regeneração e operação do Espírito Santo. Por ora, notamos apenas que o âmbito do conhecimento de Deus fornecido pelo sensus divinitatis antes da fé e da regeneração é restrito e está parcialmente inibido. Por uma ou outra causa, a própria faculdade pode estar enferma e, por isso, parcial ou completamente desativada. A enfermidade cognitiva existe; existem a cegueira, a surdez, a incapacidade para distinguir o bem do mal, a loucura; e existem estados análogos referentes à operação do sensus divinitatis. Segundo Marx e os marxistas, é a crença em Deus que é resultado de uma enfermidade ou disfunção cognitiva. Em uma acepção etimológica, Marx pensa que o crente é insano. Uma maneira mais moderada e conciliatória de exprimir essa 21Veja Warrant andproperfunction (WPF), p. 190ss. para mais informações sobre evidências doxásticas.

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ideia é dizer que o crente, desse ponto de vista, é irracional: suas faculdades racionais não funcionam como deveríam. No entanto, o modelo A/C põe Freud e Marx de cabeça para baixo (mais precisamente, o que vemos aqui faz parte do muito que F8cM beberam das maneiras cristãs e judaicas de pensar); segundo o modelo, é na verdade o descrente que mostra uma disfunção epistêmica; não acreditar em Deus resulta de uma disfunção qualquer do sensus divinitatis. E aqui devemos destacar que a noção de aval pode ser proveitosamente generalizada. Até agora vimos o aval como uma propriedade ou característica das crenças; a ideia básica é que uma crença tem aval quando é formada por faculdades cognitivas que funcionam apropriadamente em um ambiente epistêmico adequado e segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade — o que inclui, devemos destacar, evitar o erro. Todavia, suspensões, ausências de crença, podem também ser ditadas por um plano de desígnio que vise com êxito à verdade e à limitação do erro. O leitor tem indícios conflitantes a favor da proposição de que há vida inteligente em outras partes do Universo: algumas das pessoas em que você confia afirmam que sim, outras dizem que não, e algumas afirmam que há poucos indícios tanto a favor como contra essa hipótese. Consequentemente, o leitor suspende essa crença, não acreditando que há vida inteligente em outras partes do Universo nem que não há. Seu casal de amigos que está enfrentando dificuldades no casamento conta-lhe histórias incompatíveis acerca da última briga: em virtude da experiência anterior em situações semelhantes, você aprendeu a não acreditar em nenhuma das duas histórias sem corroboração complementar. O seu filho mais novo pergunta-lhe qual é a altura da montanha mais alta da Antártica; você tem uma impressão muitíssimo vaga de haver ouvido dizer que ela tem cerca de 4500 metros, mas não sabe bem; não forma qualquer crença sobre o assunto. Em todos esses casos, o que o plano de desígnio dita é suspender a crença. Assim, a suspensão tem algo de análogo ao aval: também ela, em certas circunstâncias, pode ser ditada pelo funcionamento apropriado de faculdades cognitivas que operam em um ambiente epistêmico adequado segundo um plano de desígnio que vise com êxito à verdade e à limitação do erro. Em contraste, se o leitor me telefonar perguntando o que estou fazendo neste momento e eu não formar a crença de que estou sentado ao computador tentando trabalhar no meu livro, há algo de errado em algum ponto da minha estrutura noética. Uma pessoa me é apresentada em uma festa; apesar de não haver qualquer motivo para o fazer, suspendo a crença de que vejo perante mim uma pessoa, motivado apenas pela possibilidade lógica ampla de que, na realidade, eu esteja vendo um holograma extraordinariamente engenhoso com efeitos sonoros. Leio Bertrand Russell e vejo que é possível (no sentido amplamente lógico), e compatível com as aparências, que o mundo tenha começado a existir há cinco minutos, junto com todas as memórias aparentes que dele tenho, suas montanhas em desintegração e seus livros poeirentos; em consequência disso, suspendo a crença de que existo há mais de cinco minutos. Nesses casos, a suspensão da crença não é um sinal de cautela epistêmica exemplar, mas antes de disfunção cognitiva; essas suspensões carecem do análogo do aval. Claro

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que, em um frenesi decorrente de um erro filosófico, eu podería concluir que não devo acreditar na existência de outras pessoas; poderia concluir que uma crença assim é, de algum modo, injustificada; e poderia a partir daí me esforçar para não acreditar que as outras pessoas existem realmente. Poderia até consegui-lo por breves momentos, no meu escritório. No entanto, é muitíssimo difícil manter essa atitude, como se vê no caso daquela senhora famosa que mandou um postal a Bertrand Russell, no qual escreveu algo como “Concordo inteiramente com você em que o solipsismo é a posição correta e a mais razoável: assim, por que não há mais solipsistas como nós?”. Ficou famosa a observação de Hum e de que é muito difícil manter essa atitude durante muito tempo ou fora do nosso escritório. O fato é que quem passa muito tempo acreditando ser a única pessoa no Universo tem um distúrbio mental sério, e o mesmo acontece com quem é meramente agnóstico quanto à existência de outras pessoas. Poderiamos exprimir a mesma ideia dizendo que algumas suspensões são racionais e outras, irracionais. Um sentido importante do termo “racional”22 é aquele em que uma crença é racional se for produzida por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente. Ora, é possível dizer o mesmo das suspensões: elas podem ser produzidas por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente, como nos primeiros três exemplos anteriores, mas também por faculdades cognitivas funcionando inapropriadamente, como nos três exemplos seguintes. Segundo o modelo, o mesmo pode acontecer com respeito à crença em Deus. O ato de não acreditar pode se dever a uma espécie de cegueira ou surdez, pode se dever a um funcionamento impróprio do sensus divinitatis. No modelo em mãos, essa descrença é irracional e essa suspensão da crença carece do análogo do aval. Não se segue que não acreditar seja injustificado — caso se deva apenas a disfunção cognitiva, não haverá qualquer descumprimento do dever epistêmico — , mas apesar disso é irracional. Ao contrário do que diz uma espécie de ethos encorajado pelo fundacionalismo clássico, não é verdade que a melhor demonstração de racionalidade seja acreditar o mínimo possível; suspender a crença, não acreditar, ficar agnóstico nem sempre é, do ponto de vista da racionalidade, o caminho mais seguro e melhor. Em alguns contextos é, ao contrário, um sinal de grave irracionalidade. Segundo o modelo presente, pois, o sensus divinitatis foi danificado ou corrompido pelo pecado. Além disso, segundo o modelo estendido que pretendo propor no capítulo 8, o sensus divinitatis é parcialmente curado e restaurado pela f é e pela obra concomitante do Espírito Santo no nosso coração, passando a funcionar apropriadamente. Assim, o modelo tal como até agora o esboçamos está incompleto; o restante virá nos capítulos 8 e 9. Apesar de incompleto, contudo, o modelo até agora esboçado é suficiente para os propósitos que temos por ora, pois esse modelo mostra-nos de maneira suficientemente pormenorizada como um sensus divinitatis funcionando apropriadamente pode produzir uma crença cristã que seja (1) tomada da maneira básica e que (2), tomada desse modo, possa realmente ter aval, um aval suficiente para o conhecimento. 22Como vimos, p. 126.

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II. A

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CRENÇA EM D E U S É BÁSICA E AVALIZADA?

A. Se for falsa, provavelmente não Como vimos, Freud não argumenta realmente que a crença teísta não tem aval se for tomada da maneira básica: ele parece pressupor que essa crença é falsa depois infere de modo bastante rápido e casual que ela é produzida pela realização de desejos e, por isso, não tem aval. Nesse aspecto (apesar da aparente falta de cuidado), talvez os instintos de Freud estejam certos: argumentarei que se a crença cristã for falsa, mas for tomada do modo básico,23 provavelmente não tem aval. Primeiro, como vimos, nenhuma crença falsa tem aval suficiente para o conhecimento; logo, se uma crença teísta for falsa, ela não terá esse grau de aval. Apesar disso, não podería ela ter ainda algum aval? H á pelo menos duas razões para pensar que não. Primeiro, quando uma crença falsa tem aval? Tipicamente, em um caso em que a faculdade que produz a crença está funcionando no limite da sua capacidade. O leitor vê uma cabra montanhesa em um penhasco distante e pensa erroneamente que ela tem chifres; de fato, está demasiado longe para que possa ver claramente que não tem chifres. Você faz física das partículas e acredita erroneamente que certo modelo subatômico está próximo da verdade: uma vez que está funcionando para lá dos limites do domínio cognitivo para o qual as nossas faculdades foram consti* tuídas, a sua crença é falsa, mas não é completamente destituída de aval. Se a pessoa de Deus não existe, é claro que o sensus divinitatis tampouco existe; e que faculdade visando à verdade seria esta que estaria funcionando nos limites da sua capacidade ao produzir a crença de que Deus efetivamente existe, se esta última crença for falsa? E dificílimo pensar em candidatas decentes. Além disso, se as suas faculdades estiverem funcionando apropriadamente e não estiverem obstruídas pelos desejos de fama, ambição, luxúria etc., mas mesmo assim estiverem funcionando nos limites da sua capacidade, o leitor não acreditará normalmente com grande firmeza na proposição por elas indicada — não acreditará nela com um grau de firmeza próximo do que está frequentemente presente na crença teísta. Assim, o leitor não terá certeza de haver visto chifres naquela cabra; em vez disso, pensará com os seus botões: “Bem,parece que ela tem chifres, mas está demasiado longe para ter certeza”. Você não insistirá que o seu modelo físico é correto; só sustentará essa crença a título de hipótese. Essas considerações dão a entender que, se a crença teísta for falsa, ela não é produzida por processos cognitivos que visam com êxito à verdade e, consequentemente, não tem aval. Há outra consideração, mais importante, que podemos abordar indiretamente da maneira a seguir. Uma crença só tem aval se o processo cognitivo que a produz visa com êxito à verdade — isto é, se há uma probabilidade objetiva elevada de que uma crença produzida

23E, acrescente-se, se não for formada a partir do testemunho de outrem. Isso porque o testemunho, como a inferência, não é uma fonte última de aval; uma crença tomada por testemunho só tem aval se também tiver aval para quem testemunha. Veja WPF, p. 83.

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por esse processo seja verdadeira (se o processo estiver funcionando apropriadamente no gênero de ambiente epistêmico para o qual foi constituído). Ora, do fato de uma crença ser falsa, não se segue que ela não seja produzida por um processo ou faculdade que vise com êxito à verdade. Podería acontecer que, em determinada ocasião, um processo produzisse uma crença falsa apesar de haver uma probabilidade objetiva substancial de que qualquer crença por ele produzida seja verdadeira (desde que, é claro, as outras condições do aval forem satisfeitas). Por exemplo, um barômetro confiável pode apresentar uma leitura falsa em razão de uma confluência rara e improvável de circunstâncias. Os físicos nos dizem que é possível (ainda que extremamente improvável) que, por momentos, todas as moléculas de ar da sala se congreguem no canto superior norte. Suponha-se que isso aconteça; nesse momento, a pressão do ar nas imediações do barômetro, que está no canto inferior sul da sala, será zero; o barômetro, contudo, registra ainda 29,72 porque não houve tempo suficiente para reagir à mudança. O fato de nos dar uma leitura falsa nessas circunstâncias não significa que o barômetro não seja confiável. O mesmo acontece no caso de um processo cognitivo: pode haver de fato uma probabilidade elevada de uma crença por ele produzida ser verdadeira, apesar de em determinada ocasião (e ainda que as outras condições do aval sejam satisfeitas) produzir uma crença falsa. Não poderia acontecer algo semelhante no que respeita aos processos que produzem a crença em Deus? Não poderia acontecer de que uma crença em Deus, embora produzida por processos cognitivos que visam com êxito à verdade, fosse, de fato, falsa? Penso que não. Uma proposição só é objetivamente provável, com respeito a uma condição C, se for verdadeira na maior parte dos mundos possíveis próximos que satisfazem C.24 Mas agora considere-se o processo que produz a crença teísta: se ele visar com êxito à verdade, na maior parte dos mundos possíveis ele produzirá uma crença verdadeira. Pressupondo que nesses mundos possíveis próximos ele produz a mesma crença que produz de fato (ou seja, a crença em Deus), segue-se que, na maior parte dos mundos possíveis próximos, essa crença é de fato verdadeira: na maior parte dos mundos possíveis próximos existe a pessoa de Deus. Contudo, isso não é possível caso a pessoa de Deus não exista. Pois se de fato (no mundo efetivo) a pessoa de Deus não existe, um mundo no qual há tal pessoa ■ — uma pessoa onisciente, onipotente e totalmente boa que criou o mundo — seria imensa e inimaginavelmente diferente do mundo efetivo, e imensamente dessemelhante deste. Assim, se não há a pessoa divina, é provável que o processo que produz a crença teísta não produza uma crença verdadeira na maior parte dos mundos possíveis próximos. Logo, é improvável que a crença em Deus seja produzida por um processo que esteja funcionando apropriadamente em um ambiente epistêmico adequado segundo um plano de desígnio que vise com êxito à produção de crenças verdadeiras. Resumindo, se a crença teísta for falsa, é provável que não tenha aval. No fim das contas, Freud tinha razão: se a crença teísta for falsa, é no mínimo muito provável que ela tenha pouco aval, ou mesmo nenhum.· ·24Para um tratamento da relação entre mundos possíveis e probabilidade objetiva, veja WPF, p. 162.

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B. Se for verdadeira, provavelmente sim No entanto, se a crença teísta for verdadeira, é provável que tenha aval. Se for verdadeira, é porque existe realmente uma pessoa divina, uma pessoa que nos criou à sua imagem (de modo que nos assemelhamos a ele, entre outros aspectos, porque somos capazes de o conhecer), que nos ama, deseja que o conheçamos e amemos, e sendo tal que conhecê-lo e amá-lo é a nossa finalidade e o nosso bem. Mas se estas coisas forem verdadeiras, então ele visaria, claro, a que fôssemos capazes de ter consciência da sua presença e de saber algo acerca dele. E se isso for assim, a coisa natural a pensar é que ele nos criou de tal modo que nós acabaríamos por sustentar crenças verdadeiras, como a de que a pessoa de Deus existe, que ele é o nosso criador, que lhe devemos obediência e adoração, que ele é digno de adoração, que ele nos ama e assim por diante. E se isso for assim, então é natural pensar que aquele que concebeu os processos cognitivos que realmente produzem a crença em Deus concebeu-os em vista da produção dessa crença. Nesse caso, então, a crença em questão será produzida por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade: terá, portanto, aval. Uma vez mais, isso não é certo; o argumento não é dedutivamente válido. E abstratamente possível, suponho, que Deus nos tenha criado com uma certa faculdade/ ‫י‬para o conhecer; por uma razão qualquer,/'funciona sempre mal, e outra faculdade/'’, criada para produzir outras crenças, funciona frequentemente mal, mas de tal modo que produza a crença em Deus. Nesse caso, a nossa crença em Deus não teria aval, apesar do fato de ser verdadeira. (Isso seria algo como um problema teológico de Gettier, complexo e peculiar.) E o caráter abstrato desta possibilidade é talvez reforçado quando pensamos no fato de os seres humanos, segundo a crença cristã, haverem caído em pecado, o que tem efeitos noéticos, além de outros efeitos. Contudo, o mais provável, pelo menos tanto quanto consigo ver, é que, se de fato o teísmo for verdadeiro, então a crença teísta tem aval. Tentemos examinar o assunto mais de perto. Como poderiamos dar sentido à ideia de que o teísmo é verdadeiro, mas a crença em Deus não tem aval? Deveriamos supor: (1) que há uma pessoa como a pessoa de Deus, que nos criou à sua imagem e nos criou de tal modo que a nossa principal finalidade e o nosso bem seja conhecê40; (2) que a crença em Deus (ou seja, a nossa crença em Deus, a crença humana em Deus) não tem aval — não foi produzida por processos cognitivos que, funcionando apropriadamente em um ambiente epistêmico adequado, visam com êxito dar-nos crenças verdadeiras sobre Deus. Isto é, teríamos de pensar que a crença em Deus foi produzida por processos cognitivos que: (1) não estão funcionando apropriadamente (por doença ou obstrução); (2) não visam produzir crenças verdadeiras sobre Deus; (3) visam produzi-las, mas não com êxito, (4) ou o ambiente cognitivo não é adequado, não é o ambiente para o qual nossas faculdades foram constituídas. Com respeito a (4), contudo, estamos supondo que Deus nos criou; parece não haver razão alguma para pensar que o nosso ambiente epistêmico não seja aquele para o qual ele nos criou (não temos razão nenhuma, por exempio, para pensar que os nossos antepassados surgiram em outro planeta qualquer e depois

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empreenderam uma viagem longa e perigosa para a Terra). Com respeito a (3): uma vez que, por hipótese, a crença teísta é verdadeira, parece que se o processo cognitivo que a produz realmente visa à verdade, ele necessariamente a visa com êxito. Isso deixa-nos com (1) e (2). Dado que Deus desejaria certamente que fôssemos capazes de o conhecer, é muitíssimo provável que nos criaria com faculdades que nos permitam fazer precisamente isso. Assim, a coisa natural a pensar é que essas faculdades que produzem a crença teísta foram realmente concebidas para produzir esse gênero de crença e estão funcionando apropriadamente ao fazê-lo. Claro que é possível, no sentido amplamente lógico, que as faculdades concebidas para produzir a crença teísta não funcionem por alguma razão, e que outras faculdades que não visam a produzir a crença teísta funcionem mal, acabando por produzi-la. O mesmo é abstratamente possível, suponho, com respeito à percepção: as faculdades originais por meio das quais conhecíamos o nosso ambiente começam a funcionar mal, e por um acaso feliz outras faculdades começam a funcionar mal precisamente de um modo que passam a produzir as nossas crenças perceptivas. E possível, mas não é provável. Essa é uma possibilidade abstrata, mas não muito mais do que isso. E suponhamos que, apesar de toda a improbabilidade, algo assim aconteceu realmente com o sensus divinitatis original: ele deixou de funcionar (talvez em resultado do pecado) e, enquanto isso, outra faculdade começou a funcionar mal e saltou para esse espaço vazio, produzindo por um acaso feliz precisamente os gêneros de crenças que o sensus divinitatis original produzia: se assim fosse, o mais provável seria que o próprio Deus tivesse adotado essa outra maneira de funcionar como plano de desígnio para nós, de modo que a crença teísta, por uma rota tortuosa, teria realmente aval. A conclusão a se tirar, penso, é que a probabilidade epistêmica de a crença teísta ter aval, dada a verdade do teísmo, é muito elevada.25 III. A

QUESTÃO D E JU RE N Ã O É INDEPENDENTE D A QUESTÃO DE FACTO

E aqui vemos as raízes ontológicas ou metafísicas ou, em última análise, religiosas da questão da racionalidade ou aval, ou ausência deles, da crença em Deus. Aquilo que entendemos por racional, pelo menos no sentido do aval, depende da postura metafísica ou religiosa que adotamos. Depende de que tipo de seres consideramos que são os seres humanos, que gêneros de crenças pensamos que as faculdades noéticas dos seres humanos produzem quando estão funcionando apropriadamente e quais das suas faculdades ou mecanismos cognitivos visam à verdade. A nossa perspectiva quanto a que gênero de criatura é um ser humano determinará, ou pelo menos influenciará fortemente, as nossas perspectivas quanto à questão de a crença teísta ter aval ou não, ser racional ou irracional, para os seres humanos. E assim a disputa quanto à questão de a crença teísta ser racional (ter aval) não pode ser decidida tendo em conta apenas considerações epistemológicas; no fiindo, ela não é somente uma disputa epistemológica: é ontológica ou teológica. 25Precisamos supor aqui também, segundo a conclusão da quarta parte deste livro, que não c verdadeiro que a maior parte das pessoas que acreditam em Deus tem emuladores dessa crença.

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Podemos pensar que a humanidade foi criada por Deus à sua imagem — e criada tanto com uma tendência natural para ver a mão de Deus no mundo que nos rodeia como com uma tendência natural para reconhecer que fomos realmente criados e estamos em dívida para com o nosso criador, devendo-lhe devoção e fidelidade. Então, é claro, não consideraremos que a crença em Deus seja tipicamente a manifestação de uma modalidade qualquer de defeito intelectual. Nem iremos pensar que é a manifestação de um poder ou mecanismo de produção de crenças que não vise à verdade. Trata-se antes de um mecanismo cognitivo por meio do qual somos postos em contato com parte da realidade — na verdade, de longe a parte mais importante da realidade. Nesse aspecto, é como um produto da percepção sensorial, da memória ou da razão, a faculdade responsável pelo conhecimento a priori. Por outro lado, podemos pensar que os seres humanos são o produto de forças evolutivas cegas; podemos pensar que não há Deus e que fazemos parte de um universo sem Deus. Nesse caso, teremos inclinação para aceitar a perspectiva segundo a qual a crença em Deus é uma ilusão de um tipo qualquer, que fazemos adequadamente remontar à realização de desejos ou a outro mecanismo cognitivo que não vise à verdade (Freud); ou, alternativamente, a uma espécie de doença ou disfiinção do indivíduo ou da sociedade (Marx). E o fato de a questão do aval ou racionalidade depender da verdade ou falsidade do teísmo conduz a uma conclusão muito interessante. Se o aval que tem a crença em Deus está relacionado desse modo com a veracidade dessa crença, isso significa que a questão de a crença teísta ter aval não é, afinal, independente da questão de a crença teísta ser verdadeira. Assim, a questão de jure que finalmente encontramos não é, no fim das contas, realmente independente da questão defacto; para responder à primeira, devemos responder à segunda. Isso é importante: o que assim se demonstra é que uma objeção ateológica bem-sucedida precisará se dirigir à verdade do teísmo, e não à sua racionalidade, justificação, respeitabilidade intelectual, justificação racional ou seja o que for. Os ateólogos que desejarem atacar a crença teísta deverão se restringir a objeções como o argumento do mal, a tese de que o teísmo é incoerente ou a ideia de que há outros indícios fortes contra a crença teísta. Não podem continuar a adotar a seguinte postura: “Não sei se a crença teísta é verdadeira — quem poderia saber tal coisa? ‫ —־‬mas sei do seguinte: ela é irracional, ou não tem justificação, ou não tem justificação racional, ou é contrária à razão, ou é intelectualmente irresponsável, ou...”. Não há uma questão ou crítica de jure sensata que seja independente da questão defacto. Não há críticas de jure que sejam sensatas quando combinadas com a veracidade da crença teísta; todas são malsucedidas logo no início (como acontece com a tese de que não há justificação para aceitar a crença teísta) ou então, como ponto de partida, já pressupõem que o teísmo seja falso. Esse fato, por si, invalida uma quantidade enorme de discursos ateológicos recentes e contemporâneos, pois boa parte dessa ateologia é dedicada a queixas de jure supostamente independentes da questão defacto. Se a minha argumentação até aqui estiver correta, contudo, não há queixas sensatas desse gênero (mais modestamente, nenhuma foi até agora proposta; suponho que é sempre possível que alguém apareça com uma).

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IV. A QUEIXA F&M REVISITADA Agora que temos o modelo A/C perante nós, podemos lidar sumariamente com a queixa F&M. Como vimos no capítulo anterior, a queixa de Marx acerca da religião é que ela é produzida por faculdades cognitivas que estão funcionando mal; essa disfunção cognitiva deve-se a uma disfunção e a um desvio sociais. Além da famosa frase “A religião é o ópio do povo”, contudo, Marx não tem muito que dizer acerca da crença religiosa — exceto, claro, vários insultos e zombarias mais ou menos jornalísticos e outras expressões de hostilidade.26*Irei por isso concentrar-me em Freud, que sustenta (como vimos no capítulo anterior) não que a origem da crença teísta seja uma disfunção cognitiva, mas que é uma ilusão no sentido técnico. A sua origem radica na realização de desejos, que apesar de ser um processo cognitivo com um importante papel a desempenhar na economia total da nossa vida intelectual, não visa, contudo, à produção de crenças verdadeiras. Do ponto de vista de Freud, portanto, a crença teísta, dado ser produzida por um pensamento fantasioso motivado pelo desejo, não tem aval; não satisfaz a condição de ser produzida por faculdades cognitivas cujo propósito seja produzir crenças verdadeiras. Freud caracteriza então a crença religiosa como “neurose”, “ilusão”, “veneno”, “substância tóxica” e “infantilismo a superar”, tudo em uma única página de Ofuturo de uma ilusão?1 Para não ficar para trás, um número substancial de psicólogos, sociólogos e antropólogos posteriores seguiu o seu exemplo. Assim, escreve Albert Ellis: A religiosidade é em muitos aspectos equivalente ao pensamento irracional e ao distúrbio emocional [.‫] ״‬. A solução terapêutica elegante para problemas emocionais é ser totalmente irreligioso [...]; quanto menos religiosas forem as pessoas, mais emocionalmente saudáveis serão.28 Por vezes, essas idéias assumem formas bastante bizarras, quase digas de serem comparadas com as histórias fantásticas do próprio Freud acerca da origem da religião e da domesticação do fogo.29 Segundo Michael P. Carroll, por exemplo, rezar o rosário é uma “gratificação disfarçada de desejos eróticos anais reprimidos”— substituindo o ato de “brincar com as próprias fezes”.30Talvez isso não esteja no nível de Freud no que se refere à invocação desse mundo envolto em brumas dos nossos antepassados distantes, mas sofre da mesma implausibilidade. Uma perspectiva bastante comum tem sido que a crença religiosa não é tanto uma questão de ilusão ou disfunção cognitiva, mas sim de 26Veja Karl Marx; Friedrich Engels, On religion, edição de Reinhold Niebuhr (Chico: Scholars Press, 1964). Trata-se de uma antologia de fragmentos de vários escritos sobre a religião, da autoria de Marx e Engels. 21Thefuture of an illusion (New York: W. W. Norton, 1961) (publicado originalmente cm 1927), p. 49 [edição em português: Ofuturo de uma ilusão (Porto Alegre: L&PM Editores, 2010)]. 28“Psychotherapy and Atheistic Values”,Journal of Consulting and Clinical Psychology 48, n. 5 (Outubro de 1980), p. 635-9. 29Veja p. 152-153. 20 “Praying the rosary: the anal-erotic origins of a popular Catholic devotion”,Journalfor the Scientific Study of Religion 26, n. 4 (Dezembro de 1987), p. 491.

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simples estupidez. Essa perspectiva é, às vezes, expressa de maneira bastante pitoresca; assim, Warren Wilson atribuía o crescimento dos grupos evangélicos protestantes da América rural ao fato de que “entre a gente do campo há muitos espíritos inferiores”. E passou a explicar que o revivalismo estava condenado a persistir nessas regiões “até podermos tirar a administração de instituições populares que são governadas pela opinião pública das mãos do irmão débil e da irmã tola”.31 Esse tipo de opinião é ainda muito popular entre pessoas que se propõem a estudar a religião científicamente,32 ainda que (dadas as sensibilidades atuais) não sejam comumente expressas com o mesmo entusiasmo irresponsável. Além disso, seguindo os passos de Voltaire e Rousseau, entre outros, as pessoas que se dedicam a essas áreas de estudo declaram reiteradamente que (nesta era moderna, científica) a morte da religião é iminente33 — fazendo-o aproximadamente com a mesma frequência, talvez, com que outros preveem que o regresso de Jesus Cristo é iminente. Claro que as previsões anteriores do primeiro tipo (como as do segundo) não foram bem-sucedidas; em resultado disso, essas previsões do desaparecimento da religião (se não do mundo) tendem agora a ser mais circunspectas. Por exemplo: ... o futuro evolutivo da religião é a extinção. A crença em seres e forças sobrenaturais que afetam a natureza sem obedecer às leis da natureza desgastar-se-á, tornando-se uma me* mória histórica interessante. Não é provável que esse acontecimento ocorra na próxima geração; o processo levará muito provavelmente vários séculos, e provavelmente sempre haverá indivíduos, ou até pequenas e ocasionais seitas, que reajam às alucinações, transes e obsessões com uma interpretação sobrenaturalista. No entanto, como corrente cultural, a crença em poderes sobrenaturais está condenada a desaparecer, em todo o mundo, em decorrência da adequação e difusão cada vez maiores do conhecimento científico [...]; o processo é inevitável.34 H á alguma razão para acreditar nessas coisas? Há algum indício a favor da queixa F&M? Por que havería alguém de acreditar nessa queixa? Em primeiro lugar, contudo, é justo defender essa queixa de uma objeção comum. O estilo F&M de crítica à crença religiosa (ou outra) costuma ser inadequadamente rechaçado por ser um exemplo da “falácia genética”. A questão, segundo essa reação, é saber se as crenças teístas em causa

31Thefarmer's church (New York: Century, 1925), p. 58. 32Veja, por exemplo, o artigo recente de Herbert Simon, “A mechanism for social selection and successful altruism”, Science 250 (Dezembro de 1990), p. 1665ss, no qual argumenta que o comportamento de pessoas como Madre Teresa, dispostas a sacrificar os próprios interesses pelos interesses dos outros, cxplica-se pela “docilidade” e pela “racionalidade limitada”. 3Ό próprio Freud era frequentemente mais cuidadoso nesse ponto; veja a nota 12 na p. 161. 34Anthony F. C. Wallace, Religion: an anthropological view (New York: Random House, 1966), p. 264-5. Como as três últimas passagens citadas, também esta surge em Rodney Stark; Laurence Iannaccone; Roger Finke, “Rationality and the ‘religious’ mind”, Economic Inquiry 36, n. 3 (Julho de 1998). Esse artigo interessantíssimo faz uma abordagem inovadora da crença religiosa seria, indo contra a corrente de análises sociológicas que a consideram manifestação de um tipo qualquer de irracionalidade.

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são verdadeiras', a questão não é saber como alguém começou a tê-las nem qual poderá ser a origem delas. Além disso (continua essa reação), a questão da origem em geral em nada se relaciona com a questão da veracidade. (“Em geral”— é claro que conseguimos pensar em exceções tolas. Por exemplo, podemos saber que Samuel começou a acreditar em uma proposição aceitando o testemunho de alguém que, quanto ao tema da crença em questão, só diz falsidades; nesse caso, a origem da crença tem uma relação óbvia com a sua veracidade ou falsidade.) Essa crítica da queixa F&M está equivocada. E verdade que a questão da origem, em geral, em nada se relaciona com a questão da veracidade de uma crença; mas ela pode estar totalmente relacionada com a questão do aval que essa crença tem. O objetor não se dá conta de que não existem somente questões e críticas defacto, mas também dejure', a sua objeção só é cabível se o que estiver em causa for as questões e críticas defacto e nada mais. Todavia, a queixa F&M diz que a crença teísta não é racional, que carece de aval. Ao contrário das crenças de memória, crenças a priori ou crenças perceptivas, a crença teísta não teria origem no funcionamento apropriado de processos cognitivos que visam com êxito à produção de crenças verdadeiras. E se o problema, segundo F&M, é essas crenças não terem aval, as questões da origem podem estar totalmente relacionadas com o assunto; em muitas concepções do aval, incluindo aquela que defendí em WPF, a gênese de uma crença está intimamente ligada a seu grau de aval, se tiver algum. Além disso, há uma relação indireta da origem com a veracidade. Regressemos ao gerador aleatório da p. 181: uso a máquina e proponho ao leitor que acredite na proposição selecionada. Você resiste, citando a origem da crença proposta; e eu imediatamente o acuso de cometer a falácia genética. Claro que estou errado; o fato é que você não cometeu falácia alguma, e a sua queixa real é que você não tem a mais leve razão para pensar que a proposição em questão seja verdadeira. O mesmo acontece com as crenças que não têm aval seja para quem for. Comumente pressupomos que as proposições com aval têm algo a seu favor: é provável, ou pelo menos mais provável do que improvável, que sejam verdadeiras. Se tenho razão para pensar que a sua crença de que o seu nome é “Samuel” tem aval (é muito provável que você saiba qual é o seu nome), tenho razão de sobra para aceitar essa crença. Se sei que uma crença não tem aval seja para quem for, contudo, não tenho qualquer razão para pensar que ela seja verdadeira, não tenho qualquer razão para me apoiar nessa proposição. Quando vejo isso, vejo que a proposição em questão não tem qualquer direito à minha crença. Contudo, será que Freud estava certo? Será que a crença teísta realmente nasce da realização de desejos, não tendo, por isso, aval? Há alguma razão para acreditar nisto? Oferece ele argumentos ou indícios a favor dessa tese ou, no mínimo (para usar a expressão de Mill), outras considerações para determinar o intelecto? Ou trata-se de mera asserção? Note-se que, para que a queixa F&M constitua uma crítica bem-sucedida, para que efetivamente demonstre que a crença teísta não tem aval, ela deve satisfazer duas condições. Primeiro, precisa demonstrar que a crença teísta nasce realmente do mecanismo da satisfação de desejos; segundo (como irei explicar), precisa demonstrar que a operação

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particular desse mecanismo não visa à produção de crenças verdadeiras. Considere-se a primeira condição. Freud não oferece aqui senão o argumento mais superficial, e vê-se bem por que: não é fácil argumentar a favor dessa ideia. Como se argumentaria que é esse mecanismo — a realização de desejos — , e não qualquer outro, que produz a crença religiosa? Grande parte da crença religiosa não é, afinal, algo que, à primeira vista, satisfaça os nossos sonhos mais extravagantes. Por exemplo, o cristianismo (assim como outras religiões teístas) inclui a crença de que os seres humanos pecaram, que merecem a furia divina e até a danação, e que estão alquebrados, desgraçados, necessitados de salvação; segundo o catecismo de Heidelberg, a primeira coisa que devo conhecer são os meus pecados e misérias. Isso não é exatamente a realização dos nossos sonhos mais extravagantes. Um seguidor de Freud poderia dizer: “Bem, pelo menos a crença teísta, a crença de que existe uma pessoa como Deus, nasce de um pensamento fantasioso motivado pelo desejo”. No entanto, também isso está longe de ser evidente: muitas pessoas não gostam de modo algum da ideia de um ser onipotente e onisciente que vigia todas as suas atividades, conhece todos os seus pensamentos e que ajuiza tudo o que elas fazem ou pensam. Outras pessoas não gostam da falta de autonomia humana que resulta de haver Alguém em comparação com o qual somos como pó e cinzas, e a quem devemos veneração e obediência. E, de qualquer modo, onde estão os indícios (empíricos ou não) a favor da tese de Freud? Uma pesquisa de opinião em nada nos ajudaria. Dificilmente alguém declara acreditar em Deus por causa do processo de realização de desejos; o que as pessoas dizem habitualmente, em vez disso, é que elas foram arrebatadas por essa crença, como que compelidas a adotá-la, ou que a crença apenas lhes pareceu correta depois de muito pensar e de muita agonia, ou que sempre lhes pareceu claramente verdadeira, ou que suhitamente se tornou óbvio que as coisas são realmente desse modo. Certamente não nos parece, àqueles de nós que acreditam em Deus, que o fazemos em razão da realização de desejos. Claro que nada disso será considerado cabível; a beleza das explicações freudianas é que os mecanismos postulados operam sempre inconscientemente, não podendo ser inspecionados. A tese é que 0 leitor subconscientemente reconhece a condição miserável e assustadora dos seres humanos, vê subconscientemente que as alternativas são o desespero paralisante ou a crença em Deus, e opta subconscientemente pela última. Mesmo depois de uma introspecção e reflexão cuidadosa, o leitor não consegue constatar que a explicação proposta seja verdadeira: mas esse fato não será tomado como uma razão, por fraca que seja, para duvidar da explicação. (Tal como a sua negação indignada de que odeie o seu pai porque o vê como rival no que respeita aos favores sexuais da sua mãe. De fato, a sua indignação pode ser encarada como confirmação; você está resistindo ao que, em certo nível, sabe ou suspeita que é o diagnóstico apropriado.) Assim, suponhamos que o leitor se submeta a uma década, mais ou menos, de psicanálise, mas mesmo assim não consiga ver que essa é a origem da sua crença; dir-lhe-ão nesse caso que a psicanálise nem sempre é bem-sucedida. (Na verdade, a sua taxa de cura, tanto quanto se consegue demonstrar em um estudo científico, é aproximadamente a mesma da completa ausência de tratamento.) Ora, as coisas poderíam ser desse modo; e, dada

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a natureza do caso, talvez esse gênero de coisa não possa ser demonstrado. Mas, então, por que acreditar nisso? Tanto quanto consigo ver, o único indício que Freud efetivamente oferece é a alegação de que vemos muitos jovens, hoje em dia, abandonando a religião quando a autoridade paterna esmorece: A psicanálise deu-nos a conhecer a conexão íntima entre o complexo paterno e a crença em Deus: mostrou-nos que um Deus pessoal é, psicologicamente, nada mais do que um pai enaltecido, e todos os dias nos dá indícios de como os jovens perdem as suas crenças religiosas assim que a autoridade paterna esmorece. Dessa forma, reconhecemos que as raízes da necessidade da religião se encontram no complexo paterno: o Deus todo-poderoso e justo e a Natureza gentil parecem-nos sublimações grandiosas do pai e da mãe...35 Sem dúvida que Freud viu esse fenômeno acontecer muitas vezes em sua época (e talvez até em seu próprio caso: a relação com o seu pai, segundo E. M. Jones,36 parece ter deixado muito a desejar). Contudo, como poderia esse suposto indício confirmar a tese de que a crença teísta resulta da realização de desejos? A tese é que, quando a autoridade do pai (Freud não esclarece se tem em mente específicamente a autoridade quanto à crença religiosa ou a autoridade em geral) esmorece, os jovens perdem muitas vezes as suas crenças religiosas. Como poderia esse fato, supondo que efetivamente ocorra, ser um indício a favor da tese de que a crença teísta resulta da realização de desejos? A relação não é óbvia de modo algum. Suponhamos que a crença teísta resulte realmente da realização de desejos: não seria de esperar, então, algum tipo de correlação entre a crença séria e um reconhecimento do caráter cruel e indiferente da natureza? Segundo a tese de Freud, seria de esperar que os jovens começassem a manifestar a crença em Deus talvez pouco tempo depois de verem que o mundo é de fato assim. Entretanto (dada a tese), por que seria de esperar que alguém abandonasse a crença em Deus por causa da perda de autoridade do seu pai? O fato é que alguém cuja relação fosse calorosa, afetuosa e respeitadora com o pai teria menos probabilidade de ver a face fria e indiferente da natureza do que alguém cujo pai tivesse perdido autoridade. Tanto quanto consigo ver, portanto, esse suposto indício não se harmoniza bem com a tese freudiana principal acerca da origem da crença teísta e não a sustenta de modo algum. Talvez exponha, em vez disso, que alguns jovens gostam de mostrar a sua maturidade e independência rejeitando a postura religiosa dos pais, seja qual for a postura deles (daí que hoje encontremos muitas crianças que rejeitam a descrença dos pais). Porém, certamente isso não tende a demonstrar que a crença religiosa ou teísta resulta da realização de desejos. ís“Memoir o f Leonardo da Vinci” in: J. Strachey, org., The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (London: Hogarth Press, 1957), vol. 11, p. 123. 31,Degenerate modems (São Francisco: Ignatius Press, 1993), p. 191. Segundo Jones, Freud considerava seu pai fraco e “depravado”. Jeffrey Masson, The complete letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess, 18871904‫( ־‬Cambridge: Harvard University Press, 1985), p. 222. Veja também Paul Vitz, Sigmund Freud's Christian unconscious (New York: Guilford, 1988).

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Claro que a tese não foi formulada com exatidão ou com suficientes detalhes para nos permitir ver o que seria um indício a seu favor. E natural pensar que deve haver, em algum lugar, uma formulação mais profunda e precisa da teoria; infelizmente, isso não existe. O indício a favor da teoria deveria talvez ser algo como o fato de esta integrar e explicar todos os dados, todos os fenômenos da crença religiosa ou teísta. Todavia, antes de podermos avaliar seriamente se ela integra tais dados, a teoria teria de ser formulada com muito mais precisão; deveríamos ser capazes de ver com muito mais clareza o que ela prevê e o que não prevê. As explicações freudianas nunca foram fortes nesses aspectos.37 Mesmo que se provasse que a realização de desejos é a fonte da crença teísta, isso não seria suficiente para provar que ela carece de aval. E preciso também provar que a realização de desejos nessa manifestação particular não visa à formação de crenças verdadeiras. O plano de desígnio cognitivo dos seres humanos é sutil e complicado; uma fonte de crença podería ser tal que em geral não visasse à formação de crenças verdadeiras, apesar de o fazer em alguns casos especiais. Por isso, talvez isso seja verdadeiro no que concerne à realização de desejos; em geral, o seu propósito não é produzir crenças verdadeiras, mas nesse caso especial é esse precisamente o seu propósito. Talvez os seres humanos tenham sido criados por Deus com uma necessidade profunda de acreditar na sua presença, bondade e amor. Talvez ele nos tenha concebido desse modo para que acabássemos por acreditar nele e ter consciência da sua presença. Talvez Deus tenha organizado as coisas dessa maneira para que nós o venhamos a conhecer. Nesse caso, o fragmento particular do plano de desígnio cognitivo que rege a formação da crença teísta visa realmente à formação de uma crença verdadeira, ainda que a crença em questão surja da realização de desejos. Talvez Deus nos tenha concebido para que saibamos que ele está presente e nos ama, criando-nos com um forte desejo por ele, um desejo que conduz à crença de que ele está de fato presente. E essa não é apenas uma mera possibilidade especulativa; algo nessa linha é abraçado tanto por Santo Agostinho (“Os nossos corações estão inquietos até repousarmos em ti, ó Deus”) quanto por Jonathan Edwards (a seguir, p. 314ss.). E como Freud ou um de seus seguidores provaria que o mecanismo pelo qual os seres humanos começam a acreditar em Deus (começam a acreditar que a pessoa de Deus existe) não visa à verdade? Este é de fato o coração da questão. Freud não oferece aqui quaisquer argumentos ou razões. Tanto quanto consigo ver, limita-se a pressupor que não há Deus e que a crença teísta é falsa; procura então algum tipo de explicação desse fenômeno comum de crença errada. Em sua busca, esbarra na realização de desejos e imediatamente pressupõe ser óbvio que esse mecanismo não se “orienta pela realidade” — isto é, não visa à produção de crenças verdadeiras — , pelo que aquela crença carece de aval. Como vimos, esse pressuposto é seguro se o teísmo de fatofor falso. Mas, nesse caso, a versão de Freud da crítica dejure depende do seu ateísmo, é uma consequência deste: 37Adolf Grünbaum, Thefoundations ofpsychoanalysis (Berkeley: University of California Press, 1984) é uma crônica meticulosa (e completamente desfavorável) dos defeitos científicos de Frcud c do freudismo. E há outros: Malcolm Macmillan, Freud evaluated: the completed arc (Amsterdam: North-Holland, 1991) e Allen Estcrson, Seductive mirage: an exploration ofthe ·work ofSigmund Freud (Chicago: Open Court, 1993).

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não é de modo algum uma crítica independente, e não tem (ou não deveria ter) qualquer força para quem não partilha esse ateísmo. Dados os resultados das partes II e III deste capítulo, isso é exatamente o que seria de esperar. Ora, é improvável que um crente em Deus, um cristão, judeu ou muçulmano, aceite a tese F&M de que a crença em Deus não tem aval. (Só um certo tipo de teólogo “liberal”, enlouquecido com a sede de novidade e com o desejo de acomodar o secularismo atual, podería concordar aqui com FôcM.) Na verdade, um crente verá as coisas exatamente ao contrário. Segundo o apóstolo Paulo, é a descrença que é um dos resultados de disfunção, da quebra, da incapacidade para funcionar apropriadamente, da obstrução das faculdades racionais. A descrença, afirma, é um resultado do pecado; origina-se de um esforço, na expressão de Romanos 1, de “impedir a verdade pela sua injustiça”.38 No próximo capítulo, começaremos a explorar o modelo A /C estendido, considerando algumas das maneiras pelas quais essa supressão e obstrução podem ocorrer.

38Claro que Paulo não pensa que os descrentes sejam, por isso, esscncialmente mais pecadores do que os crentes. Ao contrário: alguns capítulos depois ele afirma que todos estamos envolvidos no pecado, incluindo, c claro, ele mesmo (“Desgraçado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?‫)״‬. Além disso, a disfunção que está na raiz da descrença não é necessariamente a do próprio descrente. Alguns tipos de descrença (veja adiante, p. 223) são como a cegueira; ao ver um cego, os discípulos perguntam a Jesus: “Rabi, quem pecou para que ele nascesse cego: ele ou seus pais?”(J0 9.2) — e Jesus responde que aquela cegueira não era devida ao pecado do próprio homem nem ao de seus pais.

O pecado e suas consequências cognitivas O coração é enganoso e incurável, mais que todas as coisas; quem pode conhecê-lo? (Je 17.9) I.

P

r e l im in a r e s

Segundo o modelo Aquino/Calvino (modelo A/C), a crença teísta (a crença em Deus) tem aval — na verdade, aval suficiente para constituir conhecimento. A característica central desse modelo é a estipulação de que Deus criou os seres humanos com um processo de produção de crenças ou fonte de crenças, o sensus divinitatis; essa fonte funciona sob várias condições para produzir crenças acerca de Deus, incluindo, é claro, crenças que implicam imediatamente a existência dele. As crenças produzidas desse modo, segundo afirmo, podem facilmente satisfazer as condições do aval; se forem verdadeiras (e se forem sustentadas com força suficiente), constituirão conhecimento. Portanto, até agora temos pensado apenas acerca da crença de que existe uma pessoa com os atributos que normalmente são imputados a Deus. Entretanto, se não fôssemos mais longe, daríamos causa legítima à seguinte queixa: Primeiro, as crenças que realmente configuram e determinam a identidade intelectual cristã, e a sua existência, são muito mais precisas e específicas do que a crença em Deus. São constituídas por convicções profundas sobre a pessoa de Cristo, sobre a misteriosa realidade da Santíssima Trindade, sobre a presença do Espírito Santo na nossa vida [...] São essas crenças, e não um teísmo minimalista, que são realmente importantes para a vasta maioria dos crentes religiosos. Contudo, até muito recentemente, esses aspectos quase não receberam qualquer atenção dos filósofos interessados na racionalidade da crença religiosa. De algum modo, esses aspectos são vistos como secundários e periféricos.1

1William Abraham, “The epistemological significance o f the inner witness of the Holy Spirit", Faith and Philosophy (1990), p. 435. Abraham queixa-se depois que os “epistemólogos reformados” pouco disseram até agora acerca do testemunho interno do Espirito Santo e não tornaram explícita a relação entre “tudo o que se diz acerca do testemunho interno do Espirito Santo [por um lado] e as suas propostas epistemológicas [por outro]” (p. 446). Isso é verdadeiro (e este volume visa ajudar a reparar a deficiencia), mas o que impede o próprio Abraham de acender uma vela (em vez de amaldiçoar a escuridão) e tornar a explicitar algumas dessas relações?

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Bem, duvido que essas crenças foram negligenciadas por terem sido vistas como secundárias e periféricas; há uma explicação mais plausível. Os filósofos cristãos têm passado a maior parte do tempo respondendo a vários tipos de ataques à justificação racional da crença religiosa. Quem monta esses ataques tipicamente tem em mira a crença em Deus, que é a alma e coração da crença cristã e das outras religiões teístas. Essa estratégia é sensata: se o ateólogo conseguir demonstrar que essa crença é objetável, não precisará lidar em particular com todas essas crenças mais específicas; pode, assim, derrubá-las todas de uma só vez. Por isso, as respostas cristãs a essas objeções, como é natural, lidaram com a aversão à crença em Deus considerada de maneira geral. Isso não significa que Abraham não tenha razão; precisamos realmente pensar na crença especificamente cristã e investigar a sua justificação, racionalidade e aval. Esta é a tarefa dos próximos quatro capítulos; o meu objetivo é estender o modelo do capítulo 6 para incluir específicamente a crença cristã. O modelo estendido terá algumas características da teologia reformada, mas é possível construir modelos semelhantes para outras tradições teológicas. Esse modelo, a propósito, envolverá essencialmente noções teológicas como f é t, a obra do Espírito Santo. Haverá quem considere escandaloso que em um livro de filosofia se levem a sério idéias teológicas; penso que isso não é mais escandaloso do que a inserção na filosofia de idéias científicas tomadas (por exemplo) da mecânica quântica, da cosmología e da biologia evolutiva. O meu objetivo é demonstrar como os cristãos podem estar justificados, ser racionais (tanto interna como externamente) e ter aval ao sustentar a crença cristã plena — e não tenho em mente apenas os “fundamentalistas ignorantes”, mas pessoas cultas, informadas, instruídas, modernas, que leram o seu Freud e o seu Nietzsche, o seu Hume e o seu Mackie (o seu Dennett e o seu Dawkins). A justificação e a racionalidade interna são fáceis: tal como no caso da crença teísta, argumentarei que muitos, ou a maior parte, dos cristãos não só podem ter justificação como efetivamente a têm\ são, portanto, internamente racionais ao sustentar suas crenças características. A racionalidade e o aval externos são mais difíceis. O único caminho que encontro para sustentar que a crença cristã tem essas virtudes é argumentar que a crença cristã é, de fato, verdadeira. Não proponho oferecer tal argumento. Isso porque não conheço qualquer argumento a favor da crença cristã que pareça ter boas probabilidades de convencer quem não aceita desde já a sua conclusão. Isso não milita de modo algum contra a crença cristã, contudo, e na verdade argumentarei que, se as crenças cristãs são verdadeiras, a maneira comum e mais satisfatória de as sustentar não será como conclusões de argumentos. O que farei, em vez disso, é estender o modelo A /C do capítulo 6 para transformá-lo em um modelo segundo o qual a crença específicamente cristã (e também o teísmo, é claro) tem aval e racionalidade externos, e tem aval suficiente para constituir conhecímento. Esse modelo incluirá as linhas principais da crença cristã ecumênica clássica. Precisa também de uma certa quantidade de detalhes adicionais. Esses detalhes adicionais são, em traços gerais, de inspiração reformista ou calvinista, mas os desenvolverei à minha maneira. O objetivo do modelo estendido é semelhante ao objetivo do próprio

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modelo A/C. Usarei o modelo para defender tres pontos. Primeiro, para argumentar que a crença crista pode ser externamente racional e avalizada: há uma explicação epistemológica perfeitamente viável de como essa crença poderia ter essas virtudes, e não há objeções cogentes à ideia de que possa tê-las. Segundo, argumentarei (como fiz no cap. 6 com respeito à crença teísta) que, se a crença cristã é verdadeira, é provável que tenha racionalidade externa e aval para a maior parte dos cristãos. Estarei assim atacando uma postura mencionada (p. 19-20): a tese de que não sabemos se a crença cristã é, de fato, verdadeira (afinal, é bastante difícil saber disso), mas sabemos que, mesmo que por acaso seja verdadeira, não é racional ou não está avalizada. Terceiro, recomendarei a narrativa ou modelo que apresento como uma boa maneira, ainda que não necessariamente a única boa maneira, de os cristãos conceberem o status epistêmico da crença cristã. Ora, uma diferença importante entre o teísmo simples e o cristianismo são as idéias de pecado e do remédio divino proposto para o pecado; é o pecado que ocasiona a Encarnação e a Expiação, a redenção e a renovação. Esse capítulo, consequentemente, examinará a natureza do pecado e os seus efeitos noéticos. Os capítulos 8 e 9 abordarão a fé, a Bíblia e a instigação interna do Espírito Santo; no modelo estendido, estes são conjuntamente a fonte central de aval da crença cristã. Segundo Calvino, cujo pensamento irei seguir (ainda que a alguma distância), a fé é “um conhecimento (cognitio) firme e certo da benevolência de Deus para conosco, fundado na verdade da promessa livremente dada em Cristo, revelada aos nossos espíritos e selada nos nossos corações pelo Espírito Santo”.*2 O capítulo 8 mostrará como a crença cristã é revelada aos nossos espíritos, gozando assim de aval; o capítulo 9 lidará com ela ser selada nos nossos corações; aborda consequentemente a questão das afeições religiosas e da vontade, perguntando, entre outras coisas, se há análogos da justificação, da racionalidade e do aval no que se refere às afeições; o capítulo 10 examinará objeções efetivas é possíveis ao modelo estendido. Um problema inicial é que a expressão “crença cristã”, como a maior parte das expressões proveitosas, é vaga. Será que Tillich pode ser considerado um teólogo cristão? E que dizer das crenças mórmons? Serão cristãs?3 E quanto às pessoas que pensam que Jesus foi um grande modelo e mestre moral, mas duvidam de que era Deus, que ressuscitou dos mortos ou que expiou os nossos pecados: são cristãs as suas crenças? Quais características um conjunto de crenças precisa ter para que sejam cristãs — isto é, para que sejam apropriadamente denominadas por esse termo?4 2John Calvin, Institutes of the Christian religion, edição de John T. McNeill e tradução para o inglês de Ford Lewis Battles (Filadélfia: Westminster Press, 1960 [originalmente publicado em 1559]), III, ii, 7, p. 551 [edição em português: João Calvino, A instituição da religião cristã (São Paulo: Uncsp, 2008), 2 vols]. 2Veja, por exemplo, Albert Howsepian, “Are mormons theists?", Religious Studies 32 (Setembro de 1996), p. 357ss.; para uma resposta, veja Blake T. Ostler, “Worship-worthiness and the mormon conception of God", Religious Studies 33 (Setembro de 1997), p. 315ss. *Na verdade, há uma vagueza também com respeito ao teísmo: em que devemos acreditar, precisamente, para sermos teístas? Que o Absoluto ou o Real é pessoal? Ou poderemos ser teístas sc (com Carl Sagan, p. ex.) propusermos que as leis da natureza são de algum modo absolutas, devem ser denominadas “Deus”e ser veneradas? Poderiamos ser

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Isso não é um problema para o meu projeto. Primeiro, sem dúvida que o termo “cristão” é vago; apesar disso, como observou o dr. Johnson, a existência do crepúsculo não é um bom argumento contra a distinção entre o dia e a noite. A crença cristã é algo que existe, assim como a não cristã, ainda que seja difícil dizer onde começa uma e acaba a outra. Segundo, nada no meu projeto depende de um uso específico do termo “cristão”. Seja como for que nos proponhamos a usar esse termo, o meu projeto é investigar o status epistêmico de certo conjunto de crenças: as que estão incorporadas, digamos, no Credo dos Apóstolos e no Credo de Niceia. (Alternativamente, poderiamos considerar que as crenças em questão são as que encontramos na interseção das crenças expressas nos credos de comunidades cristãs mais específicas [o Novo Catecismo Católico, o Catecismo de Heidelberg, a Confissão de Augsburgo, o Catecismo de Westminster e assim por diante].) Incluem-se aí as afirmações de que Deus criou os céus e a terra; que criou os seres humanos à sua imagem; que os seres humanos caíram ruinosamente em pecado e se tornaram necessitados de salvação; que em resposta Deus graciosamente enviou Jesus Cristo, seu divino filho, que assumiu a nossa carne (encamou-se), sofreu e morreu como expiação dos nossos pecados, e ressuscitou dos mortos, permitindo assim que os seres humanos decaídos tenham a vida eterna com Deus. E comum considerar que essas crenças são paradigmáticamente cristãs; e são também comumente referidas pelo termo “cristãs”. Apesar disso, nada depende do uso desse termo: o meu projeto é investigar o status epistêmico dessas crenças.

II. F o r m u l a ç ã o

inic ia l d o m o d e l o e st e n d id o

Pois bem, a nossa questão é saber se essas crenças são justificadas, racionais ou avalizadas. Lidar com a justificação e a racionalidade interna é fácil. Primeiro, a justificação, entendida deontologicamente, levando em conta direitos e obrigações intelectuais, não é mais problemática aqui do que no caso do teísmo. E claro que uma pessoa (mesmo uma pessoa com alto nível de instrução, atualizada, do século 21, que leu as últimas objeções à crença cristã) poderia ter justificação para aceitar estas e outras crenças cristãs e teria justificação se (por exemplo), depois de cuidadosa e idônea reflexão e investigação das supostas objeções e anuladores, continuasse a considerar que tais crenças são integralmente convincentes. Dificilmente poderia ser censurada por acreditar no que, depois de acurada investigação, lhe parece fortemente ser a verdade da questão (ou deveria ela acreditar no que lhe parece falso?).5 Quanto às várias extensões analógicas da justificação que a

teístas se pensássemos que Deus c na realidade um conjunto talvez o produto cartesiano do conjunto das ações possivelmente boas com o conjunto das proposições verdadeiras? (Ignore-se o fato de provavelmente não existir algo como o conjunto das proposições verdadeiras — ou, caso não seja possível ignorá-lo, veja Patrick Grim; Alvin Plantinga,“Truth, omniscience, and Cantorian arguments: an exchange”, Philosophical Studies 70 [Agosto dc 1993].) sAlguém poderia afirmar que o crente cristão só goza de justificação subjetiva, e não objetiva; isso porque (diria essa pessoa) o fato é que há deveres epistêmicos objetivos em razão dos quais não podemos aceitar a crença cristã sem os violar (veja p. 1 1 4 5 ‫) ־‬, e o crente só não é culpado porque não tem consciência deles (assim, a ignorância o protege da culpa). Uma vez mais, contudo: que deveres objetivos seriam esses? E onde está ao menos uma sugestão de razão para pensar que há tais deveres?

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ampliam para além do seu sentido original — sermos responsáveis, fazermos o melhor que se poderia esperar com respeito à nossa contribuição para a formação de crenças, e idéias semelhantes — , uma vez mais é óbvio, penso, tanto que os crentes podem satisfazer estas condições como que muitos as satisfazem defato. O mesmo acontece no caso da racionalidade interna, que é uma questão do fundonamento apropriado dos processos cognitivos com base na experiência (veja na p. 132 uma expbcação dessa metáfora). Essas crenças, estamos estipulando, parecem claramente verdadeiras para a pessoa em questão. Ela as considera completamente convincentes, como acontece também com as suas crenças acerca da existência de outras pessoas, digamos, e do mundo exterior; por isso, elas continuam convincentes mesmo depois de a pessoa haver considerado as objeções que encontrou. Ela tem forte inclinação para acreditar nessas coisas e, por isso, tem fortes evidências doxásticas favoráveis a elas. Nesse caso, o fato de acreditar nessas idéias não implica qualquer disfunção ou defeito cognitivo ou outra infelicidade; logo, a sua crença é internamente racional. Como vimos no caso da crença teísta, contudo, essas observações não irão sossegar os críticos, ou não devem fazê-lo, pois mesmo que os crentes cristãos tenham justificação, sendo as suas crenças internamente racionais, ainda assim poderão ser externamente irracionais (veja acima, p. 134) e, portanto, carecer completamente de aval. Afinal, mesmo as crenças de um louco ou de uma vítima de um gênio maligno cartesiano podem estar justificadas e ser internamente racionais. Que dizer, então, da racionahdade externa e do aval? Uma crença é externamente racional se for produzida por faculdades cognitivas que estão funcionando apropriadamente e que visam com êxito à verdade (ou seja, visam à produção de crenças verdadeiras) — em contraste, por exemplo, com o produto da satisfação de desejos ou de uma disfunção cognitiva. Ora bem, o aval, a propriedade que em quantidade suficiente distingue o conhecimento da mera crença verdadeira, é uma propriedade ou quantidade que uma crença tem se e somente se (penso eu) essa crença for produzida por faculdades cognitivas que funcionem apropriadamente em um ambiente epistêmico adequado segundo um plano de desígnio que vise com êxito à verdade. Uma vez que a racionalidade (no sentido de funcionamento apropriado das faculdades racionais) está incluída no aval, a verdadeira questão aqui é saber se a crença cristã tem ou pode ter aval. Segundo o modelo A/C estendido, a crença cristã tem realmente aval. Em essência, o modelo é o seguinte. Primeiro, Deus criou os seres humanos à sua imagem: isso inclui crucialmente o fato de sermos parecidos com Deus por sermos pessoas — isto é, seres com intelecto e vontade. Como Deus, somos seres com crenças e entendimento: temos intelecto. Mas há também a vontade: também nos parecemos com Deus porque temos afeições (coisas que amamos e outras que odiamos), porque temos objetivos e intenções e porque somos capazes de agir para atingir estes objetivos e intenções.6 Digamos que 6Estou aqui entendendo que a vontade inclui não apenas a decisão e a escolha (a função executiva da vontade) mas também os amores e os ódios, o desejo e a conação (a função afetiva da vontade). Isso é um pouco mais amplo do

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essa seja a imagem geral de Deus que os seres humanos portam em si. Entretanto, eles, tal como foram criados, exibiam também uma imagem restrita: tinham um conhecimento extenso e íntimo de Deus e afetos sãos, incluindo a gratidão pela bondade de Deus.7 Amavam e odiavam as coisas dignas de amar e de odiar; acima de tudo, conheciam e amavam Deus. Parte dessa imagem era o sensus divinitatis do capítulo 6. O modelo estendido conserva essa característica e lhe acrescenta algo. Primeiro, acrescenta que os seres humanos caíram em pecado, uma condição calamitosa que exige salvação — uma salvação que somos incapazes de conseguir por nós mesmos. O pecado aliena-nos de Deus e toma-nos incapazes de entrar em comunhão com ele. A nossa queda no pecado teve consequências cataclísmicas, tanto afetivas quanto cognitivas. Quanto às consequências afetivas, as nossas afeições foram distorcidas e os nossos corações abrigam agora um mal profundo e radical: amamo-nos a nós mesmos acima de tudo, em vez de amarmos Deus. E houve também consequências cognitivas miñosas. O nosso conhecimento original de Deus e da sua maravilhosa beleza, glória e amor foi severamente comprometido; desse modo, a nossa imagem restrita de Deus foi destruída e a imagem geral foi danificada, distorcida.8 Em particular, o sensus divinitatis foi danificado e deformado; em razão da Queda, já não conhecemos Deus do modo natural e não problemático pelo qual nos conhecemos uns aos outros e ao mundo que nos rodeia. Além disso, o pecado induz em nós uma resistência aos produtos do sensus divinitatis, silenciados que foram pelo primeiro fator; não queremos dar atenção aos seus produtos. Somos incapazes, pelos nossos próprios esforços, de nos libertarmos desse lamaçal; o próprio Deus, contudo, forneceu um remédio para o pecado e para os seus efeitos ruinosos, um meio de salvação do pecado e restauração do seu favor e irmandade. Esse remédio é disponibilizado na vida, no sofrimento e morte expiadores e na ressurreição do seu Filho divino, Jesus Cristo. A salvação envolve, entre outras coisas, o renascimento e a regeneração, um processo (que começa nesta vida e alcança a fruição na próxima) que inclui a restauração e reparação da imagem de Deus em nós. Até agora, o que temos aqui é o cristianismo puro e simples de que falava C. S. Lewis;9 mas vamos entrar em um aspecto mais específicamente cognitivo do modelo. Deus precisava de uma maneira para informar os seres humanos de muitos tempos e* que o entendimento contemporâneo habitual da vontade, mas está em harmonia com outras maneiras mais antigas de a conceber (cfi, p. ex., Aquinas, Summa theologiae I [edição em portugês: Tomás de Aquino, Suma teológica (São Paulo: Loyola 2001) 9 vols.], q. 82, a. 1 e 2, e Summa contra gentiles Livro III, cap. 26). 'Recebi aqui a ajuda de Derek Jeffreys. *Nas palavras de Calvino, “Os dons naturais do homem foram corrompidos, mas os sobrenaturais foram eliminados" (II, ii, 4, p. 260). E, segundo Tomás, “Quando a sua natureza está corrompida, o homem fica aquém até mesmo do que pode fazer por natureza, de modo que é incapaz de executar completamente [suas funções naturais] pelo seu próprio poder natural”. Consequentemente, precisamos de “uma força graciosa que complemente a força natural”, não apenas “para fazer e querer o bem sobrenatural” mas também, afirma, para estar à altura da nossa natureza original como pessoas (Summa theologiae TI1, q. 102, a. 2, respondeo). Devemos notar aqui uma ambiguidade em expressões como “a nossa condição natural”. Por um lado, ela pode se referir a seres humanos eram quando estavam em sua condição original e sem pecado, acabados de vir da mão de Deus, como ainda seríamos se não fosse o pecado; por outro lado, a expressão refere-se à nossa condição decaída, anterior à regeneração e à renovação. 9Mere Christianity (New York: Macmillan, 1958) [edição em português: Cristianismo puro e simples (São Paulo: W M F Martins Fontes, 2009)].

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lugares sobre o esquema da salvação que graciosamente disponibilizou. Sem dúvida, poderia tê-lo feito de mil maneiras diferentes; na prática, entretanto, escolheu fazê-lo do seguinte modo. Primeiro, há a Escritura, a Bíblia, uma coleção de escritos de autores humanos, mas especialmente inspirados por Deus de tal maneira que se pode dizer que ele é o seu principal autor. Segundo, ele enviou o Espírito Santo prometido por Cristo antes da sua morte e ressurreição.101Uma das obras principais do Espírito Santo com respeito aos seres humanos é a produção em nós do dom da fé , esse “conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco, fundado na verdade da promessa livremente dada em Cristo, revelada aos nossos espíritos e selada nos nossos corações pelo Espírito Santo”, de que fala Calvino (veja a seguir na p. 257). Por causa da instigação interna do Espírito Santo, acabamos por ver a veracidade das afirmações cristãs centrais. Ora, a fé não é apenas uma questão cognitiva: ser “selada nos nossos corações” é uma questão de vontade e afeição, uma reparação da loucura da vontade que está na raiz do pecado. Apesar disso, ela é também uma questão cognitiva. Ao dar-nos a fé, o Espírito Santo permite-nos ver a veracidade das linhas principais do evangelho cristão, tal como foram apresentadas na Escritura. O convite interno do Espírito Santo é consequentemente uma fonte de crença, um processo cognitivo11 que produz em nós a crença nas linhas principais da narrativa cristã. Além disso, segundo o modelo, as crenças assim produzidas em nós satisfazem as condições necessárias e suficientes do aval; são produzidas por processos cognitivos que funcionam apropriadamente (de acordo com o seu plano de desígnio) em um ambiente epistêmico apropriado (tanto máxi quanto mini) segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade; se forem sustentadas com firmeza suficiente, essas crenças caracterizam-se como conhecimento, tal como decorre da definição de fé de Calvino. III. A

NATUREZA DO PECADO

Agora que temos diante de nós um esboço do modelo estendido, devemos olhar mais detidamente para alguns dos seus aspectos, começando com a natureza do pecado e suas consequências cognitivas. Os teólogos reformados costumavam falar dos “efeitos noéticos do pecado”; apesar de (infelizmente) esse tópico ter hoje em dia perdido a sua centralidade, ele será importante para o nosso modelo, de modo que, depois de um exame da natureza do pecado, nós nos voltaremos, no restante capítulo, para suas consequências cognitivas. O que é o pecado? Seja lá o que for, ele é a um só tempo espantosamente profundo e profundamente difícil de captar e de definir. Segundo o modelo, há primeiro o fenômeno de pecar, fazer o que é incorreto, o que é contrário à vontade de Deus. Isso é algo 10Veja, p. ex., João 1 4 .2 5 2 6 ‫־‬: “Essas coisas vos tenho falado enquanto ainda estou convosco. Mas o Consolador, o Espírito Santo a quem o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que eu vos tenho dito”. 11Quem ficar surpreso com a aplicação desse termo à obra do Espírito Santo é convidado a dar atenção à explicação que se segue, nas p. 262-3.

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pelo qual o pecador é responsável·, ele é culpado e merece censura — mas apenas se ele reconhecer que cometeu um pecado, ou se for culpado por não o reconhecer. H á também a condição de estar em pecado, condição em que os seres humanos se encontram desde o nascimento. Um termo cristão tradicional para designar essa condição é ‫״‬pecado original”. Ao contrário de um ato pecaminoso que eu executo, o pecado original não deve ser entendido como algo pelo qual sou culpado (o pecado original não é necessariamente uma culpa original); uma vez que nasci nesse apuro, não tenho controle disso e não sou pessoalmente responsável por me encontrar nesse estado. (De qualquer modo, temos muitas oportunidades para sermos culpados por cometer os pecados não originais.) Como ocorre de estarmos mergulhados nesta condição desesperada e deplorável? A resposta cristã tradicional é que isso aconteceu em decorrência das ações pecaminosas de Adão e Eva, os nossos pais originais e os primeiros seres humanos. Se foi realmente assim que isso aconteceu é uma questão acerca da qual o modelo não precisa tomar posição; o que fa z parte do modelo é que de fato estamos nessa condição. G. K. Chesterton observou uma vez que, de todas as doutrinas do cristianismo, a do pecado original é a mais “empíricamente verificável”, qualidade que nos tempos florescentes do positivismo era amplamente proclamada como o próprio critério de “respeitabilidade cognitiva”: ela se manifestou nas guerras, na crueldade e no ódio generalizado que caracteriza a história da humanidade da sua origem até o presente. Com efeito, nenhum século viu mais ódio, desprezo e crueldade organizados do que o século 20, e nenhum viu tais coisas em uma escala tão imensa. Esse século em particular permite-nos também ver o lado social do pecado. Os seres humanos são profundamente comunais; aprendemos com nossos pais, professores e colegas, entre outros, tanto por imitação como por instrução. Adquirimos crenças desse modo, mas também, o que é igualmente importante (e talvez menos consciente), adquirimos atitudes e afetos, amores e ódios. Graças à nossa natureza social, o pecado e os seus efeitos podem ser como uma doença que se espalha por contágio entre as pessoas, acabando por corromper12 uma sociedade inteira ou um segmento dela. O pecado original envolve tanto o intelecto como a vontade; é tanto cognitivo como afetivo. Por um lado, acarreta uma espécie de cegueira, de falta de visão, embotamento, estupidez. Trata-se de uma limitação cognitiva que, antes de mais nada, impede a vítima de ter um conhecimento apropriado de Deus, da sua beleza, glória e amor; impede-a também de ver o que merece ser amado e o que merece ser odiado, o que deve ser procurado e o que deve ser recusado. Consequentemente, compromete tanto o conhecimento factual como o conhecimento dos valores. Todavia, o pecado é também, e talvez antes de tudo, um distúrbio ou disflinção das afeições. As nossas afeições se distorcem, passando a se dirigir aos objetos errados; amamos o que não deve ser amado e odiamos o que não deve ser odiado. Em vez de procurar primeiro o reino de Deus, tendo a procurar primeiro minha glorificação pessoal 1JOs exemplos desse contágio são manifestos no nosso século (ainda que também, é claro, em tempos mais recuados); para um exemplo fictício, veja Brian Moore, Black robe (New York: E. P. Dutton, 1985).

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e engrandecimento, dirigindo todos os meus esforços para dar a mim mesmo uma boa imagem. Em vez de amar a Deus acima de tudo e ao meu semelhante como a mim mesmo, tendo a amar a mim mesmo acima de tudo e, na verdade, a odiar Deus e o meu semelhante.13 Grande parte desse ódio e hostilidade nasce do orgulho, o pecado primevo, e das consequentes tentativas de engrandecimento de si. Entendemos que a obtenção das coisas boas do mundo é um jogo de soma zero: qualquer pedaço que você tenha é um pedaço que eu não posso ter — mas o quero para mim. Quero ser mais bem conhecido do que você, de modo que, sempre que você faz algo notável, sinto a picada da inveja. Posso querer ser rico. O que conta não é quanto dinheiro tenho, em termos absolutos; o que conta é se tenho mais do que você, ou do que a maior parte das pessoas, ou do que todo mundo. Mas então você e os outros são obstáculos à realização dos meus desejos; por isso, acabo por odiá-lo e sentir ressentimento. O próprio Deus, a origem do meu ser, pode também ser uma ameaça. No meu desejo orgulhoso de autonomia e autossuficiência, posso acabar tendo ressentimento pela presença de alguém de quem eu dependo para respirar e em comparação com quem sou realmente insignificante. Posso, consequentemente, acabar por odiá-lo também. Quero ser autônomo, não estar em dívida com ninguém. Talvez essa seja a raiz mais profunda da condição do pecado.14 O defeito aqui é afetivo, não intelectual. As nossas afeições estão desordenadas; já não funcionam como no plano de desígnio original de Deus para os seres humanos. O funcionamento apropriado malogrou, há um distúrbio afetivo, uma espécie de loucura da vontade. Nessa condição, sabemos (de algum modo e em algum grau) o que deve ser amado (objetivamente), mas nos afastamos perversamente dessas coisas dignas de amor e amamos outras coisas no lugar delas. Sabemos (em dado nível) o que é correto, mas sentimos atração pelo que é incorreto; sabemos que devemos amar a Deus e ao nosso semelhante, mas apesar disso preferimos não o fazer. Claro que isso levanta questões antigas, que remontam a Sócrates: pode uma pessoa realmente fazer o que ela considera incorreto?15 Se uma pessoa vê o que é correto, como pode ela fazer o que é incorreto? A resposta é bastante simples: ela vê o que é correto, mas prefere o incorreto. Sócrates não vê a possibilidade de um distúrbio afetivo em contraposição a uma deficiência intelectual (ou seja, à ignorância). Na ausência do distúrbio afetivo, talvez, de fato, eu não possa ver o bem e preferir o mal, sabendo que é o mal. Infelizmente, contudo, não podemos pressupor a ausência desse distúrbio; o pecado é, em grande parte, precisamente esse distúrbio. Por causa dessa disfunção afetiva, desejo e procuro o que sei ou acredito que é mau. 13Questão 5 do Catecismo de Heidelberg: “Pode a tua vida estar perfeitamente à altura de tudo isso?”. Resposta: “Não. Tenho uma tendência natural para odiar Deus e o meu semelhante” [edição em português: Confissão belga e catecismo de Heidelberg (São Paulo: Cultura Cristã, 1999)]. 14Esse desejo de autonomia, autodefinição e autocriação pode assumir proporções doentias: segundo Richard Rorty, Martin Heidegger sentia-se culpado por viver em um mundo que ele mesmo não havia criado, recusando-se a sentir-se em casa nele, e não suportava a ideia de que tal mundo não era uma criação sua (,Contingency, irony, and solidarity [Cambridge: Cambridge University Press, 1989], p. 109) [edição em português: Contingência, ironia e solidariedade (São Paulo: Martins Fontes, 2007)]. ]SMénon 77b-78a; veja também Protagoras, 345e.

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Há muitos argumentos tradicionais a favor da ideia de que é impossível desejarmos o que, no computo geral, vemos que é incorreto: não há espaço para lidar com esses argumentos aqui, exceto para dizer que não me parecem convincentes de modo algum. Um argumento que eu gostaria de mencionar pode ser formulado do seguinte modo: “Há aqui um problema semântico sério. Não é nem sequer coerente afirmar que uma pessoa possa amar e valorizar o que ela sabe que é odioso ou que possa odiar o que ela sabe que é bom. Considere-se o meu amigo Samuel, que afirma ‘Amo e proponho promover o que é de fato o mal’: suas palavras nem sequer têm um sentido coerente. Palavras como ‘bem’, ‘mal’, ‘correto’, ‘incorreto’ etc. são usadas para recomendar e censurar, expressando aprovação ou desaprovação; logo, a primeira parte da elocução de Samuel exprime a sua aprovação da mesmíssima coisa que a segunda parte de sua elocução desaprova. E sensato dizer que temos uma tendência para aprovar o mal, que já o fizemos várias vezes e até que o fazemos frequentemente; mas não podemos de maneira sensata dizer que agora mesmo aprovamos o mal ou odiamos o bem. Samuel não se contradisse (não asseriu uma proposição e a sua negação); mas, mesmo assim, o que afirma é incoerente, como se tivesse dito ‘Viva os Estados Unidos, e abaixo esse país!”’. Resposta: primeiro, há aqui duas questões diferentes: (1) Será possível amar o que sabemos ser um mal? (2) A elocução de Samuel é coerente? As duas questões são independentes: uma trata de quais gêneros de atitude são possíveis, e a outra, de quais frases têm um sentido coerente (em português). Mesmo que a elocução de Samuel seja incoerente, isso em nada deporia contra a possibilidade de amarmos o que sabemos ser um mal. Mas, além disso, o fato é que a elocução de Samuel faz pleno sentido. Quando o Satanás de Milton diz “Mal, serás o meu bem”, o que ele diz é perfeitamente inteligível: ele quer dizer que prefere, e propõe-se a promover, o que reconhece ser o mal. Podemos entender o que está ocorrendo aqui do seguinte modo. E realmente verdadeiro que palavras como “bem”, “mau” e “mal” servem para exprimir aprovação ou desaprovação. Contudo, isso é apenas uma parte de sua função: elas expressam também propriedades. (Não interessa por ora quais são exatamente as propriedades expressas, mas talvez a propriedade expressa por “bem” [“mau”] seja equivalente, no sentido amplamente lógico, à propriedade de ser aprovado [desaprovado] por Deus.) Habitualmente, essas duas coisas andam juntas: exprimimos a aprovação daquilo que consideramos ter a propriedade expressa pela palavra “bem”. O que importa, porém, é que as duas funções também podem ser separadas: qualquer uma das duas componentes do significado desses termos pode ser cancelada. Quando Satanás diz “Mal, serás o meu bem”, o aspecto do termo “mal” pelo qual este expressa desaprovação é cancelado, tal como o aspecto do termo “bem” pelo qual ele expressa habitualmente a propriedade de ser bom. Assim, Satanás não está (é claro) apoiando ou propondo uma condição na qual o que tem a propriedade de ser um mal terá doravante a propriedade de ser um bem; nem está exprimindo desaprovação e aprovação ao mesmo tempo da mesma coisa. Em vez disso, está declarando que aprova, ama, valoriza e pretende promover aquilo que sabe que tem a propriedade de ser um mal. As suas palavras podem ser usadas para fazer isso porque é possível cancelar qualquer uma das duas componentes — exprimir uma propriedade e exprimir uma atitude ou afeto — do significado de “bem”, “mal” e termos semelhantes.

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Como Agostinho e Pascal notaram, toda esta pilha complexa c confusa de atitudes, afetos e crenças que constitui o estado de pecado é um campo fértil para a ambiguidade e o autoengano.16 Segundo o modelo estendido, os seres humanos têm tipicamente pelo menos algum conhecimento de Deus e alguma apreensão do que nos é exigido; isso mesmo no estado de pecado e mesmo sem a regeneração. A condição do pecado provoca um dano ao semas divinitatis, mas não o oblitera; ele continua parcialmente funcional na maior parte de nós. Consequentemente, temos alguma apreensão da presença de Deus, das suas propriedades e exigências, mas esse conhecimento é abafado, obstaculizado, suprimido. Tendemos a odiar Deus mas, confusamente, de algum modo tendemos também a amá-lo e a procurá-lo; tendemos a odiar o próximo, a vê-lo como um rival que compete conosco por bens escassos, mas tendemos também, paradoxalmente, a valorizá-lo e a amá-lo. Talvez eu reconheça, de maneira mais ou menos subliminar, que há uma desordem profunda na minha vida. Reconheço parcialmente o egoísmo e o egocentrismo que caracterizam a maior parte dos meus momentos de vigília. Talvez eu repare que até (ou talvez especialmente) quando falo comigo mesmo, quando não está em questão influenciar os outros, crio imaginativamente, ensaio e contemplo várias situações nas quais acabo por ser vitorioso, ou heroico, ou sofro longa e virtuosamente, ou sou de outro modo abundantemente admirável. Talvez eu também entreveja a tolice e a corrupção aí envolvidas, mas a maior parte do tempo não presto atenção. Ignoro-as; escondo-as de mim mesmo usando como fuga o trabalho, os meus projetos, a minha família e o pacote completo da vida diária (como Pascal diz, “Neste momento não posso incomodar-me; tenho de devolver o serviço do meu oponente”17). Essa ambiguidade vai ainda mais fundo. Não conseguimos discordar do apóstolo Paulo: “Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” (Rm 7.19). Faço muitas vezes o que reconheço ser incorreto, apesar de não querer fazer o que é incorreto; e não faço o que é correto, apesar de querer fazê-lo. Parece que não faço o que quero fazer, fazendo, ao invés disso, o que não quero. Ou será que, quando faço algo incorreto, quero realmente fazê-lo, mas não penso então que é incorreto (apesar de outras vezes ver perfeitamente que o é, e muito desejar não o ter feito)? Ou será que nesse momento vejo (pelo menos em certa medida) que é incorreto, ou veria claramente que o é se prestasse atenção (e também semiconheço então esse fato), mas não presto atenção porque quero fazê-lo? Ou será que quando faço algo incorreto, quero então fazê-lo, sabendo (de maneira meio tácita) que / incorreto, mas não quero querer fazer o que é incorreto? Ou será que, quando quero fazer o que é incorreto, não me ponho nem sequer a questão de que aquilo é incorreto? Os meus afetos de segunda ordem podem parecer tipicamente mais bem sintonizados ou calibrados do que os de primeira ordem: muitas vezes quero fazer o que é incorreto; mas é muito menos frequente que eu queira desejar fazer o que é incorreto. Quero amar e odiar as coisas adequadas — isto é, as coisas que considero adequadas — ainda que, de fato, ’6Para um comentário recente, veja Bas van Fraassen, “The peculiar effects of love and desire”, in: A. Rorty; B. McLaughlin, orgs., Perspectives on self-deception (Berkeley: University of California Press), 1988. Van Fraassen oferece um tratamento sutil de algumas das profundidades emaranhadas do autoengano. 17Citado em Van Fraassen, “The peculiar effects”.

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reconheça tristemente que amo e odeio as coisas inadequadas. Não quero amar a mim mesmo acima de tudo, mas isso não me impede de amar a mim mesmo acima de tudo. Um enigma tradicional (ou par de enigmas) pergunta como podería uma pessoa — humana ou não — ficar nessa condição, e se o que há de mais profundo aqui é um problema do intelecto ou, antes, da vontade. Segundo Calvino {Institutas II, i, 4, p. 245), o pecado primeiro e primordial é a desobediência', ele também afirma em outra passagem que é não confiar em Deus. Segundo Agostinho,18 o orgulho a raiz mais profunda do pecado; ele também afirma em outra passagem que a inveja ocupa essa posição nada invejável. Essas quatro condições estão claramente interligadas. Orgulhosamente, quero considerar-me tão justo e bom quanto qualquer outra pessoa, incluindo Deus; por isso, irrita-me ser obrigado a lhe obedecer. E se ele exige a minha obediência, não começarei a perder a confiança nele? (Não quero obedecer-lhe; é um pequeno passo para me convencer de que o que ele exige de mim não é para meu próprio bem.) Claro que também reconheço que não tenho um status divino; daí a inveja (e, uma vez mais, a ambiguidade e o autoengano). Talvez tudo isso se origine desse desejo prometeico de autonomia, de não estar em dívida com nada nem ninguém. Todavia, como cheguei ao estado de desejar essa autonomia? O u antes, dado que nasci assim, como podería Eva tê-lo feito? Ela sabia que só Deus é o primeiro ser do universo; sabia que devia a Deus obediência e amor; sabia que era do seu interesse amar e servir a Deus e, de fato, realmente o amava e servia. Mas então, como pôde ela cair nessa condição de pecado? Isso necessariamente envolve um defeito intelectual·, é necessariamente uma questão de adquirir, de algum modo, uma crença falsa. Ela é enganada de algum modo e passa a pensar que seria melhor para ela tornar-se independente, ser dona de si. Mas como pôde ela pensar tal coisa? “Não só porque ele [Adão] foi dominado pela lisonja de Satanás”, diz Calvino, “mas também porque desprezou a verdade, voltou-se para a falsidade” (II, i, 4, p. 245). Assim, não se tratou apenas de cair em uma crença falsa sem sentir nenhuma espécie de culpa por isso. Ele foi realmente enganado, mas participou do engano; foi, em parte, uma questão de autoengano. Desprezou a verdade, e isso porque, a certa altura, as suas afeições se transviaram: ele foi tomado pelo orgulho. Contudo, por que haveríam as suas afeições de se transviar desse modo? Ele sabia, sem dúvida, que essa desobediência era a um só tempo corrupta e contrária a seu próprio bem. Logo, precisou haver algum tipo de falha intelectual anterior.Todavia, de onde podería vir tal falha? Como pode ela ter começado? Foi certamente devido ao autoengano, ao ato de voltar as costas ao que ele mesmo sabia, de algum modo, ser a verdade. Entretanto, por que enganar-se a si mesmo? Há aqui uma relação complicada, multifacetada e dialética entre o intelecto e a vontade, de modo que não é possível dizer qual deles é absolutamente anterior ao outro com respeito à queda no pecado. Pensamos que, de algum modo, são o orgulho c o desejo de autonomia que w{Psa!ms, S. 18, ii, 15). Este tornou-se um tema medieval comum; compare-se, p. cx., Pedro Lombardo, IIsent., d. 42, c. 7: “Superbia radix cuncti mali, et initium omnis peccati” (“O orgulho é a raiz de todo o mal e o começo de todo o pecado”). Lutero concordava; veja a sua Lecture on Romans, edição e tradução para o inglês de Wilhelm Pauck (Filadélfia: Westminster Press, 1961), p. 5ss.

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estão na base de toda a desgraça. De algum modo, surge um desejo furtivo de ser como Deus, de ser, na verdade, um igual, não tendo de desempenhar um papel secundario (ou n-á.rio, para um n enorme). Claro que permanece um mistério final: de onde vem esse desejo furtivo de ser igual a Deus? Como podería a própria ideia chegar a entrar na alma de Adão? Por um lado, isso é fácil de entender; nós próprios partilhamos a mesma corrupção, a mesma loucura da vontade. No entanto, Adão foi criado perfeito; assim, como pôde isso acontecer? Não é fácil dizer. Deus concede-nos uma área de autonomia (podemos aceitá-lo ou rejeitá-lo), e esse desejo de algum modo nasce dessa autonomia. Vejo como Deus é, vejo como eu sou e tenho uma escolha (uma escolha que escondo parcialmente de mim mesmo): posso ter prazer na minha condição, que é maravilhosamente boa, ou posso escolher invejar. (Talvez de início um pequeníssimo incômodo, um desconforto que nem consigo identificar, um meio-pensamento: por que não posso ser como Deus, que nada deve a ninguém e que determina por sua própria vontade o que é bom?) Uma especulação: para qualquer criatura livre que Deus cria, essa queda no pecado é claramente uma possibilidade; Deus não pode criar criaturas significativamente livres que não possam cair em pecado. E talvez uma probabilidade elevada de tal queda se associe a criaturas livres (criaturas com uma área de autonomia) que foram criadas à imagem de Deus. Deus cria seres à sua imagem: eles se parecem com ele porque têm vontade e intelecto e reconhecem a beleza, a glória e a desejabilidade luminosas da posição de Deus. Deus é em si o centro do Universo; as suas criaturas veem o esplendor e a maravilhosa desejabilidade dessa condição. Talvez, uma que somos livres, e vemos a glória dessa posição e sua imensa desejabilidade, tenhamos uma forte tendência de a desejarmos para nós próprios. Talvez haja uma probabilidade elevada de que seres criados à imagem de Deus acabem também por se parecer com ele nisto: querem ver-se e veem-se efetivamente como o centro do Universo. Talvez uma probabilidade substancial de cair nessa condição esteja incorporada na própria natureza de criaturas livres que têm conhecimento do status glorioso de Deus e o veem como realmente glorioso e desejável. Há mundos possíveis nos quais há criaturas livres com esse tipo de conhecimento e afetos que não caem nessa condição de pecado, mas talvez esses mundos formem apenas uma pequena porção do espaço da totalidade dos mundos possíveis que contêm criaturas livres. A queda não é inevitável ou necessária; contudo, talvez a sua probabilidade objetiva seja muito elevada.

IV. OS EFEITOS NOÉTICOS DO

PECADO

A. A consequência básica Essas águas teológicas são profundas e sombrias (e tenebrosas); felizmente, o modelo não precisa tomar posição quanto à questão de saber como as criaturas de Deus caíram no pecado e se é o intelecto ou a vontade que nele desempenha um papel principal.

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Basta dizer que os seres humanos, partindo de um estado prístino, caíram realmente em pecado, uma condição que envolve tanto o intelecto como a vontade. O pecado é uma doença afetiva, uma disfunção ou loucura da vontade. Contudo, é também uma condição cognitiva, e vamos agora investigar um pouco mais de perto as suas consequências cognitivas. Segundo o modelo A/C estendido, os efeitos noéticos do pecado têm mais peso com respeito ao nosso conhecimento das outras pessoas, de nós mesmos e de Deus; são menos conexos (ou conexos de maneira diferente: veja a seguir na p. 232) com o nosso conhecimento da natureza e do mundo. O pecado afeta o meu conhecimento dos outros de muitas maneiras. Em razão do ódio ou aversão por um grupo de seres humanos, posso considerá-los inferiores ou menos valiosos do que eu e os meus amigos mais bem-sucedidos. Em virtude da hostilidade e do ressentimento, posso avaliar mal ou entender completamente ao contrário a atitude de alguém comigo, suspeitando que está tentando me prejudicar, quando nada sugere isso.19 Dado esse pecado básico e primevo que é o orgulho, posso pressupor, de modo irrefletido e quase inconsciente, que sou o centro do universo (claro que, se você me perguntar, negarei pensar tal coisa), exagerando enormemente a importância do que me acontece em comparação com o que acontece aos outros. Posso superestimar imensámente minhas próprias conquistas e realizações,20 minimizando consequentemente as realizações alheias. Posso também não me dar conta do meu próprio pecado, ou vê-lo como menos grave do que é; posso não me ver como uma criatura que, se não fosse vista através da lente do sacrificio de Cristo, seria digna do castigo divino. (Assim, entre as devastações do pecado está a minha incapacidade para perceber essas devastações.) A nossa apreensão de nós mesmos como portadores da imagem do próprio Deus, o Primeiro Ser do universo, pode também ser danificada, comprometida ou embotada. Por exemplo, podemos pensar que características humanas como o amor, o humor, a aventura, a arte, a música, a ciência, a religião e a moralidade só podem ser entendidas considerando-se nossa origem evolu‫״‬ tiva, e não por sermos portadores da imagem de Deus.21 Porque não conhecemos Deus, 19Há também crenças que, pensamos, nenhuma pessoa de boa vontade poderla vir a sustentar, de modo que sustentá-las é prima fade indício de culpabilidade; veja o meu “Reason and belief in God”, in: Alvin Plantinga; Nicholas Wolterstorff, orgs., Faith and rationality (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1984), p. 36. Segundo Dietrich Bonhoeffer, certos tipos de conhecimento — conhecimento de como conseguir a salvação ou a felicidade — exigem obediência: não seremos capazes de adquirir esse gênero de conhecimento sem obediência (“The call o f discipleship”, in: The cost of discipleship [New York: Macmillan, 1963], p. 83ss.) [edição em português: Discipulado (São Leopoldo: Sinodal, 2004)]. 20"É inexprimível, e quase inconcebível, a força com que uma disposição farisaica e autoelogiosa ocorre naturaímente no ser humano; e o que ele não fará e aceitará para a alimentar e gratificar; e quão longe se vai em uma abnegação aparente em outros aspectos [...]; e tudo para oferecer sacrifícios a este ídolo do orgulho e do farisaísmo espiritual; e para que possam ter algo com que se exaltar perante Deus, pondo-se acima dos seus semelhantes”, Jonathan Edwards, Religious affections (New Haven: Yale University Press, 1959), p. 241. 21Assim, Herbert Simon (“A mechanism for social selection and successful altruism”, Science 250 [Dezembro de 1990], p. 1665ss.) acredita que a maneira racional de nos comportarmos é agir ou tentar agir de modo a aumentar a nossa aptidão pessoal, isto é, agir de modo a aumentar a probabilidade de disseminar os nossos genes na próxima geração e nas seguintes, saindo-nos bem na corrida evolutiva; isso, pensa ele, é dado pela nossa história evolutiva. Mas então como explicamos o comportamento de pessoas como Madre Teresa, o missionário escocês Eric Liddel, os missionários jesuítas do século 17 ou os missionários metodistas do século 19? Por que dedicaram o seu tempo

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adquirimos uma perspectiva profundamente distorcida do que nós mesmos somos, do que precisamos, do que é bom para nós e de como o obter. Os efeitos noéticos mais sérios do pecado dizem respeito ao nosso conhecimento de Deus. Não fosse o pecado, e os seus efeitos, a presença e a glória de Deus seriam tão óbvias e incontroversas para todos nós quanto a presença de outras mentes, dos objetos físicos e do passado. Como qualquer processo cognitivo, contudo, o sensus divinitatis pode funcionar mal; em resultado do pecado, foi efetivamente danificado.22 O nosso conhecimento original de Deus e da sua glória está abafado e obstaculizado; foi substituído (por causa do pecado) pela estupidez, imbecilidade, cegueira, incapacidade para percepcionar Deus ou para o percepcionar na sua obra. O nosso conhecimento do seu caráter e amor por nós pode ser sufocado: pode até se transformar em ressentimento, no pensamento de que Deus é alguém a quem devemos temer e de quem devemos desconfiar; podemos vê-lo como indiferente a nós ou até maligno. Na taxonomía tradicional dos sete pecados capitais, isso é a preguiça. A preguiça não é mera indolência, como a inclinação para nos deitarmos e ver televisão em vez de sair e fazer os exercícios que precisamos fazer; é, em vez disso, uma espécie de paralisia, cegueira, insensibilidade, acidia ou torpor espiritual, uma incapacidade para ter consciência da presença, do amor e das exigências de Deus.23 E além do dano geral em razão do próprio estado de pecado, há também a possibilidade de um dano ou doença especial; pode acontecer de, em algumas pessoas, às vezes o sensus divinitatis não funcionar em absoluto. Além disso, os produtos do sensus divinitatis, já abafados, podem facilmente ser suprimidos e obstruídos. Isso pode acontecer de várias maneiras: por exemplo, afastando deles a nossa atenção de modo deliberado ou semideliberado. Talvez eu esteja atormentado pelo pecado perante Deus, ou talvez pelo meu desejo de viver de uma maneira que, tanto quanto consigo ver, Deus não aprova; nesse caso, posso ter a tendência (com Paul Tillich) de pensar que Deus é um objeto impessoal abstrato (“o fundamento do ser”) e não uma pessoa viva que me julga. Ou posso pensar que Deus não se preocupa com o

e energia, e na verdade toda a sua vida, ao bem-estar das outras pessoas, sem darem aparentemente qualquer importância ao destino dos seus genes? Dois mecanismos, afirma Simon: a “docilidade”, que os torna anormalmente susceptíveis a acreditar no que as outras pessoas lhes dizem (p. 1666), e a “racionalidade limitada” (p. 1667) — em palavras claras, a estupidez. 22Não faz parte do modelo afirmar que o dano provocado no sensus divinitatis de uma pessoa se deve ao pecado dessa mesma pessoa. Tal dano é como qualquer doença e deficiência: resulta em última análise das devastações do pecado, mas não necessariamente de um pecado pessoal do doente. A propósito, veja as observações de Jesus (Jo 9.1-3) sobre o homem cego de nascença. 23E esta preguiça como cegueira que C. S. Peirce encontra em David Hume: “Ultimamente, quando estava sofrendo o máximo que se pode sofrer, tentei iludir o sofrimento lendo três livros que há muito não lia, três livros religiosos: Bunyan, The prilgrim’s progress [edição em português: O peregrino (São Paulo: Mundo Cristão, 2017)]; Boethius, Consolation ofphilosophy [edição em português: Boecio, Λ consolação dafilosofia, 2. cd. (São Paulo: W M F Martins Fontes, 2013)] e Hume, Dialogues concerning natural religion [edição em português: Diálogos sobre a religião natural (Salvador: Edufba, 2016)]. Este último fez-me muito bem graças à completa cegueira do homem” (citado em Edward T. Oakes, “Discovering the american Aristotle”, First Things [Dezembro de 1993], p. 27). Desde que a preguiça (assim concebida) é (em parte) um elemento do pecado original, ela não é algo pelo qual somos completamente responsáveis.

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comportamento quotidiano de suas criaturas. O u posso vir a pensar que ele não é um Deus santo que odeia o pecado, sendo mais como um avô indulgente que sorri perante os pecadilhos infantis dos seus netos. Essa é apenas uma das maneiras pelas quais o pecado embaraça os produtos do sentido da divindade. Outra maneira pela qual este último pode ficar comprometido é por meio do testemunho (que inclui não apenas o caso em que alguém chega correndo e me diz, sem fôlego, que a minha casa está em chamas, mas também todo o percurso desde como fui criado e aculturado por pais e colegas). Talvez eu tenha sido criado para pensar que Deus não existe de modo algum, que a crença em Deus resulta de mera superstição, pertencendo à infância do gênero humano. Talvez eu leia Don Cupitt (depois de ingerir alucinógenos) e passe a encarar os crentes sérios em Deus como figuras ridículas ou dignas de pena. Talvez eu tenha sido criado para pensar que a crença teísta séria é uma neurose obsessiva universal e comece a olhar para a humanidade crente com uma espécie de superioridade divertida. Por essas razões, entre outras, ignoro as sugestões do sentido do divino, um pouco envergonhado, sem dúvida, por ver que ele se agita no meu coração. Habitualmente haverá uma interação complicada entre a culpa e o dano, entre o que se deve a meu pecado (no sentido pessoal) e o que se deve aos efeitos noéticos do pecado, que estão além do meu controle.24 Uma analogia: Thomas Reid, entre outros, observa que a ideia de verdade, como relação entre as crenças e o mundo, faz parte do nosso equipamento noético nato. Geralmente, tomamos como completamente óbvio que a verdade existe, e consideramos comumente óbvio, com respeito a qualquer crença que tenhamos, que ela é realmente verdadeira. Um certo tipo de ambiente cognitivo, porém, pode esmagar e arrasar a nossa noção de verdade, de modo que algumas pessoas em algumas circunstâncias acabam aparentemente por não desenvolver nenhum conceito de verdade — ou, o que é mais provável, têm uma maneira de pensar que manifesta conflitos profundos e submersos. Isso pode acontecer por meio de uma maneira perversa de filosofar. Nas pegadas de alguns pensadores pós-modernos, vejo, por exemplo, que o fundacionalismo clássico está profundamente errado; em seguida, porém, salto alegremente (e perversamente) para a conclusão de que a verdade é coisa que não existe (só há a minha versão, a sua versão, e assim por diante; onde estas diferem, o que resolve a questão é o poder e não a verdade). Pode acontecer de outros modos também. Costuma-se dizer que um dos resultados mais sérios da longa tirania comunista na Europa Oriental foi precisamente essa supressão da ideia de verdade. A verdade era oficialmente pervertida tantas vezes e de maneira tão cínica (por exemplo, o órgão oficial do partido comunista dedicado à disseminação dessa propaganda chamava-se ironicamente Pravda, ou seja, verdade) que as pessoas acabaram por perder a própria ideia de verdade. Mentiam às pessoas em todos os níveis 24Há também aqueles “que estão sempre aprendendo, mas nunca chegam ao pleno conhecimento da verdade" (2Tm 3.7), que tanto Paulo quanto Tertuhano dão como casos perdidos. E o caso do teólogo de lhe great divorce, de C. S. Lewis, que considera o inferno mais interessante do que o céu porque deixa mais espaço para investigações e discussões teológicas vivas e controversas (no céu há uma aborrecida uniformidade teológica...).

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de maneira absolutamente óbvia e descarada; elas sabiam que estavam ouvindo mentiras, sabiam que as pessoas que lhes mentiam sabiam que estavam mentindo e que seus alvos sabiam que elas lhes estavam mentindo, e assim por diante; o resultado foi que a própria ideia de verdade tendeu a se evaporar. As pessoas diziam fosse o que fosse que lhes desse vantagem; a questão da veracidade ou falsidade do que era dito já não sc colocava. Os produtos do sensits divinitatis podem ser comprometidos, distorcidos ou completamente suprimidos aproximadamente do mesmo modo.

B. Pecado e conhecimento A consequência cognitiva mais importante do pecado, assim, é o desconhecimento de Deus. E esse desconhecimento pode ter outras consequências cognitivas. Atualmente, e especialmente na academia, a dúvida e o agnosticismo com respeito à própria existência de Deus são onipresentes. Entretanto, não sabendo que existe uma pessoa com as qualidades comumente atribuídas a Deus, não sabemos a primeira coisa (e a mais importante) sobre nós, os outros e o mundo. Isso porque (do ponto de vista do nosso modelo) as verdades mais importantes sobre nós e os nossos semelhantes é que fomos criados pelo Senhor e dependemos completamente dele para continuarmos a existir.25 Não sabemos em que consiste a nossa felicidade e não sabemos como atingi-la. Não sabemos que fomos criados à imagem de Deus e não entendemos a importância desses fenômenos característicamente humanos que são o amor, o humor, a aventura, a ciência, a arte, a música, a filosofia, a história e assim por diante. Poderemos ;avançar um passo mais? Segundo João Calvino, “Mal nos afastamos de Cristo, nada há, por mais grosseiro ou insignificante em si, a respeito do qual não estejamos necessariamente enganados.”26 Talvez Calvino queira dizer apenas o que já observamos: quem não conhece Deus não sabe a verdade mais importante acerca de todo o resto. E possível que Calvino queira ir ainda mais longe, contudo: talvez queira dizer que quem não conhece Deus sofre uma privação cognitiva muitíssimo mais abrangente e, de fato, não tem qualquer conhecimento seja do que for. (Essa perspectiva é atribuida, correta ou incorretamente, pelo menos a alguns dos seus seguidores, por exemplo, Cornelius van Til.) Isso parece meio exagerado, em particular porque muitas pessoas que não acreditam em Deus parecem saber muito mais sobre alguns tópicos do que a maior parte dos crentes. (Será que seria sensato da minha parte afirmar, por exemplo, que sei mais lógica do que, digamos, Willard van Orman Quine, apesar de eu não ser capaz de fazer senão os exercícios de lógica mais simples, com base na ideia de que pelo menos sei í5Em relação a esse aspecto, considerem-se os desprezados criacionistas, que acreditam que o mundo tem apenas dez mil anos: são ignorantes, desgraçadamente ignorantes, c não sabem quando Deus criou o mundo. Do ponto de vista do modelo, essa ignorância nada é comparada com a de muitos dos seus detratores cultos, que tolamente acreditam que Deus não existe e portanto (como é natural) ignoram o fato muitíssimo mais importante de que o mundo foi, efetivamente, criado por Deus. 21,Commentaries on thefirst book of Moses, called Genesis, tradução para o inglês de John King (Edimburgo: Calvin Translation Society, 1847); (reimpr., Grand Rapids: Baker Book House, 1979).

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algo sobre a lógica ao passo que ele, por ser descrente, não sabe absolutamente nada nem sobre esse tema nem sobre qualquer outra coisa?) Nessa formulação, essa ideia ultrapassa em muito o que é razoável; certamente que muitos não teístas sabem algumas coisas, por exemplo, a idade aproximada que têm, ou com quem estão casados, se forem casados, e qual é a universidade em que estão empregados. (Se assim não fosse, haveria ainda mais confusão na academia contemporânea do que já há.) 1. P ecado e c e tic ism o

Há algumas perspectivas menos radicais, contudo, que têm muito a seu favor. Quem é agnóstico acerca da existência de Deus pode também ser agnóstico a respeito de sua origem e do seu lugar no universo. Nesta seção, irei argumentar que quem demonstra certo tipo de ceticismo em relação à sua origem e lugar no universo, e é capaz de apreender também certo argumento cogente, não saberá, de fato, coisa alguma; nada do que essa pessoa acredita terá aval suficiente para que seja conhecimento. Para explorar essa sugestão, podemos começar pelo filósofo escocês David Hume. Thomas Reid, o grande contemporáneo e antagonista de Hume, considerava este um cético com respeito aos objetos externos, ao eu persistente no tempo, às mentes alheias, à causalidade, ao passado e assim por diante.27Reid considera que Hume pensa que há algo de incorreto em acreditar nas coisas que é comum acreditarmos: não é que Hume se limita a declarar que de fato não sabemos tudo o que pensamos saber acerca dos objetos externos, das relações causais ou de nós mesmos. Talvez isso já fosse ruim o suficiente, mas há algo muito mais profundo. Podemos ver o que está em causa considerando o Hume da conclusão do Livro I do Tratado.28 Hume não está aqui anunciando fríamente, como um fato moderadamente interessante sobre nós, que o número das nossas crenças que constituem conhecimento é menor do que geralmente pensamos. Em vez disso, ele se encontra em uma espécie de crise existencial; simplesmente não sabe em que acreditar. Quando segue aquelas que lhe parecem ser as sugestões e instruções da razão, ele sempre acaba em um poço sem fundo, sem saber para onde se voltar: Onde estou, ou o que sou? De que causas derivo a minha existência e a que condição regressarei? A quem devo procurar agradar e de quem é a cólera que devo temer? Que seres me rodeiam? E sobre quem tenho influência, ou quem tem influência sobre mim? Fico confundido com todas essas questões, e começo a ver-me na condição mais deplorável que imaginar se possa, envolvido pelas trevas mais profundas e completamente desprovido do uso de todos os membros e faculdades (p. 269). 77Apesar de a perspectiva de Reid ter dado o tom da opinião majoritária cm matéria de exegese humiana, houve sempre uma opinião minoritária segundo a qual Hume não era realmente, afinal, um cético. Essa divergência espantosa testemunha o fato de Hume ser um enigma tenebroso: uma certa clareza de superfície esconde uma obscuridade subjacente que torna impossível qualquer interpretação confiante. 78Treatise of human nature, edição de L. A. Selby-Bigge (Oxford: Clarendon Press, 1951; publicado originalmente em 1739), p. 263ss. [edição em portugués: Tratado da natureza humana (São Paulo: Unesp, 2009)].

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Claro que isso é Hume no seu escritório, momentos antes de se apresentar para o seu famoso jogo de gamão. A própria natureza, felizmente, afasta essas nuvens de desespero: ela “cura-me desta melancolia e delírio filosóficos, seja porque relaxa essa maneira de pensar, seja porque me distrai de algum modo e afeta de maneira viva os meus sentidos, o que oblitera todas essas quimeras. Janto, jogo gamão, converso e alegro-me com os meus amigos” (p. 269). Apesar disso, a pessoa esclarecida, pensa Hume, mantém as consolações da natureza à distancia. Ela sabe que não consegue deixar de se submeter à ilusão comum, mas mantém o seu ceticismo quanto “às máximas gerais do mundo”, adotando certa distância irônica, uma atitude de desconfiada duplicidade mental: “Posso ceder, ou melhor, tenho de ceder à corrente da natureza, submetendo-me aos meus sentidos e ao meu entendímento; e nessa submissão cega mostro da maneira mais perfeita a minha disposição e princípios céticos” (p. 269). E esta a ironia da condição humana: os esclarecidos veem que o que a natureza nos leva inevitavelmente a acreditar é falso, ou arbitrário, ou na melhor das hipóteses extremamente dúbio; veem também, contudo, que mesmo os melhores de nós simplesmente não têm fibra para resistir às lisonjas da natureza. Não conseguimos deixar de acreditar naquelas “máximas gerais” ou, se o conseguimos, é só por breves períodos de tempo e em situações artificiais. Ninguém pode ter pensamentos humianos sobre a indução, por exemplo, quando está sendo atacado por um tubarão ou quando se agarra precariamente a um rochedo suspenso sobre um precipício. (Não se verá dizendo: “Bem, é claro que acredito que, se este apoio se quebrar, despenco no abismo e morro, mas mesmo assim [sorriso sardónico fugaz de autocensura] também sei que este pensamento é apenas um produto da minha natureza e, consequentemente, não é algo a ser realmente levado a sério.”) Apesar disso, em outras circunstâncias, podemos assumir uma espécie de postura desdenhosa de superioridade com respeito a esses incitamentos da natureza; em momentos reflexivos, no meu escritório, por exemplo, vejo-os como ilusões. Como criatura racional, consigo elevar-me acima deles, reconhecendo que pouco ou nada há que se possa dizer em seu favor. Na verdade, vejo mais: esse ceticismo é em si reflexivo; surge até em relação a esse mesmo pensamento; essa mesma dúvida, essa impressão de superioridade, essa consciência das ilusões que a natureza nos impõe, é em si um produto da minha natureza, sendo, portanto, tão suspeita quanto tudo o mais. O verdadeiro cético, afirma Hume, “duvidará das suas dúvidas filosóficas tanto quanto das suas convicções filosóficas” (p. 273).29 Nessas passagens, portanto, Hume não confessa descaradamente uma fraqueza ou deficiência epistêmica, como faria uma vítima de neurose ou de doença mental (“Doutor, volta e meia vejo que simplesmente não consigo acreditar que a indução continuará funcionando, ou que eu próprio existo há muito tempo, ou que há realmente outras pessoas ou objetos externos no mundo”). Não; essa posição cética múltipla, pensa ele, é de algum 29E isso conduz ao escândalo do ceticismo: se argumento a favor do ceticismo, só posso fazê-lo apoiando-me nas mesmíssimas faculdades cognitivas cuja confiabilidade é negada na conclusão do meu argumento cético.

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modo a posição coireta, a posição que um homem sensato (ou, pelo menos, um homem filosoficamente sensato) adotará. Quem continuar aceitando irrefletidamente as indicações da natureza, quem acredita irrefletidamente na conexão causai, na indução, em eus pessoais que persistem ao longo do tempo, na existência de objetos externos — quem fizer isso deve ser considerado, desse ponto de vista, um ingênuo ou um tolo, uma vítima inconsciente da própria natureza. Hume é uma espécie de presbiteriano do intelecto; todos, sábios e ingênuos sem distinção, estamos mergulhados na armadilha de um pecado original da mente (e aqui talvez possamos ver uma influência latente do calvinismo da sua juventude). Claro que Hume poderá afirmar que ele tem pelo menos a vantagem de reconhecer que (habitualmente) é uma vítima. Nesse aspecto, ele poderá se parecer com o publicano da parábola de Jesus, que tinha pelo menos a decência de confessar que era realmente um pecador. No entanto, o fato é que Hume é mais parecido com o fariseu. Ele não está confessando uma fragilidade ou limitação, com uma distante esperança de cura; está argumentando, a seu ver, a partir de uma posição de força ou pelo menos de perspicácia; são os outros, que aceitam irrefletidamente as indicações da natureza, que sofrem de limitação intelectual. Mais do que isso: são irracionais, do ponto de vista de Hume, uma vez que a razão, cuidadosamente preservada da influência corruptora das atitudes quotidianas, impõe-nos aquele ceticismo. Não aceitar o ceticismo é não seguir a razão, é ir contra os seus ensinamentos e, nesse sentido, é cair na irracionalidade. Ora, Thomas Reid discorda de Hume (pelo menos de Hume tal como ele próprio, Reid, o entende) precisamente nesse ponto. Reid considera que Hume é como Descartes: pensa que os produtos da percepção, da memória, da indução, da empatia, do testemunho e de qualquer outra faculdade devem ser validados perante o tribunal da razão e da consciência. Ou seja, não podemos razoavelmente confiar em nenhuma dessas faculdades até se demonstrar que são confiáveis por meio de um argumento que satisfaça duas condições. Primeira, o argumento deve partir de premissas autoevidentes (como as verdades elementares da aritmética) ou dos produtos da consciência: proposições sobre a minha própria mente, como a de que tenho a impressão de ver um cavalo, ou a de que algo vermelho aparece para mim, ou de que acredito que as Ilhas Orkney ficam a norte de Aberdeen. Segunda, cada um dos passos do argumento deve ser autoevidentemente válido. Ora, Descartes pensava que as outras fontes de crença defato podem ser legitimadas pela razão e pela consciência. Quis estabelecer primeiro a confiabilidade da própria razão, apresentando uma prova por raciocínio (prova racional) de que fomos criados por um Deus benevolente que não é enganador (e aqui caímos no inquietante círculo cartesiano), mas Deus seria enganador se o mundo não fosse aproximadamente como as nossas faculdades perceptivas o revelam. Reid pensa que Descartes está enganado em vários pontos; o ponto para nós interessante, contudo, é a confiança de Descartes na ideia de que a confiabilidade dessas outras fontes pode ser estabelecida pela razão. Foi preciso o labor da filosofia moderna de Descartes a Hume, pensa Reid, para mostrar que isso é de fato uma quimera, um fogo-fátuo; não se pode, simplesmente, fazer isso. (O insucesso inevitável desse projeto cartesiano foi assim inteiramente evidente para

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Reid cerca de duzentos anos antes de Rorty e Quine considerarem esse insucesso uma razão para proclamar a morte da epistemología [Rorty30] ou a sua transmutação em psicologia empírica [Quine31].) Pois bem, uma reação seria avaliar essa condição como algo interessante e talvez até moderadamente lamentável, mas sem real importância: essas outras fontes de crença são perfectamente aceitáveis, independentemente de conseguirmos ou não encontrar argumentos daquele tipo a favor da sua confiabilidade. O Hume de Reid, contudo, adota uma tática muito diferente: ele considera que é um sinal de tolice, erro ou engano (ou, no mínimo, parte integrante da deplorável condição humana) aceitar o testemunho de qualquer fonte cuja veracidade não tenha sido (ou, pior, não possa ser) estabelecida por meio da consciência e da razão. Ele conclui, consequentemente, que o caminho racional é rejeitar essas crenças (dado que não podemos demonstrar da maneira em questão que as suas fontes são confiáveis), ainda que, por causa dos decretos imperiosos da natureza, não consigamos efetivamente seguir essa austera prescrição. Isso parece a Reid uma completa arbitrariedade: O cético me pergunta: “Por que você acredita na existência do objeto externo que você percebe?”. Essa crença, senhor, não é da minha lavra. Veio da forja da Natureza, conserva a sua imagem e assinatura e, se não for correta, a culpa não é minha: tudo o que fiz foi confiar nela, e sem suspeita. A razão, diz o cético, é o único juiz da verdade, e deveriamos renunciar a toda opinião e toda crença que não se fundamentem na razão. Mas por que havería eu, senhor, de acreditar na faculdade da razão mais do que na da percepção? Ambas vieram da mesma oficina e foram criadas pelo mesmo artesão; e se ele pôs um pedaço de material falso nas minhas mãos, o que o impediría de pôr outro?32 Penso que Reid está aqui substancialmente certo; o cético humiano é arbitrário.33 Todavia, não é este o lugar para se discutir esse aspecto: o que quero sustentar, em vez disso, é que Hume tem uma razão diferente para adotar seu ceticismo, uma razão partilhada por qualquer pessoa que concorde com ele com respeito ao agnosticismo acerca da nossa origem e da origem das nossas faculdades cognitivas. Suponhamos que, por qualquer razão, abandonamos a ideia de que fomos criados por uma divindade benevolente. Talvez adotemos em seu lugar, como Hume, um agnosticismo completo: não há nenhuma maneira de saber se há algum ser com os atributos de Deus, nenhuma maneira de saber se há um ser divino que criou o mundo, nenhuma maneira, na verdade, de saber

30Veja o seu Philosophy and the mirror of nature (Princeton: Princeton University Press, 1979) [edição cm português:yífilosofia e 0 espelho da natureza (Bonsucesso: Relume Dumará, 1994)]. 31Como em “Epistemology naturalized”, in: Ontological relativity and other essays (New York: Columbia University Press, 1969). 32Thomas Reid, Inquiry and essays, edição de Keith Lehrer, Ronald E. Bean-blossom (Indianapolis: BobbsMerrill, 1975), p. 84-5 [edição em português: Invest igação sobre a mente humana segundo osprincípios do senso comum (São Paulo: Vida Nova, 2013)]. 33Mas talvez não seja inteiramente arbitrário; veja Warrant: the current debate, p. lOOss.

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coisa alguma acerca da origem última do mundo ou da origem última de nós mesmos e das nossas faculdades cognitivas. “A nossa experiencia”, afirma, “tão imperfeita em si e tão limitada tanto em extensão quanto em duração não pode fornecer-nos qualquer conjetura provável com respeito à totalidade das coisas.”34 Talvez o mundo deva sua existência a um desígnio inteligente: contudo, é igualmente provável (tanto quanto conseguimos dizer) que a deva à geração animal ou até vegetativa (talvez os cometas sejam sementes e o nosso mundo tenha nascido de um cometa); e há mil outras possibilidades, algumas esboçadas com graça e estilo nos Dialogues concerning natural religion. A conclusão de Hume35 então, ao que parece, é que Quanto a questões como esta [a cosmogonia, a origem do universo], uma centena de perspectivas contraditórias podem preservar uma espécie de analogia imperfeita, e a invenção tem aqui completa liberdade para se aplicar. Sem grande esforço mental, penso que podería, em um instante, propor outros sistemas de cosmogonia que teriam alguma aparência vaga de veracidade: apesar de a probabilidade de o seu sistema ser o verdadeiro, ou qualquer um dos meus, ser de uma em mil, ou em um milhão (Dialogues, p. 49). Pouco depois, sobre esse tópico, ele acrescenta: “Uma suspensão completa do juízo é aqui o nosso único recurso razoável” (p. 53). Entendido assim, Hume não tem ideia alguma de como o mundo chegou a ser o que é, como poderíam ter surgido criaturas radonáis como nós e qual seriam a origem e a proveniência das nossas faculdades racionais ou de produção de crenças. Voltemo-nos agora para a questão de saber se as nossas faculdades cognitivas são confiáveis e se, de fato, produzem na sua maior parte crenças verdadeiras. Dado o completo agnosticismo de Hume acerca das origens das suas faculdades cognitivas, a sua atitude profundamente agnóstica quanto a essa questão é, sob certo aspecto, um sinal de sensatez. Pois suponhamos que Hume, tomando como postas as suas perspectivas (ou, antes, ausência de perspectivas) acerca da origem e proveniência de nós mesmos e das nossas faculdades cognitivas, pergunte‫־‬se qual é a probabilidade de tais faculdades serem confiáveis. Dadas as perspectivas de Hume quanto à origem e ao propósito (se é que têm algum propósito) das nossas faculdades, qual é a probabilidade de elas produzirem uma preponderância considerável de crenças verdadeiras em comparação com as crenças falsas? Ele teria de responder que essa probabilidade é ou baixa ou inescrutável — impossível de determinar. Do seu ponto de vista, há inúmeros cenários, inúmeras maneiras pelas quais nós e as nossas faculdades cognitivas poderiamos ter surgido: talvez tenhamos sido criados por Deus, mas talvez nós e o mundo sejamos o resultado de algum tipo de princípio vegetativo, ou o resultado da copulação de animais que desconhecemos, o resultado da colocação acidental de átomos de Russell ou... Em muitos desses cenários,* *Dialogues concerning natural religion, edição de Richard Popkin (Indianapolis: Hackett Publishing, 1980), p. 45. J5Ou pelo menos a de Filo; não tenho a pretensão de resolver a questão de saber quem, em Dialogues, fala por Hume, algo que ele esconde astuciosamente.

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as nossas faculdades cognitivas não serão confiáveis (apesar de poderem contribuir para a aptidão ou a sobrevivência); talvez em outros sejam confiáveis. No computo geral, não saberiamos simplesmente o que pensar de tal probabilidade. Podemos ver isso mais claramente da seguinte maneira. Seja R a proposição de que as nossas faculdades cognitivas são confiáveis: qual é a probabilidade de R? Como observa Reid, todos acreditamos ou pressupomos instintivamente que as nossas faculdades cognitivas são confiáveis; mas qual é a probabilidade desse pressuposto à luz dos fatos pertinentes? Bem, quais são os fatos pertinentes? Primeiro, devem ser fatos acerca dessas faculdades: a probabilidade de R dada a população da China (relativamente a ela) não seria pertinente. E os fatos pertinentes seriam, provavelmente, fatos acerca de como essas faculdades surgiram: se foram o resultado de algum desígnio; se sim, quem foi o seu autor e com que fim; quais restrições regem o desenvolvimento delas e qual é o seu propósito e função, se é que realmente têm propósito e função. Foram elas, como pensava Reid, criadas em nós por um ser cuja intenção era a de que funcionassem de maneira confiável para nos dar conhecimento acerca do nosso ambiente, de nós próprios e de Deus — todo o conhecimento de que precisamos para obter shalom, para sermos o gênero de seres que Deus tinha a intenção de que fôssemos? Nesse cenário, o propósito das nossas faculdades cognitivas seria (em parte, pelo menos) fornecer-nos crenças verdadeiras acerca desses tópicos e (desde que estejam funcionando apropriadamente) haveria uma probabilidade elevada de que fizessem precisamente isso. Em outra hipótese, terão essas faculdades surgido por meio de um mecanismo aleatório, algo como a deriva gratuita dos átomos no vazio democritiano? Dada essa possibilidade, qual é a probabilidade de as nossas faculdades cognitivas serem confiáveis? Poderiamos pensar que é muito baixa. Mas é mais plausível pensar que simplesmente não podemos determinar qual seria a probabilidade: talvez seja elevada (ainda que presumivelmente não muito elevada), talvez seja baixa; simplesmente não conseguimos dizer.36 Haverá muitos outros cenários, afirma Hume, alguns envolvendo uma origem vegetativa, outros, uma origem copulativa, e outros, ainda, diferentes gêneros de origem; também com respeito a eles a probabilidade de as nossas faculdades cognitivas serem confiáveis é simplesmente inescrutável. Assim, em primeiro lugar, Hume pensa que a sua apreensão do conjunto completo dos cenários pertinentes é, na melhor das hipóteses, débil; segundo, com respeito a muitos desses cenários, dessas origens possíveis, a probabilidade de R é inescrutável; por fim, a probabilidade de qualquer um desses cenários ser de fato a verdade da questão é também, segundo Hume, perfeitamente inescrutável. No fim das contas, isso significa que a probabilidade de R, dado o agnosticismo de Hume, é também inescrutável para ele. Sejam F os fatos pertinentes acerca da origem, do propósito e da proveniência das nossas faculdades: a minha tese é que, para Flume, P(R/F)

36Não estamos pensando aqui na probabilidade pessoal baycsiana, mas em um tipo qualquer de probabilidade objetiva, 0 gênero de probabilidade que Hume tem em mente quando afirma que “a probabilidade de o seu sistema ser o verdadeiro, ou qualquer um dos meus, é de uma em mil, ou em um milhão”.

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(a probabilidade de R dado F) é inescrutável. Ele simplesmente não a conhece e não tem opl·nião alguma sobre o seu valor, apesar de este não ser presumivelmente muito elevado. Outra maneira de o exprimir: a probabilidade de R, dado o agnosticismo de Hume, c inescrutável. E isso dá a Hume razão para ser agnóstico também com respeito a R; dá-lhe uma razão para duvidar de que R seja, de fato, verdadeira. Pois as nossas faculdades cognitivas, os nossos mecanismos de produção de crenças, são um pouco como instrumentos de medida (mais exatamente, são instrumentos de medida de acordo com determinada interpretação). As nossas faculdades produzem crenças; cada crença tem o seu conteúdo, a proposição que é objeto de crença, a proposição que é verdadeira se e somente se a crença for verdadeira. Ora, acerca de um estado de um instrumento de medida (relativamente a um esquema de interpretação) também podemos dizer (em um sentido analógico estendido) que ele tem um conteúdo. Para dar um exemplo definido, pensemos em um termômetro e suponhamos que ele está indicando o número 20. Dado o esquema natural de interpretação, pode-se afirmar que o conteúdo desse estado do termômetro é que a temperatura ambiente é de 20° C. E é claro que um termômetro só será confiável se as proposições que ele produz desse modo forem na sua maior parte verdadeiras, ou quase. Imagine-se, pois, que damos início a uma viagem de exploração espacial e chegamos a um planeta que órbita em tomo de um sol distante. A atmosfera desse planeta é favorável, mas pouco sabemos dele. Abrimos a escotilha, saímos e imediatamente encontramos algo que se parece muito com um rádio; ele emite periodicamente sequências de sons que, estranhamente, formam frases em português. As frases emitidas por esse instrumento ex~ pressam proposições apenas sobre tópicos que desconhecemos: como está agora o tempo em Beijing, se César comeu ovos com torradas na manhã em que atravessou o Rubicão, se o primeiro ser humano a atravessar o Estreito de Bering e a pisar na América do Norte era canhoto, e coisas semelhantes. Excessivamente impressionados com essa descoberta, formamos inicialmente a opinião de que essa espécie de rádio fala a verdade: isto é, as proposições expressas (em português) por tais frases são verdadeiras. Mas então nos damos conta de que não temos ideia alguma acerca do propósito desse objeto que parece um instrumento; não sabemos se ele tem algum propósito nem como surgiu. Vemos que a probabilidade de ele ser confiável, dado o que sabemos acerca dele, é, para nós, inescrutável. Então (na ausência de investigações ulteriores) temos um emulador da nossa crença inicial de que o objeto fala, de fato, a verdade; temos uma razão para rejeitar essa crença, uma razão para a abandonar, para sermos agnósticos quanto a ela. Relativamente às nossas crenças acerca da origem, do propósito e da proveniência desse aparente instrumento, a probabilidade de ele ser uma fonte confiável de informação é baixa ou (mais plausivelmente) inescrutável. E isso constitui um anulador da nossa crença original e apressada de que o objeto fala realmente a verdade. Se não tivermos ou obtivermos mais informações sobre a sua confiabilidade, o curso razoável será o agnosticismo quanto a essa proposição. O mesmo acontece, penso, no caso das perspectivas (ou da ausência de perspectivas) humianas acerca das nossas origens e da origem e propósito das nossas faculdades cognitivas, se é que elas têm origem e propósito. Suponhamos que eu me junte a Hume

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nesse agnosticismo. Nesse caso, P(R/F) também é inescrutável para mim (como o é para Hume); não tenho ideia de qual é a probabilidade de as minhas faculdades serem confiáveis, dados os fatos pertinentes acerca da sua origem e propósito. O u seja, vejo-me diante de um anulador da minha crença ou pressuposto original de que as minhas faculdades são de fato confiáveis. Se não tenho ou não posso obter mais informações sobre a confiabilidade delas, os cursos mais razoáveis para mim serão o agnosticismo com respeito a R ou o simples abandono dessa proposição, o ato de não acreditar nela. Não que a racionalidade exija que eu acredite na sua negação, mas antes que não acredite nela. Suponhamos, consequentemente, que eu efetivamente seja agnóstico com respeito a R: não acredito nela nem na sua negação. E agora consideremos qualquer crença C que eu tenha: essa crença, é claro, será um produto das minhas faculdades cognitivas. Contudo, não acredito que as minhas faculdades cognitivas são confiáveis — não porque nunca pensei na questão, mas porque pensei acerca disso e vi que P(R/F) é inescrutável para mim. O que a racionalidade exige de mim com respeito a essa crença C? A resposta clara, parece, é que também estou diante de um anulador para essa crença, de uma razão para suspendê-la, para ser agnóstico com respeito a ela.Talvez não seja possível, dada a minha natureza, que eu seja agnóstico com respeito a ela pelo menos durante muito tempo; como Hume afirma, a natureza talvez não o permita. Mesmo assim, esse agnosticismo é o que a razão exige, tal como Hume sugere (ainda que por razões diferentes). E podemos dar um passo a mais ao lado de Hume. Uma vez que C é uma crença qualquer que eu tenha — porque encontrei um anulador de toda e qualquer crença que eu tenha —, encontrei também um anulador da minha crença de que encontrei um anulador de C. Esse anulador universal e multifuncional fornecido pelo meu agnosticismo é também um anulador de si próprio, um anulador que se autoanula.37 E daí esse ceticismo complexo, confuso, multifacetado e reflexivo que Hume descreve, um ceticismo em que sou cético quanto às minhas crenças e também quanto às minhas dúvidas, quanto às crenças que conduziram a essas crenças, quanto às minhas dúvidas com respeito a essas dúvidas e quanto às crenças que conduziram a elas. Assim, o verdadeiro cético será cético até o fim; “duvidará das suas dúvidas filosóficas tanto quanto das suas convicções filosóficas”. Podemos imaginar aqui a seguinte resposta: “Espere aí um minuto! Você disse que Hume e qualquer agnóstico em uma posição semelhante tem um anulador de R, uma crença que ele tem inclinação natural para aceitar — e acrescentou que o curso racional para ele é, consequentemente, abandonar a crença em R — desde que ele não disponha de qualquer outra informação acerca da confiabilidade das suas faculdades. No entanto, o que dizer dessa forte inclinação natural para acreditar que as nossas faculdades são de fato confiáveis? Não contará isso como “outra informação”? Segundo Reid (que poderia objetar a desempenhar a tarefa de defender Hume), essa crença na confiabilidade das nossas faculdades é um princípio primeiro'. 37Claro que isso levanta problemas: se tenho um anulador de anuladores (um anulador do meu anulador de R), não perco por isso mesmo o meu anulador de R? Regressarei para onde estava antes de ter adquirido o anulador de R? Não; pois o meu anulador de anuladores é também um anulador de R. Para explicações c minúcias, veja a quarta parte, seção E, “The dreaded loop”, do meu “Naturalism defeated", atualmente no prelo.

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Outro princípio primeiro é — Que asfaculdades naturais por meio das quais distinguimos a verdade do erro não sãofalaciosas (p. 275). Continua Reíd: Se alguma verdade há que se possa dizer ser anterior a todas as outras na ordem da natureza, esta parece a mais promissora; porque em todo caso de assentimento, com base em indícios intuitivos, demonstrativos ou prováveis, a verdade das nossas faculdades é tomada como avalizada... (p. 277). Há aqui verdade, certamente: a convicção de que as suas faculdades estão funcionando de maneira confiável é uma convicção que os seres humanos normais habitualmente têm e, como Reid observa com deleite, até os céticos parecem igualmente a pressupor não só no decurso da vida quotidiana, mas também, de modo mais trágico, quando propõem os seus argumentos céticos. Poucos céticos, ao oferecer os seus argumentos céticos, prefaciam o argumento com uma ressalva do seguinte tipo: “Apresento aqui um argu~ mento a favor do ceticismo geral com respeito às nossas faculdades cognitivas; dou- me conta, no entanto, de que as premissas desse argumento são, elas próprias, produzidas por faculdades cognitivas cuja confiabilidade a conclusão impugna e de cuja veracidade tenho, consequentemente, sérias dúvidas”. Todavia, a nossa questão é se é sensato usar essa crença como informação que possa anular o anulador fornecido para R pelo agnosticismo de Hume acerca da origem e proveniência de nós mesmos e das nossas faculdades. Como Reid vê claramente, isso não é possível. Se a confiabilidade geral das nossas faculdades cognitivas está em questão, não podemos ter a esperança de responder à questão de saber se são confiáveis observando que essas mesmas faculdades produzem a crença de que são, de fato, confiáveis. “Se a honestidade de alguém for posta em questão”, afirma Reid, “seria ridículo que nos fizéssemos valer da sua própria palavra para estabelecer a sua honestidade” (p. 276). Conceda-se que faz parte da nossa natureza pressupor R; conceda-se ainda que faz parte da nossa natureza aceitar R de maneira básica, de modo que aquela convicção não seja dada ou alcançada por meio de argumentos e indícios, fazendo, antes, parte da nossa constituição; conceda-se também, caso se queira, que essa crença é produzida pelo funcionamento apropriado das faculdades cognitivas. Nada disso, como é claro, pode servir para anular o anulador de R fornecido pelo agnosticismo de Hume. Isso porque qualquer dúvida sobre as nossas faculdades cognitivas em geral é uma dúvida acerca da faculdade específica que produz essa convicção; logo, não podemos neutralizar tal dúvida apelando para os produtos dessa faculdade.381

11‫־‬,O mesmo vale, o que é natural, para a ideia de tentar determinar por meios científicos se as nossas faculdades cognitivas são confiáveis; qualquer tentativa desse tipo tcria de se apoiar nas próprias faculdades cuja confiabilidade está em questão.

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2. N a tu ra lism o e fa lta d e con h ecim en to O agnosticismo com respeito às nossas origens é uma maneira de rejeitar a crença teísta de que os seres humanos foram criados à imagem de Deus: como vimos, o agnosticismo com respeito às origens destrói o conhecimento. Há outra maneira de rejeitar a crença em questão: aceitando uma crença incompatível com ela — por exemplo, o naturalismo filosófico ou metafísico. Como observa Bas van Fraassen, não é fácil dizer precisamente o que é o naturalismo;39 para os nossos propósitos, consideremos que se trata da perspectiva de que não existe Deus nem nenhum ser ou coisa que tenha os seus atributos (não se trata de acreditar, por exemplo, que há um ou mais deuses finitos). Casos paradigmáticos de naturalismo seriam as perspectivas de Daniel Dennett em Darwins dangerous idea10 ou Bertrand Russell em “A free man’s worship” [A livre adoração de um homem]: pensa-se que “o homem é o produto de causas que não previam a finalidade que estavam atingindo; que a sua origem, desenvolvimento, esperanças e medos, os seus amores e crenças, não passam de resultados das colocações acidentais de átomos”.41 (Talvez se possa ir ainda mais longe, acrescentando, com Richard Dawkins, que a própria ideia de que existe uma pessoa que tenha as qualidades atribuídas a Deus é na verdade uma espécie de vírus cognitivo, uma doença ou enfermidade epistêmica, a qual distorce a postura cognitiva daqueles que de outro modo seriam seres humanos razoáveis e racionais.42) Ao contrário de Hume, consequentemente, não se trata aqui de ser agnóstico quanto à existência da pessoa de Deus ou de um ser como ele; trata-se de pensar que isso não existe. E provável que exista outra diferença entre esta posição e a de Hume. Depois de rejeitar o teísmo, Hume não tinha qualquer história comparável para pôr no seu lugar: ficou sem qualquer ideia quanto ao surgimento da humanidade, sobre as condições em que as nossas faculdades cognitivas surgiram e assim por diante. O naturalista contemporâneo, contudo, está em uma condição diferente, pois o naturalismo cultiva agora um mito ou narrativa acerca de nós e das nossas origens, um conjunto de crenças partilhadas acerca de quem somos, de onde viemos e de como chegamos aqui. A narrativa é conhecida; serei breve. Os seres humanos entraram em cena depois de milhões, na verdade, bilhões de anos de evolução orgânica. No início, havia apenas matéria inorgânica; de algum modo, por meio de processos que hoje em dia não entendemos, a vida, apesar da sua complexidade imensa e intimidante, mesmo no nível mais básico, emergiu da matéria inanimada, 19Veja o seu “Science, materialism, and false consciousness”, in: Jonathan Kvanvig, org., Warrant in contemporary epistemology: essays in honor of P/antinga’s theory of knowledge (New York: Rowman and Littlefield, 1996). 40Edição em portugués: Λ ideia perigosa de Darwin (Rio de Janeiro: Rocco, 1998). 41In: Why lam nota Christian (New York: Simon and Schuster, 1957), p. 107 [edição em português: Porque não sou cristão (Porto Alegre: L&PM Editores, 2008)]. 42“Viruses o f the mind”, in: Bo Dahlbom, org., Dennett and his critics: demystifying mind (Oxford: Blackwell, 1993), p. 13ss. Como indício da virulência e tenacidade desse virus, Dawkins cita o fato de que Sir Anthony Kenny (uma pessoa muitíssimo instruída e sapiente) demorou bastante tempo para conseguir libertar-se dele. Outros talvez se perguntem se esse vírus é mesmo violento como Dawkins diz que é, dado que ele próprio, aparentemente, escapou da sua influência há muito tempo.

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e isso apenas por meio das regularidades estudadas na física e na química. Depois do surgimento da ‫־‬vida, a mutação genética e a seleção natural, esses motores gêmeos da evolução, entraram em ação.43 Essas mutações genéticas são aleatórias de mais de uma maneira: não são intenção seja de quem for, é claro, mas também não são dirigidas por qualquer gênero de teleología natural e não surgem a pedido do plano de desígnio do organismo. “Não respondem às necessidades do organismo” (Ernst Mayr); limitam-se a aparecer, sem explicação. Por vezes, algumas dão vantagem adaptativa; quem as tem acaba por predominar na população, de modo que essas mutações têm maior probabilidade de serem transmitidas às gerações seguintes. Assim surgiu toda a imensa diversidade de flora e fauna que contemplamos. Incluindo nós próprios e os nossos sistemas cognitivos. Esses sistemas e os mecanismos subjacentes foram também selecionados, direta ou indiretamente, no decurso da evolução. Considere-se, por exemplo, o cérebro mamífero em toda a sua enorme complexidade. Ele poderia ter sido diretamente selecionado no seguinte sentido: em cada estágio do seu desenvolvimento, o novo estágio (graças às estruturas e comportamentos que ajudou a prover) contribuiu para a aptidão e deu uma vantagem evolutiva a quem o possuía, conferindo-lhe maior probabilidade de sobreviver e se reproduzir. Alternativamente, em certos estágios, surgiram estruturas novas (ou novas modificações de estruturas antigas), não porque foram selecionadas por si mesmas, mas porque estavam geneticamente associadas a outra coisa que fo i selecionada (pleiotropia). Seja como for, essas estruturas não foram selecionadas pela tendência a produzir crenças verdadeiras em nós; em vez disso, conferiam uma vantagem adaptativa ou estavam associadas geneticamente a algo que conferia tal vantagem. Se existir, a função ou propósito último desses mecanismos de produção de crenças não será a produção de crenças verdadeiras, mas a sobrevivência — do gene, do genotipo, do indivíduo, da espécie, seja do que for. Quem é naturalista e acredita nessas coisas é o que irei denominar um naturalista comum.44No capítulo 12 de Warrant andproperfunction ( WPF), defendí que um naturalista comum é semelhante a Hume, porque tem um anulador de qualquer crença que possa lhe ocorrer — incluindo, ironicamente, o próprio naturalismo comum, de modo que o naturalismo comum é autoanulador.45 Não vou repetir esse argumento; em vez disso, aproveitarei a oportunidade para fazer algumas correções, simplificações e adendos. 4·1Vários outros mecanismos foram propostos (p. ex., deriva genética e evolução neutra), mas estes continuam sendo os favoritos. 44O livro Darwin’s dangerous idea, de Daniel Dennett, é um paradigma do naturalismo comum e também do naturalismo simpHciter, o mesmo se pode dizer de The blind watchmaker, de Richard Dawkins (edição em português: o relojoeiro cego. São Paulo: Companhia das Letras, 2001). Para censuras a Darwins dangerous idea (c à ideia perigosa de Darwin), veja o meu “Dennett s dangerous idea”, in: Books and Culture (Maio-Junho de 1996); para uma censura poderosa do primeiro, mas não do segundo, veja Jerry Fodor, “Deconstructing Dennett’s Darwin", in: Mind and Language 11, n. 3 (Setembro de 1996), p. 246- 62. 45Veja James Beilby, org., Naturalism defeated? Essays on Plantinga's evolutionary argument against naturalism (Ithaca: Cornell University Press, 2002) para objeções e comentários fascinantes a esse argumento, junto com a minha resposta.

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Primeiro, uma correção. No capítulo 12 de WPF há na realidade dois argumentos: um argumento preliminar e um argumento principal. O argumento principal sustenta a conclusão de que o naturalismo é autoanulador (e, em consequência, não é racionalmente aceitável); o argumento preliminar não sustenta essa conclusão, sendo, em vez disso, um argumento (probabilístico) simples a favor da falsidade do naturalismo. O argumento preliminar está simplesmente incorreto.46 Isso se vê da seguinte maneira. Ele começa com um argumento a favor da conclusão de que P(R/N&E8eC) é bastante baixa. R é aqui a proposição de que as nossas faculdades cognitivas são confiáveis, N é o naturalismo metafísico, E é a proposição de que as nossas faculdades cognitivas se desenvolveram por meio dos mecanismos postulados pela teoria evolutiva contemporânea e C era uma proposição que restou por especificar, que descreve os nossos sistemas noéticos. De fato, C é dispensável, de modo que irei suprimi-la. Depois de argumentar que P(R/N8cE) é baixa, prossegui: Façamos uma estimativa destas probabilidades aproximadamente deste modo: suponha-se que concordamos com a Dúvida de Darwin, considerando que P(R/N&E) é bastante baixa. Contudo, suponha-se também que pensamos, como a maior parte das pessoas, que, de fato, as nossas faculdades cognitivas são confiáveis (com as ressalvas e os cambiantes introduzidos anteriormente). Então, temos um argumento probabilístico simples contra o naturalismo — e a favor do teísmo naturalista, se pensarmos que essas são as duas alternativas significativas. Segundo o teorema de Bayes, P(N&E/R) = PÍN&E) x P(R /N&E)

P(R) onde P(N&E) é a nossa estimativa da probabilidade de N&E independentemente da consideração de R. Acreditamos em R, e por isso atribuímos-lhe uma probabilidade de 1 (ou perto disso); e consideramos que P(R/N&E) não é mais do que V2. Então, P(N&E/R) não será maior do que 1/2 vezes P(NôcE), sendo assim muito baixa. Sem dúvida que atribuiremos também uma probabilidade elevada à condicional se 0 naturalismo fosse verdadeiro, então as nossas faculdades teriam surgido da evolução natural·, nesse caso, iremos considerar que P(N/R) é também baixa. Porém, pensamos realmente que R é verdadeira; consequentemente, temos indícios contra N. Assim, a nossa crença de que as nossas faculdades cognitivas são confiáveis nos dá uma razão para rejeitar o naturalismo e aceitar a sua negação (p. 228). Ê um argumentozinho muito elegante; é uma pena que tenha um defeito grave. Eis o problema: neste argumento, confundi a probabilidade absoluta (lógica ou, pelo menos, objetiva) de R com a sua probabilidade condicional diante da nossa informação de fundo B;

46Fui ajudado aqui por Branden Fitelson c £ 0 1 ‫ ש‬Sober; veja o artigo deles, “Plantinga’s probability arguments against evolutionary naturalism”, Pacific Philosophical Quarterly 79 (1998), p. 115-29.

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ou seja, confundi P(R/B) com P(R) simpliciter. (Por uma questão de simplicidade, doravante vou suprimir também E, anexando-o a N, de modo que N passa a representar o naturalismo comum, a conjunção do naturalismo simpliciter com E.) Podemos ver o que se passa considerando o argumento das duas maneiras: primeiro, relativizando as probabilidades à luz do nosso conhecimento de fundo B e, segundo, não as relativizando. Primeira interpretação: se relativizarmos as probabilidades em questão à luz de B, a aplicação cabível do teorema de Bayes será P(N/R&B) = P(N/B) x ÍR/N&B) P(R/B) Posso aqui atribuir um valor muito alto a P(R/B), como digo na p. 234. Entretanto, não é sensato defender que P(R/N&B) é baixa. Que P(R/N) é baixa é o que defendí: não defendí que a probabilidade de R é baixa dado N mais o conhecimento de fundo. No argumento de que P(R/N) é baixa, eu estava abstraindo com base no que habitualmente pensamos que sabemos (por exemplo, o próprio R). Por isso, não posso, pelo menos sem acrescentar novos argumentos, afirmar que a probabilidade de R dado N, junto com o nosso conhecimento de fundo, é baixa. Segunda interpretação: se não relativizarmos o argumento à luz de B (nem à luz de qualquer outra coisa), a aplicação cabível de Bayes será P(N/R) = PÍN1 xP ÍR /N l P(R) como eu disse na p. 234. Porém, se estamos pensando na probabilidade absoluta de R (tendo apenas por condição as verdades necessárias), não posso afirmar (como o fiz) que P(R) é elevada: como sabería eu qual é a proporção do espaço dos mundos possíveis ocupado por mundos nos quais R é verdadeira? Em particular, o fato de R ser verdadeira defato não é razão para lhe atribuir uma probabilidade absoluta (lógica) elevada. Logo, de uma maneira ou de outra, o argumento não é bem-sucedido. Felizmente, é possível consertá-lo. Estamos comparando o teísmo (T) com N. Assim, as aplicações cabíveis de Bayes serão P(N/R) = P (N )xP ÍR /N ) P(R) e P(T/R) = P(T) x P(R ÍT) P(R)

onde estamos pensando em probabilidades absolutas ou lógicas. P(R) terá o mesmo valor nas duas expressões; assim, a questão é como

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(a) P(N) χ P(R/N) e (b) P(T) x P(R/T) se comparam em valor? Bem, P(R/N) é barxa, como defendí. Contudo, P(R/T) não é; R é exatamente o que seria de esperar, dado T. (No mínimo, não temos razão alguma para pensar que P(R/T) seja baixa.) Assim (dado que não atribuímos a N uma probabilidade absoluta muito mais alta do que atribuímos a T), devemos considerar que a probabilidade de T dado R é maior do que a de N dado R. Contudo, acreditamos, de fato, em R. Assim, temos uma razão para preferir T a N. Talvez não seja uma razão muito forte (isso não nos diz grande coisa sobre as probabilidades de T e N dada a totalidade dos nossos indícios), mas é, apesar disso, uma razão (é o mesmo gênero de razão do ateólogo para preferir o ateísmo ao teísmo, dado que ele considera improvável que um mundo criado por Deus exiba todo o mal que o mundo de fato exibe). Em essência, o argumento principal é a favor da conclusão de que P(R/N8cE&C) (que abreviarei para P(R/N); veja os parágrafos anteriores) é baixa ou inescrutável; de qualquer modo, argumentei, quem aceita N (e também compreende o argumento a favor de um valor baixo ou inescrutável de P(R/N)) tem um anulador de R. Isso induz um amolador, para essa pessoa, de qualquer crença produzida pelas suas faculdades cognitivas, incluindo a própria N; logo, o naturalismo comum é autoanulante. Ora, eu argumentei que P(R/N) é baixa ou inescrutável destacando primeiro que a seleção natural não está interessada na crença verdadeira, mas no comportamento adaptativo (entendido de maneira ampla), de modo que tudo depende da relação entre a crença e o comportamento. Apresentei então cinco possibilidades mutuamente excludentes e conjuntamente exaustivas para a relação entre a crença e o comportamento, defendendo com respeito a cada possibilidade P. que P(R /N & P) é baixa ou inescrutável, o que tem como resultado que P(R/N) é baixa ou inescrutável. Podemos simplificar abandonando duas das cinco possibilidades, ficando apenas com o epifenomenalismo, o epifenomenalismo semântico (talvez “epifenomenalismo do conteúdo” fosse uma designação mais feliz), e a perspectiva de senso comum (“psicologia popular”) da relação causai entre a crença e o comportamento. A primeira possibilidade (designemo-la de “P ”) é o epifenomenalismo, a proposição de que a crença (a crença consciente) não intervém em absoluto na cadeia causal que conduz ao comportamento. Essa perspectiva foi batizada e sugerida por T. H. Huxley (“o buldogue de Darwin”).47 47“Podemos pressupor [...] que as mudanças moleculares no cérebro são as causas de todos os estados de consciência [...] [Entretanto, há] algum indício de que esses estágios de consciência possam, inversamente, causar [...] mudanças moleculares [no cérebro] que deem origem ao movimento muscular? Não vejo qualquer indício [...] [A consciência parece] [...] não ter poder algum para mudar [o] funcionamento do corpo, tal como o apito [...] da máquina a vapor de uma locomotiva não tem qualquer influência na sua maquinaria" (T. H. Huxley, “On the hypothesis that animals are automata and its history” (1874), cap. 5 do seu Method and remits (London: Macmillan,

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Apesar de o epifenomenalismo ser contrário ao senso comum, ele é muitíssimo popular entre os entusiastas do estudo “científico” dos seres humanos. Segundo a Time, há alguns anos o eminente biólogo J. M. Smith “escreveu que nunca compreendera por que os organismos têm sentimentos. Afinal, os biólogos ortodoxos pensam que o comportamento, por mais complexo que seja, rege-se inteiramente pela bioquímica e que as sensações que o acompanham — medo, dor, admiração, amor — são apenas sombras lançadas por essa bioquímica, não sendo em si mesmas vitais para o comportamento do organismo”.48 E o mesmo se pode dizer das crenças conscientes: se “o comportamento, por mais complexo que seja, rege-se inteiramente pela bioquímica”, parece não haver espaço para que as crenças conscientes intervenham na narrativa causai; aparentemente não há maneira de as crenças conscientes terem uma palavra a dizer; elas serão causalmente inertes. Além disso, se essa possibilidade ocorresse realmente, a evolução não teria sido capaz de moldar e dar forma às nossas crenças, ou estruturas de produção de crenças, eliminando a falsidade e encorajando a verdade; pois nesse caso as nossas crenças seriam, digamos, invisíveis para a evolução. As crenças do organismo, nesse cenário (se tivesse algumas), seriam meramente acidentais do ponto de vista da evolução. Não faria qualquer diferença para o comportamento ou aptidão quais crenças os nossos mecanismos cognitivos teriam produzido porque (nesse cenário) essas crenças não desempenham qualquer papel na produção ou explicação do comportamento. Qual é então a probabilidade de R nesse cenário? Isto é, qual é a ?(R/N&Pj)? O que a confiabilidade exige, é claro, é que uma forte preponderância das nossas crenças seja verdadeira. Ora, a maior parte dos vastos conjuntos de proposições não satisfaz essa condição; com uma só exceção, qualquer conjunto vasto de crenças — pelo menos, de crenças que os seres humanos são capazes de ter — parecería tão provável quanto qualquer outro nesse cenário. Assim, não poderíamos afirmar sem medo de errar que há aqui uma probabilidade elevada de a maior parte das nossas crenças ser verdadeira. Talvez o veredito seja que essa probabilidade é relativamente baixa: por uma questão de precisão, digamos que está nas imediações de .3, ou algo assim. Alternativamente, poderiamos pensar que a atitude correta aqui é que simplesmente não podemos fazer uma estimativa dessa probabilidade, de modo que P(R/NôcPj) é inescrutável. A segunda possibilidade quanto à relação entre crença e comportamento (chamemos-lhe P2) é o epifenomenalismo semântico. De um ponto de vista naturalista, é

1893), p. 239-40. Posteriormente, no mesmo ensaio: “Tanto quanto consigo ver, a argumentação que se aplica aos brutos aplica-se igualmente bem aos homens; e consequentemente [...] todos os estados de consciência em nós, como neles, são imediatamente causados por mudanças molecuíares da substância cerebral. Parece111‫־‬e que nos homens, como nos brutos, não há prova de que qualquer estado de consciência seja a causa da mudança do movimento da matéria do organismo. [...] Somos autômatos conscientes” (p. 2 4 3 4 4 ‫)־‬. (Note-se aqui a ocorrência da forma popularíssima de argumento Não conheço qualquer prova de que não p; logo, não há qualquer prova de que não p; logo, p.) Ao contrário de Huxley, uso aqui o termo “epifenomenalismo” para denotar qualquer perspectiva segundo a qual a crença não esteja envolvida na cadeia causai que conduz ao comportamento, envolva ou não essa perspectiva o dualismo que aparentemente faz parte da versão de Huxley. ^28‫ ״‬de Dezembro de 1992, p. 41.

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razoável pensar que os seres humanos são objetos materiais.49 Suponhamos que seja isso o que eles são: nesse caso, que tipo de coisa será uma crença (talvez a crença de que o dualismo cartesiano é falso)? Presumivelmente, será alguma espécie de acontecimento nervoso ou neuronal persistente. Esse acontecimento nervoso terá propriedades eletroquímicas', o número de neurônios envolvidos; a maneira pela qual se conectam entre si, com outros acontecimentos neuronais, com os músculos, os órgãos dos sentidos e assim por diante; o ritmo e a intensidade médios dos disparos neuronais em várias partes desse acontecimento, e como mudam ao longo do tempo e em relação ao input recebido de outras áreas (chamemos-lhe a “sintaxe” da crença). E fácil ver que essas propriedades desse acontecimento neuronal teriam influência causal no comportamento. Determinada erença está conectada pelo sistema nervoso tanto com outras crenças como com os músculos; podemos ver que os impulsos elétricos advindos da crença podem exercer influência nos canais neuronais habituais, acabando por causar uma contração muscular. Ora, se essa crença for realmente uma crença, ela terá também outras propriedades, propriedades que vão além da sua sintaxe ou das suas propriedades neurofisiológicas. Em particular, terá também conteúdo', será a crença de que p, para determinada proposição p —‫־‬nesse caso, a proposição O dualismo cartesiano éfalso. Contudo, como se relaciona o conteúdo desse acontecimento neuronal — essa proposição — com a cadeia causai que leva ao comportamento?50Nesse cenário, será difícil ou impossível compreender como uma crença pode ter influência causal no nosso comportamento ou ação em virtude do seu conteúdo. Suponha-se que a crença tinha as mesmas propriedades eletroquímicas, mas um conteúdo inteiramente diferente, talvez a proposição O dualismo cartesiano é verdadeiro; teria isso feito qualquer diferença no seu papel de causar o comportamento? E difícil ver como, afinal, os mesmos impulsos elétricos viajariam ao longo dos mesmos canais, provocando as mesmas contrações musculares. As propriedades neurofisiológicas esgotaram o assunto, ao que parece, no que diz respeito à determinação causai do comportamento; não parece haver maneira de o conteúdo entrar na história. Claro, é o conteúdo das minhas crenças, e não as suas propriedades eletroquímicas, que é o locus da veracidade e da falsidade: uma crença é verdadeira unicamente se a proposição que constitui o seu conteúdo for verdadeira. No cenário epifenomenalista, consequentemente, o conteúdo da crença seria invisível para a evolução. Desse modo, o fato de termos sobrevivido e evoluído, o fato de o nosso equipamento cognitivo haver sido suficientemente bom para permitir que os nossos antepassados sobrevivessem e se reproduzissem — esse fato nada nos diria acerca da veracidade das nossas crenças ou da confiabilidade das nossas faculdades cognitivas. Diria algo acerca das propriedades neurofisiológicas das nossas crenças; nos diria que, em virtude dessas propriedades, 49Apesar de não ser fácil dizer o que é exatamente um objeto material (como sublinha Bas van Fraassen em “Science, materialism, and false consciousness”; veja nota 39). Para os nossos propósitos, não precisamos abordar esse tema; podemos simplesmente restringir nossa atenção à tese de que as crenças são acontecimentos ou processos neuronais do mesmo gênero. 50E igualmente urgente a questão de saber como é possível que esse acontecimento neuronal possa ter um conteúdo qualquer, seja ele qual for. O que atribui a esse acontecimento neuronal a proposição de que o dualismo cartesiano é falso e não, por exemplo, a proposição de que é verdadeiro, ou interessante, ou obsoleto, ou vagamente obsceno?

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essas crenças desempenharam um papel na produção de comportamento adaptativo. No entanto, nada nos diria acerca dos conteúdos dessas crenças e, consequentemente, nada nos diria acerca da sua veracidade ou falsidade. Nesse cenário, como no anterior, portanto, não seria sensato afirmar que R tem uma probabilidade elevada. Como no cenário anterior, o melhor que poderiamos dizer, penso, é que essa probabilidade é baixa ou inescrutável; P(R/NckP2) é baixa ou inescrutável, tal como ?(R/N&Pj). Por fim, qual é a probabilidade de R em vista de NôdP3, a perspectiva do senso comum (psicologia popular) quanto à relação causai entre o comportamento e a crença? Segundo a psicologia popular, a crença serve como causa (parcial) e portanto explicação do comportamento — e isso é assim explícitamente no que respeita ao conteúdo da crença. Quero uma cerveja e acredito que há cerveja na geladeira; essa crença, segundo pensamos habitualmente, explica em parte os movimentos daquele objeto grande e gordo que é o meu corpo, o qual se ergue da poltrona, desloca-se para a geladeira, abre-a e tira uma cerveja. Poderemos montar um argumento baseado nas origens evolutivas dos processos, sejam eles quais forem, que produzem essas crenças, concluindo que tais processos são confiáveis? Poderiamos argumentar, por exemplo, que essas nossas crenças estão conectadas com o comportamento de uma tal maneira que a crença falsa produziría um comportamento inadaptado, comportamento que tendería a reduzir a probabilidade de o portador da crença sobreviver e se reproduzir?51 Não. A crença falsa não garante de modo algum a ação mal adaptada. Talvez uma tribo primitiva pense que todas as coisas são vivas, ou que são gênios ou demônios; e talvez todas ou quase todas as suas crenças tenham a forma este gênio é F ou aquele demônio é G: este gênio é bom para comer, ou éprovável que aquele demônio me coma se eu lhe der essa oportunidade. Se atribuírem as propriedades certas aos gênios certos, as suas crenças poderíam ter valor de adaptação ainda que (pressupondo que os gênios de fato não existam) fossem falsas.52 Além disso, há o fato de esse comportamento, se for parcialmente produzido por crenças, ser também parcialmente produzido pelos desejos: são as crenças e os desejos, junto com outras coisas, que produzem o comportamento. Mas nesse caso é claro que podería haver muitos sistemas diferentes de crenças e desejos que dessem lugar ao mesmo fragmento de comportamento adaptativo, e em muitos desses sistemas os componentes 51É o que Quine tenta fazer: “Há algo de encorajador em Darwin. Se a disposição inata das qualidades das pessoas é um traço ligado aos genes, então a disposição que permitiu as induções mais bem-sucedidas terá tendido a predominar por meio da seleção natural. As criaturas persistentemente erradas nas suas induções têm uma tendência patética, mas louvável, de morrer antes de se reproduzirem” (“Natural kinds”, in: Ontological relativity and other essays [New York: Columbia University Press, 1969], p. 126). 32Objeção: pelo fato de as pessoas dessa tribo atribuírem as propriedades certas às coisas certas, suas crenças, em uma acepção não muito rigorosa, seriam corretas ainda que a rigor fossem falsas. Resposta: imaginando casos análogos, podemos facilmente encontrar esquemas nos quais determinadas crenças conduziríam a um comportamento adaptativo (sendo assim funcionalmente equivalentes ao comportamento do esquema verdadeiro), mas não seriam corretas, nem sequer em uma acepção não muito rigorosa. Há esquemas desse gênero, com efeito, nos quais as propriedades atribuídas são logicamente incapazes de serem exemplificadas. Os membros da tribo pensam que todos os seres naturais são gênios dotados do poder de fazer o bem e o mal; talvez, então, o que neles seria análogo a atribuir propriedades fosse a atribuição de certos tipos de gênios (e não propriedades) aos diferentes seres (um desses gênios, por exemplo, é tal que, usando a nossa linguagem, se uma coisa o tem, então essa coisa é vermelha). Nesse caso, as suas crenças não seriam corretas nem sequer na acepção acima; seriam, ao contrário, necessariamente falsas.

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da crença seriam totalmente falsos; há muitos sistemas possíveis de crenças e desejos que produzem o conjunto do meu comportamento, nos quais a maior parte das crenças é falsa. O fato de o meu comportamento (ou o dos meus antepassados) haver sido adaptativo, consequentemente, é na melhor das hipóteses uma razão de terceira categoria para pensar que as minhas crenças são verdadeiras na sua maior paite e que as minhas faculdades cognitivas são confiáveis — e isso é verdadeiro mesmo na perspectiva do senso comum da relação entre crença e comportamento. Assim, não é sensato argumentar que, do fato de o nosso comportamento (ou o dos nossos antecessores) ter sido adaptativo, conclui-se que as nossas crenças são em sua maior parte verdadeiras e as nossas faculdades cognitivas são confiáveis. Não é fácil fazer uma estimativa de P(R/N&P3); se essa probabilidade não for inescrutável, talvez seja moderadamente alta. Para conceder o máximo possível à oposição, digamos que essa probabilidade é inescrutável ou está nas imediações de .9. Note-se que o epifenomenalismo simpliciter e o epifenomenalismo semântico deciaram ou sugerem ambos que o conteúdo da crença não tem eficácia causai em relação ao comportamento; o conteúdo da crença não interfere na cadeia causal que conduz ao comportamento. Assim, talvez possamos reduzir essas duas possibilidades a uma só: a possibilidade de que o conteúdo da crença não tenha eficácia causai. Chame-se —C a essa possibilidade. O que vimos até agora é que a probabilidade de R dado N & -C é baixa ou inescrutável e que a probabilidade de R dado N&C também é inescrutável ou, na melhor das hipóteses, moderada. Ora, o que procuramos agora é P(R/N). Porque C e —C são conjuntamente exaustivas e mutuamente excludentes, o cálculo de probabilidades diz-nos que P(R/N) = P(R/N&C) x P(C/N) + P(R/N&-C) χ P(-C/N), isto é, a probabilidade de R dado N é a média ponderada das probabilidades de R dados N&.C e N & -C — ponderadas pelas probabilidades de C e -C dado N. Já observamos que o termo do lado esquerdo do primeiro dos dois produtos do lado direito da equação é ou moderadamente alto ou inescrutável; o segundo é baixo ou inescrutável. O que falta é avaliar as ponderações, os termos da direita dos dois produtos. Assim, qual é a probabiÜdade de -C dado o naturalismo comum? Qual é a probabilidade de que um ou outro dos dois cenários epifenomenalistas seja verdadeiro? Note=se que, segundo Robert Cummins, o epifenomenalismo semântico é a perspectiva habitual quanto à relação entre a crença e o comportamento.53 Isso porque é extremamente difícil conceber uma maneira, dado o materialismo, de o conteúdo de uma crença poder intervir causalmente no comportamento. Se uma crença é apenas uma estrutura nervosa de um tipo qualquer — uma estrutura que de algum modo tem conteúdo — é dificílimo ver como o conteúdo pode intervir na cadeia causal que leva ao comportamento: caso uma dessas estruturas tivesse um conteúdo diferente, é de pensar que a sua contribuição causal para o comportamento teria sido a mesma. Em contraposição, se uma crença não for 53Meaning and mental representation (Cambridge: M IT Press, 1989), p. 130.

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uma estrutura material de modo algum, mas antes um pedaço não físico da consciência, é difícil ver que haja espaço para ela na cadeia causal que leva ao comportamento; o que causa as contrações musculares envolvidas no comportamento serão estados do sistema nervoso, não havendo ponto algum em que este pedaço não físico da consciência possa dar uma contribuição causal. Por isso, é muitíssimo difícil ver como, dado N, o conteúdo de uma crença pode ter eficácia causai. Ou seja, é muitíssimo difícil ver como, dado N, o epifenomenalismo — semântico ou simpliciter — pode ser evitado. (Fizeram-se alguns esforços valiosos nesse sentido, mas as coisas não parecem promissoras.) Assim, parece que P(-C /N ) deverá ser avaliado como relativamente alta; digamos (por uma questão de precisão), .7, caso em que P(C/N) será .3. Claro que podemos facilmente estar enganados — não temos realmente uma maneira sólida de dizê-lo — , de modo que talvez a posição conservadora aqui seja a de que também essa probabilidade é inescrutável: não podemos simplesmente dizer qual é. Dado o conhecimento disponível, consequentemente, P(=C/N) é elevada ou inescrutável. E se P(-C /N ) é inescrutável, o mesmo acontece, como é natural, com P(C/N). O que significa isso no que concerne à soma desses dois produtos, ou seja, P(R/N)? Bem, temos na verdade várias possibilidades. Suponha-se que pensamos primeiro na questão do ponto de vista de alguém que não considera inescrutáveis qualquer das prohabilidades em causa. Então, P(C/N ) será nas imediações de .3, P(-C /N ) nas imediações de .7, e P(R /N & -C ) talvez nas imediações de .2. Resta-nos P(R/N&C), a probabilidade de R ser verdadeira dado o naturalismo comum junto com a perspectiva de senso comum ou da psicologia popular acerca da relação entre a crença e o comportamento. Dado que essa probabilidade não é inescrutável, aceitemos que se encontra nas imediações de .9. E dadas essas estimativas, P(R/N) será nas imediações de .41.54 Suponha-se, contudo, que consideramos que as probabilidades em causa são inescrutáveis: então; precisaremos dizer o mesmo para P(R/N). Logo, ou P(R/N) é relativamente baixa — menos do que .5, digamos — ou é inescrutável. Em qualquer um dos dois casos, contudo, não terá o naturalista comum — pelo menos aquele para quem P(R/N) é baixa ou inescrutável — um anulador de R e da proposição de que suas próprias faculdades cognitivas são confiáveis? Penso que sim. Para ver por que, temos de observar algumas analogias com casos claros. Primeiro, há as analogias que mencionei em WPF{p. 229-31); eis mais algumas. Regressemos (p. 238) àquela viagem de exploração espacial e ao dispositivo parecido com um rádio que emite sons que formam frases em português e expressam proposições cujo valor de verdade ignoramos. A princípio, inclinamo-nos a acreditar nessas proposições, no mínimo porque ficamos chocados e espantados. Depois de refletirmos cuidadosamente, contudo, damo-nos conta 54Claro que esses números são meras aproximações; outras pessoas poderíam fazer estimativas uin pouco diferentes; mas elas podem ser significativamente alteradas sem que o resultado final mude significativamente. Por exemplo, talvez o leitor pense que P(R/N6cC) é mais elevada, talvez mesmo 1; então (mantendo as outras atribuições), P(R/N) será nas imediações de .44. Ou talvez você rejeite a ideia de que P (-C /N ) é mais provável do que P(C/N), considerando-as iguais. Então (uma vez mais, mantendo as outras atribuições), P(R/N) será nas imediações de .55.

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de que nada sabemos do propósito do dispositivo, se é que o tem, ou de quem ou o que o construiu. A probabilidade de o dispositivo ser confiável, dado o que sabemos dele, é baixa ou inescrutável; e isso nos dá um anulador da crença inicial de que o dispositivo fala de fato a verdade. Considere-se outra analogia. Começamos a pensar seriamente acerca da possibilidade de sermos cérebros em cubas, sendo submetidos a experiencias por cientistas cognitivos de Alfa Centauro, de tal modo que nossas faculdades cognitivas não são, de fato, confiáveis. Por uma razão qualquer, pensamos que essa probabilidade é maior do que .5; temos, então, um anulador da nossa crença de que as nossas faculdades cognitivas são confiáveis. Suponhamos, por outra razão, que consideremos genuína essa possibilidade, mas não conseguimos fazer estimar a probabilidade de que as nossas faculdades sejam confiáveis: tanto quanto conseguimos ver, a probabilidade pode situar-se em qualquer valor entre 0 e 1. Também nesse caso há um anulador da nossa crença natural de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas. O mesmo acontece com o naturalista que se dá conta de que P(R/N) é baixa ou inescrutável. Com respeito àqueles fatores crucialmente importantes para chegar a uma perspectiva sensata sobre a confiabilidade dos seus mecanismos de produção de erenças — como foram formados e qual é o seu propósito, se é que têm algum — ele tem de conceder que a probabilidade de essas faculdades serem confiáveis é, na melhor das hipóteses, inescrutável. A menos que ele tenha outras informações/5 a atitude correta seria suspender R. Mas então o apropriado será algo como a atitude de Hume quanto às crenças. Reconheço que não consigo deixar de formar a maior parte das crenças que formo; por exemplo, não tenho o poder, agora, de suspender a minha crença de que há árvores e grama do outro lado da janela. Contudo, porque não acredito que as minhas faculdades são confiáveis (pois suspendo a crença nessa proposição), dou-me conta também de que essas crenças produzidas pelas minhas faculdades cognitivas não têm uma probabilidade mais elevada de serem verdadeiras do que de serem falsas: logo, assumo certa distância cética com respeito a elas. E porque as minhas dúvidas acerca das minhas crenças dependem, elas mesmas, das minhas crenças, assumo também certa distância cética em relação a essas dúvidas, e com respeito às crenças que deram origem a essas dúvidas, e com respeito às crenças que deram origem às dúvidas sobre as dúvidas... O naturalista comum, consequentemente, deveria juntar-se a Hume nessa mesma atitude cética, irônica, perante as suas crenças. Isso se aplica, claro, ao próprio N; por essa razão, poderiamos dizer que N é autoanulador, já que, se for aceito da maneira habitual, fornece um anulador de si mesmo, um anulador que não pode ser anulado.556 55E como podería ele ter outras informações? Qualquer informação consistiría cm uma crença que seria um produto das suas faculdades cognitivas, mas ele tem um anulador da confiabilidade dessas faculdades e, portanto, de qualquer crença produzida por elas. 56Veja o cap. 12 de JVPFe “Naturalism defeated”. O anulador não pode ser anulado porque qualquer anulador seria produzido pelas mesmíssimas faculdades ou processos de formação de crenças em questão. Por exemplo, o anulador poderia assumir a forma de um argumento, talvez para concluir que aqueles processos de produção de crenças são afinal confiáveis. Mas então eu teria o mesmo anulador para cada uma das premissas desse argumento, tal como teria um anulador da minha crença de que, se as premissas forem verdadeiras, também a conclusão o é.

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Podemos aplicar esse resultado ao caso em que sou agnóstico em relação ao naturalismo comum. Não acredito realmente nisso; ou me parece tão provável quanto a sua negação ou a sua probabilidade é inescrutável para mim. Em qualquer caso, uma vez mais, tenho um amolador de R, tal como no caso do naturalista comum. Para ver por que, considere-se uma vez mais uma analogia e, apenas para preservar a continuidade, façamos novamente a analogia com um instrumento. O leitor é confrontado com um instrumento de medida qualquer — um barômetro, por exemplo. Você acredita que esse barômetro está em uma de duas condições, C l ou C2; a probabilidade de ele estar em uma delas é, para você, inescrutável ou de cerca de .5. A probabilidade de o barômetro ser confiável, se estiver em C l, é elevada, suficientemente elevada para que, se você acreditar que o barômetro está nessa condição, aceite sem hesitar quaisquer dados por ele fornecidos. Contudo, a probabilidade de ele ser confiável, se estiver em C2, é inescrutável tanto quanto o leitor consegue ver: poderia ser elevada, mas poderia também ser baixa; você pura e simplesmente não sabe o que pensar acerca dessa probabilidade. Seria razoável aceitar os resultados desse instrumento? Penso que não. Você sabe que, se ele estiver em C l, é confiável; mas a probabilidade de ele efetivamente estar em C l é (para você) ou de cerca de .5 ou inescrutável. De qualquer modo, a atitude racional é suspender a crença de que o barômetro é confiável, não aceitando nem que o é nem que não o é. Mas então (dado que o leitor não tem qualquer outra fonte de informação), o mesmo se aplica aos resultados do barômetro: para qualquer proposição de resultado, o curso de ação racional para você seria o agnosticismo com respeito a essa proposição. O ponteiro marca 75 centímetros; mesmo assim (se não tiver outras informações), você não acreditará que a pressão atmosférica ambiente é de 75 centímetros. Claro que também não'formará uma crença incompatível com essa: suspenderá a proposição. E bastante fácil considerar que a aplicação ao agnosticismo se situa entre o teísmo e o naturalismo comum. Se eu for um agnóstico desse tipo, a probabilidade do naturalismo comum situa-se nas imediações de .5 ou é inescrutável para mim. Suponha-se o primeiro caso: que atitude devo assumir perante R? Bem, há 50% de chance de as minhas faculdades cognitivas terem sido produzidas de um modo tal que a probabilidade de R com respeito a esse modo é baixa ou inescrutável; nesse caso, contudo, tenho um amolador de R, uma boa razão para suspender a crença. Suponha-se agora o segundo caso: então, não há probabilidade alguma com respeito ao naturalismo comum que eu possa excluir. Porque a probabilidade de R dado o naturalismo comum é também inescrutável, não posso excluir qualquer probabilidade de R; em especial, não posso excluir uma probabilidade baixa para R. Mas, de novo, isso me dá um anulador da minha crença comum e instintiva em R. De qualquer modo, portanto, adquiro um anulador de R e, a menos que eu tenha ou possa obter um anulador que anule esse anulador,s7 devo ser agnóstico com respeito a R. E se sou agnóstico com respeito a R, então, como vê Hume, a atitude racional é ser agnóstico com respeito a quaisquer produtos das minhas faculdades cognitivas. Talvez eu seja incapaz, na prática, de ser agnóstico com respeito a elas, mas 0 agnosticismo é o que a racionalidade exige. Claro que reconheço também que as crenças 57E, uma vez mais (veja nota 56), como poderia eu obter tal coisa? Qualquer anulador de anuladorcs estaria sujeito ao mesmíssimo anulador que anulou R desde o início.

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usadas para chegar a esse agnosticismo — como a de que as probabilidades pertinentes são inescrutáveis — são em si mesmas produtos das minhas faculdades cognitivas e não estão em melhor situação do que qualquer outro de seus produtos. Daí esse ceticismo humiano multifacetado e reflexivo. À guisa de conclusão: os efeitos noéticos do pecado não incluem necessariamente a incapacidade para saber seja o que for; Calvino (se era isso que de fato pensava) vai longe demais. Apesar disso, algo nas suas imediações é verdadeiro. Se eu rejeitar o teísmo a fa\Or do naturalismo comum, e se vir também que P(R/N) é baixa ou inescrutável, terei um anulador de qualquer crença minha. Nesse caso, se eu formar crenças racionalmente, não sustentarei qualquer crença com suficiente firmeza para constituir conhecimento. O mesmo acontece se eu for meramente agnóstico quanto à minha origem e à origem das minhas faculdades cognitivas. Assim, a rejeição da crença teísta não produz automaticamente o ceticismo: muitas pessoas que não acreditam em Deus sabem muitas coisas. Contudo, isso é assim apenas porque não pensam com rigor nas consequências dessa rejeição. Quando o fazem, perdem o conhecimento que tinham; esse é, consequentemente, outro daqueles casos em que, quando aprendemos algo, passamos a saber menos. Neste capítulo começamos a explorar o modelo estendido estudando a natureza do pecado e algumas de suas consequências cognitivas. Essas consequências vão mais longe do que se poderia pensar; na verdade, como o pecado abala o sensus divinitatis e, consequentemente, o conhecimento de Deus, ele pode conduzir facilmente a uma condição noética na qual o que a racionalidade exige é aquele ceticismo humiano complexo e muitifacetado. No entanto, esconde-se aqui um problema difícil. Segundo o modelo A /C do capítulo 6, o conhecimento pressupõe um funcionamento apropriado das faculdades, e o conhecimento de Deus, em específico, pressupõe um funcionamento apropriado do sensus divinitatis. De acordo com o modelo estendido, entretanto, esse processo de produção de crenças foi prejudicado pelo pecado, de modo que já não funciona apropriadamente: como poderemos então (nesse modelo) ter conhecimento da existência e do caráter de Deus? No próximo capítulo, voltamo-nos para a questão de saber como a crença especificamente cristã, e não apenas a crença genericamente teísta, pode ter aval; ao responder a essa questão, veremos também como se repara o sensus divinitatis.

O modelo Aquino/Calvino estendido: revelado aos nossos espíritos O próprio Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus (Rm 8.16). No capítulo 6, propus um modelo — o modelo Aquino/Calvino (A/C) — segundo o qual a crença em Deus pode ter os três status epistêmicos positivos de que temos tratado: justificação, racionalidade (tanto externa quanto interna) e aval. O que dizer da crença específicamente cristã, a crença não apenas em Deus, mas na Trindade, na encarnação, na ressurreição de Cristo, na expiação, no perdão dos pecados, na salvação, na regeneração, na vida eterna? A tarefa principal deste capítulo é estender o modelo A/C para abranger essas crenças, para mostrar de que maneira também elas podem ter aqueles status epistêmicos positivos. No capítulo 7 apresentei preliminarmente esse modelo estendido. Um dos elementos do modelo A /C estendido é o pecado e suas consequências epistêmicas; a maior parte do capítulo 7 foi dedicado a desenvolver essa característica do modelo. Neste capítulo, volto-me para os elementos centrais do modelo: como podemos considerar que a panoplia completa da crença cristã, com todas as suas particularidades, tem justificação, racionalidade interna e externa e aval? Como podemos considerar que essas crenças — algumas das quais, como David Hume adorava observar, são inteiramente contrárias à experiência humana comum — são razoáveis ou racionais, quanto mais que têm aval, ou aval suficiente para o conhecimento? O material para uma resposta está à mão. Aliás, tem estado à mão há vários séculos — certamente desde a publicação de Religious affections, de Jonathan Edwards,1 e de Intitutues of the Christian religion, de João Calvino.2 Na verdade, está à mão há muito mais tempo: muito do que Calvino diz pode ser visto como um desenvolvimento de observações de Tomás de Aquino e Boaventura. Na verdade, esse material remonta ainda mais além, ao Novo Testamento, em particular ao Evangelho de João e às epístolas de Paulo. Neste capítulo, desenvolverei esse material e proporei um modelo — o modelo A/C estendido — da crença cristã avalizada: um modelo segundo o qual a crença cristã plena, 1Edição de John Smith (New Haven: Yale University Press, 1959 [originalmente publicado em 1746]). As referências seguintes a Religious affections dizem respeito às páginas dessa edição. ■Institutes of the Christian religion, edição de John T. McNeill e tradução para o inglês de Ford Lewis Battles (Filadélfia: Westminster Press, 1960 [originalmente publicado em 1559]) [edição cm português: João Calvino, A instituição da religião cristã (São Paulo: Unesp, 2008), 2 vols].

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em todas as suas particularidades, tem justificação, é racional e tem aval.3 Argumentarei, além disso, que a crença cristã pode ter justificação, ser racional e ter aval não apenas para fimdamentalistas ignorantes ou medievais iletrados, mas também para cristãos informados e instruídos do século 21, que estejam plenamente cientes de toda a artilharia preparada para combater a crença cristã desde o Iluminismo. Argumentarei que, se a crença cristã for verdadeira, ela é racional e tem aval para a maior parte das pessoas que a aceitam. Refutarei portanto a ideia muito difundida de que a crença cristã não tem um status epistêmico positivo, ainda que, de algum modo, seja verdadeira. Se eu tiver razão, os ateólogos não poderão de maneira sensata afirmar: “Não sei se a crença cristã é verdadeira ou não (quem poderia saber tal coisa?); apesar disso, sei que não é racional (ou não tem aval, ou não tem justificação, ou não tem justificação racional, ou não é intelectualmente respeitável, ou...)”. Por uma questão de precisão, vou seguir determinada maneira tradicional de pensar acerca do nosso conhecimento da verdade cristã. Acredito que essa maneira de pensar, ou outra semelhante, está de fato muito próxima da verdade pura e simples; é fácil construir outros modelos que se harmonizem com outras tradições. O meu modelo estendido terá mais uma característica: completará e aprofundará a explicação anterior (cap. 6) do nosso conhecimento de Deus. Os temas centrais desse modelo estendido são a Bíblia, o testemunho interno do Espírito Santo e a fé. Começarei fazendo uma sinopse rápida dos elementos essenciais do modelo estendido. Segundo o modelo (como vimos no cap. 7), os seres humanos foram criados à imagem de Deus: fomos criados tanto com os afetos apropriados como com conhecimento de Deus e da sua grandiosidade e glória. Em razão da maior calamidade que afetou o gênero humano, contudo, caímos no pecado, uma condição ruinosa que exige salvação e redenção. Deus propôs e instituiu um plano de salvação: a vida, o sofrimento e morte expiadores e a ressurreição de Jesus Cristo, a segunda pessoa da Trindade que se fez carne. O resultado para nós é a possibilidade de salvação do pecado e uma relação renovada com Deus. Ora (e aqui chegamos à extensão específicamente epistemológica do modelo), Deus precisava de uma maneira de nos informar — de informar os seres humanos em diferentes tempos e lugares — do esquema da salvação que graciosamente disponibilizou.4 Sem dúvida que poderia tê-lo feito de muitas maneiras diferentes; na

3Alguns parentes contemporâneos e antepassados desse modelo foram apresentados em Stephen Davis, Risen indeed (Grand Rapids: W. B. Eerdmans Publishing, 1993); William Abraham, “The epistemological significance o f the inner witness o f the Holy Spirit”, Faith and Philosophy 7, n. 4 (Outubro de 1990); C. Stephen Evans, The historical Christ and the Jesus o f faith (Oxford: Clarendon Press, 1996); o meu The twin pillars of Christian scholarship (Grand Rapids: Calvin College, 1989); e o meu “Christian philosophy at the end of the 20th century”, in: Sander Griffioen; Bert Balk, orgs., Christian philosophy at the close of the twentieth century (Kampen: Kok, 1995), p. 29-53. ",Não faz parte do modelo sugerir que as crenças específicas acerca de Jesus Cristo são uma condição necessária da salvação: os patriarcas do Velho Testamento, por exemplo, são considerados heróis da fé no Novo Testamento (Hb 11) apesar do fato de não terem, presumivelmente, crenças explícitas acerca de Jesus Cristo. Confiavam que Deus fazia tudo o que era necessário para a sua salvação e shalom, mas não tinham qualquer ideia específica quanto ao que isso poderia ser. Além disso, não faz parte do modelo afirmar que todas as pessoas que acreditam nessas coisas começaram a acreditar nelas por meio dos processos propostos no modelo: talvez, por exemplo, os apóstolos tenham começado a acreditar nessas verdades de uma maneira muito diferente.

O MODELO AQUINO/CALVINO ESTENDIDO: REVELADO AOS N O SSO S ESPÍRITOS

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prática, escolheu fazê-lo por meio de um processo cognitivo com três partes. Primeiro, tratou da produção da Escritura, a Bíblia, uma biblioteca de livros ou escritos, cada um deles com um autor humano que foi também especialmente inspirado por Deus, de tal modo que o próprio Deus é o seu principal autor. Assim, a biblioteca, no seu todo, tem um só autor principal: o próprio Deus. Nessa biblioteca, ele nos propõe várias crenças e modos de agir, mas há um tema e foco centrais (e é por essa razão que essa coleção de livros é em seu todo um só livro): o evangelho, a impressionante boa nova da salvação que Deus ofereceu graciosamente.5 Em correlação com a Escritura e como fato necessário para que esta possa servir apropriadamente ao seu propósito, temos o segundo elemento deste processo cognitivo em três fases: a presença e a ação do Espírito Santo prometido pelo próprio Cristo antes da sua morte e ressurreição6 e invocado e celebrado nas epístolas do apóstolo Paulo.7 Pela obra do Espírito Santo nos corações daqueles a quem a fé é dada, as devastações provocadas pelo pecado (incluindo o dano cognitivo) são reparadas gradual ou subitamente e em maior ou menor grau. Além disso, é pela obra do Espírito Santo que os cristãos passam a apreender, acreditar, aceitar, defender e regozijar-se na verdade das coisas grandiosas do evangelho. Assim, é em virtude dessa ação do Espírito que o cristão acredita que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mun= do, não levando em conta as transgressões dos homens” (2Co 5.19). Segundo João Calvino, a obra principal do Espírito Santo é a produção (nos corações dos crentes cristãos) do terceiro elemento do processo, af é . Tal como a regeneração da qual é parte integrante, a fé é uma dádiva; é dada a quem quer que esteja disposto a aceitá-la. A fé, diz Calvino, é “um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco, fundado na verdade da promessa livremente dada em Cristo, revelado aos nossos espíritos e selado nos nossos corações por meio do Espírito Santo” (Instituías III, ii, 7, p. 551). A fé envolve portanto um elemento explícitamente cognitivo; é um conhecimento, diz Calvino — o conhecimento da existência da redenção e da salvação pela pessoa e obra de Jesus Cristo — e é revelada aos nossos espíritos. Ter fé, consequentemente, é conhecer e, portanto, acreditar em algo. Entretanto (como veremos no cap. 9), a fé envolve também a vontade: é “selada nos nossos corações”. Em virtude dessa selagem, o crente não só tem conhecimento do esquema da salvação que Deus preparou (segundo o livro de Tiago [2.19], os demônios também sabem disso e estremecem) mas também 5Mas será que os estudos acadêmicos histórico-críticos da Escritura dos últimos duzentos anos não puseram fortemente em dúvida a confiabilidade da Bíblia e a tese de que ela foi especialmente inspirada por Deus? Essa sugestão propõe um emulador da crença cristã e é o tema do cap. 12. 6Por exemplo, João 14.26: “Mas o Consolador, o Espírito Santo a quem o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que eu vos tenho dito”. Veja também João 14.11 e 15.26: “Quando vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que procede do Pai, esse dará testemunho acerca de mim...”. 7Por exemplo, Efésios 1 .1 6 1 9 ‫ ־‬: “Não cesso de dar graças por vós, lembrando-mc de vós nas minhas orações, para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê o espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele”. E lCoríntios 2 .1 2 1 3 ‫ ־‬: “Não temos recebido o espírito do mundo, mas, sim, o Espírito que vem de Deus, a fim de compreendermos as coisas que nos foram dadas gratuitamente por Deus.Também falamos dessas coisas, não com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas com palavras ensinadas pelo Espírito Santo...".

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está agradecido de todo coração ao Senhor por essa salvação, e ama-o por isso. Esse selo, além disso, envolve também a função executiva da vontade: os crentes aceitam a dádiva ofertada e comprometem-se com o Senhor a conformar a vida deles à vontade divina, a viver uma vida de gratidão.8 Mas não será isso apenas o sancionar de um fundamentalismo ultrapassado e desacreditado, essa condição menor do que a qual, segundo muitos acadêmicos, nenhuma outra pode ser concebida? Estou plenamente ciente que a temida palavra que começa com “f ” será pronunciada para estigmatizar qualquer modelo desse gênero. Antes de responder, contudo, devemos olhar primeiro para o uso do termo “fundamentalista”. No uso acadêmico contemporâneo mais comum do termo, ele é insultuoso ou de desaprovação, como “filho da mãe”, mais exatamente “filhadamãe”, ou talvez ainda mais exatamente (pelo menos segundo as autoridades que consideram que o interior do país é normativo em matéria de pronúncia) “fidamãi”. Quando o termo é usado desse modo, habitualmente não vem acompanhado de definição alguma. (Se fosse chamar alguém de “filho da mãe, sentir-se-ia obrigado a definir a expressão primeiro?) Apesar disso, o significado de “fundamentalista” (nesse uso muito difundido atualmente) é um pouquinho mais complexo: não é apenas um termo insultuoso. Além da sua força emocional, ele tem algum conteúdo cognitivo e habitualmente denota perspectivas teológicas relativamente conservadoras. Isso torna o termo mais parecido com “seu burro fidamãi” (ou talvez “seu fascista fidamãi”) do que com “fidamãi” simpliciter. Tampouco estes últimos termos esgotam todos os seus significados, contudo, porque o conteúdo cognitivo de “fundamentalista” pode expandir-se e contrair-se a contento; ele parece depender de quem o usa. Nas bocas de alguns teólogos liberais, por exemplo, o termo tende a denotar qualquer pessoa que aceite o cristianismo tradicional, incluindo Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino e Karl Barth; e nas bocas de secularistas devotos como Richard Dawkins ou Daniel Dennett, tende a denotar qualquer pessoa que acredite que Deus exista. A explicação é que o termo tem certo elemento indexical: o seu conteúdo cognitivo é dado pela expressão “consideravelmente à direita, do ponto de vista teológico, de mim e dos meus amigos esclarecidos”. O significado completo, consequentemente (nesse uso), é mais ou menos equivalente a “seu burro fidamãi cujas opiniões teológicas se situam consideravelmente à direita das minhas”. Por isso, é difícil levar a sério a acusação de que as perspectivas que estou sugerindo sejam fundamentalistas; mais exatamente, é difícil levá-la a sério como acusação. Essa suposta acusação significa apenas que essas perspectivas são bem mais conservadoras do que as do objetor, junto com certa expressão de repugnância ou pelas perspectivas em si ou por quem as sustenta. Contudo, como é que isso pode ser uma objeção seja ao que for, e por que avalizaria o desprezo e a afronta que a acompanham? Seria interessante haver 8Apresentado desse modo breve c sem desenvolvimento, esse modelo pode parecer indevidamente individualista. No entanto, é claro que o modelo não exclui cm absoluto a importância da comunidade cristã e da igreja para a crença do cristão individual. E a igreja ou comunidade que proclama o evangelho, guia o neófito em seu caminho e apoia, instrui, encoraja e edifica os crentes de todos os gêneros e condições.

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algum tipo de argumento contra essas perspectivas conservadoras; a mera observação de que elas são diferentes das do objetor (mesmo que acompanhada dessa força emocional injuriosa) não é argumento nenhum. De que modo esse modelo, com o seu excurso pela teologia, oferece uma resposta à questão epistemológica? Como poderá ele deixar claro que a crença cristã tem ou poderia ter justificação, racionalidade e aval? A resposta é a coisa mais simples do mundo. Essas crenças não surgem no cristão apenas por meio da memória, da percepção, da razão, do testemunho, do sensus divinitatis ou de qualquer outra das faculdades cognitivas com as quais os seres humanos foram originalmente criados; surgem antes pela obra do Espírito Santo, que nos faz aceitar essas verdades grandiosas do evangelho e causa em nós essas crenças. Elas não surgem apenas por meio da operação normal de nossas faculdades naturáis; elas são uma dádiva sobrenatural. Ainda assim, o cristão que recebeu essa dádiva da fé, é claro, terá justificação (no sentido básico do termo) para acreditar no que acredita; nada haverá de contrário ao seu dever epistêmico, ou a qualquer outro dever seu, pelo fato de ele acreditar desse modo (na verdade, depois de aceitar a dádiva, talvez ele já não tenha poder para suspender a crença). Dado o modelo, contudo, as crenças em questão terão tipicamente também (ou pelo menos com frequência) os outros status epistêmicos positivos que estamos considerando. Primeiro, serão internamente racionais:9 constituirão uma resposta doxástica apropriada ao que é dado ao crente por meio da sua crença prévia e da sua experiência atual. Em outras palavras, a resposta do crente é tal que uma pessoa funcionando apropriadamente com a mesma experiência atual e as mesmas crenças prévias poderia formar as mesmas crenças, ou crenças semelhantes, sem comprometer o funcionamento apropriado. No entanto, as crenças em questão são também tipicamente dotadas de racionalidade externa. Não é preciso que haja qualquer disfunção cognitiva a partir da experiência (veja p. 132) nos crentes, mas também não é preciso que haja disfunções a montante', é perfectamente possível que todas as faculdades cognitivas do crente estejam funcionando apropriadamente. Por último, de acordo com o modelo, essas crenças terão também aval para os crentes: serão produzidas neles por um processo de produção de crenças10 que funciona apropriadamente em um ambiente cognitivo adequado (aquele para o qual fomos concebidos) segundo um plano de desígnio que visa com êxito à produção de crenças verdadeiras.

,Para a noção de racionalidade interna, veja p. 132. 10E claro que esse processo de produção de crenças não é exatamente como os outros — a memória, a percepção, a razão e até o sensus divinitatis. Isso porque estes outros fazem, todos, parte do nosso equipamento cognitivo original, ao passo que (segundo o modelo) os processos cognitivos nesse caso envolvem uma atividade especial, sobrenatural, da parte do Espírito Santo. Entretanto, isso não significa de modo algum que os seus produtos não possam ter aval em absoluto ou não possam ter aval suficiente para o conhecimento. Significa, sim, que a concepção de aval de Warrant and properfunction deve ser entendida de modo que uma crença possa ter aval mesmo que seja resultado de um processo de produção de crenças desse tipo especial. É verdade que um processo assim, sendo uma atividade divina direta, não pode deixar de funcionar apropriadamente; podemos, portanto, dizer que funciona apropriadamente no sentido limite do termo.

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L A FÉ

A fé é a garantia do que se espera e a prova do que não se vê (Hb 11.1). Concluímos assim a explicação inicial do modelo; volto-me agora para um desenvolvimento mais pormenorizado de alguns dos seus aspectos, começando com a fé. A primeira coisa a notar é que esse termo, como quase qualquer termo filosoficamente útil, é empregado de várias maneiras, com sentidos diferentes, mas analógicamente interligados. Segundo Mark Twain, a fé é "acreditar no que sabemos que não é verdadeiro”; isso exagera apenas um pouco um uso comum do termo para denotar uma crença que não tem aval e, na verdade, é improvável com respeito ao que tem realmente aval para o crente. Quando uma mãe acredita, contra todas as provas, que o seu filho está de fato vivo, dizemos que ela tem fé em que ele está vivo. E associado a esse uso que se pensa no “salto de fé”, que é como um salto no escuro. Em um segundo uso do termo, ele denota uma confiança vaga e generalizada, sem um objeto específico, uma confiança de que tudo correrá bem, uma espécie de indiferença bultmanniana com respeito ao futuro, confiando que seremos capazes de enfrentar seja o que for que aconteça. Ter fé nesse sentido é “aceitar o universo”, como se disse que Margaret Fuller, a transcendentalista do século 19, declarou ter feito.11 Ao estabelecer o modelo, contudo, estou usando o termo em um sentido diferente de qualquer dos anteriores. O meu sentido está muito mais próximo daquele que o Catecismo de Heidelberg (seguindo João Calvino) atribui à “verdadeira fé”: A verdadeira fé não é apenas o conhecimento e convicção de que tudo o que Deus revela na sua palavra é verdadeiro; é também uma certeza profundamente entranhada — criada em mim pelo Espírito Santo por meio do evangelho — de que, pela pura graça que Cristo conquistou por nós, não apenas os pecados dos outros, mas também os meus pecados foram perdoados, minha relação com Deus foi retificada para sempre e ganhei a salvação (0^21). Podemos entender que essa concepção torna mais explícito o conteúdo da definição de fé feita por Calvino nas Instituías (veja p. 257). A primeira coisa a notar é que a fé, entendida desse modo, é uma atividade cognitiva. Não é apenas uma atividade cognitiva; envolve também a vontade, tanto os afetos como a função executiva. (E um conhecimento revelado aos nossos espíritos e também selado nos nossos corações.) Apesar disso, ainda que a fé seja mais do que cognitiva, é também e pelo menos uma atividade cognitiva. E uma questão de acreditar (“conhecimento”, diz Calvino) em algo. Os cristãos, desse ponto de vista, não se limitam a encontrar a sua identidade na narrativa*

”Ao que Thomas Carlyle retorquiu: “Por Zeus! É bom mesmo que ela o aceite!”. Mark Twain, por sua vez, afirmou não ter ouvido dizer que o Universo lhe fora oferecido.

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cristã, vivendo-a ou não;12 acreditam nela, consideram que a narrativa é a verdade pura e simples. Ora, aquilo em que acreditamos são proposições. Ter fé, consequentemente, é (no mínimo) acreditar em algumas proposições. Quais? Não, por exemplo, que o mundo é um lugar em que os seres humanos podem florescer; nem mesmo, especialmente, que Deus existe.13 Na verdade, nesse modelo não é realmente pela f é que sabemos que Deus existe. A fé é antes, diz Calvino, o “conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco”; ou seja, um conhecimento firme e certo de que “não apenas os outros, mas também os meus pecados foram perdoados, minha relação com Deus foi retificada para sempre e ganhei a salvação”; ou seja, um conhecimento firme e certo do plano de Deus pelo qual os seres humanos caídos podem atingir shalom, florescimento, bem-estar, felicidade, bem-aventurança, salvação, e tudo isso depende essencialmente de nos relacionarmos corretamente com Deus.14 Assim, o objeto proposicional da fé é todo o magnífico esquema de salvação que Deus concebeu. Ter fé é saber que Deus tornou possível que os seres humanos escapassem às devastações do pecado, restaurando a nossa relação correta com ele, e saber como Deus tornou isso possível; é, consequentemente, um conhecimento das linhas principais do evangelho cristão.15 O conteúdo da fé é apenas a doutrina central do evangelho;16 encontra-se na interseção dos grandes credos cristãos. Além disso, o que está em questão na fé não é apenas saber que há um tal esquema (como vimos, os demônios acreditam nisso e estremecem), mas também, e mais

12Nesse aspecto, o modelo difere (aparentemente) da teologia pós-moderna de Yale de Hans Frei {The eclipse of biblical narrative [1974] e The identity of Jesus Christ [1975]) e de George Lindbeck (7he nature of doctrine: religion and theology in a postliberal age [1984]), que dá destaque ao papel da Bíblia na vida cristã, mas é bem reticente quanto ao fato de as suas doutrinas aparentes — a criação, o pecado, a encarnação, a expiação, a ressurreição de Cristo — deverem ou não ser tomadas como efetivamente verdadeiras. (Veja, por exemplo, p. 143-5 de The identity of Jesus Christ.) Essa reserva quanto à verdade é também o elemento “pós-liberal”da teologia de Yale; segundo o nosso modelo, contudo, é desnecessária. O modelo foi concebido para demonstrar que a crença direta, completa e sem rodeios nas coisas grandiosas do evangelho pode ter as virtudes epistêmicas que estamos considerando. 13“Compreender a fé”, diz Calvino, “não é apenas uma questão de saber que Deus existe [...] mas também — e especialmente — saber qual é a sua vontade com respeito a nós. Pois o mais importante não é saber quem ele é em si, mas antes o que ele quer ser em relação a nós” (p. 549). 14Considero que essa é uma definição ou descrição da fé feita por meio da apresentação de um paradigma de fé: completamente formada e bem desenvolvida, a fé será assim. Desse modo, por exemplo, uma pessoa que acredita nessas coisas, mas sem a firmeza suficiente para que tenha conhecimento delas, ainda assim terá fé. 15Assim, nem todas as coisas em que um cristão típico acredita (como cristão) serão, a rigor, parte da fé. Por exemplo, ele pode acreditar que Jesus Cristo fez milagres, que Deus é onisciente, que a Bíblia é uma palavra especialmente inspirada pelo Senhor, que a fé naturalmente dá origem a boas obras; nenhuma dessas coisas é, em si, um elemento do conteúdo da fé. (Não se trata de modo algum de diminuir a importância delas; além disso, o conteúdo da fé pode fazer parte das razões que as pessoas têm para acreditar nelas.) Ao especificar assim o conteúdo da fé, não estou de forma alguma tentando especificar todas as crenças cuja aceitação é necessária para ser um verdadeiro cristão. 16No nosso modelo, consequentemente, a fé é um pouco mais restrita do que na explicação da verdadeira fé do Catecismo de Heidelberg (veja p. 254), que inclui a convicção de que “tudo o que Deus revela na sua palavra é verdadeiro”. Deus presumivelmente não se limita, na sua palavra, a revelar as verdades grandiosas do evangelho; revela mais do que isso. Por exemplo, Jesus transforma a água em vinho, cura os endemoninhados e ressuscita Lázaro dos mortos; estas não são verdades centrais do evangelho, apesar de se relacionarem com elas e de as ilustrarem.

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importante, que esse esquema se aplica a mim e está disponível para mim.17 Assim, o que conheço, na fé, são as linhas mestras da doutrina específicamente cristã — junto, poderiamos dizer, com a sua instanciação universal em relação a mim. Cristo morreu pelos meus pecados, possibilitando assim que eu me reconciliasse com Deus. A fé é inicial e fundamentalmente prática', é um conhecimento da boa nova, da sua aplicação a mim e do que devo fazer para receber os benefícios que ela proclama. Apesar disso, a fé em si é uma questão de crença e não de ação; é acreditar em algo e não fazer algo. II. C o m o o p e r a a f é ?

A resposta principal é que a fé é uma obra — a obra principal, segundo Calvino — do Espírito Santo; é produzida em nós pelo Espírito Santo. A ideia de que a crença nas “coisas grandiosas do evangelho” (para usar a expressão de Jonathan Edwards) é resultado de uma obra especial do Espírito Santo é muitas vezes vista como uma doutrina peculiar de pensadores calvinistas como Edwards e do próprio João Calvino. Ela é, realmente, elemento central da doutrina deles, de modo que, quanto a isso, o nosso modelo segue suas pegadas. Nesse ponto, contudo, como em tantos outros, pode-se considerar que Calvino, apesar de alardear seu incessante combate contra os papistas pestilentes e suas ofensas colossais, segue e desenvolve uma linha de pensamento que já se encontrava em Tomás de Aquino. “O crente”, diz Tomás, “tem motivo suficiente para acreditar porque é incitado pela autoridade da doutrina divina confirmada pelos milagres e, além disso,pela instigação interna do convite divino”} %Aqui está (pelo menos em estado embrionário) o mesmo trio de processos: há a crença, há a doutrina divina (dada na Escritura) que é o seu objeto e há também a atividade divina especialmente envolvida na produção da crença (“a instigação interna do convite divino”).19*1 17Veja Calvino, III, ii, 16, p. 561: “Eis aqui, efetivamente, a articulação central em torno da qual gira a fé: não encaramos as promessas de perdão que Deus oferece como verdadeiras apenas no que não nos diz respeito, mas, em vez disso, apropriamo-nos delas, abraçando-as internamente”. Como veremos no próximo capítulo, há outros aspectos que marcam a distinção entre o que os demônios sabem e o que sabe a pessoa de fé: esta, ao contrário deles, também conhece a beleza, a graciosidade e o esplendor desse plano de salvação; além disso, ela o ama, o aprova de todo o coração, está grata por ele e compromete-se a amar o Senhor e confiar nele. ™Summa Theologiae II-II, q.2, a.9, resposta ob. 3 (grifo meu). Segundo Tomás, consequentemente a fé é produzida nos seres humanos pela ação de Deus: “pois uma vez que, ao assentir às coisas da fé, a pessoa é elevada acima da sua natureza, ela obtém esse assentimento de uma fonte sobrenatural que a influencia; esta fonte é Deus. O assentimento da fé, que é a sua atuação principal, consequentemente, tem Deus como causa, movendo-nos interiormente pela graça” (5ΤΊΙ-ΙΙ, q.6, a.l, respondeo). 1,Calvino identifica explícitamente a terceira pessoa da Trindade como o ator divino em questão, ao passo que Tomás, não; porém essa diferença não é momentosa. Segundo Tomás, alguns dos itens propostos por Deus como objeto de crença podem ser também objetos de scientia; quando o são, não são aceitos por fé, pois não é possível, pensa ele, ter simultaneamente scientia e fé com respeito à mesma proposição. Uma vez que o termo scientia é muitas vezes traduzido por “conhecimento”, isso faz parecer que Calvino contradiz Tomás quando afirma que a fé é um conhecimento seguro e certo da benevolência de Deus para conosco. As aparências são, contudo, enganadoras, e não há aqui a menor contradição. Scientia para Tomás é uma relação muito especial entre uma pessoa e uma proposição; é uma relação que ocorre quando a pessoa vê que a proposição se segue de primeiros princípios que ela vê que são verdadeiros. Assim, “scientia” é muito mais restrito do que o nosso termo “conhecimento”. L· também mais restrito do que o termo “cognitio” de Calvino, que está muito mais próximo do uso contemporâneo de “conhecimento”.

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O que está realmente em causa quando um crente aceita as coisas grandiosas do evangelho, consequentemente, são três coisas: a Escritura (a doutrina divina), o convite interno ou instigação do Espírito Santo e a fé, a crença humana que daí resulta. Que tipo de fenomenología está envolvida nesse processo epistêmico? Qual é a sua aparência interior? De acordo com o modelo, as crenças que constituem a fé são tipicamente tomadas como básicas; isto é, não são aceitas por meio de argumentação, a partir de outras proposições ou com base evidenciai em outras proposições. Claro que elas poderíam ser aceitas com base em outras proposições, e talvez o sejam em alguns casos. Um crente poderia raciocinar da seguinte maneira: há fortes evidências históricas e arqueológicas a favor da confiabilidade da Bíblia (ou da igreja, ou dos meus pais, ou de qualquer outra autoridade); a Bíblia ensina as coisas grandiosas do evangelho; logo, é provável que elas sejam verdadeiras. Um crente poderia raciocinar desse modo, e talvez alguns crentes de fato raciocinem assim. No entanto, no modelo as coisas são diferentes. Lemos a Escritura ou algum texto que apresente a sua doutrina, ou ouvimos uma pregação do evangelho, ou os nossos pais nos falam dela, ou encontramos uma doutrina da Escritura como conclusão de um argumento (ou até como objeto de ridículo), ou encontramos de outro modo a proclamação da Palavra. O que aí se diz simplesmente parece correto; parece convincente; de repente nos vemos dizendo “Sim, está certo, essa é a verdade; isso é realmente a palavra do Senhor”. Leio “Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo” e penso: “Certo, é verdade; Deus realmente estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo!”. E posso também pensar algo um pouco diferente, algo acerca dessa proposição: que ela é uma doutrina ou revelação divina; que, nas palavras de Calvino, ela é “de Deus”. O que ouvimos ou lemos parece clara e obviamente verdadeiro e (pelo menos em casos paradigmáticos) parece também ser algo que o Senhor visa ensinar (como Calvino diz, “o Espírito [...] é o único corretor e aprovador adequado da doutrina, selando-a nos nossos corações de modo que possamos saber com certeza que é Deus quem fala. Pois apesar de a fé ter o dever de procurar Deus, só ele pode ser a sua própria testemunha, para convencer os nossos corações de que o que os nossos ouvidos recebem emana dele”). Assim, a fé pode ter a fenomenología que ocorre quando vemos subitamente que algo é verdadeiro: “Certo! Agora vejo que isso é realmente verdadeiro e é uma doutrina do Senhor!”. Ou talvez a convicção surja lentamente e apenas depois de um longo e difícil estudo, reflexão, discussão ou oração. Ou talvez seja uma questão de a crença ter estado presente desde sempre (desde a infância, talvez), sendo agora transformada, renovada e intensificada, tornando-se vivida e viva. Esse processo pode ocorrer de mil maneiras; em cada caso, há uma apresentação ou proposta da doutrina cristã central e, como resposta, o fenômeno de se deixar convencer, de passar a ver, de formar uma convicção. Há a leitura ou a escuta e depois há a crença ou convicção de que o que lemos ou ouvimos é verdadeiro e é uma doutrina do Senhor. Quando Calvino afirma que a verdade c um conhecimento seguro e certo da benevolência de Deus para conosco, não está atribuindo à fé um status que Tomás lhe nega. Sobre esse tema, veja Arvin Vos, Aquinas, Calvin & contemporary protestant thought (Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 1985), p. 1 8 2 0 ‫־‬.

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Segundo o modelo, essa convicção surge por meio da atividade do Espírito Santo. Calvino fala aqui do “testemunho” interno e (mais frequentemente) do “testemunho” do Espírito Santo; Tomás, da “instigação” e “convite” divinos. O modelo inclui a escritura e a atividade divina que conduz à crença humana. O próprio Deus (segundo o modelo) é o autor principal da Escritura. Essa é a mensagem mais importante, uma comunicação de Deus à humanidade; a Escritura é uma palavra do Senhor.20 Mas então isso é apenas um caso especial do processo onipresente do testemunho, pelo qual, de fato, aprendemos a maior parte daquilo que sabemos.21 Desse ponto de vista, a Escritura é uma questão de testemunho, exatamente como uma carta que recebemos de um amigo. O que se propõe que acreditemos na Escritura, consequentemente, é apenas testemunho — um testemunho divino. E por isso que o termo “testemunho” é apropriado nesse contexto. Contudo, há também a obra especial do Espírito Santo que nos faz acreditar, permitindo-nos ver a verdade do que é proposto. Nesse caso, os termos de Tomás, “convite” e “instigação”, são mais apropriados. Empregarei consequentemente a expressão “instigação interna do Espírito Santo” para denotar essa atividade do Espírito de Deus e (desde que não cause confusão) usarei o termo “fé” para denotar tanto o processo tríplice (a Escritura, a instigação interna do Espírito Santo e a crença nas coisas grandiosas do evangelho) como o último membro desse trio. Assim, a Escritura é realmente um testemunho, ainda que de um tipo muito especial. Primeiro, a principal testemunha é Deus. Ela difere também do testemunho comum porque, nesse caso, ao contrário da maior parte dos outros, há uma testemunha principal e testemunhas subordinadas: os autores humanos.22 Há ainda outra diferença: é a instigação do Espírito Santo, nesse modelo, que nos faz ver e acreditar que as proposições da Escritura são realmente a palavra do Senhor. Esse caso difere também do caso habitual de testemunho pois o Espírito Santo não só escreve a carta (inspira apropriadamente os autores humanos)23 mas também faz algo de especial para permitir que acreditemos e nos apropriemos de seu conteúdo. Desse modo, esse testemunho não é um testemunho comum, mas nem por isso deixa de ser um testemunho. Segundo o modelo, consequentemente, a fé é uma crença nas coisas grandiosas do evangelho que resulta da instigação interna do Espírito Santo.

20Nesse modelo (para a maior parte dos teólogos cristãos do século 20), não é que a revelação ocorra apenas por meio de acontecimentos que devem ser apropriadamente interpretados. Sem dúvida que isso ocorre de fato, mas grande parte da Escritura é centralmente um discurso de Deus dizendo-nos coisas que precisamos saber, comunicando-nos proposições. Veja Nicholas Wolterstorff, Divine discourse (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), para uma explicação específica de como a Bíblia pode constituir um discurso divino e uma comunicação divina conosco. Por uma questão de precisão, irei incorporar no modelo a proposição de que uma explicação nos moldes da de Wolterstorff está de fato correta (claro que outras explicações poderíam também servir no modelo). 21Veja Warrant andproperfunction (WPP), p. 77ss. 22A maior pustc deles acontece às vezes com os testemunhos humanos nos quais uma pessoa fica encarregada de falar por outra e, nesses casos, há a mesma estrutura entre a testemunha principal e a subordinada. Veja Wolterstorff, Divine discourse, p. 38ss. 22Em Atos 28.25, Paulo diz: “O Espírito Santo falou a verdade aos vossos antepassados quando disse por meio do profeta Isaías: ‘Vai a este povo e diz [...] de maneira alguma...’” (Is 6.9,10).

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III. Fé e s t a t u s

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epistêm ico po sitiv o

A. Justificação Estou propondo esse modelo como um modelo em que a crença cristã tem as virtudes epistêmicas ou o status epistêmico positivo que nos interessa: justificação, racionalidade, tanto interna quanto externa, e aval. A justificação não nos ocupará muito tempo. Poucas dúvidas haverá de que a crença cristã pode estar e provavelmente está justificada (deontologicamente), e justificada mesmo para alguém que conheça bem o Iluminismo e os objetores pós-modernos. Se a crença resulta da instigação interna do Espírito Santo, pode parecer obviamente verdadeira mesmo depois de o crente refletir sobre os vários gêneros de objeções que são levantadas. E claro que, nesse caso, ele não está violando quaisquer obrigações intelectuais ao aceitá-la. Sem dúvida que há obrigações e deveres intelectuais nas imediações; quando nos damos conta de que outros discordam de nós, por exemplo, talvez tenhamos o dever de dar atenção a eles e às suas objeções, o dever de pensar outra vez, refletir mais profundamente, consultar outros, procurar e considerar outros amoladores possíveis. Se, contudo, o leitor fez isso, mas mesmo assim considera a crença completamente convincente, não está violando nenhum dever ou obrigação — especialmente se lhe parecer, depois de refletir, que a doutrina em questão advem do próprio Deus. Claro que alguns autores objetam que, se uma pessoa tem fé (como no modelo) e pensa que a sua crença advém de Deus, ela é arrogante (e por isso não tem justificação). Entre os mais expressivos, encontramos o teólogo John Macquarrie: O calvinista acredita que ele próprio, como um dos eleitos, foi salvo desse mar de erro e que o seu espírito foi iluminado pelo Espírito Santo. Contudo, por mais que insista que foi obra de Deus e não sua, a sua afirmação é uma das mais arrogantes de todos os tempos. E esse tipo de coisa que valeu à teologia, corretamente, o desprezo de homens sérios.24 O primeiro impulso do calvinista poderá ser o de reagir perguntando quem ou o que Macquarrie confere a ele a veracidade quando discorda da maior parte da humanidade em questões religiosas (como, evidentemente, ele o faz): a sua própria capacidade cognitiva e sagacidade inata? A penetração e a perspicácia que ele mesmo desenvolveu? E essa atribuição a si própria seria menos arrogante do que atribuir o esclarecimento à obra do Espírito Santo? Em vez de persistir nessa reação pouco promissora, contudo, pensemos mais sobriamente na acusação. Primeiro, note-se que a princípio a acusação parece não se dirigir necessariamente a alguém que tenha realmente sido iluminado pelo Espírito Santo, mas sim a alguém que acredite que o foi. Sem dúvida que foi o Espírito Santo a operar nos corações dos patriarcas e de outras pessoas plenas de fé que Hebrcus 11 1APrinciples o f Christian theology (New York: Charles Scribner, 1966,1977), p. 50.

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menciona; mas presumivelmente eles não tinham conhecimento do Espírito Santo e nem sequer desconfiavam que as suas crenças se deviam à atividade dele. Assim, talvez a ideia de Macquarrie seja que não há problema em saber algo que os outros não sabem, mas não é correto acreditar que o sabemos atribuindo o nosso conhecimento ao Espírito Santo. Sua crítica não se dirige necessariamente a uma pessoa que aceite a doutrina cristã (ainda que tal pessoa realmente tenha sido, como no modelo, iluminada pelo Espírito Santo), e sim a alguém que, aceitando aquele capítulo da teologia reformada segundo o qual o Espírito Santo ilumina só alguns de nós, pensa ser um dos iluminados. E a crítica é que tal pessoa passou culposamente a se ter em alta conta, mais do que deveria. No capítulo 13 examinaremos melhor essa acusação de arrogância; por ora, seja-me permitido perguntar apenas o seguinte: suponhamos que você acredite haver sido favorecido pelo Senhor de uma maneira pela qual os outros não o foram: segue-se necessariamente que você seja arrogante? Você reconhece que em certo aspecto da vida está em uma situação melhor do que outras pessoas: talvez tenha um casamento feliz, ou talvez os seus filhos se saíram bem, ou talvez goze de boa saúde enquanto um bom amigo sucumbe ao melanoma. E suponhamos que você atribua pelo menos parte da diferença à atividade de Deus. Por acaso então você se torna automaticamente arrogante? Mas não seria arrogante se, em vez disso, você considerasse que a diferença não se deve a Deus e sim a uma manifestação, por exemplo, de sua força de vontade, de suas virtudes ou de sua sabedoria? Suponhamos que você acredite saber algo que outra pessoa não sabe — talvez Macquarrie pense que ele, ao contrário de seus amigos calvinistas, sabe que a perspectiva calvinista da fé está errada. Será ele arrogante por causa disso? Se não for, acaso não o é porque não atribui a sua boa fortuna a Deus, mas a talvez à própria sensatez inata? Isso não parece nada promissor. O fato é que não há arrogância nenhuma envolvida no reconhecimento de que Deus nos deu algo que não deu (ou ainda não deu) a todos. Os seres humanos são, de fato, tentados pela arrogância, e muitas vezes sucumbem a ela; apesar disso, não somos arrogantes só por reconhecer que Deus nos deu uma coisa boa que não deu a todos (pelo menos ainda). (Pode acontecer de ficarmos tão perplexos quanto os outros pelo fato de termos sido nós os recipientes da dádiva.) A arrogância estaria envolvida, sem dúvida, se considerássemos que tínhamos direito a essa dádiva, sendo Deus injusto se não a concedesse. No entanto, não somos culpados se acreditarmos que a nossa fé é uma dádiva do Senhor e se repararmos que nem todas as pessoas a receberam ainda. Na verdade, a atitude correta aqui não é nem de longe uma admissão triste de que fomos arrogantes ao acreditar; é, antes, a gratidão e o agradecimento por essa dádiva maravilhosamente grandiosa.25 Quando ouviu falar da ressurreição de Jesus Cristo, o apóstolo Tomé declarou: “Se eu não vir o sinal dos pregos nas mãos e não puser o meu dedo no seu lado, de maneira nenhuma crerei” (Jo 20.25). Mais tarde, Jesus apresenta-se a Tomé, convidando-o a ver as marcas dos pregos e a nelas pôr a sua mão. Tomé passa a acreditar — dizendo-lhe então 25Veja o meu “Ad de Vries”, The Christian Scholar’s Review 19, η. 2 (1989), ρ. 1 7 1 8 ‫־‬.

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Jesus: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20.29). Sem dúvida que há aqui diversos ensinamentos; mas um dos aspectos centrais dessa frase, sem dúvida, é que aqueles a quem a fé foi dada são realmente bem-aventurados. A sua fé é uma dádiva que exige uma alegre gratidão, e não uma falha moral que exija um arrependimento envergonhado. Quem tem fé, consequentemente, tem justificação (ou pode muito bem tê-la), segundo o modelo. E mesmo para além do modelo: como podería alguém não ter justificação, não ter o direito epistêmico de acreditar naquilo que, após cuidadosa reflexão e investigação, lhe parece não ser outra coisa senão a verdade?

B. Racionalidade interna A racionalidade interna (veja p. 132) tem um aspecto duplo: por um lado, exige o fimcionamento apropriado da parte do sistema cognitivo que está “a partir da experiência”; por outro, exige mais genericamente que tenhamos feito todo o possível, ou pelo menos que nos tenhamos esforçado, com respeito à formação da crença em questão.24*26 Vimos em que medida essa crença se harmoniza com outras crenças nossas, entregamo-nos à necessária procura de anuladores, consideramos as objeções encontradas, trocamos idéias com pessoas inteligentes e informadas e assim por diante. Claramente, no modelo (e mesmo sem o modelo), uma pessoa que aceita as crenças cristãs em questão pode facilmente satisfazer essas condições. Suponha-se que a minha experiência seja do gênero que acompanha o testemunho do Espírito Santo (e no cap. 9 veremos melhor o que essa experiência envolve) de modo que as coisas grandiosas do evangelho pareçam poderosamente plausíveis e convincentes para mim: então (desde que eu não tenha anuladores não anulados dessas proposições) nada haverá de disfuncional ou contrário ao funcionamento apropriado na aceitação dessas crenças. Na verdade, dadas essas experiências, seria disfiincional não formar tais crenças. E suponha-se que eu considere cuidadosamente as objeções que as pessoas levantam, consulte outras pessoas, pergunte como as crenças em questão se harmonizam com o resto das minhas crenças e tudo o mais: fica claro que terei feito a minha parte em relação à formação dessas crenças. No modelo testemunhai, consequentemente, a crença cristã goza tanto de justificação quanto de racionalidade interna.27

24Pode parecer que essa exigência de racionalidade interna ocupa o mesmo território da justificação. E realmente ocupa, se de fato houver deveres intelectuais que prescrevam o comportamento exigido pela racionalidade. Mesmo que esses deveres não existam, contudo, a racionalidade interna demanda mesmo assim o comportamento em questão. 27Contudo, não há várias teorias diferentes da encarnação e da expiação (por exemplo)? Não discordam os cristãos acerca disso? Então, quais das muitas idéias sobre a encarnação e a expiação são de fato racionais? A questão é deslocada. Há muitas teorias diferentes sobre como as pessoas conseguem pensar; apesar disso, é óbvio para muitos de nós que algumas pessoas pensam (pelo menos às vezes). Há muitas teorias sobre a natureza dos números; apesar disso, é óbvio que 7 + 5 = 12. Podemos acreditar muito apropriadamente na Expiação ainda que não consigamos ver exatamente como ela funciona e embora não abracemos teoria alguma; pode também acontecer que sejamos racionais ao acreditar na Expiação, mas não ao acreditar em uma teoria específica da Expiação.

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C. Racionalidade externa e aval: a fé é um c o n h e c im e n to A parte da definição de fé de Calvino que é especialmente surpreendente hoje em dia é que, do seu ponto de vista, a fé é na verdade um caso especial de conhecimento (“um conhecimento seguro e certo”; compare-se também a explicação da verdadeira fé no Catecismo de Heidelberg, na p. 254). A fé não é contrária ao conhecimento: a fé (pelo menos em casos paradigmáticos) / conhecimento, um tipo especial de conhecimento. E especial pelo menos de duas maneiras. Primeiro, quanto ao seu objeto: o que é supostamente conhecido é (se for verdadeiro) de impressionante importância, certamente a coisa mais importante que qualquer pessoa poderia saber, mas é também incomum, por causa do modo pelo qual esse conteúdo é conhecido: é conhecido por meio de um processo cognitivo ou um mecanismo de produção de crenças extraordinário. A crença cristã é “revelada aos nossos espíritos” quando o Espírito Santo nos induz a acreditar na mensagem central da Escritura. O processo de produção de crenças é dual, envolvendo tanto a Escritura inspirada por Deus (talvez diretamente, ou talvez à cabeça de uma cadeia testemunhai) como a instigação interna do Espírito Santo. Ambas implicam a atividade especial de Deus. Se a fé é uma maneira tão extraordinária de ter uma crença, por que chamar-lhe “conhecimento” de todo em todo? O que há nela que a torna um caso de conhecimento? Precisamos olhar aqui um pouco mais profundamente para o modelo. O crente encon* tra as verdades grandiosas do evangelho; em virtude da atividade do Espírito Santo, percebe que essas coisas são realmente verdadeiras. E a primeira coisa a ver é que, nesse modelo, a fé é um processo ou atividade de produção de crenças, como a percepção ou a memória. E um dispositivo cognitivo, um meio pelo qual a crença, e a crença em certo conjunto específico de tópicos, é produzida com regularidade e de maneira regular.28 Nesse aspecto, é parecida com a memória, a percepção, a razão, a empatia, a indução e outros processos mais comuns de produção de crenças. Difere delas porque envolve também a ação direta do Espírito Santo, de modo que a causa imediata da crença não se encontra apenas no nosso equipamento epistêmico natural; há também a atividade especial e sobrenatural do Espírito. Apesar disso, a fé é um processo de produção de crenças. Ora, como vimos no capítulo 7, para que haja conhecimento é necessário que uma crença seja produzida por faculdades ou processos cognitivos que estejam funcionando apropriadamente, em um ambiente epistêmico apropriado (tanto máxi quanto mini), segundo um plano de desígnio que vise à verdade, e que, além disso, vise-a com êxito. Ora, segundo esse modelo, aquilo em que acreditamos por fé (as crenças que constituem a fé) satisfaz essas quatro condições. Primeiro, quando essas crenças são aceitas por fé e resultam da instigação interna do Espírito Santo, elas são produzidas por processos cognitivos funcionando 28Apesar de esta regularidade ser típica dos processos cognitivos, não é realmente necessária; veja a minha resposta a Lehrer em J. Kvanig, org., Warrant in contemporary epistemology (New York: Rowman and Littlefield, 1996), p. 332ss.

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apropriadamente;27*29 não são produzidas por uma disfunção cognitiva qualquer. A fé, a totalidade do processo que a produz, foi específicamente concebida pelo próprio Deus para causar esse efeito — tal como a visão, por exemplo, foi concebida por Deus para produzir certo tipo de crenças perceptivas. Quando ela produz realmente esse efeito, está consequentemente funcionando como deve funcionar; assim, as crenças em questão satisfazem a condição da racionalidade externa, que é também a primeira condição do aval. Segundo, de acordo com o modelo, o maxiambiente em que nos encontramos, incluindo a contaminação cognitiva produzida pelo pecado, é precisamente o ambiente cognitivo para o qual esse processo foi concebido. O miniambiente típico é também favorável. Terceiro, o processo foi concebido para produzir crenças verdadeiras;30 e quarto, as crenças que produz — a crença nas coisas grandiosas do evangelho — são de fato verdadeiras; a fé é um processo confiável de produção de crenças, de modo que o processo em questão visa com êxito à produção de crenças verdadeiras. A confiabilidade não exige apenas, é claro, que essas crenças sejam verdadeiras. Um termômetro encravado nos 22° C não é confiável mesmo que estivesse em algum lugar — San Diego, por exemplo — onde está sempre 22° C. O que o termômetro faria se as coisas fossem diferentes (o que faria em mundos possíveis apropriadamente próximos) é igualmente cabível; um processo ou instrumento só é confiável se puder produzir um resultado verdadeiro em condições diferentes. No nosso modelo, essa condição também é satisfeita. O Espírito Santo não opera apenas por acidente ou aleatoriamente, havendo mil maneiras pelas quais, mesmo que as condições fossem diferentes, o Espírito Santo teria produzido os resultados efetivamente produzidos. E claro que quaisquer circunstâncias nas quais ele produz esse resultado são circunstâncias nas quais esse resultado é verdadeiro; logo, nessas circunstâncias, ele teria produzido um resultado verdadeiro. Em que condições o Espírito Santo seria malsucedido, com respeito a determinada pessoa, não cumprindo a obra de lhe permitir ver a verdade das coisas grandiosas do evangelho? O modelo não precisa assumir posição quanto a essa questão, mas faz parte de muitas doutrinas cristãs tradicionais a ideia de que uma condição necessária para que eu receba a dádiva da fé é a minha anuência, estar disposto a aceitar a dádiva, estar preparado para recebê-la. Há neste processo uma contribuição que eu próprio devo dar, uma contribuição que, por outro lado, tenho a faculdade de sonegar. Segundo esse modelo, como mecanismo de produção de crenças, a fé envolve um elemento sobrenatural: envolve Deus fazendo algo em especial, diretamente e bastante fora do comum. Compromete isso a tese de que os produtos da fé constituem conhecimento? Não consigo ver como o faria. Na explicação original não se sugeriu que os mecanismos cognitivos devem todos ser naturais, seja o que for exatamente que isso 27Uma ressalva: como Andrew Dole observa em “Cognitive processes, cognitive faculties, and the Holy Spirit in Plantinga’s warrant series” (no prelo), não é óbvio que possamos transferir diretamente as condições necessárias e suficientes do aval das crenças produzidas por faculdades para as crenças produzidas por processos. 30Apesar de esse não ser necessariamente o único propósito. Talvez as crenças produzidas tenham outras virtudes além da veracidade: talvez nos permitam ter uma relação pessoal com Deus, enfrentar as vicissitudes da vida com equanimidade, usufruir do conforto que resulta naturalmente da crença que constitui a fé e assim por diante.

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signifique.Terá a explicação de ser revista porque a fé não opera apenas por meio das leis. ou regularidades da natureza, funcionando, em vez disso, por meio da livre cooperação de uma pessoa — o próprio Deus — cujo discurso na Escritura é, evidentemente, livre, tal como a ação do Espírito Santo ao revelar e selar as verdades grandiosas do evangelho? Uma vez mais, não consigo ver o porquê. O mesmo se aplica ao mecanismo a que Thomas Reid chama “testemunho”, um mecanismo pelo qual aprendemos com os outros; também esse mecanismo funciona (frequentemente) por meio do livre agir humano livre (se você me pergunta qual é a minha idade, posso [livremente] lhe dizer ou, porque fiquei ligeiramente irritado, posso recusar-me livremente a fazê-lo). Então, por que a fé constitui conhecimento? Porque o que acreditamos por meio da fé satisfaz as condições conjuntamente suficientes e separadamente necessárias do aval. Se o grau de aval (que, dada a satisfação das condições anteriores, é determinado pela firmeza ou força da crença) for suficientemente elevado, as crenças em questão constituirão conhecimento.31

IV.

B a s ic id a d e a p r o p r ia d a e o pa pel d a E sc r it u r a

Segundo o modelo, a crença cristã não é, tipicamente, a conclusão de um argumento (o que não significa que os argumentos não possam desempenhar um papel importante na sua aceitação),32 nem é aceita com base evidenciai em outras crenças, nem é aceita apenas porque constitui uma boa explicação de um tipo qualquer de fenômeno. As crenças cristãs específicas podem, realmente, constituir excelentes explicações de alguns fenômenos (vem-nos à mente aqui a doutrina cristã do pecado), mas não são aceitas por fornecerem tais explicações. Nem são aceitas como conclusão de um argumento que parte da experiência religiosa. Segundo o modelo, determinado tipo de experiência está, sim, intimamente associado à formação da crença cristã avalizada, mas a crença não obtém o seu aval por meio de um argumento que parte da experiência. Não se trata de o crente reparar que ele ou outra pessoa tem determinada experiência e concluir de algum modo, com base nisso, que a crença cristã tem de ser verdadeira. Trata-se antes (como no caso da percepção) de a experiência ser a ocasião para a formação das crenças em questão, desempenhando um papel causai na sua gênese (um papel regido pelo plano de desígnio). Consequentemente, no caso típico, a crença cristã é imediata; forma-se de maneira básica. Não ocorre por meio de um argumento que parta, por exemplo, da confiabilidade da Escritura ou da igreja. Como escreve Jonathan Edwards, “A evidência que as pessoas espiritualmente iluminadas têm acerca da verdade das coisas da religião é uma evidência intuitiva e imediata. Essas pessoas acreditam que as doutrinas da palavra de Deus são divinas porque veem nelas o divino”.33A crença cristã é básica; além disso, a crença cristã 31Segundo a concepção de conhecimento desenvolvida em WPF. Deixo como trabalho de casa o problema de mostrar como modificar o modelo para acomodar as outras concepções importantes do aval. 32Por exemplo, nos anuladores refutantes: veja a seguir, cap. 11. 33John E. Smith, org.,A treatise concerning religious affections (New Haven: Yale University Press, 1959 [publicado originalmente em 1746]), p. 298. As referências seguintes a Religious affections dizem respeito a essa edição.

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é apropriadamente básica, em que o apropriado em questão inclui as três virtudes epistêmicas que estamos considerando. No modelo, o crente tem justificação para aceitar essas crenças do modo básico e é racional (tanto interna quanto externamente) ao fazê-lo; além disso, as crenças podem ter aval, aval suficiente para o conhecimento, quando são aceitas da maneira básica.34 A minha crença cristã pode ter aval, e aval suficiente para o conhecimento, ainda que eu não conheça uma boa defesa histórica da confiabilidade dos autores bíblicos ou das suas doutrinas, nem seja capaz de a empreender. Não preciso de uma boa defesa histórica da veracidade das doutrinas centrais do evangelho para que tenha aval ao aceitá-las. Não preciso ser capaz de encontrar um bom argumento, histórico ou não, para a ressurreição de Jesus Cristo, ou para a ideia de que ele é o divino Filho de Deus, ou para a tese cristã de que o seu sofrimento e morte constituem um sacrifício expiador pelo qual podemos ser reconduzidos à relação correta com Deus. No modelo, o aval da crença cristã não exige que eu ou qualquer outra pessoa tenhamos esse tipo de informação histórica; o aval está acima de tais questões. Não precisa ser validado ou provado por uma fonte de crença externa à fé, como a investigação histórica. Em vez disso, a Escritura (por meio da obra do Espírito Santo) traz em si as próprias evidências; como escreve Calvino, “autentica-se a si mesma”: Que isso, consequentemente, seja estabelecido: que aqueles a quem o Espírito Santo ensinou internamente repousam verdadeiramente sobre a Escritura, e que a Escritura autentica-se a si mesma... “Consequentemente”, afirma ele, iluminados por esse poder, não acreditamos pelo nosso juízo nem pelo de qualquer outro que a Escritura é de Deus; mas, acima de todo juízo humano, afirmamos com plena certeza que fluiu até nós da própria boca de Deus pelo ministério dos homens. Não procuramos provas nem sinais de genuinidade nos quais o nosso juízo possa apoiar-se; antes, sujeitamos o nosso juízo e perspicácia a esse poder, como coisa muito além de qualquer conjetura! [...] Trata-se de uma convicção, pois, que não exige razões; de um conhecimento com o qual concorda a melhor razão — no qual a mente verdadeiramente repousa com mais segurança e constância do que em quaisquer razões. Falo de nada mais do que da experiência que cada crente tem no seu interior — apesar de as minhas palavras ficarem muito aquém de uma explicação adequada da matéria.35 34Claro que isso não significa que um crente possa rejeitar apropriadamente possíveis anuladores sem examiná-los (veja a seguir caps. 1 1 1 4 ‫ ;) ־‬nem está obrigado a se recusar a pensar que poderá estar enganado. Sem dúvida que poderá estar enganado: isso faz parte da condição humana. Se houvesse uma demonstração ou um argumento poderoso com base em outras fontes contra a crença cristã, um argumento a que nem ele nem a comunidade cristã conseguissem responder satisfatoriamente, ele talvez se visse às voltas com um problema; isso seria um exemplo genuíno de um conflito entre a fé e a razão. Contudo, nenhuma demonstração ou argumento desses ergueu até agora a sua cabeça ominosa. 35I, vii, 5, p. 80-1. Calvino fala aqui de “plena certeza” e da mente “repousar com segurança” nessas doutrinas. Isso é só um dos lados da história porém: em outros lugares, ele observa que mesmo os melhores e os mais

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Calvino fala aqui de uma certeza, um conhecimento de que a Escritura "fluiu até nós da própria boca de Deus”, ainda que seja “pelo ministério dos homens”. Penso que ele não quer dizer (e de qualquer modo não é isso que diz o modelo) que o Espírito Santo induz a crença na proposição A Bíblia (ou o livro de Jó, ou as epístolas de Paulo, ou o capítulo 13 de lCoríntios) vem a nós da própria boca de Deus}6 Em vez disso, quando lemos ou ouvimos uma doutrina — dado item das coisas grandiosas do evangelho — o Espírito Santo nos ensina, faz-nos acreditar que essa doutrina é verdadeira e vem de Deus, ou seja, a estrutura aqui não é: a doutrina da Escritura é verdadeira; isso (p. ex., que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo) é uma doutrina da Escritura; logo, isso é verdadeiro. Trata-se antes de, ao ler ou ouvir uma doutrina d, formarmos a crença de que d, essa mesma doutrina, é verdadeira e de Deus. O que é este “autenticar-se a si mesma” de que fala Calvino? Será que ele (ou o modelo) está sustentando que as verdades do evangelho são autoevidentes em um sentido parecido com o tradicional, em que se diz que 2 + 1 = 3 é evidente? De modo algum. As proposições autoevidentes são necessariamente verdadeiras e, pelo menos nos casos de autoevidência máxima, um ser humano funcionando apropriadamente não consegue nem sequer apreendê-las sem ver que não poderiam ser falsas.37 As coisas grandiosas do evangelho, porém, não são necessariamente verdadeiras (são resultado da ação livre e graciosa de Deus) e é perfeitamente possível apreendê-las sem constatar que são verdadeiras (é possível entendê-las e rejeitá-las). Assim, segundo o modelo (e segundo Calvino), essas verdades não são autoevidentes. As proposições A Escritura é confiável ou Deus é 0 autor da Bíblia não são autoevidentes; nem o são as doutrinas de que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, ou que essa reconciliação foi cumprida em virtude do sofrimento e morte expiatórios de Cristo.38 Tampouco Calvino pretende dizer (e não faz parte do modelo) que a Escritura autentica a si mesma no sentido de oferecer evidências a seu favor ou de algum modo provar que é precisa e confiável. Suponhamos que se levante uma questão com

favorecidos entre nós estão sujeitos à dúvida e à incerteza: “Pois a descrença está tão profundamente enraizada nos nossos corações, e inclinamo-nos de tal modo para ela, que não é sem uma 5uta difícil que cada um de nós é capaz de se persuadir do que todos confessam verbalmente: nomeadamente, que Deus é fiel” (III, ii, 15); ele afirma também que “a descrença, em todos os homens, está sempre misturada com a fé” (III, ii, 4, p. 547). (O que ele quer dizer, é claro, não é que quem não crê tem sempre uma porção de fé, mas sim que a fé contém sempre uma porção de descrença.) Só nos casos puros e paradigmáticos de fé há esta “plena certeza”. 36Quanto ao que Calvino queria realmente dizer aqui, muito se tem debatido. 37Veja WPF,p. 108-9. 38Segundo Richard Swinburne, “Pouquíssimas partes da Bíblia parecem reivindicar uma autoridade ‘autoevidente’ ou ao menos se colocam como a imediata ‘palavra do Senhor’ [...] Grande parte da Escritura não pareceu autoevidente a muitos dos seus leitores; é preciso argumentar para demonstrar como entendê-la e por que acreditar nela. Aqueles para quem a Escritura parece ‘autoevidente’farão bem cm refletir nesses fatos antes de reafirmar sua convicção de que a verdade dela não carece de argumentação” {Revelation [Oxford: Clarendon Press, 1992], p. 118). Duas questões diferentes se misturam aqui: (a) as verdades do evangelho são autoevidentes? e (b) é possível acreditar apropriadamente nelas sem argumentação? Segundo o nosso modelo, a resposta a (b) é “sim”, mas a resposta a (a) é “não”. (Há ainda outra questão: segundo o modelo, as verdades centrais do evangelho autenticam a si mesmas desse modo; o mesmo não ocorre [necessariamente] com os outros ensinamentos da Bíblia.)

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respeito a determinada fonte de crença: acaso essa fonte de crença é realmente confiável? E suponhamos que se levante uma questão com respeito a uma doutrina particular da Escritura: acaso essa doutrina particular é realmente verdadeira? Nem a fonte nem a doutrina particular podem, por si, dar uma resposta que (racionalmente) esclareça a dúvida. Analogia: suponha-se que leio Hume em um estado de espírito indevidamente receptivo e passo a duvidar da confiabilidade efetiva das minhas faculdades cognitivas. Não posso racionalmente eliminar ou aquietar essa dúvida oferecendo-me um argumento a favor da sua confiabilidade. E a confiabilidade dessas mesmas faculdades, dessa mesma fonte, que está em questão: e se eu tenho uma dúvida geral acerca da sua confiabilidade, devo ter também a mesma dúvida acerca da sua confiabilidade nesse caso específico; devo ter a mesma dúvida acerca das premissas do argumento que me ofereço e da minha crença de que as premissas implicam a conclusão. O mesmo acontece no caso da Escritura: se tenho dúvidas acerca da sua confiabilidade, não posso de maneira sensata eliminá-las ou aquietá-las observando que, por exemplo, 2Timóteo 3.16 afirma que toda a Escritura é inspirada por Deus (ainda que eu estivesse convencido de que o que é aqui ensinado refere-se apenas aos livros que considero canônicos). Assim, a Escritura também não autentica a si mesma nesse sentido. O que será, então, que Calvino quer dizer quando afirma que a Escritura autentica a si mesma? Podemos ver o que ele quer dizer prestando atenção a um aspecto segundo o qual as verdades do evangelho são parecidas com proposições autoevidentes. De acordo com o modelo, essas verdades, como as verdades autoevidentes, são realmente evidentes (têm realmente aval); e, como as verdades autoevidentes, a sua evidência é determinada imediata — ou seja, não por evidências proposicionais. Não obtêm a sua evidência ou aval por acreditarmos nelas com base evidenciai em outras proposições. Assim, desse ponto de vista, pode-se dizer que também as verdades do evangelho são autoevidentes — em um sentido diferente e analógicamente estendido do termo. São evidentes, mas sua evidência não é determinada com base em outras proposições; são evidentes por si mesmas (e não por inferência a partir de outras proposições).39 Nesse mesmo sentido estendido, as crenças perceptivas e de memória também são autoevidentes. Também elas são “evidentes em si mesmas”, já que não adquirem o seu aval (ou evidência) pela transferência de aval de outras proposições. Dizer que uma proposição p é autoevidente nesse sentido é afirmar apenas que p tem, realmente, aval ou evidência, não adquirindo tal aval por meio de uma transferência de aval (isto é, por acreditarmos nela com base em outras proposições) — em uma palavra (ou duas),^> é apropriadamente básica.40 39Compare-se Jonathan Edwards: “O evangelho do Deus bendito não sai por aí mendigando evidências a seu favor, como por vezes se pensa; tem em si as evidências mais elevadas e apropriadas a seu favor” (Religious affections, p. 307). 40A fé é parecida com a percepção, a memória e a intuição racional (pela qual apreendemos o que é autoevidente) no sentido de que, nos três casos, as crenças em questão são apropriadamente básicas com respeito ao aval. Entretanto, a fé difere da percepção (ainda que não da memória e da intuição racional) porque não envolve nada parecido com a fenomenología sensorial muitíssimo articulada e detalhada que provoca a crença perceptiva.

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O que Calvino quer dizer, pois (e o que o modelo testemunhai advoga), é que não precisamos de argumentos que se baseiem, por exemplo, de premissas historicamente estabelecidas acerca da autoria e confiabilidade da passagem da Escritura em questão para concluir que essa passagem é de fato verdadeira; esse processo torna-se desnecessário em vista do processo tríplice que produz a fé. A Escritura autentica a si mesma porque, para a crença nas coisas grandiosas do evangelho ter justificação, ser racional e ter aval, não é necessário que haja evidências históricas ou argumentos a favor das doutrinas em questão, ou a favor da veracidade, ou confiabilidade, ou caráter divino da Escritura (ou da parte da Escritura de que se trata). O processo pelo qual essas crenças têm aval para o crente liberta-se dessas ou outras considerações históricas; as crenças têm aval da maneira básica. Todavia, suponhamos que uma pessoa acredite nessas coisas com um grau de firmeza suficiente para constituir conhecimento: não é essa atitude, seja qual for a sua causa, irracional, contrária à razão? Suponhamos que eu leia os evangelhos e passe a acreditar, por exemplo, que Jesus Cristo é de fato o divino Filho de Deus e que, pela sua paixão, morte e ressurreição, os seres humanos decaídos e imperfeitos podem ser reconciliados e ganhar a vida eterna. Suponhamos que eu acredite nisso sem quaisquer evidências externas. Suponhamos, além disso, que eu dê pouca atenção aos estudos acadêmicos da Escritura e não ligue a mínima para a identidade ou as credenciais dos autores, reais ou supostos, dos documentos bíblicos. Dou pouca atenção, ou nenhuma, a questões como a de saber quando foram redigidos ou escritos, por quem e por quantas pessoas, se quem os redigiu estava tentando estabelecer uma ideia teológica ao escrever daquele modo, e assim por diante.41 Não estarei eu saltando para conclusões, formando uma crença de modo demasiado apressado? No que estou realmente me baseando em um caso assim? Onde estão a minha base, o meu fundamento, as minhas evidências? Se não tenho evidências proposicionais nem quaisquer fundamentos fornecidos pela percepção e pela experiência perceptiva, será que esse salto de fé não é apenas um salto no escuro? Não serei como alguém cuja casa está em chamas e que salta cegamente da sua janela do terceiro andar, esperando desesperadamente agarrar-se a um ramo da árvore que sabe estar em algum lugar próximo da janela? E não seria isso irresponsável42 e irracional? De modo algum. A fé, segundo o modelo, está bem longe de ser um salto às cegas; nem sequer é remotamente parecida com um salto no escuro. Suponha-se que estejamos descendo um glaciar a três mil e quinhentos metros de altitude no Monte Rainier; há uma tempestade de neve intensa e não conseguimos ver mais do que cerca de um metro à nossa frente. Está ficando tarde, o vento está aumentando e a temperatura, baixando, de modo que não sobreviveremos (estamos apenas de jeans e camiseta) a menos que consigamos descer antes de anoitecer. Por isso, decidimos tentar saltar a fenda no gelo que está à nossa 41Não pretendo, nem por um momento, sugerir que os estudos acadêmicos da Escritura não são importantes em si ou que não são importantes para a vida cristã (veja cap. 12); o que pretendo dizer é apenas que o conhecimento dos seus resultados não é necessário para a crença cristã avalizada. 42Como é defendido por, p. ex., James L. Muyskens, em The sufficiency of hope: the conceptualfoundations of religion (Filadélfia: Temple University Press, 1979), p. 113; veja também p. 1 3 4 4 4 ‫־‬.

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frente, apesar de não conseguirmos ver o outro lado da fenda e de não fazermos a menor ideia da distância. Isso é um salto no escuro. No caso da fé, contudo, as coisas são completamente diferentes. Seria como afirmar que uma crença de memoria ou a crença de que 3 + 1 = 4 é um salto no escuro. O que caracteriza um salto no escuro é a pessoa que salta não saber o que está no escuro e não ter crenças firmes sobre isso — podemos ser bem-sucedidos ao saltar a fenda no gelo, continuando triunfantemente a nossa descida; mas, tanto quanto sabemos, podemos, em vez disso, cair sessenta metros nas profundezas geladas do glaciar. Não acreditamos realmente que conseguiremos saltar a fenda do gelo (apesar de também não acreditarmos que não o conseguiremos); esperamos conseguir fazê-lo e agimos com base no que realmente acreditamos -— ou seja, que, se não saltarmos, não teremos chance. O caso da fé, esse conhecimento seguro e certo, é muito diferente. Para a pessoa de fé (pelo menos nos seus exemplos paradigmáticos), as coisas grandiosas do evangelho são claramente verdadeiras, óbvias, convincentes. Ela se vê convencida — tal como no caso de crenças claras de memória ou da crença em verdades elementares da aritmética.43 Fenomenologicamente, portanto, do ponto de vista interno, não há semelhança alguma com um salto no escuro. Nem há qualquer semelhança, é claro, no modelo, do ponto de vista externo. Não se trata de um salto no escuro, não somente porque a pessoa de fé está completamente convencida mas também porque, de fato, a crença em questão satisfaz as condições da racionalidade e do aval. Compare-se esse tipo de crença com as crenças a priori e de memória de que falei anteriormente. Em certo sentido, nenhum desses três casos tem base. Não aceitamos as crenças de memória e as crenças a priori óbvias com base em outras crenças, mas não temos também a base fenomenológica detalhada, as imagens sensíveis ricas e muitíssimo articuladas presentes na percepção. O que temos nesses três casos é outro tipo de evidência fenoménica, a que tenho chamado evidência doxástica (em WPF chamei-lhe evidência impulsionai). Há certo tipo de fenomenología que distingue a consideração de uma proposição em que acreditamos da consideração de uma proposição em que não acreditamos: no primeiro caso, a proposição parece correta, natural, aprovada — a experiência não é fácil de descrever {WPF, p. 190ss.).Temos essa evidência doxástica nos três gêneros de casos (como, na verdade, em qualquer caso de crença), e nada mais temos como base. Porém, não precisamos de qualquer outra base: as coisas não seriam melhores, do ponto de vista epistêmico, se acreditássemos, digamos, que 2 +1=3 ou que comemos cereais no café da manhã de hoje com base evidenciai em outras proposições ou com base em algum tipo de imagem sensível, mais ou menos como acontece na percepção. (Não pretendo dizer que não podemos obter mais evidências a favor de algo em que acreditamos por meio da memória, mas sim que não ficaríamos necessariamente mais convencidos, epistemicamente falando, se acreditássemos na proposição em questão com

43Mais uma vez, nos casos paradigmáticos; mas é fato que a convicção e a crença presentes na fé incluem todos os graus de firmeza. Como Calvino escreve, “no espírito do crente, a certeza mistura-se com a dúvida” c “somos incomodados por todos os lados pela agitação da descrença”. Nos casos típicos, portanto, em contraste com os casos paradigmáticos, o grau de crença será inferior ao máximo. Além disso, o grau de crença, da parte da pessoa que tem fé, varia tipicamente ao longo do tempo e das circunstâncias.

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CRENÇA CRISTA AVALIZADA

base em outras crenças ou em imagens sensíveis.) O mesmo ocorre (no modelo) nas crenças da fé: não temos imagens sensíveis nem evidências baseadas em outras coisas em que acreditamos; as crenças, do ponto de vista epistêmico, não são nem um pouco piores por causa disso. Ao contrário, no modelo, são melhores por causa disso; têm (ou podem ter) muito mais firmeza e estabilidade do que poderíam ter se fossem aceitas com base em argumentos racionais ou, como nesse caso, investigações históricas; podem ter muito mais aval. Essas crenças (no modelo) não são aceitas com base em outras crenças; ao contrário, há outras crenças que são aceitas com base nelas. Poder-se-ia pensar que esse é um modelo de como, em termos gerais, a crença cristã pode ter aval por meio da experiência religiosa. Isso não é exatamente correto — ou, se é correto, então as crenças de memória e a priori também obtêm o seu aval por meio da experiência. Porém suponha-se que pensemos que (no modelo) as crenças da fé obtêm realmente o seu aval por meio da experiência — ou seja, por meio da experiência doxástica — e suponha-se que descrevamos essa experiência como uma experiência religiosa. O mais importante a notar é que não há aqui um argumento que parte da experiência religiosa e conclui pela veracidade dessas crenças cristãs. Poderia haver algo desse tipo, um modelo segundo o qual temos a experiência religiosa (ou vemos que outros a têm) e depois argumentamos (talvez por meio de algo semelhante ao argumento analógico em prol de outras mentes) a favor da veracidade dessas doutrinas. Alternativamente, poderia ser como os argumentos que algumas pessoas formularam baseando-se nos fatos da experiência perceptiva e concluindo pela veracidade das crenças perceptivas. Esse modelo não é assim. A experiência em questão é uma ocasião para a crença em questão, e não um fenômeno cuja existência sirva de premissa para um argumento a favor dessa crença. Segundo Hebreus 11, “Ora, a fé é a substância (ύττόστασιζ) do que se espera e a prova (ελεγχοζ) do que não se vê” (KJV). As palavras cruciais “substância” e “prova” são traduzidas de várias maneiras; por exemplo, a mais recente Revised Standard Version tem “a fé é a garantia do que se espera, a convicção do que não se vê” (grifo meu). Talvez a primeira tradução seja melhor; de qualquer modo, é mais rica, pois a fé, segundo a doutrina cristã, é muitas coisas. E o meio ou veículo da salvação: “porque pela graça sois salvos, por meio da fé” (E f 2.8). E também aquilo que nos dá justificação (veja p. 110), assim como aquilo por meio do qual nos regeneramos, tornando-nos novas criaturas em Cristo. E é também o alicerce e a substância (etimológicamente, aquilo que “está embaixo”) da esperança cristã. Entretanto, a fé também é “a prova do que não se vê”. Pela fé — pela totalidade do processo, incluindo a instigação interna do Espírito Santo — algo se torna evidente (ou seja, ganha aval, tem o que é preciso para ser conhecimento). E o que desse modo se torna evidente ou avalizado é realmente algo que não vemos. Isso não significa que seja indistinto, nebuloso, incerto ou uma questão de conjetura; significa que a crença em questão não se torna evidente por meio do funcionamento das faculdades cognitivas comuns com as quais fomos originalmente criados (o autor do texto bíblico refere-se a elas, por sinédoque, como visão). Regressemos à explicação do ceticismo de Tomé (acima, p. 260): Tomé não acreditava até ver os buracos dos pregos nas mãos, pôr o seu dedo neles e tocar no flanco de

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Cristo. Jesus lhe diz então: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20.29). Do nosso ponto de vista, isso não é um conselho geral recomendando a credulidade nem uma censura dos empiristas embrionários como Tomé. E, na verdade, a observação de que quem tem fé tem uma fonte de conhecimento que transcende as nossas faculdades perceptivas e processos cognitivos comuns, uma fonte de conhecimento que é uma dádiva divina; daí que seja realmente bem-aventurado.44 V . C o m p a r a ç ã o c o m L ocke

Podemos compreender melhor esse modelo testemunhai comparando-o com uma imagem muito diferente — a de John Locke, cujo modelo iluminista é ainda dominante em alguns círculos cristãos.45 Segundo Locke, todas as nossas crenças devem ser formadas “seguindo a razão”. O que isso significa, mais específicamente, é que o dever epistêmico exige “não sustentar qualquer proposição com mais segurança do que o garantem as provas [não só dedutivas, mas também indutivas] em que se baseia”.46 E o que isso significa (como vimos no cap. 4) é que devo harmonizar o grau de assentimento às evidências; ou seja, devo, tanto quanto puder, acreditar em uma proposição^) com uma firmeza proporcional ao grau em que^> é provável com respeito ao que é certo para mim. Todas as nossas crenças devem ser formadas seguindo a razão; mas isso não quer dizer, pensa Locke, que não há espaço racional para crenças formadas por fé, que ele define como “o assentimento a qualquer proposição a que não chegamos pelas deduções da razão, mas antes pelo crédito de quem as propõe, uma vez que são vindas de Deus por alguma forma extraordinária de comunicação” (p. 416). Nem significa que não possamos acreditar apropriadamente em um item de revelação divina, em que o próprio item não é mais provável do que improvável com respeito ao que é certo para nós: Não quero dizer que temos de consultar a razão, e examinar se uma proposição revelada por Deus pode ser estabelecida por princípios naturais, e que, se não o puder, podemos rejeitá-la... O que ele quer dizer é: mas temos de consultá-la e por meio disso examinar se é uma revelação de Deus ou não: e se a razão descobrir que foi revelada por Deus, a razão então subscreve-a como o faz a qualquer outra verdade, e torna-a um dos seus ditames (p. 434). 44Compare-se Tomás: “Assim, caso se reduzam as palavras anteriores à forma de uma definição, pode-se dizer que a fé é um hábito da mente pelo qual a vida eterna começa em nós, fazendo o intelecto assentir ao que não é visível” (ST II-II, q.4, a.i, respondeo). 45O frio racionalismo de Locke com respeito à autoridade da Escritura encontra eco hoje em Richard Swinburne, por exemplo (veja nota 56), mas também naqueles pensadores mais evangélicos que sustentam que o aval da crença cristã só pode ser obtido por meio de argumentação ou evidencias. 46/in essay concerning human understanding, edição de Alexander Fraser com “Prolegomena” (New York: Dover, 1959 [publicado originalmente em 1690]), IV, xix, 1, p. 429. [As páginas do ensaio de Locke referidas de ora em diante dizem respeito à edição Ensaio sobre 0 entendimento humano (São Paulo: Martins Editora, 2012)].

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

A tese de Locke é que, antes de acreditarmos em uma proposição supostamente revelada, devemos primeiro nos convencer, pela razão, de que tal proposição é realmente uma revelação de Deus. O que precisamos é de uma prova racional (uma prova cujas premissas e procedimentos venham da razão e não da revelação) de que a proposição em questão é realmente proposta por Deus para nossa crença. Assim, o que precisamos no caso de uma doutrina escriturai é uma prova racional de que essa doutrina é realmente uma revelação divina; é essa proposição que devemos demonstrar que é provável com respeito ao que é certo para nós. Quando tivermos isso, podemos então acreditar apropriadamente na doutrina, ainda que presumivelmente com uma firmeza proporcional à probabilidade (com respeito ao que é certo para nós) de que a doutrina em questão realmente vem de Deus. As coisas são muito diferentes no modelo testemunhai. Não se trata de acreditar, por exemplo, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo porque vimos ou demonstramos que é provável (com respeito ao que é certo para nós) que essa afirmação particular de Paulo (ou talvez a totalidade de 2Coríntios, ou talvez a totalidade do Novo Testamento, ou talvez toda a Bíblia) foi de fato inspirada por Deus e consequentemente é verdadeira. Isto seria demasiado tênue e especulativo. A crença de que a passagem é uma revelação divina, se for apropriadamente formada por meio da investigação histórica, não podería deixar de ser incerta e hipotética; mas então a própria crença seria igualmente incerta e hipotética. Como Calvino escreve: Se desejamos atender o melhor possível à nossa consciência — para que não seja continuamente atormentada pela instabilidade da dúvida ou da vacilação e para que também não hesite diante da menor das críticas — devemos procurar a nossa convicção em outro lugar que não as razões, juízos ou conjeturas humanas, ou seja, no testemunho secreto do Espírito.47 No nosso modelo, em vez disso, a fonte dessa crença e conhecimento é independente da investigação histórica comum, dos cálculos de probabilidade e dos caprichos e incertezas a que essas linhas de investigação estão condenadas. A crença em questão é, ao contrário, imediata e básica, uma pronta resposta à proclamação. Claro que essa resposta tem lugar no contexto de todo um sistema inter-relacionado de crenças; podemos acrescentar, se quisermos, que obtém parte do seu aval da sua coerência com um sistema coerente. Mesmo assim, contudo, a crença é básica porque não é aceita com base evidenciai nas crenças que integram esse sistema ou em quaisquer outras. E básica, e apropriadamente básica — com respeito ao aval e à racionalidade, e também com respeito à justificação. Diz Calvino, sem dúvida com um olhar antecipatório na direção de Locke: 4‫ו‬Instituías, p. 78. Claro que não se segue que o estudo acadêmico da Escritura e o comentário bíblico não sejam importantes e necessários; o próprio Calvino escreveu mais de vinte volumes de um comentário bíblico detalhado e perspicaz.

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Dado que, para os descrentes, a religião parece apoiar-se apenas na opinião, eles desejam e exigem, para não acreditar tola ou levianamente, uma prova racional de que Moisés e os profetas falavam por Deus. Mas eu respondo: o testemunho do Espírito é mais excelente que toda a razão. Pois tal como só Deus é uma testemunha adequada de si e da sua Palavra, também a palavra não encontrará aceitação nos corações dos homens antes de ser selada pelo testemunho interno do Espírito. O mesmo Espírito, consequentemente, que falou pelas bocas dos profetas, tem de penetrar nos nossos corações para nos persuadir de que eles proclamaram fielmente o que foi divinamente ordenado (p. 79).48

VI.

P o r q u e é n e c e ssá r io ?

Por que esse elaborado esquema é necessário? Por que esses escritos de inspiração sobrenatural e esse testemunho sobrenatural individualmente aplicado do Espírito Santo? Ou antes (uma vez que Deus poderia ter atingido de muitas maneiras diferentes a sua finalidade de permitir que os seres humanos de muitos momentos históricos e de diversos lugares conhecessem a possibilidade e os meios de salvação), o que poderia recomendar es‫״‬ se esquema em particular? Não seria suficiente um meio menos extravagante? Não poderia essa informação chegar-nos igualmente bem por meio de um testemunho humano comum, por exemplo? Talvez (como Locke pensava) Deus pudesse ter revelado as verdades grandiosas do evangelho de uma maneira direta apenas a certos seres humanos. Eles poderíam então escrevê-las para benefício de todos, que supostamente poderiam perceber, da maneira comum, que esses escritos constituem, realmente, uma revelação divina (e são assim verdadeiros e dignos de serem cridos). Por que usar essas faculdades especiais ou processos sobrenaturais de produção de crenças, como a fé e a instigação interna do Espírito Santo? Bem, antes de tudo, não há razão para pensar que Deus valoriza especialmente a economia ontológica nem que tem uma aversão especial a processos sobrenaturais. Todavia, o principal problema com o processo encantadoramente simples de Locke é que ele não funcionaria. Primeiro, de acordo com o modelo A /C estendido, os seres humanos, sem a atividade especial e graciosa de Deus, estão mergulhados no pecado: tendemos a odiar a Deus e ao nosso semelhante; os nossos corações, como disse Jeremias, são enganadores mais que todas as coisas e desesperadamente corruptos. Num tal contexto, esse fato é de grande importância: sem uma atividade especial da parte do Senhor, não acreditaríamos. Como afirma o apóstolo Paulo, “O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois lhe são absurdas; e não pode entendê-las, pois se compreendem espiritualmente”.49 Sem uma regeneração, um renascimento, os seres humanos não se dão conta da profundidade do pecado em que se encontram e da necessidade deles de salvação; 48Note-se aqui que o Espírito Santo desempenha um duplo papel: inspira os autores da Escritura (fazendo com que digam o que ele quer), mas também opera no coração de quem ouve c lê fazendo-o acreditar no que ouve e lê. Assim, o objeto do testemunho interno do Espírito Santo é o que ele próprio (o Espírito) disse. 4,!■Corintios 2.14. Compare-se ICoríntios 1.23: “Pregamos Cristo crucificado, que é motivo de escândalo para os judeus e absurdo para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus”.

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segundo o próprio Jesus, precisamos do testemunho do Espírito Santo para passar a acreditar nas verdades grandiosas do evangelho.50Dada a nossa natureza decaída e a nossa antipatia natural pela mensagem do evangelho, a fé precisa ser uma dádiva — não do modo pelo qual um dia glorioso de outono é uma dádiva, mas sim uma dádiva especial, que não nos seria dada no decurso normal da vida, uma dádiva que exige uma atividade sobrenatural e extraordinária de Deus.51 Além disso, suponhamos que uma pessoa tenha realmente começado a acreditar, apenas por meio da investigação histórica, que Jesus era de fato o Filho de Deus, que morreu pelos nossos pecados e ressuscitou dos mortos e que, por ele, podemos ganhar a vida eterna. A mera crença nessas coisas — como quem acredita em fatos interessantes acerca do mundo, como o fato de o Universo haver começado com uma gigantesca explosão que ocorreu de doze a dezesseis bilhões de anos atrás — é insuficiente. Essas verdades devem estar seladas no coração, além de serem reveladas à mente. Esse selamento é o tópico do próximo capítulo; por ora, notamos apenas que passar a ter fé é mais do que uma mudança de opinião. Inclui também (e crucialmente) uma mudança de atitude, uma mudança nas afeições, no que amamos e odiamos, aprovamos e desprezamos, buscamos e evitamos. Segundo nosso modelo, a fé é, sem dúvida, um processo de produção de crenças, mas é também um processo de produção de afeições, um processo que provoca uma alteração das afeições, tanto quanto da opinião. Dada a nossa constituição, essa alteração das afeições não pode ser efetivada pelo mero ato de passarmos a acreditar nas linhas principais do evangelho como um fato histórico.52 Consequentemente precisamos de uma mudança de atitude e não apenas de uma mudança de opinião e não conseguiremos alimentar esta última sem a primeira. Muito bem. Mas, nesse caso, por que não podería Deus (sobrenaturalmente, se ele pensar que isso é necessário) apenas provocar uma mudança de atitude e de afeições? Por que precisamos dessa fonte sobrenatural para mudar de opinião? Dados os afetos adequados, não seriam suficientes a Escritura e as nossas faculdades comuns (razão, memória, percepção, empatia, indução etc.) para nos permitir ver a verdade da mensagem do evangelho? Duvido. Primeiro, em virtude das faculdades comuns usadas na investigação histórica, só algumas pessoas poderíam adquirir o conhecimento em questão, e somente depois de

50“Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer” (Jo 6.44); e “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique sempre convosco, o Espírito da verdade, o qual o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, pois ele habita convosco e estará em vós” (Jo 14.16,17). 51Esse é, uma vez mais, um ponto em que Calvino e Tomás concordam: “pois uma vez que o homem se ergue acima da sua natureza ao assentir ao que pertence à fé, isso tem de vir a ele de um princípio sobrenatural que o mova internamente; esse princípio é Deus”(ST II-II, q.6, a.l, respondeo; veja também artigo 2). Quando falo da atividade sobrenatural de Deus, não me refiro a uma espécie de incursão ou intervenção na ordem natural. O fato é que Deus está constantemente ativo no mundo: sem a sua atividade de sustentação, o mundo desaparecería como a chama de uma vela ao vento. A atividade sobrenatural da parte de Deus (assim como os milagres) deve ser entendida, de fato, como uma atividade especial de Deus em contraste com o modo pelo qual ele habitualmente trata as coisas que criou. Há aqui aprofundamentos e problemas que, para serem tratados, terão de esperar outra ocasião. 52“Se não ouvem Moisés nem os profetas, tampouco acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (Lc 16.31).

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muito esforço e de muito tempo; além disso, essa crença seria incerta e cheia de falsidades.53 Afinal, o que está sendo ensinado não é algo que se harmonize facilmente com a nossa experiência comum. Não é como a narrativa de uma guerra antiga, da crueldade dos atenienses para com o povo de Meios ou do orgulho presunçoso de um déspota qualquer da Antiguidade. Seria fácil acreditar nesse gênero de coisa. O que temos, contudo, é a afirmação de que um ser humano — Jesus de Nazaré — é também, espantosamente, o Filho único e divino de Deus, que existiu desde toda a eternidade. Além disso, esse homem morreu, o que não é invulgar, mas depois, decorridos três dias, ressuscitou dos mortos, o que é muitíssimo invulgar. Mais ainda, é por meio do seu sofrimento, morte e ressurreição expiadores que nos justificamos, que os nossos pecados são perdoados e que podemos ter vida e tê-la em abundância. Estas são alegações pesadas, e o mero fato de alguns autores antigos acreditarem nelas seria, decerto, insuficiente para uma convicção sensata da nossa parte. Como observam os estudiosos da Bíblia, há muitos livros antigos com histórias mais ou menos (na minha opinião, quase sempre menos) parecidas com as narrativas bíblicas; em quantos desses livros antigos acreditamos de fato? Apesar disso (responde o opositor), não poderiamos descobrir sozinhos, sem qualquer ajuda ou assistência divina especial, que a Bíblia (o Novo Testamento, por exemplo) é de fato “de Deus”? Que é de inspiração divina, de modo que Deus nos fala nela e por meio dela,54 sendo assim totalmente confiável?55 Não poderemos concluir isso da mesma maneira que descobrimos que Heródoto e Xenofonte relataram de maneira razoavelmente confiável aquilo que ouviram e viram? E, depois de perceber isso, não poderiamos inferir que a mensagem central da Bíblia quanto à encarnação e expiação é verdadeira? Não poderiamos ver e entender, sem qualquer obra especial do Espírito Santo, as razões históricas a favor da veracidade das linhas principais das crenças cristãs? Precisamos “nascer de novo”, certamente — nossos afetos, objetivos e intenções devem ser recalibrados, redirecionados, revertidos — , e isso exige uma ajuda divina especial. No entanto, dada essa recalibragem, não poderiamos então ver e entender as razões históricas a favor da veracidade das linhas principais do cristianismo, sem qualquer obra especial do Espírito Santo? Não me parece. Mesmo descontando os efeitos do pecado na nossa apreensão das razões históricas, as razões não são suficientemente fortes para produzir uma crença avalizada de que as linhas principais da doutrina cristã são verdadeiras — no máximo, podería produzir a crença avalizada de que as linhas principais da doutrina cristã não 53E o que Tomás diz acerca da existência de Deus, se esta for aceita com base nas provas teístas ( STl , q .l, a.l, responde?, Summa contra gentiles, Livro I, cap. 4; ST II-II, q.2, a.4). E por essa razão, afirma Tomás, que era inteiramente apropriado que a existência de Deus fosse proposta como objeto de crença ou fé, apesar de poder de fato ser provada pela razão. 54Talvez como Nicholas Wolterstoríf propõe em Divine discourse. Pelo que entendo de WolterstorfF, contudo, a sua expficação de como Deus podería falar pressupõe as linhas principais da doutrina cristã e, assim, não oferece uma maneira de passarmos a ver que essa doutrina é de fato verdadeira (ou seja, não fornece os elementos para um argumento a favor da veracidade dessa doutrina). 55Esse seria, em substância, o modelo Locke-Swinburne; contudo, não está claro se esses autores concordariam com nossa proposta de que uma mudança de afetos e de atitude é necessária para uma compreensão apropriada da questão histórica.

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são especialmente improváveis. Pois quais poderíam ser essas razões?56 Primeiro, é claro, a defesa em questão não podería de modo algum apoiar-se na ideia de que a Bíblia foi inspirada por Deus de maneira especial; para esses propósitos, deveriamos tratá-la exatamente como trataríamos qualquer outro livro antigo. Teríamos de seguir o exemplo daqueles estudiosos da Escritura que tentam determinar (por exemplo) o que aconteceu efetivamente com Jesus — o que ele pregou, se ressuscitou dos mortos — sem aceitar quaisquer pressupostos teológicos especiais acerca da confiabilidade da Bíblia ou da pessoa de Jesus.57 Eles põem de lado quaisquer crenças teológicas que possam ter e depois procuram avaliar as razões ou evidências históricas a favor de afirmações como a de que Jesus efetivamente asseverou que era o redentor divino, ou a de que morreu e regressou à vida. Tais razões a favor da veracidade das linhas principais do cristianismo poderíam ser no máximo razões a favor da probabilidade de que essas doutrinas são verdadeiras. Como seriam tais razões? Como poderiamos montar tal defesa? A conclusão da defesa (ou argumento) seria que as teses cristãs centrais são prováveis. Ora, uma proposição só é provável com respeito a outra proposição ou conjunto de proposições.58 Nesse caso, as outras proposições pertinentes seriam um corpo de conhecimento K — o que todos ou quase todos sabemos, pressupomos ou acreditamos firmemente, ou pelo menos aquilo que as pessoas que se dedicam a tal investigação sabem, pressupõem ou em que creem.59 E o objetivo seria demonstrar que as afirmações do evangelho cristão são prováveis com respeito a K — ou seja, prováveis com respeito ao que sabemos ou pressupomos. A bem da simplicidade, aceitemos que as teses cristãs centrais são as do pecado (os seres humanos realmente precisam de salvação), da encarnação (Jesus é a segunda pessoa da Trindade, que se fez carne), da expiação (em virtude do seu sofrimento e morte, Jesus expiou o nosso pecado e permitiu-nos obter a salvação eterna) e da disponibilidade geral (a salvação não se restringe apenas a um grupo de pessoas, os judeus, por exemplo60); usemos “G ” como denominação da sua conjunção. O nosso objetivo, consequentemente, é argumentar que G é razoavelmente provável dado K; podemos usar o simbolismo habitual da probabilidade e formular essa ideia dizendo que P(G/K) é razoavelmente elevada. Como podemos montar a defesa de tal proposição — a de que P(G/K) é razoavelmente elevada? A maneira habitual (e o método seguido por Swinburne) é tentar encontrar 56As passagens seguintes baseiam-se aproximadamente no argumento de Richard Swinburne a favor de uma conclusão semelhante no seu livro Revelation (Oxford: Clarendon Press, 1992), caps. 5, 7 e 8. Uma diferença é que Swinburne pensa que uma pessoa acredita em p se e somente se essa pessoa acredita que p é mais provável do que improvável (Faith and Reason [Oxford: Clarendon Press, 1981], p. 32); em contraste, considero que a crença de que p é mais provável do que improvável está longe de ser suficiente para acreditarmos em p. (Estou prestes a lançar um dado: acredito que é mais provável do que improvável que não sairá o 2 ou o 3, mas certamente não acredito que isso não acontecerá; o que acredito efetivamente nesse caso é apenas que sairá um dos lados de 1 a 6 — e que o dado não acabará, por exemplo, delicadamente equilibrado em uma de suas pontas ou arestas.). 57Veja a seguir p. 393. 58A probabilidade absoluta ou lógica de uma proposição seria então a sua probabilidade com respeito a uma verdade necessária. 59Essas probabilidades não seriam escalas bayesianas de graus de crença, mas algo muito mais objetivo — a probabilidade epistcmica de Richard Swinburne ou a probabilidade objetiva de WPF(p. lólss.). ',0Veja a visão de Pedro em Atos 10.

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uma proposição (ou grupo de proposições) P que seja provável com respeito a K, e que seja tal que G seja provável com respeito à conjunção de P com K: isto é, a proposição P tal que P(P/K) e P(G/P&K) sejam ambas elevadas. Por exemplo, poderiamos argumentar primeiro que T, a existência de Deus, é provável dado K, o nosso conhecimento de fundo. Poderiamos então argumentar que, dado o nosso conhecimento de fundo K e a existência de Deus (T), é provável que Deus revele certas verdades cruciais (verdades que precisamos saber) à humanidade.61 Chamemos R a essa proposição. Então, poderiamos continuar a argumentar da mesma maneira (repetindo a mesma forma de argumento), chegando finalmente a algumas proposições com respeito às quais é provável que Deus tenha ressuscitado Jesus dos mortos, autorizando e validando assim a mensagem do Novo Testamento. Poder-se- ia então considerar que essa mensagem foi autorizada por Deus e que, portanto, é verdadeira; e a mensagem contém aquelas proposições G cuja probabilidade estamos tentando defender. De modo que poderiamos então concluir que G é de fato provável com respeito ao que sabemos. Para ilustrar e explicar esse procedimento, suponha-se que estamos interessados na probabilidade de que Eleonor esteja em uma festa. E muito provável, dado o seu conhecimento de fundo K, que Paulo esteja na festa (chame-se “P ” a essa proposição): P(P/K) é elevada — por uma questão de precisão, digamos que é .9. E também muito provável que Eleonor esteja na festa (chame-se Έ ” a essa proposição) dado que Paulo está na festa (habitualmente, ela vai a todas as festas a que ele vai); assim P(E/P&K) também é muito elevada — digamos que é também .9. Há uma fórmula do cálculo de probabilidades que nos permite concluir que é provável que Eleonor esteja também na festa: P(E/K) é igual ou superior a P(P/K) χ P(E/P&K) Assim, P(E/K) será pelo menos .81.62 Esse gênero de argumento pode ser reiterado. Talvez saibamos também que há uma boa probabilidade — .8, digamos — de Vonnie estar na festa se Eleonor estiver: nesse caso, podemos concluir que a probabilidade de Vonnie estar lá é de pelo menos .648; e talvez saibamos que a probabilidade de Jim estar lá, se Vonnie estiver, é de .95; então, a probabilidade de ele estar na festa será de pelo menos .616. Ora, suponha-se que tentemos, dessa maneira, construir uma defesa da probabilidade de G com respeito a esse conhecimento de fundo K. Teremos primeiro de encontrar 61E o caso de Swinburne: “Assim, se há outras evidências que tornem muito provável a existência de um Deus onipotente e sumamente bom, que fez a Terra e os seus habitantes, talvez se torne em alguma medida provável que ele interviria na história humana para lhes revelar coisas” (Revelation, p. 70). “ “Pelo menos”: isso porque podería haver também alguma probabilidade de Eleonor estar na festa mesmo que Paulo não estivesse. A probabilidade de Eleonor estar lá (E) será a média ponderada das probabilidades de E dada a hipótese de Paulo estar na festa (P) e a probabilidade de E dado -P — ponderada pelas probabilidades de P c de -P. A fórmula, no caso, é P(E/K) = [P(E/(P&K)) χ P(P/K)] = [P(E/(-P&K)) χ P(-P/K)]

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a probabilidade de T (o teísmo) ser verdadeira: qual é a probabilidade (dado o nosso conhecimento de fundo, ou a totalidade do que sabemos além do teísmo) de haver um ser onipotente, onisciente e sumamente bom que criou o mundo? No livro The existence of God,63 Swinburne examina essa probabilidade e conclui na última página: “Dada a totalidade das nossas evidências, o teísmo é mais provável do que improvável”. O argumento é complexo e controverso sob muitos aspectos.64Da nossa perspectiva, contudo, um problema ainda mais vexatório é que a sua conclusão é apenas que o teísmo é mais provável do que improvável com respeito ao corpo de conhecimento ou informações pertinentes K: situa-se em algum ponto do intervalo (semiaberto) entre .5 e 1. Mesmo que todas as outras probabilidades envolvidas nas nossas evidências históricas fossem tão elevadas quanto 1, não poderiamos concluir senão que a probabilidade de a doutrina cristã ser verdadeira se situa em algum ponto desse mesmo intervalo. No entanto, se a minha única base a favor da doutrina cristã é a sua probabilidade com respeito a K, e se tudo o que sei acerca dessa probabilidade é que ela é superior a .5, então não posso acreditar racionalmente nessa doutrina. Suponhamos que eu saiba que a moeda que o leitor se prepara para lançar ao ar está viciada. Não sei exatamente quão viciada está, e por isso não sei qual é a probabilidade de sair cara, mas sei que essa probabilidade é superior a .5. Isso não significa que eu acredite que o próximo lançamento dessa moeda dará cara como resultado (claro que também não acredito que sairá coroa; e suspeito que sairá cara). Tudo o que sei é que é mais provável do que improvável que saia cara; e isso não é suficiente para que seja sensato da minha parte acreditar que sairá cara. O mesmo acontece neste caso: se sei apenas que a probabilidade da crença cristã (com respeito a K) é maior do que .5, não é sensato da minha parte acreditar nela.65 Posso ter a esperança de que seja verdadeira e posso pensar que é bastante provável que o seja, mas não posso acreditar nela. Para dar mais chances à defesa histórica da veracidade de G, consequentemente, suponha-se que atribuímos a T uma probabilidade muitíssimo mais elevada, dado K — digamos que ela seja de pelo menos .9. Muitas pessoas darão uivos de indignação perante tal atribuição; ignoremo-las por enquanto. Temos de considerar em seguida a probabilidade, dado TStK, de que A.

Deus faria algum tipo de revelação (de si, ou talvez do que precisamos saber acerca dele) à humanidade.

63Oxford: Clarendon Press, 1979. 64Em especial, talvez, com respeito aos juízos envolvidos de simplicidade comparativa e ao juízo de que a simplicidade é, de fato, um bom guia da probabilidade. 65Note-se, claro, que não posso limitar-me a adicionar o teísmo ao corpo de conhecimento pertinente K com base na ideia de que ele é mais provável do que improvável dado o que já sabemos; há contradição nessa direção. Quando vou lançar um dado, é mais provável do que improvável que não sairá o 1; o mesmo, é claro, acontece com qualquer outra das cinco possibilidades; assim, se pudéssemos adicionar cada uma destas proposições (não sairá 1, não sairá 2...) a K, acabaríamos com a contradição de que o dado sairá e não sairá com um número entre 1 e 6 (inclusive).

O MODELO AQUINO/CALVINO ESTENDIDO: REVELADO AOS NOSSO S ESPÍRITOS

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Bem, isso parece bastante provável, apesar de ser evidentemente muito difícil prever a priori o que Deus faria ou não. Uma vez mais, sejamos generosos e façamos a estimativa de que essa probabilidade se situa também no intervalo entre .9 e 1. Contudo, agora chegamos às partes difíceis. De algum modo, devemos apresentar um argumento probabilístico a favor da proposição de que tal revelação iria conter G, as afirmações grandiosas do evangelho. Claro que uma revelação de Deus só incluiría G se esta fosse verdadeira; de maneira que o que precisamos realmente aqui é de um argumento probabilístico a favor de uma conclusão suficiente para implicar G. Uma maneira comum de o fazer seria argumentar que é provável que Jesus tenha ensinado G, e que, ao ressuscitá-lo dos mortos, Deus sancionou ou ratificou esse ensinamento. Entretanto, com base apenas nos estudos históricos comuns, sem o pressuposto de que a Bíblia é, de fato, uma revelação divina, não é realmente provável que Jesus tenha ensinado algo tão específico como G — isto é, o pecado, a encarnação, a expiação e a disponibilidade geral. Os estudiosos da Escritura argumentam bastante acerca do que Jesus terá precisamente ensinado, mas quase nenhum dos que abordam a questão “a partir de baixo” (ou seja, sem usar quaisquer pressupostos teológicos especiais) está disposto a afirmar que Jesus ensinou G. Na verdade, mesmo que aceitemos a autoridade da Bíblia, não ficará claro assim que Jesus tenha ensinado G; grande parte do nosso entendimento das teses centrais da fé cristã vem de outras partes da Bíblia (p. ex., as epístolas paulinas) e da reflexão posterior (p. ex., o Credo de Niceia). Todavia, talvez seja provável, só com base histórica, que, a partir dos ensinamentos de Jesus e recorrendo apenas a interpretações e extrapolações sensatas, possamos chegar a G. Assim, temos de procurar a probabilidade de B.

E possível interpretar e extrapolar de maneira sensata os ensinamentos de Jesus para chegar a G

dado K&T e A; ou seja, devemos procurar o valor de P(B/K&T&A)). B é muito vaga, mas suponhamos que seja bastante provável unicamente com base em estudos históricos. Claro que haverá muitas pessoas que irão protestar — aqueles que pensam que Jesus era um mágico homossexual,66 por exemplo, para não falar de quem pensa que ele foi o primeiro cristão ateu.67 Aceitemos que estas pessoas estão enganadas e que a probabilidade é elevada — por uma questão de precisão, que esteja entre .7 e .9. No entanto, as coisas tornam-se agora ainda mais difíceis. Temos de considerar em seguida a proposição de que Deus sancionou os ensinamentos de Jesus ao fazer o grandioso milagre de o ressuscitar dos mortos. Qual é a probabilidade, apenas com bases históricas, de que

“ Veja Morton Smith, Jesus the magician (New York; Harper and Row, 1978). 67Veja Thomas Sheehan, Thefirst coming (New York: Random House, 1976).

CRENÇA CRISTA AVALIZADA

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C.

Jesus ressuscitou dos mortos?

Claro que C precisa ser encarada em um sentido literal e físico; não deve ser interpretada como, por exemplo, a ideia de que Jesus passou por uma experiência tão impressionante e animadora que seus seguidores ganharam a energia e determinação necessárias para começar uma nova religião.68 Uma vez mais, o que precisamos considerar é a probabilidade condicional de C dado K, T e A&B — ou seja, P(C/(K8cT&A&B)). Qual é a probabilidade aqui? Dadas as enormes controvérsias e discordâncias entre os estudiosos da Escritura, hesitamos em afirmar algo. Quantas pessoas haverá que acreditam, únicamente com base na investigação histórica e na crença teísta (sem ajuda da teologia, sem a instigação interna do Espírito Santo, sem nada desse gênero), que Jesus Cristo ressuscitou dos mortos (no sentido estrito e literal)? Mesmo que dominássemos muito bem a imensa bibliografia e pensássemos que há aqui um argumento histórico muitíssimo bom, é de presumir que o consideraríamos bastante especulativo e arriscado. Eu diría que é provável que os discípulos tenham acreditado que Jesus ressuscitou dos mortos, mas com base exclusivamente na investigação histórica (junto com o pressuposto de que a pessoa de Deus existe realmente e muito provavelmente nos fará ou fez uma revelação) é muitíssimo menos provável que isso tenha efetivamente acontecido. Dada toda a controvérsia entre os especialistas, devemos provavelmente considerar que essa probabilidade é inescrutável — ou seja, não podemos realmente dizer com confiança qual é a probabilidade. Uma vez mais, sejamos generosos: digamos que essa proposição é mais provável do que improvável — por uma questão de precisão, digamos que se situa no intervalo entre .6 e .8. Em seguida, temos de considerar a probabilidade de D.

Ressuscitando Jesus dos mortos, Deus sancionou os seus ensinamentos

com respeito às proposições anteriores; ou seja, devemos considerar P(D/(K& T& A&B&C)). De C temos apenas que Jesus ressuscitou dos mortos, e não que foi Deus quem o ressuscitou para, assim, sancionar o seu ensino. Dado T, contudo, parece provável que Deus o tenha ressuscitado dos mortos — de que outro modo podería ter acontecido tal coisa? Apesar disso, ratificou ele, ao fazê-lo, o que Jesus ensinou? Não necessariamente: há outras razões possíveis. Talvez quisesse sancionar o ensinamento dos fariseus em

68Como se diz em grande parte da teologia contemporânea liberal ou quase liberal. Veja, p. cx., Norman Perrin, The resurrection according to Matthew, Mark, and Luke (Filadélfia: Fortress Press, 1977), p. 83. Sobre as testemunhas das aparições de Jesus ressuscitado, ele afirma: “foi-lhes de algum modo concedida uma visão de Jesus que os convenceu de que Deus tinha justificado Jesus com a sua morte c que, portanto, a morte de Jesus não era de modo algum o fim do impacto de Jesus nas suas vidas”. Podemos pôr de lado aqui a questão de que tipo de corpo era o de Jesus depois da ressurreição: seria ele (tenha ou não sido, numericamente, o mesmo que ele tinha antes de morrer) um corpo glorificado com poderes sobrenaturais? Esta última hipótese seria ainda mais difícil de estabelecer por meio de argumentos históricos (veja Robert Cavin, “Is there sufficient historical evidence to establish the resurrection o f Jesus?”, Faith and Philosophy [July 1995]).

O MODELO AQUINO/CALVINO ESTENDIDO: REVELADO AOS N O SSO S ESPÍRITOS

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contraste com o dos saduceus (M t 22.23), ou talvez a ressurreição tenha sido uma recompensa por urna vida de especial devoção e santidade, ou talvez por alguma razão desconhecida. Apesar disso, essa probabilidade deve provavelmente situar-se em um nível elevado: digamos, por precisão, .9. Contudo, há ainda outra probabilidade a ser avaliada aqui: a probabilidade de que, ao ressuscitar Jesus dos mortos e ao sancionar os seus ensinamentos, Deus estava também sancionando a extrapolação destes ensinamentos para G, a doutrina central do cristianismo. Temos de ver qual será a probabilidade de E.

A extensão e extrapolação dos ensinamentos de Jesus para G é verdadeira.

Ou seja, precisamos examinar P(E/(K&T&A&B&C&D)). As questões são aqui mais complexas do que parecem à primeira vista. Suponhamos que o leitor esteja completamente convencido, unicamente com base na pesquisa histórica, que Jesus ressuscitou dos mortos: não seria um passo enorme concluir G — que ele era, de fato, o filho divino e único de Deus, a segunda pessoa da Trindade, e que o seu sofrimento e morte é um sacrifício propiciatorio pelo qual podemos ganhar a vida eterna? Não é fácil ver como se podería montar uma defesa histórica poderosa de tudo isso; talvez pudesse ser feito da maneira a seguir. Segundo B, acima, os ensinamentos de Jesus podem naturalmente ser extrapolados e estendidos para G; e talvez Deus tivesse sancionado essa extensão dos ensinamentos de Jesus ao ressuscitá-lo dos mortos. Mas por que pensar nisso? Por que pensar que essa extrapolação (em contraste com todas as outras possibilidades) é a correta? Bem, talvez Jesus tencionasse fundar uma igreja (e talvez o tenha feito) para interpretar e preservar os seus ensinamentos; Deus ratificou também essa intenção; a igreja por ele fundada existe ainda, preservada (talvez pelo Espírito Santo) do erro, e ensina G. Temos aqui na verdade cinco outras proposições que constituem, conjuntamente, os nossos dados históricos a favor de E; assim, em vez de E, devemos considerar a probabilidade da conjunção de:1 (1) Jesus tencionava fundar uma igreja (e fundou-a) para interpretar e preservar os seus ensinamentos, (2) Deus sancionou essa intenção ao ressuscitá-lo dos mortos, (3) A igreja que Jesus fundou ainda existe, (4) Deus preservou essa igreja do erro, e (5)

Essa igreja ensina G

dado K&T&A&B &C&D. Ora, no contexto desse argumento, podemos tomar a conjunção de (1) a (5) como E. O nosso projeto agora é avaliar, pois, a probabilidade de E, entendida dessa maneira,

CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

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em relação a K&T&A&B&C&D. Parece sensato considerar que P((l)ôc(2)ôc(3)Sc(4)/ (K&T&A&B&.C&D)) é muito elevada:69 para sermos generosos (e para manter as coisas tão simples quanto possível) digamos que essa probabilidade é 1. Ainda nos resta (5), contudo: qual é a sua probabilidade em relação a K&T&A&B&C&D mais a conjunção de (1) a (4)? Não é fácil fazer uma estimativa. Se existe uma igreja que Deus preserva do erro, que igreja é essa? E a que ensina G? Atualmente, parece que muitas igrejas protestantes importantes (e alguns clérigos católicos romanos), por exemplo, não ensinam G de maneira alguma. Essas igrejas (e os seus membros) exibem uma imensa diversidade de opiniões, desde perspectivas extremamente liberais, segundo as quais somente uma parte ínfima do cristianismo clássico é efetivamente verdadeira (ainda que grande parte dele seja calorosamente inspiradora), até a crença cristã clássica integral. Quais dessas opiniões Cristo queria endossar? Quais delas se conformam mais fielmente às suas intenções? E um grupo que efetivamente ensine G?70 Com base histórica, não é fácil dizer; uma vez mais, sejamos generosos, considerando que essa probabilidade (ou seja, P((5)/(K&T &A&B&C&D)) se situa em algum ponto do intervalo entre .7 e .9. Isso significa que P(E/(K&T&A&B&C&D)) se situará nesse mesmo intervalo. Ora bem, como obtemos uma probabilidade (em relação a K) para G, dado tudo isso? Note-se que E implica G; assim (seguindo o argumento em mãos), para encontrar a probabilidade de G em K precisamos encontrar a probabilidade de E em K. Como fazemos isso? O nosso argumento seguiu a estratégia de encontrar uma série de proposições, T e A—E, tal que a primeira é provável em relação a K; a segunda, em relação a K junto com a primeira; a terceira, em relação a K junto com a primeira e a segunda, e assim por diante. Um pouco de aritmética permite‫״‬nos concluir que P(E/K) será igual ou maior do que P(T/K) x P(A/(K&T)) x P(B/(K&T&A)) χ P(C/(K&T&A&B)) χ P(D / (K&T&A&B&C)) χ P(E/(K&T&A&B&C&D)). A aritmética é a seguinte: Por (1) P(X/Y) > P(X/Z&Y) χ P(Z/Y) 69Celso, um dos primeiros críticos do cristianismo, pensava aparentemente que essa probabilidade era muito baixa, pouco mais elevada do que .5 (veja Orígenes, Contra Celsum, 1.68); suponhamos que Celso estava enganado. 70Swinburne (Revelation, cap. 8) propõe dois critérios para determinar o que devemos considerar como sendo “a igreja”: continuidade de objetivos e continuidade de organização. O primeiro depende da continuidade do ensino doutrinário; mas então, para o aplicar, teríamos de já saber o que a verdadeira igreja ensina. Ou seja, precisaríamos saber o que Jesus queria que sua igreja ensinasse; no entanto, nesse caso, não podemos usar esse critério para determinar o que Jesus queria que sua igreja ensinasse.

O MODELO AQUINO/CAIVINO ESTENDIDO: REVELADO AOS N OSSOS ESPÍRITOS

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sabemos que (2) P(E/K) > P(E/K&T&A&B&C&D) * P(T&A&B8tC&D/K). Considere-se o multiplicando da direita. Segundo o cálculo de probabilidades, (3) P(X&Y/Z) = P(X/Z) x P(Y/X&Z); logo (4) P(T&A&B&C&D/K) = P(T&A&BScC/K) χ P(D/T&A&BSeCScK). Por substituição, em (2) temos (5) P(E/K) > P(E/T&A&B&C&D&K) P(D/T&A&BScC&K).

χ

P(T&A&B&C/K)

χ

De novo, por (3) sabemos que (6) P(T8cASd3ScC/K) = P(C/T&A&B&K) χ P(T&A&B/K); substituindo em (5), temos (7) P(E/K) > P(E/T&A&B&CScD&K) χ P(C/T&A&B&K) χ P(TScA&B/K) χ P(D/AôdB&cC&K). Aplicando (3), substituindo mais algumas vezes e rearranjando termos, temos (8) P(E/K) > P(T/K) χ P(A /K&.T) χ P(B/K&T&A) χ P(C/K&T&A&B) χ P(D / K&T&A&B&C) χ P(E/K&T&A&B&C&D), que era o que estava por demonstrar. Em alguns casos, os valores adotados eram intervalos e não números pontuais, prohabilidades límpidas. Isso não é problema. Dado que vamos, de qualquer modo, acabar com a afirmação de que P(G/K) é igual ou maior do que dado número, limitemo-nos a usar os limites inferiores dos intervalos. Fazendo a aritmética no caso em mãos, acabamos com a proposição de que P(E/K) é de pelo menos .21. Se em vez de usarmos apenas os limites inferiores, usarmos os pontos intermédios dos intervalos atribuídos, estabeleceremos que P(G/K) é de pelo menos .35. Suponha-se que usemos os pontos intermédios (em vez de usarmos os limites inferiores): então, o nosso argumento só nos permite dizer que a probabilidade de G em K é de pelo menos .35. Podería ser mais

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

elevada, claro, mas tudo o que podemos dizer com confiança, dado o argumento, é que é igual ou maior do que .35. Ora, é claro que é ridículo atribuir números específicos e determinados a essas proba‫״‬ bilidades: há aqui muitas imprecisões. Não só não podemos atribuir de maneira sensata um número determinado a qualquer uma delas, como parece errado atribuir-lhes intervalos com limites definidos; o raciocínio que efetivamente fazemos é certamente mais vago. Talvez o melhor que possamos dizer é que essas probabilidades são elevadas, ou baixas, ou razoavelmente próximas de .5. Apesar disso, o nosso raciocínio, ainda que vago, teria de se guiar aqui de modo aproximado pelo cálculo de probabilidades; e a melhor maneira de ele se guiar assim é atribuir probabilidades (e intervalos de probabilidade) que estejam de acordo com as estimativas vagas que fazemos de modo sério e ponderado, verificando depois quais seriam as probabilidades daí decorrentes. Quando o fazemos no caso em mãos, na tentativa de estimar o poder de um argumento histórico a favor de G, um argumento que não se apoie na fé ou em quaisquer pressupostos teológicos especiais, o que podemos dizer é apenas que essa probabilidade é pelo menos suficientemente elevada para não ser muitíssimo menos provável do que a sua negação. Claro que podemos contestar os valores específicos que propus. Contudo, tentei errar com generosidade; e mesmo que postulássemos probabilidades ainda mais elevadas, o resultado não mudaria muito. A conclusão a se tirar, penso, é que K, o nosso conhecimento de fundo, histórico e não só (excluindo o que sabemos por meio da fé ou da revelação), está longe de ser suficiente para sustentar uma crença séria em G. Se K fosse tudo o que temos, o único curso sensato de ação seria o agnosticismo: “Não sei se G é verdadeira ou não: tudo o que posso dizer com certeza é que não é terrivelmente improvável”. O principal problema de um argumento histórico desse gênero, penso, é o chamado princípio das probabilidades decrescentes: o fato de, ao se apresentar um argumento histórico como esse, não podermos simplesmente anexar as proposições intermédias a K (como fazem efetivamente, receio, muitos dos que usam este gênero de argumento), sendo necessário, em vez disso, multiplicar as probabilidades em causa. E por essa razão que algo como o esquema proposto no modelo testemunhai é necessário para que os seres humanos sejam capazes de conhecer as verdades grandiosas do evangelho.V I. V I I . R e n o v a ç ã o c o g n it iv a

Segundo o próprio Jesus Cristo, “ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo” (Jo 3.3). E conforme o apóstolo Paulo, que não é uma autoridade tão elevada quanto Jesus Cristo, mas apesar disso não é também um incapaz, o crente cristão torna-se uma nova criatura em Cristo. O crente entra em um processo que o regenera, transforma, torna-o uma pessoa nova e melhor. Podemos dizer que adquire uma natureza nova e melhor. Essa natureza nova e melhor é também uma renovação, uma restauração da natureza com a qual a humanidade foi originalmente criada. O pecado danificou a nossa natureza;

O MODELO AQUINO/CALVINO ESTENDIDO: REVELADO AOS N OSSOS ESPÍRITOS

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a regeneração, a obra do Espírito Santo, é (entre outras coisas) uma questão de corrigir a natureza decaída e reparar o dano. As devastações do pecado foram de dois gêneros. Primeiro, efeitos afetivos·, o pecado induz uma espécie de loucura da vontade, pela qual deixamos de amar a Deus acima de tudo; no lugar, amamo-nos a nós mesmos acima de tudo. Mas, o dano foi também cognitivo. O pecado induz à cegueira, insensibilidade, estupidez, falta de sagacidade, pelo que ficamos cegos para Deus, não conseguimos ouvir a sua voz, não reconhecemos a sua beleza e glória, podemos até chegar a negar a sua existência. A regeneração cura as devastações do pecado — de maneira embrionária nesta vida, integralmente na próxima. Quais são exatamente os benefícios cognitivos da regeneração? Primeiro, há a reparação do sensus divinitatis, de maneira que uma vez mais podemos ver Deus e lembrarmo-nos dele nas situações em que aquele processo de produção de erenças foi concebido para funcionar. A obra do Espírito Santo vai mais longe. Dá-nos uma visão muito mais clara da beleza, esplendor, amor, fascínio e glória de Deus. Permite-nos ver um pouco da profundidade espetacular do amor revelado na encarnação e expiação. Correlativamente, dá-me também uma visão muito mais clara da odiosidade do pecado e do grau e da extensão em que nele me encontro mergulhado. Dá-me uma imagem melhor do meu próprio lugar no universo. Talvez eu já não me veja como o centro das coisas, nem os meus quereres, necessidades e desejos como mais importantes e mais dignos de serem atendidos do que os dos outros. Posso começar a perceber que tenho um lugar próprio como um dos filhos de Deus, todos de imenso e igual valor e importância, mesmo que todos sejamos muitíssimo menos valiosos e importantes do que Deus. Há também um certo benefício reflexivo. Parte do modelo que estou apresentando é em si a linha principal da crença cristã, e o modelo inclui a regeneração cognitiva que nos permite ver que essa parte do modelo é realmente verdadeira. João Calvino resumiu alguns desses benefícios cognitivos na sua famosa metáfora dos óculos: Como idosos ou homens de olhos cansados ou com fraca visão, se os pusermos perante o mais belo volume, mesmo reconhecendo tratar-se de um gênero qualquer de escrita, dificilmente distinguirão duas palavras, mas, com a ajuda de óculos, passarão a ler distintamente; assim também a Escritura, juntando o conhecimento de Deus que antes estava indistinto nos nossos espíritos, tendo dissipado a nossa apatia, mostra-nos claramente o verdadeiro Deus {Instituías, p. 70). Calvino está sugerindo aqui que o que aprendemos da Escritura c por fé congrega, põe em foco e clarifica o que aprendemos por meio do sensus divinitatis, permitindo-nos ver Deus e o seu amor, glória, beleza e outros aspectos semelhantes com muito mais nitidez. Ele podería ter acrescentado que nos dá também uma visão mais clara do nosso mundo: vemos agora o que é máximamente importante acerca de tudo o que há no céu e na Terra — nomeadamente, que tudo foi criado por Deus. Podemos até começar a perceber, se refletirmos, o que é mais importante acerca dos números, proposições,

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

propriedades, estados de coisas e mundos possíveis: a saber, que são na realidade pensamentos ou conceitos divinos.71 Mais ainda, permite-nos ver o que é mais importante acerca de nós mesmos, e ao fazê-lo remove o anulador que é o calcanhar de Aquiles do naturalismo. Como vimos no capítulo 7, um dos mais profundos efeitos noéticos do pecado é distorcer crenças acerca das nossas origens e acerca das origens dos nossos sistemas cognitivos: 0 pecado nos impede de ver que somos as criaturas de um Deus justo, que nos ama e nos criou à sua imagem. Podemos, ao contrário, começar a pensar que Deus é terrível e temível, em vez de um Pai bom e que nos ama, ou começar a pensar que Deus é distante e remoto, indiferente a nós e ao nosso bem-estar; podemos abraçar uma versão austera do teísmo, ou até o agnosticismo ou o naturalismo. Como vimos no capítulo 7, a probabilidade de as nossas faculdades cognitivas serem confiáveis, dada qualquer uma dessas perspectivas de Deus, é baixa ou inescrutável. Considere-se agora alguém que aceita uma dessas perspectivas e que vê a relação epistêmica entre essa perspectiva e R, a proposição de que as suas faculdades cognitivas são confiáveis. Essa pessoa tem um anulador para R — um anulador que não pode, ele próprio, ser anulado. E isso significa que ela sofre de outra deficiência noética: tem um anulador para qualquer uma das suas crenças e está, consequentemente, em uma condição irracional. Entretanto, a restauração e a cura induzidas pela obra do Espírito Santo contrariam também esse efeito noético do pecado. Restauram-nos, deixando-nos de novo em condições de ver que fomos criados à imagem de Deus; ao restaurar-nos, removem esse anulador. Uma objeção popular ao argumento evolucionista contra o naturalismo é um tu quoque — sintéticamente, “igualmente, amigo”. A versão talvez mais poderosa desta objeção é a de Keith Lehrer. Considere-se o teísmo (e chamemos-lhe “T ”) — não o teísmo austero, mas o teísmo em si, incluindo a proposição de que nós e as nossas faculdades cognitivas fomos criados por um Deus justo que nos ama e nos criou à sua imagem. Qual é a P(R/T)? Bem, talvez não seja tão elevada quanto o leitor pensa. O fato de Deus ser justo e de nos amar não impede todos os males a que estamos sujeitos — guerra, crueldade, fome, terremotos, enchentes, incêndios e epidemias. Concedendo que Deus tem boas razões para permitir essas coisas, elas ocorrem efetivamente e por isso são claramente compatíveis com o fato de termos sido criados por um Pai justo e que nos ama. Assim, mesmo que Deus tenha criado a humanidade, ele poderá ter as boas razões para permitir que soframos de uma disfunção cognitiva qualquer, de uma doença ou perturbação cognitiva; e essa perturbação poderá inibir a confiabilidade das nossas faculdades cognitivas. Mesmo que Deus seja integralmente bondoso, permitiu, ou talvez tenha permitido, que Satanás introduzisse o mal natural onipresente no mundo; mas então não podería ele 71Veja Thomas Morris; Christopher Menzel, “Absolute creation”, American Philosophical Quarterly (Outubro de 1986) e Christopher Menzel, “Theism, platonism, and the metaphysics o f mathematics”, in: Michael Beaty, org., Christian theism and the problems of philosophy (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1990). Esse “conceitualismo teísta” é controverso, ainda que seja certamentc a opinião majoritária na tradição daqueles teístas que pensaram sobre o tema.

O MODELO AQUINO/CALVINO ESTENDIDO: REVELADO AOS N OSSOS ESPÍRITOS

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também permitir que Satanás (o pai da mentira) introduzisse no mundo um erro onipresente? (Na verdade, ele não fez precisamente isso ao nos permitir cair em pecado?) Lehrer desenvolve essa ideia: Considere-se, por fim, S

Satanás e seus sequazes produzem incríveis ardis de erro

E

Os processos evolutivos produzem incríveis ardis de erro.

com

Pouco vejo que me permita escolher uma delas. Um naturalista que deseje atribuir uma probabilidade elevada à conclusão de que o funcionamento apropriado das nossas faculdades dá lugar à verdade porque estas são o resultado da evolução deve atribuir uma probabilidade baixa a E, ao passo que o sobrenaturalista que deseje atribuir uma probabilidade elevada à conclusão de que o funcionamento apropriado das nossas faculdades dá lugar à verdade porque foram concebidas por Deus deve atribuir uma baixa probabilidade a S.72 E, de fato, é claro, o cristianismo postula que algo parecido com isso realmente aconteceu: Deus permitiu que caíssemos em pecado e que este tivesse efeitos noéticos. Assim, qual é a P(R/T)? Não teremos de dizer que é baixa ou no mínimo inescrutável, tal como P(R/N&E)? Assim, não se junta o teísta ao naturalista, por ter um anulador para qualquer uma das suas crenças? Não estará ele no mesmíssimo barco epistêmico furado? Essa é uma objeção formidável, mas há uma resposta.73 Pois o cristão não aceita apenas o teísmo; aceita também o restante da narrativa cristã, incluindo a queda (junto com a corrupção da imagem de Deus), a redenção, a regeneração e a consequente reparação e restauração dessa imagem. Ele acredita que conhece essas verdades por meio da revelação divina. Porém conhece também, ou pensa que conhece, a verdade do teísmo por meio da revelação divina. E isso o salva (ou, antes, salva R) da derrota. Considere-se uma analogia. Suponha-se que o leitor me diga que (1) Feike é um rico excêntrico que adora usar roupas velhas surradas do depósito de roupas para pobres. Com base no princípio de que é sempre uma boa ideia adquirir algumas crenças verdadeiras novas, infiro

72No seu “Proper function vs. systematic coherence", in: Jonathan Kvanvig, org., Warrant in contemporary epistemology: essays in honor ofPlantinga’s theory of knowledge (Lanham: Rowman and Littlefield, 1996), p. 2 9 3 0 ‫־‬. 73Veja o meu “Respondeo”, in: Warrant in contemporary epistemology, p. 333-8.

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(2) Feike usa roupas velhas surradas. Desde há algum tempo acredito também que (3) Feike é um milionário. No entanto, agora me dou conta de que P((3)/(2)) é baixa (a maior parte das pessoas que usa roupas velhas surradas não é milionária); concluo com considerável perplexidade que (2) é um anulador, para mim, de (3), e faço todo o possível para me abster de acreditar em (3). O meu erro é evidente: (2) não é, de fato, um anulador de (3) para mim. Por quê? Bem, para começar, porque vejo que o aval que (2) tem para mim é derivado e não primitivo, sendo baseado no aval que (1) tem para mim; e é óbvio que (1) não é, para mim, um anulador de (3). Entretanto, isso também significa que (2) não é um anulador de (3). Se o leitor está em busca de um princípio, tente este: (4) Se (i) S acredita em A, B e C, e (ii) S acredita que o aval que B tem para S é derivado do aval que A tem para S, e (iii) S acredita que A não é um anulador, para S, de C, então B não é um anulador, para S, de C.74 Esse princípio, como digo, salva R da anulação para o teísta cristão (e também salva da anulação o argumento evolucionista contra o naturalismo por meio desse tu quoque), pois o teísta cristão acredita conhecer toda a narrativa cristã ou, ao menos, esta tem para ele um aval considerável. O teísmo faz parte dessa história, e o aval que o teísmo tem para ele é derivado do aval que toda a narrativa cristã tem para ele. Assim, por (4), o teísmo não será um anulador de R, para ele, a menos que toda a narrativa cristã o seja. Mas não é. Logo, o teísmo não é, para ele, um anulador de R e a objeção evapora-se. Para expor uma vez mais as características essenciais do modelo, a instigação interna do Espírito Santo, operando em harmonia com a doutrina de Deus na Escritura, é um processo cognitivo ou mecanismo de produção de crenças que gera em nós as crenças que constituem a fé, assim como várias outras crenças. Estas, é claro, parecem verdadeiras ao crente: isso está implícito no fato de serem crenças. Elas têm as características internas da crença, de parecer que são verdadeiras; e podem ter isso em vários graus. Além disso, do ponto de vista do modelo, essas crenças estarão justificadas e terão também pelo menos dois outros tipos de virtudes. Em primeiro lugar, são internamente racionais, à medida que a resposta do crente à experiência que ele tem (dadas suas crenças anteriores) situa-se no domínio permitido pela racionalidade, ou seja, pelo funcionamento apropriado; nada há aqui de patológico. E em segundo lugar, as crenças em questão têm aval: são produzidas por processos cognitivos funcionando apropriadamente em um ambiente apropriado 74“Derivado” aqui deve ser entendido de maneira restrita, de modo que o caso paradigmático cm que o aval de p é derivado, para mim, do aval de g é (como nesse caso) onde infiro p de q (explícita ou implicitamente). De fato, podemos tornar (4) mais forte enfraquecendo a antecedente de várias maneiras.

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segundo um plano de designio que visa com êxito à produção de crenças verdadeiras. Certamente que o processo em questão não é como nossos mecanismos comuns de produção de crenças devidos exclusivamente à criação; ele funciona por meio de uma operação especial do Espírito Santo. Recorde-se a zombaria sarcástica de Hume: Em suma, podemos concluir que a Christian religion [religião cristã] não só foi acompanhada por milagres em seu início, mas também, mesmo hoje, não pode ser acreditada por qualquer pessoa razoável sem que ocorra um milagre [...] Quem for instado pela Fé a dar-lhe assentimento está ciente de um milagre contínuo na sua pessoa, que subverte todos os princípios do seu entendimento e lhe dá a determinação de acreditar no que é mais contrário ao costume e à experiência.75 Segundo o modelo testemunhai, Hume (sarcasmo à parte) tem um tanto de razão: a crença nas linhas principais do evangelho é produzida nos cristãos por uma obra especial do Espírito Santo, e não pelas faculdades e processos de produção de crenças com os quais fomos originalmente criados. Além disso, algumas das coisas em que os cristãos acreditam (p. ex., que um ser humano estava morto e ressuscitou dos mortos) são, como afirma Hume, contrárias ao costume e à experiência: raramente acontecem. Claro que não se segue, ao contrário da sugestão implícita de Hume, que há algo de irracional ou contrário à razão em acreditar nisso, dada a instigação interna do Espírito Santo. O que defendo com respeito a esse modelo é que ele não enfrenta quaisquer objeções filosóficas bem-sucedidas (e no cap. 10 verei algumas das objeções); no que se refere às considerações filosóficas, dada a veracidade da crença cristã, esse modelo, ou algo muito parecido, talvez não seja senão a verdade pura e simples. Claro que poderá haver objeções filosóficas à veracidade da própria crença cristã; vou considerar algumas na quarta parte, sob a forma de amoladores. Entretanto, a questão aqui é que, se a crença cristã for verdadeira, é muito possível que ela tenha aval do modo aqui proposto. Se (como defendo) o fato é que não há boas objeções filosóficas ao modelo, dada a veracidade da crença cristã, então qualquer objeção bem-sucedida ao modelo deverá ser também uma objeção bem-sucedida à veracidade da crença cristã. Podemos dar mais um passo. Se a crença cristã for verdadeira, é muito provável que tenha aval — se não da maneira que se propõe no modelo A/C estendido, de outra maneira semelhante. Pois se for verdadeira, então, efetivamente, existe a pessoa de Deus, que nos criou à sua imagem; caímos em pecado e carecemos de salvação; e os meios para essa restauração e renovação foram fornecidos pela encarnação, sofrimento, morte e ressurreição de Jesus Cristo, a segunda pessoa da Trindade. Além disso, a maneira pela qual tipicamente nos apropriamos dessa restauração é por meio da fé que, é claro, envolve a crença nessas coisas — isto é, envolve a crença nas coisas grandiosas do evangelho.

1sAn enquiry concerning human understanding (La Salic: Open Court, 1956), p. 145 [edição cm português: Investigação sobre o entendimento humano (São Paulo: Unesp, 2004)].

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Sendo assim, contudo, Deus quereria que estivéssemos cientes dessas verdades. E se isso for desse modo é natural pensai‫ ־‬que os processos cognitivos que efetivamente produzem a crença nos elementos centrais da fé cristã foram criados precisamente para gerarem essa crença. Mas, nesse caso, essas crenças têm aval. Quem leu o seu Gettier76 poderá objetar: “Não seria possível que Deus houvesse criado certo processo^) em nós para que conhecéssemos as coisas grandiosas do evangelho; que esse processo funcione habitualmente mal, não produzindo qualquer crença; e que outro processop* também (e fortuitamente) funcione mal, precisamente para produzir em nós as mesmíssimas crenças que p teria produzido se não tivesse funcionado mal? Nesse caso, a narrativa cristã seria verdadeira, mas a crença cristã não teria aval”. Sem dúvida esse cenário seria possível, ainda que seja um pouco mirabolante. Mesmo que tenha acontecido, contudo, não se seguiría que a crença cristã, produzida desse modo, não teria aval. Mesmo que a crença cristã tivesse sido (o que é altamente improvável) produzida por um processo p * originalmente concebido para outro propósito, não se seguiría que a crença cristã não teria aval, pois talvez Deus tenha adotadop* e a sua nova maneira de funcionar como parte do plano de desígnio dos seres humanos. Então, uma vez mais, a crença cristã teria aval, ainda que de maneira meio indireta. Por último, gostaria de perguntar como o projeto deste livro se compara com o magistrai Perceiving God, de William Alston.77 Há muitas semelhanças e sobreposições, mas também diferenças importantes. Primeiro, a tese central do livro de Alston é que “a consciência experiencial de Deus, ou, como irei dizer, a percepção de Deus, é uma contribuição importante para os fundamentos da crença religiosa” (p. 1). As crenças religiosas em questão são de dois gêneros: “crenças de que Deus está fazendo algo com respeito ao sujeito — confortando‫־‬o, dando-lhe força, guiando-o [...] — ou de que Deus tem determinada propriedade (supostamente) percepcionável — bondade, poder, beleza” (p. 1). Que tipo de contribuição a consciência experiencial de Deus fornece aos fundamentos de tais crenças? “Mais específicamente, uma pessoa pode se tornar justificada ao sustentar certos tipos de crenças acerca de Deus em virtude de percepcionar que Deus é ou faz tal e tal” (p. 1). A tese central de Alston, penso, é que essa consciência experiencial de Deus (ou seja, aquilo que ao sujeito parece ser uma consciência experiencial de Deus) permite que o crente seja racional em termos práticos nas práticas doxásticas em questão e que o seja também ao tomar essas práticas como uma fonte de justificação epistêmica (veja o cap. 4 para a minha avaliação do sucesso dessa tese). O meu projeto difere disso com respeito a três aspectos. Primeiro, não estou preocupado especialmente com os dois tipos de crenças que Alston menciona, mas sim com as teses e crenças centrais da fé cristã. Não dou atenção apenas a crenças acerca das propriedades (supostamente) percepcionáveis de Deus ou de suas ações atuais com respeito ao crente. Em vez disso, o meu objetivo é examinar o status epistêmico das coisas grandiosas 7‘Veja WPF, p.32ss. 77Ithaca: Cornell University Press, 1991. Os números das páginas referidos de ora em diante se referem a esse livro. Veja o cap. 6.

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do evangelho: que Jesus Cristo é a segunda pessoa da Trindade, que se encarnou, sofreu, morreu e ressuscitou dos mortos, e que ao expiar os nossos pecados tornou possível que atingíssemos uma relação correta com Deus. Segundo, a propriedade epistêmica em que estou mais interessado não é a justificação, tomada deontologicamente ou do modo que Alston a toma, mas o aval: será que a crença cristã tem, ou pode ter, essa propriedade que, em quantidade suficiente, é o que distingue o conhecimento da mera crença verdadeira? E poderá (se for verdadeira) ter essa propriedade em quantidade suficiente para que constitua conhecimento? Terceiro, não argumento que essas crenças cristãs tenham ou possam ter aval por meio dapercepção ou da consciência experiencial de Deus ou da sua presença ou propriedades, mas por meio da fé. Um projeto análogo ao de Alston próximo do meu seria uma tentativa de argumentar que os tipos de crenças que ele menciona — que Deus tem propriedades percepcionáveis e que está agindo de certo modo com respeito ao crente — poderíam ter aval por meio da percepção (não há objeções filosóficas bem-sucedidas a essa tese) e que, de uma perspectiva cristã, a maneira mais satisfatória de entender o seu aval é do ponto de vista da percepção de Deus e de suas propriedades: se a crença cristã for, de fato, verdadeira, então (provavelmente) essas crenças têm aval dessa maneira. O que dizer dessas sugestões? Primeiro, penso que Alston derrotou adequadamente (e mais do que adequadamente) as objeções filosóficas principais à ideia de que os seres humanos podem percepcionar Deus e percepcionar que ele é misericordioso, belo, poderoso, glorioso, amoroso e assim por diante. Nesse ponto, Alston está próximo de Jonathan Edwards, a quem defendí ser adequado considerar que ele sustenta que, de fato, percepcionamos Deus (e não apenas que podemos fazê-lo) e que percepcionamos essas coisas quanto a ele. Tenho apenas um comentário a fazer aqui. Parece, sem dúvida, que os seres humanos têm a experiência de Deus e que têm experiência de que ele é tudo isso. Parece realmente a muitos que Deus está presente às nossas consciências um pouco como qualquer objeto perceptível pode estar presente à minha consciência; é igualmente claro que, para muitos que têm tal experiência, parece que Deus tem as propriedades em questão. No entanto, será que esses casos realmente são casos de percepção? Por um lado, eles exibem várias diferenças patentes relativamente aos casos paradigmáticos de percepção, como a percepção de árvores, cavalos e outras pessoas: em particular, a fenomenología é bastante diferente. (Claro que a fenomenología das várias modalidades sensíveis da percepção diferem, elas mesmas, entre si.) Por outro lado, há a semelhança crucial de que nesse caso, tal como nos casos sensoriais paradigmáticos, há a impressão de estar na presença do objeto em questão, a impressão poderosa de que o objeto estápresente ou apresenta-se à nossa consciência. O que há a dizer, penso, é que, nesses casos de hipotética percepção de Deus, o termo "percepção” se aplica de um modo perfeitamente direto ou, então, alternativamente, por analogia próxima. Qual dessas alternativas é a verdadeira? Talvez não seja uma questão muito importante. Se não se trata exatamente de uma percepção, trata-se de algo íntima e analógicamente relacionado com a percepção, e de tal modo relacionado com ela que (se, de fato, as coisas forem como parecem ser para o crente) também pode perfeitamente ser uma fonte de crença avalizada. Assim, tenho muita simpatia por um projeto como o de Alston e estaria na verdade disposto a sancioná-lo. Além disso, apesar de não ser para mim inteiramente claro qual é a noção de racionalidade prática de Alston

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(veja acima, p. 119ss.), acredito que ela não anda longe da minha noção de racionalidade interna·, concordaria consequentemente com ele que a crença cristã goza realmente desses gêneros de status epistêmico positivo. O meu projeto difere do de Alston, pois, pelo fato de eu não me ocupar apenas daquelas crenças perceptivas (ou “perceptivas”, entre aspas) que Alston menciona. Além disso (e nesse ponto não estou, tanto quanto sei, contestando seja o que for que Alston afirma), duvido que a percepção de Deus, no sentido definido por ele, seja o caminho preferencial para a formação de crenças cristãs. Em primeiro lugar, como ele afirma, só poucos felizardos percepcionam Deus com alguma regularidade.78 Em segundo lugar, os tipos de crenças que estão no centro das minhas atenções não parecem surgir comumente aos crentes por meio da percepção. E isso ocorre mesmo que essas crenças não se formem nas situações mais habituais e comuns em que se formam e sustentam as crenças cristãs. E o caso da famosa experiência de John Wesley: Ao entardecer, muito contra a vontade, fui a uma sociedade na Rua Aldersgate onde alguém estava lendo o Prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos. Cerca de quinze para as nove, quando ele descrevia a mudança que Deus opera no coração por meio da fé em Cristo, senti o meu coração estranhamente ardente. Senti que confiava em Cristo e só nele para a salvação; e foi-me dada a certeza de que ele havia eliminado os meus pecados, os meus específicamente, e havia salvado a mim da lei do pecado e da morte.79 Nesse caso, o que Wesley começa a crer, ou a crer mais profundamente, é apenas o que o Catecismo de Heidelberg considera ser o conteúdo da verdadeira fé: que o esquema divino da salvação se nos aplica pessoalmente. Pelo que parece, contudo, isso não foi uma questão de percepcionar Deus. Ocorreu, realmente, uma fenomenología sensorial (“senti o meu coração estranhamente ardente”), e de um tipo comum; mas ela não parece perceptiva. Na verdade, é claro que não é possível percepcionar, por exemplo, que Cristo eliminou os meus pecados, ou que ele é a encarnação da segunda pessoa da Trindade, ou que sofreu e morreu, permitindo-nos assim ter a vida. Considere-se também a visão do apóstolo Paulo na estrada de Damasco: sem dúvida que ele percepcionou Jesus, e além disso percepcionou que ele afirmava ser realmente o Cristo. Assim, é certamente possível percepcionar Jesus, o Cristo, e percepcionar que ele está dizendo que é o Cristo; apesar disso, poderemos percepcionar que Jesus é efetivamente o Cristo? Que é efetivamente a segunda pessoa da Trindade? Tendo a duvidar. E, nos casos mais comuns nos quais a crença de alguém nas coisas grandiosas do evangelho surge por meio da fé (isto é, Escritura/instigação interna do Espírito Santo/fé), parece ainda menos razoável constderar que sejam casos de percepção. Assim, a percepção de Deus é algo que existe; além disso, essa percepção desempenha um papel importante na vida religiosa e espiritual de muitos cristãos, em particular cristãos que foram abençoados com um progresso considerável na vida espiritual. Podemos*7 78“A consdcnda cxperiendal de Deus é um fenômeno raro, exceto para pouquíssimas almas”(Perceiving God, p. 36). 7'John Wesley, edição de Albert Outler (New York: Oxford University Press, 1964), p. 66.

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até pensar, seguindo Edwards, que a percepção de Dcus — pcrccpcionar que ele c amoroso, misericordioso, santo, glorioso etc. — é um elemento essencial de urna vida crista plena e substancial. Concordo, além disso, que estas crenças perceptivas podcm ter aval. As crenças cristas centrais, contudo, não são perceptivas; não surgem por meio da percepção de Deus, mas sim por meio da fé. O aval que essas crenças têm não é perceptivo; é obtido por meio da fé. Em suma, a percepção de Deus é uma parte importante de uma vida cristã madura, mas a maturidade na vida cristã não é alcançada pela maior parte de nós; e mesmo para os poucos afortunados que atingem a maturidade, o aval que as suas crenças cristãs centrais têm não é obtido por meio da percepção. Consequentemente, considero aqui que o projeto de Alston abrange apenas parte do território epistemológico em causa — uma parte importante, mas apenas uma parte, e não a parte por meio da qual as crenças centrais da fé cristã têm aval.

O modelo testemunhai: selado nos nossos corações Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças e com todo o entendimento... (Lcll.27). Jesus Cristo ... mesmo que eu tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios, e tivesse todo o conhecimento, e mesmo que tivesse fé suficiente para mover montanhas, mas não tivesse amor, eu nada seria (ICo 13.2). Apóstolo Paulo Quem tem apenas conhecimento doutrinai e especulação, sem afeição, nunca se entrega às atividades da religião. Jonathan Edwards I. C r e n ç a e a f e iç ã o

No capítulo 8, propus um modelo para demonstrar como a crença cristã pode ter aval. Nesse modelo, a crença cristã é produzida no crente por meio da instigação interna do Espírito Santo, sancionando as doutrinas da Escritura, que foi por sua vez inspirada pelo Espírito. O resultado da obra do Espírito Santo é a f é — que, tanto segundo João Calvino como segundo o modelo, é “um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco, fundado na verdade da promessa livremente dada em Cristo, revelado aos nossos espíritos e selado nos nossos corações por meio do Espírito Santo”. De acordo com o modelo, essas crenças gozam de justificação, racionalidade e aval. Podemos, portanto, dizer com Calvino que são “reveladas aos nossos espíritos”. Mas há mais: elas são também “seladas nos nossos corações”. O que significa isso e como figura no nosso modelo? Dado que essas verdades são reveladas aos nossos espíritos, de que mais poderiamos precisar? Por que precisam também ser seladas nos nossos corações? Para responder, suponha-se que perguntemos se uma pessoa poderia ter as crenças em questão, mas, apesar disso, não ter fé. A resposta tradicional cristã é: “Sim: os demônios também creem, mas estremecem” (Tg 2.19);1 e os demônios não têm fé. Qual é então a 1Talvez seja necessário fazer uma ressalva. O conteúdo da fé é plausivclmente indexical: uma pessoa x só tem fé se acreditar ou souber que Deus é benevolente para com ela própria, x. No entanto, talvez os demônios não acreditem que Deus é benevolente para com eles. Sabem que Deus é todo-poderoso, onisciente c perfeitamente bom, e que

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diferença? O que mais caracteriza a fé, além da crença? O que distingue o crente cristão dos demônios? Segundo o modelo,2 a forma da resposta é dada no texto supramencionado: os demônios estremecem. Acreditam nessas coisas, mas odeiam-nas\ e também odeiam Deus. Talvez também tenham a esperança, contra toda a esperança, de que elas não sejam realmente como se diz que são, ou talvez acreditem nelas com autoengano. Têm conhecimento do poder de Deus e sabem que não têm nenhuma esperança de ganhar qualquer competição de poder com ele; contudo, entregam-se precisamente a essa competição, talvez naquele estado de autoengano em que na verdade sabem, em certo sentido, que não têm a possibilidade de ganhar, ao mesmo tempo que em outro nível se recusam a aceitar essa verdade ou a escondem de si mesmos.3 Ou talvez o problema aqui não seja meramente cognitivo, mas também afetivo: sabendo que não poderíam ganhar, insistem em lutar, vendo-se a si mesmos como corajosos guerreiros em uma luta prometeica e heroica contra obstáculos quase insuperáveis — uma condição, observam, na qual Deus nunca se encontra, e assim um aspecto em que podem considerar-se moralmente superiores a Deus. Os demônios conhecem também o maravilhoso esquema de Deus para a salvação dos seres humanos, mas consideram-no — por se basear na misericórdia e em um amor longânime — ofensivo e indigno. Sancionam sem dúvida a noção de Nietzsche de que o amor cristão (incluindo o amor que se manifestou na encarnação e na expiação) é fraco, choroso, ressentido, servil, dúplice, pusilânime, tergiversador; em suma, repulsivo. A pessoa de fé, contudo, não acredita apenas nas afirmações centrais da fé cristã; também considera (paradigmáticamente) o esquema da salvação, no seu todo, imensámente atraente, encantador, comovente, uma fonte de reverente maravilhamento. Ela é profundamente agradecida ao Senhor pela sua imensa bondade e responde com o próprio amor ao amor sacrificial que ele manifestou. A diferença entre o crente e o demônio, portanto, está na área das afeições: do amor e do ódio, da atração e da repulsa, do desejo e da aversão. Nas categorias tradicionais, a diferença está na orientação da vontade. Não está primariamente na função executiva da vontade (a função de tomar decisões, de procurar e evitar vários estados de coisas), apesar de também isso estar envolvido, mas está na sua função afetiva, a sua função de amar e odiar, considerar atraente ou repulsivo, aprovar ou desaprovar. E o crente, a pessoa de fé, tem não somente as crenças corretas, mas também as afeições corretas. A conversão e a regeneração alteram as afeições tal como alteram a crença. Segundo Calvino, é o Espírito Santo que é responsável por selar nos nossos corações esse conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco; é o Espírito

providenciou uma maneira de salvar os seres humanos; mas talvez rejeitem a crença dc que Deus é benevolente para com eles (note-se, a propósito, que o autor de Tiago parece usar, às vezes, no cap. 2, p. ex., o termo “fé" para falar de um mero assentimento cognitivo ou intelectual.) 2E talvez também segundo Calvino. Ele entende essa selagem como no primeiro caso: c uma questão de Deus pôr a sua marca, carimbo, selo, no crente; mas talvez esse selo consista nas afeições apropriadas por parte do crente. 3Veja Milton, Paradise lost, livros 5 e 6 [edição em português: Paraíso perdido (São Paulo: Editora 34,2015)].

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Santo o responsável por essa renovação e redirecionamento das afeições. Calvino é às vezes retratado como espiritualmente frio, distante, indiferente, hiper-racionalista — uma pessoa na qual o intelecto é predominante de modo inadequado. Essas acusações podem ter (ou não) alguma validade com respeito à escolástica reformada do século seguinte; contudo, mesmo um exame rápido da obra de Calvino revela que, no que lhe concerne, são muitíssimo incorretas.4 O emblema de Calvino era um coração flamejante em uma mão estendida e incluía o lema Cor meum quasi immolatum tibi offero, Domine.5 Do Espírito Santo, afirma que “fazendo evaporar e carbonizando persistentemente os nossos desejos viciosos e desmedidos, inflama os nossos corações com o amor a Deus e zelosa devoção”.6As Instituías visa sem titubear à.prática da vida cristã (que envolve essencialmente as afeições) e não à teoria teológica; esta última só tem cabimento a serviço da primeira. Assim, a diferença inicial entre o crente e os demônios são as afeições: o primeiro é inspirado para sentir gratidão e amor, os outros sentem medo, ódio e desprezo. O Espírito Santo produz um conhecimento no crente; ao selar esse conhecimento nos nossos corações, contudo, produz também as afeições corretas. A principal delas é o amor a Deus — desejar Deus, desejar conhecê-lo, ter uma relação pessoal com ele, desejar atingir determinado tipo de união com ele, assim como sentir deleite nele, desfrutar da sua beleza, grandiosidade, santidade etc. Há também confiança, aprovação, gratidão, intenção de agradar, esperança por coisas boas e muito mais. A fé, portanto, não é apenas uma questão de acreditar em certas proposições — nem sequer nas proposições momentosas do evangelho. A fé é mais do que a crença; ao produzir a fé, o Espírito Santo faz mais do que gerar em nós a crença de que esta ou aquela proposição é realmente verdadeira. Como Tomás de Aquino repete quatro vezes em cinco páginas, “o Espírito Santo torna-nos amantes de Deus”.7 E segundo Martinho Lutero, ... há duas maneiras de acreditar. Em primeiro lugar, posso ter fé a respeito de Deus. E o que acontece quando considero verdadeiro o que se diz acerca de Deus. Essa fé está no mesmo patamar de assentimento que dou a afirmações sobre os turcos, o demônio e o inferno. 4Veja, p. ex., Dennis Tamburello, Union with Christ: John Calvin and the mysticism of St. Bernard (Louisville: Westminster John Knox Press, 1994), caps. 1— 3. 5“O meu coração, como que em chamas, a ti ofereço, ó Senhor”. Essa fenomenología particular — uma fenomenologia que se exprime naturalmente da perspectiva de o nosso coração ficar aquecido ou até em chamas — remonta na tradição cristã pelo menos aos discípulos que encontraram o Cristo ressuscitado na estrada para Emaús: “Então os olhos deles foram abertos, e o reconheceram; e ele desapareceu de diante deles. E disseram uns aos outros: Acaso o nosso coração não ardia pelo caminho, quando ele nos falava e nos abria as Escrituras?” (Lc 2 4 .3 1 3 2 ‫)־‬. Há passagens paralelas em Tomás de Aquino; e no Prefácio à Epístola aos Romanos (1522), Lutero afirma que a fé “põe o coração em chamas”. John Wesley descreve: “alguém estava lendo o Prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos [...] senti o meu coração estranhamente ardente”. Na tradição ortodoxa, São Serafim de Sarov relata algo scmclhante (veja William Abraham, “The epistemological significance o f the inner witness o f the Holy Spirit”, Faith and Philosophy 7, n. 4, p. 440). 6John Calvin, Institutes of the Christian religion, edição de John T. McNeill c tradução para o ingles de Ford Lewis Battles (Filadélfia: Westminster Press, 1960 [publicado originalmente em 1559]), III, i, 3, p. 540 [edição em português: João Calvino, ví instituição da religião cristã (São Paulo: Uncsp, 2008), 2 vols.]. 7Summa contra gentiles, tradução para o inglês de Charles J. O ’Neil (Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1975), Livro 4, cap. 21,22 (p. 122,125,126).

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Uma fé deste tipo deveria chamar-se conhecimento ou informação, em vez de fé. Em segundo lugar, há a fé em. Essa fé é minha quando não só considero verdadeiro o que se diz acerca de Deus, mas quando confio nele de tal modo que entro em uma relação pessoal com ele, acreditando firmemente que descobrirei que ele é e faz como me foi ensinado. [...] A palavra em foi bem escolhida e merece a nossa atenção. Não dizemos acredito que Deus Pai ou a respeito de Deus Pai, mas sim em Deus Pai, em Jesus Cristo e no Espírito Santo.8 Nos passos de Lutero, podemos distinguir entre acreditar em Deus e acreditar que Deus existe. Esta última modalidade tem dois tipos: o teísmo e acreditar de re, acerca de Deus, que ele existe. Um teísta acredita em certa proposição: que há uma pessoa onipotente, onisciente e completamente boa que criou e sustenta o mundo. Como Deus é realmente o único ser que satisfaz essa condição, o teísta acredita que existe esse ser, mas também, sem dúvida, acredita de Deus, o ser que de fato satisfaz essa descrição, que ele existe. Não é necessário, contudo, que acredite nesta última afirmação; talvez ele forme a crença de dicto, mas nunca execute o ato de re de acreditar qualquer coisa do ser em questão. E ainda mais claro que se pode acreditar, de Deus, que ele existe, sem se ser um teísta: uma pessoa pode acreditar de Deus que ele existe ainda que essa pessoa esteja (do ponto de vista do teísta) confundida e enganada em relação às propriedades de Deus. Talvez eu encontre Deus na minha experiência, acreditando que ele me ama, ou talvez eu o selecione como o ser a que os meus pais prestam culto. Então, acreditarei de Deus que ele existe, apesar de não acreditar (por exemplo) que Deus criou o mundo (talvez, como alguns mórmons, eu pense que o próprio Deus foi criado, acrescentando que o mundo sempre existiu e não foi criado). E até possível acreditar de Deus que ele existe e ser ateu: encontro Deus na minha experiência, acredito da coisa que encontrei que ela exista, mas não acredito que essa coisa que encontrei, onipotente, onisciente, totalmente boa ou que criou o mundo; e acredito também que não exista nada com essas propriedades. Acreditar em Deus, é claro, é diferente de acreditar de Deus que ele existe, e também é diferente de ser teísta. Os demônios, sem dúvida, são teístas e também acreditam de Deus que ele existe; os demônios não acreditam em Deus, porque não confiam e amam Deus e não fazem seus os propósitos de Deus. II. J onathan E dwards

O nosso tópico, portanto, envolve essencialmente as afeições. Ao tentar entender as afeições religiosas, é óbvio que o melhor que temos a fazer é consultar Jonathan Edwards, um dos grandes mestres da vida interior e um estudioso inigualável das afeições religiosas. Edwards, para começar, concorda com Calvino em que a verdadeira religião é mais que a crença correta. Na verdade, segundo ele, a verdadeira religião é em primeiro lugar uma questão de ter as afeições corretas: “A verdadeira religião, em grande parte, 8Luther, Catechetical ■writings, organização de J. N. Lenker (Mincápolis: Lutheran Press, 1907), 2 vols., 1:203, citado em H. R. Niebuhr, Faith on earth (New Haven: Yale University Press, 1989), p. 9. Considere-sc também Pascal: “Assim, aqueles a quem Deus transmitiu a religião pelo sentimento do coração são muito afortunados e foram adequadamente convencidos” (Pensées, tradução para o inglês de M.Turnell [London: Harvill Press, 1962], p. 282) [edição em português: Pensamentos (São Paulo: W MF Martins Fontes, 2005)].

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consiste em afeições santas”.9“As Escrituras Sagradas, em todas as suas partes, localizam a religião nas afeições, como o medo, a esperança, o amor, o ódio, o desejo, a alegria, a tristeza, a gratidão, a compaixão e o zelo”(p. 102). O mero conhecimento não é suficiente para a verdadeira religião: Há uma distinção entre um entendimento meramente intelectual, no qual o espírito só contempla coisas no exercício da faculdade especulativa; e o sentido do coração, no qual o espírito não se limita a especular e contemplar, mas também desfruta e sente. Esse gênero de conhecimento, pelo qual um homem tem uma percepção sensível do que é desejável ou repulsivo, ou do que é doce ou nauseabundo, não é em absoluto o mesmo gênero de conhecimento pelo qual ele sabe o que é um triângulo ou um quadrado. Um é simples conhecimento especulativo; outro é um conhecimento sensível, que não envolve somente o mero intelecto; seu sujeito é o coração, ou a alma como um ser que não só contempla, mas tem apetites e se agrada ou desagrada (p. 272). Claro que ele não pensa que a verdadeira religião é apenas uma questão de afeições, de amores e ódios, como se a crença e o entendimento não desempenhassem qualquer papel: “As afeições santas não são um fogo sem luz; antes, nascem sempre de uma informação do entendimento, de uma instrução espiritual que o espírito recebe, uma luz ou conhecimento propriamente dito” (p. 266). Apesar disso, a verdadeira religião envolve primariamente (parece ele dizer) as afeições, em particular o amor: “toda a verdadeira religião consiste sumariamente em amar as coisas divinas” (p. 271). E o amor traz outras afeições em si: “o amor a Deus”, afirma, “leva o homem a se deleitar nos pensamentos de Deus, a se deleitar na presença de Deus, e o faz desejar a conformidade com Deus e o gozo de Deus” (p. 208); em outra passagem, acrescenta que quem ama a Deus se deleitará também na contemplação das coisas grandiosas do evangelho, tendo prazer nelas, considerando-as atraentes, maravilhosas, cativantes (p. 250). Além disso, quem se deleita assim nas verdades grandiosas do evangelho ver-se-á talvez enojado com as tentativas (veja cap. 2) de trocar esse evangelho espléndidamente rico e poderoso por substitutos baratos e triviais. Ademais, adquirir as afeições corretas permite-nos ver a verdadeira atrocidade do pecado: “quem vê a beleza da santidade, deve necessariamente ver a odiosidade do pecado, o seu contrário” (p. 274); e quem vê a odiosidade do pecado (em si e nos outros) também (dado o funcionamento apropriado) o odiará.

A. Intelecto e vontade: qual tem precedência? No entanto, como isso funciona exatamente? Qual é aqui a relação entre afeição e crença, entre vontade e intelecto? Qual vem primeiro, se algum deles o faz? Será que primeiro 9/ í treatise concerning religious affections, edição de John E, Smitli (New Haven: Yale University Dress, 1959 [publicado originalmente em 1746]), p. 95. As referencias aos números das páginas de Religious affections dizem respeito a essa edição. [Edição em português: Afeições religiosas (São Paulo: Vida Nova, 2018).]

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vemos (ou seja, passamos a saber ou a acreditar) que as coisas grandiosas do evangelho e o próprio Deus são belos e amáveis, e depois começamos a amá-los? Ou será que primeiro as amamos, passando depois a ver que as coisas em questão são, realmente, dignas de amor? Ao operar nos nossos corações, será que o Espírito Santo nos faz primeiro ver de maneira sobrenatural a verdade das coisas grandiosas do evangelho, sendo essa visão seguida pelas nossas afeições (de modo que passamos a amá-las e a deleitarmo-nos com elas)? Ou será que, em vez disso, o Espírito Santo corrige primeiro as nossas afeições, cura a loucura da nossa vontade, de modo que começamos a amar a Deus acima de tudo, e não a nós mesmos, e em consequência começamos a acreditar nas coisas grandiosas do evangelho? Ou será que nenhuma das coisas tem prioridade, de modo que a vontade e o intelecto são curados simultaneamente? Essa questão, é claro, está ligada a uma questão correlata que examinamos no capítulo 7: será que o pecado é primariamente uma questão de intelecto, de cegueira, de não ver ou não acreditar nas coisas adequadas, conduzindo assim às afeições erradas e à ação errada? Ou será ele primariamente uma questão de afeições erradas, de amar e odiar as coisas erradas? Apesar de Edwards destacar a centralidade das afeições, parece também sancionar a posição de que o intelecto tem prioridade em relação à vontade. Parece sugerir que o crente vê primeiro a beleza, a benignidade e a amabilidade de Deus e das coisas grandiosas do evangelho, e a isso seguem-se naturalmente as suas afeições: [Os santos] veem primeiro que Deus é belo e que Cristo é excelente e glorioso, e os seus corações são primeiro cativados por essa imagem, e os exercícios do seu amor costumam de tempos em tempos começar aqui, nascendo primariamente dessa visão; e então, em consequência, eles veem o amor de Deus; e este é um grande favor de Deus (p. 246). O foco da sua atenção aqui não é a questão de ser o intelecto ou a vontade que tem prioridade, mas antes se os santos veem primeiro que Deus os ama e depois passam a amar a Deus, ou é o contrário. Contudo, ele afirma claramente que primeiro o santo vê que Deus é belo e Cristo é excelente e glorioso; essa visão é cativante, deliciosa, encantadora; o resultado é o amor a Deus. Em outra passagem, ele é ainda mais explícito: “O conhecimento é a chave que primeiro abre o coração endurecido e alarga as afeições, abrindo assim o caminho dos homens para o reino dos céus” (p. 266); “As afeições graciosas nascem da mente que foi iluminada de modo correto e espiritual para entender ou apreender as coisas divinas”. Além disso, As afeições verdadeiramente espirituais [...] nascem da iluminação do entendimento para compreender de uma maneira nova as coisas que são ensinadas sobre Deus e sobre Cristo, para chegar a um novo entendimento da natureza excelente de Deus e das suas perfeições, a uma nova maneira de ver Cristo nas suas excelências e plenitudes espirituais, para abrir-se às coisas que dizem respeito à via de salvação por Cristo, para vê-la agora tal como é e compreender aquelas doutrinas divinas e espirituais que antes eram tolices

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para ele. [...] Que todas as afeições graciosos nascem de uma instrução ou iluminação do entendimento é, portanto, mais uma prova (p. 267,268). Isso parece não se harmonizar perfeitamente bem com outra das doutrinas características de Edwards: que no fimdo do pecado está a dureza de coração — o que, afirma ele, é uma questão de ter as afeições erradas ou (o que é menos desastroso) pelo menos não ter as afeições corretas: Os teólogos concordam em geral que o pecado é, radical e fundamentalmente, uma realidade negativa ou privativa, tendo a sua raiz e alicerce em uma privação ou falta de santidade. E portanto, sem dúvida, se o pecado consiste realmente, em grande parte, em uma dureza do coração e, assim, na falta de afeições pias do coração, a santidade consiste em grande parte nessas afeições pias (p. 118). Ora, por coração endurecido quer-se claramente dizer um coração sem afeições, ou um coração que não se deixa facilmente comover pelas afeições virtuosas, como uma pedra, insensível, estúpida, imóvel e difícil de impressionar. Logo, o coração endurecido é denominado [na Escritura] um coração empedernido, opondo-se a um coração de carne, que sente e que se deixa afetar e impressionar pela sensibilidade (p. 117). Essas passagens indicam (como argumentei no cap. 7) que o pecado é fundamentalmente uma questão de não ter as afeições corretas e de ter as afeições erradas; não é (pelo menos em princípio) uma falta de conhecimento. E mais um não sentir algo do que um não ver algo.10 A pessoa de coração empedernido não ama as coisas adequadas; não tem as afeições virtuosas do amor pelo Senhor, nem pelo seu semelhante, nem pelas verdades grandiosas do evangelho; carece também do ódio e sofrimento pelo pecado, não tem gratidão pela salvação, alegria, paz e todo o resto que resulta de um amor apropriado a Deus. E isso nos indica que, quando são recebidos a dádiva da fé e o renascimento (regeneração) que a acompanha, o que acontece é que as afeições são redirecionadas, de modo que damos pelo menos os primeiros passos inseguros na direção do amor a Deus acima de tudo. Disso resulta, de algum modo, um novo conhecimento da beleza e glória de Deus e também da narrativa cristã. Apesar disso, essa tese é compatível com a ideia de que há uma espécie de conhecimento ou iluminação que tem prioridade na aquisição da fé. Talvez o pecado seja, de fato, um mau funcionamento da vontade (um mau direcionamento das afeições); talvez seja esse mau funcionamento, efetivamente, que é reparado pela regeneração; mas talvez essa reparação seja levada a cabo por meio de nos ser concedido certo tipo de conhecimento ou iluminação. Talvez o pecado seja fundamentalmente um mau funcionamento ou disfunção da vontade, ao mesmo tempo que o que vem 10Embora eu não queira dizer de modo algum que uma afeição é apenas um sentimento, como se não tivesse um componente intencional.

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primeiro na regeneração é certo entendimento ou intuição. Nesse caso, a revelação teria prioridade diante do selamento, com respeito à fé, apesar de ser a vontade que, no fundo, precisa de reparação, e não o intelecto. As vezes, Edwards parece dar a entender que nem o intelecto nem a vontade têm prioridade: O entendimento espiritual consiste sobretudo num sentir do coração cujo objeto é essa beleza espiritual. Sentir do coração, digo, pois não é apenas a especulação que está em causa nesse tipo de entendimento, nem pode haver nessa matéria uma distinção clara entre as faculdades do entendimento e da vontade, como se atuassem distinta e separadamente. Quando o espírito é sensível à beleza doce e à benignidade de algo, isso implica uma sensibilidade ao que é doce e um deleite na presença da sua ideia; e essa sensibilidade à benignidade ou esse deleite na beleza levam em sua própria natureza o sentir do coração; ou um efeito e impressão das quais a alma é o objeto, como substância em que se imprimem um gosto, uma inclinação e uma vontade (p. 272). Se não há uma distinção clara entre ambas, é porque nenhuma tem prioridade sobre a outra. Mesmo nessa passagem, contudo, é como se, segundo Edwards, o intelecto tivesse prioridade. Ele fala aqui de “um sentido do coração”; isso soa à afeição, mas penso que as aparências enganam. Para ver por que, devemos observar mais uma ideia caracteristicamente edwardsiana: na ocasião da conversão e regeneração, o crente adquire uma “ideia nova e simples”. Adquire assim a capacidade de percepcionar algo que antes lhe era vedado. Pode agora percepcionar a beleza e a benignidade do Senhor, o que era incapaz de fazer antes da conversão. Essa capacidade envolve uma nova fenomenología que não está disponível aos “homens naturais”: Pois se houver nos santos um tipo de apreensão ou percepção que pela sua natureza seja perfeitamente diversa de tudo o que os homens naturais têm ou podem ter até que ganhem uma natureza nova, isso deve consistir em terem certas idéias ou sensações na mente que sejam simplesmente diferentes de tudo o que está ou pode estar nos espíritos dos homens naturais. E isso é o mesmo que dizer que isso consiste nas sensações de um novo sentido espiritual (p. 271). Edwards fala aqui a linguagem epistemológica de meados do século 18. O conhecimento ou cognição envolve entidades mentais a que Locke chama “idéias” e Hume “impressões e idéias”. Elas são imagens mentais, como pedaços de imagens visuais ou auditivas ou outras imagens sensíveis. Os detalhes do processo, tal como os empiristas britânicos o concebiam, não nos dizem respeito agora (e de qualquer modo são incoerentes). Entretanto (para usar um exemplo edwardsiano), pense o leitor no sabor do mel. Você conhece esse sabor e esse conhecimento envolve crucialmentc certo tipo de fenomenología. Você não conhecería o sabor do mel a menos que o tivesse efetivamente provado (ou tivesse tido experiência desse sabor por qualquer outro meio). Não poderia

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conhecer o sabor do mel ou a sua doçura (ou, mais exatamente, não poderia ter um conhecimento sensível disso) sem ter aquela fenomenología — sem aquela ideia simpies (como Edwards a concebería). Há certo tipo de experiência que normalmente faz parte do ato de ver algo vermelho, e há certo tipo de conhecimento, nomeadamente, o conhecimento de como é ver algo vermelho, que você não poderá obter a menos que tenha aquela experiência. (Talvez essa experiência seja um pouco como ouvir o som de um trompete; todavia, esse tipo de analogia não nos leva muito longe.) Quem nunca provou a doçura ou nunca viu a vermelhidão pode conhecer muitas coisas sobre a doçura do mel e a aparência de algo vermelho (p. ex., pode saber que ambas são objeto da experiência de muitas pessoas, que as pessoas consideram a primeira agradável e a segunda, excitante), mas há algo que ela não conhece: o sabor do mel e a aparência de um pôr do sol, por exemplo. Ora, segundo Edwards, o conhecimento espiritual é um tipo de conhecimento experiencial; mais exatamente, ele é algo que existe e que é experiencial. Trata-se do conhecimento das qualidades “morais” de Deus, na expressão de Edwards — conhecímento da sua santidade, amor, beleza, glória e benignidade. Como o conhecimento do gosto e doçura do mel, esse conhecimento exige que tenhamos certa imagem fenoménica característica, “certas idéias ou sensações da mente”, para usar a sua expressão. Essa é uma ideia nova e simples. E simples, primeiro, porque (ao contrário da imagem de uma casa, por exemplo) não é composta por outras idéias. E é nova no sentido de não estar disponível aos “homens naturais”; está disponível apenas àqueles nos quais se iniciou o processo de regeneração. Ao cair no pecado, pensa Edwards, os seres humanos perderam certa capacidade cognitiva: a capacidade de apreender as qualidades morais de Deus. Com a conversão vem a regeneração; parte desta última é a regeneração (maior ou menor) dessa capacidade cognitiva para compreender ou apreender a beleza, a doçura, a benignidade do próprio Senhor e de todo o esquema da salvação. E somente essa capacidade cognitiva abrange essa ideia nova e simples. Pouco há a dizer que descreva essa nova experiência, exceto que é a experiência das qualidades morais de Deus; e quem não tem essa ideia nova e simples — aquele em quem o processo cognitivo em questão não foi regenerado — não tem conhecimento espiritual da beleza e amor de Deus.11 Essa pessoa pode saber, de certo modo, que Deus é belo e amável (talvez com base na autoridade de alguém), mas há um tipo de conhecimento desse encanto que ela não tem (conhecimento experiencial), e este é precisamente o tipo de conhecimento espiritual de que fala Edwards. O conhecimento espiritual é um conhecimento experiencial, e uma condição necessária para obter este último é ter a fenomenología adequada, as imagens adequadas, a ideia nova e simples.1 11Segundo Edwards, quem tem a experiência e a fenomenología necessárias repara que anteriormente não entendia expressões como “uma visão espiritual de Cristo‫ ;״‬esses termos não invocavam “na sua mente aquelas idéias especiais e distintas que se pretende que signifiquem; em alguns aspectos, não são mais invocativas do que os nomes das cores para quem é cego de nascença”(C. C. Goen, org., 1he great awakening [New Haven: Yale University Press, 1972], p. 174).

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Falei de uma capacidade cognitiva: a capacidade para compreender ou apreender a beleza, doçura e benignidade do Senhor, bem como as coisas grandiosas do evangelho. Edwards usa constantemente uma linguagem mais específica, a linguagem da percepção. Aquele em quem o processo de regeneração alcançou um certo grau é capaz de ver a beleza do Senhor, saborear a sua doçura, sentir a sua presença. Parece-me que Edwards, por um lado, pensa que o uso destes termos “ver”, “saborear” e “sentir” são figurativos ou (melhor) analógicos. Por outro lado, ele pensa que o termo “percepcionar” ou “perceber” está sendo usado de um modo perfeitamente literal, no mesmo sentido em que é empregado quando, no caso da percepção, falamos de ver ou ouvir, saborear e tocar. Essa capacidade para apreender a beleza e a glória do Senhor é de fato uma capacidade perceptiva. Podemos saber que o Senhor é, de fato, belo e glorioso; mas há também a condição diferente de percepcionar que o Senhor é belo e glorioso. Aqui, Edwards invoca a linguagem da Escritura, que representa muitas vezes a regeneração como uma questão de ter olhos para ver, ouvidos para ouvir, desobstruir os ouvidos dos surdos, abrir os olhos dos cegos. E importante notar, Edwards entende que essas propriedades — beleza, glória, santidade, assim como o amor e a benevolência — são genuínas e objetivas, genuinamente inerentes a Deus. Não se trata de a percepção da beleza ser na verdade uma reação subjetiva da nossa parte a algo, e sim de que, há a propriedade Senhor de ser belo; nós compreendemos ou apreendemos essa propriedade, bem como o fato de que o Senhor a tem; e uma condição necessária para o fazer é ser sujeito a certo tipo de fenomenologia. E claro que isso espelha perfeitamente a situação da percepção sensorial.12 Edwards acredita que percepcionamos essas qualidades morais de Deus; e eu penso que as perspectivas dele são, pelo menos, plausíveis. Não me proponho esboçar as objeções à percepção de Deus, contudo, ou defender a sua plausibilidade. Isso porque esse trabalho já foi feito de maneira admirável por William Alston,13 que mostra que nenhuma das objeções à percepção de Deus — que só os objetos materiais podem ser percepcionados (e Deus não é um objeto material), que não dispomos de testes e medições adequados, que não podemos demonstrar que a suposta percepção é verídica e, portanto, verdadeira percepção, que nem todos têm essa suposta capacidade, que as pessoas discordam quanto ao que foi que (pensam elas) percepcionaram de Deus, e tudo o mais — chega sequer perto de ser cogente. Ele desenvolve também uma poderosa teoria genérica da percepção, segundo a qual a percepção de Deus é perfeitamente possível. Se a pessoa de Deus realmente existe, não há razão para pensar que ele não podería ter dado à sua criação e aos seus filhos a capacidade de o percepcionar e de percepcionar que ele tem certas propriedades. Podemos agora regressar à questão que originou esse desvio: segundo Edwards, o que vem primeiro, a afeição ou o intelecto? Amar Deus ou conhecer Deus? Entendo 12Para um tratamento perspicaz do sentido do coração de Edwards (com amplas e proveitosas citações das suas obras), veja William Wainwright, “Jonathan Edwards and the sense of the heart”, Faith and Philosophy 7, η. 1 (Janeiro de 1990). uPerceiving God (Ithaca: Cornell University Press, 1991). Veja também a minha resposta, no cap. 10, i tese de Richard Gale de que a percepção de Deus não é possível.

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que a resposta de Edwards seja o conhecimento. Ele pensa que percepcionamos primeiro a beleza e o encanto do Senhor, chegamos primeiro a esse conhecimento experiencial e só depois desenvolvemos os amores e ódios adequados: amar o Senhor, as verdades grandiosas do evangelho, odiar o pecado: “todas as afeições graciosas surgem realmente da instrução ou iluminação do entendimento”; “As afeições graciosas nascem da mente que foi iluminada de modo correto e espiritual para entender ou apreender as coisas divinas”. O que ele pretende dizer aqui, penso, é que esse conhecimento experiencial de Deus e das suas qualidades surge em primeiro lugar; depois, as afeições ocorrem em consequência disso. “As afeições verdadeiramente espirituais e graciosas [...] nascem de [...] uma nova maneira de ver Cristo nas suas excelências e plenitudes espirituais”. A sua ideia é que a pessoa regenerada percepciona a beleza e o encanto do Senhor e das coisas grandiosas do evangelho e depois, muito naturalmente, passa a amá-las. E a percepção que vem primeiro. Nesse aspecto, consequentemente, o intelecto tem prioridade sobre a vontade. Será que Edwards tem razão? Será realmente verdadeiro que o intelecto precede à vontade, que o conhecimento precede o amor nesse caso? A questão se subdivide. Podemos entender a estrutura do intelecto e da vontade da maneira descrita a seguir. Há várias relações de dependência entre os atos do intelecto e da vontade, de tal gênero que certos atos intelectuais (atos da cognição) são condições necessárias para certos atos da vontade. Determinados atos da vontade podem ser básicos no sentido de não dependerem de qualquer ato anterior do intelecto, e determinados atos do intelecto podem ser básicos no sentido de não dependerem de qualquer ato anterior da vontade. Talvez não possamos amar Deus sem ver primeiro que ele é, de fato, adorável e atraente; nesse caso, nenhum ato de amar a Deus será básico no nosso sentido. Entretanto, talvez certos atos afetivos não dependam de quaisquer atos prévios de intelecção; nesse caso, esses atos serão básicos. Qual é o sentido de dependência em causa aqui? Sugiro que se trate de uma questão de plano de desígnio: um ato da vontade depende, para uma criatura S, de certo ato do intelecto se e somente se o plano de desígnio de S especifica que S desempenhará o ato de vontade em questão apenas em consequência de desempenhar o tipo de ato intelectivo em questão.14 Dados esses esclarecimentos preliminares, é evidente que há aqui várias maneiras de entender a tese de que o intelecto tem precedência sobre a vontade. A tese poderá ser apenas que (1)

Para qualquer ato afetivo da vontade, há pelo menos um tipo de ato do intelecto de que aquele depende, e alguns atos do intelecto não dependem de qualquer ato da vontade.

14Claro que há outros tipos dc dependência. Poderiamos chamar ao tipo agora em discussáo “dependência da perspectiva do plano de desígnio”. Para os nossos propósitos, estou considerando que a dependência da perspectiva do plano de desígnio inclui a dependência lógica e causai; assim, se a ocorrência de um ato da vontade (intelecto) causalmente implica a ocorrência de um ato do intelecto (vontade) ou necessita dele, o ato do intelecto será dependente, da perspectiva do plano de desígnio, do ato da vontade.

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Como ilustração, talvez ninguém cujas faculdades estejam funcionando apropriadamente comece a amar a Deus sem antes ver, sem antes saber, que Deus é realmente adorável e atraente (e talvez este último ato cognitivo tenha de incluir o conhecimento experiencial de Edwards); mas talvez esse ato cognitivo, intelectivo, de saber que Deus é adorável e atraente não dependa de qualquer ato (afetivo) da vontade. Começamos a ver que Deus é adorável e depois (consequentemente) o amamos. Isso é perfeitamente compatível com a existência de alguns atos do intelecto que dependam de atos da vontade; exige apenas que existam também alguns que não dependam. Assim, podería se defender, com mais tenacidade, que (2)

Para todo o ato (afetivo) da vontade, há um ato anterior do intelecto do qual aquele depende, e para nenhum ato do intelecto existe um ato prévio da vontade do qual aquele dependa.

Não é fácil saber qual dessas teses Edwards pretendia afirmar (se é que pretendia afirmar alguma). E talvez, de fato, não pretendesse afirmar nenhuma delas; talvez estivesse pensando apenas nas afeições religiosas e nos atos característicos do intelecto a elas associados. Talvez quisesse apenas afirmar que as afeições religiosas dependem de uma apreensão ou percepção prévia (ou concomitante) de algumas das qualidades de Deus, apesar de não ser verdadeiro que a percepção das qualidades morais de Deus dependa de uma afeição anterior. Talvez quisesse dizer que, no processo de regeneração, o que acontece primeiro é que o Espírito Santo nos permite percepcionar parte das qualidades morais de Deus; é então isso (segundo o funcionamento normal do plano de desígnio) que faz surgir as nossas afeições religiosas. Isso ele afirma, mas talvez não afirme mais do que isso. Contudo, mesmo isso é demasiado forte. No estado de pecado, inclinamo-nos a estar indispostos para com Deus e com nossos semelhantes; essa é a essência da nossa condição pecadora. O problema real, pois, é uma questão de vontade. Não se trata apenas de não vermos a beleza do Senhor e a amabilidade dos nossos irmãos e irmãs, razão pela qual não os amamos. A mera ausência das afeições adequadas é apenas uma parte do problema; há também o fato de termos inclinação para sentir ressentimento e para desdenharmos do Senhor, e para sermos competitivos e egocêntricos com respeito às outras pessoas. O que faz falta aqui não é, sobretudo, o conhecimento. Dadas as nossas inclinações pecaminosas para odiar Deus e nossos semelhantes, podemos percepcionar as qualidades morais de Deus e mesmo assim continuar mantendo-o à distância, recusando-nos a amá-lo — ficando assim talvez em uma condição ainda pior do que quando a sua presença estava obscurecida pela névoa dos nossos erros (Anselmo) e o odiávamos de longe, por assim dizer. Edwards poderia responder que não é pura e simplesmente possível percepcionar as qualidades morais de Deus e não o amar, não nos sentirmos atraídos por ele, não o considerar maravilhosamente agradável e fascinante. Mas isso é duvidoso, na melhor das hipóteses. Sem dúvida que uma pessoa cujas capacidades ou faculdades afetivas estejam funcionando apropriadamente amará o Senhor ao percepcionar o seu encanto, glória e beleza; sem dúvida que essa pessoa o considerará agradável. No entanto, considere-se

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alguém que realmente percepcionasse a beleza e a gloria de Deus, mas se sentisse, apesar disso, desagradado, estaría funcionando mau de um modo qualquer (uma pessoa que visse a beleza de Deus, mas não o amasse, não o descrevería, talvez, como belo [ainda que pudesse descrevê-lo como terrível e fascinante, do mesmo modo que uma ave, paralisada pelo terror, poderia descrever uma serpente, ou como um marinheiro poderia descrever a beleza e o poder horrível de uma tempestade que ameaça a sua vida]; não se segue que ela não percepcione, de fato, aquela beleza). Quando o intelecto e a vontade funcionam apropriadamente e estão apropriadamente em sintonia, sentiremos encanto pelo que vemos que tem encanto, amor pelo que vemos que é digno de ser amado.15 Um dos componentes principais do pecado, contudo, é precisamente a disfunção das afeições; e não há boas razões para pensar que quem sofre de uma louca desorientação das afeições não pode sentir-se desagradado pelo que vê como belo. A cura dos efeitos cognitivos do pecado não cura automaticamente a loucura das afeições. A dádiva da fé, e a consequente regeneração, não é apenas uma questão de restaurar o intelecto, restituindo-o a uma condição prístina na qual podemos uma vez mais percepcionar Deus e as suas glórias e belezas; exige também, e essencialmente, a cura dessa loucura da vontade. Assim, o que tem prioridade na fé e regeneração: o intelecto ou a vontade? Eu diria que nenhum dos dois. O pecado é uma disfunção da vontade, uma distorção das afeições; trata-se de amar e odiar as coisas erradas. Apesar disso, envolve também uma cegueira, uma incapacidade para ver a glória e a beleza do Senhor. A resposta à pergunta “Qual deles tem prioridade?” é “Nenhum dos dois” ou “Não há como dizer”. A regeneração é uma questão de curar os distúrbios intelectuais e afetivos. A estrutura da vontade e do intelecto é aqui talvez uma espiral, um processo dialético: as afeições elevadas permitem-nos ver uma parte maior da beleza e da glória de Deus; a capacidade de ver uma parte maior da beleza, da glória e da majestade de Deus conduz, por sua vez, a afeições mais elevadas. Há certas coisas que não conheceremos a menos que amemos, a menos que tenhamos as afeições adequadas; há certas afeições que não teremos sem percepcionar algumas das qualidades morais de Deus; não se pode afirmar nem que a percepção tem prioridade nem que a afeição a tem. A regeneração consiste em curar a vontade para começarmos finalmente a amar e odiar as coisas dignas de serem amadas e odiadas; e inclui também a renovação cognitiva, de modo que começamos a percepcionar a beleza, a santidade e o encanto do Senhor e do esquema da salvação que ele concebeu.

B. As afirmações da fé Até aqui falamos da percepção de Deus, das afeições religiosas e das relações entre as duas coisas. Agora voltamo-nos para uma questão difícil e diferente, mas relacionada: ’5Como vejo as coisas, consequentemente, há propriedades como ser encantador, desejável, belo etc.¡ há também a condição cognitiva de reparar que algo é encantador, desejável ou belo. Além disso, há a condição afetiva de sentir encanto na coisa em questão, de a desejar ou admirar e nos sentirmos atraídos pela sua beleza. Penso que Edwards concordaria com esse ponto de vista.

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segundo Edwards, como começamos a acreditar no que ele chama de “as coisas grandiosas do evangelho” (a Trindade, a encarnação, a expiação etc.)? Uma coisa é percepcionar a glória e a beleza do Senhor; outra muito diferente é saber que Jesus Cristo foi, de fato, o divino Filho de Deus que assumiu carne humana, sofreu e morreu, expiando assim o pecado da humanidade. Percepcionamos também essas últimas idéias? Não. Edwards não acredita que sejamos capazes de percepcionar as verdades grandiosas do evangelho; não percepcionamos certas qualidades do Senhor, como a de que nos amou tanto que enviou o seu filho unigénito para sofrer e morrer, permitindo-nos assim ter vida. Um certo gênero de percepção pode estar envolvido quando passamos a saber essas coisas, mas não as percepcionamos: Uma visão dessa glória divina convence a mente diretamente da divindade dessas coisas, dado que essa glória é em si uma evidência direta e clara, que subjuga tudo mais. [...] Quem tem o seu juízo desse modo diretamente convencido e assegurado da divindade das coisas do evangelho, por uma visão clara da sua glória divina, tem uma convicção razoável; a sua crença e a sua convicção são plenamente agradáveis à razão, pois a glória divina e a beleza das coisas divinas são em si evidências genuínas do seu caráter divino e são, aliás, as evidências mais diretas e fortes. Quem verdadeiramente vê a glória divina, transcendente, suprema dessas coisas que são divinas como que conhece intuitivamente a sua divindade; não se limita a argumentar que são divinas, mas vê que o são; vê que é nelas que o divino principalmente consiste (p. 298). Há duas maneiras de entender essa e outras passagens semelhantes. Por um lado, Edwards poderá pensar que o crente percepciona a glória divina e a beleza das coisas do evangelho, inferindo depois daí, num argumento rápido, que são realmente divinas, são de Deus, devendo assim ser objeto de crença. Por outro lado, a ideia podería ser que o crente vê o encanto e a beleza — a beleza divina — das coisas do evangelho e, consequentemente, forma de modo imediato a crença de que essas coisas são verdadeiras e são de Deus. A diferença seria que, no primeiro caso, há uma inferência, talvez tão rápida e tácita que quase não reparamos nela, mas que é, apesar disso, uma inferência. Então, a instigação interna do Espírito Santo operaria da seguinte maneira: o Espírito Santo permite ao crente ver a glória e a beleza do evangelho, inferindo ele imediatamente que são de fato divinas e, portanto, dignas de serem cridas. As “evidências genuínas” que Edwards menciona seriam evidências proposicionais‫׳‬. seriam proposições como isto (uma das doutrinas do evangelho) ¿glorioso e belo\ e a conclusão seria esta doutrina éde Deus (?, portanto, verdadeira). Na segunda interpretação, uma percepção da glória e beleza da doutrina em questão seria uma ocasião da formação da crença de que a doutrina é, realmente, de Deus (e verdadeira), mas a transição entre crenças não seria inferencial. A crença em questão seria sustentada da maneira básica, apesar de ocasionada pela percepção de outra coisa (a beleza e glória da doutrina em questão). Esta segunda maneira seria semelhante ao modo que (parece-me) Calvino pensa que o sensus divinitatis opera. Não se trata de, ao contemplar a glória das montanhas ou a majestade dos oceanos, inferir-se que há uma pessoa como

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Deus que criou esses elementos, mas de a percepção das montanhas ou do oceano (ou do nosso próprio pecado, ou de um perigo, ou...) ser a ocasião da formação dessa crença acerca de Deus. Nessa interpretação, a “evidência genuína” em questão não seria uma evidência proposicional que funciona como premissa de uma inferência. Seria algo que torna a crença em questão evidente — isto é, algo que desempenha o papel apropriado no fato de a crença ter aval para nós. Seria como o papel desempenhado pela percepção da expressão facial de alguém quando formamos a crença avalizada de que essa pessoa está zangada, deprimida ou contente: uma vez mais, mesmo que eu não infira esta última proposição da primeira percepção, essa é, mesmo assim, minha evidência a favor da proposição, já que é a primeira que (em parte) torna a última evidente (avalizada) para mim. Na segunda interpretação, as coisas poderiam ser uma vez mais de duas maneiras. A percepção da beleza e do encanto das coisas grandiosas do evangelho poderia diretamente e sem intermediários ocasionar a formação da crença conexa. Ou, então, o Espírito Santo poderia fazer o crente percepcionar essa beleza e encanto e fazê-lo também ter a resposta afetiva adequada de deleite, admiração e amor: e é essa resposta afetiva que é a ocasião imediata da crença em questão. O leitor vê que as coisas grandiosas do evangelho são gloriosas e belas: parecem-lhe fascinantes, encantadoras e atraentes; então, acredita nelas. Se elas forem dessa segunda maneira, então, com respeito à formação da crença nas coisas grandiosas do evangelho, a vontade (afeição) teria prioridade sobre o intelecto. Qual delas é a verdade? O que pensa Edwards? Há ou não uma inferência rápida? Não é fácil dizer e na verdade talvez ele pense que a crença se forma simultaneamente das duas maneiras: ele “não se limita a argumentar que são divinas, mas vê que o são”. Penso que a segunda posição (em que a percepção da beleza de uma das coisas grandiosas do evangelho é uma ocasião direta ou indireta da formação da crença de que essa coisa é realmente verdadeira, e não uma premissa de uma inferência cuja conclusão seja essa crença) é a mais forte. Isso porque a suposta inferência em pauta parece dúbia, questionável — tal como seria uma inferência a favor da proposição de que o Sol está brilhando nos carvalhos com base em proposições sobre a aparência nova das coisas agora para mim. Por outro lado, nada de dúbio ou questionável há de haver em um processo no qual a percepção da beleza e glória dessa doutrina é uma ocasião (direta ou indireta) da crença de que ela é verdadeira. Ou há aqui algo de dúbio? Seria de algum modo irracional formar uma crença C em resposta apenas à percepção de que C é atraente e bela, ou em resposta ao fato de nos deleitarmos no pensamento de C, no fato de termos uma certa resposta afetiva a C? Não seria isso como os casos que observamos (p. 170ss.), nos quais as características não cognitivas e não intelectuais de uma situação cognitiva podem influenciar a formação de crenças, impedindo assim o funcionamento cognitivo apropriado? Não me parece. Não é necessário que sempre que haja uma influência desse gênero — isto é, de fatores não intelectuais — haja impedimento: talvez o plano de desígnio exija precisamente esse gênero de formação de crenças e talvez essa parte pertinente do plano de desígnio vise com êxito à crença verdadeira. Segundo o físico Steven Weinberg, os cientistas aceitam

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muitas vezes uma perspectiva ou teoria não (ou não apenas) porque há boas evidências a seu favor, mas apenas porque é bela\ Contudo, apesar das fragilidades das primeiras evidências experimentais a favor da relatividade geral, a perspectiva de Einstein tornou-se a teoria canônica da gravitação na década de 1920 e manteve essa posição desde então, apesar de as várias expedições das décadas de 1920 e 1930 para a observação de eclipses terem relatado, na melhor das hipóteses, evidências equívocas a seu favor. Lembro-me de que, quando aprendí a relatividade geral na década de 1950, antes de o radar e a radioastronomía moderna terem começado a revelar novas evidências impressionantes a favor da teoria, eu já aceitava tácitamente que a relatividade geral era mais ou menos correta. Talvez tenhamos todos sido apenas crédulos e sortudos, mas não penso que seja essa a verdadeira explicação. Penso que a aceitação geral da relatividade geral se devia em grande parte aos atrativos da própria teoria — em suma, à sua beleza.16 Temos aqui as mesmas três possibilidades: (a) Weinberg argumentou a favor da relatividade geral usando como premissa a proposição de que a teoria é bela (mais exatamente, que ela exibe certo tipo de beleza ou de apelo estético difícil de especificar); (b) a percepção da beleza da teoria, por parte de Weinberg, foi a ocasião direta da sua crença de que é verdadeira; (c) a percepção da beleza, por parte de Weinberg, foi a ocasião direta de uma resposta afetiva de admiração, atração e deleite, resposta afetiva que ocasionou então a crença.17 Nada de irracional deve haver aqui, e nada haverá, se esse gênero de formação de crenças de fato estiver de acordo com uma parte do plano de desígnio da nossa cognição, que visa com êxito à formação de crenças verdadeiras. E o mesmo acontece com as coisas grandiosas do evangelho. Podemos também comparar a segunda interpretação edwardsiana com o famoso dictum de Agostinho: “Os nossos corações estão inquietos até repousarem em ti, Senhor”.18 Talvez essa inquietação sem Deus conduza à crença em Deus e talvez Deus nos tenha constituído assim para nos impelir a contatá-lo. Se Edwards ou Agostinho estiverem certos, o processo pelo qual a crença (em Deus ou nas coisas grandiosas do evangelho) surge em nós seria mais ou menos semelhante ao modo pelo qual Freud pensa que surja a crença teísta. Segundo Freud (veja no cap. 5), a crença religiosa surge de um pensamento ™Dreams of afinal theory (New York: Pantheon, 1992), p. 98 [edição em português: Sonhos de uma teoriafinal (Rio de Janeiro: Rocco, 1994)]. Veja também P. Dirac, The development of quantum theory (New York: Gordon and Breach, 1971), p. 30-7; ao falar de alguns dos trabalhos de De Broglie, afirma Dirac: “Essa conexão de De Broglie era muito bela matematicamente e concordava com a teoria da relatividade. Era muito misteriosa, mas, em razão da sua beleza matemática, sentia-se que teria de haver uma conexão profunda, ilustrada por essa matemática, entre as ondas e as partículas”. 17Ironicamente Weinberg argumenta também (aliás, não argumenta: afirma) que as crenças religiosas a que chegamos por via da experiência são na realidade frutos de um pensamento fantasioso, não sc dando conta do paraleio com a sua ideia de que as crenças científicas são às vezes aceitas graças à sua beleza. 18Confessions. Veja, a propósito, o poema “The pulley”, de George Herbert, in: The poetical ,works of George Herbert, com biografia, dissertação crítica e notas explicativas do Rev. George Gilfillan (Edimburgo: James Nichol, 1853), p. 167.

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fantasioso motivado pelo desejo: vemos que o mundo é frió, cruel, indiferente a nós e às nossas necessidades e desejos, hostil, sem consideração e tudo mais; e a nossa resposta é a formação da crença em um pai celeste que nos ama e controla efetivamente o mundo. A diferença seria, é claro, que, de acordo com Freud, esse processo de formação de crenças não tem como propósito a produção de crenças verdadeiras, mas sim a produção de erenças com outra propriedade — a de nos permitir enfrentar o mundo frio e cruel em que, como dizem os nossos primos da Europa continental, fomos geworfen. Se Agostinho e Edwards estiverem certos, contudo, os processos que conduzem à formação das crenças em questão visam à verdade: o propósito do módulo pertinente do plano de desígnio é a produção de crenças verdadeiras, ainda que ele proceda por meio da percepção da beleza ou da realização de desejos. Na verdade, há uma conexão entre a crença e a percepção da beleza (e qualidades semelhantes) que é muito mais profunda do que Weinberg sugere. Como observaram Leibniz e muitos outros autores depois dele, há habitualmente muitas teorias ou crenças diferentes compatíveis com as nossas evidências. Se usarmos pontos em coordenadas cartesianas para representar nossos dados, seremos capazes de desenhar quantas linhas quisermos passando por esses pontos e poderiamos projetar qualquer uma das várias hipóteses apropriadamente relacionadas. Todas as esmeraldas até agora examinadas revelaram-se verdes; nesse caso, contudo, todas são também “verduis”, uma esmeralda é verdul se for examinada antes de 2050 d.C. (para atualizar Goodman) e for verde, ou se ela não for examinada antes dessa data e for azul.19 Assim (em vez de projetarmos que todas as esmeraldas são verdes) poderiamos projetar que todas as esmeraldas são verduis, concluindo por isso que as esmeraldas que não foram observadas antes de 2050 são azuis. O sol nasceu todas as manhãs até agora; formamos a crença de que nasce todos os dias e que nascerá também amanhã. Poderiamos ter formado uma crença bastante diferente, contudo: sendo H hoje, poderiamos ter formado a crença de que o sol nasce todos os dias antes de H e nunca depois de H. Por que aceitamos as hipóteses que aceitamos? Por que projetamos o verde e não o verdul, e a hipótese de que o sol continuará a nascer e não a de que não o fará? Por que projetamos hipóteses simples e não complexas? Não porque tenhamos evidências de que as hipóteses mais simples têm mais probabilidade de ser verdadeiras do que as complexas, pois, para qualquer suposta evidência a favor dessa conclusão, haverá uma inferência mais complexa com base nos mesmos dados, mas contrária a essa conclusão. Por que o fazemos, então? Porque nos parece que as crenças simples (mesmo que não saibamos com exatidão o que é a simplicidade) são mais naturais e mais atraentes do que as complexas. Só um louco projetaria o verdul ou o seu cúmplice, o azerde.20As crenças tortuosas e complexas são feias, ofensivas, esquisitas, repulsivas: não gostamos delas e, portanto, as rejeitamos. Podemos 19Veja Nelson Goodman, Fact, fiction and forecast (Cambridge: Harvard University Press, 1955; reimpr., Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1973), p. 74 da edição de 1973; e veja a versão corrigida do paradoxo cm Problems and projects (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1972), p. 359. Veja também Warrant andproperfunction, p. 128ss. í0Em que, como seria de esperar, x é azerde se for examinado antes de 2050 d.C. c for azul, ou não for examinado antes dessa data e for verde.

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ter a esperança de que o mundo seja de fato tal que a simplicidade (pelo menos certo tipo de simplicidade em determinadas áreas) seja uma marca da verdade, mas não temos rigorosamente nenhuma esperança de prová-lo de uma maneira que não pressuponha a simplicidade desde o início. Pois suponha-se que observemos que nos últimos mil casos as hipóteses mais simples revelaram-se verdadeiras. Sendo t o presente, chamamos “simplexa” a uma crença se for formada antes de / e for simples, ou depois de t e for complexa; o que teremos observado, até agora, é que as crenças simplexas tendem a ser verdadeiras. No entanto, isso significa que doravante devemos optar pelas crenças complexas. Como devemos pensar nessas coisas, segundo o modelo? Há as três possibilidades edwardsianas: pode ser que uma inferência rápida parta da beleza e da glória do evangelho e conclua pela sua veracidade; pode ser que essa crença não seja inferida, mas seja um resultado direto, segundo o plano de desígnio, da percepção da beleza e glória do evangelho; e pode ser que a percepção da beleza do evangelho induza a admiração e o deleite, que, por sua vez, induzem à crença. Não precisamos escolher. Há a resposta afetiva, há a percepção da beleza e da glória e há a crença; não faz parte do modelo dizer qual tem prioridade sobre as outras, se é que alguma o tem. III. A nálogo

do aval

Devemos notar aqui as analogias profundas entre a vontade e o intelecto, a afeição e a crença. O intelecto é o domínio da crença; a vontade, da afeição. Pois bem, quando as nossas faculdades cognitivas funcionam apropriadamente, não acreditamos em proposições de qualquer tipo; acreditamos (comumente) em proposições verdadeiras.21 Formulando a questão em uma terminologia mais antiga, o intelecto está ordenado para a verdade. Como o intelecto, contudo, a afeição também tem um objeto apropriado — ou, antes, as várias afeições têm objetos apropriados. Quando as fontes de afeição funcionam apropriadamente, amamos o que é amável, encantamo-nos com o encantador e desejamos o desejável. Amamos a Deus acima de tudo e aos nossos semelhantes como a nós mesmos; encantamo-nos com a beleza e a glória divinas e com os reflexos criados dessa beleza e glória; desejamos o que é de fato bom para nós. Estou aqui pressupondo a perspectiva fora de moda de que alguns indivíduos e alguns estados de coisas são genuína e objetivamente amáveis, encantadores e desejáveis; outros são genuinamente e objetivamente odiosos, repulsivos e indesejáveis; outros ainda não são nada disso. Ser encantador não é, ou não é apenas, a propriedade disposicional que uma coisa ou estado de coisas tem de tender a produzir encanto em nós; em vez disso, é uma propriedade objetiva de um objeto ou estado de coisas e não depende de modo algum das reações humanas. A beleza e o encanto de uma sonata de Mozart são propriedades objetivas dos ‫״‬E, claro, não apenas quaisquer proposições verdadeiras, mas as que forem apropriadas às circunstâncias. Conheço o leitor em uma festa; ele me diz que vive em Omaha: formo a crença de que vive ali e não, digamos, a crença verdadeira de que nasceu em Cleveland ou de que César atravessou o Rubicão.

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(exemplares de) padrões de sons; não são apenas reações subjetivas da parte do ouvinte (nem as propriedades disposicionais de poder produzir tais reações subjetivas), apesar de que, se as coisas correrem bem, haverá essa reação. (Pode ser que o encanto de uma coisa dependa da atitude de Deus para com ela, mas essa é uma questão muito diferente.) Assim como as crenças, também as afeições podem estar justificadas ou não — ou melhor, posso ou não ter justificação ao ter certa afeição.22 Além disso, as afeições, como as crenças, podem ser racionais ou irracionais: se reajo a um desastre com um sorriso divertido, ou se amo a mim mesmo acima de tudo, ou se desprezo alguém porque os seus familiares são mais pobres do que os meus, há uma carência de funcionamento apropriado. Pode haver também funcionamento apropriado e inapropriado com respeito aos graus de afeição, tal como acontece com os graus de crença. Dou o mesmo valor ao jingle tolo de uma propaganda de charuto (“De homem para homem, com um RoiTan! De homem para homem, com um charuto RoiTan!”) que à Missa em Si Menor de Bach: esse é um caso de disfunção afetiva. O mesmo acontece se o leitor der mais valor à minha boa opinião do que à de Deus. Além disso, há um análogo do aval para as afeições. Uma crença tem aval quando é formada por faculdades cognitivas que funcionam apropriadamente em um ambiente epistêmico adequado (tanto máxi como mini) segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade. Uma afeição pode ter uma propriedade análoga. Como vimos, pode ser produzida por faculdades que funcionem apropriadamente ou não. A condição ambiental é igualmente óbvia. Em um planeta distante, poderia haver um gás que fizesse os seres humanos reagirem aos desastres com uma risada tola ou um indiferente encolher de ombros, ou que os fizesse ficar furiosamente zangados sem qualquer razão. O tipo correto de ambiente afetivo (para nós) será aquele no qual, dado o nosso plano de desígnio, iremos formar as respostas afetivas adequadas. O que dizer então das últimas duas condições do aval? Trata-se das condições: (1) a faculdade em questão é tal que visa à produção de crenças verdadeiras; (2) o plano e desígnio é bom. Quanto à primeira, uma vez mais, há análogos claros. Poderia acontecer de uma forma específica de afeição visar não a que valorizássemos algo digno de ser valorizado, mas a outra coisa — à continuação da nossa espécie, ou a nossa sobrevivência, ou seja o que for. Uma afeição (ou um caso de afeição) tem o análogo do aval apenas se for produzido por um processo que não vise à produção de afeições com qualquer dessas propriedades, mas sim à produção de afeições que sejam apropriadas aos respectivos objetos: valorizar, amar ou desejar o que é valioso, amável ou desejável. A última condição do aval é a produção da crença ser regida por um plano de desígnio que seja bom no sentido de haver uma probabilidade objetiva elevada de que seja verdadeira qualquer crença 22Além disso, a afeição, como a crença, não está sob nosso controle direto; por excinplo, não posso, só porque o quero, assumir a atitude correta perante alguém que me fez mal ou mc ofendeu. No entanto, também a afeição, de novo como a crença, está em alguma medida sob nosso controle indireto; podemos educar-nos para não sermos tão sensíveis à desconsideração de que somos vítimas, passando a vê-la (c a senti-la) como algo sem importância. Podemos lutar contra o orgulho e o egocentrismo e às vezes obtemos um êxito parcial.

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formada para satisfazer as primeiras três condições. Uma vez mais, há um análogo claro no caso da afeição: o plano de desígnio que rege a produção das afeições é bom apenas se, por exemplo, for objetivamente provável que determinado caso de desejo tenha por objeto algo desejável, e que determinado caso de ódio tenha por objeto algo odioso (dada a satisfação das outras três condições).23

IV. Eros A conversão, portanto, é fundamentalmente uma mudança da vontade, a cura do disturbio afetivo que nos aflige. E um afastamento do amor de si, de nos considerarmos o principal ser do Universo, rumo ao amor a Deus. Entretanto, qual é a aparência deste amar a Deus e como devemos entendê-lo? William James, esse gentleman vitoriano, culto e sofisticado da Nova Inglaterra, repara nos elementos palpitantes da saudade, da ânsia, do desejo, do eros, nos escritos de Santa Teresa de Ávila, torce seu nobre nariz e considera que tudo aquilo é um pouco, bem... de mau gosto, um pouco déclassé. Escarnece James: “a sua ideia de religião parece ter sido principalmente a de um namorico libidinoso [...] entre o devoto e a divindade”.2425Quem faz figura de idiota aqui é James. Há uma conexão íntima e antiga entre eros e a espiritualidade desenvolvida. A Bíblia está cheia de expressões dessa saudade, ânsia, Sehnsucht, desejo; a palavra hebraica para conhecimento, como em conhecimento de Deus, designa as relações sexuais;2s e quando os filhos de Israel não são fiéis, voltando-se para falsos deuses, isso é representado como um adultério. Os salmos são particularmente ricos nessas expressões de eros: Minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; meu coração e meu corpo ciamam pelo Deus vivo (SI 84.2). Ó Deus, tu és o meu Deus; eu te busco ansiosamente. Minha alma tem sede de ti, meu ser anseia por ti (SI 63.1). Pedi uma coisa ao Senhor, e a buscarei: que eu possa [...] contemplar o esplendor do Senhor (SI 27.4). Assim como a corça anseia pelas águas correntes, também minha alma anseia por ti, ó Deus! Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo (SI 42.1-2).

23Haverá um análogo do problema de Gettier para as afeições? Deixo esse problema como trabalho para casa, lembrando apenas ao leitor que a essência das situações de Gettier é o “problema da resolução”: o fato de os miniambientes cognitivos poderem ser enganadores, ainda que façam parte de maxiambientcs adequados para o nosso tipo de faculdades cognitivas (veja p. 172ss.). 2*The varieties of religious experience (New York: Longmans, Green, 1902), p. 340 [edição em português: As variedades da experiência religiosa (São Paulo: Cultrix, 1991)]. 25Característica que a King James Version retém: “E Adão conheceu a sua mulher Eva e ela concebeu e deu à luz Cairn” (Gn 4.1).

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exalaste perfume, e eu inspirei e suspiro por ti: saboreei, e estou faminto e sedento: tocaste-me, e fiquei a arder pela tua paz.26 Além deles, os grandes mestres místicos da vida espiritual também falam em termos eróticos: E apesar de os encantos com que Deus nos atrai serem admiravelmente agradáveis, doces e deliciosos, contudo, graças à força que a beleza e a bondade divinas têm para atraírem para elas a atenção e a aplicação do espírito, parece que não apenas nos elevam, mas também nos possuem e transportam. Como, pelo contrário, em razão do mais livre dos consentimentos e movimentos ardentes, que levam a alma possuída a procurar as atrações divinas, ela parece não apenas ascender e elevar-se, mas também libertar-se de si mesma e mergulhar na própria divindade.27 Não foram apenas os grandes místicos que tiveram esse gênero de experiência: ... quando me voltei e ia sentar-me à lareira, recebi um batismo poderoso do Espírito Santo [...] o Espírito Santo desceu sobre mim de uma maneira que parecia atravessar-me de corpo e alma. Sentia a impressão, como uma onda de eletricidade, atravessando-me da cabeça aos pés. Na verdade, parecia vir em ondas e mais ondas de amor líquido; pois não podia exprimir tal coisa de qualquer outra maneira.28 Até os puritanos (e talvez especialmente eles), apesar de serem frequentemente vistos como carrancudos e emocionalmente rígidos, são plenos de expressões de amor erótico por Deus. Há, é claro, Jonathan Edwards, mas ele não está sozinho de modo algum. Vejamos Henry Scougal, por exemplo: ... quando a alma se fixa nesse bem supremo e plenamente suficiente, encontra tanta perfeição e bondade que estas não só respondem à sua afeição e o satisfazem, mas também a dominam e subjugam: ela descobre que todo o seu amor é demasiado débil e lânguido para tal nobre objeção e lamenta apenas não poder amar mais. [...] Anseia pelo momento em que será totalmente derretida e dissolvida em amor.29

‫ן‬ 26Confessions, tradução para o inglês de Rex Warner (New York; New American Library, 1963), X, 27, p. 235 [edição em português: Confissões (Petrópolis: Vozes, 2011)]. 27Francisco de Sales, Treatise on the love of God, tradução para o inglês de Henry B. Mackey, Library of St. Francis de Sales (London: Burnes and Oates, 1884) Livro VII, cap, iv, p. 294. Veja também, para outro exemplo entre muitos, Fr. Nouet, “Conduite de l’homme doraison”, Livro VI in: Anton Poulain, The graces oj interior prayer, tradução para o inglês de Leonora York Smith (London: Routlcdgc and Kegan Paul, 1950), p. 111, citado por William Alston, Perceiving God, p. 54. 28Citado (anonimamente) por William James, Varieties of religious experience, p. 350. 29The life o f God i?t the soul o f man, or, the nature and excellency o f the Christian religion (Filadélfia: G. M. and W. Snider, 1827 [publicado originalmente cm 1677]), p. 62.

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Abro minha boca e suspiro, pois anseio pelos teus mandamentos (SI 119.131). Este amar a Deus não é como, digamos, um pendor para passar a tarde organizando a nossa coleção de selos. E uma saudade, plena de desejo e anseio; e é físico, não apenas espiritual: “o meu corpo tem saudade de ti, a minha alma ofega por ti”. É erótico; e urna das analogias mais próximas seria o eros sexual. H á um desejo poderoso de união com Deus, a unidade a que Cristo se refere em João 17. Outra analogia talvez igualmente próxima seria o amor entre um progenitor e o seu filho ainda criança; e também este tipo de amor é muitas vezes usado na Escritura como figurativo do amor de Deus — tanto do amor de Deus por nós como do nosso por ele. Também aqui, é claro, há saudade, anseio, desejo de proximidade, ainda que não seja uma saudade sexual·, pense em uma criança de oito anos com saudade do lar ou no amor de uma mãe pelo seu filho ferido e em sofrimento. Claro que não é apenas nos Salmos que encontramos expressões desse eros. Em Isaías, lê-se: “Exultarei por Jerusalém e me regozijarei pelo meu povo” (65.19); “como o noivo se alegra da noiva, assim o teu Deus se alegrará de ti” (62.5b). Isso implica, penso, não apenas que Deus se alegrará pelo seu povo como um noivo se alegra pela noiva, mas também que a noiva retribuirá o seu amor; quando as coisas acontecem apropriadamente, o povo de Deus ama-o como uma noiva ama o seu novo marido, com um gênero semelhante de desejo erótico. Depois há o Cântico dos Cânticos, com as suas imagens intensamente eróticas, imagens que a igreja sempre considerou uma representação do amor entre Cristo e sua igreja: Eu sou do meu amado, e o desejo dele é por mim. Vem, meu amado, vamos para o campo, passemos a noite nos povoados. Cedo iremos para as vinhas, para ver se já florescem as videiras, se estão abertas as suas flores e se as romãs já estão em flor; ali eu te darei o meu amor (7.10-12). No Novo Testamento, a relação entre Cristo e a sua igreja é repetidamente comparada à relação entre marido e esposa: Quem ama sua mulher, ama-se a si mesmo. Pois ninguém jamais odiou o próprio corpo; antes alimenta-o e dele cuida; e assim também Cristo em relação à igreja; porque somos membros do seu corpo. “Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne.” [Gn 2.24] Esse mistério é grande, mas eu me refiro a Cristo e à igreja (Ef 5.28b-32). Ao longo dos séculos, os cristãos ecoam essas expressões. E o caso de Agostinho: Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde tc amei! [...] Chamaste, clamaste, despedaçaste a minha surdez: relampejaste, iluminaste, destroçaste a minha cegueira:

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Que prazer infinito deve ser então, por assim dizer, perdermo-nos nele e sermos engolidos pelo sentido avassalador da sua bondade, oferecermo-nos como um sacrificio vivo sempre ascendendo para ele em chamas de amor.30 Amy Plantinga Pauw observa que O gozo entre Cristo e os santos é descrito por urna figura tão respeitável como Samuel Willard em termos francamente eróticos: “Haveremos então de morar na fonte deste amor, e os ardores recíprocos da afeição entre ele e nós quebrarão todas as barreiras e amarras, e ficaremos inteiramente saciados, tanto de alma como de corpo”.31 Como entender esse amor erótico por Deus, essa ânsia, saudade, desejo, e a sua aparente consumação em algo como uma união ardente entre “o devoto e a divindade”? Esse fenômeno surge em todos os graus de intensidade: há o cenário integral, de cortar o fôlego, subjugante, de que fala Francisco de Sales, mas também o movimento do coração para Deus, movimento muito mais ameno e contido da parte de quem dá graças por uma manhã gloriosa de junho ou de quem, por um breve momento, vê a gloria e a beleza da narrativa cristã e sente uma pontada de atração mais profunda do que a gratidão; e há todos os graus entre estes. Como compreender esse fenômeno? A maior parte da bibliografia psiquiátrica tende a seguir Freud, entendendo a religião como um tipo de neurose, a “neurose obsessiva universal da humanidade”.32 Desse ponto de vista, 30Ibidem, p. 66. 31“Edwards on heaven and the Trinity”, Calvin Theological Journal 30, n. 2 (Novembro de 1995), p. 392ss. A citação de Willard é de A compleat body of divinity (Boston, 1726), sermão 146. Veja também Abraham Kuyper, To be near unto God, tradução para o inglês de John Hendrik de Vries (Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 1918,1925), p. 675: “A saudade do lar procura o próprio Deus até sentirmos, na transmissão do amor que ocorre na nossa alma, o calor do coração do pai no nosso próprio coração. Não é o Nome de Deus, mas o próprio Deus quem a nossa alma deseja, e sem o qual não pode passar, o próprio Deus no resplendor da Sua vida; e é este resplendor da Sua vida que tem de penetrar-nos e tem de ser assimilado no sangue da nossa alma”. Devemos também mencionar aqui alguns dos “Sonetos Sagrados” de John Donne, por exemplo, o 14: Golpeia o meu coração, Deus das três pessoas; pois tu até agora apenas chamaste, deste alento, brilhaste e procuraste reparar; mas para que possa elevar-me, e erguer-me, derruba-me, e faz incidir a tua força, para que eu me quebre, deflagre, incendeie e me renove. Eu, qual cidade usurpada, vassala de outro, esforço-me para te admitir, mas de nada vale, a razão, o teu vice-rei em mim, deveria defender-me, mas está cativa e mostra-se fraca ou traidora. Mas devotamente “amo-te” e quisera ser amado, mas estou prometido em casamento ao teu inimigo: divorcia-me, desata, ou desfaz de novo esse nó, leva-me a ti, aprisiona-me, pois a menos que me subjugues, nunca serei livre, nem serei casto, a não ser que me possuas. 32Veja cap. 5, p. 152ss. Veja também: A. M. Freedman; Η. I. Kaplan; B. J. Sadock, orgs., Comprehensive textbook o f psychiatry (Baltimore: Williams and Wilkins, 1975), vol. 2, cm particular o artigo de Mortimer Ostow, “Religion and psychiatry”.

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entende-se o eros religioso como uma espécie de analogia, deslocamento ou sublimação da energia (sobretudo) sexual (presumivelmente, da parte de quem tem poucas opções mais convencionais para dar vazão a seus impulsos sexuais). O que é sublimar a energia sexual na arte, na poesia ou no amor a Deus? A ideia é que há uma reserva finita de energia cujo uso ou vazão “natural” é de ordem sexual; esta energia pode de algum modo ser desviada para outros canais, especialmente, talvez, se os canais naturais não estiverem disponíveis. (Há também a tese de que esses outros canais são socialmente mais respeitáveis.) A pessoa na qual ocorre a sublimação, é claro, não está ciente dessa origem do que ela pensa que são os seus sentimentos e desejos mais elevados (encontramos aqui aquele “desmascarar” que deu fama a Freud). Poderiamos fazer uma pausa para tentar entender essa tese de modo mais cabal: qual é a natureza dessa “energia” e o que quer dizer apontar tal energia em outra direção, e por que a energia se desvia dessa maneira? Será que toda a tese não é, na verdade, metafórica (“sublimação”, “energia”, “desvio” etc. seriam termos usados aqui metaforicamente) e, se o for, é uma metáfora do quê? Há algum modo de formular a teoria literalmente? Não nos detenhamos nessas questões, contudo, fingindo que temos uma apreensão razoavelmente boa da suposta teoria: há alguma razão para acreditarmos nela? Penso que aqui as coisas estão no mesmo pé em que se encontra a explicação de Freud da crença religiosa como uma forma de realização de desejos (cap. 5). Somos confrontados com uma questão: como explicar que algumas pessoas exibam esse desejo e amor ardente por Deus? Um gênero de resposta seria: “Bem, o próprio Deus, segundo a Escritura e a crença cristã, é essencialmente amor; a união com ele é também a finalidade principal dos seres humanos; logo, não é surpreendente que ele nos tenha criado para termos um desejo profundo de união com ele, mesmo que esse desejo tenha sido, em parte, suprimido e enfraquecido pelo pecado”. No entanto, suponhamos que Deus não exista e que o teísmo cristão (entre outros) seja uma ilusão (e um delírio) de um tipo qualquer: nesse caso, como acontece de muitos seres humanos exibirem esse amor a Deus? Parece-me que a sugestão de Freud é uma resposta a essa pergunta, ou a essa pergunta com esses pressupostos. A resposta pretende ajudar-nos a entender o que, de outro modo, seria (de uma perspectiva ateia) um fenômeno enigmático. A explicação proposta é que há o fenômeno natural, que não é surpreendente e está bem estabelecido, da energia sexual; imaginamos então que essa energia (por alguma razão) é “desviada” (naqueles que estão privados dos canais naturais de vazão) para outra direção, uma direção que pode ter alguma função psicológica. Desse modo, entendemos o amor erótico por Deus. A semelhança da explicação da crença teísta como realização de desejos, essa explicação (pressupondo que conseguimos dar-lhe um sentido genuíno) é muitíssimo mais provável se o teísmo for falso do que se for verdadeiro. E claro que é possível que algo desse tipo seja verdadeiro mesmo que o teísmo também o seja. Mesmo que o teísmo seja verdadeiro, é possível que (em virtude, por exemplo, do pecado) exista um esgotamento das fontes naturais de amor a Deus e um tipo de expediente temporário de emergência no qual a energia sexual é usada para esse propósito. Talvez seja até possível que tenhamos

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originalmente sido constituidos, no estado pré-queda, de tal modo que a energia sexual era de algum modo desviada e usada dessa outra maneira — ou seja, para o amor a Deus (ainda que, se isso fazia parte do plano de desígnio original do ser humano, por que chamar “sexual” à energia em questão?). Essas coisas são possíveis, ainda que, dado o teísmo ou o cristianismo, não sejam prováveis. Embora fossem verdadeiras, contudo, continuaria a haver uma diferença importante: do ponto de vista cristão ou teísta, esse sistema ou conjunto de sistemas teria sido concebido ou reconcebido com o amar a Deus como objetivo ou finalidade: seria para isso que serviría. As coisas não seriam assim, é claro, da perspectiva de Freud. De um ponto de vista cristão, pois, Freud vê aqui (como é frequente nele) as coisas ao contrário. Não se trata de o eros religioso, o amar a Deus, ser na verdade um eros sexual enlouquecido ou redirecionado, e não é o eros sexual (por mais importante que seja) que é básico ou fundamental, de tal modo que o eros religioso seria derivado dele. O fato é que é precisamente ao contrário. E o desejo e o anseio sexual que são sinal de algo mais profundo: é um sinal dessa saudade, dessa ânsia por Deus que os seres humanos atingem quando lhes é graciosamente permitido alcançar determinado nível da vida cristã. E o amar a Deus que é fundamental ou básico, e o eros sexual que é um sinal ou símbolo que aponta para algo mais profundo. (Claro que não pretendo dizer que a importância e o valor do eros sexual se esgotam no fato de ser um sinal do amor a Deus.) Na verdade, o eros sexual aponta para duas realidades mais profundas. Primeiro, aponta para o amor humano a Deus, que é um desejo apaixonado pela condição central para a qual Deus nos concebeu. Segundo o Catecismo de Westminster, a finalidade principal do homem é glorificar a Deus e gozar dele para sempre. O que é este “glorificar a Deus e gozar dele para sempre”? O primeiro não é fundamentalmente uma questão de dizer a Deus quão grandioso ele é e apresentar-lhe efusivos cumprimentos, metafísicos ou não. Deus é, realmente, indescritivelmente grandioso, magnífico e maravilhoso, mas ele já o sabe, e não precisa ouvi-lo de nós, como uma pessoa insegura ou cujo ego precisa ser constantemente alimentado. Trata-se, muito mais provavelmente, de uma questão de percepcionar, reparar, apreciar; deleitarmo-nos, desfrutarmos da glória e beleza de Deus, da sua amabilidade e doçura — toda a lista de propriedades divinas tão frequentemente mencionadas por Jonathan Edwards — e uma expressão natural dessa percepção e deleite.33 E o segundo — “gozar dele para sempre” — é um tipo de união com Deus, ser uno com ele. Citando Samuel Willard de novo, “Haveremos então de morar na fonte deste amor, e os ardores recíprocos da afeição entre ele e nós quebrarão todas as barreiras e amarras, e ficaremos inteiramente saciados, tanto de alma como de corpo”.34 O eros sexual, com sua ânsia e seus desejos, é

33Como Ronald Fecnstra me recordou, trata-se também, sem dúvida, de uma questão de desenvolver a imagem de Deus em nós, tanto individual como corporativamente. 34Compare-se com Edwards: “Pensei para comigo: quão excelente é esse Ser; c quão feliz eu seria se pudesse gozar desse Deus, sendo envolvido por ele no céu e sendo, por assim dizer, engolido por ele” (“A Personal Narrative”, in: John Smith; Harry Stout; Kenneth Minkema, orgs., A Jonathan Edwards reader [New Haven: Yale University Press, 1995], p.284).

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um sinal e prenúncio da ânsia e do desejo de Deus que nos caracterizará no nosso estado restabelecido e renovado no céu; e a satisfação e união sexuais, com os seus transes e êxtases, são sinal e prenúncio da realidade mais profunda da união com Deus — uma união que atualmente, na sua maior parte, esconde-se de nós. Bernard Williams parece acreditar que o céu seria um pouco entediante para uma pessoa de gosto e sensibilidade;35 e Michael Levine pensa que a amizade com Deus poderia ser razoavelmente interessante, mas duvida que fosse “de valor supremo”.36 Talvez essas reações sejam tão espiritualmente imaturas como as de uma criança de nove anos ao ouvir falar pela primeira vez dos prazeres do sexo: poderá isso ser realmente tão bom quanto jogar bola de gude ou comer chocolate?37 Claro que não é apenas o eros sexual que é um sinal ou símbolo do amor a Deus. Tanto o eros sexual quanto o amor a Deus são, ambos, desejos apaixonados de união, um desejo apaixonado de unir-se ao objeto de desejo. E há outras manifestações do mesmo tipo de desejo de união. Considere-se a beleza arrebatadora e sobrenatural da pradaria em uma manhã de junho, bem cedo, ou a aparência gloriosa, mas ligeiramente ameaçadora, do grupo Catedral do Grand Teton, ou o esplendor do Monte Shuksan e do Monte Baker vistos de Skyline Ridge, ou o intemporal rugido e estrondo das ondas na praia, ou a doçura enternecedora do “Dona Nobis Pacem” de Mozart, que pode trazer-nos lágrimas aos olhos, ou a incrível graça, beleza e poder de um número de patinação no gelo ou uma bola de futebol americano lançada à distância de oitenta e nove metros. Em cada caso, há uma espécie de ânsia, algo talvez como a nostalgia, ou talvez como a saudade de casa,38 uma saudade não sabemos do quê. Essa saudade é diferente do eros sexual, ainda que sem dúvida esteja ligada a ele em um nível profundo (o que talvez seja uma das coisas que Freud realmente percebeu). Nesses casos, não é fácil dizer com precisão qual é o objeto da saudade, mas pode parecer que se trata de uma espécie de união: é como se quiséssemos ser absorvidos pela música, fazer parte do oceano, ser unos com a paisagem. Adoraríamos escalar aquela montanha, certamente, mas isso não é suficiente; queremos também de algum modo nos tornarmos um com ela, fazer parte dela, ou fazer com que ela própria, ou a sua beleza, ou algum aspecto particular dela, passem a fazer parte da nossa alma.39 Claro que isso não é possível; continuamos insatisfeitos. Jean-Paul Sartre diz que o homem (e duvido que ele quisesse excluir as mulheres) é sempre em demasia, de trop\ talvez esteja mais próximo da verdade dizer que ele “não é suficiente”. Sartre afirma também que o homem é uma “paixão inútil”. O que deveria ter dito é que 35“The macropoulos case”, in: Problems o f the *^(Cambridge: Cambridge University Press, 1973), p. 94-5. 3‫׳‬,“Swinburne's heaven: one hell of a place”, Religious Studies 4 (1993), p. 521. 37Compare-se com C. S. Lewis: tal pessoa é “como uma criança ignorante que quer continuar fazendo bolinhos de terra em uma favela porque não consegue imaginar o significado da oferta de umas ferias 11a praia” (“The weight o f glory”, in: The weight o f glory and other addresses, edição e introdução de Walter Hooper [New York: Macmillan, 1980J, p. 4) [edição em português: Opeso de glória (São Paulo: Vida, 2008)]. 3"Kuyper, To be near unto God, p. 674-5. 3,Compare-se C. S. Lewis uma vez mais: o nosso “segredo inconsolável” é que “Não queremos apenas ver a beleza, ainda que isso já seja algo extraordinário. Queremos algo mais, algo que é difícil pôr em palavras — queremos nos unir à beleza que vemos, entrar nela, recebê-la em nós, banharmo-nos nela, passar a fazer parte dela” (7he weight o f glory, p. 126).

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o ser humano é uma paixão insatisfeita. Nenhuma quantidade de beleza nos é suficiente; nunca ficamos realmente satisfeitos; há sempre algo além, ansiamos por algo mais que só vagamente conseguimos conceber. Estamos limitados a meros vislumbres fugazes da verdadeira satisfação — irrealizados até o amor de Deus nos realizar. Essas saudades são também tipos da saudade de Deus; e as realizações parciais, breves, mas radiosas, são tipos e antegozos da realização gozada por quem “glorifica a Deus e goza dele para sempre”. O amor sexual aponta para algo mais profundo de outra maneira. Como acabamos de ver, é um sinal ou tipo de uma realidade mais profunda, de uma espécie de amor a Deus do qual não temos agora senão pistas. E também um sinal, símbolo ou tipo do amor de Deus — não apenas do amor que os filhos de Deus terão um dia por ele, mas também do amor que ele tem por eles. Como observamos (p. 321), a Escritura compara regularmente o amor de Deus pelo seu povo e o amor de Cristo pela sua igreja com o amor de um noivo pela sua nova noiva. Ora, é comum e tradicional o ponto de vista de que Deus é impassível, sem desejo, sentimento ou paixão, incapaz de sentir pena pela triste condição deste mundo e pelo sofrimento dos seus filhos, e igualmente incapaz de sentir alegria, deleite, saudade ou anseio. A razão para o pensar, em traços gerais, é que na tradição cuja origem é a filosofia grega, as paixões eram concebidas (o que é natural) como passivas, algo que nos acontece, ao qual somos sujeitos, em vez de ser algo que fazemos ativamente. Estamos sujeitos à cólera, ao amor, à alegria e a todo o resto. Deus, contudo, é ato puro; não “sofre” nada. Ele atua e nunca é meramente passivo; não está sujeito a coisa alguma. No que respeita ao eros, além do mais, há uma razão adicional nessa tradição para se pensar que ele não faz parte da vida de Deus: a saudade e o anseio significam necessidade e incompletude. Quem anseia por algo não o tem e precisa dele, ou pelo menos pensa que precisa; Deus, por outro lado, é paradigmáticamente completo e de nada precisa além de si. Como poderia então ele estar sujeito ao eros? O amor de Deus, segundo essa tradição, é exclusivamente ágape, benevolência,40 um amor magnânimo, completamente dirigido ao outro, no qual há piedade, mas nenhum elemento de desejo. Deus nos ama, mas nada podemos fazer por ele; e ele nada deseja de nós. Nesse ponto particular, penso que temos de nos afastar da tradição; esse é um daqueles casos em que ela deu mais atenção à filosofia grega que à Bíblia. Entendo que Deus pode sofrer e sofre realmente; a sua capacidade para o sofrimento excede a nossa na mesma medida em que o seu conhecimento excede o nosso. O sofrimento de Cristo não foi uma farsa; ele estava disposto a sofrer as agonias da cruz e o próprio inferno (“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”).41 Deus Pai estava preparado para 40Veja Anders Nygren ,Agape and eros, tradução para o inglês de Philip S. Watson (New York: Macmillan, 1939). 4,Será que podemos dizer que Cristo, como ser humano (segundo a sua natureza humana), sofreu ao passo que Cristo, como ser divino (segundo a sua natureza divina), não sofreu? Dificilmente aqui é o lugar para tentar responder a uma questão tão antiga e profunda como essa, mas tendo a pensar que essa ideia é incoerente. Há. uma pessoa, a segunda pessoa da Trindade divina, que se fez carne. E essa pessoa que sofre; se houvesse realmente aqui dois centros de consciência, um em sofrimento e outro não, havería aqui duas pessoas (uma humana e outra divina) e não uma pessoa simultaneamente humana e divina. Veja o meu “On heresy, mind, and truth”, Faith and Philosophy, 16, n. 2 (Abril de 1999), p. 182.

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sofrer a angústia de ver o seu Filho, a segunda pessoa da Trindade, enviado para a morte amargamente cruel e vergonhosa na cruz.42 E isso acaso não seria igualmente verdadeiro em relação às outras paixões? “No céu haverá mais alegria por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento” (Lc 15.7); acaso o próprio Deus estará excluído desse regozijo? O mesmo se aplica ao eros: “Como o noivo se alegra da noiva, assim o teu Deus se alegrará de ti” (Is 62.5). O noivo que se alegra da noiva não a ama meramente com um amor de ágape. Ele não é como o seu benevolente irmão mais velho (apesar de se dizer também que Cristo é o nosso irmão mais velho). Ele deseja e anseia por algo que está fora dele, a saber, a união com a sua amada. A igreja é a noiva de Cristo, não a sua irmã mais nova. Ele não é o seu benevolente irmão mais velho, mas o seu marido e amante. Essas imagens escriturais implicam que Deus não é impassível e que o seu amor por nós não é exclusivamente ágape. Sugerem que o amor de Deus pelo seu povo envolve um elemento erótico de desejo: ele deseja o tipo adequado de resposta da nossa parte e a união conosco, tal como nós desejamos nos unir a ele. Podemos dar um passo mais (e aqui talvez estejamos entrando no domínio da especulação sem fundamento). Segundo Jonathan Edwards, “A felicidade infinita do Pai consiste em desfrutar do seu Filho”.43 E de presumir que isso não seja ágape. Não envolve um elemento de piedade, como o amor de Deus por nós. E, antes, uma questão de Deus ter um imenso prazer, gozo, deleite, felicidade, regozijo no seu Filho. Dada a existência necessária do Pai e do Filho, e dado que eles têm as suas propriedades mais importantes essencialmente, é impossível que Deus seja privado do seu Filho;4445mas se {per impossibile) o fosse, isso ocasionaria uma tristeza inconcebível. O amor em questão é eros, não ágape.4s E um desejo por união que é satisfeito de modo contínuo, eterno e infinitamente bem-aventurado. E o fato de sermos criados à sua imagem inclui a nossa capacidade para o eros, para amar o que realmente deve ser amado, para o conhecimento e para a atividade consciente e responsável. Desse modo, o eros nas nossas vidas é também um sinal ou símbolo do amor erótico de Deus. O amor erótico humano é um sinal de algo mais profundo, algo tão profundo que é incriado, é uma característica permanente e necessariamente presente do universo. Sem dúvida, Eros caracteriza muitas criaturas além dos seres humanos; é certo que grande parte do universo vivo partilha essa característica. Mais importante que isso é

42Ele sofre também, sem dúvida, com o sofrimento e abandono de cada um dos seus filhos: “este tormento amargo é infligido a Deus sempre que uma alma cai para longe dele” (Kuyper, To be near unto God, p. 30). 4·,"An essay on the Trinity”, in: Paul Helm, ed., Treatise on grace and other posthumously published writings (Cambridge: James Clarke, 1971), p. 105. 44E essa c a resposta para um dos argumentos tradicionais a favor da conclusão de que Deus não tem paixões: o Pai e o Filho necessitam realmente um do outro, mas se trata de uma ncccs6idadc eternamente satisfeita. 45“Assim, quando dizemos que Deus ama o seu Filho, não estamos falando de um amor abnegado, sacrificial ou misericordioso. Estamos falando de um amor de deleite e prazer [...] Ele se compraz no seu Filho. A sua alma deleita-se com o Filho! Quando olha para o seu Filho, goza, admira, acarinha, valoriza e sente êxtase pelo que vê" (John Piper, Thepleasures of God [Portland: Multnomah Press, 1991], p. 31).

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que todas as criaturas com eros refletem e participam dessa profunda propriedade divina. Assim, a realidade mais fundamental que existe é o amor exibido por Deus e em Deus: o amor no seio da Trindade.46 Esse amor é erótico. E uma questão de percepcionar, desejar e ter uma união com algo valioso — nesse caso, Alguém de valor supremo. E o amor de Deus por nós se manifesta no seu generoso convite para entrarmos nesse adorável círculo (ainda que não nos convide, é claro, para uma igualdade ontológica), satisfazendo assim os anseios mais profundos das nossas almas. No seio desse círculo há misericórdia, sacrificio de si, ágape em abundância; há também aquele anseio e deleite, aquela saudade e alegria que constituem o eros.47 Suponha-se que usemos o termo “eros humano” para nos referir ao eros sexual e também ao anseio envolvido na nossa experiência da beleza, da nostalgia e de outras coisas semelhantes. Afirmo que o eros humanos é um sinal, um símbolo, um tipo, uma figura,48 um prenúncio, tanto do amor de Deus por nós como do nosso amor por Deus, espiritualmente amadurecido, mas o que significa isso exatamente e por que não consigo decidir-me por apenas uma dessas cinco palavras? Para responder, primeiro, à pergunta mais fácil, fixemo-nos na palavra “tipo”: o eros humano é um tipo do amor de Deus e do amor a Deus. Claro que isso é somente para lhe dar um nome: o que é essa relação? Esta é uma questão ampla e nada trivial; não posso senão tentar mencionar aqui alguns aspectos essenciais de superfície. Primeiro, a relação não é simétrica: o eros humano é um tipo do amor de Deus, mas o amor de Deus não é um tipo do eros humano. Segundo, a relação em questão não é de modo algum a conhecida relação entre tipo e espécime. Um cavalo é um espécime do tipo 0 cavalo; uma inscrição da palavra “peixe” é um espécime dessa palavra. Mas o eros sexual não é um espécime do amor divino e o amor divino não é um espécime do eros sexual; logo, nenhum é espécime do outro. Terceiro, à semelhança da relação entre tipo e espécime e ao contrário da relação entre uma palavra e o que ela denota, a relação de tipo aqui presente não é convencional. A palavra “peixe” representa peixe; a relação entre “peixe” e peixe é convencional tendo em vista que essa relação existe em virtude de uma convenção linguística. (Talvez a relação ocorra por meio da convenção que estabelece uma relação entre a palavra “peixe” e a propriedade de ser um peixe, e a primeira exprima esta última.) A relação entre “peixe”e peixe depende 46A ideia de que Deus é trinitario distingue o cristianismo de outras religiões teístas; vemos aqui um aspecto em que essa doutrina marca uma diferença genuína, pois reconhece o eros e o amor pelos outros no nível mais fundamental da realidade. Acaso isso sugere que devemos nos inclinar para uma concepção social da Trindade, a concepção de Gregorio e dos pais capadócios, em detrimento da concepção agostiniana, que se aproxima do modalismo? Veja Cornelius Plantingajr., “Social trinity & tritheism”, in: Ronald Feenstra; Cornelius Plantinga Jr., orgs., Trinity, incarnation, and atonement (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1989). 47Para um tratamento mais poético das conexões entre o amor romántico humano e o amor divino, veja Charles Williams, Religion and love in Dante: the theology of romantic love (Westminster: Dacre Press, 1941) (veja também, é claro, Dante Alighieri, Divine comedy, vol. 1: Paradiso [edição em portugués: Λ divina comédia, 13. cd., tradução de Xavier Pinheiro (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017), vol. 3: Para(so). Wiiliams argumenta (p. 11) que estar apaixonado (esse estado mais ou menos comum, mas também absolutamente extraordinario em que a maior parte de nós se encontra em certo momento) é uma maneira de participar do próprio Amor divino. 48Veja o poderoso “Figura”, de Erich Auerbach, in: Scenesfrom the drama of European literature (New York: Meridian Books, 1959).

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de nós, seres humanos, e do que fazemos; existe porque nós (ou alguns de nós) fizemos o que foi preciso para estabelecer a convenção pela qual a primeira é uma palavra que designa o segundo. O peixe (o tipo) é também um símbolo de Jesus Cristo. A conexão entre o peixe e Jesus Cristo é também convencional, ainda que de modo ligeiramente diferente. O primeiro foi adotado como símbolo do último por causa de uma relação entre a palavra grega para peixe {ic-thus) e certa expressão grega: Ίησουζ χριζτόζ θεού Υιόζ Σωτήρ. As letras da palavra, tomadas em ordem, são as primeiras letras das palavras dessa expressão, tomada em ordem. Essa relação não é meramente convencional; mas a relação entre o peixe e Jesus Cristo o é, já que depende essencialmente de tratarmos esse tipo e alguns dos seus espécimes de uma maneira convencional. Isso não acontece no modo em que o eros humano é um tipo do amor divino: essa relação não depende de estabelecermos quaisquer convenções humanas. No entanto, nada disso nos diz o que c essa relação. Talvez possamos progredir um pouco considerando um exemplo bíblico. Em Hebreus 8.5, lemos que o sumo sacerdote serve num santuário “que é figura e sombra das coisas celestiais” e, no capítulo seguinte: “Portanto, era necessário que as figuras das coisas que estão no céu fossem purificadas com tais sacrifícios, mas as próprias coisas celestiais, com sacrifícios melhores do que estes” (9.23). O que se quer dizer aqui, penso, é que o santuário terreno, o templo, é um tipo daquele que está no céu, seja este o que for. O sacrifício de um animal, além disso, é um tipo do sacrifício de Cristo, e os animais em si são tipos de Cristo. A relação aqui é que há certa semelhança (às vezes funcional) entre a cópia terrena e o exemplar celeste, uma relação que é independente de qualquer convenção humana. Claro que isso não é dizer grande coisa: quaisquer duas coisas são parecidas entre si de inúmeras maneiras (e de inúmeras maneiras independentes das convenções humanas); o que está em questão é uma relação pertinente, em que é fácil dar exemplos, mas talvez difícil afirmar em que consiste a pertinência. Talvez a resposta se encontre na área seguinte. Há características ou propriedades de Deus que são muito boas — isto é, características ou propriedades tais que as suas exemplificações são boas. Essas características incluiríam o seu amor, poder, conhecimento, misericórdia, justiça, beleza, glória e outras semelhantes, e é por exemplificá-las no grau máximo que Deus é sumamente bom.49Ao criar criaturas que são também boas, Deus tenciona fazê-las de tal modo que se pareçam com ele em virtude de exibirem algumas dessas mesmas características. Elas refletem e recapitulam as características divinas em questão. Claro que haverá diferenças enormes: as criaturas de Deus são finitas, criadas e condicionadas, ao passo que ele mesmo é infinito, incriado e incondidonado; o tema em pauta é, digamos, transposto para outro tom.50 Onde b é um tipo de a, consequentemente, a será de grande valor em algum aspecto; b se parecerá com a sob esse aspecto, apesar de b ser de menor valor do que a (daí a assimetria). Além disso, o eros humano é um tipo, um sinal, ou um análogo do amor divino também porque Deus 4,Claro que não pretendo sugerir que Deus de algum modo dependa dessas características ou que é ontologicamente subsequente a elas (seja o que for que isso signifique exatamente); estas características cm si, assim como outras propriedades, podem talvez ser mais adequadamente entendidas como conceitos divinos. Veja o meu Does God have a nature? (Milwaukee: Marquette University Press, 1980). 50C. S. Lewis, “Transposition”, in: Transposition and other addresses (London: G. Bles, 1949).

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tencionou criar algo que se parecesse com ele no aspecto pertinente, e tencionou criá-10 exatamenteporque se parece com ele nesse aspecto. (O som feito por um veado bebendo em uma poça de água pode parecer-se vagamente com o som de um pequeno riacho de montanha; nem um nem outro, é de pensar, foi criado cm virtude dessa relação.) Essas coisas são (penso) necessárias, mas serão também suficientes? Duvido, mas não sei que outra condição acrescentar. O fato de o eros humano ser um tipo do amor divino significa que essa característica das nossas vidas pode ser explicada ou entendida de certa maneira. Nós a entendemos melhor, percebemos de que se trata afinal, compreendemos o que é mais importante acerca dela quando percebemos que é um tipo ou sinal do amor divino. Notamos como se conjuga com o resto da realidade e como se liga ao que é máximamente real. E claro que há vários entendimentos evolucionistas do amor erótico; centram-se todos, como é natural, na ligação entre eros e a reprodução ou, mais frequentemente, em sua ligação com os mecanismos de sobrevivência e reprodução. Por que os seres humanos têm eros e qual é o seu significado? De um ponto de vista evolutivo ou sociobiológico, a resposta se relaciona com o modo pelo qual essa característica da nossa natureza surgiu: pouco a pouco, em pequenos estágios, cada estágio contribuindo para a aptidão do organismo (ou sendo geneticamente ligado a algo que a promovia). Do ponto de vista cristão, contudo, as coisas são muito diferentes. O significado dessa característica das nossas vidas está no fato de que exibi-la é inerente ao ser criado à imagem de Deus; desse modo, os seres humanos partilham uma das propriedades fundamentais do Ser Primeiro do universo. As questões “Por que o temos?” e “O que é mais significativo acerca dele?” devem ser respondidas da perspectiva de ser ele um tipo do amor divino. Assim, em suma, segundo o modelo a fé é uma questão de um conhecimento seguro e certo, revelado ao espírito e selado no coração. Essa selagem, de acordo com o modelo, consiste em ter os gêneros adequados de afeições; em essência, consiste em amar a Deus acima de tudo e ao nosso semelhante como a nós mesmos. Há uma relação íntima entre revelar e selar, entre conhecimento e afeição, intelecto e vontade; estes cooperam de maneira profunda, complexa e íntima na pessoa de fé. E o amor nela envolvido é, em parte, erótico; abrange aquela saudade e aquele anseio que tão bem conhecemos. Por último, o amor entre seres humanos — entre homens e mulheres, entre pais e filhos, entre amigos — é um sinal ou tipo de algo mais profundo: do amadurecido amor humano a Deus, por um lado, e, por outro, do amor de Deus presente entre os membros da Trindade e do amor dele pelos seus filhos.

Objeções Os sábios deste mundo, crentes ou não, pressupõem muitas vezes que a “experiência religiosa” é um fenômeno puramente subjetivo. Apesar de poder ter várias funções psicossociais a desempenhar, quaisquer afirmações do seu valor cognitivo podem, assim, ser afastadas de antemão, sem qualquer tipo de exame. William P. Alston Ou, como veremos, concedendo-lhe na melhor das hipóteses um exame sumário. Neste capítulo, vamos ver e avaliar alguns dos supostos resultados desses exames sumários. O modelo A/C estendido dos últimos três capítulos pretende demonstrar como a crença específicamente cristã pode ter justificação, racionalidade interna e externa e aval. Segundo o modelo, os seres humanos caíram no pecado, uma condição lamentável de que somos incapazes de nos libertar por nós mesmos. Jesus Cristo, simultaneamente um ser humano e o divino Filho de Deus, expiou o nosso pecado por meio do seu sofrimento e morte, tornando assim possível que tivéssemos a relação adequada com Deus. A Bíblia é (entre outras coisas) uma comunicação escrita de Deus para nós que proclama essa boa nova. Por causa da nossa condição pecaminosa, contudo, termos essa informação não basta: precisamos também de uma mudança de atitude. Esta é providenciada pela instigação interna do Espírito Santo (IIES), que dirige as nossas afeições na direção certa e nos permite ver a veracidade das coisas grandiosas do evangelho. O processo pelo qual começamos a acreditar nelas, portanto, satisfaz as condições do aval (e também as condições do análogo afetivo do aval). Além disso, é óbvio que as crenças em questão são também tais que podem ser justificadas e ser internamente racionais, e frequentemente o são. Neste capítulo, farei duas considerações. Primeiro, quero considerar alguns dos argumentos a favor da conclusão de que a crença teísta e/ou cristã carece de aval; segundo, quero considerar objeções aos meus argumentos e afirmações acerca do modo pelo qual a crença cristã pode ter aval. O que defendí até agora, em ordem ascendente de força, foi que: (1) o modelo A/C estendido descreve uma maneira possível da crença cristã ter aval; (2) dada a veracidade da crença cristã, não há objeções cogentes a que tenha aval do modo sugerido pelo modelo A/C; (3) dada a veracidade da crença cristã, é muito provável que ela tenha aval ou por meio do modelo A/C estendido ou de outro modelo muito semelhante. (3) é mais forte do que (2). Esta diz que, pressupondo a veracidade da crença cristã, não há objeções cogentes ao modelo A/C e, assim, não há objeções à ideia de que a crença cristã tem aval; mas é claro que podería não haver objeções cogentes a uma proposição p ainda que p se revelasse, afinal, falsa. (3) acrescenta que de fato é

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muito provável que a crença cristã tenha aval, dada a sua veracidade. Um argumento bem-sucedido a favor da conclusão de que a crença cristã ou teísta carece de aval, portanto, será um argumento bem-sucedido contra (2) e (3) — desde que, evidentemente, não pressuponha (ou defenda) a falsidade da crença cristã. Tal objeção, então, deverá ser independente da questão da veracidade ou falsidade da crença cristã; deverá ser cogente mesmo supondo que a crença cristã seja verdadeira. A nossa questão é realmente a seguinte: há razões epistemológicas gerais, independentes de dúvidas sobre a veracidade da crença cristã ou teísta, para pensar que ela carece de aval? Assim, se uma dessas objeções for bem-sucedida, permanecerá bem-sucedida mesmo pressupondo que Deus realmente exista e que a crença cristã seja, de fato, verdadeira. H á também uma dificuldade inicial. Quem levanta a objeção dejure acerca da crença cristã ou teísta queixa-se tipicamente de que ela é “irracional” ou “injustificada”, ou que não é “razoável”, ou que “não tem justificação racional”, ou que é “racionalmente indefensável”, ou algo assim; raramente tenta explicar seriamente o que quer dizer com essas expressões. Em vez disso, toma-se como evidente que sabemos perfeitamente bem o que elas significam e argumenta-se então que a crença teísta tem as propriedades desagradáveis que tais termos exprimem. Porém, essas expressões e os conceitos a elas associados têm tido uma carreira imensamente acidentada na epistemología moderna e contemporânea; pressupor que os significados delas são perfeitamente claros é excessivamente ingênuo. Provoca também confusão, tornando difícil interpretar com exatidão as queixas do objetor. Vimos que a única questão dejure válida é na verdade a questão de a crença cristã ter ou poder ter aval: aquela propriedade ou quantidade que, em medida suficiente, é o que distingue o conhecimento da mera crença verdadeira. Consequentemente, abordarei esse problema interpretando as objeções como argumentos a favor da tese de que a crença cristã não tem aval. E claro que isso tem o atrativo adicional de ser provavelmente o que o objetor tinha em mente, pelo menos em alguns casos. Vários pensadores consideram a questão de saber se a crença cristã pode ou não ser justificada ou avalizada pela experiência religiosa e argumentam então, que não pode. Ora, sustentei no capítulo 6 que não está claro o que se quer dizer quando se afirma que uma crença é avalizada pela experiência e por isso não me propus a dizer se, segundo o modelo, a crença teísta e cristã obtém o seu aval da experiência religiosa ou por meio dela. Tecnicamente falando, portanto, essas objeções não se aplicariam às minhas teses acerca de como tal crença pode ter aval. Para considerar as objeções, contudo, vamos conceder algo que pode muito bem ser falso — a saber, que (no modelo) essas crenças defato obtêm o seu aval por meio da experiência. Pelo menos desse jeito as objeções não serão descartadas a priori.I. I. O AVAL E O ARGUMENTO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

A primeira objeção é na verdade menos uma objeção, me parece, do que uma confusão devida à ausência de uma distinção importante. Anthony OTIcar considera a ideia de

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que talvez a crença teísta esteja justificada ou receba aval (é difícil saber em qual das duas situações ele está pensando) de maneira direta e não por meio de argumento ou inferência. (Nos meus termos, a questão é se a crença teísta poderia ser apropriadamente básica, seja com respeito ao aval, seja com respeito à justificação.) Referindo-se a William James e John Baillie, entre outros, ele observa que isso poderia, em tese, ocorrer por meio da experiência religiosa entendida de maneira ampla. Afirma ele então: E a ideia de um contato pessoal direto com uma realidade não sensorial que quem não é crente considera difícil de entender. Para esclarecer a natureza da dificuldade, considerarei até que ponto a experiência religiosa pode fornecer evidências a favor da existência de uma realidade além da própria experiência. Presumivelmente, as pessoas que estão convencidas de estar em contato pessoal com uma super-realidade tendem a não tentar argumentar ou provar a sua convicção, nem terão chegado a esta inferencialmente, tal como a partir de afirmações acerca das nossas sensações não inferimos naturalmente afirmações acerca de objetos físicos. Contudo, surge naturalmente a necessidade de saber até que ponto a convicção pode ser justificada pela experiência.1 Há aqui várias questões. Primeiro, note-se que essa citação ilustra a dificuldade iniciai que mencionei: será que O ’Hear está falando de justificação, de racionalidade, de aval ou do quê? Não se vê claramente nem aqui nem em outras passagens. Apesar da ocorrência de “justificada” na última frase da citação, não me parece que ele esteja realmente falando de justificação — e de qualquer modo, como vimos (p. 121ss.), a questão da justificação responde-se tão facilmente que não chega a ser interessante. Apesar de O ’Hear mencionar “contato pessoal”, talvez nesse contexto seja melhor considerar que se trata da questão de saber se a experiência religiosa poderia colocar-nos em contato epistêmico com uma realidade não sensorial (ou seja, uma realidade que não podemos, habitualmente, ver, ouvir, tocar etc.) como Deus; e essa questão, penso, é a de saber se as crenças sobre tal realidade não sensorial podem adquirir aval por meio da experiência religiosa. Ora, a sugestão inicial de O ’Hear é que há algo de problemático acerca da própria ideia de um ser humano estar em contato cognitivo (do tipo que o aval exige) com uma realidade não sensorial como Deus. Por que é isso problemático? O ’Hear não responde diretamente a essa pergunta, mas se propõe a “esclarecer a dificuldade” abordando a questão de saber se “a experiência religiosa pode fornecer evidências a favor da existência de uma realidade além da própria experiência”. Isso dá a impressão de que ele pensa que a maneira de responder à pergunta Será que a experiência religiosa possibilita que tenhamos o gênero adequado de vínculo cognitivo com Deus?

‫י‬Experience, explanation and faith (London: Routledgc and Kegan Paul, 1984), p. 27. As páginas referidas dizem respeito a essa obra.

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é perguntar Haverá algum bom argumento que parta da existência da experiência em questão e conclua pela existência de Deus — um argumento cujas premissas relatem a experiência em questão e cuja conclusão seja que a pessoa de Deus existe? Que é isso que ele tem em mente confirma-se pelo que afirma pouco depois: Os cristãos, por exemplo, tendem a explicar esse caráter imprevisível [da experiência religiosa pertinente] dizendo que são dádivas de Deus. Pode ser que o sejam, mas dizê-lo certamente enfraquece as tentativas de argumentar a favor da realidade partindo da experiência (p. 44). Isso sugere claramente que o que está aqui em causa, com respeito a saber se a crença teísta pode ter aval em virtude da experiência religiosa, é saber se há um bom argumento que parta de premissas que relatam essa experiência e conclua pela existência de Deus. O ’Hear diz então que aquilo que estamos realmente buscando é ... fundamentos para encarar as experiências religiosas que temos [...] como experiências de um gênero objetivo (p. 45). A resposta, afirma, deverá girar em torno do poder explicativo da hipótese de que as experiências religiosas se devem, pelo menos em parte, à existência e operação de uma realidade religiosa ob= jetiva, e não meramente por fatores mundanos, como as características psicológicas da pessoa, a química ou a maneira pela qual ela foi educada (p. 45). Assim, a sua ideia, tanto quanto consigo entender, tem duas partes: (a) a crença teísta só pode ter aval em virtude da experiência religiosa se houver um bom argumento (um argumento não circular) que parta de premissas que relatem a ocorrência de tais experiências e conclua pela existência de Deus e (b) tal argumento deverá incluir como premissa a proposição de que a existência de Deus é a melhor explicação das experiências religiosas. (Claro que tal argumento teria também de fornecer razões para pensar que essa premissa é verdadeira.)

OBJEÇOES

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Afirmei que (a) faz parte da ideia de O ’Hear; talvez “pressuposto” seja um termo melhor que “ideia”, pois ele não faz esta afirmação explícitamente, tomando-a antes como óbvia. Eis outra maneira de formular esse pressuposto: a crença teísta só pode ter aval por meio da experiência religiosa se algum argumento teísta que parta da experiência religiosa for bem-sucedido. Esse pressuposto é muitíssimo comum e raramente apresentado e defendido por meio de argumentos; como irei sustentar, contudo, ele tem a desvantagem substancial de ser falso. De fato, um dos pontos principais a analisar aqui é que a questão de saber se a crença teísta pode receber aval por meio da experiência religiosa (e, assim, da maneira básica) é completamente diferente da de saber se há um bom argumento que parta da existência de experiência religiosa e conclua pela existência de Deus. (Não são apenas questões diferentes: uma resposta afirmativa à primeira não exige uma resposta afirmativa à segunda.) Argumentarei que (a) é falsa. Por ser falsa, não distingue a experiência religiosa e a crença teísta ou cristã de outros tipos de experiência e crença: a experiência e crença perceptiva, a experiência e crença de memória, a experiência e crença a priori, e outras semelhantes, são todas parecidas com a crença cristã nesse aspecto. Em cada um desses casos, é inteiramente possível que as crenças em questão tenham aval ainda que não haja nenhum bom argumento que parta da existência da experiência em questão e conclua pela veracidade dessas crenças.2 Essa é uma das coisas mais importantes a observar aqui. Antes de defender essa tese, contudo, quero mencionar outro autor que também se limita a pressupor que (a) é verdadeira sem nem sequer levantar a questão de saber se o é. Segundo o já falecido J. L. Mackie, uma experiência pode ter um objeto real: comumente, supomos que a nossa experiência perceptiva normal inclui (ou é) a consciência de coisas materiais espaço-temporais com existência independente. A questão então é saber se devemos considerar que as experiências específicamente religiosas têm objetos reais que nos fornecem informações genuínas acerca de entidades sobrenaturais ou seres espirituais que tenham existência independente.3 Até aqui, tudo bem: é a questão de saber se a experiência religiosa pode fornecer ou fornece aval para a crença em “entidades sobrenaturais ou seres espirituais que tenham existência independente”, como Deus. No entanto, Mackie prossegue: Se o seu conteúdo [ou seja, o conteúdo das experiências religiosas] tem alguma veracidade objetiva é a questão crucial seguinte [...]A questão é saber se a hipótese de que há objetivamente um algo mais nos dá uma explicação da totalidade dos fenômenos que seja melhor do que a que podemos dar sem ela (p. 183). Mackie conclui o seu exame do aval possível conferido pela experiência religiosa com estas palavras: 2Veja Warrant and properfunction (WPP), p. 61ss. e 93ss. 7‫נ‬be miracle of theism (Oxford: Clarendon Press, 1982), p. 178. As páginas referidas dizem respeito a essa obra.

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se as experiências religiosas não originam qualquer argumento a favor de uma realidade sobrenatural adicional e se, como vimos nos capítulos anteriores, não há outros argumentos bons a favor de tal conclusão, então essas experiências incluem como conteúdo crenças que são provavelmente falsas e, de qualquer modo, injustificadas [penso que “injustificadas” quer dizer aqui “sem aval”] (p. 186). Notamos aqui em ação o mesmíssimo pressuposto que vimos em O ’Hear. Como este último, Mackie pressupõe que a crença teísta (ou outras crenças religiosas) só pode obter aval por meio da experiência religiosa se houver um bom argumento que parta da existência e caráter dessa experiência e conclua pela existência de Deus (ou de “um algo mais”). (E como O ’Hear, Mackie parece sancionar (b).) Nem Mackie nem O ’Hear argumentam a favor dessa tese, considerando simplesmente que é óbvio que a única maneira de uma crença (ou pelo menos uma crença religiosa ou teísta) talvez receber aval da experiência seria por meio de um argumento implícito que partisse da existência e das propriedades dessa experiência e concluísse pela veracidade da crença em questão. Entretanto, que razão temos para isso? Certamente não é autoevidente. Ao contrário, mal levantamos explícitamente a questão de saber se ela é verdadeira e (a) se afigura extremamente problemática. E de presumir que ninguém pretenda afirmar que as crenças perceptivas só obtêm aval pela experiência se houver um bom argumento (um argumento não circular) que parta da existência da experiência perceptiva e chegue à veracidade das crenças perceptivas; mas, se isso não vale para as crenças perceptivas, por que Valeria para a crença teísta ou cristã? Mackie parte desse pressuposto, creio, porque antes parte de outro: que a crença teísta e cristã é como uma hipótese científica (ou pelo menos tem semelhanças pertinentes com esse tipo de hipótese) — algo como a relatividade especial, ou a mecânica quântica, ou a teoria da evolução. Falando ainda da questão de saber se a crença teísta pode receber aval por meio da experiência religiosa, ele (o que é típico) observa: “Neste caso, como em outros, a hipótese sobrenaturalista não é bem-sucedida porque há uma alternativa naturalista adequada e muito mais econômica” (p. 198). Essa observação só será pertinente se concebermos a crença em Deus como um gênero de hipótese científica, uma teoria concebida para explicar um corpo de evidências, sendo aceitável ou tendo aval à medida que explicar tais evidências. Desse modo de ver, há um corpo relevante de evidências partilhado por crentes e descrentes; o teísmo é uma hipótese concebida para explicar esse corpo de evidências e o naturalismo, outra; o teísmo tem aval apenas se for uma boa explicação delas, ou pelo menos uma explicação melhor do que o naturalismo. Contudo, por que conceber o teísmo dessa maneira? Por que entendê-lo como um tipo de hipótese, um gênero de ciência incipiente? Considere-se o modelo A/C estendido dos capítulos 8 e 9. O modelo não postula que partimos das experiências ligadas à operação do sensus divinitatis, sejam elas o que forem, e depois fazemos uma inferência rápida a favor da existência de Deus. Não se trata de argumentar assim: estou ciente da beleza e majestade dos céus (ou da minha própria culpa, ou de que estou em perigo, ou

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da beleza gloriosa da manhã, ou das minhas boas circunstâncias): logo, Deus existe. O cristão não argumenta deste modo: “Percebo que amo as coisas grandiosas do evangelho, me deleito nelas e inclino-me para acreditar nelas; logo, são verdadeiras”. Esses argumentos seriam tolos; felizmente, não são invocados nem são necessários. As experiências e crenças envolvidas na operação do sensus divinitatis e na IIES são ocasiões para a crença teísta, e não premissas de um argumento a favor desta. O mesmo acontece no caso, digamos, das crenças de memória. E óbvio que poderíamos assumir aqui uma perspectiva semelhante à de Mackie. Poderiamos sustentar que as nossas crenças sobre o passado são meras hipóteses científicas concebidas para explicar fenômenos atuais como (entre outros) as memórias aparentes, e se houvesse uma explicação mais “econômica” desses fenômenos que não postulasse fatos do passado, as nossas crenças habituais no passado não teriam aval. No entanto, é claro que isso não passa de fantasia; não aceitamos as crenças de memória como hipóteses para explicar a experiência atual. Todas as pessoas, incluindo as crianças sem qualquer interesse em explicar seja o que for, aceitam as crenças de memória. Todos nos lembramos de coisas como o que comemos no café da manhã e nunca ou quase nunca propomos essas crenças como boas explicações da experiência e fenômenos atuais. E, no modelo sugerido, o mesmo acontece no caso do teísmo e da crença cristã. Assim, Mackie acredita aparentemente que (c) a crença teísta é parecida (em seu todo ou em aspectos pertinentes) com uma hipótese aproximadamente científica, concebida para explicar a experiência religiosa (talvez entre outras coisas). E isso que expüca por que ele acredita em (a), ou seja, que a crença teísta não pode obter aval da experiência religiosa a menos que tenhamos bons argumentos que partam de premissas relatando as experiências e concluam pela existência de Deus. Como vimos, contudo, (c) é falsa. Bem, talvez Mackie insistisse em (a) ainda que seja claro que os cristãos geralmente não consideram a crença em Deus ou a crença cristã como hipóteses; talvez ele insistisse que a única maneira de tal crença obter um possível aval seria se ela fosse uma hipótese aproximadamente científica bem-sucedida. Todavia, é exatamente isso que é refutado pelo modelo A/C do capítulo 6 e pelo modelo A /C estendido dos capítulos 8 e 9. Esses modelos mostram que é claramente possível que as crenças teísta e cristã tenham aval, mas não por serem hipóteses que explicam bem certo segmento de dados. Pois se a crença cristã for, de fato, verdadeira, então é óbvio que podem existir processos cognitivos como o sensus divinitatis e a IIES ou a fé. Como vimos, as crenças produzidas por esses processos satisfariam as condições necessárias e suficientes para terem aval: seriam o resultado de faculdades cognitivas funcionando apropriadamente cm um ambiente epistêmico adequado segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade. Logo, (a) é claramente falsa. E claramente falso que a crença cristã só tem aval (e só poderia

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constituir conhecimento) se houver também um bom argumento que parta da existência das experiências envolvidas na operação da IIES e conclua pela veracidade da crença cristã; o mesmo se aplica ao caso da crença teísta e do sensus divinitatis. Por que supor que, se Deus se propõe a nos permitir certo tipo de conhecimento, ele precisa fazer as coisas de tal modo que possamos ver um vínculo argumentativo entre as experiências envolvidas nos processos cognitivos por ele selecionados e a veracidade das crenças que esses processos produzem? Essa exigência é ao mesmo tempo inteiramente gratuita e também falsa, dado não se aplicar a exemplos esplêndidos de fontes de conhecimento como a percepção, a memória e a intuição a priori.

II. O QUE A

EXPERIÊNCIA PODE M OSTRAR?

Uma segunda objeção é que a crença cristã e teísta nunca poderia receber aval da experiência religiosa porque esta jamais poderia indicar ou mostrar algo tão específico como a existência de Deus — quanto mais crenças como a de que Deus, em Cristo, reconciliou consigo o mundo. Como poderia um tipo qualquer de experiência revelar a existência de um ser onisciente, onipotente, sumamente bom e unicamente digno de adoração? Como poderia revelar que há apenas um ser assim? Como poderia a experiência trazer consigo esse tipo de informação? John Mackie também é porta=voz dessa objeção: A experiência religiosa é também essencialmente incapaz de sustentar qualquer argumento a favor das doutrinas centrais tradicionais do teísmo. Nada em uma experiência em si poderia revelar um criador do mundo, sua onipotência, sua onisciência, sua perfeita bondade, sua eternidade ou até que há somente um deus (p. 182). Ora, por que havería Mackie de afirmar isso? E o que quer ele dizer exatamente? Para os nossos propósitos, vamos nos restringir à experiência envolvida na operação do sensus divinitatis. Penso que Mackie quer dizer o seguinte: dado qualquer curso de experiência, religioso ou não — ou seja, dado qualquer curso de imagens sensoriais, experiências afetivas e inclinações para acreditar nisso ou naquilo —, essa experiência poderia ser exatamente como é sem que existisse qualquer ser onipotente, ou onisciente, ou perfeitamente bom ou eterno. A minha experiência seria exatamente o que ela é mesmo que não houvesse Deus nem ninguém minimamente parecido com ele. Eu poderia sentir-me exatamente como me sinto mesmo que não houvesse Deus algum.4 Penso que é isso que ele quer dizer; não tenho certeza. Isso porque é duvidoso, na melhor das hipóteses, que essa afirmação dele seja pertinente. Talvez seja verdade que a minha experiência poderia ser idêntica mesmo que Deus não existisse; talvez a existência e o caráter da minha experiência não impliquem a existência de Deus. O que se conclui 4Concedendo, para efeito de argumentação, que Deus não é um ser necessário. Claro que 6e Deus é um ser necessário, como a maior parte da tradição cristã pensa, a sua existência é implicada pela existência da minha experiência, porque é implicada pela existência seja do que for.

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daí? Por que havería de se seguir que a minha experiência não pode revelar um criador do mundo ou um ser onipotente ou onisciente? Considere-se uma analogia: em WPF (p. 50ss.), notei que todos pensamos habitualmente que já existimos há muitos anos (ou, no caso dos leitores mais jovens, há muitos meses). E logicamente possível, contudo, que eu exista apenas há um ou dois microssegundos, exibindo todas as propriedades especificamente temporais que de fato exibo. Nesse caso, eu não teria propriedades como a de ter mais de sessenta anos ou a de ser responsável por algo que aconteceu há dez minutos, apesar de eu ter propriedades como a de pensar que tenho mais de sessenta anos e que sou responsável por algo que aconteceu há dez minutos. Não só isso é logicamente possível, como é também compatível com a existência e o caráter de toda a minha experiência atual. Não é compatível com as minhas crenças, é claro (pois acredito que existo há bastante tempo); apesar disso, é compatível com a existência dessas crenças. E possível que eu tenha precisamente as crenças e experiências que tenho agora apesar de haver começado a existir há apenas um segundo, ou menos. (De fato [cf. WPF, p. 50ss.], é isso precisamente o que acontece do ponto de vista de quem pensa que a palavra “eu”, tal como a uso, denota algo como o estágio momentâneo de uma pessoa.) Para qualquer curso de experiência e qualquer conjunto de crenças que eu possa ter neste exato momento, é possível que eu tenha essa experiência e essas crenças, e, no entanto, exista há apenas um segundo ou menos. Segue-se que nada na minha experiência pode revelar que existo há mais de um segundo, ou algo assim? Claro que não. Pressupor que sim é pressupor algo mais geral e muitíssimo mais forte do que a proposição (a) de O ’Hear (ver p. 328) — que, como vimos, é em si demasiado forte para ser verdadeira. Não há a menor das razões para acreditar que, se a experiência pode revelar^», então a existência dessa experiência (ou a proposição de que ela ocorre) deve implicar a verdade dep. Tampouco há razão para pensar que se a experiência pode revelar uma proposição p, então essa experiência nem sequer pode (logicamente) existir %ç.p for falsa. Pois considere-se a percepção, e considere o leitor a sua experiência — as imagens sensoriais, a experiência afetiva, a experiência doxástica — em uma ocasião em que vê um cavalo. E compatível com essas experiências que não esteja ali naquele momento cavalo algum, que nem sequer existam quaisquer cavalos, que não haja objetos materiais que existam quando não estou tendo essas experiências, e mesmo que não haja quaisquer objetos materiais de todo em todo. Segue-se daí que a experiência perceptiva não revela um mundo exterior? Segue-se daí que não posso dizer, com base na minha experiência, que um cavalo está no meu jardim? Ou que os lilases não estão em flor? Certamente que não; isso seria um salto de magníficas proporções (ainda que grotescas). Nesse caso, de que modo a experiência perceptiva revela um mundo exterior — um cavalo, por exemplo? Quando percepciono um cavalo, sou sujeito de experiências de vários tipos: imagens sensoriais (aparece-me algo de uma maneira complicada e difícil de descrever) e também, habitualmente, experiência afetiva (talvez tenha medo do cavalo, ou sinta admiração, ou talvez me deleite com a sua velocidade e força, ou seja o que for). Há também uma experiência doxástica. Quando percepciono um cavalo, há

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aquela experiência sensorial e afetiva, mas também a sensação, a experiência, a insinuação de que certa proposição (que vejo um cavalo) é verdadeira, correta, digna de ser crida, real. Esta experiência doxástica desempenha um papel crucial na percepção. Como a experiência perceptiva me diz que um cavalo está no jardim? Por meio de essa crença ser ocasionada (em parte) pela experiência e por meio do aval que a crença tem — ser produzida por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente em um ambiente epistêmico apropriado (tanto mini quanto máxi), segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade. Assim, posso dizer pela experiência que um cavalo está ali? Certamente. Dizê-lo pela experiência é formar essa crença em resposta à experiência sensorial e doxástica, sendo a crença formada sob as condições que conferem aval. O fato é que isso acontece a toda a hora. O importante não é que as pessoas de fato digam pela experiência que um cavalo está no jardim ou algo semelhante, mas antes que isso é possível. Mais exatamente, o importante é que ver um cavalo no jardim (determinando assim, por experiência, que um cavalo está no jardim) não é impedido pelo fato de a experiência ser logicamente compatível com a inexistência do cavalo no jardim (ou em qualquer outro lugar). A experiência é logicamente compatível com a inexistência do cavalo: certo; mas não se segue simplesmente que não possamos dizer, pela experiência, que não há ali um cavalo (de que outro modo o diriamos? Deduzindo-o de primeiros princípios e de verdades autoevidentes?). E assim que as coisas são com respeito aos cavalos; poderei dizer também pela experiência que eu existo há mais de um microssegundo, ou algo assim? Certamente. Faço-o lembrando-me, por exemplo, que comi o café da manhã há muito mais do que um microssegundo e que frequentei a universidade há tanto tempo que fico até com vergonha. Sim, a minha experiência aqui (em particular, a minha experiência doxástica) é compatível com uma circunstância em que eu existisse há um microssegundo apenas, mas simplesmente não se segue que não posso dizer por experiência que existo há pelo menos uma boa hora, digamos. Determino por experiência que existo há mais de um microssegundo se a crença de que fiz algo há mais de um microssegundo for ocasionada pela minha experiência (doxástica e não só) e se essa crença for formada nas condições que lhe conferem aval. Isso acontece comumente: por isso, dizemos frequentemente (por experiência) que existimos há mais de um microssegundo. E é claro que o mesmo se aplica à experiência religiosa e à crença teísta. Sim: a existência das experiências que acompanham a operação do sensus divinitatis (ou da IIES) é compatível com a inexistência de um criador onipotente, onisciente e plenamente bom. Não se segue disso, contudo, que não possamos dizer — e dizer, em sentido amplo, pela experiência — que exista tal pessoa. Pois aqui, como em outros casos, há a experiência doxástica: a crença de que há uma pessoa todo-poderosa a quem devo lealdade c obediência parece pura e simplesmente correta, apropriada, verdadeira, real. E dizemos por experiência que há tal pessoa se: (1) as crenças em questão forem formadas em resposta à experiência (doxástica ou não) que acompanham a operação do sensus divinitatis; (2) essas crenças forem formadas sob as condições do aval. Que essas condições sejam satisfeitas é

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evidentemente compatível com o fato de a existencia da experiência, doxástica e não só, que acompanha a operação do sensus divinitatis ser compatível com a falsidade dos seus produtos. Essas crenças podem ter aval, e aval suficiente para que constituam conhecimento, ainda que a existência dessas experiências seja compatível com as negações dessas crenças.5 O mesmo acontece no caso da crença nas coisas grandiosas do evangelho: também ela pode ter aval (e aval suficiente para o conhecimento) embora, de fato, a existência das experiências que acompanham a IIES seja compatível com a falsidade dessas crenças. Poderá Mackie ter em mente outro aspecto? Talvez esteja pensando do seguinte modo: uma experiência poderia revelar um objeto azul, certamente, mas não um objeto onipotente. A ideia não é que a experiência não pode revelar quaisquer objetos; trata-se de dizer que há algumas propriedades tais que nenhuma experiência poderia revelar a existência de objetos que as tenham. Exemplos seriam propriedades como a onisciência, a onipotência, a divindade, a filiação divina e outras semelhantes. Mackie se apoiaria aqui presumivelmente na analogia com a experiência sensorial: a experiência sensorial talvez possa revelar a existência de objetos com propriedades como a cor e a forma (pode revelar a existência de objetos azuis e quadrados), mas não a existência de objetos com propriedades como a onipotência. Eu respondería que isso talvez seja verdadeiro no caso da experiência sensorial e da percepção. Mas não é verdadeiro em relação à experiência em geral; em particular, não é verdadeiro quanto à experiência doxástica. A memória e a formação de crenças a priori envolve a experiência doxástica; e os produtos da memória e da razão não se limitam à existência de coisas com propriedades perceptíveis. O mesmo se pode dizer do sensus divinitatis e da IIES. Devemos então concluir que aquilo que descobrimos por meio dessas fontes de crença, se é que descobrimos algo, não é realmente o que descobrimos pela experiência? Talvez. Se o fizermos, contudo, a ideia de que não podemos descobrir pela experiência que há, por exemplo, um ser onipotente, deixa de ter qualquer relação com a estipulação (segundo o modelo) de que podemos descobrir essas coisas por meio do sensus divinitatis ou da IIES. Talvez não possamos descobrir esse gênero de coisa pela experiência; não se seguirá daí que não podemos descobrir esse gênero de coisa por meio do sensus divinitatis e da IIES.

III. U m a r g u m e n t o

fa t a l ?

Richard Gale pergunta se, para empregar o seu termo, a experiência religiosa é “cognitiva”.6 O que ele quer, a rigor, dizer? Penso que ele pretende perguntar se a experiência

5Vale observar que isso é assim na minha concepção de aval, mas o mesmo acontece nas outras concepções principais. E claro que as crenças produzidas pela IIES poderíam ser coerentes com o corpo de crenças apropriado, ou poderíam ser formadas por um mecanismo confiável de produção de crenças, ou estar justificadas ainda que, como nota Mackie, a existência das experiências cm causa seja compatível com a falsidade das crenças em questão. (,On the nature and existence of God (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), p. 285ss. No restante desta seção, as referências às páginas dizem respeito a essa obra.

CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

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religiosa faz parte, ou podería fazer parte, de um processo cognitivo que nos põe em contato epistêmico com Deus. A questão é se a experiência religiosa é semelhante à sensorial no sentido de fazer parte de um processo cognitivo que diz respeito ao conhecimento ou à crença avalizada acerca de uma realidade independente: Deus, por exemplo. Gale argumenta que a experiência religiosa não é cognitiva no sentido que ele dá a esse termo. O seu argumento é apresentado ao responder ao que ele chama “o argumento por analogia a favor do caráter cognitivo”, que ele atribui a William Alston, Gary Gutting, Richard Swinburne e William Wainwright. O argumento deles, afirma, tem duas premissas: 1. 2.

As experiências religiosas são análogas às experiências sensoriais. As experiências sensoriais são cognitivas.

Logo: 3.

As experiências religiosas são cognitivas (p. 288).

Gale dirige a maior parte dos seus ataques à primeira premissa. Devemos fazer aqui algumas advertências. Primeiro, Gale refuta esse argumento objetando à premissa 1; assim, a rigor, a sua conclusão não seria de que a experiência ou a crença religiosas não são cognitivas, mas apenas que este argumento particular a favor do seu caráter cognitivo não é bem-sucedido. Para os nossos propósitos, isso não interessa: na realidade, Gale faz muito mais do que objetar apenas à premissa 1. O que ele realmente oferece, e o que quero levar em conta, é um argumento a favor da conclusão de que a experiência e crença religiosas necessariamente não são cognitivas. Esse argumento, se fosse bem-sucedido, mostraria que não é possível que tenhamos uma consciência perceptiva de Deus ou algo parecido. Em segundo lugar, ele também parece acreditar ou pressupor que qualquer consciência experiencial de Deus deveria ser (ou ser como) uma consciência perceptiva de Deus (qualquer experiência de Deus que faça parte de um processo cognitivo que produza conhecimento ou crença avalizada acerca de Deus teria de desempenhar o mesmo papel, nesse processo, que a experiência perceptiva desempenha na percepção); ele conclui consequentemente, penso, que não é possível ter conhecimento de Deus por meio da experiência — ou seja, que a experiência religiosa não é cognitiva. Ora, não é inteiramente claro qual é a relação exata entre o argumento de Gale, por um lado, e, por outro, o meu argumento a favor da conclusão de que as crenças teísta e cristã podem ter aval por meio do sensus divinitatis e da IIES (o argumento de que, dada a veracidade dessas crenças, não há objeções cogentes a que tenham aval dessa maneira, de modo que qualquer objeção a elas terá de ser à veracidade e não à racionalidade ou razoabilidade delas). Primeiro, Gale não tinha o meu argumento em mente, uma omissão inteiramente desculpável, dado que propôs o seu muito antes de eu propor o meu. No entanto, em segundo lugar, o impacto do seu argumento sobre o meu não fica

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claro porque não fica definido se é adequado entender que o conhecimento por meio do sensus divinitatis e da IIES é um conhecimento por meio da experiência. Seria uma pena, contudo, deixar passar a oportunidade de considerar um argumento tão sedutor quanto o de Gale; assim, suponha-se que admitimos, para efeito de argumentação, que se há um conhecimento que ocorre por meio destes processos, esse conhecimento se dá por meio da experiência. Podemos então considerar que o argumento de Gale contraria a minha conclusão. (E óbvio que poderá acontecer de o seu argumento ter somente uma relação dúbia com o meu, por ser duvidoso que o conhecimento por meio do sensus divinitatis e da IIES, se tal conhecimento existe, deva ser entendido como um conhecimento pela experiência.) Assim, como é o argumento? Começa com uma ameaça brincalhona dirigida a quem aceita, segundo Gale, o argumento por analogia a favor do caráter cognitivo da experiência religiosa: Temos ainda de elucidar uma profunda falta de analogia entre a experiência sensorial e a religiosa, que destruirá completamente a premissa analógica do argumento por analogia. Esta “grande falta de analogia” acarretará o naufrágio dessa defesa do caráter cognitivo, sendo então tempo de Alston, Gutting, Swinburne e Wainwright se juntarem no convés do navio a seus companheiros de argumentação por analogia para cantar com fervor e em coro “Mais perto, meu Deus, de Ti” (p. 326). Palavras corajosas! Será que Gale fala com a língua de um anjo ou é apenas um címbalo que tine? Qual é precisamente esse argumento fatal? Necessariamente qualquer percepção cognitiva é uma percepção verídica de uma realidade objetiva. Será agora defendido que é conceitualmente impossível que exista uma percepção verídica de Deus [...] seguindo-se daqui por modus tollens que é impossível que exista uma experiência religiosa de caráter cognitivo. [...] Uma percepção sensorial verídica deve ter um objeto que possa existir quando não está efetivamente sendo percepcionado; além disso, o objeto precisa ser comum a diferentes percepções sensoriais. Para que isso seja possível, esse objeto tem de estar localizado em um espaço e em um tempo que inclua tanto o objeto como quem o percepciona. Mostra-se então que não há experiência religiosa análoga a esse conceito de existência objetiva, não havendo dimensões análogas ao espaço e ao tempo nas quais Deus, junto com quem o percepciona, esteja localizado; não há dimensões que possam ser invocadas para mostrar que Deus existe quando não está efetivamente sendo perccpcionado e é o objeto comum de diferentes experiências religiosas. Por causa dessa enorme falta de analogia, Deus é insusceptível, em termos categoriais, de servir como objeto de uma percepção verídica, sensorial ou não (p. 326-7). Note-se primeiro a afirmação sugerida na segunda frase: se for conceitualmente impossível a existência de uma percepção verídica de Deus, segue-se a impossibilidade

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de existir “uma experiência religiosa de caráter cognitivo”; ao que tudo indica, Gale acredita que, para ser cognitiva, qualquer experiência religiosa deveria fazer parte de uma percepção verídica de Deus. Isso não parece correto: como argumentei nos capítulos 6 e 8, podemos considerar que o sensus divinitatis e a IIES, no modelo A/C estendido, fornecem conhecimento de Deus por meio da experiência, mas não um conhecimento perceptivo. Considere-se o sensus divinitatis: o leitor está em grave perigo e forma a crença de que Deus é capaz de ajudá-lo; não precisa haver aqui seja o que for que possamos de maneira sensata chamar de percepção. O leitor dá=se conta subitamente de que o que fez foi detestável, forma a crença de que Deus o desaprova, reconhecendo perante ele o seu erro; uma vez mais, esse processo não precisa ser acompanhado de algo a que seja apro‫״‬ priado dar o nome de percepção. Segundo o modelo, há aqui um conhecimento de Deus e a experiência desempenha um papel crucial — tanto a experiência doxástica como a experiência que acompanha o sentimento de medo, culpa ou vergonha. Essa experiência está intimamente associada à operação do sensus divmitatis e talvez desencadeie a produção da crença conexa. Entretanto, o resultado não é, penso, uma crença perceptiva. Além disso, é ainda mais claro que o conhecimento de Deus e das coisas grandiosas do evangelho pela IIES não é de forma alguma um conhecimento perceptivo (p. 298). Se não considerarmos que o sensus divinitatis e a IIES dizem respeito ao conhecimento perceptivo, contudo, a objeção de Gale pode ser descartada por não se relacionar em nada com o nosso assunto. A bem do argumento, no entanto, vamos admitir temporariamente que o conhecímento de Deus por meio do sensus divinitatis ou da IIES é um conhecimento perceptivo, pelo menos num sentido apropriadamente analógico. Ou, senão, podemos considerar a objeção de Gale ao conhecimento perceptivo de Deus pondo de parte, por ora, a questão de saber se ela tem alguma relação com o modelo A/C estendido. Como seria essa objeção? “Uma percepção sensorial verídica”, afirma, “deve ter um objeto que possa existir quando não está efetivamente sendo percepcionado; além disso, o objeto deve ser comum a diferentes percepções sensoriais”. Isso parece correto, ou pelo menos plausível; e se existe uma experiência de Deus, este, é claro, será capaz de existir quando7 nenhum agente cognitivo humano estiver tendo a experiência dele (mesmo que, na prática, a sua presença seja sempre objeto de experiência por algum ser humano). Além disso, o próprio Deus, um único e mesmo ser, seria entendido, conhecido ou apreendido por muitas pessoas diferentes. Qual é então o problema que supostamente ocorre quando partimos do princípio de que tanto o leitor quanto eu estamos, ambos, cientes de Deus e que Deus continua a existir quando nenhum de nós está ciente dele? O problema, pensa Gale, é que se um objeto pode existir quando não é percepcionado, e pode ser percepcionado por diferentes agentes perceptivos, é porque “o objeto precisa estar localizado em um

7Pelo menos se Deus realmente existir no tempo. Se ele não existe no tempo, quem disser que Deus existe cm um dado momento em que {per impossibile) ninguém esteja tendo a experiência dele falará a verdade. Veja o meu “On Ockhams way out”, Faith and Philosophy (Julho de 1986).

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espaço e em um tempo que inclua tanto o objeto como quem o percepciona”. Por quê? O argumento mais forte de Gale quanto a isso encontra-se nas seguintes passagens: Outra consequência indesejável da não dimensionalidade desses seres é que nenhuma explicação análoga pode ser dada de como eles podem existir sem serem pcrcepcionados e serem objetos comuns de diferentes percepções para o que havia sido dado previamente nos casos de particulares empíricos. Ao passo que podemos explicar por que não percepcionamos um particular empírico, bem como a nossa percepção de um particular empírico, numericamente o mesmo, levando em conta nossa relação com ele em uma dimensão não empírica, nenhuma explicação análoga pode ser oferecida para o caso em que não percepcionamos Deus e outras entidades semelhantes, ou para a nossa percepção de um único Deus, numericamente o mesmo... De modo semelhante, como Gutting saberá quando duas experiências religiosas de uma pessoa não humana poderosa e amorosa, que duas pessoas têm em dado momento, ou que uma mesma pessoa tem em dois momentos diferentes, são experiências do mesmo ser, numericamente o mesmo, ou se são apenas experiências de seres qualitativamente semelhantes? (p. 341-2). O suposto problema, portanto, parece ter duas partes, diz respeito: (a) à percepção de Deus em dado momento, mas não em outro; (b) a duas pessoas diferentes que percepcionam Deus — isto é, que percepcionam a mesma pessoa não humana onipotente, onisciente e amorosa. Não é fácil ver, contudo, exatamente o que Gale está afirmando acerca de (a) e (b). H á duas possibilidades para (a) e três para (b). Em relação a (a), Gale poderia estar afirmando que: (1) se Deus não está no tempo nem no espaço, não sepode dar nenhuma explicação da nossa percepção dele em dado momento, mas não em outro; (2) se Deus não está no espaço nem no tempo, não épossível que tenhamos experiência dele em dado momento, mas não em outro. Em relação a (b), surgem as mesmas duas dificuldades, ocorrendo também a possibilidade (3): se Deus não está no tempo nem no espaço, não conseguimos saber quando duas pessoas estão, ambas, percepcionando Deus — ou seja, ambas percepcionando a mesmíssima pessoa divina. Bem, considere-se (1) com respeito a (a). Estritamente falando, suponho, se a nossa percepção de Deus em um momento, mas não em outro, não tivesse nenhuma explicação, isso não danificaria o modelo do sensus divinitatis nem a tese de que é possível percepcionar Deus. Tudo o que o modelo diz é que tal conhecimento ocorre; não acrescenta que há uma explicação para isso, a menos que o modelo em si seja uma explicação. Apesar disso, penso que Gale na verdade está dizendo, na sua primeira possibilidade, que não conseguimos ver qualquer maneira em que seria possível percepcionarmos Deus em um momento, mas não em outro. Mais fortemente, penso que ele pretende afirmar que conseguimos ver que uma pessoa só poderia percepcionar Deus em um momento, mas não em outro, se ela e ele estivessem no mesmo tempo e espaço. Conseguimos perceber que esta é a única condição na qual tal fato poderia acontecer. Assim, na verdade, (1) e (2) com respeito a (a) constituem a mesma ideia: só seria possível percepcionarmos ou

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termos experiência de Deus em dado momento, mas não em outro, se ele estivesse no mesmo espaço e tempo (ou espaço-tempo) que nós. Isso é o que Gale diz, mas será que ele tem razão? Penso que não. Mesmo com respeito a coisas que estão no espaço e no tempo, há muitas explicações para minha percepção de algo em dado momento, mas não em outro. Eu posso percepcioná-lo no momento t y mas depois, em t2, estar com os olhos fechados, ou estar dormindo, ou pensando em outra coisa, ou ter perdido os meus óculos, ou estar com um saco de papel enfiado na cabeça, ou estar debaixo d agua, ou sofrendo de alguma disfunção cognitiva. O mesmo se aplica à percepção ou cognição de Deus. Deus, é claro, existe sempre; além disso, porque (como podemos admitir para efeitos de argumentação) não está no espaço, nunca se relaciona comigo espacialmente de diferentes maneiras em distintos momentos. Contudo, por que havería isso de significar que eu não podería percepcionar Deus ou ter experiência dele em um momento, mas não em outro? Eu podería percepcionar ou ter experiência dele em tv mas não em t2, porque estou dormindo em t2, ou porque a minha atenção está em outro lugar (acabei de acertar uma martelada no polegar ou feri-me com um tiro no pé), ou eu podería estar sofrendo de uma disfunção cognitiva, ou estar zangado com Deus em razão do sofrimento de um amigo e, por isso, não estar no estado de espírito adequado. H á muitas maneiras pelas quais eu podería percepcionar Deus em um momento, mas não em outro, mesmo que não seja possível que eu esteja espacialmente relacionado com ele de diferentes modos em distintos momentos. Mesmo que eu esteja completamente desperto e desejoso de sentir a sua presença, desejoso de receber uma resposta a uma prece, ou orientação, ou uma impressão do seu amor, ou uma percepção da sua beleza e graça, podería ainda assim não obter o que tenho a esperança de obter. Isso podería acontecer porque nesse momento, e pelas suas próprias razões, Deus não quer se comunicar comigo dessa maneira. Mesmo que eu esteja apropriadamente relacionado com o leitor, tanto espacial como temporalmente, e lhe faça uma pergunta, posso não receber resposta. Pergunto-lhe por que está sorrindo dessa maneira enigmática: você pode não responder, talvez porque considera que a questão é impertinente, ou que não merece resposta, ou porque a resposta iria contra o seu desejo de permanecer enigmático. No que diz respeito a conhecer as pessoas e saber algo acerca delas, a cooperação delas é muitas vezes necessária. Como é natural, o mesmo seria verdadeiro no caso de Deus e talvez em muitas ocasiões, ou na maior parte delas, ele escolha não ser percepcionado. Como argumentei no capítulo 6, não é fácil dizer quais são exatamente as condições necessárias e suficientes da percepção; sejam elas quais forem, contudo, incluem certo gênero de experiência, uma experiência na qual o objeto percepcionado parece estar presente ou ser dado a quem percepciona. Como é claro, esta experiência podería estar ausente em dado momento e presente em outro, quer Deus esteja no espaço, quer não. Assim, este argumento — o argumento a favor da ideia de que, se Deus não está no espaço e no tempo, não poderiamos ter experiência ou percepção dele em um momento, mas não em outro — parece-me inteiramente sem futuro. Todavia, o que dizer das afirmações de Gale com respeito a (b)? Aqui ele faz uma asserção dupla: se Deus não está

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no tempo nem no espaço, não poderia haver uma explicação de como duas pessoas podem percepcionar Deus e ter experiência dele (não conseguimos conceber qualquer maneira pela qual isso poderia acontecer), e além disso não poderia haver qualquer modo de dizer que era Deus, a mesmíssima pessoa, de quem eu tive experiência em duas ocasiões diferentes. Há alguma razão para aceitar alguma dessas sugestões? Como poderão duas pessoas diferentes percepcionar Deus ou ter experiência dele? Suponha-se que ambas têm o tipo adequado de experiência, incluindo a impressão de Deus estar presente, de lhes ser dado. Suponha-se, além disso, que ambas formam o tipo adequado de crença verdadeira acerca de Deus — por exemplo, que ele está realmente presente, que lhes foi dado. E suponha-se, por último, que as condições do aval foram satisfeitas: essa crença é produzida nelas por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente em um ambiente epistêmico adequado segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade. Então, estariam ambas percepcionando Deus, apesar de Deus não estar no espaço. Há aqui algum problema? Se há, está bem disfarçado. Gale, ou outra pessoa, poderia afirmar que há um problema na própria ideia de podermos formar crenças acerca de Deus: o que faria essa crença ser acerca de Deus? Contudo, essa é uma objeção de um tipo completamente diferente, sendo na verdade a objeção que enfrentei nos capítulos 1 e 2; e é tão inconclusiva aqui como foi ali. O mesmo acontece na outra parte da sugestão, a ideia de que seria impossível saber se é da mesma pessoa divina que temos experiência em duas ocasiões diferentes. Porque Deus não está no espaço, afirma o objetor, não poderiamos saber se, na ocasião B, encontramos o mesmo ser divino que encontramos na A. Entretanto, há alguma razão para pensar que isso seja verdadeiro? Esse argumento, penso, é tão fatalmente deficiente quanto o anterior. A ideia, ao que parece, é que, com objetos sem localização no espaço, não podemos saber, em princípio, se encontramos a mesma coisa duas vezes, ou então uma segunda coisa que seja semelhante à primeira. Mas, é isso de fato verdadeiro? Qual é exatamente o problema? Suponha-se que a sua experiência está relacionada com Deus da maneira apropriada e que você forma crenças acerca dele em duas ocasiões seguidas: /j e tr Em /2 você forma a crença verdadeira de que o ser acerca de quem está formando uma crença é o mesmo acerca de quem formou uma crença em ty se essa crença for formada nas condições que conferem aval, você dirá que o ser acerca de quem formou uma crença em t2 é o mesmíssimo ser que aquele acerca de quem formou uma crença em ty Na verdade, afirmar que a crença t2 é acerca do mesmo ser que a crença tx /isso e nada mais.Talvez a ideia seja que, se ambas as crenças forem acerca de um objeto não espacial, nunca poderemos saber se uma crença t2 tem ou não por objeto o mesmo ser que uma crença ty Mas isso também parece errado. Em tλ penso na noção de conjunto vazio, ou na proposição de que todos os homens são mortais; depois, leio o livro de Gale ou vejo um jogo de futebol na TV, e em /2 penso outra vez acerca do conjunto vazio (ou daquela proposição). Há realmente um problema quanto a eu ser capaz de dizer ou saber que estou pensando na mesma coisa em t2 e em tç> Devo eu ficar na dúvida quanto a saber se o conjunto em que pensei em t2 é realmente o mesmo em que pensei em t j?

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Será que Gale está afirmando que, se surgisse uma disputa quanto a saber se você e eu tivemos experiência do mesmo ser em determinada ocasião, essa disputa se revelaria inabordável? Alternativamente, não poderia eu (como Teresa de Ávila, entre outros) ficar incerto, em determinada ocasião, quanto a saber se contatei Deus ou Satanás, que aparece como um anjo de luz e está querendo enganar-me? Poderia isso acontecer? Claro que sim. No entanto, isso não mostra que eu nunca poderia saber que estou tendo uma experiência de Deus; mostra apenas que talvez em determinadas ocasiões eu não consiga saber se estou em contato com Deus. Certamente é possível que as aparências sejam apenas isso mesmo e que eu não esteja tendo uma experiência de Deus. Como já vimos, contudo, nada se segue disso: o mesmo acontece com respeito à percepção, à memória e ao meu conhecimento de que existo há bastante tempo. E claramente possível que eu tenha a experiência que acompanha a percepção de um cavalo sem que esteja presente qualquer cavalo.8 Assim, poderia acontecer de em algumas ocasiões eu realmente não ser capaz de saber: todavia, isso dificilmente mostraria que nunca consigo saber. E repito: a maneira pela qual sei se é Deus essa mesma pessoa a quem eu percepciono ou de quem tenho experiência em duas ocasiões diferentes é formando (em condições que conferem aval) a crença verdadeira de que, de fato, encontrei Deus em ambas as ocasiões. Penso que é claro, consequentemente, que esses argumentos não dão nem um passo sequer na direção de demonstrar que a percepção de Deus é impossível, ou que a experiência religiosa nunca é cognitiva, ou ainda que não poderia haver conhecimento de Deus por meio do sensus divinitatis e da IIES. Os argumentos de Gale dependem de vários pressupostos que têm pouco ou nada a seu favor: que se às vezes não podemos saber se é ou não p, por exemplo, então nunca podemos saber se é p\ ou que se Deus não está no espaço e no tempo, nunca poderiamos saber que foi ele com quem estivemos em contato em ocasiões sucessivas; ou que se Deus não está no espaço e no tempo, não poderiamos ter experiência dele em uma ocasião, mas não em outra. Todos esses pressupostos me parecem monumentalmente dúbios, na melhor das hipóteses.9 I V . F ilh o d a G r a n d e A b ó b o r a ?

Ora bem, segundo o modelo A /C estendido, a crença em Deus e a crença nos ditames centrais da fé cristã podem ser racionais e ter aval quando não são aceitas com base evidenciai em outras crenças. Nesse modelo, elas podem ter um aval que não advém de as aceitarmos com base evidenciai em outras crenças; podem ter um aval que não resulta da

8Contudo, não há verificações e testes para confirmar se estamos realmente pcrccpcionando um cavalo? De fato, há, mas se considerem as experiências que acompanham as verificações para constatar se perccpcionamos um cavalo e determinar que realmente vimos um cavalo: é também logicamente possível que tenhamos todas essas expcriendas quando, de fato, não há cavalo algum. 9E, claro, há ainda a questão de o modelo A/C estendido não exigir, estritamente falando, que tenhamos percepção de Deus, de todo em todo.

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transferência de aval de outras crenças. Nesse aspecto, são como as crenças de memória, as crenças perceptivas, algumas crenças a priori e assim por diante. As crenças da fé cristã, na sugestão em pauta, são um ponto de partida adequado do pensamento. Em outras palavras: essas crenças são apropriadamente básicas, e apropriadamente básicas com respeito ao aval. O que quero considerar a seguir é uma plêiade de objeções à ideia de que épossível a essas crenças receber aval de maneira básica. Ora, as objeções desse gênero centraram-se até agora na tese de que a crença em Deus (em contraste com a crença específicamente cristã) é ou pode ser apropriadamente básica, porque, em sua maior parte, é a crença em Deus, e não específicamente a crença cristã, que se defendeu até agora como passível de ser apropriadamente básica. Para simplificar a discussão, vou restringi-la ao sensus divinitatis e à crença em Deus; o que afirmo, contudo, será aplicado igualmente bem à IIES e às crenças produzidas por ela. Primeiro, há a tese de que, se a crença em Deus fosse apropriadamente básica com respeito ao aval, nenhum argumento e nenhuma objeção poderíam atingi-la; a crença seria imune a qualquer crítica racional e estaria protegida contra objeções e anuladores. No entanto, é óbvio que existem objeções e argumentos contra a crença teísta: logo, ela não é básica quanto ao aval. Daí Michael Martin: “O fundacionalismo de Plantinga é radicalmente relativista e subtrai à possibilidade de exame racional qualquer crença que seja declarada básica”.10 Por que pensar isso? A crença teísta não seria certamente imune à argumentação e à anulação somente por ser básica. Nesse aspecto, a crença teísta nada tem que não seja semelhante a outros tipos de crenças que aceitamos da maneira básica. O leitor diz-me que foi ao Grand Teton nesse verão; eu adquiro a crença de que você o fez e sustento-a da maneira básica.11 Todavia, a sua esposa me diz então que você na verdade foi à Cordilheira W ind River, que, afirma ela, você sempre confunde com o Grand Teton. Além disso, quando o vejo depois disso, você comenta profusamente as glórias do Pico Gannett (que fica em W ind River). Então, deixo de acreditar que você foi ao Grand Teton, apesar do fato de haver originalmente formado essa crença da maneira básica. Outro exemplo: vejo o que me parece um carneiro no campo ao longo da estrada e formo, da maneira básica, a crença de que está ali um carneiro; você, o dono do terreno, diz-me que não há carneiros naquele terreno, apesar de haver um cão na vizinhança que, visto à distância, é muito parecido com um carneiro. Então, deixo de acreditar que vi um carneiro, apesar do fato de a crença ser aceita da maneira básica. Eis ainda mais um exemplo: Gottlob Frege formou da maneira básica a crença de que, para toda a propriedade ou condição, há o conjunto exatamente daquelas coisas que têm essa propriedade ou que satisfazem essa condição; para sua tristeza, descobriu que isso não é*1 10'Atheism: a philosophicaljustification (Filadélfia: Temple University Press, 1990), p. 276. 1,Não a sustento com base evidenciai em um argumento como Jorge afirma quefo i ao Granel Teton no último verão; a maior parte das coisas queJorge afirma são verdadeiras; logo, provavelmente isso é verdadeiro. Eu podería aceitar o testemunho com base em um argumento assim, e 0 faria, talvez, cm algumas circunstâncias especiais (em um julgamento por homicídio, por exemplo); mas, habitualmcntc, não 0 faço.

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verdade (Bertrand Russell observou que essa ideia conduz a um paradoxo12), apesar do fato de a crença original ter sido básica. Assim, não é verdade em geral que, se uma crença for sustentada da maneira básica, ela é imune à argumentação ou à avaliação racional; consequentemente, por que razão pensar que deverá ser assim no caso da crença teísta? Do fato, se é que é um fato, de a crença em Deus ser apropriadamente básica não decorre de modo algum que ela seja imune à argumentação, objeção ou anulação; não é certamente uma consequência do meu fundacionalismo ou do modelo A /C {simpliciter ou estendido) que as crenças básicas estão para além de todo exame racional.13 Não Valeria nem sequer a pena mencionar isso, não fosse o caso de haver aparentemente uma impressão bastante difundida na direção contrária. Uma queixa correlata é a seguinte: segundo a Objeção da Grande Abóbora,14 se a crença em Deus pode ser apropriadamente básica, também qualquer outra crença o poderá ser, por mais bizarra que seja: se a crença em Deus pode ser apropriadamente básica, não há mais restrição alguma e passa a valer tudo. O leitor podería perfeitamente afirmar que a crença na Grande Abóbora (que regressa todos os anos no Halloween à mais sincera plantação de abóboras) é apropriadamente básica com respeito ao aval. E poderia perfeitamente afirmar o mesmo com respeito ao ateísmo, ao vodu, à astrologia, à bruxaria e a qualquer outra coisa que lhe ocorra. De acordo com Dostoievski, se Deus não existe, tudo é possível; segundo essa objeção, se a crença em Deus for apropriadamente básica, tudo está avalizado. Essa objeção, é claro, é obviamente falsa. Reconhecer que alguns tipos de crença são apropriadamente básicos com respeito ao aval nem por um momento nos compromete com a ideia de que todos os tipos o são; mesmo que o modelo A/C estendido esteja correto, não se segue que essas outras crenças sejam apropriadamente básicas com respeito ao aval. Descartes e Locke pensavam que algumas crenças eram apropriadamente básicas com respeito ao aval; devemos nós objetar que estavam consequentemente comprometidos com a ideia de que qualquer crença é apropriadamente básica? Assim, a Objeção da Grande Abóbora, tal como está, é obviamente um beco sem saída. Michael Martin reconhece-o,15 mas levanta uma objeção correlata; é esta objeção, penso, que subjaz à sua afirmação de que as minhas perspectivas são “radicalmente relativistas”: Apesar de os epistemólogos reformados não serem obrigados a aceitar as crenças no vodu como racionais, os seguidores do vodu poderíam afirmar que, como suas crenças uUma das condições é que ele não seja membro de si próprio; assim, sc a crença de Frege fosse verdadeira, havería um conjunto de conjuntos que não são membros de si próprios — que teria simultaneamente de ser membro de si próprio e de não ser membro de si próprio. Logo, a crença de Frege era falsa. 13Em “Reason and belief in G od”, in: Faith and rationality (Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1983), artigo citado por Martin várias vezes no seu livro, afirmei: “Suponhamos que uma pessoa aceite a crença em Deus como básica. Segue-se que sustentará essa crença de tal maneira que nenhum argumento poderia demovê-la ou fazê-la abandoná-la? [...] Não adotará ela uma postura na qual a argumentação e outros métodos racionais de resolver desacordos serão inequivocamente declarados descabidos e despropositados? Certamente que não”. Veja p. 82ss., “Is argument irrelevant to basic belief?”. 1*Veja “Reason and belief in God”, p. 74ss. 15Atheism, p. 272.

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são básicas na comunidade vodu, elas são racionais e, além disso, que o pensamento reformado é irracional nessa comunidade. Na verdade, a proposta de Plantinga propiciaria a muitas comunidades diferentes ter legitimidade para afirmar que as suas crenças básicas são racionais [...] Entre essas comunidades, poderia haver adoradores do diabo, defensores da Terra plana e crentes em fadas, desde que a crença no diabo, na planura da Terra e nas fadas fosse básica nas respectivas comunidades (p. 272). Chamemos “Filho da Grande Abóbora” (FGA) a essa objeção. Qual é exatamente a objeção? A primeira coisa a se ver aqui é que a FGA foi um passo além da própria Objeção da Grande Abóbora. Esta última queixa-se de que, da perspectiva que estou apresentando, qualquer proposição, por mais fantástica, que seja, deveria ser aceita co~ mo apropriadamente básica; essa queixa, como Martin percebeu, é obviamente falsa. A FGA, consequentemente, avança uma etapa: de acordo com ela, quem tomasse qualquer proposição p da maneira básica teria legitimidade para afirmar que p é apropriadamente básica — apropriadamente básica com respeito à racionalidade, diz Martin — ou seja, p poderia ser racionalmente aceita e aceita da maneira básica. Tome-se qualquer comunidade possível e quaisquer crenças aceitas como básicas nessa comunidade: os epistemólogos dessa comunidade teriam legitimidade para afirmar que essas crenças são racionalmente aceitas da maneira básica. Mas em que condições a teriam? O que Martin quer dizer? H á mais de uma possibilidade, mas penso que ele quer dizer isto: teriam essas condições se o “epistemólogo reformado” tivesse legitimidade para afirmar que a crença teísta é apropriadamente básica. Assim, a estrutura da objeção seria a seguinte: (1)

Se os epistemólogos reformados têm legitimidade para afirmar que a crença em Deus é racionalmente aceitável da maneira básica, então, para qualquer outra crença aceita em uma comunidade, os seus epistemólogos também têm legitimidade para afirmar que essa crença é apropriadamente básica, por mais bizarra que seja.

Todavia, (2)

A consequente dessa condicional é falsa.

Logo, (3)

O epistemólogo reformado não tem legitimidade para afirmar que a crença em Deus é racionalmente aceitável da maneira básica.

Será esse um bom argumento? Um problema inicial é que o argumento está formulado de maneira muito inexata: Martin não nos diz o que quer dizer com “racional” e com “legitimidade”. Quanto ao primeiro termo, talvez os melhores candidatos sejam

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a racionalidade como justificação (justificação deontológica), a racionalidade interna e a racionalidade no sentido do aval. Não precisamos nos deter seriamente na racionalidade como justificação: é óbvio que os partidários do vodu poderíam ter o direito intelectual de pensar o que pensam (desde que não seja em virtude de uma disfunção cognitiva); logo, poderíam estar justificados. Mas então, presumivelmente, uma pessoa (os epistemólogos do vodu, p. ex.) teria legitimidade para afirmar que esses partidários do vodu estão justificados, independentemente do que Martin quer exatamente dizer com “legitimidade”. A premissa (2) do argumento, especificando‫־‬o com respeito à justificação, é assim claramente falsa. Bem, especifiquemos então o argumento para referi-lo à racionalidade interna: considere-se que “racionalmente aceitável” significa “internamente racional”. Nesse caso, a resposta é mais uma vez muito fácil. Uma crença será internamente racional se for produzida por faculdades funcionando apropriadamente “a partir da experiência” (veja p. 132) — se, dada a experiência (incluindo a experiência doxástica) no momento em questão, a aceitação dessa crença for compatível com a função apropriada. Isso certamente poderia ser verdadeiro também no caso dos partidários do vodu. Talvez eles tenham sido educados na ideia de que as crenças vodus são verdadeiras, e todas as evidências em contrário tenham sido astuciosamente neutralizadas pelos sacerdotes; ou talvez estejam todos dominados por uma disfunção cognitiva a montante da experiência, que distorce a experiência doxástica. Se isso poderia acontecer no caso dos partidários do vodu, os epistemólogos do vodu certamente poderíam saber que os partidários do vodu são internamente racionais ao fazer tais juízos e, assim, relatar (é de supor, com legitimidade) esse fato. A premissa (2) não é bem-sucedida no caso da racionalidade interna, tal como da justificação. Assim, para que haja aqui algo que valha a pena considerar, o argumento deve ser especificado para se referir à racionalidade no sentido de aval. A questão é se, caso eu tenha legitimidade para afirmar que a crença em Deus é apropriadamente básica com respeito ao aval, os epistemólogos da comunidade vodu têm legitimidade para afirmar que essas crenças vodu são apropriadamente básicas com respeito ao aval. Entretanto, agora precisamos saber o que se quer dizer aqui com “ter legitimidade para afirmar”. Parece haver três possibilidades importantes: afirmar com verdade, afirmar comjustificação e afirmar com aval. Primeiro, consequentemente, Martin poderia querer dizer que, se podemos dizer com verdade que a crença em Deus é básica quanto ao aval, então o mesmo acontece no caso da crença vodu. Já vimos, contudo, que isso é falso. E inteiramente possível que a crença em Deus tenha aval da maneira básica e que a crença vodu não a tenha da maneira básica; seria assim, por exemplo, se o modelo A/C fosse verdadeiro, mas a origem da crença vodu fosse algum tipo de erro cognitivo. Desse modo, a premissa (1) do argumento não seria bem-sucedida. Segundo, M artin poderia querer dizer que, se podemos afirmar com justificação que a crença em Deus é básica quanto ao aval, o mesmo acontecerá no caso da crença vodu: também dela podemos dizer com justificação que é básica quanto ao aval. Uma

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vez mais, isso é demasiado fácil. Claro que tais epistemólogos poderíam ter justificação para pensar que a crença vodu é básica quanto ao aval: poderia lhes parecer óbvio que, de fato, a crença vodu é básica quanto ao aval depois de uma reflexão prolongada e após a consideração das objeções. Entendendo as coisas assim, a premissa (2) não é bem-sucedida. Parece então que, para encontrarmos uma objeção respeitável, devemos entender “legítimo” como “avalizado”. Tomem-se os termos “racionalmente aceitável” e “legitimamente” como se significassem “avalizadamente”: será que, nesse caso, o argumento é bom? A tese de Martin, interpretada desse modo, seria que: (1) se a tese proposta pelos epistemólogos reformados — nomeadamente, que a crença em Deus é apropriadamente básica com respeito ao aval — tem aval, então para qualquer proposição p (por mais bizarra que seja) aceita por uma comunidade qualquer, se os epistemólogos dessa comunidade afirmarem que^> é apropriadamente básica com respeito ao aval, a sua afirmação teria em si aval; (2) a consequente de (1) é falsa a conclusão do argumento seria que a afirmação dos epistemólogos reformados não tem aval. Um problema na avaliação dessa versão do argumento é que os epistemólogos reformados (pelo menos este epistemólogo reformado que agora vos fala) não afirmam como parte constituinte da sua posição filosófica que a crença em Deus e os produtos da IIES têm aval. Isso porque (veja p. 203ss.), com toda a probabilidade, elas só têm aval se forem verdadeiras, e eu não estou argumentando que tais crenças são de fato verdadeiras. Sem dúvida que o epistemólogo reformado acredita realmente que são verdadeiras e está disposto a afirmar que o são, ainda que não se disponha a argumentar a favor dessa afirmação. Assim, por ora, consideremos que os epistemólogos reformados afirmam efetivamente que a crença em Deus e os produtos da IIES têm aval da maneira básica; suponha-se ainda que tenham “legitimidade”para o afirmar — ou seja, nessa interpretação, suponha-se que esta própria afirmação tem aval para eles. Será que se seguiría que, para qualquer proposição^), caso houvesse uma comunidade que a sancionasse, essas pessoas (ou os epistemólogos da sua comunidade) teriam aval para acreditar que p é apropriadamente básica (sob o aspecto do aval) para as pessoas dessa comunidade? Não se seguiría. Suponhamos que o modelo A/C estendido seja verdadeiro (e não apenas possível); então, (a) as afirmações centrais da fé cristã são, de fato, verdadeiras, (b) há realmente processos cognitivos como o sensus divinitatis e a IIES, (c) os seus produtos satisfazem as condições do aval. Suponhamos que um epistemólogo reformado acredite nas coisas grandiosas do evangelho com base no sensus divinitatis e na IIES; suponhamos que ele se dê conta, além disso, de que a sua crença e a de muitos outros é aceita da maneira básica (em que, é claro, aceitar p com base no testemunho é um modo de acreditar emp de maneira básica). Suponhamos ainda que ele comece a ver ou a acreditar que Deus queria que os seus filhos tivessem conhecimento acerca dele e que conhecessem as coisas grandiosas do evangelho, mas também que não é possível que um número suficiente de nós tenhamos conhecimento suficiente acerca dele por meios inferenciais, com base em outras crenças. Ele conclui consequentemente (e corretamente) que Deus

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instituiu processos cognitivos em virtude dos quais os seres humanos podem formar crenças verdadeiras de maneira básica. Conclui, além disso, ainda que os processos cognitivos ou mecanismos por meio dos quais formamos essas crenças estão funcionando apropriadamente quando produzem essas crenças, e estão também funcionando em um ambiente epistemicamente adequado e segundo um plano de desígnio que visa com êxito à verdade, ou seja, ele conclui que a crença cristã, tomada dessa maneira básica, tem aval. Conclui então que essas crenças são apropriadamente básicas com respeito ao aval, chegando a essa conclusão partindo de crenças que têm aval. Mas formar uma crença desse modo satisfaz as condições do aval; assim, a sua perspectiva de que a crença teísta é apropriadamente básica com respeito ao aval tem aval ela própria. Não se segue, é claro, que o epistemólogo do vodu também tenha aval para afirmar que a crença vodu é apropriadamente básica com respeito ao aval, pois suponhamos que a crença vodu é de fato falsa e ainda que surgiu originalmente por causa de algum erro ou confusão, ou como reação apreensiva a fenômenos naturais de um gênero qualquer, ou no espírito de um grupo que pretendia obter ou perpetuar seu poder político. Nesse caso, essas crenças vodu originais não têm aval. Suponhamos também que essas crenças vodu foram transmitidas às gerações seguintes por meio de testemunho e ensino. Ora, se uma testemunha testifica a favor de determinada crença^) que não tem aval para ela,^> tampouco terá aval para quem acreditar nela unicamente com base nesse testemunho. S e p não tem aval para a testemunha, não o tem para quem recebe o testemunho — mesmo que as faculdades deste último estejam funcionando de maneira perfeitamente apropriada.16 Os meus pais ensinam-me muitas tolices (por profunda ignorância, ensinam-me que as estrelas são na realidade buracos de alfinete em uma vela gigante de navio na qual se envolve a Terra todas as noites, para dar à humanidade uma boa noite de sono, ou que os frísios são politicamente inferiores e não devem ter poder de voto); então, mesmo que as minhas faculdades cognitivas estejam funcionando apropriadamente nas condições propícias ao aval, as minhas crenças adquiridas por meio desse testemunho não têm aval. Assim, considere-se o epistemólogo vodu e suponha-se que ele aceite essas perspectivas vodu com base no testemunho e (o que é análogo ao epistemólogo reformado) raciocina partindo da sua veracidade, junto com outras premissas, e conclui que são apropriadamente básicas com respeito ao aval. Nesse caso, a sua conclusão de que as crenças vodu são básicas quanto ao aval não terá aval ela própria, porque foi aceita com base em um argumento no qual pelo menos uma premissa não tinha aval para ele. Isso acontece porque a inferência exibe o gênero de estrutura dependente do aval que encontramos no testemunho. Acredito em p e em q\ estas levam (dedutivamente, ou de outro modo qualquer) a r, r terá aval para mim se p e q o tiverem também (e talvez precisemos acrescentar se p e q, a conjunção de p e q, o tiver); mas se p ou q não tiverem aval para mim, o mesmo acontecerá a r. (E claro que não posso passar a conhecer uma proposição1 1‘Veja WPF, p. 83.

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inferindo-a de proposições que incluem proposições que não conheço.17) Os filósofos vodu estão enganados ao sustentar as suas perspectivas vodu; além disso, a afirmação deles de que as perspectivas vodu são apropriadamente básicas com respeito ao aval é falsa e não tem, em si, aval. Poderia certamente acontecer, portanto, que as perspectivas do epistemólogo reformado sejam legítimas, no sentido de terem aval, e as do epistemólogo vodu, que chega às suas perspectivas estruturalmente do mesmo modo pelo qual chega o epistemólogo reformado, não serem legítimas nesse mesmo sentido. Isso poderia acontecer se, por exemplo, as afirmações centrais da fé cristã forem verdadeiras e a crença vodu for falsa. Consequentemente, não é verdade que se a afirmação de que a crença em Deus e nas coisas grandiosas do evangelho é apropriadamente básica com respeito ao aval tiver em si aval, então do mesmo modo a afirmação de que a crença vodu é apropriadamente básica com respeito ao aval terá em si aval. O argumento de Martin, entendido desse modo, não é, consequentemente, bem-sucedido; a sua primeira premissa é falsa. A título de sumário: a queixa de Martin, aparentemente, é que se o epistemólogo reformado pode afirmar com legitimidade que a crença cristã é apropriadamente básica com respeito à racionalidade, os filósofos de uma comunidade com crenças claramente doidas poderíam, com igual legitimidade, afirmar que essas crenças doidas são apropriadamente básicas com respeito à racionalidade. Mas é claro que eles não poderíam afirmar tal coisa. Logo, o epistemólogo reformado não pode legítimamente fazer a sua afirmação. Essa queixa é ambígua de diversas maneiras, herdando a ambiguidade multifacetada dos termos “legítimamente”e “racionalidade”. A maior parte das desambiguações, contudo, não é minimamente promissora. A última desambiguação, em que “legítimamente” e “racionalidade” são entendidas como referindo-se ao aval, é pelo menos interessante; entendido o argumento desse modo, contudo, ele sofre do defeito irritante de ter uma premissa falsa. O Filho da Grande Abóbora não se sai melhor do que a Grande Abóbora em si.18 Ora, no espírito do Filho da Grande Abóbora, poderiamos levantar aqui uma questão ligeiramente mais geral. Proponho o modelo A/C estendido como um modo de a crença cristã poder ter aval da maneira básica e defendo três coisas: (a) esse modelo é possível, tanto lógica quanto epistemicamente; (b) dada a veracidade da crença cristã, não há objeções filosóficas a que esse modelo seja não apenas possível mas também verdadeiro; (c) se a crença cristã for realmente verdadeira, é mesmo muito provável que ela tenha aval, e o tenha de uma maneira semelhante à proposta no modelo A/C estendido. Ora, não poderiamos defender isso com igual coerência com respeito a qualquer conjunto de crenças, por mais estranhas que sejam? E isso não reduziría, em qualquer caso, o interesse da minha tese? 17Ignoro aqui as críticas birrentas de que eu poderia deduzir r de p e q deduzindo r apenas de p, que de fato tem aval para mim. 18Note-se, em particular, que o Filho da Grande Abóbora não oferece ao objetor uma crítica da crença cristã que seja independente da sua veracidade — ou seja, que 6e sustente ainda que a crença cristã seja de fato verdadeira. Não fornece, consequentemente, uma crítica dejure.

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Certamente que não. Não ocorre com muitas proposições o fato de que, se forem verdadeiras, então é muito provável que tenham aval: a proposição Nenhuma crença tem aval é uma dessas. Todavia, dirá o leitor, isso não é apenas um exemplo de prestidigitação lógica? H á mesmo alguns sistemas de crenças nitidamente análogas à crença cristã e em relação às quais as minhas teses não possam ser defendidas? Para qualquer desses conjuntos de crenças, não poderiamos encontrar um modelo sob o qual as crenças em questão tenham aval e tal que, dada a veracidade dessas crenças, não haja objeções filosóficas à verdade do modelo? Bem, provavelmente algo desse tipo é verdadeiro no que se relaciona a outras religiões teístas: o judaísmo, o islamismo, algumas formas de hinduísmo, algumas formas de budismo, algumas formas de religião dos índios americanos. Talvez essas religiões sejam como o cristianismo no sentido de não estarem sujeitas a objeções dejure que sejam independentes de objeções defacto. Entretanto, isso não é verdade no que respeita a qualquer conjunto de crenças. Não é verdadeiro, por exemplo, no caso do vodu, ou no caso da crença de que a Terra é plana, ou no do ceticismo humiano, ou no caso do naturalismo filosófico. Pois considere-se o conjunto de crenças que constitui o ceticismo de Hume com respeito às suas origens e às origens das suas faculdades cognitivas (p. 226). Hume — pelo menos, tal como o entendemos no capítulo 7 — sustenta que devemos ser céticos quanto à confiabilidade dos nossos processos de formação de crenças. Pensa ser capaz de ver que aquilo em que a natureza inevitavelmente nos leva a acreditar é improvável ou arbitrário, ou, na melhor das hipóteses, dúbio; assim, a atitude cognitiva adequada em relação às crenças induzidas em nós pela natureza é essa atitude de desprendimento irônico. Reconhecemos que somos incapazes de não sustentar essas crenças; mas reconhecemos também que não devemos confiar nelas. No entanto, se somos céticos quanto à confiabilidade dos nossos processos cognitivos, também temos razão para ser céticos quanto a quaisquer produtos particulares desses processos, incluindo as crenças que nos levam a ser céticos em relação a tais processos — daí o caráter reflexivo e autorreferencial da ironia. Ora bem, conseguiremos encontrar um modelo possível no qual essas crenças — incluindo a crença de que aquilo em que a natureza nos leva a acreditar é arbitrário ou não é confiável — tenham aval? Mais precisamente, poderemos encontrar um modelo tal que, se essa crença for verdadeira, é muito provável que tenha aval? E claro que não. Talvez alguém pense que o ceticismo de Hume acerca das suas origens e das origens das suas faculdades cognitivas não é muito parecido com a crença cristã, e não resta dúvida de que isso é verdadeiro. Assim, considere-se antes o naturalismo filosófico: a perspectiva de que a pessoa de Deus não existe, nem existe qualquer pessoa ou coisa semelhante a ele. (Os naturalistas contemporâneos acrescentam habitualmcnte que as únicas coisas que existem são as entidades que a ciência contemporânea reconhece ou admite por hipótese.) Tais naturalistas acrescentam também que nós c as nossas faculdades cognitivas surgimos por meio dos processos apontados na teoria evolucionista contemporânea — sobretudo pela mutação genética aleatória e pela seleção natural. Isso é, evidentemente, bastante mais parecido com crença cristã. Para muitos, talvez especialmente para muitos

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acadêmicos, isso exerce alguns dos papéis desempenhados pela crença religiosa: diz-nos de onde viemos, para onde vamos e quais são as explicações fundamentais das características essenciais da nossa natureza. Todavia, se eu tiver razão no argumento apresentado no capítulo 12 de WPF (e corrigido neste volume, p. 282ss.), esse conjunto de crenças não é tal que, se for verdadeiro, será muito provável que tenha aval. Pois o que o argumento mostra é que, se essas crenças são verdadeiras, não é nada provável que os nossos processos e mecanismos de produção de crenças sejam, de fato, confiáveis, caso em que as crenças que produzem, incluindo a crença de que o naturalismo é verdadeiro, não têm aval. Assim, é falso que o que defendo para a crença cristã é verdadeiro para qualquer conjunto de crenças; na verdade, não é verdadeiro para aquela que (no mundo acadêmico ocidental, pelo menos) talvez seja a principal alternativa à crença cristã. V . C

ir c u l a r id a d e ?

Apesar disso, não há algo de circular no meu argumento? Segundo Paul Noble (referindo-se a Jonathan Edwards), “a defesa teísta da razão passional levanta o espectro da circularidade epistêmica: a metafísica teísta fundamenta a crença na legitimidade da percepção espiritual’, e contudo Edwards apela também a essas percepções para vindicar a verdade do teísmo”.19 Não se pode dizer que meu modelo padece de um problema parecido? Não é verdade que a minha proposta só tem aval para mim (ou para quem a aceitar) se a crença teísta for de fato verdadeira e tiver, realmente, aval? Proponho o modelo A /C estendido como um modelo do modo pelo qual a crença cristã e teísta pode ter aval, mas não será que eu só teria aval para propor esse modelo se, de fato, o modelo, ou algo parecido, for correto e a crença cristã realmente tivesse aval? Não. O que defendo para o modelo é apenas que: (1) ele é possível, (2) não está sujeito a objeções filosóficas que não pressuponham que a crença cristã é falsa; (3) é tal que, se a crença cristã for verdadeira, o modelo está pelo menos perto da verdade. Todavia, é obviamente falso que a minha crença na veracidade de (1), (2) ou (3) (ou a minha afirmação dessas teses) só tem aval se o modelo for verdadeiro ou se a crença cristã tiver aval. Ora, suponha-se que eu tenha proposto o modelo como a verdade (ou algo próximo dela) acerca da maneira pela qual a crença cristã tem aval: nesse caso, seria a minha proposta de algum modo circular? Bem, por que haveriamos de pensar tal coisa? Talvez a ideia seja mais ou menos esta: porque as crenças cristãs centrais estão incluídas ou são implicadas pelo modelo, só tenho aval para pensar que o modelo é verdadeiro se tiver aval para aceitar as crenças cristãs; essas crenças cristãs centrais devem já ter aval para mim para que a minha crença de que o modelo é verdadeiro tenha aval. Mas, nesse caso, não estarei enredado num tipo qualquer de círculo objctável?1

1'‫ ׳‬,'Reason, religion, and the passions” (recensão de William Wainwright, Reason ami the heart: a prolegomenon to a aitique o f passional reason [Ithaca: Cornell University Press, 1995]), in: Religious Stm/ies (Dezembro de 1996), p-515.

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Não consigo ver por quê. É realmente verdadeiro que preciso ter aval para aceitar a crença cristã a fim de poder ter aval para aceitar o modelo A /C como verdadeiro; isso porque a crença está contida no modelo. Não é verdadeiro, contudo, que se a crença cristã tem aval para mim, o modelo também deve ter aval para mim. Isso seria verdadeiro se eu tivesse argumentado a favor da crença cristã por meio de um argumento que incluísse como premissa o modelo A /C estendido. Mais exatamente, seria verdadeiro se tal argumento fosse a única fonte de aval, para mim, da crença cristã, pois, nesse caso, qualquer aval que a minha crença cristã tivesse só o teria por meio da transferência de aval das premissas desse argumento; mas uma das premissas desse argumento seria uma conjunção, uma de cujos conjuntos faria em si parte da crença cristã. Havería consequentemente um círculo vicioso na relação recebe 0 seu aval de. Assim, se a fonte de aval da minha crença cristã fosse esse argumento, de fato o projeto padecería de uma circularidade viciosa. Entretanto, não é e não padece. A fonte de aval da crença cristã, segundo o modelo, não é nenhum tipo de argumento; em particular, o seu aval não advém de um argumento acerca de como a crença cristã podería ter aval. Para demonstrar que há aqui circularidade, o objetor precisaria demonstrar que qualquer aval que a crença cristã tivesse deveria, de algum modo, vir de algum gênero de argumento; e isso, como vimos, não pode ser feito. Essa objeção, pois, não é mais bem-sucedida que as outras. Sem dúvida que há outras objeções, talvez até outras sensatas. Eu não conheço nenhuma, contudo, e estou consequentemente obrigado a inibir-me de lhes responder até conhecê-las. Até lá, aceitarei provisoriamente que tais objeções não existem. Ora, as objeções consideradas neste capítulo dirigem-se à tese de que a crença cristã pode ter aval da maneira básica. São, portanto, objeções filosóficas a uma tese filosófica. Contudo, é evidentemente possível que a crença cristã pudesse ter aval desse modo, mas, defato, tenha pouco ou nenhum aval. Pois talvez a crença cristã tenha uma fonte de aval, mas o aval em questão seja anulado. Sem dúvida, a crença de que a Terra é plana teve, em tempos, aval para muitas pessoas. Mas então as pessoas encontraram anuladores dessa crença: por exemplo, há aquela maneira peculiar de os navios desaparecerem no horizonte, além de outros argumentos que levaram as pessoas a abandonar a crença (mesmo que o leitor seja cético com respeito a esses argumentos, pode ser persuadido pelas fotografias da Terra tiradas de um satélite e pelos relatos de testemunhas oculares quanto à aparência da Terra à distância de quinhentos quilômetros.) Não poderá acontecer o mesmo no caso da crença cristã? Não terá ela anuladores sérios — anuladores que são atualmente proeminentes, mesmo que não estivessem disponíveis há 250 anos? Esse é o tópico da próxima (e última) seção deste livro.

QUARTA PARTE ANULADORES?

Anuladores e anulação É fácil enfrentar os argumentos filosóficos contra o teísmo, pois não existem argumentos filosóficos contra o teísmo. G. K. Chesterton Defendí o argumento de que a crença cristã — a panoplia completa da crença cristã, incluindo a Trindade, a encarnação, a expiação, a ressurreição — pode, se for verdadeira, ter aval, pode mesmo ter aval suficiente para constituir conhecimento e pode ter esse aval da maneira básica. Não há objeções filosóficas cogentes à noção de que essas crenças possam ter aval desse modo. E possível e muito fácil estabelecer uma explicação — por exemplo, o modelo Aquino/Calvino (A/C) estendido — de como esses tipos de crença têm realmente aval e o têm não por meio de argumentos que partam de outras crenças. Em vez disso, a ideia fundamental é que Deus nos deu faculdades ou processos de produção de crenças que originam essas crenças e que visam com êxito à verdade; quando trabalham do modo pelo qual foram concebidos para trabalhar no gênero de ambiente para o qual foram desenvolvidos, o resultado é a crença avalizada. Na verdade, se essas crenças forem verdadeiras e o grau do seu aval for suficientemente elevado, elas constituem conhecimento. Claro que isso dificilmente resolve a questão quanto a saber se a crença cristã (embora verdadeira) tem ou pode ter aval nas circunstâncias em que a maior parte de nós nos encontramos efetivamente. Poder-se-ia pôr a questão do seguinte modo: “Bem, talvez essas crenças possam ter aval e talvez até (se forem verdadeiras) aval suficiente para configurarem conhecimento: há circunstâncias nas quais isso pode acontecer. A maior parte de nós, contudo — por exemplo, a maior parte das pessoas que leem este livro — não está nessas circunstâncias. O que você defendeu na realidade até aqui foi apenas que a crença cristã e teísta (tomada da maneira básica) pode ter aval na ausência de anuladores. Entretanto, os anuladores existem”. A ideia é que há sérios anuladores da crença cristã: proposições que conhecemos ou nas quais acreditamos que tornam a crença cristã — ou, pelo menos, a crença cristã quando a temos da maneira básica e com a firmeza necessária para constituir conhecimento — irracional e, logo, sem aval. Philip Quinn, por exemplo, pensa que para “adultos intelectualmente sofisticados da nossa cultura” há anuladores importantes da crença em Deus — pelo menos se, como no modelo A /C estendido, tivermos essa crença da maneira básica. Em consequência, a crença em Deus, quando a temos da maneira básica, como no modelo, é em sua maior parte irracional: “Concluo que muitos adultos intelectualmente sofisticados da nossa cultura, talvez a maior parte, raramente estão em condições adequadas para que [as crenças cristãs] sejam

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

apropriadamente básicas para eles, se é que alguma vez o estão”.1 Os anuladores que impressionam Quinn em especial são, primeiro, o mal natural (mal que não se deve ao livre-arbítrio humano) e, segundo, teorias projetivas da crença teísta, como as de Freud, Marx e Durkheim. Neste capítulo e nos seguintes, vou tratar de quatro supostos anuladores da crença cristã. Neste capítulo, depois de uma breve investigação da natureza dos anuladores, argumentarei que as teorias projetivas que Quinn menciona não constituem de fato um anulador da crença cristã. No capítulo 12, argumentarei que a crítica histórico-bíblica contemporânea (“crítica superior”) não serve de anuladora da crença cristã, mesmo que os seus supostos resultados não sustentem a crença cristã e, na verdade, mesmo que a contradigam. No capítulo 13, examinarei a tese de que os fatos do pluralismo religioso constituem um anulador da crença cristã; deitarei também um olhar à ideia de que o desenvolvimento do pensamento pós-moderno é, de algum modo, um anulador de tal crença. Argumentarei que nenhum oferece tal anulador. Por último, no capítulo 14, vou considerar aquele que tem sido visto muitas vezes como o mais formidável desafio à crença cristã: os fatos do sofrimento e do mal. Também esse desafio, como argumentarei, não constitui em si um anulador da crença cristã. I. A

NATUREZA DOS ANULADO RES

Pois bem, o que precisamos para começar é alguma ideia do que é um anulador de uma crença. O fato é que há muito a dizer acerca de anuladores.12 Primeiro, contudo, precisamos de alguns exemplos. Como no último capítulo, vejo (a cem metros) o que tomo como um carneiro num terreno e formo a crença de que um carneiro está no terreno. Sei que o leitor é o dono desse terreno. No dia seguinte, você me diz que não há carneiros naquele terreno, apesar de você ter um cão que parece um carneiro à distância de cem metros e que frequenta o terreno. Então (na ausência de circunstâncias especiais), tenho um anulador da crença de que um carneiro estava no terreno e vou, se for racional, abandoná-la. Isto é um anulador refutante — o que descobrimos (que não há carneiros naquele terreno) é incompatível com a crença antes formada. Todavia, também há anuladores danosos. Eis um exemplo elaborado por John Pollock. O leitor entra em uma fábrica e vê uma linha de montagem na qual há vários artefatos, todos lhe parecem vermelhos. Você forma a crença de que são realmente vermelhos. Mas então vem o superintendente e o informa que os artefatos estão sendo irradiados com luz vermelha e infravermelha, um processo que torna possível detectar pequeníssimas fissuras, da espessura de um fio 1“On finding the foundations o f theism”, Faith and Philosophy 2, n. 4 (1985), p. 481. Veja o meu “The foimdations o f theism: a reply”, Faith and Philosophy 3, n. 3 (1986), p. 298ss.; e a resposta dc Quinn “The foundations of theism again”, in: Linda Zagzebski, org., Rationalfaith: catholic responses to reformed epistemology (Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1993), p. 14ss. 2Parte disso se encontra em Michael Bergmann, Internalism, externalism, and epistemic defeat (University of Notre Dame, dissertação de doutorado, 1997). Veja também John Pollock, Contemporary theories of knowledge (Torowa: Rowman Littlefield, 1986), p. 37ss.; e o meu artigo inédito “Naturalism defeated”.

ANULADORES E ANULAÇÃO

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de cabelo, que de outro modo seriam indctectáveis. Você tem então um anulador para a sua crença de que os artefatos que está vendo são vermelhos. Nesse caso, o que descobriu não é incompatível com a crença antes formada (não lhe foi dito que esses artefatos não são vermelhos); o que descobriu e agora anulada é algo que enfraquece seus fundamentos ou razões para pensar que aqueles artefatos eram vermelhos (você se dá conta de que os artefatos pareceríam vermelhos mesmo que não o fossem). Os anuladores são razões para abandonar uma crença r; se forem anuladores refutantes, serão também razões para aceitar uma crença incompatível com c. A existência de um anulador de uma crença coloca-nos em uma posição em que não podemos racionalmente continuar a tê-la. Os anuladores desse tipo são anuladores de racionalidade: dada a crença na proposição anuladora, você só pode reter a crença na proposição anulada pagando o preço da irracionalidade. H á também anuladores do aval que não são anuladores de racionalidade. Assim, no exemplo do celeiro falso de Carl Ginet, você está dirigindo ao sul de Wisconsin e tem a impressão de ver vários celeiros. Fixando-se em um deles em particular, diz a si mesmo: “Que celeiro esplêndido!”. O que você não sabe, contudo, é que os habitantes daquela parte do Wisconsin erigiram muitas fachadas de celeiros (que da estrada não conseguimos distinguir de celeiros de verdade) para se darem ares de maior prosperidade. O que você está efetivamente vendo, contudo, é um celeiro de verdade, e não uma fachada de celeiro. Apesar disso, você não sabe que é um celeiro; só por pura sorte é que a sua crença é verdadeira (você podería muito bem ter estado olhando para uma fachada de celeiro — na verdade, isso é até mais provável porque a proporção entre fachadas e celeiros, nessa área, é de três para um). Formulando a questão na terminologia do capítulo 5 (p. I5lss.), você está em um miniambiente cognitivo desfavorável e são aquelas fachadas que o tornam desfavorável. Os celeiros falsos são, para você, um anulador do aval: dada a presença dos celeiros falsos, você não sabe que aquilo que está vendo é realmente um celeiro — apesar de o ser e de você acreditar que seja. A existência de celeiros falsos não é um anulador de racionalidade, contudo, pois nada há de irracional, nas circunstâncias, em acreditar que está vendo um celeiro. Os anuladores dependem do resto da sua estrutura noética (tudo o mais que você sabe e em que acredita) e são relativos a ela. Uma crença A é um anulador de uma crença B em razão não apenas da minha experiência atual; depende também de minhas outras crenças, de quão firmemente as tenho e coisas semelhantes. Considere-se, por exemplo, o caso anterior, em que a sua afirmação de que não há carneiros naquele terreno é um anulador da minha crença de que estou vendo um carneiro; isso depende do meu pressuposto de que você é confiável, pelo menos nessa ocasião e quanto a esse tópico. Em contraposição, se eu sei que você é conhecido por ser muito brincalhão e especialmente inclinado a enganar as pessoas acerca de carneiros, o que você diz não constituirá um anulador; nem o constituirá se eu estiver inspecionando o carneiro com binóculos de longo alcance e vir claramente que é um carneiro, ou se uma pessoa em quem confio e que está diante do carneiro me disser, por celular, que é realmente um carneiro.

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

Pelo fato de os anuladores serem relativos à estrutura noética, pode acontecer de você e eu descobrirmos determinada proposição p que constitui para mim, mas não para você, um anulador de outra crença q. Por exemplo, você e eu acreditamos que a Universidade de Aberdeen foi fundada em 1495; você, mas não eu, sabe que o guia turístico de Aberdeen tem um erro incrível quanto a essa mesma questão. Ambos ganhamos uma cópia do guia na loteria nacional escocesa; ambos o lemos. Infelizmente, ele traz a afirmação completamente errada de que a universidade foi fundada em 1595. Dada a minha estrutura noética (que inclui a crença de que os guias são geralmente de confiança em questões dessa natureza), adquiri, ao ler o guia, um anulador da minha crença de que a universidade foi fundada em 1495. Você, contudo, sabendo desse erro improvável, não adquiriu essa noção. A diferença, é claro, diz respeito às outras coisas que sabemos ou em que acreditamos: dadas as outras coisas em que eu acredito, tenho agora uma razão para rejeitar a crença de que a universidade foi fundada em 1495; o mesmo não acontece com você. Você já sabe que o guia atual contém um erro quanto à data de fundação da universidade; isso neutraliza de antemão (por assim dizer) o potencial anulador do novo fragmento de conhecimento, ou seja, que o guia atual de Aberdeen diz que a universidade foi fundada em 1595. Assim, esse novo fragmento de conhecimento é um anulador daquela crença com respeito à minha estrutura noética, mas não com respeito à sua. Desse modo, um anulador de uma crença c é outra crença d tal que, dada a minha estrutura noética, não posso racionalmente sustentar c dado que acredite em d. No caso típico de anulação, acredito primeiro em c e, depois, passo a acreditar no anulador d: acredito que há um carneiro no terreno de pastagem à minha frente; depois você surge com aquela informação acerca do cão pastor. Acredito que os artefatos que estou vendo são vermelhos; depois o superintendente fala-me da irradiação com luz vermelha. Às vezes, contudo, já acredito no anulador (ou, a rigor, em parte do anulador), mas não me conscientizo inicialmente do seu efeito sobre a crença que anulei. Acredito que você foi ao jogo de basquete ontem à noite, às 9h30; acredito também que nunca vai aos jogos sem o seu marido; acredito que Samuel, em quem confio, disse-me que viu Tomé ou o marido da leitora em um bar a essa hora; e acredito que Jorge, em quem também confio, afirma que Tomé não estava no bar a essa hora. Isso é suficientemente complicado para que, de início, eu não perceba a conexão entre essas proposições e a minha crença de que você estava no jogo àquela hora. Enquanto não me der conta da conexão, não tenho um anulador, apesar de ter o que poderiamos chamar de um anulador potencial. Quando vejo a conexão, tenho então um anulador: o anulador é a conjunção dessas proposições, junto com a proposição de que, se essa conjunção for verdadeira, você não estava no jogo às 9h30. Eis um tipo de caso semelhante e famoso: Frege acreditava que (F) Para toda a condição ou propriedade P, há o conjunto exatamente daquelas coisas que têm P.

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Bertrand Russell escreveu-lhe uma carta, observando que (F) tem problemas muito sérios. Se (F) for verdadeira, existe o conjunto dos conjuntos que não são membros de si mesmos (porque há a propriedade ou condição de não ser membro de si mesmo). Esse conjunto, contudo, tem a indecência de não existir. Isso porque, se existisse, exempHficar-se-ia a si mesmo se e somente se não se exemplificasse a si mesmo; ou seja, exemplificar-se-ia a si mesmo e não se exemplificaria a si mesmo, um comportamento completamente inaceitável para um conjunto. Antes de Frege haver se conscientizado desse problema com (F), ele não tinha um anulador para essa crença. Depois de haver entendido a carta de Russell, entretanto, passou a tê-lo; e o anulador era apenas o fato de que (F), em face da verdade de que existe a condição de não ser membro de si mesmo, implica uma contradição. Podemos tentar explicar inicialmente a noção de anulador da seguinte maneira: (D) D é um anulador de C para S no momento t se e somente se (1) N, a estrutura noética de S (ou seja, as crenças e experiências de S e as relações visíveis entre elas) em t, inclui C, e S passa a acreditar em D em /, e (2) qualquer pessoa (a) cujas faculdades cognitivas estejam funcionando apropriadamente sob os aspectos pertinentes, (b) cuja estrutura noética seja N e inclua C, e (c) passa a acreditar em D no momento t, mas em nada mais que seja independente de D, ou mais forte, abandonaria C (ou acreditaria menos fortemente em C3). A ideia é, aproximadamente, que a crença D é um anulador de C para o leitor se o funcionamento apropriado exigir de você o abandono de C quando adquire D. Isso se harmoniza bem com os exemplos anteriores de anuladores; apesar disso, não é exatamente o que queremos. Para ver o problema, imagine-se que um freudiano astuto respondería da seguinte maneira: Considere-se o “revogador otimista”. Você sofre de uma doença que, conforme seu conhecimento, é realmente séria; contudo, acredita que se recuperará dentro de seis meses. Você descobre então algumas estatísticas que se aplicam precisamente ao seu caso — estatísticas segundo as quais a probabilidade de recuperação é muito baixa. A sua crença nessas estatísticas lhe dá um anulador para a crença de que se recuperará? Seria de pensar que sim, mas, segundo (D), não necessariamente, pois talvez haja um tipo de mecanismo que opera nesses casos para manter o otimismo em relação a suas hipóteses

3Poderiamos usar o termo “anulador parcial” para anuladores que não exigem o abandono da crença em C, mas exigem que se acredite nela com menos firmeza. Um tratamento completo explicaria os graus de crença (que não devem ser entendidos como juízos de probabilidade; veja Warrant: the current debate, p. 118) e mostraria como a anulação parcial e a completa se relacionam entre si. Não temos aqui espaço para isso, mas note-se que a anulação completa é na realidade um caso especial da anulação parcial, pelo menos se estipularmos que abandonar a crença em C é um caso especial de passar a acreditar menos fortemente em C. Por uma questão de brevidade, irei doravante suprimir a menção a anuladores parciais, apesar de ser apenas uma questão de rotina aplicar também a eles o que tenho a dizer aqui.

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de recuperação apenas porque esse otimismo aumenta as chances de recuperação. Ou seja, o que o funcionamento apropriado exige em um caso assim é que você acredite na recuperação, apesar de seu conhecimento das estatísticas. O que o funcionamento apropriado exige nesse caso, pois, é (a) a crença de que essas estatísticas são de fato rigorosas, mas também (b) a crença de que você se recuperará apesar disso. Portanto, a definição está incorreta. Ela não considera o fato de que nem todos os processos cognitivos visam à produção de crenças verdadeiras. Ademais, isso se relaciona diretamente com a questão da crença em Deus, pois, como Freud observou, a crença em Deus surge da realização de desejos, e não de processos ou faculdades de produção de crenças que visam à verdade. A função dos processos que produzem a crença teísta é a saúde psicológica, permitindo-nos perseverar neste mundo deprimente e ameaçador. A função desses processos não é fornecer-nos crenças verdadeiras. Assim, suponhamos que você acredite em Deus e alguém lhe forneça um poderoso argumento contra a existência de Deus — uma versão do problema do mal, por exemplo. Suponhamos até que alguém lhe mostre que a existência de Deus é logicamente incompatível com a existência do mal. O que o funcionamento apropriado exigiría nesse caso? Bem, é concebível que exigisse que você continuasse a acreditar em Deus. Contudo, mesmo nesse caso, você teria um anulador. Logo, a definição é defeituosa. Concordo, a definição é realmente defeituosa.4 Precisamos aqui de uma distinção. Considere-se que (D) acima define a noção de anulador simpliciter. Precisamos também da noção de anulador puramente epistêmico: (D*) D é um anulador puramente epistêmico de C para S em t se e somente se (1) a estrutura noéticaN de S em t inclui Ce S começou a acreditar em D no momento /, e (2) qualquer pessoa S*(a) cujas faculdades cognitivas estejam funcionando apropriadamente sob os aspectos pertinentes, (b) que seja tal que a parte do plano de desígnio que rege a permanência de C na sua estrutura noética visa com êxito à verdade (ou seja, visa à maximização das crenças verdadeiras e à minimização das falsas) e nada mais, (c) cuja estrutura noética seja TVe inclua C, e (d) que começa a acreditar em D, mas em nada mais que seja independente ou mais forte do que D, abandonaria C (ou acreditaria menos fortemente em C). Seguem-se alguns comentários. Primeiro, é o aditamento da cláusula (b) que distingue (D"1) de (D); muito imprecisamente, a ideia é que um anulador puramente epistêmico de C é uma crença D que seria um anulador simpliciter de C se os únicos processos que regem a manutenção de C visassem à verdade (e não, por exemplo, à sobrevivência ou ao conforto psicológico). O ponto é, então, que D podería ser um anulador puramente epistêmico de B mesmo que a função apropriada exigisse a manutenção de C, na estrutura noética de S, apesar da formação de D; isso pode ocorrer se os processos que mantêm C não visarem à ■*Fui muitíssimo ajudado aqui por uma série de comunicações de William Talbott.

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verdade. Segundo, com respeito à cláusula (a), não se exige, é claro, que todas as faculdades de S* estejam funcionando apropriadamente em todos os aspectos. Por exemplo, o fato de a memória de S* para nomes ser defeituosa não necessariamente é pertinente aqui. Além disso, não se exige que a própria D surja racionalmente ou por meio do funcionamento apropriado; como irei argumentar, é possível que uma crença adquirida irracionalmente seja um amolador até mesmo de uma crença que foi racionalmente adquirida. Talvez (D*) seja um pouco pesada; apesar disso, na prática não deverá haver qualquer dificuldade em aplicá-la aos casos que nos interessam. Consequentemente, o freudiano astuto anterior, presumivelmente defenderá que o teísta tem realmente um amolador puramente epistêmico nos fatos do mal (ao refletir neles e observar como se relacionam com a existência de um Deus perfeitamente bom), mesmo que não tenha um anulador simpliciter. E ele pode prosseguir afirmando uma última tese: ao ver que a crença em Deus não é sustentada por processos que visam à verdade (surgindo, em vez disso, de um pensamento fantasioso motivado pelo desejo), ocorre também um anulador simpliciter da crença teísta. Teremos esse anulador de duas maneiras diferentes. Primeiro, ao ver que os processos cognitivos responsáveis por determinada crença não visam à verdade, e ao ver também claramente os fatos do mal, afirma ele, ficamos em uma situação em que a resposta racional é abandonar a crença em Deus, pois, afirma ele, percebemos que temos realmente evidências contra a existência de Deus, ao passo que, por outro lado, a nossa crença em Deus não tem evidências nem aval. Ele acrescenta que, mesmo ignorando completamente o mal, o teísta que veja que a sua crença teísta resulta da realização de desejos (ou de qualquer outro processo cognitivo que não visa à verdade) tem um anulador dessa crença. Ver que as fontes de determinada crença não visam à verdade (mas antes a outro desiderato como a sobrevivência, o bem-estar psicológico ou a capacidade para seguir adiante neste mundo hostil e indiferente) é suficiente (na ausência de outras evidências), afirma ele, para nos dar um anulador simpliciter dessa crença. A resposta racional, quando constatamos a fonte dessa crença, é abandoná-la. Que outras condições (se é que existem) um anulador de crenças teria de satisfazer? Em particular, será que a própria crença anuladora tem de ser avalizada ou formada racionalmente? Suponha-se que eu tenha uma crença C, mas depois aceite uma crença D que vai, de alguma maneira, contra C, e essa crença D que aceito não tem aval. Poderia mesmo assim ser um anulador de C? Penso que sim. Há anos que acredito que o leitor nasceu em Yankton, Dakota do Sul; essa crença tem bastante aval para mim (foi o seu tio quem me disse, e eu sei que ele é uma pessoa em geral confiável). Um dia, contudo, você me diz com toda a seriedade que não nasceu em Yankton, mas em New Haven (e acrescenta uma história qualquer sobre a razão pela qual o seu tio pensa que vocc nasceu em Yankton). Então (em circunstâncias normais) tenho um anulador da racionalidade da minha crença de que você nasceu em Yankton. Na ausência de circunstâncias especiais (se não tenho razão para pensar que você está brincando ou tentando enganar-me, ou que está mal informado sobre onde nasceu, ou coisas semelhantes), a resposta racional seria abandonar a crença de que você nasceu em Yankton. Suponha-se, contudo, que na

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verdade você tenha sido mal informado pelos seus pais: você nasceu efetivamente em Yankton, mas, por razões que dizem respeito ao prestígio acadêmico, os seus pais disseram-lhe que nasceu em New Haven. Então, a sua crença de que nasceu em New Haven tem pouco ou nenhum aval. Isso porque (como defendí em Warrant and properfunction, p. 83ss.) uma crença adquirida por meio de testemunho só tem aval para nós se tiver aval para a testemunha; uma vez que os seus pais nem sequer têm essa crença, ela não é uma das crenças avalizadas deles. Logo, a minha nova crença de que você nasceu em New Haven também não tem aval. Contudo, essa crença é, apesar disso, um anulador da minha crença anterior de que você nasceu em Yankton. Assim, é perfeitamente possível que uma crença A sirva de anulador de outra crença B, apesar de A ter pouco ou nenhum aval e ainda que B tenha mais aval do que A. No entanto, o que acontece se a crença potencialmente anuladora for adquirida irracionalmente? Poderá mesmo assim ser um anulador? Suponha-se que sempre achei que você é uma pessoa muito cordial, que simpatiza comigo. Infelizmente, começo a afiindar-me em uma condição paranoica: em virtude de uma disfunção cognitiva, começa a parecer-me que você, de fato, está tentando prejudicar-me destruindo a minha reputação acadêmica. Em razão da disfunção cognitiva, isso parece-me pura e simplesmente óbvio: tem “evidências doxásticas” bem fortes, como as venho chamando-as. Poderá a minha crença D de que você está tentando destruir a minha reputação servir de anulador da minha crença C de que você simpatiza comigo? Devemos recordar aqui a distinção entre a racionalidade interna e a externa. A racionalidade interna é uma questão de funcionamento apropriado “a partir da experiência” (inclusive da experiência doxástica: veja p. 126ss.). Dada a minha experiência, só sou internamente racional se formo as crenças adequadas em resposta a essa experiência. O que a racionalidade interna exige, consequentemente, é a resposta doxástica adequada à experiência, que inclui a própria experiência doxástica. Para os nossos propósitos, podemos considerar que a racionalidade interna inclui também a justificação epistêmica, ter direitos epistêmicos, não ter faltado aos deveres ou obrigações epistêmicos. A racionalidade externa, por sua vez, é uma questão de funcionamento apropriado das fontes da experiência, incluindo, em particular, as fontes da experiência doxástica. A irracionalidade externa pode surgir de diversas maneiras. Por exemplo, pode acontecer por um impedimento. Escrevo um livro sobre o tópico X; por causa do orgulho e ao egoísmo, penso que ele é obviamente o melhor livro sobre X, apesar de o seu livro sobre X ser melhor e apesar de que eu próprio teria reconhecido esse fato, não fosse a maneira que o meu orgulho impediu ou obstaculizou o funcionamento apropriado das faculdades racionais pertinentes. Isso é um caso de irracionalidade externa: o problema é que, por causa de meu orgulho e arrogância, o meu livro parece-me muito melhor do que o seu; a proposição de que ele é melhor tem, para mim, muitas evidências doxásticas. Em um caso assim, consequentemente, a minha crença formada irracionalmente pode me dar um anulador, penso eu, da minha crença anterior formada racionalmente de que o seu é o melhor livro sobre X. Voltemos agora ao caso da paranoia: acredito que observamos uma situação semelhante. A minha crença de que o leitor quer prejudicar-me é externamente irracional; surge de fontes de experiência doxástica que não estão funcionando apropriadamente.

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Por causa dessa disfunção, contudo, a minha experiência é tal que sou poderosamente levado a acreditar em D —que você está tentando arruinar-me. Isso parece-me agora muito mais óbvio do que o que eu pensava antes, que você simpatizava comigo: as evidências doxásticas a favor de D são muito mais fortes do que as evidências doxásticas a favor de C. O que a racionalidade exige, nessas circunstâncias, consequentemente, é que eu abandone C; tenho um anulador para C em D, apesar de eu chegar a D irracionalmente. Logo, posso ter um anulador D para uma crença C, mesmo que eu tenha C racionalmente e que D tenha sido adquirida irracionalmente. Há ainda outra maneira pela qual posso adquirir um anulador irracionalmente. Suponha-se que acredito em C, mas, devido a uma disfunção cognitiva, não acredito em C com a força que a racionalidade me exige; a minha crença está longe de ser tão resistente ao desafio de outras crenças quanto o deveria. Por exemplo, em razão de uma disfunção cognitiva (uma lesão cerebral, talvez) tenho dificuldades aritméticas: como todo mundo, acredito que 2 + 1 = 3, mas não acredito com mais força nisso do que a minha crença de que, por exemplo, o número da segurança social da minha esposa é n. Você, um professor de Matemática em quem confio, diz-me que de fato é falso que 2 + 1 = 3. Eu aceito a sua palavra da mesma maneira que podería acreditar no funcionário do governo que me informa que o número da segurança social da minha esposa não é realmente n (houve uma confusão qualquer quando ela perdeu o cartão e pediu um novo). Isso me dá, pois, um anulador da minha crença de que 2 + 1 = 3. Só tenho esse anulador para essa crença; contudo, por uma falha do funcionamento cognitivo apropriado, isso acontece apenas porque as minhas evidências doxásticas a favor de 2 + 1 = 3 estão longe de serem tão fortes quanto o funcionamento apropriado exige.I. II. ANULADORES DA CRENÇA CRISTÃ OU TEÍSTA

O que vimos até agora é que só temos um anulador para uma das nossas crenças C se adquirimos outra crença D tal que, dado que temos essa crença, a resposta racional é rejeitar C (ou dar-lhe menos crédito). O que queremos saber, contudo, é (por exemplo) se o sofrimento e o mal que o mundo exibe, ou os fatos do pluralismo, fornecem anuladores da crença cristã. Claro que poderão fazê-lo para algumas pessoas, mas não para outras; essas coisas são relativas às estruturas noéticas. Assim, o que estamos realmente perguntando quando perguntamos se esses fatores são anuladores? Poderiamos ir aqui em várias direções; suponha-se que vamos na direção de Philip Quinn (ver p. 357) e temos em mente as estruturas noéticas de “adultos intelectualmente sofisticados da nossa cultura”. Estamos perguntando se esses supostos anuladores constituiríam de fato anuladores para os sofisticados crentes de Quinn. Claro que só serão anuladores para determinada pessoa S se S acreditar neles. E não é apenas qualquer proposição tal que, caso eu acreditasse nela, teria um anulador da crença teísta ou cristã, que serve a nossos propósitos. Como vimos, uma crença adquirida irracionalmente pode servir como anulador, mas é claro que o leitor não me dá um anulador da crença cristã, no sentido cabível, fazendo-me acreditar em algo de maneira irracional — por hipnose, digamos, ou injetando-me drogas alucinógenas. O leitor só me dá um anulador no

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sentido cabível se me propuser uma crença que um crente racional sofisticado (racional tanto interna quanto externamente) aceitaria se esta lhe fosse apresentada. Assim, você não fornece necessariamente um anulador da crença teísta limitando-se a afirmar, ainda que vociferando ou falando bem devagar, que a crença em Deus é falsa, ou estúpida, ou que Deus está morto, ou que, dada a existência da eletricidade e do telégrafo sem fio (veja adiante, p. 405), atualmente sabemos como as coisas são. Apesar de essas proposições, se eu as aceitasse, poderem fornecer-me anuladores da crença cristã, não são de tal modo que, só por si, fariam a racionalidade exigir que um crente sofisticado as aceitasse. E preciso algo mais. O quê? Uma alternativa que talvez seja adequada, seria dar-me um argumento a favor da falsidade da proposição pertinente, usando premissas que um crente sofisticado aceite. Claro que há aqui sutilezas. Pode ser que a coisa racional a fazer, quando vejo a incompatibilidade entre essas premissas e C, seja manter C e abandonar essas premissas (a sua conjunção). Acredito em p v ...,p jvocê mostra-me que^,...,^im plica que não há eus que persistam ao longo do tempo; quando vejo isso, talvez a atitude racional seja abandonar (uma ou mais das) p , e não a crença de que há eus que persistem ao longo do tempo. De modo que apresentar apenas um argumento com premissas que uma pessoa sofisticada aceita não é suficiente para fornecer um anulador; as premissas devem também ser tais que, quando vejo o conflito, a racionalidade exija que eu abandone a crença que se pretende anular e não as premissas. Apesar disso, a argumentação é uma das maneiras de me fornecer um anulador. Há mais alguma maneira? Sim. Você pode me colocar em uma posição em que eu tenha experiências tais que, dadas essas experiências (e dada a minha estrutura noética), a atitude racional a tomar seja abandonar a crença que se pretende anular. Eu afirmo que não há figueiras-da‫״‬índia na península superior do Michigan; você me leva ao campo e mostra-me um espécime particularmente luxuriante. A racionalidade exige que eu abandone a minha crença agora desacreditada. Portanto, outra maneira de fornecer um anulador da crença cristã ou teísta seria apontar ou oferecer um tipo de experiência que, se uma pessoa sofisticada a tivesse, ficaria racionalmente obrigada a abandonar a crença anterior.I. III. A s

TEORIAS PROJETIVISTAS CONSTITUEM UM ANULADOR DA CRENÇA CRISTÃ?

Podemos agora abordar as teorias projetivistas da crença religiosa — em particular da crença teísta — que Quinn menciona. Essas teorias propõem-se a explicar a crença teísta e as outras crenças religiosas afirmando que projetamos nos céus uma espécie de pai idealizado. Freud propõe uma teoria desse tipo, tal como Marx e Durkheim, entre outros; segundo Quinn, essas teorias projetivistas, junto com o mal natural, constituem anuladores da crença teísta e por isso também da cristã. Abordarei o mal no último capítulo, mas o que dizer de Freud e Marx? Não serão suas teorias, como Quinn afirma, razões para que os cristãos contemporâneos responsáveis e informados abandonem a crença em Deus ou pelo menos a aceitem com menos firmeza?

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Não me parece. Seja-me permitido explicar-me. O fato é que já dei algumas das minhas razões no capítulo 6, p. 185ss. Como argumentei então, a alma da queixa F&M (de Freud e Marx) é que a crença teísta não tem aval: não é produzida por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente segundo um plano de desígnio que vise com êxito à verdade. Segundo Marx, essa crença surge de uma espécie de disfunção cognitiva produzida por uma sociedade mal ordenada; de acordo com Freud, é produzida por processos cognitivos que visam ao conforto psicológico ou à sobrevivência, e não à verdade. Pois bem, se eu acreditasse nessas coisas, talvez tivesse alguma razão para abandonar a crença cristã.5 Entretanto, por que havería eu de acreditar nelas? Há algum argumento racionalmente convincente a favor de alguma delas? Freud e Marx certamente não dão razões para pensar que essas teorias sejam verdadeiras; limitam-se a anunciá-las. O mais importante, como argumentei no capítulo 6, é que o ataque deles ao aval da crença teísta parte do pressuposto de que ela é falsa; pressupõe o ateísmo. Se estou ciente disso, contudo, como pode o ataque deles constituir um anulador, para mim, da crença teísta? Se a crença teísta for falsa, talvez a tese F&M seja uma boa maneira de pensar acerca dela; mas, como é óbvio, não acredito que a crença teísta seja falsa. As declarações de Freud e Marx, consequentemente, não constituem, para mim, um anulador da crença teísta; seus enunciados poderão constituir um anulador se eu começar a acreditar neles, mas não me fornecem qualquer razão para que eu efetivamente acredite neles. Dessa ótica, é perfeitamente admissível que uma pessoa conheça as perspectivas de Freud e continue aceitando a crença teísta de modo completamente racional. Teorias projetivistas como a de Freud poderíam ser um anulador da crença teísta (e, logo, da cristã) para algumas pessoas. Suponhamos que eu acredite com firmeza que, se o teísmo for verdadeiro, não podería haver teorias projetivistas coerentes da crença religiosa ou teísta; suponhamos também que eu aceite o teísmo, ainda que não de maneira particularmente firme. Suponhamos, por fim, que eu comece a acreditar que (F) A teoria de Freud (ou outra teoria projetivista) é coerente. Nesse caso, (F) será um anulador — talvez um anulador parcial — da minha crença teísta; uma vez que eu o aceite e continue a aceitar o resto da minha estrutura noética (incluindo a ideia de que o teísmo só é verdadeiro se não houver quaisquer teorias projetivistas coerentes da crença teísta), não poderei ao mesmo tempo aceitar racionalmente o teísmo. Claro que essa ideia é falsa, mas uma crença falsa pode, apesar disso, servir como um anulador. Ou suponhamos que eu não me dê conta de que a teoria de Freud na verdade pressupõe o ateísmo, ou de que ele não apresenta absolutamente nenhum argumento a favor nem do ateísmo nem da sua teoria. Também aqui eu teria, então, um anulador, pelo menos

5Por outro lado, como argumento anterior (p. 213), é possível que a origem da crença teísta seja em algo como uma esperança vã, mas mesmo assim tenha aval. Se eu acreditar nisso, o fato de passar a acreditar que a crença em Deus é um produto da realização de desejos não me dará automaticamente um anulador dessa crença.

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pardal, da minha crença teísta. Assim, eu poderla adquirir um anulador ao passar a saber dessas teorias. Contudo, o ponto importante é que a racionalidade não exige que eu adquira tal anulador nessas condições. O ponto importante é que uma pessoa racional podería perfeitamente ser teísta, tomar ciência das teorias projetivistas de Freud (entre outras), conhecê-las bem e, mesmo assim, permanecer racionalmente teísta — em particular, se essa pessoa perceber que as perspectivas de Freud não são defendidas com argumentos e que, de qualquer modo, pressupõem o ateísmo. Alternativamente, um teísta para quem as perspectivas de Freud constituíssem um anulador podería adquirir um anulador desse anulador ao ser informado dessas verdades epistemológicas, entre outras. Esse é um caso em que o filósofo pode servir a comunidade cristã chamando atenção para verdades que, quando acrescentadas à estrutura noética cristã, podem preservar a crença cristã ou teísta dos anuladores ou podem fornecer um anulador de um anulador de tal crença. Quinn argumenta que as teorias projetivistas da crença teísta são anuladores dessa crença quando conseguem explicar bem a crença teísta: Penso que é proveitoso entender as teorias projetivistas da crença religiosa como um programa de investigação nas ciências humanas. [...] A ideia unificadora do programa de investigação é que há em nós um mecanismo de formação e manutenção de erenças que envolve projetar atributos de seres humanos individuais ou das suas sociedades no exterior, postulando entidades em que os atributos projetados são instanciados. [...] A existência das entidades postuladas não deve desempenhar qualquer papel na explicação da formação ou persistência da crença nos postulados. Se tais hipóteses conseguirem explicar as crenças cristãs em variadíssimas circunstâncias, não deixando sem explicação mais anomalias do que outras teorias boas, então pode-se apelar a um princípio de economia, como a navalha de Ockham, para justificar a conclusão de que as entidades cuja existência é postulada em resultado da operação do mecanismo de projeção não existem porque são explicativamente inertes.6 Se bem a entendo, a sugestão de Quinn, especificando-a para o caso da crença teísta, é que: (Q l) a existência de Deus não é necessária para explicar a crença teísta; daí que (Q2) a existência de Deus é explicativamente inerte; e (Q3) essa é uma boa razão para sustentar que a pessoa de Deus não existe. 6“The foundations o f theism again”, in: Rational faith: catholic responses to reformed theology (Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1993), p. 41-2.

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Não está claro se Quinn aceita (Q1)‫(־‬Q3); talvez as esteja apenas propondo como possibilidades (e mesmo que as aceitasse, poderia sustentar que também há boas razões a favor da crença teísta). De qualquer modo, acredito que há vários problemas sérios com suas sugestões. Primeiro, segundo a teoria em questão, os crentes em Deus postulam a existência de Deus (“há em nós um mecanismo de formação e manutenção de crenças que inclui a projeção externa de atributos de seres humanos individuais ou das suas sociedades, postulando entidades em que os atributos projetados estão instanciados”). Todavia, é evidente que a crença em Deus não é resultado de postular algo; os crentes em Deus normalmente não postulam que ele existe, tal como os crentes em outras pessoas ou em objetos materiais não postulam que eles existem. Postular é um processo próprio de teorias científicas; postular entidades de certo gênero (p. ex., quarks ou glúons) é parte integrante de uma teoria explicativa. Os cristãos, contudo, não propõem normalmente a existência de Deus para explicar seja o que for (veja p. 338ss.). Apesar disso, talvez este não seja um aspecto central. Não deveria ser essencial para as teorias em questão que a crença em Deus seja formada por meio de postulação; na verdade, as teorias funcionariam igualmente bem, ou melhor, se afirmassem apenas que os crentes em Deus acreditam em Deus da maneira que o fazem por meio de mecanismos inconscientes de um gênero qualquer. Segundo, mesmo que a existência da crença teísta possa ser “explicada” (o que quer que isso realmente signifique) sem postular a existência de Deus, poderia mesmo assim acontecer de o teísmo em si explicar muitas outras coisas. A crença teísta é apenas uma das coisas que o teísmo pode ser invocado para explicar. Ele também é usado para explicar o ajuste perfeito do Universo; a existência de proposições, propriedades e outras entidades abstratas; a origem da vida; a natureza e existência da moralidade; a confiabilidade das nossas faculdades epistêmicas etc. Assim, o fato de ser explicativamente inerte com respeito à crença teísta não mostra, por si só, que ele seja explicativamente inerte tout court, não há qualquer razão, até aqui, para inferir (Q2) de (Ql). Terceiro, dado (Q2), por que razão inferir (Q3)? Segundo a famosa navalha de Ockham, entia non multiplicandum sunt praetor necessitatem: “as entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade”.7Tomada como a sugestão de que não devemos postular entidades de certo tipo a menos que sejamos, de algum modo, obrigados a isso, a navalha manifesta um robusto senso comum. (Talvez possamos explicar certos fenômenos postulando a existência de ratos na garagem; seria então multiplicar entidades desnecessanamente se postulássemos ratos e fadas para explicar esses fenômenos.) Entretanto, o teísmo não é habitualmente aceito como hipótese explicativa. Assim, suponhamos que a crença teísta seja de fato explicativamente inerte: por que haveria isso de comprómetê-la ou de sugerir que ela tem um status epistêmico inferior? Se a crença teísta não é proposta como uma hipótese explicativa, por que o fato de ser explicativamente inerte, 7Tal como a navalha c habitualmente entendida. Há aparentemente alguma dúvida se o próprio Ockham formulou o princípio exatamente desse modo.

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caso realmente o fosse, havería de ser usado contra ela? Crenças como a de que comi uma laranja no café da manhã não são (normalmente) aceitas como hipóteses. Devemos tomar o fato de não explicarem coisa alguma como um ponto contra elas, um anulador dessas crenças? E difícil, pois, ver por que razão a inércia explicativa da crença teísta (se é que ela é realmente inerte) seria um ponto contra ela. Na verdade, (Q3) afirma algo bastante mais forte: a inércia explicativa, segundo essa proposição, é uma razão para considerar que a crença teísta é não apenas epistemicamente suspeita, mas falsa. Todavia, por que pensar tal coisa? Suponha-se (à revelia dos fatos, penso) que a inércia explicativa realmente seja um ponto contra a crença teísta. Por que isso nos daria uma razão para negar a existência de Deus? Não seria o agnosticismo, a suspensão da crença, suficiente? Talvez eu não conheça qualquer fenômeno que só possa ser explicado pela suposição de que há vida inteligente em outros planetas. Deverei eu negar então que tal vida existe? O simples agnosticismo não seria suficiente? O ponto crucial aqui é que no modelo (e também na prática) a crença teísta não costuma ser aceita como uma explicação de algo. Não se trata de o teísta formar uma ideia de como o mundo (incluindo a existência da própria crença teísta) aparentemente se organiza para depois propor a existência de Deus como a melhor explicação dos fenômenos assim constatados. Se elç.pensasse assim, o fato de a crença teísta ser explicativamente inerte (se é que o é) com respeito a dado segmento de dados podería ser pertinente. Mas não é assim que ele pensa. De acordo com nosso modelo, o crente em Deus acredita normalmente de maneira básica, não com base evidenciai em outras proposições, e não propõe a crença em Deus como uma explicação seja do que for. Assim, o fato de haver melhores explicações de dado segmento de fenômenos (se as houver) não lança até aqui qualquer dúvida sobre a crença em Deus. Permitam-me regressar a uma analogia que usei em outro lugar. Concorro a uma bolsa da National Endowment for the Humanities. Dando-me conta de que não atendo aos requisitos, ofereço ao leitor quinhentos dólares para me escrever uma carta de recomendação magnífica, embora falsa. Ainda que todo homem tenha seu preço, como se costuma dizer, o seu, afinal, é bem superior a quinhentos dólares. Você recusa, indignado, e escreve uma carta feroz ao chefe do meu departamento. A carta desaparece misteriosamente do gabinete do meu chefe. Um dos membros mais respeitados do departamento, contudo, relata que me viu tentando aparentemente entrar pela janela do segundo andar no gabinete do chefe. Eu tenho os meios, o motivo e a oportunidade. Além disso, sabe-se que já tive esse tipo de atitude. Contudo, eu me lembro claramente de haver passado a tarde inteira em que a carta desapareceu em uma caminhada solitária nas montanhas. Acredito que não removí essa carta, e essa crença tem aval para mim. No entanto, não proponho a minha crença de que sou inocente ou de que estive caminhando na floresta como uma explicação dos fatos que apontam para a minha culpa. Não proponho a minha inocência ou o fato de haver feito uma caminhada como explicação seja do que for: essas crenças entram na minha estrutura noética de um modo bastante diferente. Suponhamos, então, que essas crenças sejam, de fato, explicativamente

ANULADORES E ANULAÇÃO

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inertes; e acrescente-se, caso se queira, que há uma boa explicação (ainda que falsa) da afirmação de x de que me viu tentando entrar no gabinete: a saber, que eu furtei a carta para evitar mais embaraços. Por acaso a inércia explicativa das minhas crenças constitui um anulador delas? Claro que não. Elas não são propostas como explicações.8 O mesmo acontece no caso da crença teísta. Tal como formuladas, consequentemente, as teses de Quinn não parecem demonstrar que as hipóteses projetivistas constituem um anulador da crença cristã ou teísta. Poderá encontrar-se nas imediações um argumento mais forte do mesmo gênero? Tal como Quinn formula a objeção, o fato de a crença teísta ser explicativamente inerte nos dá razões para acreditar que Deus não existe, de modo que o teísta que se conscientiza de que a sua crença é explicativamente inerte tem um anulador refutante. Entretanto, talvez haja outra maneira, possivelmente mais forte, de formular a objeção. Talvez o problema não seja apenas a inércia explicativa da crença na existência de Deus (se é que ela é mesmo explicativamente inerte); afinal, muitas das nossas crenças não funcionam como explicações, ou pelo menos não funcionam sobretudo como explicações. Talvez a ideia seja que (Q4) Se S pode explicar certo segmento das suas crenças sem pressupor a existência das entidades cuja existência tais crenças afirmam, então S tem um anulador danoso dessas crenças. A ideia seria então que, quando o teísta descobre as teorias projetivistas, nota que a existência da sua crença teísta pode ser explicada sem pressupor a existência de Deus; isso, segundo (Q4), lhe dá um danoso erosivo da sua crença na existência de Deus. Esta maneira de formular a objeção difere da de Quinn em dois aspectos. Primeiro, o suposto anulador da crença na existência de Deus não é mais o fato de tal crença ser explicativamente inerte (se o for), mas antes o fato de haver uma explicação da crença em Deus que não pressupõe a veracidade dessa crença — ou seja, não pressupõe a existência de Deus. Segundo, o anulador supostamente fornecido é danoso e não refutante. Mesmo assim, será que (Q4) é realmente verdadeira? Há pelo menos duas versões de (Q4). Por um lado, (Q4) poderá exigir que a explicação proposta envolva apenas entidades cuja existência S já aceita; por outro, a explicação poderia implicar também entidades cuja existência S não aceita ainda. Uma vez que a primeira versão é a mais fraca, e por isso mais plausível, restrinjamos a ela nossa atenção. Assim, imagine-se que posso explicar certo segmento das minhas crenças sem pressupor a existência dessas entidades E que as crenças afirmam; suponha-se, além disso, que posso explicá-lo com base em entidades que já aceito. Acaso isso me fornece um anulador da crença na existência “Admito que, se as evidências de que removí a carta continuarem a se acumular (a carta aparece em meu bolso de trás; as minhas impressões digitais estão espalhadas na pasta em que estava a carta; a montanha onde eu pensava haver feito a caminhada nessa tarde foi destruída por uma erupção vulcânica na manhã anterior), poderei ter de concluir que a minha memória está me enganando. O aspecto importante c apenas que a inércia explicativa da minha crença não constitui de modo algum um anulador dela — porque não é como explicação que a aceito.

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

dessas entidades E} Não me parece. Considere-se a minha crença nos objetos externos da percepção (árvores, casas, cavalos, outras pessoas): talvez eu pudesse explicar essas crenças dizendo que foram implantadas em mim por Deus, por razões que só a ele dizem respeito. Essa explicação não pressupõe a existência desses objetos, sendo formulada da perspectiva entidades (Deus) cuja existência já aceito. A existência dessa explicação me fornecería um anulador dessas crenças perceptivas? Duvido. Outra possibilidade: talvez eu possa também explicá-las (em harmonia com as teorias projetivistas que estamos considerando) como projeções minhas inconscientes: tenho várias impressões e, em resultado disso, projeto crenças acerca da existência de objetos materiais que persistem mesmo que eu não esteja tendo qualquer experiência deles. Essa explicação de tais erenças me fornecería um anulador para elas? Uma vez mais, duvido. Talvez haja também uma explicação projetivista da minha crença na existência das outras pessoas: vejo corpos à minha volta; projeto a crença de que são criaturas que pensam e sentem como eu (a alternativa é muito solitária). Isso me dá um anulador da minha crença de que realmente existem outras pessoas? Uma vez mais, não me parece. O fato é que há poucas razões para aceitar (Q4), pelo menos quando a entendemos em toda a sua generalidade. Isso significa, penso, que não temos nenhuma boa razão para pensar que adquirimos um anulador da crença teísta quando descobrimos essas supostas explicações projetivistas. Claro, mesmo que as supostas explicações projetivistas da crença teísta não me forneçam um anulador para ela, há muitos outros candidatos a anulador. Nos próximos capítulos, passaremos a considerar alguns desses supostos anuladores: a crítica histórico‫״‬ -bíblica contemporânea, o pluralismo e o pós-modernismo, e os fatos do mal.

Dois (ou mais) tipos de estudos bíblicos No capítulo 8, apresentei um modelo de como a crença cristã tem ou pode ter aval. Segundo o modelo, a Escritura é perspicua‘, as linhas principais da sua doutrina — criação, pecado, encarnação, expiação, ressurreição, vida eterna — podem ser entendidas, apreendidas e apropriadamente aceitas por qualquer pessoa de inteligência normal e formação comum. Como Jonathan Edwards afirmou, os índios do Housatonic conseguem apreender a sua mensagem com facilidade e apropriar-se dela adequadamente; não é necessário um doutorado em Teologia ou história ou estudos bíblicos. Por trás desse aspecto, há um segundo: está disponível uma fonte de crença verdadeira avalizada, um modo de passar a ver a verdade dessas doutrinas, que é perfeitamente independente do estudo histórico: Escritura/instigação interna do Espírito Santo (abreviando, IIES)/fé. Em virtude desse processo, um cristão comum, perfeitamente alheio aos estudos históricos, às línguas antigas, aos labirintos da crítica textual, às profundidades da teologia, e a tudo o mais, pode apesar disso vir a saber que essas coisas são, realmente, verdadeiras; além disso, esse conhecimento não precisa remontar (por meio de testemunho, por exemplo) ao conhecimento de alguém que tenha essa formação especializada. Nem a comunidade cristã nem o cristão comum estão, aqui, à mercê dos especialistas; podem conhecer essas verdades diretamente. Contudo, é claro, o estudo sério e erudito da Bíblia é de primordial importância para os cristãos. A lista dos que se entregaram a esse projeto é impressionante: Crisóstomo, Agostinho, Tomás de Aquino, Calvino, Jonathan Edwards e Karl Barth, só para começar. Estas pessoas e seus sucessores partem da ideia de que a Escritura é divinamente inspirada, de modo que a Bíblia constitui (entre outras coisas) uma revelação divina, uma mensagem especial de Deus para a humanidade; tentam então esclarecer qual é a doutrina do Senhor em toda a Escritura ou (mais frequentemente) em dado fragmento. Desde o Iluminismo, contudo, surgiu outro tipo de estudo da escritura. Tendo várias designações, como “crítica superior”, “crítica histórica”, “crítica bíblica” ou “estudo histórico crítico”, esse tipo de estudo da escritura põe de lado ou prescinde do que é conhecido pela fé e visa proceder “cientificamente”, estritamente com base na razão; dar-lhe-ei a designação de “crítica histórico-bíblica” — abreviando, CHB. Esse gênero de estudo da Escritura põe de lado a crença de que a Bíblia é uma palavra especial do Senhor, assim como quaisquer outras crenças aceitas com base na fé e não na razão. Ora, acontece frequentemente de que as declarações de quem desenvolve esse tipo de estudo entram aparentemente em conflito com as linhas principais do pensamento cristão; é muito improvável que quem sc entrega a esse tipo de estudo conclua,

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

por exemplo, que Jesus era realmente a segunda pessoa preexistente da divina Trindade, que foi crucificado, morreu e depois ressuscitou literalmente dos mortos no terceiro dia. Como Van Harvey afirma, “No que diz respeito aos historiadores bíblicos [...] dificilmente encontramos uma crença popular tradicional acerca de Jesus que não seja encarada com considerável ceticismo”.1Tentarei descrever esses dois tipos de estudo da Escritura. Depois, farei a seguinte pergunta: como deve um cristão clássico, um cristão que aceite “as coisas grandiosas do evangelho”, responder ao aspecto deflacionista de CHB? Como deve pensar acerca desses resultados que aparentemente corroem a crença cristã tradicional? Dado o modelo Aquino/Calvino (A/C) estendido, defenderei que ele não precisa se perturbar com o conflito entre os supostos resultados da CHB e a crença cristã tradicional.1 2 Esse conflito não oferece um anulador da sua aceitação das coisas grandiosas do evangelho — nem, como tais supostos resultados se baseiam em pressupostos epistemológicos que ele não partilha, de seja o que for que ele aceite com base na doutrina bíblica.

I. E s c r it u r a

d e in s p ir a ç ã o d iv in a

Ora bem, segundo o modelo A/C, a Escritura ou a Bíblia desempenham um papel importante no processo pelo qual o crente vem a acreditar nas coisas grandiosas do evangelho, e também no processo pelo qual estas crenças têm aval para ele. Grosso modo, ele lê ou ouve a mensagem central da Escritura; impelido pelo convite ou instigação do Espírito Santo, começa a acreditar. A Bíblia também figura na economia intelectual dos cristãos tradicionais de outra maneira. Por meio do processo anterior, talvez eu venha a acreditar que uma doutrina específica — por exemplo, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo — é verdadeira e foi revelada por Deus. Todavia, um cristão tradicional acredita também, por exemplo, que o Evangelho de João e a Epístola de Paulo aos Romanos e o livro de Atos são de inspiração divina, detendo por isso autoridade com respeito à crença e prática cristãs. Na verdade, ele acreditará em toda a Bíblia. A totalidade da Bíblia é uma mensagem do Senhor à humanidade; esse livro é, no seu todo, uma autoridade com respeito à crença e prática cristãs. Ora, essa crença em si não faz parte das coisas grandiosas do evangelho — não é um elemento essencial da crença cristã. Os cristãos primitivos não a aceitavam e ela não se encontra nos credos ecumênicos. Isso acontece, em parte, porque já havia cristãos antes de esses livros terem sido escritos e, a menos que Deus lhes tenha revelado que tais livros seriam em breve escritos e deteriam autoridade, eles não sabiam da sua existência. O próprio apóstolo Paulo, por exemplo, era certamente um crente cristão antes de haver escrito as suas

1“NewTestament scholarship and Christian belief” (NTS doravante), in: R.Joseph Hoffman; Gerald A. Larue, OTgs., Jesus in history and myth (Buffalo: Prometheus Books, 1986), p. 193.

2Concordo consequentemente (quanto ao principal) tanto com C. Stephen Evans, The historical Christ and the Jesus of faith: the incamational narrative as history (Oxford: Clarendon Press, 1996) como com Peter van Inwagen, “Critical studies o f the NewTestament and the user of the NewTestament”, in: God, knowledge, and mystery (Ithaca: Cornell University Press, 1995).

DOIS (OU MAIS) TIPOS DE ESTUDOS BÍBLICOS

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primeiras epístolas; era uma pessoa de fé e sustentava o essencial da crença cristã. Contudo, sem dúvida que não acreditava que a Bíblia — a Bíblia tal como agora a temos, seja na versão protestante, seja na católica (ou ortodoxa) — era de inspiração divina. Assim, a crença de que Deus inspirou, digamos, o Novo Testamento de tal modo que ele é uma comunicação de Deus para nós, seres humanos — essa crença não é em si um elemento essencial da crença cristã. Estritamente falando, consequentemente, explicar como essa crença sobre a Bíblia tem aval para o cristão, se a tem, ultrapassa o âmbito do meu projeto, que diz respeito ao modo pelo qual a crença cristã tradicional tem aval. Contudo, essa crença figura fortemente na prática cristã; em milhões de ofícios litúrgicos todas as semanas, os cristãos de todo o mundo ouvem passagens da Escritura e respondem dizendo “Palavra do Senhor”. Consequentemente começarei este capítulo investigando a epistemología da crença de que a Bíblia foi inspirada por Deus de maneira especial e para constituir um discurso divino >— a crença de que o Senhor fala de uma maneira especial para nós, seres humanos, nesse livro e por meio desse livro. Como acredita um cristão que o Evangelho de Marcos, ou o livro de Atos, ou todo o Novo Testamento, detém autoridade porque é de inspiração divina? Qual é a fonte de aval dessa crença (se é que a tem)? Há várias possibilidades. Para muitos de nós, será por meio do ensino e testemunho comuns. Talvez eu tenha sido educado desde criança para acreditar que a Bíblia é, de fato, a Palavra de Deus (tal como fui educado para pensar que milhares de pessoas morreram na guerra civil americana) e nunca encontrei razões para duvidar disso. Todavia, uma característica importante do aval é que, se aceito uma crença C apenas com base no testemunho, C terá aval para mim unicamente se tiver tido aval para a testemunha. O aval de uma crença para o destinatário do testemunho deriva do aval que tem para quem testemunha.3A nossa questão, consequentemente, é esta: qual é o status epistêmico dessa crença para aqueles membros da comunidade que não a aceitam por testemunho de outros membros? Qual é a fonte de aval (se é que a tem) dessa crença para a comunidade cristã? Talvez um cristão possa pensar algo como o seguinte: Suponha-se que os apóstolos tenham sido enviados por Deus, por intermédio de Jesus Cristo, para serem testemunhas e representantes (delegados) de Jesus. Suponha-se que o que resultou dessa tarefa que lhes foi atribuída foi um corpo de doutrinas apostólicas que incorporavam o que Jesus lhes ensinara e aquilo de que se lembravam sobre os acontecímentos que rodearam Jesus, doutrinas a que deram forma sob a orientação do Espírito. E suponha-se que os livros do Novo Testamento sejam escritos apostólicos ou formiúações de doutrinas apostólicas compostas por colaboradores próximos de um ou outro apóstolo. Nesse caso, é correto interpretar cada livro como um veículo do discurso divino. E uma interpretação eminentemente plausível do processo pelo qual esses livros acabaram por formar um único texto canônico seria que, por meio desse processo de canonização, Deus autorizou que esses livros constituíssem conjuntamente um só volume do discurso divino.4

3Veja Warrant andproperfunction, p. 34-5. 4Nicholas Wolterstorff, Divine discourse: philosophical reflections on the claim that God speaks (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), p. 295.

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Então, um cristão pode pensar algo assim: acredita (1) (2)

que os apóstolos foram enviados por Deus, por intermédio de Jesus Cristo, para serem testemunhas e representantes, que produziram um corpo de doutrinas apostólicas que incorporam o que Jesus ensinou,

e (3) que os livros do Novo Testamento são escritos apostólicos ou formulações de doutrinas apostólicas compostas pelos colaboradores próximos de um ou outro apóstolo. Ele acredita também (4) que o processo pelo qual esses livros foram reunidos em um só cânone represen* tou uma autorização de Deus para que eles constituíssem um volume único de discurso divino. Ele então conclui que efetivamente (5) o Novo Testamento é um volume único de discurso divino. No entanto, a nossa questão seria: como sabe ele, por que ele acredita nas proposições (1) a (4)? Qual é afonte dessas crenças? Será, talvez, a investigação histórica comum? Duvido. O problema, mais uma vez, é o princípio das probabilidades decrescentes. No capítulo 8 (p. 249ss.), vimos que esse princípio é um obstáculo de monta para quem pensa que os cristãos poderíam conhecer as coisas grandiosas do evangelho por meio da investigação histórica comum — vindo a saber, desse modo, que a Bíblia é de fato a Palavra de Deus e que Deus ensina realmente aquelas coisas. Claro que o problema não é tão grave no caso em mãos. Estamos imaginando que o cristão está já convencido das coisas grandiosas do evangelho; o seu conhecimento delas não depende das suas crenças acerca da autoridade ou inspiração divina da Bíblia. Segundo o modelo, o crente não raciocina da seguinte maneira: a Bíblia é a Palavra de Deus; diz que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo; logo, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo. Trata-se antes de que, ao ouvir a pregação do evangelho, ao ler a Bíblia ou ao nos depararmos de qualquer outro modo com a sua mensagem, passamos a acreditar nessas coisas imediatamente (ou seja, não por meios inferenciais), em resultado da obra do Espírito Santo no nosso coração. Assim, suponhamos que um cristão se proponha a apresentar um argumento histórico a favor, por exemplo, da inspiração divina e da consequente autoridade do Novo Testamento: supostamente, ele já conhece as verdades centrais do cristianismo.Já sabe que a pessoa de

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Deus existe, que o homem Jesus é também o divino Filho de Deus, e que, por intermédio do seu ministério, paixão, morte e ressurreição, nós, pecadores, podemos ter vida. Isso faz parte das informações de fundo do cristão e pode ser usado no argumento histórico em questão. O corpo de informações de fundo com respeito ao qual ele faz a estimativa da probabilidade de (1) a (4), consequentemente, inclui as linhas principais da doutrina cristã. E é claro que ele sabe também que os livros do Novo Testamento — ou pelo menos alguns deles — aparentemente ensinam ou pressupõem essas informações. Assim, a sua condição epistêmica é muito mais favorável às proposições de (1) a (4) do que se ele já não soubesse tudo isso. Diante do corpo de informações de fundo F, consequentemente, talvez ele possa considerar que cada uma das proposições de (1) a (4) é pelo menos bastante plausível e até provavelmente verdadeira. Mesmo assim, cada uma delas é apenas provável. Talvez, de fato, cada uma delas seja muito provável e tenha uma probabilidade tão elevada quanto .9 com respeito ao corpo de conhecimento F; mais exatamente, talvez a probabilidade de (1) dado F seja tão elevada quanto .9, a probabilidade de (2) dado (1)&F seja tão elevada quanto .9, e o mesmo para P((3)/(F&(1)&(2))) e P((4)/(F&(l)&(2)Sc(3))) (veja acima, p. 278ss.). Ainda assim, só podemos concluir que a probabilidade da sua conjunção, dado F, é um pouco superior a .5. Nesse caso, a crença de que o Novo Testamento é a Palavra de Deus não seria apropriada; o que seria apropriada é a crença de que é bastante provável que o Novo Testamento seja a Palavra de Deus (a probabilidade de que o próximo lançamento desse dado não dê 1 nem 2 é mais elevada do que .5; isso não é suficiente, nem de longe, para que eu acredite que não sairá 1 ou 25). Poderiamos regatear acerca dessas probabilidades: sem dúvida que seria sensato pensar que são mais elevadas do que sugeri. Sem dúvida. Mas também seria sensato pensar que são inferiores ao que sugeri. O argumento histórico de (1) a (4) na melhor das hipóteses produzirá probabilidades, e na melhor das hipóteses apenas uma probabilidade bastante insubstancial para a própria proposição (5). As estimativas das probabilidades serão, além do mais, vagas, variáveis e não muito bem fundamentadas. Para que a crença em questão tenha aval para os cristãos, o status epistêmico dela, para eles, tem de ser algo diferente da conclusão de uma investigação histórica comum. Ora, a maior parte das comunidades cristãs ensinou que o aval dessa crença não resulta apenas de uma investigação histórica. Por exemplo, a Confissão Belga, uma das mais importantes confissões das igrejas reformadas, dá uma lista (a lista protestante) dos livros canônicos da Bíblia; e prossegue: 5Se eu acreditar no que for bastante provável com respeito às minhas informações de fundo ou com respeito àquilo que já sei, acabarei acreditando em contradições: para cada número n entre 1 e 6, é provável que o dado não saia n\ mas, claro, também é provável que saia qualquer um dos n. Não pretendo dizer que a investigação histórica nunca possa fornecer evidências suficientes para que a atitude apropriada seja a da crença (em contraposição à crença de que é provável). E de acreditar, e não apenas de acreditar que é provável, que houve o Holocausto, uma Guerra Civil Americana, uma Revolução Francesa, uma guerra entre os atenienses e os espartanos e uma conquista romana dos judeus. No entanto, o mesmo não acontece com as proposições de (1) a (4). Não temos nem de longe o mesmo grau de evidências favoráveis para, por exemplo, a afirmação de que os apóstolos foram enviados por Deus ou que Deus autorizou que os livros do Novo Testamento constituíssem um só volume de discurso divino.

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

E acreditamos sem dúvida em todas as coisas neles contidas — não tanto porque a igreja recebe e aprova, mas acima de tudo porque o Espírito Santo testemunha nos nossos corações que são de Deus, e também porque provam por si serem de Deus. H á aqui uma possível ambiguidade: “acreditamos em todas as coisas neles contidas não tanto porque a igreja recebe” — o que recebe a igreja? As doutrinas contidas nos livros ou os próprios livros? No primeiro caso, o que há é outro exemplo do que já observamos: o Espírito Santo leva-nos a ver não que dado livro é de Deus, mas que uma doutrina — por exemplo, a de que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo — é verdadeira. No segundo caso, contudo, seríamos levados a acreditar em proposições como 0 Evangelho de João é de Deus. Penso que é pelo menos razoavelmente claro que é esta última ideia que a confissão tem em mente. Segundo a confissão, há duas fontes da crença de que (por exemplo) o Evangelho de João provém de Deus. A primeira é que o Espírito Santo testemunha nos nossos corações que esse livro provém realmente de Deus. O Espírito Santo não se limita a nos levar a acreditar, com respeito às doutrinas desse livro, que elas provêm de Deus; ele nos faz acreditar que o próprio Evangelho de João provém de Deus. A segunda é que o livro “prova por si” que provém de Deus. Talvez a ideia aqui seja que o crente começa por pensar, com respeito a muitas das doutrinas específicas do livro, que elas realmente provêm de Deus; ou seja, o Espírito Santo o faz acreditar nisso com relação a muitas doutrinas do livro. O crente infere então (com a ajuda de outras premissas) que o livro tem, na sua totalidade, o mesmo status.6 Essa é apenas uma maneira pela qual essa crença pode ter aval; há outras possibilidades. Talvez o crente saiba apenas por meio da IIES que o Espírito Santo guiou e preservou a igreja cristã, garantindo que as suas doutrinas acerca de matérias importantes são, de fato, verdadeiras; nesse caso, o crente teria aval para acreditar pelo menos que os livros da Bíblia sancionados por todas ou quase todas as comunidades cristãs tradicionais provêm de Deus. Ou talvez, guiado pelo Espírito Santo, o crente recapitule o processo pelo qual o cânone se formou originalmente, dando atenção aos critérios originais de autoria apostólica, compatibilidade com a doutrina apostólica e elementos semelhantes e apoiando-se no testemunho a favor das proposições de que tais e tais livros foram compostos pelos apóstolos. Há também combinações dessas maneiras. Todas (e outras ainda) são compatíveis com o modelo A /C estendido; o modelo não precisa escolher entre elas. Seja como for exatamente que essa crença ganhe aval, os cristãos tradicionais aceitaram a crença de que a Bíblia é a Palavra de Deus e que nela o Senhor tenciona ensinar-nos verdades.7 6Jonathan Edwards, The religious affections (New Haven: Yale University Press, 1959), p. 303: “E o passar a ver com tanta clareza urn tal mundo de verdade maravilhosa e gloriosa no evangelho, antes desconhecido, estando muito acima da visão do olho natural, mas surgindo tão claro e brilhante, tem uma influência invencível na alma para persuadi-la da divindade do evangelho”. 7Não desejo de modo algum sugerir que nos ensinar verdades é tudo o que o Senhor pretende fazer na Escritura: ele também faz surgir afetos, ensina-nos a louvar e a orar, a ver a profundidade de nosso próprio pecado, a entender quão maravilhosa é a dádiva da salvação e muitas outras coisas.

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II. C o m e n t á r io bíblico cr istã o t r a d ic io n a l

Claro que nem sempre é fácil dizer o que o Senhor está nos ensinando específicamente em determinada passagem da Bíblia: o que ele nos ensina é realmente verdadeiro, mas às vezes o conteúdo desse ensinamento não é claro. Parte do problema é o fato de a Bíblia conter textos de gêneros muito diferentes; não é, nesse aspecto, como um livro contemporâneo de Teologia ou Filosofia. Não é um livro cheio de frases decíarativas, com análises adequadas, desenvolvimento lógico e toda a parafernália que os acadêmicos conhecem, apreciam e exigem. A Bíblia contém algumas asserções sóbrias, mas contém também exortações, expressões de louvor, poemas, narrações de histórias e parábolas, canções, materiais devocionais, histórias, genealogias, lamentações, confissões, profecias, textos apocalípticos e muito mais. Parte desse material (os textos apocalípticos, por exemplo) levanta problemas sérios de interpretação (para nós, atualmente): o que nos ensina exatamente o Senhor em Daniel ou em Apocalipse? Não é fácil responder. O que devemos aprender com os salmos imprecatorios? De novo, não é fácil responder. Mesmo que nos limitemos às asserções simples, surgem mil questões de inter‫״‬ pretação. Vejamos alguns exemplos apenas. Em Mateus 5.17-20, Jesus declara que nem uma letra nem um traço da lei serão desconsiderados e que “se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino do céu”, mas, em Gálatas, Paulo parece dizer que a observância da lei não conta muito. Como podemos juntar essas duas afirmações? Como entender Colossenses 1.24: “Agora me alegro nos meus sofrimentos por vós e completo no meu corpo o que resta do sofrimento de Cristo, por amor do seu corpo, que é a igreja”? Será que Paulo quer dizer que o sacrifício de Cristo foi incompleto, insuficiente, que exige mais sofrimento de Paulo ou de nós? Não parece muito provável. Será que o nosso sofrimento pode ser um tipo do sofrimento de Cristo, tendo assim com este último a relação que um tipo tem com a realidade que tipifica? Ou devemos entender que precisamos distinguir entre dois tipos de sofrimento de Cristo: o sofrimento redentor, a Reparação expiatória e vicária a que nada se pode acrescentar nem subtrair, por um lado, e, por outro, outro tipo, também “por amor do seu corpo”, de que nós, humanos, podemos genuinamente participar? Talvez um sofrimento que possa edificar o corpo de Cristo, assim como a nossa resposta a Cristo poder ser aprofundada ao meditarmos no sacrifício dele por nós e no impressionante amor generoso que ele exibe? Ou o quê? Contradizem-se Paulo e Tiago quanto à relação entre a fé e as obras? Ou, dado que Deus é o autor da Escritura, ele nos está propondo a crença em uma doutrina incoerente ou autocontraditória? Não, certamente que não, mas então como entender as duas afirmações em relação uma à outra? De modo mais geral, como Deus é o autor principal da Escritura, o que pensar acerca das suas tensões aparentes? Primeira João parece afirmar que os cristãos não pecam; na epístola de Paulo aos Romanos, este afirma que toda a gente peca. Será o caso de concluir que não há cristãos? Há também problemas quanto ao

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CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

modo de entender as parábolas de Jesus. Em Lucas 18.1-8, por exemplo, será que Jesus está sugerindo que Deus nos ouvirá apenas por causa da nossa insistência e nos responderá somente por estar farto de nós? Isso não parece correto, mas então como entender a parábola? Algumas dessas questões são importantes no modo pelo qual a igreja conduz suas tarefas diárias: como entender a Eucaristia? Devem as crianças ser batizadas? Qual é a estrutura apropriada de autoridade na igreja? Apesar de essas questões serem importantes, a doutrina escriturística sobre elas não é muito clara — razão pela qual há cristãos de sabedoria e boa-vontade que discordam quanto a elas. Há outras questões: por exemplo, será a experiência da conversão necessária para a salvação? Quão importante é a glossolalia para uma vida apropriadamente cristã? Até que ponto devem os cristãos viver no mundo e acomodar-se à cultura contemporânea? (Como estar no mundo, mas não ser do mundo?) Qual deve ser a estrutura de um culto religioso? Na doutrina escriturística, esses assuntos são ainda menos claros. E há outros ainda: a verdade está no infralapsarianismo, no supralapsarianismo ou em nenhum dos dois? Cristo morreu por todos ou apenas pelos eleitos? O que é exatamente o milênio e quando será? Sobre estas, a doutrina escriturística chega a ser obscura. Temos de fazer aqui uma pausa para notar uma mancha escura no rosto do cristianismo. Os cristãos têm andado em uma querela contínua entre si e travaram combates imensamente destrutivos sobre todas essas questões. Em alguns casos, contudo, os comba= tes foram literais; e ver os cristãos (com as suas doutrinas sobre a paz, o amor e dar a outra face) em querela contínua entre si foi certamente uma causa importante da apostasia moderna e iluminista.8 Hoje talvez não nos entreguemos a combates literais;9 contudo, muitos cristãos sérios despendem ainda imenso tempo e energia em disputas sobre essas matérias. Não será óbvio, contudo, que o caminho da sabedoria para os cristãos é Έ talvez também da apostasia contemporânea. Ao explicar por que os “teólogos contemporâneos” não se interessam pelos tópicos que os filósofos contemporâneos da religião discutem, o teólogo Gordon Kaufman propõe que hoje parece que a fé cristã, os modos cristãos de entender o mundo e o lugar do ser humano no seio do mundo, um forte sentido cristão de autorização divina e por isso de superioridade perante as outras religiões, o imperialismo cristão, o racismo e sexismo cristãos, bem como outras características da religião cristã e da “civilização cristã”, têm uma responsabilidade significativa pela maior parte dos males que acabei de mencionar [..,] duas guerras mundiais horríveis, o Holocausto nazista e outros casos de genocídio, a crise ecológica, o uso de bombas atômicas na Segunda Guerra Mundial e a possibilidade sempre presente da obliteração nuclear do gênero humano [...] Os teólogos cristãos de hoje foram assim levados, de um modo historicamente inédito, a fazer algumas perguntas difíceis sobre a fé cristã, as suas práticas e instituições, perguntas que impõem um exame apurado dos próprios símbolos e idéias que tradicionalmente informaram essa fé (“Evidentialism: a theologiarís response", Faith and Philosophy [Janeiro de 1989], p. 41-2). A posição essencial de Kaufman aqui, penso, é que a filosofia contemporânea da religião continua levando a sério o cristianismo tradicional (ou tornou a levá-lo a sério), com a sua crença em Deus, na encarnação, na expiação e assim por diante, ao passo que os teólogos contemporâneos, atentos aos fatores que ele menciona,“foram além"de tudo isso. Veja o cap. 2 (claro que, como Kaufman reconhece, ele fala apenas cm nome de alguns teólogos contemporâneos). ,Porém, não me é fácil esquecer a imagem (cm Belfast) de um pregador protestante estremecendo e rugindo acerca “da blasfêmia amaldiçoada por Deus da prostituta idólatra de Roma” e olhando em redor como se nada lhe fosse mais agradável do que afundar a sua espada no peito de algum miserável católico romano.

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harmonizar a vontade de lutar, nesse caso, tanto com o grau com que o item em questão é, de fato, proposto por Deus para que nele acreditemos como com a sua importância para a vida cristã? Os cristãos terão muitas contas a prestar quanto a esses aspectos, e isso não será agradável. Consequentemente, a Escritura foi inspirada: as suas doutrinas são verdadeiras. Contudo, nem sempre é fácil dizer quais são as doutrinas. Na verdade, muitos dos sermões e homilías pregados em milhões de igrejas todos os domingos de manhã são dedicados em parte a esclarecer o que, de outro modo, seria obscuro na doutrina escriturística. Dado que a Bíblia é uma comunicação de Deus à humanidade, uma revelação divina, muitas do que lhe diz respeito exige uma reflexão profunda e perspicaz e nos obriga a apelar aos nossos melhores esforços eruditos e espirituais. Esse fato não escapou a Agostinho, Aquino, Calvino e os outros que mencionei; em seu conjunto, eles escreveram um número impressionante de volumes dedicados a uma reflexão poderosa do significado e das doutrinas da Escritura (só os comentários de Calvino são cerca de vinte e dois volumes). O objetivo deles é determinar com tanto rigor quanto possível o que exatamente o Senhor se propõe a nos ensinar na Bíblia. Denominemos essa tarefa “comentário bíblico tradicional” e observemos que ela tem pelo menos as três características a seguir. Primeiro, a própria Escritura é vista como um guia de fé e moral dotado de completa autoridade e totalmente confiável; tem autoridade e é confiável porque é uma revelação de Deus, é Deus quem nela nos fala. Uma vez elucidada, pois, qual é a doutrina de determinada passagem da Escritura, a questão da veracidade e da aceitabilidade dessa doutrina está estabelecida. Num comentário de Platão, podemos concluir que o que ele realmente queria dizer é XYZ e podemos passar então a considerar e avaliar, por diversos meios, se XYZ é verdadeiro, ou perto disso, ou verdadeiro em princípio, ou se foi ultrapassado pelo que descobrimos desde o tempo em que Platão o escreveu etc. Poderemos também perguntar se os fundamentos ou argumentos de Platão a favor de XYZ são débeis, aceitáveis, substanciais ou convincentes. Essas questões não têm lugar no tipo de estudo escriturístico sob consideração. Uma vez convencidos de que Deus nos propõe que acreditemos em XYZ, não perguntamos em seguida se XYZ é verdadeiro, ou se Deus tem bons argumentos a seu favor. Deus não precisa se defender. Segundo, um dos pressupostos da tarefa é que o principal autor da Bíblia — de toda a Bíblia — é o próprio Deus (segundo Calvino, a terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo). Claro que cada livro da Bíblia tem também um ou mais autores humanos; apesar disso, o autor principal é Deus. Isso leva-nos a tratar o todo mais como uma comunicação unificada do que como uma miscelânea de livros antigos. A Escritura é mais um livro com muitas subdivisões e um único tema central — a mensagem do evangelho — do que uma biblioteca de vários livros independentes. Por causa dessa unidade, além disso (em virtude do fato de haver apenas um autor principal), é possível “interpretar a Escritura pela Escritura”. Se determinada passagem de uma das epístolas de Paulo é enigmática, é perfeitamente apropriado tentar elucidar qual é a doutrina de Deus nessa passagem

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apelando não apenas para o que o próprio Paulo diz em outras epístolas mas também o que se ensina em outros lugares da Escritura (por exemplo, o Evangelho de João101). Certas passagens de Salmos ou de Isaías podem ser interpretadas quanto à revelação mais completa e explícita do Novo Testamento; a serpente erguida em uma vara para salvar os israelitas do desastre pode ser vista como um tipo de Cristo (ganhando assim parte do seu significado por meio de uma referência implícita a Cristo, que ao ser erguido na cruz evitou um desastre maior para todo o gênero humano). Outra consequência é que podemos aceitar apropriadamente proposições inferidas de premissas com origem em partes diferentes da Bíblia: quando vemos o que Deus pretende ensinar em determinada passagem A e o que ele pretende ensinar em determinada passagem B, podemos associar as duas e considerar que as consequências dessas proposições são em si doutrinas divinas.11 Terceiro (e em conexão com o segundo ponto), o fato de o autor principal da Bíblia ser o próprio Deus significa que nem sempre podemos determinar o significado de determinada passagem descobrindo o que o autor humano tinha em mente. Claro que vários hermeneutas pós-modernos pretendem divertir-nos afirmando que nesse caso, como em todos os outros, as intenções do autor em nada se relacionam com o significado da passagem; que é o próprio leitor que lhe confere seu significado, seja ele qual for; ou propondo até que pensar que um texto tem significado é cair na “inocência hermenêutica” — acrescentando, com certo ar de bravata, que essa inocência é fatalmente conspurcada pela sua associação inevitável com modos de pensamento inaceitáveis, homofóbicos, sexistas, racistas e opressores, entre outros. Isso é, efetivamente, divertido. Para voltar a coisas sérias, contudo, é óbvio (dado que o autor principal da Bíblia é Deus) que o significado de uma passagem bíblica será dado pelo que o Senhor visa ensinar nessa passagem, e é precisamente isso que o comentário bíblico procura discernir. Entretanto, não podemos nos limitar a pressupor que o Senhor quer nos ensinar algo idêntico ao que o autor humano tinha em mente;12 é possível que este último nem sequer tenha pensado sobre qual é, de fato, a doutrina da passagem em questão. Assim, por exemplo, os cristãos entendem as passagens do servo sofredor em Isaías como referências a Jesus; o próprio Jesus diz (Lc 4.18-21) que a profecia de Isaías 61.1-2 é cumprida nele; João (19.28-37) considera que há passagens do Êxodo, Números, Salmos e Zacarias que são referências a Jesus e aos acontecimentos da sua vida e morte; Mateus (21.5) e João (12.15) consideram que Zacarias 9.9 é uma referência 10Veja, por exemplo, Richard Swinburne (Revelation [Oxford: Clarendon Press, 1992], p. 192), para quem a cristologia de Paulo em Romanos 1.4 deve ser entendida como cristologia “superior” do primeiro capítulo do Evangelho de João. Poderiamos dizer o mesmo com respeito à cristologia de Paulo no seu discurso de Atos 13, em que ele parece sugerir que a Jesus foi dado um status especial, em contraste com João 1, segundo o qual Jesus é a encarnação da Palavra preexistente. Veja também Raymond Brown, New Testament christology (New York: Paulist Press, 1994), p. 133ss. 11Claro que esse procedimento, como muitos outros, pode dar origem, c tem dado origem, a abusos; contudo, essa possibilidade não milita por si contra o procedimento, ainda que deva servir de alerta. 12Mais uma complicação: não podemos pura e simplesmente pressupor que há um único ensino, o mesmo para todos, que o Senhor tenciona transmitir em determinada passagem; talvez o que ele tenciona ensinar a mim ou ao meu grupo social não seja o mesmo que ele pretendia ensinar a um cristão do século 5.

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à entrada triunfante de Jesus em Jerusalém; Hebreus 10 considera que há passagens dos Salmos, Jeremias e Habacuque que são referências a Cristo e aos acontecimentos de sua carreira, fazendo Paulo o mesmo relativamente a passagens dos Salmos e de Isaías no seu discurso em Atos 13. Na verdade, Paulo se refere ao Antigo Testamento em quase todas as páginas das epístolas aos Romanos e aos Corintios, e frequentemente em outras epístolas. Não há razão para supor que os autores humanos de Exodo, Números, Salmos, Isaías, Jeremias ou Habacuque tenham pensado na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, na sua encarnação ou em outros acontecimentos da vida e morte de Jesus — ou, na verdade, seja o que for explícitamente acerca de Jesus. Contudo, o fato de ser Deus aqui o autor principal torna bastante possível que o que há a aprender com o texto em questão seja bastante diferente do que o autor humano se propunha a ensinar. III. C rítica h istó r ic o - bíblica

Pelo menos desde o último par de séculos, tem havido também um tipo muito diferente de estudos da Escritura: a crítica histórico-bíblica (CHB). Há muito que agradecer à CHB: ela nos permitiu aprender muito acerca da Bíblia que, de outro modo, não teríamos sabido. Além disso, alguns dos métodos que desenvolveu (crítica da forma e crítica das fontes, entre outros) podem ser e têm sido usados com excelentes resultados no comentário bíblico tradicional. No entanto, ela difere crucialmente deste último. A CHB é fundamentalmente um projeto do Iluminismo, é um esforço para olhar para os livros bíblicos e para os compreender de um ponto de vista que se apoia exclusivamente na razão, ou seja, é um esforço para determinar, do ponto de vista apenas da razão, o que são as doutrinas escriturísticas e se são verdadeiras. Assim, a CHB desconsidera a autoridade e a instrução da tradição, do magistério, do credo e de qualquer tipo de autoridade epistêmica eclesiástica ou “externa”. A ideia é ver o que se pode estabelecer (ou pelo menos tornar plausível) usando somente a luz daquilo a que podemos chamar “razão empírica, natural”. As faculdades ou fontes de crença invocadas, consequentemente, seriam apenas as usadas na história comum: percepção, testemunho, razão tomada no sentido de intuição a priori, raciocínio dedutivo e probabilístico, a empatia de Reid (pela qual descobrimos os pensamentos e sentimentos dos outros) e assim por diante — mas pondo de lado qualquer proposição que saibamos por meio da fé ou da autoridade da igreja. Espinosa (1632-77) já havia explicitado os princípios desse projeto: “A regra da interpretação [bíblica] deve ser nada mais do que a luz natural da razão, que é comum a todos — e não qualquer luz sobrenatural nem qualquer autoridade externa”.13 Isso não impede, é claro, a argumentação racional (a argumentação unicamente com base na razão) a favor das proposições de que houve realmente uma revelação divina

13Tractatus theologico-politicus, p. 14 [edição em português: Tratado teológico-polUico, tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio (São Paulo: Martins Fontes, 2003)].

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e que a Bíblia (ou alguma parte dela) é essa revelação: esse é exatamente o projeto lockiano (veja p. 88ss). Nem impede a argumentação direta, independentemente de qualquer apelo à revelação, a favor das teses centrais do cristianismo. Na verdade, muitos críticos da fé cristã parecem pressupor como óbvio que, se a crença cristã fosse racionalmente aceitável, deveria ser objeto de crença com base precisamente nesse tipo de argumentação. A crença cristã teria de ser uma explicação científica, ou semelhante a uma explicação científica (tal como eles a concebem): qualquer justificação racional ou aval da crença cristã teria de se dever ao fato de ser uma boa explicação dos fenômenos observados.14 Desse ponto de vista, um cristão deveria presumivelmente pensar aproximadamente assim: “Qual é a melhor explicação de toda a complexidade organizada do mundo natural e das características próprias da vida humana e de tudo o mais que vemos à nossa volta? Vejamos; talvez haja um ser onisciente, onipotente e perfeitamente bom que criou o mundo. Sim, é isso; e talvez este ser seja uma de três pessoas, sendo as outras duas o seu divino Filho e uma terceira pessoa que procede das duas anteriores (ou talvez apenas da primeira), e, contudo, não há três deuses, mas apenas um; a segunda pessoa se fez carne, sofreu, foi crucificada e morreu, expiando assim os nossos pecados e tornando possível que tivéssemos vida e a tivéssemos em abundância. Certo. Tem de ser isto. Esta é uma explicação bacana dos fatos”. Os críticos concluem então, como seria de esperar, que a crença cristã deixa muito a desejar. Esse projeto ou iniciativa é muitas vezes visto como parte integrante do desenvolvimento da ciência empírica moderna, e de fato os praticantes da CHB gostam de pôr nos ombros o manto da ciência. O atrativo não é apenas que a CHB possa talvez partilh ar o prestígio da ciência moderna, mas também que possa partilhar o seu óbvio poder epistêmico e excelência.15 E habitual pensar que a ciência é a nossa melhor aposta para saber como é realmente o mundo; a CHB é, entre outras coisas, uma tentativa de aplicar esses métodos muitíssimo aplaudidos ao estudo da Escritura e das origens do cristianismo. Assim, Raymond Brown, um estudioso da Escritura mais respeitado que qualquer outro, pensa que a CHB é “crítica bíblica científica”16 e produz “resultados factuais” (p. 9). Ele pretende que os seus próprios contributos sejam “cientificamente respeitáveis” (p. 11) e diz que os praticantes da CHB investigam as Escrituras com “exatidão científica” (p. 18-9).17 ‫ ״‬Veja, p. ex., John Mackie, The miracle of theism (Oxford: Oxford University Press, 1982, p. 186ss.), e Daniel Dennett, Darwin’s dangerous idea (New York: Simon and Schuster, 1995), p. 152ss.; veja também o meu “Is theism really a miracle?”, Faith and Philosophy (1986), e “Dennett’s dangerous idea: Darwin, mind and meaning”, Books and Culture (maio-junho de 1996); e veja neste livro p. 334ss. 15Para compreender adequadamente a crítica histórica e sua preponderância, afirma David Yeago, precisamos compreender “a combinação histórica da crítica histórica com um ,projeto do Iluminismo’ que visa libertar o espírito e o coração dos grilhões da tradição eclesiástica. No contexto moderno, para que algo seja considerado ,do Iluminismo’, deve mostrar ter atingido um método apropriado, capaz de produzir conhecimento genuíno, para substituir a confusão e a arbitrariedade pré-críticas da tradição”(“The NcwTcstament and the Niccne dogma”, Pro Ecclesia 3, n. 2 (Primavera de 1994), p. 162). u 7he virginal conception and bodily resurrection of Jesus (New York: Paulist Press, 1973), p. 6. 17Veja também John Meier, A marginalJew: rethinking the historicalJesus{ New York: Doubleday, 1991),vol. l,p . 1.

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O que é, exatamente, o estudo científico da Bíblia? A resposta não é assim tão clara. Como veremos, há mais de uma resposta a essa pergunta. Um tema que parece quase universalmente aceito, contudo, é que ao trabalhar nesse projeto científico (seja como for que o entendamos exatamente) não invocamos nem usamos quaisquer pressuposições ou pressupostos teológicos. Não se pressupõe, por exemplo, que a Bíblia foi inspirada por Deus de qualquer maneira especial nem que contém um discurso específicamente divino. Não se pressupõe que Jesus é o divino Filho de Deus, nem que ressuscitou dos mortos, nem que o seu sofrimento e morte são de algum modo uma expiação propiciatória do pecado humano, tornando possível nos colocarmos em uma relação adequada com Deus. Não pressupomos nada disso porque, ao fazer ciência, não pressupomos nem usamos qualquer proposição que conheçamos por fé18 (em consequência, o significado de um texto será o que o autor humano tencionava asserir [caso se trate de um discurso assertivo]; as intenções e doutrinas divinas não fazem parte do significado19). A ideia, afirma E. P. Sanders, é apoiarmo-nos apenas em “evidências com os quais todos possamos concordar”.20 Segundo Jon Levenson, Os críticos históricos insistem com razão que o tribunal perante o qual se defendem as interpretações não pode ser confessional ou “dogmático”; os argumentos oferecidos devem ser historicamente válidos, ou seja, capazes de provocar o assentimento dos historiadores seja qual for a sua religião, se tiverem alguma, seja qual for sua proveniência, sejam quais forem suas experiências espirituais ou crenças pessoais e sem privilegiar qualquer afirmação da revelação.21*1

í8Nem podemos usar uma proposição que tenha aval para nós em decorrência de uma proposição que conhecemos por fé, ou na qual acreditamos; poderiamos exprimir essa ideia dizendo que, ao fazer ciência, não podemos empregar qualquer proposição cuja proveniência epistêmica, para nós, inclua uma proposição que conhecemos ou em que acreditamos pela fé. No entanto, será isso realmente verdadeiro? Por que haveriamos de acreditar nisso? Qual é o status da tese de que, para fazer ciência, não podemos usar no nosso trabalho qualquer proposição em que acreditemos ou que conheçamos pela fé? Será de supor que é verdadeira por definição? Nesse caso, a definição de quem? Há algum bom argumento a seu favor? Ou o quê? Veja 0 meu “Methodological naturalism?”, in: J. van der Meer, org., Facets of faith and science (Lanham, Md.: University Press of America, 1995). 1,E o caso de Benjamin Jowett (reitor do Balliol College no século 19 e eminente tradutor de Platão): “A Escritura tem um significado — o significado que tinha do ponto de vista do profeta ou do evangelista que primeiro a proferiu ou escreveu e para os ouvintes ou leitores que primeiro a receberam” (“On the interpretation o f Scripture”, in: The interpretation of Scripture and other essays [London: George Routledge, 1906], p. 36; citado por Jon D. Levenson, The Hebrew Bible, the Old Testament, and historical criticism [Louisville: Westminster/John Knox Press, 1993], p. 78). Jowett não era a epitome da modéstia intelectual, o que poderá explicar um poema composto e divulgado pelos estudantes de graduação do Balliol: Primeiro venho eu, de nome Jowett. Nenhum conhecimento desconheço. Sou o mestre do colégio. O que desconheço, conhecimento não é. 20Jesus andjudaism (Filadélfia: Fortress Press, 1985), p. 5. 21“The Hebrew Bible, the Old Testament, and historical criticism”, in: lhe Hebrew Bible, the Old Testament, and historical atticism, p. 109. (Uma versão anterior desse ensaio foi publicada com o mesmo título em John Collins; Roger Brooks, orgs., Hebrew Bible or Old Testament? Studying the Bible in judaism and Christianity [Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1990].)

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Barnabas Lindars explica que Há, na verdade, duas razões pelas quais tantos eruditos são tão cautelosos quanto às histórias de milagres [...] A segunda razão é histórica. A bibliografia religiosa do mundo antigo está cheia de histórias de milagres, e não podemos acreditar em todas. Não compete ao estudioso decidir que, só porque ele é um crente cristão, aceitará os milagres do Evangelho literalmente, mas ao mesmo tempo repudiará os milagres atribuídos a Isis. Todos esses relatos devem ser examinados com igual desapego.22 E até Luke Timothy Johnson, que é em geral um crítico astuto da CHB: E obviamente importante estudar historicamente as origens cristãs. E nessa investigação histórica, os compromissos da fé não devem desempenhar qualquer papel. O cristianismo não tem mais privilégios para o historiador do que qualquer outro fenômeno humano.23 Na prática, essa ênfase significa que a CHB tende a lidar especialmente com questões de composição e autoria, pois estas são as mais fáceis de abordar por meio de seus métodos. Quando o documento em questão foi redigido — ou, mais exatamente, uma vez que não podemos pressupor que estamos lidando aqui com um só documento unificado, quando foram redigidas as suas várias partes? Como foi redigido o Evangelho de Lucas, por exemplo? Foi escrito por uma pessoa, baseando-se na sua memória de Jesus, das suas palavras e feitos, ou foi o resultado da reunião de vários relatos da tradição oral, supostas citações, canções, poemas e tudo o mais? Depende de uma ou mais fontes orais ou escritas anteriores? Por que razão quem o editou ou redigiu coligiu o livro desse modo? Seria talvez para fundamentar um ponto de vista teológico em uma controvérsia daquele tempo? Enquanto o comentário bíblico tradicional pressupõe que a Bíblia, no seu todo, é realmente um único livro com um único autor principal, a CHB tende a nos dar uma coleção de livros de vários autores. E mesmo que nos restrinjamos a um livro apenas, ela nos brinda com uma coleção de adágios e episódios (perícopes) sem continuidade, anexados por um ou mais redatores. De tudo o que se declara serem as palavras e discursos de Jesus, o que foi realmente dito por ele? Será que podemos observar vários níveis no livro — talvez um nível térreo que inclui as próprias palavras de Jesus e, depois sucessivos níveis sobrepostos? Como Robert Alter afirma, os estudos desse tipo tendem a ser “escavatórios”: a ideia é escavar o documento

22Theology 89, n. 728 (Março de 1986), p. 91. 22The real Jesus (São Francisco: Harper San Francisco, 1996), p. 172 (o alvo de grande parte das críticas de Johnson é o infame “Seminário Jesus”). Johnson fala aqui específicamente da história; sustenta que não é apropriado que o historiador, como tal, use o que sabe pela fé. Em comunicação pessoal, disse-me que, na sua opinião, a história tem por natureza esse limite. Os estudos bíblicos, contudo, não o têm; daí que o género de projeto em que pomos de lado o que sabemos pela fé não seja epistcmicamente superior, mas antes, de fato, cpistemicamente inferior ao estudo bíblico informado pela fé. A sua perspectiva, consequentemente, é semelhante à delineada adiante, p. 412ss.

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que efetivamente temos para ver o que podemos encontrar embaixo dele a fim de determinarmos sua história.24 Claro que a ideia é verificar também, tanto quanto possível, se os acontecimentos relatados — nos Evangelhos, por exemplo — aconteceram realmente e se a imagem que dão de Jesus é fidedigna. Terá ele dito e feito as coisas que lhes são atribuídas? O pressuposto aqui é que não podemos simplesmente aceitar acriticamente os Evangelhos tal como são hoje. Pode ser que aditamentos, subtrações e alterações de todo tipo tenham sido feitos para defender certos pontos teológicos. Além disso, os livros do Novo Testamento foram escritos do ponto de vista da fé — a fé de que Jesus era realmente o Cristo, sofreu de fato, morreu, ressuscitou dos mortos e consumou a nossa salvação. Do ponto de vista da simples razão, contudo,' essa fé deve ser posta de lado; assim (desse ponto de vista), a hermenêutica da suspeita é apropriada nesse contexto (essa suspeita é às vezes levada tão longe que faz lembrar como a negação, por parte da CIA, de que o Sr. X é um espião é tomada como forte evidência de que ele é um espião).

A. Tipos de crítica histórico-bíblica Quem pratica a CHB, consequentemente, propõe-se a proceder sem usar pressupostos teológicos, ou seja o que for, que se saiba pela fé (se é que se sabe algo pela fé); eles são postos de lado. Em vez disso, o estudioso procede científicamente, com base apenas na razão. Para além disso, contudo, há muito menos concordância. De que “razão” se fala aqui? Quais premissas podem ser usadas em um argumento baseado apenas na razão? Proceder científicamente quer dizer exatamente o quê? Penso que encontramos pelo menos três posições diferentes quanto a isso. 1. C rítica h istó rico -b íb lica tro eltsch ia n a

Muitos críticos bíblicos contemporâneos recorrem ao pensamento e à doutrina de Ernst Troeltsch.25 E o caso de John Collins: Entre os teólogos, a formulação clássica desses princípios é a que Ernst Troeltsch fez em 1898. Troeltsch estabelece três princípios [...] (1) O princípio da crítica ou dúvida metodológica: dado que qualquer conclusão está sujeita à revisão, a investigação histórica nunca pode atingir a certeza absoluta, mas apenas graus relativos de probabilidade. (2) O princípio da analogia: o conhecimento histórico é possível porque todos os acontecímentos são semelhantes em princípio. Devemos pressupor que as leis da natureza nos 2‫־‬,Não pretendo sugerir que o comentador bíblico tradicional não possa também investigar essas questões; se o fizer, contudo, será a serviço de um esforço último de discernir o que o Senhor está nos ensinando nas passagens em questão. 25Veja especialmente “Über historische und dogmatischc Mcthode in der Theologie” no seu Gcsammeltc Schriften (Tubingen: Mohr, 1913), vol. 2, p. 729-53, e o seu artigo “Historiography”, in: James Hastings, Encyclopedia o f religion and ethics (New York: Scribner's, 1967 [reimpressão da edição dc 1909]),

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tempos bíblicos eram as mesmas de hoje. Troeltsch rcferia-se a isso como “o domínio todo-poderoso da analogia”. (3) O princípio da correlação: os fenômenos da História estão inter-relacionados e são interdependentes, de modo que nenhum acontecimento pode ser isolado da sequência de causas e efeitos históricos.26 Collins acrescenta um quarto princípio, tomado de Van Harvey (The historian and the beRever2‫)־‬, um locus classicus mais recente quanto ao método apropriado da crítica histórica: A estes devemos acrescentar o princípio da autonomia, que é indispensável para qualquer estudo crítico. Nem a Igreja nem o Estado podem prescrever ao estudioso as conclusões a alcançar (p. 2). Ora, o primeiro ponto a observar é que cada um desses princípios sofre de várias ambiguidades. Em particular, todos (com exceção, talvez, do segundo) têm uma interpretação incontroversa, até mesmo banal. O primeiro princípio parece um comentário acerca da investigação histórica, em vez de um princípio da sua prática: a investigação histórica não é jamais capaz de atingir resultados absolutamente certos (talvez o princípio métodológico sugerido seja que, ao fazer crítica histórica, devemos tentar não reivindicar certezas absolutas para os nossos resultados). Muito bem. Suponho que quase todas as pessoas concordariam que poucos resultados históricos de importância são tão certos quanto, digamos, que 2 + 1 = 3; sendo assim, tais resultados não atingem a certeza absoluta. (Os únicos candidatos plausíveis a resultados históricos que sejam absolutamente certos, suponho, seriam afirmações “históricas” como a de que ou César atravessou o Rubicão ou não.) O terceiro também tem uma interpretação banal. Troeltsch o formula do seguinte modo: “A única tarefa da História, no seu aspecto específicamente teórico, é explicar cada movimento, processo, estado e nexo das coisas tendo como referência a teia das suas relações causais”.28 Também esse princípio pode ser visto como anêmico, se não banal. Todo acontecimento é explicado tendo como referência a teia das suas relações causais — que, é claro, incluiríam também as intenções e ações das pessoas. Muito bem, considere-se então um acontecimento como a ressurreição de Jesus: segundo tal princípio, também esse acontecimento deveria ser explicado tendo por referência a teia das suas relações causais. Não há problema: do ponto de vista tradicional, esse acontecimento foi causado pelo próprio Deus, que o fez para atingir certos objetivos e fins, em particular para tornar possível que os seres humanos se reconciliassem com ele. Entendido desse modo, esse princípio não excluiría quase nada. O segundo princípio, como disse, talvez seja a exceção à afirmação de que todos têm uma interpretação banal, incontroversa: isso porque, por meio de qualquer interpretação 36“Is critical biblical theology possible?” in: William Henry Propp; Baruch Halpcrn; David Freedman, orgs., The Hebrew Bible and its interpreters (Winona Lake: Eisenbrauns, 1990), p. 2. 37Cujo subtítulo é The morality ofhistorical knowledge and Christian belief{ New York: Macmillan, 1966). 28“Historiography”, p. 718.

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plausível, o segundo princípio parece implicar a existência de leis da natureza. Que as leis da natureza efetivamente existem é algo que a ciência e filosofia da ciência dos séculos 17 e 18 faziam questão de afirmar;29 o que a ciência descobre (pensavam eles) são apenas essas leis da natureza.30 Os empiristas sempre tiveram as suas dúvidas quanto às leis da natureza, contudo, e atualmente a tese de que tais coisas existem é, na melhor das hipóteses, extremamente controversa.31 Entre os problemas mais importantes está o da suposta necessidade dessas leis. Uma lei da natureza é, supostamente, uma generalização universal. Considere-se, por exemplo, a primeira lei de Newton: “Todo corpo continua no seu estado de repouso, ou de movimento retilíneo e uniforme, a menos que seja obrigado a mudar de estado por forças que ajam sobre ele”. A ideia é que essa generalização universal é, em algum sentido, necessariamente verdadeira. O tipo de necessidade que se alega existir aí (necessidade “natural” ou “física”) é supostamente mais fraco que a necessidade lógica ampla que caracteriza as verdades da lógica, da aritmética e semelhantes (pensa-se habitualmente que as leis da natureza são contingentes no sentido amplamente lógico), mas apesar disso elas seriam necessárias em algum sentido. Em que sentido? Não é fácil responder, mas eis a imagem. Pense-se na necessidade natural da perspectiva semântica comum das contrafactuais: imaginamos que os mundos possíveis constituem um espaço — por uma questão de simplicidade, um espaço tridimensional; aceitamos de algum modo ou postulamos, pelo menos, a existência de uma medida de distância nesse espaço de mundos possíveis; quanto maior a esfera dos mundos possíveis (centrada no mundo efetivo32) na qual determinada proposição é verdadeira, mais necessária é a proposição. Então, a ideia seria que as leis da natureza são proposições verdadeiras em esferas muito grandes (centradas no mundo efetivo); permanecem verdadeiras quando nos afastamos muitíssimo do mundo efetivo. Essa é uma imagenzinha bonita (ainda que metafórica e muito especulativa). Apesar disso, por que razão onerar o historiador ou estudioso da Escritura com uma opinião sobre esse tópico? E difícil ver que a prática da CHB exija realmente a aceitação da ideia de que existem coisas como a necessidade natural ou as leis da natureza, como quer que as expliquemos. Por que o historiador deveria tomar posição nessa disputa filosófica? No entanto, talvez Troeltsch e Collins não quisessem realmente dizer que o ‫ ״‬É o caso de Descartes, Princípios defilosofia, parte 2: xxvii. A primeira lei da natureza: que cada coisa, no que depender dela própria, continuará sempre no mesmo estado; e aquilo que for posto em movimento, continuará sempre em movimento. xxxix. A segunda lei da natureza: todo o movimento procede por si em linha reta. 30Uma opinião preservada entre filósofos contemporâneos como David Armstrong (veja o scu What is a law of nature? [Cambridge: Cambridge University Press, 1984]) e David Lewis (veja, p. ex., o seu “New work for a theory o f universais”, Australasian Journal of Philosophy [1983], p. 343ss.). 31Veja, em particular, Bas van Fraasscn, Laws and symmetry (Oxford: Clarendon Press, 1989), para um argumento estendido e poderoso contra a existência de leis da natureza. 31Claro que uma lei da natureza em outro mundo possível poderia ser “mais necessária” do que é no mundo efetivo. Logo, apesar de uma lei da natureza ser verdadeira ao longo de uma esfera centrada no mundo efetivo, essa esfera pode estar incluída em outra maior, cujo centro não seja o mundo efetivo.

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historiador crítico deve acreditar em leis da natureza; talvez pudessem exprimir as suas idéias igualmente bem dizendo que as mesmas generalizações empíricas ou regularidades físicas que se verificam hoje se verificavam no passado. A física newtoniana (pelo menos aproximadamente, para objetos de dimensão média, viajando a uma velocidade moderada) verificava-se então como hoje; a relatividade especial e geral eram verdadeiras então como hoje (se forem realmente verdadeiras hoje); a eletrodinâmica quântica aplicava-se no passado (pelo menos em um passado não demasiado próximo do Big Bang) tal como atualmente. E isso quer entendamos essas afirmações como leis da natureza, com aquele gênero peculiar de necessidade, quer as entendamos como afirmações de regularidades sem exceção, quer as entendamos como regularidades que se verificam na grande maioria de casos, quer as entendamos como probabilísticas (como no caso de algumas regularidades da mecânica quântica). Desse modo, os princípios de Troeltsch têm interpretações banais; mas estas não são, de fato, as interpretações que lhes são dadas na comunidade de CHB. Nessa comunidade, esses princípios são entendidos de modo a excluir a possibilidade da ação divina direta no mundo. Não é que toda a comunidade aceite os princípios de Troeltsch na sua interpretação não banal; antes, aqueles que aceitam (ou rejeitam) esses princípios pensam que aceitam (ou rejeitam) as suas versões não banais. (Presumivelmente, todo mundo os aceita quando os entendemos da maneira banal.) Entendidos de maneira não banal, esses princípios implicam que Deus não inspirou de maneira especial quaisquer autores humanos de modo que os seus escritos sejam realmente um discurso divino dirigido a nós; nem ressuscitou Jesus dos mortos, nem transformou a água em vinho, nem realizou qualquer outro tipo de milagre. E o que diz Rudolf Bultmann: O método histórico inclui o pressuposto de que a História é uma unidade, no sentido de ser um contínuo fechado de efeitos no qual os acontecimentos individuais estão conectados pela sucessão de causa e efeito. O contínuo, além disso, não pode ser cortado pela intervenção de poderes sobrenaturais, transcendentes.33 Estranhamente muitos outros teólogos apressam-se a concordar: Deus não pode atuar diretamente no mundo ou, pelo menos, não atuaria nem atuará. Ê o que diz John Macquarrie:

33Schubert Ogden, org., Existence andfaith (New York: Meridian Books, 1960), p. 2 9 1 2 ‫־‬. Escrevendo chiquenta anos antes dc Troeltsch, David Strauss concorda: “todas as coisas estão ligadas entre si por uma cadeia de causas e efeitos, que não conhece interrupção”, Life of Jesus critically examined [Filadélfia: Fortress Press, 1972], século 14; citado por Harvey, The historian and the believer, p. 15.

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A maneira de entender os milagres invocando descontinuidades na ordem natural e intervenções sobrenaturais pertence à perspectiva mitológica e nada tem de recomendável em uma atmosfera mental pós-mitológica... A concepção tradicional de milagre é irreconciliável com o nosso entendimento moderno tanto da ciência como da história. A ciência parte do pressuposto de que quaisquer acontecimentos que ocorram no mundo podem ser explicados da perspectiva de outros acontecimentos que pertencem também ao mundo; e se em algumas ocasiões somos incapazes de explicar completamente um acontecimento [...] a convicção científica é que as investigações posteriores trarão à luz outros fatores da situação, fatores que se revelarão tão imanentes e mundanos quanto os que já conhecíamos.34 E Langdon Gilkey: A teologia contemporânea não postula acontecimentos divinos maravilhosos na superfície da vida natural e histórica nem fala deles. O nexo causai no espaço e no tempo que a ciência e filosofia do Iluminismo introduziram no espírito ocidental [...] é também um pressuposto dos teólogos e estudiosos modernos; dado que participam, tanto intelectual como existencialmente, do mundo moderno da ciência, dificilmente podem fazer outra coisa. Ora, esse pressuposto de uma ordem causai entre os acontecimentos fenoménicos, e consequentemente a autoridade da interpretação científica dos acontecimentos observáveis, faz uma enorme diferença no que diz respeito à validade que se atribui às narrativas bíblicas e, portanto, ao modo pelo qual entendemos o seu significado. Subitamente, uma vasta panoplia de feitos e acontecimentos divinos registrados na Escritura deixam de ser encarados como se tivessem realmente acontecido [...] Independentemente das crenças dos hebreus, nós acreditamos que as pessoas bíblicas viveram no mesmo contínuo causai de espaço e tempo em que nós vivemos, no qual nenhuma maravilha divina jamais aconteceu e nenhuma voz divina jamais se fez ouvir.35 Gilkey afirma que nenhuma maravilha divina aconteceu e que nenhuma voz divina jamais se fez ouvir; Macquarrie acrescenta que, nesta era pós-mitológica, não temos estômago para a ideia de “descontinuidades na ordem natural e intervenções sobrenaturais”. Ambos, consequentemente, excluem a possibilidade dos milagres, incluindo a possibilidade de uma ação divina especial pela qual Deus teria inspirado os autores humanos de modo que os seus escritos tenham constituído uma comunicação dele para nós, dotada de autoridade. Ora, está longe de ser fácil dizer exatamente o que é um milagre; esse tópico está ligado a questões profundas e espinhosas acerca do ocasionalismo, das leis da natureza, das potencialidades naturais e assim por diante. Contudo, não precisamos entrar em tudo isso. A ideia troeltschiana é que há certa maneira pela qual as coisas habitualmente acontecem; há certas regularidades, devidas ou não às leis da natureza, uPrinciples of Christian theology, 2. ed. (New York: Charles Scribner’s Sons, 1977), p. 248. 35“Cosmology, ontology, and the travail o f biblical language”, in: Owen C. Thomas, org., God’s activity in the world: the contemporary problem (Chico: Scholars Press, 1983), p. 31.

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e podemos confiar que Deus sempre atuará para não revogar essas regularidades. Claro que Deus podería, se quisesse, revogá-las (afinal, mesmo essas leis da natureza, se é que existem, são criações suas); mas podemos ter a certeza, de algum modo, que não o fará. O estudo troeltschiano da Escritura, consequentemente, partirá do pressuposto de que Deus nunca faz coisa alguma especialmente; em particular, nunca ressuscitou Jesus dos mortos nem inspirou os autores bíblicos de uma maneira especial. Mil questões se levantam quanto a essas regularidades: em que espécie de coisa estamos pensando? Suponha-se que nunca houve e nunca haverá uma combinação de três moedas de dez centavos e duas moedas de cinco centavos no meu bolso, ou um lago de água doce do tamanho do Lago Baikal rodeado quase exclusivamente por japoneses, ou montes com glaciares na Austrália que sejam contemporâneos de uma população holandesa, ou dinossauros e seres humanos ao mesmo tempo: são estas as espécies de regularidades em questão? E de presumir que não. Que dizer então do fato de nenhum dos Grandes Lagos haver sido ou poder vir a ser preenchido de uísque escocês? Ou de que nunca houve nem haverá uma esfera de ouro com um quilômetro e meio de diâmetro? E provável que não. E quanto ao fato de nunca ter havido uma esfera de plutônio com um quilômetro e meio de diâmetro? E provável que sim: uma esfera dessas iria conter uma quantidade de plutônio maior do que a massa crítica, por isso teria explodido. Como caracterizar, exatamente, as regularidades de que estamos falando? Isso é muito difícil. De qualquer modo, a ideia é que há regularidades; e entre elas estaria o fato de os seres humanos, depois de mortos, não voltarem à vida, de a água não se transformar em vinho, de os seres humanos não serem especialmente inspirados por Deus para que seja adequado encarar o que escrevem como um discurso divino e uma revelação divina. 2. C rítica h istó rico -b íb lica d u h em ia n a

Nem todos os que aceitam e praticam a CHB aceitam os princípios de Troeltsch e, para conhecer outro tipo de CHB, podemos pensar em uma importante sugestão feita por Pierre Duhem, um católico tão sério quanto também era um cientista sério. Ele foi acusado (pensava ele) por Abel Rey36 de permitir que as suas perspectivas religiosas e metafísicas cristãs se intrometessem inapropriadamente na sua Física. Duhem repudiou essa ideia afirmando que o seu cristianismo não entrava na sua Física de modo algum e que afortiori não entrava também inapropriadamente.37 Além disso, a maneira correta ou apropriada de fazer teoria física, afirmou, era a maneira que ele havia de fato seguido; a teoria física deve ser completamente independente de perspectivas ou compromissos religiosos ou metafísicos.

36“La philosophic scientifique de M. Duhem”, Revue de métaphysique et de morale 12 (Julho de 1904), p. 699ss. 37Veja o apêndice de Duhem, The aim and structure of physical theory, tradução de Philip P. Wiener e prefácio de Prince Louis de Broglie (Princeton: Princeton University Press, 1954; publicado originalmente cm 1906). O título do apêndice é “Physics o f a believer” e ele é uma reimpressão da resposta de Duhem a Rey; foi originalmente publicado nos Annales de philosophic chrétienne 1 (Outubro-Novembro de 1905), p. 44ss. e 133ss.

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Por que pensava ele isso? O que tinha contra a metafísica? Ele assume aqui uma posição característicamente iluminista: se pensamos que a metafísica intervém na física, afirma, a nossa estimativa do valor de uma teoria física vai depender da metafísica que adotarmos. A teoria física vai depender da metafísica de modo que a pessoa que não aceitar a metafísica envolvida em determinada teoria física não poderá aceitar também a teoria física. E o problema disso é que os desacordos comuns em metafísica entrarão na física, de modo que esta não poderá ser uma atividade na qual possamos todos trabalhar juntos, independentemente das nossas perspectivas metafísicas: Ora, postular que as teorias físicas dependam da metafísica não é certamente um caminho adequado para garantir que elas tenham o privilégio do consentimento universal. [...] Se a física teórica estiver subordinada à metafísica, as divisões que separam os diferentes sistemas metafísicos entrarão no domínio da física. Uma teoria física considerada satisfatória pelos sectários de uma escola metafísica será rejeitada pelos partidários de outra escola (p. 10). A tese principal de Duhem, penso, é que se um físico usar pressupostos metafísicos ou outras noções que não sejam aceitas por outros profissionais da área, e os usar de modo que quem não os aceite não possa aceitar também a sua teoria física, então, nessa mesma medida, o seu trabalho não poderá ser aceito pelos outros; nessa medida, além disso, a cooperação (que é tão importante em matéria de ciência) ficará comprometida. Ele propõe consequentemente uma concepção de ciência (da física, em particular) segundo a qual esta é independente da metafísica: Neguei às doutrinas metafísicas o direito de prestar testemunho a favor ou contra qualquer teoria da Física. [...] O que afirmei sobre o método de proceder da Física, ou sobre a natureza e o âmbito que temos de atribuir às suas teorias, não põe em dúvida de modo algum as doutrinas metafísicas nem as crenças religiosas de quem aceitar as minhas palavras. O crente e o descrente podem trabalhar de comum acordo para o progresso da ciência física, tal como tentei defini-la (p. 274-5). A proposta de Duhem, reduzida ao fundamental, é que os físicos não devem usar pressupostos religiosos ou metafísicos ao fazer física: essa é a via do caos e da cacofonía, pois cada seita beligerante faz as coisas à sua maneira. Se queremos obter aquele denominador comum e aquele diálogo genuíno que promovem o progresso na Física, devemos evitar pressupostos, metafísicos, religiosos ou outros, que não sejam aceitos por todos os participantes da discussão.38 38Claro que é preciso introduzir ressalvas, sutilezas e complicações nessa proposta. Para mim faz perfeito sentido continuar a trabalhar com uma hipótese depois de outros terem concluído que ela é um beco sem saída; a ciência se beneficiou muitas vezes desses desacordos. No entanto, nesses casos, há normalmente uma concordância mais profunda quanto ao que são os objetivos da ciência, que tipo de ciência deve ser considerado genuíno c quais poderão ser os metodos apropriados. Além disso, as disputas podem muitas vezes ser resolvidas com base nessa concordância mais profunda; c possível descobrir, de um modo que todos os disputantes reconheçam, que um dos membros da disputa tem razão.

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Essa é uma sugestão interessante. Apesar de o próprio Duhem não o fazer, pode obviamente ser aplicada muito além dos limites da teoria física: por exemplo, aos estudos da Escritura. Digamos, por exemplo, que os estudos duhemianos da Escritura não incluem pressupostos teológicos, religiosos ou metafísicos que não sejam aceitos por todas as pessoas da comunidade pertinente.39 Assim, o estudioso duhemiano da Escritura não pressuporia como óbvio que Deus é o autor principal da Bíblia ou que as linhas principais da narrativa cristã são de fato verdadeiras; essas idéias não são aceitas por todas as partes da discussão. Não iria pressupor que Jesus ressuscitou dos mortos ou que ocorreu qualquer outro milagre; nem sequer poderia pressupor que os milagres são possíveis, porque essa ideia é rejeitada por muitos interlocutores. Por outro lado, é claro, o estudo duhemiano da Escritura não pode pressupor que Cristo não ressuscitou dos mortos nem que nenhum milagre ocorreu, nem que os milagres são impossíveis. Nem pode usar os princípios de Troeltsch (tomados de maneira não banal); nem toda a gente os aceita. O estudo duhemiano da Escritura harmoniza-se com a sugestão de Sanders de que “o que precisamos é de evidências mais seguras, evidências com as quais todos possamos concordar” (p. 385). Harmoniza-se também com a fantasia de John Meier de um “conclave não papal” de estudiosos judeus, católicos, protestantes e agnósticos, fechados no porão da biblioteca da Escola de Teologia de Harvard até chegarem a um consenso quanto ao que os métodos históricos podem mostrar sobre a vida e a missão de Jesus.40 Os benefícios da CHB duhemiana são obviamente, entre outros, os benefícios que Duhem cita: pessoas com crenças religiosas e teológicas muitíssimo diferentes podem cooperar nessa iniciativa. Claro que isso não é razão para pensar que os resultados dos estudos duhemianos são mais provavelmente verdadeiros ou que estão mais próximos da verdade do que, digamos, o comentário bíblico tradicional; apesar disso, e apesar de em princípio o comentador bíblico tradicional e o estudioso troeltschiano da Bíblia poderem descobrir o que for posto a nu por meios duhemianos, é realmente provável que muito se venha a descobrir nessa iniciativa cooperativa que não seria descoberto por qualquer dos grupos trabalhando isoladamente. 3. C rítica h istó rico -b íb lica esp in o sista

As vertentes troeltschiana e duhemiana não esgotam a CHB; pode-se praticar a CHB sem aceitar qualquer uma delas. Poderiamos dispor-nos a seguir apenas a razão nos estudos da Escritura, mas pensar que os princípios troeltschianos, considerados em sua versão forte, que implicam que Deus nunca atua especialmente no mundo, não são, de ‫ ״‬Pode ser difícil especificar qual é a comunidade pertinente. Digamos que eu estude a Escritura em um seminário denominacional: qual é a minha comunidade pertinente? Os estudiosos da Escritura de qualquer tipo, de todo o mundo? Os estudiosos da Escritura da minha própria denominação? A academia ocidental? As pessoas, acadêmicas ou não, da minha denominação? Os cristãos em geral? O primeiro ponto a observar aqui é que o nosso estudioso da Escritura pertence claramente a várias comunidades diferentes c pode, por isso, estar envolvido em diversos projetos acadêmicos. 4f!/7 marginalJew: rethinking the historicalJesus, vol. 1, p. 1-2.

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fato, produtos da razão. A razão por si, diriamos, não pode mostrar com certeza que Deus nunca atua especialmente no mundo ou que nunca ocorreram milagres. Sendo assim, não seriamos troeltschianos. Todavia, poderiamos rejeitar também o duhemianismo: poderiamos pensar que de fato há produtos da razão que não são aceitos por todas as partes envolvidas no projeto do estudo da Escritura. (Os produtos da razão estão, de fato, abertos a todos; contudo, há fatores de vários tipos que podem às vezes impedir uma pessoa de ver a verdade de algum desses produtos.) Poderiamos então usar esses produtos da razão ao fazer os nossos estudos da Escritura, empregando assim pressupostos que não são aceitos por todas as pessoas envolvidas no projeto e rejeitando, dessa maneira, o duhemianismo. Podemos consequentemente propor-nos a seguir apenas a razão, mas não sermos troeltschianos nem duhemianos. Suponha-se que usamos o termo “CHB espinosista”41*para denotar este último tipo de CHB. O espinosista concorda com o troeltschiano e o duhemiano: nenhum pressuposto ou crença teológicos deve ser usado na CHB. Difere do troeltschiano porque tem a mesma atitude para com os princípios troeltschianos: também estes não são produtos da razão e, consequentemente, não devem ser usados na CHB. E difere do duhemiano porque sustenta que há produtos da razão que não são aceitos por todas as partes no projeto de estudo da Escritura; propõe-se por isso a usar algumas proposições ou crenças que os duhemianos rejeitam. Um último ponto: é claramente inexato supor que todo estudioso da Escritura pertence sem sobreposições a uma dessas quatro categorias. Nem todas as obras de estudos bíblicos são exemplos claros de comentário bíblico tradicional ou de CHB. Nem todas as obras de CHB são exemplos claros de CHB troeltschiana, duhemiana ou espinosista. Há inúmeras soluções de meio-termo, várias hesitações entre duas opiniões, muitos que são parcialmente uma coisa e parcialmente outra e outros ainda que nunca nem sequer viram claramente que essas categorias existem. E improvável que um estudioso real da Escritura tenha passado muito tempo pensando nos fundamentos epistemológicos da disciplina e é provável que vacile entre uma ou mais das categorias que mencionei.

B. Tensões com o cristianismo tradicional A história vem registrando uma tensão substancial entre a CHB e os cristãos tradicionais. E o caso de David Strauss, em 1835: “Ou melhor, para falarmos com sinceridade, aquilo que já foi história sagrada para o crente cristão é, para a porção esclarecida dos nossos contemporâneos, mera fábula”. Claro que os fiéis não esclarecidos não viviam em uma obscuridade tal que não se davam conta dessa característica da crítica bíblica. Escrevendo dez anos antes da publicação do livro de Strauss, qucixa-sc William Pringle: “Na Alemanha, a crítica bíblica é quase uma ocupação nacional. [...] Infelizmente, [os críticos] não fizeram senão sustentar os mais perigosos erros, opondo-se a toda a 41Segundo Espinosa, como vimos, “A regra da interpretação [bíblica] deve ser nada mais do que a luz natural da razão” (p. 383).

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afirmação inspirada que o espírito do homem é incapaz de compreender completamente, destituindo a religião do seu caráter espiritual e celeste e abalando todo o edifício da verdade revelada”.42 Talvez algumas das queixas de Pringle sejam as seguintes. Primeiro, quem faz CHB tende a tratar a Bíblia como um conjunto de livros separados e não como uma comunicação unificada de Deus. Assim, tende a rejeitar a ideia de que há passagens do Antigo Testamento que fazem referência a Jesus Cristo ou a acontecimentos da sua vida: "Os estudiosos críticos afastam axiomáticamente a presciencia como explicação. Em vez de pensar que o Antigo Testamento prevê acontecimentos da vida de Jesus, os estudiosos críticos do Novo Testamento dizem que cada autor do Evangelho tentou se aproveitar de passagens do Antigo Testamento para fortalecer a sua defesa do caráter messiânico e dominical de Jesus ou da sua igreja”.43 De modo mais geral, afirma Brevard Childs: “Desde há muitas décadas que a maneira habitual de iniciar os estudantes da Bíblia é desmontar lentamente todas as doutrinas tradicionais da igreja sobre a Escritura por meio da aplicação dos ácidos da crítica”.44 Segundo, nos passos de Ernst Troeltsch, quem faz CHB tende a desconsiderar as narrativas de milagres, tomando como axiomático que os milagres não acontecem realmente e não aconteceram ou, no mínimo, insistindo que o método apropriado da CHB não pode admitir milagres, seja como premissas, seja como conclusões. Talvez Jesus tenha curado algumas perturbações psicossomáticas, mas nada que a ciência médica moderna não possa explicar. Muitos dos que usam esse método propõem que Jesus nunca se viu como divino, como o Messias (ou um Messias) ou como alguém capaz de perdoar pecados45 — quanto mais como alguém que morre e depois ressuscita dos mortos. “Os investigadores do Jesus Histórico”, afirma Luke Timothy Johnson, “insistem que o ‘Jesus real’ tem de ser encontrado nos fatos da sua vida antes da sua morte. A ressurreição, quando chega a ser levada em conta, é vista como uma experiência visionária ou como continuação de um ‘processo de legitimação’que começara antes da morte de Jesus. Explícita ou não, a premissa operativa é que não existe nenhum ‘Jesus real’ depois da sua morte”.46 Qiiem segue esses métodos cria, às vezes, explicações verdadeiramente fantásticas — e extraordinariamente diferentes do entendimento cristão tradicional. Segundo 43Prefácio do tradutor, Calvins commentaries, tradução de William Pringle (Grand Rapids: Baker Book House, 1979), vol. 16,p.vi. O prefácio de Pringle está datado de Auchterarder, 4 de Janeiro de 1845. 43Levenson, The Hebrew Bible, the Old Testament, and historical criticism, p. 9. Claro que a presciència não está, de modo algum, em causa: a questão é, na verdade, se a Escritura tem um autor principal, nomeadamente Deus. Se tiver, não é necessário nenhuma presciencia de um autor humano para que uma passagem de dado momento do tempo se refira a algo que acontece muito depois.Tudo o que é necessário é a onisciência de Deus. 44The New Testament as canon: an introduction (Valley Forge: Trinity Press International, 1994), p. xvii. 45“A crise nasce do fato atualmente admitido de bom grado por teólogos e exegetas tanto protestantes quanto católicos: que, à medida que os dados históricos nos permitem discernir,Jesus de Nazaré não pensava que era divino [e] não preferiu quaisquer das afirmações messiânicas que o Novo Testamento lhe atribui” (Tilomas Sheehan, The first coming [New York: Random House, 1986], p. 9). 46The realJesus, p. 144.

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Barbara Thiering em Jesus and the riddle o f the Dead Sea scrollsf por exemplo, Jesus foi sepultado em uma caverna; não morreu realmente e foi reanimado pelo feiticeiro Simão Mago; depois, casou-se com Maria Madalena, arranjou onde morar, teve três filhos, divorciou-se e acabou por morrer em Roma. Conforme M orton Smith, Jesus era homossexual e ilusionista.4748 Para o estudioso alemão da Escritura Gerd Lüdemann, a ressurreição é "uma fórmula vazia que deve ser rejeitada por qualquer pessoa que tenha uma cosmovisão científica”.49 G. A. Wells chega até a afirmar que o nosso nome “Jesus”, tal como aparece na Bíblia, é vazio; como “Papai Noel”, não remonta seja a quem for nem denota pessoa alguma.50512John Allegro aparentemente pensa que a pessoa de Jesus de Nazaré jamais existiu; o cristianismo começou como um embuste concebido para enganar os romanos e preservar o culto de certo cogumelo alucinógeno (Amanita muscaria). Apesar disso, o nome “Cristo” não é vazio: é, na verdade, um dos nomes desse cogumelo.s1 Uma afirmação igualmente sedutora é que Jesus, apesar de não ser meramente lendário nem ser efetivamente um cogumelo, foi, de fato, um ateu, o primeiro ateu cristão.32 E mesmo que ponhamos de lado os radicais lunáticos, Van Harvey tem razão: “No que diz respeito aos historiadores bíblicos [...] dificilmente encontramos uma crença popular tradicional acerca de Jesus que não seja encarada com considerável ceticismo”.53 IV . P

o r q u e a m a i o r p a r t e d o s c r is t ã o s n ã o se p r e o c u p a ?

Assim, a CHB não tem em geral sido simpática à crença cristã tradicional; dificilmente tem sido encorajadora para os fiéis. Estes, contudo, parecem relativamente despreocupados. Consideram o comentário bíblico tradicional muito interessante e importante, mas parece que as crenças e atitudes da CHB não os afetam, apesar de serem dominantes nos principais seminários. Segundo Van Harvey, “Apesar de décadas de investigação, a pessoa comum tende a pensar na vida de Jesus nos mesmos termos, em grande parte, dos cristãos de há três séculos”.54 Harvey considera isso enigmático: “Por que, em uma cultura tão dominada por especialistas em todas as áreas, a opinião dos historiadores do Novo Testamento tem tido tão pouca influência sobre o público?”55 Será que os cristãos tradicionais estão apenas ignorando evidências inconvenientes? Nas páginas seguintes, tentarei responder a essas perguntas. Claro que a CHB tem contribuído imensamente 47San Francisco: Harper San Francisco, 1992. *Jesus the magician (New York: Harper and Row, 1978). 49What really happened toJesus: a historical approach to the resurrection (Louisville: Westminster/John Knox Press, 1995). 50“The historicity o f Jesus”, in: R. Joseph Hoffman; Gerald A. Larue, orgs .,Jesus in history and myth (Buffalo: Prometheus Books, 1986), p. 27ss. 51The sacred mushroom and the cross (Garden City: Doubleday, 1970). 52Sheehan, Thefirst coming. 53NTS, p. 193. 54NTS, p. 194. 55Ibidem.

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para o nosso conhecimento da Bíblia, em particular no que diz respeito às circunstâncias e condições da sua redação; proporcionou novas alternativas de entendimento dos autores humanos, e isso nos deu também idéias novas sobre como entender o Autor divino. Contudo, há de fato excelentes razões para a tendência de ignorar esse “considerável ceticismo”de que fala Harvey. Não pretendo afirmar que a pessoa comum o ignora porque tem essas razões claramente em vista; não as tem, certamente. Afirmo apenas que essas são boas razões para um cristão tradicional ignorar os resultados deflacionários da CHB. Quais seriam essas razões? Uma delas poderia ser a de que os estudiosos céticos da Bíblia discordam imensamente entre eles.56 Há também o fato de que muitos dos argumentos propostos parecem inconclusivos, na melhor das hipóteses.57Talvez o vício endêmico da CHB, ou pelo menos a sua tentação perene, seja o que poderiamos chamar “a falácia da certeza insinuante”, cometida por quem ignora o princípio das probabilidades decrescentes. Para cometer essa falácia, começamos reparando que uma proposição A é provável (tem uma probabilidade de .9, digamos) com respeito ao nosso conhecimento de fundo k; anexamos, assim, A a k. Então, notamos que uma proposição B é provável com respeito a kScA; consequentemente acrescentamo-la também a k. Então reparamos que C tem uma probabilidade de .9 com respeito a A&cBtkk, e a anexamos também a k; acontece o mesmo (pensamos nós) com D, E, F e G. Declaramos então que A&cB&cC&cD òlE&cF ôcG é altamente provável com respeito a k, os nossos dados ou informações de fundo. No entanto, o fato é que (como sabemos pelo cálculo de probabilidades) essas probabilidades devem ser multiplicadas: de modo que, de fato, a probabilidade de AScB&cC&ÜD&cE&cF&cG é .9 à sétima potência, ou seja, menos de .5!58 Procuremos algumas razões ou argumentos para preferir os resultados da CHB aos do comentário tradicional. Por que haveriamos de supor que os primeiros estão mais próximos da verdade que os últimos? Os princípios deTroeltsch são aqui particularmente importantes. Tal como a comunidade interpretativa da CHB os entende, tais princípios excluem a possibilidade de uma ação divina especial, incluindo a inspiração divina

56Esse desacordo é especialmente bem documentado por Stephen Evans, The historical Christ and the Jesus of faith, p. 322ss. 57Por exemplo, John Dominick Crosson argumenta que o corpo de Jesus foi comido por cães; logo, ele não ressuscitou dos mortos. Quais são as evidências a favor da proposição de que o seu corpo fo i comido por cães? Apenas que isso era o que habitualmcnte acontecia com os criminosos executados por crucificação. Mas, nesse caso, Crosson poderia ter apresentado um argumento muitíssimo mais conciso: Jesus não ressuscitou dos mortos porque a maior parte das pessoas não faz isso. 5“Eleonore Stump critica outra boa ilustração desse modo de proceder no cap. 3, “Historical biblical studies: practices”, do seu The knowledge of suffering (inédito). Em “Biblical criticism and the resurrection” (inédito), William Alston sugere a sua versão da falácia da certeza insinuante e menciona também o uso muito difundido do argumento do silencio que, digamos, promove a ausencia da asserção de/> à categoria de asserção de nãop (por exemplo,Tilomas Sheehan diz que, segundo Mateus, “Ele [Cristo] não ascende ao céu" [7hefirst coming, p. 97], dando como referencia Mateus 28.16-20. Essa passagem, contudo, não afirma que Jesus não ascendeu ao céu; simplesmente não diz que ascendeu). Stump e Alston argumentam (de modo muito convincente, na minha opinião) que uma boa parte da CHB negativa não satisfaz os cânones comuns do estudo acadêmico; argumentarei que, mesmo que esse estudo fosse impecável, os pressupostos epistemológicos que mencionei acima tornam dúbia a pertinência desse trabalho para a crença cristã tradicional.

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especial da Escritura e a ocorrência de milagres. Como Gilkey afirma, “Subitamente, uma vasta panoplia de feitos e acontecimentos divinos registrados na Escritura deixam de ser considerados como se tivessem realmente acontecido”. Muitos teólogos acadêmicos e estudiosos da Escritura acreditam aparentemente que a CHB troeltschiana é uma exigência da etiqueta; ela é muitas vezes encarada como o único tipo intelectualmente respeitável de estudo da Escritura ou o único tipo que pode reivindicar para si o manto da ciência. (E muitos dos que chegam a conclusões relativamente tradicionais nos estudos da Escritura prestam pelo menos uma homenagem verbal ao ideal troeltschiano, sentindo, algo confusamente, que essa é a maneira de proceder epistemicamente respeitável ou privilegiada.) Apesar disso, por que pensar que os estudos da Escritura devem proceder desta maneira específica — opondo-se tanto ao comentário bíblico tradicional como aos tipos de CHB que não aceitam os princípios de Troeltsch? Há razões ou argumentos a favor desses princípios?

A. Força maior Se há, estão extraordinariamente bem escondidos. Uma sugestão comum, contudo, é uma espécie de apelo à força maior: simplesmente não conseguimos evitá-lo. Dada a nossa posição histórica, nada mais podemos fazer; estamos todos sob o domínio de forças históricas que não controlamos e que nos ultrapassam a todos. Essa reação é tipificada por quem (como Harvey, Macquarrie e Gilkey) afirma que atualmente, dada a nossa situação cultural, simplesmente não temos outra opção. Há forças históricas poderosas que nos impõem esses modos de pensar; queiramos ou não, somos títeres desses poderosos ventos de doutrina; não conseguimos evitá-lo. “O nexo causai no espaço e no tempo que a ciência e filosofia do Iluminismo introduziram no espírito ocidental [...] é também um pressuposto dos teólogos e estudiosos modernos; dado que participam, tanto intelectual como existencialmente, do mundo moderno da ciência, dificilmente podem fazer outra coisa”, afirma Gilkey (p. 397); outro exemplo é a observação famosa de Bultmann de que “é impossível usar a luz elétrica e o telégrafo sem fio, e lançar mão das descobertas médicas e cirúrgicas modernas, e ao mesmo tempo acreditar no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento”.59 Contudo, não será esta perspectiva — que estamos todos obrigados pelas forças históricas modernas a ter o ponto de vista em questão — historicamente ingênua? Primeiro, iHKerygma and myth (New York; Harper and Row, 1961), p. 5. Compare-se com o comentário mais recente de Marcus Borg (alto dignitário do Seminário Jesus): “cm larga medida, a característica que define os estudos bíblicos do período moderno é a tentativa de entender a Escritura sem referência a outro mundo, porque neste período o mundo visível do espaço e do tempo é o mundo que entendemos como ‘rear‫“( ״‬Root images and tile way we see”, in; Fragments of infinity [Dorset/Lindfield: s.n., 1991], p. 38; citado por Huston Smith, “Doing theology in the global village", Religious Studies and Theology, 13-14, n. 2 e 3 [Dezembro de 1995], p. 12). Por outro lado, repare-se no caso de Abraham Kuyper, To be near unto God, tradução para o inglés de John Hendrik de Vries (Grand Rapids; Eerdmans, 1918); escrevendo não muito depois da invenção do “telégrafo sem fio", via-0 (junto com o telefone) não como um obstáculo à fé tradicional, mas como uma ajuda para a fé: “Chega-nos agora isso para ajudar a nossa fraca fé” (p. 50); e “Há agora um telégrafo sem fios que, no seu maravilhoso funcionamento, tornou-se um lindo símbolo das nossas preces. Proximidade com Deus sem intermediários” (p. 341).

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por que pensar que andamos todos a par e passo ao longo da história, todos a cada momento e forçosamente com as mesmas perspectivas e pressupostos? E claro que não fazemos isso. O mundo intelectual moderno é muito mais como uma corrida de cavalos (ou talvez uma corrida de destruição de carros) do que um desfile triunfal,60 é mais parecido com um campo de batalha do que com uma festa de angariação de fundos do Partido Democrata, em que se pode pressupor que todos apoiam o mesmo candidato. Atualmente, por exemplo, há muitos como Macquarrie, Harvey e Gilkey, que aceitam a perspectiva semideísta de que Deus (se é que tal pessoa existe) não podería atuar milagrosamente na história ou, se pudesse, não o faria. Claro que essa não é a perspectiva de quase todas as pessoas; centenas de milhões a rejeitariam. Há muito mais pessoas a rejeitá-la do que a aceitá-la. (Assim, mesmo que Gilkey e os outros tenham razão quanto à dança inevitável da história, estariam errados quanto à noção elitista de que o que eles fazem é o passo atual dessa dança.) O caráter completamente óbvio desse fato sugere uma segunda interpretação desta justificação própria da CHB troeltschiana. Talvez o que os apologistas realmente queiram dizer não é que todo mundo atualmente aceita esse semideísmo (isso é trivialmente falso); trata-se sim da ideia de que todo mundo que éculto o faz. Todas as pessoas bem instruídas que leram o seu Kant e o seu Hume (e o seu Troeltsch) e refletiram no significado da telegrafia sem fio e da luz elétrica sabem essas coisas; quanto ao resto da humanidade (incluindo, penso, quem leu o seu Kant e o seu Hume, mas não se deixou impressionar), o problema dela é a simples ignorância. Talvez as pessoas geralmente não marchem em uníssono ao longo da história. Apesar disso, as pessoas cultas e sábias o fazem; e atualmente todos os que são cultos e sábios, ou quase todos, rejeitam a ação divina especial. Mesmo que nos restrinjamos de maneira chauvinista aos ocidentais instruídos, isso é ainda duvidoso in excelsis. “A concepção tradicional de milagre”, diz Macquarrie, “é irreconciliável com o nosso entendimento moderno tanto da ciência como da história”: este “nosso”, aqui, refere-se a quem? A quem foi à universidade, é bem instruído, sabe pelo menos um pouco de ciência e pensou no impacto dessas questões na possibilidade dos milagres? Nesse caso, a tese é uma vez mais brutalmente falsa. Muitas pessoas bem instruídas (incluindo alguns teólogos) entendem a ciência e a história de um modo totalmente compatível tanto com a possibilidade dos milagres como com a sua efetiva ocorrência. Muitos físicos e engenheiros, por exemplo, entendem “a luz elétrica e o telégrafo sem fio” incomparavelmente melhor do que Bultmann e os seus seguidores contemporâneos, mas mesmo assim têm precisamente aquelas crenças do Novo Testamento que Bultmann considera incompatíveis com o uso da luz elétrica e do rádio. Há um grande número de contemporâneos instruídos (alguns dos quais até com doutorado!) que acreditam que Jesus ressuscitou literal e realmente dos mortos, que Deus faz milagres no mundo atual e até que há demônios e espíritos ativos no mundo contemporâneo. Quanto ao fato histórico, vários contemporâneos, mesmo intelectuais, “ Para adaptar uma observação de Jerry Fodor.

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têm um bom conhecimento da ciência, não veem qualquer problema em fazer ciência e também acreditam em milagres, nos anjos, na ressurreição de Cristo, em tudo isso. Uma vez mais, contudo, Macquarrie e os outros devem saber disso tão bem quanto qualquer outra pessoa; assim, o que ele e os seus amigos realmente querem dizer? Como podem fazer afirmações sobre aquilo em que “nós”61 — nós que usamos os produtos da ciência e sabemos um pouco acerca dela — podemos e não podemos acreditar? Como podem excluir ou ignorar com augusta indiferença os milhares, na verdade, milhões, de cristãos contemporâneos que não pensam como eles? A resposta tem de ser que eles pensam que esses cristãos não contam. O que querem realmente dizer, receio bem, é que eles e os seus amigos pensam dessa maneira e qualquer pessoa que objete a eles é tão ignorante que pode, com toda a propriedade, ser ignorada. Entretanto, isso é na melhor das hipóteses um pouco frágil como razão para aceitar a perspectiva troeltschiana; parece mais uma desagradável manifestaçãozinha de arrogância. Nem se sai melhor por se esconder na tese de que, de algum modo, não conseguimos evitá-lo, não conseguimos deixar de pensar assim. Claro que é possível que Gilkey e os seus amigos não consigam evitá-lo; nesse caso, dificilmente se lhes pode imputar a culpa de aceitar a perspectiva em questão.62 Essa incapacidade da parte deles, contudo, não torna recomendáveis os princípios de Troeltsch. Assim, isso é, na melhor das hipóteses, uma razão ruim para pensarmos que os estudos bíblicos sérios devem ser troeltschianos. Haverá uma razão melhor? Uma segunda sugestão, talvez ligada ao apelo à incapacidade para fazer as coisas de outro modo, é dada pela ideia de que a própria prática da ciência pressupõe a rejeição da ideia de milagres ou da ação divina especial no mundo. “A ciência parte do pressuposto de que quaisquer acontecimentos que ocorram no mundo podem ser explicados da perspectiva de outros acontecimentos que pertencem também ao mundo”, diz Macquarrie; talvez ele pretenda afirmar que a própria prática da ciência exige a rejeição da ideia (p. ex.) de que Deus ressuscitou alguém dos mortos. Claro que a forma argumentativa Se X fosse verdadeira, seria inconveniente para a ciência; logo, X é falsa tem um poder de convencimento apenas moderado, na melhor das hipóteses. Não é simplesmente um dado que o Senhor tenha organizado o Universo para conforto e conveniência da Academia Nacional das Ciências. Pensar de outro modo é ser como o bêbado que insistia em procurar as chaves do carro sob o poste de luz na rua, com base na ideia de que ali era possível enxergar melhor (de fato, iria até além do bêbado: seria insistir que, porque no escuro, seria difícil encontrá-las, as chaves então deveríam estar sob o poste de luz). 61Poderiamos chamar a isso o “nós”preventivo: quem não concorda conosco no ponto cm questão vive (cm comparação conosco) em tamanho obscurantismo que podemos falar, sem medo de errar, como se tais pessoas nem sequer existissem. E claro que a mera reivindicação de realeza não basta para garanti-la. 62Alguns, contudo, veríam aqui pouco mais do que um esforço para ganhar posição e respeitabilidade cm uma academia largamente secular, adotando uma postura que c, digamos, mais católica que o papa.

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No entanto, que razão havería para até mesmo cogitar que é preciso abraçar esse semideísmo para fazer ciência?63 Muitos físicos contemporâneos, por exemplo, acreditam que Jesus ressuscitou dos mortos; essa crença não parece prejudicar muito a sua física. Claro, trata-se de Física; o problema talvez diga respeito (como Bultmann sugere) à medicina. Será que não poderiamos fazer pesquisas médicas ou prescrever medicamentos se pensássemos que Deus já fez milagres e poderá até, às vezes, fazer alguns atualmente? Explicitar essa ideia é refutá-la; não há a menor das razões para que eu não possa sensatamente acreditar que Deus ressuscitou Jesus dos mortos e entregar-me ao mesmo tempo à investigação médica sobre, digamos, a síndrome de Usher ou a esclerose múltipla, ou as maneiras de prevenir a devastação da trombose. Qual seria o problema? Que é sempre possível a Deus fazer algo diferente, estragando assim o meu experimento? Ora, isso de fato é possível: Deus é onipotente. (Ou temos aqui um novo argumento antiteísta? Se Deus existe, ele podería estragar o meu experimento; nada pode estragar o meu experimento, logo...) Sem dúvida que se eu pensasse que Deus frequentemente ou habitualmente age de maneira idiossincrática, de modo que não havería realmente nada muito importante a descobrir quanto a regularidades, talvez eu não pudesse sensatamente entregar-me à investigação científica: essa pressupõe uma certa regularidade, previsibilidade, estabilidade no mundo. Todavia, essa é uma questão inteiramente diferente. O que preciso pressupor para fazer ciência é apenas que habitualmente e na maior parte do tempo essas regularidades ocorrem.64Também essa razão, pois, é monumentalmente insuficiente para sustentar que estamos de algum modo obrigados a aceitar os princípios subjacentes aos estudos bíblicos troeltschianos. E, portanto, difícil encontrar qualquer razão para supor que os estudos troeltschianos da Escritura são de algum modo uma exigência da etiqueta acadêmica ou que a história de algum modo nos obriga a aceitá-los.

B. Um imperativo moral? Van Harvey propõe outra razão para nos entregarmos aos estudos troeltschianos, preferindo-os ao comentário bíblico tradicional;65 em termos gerais, é uma razão moral ou ética. Começa66 se referindo a um episódio fascinante da história intelectual vitoriana,67 no qual6 6·,Posso ser conciso aqui; William Alston já propôs um argumento convincente a favor da tese que defendo — a saber, que podemos perfeitamente bem fazer ciência mesmo pensando que Deus fez milagres e por vezes os faz ainda. Veja o seu “Divine action: shadow or substance?”, in: Thomas F. Tracy, org., The God who acts: philosophical and theological explorations (University Park: Pennsylvania State University Press, 1994), p. 4 9 5 0 ‫־‬. '",Como Alston argumenta. 65Pensó que o argumento visa sustentar a CHB troeltschiana; podería também ser usado, contudo, para sustentar a CHB espinosista ou (menos plausivelmente) a duhcmiana. 6',NTS, p. 194ss.; uma apresentação mais completa das suas perspectivas (ainda que mais antiga) encontra-se no seu The historian and the believer (veja nota 27). 67Descrito com perspicácia e verve na monografia de James C. Livingston, 7he ethics of belief: an essay on the Victorian religious conscience, in: Studies in Religion (Tallahassee: Scholars Press, 1978), da Academia Americana da Religião. Agradeço a Martin Cook por me chamar a atenção para essa monografia.

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alguns intelectuais se viram embrenhados em um problema de integridade intelectual. Na opinião de Harvey, eles “acreditavam que era moralmente repreensível insistir que estas teses [as teses cristãs acerca das atividades e doutrinas de Jesus] eram verdadeiras por fé ao mesmo tempo que argumentavam que eram objetos legítimos de investigação histórica” (NTS, p. 195). Ora, esse relato do problema enfrentado por esses intelectuais parece-me tendencioso — tendencioso porque dá a impressão de que aqueles intelectuais estavam sancionando, com infalível presciência, precisamente a posição que o próprio Harvey se propõe a defender. O fato é que a posição deles, penso, era a um tempo menos idiossincrática e muitíssimo mais plausível. Afinal, por que haveria alguém de pensar que seria imoral acreditar por fé no que pode também ser investigado por outras fontes de crença ou conhecimento? Estou curioso quanto ao seu paradeiro na última sexta-feira à noite: esteve você talvez no Bar Linebacker’s? Talvez eu possa descobrir de três maneiras diferentes: perguntando a você, perguntando à sua mulher e procurando as suas impressões digitais no bar (felizmente, o bar nunca é lavado). Havería algo de imoral em usar um desses métodos quando, de fato, os outros estão disponíveis? Não é fácil de acreditar em tal coisa. Não era apenas isso que preocupava os vitorianos. Caso tivessem certeza de que a fé e a investigação histórica eram ambas avenidas confiáveis em direção às verdades em questão, não teriam de modo algum considerado imoral acreditar com base em uma delas em vez da outra ou em ambas. O problema deles era mais profundo. O que os preocupava era (entre outros assuntos) os estudos alemães da Escritura, acerca dos quais sabiam relativamente pouco; sabiam, no entanto, o suficiente para pensar (correta ou incorretamente) que constituíam uma séria ameaça às crenças cristãs que, para muitos deles, já eram bastante precárias. Suspeitavam ou temiam que esses estudos da Escritura poderíam mostrar, mostrariam ou já haviam mostrado que os elementos centrais da fé cristã eram pura e simplesmente falsos. Preocupava-os também o que muitos consideravam a tendência antissobrenaturalista e antiteísta da ciência: na era da máquina a vapor e do transatlântico, podería alguém acreditar realmente no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento? Preocupavaos o advento do darwinismo, que a muitos parecia contradizer a imagem cristã das origens humanas. Estavam convencidos, nos passos de Locke e de toda a tradição fundacionista clássica, que a maneira correta de ter crenças a respeito desses tópicos era seguir as evidências (proposicionais) até onde elas os conduzissem; e preocupava-os profundamente aonde elas estavam, de fato, levando-os. O que os preocupava, em suma, era uma diversidade de fatores, parecendo todos sugerir que a crença cristã tradicional não passava de uma bela narrativa: inspiradora, edificante, talvez necessária para a moralidade pública, mas apenas uma narrativa. Dada a nossa maturidade científica, temiam que as pessoas informadas teriam infelizmente de abandonar a crença cristã tradicional, talvez com um olhar nostálgico para trás (especialmente em ocasiões cerimoniais). Por outro lado, muitos deles ansiavam também pelo conforto e segurança da crença cristã séria; perdê-la era como ser expulso da casa do nosso Pai, sendo enviado para um mundo hostil e indiferente. E é claro que muitos desses vitorianos tinham opiniões morais fortes e um sentido moral muito desenvolvido. Pensavam que era uma fraqueza,

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uma falta de princípios, uma covardia, recusar-se a enfrentar esses espectros, escondendo-os e entregando-os ao autoengano e à ambiguidade mental. Tudo isso, pensavam, era degradante para uma pessoa séria e moralmente correta. Abominavam a fraqueza e a frouxidão moral de uma postura em que suspeitamos da verdade amarga, mas nos recusamos a investigar a questão, preferindo escondê-la de nós mesmos, tendo talvez a esperança de que ela acabará de algum modo por desaparecer. Muitos pensavam que era isso precisamente que alguns clérigos e outros educadores estavam fazendo, e desprezavam-nos por isso. Era muitíssimo melhor enfrentar a triste verdade com honestidade intelectual, coragem viril e estoicismo. Não se tratava apenas, pois, de pensar que era repreensível acreditar por fé no que se pode também abordar pela razão ou pela investigação histórica. Tratava-se na verdade da suspeita e do profundo receio de que esta última (junto com os outros fatores que mencionei) viesse a abalar a primeira. E eles desdenhavam e detestavam a atitude voluntária de enterrar a cabeça na areia, recusando-nos a enfrentar os fatos por timidez, medo ou desejo de conforto. São razões como essas que explicam o fervor moral (na verdade, estridente) do muito coligido “A Ética da Crença”, de W. K. Clifford.68 Como quer que tenham se passado as coisas com respeito aos vitorianos, Harvey propõe a seguinte pérola de dogma moral: O hiato que separa o crente cristão conservador do estudioso do Novo Testamento pode ser visto como um conflito entre duas éticas da crença, antitéticas entre si. [...] Os estudos do Novo Testamento são atualmente tão especializados e exigem tanta preparação que o leigo simplesmente não tem direito a um juízo relativo à verdade ou falsidade de certas afirmações históricas. Como o crente cristão conservador é um leigo sem conhecimento dos estudos do Novo Testamento, simplesmente não tem direito a certas crenças históricas. Assim como o leigo médio dificilmente tem condições de fazer um juízo informado acerca da sétima carta de Platão, da relação de Montezuma com Cortez ou da autoria da Doação de Constantino, também o leigo médio não tem direito a uma opinião sobre a autoria do Quarto Evangelho ou da integridade dos sinópticos (NTS, p. 197). “O leigo simplesmente não tem direito a um juízo relativo à verdade ou falsidade de certas afirmações históricas”: palavras poderosas! No passado, os padres e ministros, muitas vezes os únicos membros educados das suas congregações, exerciam uma certa liderança intelectual e espiritual com a esperança de que o rebanho passasse a ver, apreciar e acreditar na verdade. Do ponto de vista de Harvey, o rebanho nem sequer tem o direito a ter uma opinião sobre esses pontos — nem sequer uma opinião fornecida pelos especialistas! Harvey queixa-se (p. 193) de que muitos estudantes não parecem receptivos aos resultados dos estudos da Escritura. Se ele estiver certo, contudo, os estudantes não tem6 6‫״‬Publicado originalmente em lhe Contemporary Review 29 (1877); reimpresso cm Clifford, Lectures and essays (London: Macmillan, 1879), p. 345ss. [edição em português: Λ ética da crença (Lisboa: Bizãncio, 2010)].

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direito a acreditar nos resultados dos estudos da Escritura; não fazem consequentemente senão o seu simples dever ao recusar-se a acreditar neles. Fica-se com a esperança de que Harvey, ao dar aulas, não exponha seu ponto de vista sobre essas matérias de uma maneira atraente e cativante; afinal, se o fizer, alguns dos seus estudantes poderiam acreditar nelas, caso em que estariam pecando e ele próprio estaria cometendo uma ofensa no sentido paulino (Romanos 14, para não falar de ICoríntios 8.9). Suponha-se que desviemos com tristeza o nosso olhar desse elitismo endoidecido: por que Harvey pensa que só o historiador tem direito a uma opinião sobre essas matérias? Evidentemente, porque ele pensa que a única maneira de obter informações precisas e confiáveis sobre elas é por meio dos estudos troeltschianos. E essa opinião, como é óbvio, pressupõe a opinião filosófica e teológica de que não há nenhuma outra avenida epistêmica para essas matérias; pressupõe que, por exemplo, a fé (e a instigação interna do Espírito Santo) não é uma fonte de crença ou conhecimento avalizada desses tópicos. Se ela fosse uma fonte de crença avalizada, e se o “leigo médio” tivesse acesso a ela, é de presumir que, apoiado nessa base, ele nada faria de errado ao sustentar perspectivas sobre essas matérias. “Assim como o leigo médio dificilmente tem condições de fazer um juízo informado acerca da sétima carta de Platão, da relação de Montezuma com Cortez ou da autoria da Doação de Constantino, também o leigo médio não tem direito a uma opinião sobre a autoria do Quarto Evangelho ou da integridade dos sinópticos”, diz Harvey. A única maneira de determinar a verdade acerca da sétima carta de Platão é por meio da investigação histórica comum; o mesmo acontece, pressupõe Harvey, com respeito a questões acerca da vida e do ministério de Cristo, se ele ressuscitou dos mortos, se se considerava um messias etc. Na base dessa tese moral está, na realidade, um juízo filosófico-teológico: que a crença cristã tradicional está completamente errada ao considerar que a fé é, de fato, uma fonte confiável de crença verdadeira e avalizada quanto a esses tópicos.69 Está claro que essa perspectiva não resulta de quaisquer estudos históricos, troeltschianos ou não, nem se apoia em argumentos que sejam convincentes para quem não concorde desde logo com Harvey — aliás, não se apoia em quaisquer argumentos. A perspectiva de Harvey é antes um pressuposto, uma prescrição metodológica dos estudos críticos troeltschianos e uma proscrição do comentário bíblico tradicional. De modo que dificilmente se pode considerar que seja uma boa razão independente para preferir os primeiros ao segundo. O que temos são posições filosófico-teológicas diferentes que ditam maneiras distintas de estudar a Escritura. Uma maneira de mostrar que uma é realmente superior à outra seria dar um bom argumento seja a favor de uma posição filosófico-teológica, seja contra a outra. Plarvey não faz nem isto nem aquilo, limitando-se a pressupor uma posição (acriticamentc e sem nem sequer mencionar o fato) c a rejeitar6

6,Como ele diz em The historian and the believer, “A fé não tem função alguma na justificação de argumentos históricos concementes a fatos” (p. 112), e “Os crentes não têm quaisquer avais justificatórios distintamente cristãos para averiguar se Hider era doido [...] ou se Jesus ressuscitou dos mortos” (p. 242).

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a outra. Ele pressupõe que não há fonte de aval ou conhecimento além da razão. Isto não é autoevidente: milhões, talvez bilhões de cristãos, entre outros, rejeitam essa ideia. Será, pois, sensato limitarmo-nos a pressupor tal coisa sem nem sequer reconhecer o direito da opinião contrária à existência, sem nem sequer fazer um pequeno gesto na direção da argumentação ou da apresentação de razões?

C. A crítica histórico-bíblica é mais inclusiva? John Collins reconhece que os estudos troeltschianos envolvem pressupostos teológicos que estão longe de ser umversalmente partilhados. Não argumenta a favor da veracidade desses pressupostos, mas os recomenda em uma base bastante diferente. Criticando a proposta de Brevard Childs de uma abordagem “canônica” dos estudos da Escritura,70 Collins afirma que o problema é que a abordagem de Childs não fornece um contexto inclusivo para esses estudos: Para que a teologia bíblica conserve seu lugar entre os estudos sérios, ela tem de [...] ser concebida de maneira suficientemente abrangente para fornecer um contexto de debate entre diferentes pontos de vista. Caso contrário, é provável que ela se torne uma reserva sectária, apenas do interesse de quem detém certos credos confessionais que não são partilhados pela disciplina no seu todo. A concepção dogmática do cânone, da parte de Childs, não fornece qualquer base para fazer avançar o diálogo. Na minha opinião, a crítica histórica continua a fornecer o enquadramento mais satisfatório para a discussão.71 Ele acrescenta que Um critério de adequação dos pressupostos é o grau em que permitem o diálogo entre pontos de vista divergentes e em que acomodam novas idéias. [...] Talvez o feito mais marcante da crítica histórica neste século tenha sido o fato de haver fornecido um quadro de referência no seio do qual estudiosos com diferentes preconceitos e compromissos têm sido capazes de debater de maneira construtiva.72 Por que devemos então preferir os estudos troeltschianos da Escritura ao comentário bíblico tradicional? Porque eles oferecem um contexto mais abrangente, que permite a participação de pessoas com opiniões teológicas conflitantes. Podemos ser cristãos conservadores, liberais ou pessoas sem perspectivas teológicas: todos podemos participar dos estudos troeltschianos da Escritura, desde que aceitemos os seus pressupostos fundamentais. E por essa razão que eles são preferíveis ao gênero mais tradicional de estudos. 70Veja, p. ex., Childs, The New Testament as canon, p. 3-53. 71“Is a critica] biblical theology possible?”, in: The Hebrew Bible and its interpreters, p. 6 7 ‫־‬. Collins fala aqui não da CHB troeltschiana, mas da CHB simpliciter, apenas algumas páginas antes, contudo, identifica a CHB com a CHB troeltschiana. 77Ibidem, p. 8.

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Ora, essa seria talvez uma razão para fazer estudos duhemianos da Escritura, mas é claro que os estudos troeltschianos da Escritura não são duhemianos: os princípios nos quais eles se baseiam não são aceitos por quase todos. Seriam aceitos apenas por uma minúscula minoria de cristãos contemporâneos, por exemplo. E isso mostra uma confusão fundamental, ao que me parece, na defesa de Collins dos estudos troeltschianos. A defesa por ele oferecida é apropriada aos estudos duhemianos; não é de modo algum apropriada aos estudos troeltschianos. Os princípios dos estudos históricos troeltschianos, interpretados para excluir os milagres, a ação divina direta e a inspiração divina especial da Bíblia, são pressupostos filosóficos e teológicos extremamente controversos. Quem não aceita esses pressupostos não terá inclinação para se dedicar à CHB troeltschiana, tal como quem não aceita as perspectivas filosóficas e teológicas cristãs tradicionais provavelmente não se dedicará ao comentário bíblico tradicional (se não pensamos que o Senhor fala na Escritura, é improvável que despendamos um bom tempo tentando descobrir o que ele diz). Como Jon Levenson escreve, a crítica histórica “não facilita a comunicação com quem está fora das suas fronteiras: exige que os fundamentalistas, por exemplo, renasçam como liberais — ou que não entrem na conversa”.3‫ ׳‬Ele acrescenta que “se avaliarmos o grau de inclusão quantitativamente, [Brevard] Childs ganha de longe a competição, pois, das pessoas com interesses na Bíblia, são muitas mais as que partilham a fé cristã do que as que partilham um historicismo cabal. Caso os críticos históricos fossem classificados como um corpo religioso, seriam uma das seitas mais minúsculas — e uma seita com uma grande dificuldade em relacionar-se com grupos que não aceitam as suas crenças”.

V. N ão é

m o t iv o d e p r e o c u p a ç ã o

Estamos agora em condições de voltar à pergunta original de Harvey: por que os membros da congregação dão pouca atenção à CHB contemporânea e, apesar de décadas de investigação, mantêm uma imagem tradicional da vida e do ministério de Jesus? Quanto a conhecer a razão desse fato histórico, trata-se de tarefa para um historiador da vida intelectual. O que vimos até agora, contudo, é que não há argumentos convincentes ou ao menos razoavelmente decentes para supor que os procedimentos e pressupostos da CHB são preferíveis aos do comentário bíblico tradicional. Uma pequena reflexão epistemológica permite-nos ver outro fator: o cristão tradicional (pertença ou não à congregação) tem boas razões para rejeitar as afirmações céticas da CHB e continuar a sustentar a crença cristã tradicional, apesar dos ácidos alegadamente corrosivos da CHB.

A. Crítica histórico-bíblica troeltschiana de novo Como vimos, há três tipos principais de CHB. Para os nossos propósitos, contudo, podemos considerar a CHB duhemiana e a espinosista como uma coisa só. Digamos, assim, que n The Hebrew Bible, the OldTestament, and historical criticism, p. 120.

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temos a CHB troeltschiana e a não troeltschiana. Considere-se a primeira. O estudioso troeltschiano da Escritura aceita os princípios troeltschianos da investigação histórica, apoiado em uma interpretação segundo a qual são excluídas a ocorrência de milagres e a inspiração divina da Bíblia (negando-se ainda, consequentemente, que esta tenha o gênero de unidade própria de um livro com um único autor principal). Mas então não é surpreendente, de modo algum, que o troeltschiano tenda a chegar a conclusões muitíssimo diferentes das aceitas pelo cristão tradicional. Como Gilkey afirma, “Subitamente, uma vasta panoplia de feitos e acontecimentos divinos registrados na Escritura deixam de ser considerados como se tivessem realmente acontecido”. Ora, se (em vez de afirmações tendenciosas acerca da nossa incapacidade para pensar de outra maneira) os troeltschianos oferecessem boas razões para pensarmos que, de fato, esses princípios troeltschianos são verdadeiros, os cristãos tradicionais teriam de prestar atenção; poderíam então ser obrigados a levar a sério as afirmações céticas dos críticos históricos. Os troeltschianos, contudo, aparentemente não oferecem quaisquer boas razões. Limitam-se a declarar que atualmente não podemos pensar de nenhuma outra maneira ou (na esteira de Harvey) que é imoral acreditar, por exemplo, na ressurreição de Cristo em outra base que não a histórica. Nenhuma dessas idéias nem sequer é remotamente convincente como razão para mudar a crença cristã tradicional à luz dos resultados troeltschianos. Quanto à primeira, o cristão tradicional sabe que ela é perfeitamente falsa: ele mesmo e muitos dos seus amigos atualmente (e centenas de milhões de outros) pensam precisamente da maneira proscrita. E no que respeita à afirmação implícita da superioridade da maneira troeltschiana de pensar, o cristão tradicional não se deixa impressionar por ela, a menos que sejam apresentados alguns argumentos decentes, sejam eles quais forem, ou qualquer outra boa razão para adotar essa opinião. A mera afirmação de que é isso que muitos especialistas contemporâneos pensam não vai e não deverá intimidá-lo. Já a segunda razão proposta (a razão de Harvey) parece depender da própria tese em questão. Por que o crítico pensa que é imoral formar crenças acerca de fatos históricos em outra base que não a investigação histórica? Porque acredita que a única base confiável para ter crenças históricas é a investigação histórica. Uma vez mais, contudo, não oferece absolutamente nenhum argumento a favor desse pressuposto, limitando-se a anunciá-lo como algo em que os especialistas acreditam, e talvez adotando também um ar de magoada perplexidade acerca do fato de os membros das congregações não prestarem, aparentemente, muita atenção ao que esses especialistas têm a dizer. Para perceber o que está aqui em causa, considere-se uma analogia: suponhamos que um amigo seu seja acusado e condenado por roubar um valioso vaso frísio do museu de Franeker. Você, na verdade, lembra-se claramente de que no momento em que o vaso foi roubado, o seu amigo estava no seu escritório defendendo certas idéias excêntricas acerca do Evangelho de João. Você testemunhou no tribunal, mas não serviu para nada. Eu chego então e ofereço-me para fazer uma investigação realmente científica a fim de verificar se sua perspectiva aqui é, de fato, correta. Você fica encantado, pois sabe, ou pensa que sabe, que o seu amigo é inocente. Quando lhe explico os meus métodos, contudo, o seu

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encanto transforma-se em consternação. Eu me recuso a aceitar o testemunho da sua memória; proponho-me a ignorar completamente o fato de você se lembrar que o seu amigo estava no seu escritório. Além disso, o meu método exclui desde o início a conclusão de que o seu amigo é inocente, mesmo que seja inocente. Podería eu acusar você de perder o interesse pela minha investigação “científica”? Penso que o cristão tradicional deve ver a CHB troeltschiana com a mesma suspeita: ela se recusa a admitir uma fonte de crença avalizada (a fé e a revelação divina, que o cristão tradicional considera fontes de aval) que o cristão tradicional aceita e exclui desde o princípio a possibilidade de chegar à conclusão de que Jesus realmente ressuscitou dos mortos e que é realmente o divino Filho de Deus.

B. Crítica histórico-bíblica não troeltschiana A CHB troeltschiana, consequentemente, nada tem a dizer aos cristãos sérios; é completamente razoável que estes formem e mantenham as suas crenças independentemente dela. E o que dizer da CHB não troeltschiana (duhemiana e espinosista)? Esse caso é completamente diferente. O não troeltschiano propõe-se a usar apenas pressupostos que sejam claramente produtos da razão (ou aceitos por todos os participantes do projeto). Não aceita (no que se refere ao estudo) as perspectivas cristãs tradicionais acerca da Bíblia ou da vida de Cristo, mas também não aceita os princípios troeltschianos. Não pressupõe que os milagres ocorreram ou poderíam ocorrer, mas isso é muito diferente de pressupor que não ocorreram ou que não poderíam ocorrer, e ele também não pressupõe isso. Não pressupõe que a Bíblia é, de fato, a palavra do Senhor e, portanto, tem autoridade e é confiável, mas também não pressupõe que não é. Claro que isso pode não o deixar com muito a que se agarrar. Nessa área, o não troeltschiano está limitado, o que não lhe ocorre em áreas como a Física ou a Química. Neste último caso (pondo de lado, talvez, um pouco de controvérsia acerca do princípio antrópico e do princípio da indiferença74), pouco há do campo da controvérsia teológica que pareça pertinente ao estudo da área. O mesmo não acontece no caso dos estudos da Escritura; nesse caso, os próprios fundamentos do tema estão profundamente em disputa. Será que a Bíblia tem um autor principal — a saber, o próprio Deus? Se não, talvez Kane tenha razão (“A Escritura tem um significado — o significado que tinha no espírito do profeta ou evangelista que primeiro a proferiu ou escreveu, e que tinha para os ouvintes e leitores que primeiro a receberam”); caso contrário, está enganado.75 E de inspiração divina, de modo que o que ensina é verdadeiro e deve ser aceito? Se relata acontecimentos milagrosos — ressuscitar dos mortos, nascer de uma virgem, a transmutação de água em vinho, a cura de pessoas cegas ou aleijadas de nascimento — , eles devem ser entendidos mais ou menos literalmente ou postos de lado por serem contrários “ao que sabemos 74Veja Ernán McMullin, “Indifference principle and anthropic principle in cosmology”, Studies in the History and Philosophy o f Science 24, n. 3 (1993), e o meu “Methodological naturalism?”, in: J. van dcr Meer, org., Facets of faith and science (Lanham: University Press o f America, 1996): vol. 1. 75Veja nota 19.

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atualmente”? H á algum caminho para se conhecer a verdade acerca dessas questões — a fé ou o testemunho divino por meio da Escritura, por exemplo — que seja diferente da investigação histórica comum? Se prescindirmos de todas essas questões e procedermos de maneira responsável (não esquecendo de dar atenção à lei das probabilidades decrescentes), é muito provável que o que iremos obter seja bastante fraco. A. E. Harvey, por exemplo, propõe que o seguinte está além de qualquer dúvida razoável do ponto de vista de toda a gente (ou seja, duhemianamente): “que Jesus era conhecido tanto na Galileia como em Jerusalém, que foi um professor, que levou a cabo curas de várias doenças, em particular de possuídos por demônios, e que estas eram largamente encaradas como milagrosas; que esteve envolvido em uma controvérsia com outros judeus acerca de questões da lei de Moisés: e que foi crucificado durante a regência de Pôncio Pilatos”.76 Nem sequer está claro se Harvey quer dizer que a conjunção dessas proposições está além de qualquer dúvida razoável ou se é apenas cada uma das conjuntas;77 de qualquer modo, o que temos é pouquíssimo. O u considere-se o monumental A marginal Jew: rethinking the historical Jesus, de John Meier (o primeiro volume tern 484 páginas; o segundo, 1.055 páginas; o terceiro, 720 páginas; o quarto, 752 páginas). Meier pretende-se duhemiano, ou pelo menos espinosista: Ό meu método segue uma regra simples: prescinde do que a fé cristã ou as doutrinas posteriores da igreja dizem sobre Jesus, sem afirmar nem negar tais afirmações” (p. 1). (Penso que ele pretende também se abster de pressupostos incompatíveis com a crença cristã tradicional.) A fantasia de Meier de um “conclave não papal” de estudiosos judeus, católicos, protestantes e agnósticos, fechados no porão da biblioteca da Escola de Teologia de Harvard até chegarem a um consenso acerca do que os métodos históricos podem mostrar no que se refere à vida e missão de Jesus, é totalmente duhemiana. O resultado desse conclave, afirma Meier, seria “um esboço aproximado do que o mítico grupo de ‘todas as pessoas razoáveis’podería dizer acerca do Jesus histórico” (p. 2). Meier propõe-se a estabelecer esse consenso de modo judicioso, objetivo e cuidadoso.78 O que é surpreendente no que concerne a suas conclusões, contudo, é quão finas são, e quão hesitantes e provisórias — e isso apesar do fato de, por vezes, ele não resistir a construir torres de probabilidade. Praticamente tudo o que se retém do trabalho meticuloso de Meier é que Jesus foi um profeta, um proclamador de uma mensagem escatológica de Deus, uma pessoa que executou poderosos feitos, sinais e maravilhas que anunciam o reino de Deus

n'Jesus and the constraints of history (Filadélfia: Westminster Press, 1982), p. 6. 77Pode acontecer que cada urna das conjuntas esteja além de qualquer dúvida razoável, mas que a conjunção não o esteja. Suponha-se (escolhendo arbitrariamente um número) que a proposição que tem uma probabilidade de .95 está além de qualquer dúvida razoável. Então, se cada uma das proposições acima estiver além de qualquer dúvida razoável, a sua conjunção poderia ser, mesmo assim, apenas pouco mais que duas vezes mais provável que a sua negação. 78“A abordagem de Meier, em suma, é tão sólida, moderada e piedosa quanto possível num estudo do Jesus histórico. Mais importante do que isso, Meier é um estudioso esmerado. Nada encontramos de apressado ou de6mazcIado na sua análise: ele considera todas as opiniões e pesa todas as opções” (Luke Timothy Johnson, The realJesus, p. 128).

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e ratificam também a sua mensagem.79 Como duhemianos ou espinosistas, é claro, não podemos acrescentar que esses sinais e milagres envolvem uma ação divina direta ou especial; nem podemos dizer que não o fazem. Não podemos afirmar que Jesus ressuscitou dos mortos nem que não o fez; não podemos concluir que a Escritura foi especialmente inspirada nem que não o foi. Ora, o que é característico da CHB não troeltschiana não é apenas o fato de não incluir os princípios troeltschianos; ela rejeita também qualquer suposta fonte de crença avalizada além da razão (crítica espinosista) e quaisquer pressupostos teológicos que não sejam partilhados por todos os participantes da discussão (crítica duhemiana).80 Os cristãos tradicionais, com ou sem razão, pensam que têm acesso a fontes de crença avalizada além da razão: o testemunho divino na Escritura e também a fé e a obra do Espírito Santo, ou o testemunho da igreja conduzida pelo Espírito. Podem estar enganados acerca disso, mas até alguém apresentar um argumento decente a favor da conclusão de que estão enganados, não precisam se deixar impressionar pelos resultados de estudos que ignoram essa outra fonte de crença. Se queremos saber a verdade acerca de determinada área, não devemos nos restringir a apenas algumas fontes de crença avalizada (como fazem os espinosistas) ou apenas às crenças aceitas por todas as outras pessoas (como os duhemianos); talvez saibamos algo que os outros não sabem. Talvez nos lembremos que o nosso amigo esteve no nosso escritório protestando contra os erros do pós-modernismo no momento exato em que se pensa que ele estava roubando o tal vaso frísio. Se mais ninguém estava lá, então sabemos algo que mais ninguém sabe. Assim, o cristão tradicional não precisa ficar atrapalhado pelo fato de a CHB não troeltschiana não sustentar as suas perspectivas acerca do que Jesus fez e disse. Ele pensa que sabe algumas coisas por fé e pela IIES — que Jesus ressuscitou dos mortos, por exemplo. Ele pode admitir que, se deixarmos de lado tudo o que ele sabe desse modo, então, no que se refere ao restante corpo de conhecimento ou crença, a ressurreição não é particularmente provável. Todavia, isso dificilmente lhe provoca uma crise intelectual ou espiritual. Podemos imaginar um grupo renegado de físicos excêntricos que se propõe a reconstruir a Física recusando-se a usar as crenças da memória, digamos, ou talvez da memória de algo que tenha acontecido há mais de um minuto. Talvez fosse possível fazer algo nesse sentido, mas seria pobre, insignificante, amputado, trivial. E agora suponha-se, por exemplo, que, desse ponto de vista, as leis de Newton ou a relatividade especial se revelassem dúbias e sem confirmação: é de presumir que isso não faria os físicos tradicionais perderem o sono. Essa física amputada dificilmente podería pôr em questão a física completa. O mesmo acontece aqui. O cristão tradicional pensa que sab*¿pelaf é que Jesus era divino e que ressuscitou dos mortos. Então, não ficará perturbado pelo fato de essas verdades 79Johnson, The realJesus, p. 1 3 0 1 ‫־‬. B‫״‬Claro que alguém podería de fato aceitar essas fontes adicionais de crença avalizada, mas estar interessado em observar até onde se podería chegar de um ponto de vista estritamente duhcmiano ou espinosista; entregarmo-nos a um projeto duhemiano ou espinosista não é necessariamente acreditar que essas fontes adicionais não existem. Trata-se apenas de as pôr de lado no projeto em questão.

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não serem especialmente prováveis em tace das evidências a que a CHB não troeltschiana se limita — ou seja, evidências que explícitamente excluem o que se sabe pela fé. Por que havería isso de lhe importar? Assim, este é o resto da resposta à pergunta de Harvey: se a CHB em questão é não troeltschiana, o fato de não confirmar as crenças tradicionais cristãs deve-se à maneira pela qual limita a si mesma, recusando-se a usar todos os dados ou evidências que o cristão pensa possuir. Um cristão se limitar aos resultados da CHB não troeltschiana seria um pouco como tentar aparar a grama com um cortador de unhas ou pintar a casa com uma escova de dentes: podería ser um experimento interessante se houvesse tempo de sobra, mas, fora isso, por que nos limitarmos desse modo? Como vimos (p. 391-7), E. P. Sanders, Barnabas Lindars e Jon Levenson, entre muitos outros, declaram que o que sabemos pela fé, ou os pressupostos teológicos que não sejam sancionados por todos, não devem desempenhar nenhum papel nos estudos da Escritura; e talvez possamos considerar esta uma maneira genérica de sancionar os estudos duhemianos. Por que não devem desempenhar nenhum papel? Temos de nos apoiar apenas nas “evidências com as quais todos possam concordar”, afirma Sanders. “Os argumentos oferecidos devem ser historicamente válidos, ou seja, capazes de provocar a concordância dos historiadores seja qual for a religião, se tiverem alguma, ou a proveniência, as experiências espirituais ou as crenças pessoais deles, e sem privilegiar nenhuma afirmação da revelação”, afirma Levenson. “Não compete ao estudioso decidir que, só porque ele é um crente cristão, aceitará os milagres do Evangelho literalmente, mas ao mesmo tempo repudiará os milagres atribuídos a Isis. Todos esses relatos precisam ser examinados com igual desapego”, afirma Lindars. Entendida como uma aceitação da CHB não troeltschiana, a tese aqui, penso, é que só esse tipo de estudo é apropriadamente objetivo. Será isso verdadeiro, e será a objetividade exigida ou desejável nessa tarefa? Devemos regressar aqui a uma distinção esboçada no capítulo 1. A objetividade pode ser entendida como uma questão de nos orientarmos ou darmos atenção ao objeto do conhecimento ou da opinião, em contraste com o sujeito; o que é objetivo pode ser entendido como proveniente do objeto, e não de mim mesmo como sujeito. E assim um fato objetivo que Amsterdã é maior do que Aberdeen. Entretanto, o termo é também usado para denotar uma opinião que é partilhada por quase todas as pessoas; contrasta-se então com “subjetivo”, entendido como na expressão “Bem, essa é apenas a minha opinião subjetiva”. As minhas opiniões subjetivas são as que me são peculiares (e talvez as dos meus amigos). Em qual desses sentidos se afirma que os estudos não troeltschianos são objetivos? No segundo, claramente; todas as pessoas aceitarão (com os duhemianos) esses pressupostos que nenhum participante do projeto rejeita; e presumivelmente quase todas aceitarão os produtos da razão. Claro que está longe de ser óbvio que, se queremos descobrir a verdade acerca de determinada área, a atitude razoável seja usar apenas pressupostos aceitos por todos os participantes da disputa. Talvez saibamos algo que os outros não saibam. Em geral, pois, a CHB é troeltschiana ou não troeltschiana. No primeiro caso, parte de pressupostos que implicam que grande parte do que o cristão tradicional acredita é

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falso; não é surpreendente, pois, que as suas conclusões colidam com a crença tradicional. Além disso, pouco tem a dizer aos cristãos clássicos. Não lhes oferece qualquer razão para rejeitarem ou mudarem as suas crenças; e oferece também pouca promessa dc lhes permitir atingir uma compreensão melhor ou mais profunda quanto ao que efetivamente aconteceu. Quanto à CHB não trocltschiana, contudo, esse tipo de crítica histórica omite grande parte do que os cristãos veem como evidências e considerações pertinentes. Sobram-lhe, por isso, poucas conclusões substantivas. Uma vez mais, o fato de ela não sustentar a crença tradicional não precisa preocupar o crente tradicional; dadas aquelas limitações, isso é de esperar e não lança qualquer dúvida sobre a crença cristã. De um modo ou de outro, consequentemente, o cristão tradicional pode ficar descansado com as teses da CHB; não deve se sentir na obrigação, intelectual ou outra, de modificar a sua crença à luz das suas teses e supostos resultados.81*

C. Condicionalização Contudo, o cristão pode perfeitamente prestar atenção nela e até se juntar ao jogo. Talvez, por exemplo, o cristão esteja convencido (erroneamente, na minha opinião) de que qualquer atividade (como o comentário bíblico tradicional) que aceita pressupostos religiosos ou teológicos não é realmente ciência; e talvez pense que é importante fazermos ciência nessa área. Talvez goste de estudar a Escritura com seus amigos que não aceitam os mesmos pressupostos; ou talvez pense que muitas coisas interessantes poderão surgir do empreendimento a que se entregam pessoas com pressupostos muitíssimo diferentes. Talvez concorde com o tomista de O espírito dafilosofia medieval, de Etienne Gilson,s2 pensando que a ciência e a filosofia são atividades puramente racionais; não envolvem pressupostos que não sejam produtos da simples razão. Então, ele poderá pensar que é importante praticar uma ciência espinosista ou duhemiana, ainda que os resultados sejam magérrimos.83De modo que poderá ser sensato da sua parte dedicar-se aos estudos duhemianos da Escritura. 81Supostos resultados: graças à enorme controvérsia e desacordo entre os seguidores da CHB, é muito difícil encontrar algo que se possa sensatamente chamar “resultados” desses estudos. Daí as afirmações de Harold Attridge (“Calling Jesus Christ”, in: Eleonore Stump; Thomas Flint, orgs., Hermes and Athena [Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1993], p. 211): Continua existindo uma enorme diversidade entre as pessoas que tentam descrever o que Jesus realmente fez, ensinou e pensou acerca de si próprio. Para alguns estudiosos contemporâneos, ele era um mágico helenista; para outros, um carismático ou um rabi galileu; para outros ainda, um reformador profético; para outros, um contador astuto de histórias sardónicas e atraentes; para alguns, ele tinha idéias grandiosas; para outros, repudiava-as. Em geral, o investigador encontra o Jesus que os seus métodos lhe permitem ver. E tão verdadeiro hoje como o era quando acabou a busca liberal do Jesus histórico, catalogada por Albert Schweitzer, que tendemos a fazer Jesus à nossa própria imagem e semelhança. A referência a Schweitzer diz respeito ao seu Von Rcirnarus zu IVrede (1906), tradução de W. Montgomery como The quest o f the historical Jesus: a critical study of its progress from Reimarus to IVrede (New York: Macmillan, 1956). BJ(São Paulo: W M F Martins Fontes, 2006), os primeiros caps. ‫ ״‬No entanto, veja o meu The twin pillars ofChristian scholarship (Grand Rapids: Calvin College, 1990). Sustento que uma razão tomista comum para pensar desse jeito não é, de fato, uma boa razão.

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Poderá o comentário bíblico tradicional ser também cultivado de maneira duhemiaña? O cristão tradicional quer saber a resposta a várias questões sobre a Bíblia; entre outras, aquelas a que o próprio comentário bíblico tradicional se dedica. Ora, o que há de sensato a fazer, ao procurar a resposta a uma questão, é usar tudo aquilo em que acreditamos ou que pensamos saber (desde que seja pertinente); isso nos dará as melhores possibilidades de chegar a uma resposta correta. No entanto, suponha-se que estamos também convencidos de que é importante investigar essas questões científicamente e que, se usarmos as crenças que aceitamos pela fé, a investigação resultante não será ciência. Suponha-se que decidimos que queremos fazer ciência, mas que também queremos trabalhar essas questões. O que podemos fazer? Podemos condicionalizar,;84 Em vez de abordarmos a pergunta “Qual é a melhor maneira de pensar acerca de x usando tudo o que sabemos, incluindo o que sabemos pela fé?”, abordamos a pergunta “Qual seria a melhor maneira de pensar acerca de x se de fato os produtos da fé fossem verdadeiros?”. Esta pergunta pode então ser abordada de maneira duhemiana (ou espinosista), usando apenas as crenças que se incluem nos produtos da razão, não é preciso invocar pressupostos teológicos nem produtos da fé. Ao dedicarmo-nos a essa atividade, estamos fazendo estudos duhemianos. Os nossos resultados podem ser expostos como uma condicional se F, então P; em que F representa os produtos da fé. Quando trabalhamos com base nessa condicional, estamos fazendo ciência duhemiana. Claro que, quando afirmamos a antecedente da condicional e separamos a sua consequente, abandonamos a ciência duhemiana (e espinosista) e entramos na teologia, mas isso não é problema. Temos o objetivo dual de trabalhar de maneira duhemiana ao mesmo tempo que tentamos descobrir a melhor maneira de pensar acerca do tópico em questão da perspectiva da fé cristã: assim, podemos conseguir as duas coisas. Na verdade, este será um projeto no qual as pessoas que não partilham a nossa fé podem sensatamente cooperar, tal como um cristão poderia praticar (pondo de lado a questão da utilidade dessa empresa), dessa maneira condicional, a CHB troeltschiana.85

VI. C o da conclusiva Todavia, não será tudo isso um pouco ingênuo demais? Não será uma receita para evitar as questões difíceis, para nos agarrarmos à crença independentemente do resto, para garantir que nunca teremos de enfrentar resultados negativos, mesmo que haja alguns? “A CHB é troeltschiana ou não troeltschiana: no primeiro caso, parte de pressupostos que rejeito; no segundo, não leva em consideração todos as evidências que considero; em um caso como no outro, portanto, não tenho de lhe prestar atenção”. Não poderia eu dizer isso a priori, sem nem sequer examinar os resultados da CHB? Mas então deve haver algo de errado nessa maneira de pensar. Não é possível que os historiadores venham a descobrir fatos que 84Para tomar de empréstimo um termo dos epistemólogos bayesianos, que o usam para exprimir algo bastante diferente. Veja Warrant: the current debate, p. 122. 85Veja mais sobre condicionalização no meu “On Christian scholarship”, in: The challenge and promise of a Catholic university (Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1994). Espero explorar mais minuciosamente essas questões em um livro sobre a filosofia cristã.

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ponham a crença cristã seriamente em questão, que contem fortemente contra ela? Bem, talvez. Como isso poderia acontecer? Deste modo: a CHB limita-se aos produtos da razão; é possível, pelo menos no sentido amplamente lógico, que, seguindo apenas a razão histórica comum e usando os métodos da investigação histórica sancionados ou asseverados pelos produtos da razão, uma pessoa encontre evidências poderosas contra elementos centrais da fé cristã;86 se isso acontecesse, os cristãos enfrentariam um genuíno conflito entre a fé e a razão. Uma série de cartas poderia ser descoberta, cartas que tivessem circulado entre Pedro, Tiago, João e Paulo, nas quais a necessidade de um embuste e os meios para a sua perpetração fossem cuidadosa e seriamente discutidos; essas cartas poderiam guiar os estudiosos para sítios arqueológicos nos quais outros materiais do mesmo gênero seriam descobertos...87A fé cristã é histórica, no sentido de que depende essencialmente do que de fato aconteceu: “E, se Cristo não ressuscitou, a vossa fé é inútil” (ICo 15.17). Poderia certamente acontecer de que, pelo exercício da razão, descobríssemos evidências poderosas88 contra algo que consideramos ou considerávamos um produto da fé. E concebível que os resultados assegurados da CHB possam incluir tais evidências. Os cristãos teriam então um problema: um tipo de conflito entre a fé e a razão. Contudo, nada disso surgiu da CHB, seja troeltschiana, seja não troeltschiana; na verdade, pouco há que se possa ter na conta de “resultados assegurados”, quanto mais não seja em razão do imenso desacordo entre os praticantes da CHB. Não existem quaisquer resultados assegurados (ou mesmo resultados razoavelmente bem atestados) que entrem em conflito com a crença tradicional cristã, de modo que só possamos continuar aceitando esta última a um custo considerável; nada disso jamais aconteceu na história da CHB. Qual seria a resposta apropriada se isso acontecesse ou, antes, se eu me convencesse de que aconteceu? Teria eu de abandonar a fé cristã, ou então abandonar uma vida de reflexão? Qual seria a resposta adequada? Bem, qual seria a resposta adequada se eu fosse convencido de que alguém houvesse apresentado uma refutação rigorosa e inelutável da existência de Deus, talvez semelhante à suposta refutação ontológica de J. N. Findlay?89 Ou se, com o Hume de Reid (p. 232-8), eu começasse a pensar que as minhas faculdades cognitivas provavelmente não são confiáveis e reparasse, em seguida, que formo essa mesma crença com base nas mesmíssimas faculdades cuja confiabilidade essa crença impugna? Se isso me acontecesse, o que eu faria ou deveria fazer? Parar de pensar nessas coisas, afogando-me nas atividades práticas (jogando talvez muito gamão, oferecendo-me talvez como voluntário para ajudar a construir casas para os pobres)? Cometer suicídio intelectual? Não sei qual é a resposta a qualquer dessas perguntas. Contudo, não precisamos inventar dificuldades: podemos pensar acerca delas quando (ou, o que é mais provável, se) nos depararmos com elas. 86Ou, de modo menos crucial, evidências contra a aparente doutrina da Escritura. Por exemplo, evidências arqueológicas poderiam abalar a crença tradicional de que a cidade de Jerico existiu. 87O exemplo é de Bas van Fraassen; veja o seu “Three-sided scholarship: comments on the paper of John R. Donahue, S. J.”, in: Hermes andAtberta, p. 322. “Termine você mesmo, se tiver coragem para isso”, diz van Fraassen. ‫״״‬Ou que pensássemos tê-las descoberto; mesmo que estejamos enganados quanto às evidências em questão, mc6mo assim isso poderia nos precipitar nesse tipo de problema. 8,“Can God's existence be disproved?”, M ind (Abril dc 1948).

Pós-modernismo e pluralismo O que é a verdade? Pôncio Pilatos Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso; e dizer do que é que é, e do que não é que não é, é verdadeiro. Aristóteles ... Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará (Jo 8.32). Jesus Estava planejando dar a este capítulo o título “Pós-modernismo e Pluralismo” e, de fato, dei-lhe esse título. Contudo, talvez ele seja inadequado. O nosso projeto nesta quarta e última parte do livro é avaliar vários anuladores possíveis da crença cristã. O problema do pós-modernismo, contudo, é que é extremamente difícil encontrar nele um candidato sensato a anulador da crença cristã. Talvez se possa mostrar com algum assomo de razão que o pluralismo religioso é um desses anuladores; é muito mais difícil encontrar um candidato plausível no pós-modernismo. Seja-me permitido explicar-me. I. P ó s - m o d e r n is m o

O pós-modernismo, é claro, é caracterizado de várias maneiras. Entre as perspectivas que respondem a essa designação encontramos uma rejeição do fundacionismo clássico; a ideia de que não há fundamentos de qualquer gênero, clássicos ou não; a tese de que a objetividade não existe (e que isso é muito bom); a desconstrução (“a empreiteira de desconstrução”); a tese de que a verdade não existe, ou, se existe, é algo completamente diferente do que pensávamos (talvez uma construção social, “o que os nossos pares nos deixam dizer” ou algo desse gênero); a tese de que as verdades são feitas e não descobertas; a tese de que não há padrões normativos objetivos, sendo nós que, de algum modo, os fazemos; e a tese de que tudo o que realmente conta é o poder. 1lá uma oposição a “metanarrativas”, a insistência de que Deus está morto (querendo-se habitualmente dizer com isso, penso, que Deus não existe) e referências arrogantes a Deus (“o bom e velho Deus”, na expressão de Jacques Lacan1). Há também uma espécie de ,Citado por Grace M.Jantzen, “What’s the difference? Knowledge and gender in (post)modern philosophy of religion", Religious Studies 32 (Dezembro de 1996), p. 446.

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regozijo ou apoteose da autonomia, de modo que (como é o caso de Heidegger2) nos sentimos culpados por não termos criado 0 mundo (junto com a sugestão de que Deus deveria se envergonhar por ter a ousadia de interferir na nossa autonomia3). H á uma espécie de recrudescimento da exaltação romântica oitocentista do eu, da deificação de si e da rejeição de tudo o que é burguês. Há 0 historicismo, a ideia de que 0 nosso ambiente histórico e cultural determina 0 que podemos pensar, de modo que não podemos senão pensar o que pensamos (e atualmente não podemos aceitar a crença cristã séria); requentam-se tiradas bombásticas nietzschianas e sartrianas, muita Sturm

und Drang (ou “sturm und drang und professor titular”, como diz Ernest Gellner4) e inúmeras outras coisas.

A. O pós-modernismo é incompatível com a crença cristã? Ora bem, muitas dessas afirmações não são candidatas sensatas ao cargo de anuladoras da crença cristã, e na verdade algumas são até simpáticas a essa crença. Por exemplo, os pós-modernos rejeitam tipicamente o fundacionismo clássico, que foi também rejeitado por intrépidos porta=vozes da crença cristã como Abraham Kuyper, William Alston e Nicholas Wolterstorff, e, aliás, de modo antecipado, por Agostinho, Tomás, Calvino e Edwards (a rejeição dele é também um tema central deste livro). Muitos outros temas do pós-modernismo não podem senão provocar um entusiástico aplauso de uma perspectiva cristã: vem-nos à memória a simpatia e a compaixão pelos pobres e oprimidos, um forte sentido de escândalo perante algumas injustiças do nosso mundo, a celebração da diversidade e 0 “desmascaramento” do preconceito, da opressão e da angariação de poder disfarçados de princípios morais autoevidentes e de ditames da doce razão. Outro tema com respeito ao qual cristãos e pós-modernos podem concordar de todo o coração é a maneira pela qual, mesmo nos melhores de nós, a nossa consciência do que é correto e incorreto, verdadeiro ou falso, é muitas vezes obscurecida e ofuscada pelo interesse próprio. E verdade que os pós-modernos tendem a ver estes ciscos nos olhos alheios, mas não nos deles; entretanto, nesse aspecto não diferem muito de todos nós, incluindo os cristãos. Outras teses pós-modernas, contudo, parecem realmente incompatíveis com a crença cristã, por exemplo, as teses de que Deus está morto, de que não há padrões morais “objetivos” e talvez também a tese de que a verdade, pelo menos tal como é entendida pelo senso comum, não existe. Com respeito à rejeição da verdade, há um 2Pelo menos segundo Richard Rorty; veja o seu Contingency, irony and solidarity (Cambridge: Cambridge University Press, 1989), p. 109 [edição em português: Contingência, ironia e solidariedade (São Paulo: Martins Editora, 2007)]. ‫־‬,“Dcus c assim 0 nome próprio daquilo que nos priva da nossa natureza, do nosso próprio nascimento; consequentemente, terá 6emprc falado antes de nós, à socapa. E a diferença que se insinua como morte entre mim t· eu m r-cm n” ( \-xrnw.fi Derrida. Writing and difference, tradução de A. Bass [Chicago: University of Chicago Press,

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problema inicial: o que significa rejeitar a verdade? Para fazer isso, devemos afirmar que a verdade não existe pura e simplesmente, ou será suficiente dizer que ela existe, certamente, mas que é muito diferente do que pensávamos (e aquilo que pensávamos ser a verdade não existe de modo algum)?5 Segundo a explicação maravilhosamente monossilábica que Aristóteles nos dá da verdade, citada em epígrafe, “Dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro”, se uma pessoa defende que a verdade não existe, compromete-se a negar, por exemplo, que a proposição a neve é branca será verdadeira se e somente se a neve for branca? Propõem-se os pós-modernos a negar isso? Essas são perguntas difíceis. Apesar disso, há uma perspectiva pós-m oderna comum acerca da verdade segundo a qual o que é verdadeiro depende do que nós, seres humanos, dizemos ou pensamos, e isso parece realmente incompatível com a crença cristã. Pelo menos, será incompatível se aceitarmos a proposição plausível de que (1) Necessariamente a pessoa de Deus existe se e somente se for verdadeiro que a pessoa de Deus existe. Pois a tese pós-moderna acerca da verdade implica que a verdade quanto à existência da pessoa de Deus depende de nós e do que nós fazemos ou pensamos. Todavia, se a verdade dessa proposição depende de nós, então, dado (1), o mesmo acontece com a própria existência de Deus. Segundo (1), a pessoa de Deus existe se e somente se for verdadeiro que ela existe; logo, se o fato de ser verdadeiro que Deus existe depende de nós e do que nós fazemos e pensamos, o mesmo acontece com a existência de Deus; Deus depende de nós para existir. De um ponto de vista cristão, isso é completamente absurdo. Essa maneira de pensar acerca da verdade, consequentemente, é incompatível, dado (1), com a crença cristã. O mesmo acontece com a ideia de que a verdade pura e simplesmente não existe. Uma das nossas idéias mais fundamentais e básicas é que há 0 modo pelo qual as coisas são. As coisas poderíam ter sido muito diferentes do que são; elas poderíam ter sido de muitos modos, mas, entre eles, está o modo pelo qual são efetivamente. Há efetivamente cavalos; não há unicórnios, ainda que (talvez) pudesse ter havido; haver cavalos, pois, faz parte do modo de ser das coisas. Ora, a existência da verdade está intimamente ligada à existência de um modo pelo qual as coisas realmente são, um modo pelo qual o mundo é. Pois é verdadeiro que há cavalos se e somente se haver cavalos faz parte do modo pelo qual as coisas são. Claro que um pós-modernista podería responder: “Bem, é óbvio que há algo como o modo de ser das as coisas — quem podería negar isso? Entretanto, quando digo que a verdade não existe, não quero negar tal coisa de modo

5Compare-se a tese (a) não há elefantes com a tese (b) há elefantes, mas na realidade eles são um tipo de números primos (e não há coisa alguma como o que pensávamos que eram os elefantes). Compare-se a tese (a) de que não há universais, com a tese (b) de que há alguns, mas afinal são apenas nomes, nomina.

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algum. Quero apenas dizer que não existe a t‫׳‬erdade entendida de certo modo. Não existe a verdade entendida, por exemplo, como algo que exige uma correspondência estrutural detalhada entre o modo pelo qual o mundo é e as frases portuguesas (ou inglesas ou atemãs ou chinesas)”. Isso seria inócuo; seria também desinteressante. Os pós-modcrnos às vezes parecem oscilar entre uma tese importante, mas claramente falsa (a verdade pura e simplesmente não existe de modo algum), e uma tese sensata, mas desinteressante (a verdade, concebida de uma maneira particular e implausível, não existe). Tomada da maneira forte, contudo, como a ideia de que não existe um modo pelo qual o mundo é e que, portanto, não existe a verdade, a tese pós-moderna é incompatível com a crença cristã. Pois é certamente crucial, na crença cristã, a suposição de que há um modo pelo qual as coisas são, o que inclui as coisas grandiosas do evangelho; é crucial à crença cristã a suposição de que proposições como Deus criou 0 mundo e 0 sofrimento e morte de Cristo expiam 0 pecado humano são verdadeiras.

B. Essas afirmações anulam a crença cristã? H á várias teses plausivelmente denominadas “pós-modernas” que realmente entram em conflito com a crença cristã. Como vimos no capítulo 11 (p. 357), contudo, isso não é ainda dizer que tais teses ou a afirmação delas constituem anuladores da crença cristã. Ouve-se frequentemente dizer que este ou aquele elemento da crença cristã foi “posto em questão” pelo pós-modernismo ou pelas maneiras pós-modernas de pensar, ou que o pós-modernismo “destruiu” uma maneira tradicional de ver o mundo. No entanto, não apresentamos automaticamente um anulador da crença cristã limitando-nos a subir ao telhado para proclamar (ainda que em voz alta e devagar) “Deus está morto!” (nem mesmo que acrescentemos: “E todos os meus amigos também o afirmam”). Nem podemos pôr a crença cristã (ou qualquer outra coisa) em questão declarando apenas: “Declaro que ponho isso em questão!”. Não podemos destruir uma maneira de pensar somente anunciando: “Declaro que destruo essa maneira de pensar!”. Isso não serve, mesmo que se exprima em escritos de fulgurante astúcia e estilo, e mesmo que se adote um ar de superioridade e gestos elegantes ao falar. E preciso algo mais. O quê? Bem, como vimos no capítulo 11, para o leitor me apresentar um anulador da minha crença C, ele deve fazer ou dizer algo que (se eu tiver consciência disso e o tiver ouvido e entendido) me impeça de continuar a acreditar racionalmente em C, ou me impeça de acreditar tão firmemente quanto fazia antes. No caso típico, você fará isso pondo-me em uma posição na qual eu possa ver que a minha crença deve ser rejeitada (p. ex., fazendo-me ter um tipo adequado de experiência) ou dando-me um argumento de um tipo qualquer. Nesse ponto, alguém observará que muitos pós-modernos não concordariam com isso. Tipicamente, eles não pensam que os argumentos são necessários ou suficientes para seja o que for de importante; podem duvidar da existência de uma coisa como a racionalidade; na verdade, podem até rejeitar toda a estrutura de aval e anuladores da

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nossa discussão. Nesse caso, não seria uma perda de tempo investigar se o pensamento pós-moderno fornece um anulador da crença cristã? Não necessariamente. A rejeição dos pós-modernos da noção de anulador não implica que, de fato, não forneçam um anulador. Eles poderíam certamente fornecer um anulador mesmo que (erroneamente) rejeitassem toda a linha de raciocínio pressuposta pela ideia de que há ou podería haver anuladores da crença cristã. O leitor é um pós-moderno de carteirinha e rejeita toda a conversa acerca de anuladores; eu não. Eu acredito que não há cactos na Península Norte; você me mostra um. O fato de você não ter em grande conta os anuladores não implica de modo algum que não me tenha fornecido um anulador, tal como o fato de eu não acreditar em vírus não significa que não lhe possa transmitir um resfriado. Se eu tiver razão acerca dos vírus, não posso fazer tal coisa, mas não tenho razão. O mesmo acontece com o pós-moderno que não acredita em anuladores: se ele tiver razão quanto à inexistência de tal coisa, então sem dúvida que não poderá dar-me um; mas talvez ele esteja enganado. Ao adotar o quadro de referência do aval e dos anuladores, estamos, é claro, pressupondo que ele está enganado. Nesse caso, ele pode ser capaz de apresentar um anulador da crença cristã mesmo que pense que tal coisa não existe. Todavia, não poderá fazê-lo por mera asserção, por mais apaixonada ou confiante que seja. Deverá então ser por meio de argumentação? No capítulo 11 vimos que o leitor pode me dar um anulador não argumentativo no caso de alguns tipos de crenças, mas podería o pós-moderno me dar um anulador para um elemento da crença cristã sem me apresentar um argumento? Eis uma possibilidade: talvez possa me dar um anulador citando a trajetória da própria vida intelectual e espiritual. Talvez tenha sido educado como um crente tradicional; no segundo ano da universidade, contudo, foram-lhe apresentados Freud, Marx e Nietzsche; no ano seguinte avançou para Heidegger, Derrida e Rorty. Ficou cativado pelo estilo brilhante, cintilante, de Nietzsche, pelo ar de profiindidade teutónica de Heidegger, pelo espírito travesso e jocoso de Derrida e pela atitude corajosa, “tirando o melhor partido de uma situação realmente horrível”, de Rorty. Ele me fala destes autores e das suas ideias, apresentando-as sob urna luz atraente e favorável. Acaso isso me dá um anulador? Automaticamente, não. Nem eu fico automaticamente com um anulador refazendo o percurso dele e lendo eu mesmo esses autores: onde ele encontra perspicácia profunda, eu talvez encontre um pedantismo obscurantista. Ler esses autores não é como percepcionar um cacto (dar-me conta de que estou vendo um cacto) na Península Norte. Não se pode ver o cacto e continuar racionalmente a acreditar que não haja cactos ali. Por outro lado, é perfeitamente sensato ler esses autores e — apesar da pirotecnia verbal e dos ares dc profundidade — permanecer impávido, continuando racionalmente a aceitar a crença cristã. Haverá outras possibilidades de anuladores não argumentativos? Os pós-modernos às vezes observam o envolvimento dos cristãos na injustiça e opressão que o nosso triste mundo conhece. Como argumentarei no próximo capítulo, contudo, o sofrimento e o mal do nosso mundo não me fornecem automaticamente um anulador da crença cristã. Nem o fato de os cristãos serem responsáveis por boa parte desse mal;

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afinal, é inerente à crença cristã ver os seres humanos, incluindo os cristãos, como seres profundamente imperfeitos e pecadores. Haverá outras possibilidades ainda? Talvez, mas é difícil ver o que poderíam ser. Assim, parece que é preciso algo como um argumento. Os pós-modemos, contudo, não apresentam habitualmente argumentos a favor de teses que sejam incompatíveis com a crença cristã. Na verdade, não apresentam habitualmente argumentos seja para o que for, talvez porque pensem que todo o enquadramento mental que faz a argumentação parecer proveitosa é algo que devemos “superar”. Mesmo assim, há pelo menos um par de argumentos pós-modernos que vale a pena examinar aqui, apesar de em nenhum dos casos ser óbvio em que eles se relacionam com a crença cristã.

1.0 a rg u m e n to d o co n d icio n a m e n to h istórico O primeiro argumento faz apelo a uma consideração historicista: todos somos fortemente limitados e condicionados pela sociedade em que vivemos e no seio da qual fomos socializados. Tivesse eu nascido num tempo e lugar diferente, não acreditaria em muitas coisas em que de fato acredito — contando-se, entre elas, talvez, algumas das que considero mais sérias. Talvez, por exemplo, eu não tivesse sido cristão ou até teísta; talvez tivesse considerado sub-humano quem não pertencesse à minha tribo ou clã; talvez considerasse a escravatura inteiramente aceitável, e assim por diante. Desse modo, a tese é que na minha vida doxástica não consigo transcender o meu enquadramento cultural — pelo menos no que se refere às crenças religiosas e filosóficas.6Mas então isso significa que essas crenças são de fraca qualidade, sem aval, irracionais ou de qualquer outro modo inadequadas. A crença cristã, portanto, é irracional ou, no mínimo, não tem aval. Ora bem, o que temos até agora não é um suposto anulador da crença cristã em si, mas antes de uma crença diferente: a crença de que a crença cristã tem aval. Apesar disso, se eu passo a ver ou acreditar que a crença cristã não tem aval para mim, talvez eu adquira assim um anulador dessa crença em si. Por que haveriamos de aceitar o argumento? Há razões poderosas para não o fazer. Primeiro, como tantos argumentos céticos, este argumento, se desacreditar algo, desacredita-se a si próprio, cai na mesmíssima cilada que armou para os outros. Pois considere-se a sua premissa central: (PC) Suponha-se que uma pegsoa S tem uma crença religiosa ou filosófica C: se C for tal que, caso S tivesse nascido em outro tempo ou em outro lugar, ela não aceitaria C, então C não tem aval para S. Todavia, suponha-se que aceito (PC), que é em si uma crença religiosa ou filosófica. Não é claro que há tempos e lugares tais que, caso eu tivesse nascido aí e então, não a aceitaria? 6Veja John Hick, An interpretation of religion (New Haven: Yale University Press, 1989), p. 2.

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Caso eu tivesse nascido no século 19 na Nova Guiné, ou na França medieval, ou no Japão seiscentista, não aceitaria a (PC) (muito provavelmente). Assim, segundo a (PC), a (PC) não tem aval para mim; e quando vejo que não tem aval, tenho um anulador para ela. Por isso, não devo acreditar nela. Talvez o leitor pense que esse argumento é apenas um pequeno e indecente truque dialético, que não merece ser levado a sério. Eu discordo: quando vemos que uma crença realmente anula a si mesma, não é sensato sustentá-la. Independentemente do que o leitor pensa acerca desse argumento, contudo, por que será que não podemos saber mais em dado momento do que sabíamos em outros? Tivesse Einstein nascido no século 18, não teria acreditado na relatividade especial; mas daí nada se segue com respeito à relatividade especial. Muitas pessoas pensam hoje que é incorreto tratar alguém com ódio ou desprezo ou indiferença unicamente porque não pertence à nossa raça; as suas perspectivas não são automaticamente destituídas de aval só porque poderiam ter pensado outra coisa se tivessem nascido na Alemanha nazista ou na antiga Esparta. Talvez devamos pensar, em vez disso, que se tivessem nascido na Alemanha nazista ou na antiga Esparta, não teriam sabido algo que efetivamente sabem. Defendí em Warrant and properfunction que o aval é relativo às circunstâncias: algumas circunstâncias conferem aval; outras, não. Eu poderia consequentemente estar em outras circunstâncias, circunstâncias que não teriam conferido aval a determinada crença C que efetivamente tenho. Na verdade, algumas dessas circunstâncias são tais que, se eu tivesse estado nelas, não teria sequer formado a crença C. Atualmente, por exemplo, acredito que ouço um corvo grasnando no bosque atrás da minha casa; estivesse eu em outra cidade, não teria acreditado nisso. Esse fato, contudo, não significa de maneira alguma que a minha crença atual carece de aval. Portanto, tal como está formulada, a (PC) é, sem dúvida, excessivamente forte. Sem dúvida que o partidário da (PC) dirá que não pretendia que a (PC) se aplicasse a todas as crenças; ela se aplica apenas a crenças religiosas ou filosóficas. Mas por que pensar que ela é verdadeira, mesmo que a restrinjamos desse modo? O leitor acredita que não há coisas que não existem; o filósofo Alexius Meinong, vergonhosamente, acreditava que há. Suponha-se agora que o leitor tenha estudado com Meinong; dada a sua personalidade carismática e o seu intelecto poderoso, talvez tivesse sido enganadoramente levado a pensar que há coisas— unicórnios e montanhas de ouro, por exemplo — que não existem. Como isso poderia significar, ainda que sub-repticiamente, que, de fato, tal como as coisas são, você não sabe que não há coisas que não existem? Este argumento, consequentemente, não é bem-sucedido. Sem dúvida que há várias maneiras de complicar o argumento c de torná-lo mais sutil; nenhuma delas é bem-sucedida, penso, porque a ideia básica do argumento não passa de um erro.

2. Os seres h u m a n o s co n stro em a verdade? Há um segundo argumento que desejo considerar brevemente. E muito comum creditar (algumas pessoas poderiam dizer “debitar”) a Richard Rorty a perspectiva de que

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“a verdade é o que os nossos pares nos deixam dizer”7. Ora, isso é um pouco vago, mas se for tomado seriamente, parece realmente incompatível com a crença cristã. Isso porque se uma proposição for verdadeira (verdadeira “para mim”, suponho) se e somente se os meus pares me deixarem dizê-la, então, dada a proposição (1) da p. 418, a própria existência de Deus depende (“para mim”, se é que isso faz sentido) dos meus pares. Pois se eles me deixassem dizer que Deus não existe, então seria verdadeiro que não há tal pessoa, caso em que não haveria tal pessoa. Assim, a existência de Deus depende do comportamento dos meus colegas.8 Não é fácil acreditar nisso. A perspectiva em questão tem mais consequências peculiares. Por exemplo, promete uma maneira auspiciosa de lidar com a guerra, a pobreza, a doença e outros males a que a nossa carne está fadada. Considere-se a AIDS: se todos nós deixarmos de dizer que a AIDS pura e simplesmente não existe, da perspectiva rortiesca seria verdadeiro que a AIDS não existe; e se fosse verdadeiro que a AIDS não existe, a AIDS não existiría. Assim, tudo o que precisamos fazer para nos livrarmos da AIDS, ou do câncer, ou da pobreza, é deixarmo-nos uns aos outros dizer que eles não existem. Isso parece muito mais fácil do que os métodos convencionais, que envolvem um imenso dispêndio de tempo, energia e dinheiro. Do mesmo modo, considerem-se as autoridades chinesas que mataram os estudantes da Praça Tiananmen e depois exacerbaram a vilania com mentiras descaradas, afirmando não ter feito isso. Desse ponto de vista, esta é uma maneira pouquíssimo caridosa de pensar na questão, pois ao negar o que aconteceu, as autoridades estavam apenas tentando fazer os seus pares deixá-los dizer que aquilo nunca havia acontecido, caso em que seria verdadeiro que nunca havia acontecido, caso em que nunca teria de fato acontecido. Assim, o que é caridoso pensar aqui, de um ponto de vista rortiano, é que as autoridades chinesas estavam apenas tentando fazer que esse fato terrível nunca tivesse acontecido; e quem pode censurá-los por isso? O mesmo se aplica àqueles nazistas skinheads que afirmam que o Holocausto não existiu e que Hitler e os seus capangas eram gentis como cordeirinhos, nunca tendo feito mal a pessoa alguma; também nesse caso devemos considerar que estão tentando fazer que essas coisas terríveis nunca tenham acontecido. E na nossa vida pessoal, se fizemos algo incorreto, não há problema: basta mentir, fazer os nossos pares aceitarem que não o fizemos. Se formos bem-sucedidos, então de fato não o fizemos; além disso, como bônus adicional, nem sequer teremos mentido desde o início!

0 ‫ ז‬que ele efetivamente diz é: “Para filósofos corno Chisholm e Bergmann, temos dc tentar dar essas explicações para que o realismo do senso comum seja preservado. O objetivo de todas essas explicações é tornar a verdade algo mais do que o que Dewey chamava ‘asscrtibilidade avalizada’: mais do que os nossos pares, ceterisparihus, nos deixarão dizcs‫{ ״‬Philosophy and lhe mirror of nature [Princeton: Princeton University Press, 1979], p. 1 7 5 6 ‫[ )־‬edição em portugués: Afilosofia e 0 espelho da natureza (Bonsucesso: Relume Dumará, 1994)]. Pelo contexto é claro que Rorty se põe aqui (e cm outros lugares) do lado dc Dewey, contra Chisholm c Bergmann. Έ se os mcus pares forcm extraordinariamente tolerantes, deixando-me também dizer que hd tal pessoa? Seria então verdadeiro (“para mim") que há tal pessoa e também verdadeiro que não há?

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Ora bem, o leitor dirá certamente que estou atacando um espantalho. Rorty não poderia querer dizer, como uma verdade sobria, que a verdade é o que os nossos pares nos deixam dizer. Isso é apenas uma maneira conversacional, esquemática, informal, de transmitir a sua verdadeira opinião. Falar dessa maneira informal está de acordo com a sua ideia de que o melhor é entender a filosofia como uma espécie de conversa, e com o seu desprezo pela panoplia de definições, princípios, condições necessárias e suficientes, tentativas de rigor e todas essas coisas que caracterizam os filósofos analíticos. (Se você estivesse conversando com um amigo, começaria por dizer “Necessariamente, a proposição P é verdadeira se e somente se?” Bem, talvez isso dependa do amigo.) Talvez isso seja assim; infelizmente, só complica a situação. O meu objetivo é perguntar se o pensamento rortiano oferece um anulador da crença cristã. Um dos aspectos mais proeminentes do pensamento de Rorty é o que ele tem a dizer acerca da verdade, mas então preciso saber se o que ele quer dizer acerca da verdade é incompatível com a crença cristã. Para isso, seria bom ter uma maneira relativamente séria de formular o que poderá ser esse pensamento. O que será que ele quer dizer? Bem, presumivelmente, a tese de Rorty é que a verdade de uma crença ou proposição depende crucialmente da realidade social, seja ela qual for; a verdade é de algum modo uma função da sociedade e do que esta faz ou faria. O que é verdadeiro “para nós” então dependerá de algum modo da nossa própria sociedade. Para qualquer verdade proposta C, há uma propriedade P — uma propriedade que a sociedade pode ter — tal que C é verdadeira (“para nós”) se e somente se a nossa sociedade exibir P.9 Claro que Rorty poderá considerar que essa maneira de pôr a questão é um pouco gradgrindiana, se não completamente descabida (talvez no mesmo nível daquela preocupação obsessiva com as aspas que Derrida atribui jocosamente aos filósofos de Oxford10), mas a vida é demasiado curta para nos preocuparmos com algo assim. Portanto, o nosso problema é que não conseguimos dizer facilmente, sem qualquer elucidação complementar, se a perspectiva rortiana sobre a verdade é ou não incompatível com a crença cristã. Este problema acerca da determinação do que Rorty pretende dizer aqui não é trivial. Gary Gutting, por exemplo, afirma que Rorty não pretende realmente afirmar algo minimamente chocante ou paradoxal acerca da verdade, ou que não se harmonize com o senso comum. Ele não quer realmente dizer que a verdade depende de algum modo das propriedades da sociedade; em vez disso, está apenas rejeitando certas teorias da verdade eminentemente rejeitáveis. Ό ponto central”, diz Gutting, “é que o nosso ‘discurso sobre a verdade’ deve limitar-se a uma asserção, sem comentário filosófico nem elaboração, dos lugares-comuns basilares acerca da verdade; e a um exame da arbitrariedade e/ou incoerência dos esforços para criticar (ou seja, analisar, modificar, ou justificar) as verdades 9E c claro que não estamos pensando em propriedades “cambridgianas”, como scr tal que C seja verdadeira. Mas então em que propriedades exatamente estamos pensando? Seria internamente contrário ao espírito da investigação rortiana tentar responder a essa pergunta, de modo que não irci fazê-lo. wJhepost cardfrom Socrates to Freud and beyond, tradução para o inglês dc Alan Bass (Chicago: University of Chicago Press, 1987), p. 98 [edição em português: Cartão-postal (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007)].

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basilares”.11 A ideia básica é que há várias verdades que são lugares-comuns, e de senso comum, acerca da verdade: que as crenças são verdadeiras ou falsas, mas não ambas; que geralmente não podemos tornar uma crença verdadeira desejando apenas que o seja; que é possível que todos tenhamos crenças falsas (tal como pensamos que as pessoas em outros tempos tinham crenças falsas acerca da forma da Terra); que a crença de que todos os seres humanos são mortais é verdadeira se e somente se todos os seres humanos são mortais — e assim por diante. Essas trivialidades são todas verdadeiras e devemos aceitá-las todas; além disso, qualquer crítica filosófica delas, ou elaboração, modificação ou rejeição, está fadada a acabar em “arbitrariedade ou incoerência”. Gutting propõe isso como uma interpretação de Rorty, pelo menos de Rorty “sob sua própria luz mais favorável”. Entendido desse modo, Rorty parece-se um pouco com um Thomas Reid transposto para uma chave coloquial, talvez temperado com um pouco de Wittgenstein. Se é isso que Rorty quer dizer, ele certamente não é vulnerável às acusações de antirrealismo e relativismo dissolutos que lhe são frequentemente feitas. Tomadas assim, as suas perspectivas não são nem um pouco chocantes; e certamente não constituem anuladores da crença cristã. Entretanto, seria realmente isso que ele queria dizer quando, por exemplo, se pôs ao lado de Dewey, dando a entender que a verdade é o que os nossos pares nos deixam dizer? Se era, expressou-se um pouco descuidadamente. E mesmo dando-lhe todo o espaço compatível com a sua intenção de ser coloquial e não pedante, não seria um pouco forçado pensar que o que ele tenciona aqui é apenas rejeitar algumas críticas filosóficas dessas trivialidades básicas? E não é também um pouco difícil engolir a sugestão de que Rorty é ambíguo entre a rejeição da própria verdade, por um lado, e a rejeição de uma teoria particular da verdade, por outro? Isso seria como ser ambíguo entre a rejeição de uma teoria dos cangurus e a rejeição dos próprios cangurus. Essa sugestão, quer-me parecer, enfraquece Rorty de um modo implausível. De acordo com Gutting, o que Rorty realmente rejeita é uma perspectiva comumente associada ao realismo com respeito à verdade — ou seja, o representacionismo. Trata-se da ideia de que nós (ou as nossas mentes) têm representações e pensam por meio delas, as quais só serão verdadeiras se “corresponderem à realidade”. O problema com essa perspectiva, conforme Rorty (segundo Gutting), é que ela se depara inevitavelmente com a questão de como sabemos, e se sabemos, que as nossas representações correspondem de fato à realidade. Aqui levantam-se mais problemas. Para Gutting, Rorty sanciona todas as trivialidades básicas de senso comum acerca da verdade e da nossa relação com ela, mas acaso essas mesmas trivialidades não incluem o próprio representacionismo? O próprio representacionismo — pelo menos em uma versão básica — não seria uma trivialidade? E uma trivialidade básica que as crenças são acerca de coisas de um gênero qualquer; por exemplo, algumas das minhas crenças são relacionadas à Lua. Outra trivialidade básica é que as crenças podem representar as coisas de uma maneira qualquer, por ,1‫״‬Richard Rorty: The rudiments of pragmatic liberalism”, in: Pragmatic liberalism and the critique of modernity (New York: Cambridge University Press, 1999).

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exemplo, uma das minhas crenças referentes à Lua representa-a como um satélite da Terra. E outra trivialidade básica ainda é que esta crença é verdadeira se e somente se, de fato, a Lua é um satélite da Terra —■ou seja, se e somente se o modo pelo qual essa crença representa a Lua é como a Lua realmente é — ou seja, se e somente se a crença sobre a Lua corresponde ao que a Lua é. O representacionismo em si parece estar incluído nesse pacote de trivialidades básicas; no mínimo, há uma versão desse pacote que é uma trivialidade. De maneira que Rorty não pode realmente rejeitar o representacionismo e aceitar todas essas trivialidades básicas.12 Assim, na semi-interpretação de Gutting, Rorty, por um lado, não é vulnerável às acusações de antirrealismo e relativismo irresponsáveis; por outro, as suas perspectivas revelam-se um pouco prosaicas e é claro que, tomadas desse modo, não constituem um anulador da crença cristã (ou seja o que for). Assim, suponha-se que entendamos Rorty da maneira mais robusta, considerando que defende teses substanciais e controversas sobre a verdade. Consideremos que ele sustenta que a verdade é uma construção humana e que uma crença ou outro candidato à verdade só é verdadeira (“para nós”) se tiver uma certa relação com a (nossa) sociedade. Como afirmei, isso parece realmente incompatível com a crença cristã. Primeiro, parece tornar a verdade acerca de Deus (ainda que apenas a verdade acerca de Deus “para nós”) dependente do que fazemos ou pensamos. Isso é claramente incompatível com as perspectivas cristãs acerca de Deus, segundo as quais Deus não depende seja do que for. Segundo, essa doutrina rortiana implica que há uma propriedade contingente (uma propriedade contingente não cambridgiana) P tal que é verdadeiro (“para nós”) que Deus existe se e somente se a nossa sociedade tem P. Ora, presumivelmente a nossa sociedade só pode ter uma propriedade se existir; logo, parece que a existência de Deus pressupõe a existência da nossa sociedade, de modo que, se a nossa sociedade não tivesse existido, Deus não teria existido também. Uma vez mais, isso é claramente incompatível com o teísmo cristão. Claro que essa tese de Rorty só constituirá um anulador se ele nos propiciar alguma razão para aceitá-la; o mero fato de ele ou outra pessoa se limitar a afirmar a tese não constitui um anulador. Ora, em geral, Rorty não é muito simpático a argumentos; apesar disso, apresenta realmente algo que podería talvez ser entendido como um argumento a favor da conclusão de que a verdade depende de nós, como sociedade, de um modo pertinente. Ele começa o livro Contingency, irony, and solidarity [Contingência, ironia e solidariedade] (CIS doravante) afirmando: “Há cerca de duzentos anos, a ideia de que a verdade era feita e não encontrada começou a ganhar expressão na imaginação da Europa”, contradizendo assim, aparentemente, uma daquelas trivialidades, a trivialidade

12Será que Rorty rejeita não o representacionismo em si, mas uma versão mais específica e minuciosa do representacionismo — talvez uma versão em que a correspondência cm questão envolve um tipo qualquer de isomorfismo entre os elementos do representante (o pensamento ou a frase) c o representado? Talvez, mas então (como acontece com suas teses eobre a verdade) a rejeição de Rorty do representacionismo não c tão interessante como parece à primeira vista.

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de que (em geral, pelo menos) a verdade é descoberta e não feita. Isso se parece certamente com a ideia (que não é uma trivialidade) de que a verdade é uma construção social e que dado candidato à verdade depende, para ser verdadeiro, se o for, de algo que os seres humanos fazem. De qualquer modo, eis o argumento de Rorty: Dizer que a verdade não existe independentemente de nós é dizer que onde não há frases não há verdade, que as frases são elementos das linguagens humanas e que as linguagens humanas são criações humanas. A verdade não pode ser independente de nós — não pode existir independentemente da mente humana — porque as frases não podem existir dessa maneira, não podem ser independentes de nós (CIS, p. 5). Como devemos entender isso, exatamente? E difícil ter certeza, mas eis uma possibilidade: as verdades são frases, as frases são elementos da linguagem e as linguagens são criações humanas; logo, as verdades são criações humanas, e se não existissem seres humanos (ou outras criaturas que usassem linguagem), não haveria quaisquer verdades. Segundo essa ideia, os seres humanos criam as verdades. O modo pelo qual o fazemos escapa talvez ao nosso controle direto (tal como o mercado de ações escapa ao nosso controle direto), mas apesar disso fazemo-lo de algum modo. Penso que era isso que Rorty pretendia afirmar; o que ele efetivamente diz, é claro, é lacônico e enigmático (como é próprio de uma contribuição para a conversa). Se é isso que ele quer dizer, contudo, há dois tipos de objeção ao argumento, sendo um sério e o outro, fatal. Primeiro, a objeção séria. As frases são de fato verdadeiras ou falsas, mas não são somente elas que o são. As crenfas também são verdadeiras ou falsas, assim como as asserções, teses, indicações etc. O argumento de Rorty parece pressupor que as crenças, asserções, teses, indicações e assim por diante são todas em si frases. Alternativamente, talvez a sua ideia seja que as frases é que são verdadeiras ou falsas no sentido primitivo e as outras coisas (crenças e asserções, por exemplo) verdadeiras de modo secundário (assim, ele podería dizer que uma asserção é verdadeira se for a asserção de uma frase verdadeira). Na melhor das hipóteses isso é dúbio. Há uma razão para pensar que pelo menos algumas coisas verdadeiras no sentido fundamental não são frases. Usemos o termo “proposição” para denotar as coisas que são verdadeiras ou falsas no sentido primitivo, deixando em aberto exatamente o que serão e, em particular, se são todas elas frases. Considere-se, então, a proposição (a verdade) de que 2 + 1=3 . Ora, essa verdade, como pensamos habitualmente, é necessariamente verdadeira; isso significa, entre outras coisas, que ela não podería não ser verdadeira; não há circunstâncias possíveis nas quais não seja verdadeira. Mas afrase “2 + 1 = 3” podería não ser verdadeira. Isso porque é urna frase e, do ponto de vista de Rorty, é verdadeira em razão do que fazemos com ela. Além disso, o que fazemos com ela é algo que poderiamos não ter feito. Logo, do ponto de vista de Rorty, as coisas poderíam ter sido tal que essa frase não teria sido verdadeira; de fato, antes

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de haver seres humanos, pensa Rorty, não havia a frase “2 + 1 = 3” ; nessas condições, a frase não teria sido verdadeira. Logo, a frase podería não ter sido verdadeira. A proposição de que 2 + 1 = 3, portanto, tem uma propriedade que afrase “2 + 1 = 3” não tem: a de ser necessariamente verdadeira — ou seja, ser tal que não podería não ter sido verdadeira. A proposição (a verdade) de que 2 + 1 = 3, consequentemente, não é a frase “2 + 1 = 3”.13 O mesmo acontece, como é natural, com qualquer outra verdade necessária. Esse é um argumento a favor da conclusão de que algumas verdades — as verdades necessárias — não são frases, mas podemos apresentar um argumento semelhante, ainda que ligeiramente mais complicado, a favor da mesma conclusão com respeito às verdades contingentes. Por uma questão de brevidade (brevidade que o leitor poderá estar pensando já ter sido vergonhosamente ignorada neste livro), irei omitir esse argumento. Esta era a objeção séria: pelo menos algumas das coisas que são verdadeiras ou falsas no sentido primitivo não são frases, ao contrário do que Rorty pressupõe. Volto-me agora para a objeção fatal. Suponhamos por um momento que as frases sejam as únicas coisas verdadeiras (ou falsas) no sentido primitivo. Nesse caso, talvez pudéssemos dizer que as verdades são feitas por nós, seres humanos: pois somos nós que fazemos com que determinada sequência de sons ou imagens constitua, de fato, \1m&frase e assim seja capaz de ser verdadeira ou falsa. (As coisas que constituímos como frases são tipos, penso, e não espécimes.) Pois tome-se qualquer verdade: ela é uma sequência de imagens ou sons e é também uma frase. Não fazemos a sequência de imagens ou sons; talvez criemos espécimes desses tipos, mas os tipos existiríam independentemente do que fizéssemos ou deixássemos de fazer. Apesar disso, aquela sequência de imagens ou sons é uma frase por causa daquilo que nós, que usamos a linguagem, fazemos com ela. E talvez pudéssemos exprimir isso dizendo que as verdades são feitas. Claro que não se seguiría que fazemos determinada frase ser verdadeira, nem que é em virtude do que fazemos que determinada frase é de fato verdadeira. Somos nós que fazemos a sequência de imagens “Já existiram dinossauros” constituir uma frase, sendo assim capaz de ser verdadeira ou falsa. Não se segue que somos nós que tornamos verdadeiro que já existiram dinossauros. Em razão da nossa atividade de produção linguística, fazemos com que certa sequência de imagens — “já existiram dinossauros” — seja verdadeira se e somente se já existiram dinossauros. Todavia, isso não é suficiente para tornar a frase verdadeira. Para que a frase seja verdadeira, é preciso que os dinossauros tenham de fato existido; e isso, presumivelmente, não é algo que nós tenhamos feito, seja por meio das nossas atividades de produção linguística, seja de qualquer outro modo. De certo ponto de vista, consequentemente, a conclusão do argumento de Rorty é que os seres humanos são responsáveis pela existência de frases (são responsáveis pelo fato de certas sequências de imagens ou sons serem frases) e, assim, pela existência das coisas que são verdadeiras ou falsas: desse modo, a conclusão não é objetável, 1J0 u , na verdade, qualquer outro objeto que tenha uma existência contingente: veja Warrant amiproperfunction (doravante IVPf), p. 117ss.

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é uma trivialidade e certamente não é candidata a anuladora da crença cristã. De outro ponto de vista, como a tese (que não é uma trivialidade) de que os seres humanos são responsáveis não apenas (por exemplo) pelo aspecto frásico de “Deus criou o mundo”, mas também pelo fato de Deus haver criado o mundo, a conclusão do argumento é, com efeito, incompatível com a crença cristã: desse modo, contudo, não há a menor das razões (além de alguma confusão) para pensar que essa conclusão seja verdadeira. Ela não se baseia nas premissas de maneira alguma. De um jeito ou de outro, portanto, não há aqui qualquer anulador.

C. O pós-modernismo como falta de fibra Uma última nota. Quase todos os pós-modernistas rejeitam o fundacionismo clássico; nisso, concordam com a maior parte dos pensadores cristãos e com a maior parte dos filósofos contemporâneos. Momentosamente, contudo, muitos pós-modernistas acreditam aparentemente que a falência do fundacionismo clássico implica algo muito mais surpreendente: que a verdade não existe em absoluto, que não existe um modo pelo qual as coisas realmente são. Por que razão dar esse salto, quando, em termos ló= gicos, é claro que um evento não decorre de outro? Por várias razões, certamente. Entre elas, destaca-se uma espécie de desejo prometeico de não viver em um mundo que nós mesmos não constituímos nem estruturamos. Na companhia do jovem Heidegger, um pós-moderno pode rejeitar sentir-se em casa em um mundo que ele mesmo não criou.14 Ora, isso pode ser em parte um pouco difícil de levar a sério (pode parecer mais uma afetação estúpida do que uma rebelião prometeica), de modo que apresento agora outra razão possível. Como observei (p. 96), o fundacionismo clássico nasceu da incerteza, do conflito e do desacordo clamoroso (e rancoroso) entre debatedores; surgiu em uma época em que todas as pessoas faziam o que aos seus próprios olhos era correto (epistemicamente falando). Ora, a vida sem fundamentos certos e seguros é assustadora, daí o esforço fatal de Descartes para encontrar uma base certa e sólida das crenças que descobria em si (daí também o esforço semelhante de Kant para encontrar um fundamento incontestável da ciência). Pensadores cristãos como Pascal, Kierkegaard e Kuyper, contudo, reconheciam que não há quaisquer fundações certas do gênero que Descartes procurava — ou, se as há, são tremendamente tênues, e não há maneira de transferir a sua certeza para as nossas crenças importantes não fundacionais acerca de objetos materiais, do passado, das outras pessoas e coisas semelhantes. Essa postura exige certa audácia epistêmica: a verdade existe de fato; o que está em causa é realmente muito importante (é muito importante acreditarmos ou não na verdade), mas não há como ter a certeza de que acreditamos na verdade; não há um método seguro e certo de chegar à verdade, começando pelas crenças acerca das quais não podemos estar enganados e avançando infalivelmente rumo1 1Veja CIS, p. 109.

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ao resto das nossas crenças. Além disso, muitos outros rejeitam o que nos parece mais importante. Assim é a vida na incerteza, a vida vivida em condições de risco e falibilidade epistêmica. Acredito em mil coisas, e muitas delas são coisas em que outros — de grande acuidade e seriedade — não acreditam. Na verdade, muitas das crenças para mim mais importantes são desse gênero. Dou-me conta de que posso estar séria, assustadora e fatalmente errado, e errado acerca do que é imensamente importante estar certo. Essa é simplesmente a condição humana. A minha resposta terá de ser, em última instância, “Aqui estou; parece-me que o mundo é assim”. Contudo, há aqui outro gênero de reação possível. Se é doloroso viver de maneira arriscada, com uma arma apontada para nós, em permanente incerteza, apesar de estarem em causa as coisas mais importantes, talvez seja melhor reduzir ou rejeitar a importância dessas coisas. Por exemplo, se a verdade pura e simplesmente não existe, então também não podemos nos enganar acreditando em algo falso ou não acreditando em algo verdadeiro. Se rejeitarmos a própria ideia de verdade, não precisaremos nos sentir ansiosos em relação à questão de acreditarmos na verdade ou não. Portanto, o que há a fazer é dispensar a procura da verdade e bater em retirada para projetos de outro tipo: a autocriação e redefinição de si, como no caso de Nietzsche e Heidegger; a ironia rortianals ou talvez a zombaria jocosa, como em Derrida.1516 Entendido desse modo, o pós-modernismo é uma espécie de falta de fibra epistêmica. II. P l u r a l ism o

Consequentemente, o pós-modernismo não oferece seja o que for que possamos adequadamente considerar como um anulador da crença cristã. No entanto, o que dizer dos fatos do pluralismo religioso, o fato de o mundo exibir uma diversidade desconcertante e caleidoscópica de maneiras religiosas e antirreligiosas de pensar, todas cultivadas por pessoas de grande inteligência e seriedade? Há religiões teístas, mas também pelo menos algumas religiões não teístas (ou talvez correntes não teístas de religião) entre a imensa diversidade de religiões englobadas sob os termos “hinduísmo” e “budismo”. Entre as religiões teístas, encontramos o cristianismo, o islamismo, o judaísmo, algumas correntes de hinduísmo e de budismo, as religiões ameríndias, algumas religiões africanas e outras ainda. Todas diferem significativamente entre si. Além disso, há quem rejeite todas as 15Apesar de Rorty ser aqui, como em outros casos, ambíguo. Note-se que o ironista dele pensa que não há qualquer vocabulário intrínsecamente final; acredita que nenhuma maneira de pensar está intrínsecamente mais próxima da verdade do que qualquer outra (“A dificuldade enfrentada por um filósofo que, como eu, é simpático a essa sugestão — que se vê como acólito do poeta e não do físico — é evitar insinuar que essa sugestão acerta em algo, que há um gênero de filosofia que corresponde ao que as coisas são" [ CIS, p. 8]) Paradoxalmente, contudo, o ironista sente-se também nervoso com o próprio vocabulário final, pensando que de algum modo pode estar enganado: “O ironista passa o tempo preocupando-se com a possibilidade de haver sido iniciado 11a tribo errada, tendo sido ensinado a jogar o jogo de linguagem errado. Preocupa-se com a possibilidade de que o processo de sociaJização que fez dele um ser humano, dando-lhe uma linguagem, tenha 111c dado a linguagem errada, fazendo dele assim o tipo errado de ser humano” (CIS, p. 75). ,6Veja Rorty sobre Derrida, CIS, p. 122ss.

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religiões. Dado que tenho conhecimento dessa imensa diversidade, não é de algum modo arbitrário, irracional, injustificado ou sem aval (ou talvez até opressor e imperialista) sandonar uma delas em detrimento de todas as outras? Como podería ser correto escolher e aceitar apenas um sistema de crença religiosa entre toda essa confusão imensa e vibrante? Não será isso de algum modo irracional? E não temos nós aí, consequentemente, um anulador da crença cristã? Como o autor do século 16 Jean Bodin escreveu, “cada uma delas é refutada por todas”.17 Segundo John Hick: “À luz do nosso conhecimento acumulado das outras grandes fés, [o exclusivismo cristão] tornou-se inaceitável exceto para uma minoria de dogmáticos obstinados”.18 Esse é o problema do pluralismo, e a nossa questão é saber se um conhecimento dos fatos do pluralismo constitui um anulador da crença cristã. O problema específico que pretendo discutir pode ser entendido como se segue. Formulando-o de um modo interno e pessoal, percebo que tenho certas crenças religiosas e me dou conta de que elas não são partilhadas por quase todas as pessoas. Por exemplo, acredito que (1) O mundo foi criado por Deus, um ser todo-poderoso, sumamente sábio e perfeitamente bom (um ser que tem crenças, objetivos e intenções e pode atuar para cumprir esses objetivos) e (2) Os seres humanos precisam de salvação, e Deus forneceu um modo especial de salvação por meio da encarnação, vida, morte sacrificial e ressurreição do seu filho divino.19 Ora, me dou conta de que muitas pessoas não acreditam nisso. Primeiro, há quem concorde comigo quanto a (1), mas não quanto a (2): há religiões teístas não cristãs. Segundo, há quem não aceite nem (1) nem (2), mas, apesar disso, acredita que há algo além do mundo natural, dependendo o bem-estar e a salvação humanos de uma relação adequada com tal coisa. Terceiro, no Ocidente e pelo menos desde o Iluminismo, há pessoas — naturalistas, como lhes podemos chamar — que não acreditam em qualquer uma delas. Alguns falam aqui de uma nova consciência da diversidade religiosa, e se

17Colloquium Heptaplomercs de rerum iublimium arcanis abditis, redigido por volta de 1593, só foi publicado em 1857. Tradução para o inglês de Marion Kuntz (Princeton: Princeton University Press, 1975), p. 256. 18God has many names, p. 27. E sem dúvida verdadeiro que o exclusivismo cristão (veja abaixo uma definição do termo) é uma opinião minoritária no mundo em geral: suponho que não há mais do que dois bilhões (ou algo assim) de exclusivistas cristãos, aproximando-se a população do mundo talvez de três vezes esse número. Claro que essas questões não se resolvem contando cabeças. Caso se resolvessem, contudo, teria algum interesse observar que há talvez um milhão de vezes mais desses “dogmáticos obstinados”do que pcesoas que aceitem algo como o pluralismo de Hick. 1'7Note-se que não faz parte de (2) acrescentar que quem não encontrou esse modo de salvação — os patriarcas do Antigo Testamento, por exemplo, assim como inúmeras outras pessoas — não pode participar dela.

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referem a essa nova consciencia como uma crise, uma revolução, um desenvolvimento intelectual (para nós, no Ocidente) da mesma magnitude da revolução copcrnicana do século 16 e da suposta descoberta, no século 19, da evolução e de nossa origem animal.20 Sem dúvida que há pelo menos alguma verdade aqui. Claro que o fato é que muitos cristãos ocidentais e judeus sempre souberam da existência de outras religiões e de que nem todas as pessoas partilham a sua religião. Os israelitas antigos — alguns dos profetas, por exemplo — estavam claramente cientes da religião canaanita; e o apóstolo Paulo diz que pregava o “Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios” ( 1 C 0 1.23). Outros cristãos primitivos, os mártires, por exempio, certamente suspeitavam que nem todas as pessoas tinham a crença deles. Os pais da igreja, ao oferecer apologias do cristianismo, estavam certamente a par desse fato; Orígenes, a propósito, escreveu uma resposta em oito volumes a Celso, que propunha um argumento muito semelhante ao dos pluralistas contemporâneos.21 Também Tomás de Aquino estava plenamente ciente daqueles a quem se dirigia na Suma contra os gentios; e o fato de haver religiões não cristãs não teria sido surpreendente para os jesuítas missionários dos séculos 16 e 17 nem para os missionários metodistas do século 19. Apesar disso, recentemente é provável que mais cristãos ocidentais tenham ficado cientes da diversidade religiosa do mundo; descobrimos provavelmente mais coisas acerca de pessoas que esposam outras crenças religiosas e começamos a ver mais claramente que elas demonstram o que parece ser uma piedade, devoção e espiritualidade genuínas. O que é novo, talvez, seja uma simpatia mais difundida pelas outras religiões, uma tendência a considerar que são mais valiosas, que seu conteúdo de verdade é maior, e um novo sentimento de solidariedade entre seus praticantes. Ora, uma forma de reagir a essas outras maneiras religiosas de ver o mundo é continuar acreditando no que sempre acreditei; descubro essa diversidade, mas continuo acreditando em (ou seja, tomando como verdadeiras) proposições como (1) e (2) da página anterior, consequentemente considerando falsas quaisquer crenças, religiosas ou não, que sejam incompatíveis com (1) e (2). Seguindo a prática atual, chamarei a essa atitude exclusivismo; o exclusivista sustenta que todos ou alguns dos preceitos de uma religião — do cristianismo, por exemplo — são de fato verdadeiros e acrescenta, o que é natural, que quaisquer proposições, incluindo outras crenças religiosas, que sejam incompatíveis com esses preceitos são falsas. Precisamos aqui de algumas ressalvas iniciais. Primeiro, vou aplicar o termo “exclusivista” unicamente a uma pessoa que esteja plenamente ciente de -’°E o caso de Joseph Runzo: “Hoje, a impressionante piedade c a evidente racionalidade dos sistemas de crenças de outras tradições religiosas confrontam incscapavclmente os cristãos com uma crise — e uma revolução potencial” (“God, commitment, and other faiths: pluralism vs. relativism”, Faith and Philosophy 5, n. 4 (Outubro de 1988), p. 343ss. 21Veja o artigo de Robert Wilken, “Religious pluralism and early Christian thought”, in: Remembering the Christian past (Grand Rapids: Eerdmans, 1995),cap. 2. Wilken ccntra-se no século 3: explora a resposta de Orígenes a CeLso e conclui que há paralelos surpreendentes entre a situação histórica de Orígenes e a nossa. “O que hd hoje de diferente, suspeito, não é que o cristianismo tenha de confrontar-se com outras religiões”, afirma, “mas sim que hoje chamamos a essa situação ‘pluralismo religioso’”.

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outras religiões, que tomou ciência com alguma torça e talvez com bastante frequência da existência delas e das respectivas teses, reparou que os adeptos de outras religiões parecem às vezes demonstrar grande inteligência, excelência moral e perspicácia espiritual e fez alguma reflexão sobre o problema do pluralismo, perguntando-se se é ou poderá ser realmente verdadeiro que o Senhor revelou a si e aos seus projetos aos cristãos, digamos, mas não se revelou do mesmo modo às pessoas de outras religiões. E, segundo, suponhamos que eu seja um exclusivista com respeito a (1), por exemplo, mas acredito razoavelmente, como Tomás de Aquino, que tenho um argumento fatal e arrasador, uma demonstração ou prova conclusiva da proposição de que Deus existe; e suponhamos que eu pense também que se quem não acredita em (1) fosse posto ao corrente desse argumento (e tivesse a capacidade e formação necessárias para o compreender, e se pensasse acerca do argumento de maneira justa e refletida), passaria a acreditar também em (1). Então, obviamente, os fatos do pluralismo religioso não me forneceriam um anulador para (1). A minha condição seria como a de Kurt Gõdel ao reconhecer que tinha uma prova da incompletude da aritmética. E verdade que muitos dos seus colegas não acreditavam que a aritmética era incompleta e alguns acreditavam que ela era completa; esses fatos não deram a Gõdel um anulador da sua crença; ele tinha a sua prova, afinal de contas. Além disso, esses fatos não lhe teriam fornecido um anulador mesmo que ele estivesse enganado ao pensar que tinha uma prova. Assim, usarei o termo “exclusivista” de maneira tal que uma pessoa não poderá ser considerada exclusivista se pensar racionalmente que conhece uma demonstração ou argumento conclusivo a favor da crença com respeito à qual é exclusivista, ou mesmo que pense racionalmente que conhece um argumento que convencería todas ou quase todas as pessoas inteligentes e honestas da verdade dessa proposição. E a nossa questão é saber se é possível ser um exclusivista racional no sentido anterior, ou seja, a nossa questão é saber se o meu conhecimento dos fatos do pluralismo religioso, junto com a minha crença de que não tenho uma prova ou argumento que se possa esperar que convença quem discorda de mim, me dá um anulador de minha crença cristã. Terei de reconhecer que a existência dessas outras maneiras de pensar me dá um anulador da minha própria maneira de pensar?

A. Um anulador probabilístico? Como funcionaria exatamente tal anulador? Comecemos por refletir sobre um argumento antiteísta probabilístico baseado no pluralismo. J. L. Schcllenberg insta-nos a “considerar primeiro o caso de uma pessoa que supõe que há várias alternativas religiosas a determinada crença religiosa que são mutuamente excludentes, com as mesmas prohabilidades de r”.22 Ele sugere então que essa pessoa deveria supor que r é improvável (menos provável do que a sua negação) — pelo menos se ela pensar que há mais de* *2“Pluralism and probability", Religious Studies 33, η. 2 (Junho de 1997), p. 147.

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uma alternativa com uma probabilidade igual à de r; logo, ela não deve acreditar em r. Schellenberg concede então que o crente típico não suporá que aquilo em que acredita não é mais provável do que as alternativas (se o fizesse, por que haveria de acreditar nisso?), mas ele pensa que o seu argumento pode, apesar de tudo, ser reformulado como se segue: Em suma (e abrindo espaço para uma atribuição não uniforme de probabilidades às alternativas), podemos dizer muito em geral que a seguinte proposição pode ser enearada pelo crítico como uma condição suficiente da improbabilidade de qualquer crença religiosa r com um status epistêmico superior ao de cada uma das suas alternativas: r é improvável se o número de vezes em que a sua probabilidade excede a de cada uma das alternativas disponíveis mutuamente excludentes (ou a média das suas probabilidades) for excedido pelo número dessas alternativas. Por exemplo: Mesmo que um cristão supusesse que a sua crença trinitária é significativamente mais provável do que cada uma das várias alternativas judaicas, hindus, budistas..., a aplicação da abordagem aqui descrita podería mesmo assim dar lugar à conclusão de que a sua crença é provavelmente falsa. Pois, mediante reflexão, poderia parecer intuitivamente óbvio ou pelo menos muito provável para o cristão que o grau de probabilidade superior que seria crível reivindicar para si não seria suficiente para impedir que a probabilidade combinada das alternativas cabíveis ultrapassasse a das suas crenças (p. 148). A ideia básica, consequentemente, é que a reflexão sobre os fatos do pluralismo deveria levar o crente a pensar que a probabilidade de sua crença é relativamente baixa, talvez até inferior a .5. Todavia, eis a pergunta crucial: provável com respeito a quê} Qual é o corpo de evidências com respeito às quais Schellenberg pensa que a crença cristã deve ser mais provável do que improvável para que o cristão não seja irracional? Se é o conjunto de crenças que o crente efetivamente aceita, é claro que a probabilidade das suas crenças será 1. Afinal, o crente não pensa apenas que é provável que, por exemplo, Jesus Cristo seja o divino Filho de Deus. Ele acredita nisso, essa crença faz parte do conjunto de proposições em que ele acredita; logo, a sua probabilidade com respeito a esse conjunto é 1. Se não é esse conjunto que Schellenberg tem em mente, contudo, qual é? Qual é o corpo de crenças com respeito às quais a crença cristã deve ser provável para que seja razoável? A abordagem de Schellenberg (como a de muitos outros) parece só fazer sentido se o crente, para ser racional, tiver de sustentar as suas crenças cristãs com base na relação destas com outras crenças suas — ou, pelo menos, apenas sc essas crenças cristãs forem prováveis com respeito a essas outras crenças. Uma das principais teses que este livro procura provar, contudo, é que o crente pode ser perfeitamente racional ao aceitar algumas das suas crenças da maneira básica — e não com base (probabilística ou não) em outras crenças.

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Sem dúvida que há subconjuntos S do nosso conjunto total de crenças com respeito aos quais a crença cristã é realmente improvável; talvez, de fato, seja improvável com respeito a todo o resto em que acreditamos (supondo, por ora, que há uma maneira límpida de segregar as nossas crenças cristãs das outras). Entretanto, em que medida isso vem ao caso? O mesmo será verdadeiro, sem dúvida, com respeito a muitas outras crenças que temos de modo perfeitamente racional. Estamos jogando bridge e dão-nos todos os setes e oitos. As probabilidades contra isso são formidáveis; há muitas alternativas que são pelo menos igualmente prováveis; significa isso que a nossa crença de que nos foram dados todos os setes e oitos é irracional? Claro que não. A razão, obviamente, é que essa crença tem uma fonte de aval independente de qualquer outro aval obtido por meio das suas relações probabilísticas com as nossas outras crenças. O mesmo acontece no caso da crença cristã. Se houver uma fonte de aval da crença cristã que seja independente de qualquer aval que ela possa obter por meio de relações probabilísticas com outras crenças, o fato (se é que se trata de um fato) de a crença cristã não ser particularmente provável com respeito a essas outras não mostra nada de grande interesse. Não fornece, certamente, um anulador da crença cristã.

B. A acusação de arbitrariedade moral Esta abordagem, consequentemente, não parece promissora. Haverá algum outro fator próximo que pudesse produzir um anulador? Talvez a sugestão mais importante nessa vizinhança seja a de que há algo de arbitrário na aceitação da crença cristã. Considera-se então que essa arbitrariedade tem um componente moral e outro intelectual: pensa-se que não tem justificação (é contrária ao dever doxástico) e que é irracional. A acusação moral é que há uma espécie de egoísmo — talvez orgulho ou húbris — em aceitar erenças quando nos damos conta de que há quem não as aceite e de que muito provavelmente não temos argumentos que possam convencer tais pessoas. A acusação epistêmica foca-se também na arbitrariedade: a tese aqui é que o exclusivista está tratando de maneira diferente coisas semelhantes, caindo assim na arbitrariedade intelectual. E a ideia seria que tanto em um caso como no outro, quando o crente se conscientiza dessas coisas, tem um anulador da sua crença, tem uma razão para abandoná-la ou, pelo menos, para sustentá-la com menos firmeza. Centrar-me-ei na acusação moral, lidando de passagem com a acusação de arbitrariedade epistêmica.

1 0 caso a b stra to A acusação moral é que há uma espécie de arbitrariedade egocêntrica, uma espécie de arrogância ou egoísmo, na aceitação de proposições como (1) ou (2). Quem as aceita é culpado de uma falta ou deficiência moral séria. Segundo Wilfred Cantwell Smith, “a não ser à custa de insensibilidade ou delinquência, não é moralmente possível ir realmente ao mundo e dizer aos nossos semelhantes devotos e inteligentes: ‘... acreditamos

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que conhecemos Deus e temos razão; vocês acreditam que conhecem Deus e estão totalmente enganados”’.23 Assim, o que pode o crente dizer em sua defesa? Bem, temos de conceder desde logo que se ele acredita em (1) ou em (2), deve também pensar que quem acredita em algo incompatível com essas posições está enganado e crê no que é falso; isso é pura lógica. Além disso, deve acreditar que quem não acredita como ele — quem não acredita em (1) nem em (2), acreditando ou não nas suas negações — carece de uma crença em algo que é verdadeiro, profundo e importante. Claro que ele acredita realmente nessa verdade; daí que tenha de se considerar privilegiado com respeito a esses outros — esses outros de ambos os tipos. H á algo de muito valor, ele deve pensar, que ele tem e eles não têm. Eles ignoram algo — algo de grande importância — de que ele tem conhecimento. No entanto, acaso isso significa que ele está apropriadamente sujeito à censura anterior? Penso que a resposta precisa ser negativa. Ou, se for positiva, então sustento que temos um verdadeiro dilema moral, uma situação na qual, independentemente do que fizermos, agimos mal. Dados os fatos pluralistas da questão, não há realmente alternativa; não há qualquer atitude refletida que não esteja aberta às mesmas censuras. Quanto mais tentamos responder a essas acusações de arrogância, mais as agravamos: quem se aproximar suficientemente delas para as usar contra o crente cristão descobrirá provavelmente que se aplicam a si próprio. Como? Da seguinte maneira: como exclusivista, dou-me conta de não conseguir persuadir os outros de que deveriam ter a mesma crença que eu tenho, mas, apesar disso, continuo a ter a minha crença. E a acusação é que, em decorrência disso, sou arrogante ou egocêntrico, preferindo arbitrariamente a minha maneira de fazer as coisas às outras maneiras de fazê-las.24Todavia, quais as alternativas de que disponho com respeito a uma proposição como (1) ou (2)? Há três escolhas.25 Posso 23Religious diversity (New York: Harper and Row, 1976), p. 14. Uma afirmação semelhante de John Hick: Nem é razoável afirmar que a nossa própria forma de experiência religiosa, junto com a da nossa tradição, é verídica, ao passo que as outras não são. Claro que podemos afirmá-lo; na verdade, praticamente todas as tradições religiosas o fizeram, encarando formas alternativas de religião como falsas ou versões confusas e inferiores de si mesmas. [...] As pessoas de outras tradições têm, pois, igual justificação para confiar na própria experiência religiosa peculiar e para formar as suas crenças nessa base. [...] evitemos o dogma implausivelmentc arbitrário segundo o qual a experiência religiosa é toda ela ilusória, com a exceção exclusiva da nossa (An interpretation of religion, p. 235). Acerca do tópico da arrogância cpistêmica, veja também Paul De Vries “The ‘hermeneutics’of Alvin Plantinga”, Christian Scholars Review (Junho de 1989), p. 363ss.; Lee Hardy, “The interpretations o f Alvin Plantinga”, Christian Scholar's Review (Dezembro de 1991), p. 163ss.; a minha resposta, “Ad De Vries”, Christian Scholars Review (Dezembro de 1991), p. 171 ss_; e a resposta de De Vries’s a Hardy e a mint, “Intellectual humidity and courage: an essential epistemic tension”, Christian Scholar’s Review (Dezembro de 1991), p. 179ss. ‫“ ״‬A única razão para tratar a nossa tradição de maneira diferente das outras é a razão muito humana, mas não muito cogente, de que c a nossa!” (John Hick, An interpretation of religion, p. 235). 25Falar aqui de escolha dá a entender que eu posso simplesmente escolher qual das três atitudes adotar, o que é completamente irrealista. Talvez tenhamos pouquíssimo controle de nossas crenças; nesse caso, o crítico moral da crença não pode acusar o crente de negligenciar o dever moral, mas podería ainda argumentar que a postura dele é infeliz, lamentável, um estado de coisas deplorável. Mesmo que eu não consiga evitar a minha presunção c arrogancia, o fato de tê-las é ruim em si.

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continuar a acreditar nelas; posso suspendê-las, no sentido de Roderick Chisholm, não acreditando nelas nem nas suas negações; ou posso aceitar as suas negações. Considerese a terceira via, uma via assumida por aqueles pluralistas que, como John Hick, pensam que proposições como (1) e (2), assim como as suas colegas de outras religiões, são literaímente falsas, apesar de serem mesmo assim respostas de algum modo válidas ao Real. Isso não me parece de maneira alguma um avanço com respeito ao problema da arrogancia ou do egoísmo; não é uma saída. Se eu fizer o que Hick propõe, ficarei na mesmíssima condição em que estou agora: acreditarei em muitas proposições em que os outros não acreditam, dando-me conta de que não tenho qualquer argumento que necessariamente os convença. Pois nesse caso acreditarei nas negações de (1) e de (2) (assim como nas negações de muitas outras proposições que as pessoas de outras religiões aceitam explicitamente). Muitos outros, é claro, não acreditam nas negações de (1) e de (2); ao contrário, acreditam de fato em (1) e em (2). Encontro-me assim num estado em que acredito em proposições nas quais muitos outros não acreditam; dou-me conta, além disso, de não ter demonstrações a favor do que acredito. Se, no caso de quem acredita em (1) e (2), isso é suficiente para haver arrogância ou egoísmo intelectual, o mesmo acontece com aqueles que acreditam nas suas negações. Essa terceira alternativa, consequentemente, não nos ajuda de modo algum com respeito ao problema da arrogância-egoísmo-arbitrariedade. Considere-se por isso a segunda opção: posso, em vez disso, suspender a proposição em questão. Posso dizer comigo mesmo: “O curso correto aqui, dado que não consigo ou não conseguiría convencer quem não acredita no que eu acredito, é não acreditar nem nessas proposições nem em suas negações”. O objetor pluralista pode dizer que o curso correto é abstermo-nos da crença na proposição em causa, abstendo~nos também de acreditar em sua negação; denominemo-lo, portanto, “o pluralista abstêmio”. Evita ele desse modo, realmente, a condição que, da parte do exclusivista, conduz às acusações de egoísmo e arrogância? Na verdade, não. Pense-se, por um momento, acerca do desacordo. O desacordo é, fundamentalmente, uma questão de adotar atitudes conflitantes em relação a determinada proposição. No caso mais simples e conhecido, eu discordo do leitor se houver uma proposição/ tal que eu acredite emp e você acredite em — p. Contudo, esse é apenas o caso mais simples; há outros. O que agora nos interessa é este: você acredita em p e eu suspendo a minha crença, não acredito. Chamemos ao primeiro tipo de desacordo “contradizer” e ao segundo, “dissentir”. A minha tese é que se contradizer os outros é arrogante e egoísta, também dissentir o é. Pois suponhamos que você acredite em uma proposição p em que eu não acredito: talvez você creia que é errado discriminar as pessoas simplesmente com base na raça, ao passo que eu, reconhecendo que há muitas pessoas que discordam de você, não acredito nessa proposição. Também não desacredito, é claro; mas, nas circunstâncias em que me encontro, penso que é correto abster-me de acreditar. Nesse caso, não estarei eu condenando implicitamente a sua atitude, que consiste em acreditar na proposição, por ser de algum modo imprópria — ingênua, talvez, ou injustificada, infundada ou, de outro modo qualquer, inferior ao que seria melhor? Estou afirmando implicitamente que a minha

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atitude é superior à sua; penso, claro, que o meu curso de ação aqui é o correto e que o seu é de algum modo incorreto, inadequado, impróprio, sendo na melhor das hipóteses, nas circunstâncias em que nos encontramos, de segunda categoria. Dou-me conta de que não há aqui qualquer maneira de lhe mostrar que a sua atitude é incorreta, imprópria ou ingênua. Não serei então culpado de arrogância intelectual? De uma espécie de egoísmo, pensando que eu é que sei e não você, arrogando-me um status privilegiado referente a você? O problema do crente era ser obrigado a pensar que era detentor de uma verdade que muitos outros não tinham; o problema do pluralista abstêmio é ele ser obrigado a pensar que é detentor de uma virtude que os outros não têm, ou que atua corretamente quando os outros não o fazem. Se somos arrogantes por acreditarmos em uma proposição em que os outros não acreditam, não seremos igualmente arrogantes por suspendermos a crença quanto a uma proposição que os outros aceitam? Talvez o leitor responda dizendo que o pluralista abstêmio se vê em dificuldades, cai na arrogância, em virtude de dizer ou acreditar implicitamente que sua maneira de proceder é melhor ou mais sábia do que outras, adotadas por outras pessoas; e talvez ele possa fugir abstendo-se também dessa perspectiva. Não poderá ele escapar ao problema abstendo‫־‬se de acreditar que a discriminação racial é incorreta e abstendo-se também de ter a perspectiva de que, nas circunstâncias em que se encontra, é melhor suspender essa proposição do que afirmá-la e acreditar nela? Bem, sim, pode fazê-lo, mas então não tem mais nenhuma razão para se abster: não acredita que a abstenção é melhor ou mais apropriada, limita-se a abster-se. Permite-lhe isso escapar da acusação de que é egoísta? Talvez. Mas claro que ele não poderá sustentar também, sem fugir à coerência, que há algo de errado em não nos abstermos, em acreditar sem rodeios que o preconceito é errado; perdeu a objeção que tinha contra o exclusivista. Por isso, essa saída não está disponível para o pluralista abstêmio que acusa o exclusivista de arrogância e egoísmo. Na verdade, penso que conseguimos ver que o pluralista abstêmio que acusa o erente de arrogância intelectual está em uma situação dialética conhecida, mas periclitante; deu um tiro no pé, caiu na própria armadilha, defende uma posição que é de certo modo autorreferencialmente incoerente nas circunstâncias em que se encontra. Pois ele acredita que (3) Se S sabe que os outros não acreditam em p (e, acrescentemos, sabe que não consegue encontrar argumentos que irão persuadi-los de p), então S não deve acreditar em p\ isso, ou algo assim, é o fundamento das acusações que ele faz ao crente. O pluralista abstêmio se dá conta, sem dúvida, de que muitos não aceitam (3); e suponho que também se dá conta de que é improvável que consiga encontrar argumentos a favor de (3) que os convençam. Dada a sua aceitação de (3), portanto, o curso de ação correto para ele é abster-se de acreditar em (3), suspender a crença ou deixar de acreditar nessa proposição. Nas condições em que realmente se encontra — em específico, o seu conhecimento de

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que os outros não irão aceitar tal proposição — , ele não pode aceitá-la apropriadamente. Assim, se (3) for verdadeira, ninguém pode acreditar nela sem ser arrogante. (3) ou é verdadeira ou é falsa: no primeiro caso, caio na arrogância ao acreditar nela; no segundo, caio na falsidade ao acreditar nela; logo, não devo acreditar nela. Tendo consequentemente a pensar que não podemos, nas circunstâncias em que nos encontramos, sustentar apropriadamente (3) ou qualquer outra proposição que cumpra a função que o objetor quer. Não conseguimos encontrar aqui um princípio qualquer com base no qual possamos sustentar que o crente está agindo mal, cometendo uma falta moral qualquer — ou seja, não conseguimos encontrar um princípio tal que não seja, digamos, vítima de si próprio. O pluralista abstêmio é, portanto, autorreferencialmente incoerente; mas mesmo deixando de lado esse argumento dialético (que, de qualquer modo, haverá quem considere “bonitinho” e redondinho demais), não serão as acusações contra o exclusivista implausíveis e nada convincentes? Devo admitir que posso ser e tenho sido intelectualmente arrogante e egoísta de diversas maneiras; já caí certamente nesse vício, voltarei sem dúvida a cair, e nem sequer neste momento estou isento dele. Todavia, serei eu realmente arrogante e egoísta apenas por acreditar em algo que sei que há quem não acredite, sendo eu, além disso, incapaz de lhe mostrar que tenho razão? Suponhamos que eu pense na questão cuidadosamente, considere as objeções com todo o cuidado de que sou capaz, perceba que sou finito e, além disso, pecador, não sendo certamente melhor do que aqueles de quem discordo, sendo na verdade inferior, tanto moral como intelectualmente, a muitos cujas crenças são diferentes das minhas. No entanto, suponhamos que ainda assim me pareça claro que a proposição em questão é verdadeira: serei eu realmente imoral por continuar a acreditar nela? Tenho a certeza inelutável de que é incorreto tentar promover a minha carreira contando mentiras acerca dos meus colegas. Dou-me conta de que certas pessoas discordam de mim (ainda que nunca considerassem a hipótese de mentir acerca dos seus colegas, pensam que nada é realmente correto ou incorreto); algumas delas são pessoas por quem nutro um profundo respeito. Dou-me conta, além disso, de que é muitíssimo provável que não haja maneira alguma de eu conseguir lhes mostrar que estão enganadas. Contudo, penso que estão enganadas. Se eu pensar isso depois de uma reflexão cuidadosa — se considerar com a máxima simpatia de que sou capaz as teses de que discordo, se der o meu melhor para descobrir a verdade do caso — e ainda me parecer abjeto, odioso e incorreto mentir acerca dos meus colegas para promover a minha carreira, poderei eu realmente estar fazendo algo imoral ao continuar a acreditar no que antes acreditava? Não vejo como. Se, depois de refletir e pensar cuidadosamente, o leitor se vir convencido de que a atitude proposicional correta a assumir quanto a (1) e (2), diante dos fatos do pluralismo religioso, é abster-se da crença, como poderia você ser acusado de egoísmo por se abster? Isso mesmo que soubesse que há quem discorde de você. E acaso não se dará o mesmo se você acreditar nessas proposições? Assim, não consigo ver como se pode sustentar a acusação moral contra o exclusivismo. Se não pode ser sustentada, ela não fornece um anulador da crença cristã.

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2. Um c a so c o n c re to : G u ttin g A té aqui, consideramos a acusação de arbitrariedade moral abstraindo qualquer apresentação efetiva da defesa pluralista da arbitrariedade ou egoísmo de aceitar a crença cristã. Para remediar esse defeito, proponho-m e a considerar o argum ento de G ary G utting26 a favor dessa conclusão. Com o vimos, o fundacionista clássico sustenta que há o dever ou obrigação de aceitar apenas o que consideramos ao menos provável com respeito às nossas certezas fundacionais. G utting aceita a deontologia da imagem clássica, mas propõe um dever diferente. Graças “ao fenômeno m oderno do desacordo religioso”, afirma, a crença cristã e teísta precisa de justificação (p. 11). G utting pretende investigar a questão de saber se alguém pode justificada e conscienciosamente aceitar a crença cristã, dado haver desacordo quanto a ela (e, presumivelmente, dado que essa pessoa esteja ciente do desacordo). A questão não é (como acontece com a im agem clássica) saber se a justificação para aceitar a crença cristã exige em si evidências; a questão é saber se a justificação exige evidências ou argumentos quando sabemos que há quem discorde de nós. A sua conclusão, em suma, é a seguinte. (1) Temos de começar por distinguir o “assentimento decisivo” do “assentimento provisório”. Quando dou assentimento decisivo a p, considero que os argumentos atuais a favor de p me permitem terminar a procura de razões a favor ou contra a crença emp. No assentimento provisório, por outro lado, aceito p, mas sem terminar a investigação quanto à veracidade de p. O efeito disso é situar-me ao lado de p em disputas quanto à sua veracidade. Contudo, a minha aceitação de p se combina com um compromisso com a exigência epistêmica de continuar a discutir a veracidade dt p (p. 105). Em outras palavras, acredito que “é preciso discutir mais para determinar a veracidade de p". (2) Uma pessoa só tem o direito de dar assentimento decisivo a uma proposição que ela sabe que há quem não aceite se tiver um bom argumento a favor dessa proposição. (3) Ela tem o direito de dar assentimento provisório a uma proposição que os outros rejeitam, mesmo que não tenha bons argumentos a seu favor. (4) Dado haver um bom argumento (baseado na experiência religiosa) a favor da existência de Deus, tomado vagamente como “um ser bom e poderoso, preocupado conosco, que se revelou aos seres humanos” (p. 171), temos o direito de dar a essa proposição assentimento decisivo. Por fim, (5) não há qualquer argumento desse gênero a favor de doutrinas específicamente cristãs (a favor da crença, p. ex., de que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo) ou a favor de crenças mais específicas acerca de Deus, como a ideia de que ele é todo-poderoso, ou sumamente bom, ou onisciente, ou o criador dos céus e da terra. 2,‘Religious belief and religious skepticism (Notre Dame: University o f Notre Dame Press, 1982); a indicação das páginas da obra de Gutting refere-se a este livro.

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H á aqui, claramente, muito para discutir e muito para questionar. Limitar-me‫־‬ei ao seguinte: (1) O que G utting quer dizer com “justificação”? (2) Por que não tenho justificação para dar assentimento decisivo a uma proposição a favor da qual não tenho um bom argumento e acerca da qual sei que as pessoas discordam? No primeiro caso, é claro que ele concebe a justificação da perspectiva deontológica, quanto ao que é correto e incorreto, dever e obrigação, no que se refere a fazer jus aos nossos direitos epistêmicos. Uma pessoa que aceite a crença tradicional cristã diante do desacordo e sem um argumento a favor de suas crenças, acusa ele, não está satisfazendo as suas obrigações intelectuais. Qual é especificamente o dever que ela viola? O dever de evitar o egoísmo epistemológico. Este é o dever violado pelo cristão que está ciente do desacordo, mas não tem bons argumentos: Primeiro, acreditar em p [quando não tenho um argumento e sei que há quem discorde] é arbitrário no sentido de não haver razão para pensar que a minha intuição (ou seja, o que parece obviamente verdadeiro para mim) tem mais probabilidade de estar correta do que a intuição de quem discorda de mim. Acreditar em p porque a sua veracidade é sustentada pela minha intuição é assim um egoísmo psicológico tão arbitrário e injustificável quanto se considera geralmente que o egoísmo ético o é (p. 86, grifo de Gutting). [Um] observador epistêmico neutro não tem intuição a favor de p nem contra p e não pensou o suficiente acerca de^> para que seja significativo o fato de ele não intuir nada em relação a p. Do ponto de vista desse observador, os fatos são simplesmente os seguintes (tomando por razões de simplicidade o caso do desacordo entre dois colegas): (1) a pessoa A tem uma intuição de que p é verdadeira; (2) a pessoa B intui que p é falsa; (3) não há razão para pensar que a intuição de A tenha mais probabilidade de estar correta do que a de B, ou vice-versa. Certamente que a única atitude apropriada para ele é suspender o juízo acerca de p. No entanto, mesmo que eu seja A, ou B, não deverei ajuizar a situação como a ajuiza o observador neutro? Certamente que é incorreto preferir a minha intuição simplesmente por ser minha (p. 87). Assim, há um problema moral com o crente que sabe que outros discordam dele, mas não tem um argumento a favor das próprias perspectivas: ele é epistemicamente arrogante, egoísta e egocêntrico por preferir arbitrariamente a maneira que ele pensa que as coisas são à maneira que outros pensam que elas são (e talvez, ao notar isso, cie tenha um anulador das suas crenças). Precisamos fazer aqui algumas perguntas. Primeira, será realmente verdadeiro que se eu sou tal pessoa, então “prefiro a minha intuição simplesmente por ser minha”? Na verdade, não. Penso que é incorreto discriminar alguém só por ser de uma raça diferente (apesar de conhecer quem discorde). Não conheço quaisquer argumentos a íavor da minha crença, ou pelo menos argumentos capazes de convencer quem discorda; essa perspectiva parece-me simplesmente correta. Apesar disso, não aceito essa crença com base no fato de ser a minha crença ou a minha intuição: isso não faz sentido. Não a aceito como conclusão de um argumento cuja premissa é que essa é a minha intuição;

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não estou raciocinando como se segue: p parece correta a mim, logo p. Não a aceito, de modo algum, com base em outras proposições. E verdade que a aceito porque, quando penso nela, ela me parece correta; o “porquê”, contudo, não significa que o que se segue é a minha razão, argumento ou evidência a favor do que o precede. Para que a posição de Gutting seja realmente relevante, ele tem de nos dizer algo mais acerca desses argumentos cuja posse me protegeria do egoísmo psicológico quando acredito em algo em que outros não acreditam. Que tipo de argumento se exige? Para começar, esse argumento, segundo Gutting, tem de ser bom. Muito bem; os maus argumentos não cumprem a sua função. Mas o que é um bom argumento? No capítulo sobre Rorty a que me referi (na p. 430), Gutting concorda aparentemente com Rorty em que um bom argumento (bom “para mim”) consiste em razões que a minha comunidade epistêmica aceita. Se essa for a direção do vento, contudo, pouco problema haverá para o cristão; afinal, a comunidade epistêmica cristã poderá estar perfeitamente disposta a aceitar razões a favor da crença cristã (p. ex., que a Escritura a afirma), razões que não serão aceitas por quem não pertence a essa comunidade. Entendida assim, a exigência de Gutting é fácil de satisfazer — trivialmente fácil. Suponhamos, então, que ele tem em mente algo mais rigoroso. Um bom argumento, presumivelmente, será válido e deverá ter também algumas virtudes não formais: não pode ser circular nem poderá incorrer em petição de princípio relativamente àqueles com os quais discordo. Mas, então, o que dizer das suas premissas? Se o meu argumento é válido, não surgirá o mesmo desacordo com respeito às premissas? Se forem ainda proposições que quem discorda de mim não aceitará, presumivelmente não terei também o direito epistêmico de aceitá-las, a menos que tenha outro argumento a seu favor. Claro que as premissas desse outro argumento precisarão satisfazer as mesmas condições: se os outros não as aceitarem, não lhes poderei dar assentimento decisivo, a menos que tenha outro bom argumento a seu favor. O resultado, aparentemente, é que o meu dever me impede de integrar quaisquer desacordos últimos, pelo menos aqueles de que estou ciente e pelo menos no que diz respeito ao assentimento decisivo. É possível que isso esteja certo? Talvez não haja maneira de encontrar muito terreno moral comum com um membro da Ku Klux Klan. Talvez não consigamos encontrar premissas que ambos aceitemos e que integrem um bom argumento a favor das nossas perspectivas e contra as dele. Seguir-se-ia realmente que não temos o direito de dar um assentimento decisivo à proposição de que a discriminação racial é imoral? E claro que não. Bem, talvez Gutting pense que se não tivermos um argumento a favor de p e soubermos que há quem não acredite em p, estaremos sendo egoístas mesmo que não raciocinemos como acima — ou seja, mesmo que não acreditemos na intuição ou a aceitemos apenas por ser a nossa. Mas, será isso realmente verdadeiro? Tal como o formuíamos, certamente que não. Podemos percebê-lo regressando a um exemplo anterior. A polícia me leva à delegacia, acusando-me de um crime sério: roubar uma vez mais a sua bandeira frísia. Na delegacia, descubro que o prefeito afirma ter-me visto rondando a sua porta traseira quando da ocorrência do crime (ontem, no meio da tarde); sabe-se que

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nutro um ressentimento por você (em parte porque fiquei irritado com o seu artigo em The National Enquirer, segundo o qual sou na verdade um alienígena do espaço sideral). Eu tinha os meios, o motivo e a oportunidade; além disso, já estive envolvido em outros episódios sórdidos. No entanto, lembro-me claramente de haver passado a tarde inteira fazendo uma caminhada solitária perto do M onte Baker. A minha crença de que estava caminhando não se baseia na argumentação (não reparo, p. ex., que me sinto um pouco cansado, que os meus tênis estão enlameados e que há um mapa topográfico do Monte Baker no bolso da minha capa de chuva, concluindo então que a melhor explicação desses fenômenos é que andei caminhando por lá). Além disso, não consigo pensar em um argumento ou em outra maneira qualquer de convencer a polícia de que eu estava no M onte Baker (a noventa e cinco quilômetros do local do crime) quando o roubo ocorreu. Contudo, acredito que era aí que eu estava. Ou seja, tenho uma crença a favor da qual não consigo dar qualquer argumento e sei que essa crença é disputada por outros. Serei consequentemente culpado de egoísmo psicológico? Certamente que não. Por quê? Porque me lembro de onde estava, e isso por si só me dá o direito de acreditar que estava fazendo uma caminhada, mesmo que haja quem discorde de mim. Bem, não é exatamente assim; a rigor, é o fato de eu acreditar que me lembro, e não o fato de me lembrar efetivamente, que me dá razão do ponto de vista moral. Tenho justificação, não estou contrariando nenhum dever ou a obrigação, neste caso, porque acredito, e acredito sem culpa, que tenho uma fonte de conhecimento ou informação acerca dos meus movimentos que a polícia não tem: a minha memória. Se eu pensasse que não sei mais do que eles, e mesmo assim sustentasse firmemente a crença de que sou inocente, então seria, talvez, epistemicamente egoísta. Entretanto, penso que sei algo que eles não sabem, e o sei em virtude de um meio de conhecimento que eles não têm (eles sabem pela memória onde eles estavam, e não onde eu estava). E por isso que não estou fugindo a quaisquer deveres ou obrigações; é isso que me confere justificação. E por causa disso que não posso ser acusado de arbitrariedade ou egoísmo ao preferir a minha perspectiva à deles. Uma vez que esse é o ponto crucial, vamos observá-lo mais de perto. Tanto a racionalidade como o dever epistêmico, afirma o crítico, exigem que tratemos de maneira semelhante o que é semelhante. O crente cristão, contudo (afirma o crítico), viola esse dever ao acreditar arbitrariamente em (1) e (2) (acima, p. 437) diante da pluralidade de crenças religiosas conflitantes que o mundo exibe. Ora, suponhamos que a racionalidade e o dever epistêmico exijam, realmente, que se tratem casos semelhantes de maneira semelhante. E claro que você não violará essa exigência se as crenças em questão não tiverem paridade. E o crente cristão pensa que elas não estão no mesmo patamar: acredito que (1) e (2) são verdadeiras, ao passo que as crenças incompatíveis com qualquer delas sãofalsas. Assim, para ele, as crenças em questão não são semelhantes em nenhum aspeeto pertinente, então ele não está tratando casos semelhantes de maneiras diferentes. Para defender a sua posição, consequentemente, o crítico deveria argumentar que a crença cristã é, de fato, falsa; mas o mais provável é que ele não pretenda que a sua acusação de arbitrariedade dependa do pressuposto de que a crença cristã é falsa.

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A resposta será, é claro, que não é a paridade alética (terem o mesmo valor de verdade) que está em questão: o que conta é a paridade epistêmica. Que tipo de paridade epistêmica? Bem, talvez o crítico esteja pensando inicialmente na paridade epistêmica interna: a paridade com respeito ao que está internamente disponível ao crente. O que está internamente disponível inclui, por exemplo, relações detectáveis entre a crença em questão e outras crenças nossas; assim, a paridade interna incluiría a paridade de evidências proposicionais. O que está internamente disponível ao crente inclui também a fenomenología que acompanha a crença em questão: a fenomenología sensível e também a não sensível, que, nas evidências doxásticas, está envolvida na impressão de que a crença é simplesmente correta. Uma vez mais, pois, (1) e (2) não têm paridade interna, para o crente cristão, relativamente às crenças incompatíveis com elas. Afinal, (1) e (2) lhe parecem verdadeiras: têm para ele a fenomenología que acompanha esse parecer e têm as evidências doxásticas a seu favor; o mesmo não se pode dizer das proposições incompatíveis com elas. A resposta seguinte: não será provável que quem rejeita (1) e (2) a favor de outras crenças tenha evidências proposicionais a favor das suas crenças que tenham paridade com os dos cristãos a favor das suas? E não será também provavelmente verdadeiro que a mesma fenomenología, ou outra semelhante, acompanhe as suas crenças como acompanha as dos cristãos? Não será, pois, que essas crenças têm realmente paridade epistêmica e interna com (1) e (2), de maneira que o crente trata afinal casos semelhantes de maneira diferente? Acredito que não: penso que há realmente argumentos a favor de (1), pelo menos, que não há a favor das suas alternativas. Já quanto à semelhança de fenomenología, isso não é fácil dizer, não é fácil olhar para a interioridade alheia; é, na verdade, bem difícil descobrir esse gênero de coisa, mesmo com respeito a alguém que conhecemos muito bem. Apesar disso, estou disposto a estipular os dois gêneros de paridade. Concordemos, para efeitos de argumentação, em que essas crenças têm paridade epistêmica, no sentido de que a pessoa que abraça uma tradição religiosa diferente tem o mesmo gênero de indicadores internos — evidências, fenomenología e fatores semelhantes — a favor de suas crenças que tem o cristão a favor de (1) e (2). O que se segue daí? Regressemos ao caso da crença moral. O rei Davi viu a bela Bate-Seba, sentiu-se atraído por ela, mandou chamá-la, dormiu com ela e a engravidou. Depois de vários estratagemas para fazer Urias, o marido dela, pensar que era o pai do bebê, Davi arranjou uma maneira de ele ser morto dizendo ao seu comandante: “Posicionai Urias na linha de frente, onde a batalha for mais feroz, e deixai-o sozinho para que seja ferido e morra” (2Sm 11.15). O profeta Natã veio então à presença de Davi e contou-lhe uma história sobre um rico e um pobre. O rico tinha muitos rebanhos e manadas; o pobre tinha apenas uma ovelha, que foi criada com os seus filhos, “comia da sua porção, bebía do seu copo c dormia em seus braços; e ele a considerava como filha”. O rico recebeu hóspedes inesperados. Em vez de matar uma de suas ovelhas, apoderou-se da única ovelha do pobre, matou-a e serviu-a aos hóspedes. Davi explodiu de raiva: “O homem que fez isso deve ser morto”. Então, em uma das mais fascinantes passagens da Bíblia, Natã volta-se para Davi, estende os seus braços, aponta para ele, e declara: “Esse homem és tu l”. E então Davi vê o que fez.

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O que me interessa aqui é a reação de Davi à história. Concordo com Davi: aquela injustiça é completamente execrável; é difícil encontrar palavras que a qualifiquem. Acredito que uma ação assim é incorreta e que a proposição de que não é incorreta — seja porque nada realmente é incorreto, seja porque ainda que algumas coisas sejam incorretas, esta não o é — é falsa. De fato, não há muitas coisas em que eu acredite mais fortemente. Reconheço, contudo, que muitas pessoas discordam de mim; muitas acreditam que algumas ações são melhores do que outras, em um ou em outro aspecto, mas que nenhuma é realmente correta ou incorreta no sentido pleno em que eu penso que esta ação é incorreta. Uma vez mais, duvido que eu possa encontrar um argumento para lhes mostrar que tenho razão e que elas estão enganadas. Além disso, tanto quanto sei, as suas crenças têm para elas os mesmos marcadores epistêmicos internos, a mesma fenomenología, mutatis mutandis, que a minha tem para mim; talvez tenham o mesmo grau de evidências doxásticas. Estarei então sendo arbitrário, tratando de maneira diferente casos semelhantes, ao continuar a sustentar, como sustento, que de fato esse tipo de comportamento / radicalmente incorreto? Não me parece. Estarei enganado ao pensar que a discriminação racial é detestável, apesar de saber que há quem discorde e mesmo que eu pense que essas pessoas têm os mesmos marcadores internos a favor das suas crenças que eu tenho a favor das minhas? Uma vez mais, não me parece. Acredito no efetivismo sério, a perspectiva de que nenhum objeto tem propriedades em mundos nos quais nãp existe, não tendo nem sequer a propriedade da inexistência. Há quem não acredite nisso. Sou incapaz de convencê-los e talvez os marcadores internos das suas perspectivas opostas tenham para eles as mesmas qualidades que os meus têm para mim. Estarei sendo arbitrário ao continuar a pensar como penso? Não consigo ver como. E a razão aqui é esta: em cada um desses casos, o crente em questão não pensa realmente que as crenças em causa têm uma paridade epistêmica pertinente. O crente pode concordar que tanto ele como quem discorda dele estão igualmente convencidos da veracidade das suas crenças, concordando também que estas têm paridade interna, que os marcadores internos são semelhantes em geral ou nos aspectos pertinentes. Apesar disso, ele deve pensar que há uma diferença epistêmica importante: que de algum modo a outra pessoa se enganou, tem um ponto cego, não prestou total atenção, não recebeu algumas graças que ele recebeu ou está cego pela força da ambição, do orgulho, do amor materno ou por qualquer outra causa; ele deve pensar que tem acesso a uma fonte de crença avalizada a que o outro não tem.27 Se o crente conceder que não tem qualquer fonte especial de conhecimento ou de crença verdadeira com respeito à crença cristã — que não tem um sensus divinitatis, uma instigação interna do Espírito Santo, uma doutrina de uma igreja inspirada e protegida do erro pelo Espírito Santo, nada que não esteja disponível a quem 27E é claro que o crítico pluralista tem de pensar da mesma forma. Ele pensa que 0 que há a fazer quando há paridade epistêmica interna é suspender o juízo; está ciente dc que há quem náo pense assim (e que não ficará convencido com quaisquer argumentos que ele possa invocar) e, tanto quanto sabe, essa crença tem paridade interna com a sua. Se ele continuar na sua crença, portanto, ficará na mesma condição que a pessoa que ele critica, mas, se não continuar nela, já não terá uma objeção.

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discorda dele — então, talvez, seja adequado acusá-lo de egoísmo arbitrário, e então, talvez, ele tenha um anulador da sua crença cristã. Porém, por que haveria ele de conceder isso? Ele pensa normalmente (ou pelo menos deveria pensar normalmente) que há realmente fontes de crença avalizada que desembocam nessas crenças. (E aqui temos uma maneira pela qual o epistemólogo pode ser útil ao crente.) O crente crê, por exemplo, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo; pode acreditar nisso com base nas doutrinas da Bíblia e da igreja. Ele sabe que há quem não acredite nisso e não aceite, ainda, a autoridade da Bíblia (ou da igreja) quanto a este ou qualquer outro ponto. O crente tem uma explicação: há o testemunho do Espírito Santo (ou da igreja fundada e guiada por Deus); o testemunho do Espírito Santo permite-nos aceitar a doutrina da Escritura. E o Espírito Santo que “sela a crença nos nossos corações, para que possamos saber com certeza que Deus nos fala”; a obra do Espírito é “convencer os nossos corações de que o que é recebido pelos nossos ouvidos proveio dele”.28 O crente pensa, consequentemente, que está em uma posição epistêmica melhor, com respeito a essa proposição, do que quem não partilha as suas convicções porque acredita que tem o testemunho da igreja guiada por Deus, o testemunho interno do Espírito Santo ou talvez outra fonte qualquer de conhecimento. Ele pode estar enganado ao pensar assim, pode estar iludido, pode ser vítima de um erro sério e debilitante, mas não é necessariamente culpado por sustentar essa crença. Nesse caso, como no episódio da bandeira frísia, o crente acredita sem culpa que tem uma fonte de conhecimento ou crença verdadeira que é negada a quem discorda dele. Isso o protege do egoísmo epistêmico, tal como do anulador que podería acompanhar a consciência de tal fato.29 Como resultado disso, é claro, o crente sério não considerará que somos todos pares, crentes e descrentes, que estamos todos em paridade epistêmica quanto ao tópico da crença cristã. Ele sentirá provavelmente uma considerável simpatia pelo cardeal Newman: ... nas escolas do mundo, as vias para a Verdade são consideradas autoestradas abertas a todos os homens, independentemente das suas disposições e em todos os momentos. A verdade é algo que abordamos sem respeito. Todas as pessoas estão em paridade com os seus semelhantes, ou melhor, os poderes do intelecto, a finura, a sagacidade, a sutileza e a profundidade são entendidos como os guias para a Verdade. Os homens consideram que têm um direito tão completo de discutir temas religiosos como se fossem eles mesmos religiosos. Entram nos pontos mais sagrados da Fé a qualquer momento, quando 28Calvino, Commentaries on the Catholic Epistks, tradução para o inglês e edição de John Owen (Grand Rapids: Baker Book House, 1979), comentário a ljoão 2.27, p. 200. 29Mesmo que o crente não seja egoísta ao aceitar a crença cristã, não terá aqui, apesar de tudo, um anulador se, de fato, a crença cristã tiver paridade epistêmica com a sua negação? Caso ele não acredite nisso, não. Alguém podería talvez dar ao crente tal anulador se Gutting ou outra pessoa fosse capaz de apresentar um argumento poderoso a favor da tese de que há aqui paridade epistêmica. Como vimos no cap. 8, contudo, é provável que, se a crença cristã for verdadeira, ela tenha aval para quem a aceita. Isso significa que um argumento a favor da conclusão de que a crença cristã tem paridade epistêmica com a descrença exigiría um argumento previo de que a crença cristã é falsa. No entanto, se o crítico já tem um argumento a favor da falsidade da crença cristã, por que se dá ao trabalho de fazer essa acusação de arbitrariedade?

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lhes dá vontade — se vier a calhar, com um estado de espírito descuidado, nos seus momentos de lazer, acompanhados de um copo de vinho.30 A ideia de Newman é que há algo além dos “poderes do intelecto, a finura, a sagacidade, a sutileza e a profundidade”, algo que é necessário para a discussão apropriada dos temas religiosos ou, pelo menos, para a compreensão adequada da verdade com respeito a tais temas. Newman faz aqui eco de Jesus: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, pois ocultastes essas coisas aos sábios e eruditos e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10.21). Se essas coisas estão ocultas aos sábios e eruditos, não virá ao caso a queixa de que os sábios e eruditos não as aceitam (acrescentando que é epistemicamente egoísta aceitar, sem um bom argumento, o que os sábios e eruditos não aceitam). O crente cristão consequentemente pensará que há aqui uma fonte importante de conhecimento, além dos mencionados poderes do intelecto. Assim, quanto a esse ponto, ele acredita, presumivelmente sem culpa, que quem discorda dele não está realmente em paridade epistêmica com ele quanto a esse tópico, apesar de o crente poder ser, do ponto de vista epistêmico, imensamente inferior a quem dele discorda quanto a outros tópicos. A questão central aqui, portanto, é saber se as crenças cristãs estão ou não em paridade epistêmica com as crenças de quem discorda do crente. Essa é a questão central. Se algo como o modelo Aquino/Calvino (A/C) estendido apresentado no capítulo 8 for de fato correto, então há uma diferença significativa entre a situação epistêmica de quem aceita a crença cristã e quem não a aceita; o objetor está, pois, pressupondo injustificadamente e sem argumentos que nem esse modelo nem qualquer outro que pressuponha uma fonte de crença cristã avalizada é de fato correto, e que a crença cristã não tem uma fonte desse tipo. Nada há a favor desse pressuposto; a acusação de arbitrariedade, consequentemente, desintegrasse. Ora, Gary Gutting afirma (p. 84) que o crente não tem direito, nesse contexto, à perspectiva de que está em uma situação epistêmica melhor que a do descrente. Ele dá duas razões.31 Primeiro, a perspectiva do crente de que ele é o beneficiário do sensus divinitatis, da instigação interna do Espírito Santo ou da doutrina de uma igreja inspirada e protegida do erro pelo Espírito Santo “deriva de doutrinas epistemológicas que pressupõem o teísmo e que, por isso, não é legítimo invocar em uma defesa do direito epistêmico do crente a aceitar o teísmo”; e, segundo, “há pelo menos alguns crentes que não consideram que ‘Deus existe’é, sem dúvida, apropriadamente básica; é muito difícil ver como o crente poderá aplicar as perspectivas de Calvino, de uma maneira que não seja arbitrária, para negar que esses sejam os seus pares epistêmicos”. ™Sermons, chiefly on the theory of religious belief, preached before the University of Oxford (London: Rivington, 1844), p.190-1. ‫ ”־‬Como Marie Pannier observou em uma discussão, talvez Gutting devesse realmente ter dado uma terceira razão,que seria a reaplicação do seu princípio de que só temos justificação para dar assentimento provisório a quaíquer proposição que sabemos que há quem não a aceite; pois presumivelmente, o crente sabe que há quem não concorde que d e esteja em melhor posição epistêmica que o descrente — a saber, o objetor.

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Esses argumentos parecem falhos. A segunda razão de Gutting para crer que o cristão não tem direito de pensar que há tais fontes de crença avalizada parece não vir ao caso: o fato de alguns crentes não pensarem que a crença em Deus é apropriadamente básica não avança nem sequer um passo na direção de indicar que essas fontes não existem. E o que dizer da primeira razão, a tese de que o crente está envolvido em uma forma objetável de circularidade se pensar que é beneficiário de uma dessas fontes de crença? Mas como o crente pode estar envolvido em circularidade? Ele não está propondo um argumento a favor de seja o que for nem está propondo uma definição·, assim, como é possível que a circularidade mostre aí o seu desagradável focinho? Se o crente estivesse dando um argumento a favor do teísmo, propondo depois, como premissa, que ele tinha o benefício de uma dessas fontes especiais de crença, o seu argumento poderia ser circular. Mas, o crente não está argumentando a favor disso nem, aliás, precisa argumentar a favor seja do que for. Estarei envolvido em alguma circularidade objetável se apelar à física para ajudar a explicar como consigo percepcionar árvores e grama — ainda que o meu conhecimento da física dependa em parte da observação? Se não estiver argumentando a favor da conclusão de que a percepção é uma fonte de crença avalizada, não estarei envolvido em qualquer circularidade. Contudo, não terão as realidades do pluralismo religioso alguma relevância? Não haverá coisa alguma de importante nas teses dos pluralistas?32 E possível que o pluralismo seja completamente inócuo? Claro que não. Para ao menos alguns crentes cristãos, estar ciente da imensa diversidade de respostas religiosas humanas parece realmente reduzir o grau de confiança na sua crença cristã. Isso não acontece, ou não precisa acontecer, por meio de um argumento. Na verdade, não há quaisquer argumentos respeitáveis que partam da proposição de que aparentemente muitas pessoas devotas por esse mundo afora não aceitam (1) nem (2) e concluam que (1) e (2) são falsas ou que só podemos aceitá-las à custa de uma deficiência moral ou epistêmica. Todavia, conhecer quem pensa de maneira diferente pode reduzir o grau de crença na doutrina cristã. De um ponto de vista cristão, essa situação de pluralismo religioso é em si uma manifestação da nossa miserável condição humana e poderá realmente privar os cristãos de algum conforto e paz que o Senhor prometeu a seus seguidores. Pode também privar o crente do conhecimento de que (1) e (2) são verdadeiras, ainda que sejam verdadeiras e que ele acredite que o são. Dado que o grau de aval depende em parte do grau de crença, é possível, embora não necessário, que o conhecimento dos fatos do pluralismo religioso reduza o seu grau de crença e consequentemente o grau de aval de (1) e (2) para ele; portanto, pode privá-lo do conhecimento de (1) e (2). O crente poderá ficar em uma situação em que, se não houvesse conhecido os fatos do pluralismo, conhecería (1) e (2), mas agora que sabe desses fatos, não tem conhecimento de (1) nem de (2). Desse modo, pode acabar por saber menos ao saber mais.

12‫־‬Veja W. P. Alston, “Religious diversity and perceptual knowledge o f God”, Faith and Philosophy 5, n. 4 (Outubro dc 1988), p. 433ss.

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As coisas poderíam ser assim para o exclusivista. Mas elas, não têm de ser assim. Considere-se mais uma vez o paralelo moral. Talvez você tenha sempre acreditado que é profundamente errado que um terapeuta use a sua posição de confiança para seduzir uma cliente. Talvez você descubra que há quem discorde; são pessoas que pensam tratar-se de um pecadilho menor, como atravessar o sinal vermelho quando não há trânsito; e se dá conta de que é possível que essas pessoas tenham os mesmos marcadores internos a favor das suas crenças que você tem para as suas. Você pensa sobre a questão mais detidamente, recria e ensaia imaginativamente tais situações, ganha uma maior consciência do que está exatamente envolvido em uma situação dessas (a quebra de confiança, a injustiça e a iniquidade, a ironia vil de uma situação na qual alguém procura a ajuda de um terapeuta, mas só recebe mais sofrimento) e acaba por acreditar ainda mais firmemente que tal ação é incorreta. Desse modo, essa crença podería adquirir mais aval para você em virtude da descoberta de que algumas pessoas não veem as coisas como você e da re~ flexão que fez desse fato. Algo semelhante pode acontecer no caso das crenças religiosas. Uma consciência nova ou aprofundada dos fatos do pluralismo religioso pode nos fazer reavaliar a nossa vida religiosa, fazer=nos despertar, darmos uma compreensão renovada ou aprofundada de (1) e (2). Da perspectiva do modelo A/C estendido, podería ser uma ocasião para um funcionamento renovado e mais forte dos processos de produção de crença pelos quais apreendemos (1) e (2). Desse modo, o conhecimento dos fatos do pluralismo podería servir inicialmente como um anulador; a longo prazo, contudo, pode ter precisamente o efeito contrário. Os fatos do pluralismo religioso, consequentemente, como a crítica histórico-bíblica e os fatos do mal, não constituem, ou não devem constituir, um anulador da crença cristã.

0 sofrimento e o mal Por que razão me fazes ver a maldade e a opressão? [...] Por que ficas apenas olhando para os perversos e te calas enquanto o ímpio devora quem é mais justo do que ele? (He 1.3,13) Habacuque O nosso mundo contém uma quantidade e diversidade pavorosas de sofrimento e de mal; talvez nenhum século rivalize com o século 20 com respeito à magnitude de um ou de outro. Estou entendendo sofrimento como algo que abrange qualquer tipo de dor ou desconforto: dor ou desconforto que resulta de doença ou lesão, de opressão, de trabalho em excesso ou da idade avançada, mas também decepção conosco ou com o que nos coube por sorte na vida (ou das pessoas que nos são próximas), a dor da solidão, isolamento, traição, amor não correspondido; e há também o sofrimento que resulta da consciência do sofrimento alheio. Estou entendendo o mal, fundamentalmente, como o fato de criaturas livres agirem incorretamente, incluindo em particular a maneira pela qual os seres humanos se maltratam e se atacam. A dor e o sofrimento resultam muitas vezes do mal, como em alguns dos acontecimentos que marcarão a memória desse século — o Holocausto, o horrível experimento marxista de setenta anos na Europa oriental, com seus milhões de vítimas, a vilania de Pol Pot e de seus seguidores, os genocídios na Bosnia e na África. Claro que grande parte do sofrimento e do mal é banal e cotidiana, mas nem por isso é melhor. Ora, o mal e o sofrimento no nosso mundo têm, realmente, desconcertado e provocado perplexidade nos cristãos e em outros crentes em Deus. Esse desconcerto e perplexidade estão fortemente representados nas Escrituras cristãs e hebraicas, especialmente nos Salmos e no livro de Jó, ainda que não seja apenas aí, de modo algum. Confrontado com a concretude chocante de um exemplo particularmente horrível de sofrimento ou mal na sua vida ou na vida de alguém que lhe seja próximo, o crente pode sentir-se tentado a assumir perante Deus uma atitude que ele mesmo deplora — uma atitude de desconfiança, suspeita, amargura ou rebelião. Tal problema, falando em geral, é espiritual ou pastoral. Uma pessoa nele enredada pode não ser muito tentada a duvidar da existência ou até da bondade de Deus; contudo, pode sentir ressentimento diante de Deus, perder a confiança nele, ficar “de pé atrás”, ser incapaz de o ver como um pai afetuoso, vendo-o de fato como um ser distante e indiferente. Ora, muitos filósofos, entre outras pessoas, têm argumentado que o conhecimento da quantidade, diversidade e distribuição do sofrimento e do mal (abreviando: “os fatos

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do mal”) confronta o crente com um problema de um gênero bastante diferente.*1 Esses fatos, argumentam, podem servir de premissa a um poderoso argumento contra a própria existência de Deus — ou seja, contra a existência de uma pessoa todo-poderosa, onisciente e totalmente boa que criou o mundo e ama as criaturas que criou. Denominemos tal argumento de “ateológico”; os argumentos ateológicos remontam ao mundo antigo, a Epicuro, cujo argumento é repetido no século 18 por Hume: As velhas perguntas de Epicuro continuam por responder. Quer ele evitar o mal, mas não é capaz? Então é impotente. E capaz, mas não quer fazê-lo? Então é malévolo. E capaz e quer fazê-lo? De onde vem então o mal?2 A ideia é que esse argumento (mais exatamente, o conhecimento desse argumento) constitui um anulador da crença teísta — e se o for da crença teísta, o será também da crença cristã. Assim, a nossa questão neste capítulo é saber se o conhecimento dos fatos do mal constitui realmente um anulador da crença teísta e cristã. O conhecimento dos fatos do mal, junto com todo o resto que sei, me dá uma razão para abandonar a crença em Deus? Será que esse conhecimento me impede de continuar a sustentar a crença cristã racionalmente? Note-se que esse não é o problema tradicional da teodiceia. Não farei qualquer tentativa de “justificar o comportamento de Deus perante o homem”, de dar uma resposta à questão de saber por que Deus permite o mal em geral ou por que permite algumas formas especialmente odiosas do mal. A questão aqui é, em vez disso, epistemológica·, dado que a crença cristã pode ter aval do modo sugerido nos capítulos 6 a 8, será que o conhecimento dos fatos do mal é um anulador dessa crença? Claro que a resposta não precisa ser a mesma para todos os cristãos: talvez os fatos do sofrimento e do mal no nosso triste mundo não constituam um anulador para cristãos muito novos, para cristãos culturalmente isolados, para cristãos que pouco sabem acerca do sofrimento e do mal contido no nosso mundo ou para quem não tem uma consciência adequada da seriedade do que sabe. A nossa questão, contudo, é acerca dos “adultos intelectualmente sofisticados da nossa cultura” de Philip Quinn (p. 364). Será que posso ter maturidade, tanto intelectual quanto espiritual, estar ciente da imensa e impressionante quantidade e profundeza do sofrimento e do mal no nosso mundo, estar também ciente dos melhores argumentos ateológicos que partem dos fatos do mal, e mesmo assim continuar com a crença cristã de modo racional e avalizado? Poderia ela ’Vale a pena observar que muitos problemas, questões e tópicos diferentes pertencem à rubrica do problema do mal. Há, por exemplo, os problemas de impedir o sofrimento e o mal, os de os aliviar (saber como confortar e ajudar quem sofre), os de manter a atitude adequada perante quem sofre, o problema pastoral ou espiritual que mencionei e outros ainda; e, claro, uma resposta apropriada a um desses problemas pode ser totalmente inapropriada como resposta a outro. 1Dialogues concerning natural religion, edição de Richard Popkin (Indianapolis: Hackett Publishing, 1980), p. 63. Hume põe o argumento na boca de Filo, geralmente considerado o representante das perspectivas do próprio Hume [edição em português: Diálogos sobre a religião natural (Lisboa: Edições 70,2005)].

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mesmo assim ter suficiente aval para constituir conhecimento para mim? Argumentarei que a resposta correta é “Sim, certamente”. E não se trata de ser assim só para uns poucos casos excepcionais, para as Madres Teresas do mundo. Defenderei a tese de que, para qualquer cristão sério com um pouco de epistemología, os fatos do mal, por chocantes que sejam, não constituem qualquer obstáculo à crença cristã avalizada. Ora, até há vinte ou vinte e cinco anos, o mais famoso argumento ateológico com base nos fatos do mal visava à conclusão de que há uma incoerência lógica no que acreditam os cristãos. Estes acreditam a um só tempo que Deus existe (uma pessoa onipotente, onisciente e totalmente boa) e também que há mal no mundo; não é logicamente possível (defendia-se) que essas duas crenças sejam verdadeiras. Era o caso do finado John Mackie: Penso, contudo, que se pode fazer uma crítica mais significativa recorrendo ao problema tradicional do mal. Pode-se mostrar aqui não apenas que as crenças religiosas carecem de sustentação racional, mas que são positivamente irracionais, que as diferentes partes da doutrina teológica essencial são incoerentes entre si.3 Mackie argumenta em seguida que a existência de Deus é logicamente incompatível com a existência do mal e conclui que, dado o teísta estar comprometido com ambas as proposições, a crença teísta é claramente irracional. Hoje em dia, contudo, é muito comum se admitir que não há uma contradição direta nem uma falsidade necessária na afirmação conjunta de Deus e do mal; a existência do mal não é logicamente incompatível (mesmo no sentido amplamente lógico) com a existência de um Deus todo-poderoso, sumamente sábio e perfeitamente bom.4 Uma 3“Evil and omnipotence”, M ind (1955). O artigo tem sido continuamente reimprcsso. Para dificuldades do argumento de Mackie, veja o meu God, freedom, and evil (New York: Harper and Row, 1974), p. 24ss [edição em português: Deus, a liberdade e 0 mal (São Paulo: Vida Nova, 2012)]. No seu livro póstumo, The miracle of theism (Oxford: Oxford University Press, 1982), Mackie oscila entre a sua tese anterior de que a existência de Deus é diretamente incoerente com a do mal e a tese de que a existência do mal é uma evidência poderosa, mas logicamente inconclusiva, contra a existência de Deus. Veja as p. 150-75, e veja o meu “Is theism really a miracle?”, Faith and Philosophy (Abril de 1986). A tese de que o crente em Deus (o Deus do teísmo) comete uma contradição remonta a alguns dos enciclopedistas franceses, F. H. Bradley, J. McTaggart e J. S. Mill. Mais recentemente (além de Mackie), veja, por exemplo, H. J. McCloskey, “God and evú”, Philosophical Quarterly 10 (1960), p. 97; e Henry David Aiken, “God and evil”, Ethics 48 (1 9 5 7 5 8 ‫)־‬, p. 79. 4Para um argumento a favor dessa conclusão, veja o meu God,freedom, and evil, p. 19ss. Para um tratamento mais completo e rigoroso, veja o meu The nature of necessity (Oxford: Clarendon Press, 1974), cap. 9; e James Tomberlin; Peter van Inwagen, orgs.,A lvin Plantinga (coleção Profiles) (Dordrecht: D. Rcidcl, 1985), p. 36-55. Ao longo dos últimos vinte e cinco anos, muitos problemas e questões fascinantes foram suscitados pela discussão da defesa do livre-arbítrio. Em particular, há os argumentos contra a existência de contrafactuais da liberdade (verdadeiras e não triviais) de Robert Adams (“Middle knowledge and the problem o f e v i ,American Philosophical Quarterly [1977]) e de William Hasker (“A refutation o f middle knowledge”, Noús [Dezembro de 1986]). Um aspecto particularmente interessante aqui é a objeção das “bases e fundamentos” (segundo a qual as contrafactuais da liberdade com antecedentes falsas não poderíam ser verdadeiras porque são incapazes de ter bases ou fundamentos apropriados). Essa objeção remonta à controvérsia entre jesuítas e dominicanos do século 16, disputa essa cujo rancor crescente acabou por levar o papa a proibir os disputantes de se insultarem em público (apesar de ele não objetar, aparentemente, ao insulto consentido entre adultos, na privacidade dos seus aposentos). A objeção das bases e fundamentos recebeu

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linha de raciocínio importante na desintegração da tese tradicional da contradição inclui a noção de livre-arbítricr. apesar de ser logicamente possível que houvesse criaturas livres (criaturas cujas ações não estejam previamente determinadas, p. ex., por Deus, ou pelas leis da natureza junto com os estados anteriores desses seres) que sempre fizessem somente o que é correto, Deus não tem o poder de criar criaturas livres e fazê-las fazer apenas o certo (se ele fa z alguém fazer o que é correto, essa pessoa não faz livremente o que é correto). Claro que isso não é forçosamente suficiente para livrar o teísta de apuros. Também não há qualquer contradição na ideia de que a Terra é plana, ou que se apoia nas costas de uma tartaruga, que se apoia nas costas de outra tartaruga, e assim por diante, de maneira que são só tartarugas por aí abaixo; contudo, essas perspectivas (dado o que atualmente pensamos que sabemos) são irracionais (o leitor ficaria perturbado se os seus filhos adultos as adotassem). Quem oferece argumentos ateológicos do mal deixou de defender a tese de que a existência de Deus é inequivocamente incompatível com a do mal e passou a apresentar argumentos evidenciais ou probabilísticos. A tese aqui não é que a crença cristã é logicamente incoerente, mas sim que os fatos do mal oferecem evidências poderosas contra a existência de Deus. Esses argumentos evidenciais são também tipicamente probabilísticos: nos casos mais simples, defendem que a existência de Deus é implausível ou improvável com respeito aos fatos do mal, junto com o resto do nosso conhecimento de fundo — ou seja, o que todos sabemos, ou talvez aquilo em que acreditam atualmente todas as pessoas razoáveis e bem informadas. Assim, a tese ateológica típica atualmente não é que a existência de Deus é incompatível com a do mal; é a de que esta última fornece recursos para um argumento evidenciai ou probabilístico forte contra a primeira. Ora, de um ponto de vista ateológico, o argumento antigo a favor da incoerência da crença cristã tinha muito a seu favor. Era agradavelmente conciso; se houver uma contradição na crença cristã, é falsa e nada mais há a dizer. Não interessa o que, além disso, é ou não verdadeiro; e não interessa se há alguns argumentos bons, ou evidências de outros tipos, a favor da crença cristã: se ela for incoerente, será falsa, e isso decide a questão. Além disso, se observamos que uma proposição é falsa, não podemos continuar racionalmente a acreditar nela, de modo que tal argumento mostraria de uma vez só que a crença cristã seria falsa e irracional pelo menos para quem tivesse conhecimento do argumento. Entretanto, as coisas são muito diferentes no que se refere aos argumentos evidenciais contemporâneos do mal. Primeiro, suponhamos que o mal constitua uma um tratamento magistral do meu colega Thomas Flint, Divine providence: the Molinist account (Ithaca: Cornell University Press, 1998). Outro tema de grande interesse é a questão da “liberdade seletiva” (o termo é de David Lewis) (veja G. Stanley Kane, “The free-will defense defended”, New Scholasticism 50, n. 4 [1976] e David Lewis, “Evil for freedom’s sake?”, Philosophical Papers [Novembro dc 1993]): não podcria Deus haver deixado avançar aquelas escolhas livres, por parte das criaturas, que ele previa que seriam corretas, eliminando as que ele previa que seriam incorretas? Essa questão está ligada a outro tema fascinante, o das contrafactuais reversivas (veja David Lewis, “Counterfactual dependence and time s arrow”, Nous 13, n. 4 [Novembro de 1979], p. 455). E muito tentador entrar aqui nc6se6 temas, mas isso nos faria sair da epistemología e entrar profundamente na metafísica (há quem diga metafísica abstrusa e arcana, mas é claro que estaria enganado); a contenção deve prevalecer.

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evidência, de algum tipo, contra o teísmo: o que se segue daí? Nada de especial. H á muitas proposições que acredito serem verdadeiras e que são aceitas racionalmente, apesar de haver evidências contra elas. O fato de Pedro ter apenas três meses é uma evidência contra a hipótese de ele pesar oito quilogramas; contudo, posso ter a crença racional (e verdadeira) de que esse é o peso dele. Será que a ideia é, em vez disso, de que a existência de Deus é improvável com respeito à totalidade das nossas evidências, todo o resto que sabemos ou em que acreditamos? Para demonstrar isso, o ateólogo precisaria examinar a totalidade das evidências afavor da existência de Deus — os argumentos tradicionais, o ontológico, o cosmológico e o teleológico, assim como muitos outros;5 seria obrigado a pesar os méritos relativos de todos eles, pesando-os contra o argumento evidencialista do mal, para chegar à conclusão indicada. Isto é muitíssimo mais caótico e problemático do que uma demonstração sucinta e elegante de uma contradição, ao estilo de Mackie. Outro problema desse argumento ateológico torna-se visível se considerarmos as respostas à versão contemporânea mais popular do argumento do design inteligente — o chamado argumento do ajuste delicado. Esse argumento parte do fato aparente de que os valores das constantes fundamentais da Física — a velocidade da luz, a constante gravitacional, a intensidade das forças nucleares fortes e fracas — devem se situar em uma faixa excepcionalmente restrita para que a vida seja possível. Se esses valores tivessem sido ainda que muito ligeiramente diferentes (se, por exemplo, a constante gravitacional tivesse sido diferente mesmo que no mais minúsculo dos graus), os planetas habitáveis não se desenvolveríam e a vida (pelo menos uma vida vagamente parecida com a nossa) não seria possível. E isso sugere ou torna plausível a ideia de que o mundo foi concebido ou criado por um Arquiteto que visava à existência de criaturas vivas e, no fim, racionais, inteligentes, moralmente significativas. Uma resposta contemporânea é qut possivelmente “houve uma evolução de mundos (no sentido de universos inteiros) e o mundo em que nos encontramos é simplesmente um entre inúmeros outros que sempre existiram ao longo de toda a eternidade”.6 E dado um número infinito de universos, pensa Daniel Dennett, todas as distribuições possíveis de valores das constantes cósmicas teriam tido lugar (p. 179); por acaso encontramo-nos, como é natural, num desses universos onde as constantes permitem o desenvolvimento da vida inteligente. Mas então a probabilidade do teísmo, dada toda a sequência de mundos, não é partiallarmente elevada. Do mesmo modo, pois, um teísta poderia concordar que é improvável, dado apenas o que sabemos acerca do nosso mundo, que a pessoa de Deus exista. No entanto, talvez Deus tenha criado inúmeros mundos — de fato, todos os mundos (todos os universos) nos quais há uma preponderância geral e substancial do bem sobre o mal. Em alguns desses mundos, não há sofrimento nem mal; em outros, há bastante; por acaso, encontramo-nos

5Veja, quando publicado, o meu “Two dozen or so good theistic arguments”, ainda inédito. ‫■׳‬Daniel Dennett, D arwin’s dangerous idea (New York: Simon and Schuster, 1995), p. 177 [edição em português: A ideia perigosa de Darwin (Rio de Janeiro: Rocco, 1998)].

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num dos mundos onde há muito. No entanto, a probabilidade do teísmo, dado todo o conjunto de mundos, não é particularmente baixa.7 Além disso, suponhamos que o teísmo seja improvável com respeito a tudo aquilo em que acredito; alternativamente, suponhamos que tudo aquilo em que acredito me forneça evidências contra o teísmo e nenhuma a seu favor. O que se seguiría daí? Uma vez mais, nada de especial. Muitas das minhas crenças verdadeiras (que, da minha parte, é completamente racional aceitar) são improváveis dadas todas as minhas outras crenças. Sou um jogador de pôquer; é improvável, com respeito a tudo o mais que sei ou em que acredito, que eu tenha recebido todas as cartas de uma sequência do mesmo naipe; não se segue que se encontre ao menos a mais leve das irracionalidades na minha crença de que isso acabou de me acontecer. A razão, é claro, é que essa crença não depende, para que tenha aval, de ser provável em relação a tudo o mais em que acredito; ela tem uma fonte muito diferente de aval — a saber, a percepção. O mesmo acontece no caso do teísmo: tudo depende aqui, na verdade, da questão de saber se, como tenho argumentado, o teísmo tem ou pode ter uma fonte de aval — a percepção de Deus, o sensus divinitatis ou a fé e a instigação interna do Espírito Santo (veja acima, caps. 8 e 9) — distinta da sua probabilidade com respeito às outras proposições em que acredito. As questões importantes em relação a esses argumentos evidenciais ateológicos, consequentemente, são do seguinte gênero: o que se supõe exatamente que provam? Que o teísmo é falso? O u que é irracional que qualquer pessoa dada à reflexão e ciente dos fatos do mal o aceite? O u que os fatos do mal e essas considerações probabilísticas constituem, conjuntamente, um anulador do teísmo? Ou pelo menos para alguns teístas dados à reflexão, ainda que não para todos? Ou que os fatos do sofrimento e do mal tornam mais racional a rejeição da crença em Deus do que a sua aceitação? Ou o quê? Um dos principais problemas aqui é estabelecer o impacto que se propõe que os argumentos ateológicos do mal causem: o que se espera exatamente que eles provem? Precisaremos ter essa questão em mente ao observarmos alguns desses argumentos. H á vinte e cinco anos, não havia argumentos evidenciais ateológicos do mal desenvolvidos; isso é compreensível porque (aparentemente) quase todos os ateólogos eram da opinião de que a existência de Deus era inegavelmente incoerente com a do mal. Desde então, contudo, houve várias tentativas para formular e desenvolver argumentos evidenciais do mal. Algumas são engenhosas e, na verdade, reveladoras; procurarei provar, contudo, que não são mais bem-sucedidas que os antigos argumentos a favor da incoerência. Na verdade, o que aqui mais me surpreende é a fraqueza desses argumentos. Sugerirei então que há uma maneira completamente diferente (e muito mais promissora) de o ateólogo sustentar que os fatos do mal constituem um anulador da crença teísta. Apesar de promissora, entretanto, essa defesa, na minha opinião, tampouco é bem-sucedida. 7Para um desenvolvimento dessa ideia, veja a dissertação de doutorado de Donald Turner, God and the best o f all possible worlds (University o f Pittsburgh, 1994).

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I. A

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r g u m e n t o s e v id e n c iá is at eo ló g ic o s

Os últimos vinte e cinco anos, aproximadamente, assistiram ao desenvolvimento de várias versões diferentes do argumento evidenciai do mal. Nesta seção, examinarei alguns dos melhores.

A. Os argumentos de Rowe Começo por abordar um argumento que William Rowe vem propondo e desenvolvendo nos últimos vinte anos.8 Considerem-se alguns casos particularmente horríveis de mal ou sofrimento: o estupro e homicidio de urna menina de cinco anos (Ea) ou a morte demorada e dolorosa de uma corça em um incêndio florestal (E2). O argumento de Rowe é como se segue: P: Nenhum bem conhecido justifica, tanto quanto sabemos, que um ser onipotente, onisciente e perfeitamente bom [um serperfeito, em suma] permita Ej e E2;9 Logo, provavelmente Q2 Nenhum bem justifica que um ser perfeito permita Ej e E2; Logo, provavelmente não e G: Não há um ser perfeito. 8Veja o seu “The problem o f evil and some varieties o f atheism”, American Philosophical Quarterly (1979), p. 3 3 5 4 1 ‫־‬, reimpresso em Daniel Howard-Snyder, org., The evidential argument from evil (Bloomington: Indiana University Press, 1996),p. 1-11; “Evil and the theistic hypothesis: A Response to S.J.Wyksttz ,InternationalJournal fo r Philosophy o f Religion 16 (1984), p. 95-100; “The empirical argument from evil”, in: Robert Audi; William J. Wainwright, orgs., Rationality, religious belief and moral commitment (Ithaca: Cornell University Press, 1986); “Evil and theodicy”, Philosophical Topics 16 (1988), p. 119-32; “Ruminations about evil”, Philosophical Perspectives 5 (1991), p. 69-88; “William Alston on the problem of evil”, in: Thomas D. Señor, org., The rationality ofbeliefand theplurality of faith (Ithaca: Cornell University Press, 1994); e “The evidential argument from evil: a second look”, in: HowardSnyder, The evidential argumentfrom evil (doravante EAESL). , Rowe formula P, na verdade, como “Nenhum bem conhecido justifica que um ser onipotente, onisciente e perfeitamente bom permita E, e Ef ; contudo, não é de esperar que o teísta ou o observador neutro aceitem essa premissa, pois podería acontecer de um bem conhecido justificar que um ser perfeito permitisse E, e E2, ainda que não saibamos que o faça. Na verdade, Rowe admite a existência de bens conjuntos como G, a conjunção de todos os bens existentes. No entanto, G (é de supor) é um estado de coisas bom e, se o teísmo for verdadeiro, G justifica que um ser perfeito permita Ej e E2. Alternativamente, o teísta podería pensar que o bem inconccbivelmente imenso da encarnação e expiação — um bem conhecido — justifica Ej e E2. Isso podería acontecer deste modo: Deus seleciona para ser efetivado um dos melhores mundos, mas todos os melhores mundos incluem a encarnação e a expiação (veja, a seguir, p. 486) e, por isso também incluem o mal — se não específicamente Et c E2, ao menos outros males igualmente maus. O máximo que é sensato que o ateólogo moderno defenda, portanto (se espera conseguir a concordância do teísta c do observador neutro), é que nenhum bem conhecido justifica, tanto quanto sabemos, que um ser perfeito permita Ej e E2. Se Rowe insistir na sua premissa como originalmente formulada, parccc-mc que o teísta deve responder que não há razão para considerá-la verdadeira e há uma boa razão para considerá-la falsa.

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Estamos pensando aqui em bens e males como estados de coisas. Um estado de coisas pode ser efetivo ou não efetivo; só um bem efetivo, diz Rowe, podería justificar que um ser perfeito permitisse Ej e E2 (ou, na verdade, qualquer outro mal). Assim, a ideia por trás de P é que não conhecemos qualquer bem efetivo que, tanto quanto sabemos, seja suficiente para justificar que um ser perfeito permita Ej e Er Há vários problemas com esse argumento. No nível mais simples, contudo, o problema principal, depois de corrigirmos ou ignorarmos os outros, refere-se à inferência de P para Q^Olho para o interior da minha tenda: não vejo um são-bernardo; é provável, então, que não haja um são-bernardo na minha tenda. Isso porque, se estivesse lá um são-bernardo, é muito provável que eu o tivesse visto; não é fácil a um são-bernardo evitar ser detectado em uma tenda pequena. Uma vez mais, olho para o interior da minha tenda: não vejo nenhum borrachudo (pequeníssimos mosquitos com uma picada com‫־‬ pletamente desproporcional para o tamanho); dessa vez não é particularmente provável que não haja borrachudos na minha tenda — pelo menos não é mais provável do que antes de eu haver olhado. A razão, é claro, é que mesmo que houvesse borrachudos na tenda, eu não os veria; são demasiado pequenos. E agora a questão é saber se as razões de Deus, se é que ele as tem, para permitir males como Ε χ e E2 se parecem mais com os sãos-bernardos ou, antes, com os borrachudos. Suponhamos que Deus tenha uma razão para permitir um mal particular como Ej ou E2, e suponhamos que estejamos tentando descobrir que razão poderá ser essa: será provável que descubramos a resposta certa? Será ao menos provável que selecionemos alguns candidatos plausíveis à razão de Deus? Uma série de artigos importantes recentes de Stephen Wykstra, William Alston e Peter van Inwagen argumentam (entre outras coisas) que isso não é provável.10A razão principal é a distância epistêmica entre nós e Deus: mesmo que Deus tenha uma razão para permitir aqueles males, por que pensar que seríamos os primeiros a saber? Dado que ele é onisciente e dadas as nossas substanciais limitações epistêmicas, não é nada surpreendente que suas razões para algumas das ações que faz ou permite nos ultrapassem completamente. Mas nesse caso, do fato de nenhum bem conhecido por nós ser tal que sabemos que justifica (sirva de razão para) que Deus permita Ej e E2, não se segue pura e simplesmente que é provável, com respeito ao que sabemos, que tais bens não existam ou que Deus não tenha razão para permitir esses males. Os argumentos apresentados nesses artigos parecem-me conclusivos; não os repetirei aqui.1 1‫״‬Wykstra: “Difficulties in Rowe’s argument for atheism, and in one of Plantinga’s fustigations against It”, apresentado na Queen Mary, no Encontro da Seção do Pacífico da Associação Filosófica Americana, 1983; “The Humean obstacle to evidential arguments from suffering: on avoiding the evils of'appearance’”, InternationalJournal fo r Philosophy o f Religion 16 (1984), p. 73-94; “The ‘inductive’ argument from evil: a dialogue” (em coautoria com Bruce Russell), Philosophical Topics 16, p. 1 3 3 6 0 ‫ ;־‬Alston: “The inductive argument from evil and the human cognitive condition”, Philosophical Perspectives 5, p. 29-67; van Inwagen: “The place of chance in a world sustained by God”, in: T. Morris, org., Divine and human action (Ithaca: Cornell University Press, 1988); “The magnitude, duration, and distribution o f evil: a theodicy”, Philosophical Topics (1988); “The problem o f evil, the problem o f air, and the problem o f silence”, Philosophical Topics (1991). Poderiamos esperar que esses artigos fossem o golpe de misericórdia na forma de argumentação “Não vejo que razão Deus poderia ter parap\ logo, Deus provavelmente não tem nenhuma razão para p ” (mas é claro que não são).

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Mais recentemente (e parcialmente sob a pressão de alguns dos trabalhos mencionados na nota 10), o próprio Rowe passou a ver esse argumento com um olhar de desilusão: “Penso atualmente que esse argumento é, na melhor das hipóteses, fraco”.11 Consequentemente, ele o deixa de lado, favorecendo outro cujas perspectivas considera mais felizes: “Proponho que se abandone completamente esse argumento, apresentando o que me parece um argumento melhor a favor de pensar que P torna Q_mais provável que improvável” (p. 267). Depois de apresentar esse argumento, Rowe prossegue dizendo que “podemos simplificar o argumento consideravelmente ignorando completamente Q_ e passando diretamente de P para —G” (p. 270). Esse novo argumento é como se segue. Primeiro, devemos notar que Rowe visa P de um modo que ela seja implicada por não G; P é equivalente a P ’ Não há nenhum ser perfeito nem nenhum bem conhecido tais que o segundo justifique que o primeiro permita Ej e Er Rowe pressupõe então que P(G/k) e P(P/G&k) são ambas iguais a .5 (sendo k as nossas informações de fundo — aquilo que todos ou quase todos sabemos ou em que acreditamos). Segue-se então pelo cálculo de probabilidades que P(G/P8ck) é consideravelmente inferior a P(G/k); assim, P refuta G. Simplificado desse modo, esse é o novo argumento evidenciai do mal apresentado por Rowe. Lamento dizer, contudo, que esse novo argumento é, na melhor das hipóteses, ainda mais fraco que o anterior. Isso porque uma análise das características puramente formais do argumento mostra que ele é contrabalançado por outros argumentos com a mesma estrutura e força a favor de uma conclusão incompatível com a de Rowe (e, portanto, a favor da negação da sua conclusão).12 Em essência, o problema é duplo. Primeiro, o argumento de Rowe depende, na realidade (como já observamos), do fato de a conclusão que ele se propõe sustentar, ou seja, não G: Não há nenhum ser perfeito. implicar P, a premissa do seu argumento. Ora, o cálculo de probabilidades nos diz que se uma proposição A implica uma proposição B, então B confirmai, já que a probabilidade dt A dado B, junto com a nossa informação de fundo k, excederá a à zA dado k simpliciter (a menos que ou A ou B tenham uma probabilidade absoluta de 1). Assim, qualquer consequência contingente C de não G confirmará não G com respeito a qualquer corpo de informação de fundo k (k, é claro, não pode incluir ou implicar C). Mas então, do mesmo modo, qualquer consequência contingente de G confirmará G com respeito a qualquer corpo de informação de fundo k. Isso significa que o argumento 11Veja EAESL, p. 270. 13Para minúcias, consulte por favor o meu “Degenerate evidence and Rowe’s new evidential argument from evil”, Nous 32, n. 4 (Dez. 1998); veja também a resposta de Rowe, “Reply to Plantinga”, Nous 32, n. 4 (Dez. 1998).

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de Rowe será contrabalançado por outros argumentos — por exemplo, um argumento que use como premissa qualquer uma das seguintes proposições: P* Nem Ej ou E2 são tais que saibamos que não há bem algum que justifique que um ser perfeito os permita. P** Nenhum mal que conhecemos é tal que saibamos que nenhum ser perfeito terá, em razão de algum bem, justificação para permiti-lo. P***Nenhum mal que conhecemos é tal que saibamos que nenhum ser perfeito o permitiría. Presumivelmente, haverá tantos argumentos desse gênero afavor de G quantos os argumentos do gênero de Rowe contra G. O segundo problema é como o primeiro. O argumento de Rowe é na verdade um “argumento com base em evidências corrompidas” — um argumento no qual tomamos como novas evidências não a proposição que descobrimos, mas uma consequência dela mais fraca. Podemos vê-lo como se segue. A premissa P de Rowe é equivalente a P ’ Ou não G ou não conhecemos qualquer bem que saibamos que justifica E : e E2, onde um bem ¿·justifica um mal csee somente se, caso houvesse um ser perfeito b, e g e e fossem efetivos, g desse a b justificação para permitir e.u (Por exemplo, talvez certo tipo de crescimento moral da minha parte exija certa quantidade de sofrimento; e talvez consigamos ver que esse crescimento moral daria justificação a um ser perfeito para permitir o sofrimento em questão.) Ora, o que descobrimos ao refletir sobre E t e E2 (e sobre outros males) e sobre a sua relação com um ser perfeito é na realidade — J Não conhecemos qualquer bem que saibamos que justifica Et e E2. E claro que -J implica e é mais forte do que P’, a premissa do argumento de Rowe. E o problema com argumentos desse gênero é que, uma vez mais, haverá argumentos com a mesma estrutura e força a favor de uma conclusão incompatível. Por exemplo, suponha-se que ganho a loteria de Indiana (W). A probabilidade de W com respeito a k é muito baixa, digamos um em um milhão. Suponha-se agora que tomo como uma nova evidência meu não W, mas antes W o u ‫ ־‬G.

,‫־‬,Para o argumento, veja “Degenerate evidence”.

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Por um argumento igualzinho ao de Rowe,14podemos mostrar que a probabilidade de -G , dada essa premissa, junto com as informações de fundo pertinentes, é elevadíssima — algo como .999999. Claro que há um argumento semelhante a favor de G; aqui, a premissa será W o u G. Como fica claro, nenhum desses argumentos é um avanço real, e isso porque se contrabalançam mutuamente. O argumento de Rowe que parte de P e conclui por -G exibe a mesma estrutura desse argumento da loteria. Rowe se propõe a argumentar a favor de -G; as nossas “novas evidências” são na realidade — J, mas, para obter a sua premissa P, ele enfraquece essa nova evidência acrescentando a conclusão do seu argumento, -G , como uma disjunção, de modo que P é a proposição — J ou —G, ou é equivalente a ela. E isso que faz dele um argumento com base em evidências corrompidas. Para construir um argumento que o contrabalance, limitamo-nos a enfraquecer — J acrescentando G (a proposição de que há um ser perfeito) como disjunta, ao invés de -G ; esse argumento que contrabalança o original será a favor da negação da conclusão de Rowe e tão forte quanto o dele. Os argumentos baseados em evidências corrompidas, como é evidente, não servem para avançar a discussão.

B. O argumento de Draper Paul Draper apresenta um argumento bastante diferente.15 Pede-nos para considerar o padrão de dor e prazer no mundo: a quantidade e distribuição de cada um deles e as condições em que uma e outro existem. Draper defende então duas coisas: primeira, esse padrão de dor e prazer é muito menos provável dado o teísmo do que dada uma certa hipótese h que seja incompatível com o teísmo; segunda, esse fato suscita um problema sério para a crença teísta. Um dos aspectos em que o argumento de Draper é superior aos argumentos de Rowe é que não exige que tenhamos de ajuizar, com respeito a quaisquer tipos de males, a probabilidade de um ser onisciente, onipotente e sumamente bom os permitir. Contudo, ele afirma que “o nosso conhecimento da dor e do prazer cria um problema epistêmico para os teístas” (p. 12). Por que, exatamente? 1. F orm u lação inicial d o a rg u m e n to d e D ra p er

O problema não é podermos mostrar que uma proposição acerca da dor e do prazer é verdadeira e, ao mesmo tempo, logicamente incoerente com o teísmo. O problema é, sim, evidenciai. Uma afirmação que relate as observações e testemunhos nos quais sc baseia 14Uma vez mais, para minúcias veja “Degenerate evidence”. 15Veja o seu “Pain and pleasure: an evidential problem for theists”, Nous 23 (1989), p. 331ss. (Este trabalho foi reimpresso em EAESL; as páginas referidas são as deste último.) Veja também o seu “Evil and the proper basicality o f belief in God", Faith and Philosophy 8 (Abril de 1991), p. 135 ss.; “Probabilistic arguments from evil”, Religious Studies 28, n. 3 (Setembro de 1992), p. 285ss.‫־‬, e “Evolution and the problem o f evil”, in: Louis Pojman, org., Philosophy o f Religion, 3. ed. (Belmont: Wadsworth, 1997).

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o nosso conhecimento da dor e do prazer tem uma certa relação evidenciai negativa significativa com o teísmo. E, em razão disso, há uma boa razão epistêmica primafacie para rejeitar o teísmo — ou seja, uma razão que é suficiente para rejeitar o teísmo a menos que seja anulada por outras razões para não o rejeitar (p. 12). Que afirmação é essa e qual é a relação evidenciai negativa significativa que ela tem com o teísmo? Quanto à afirmação: Ora, usemos “O”para representar uma afirmação que relata a um tempo as observações que fizemos de seres humanos e de animais com dor ou prazer, e o testemunho que encontramos referentes a observações que outros fizeram de seres sencientes com dor e prazer. Por “dor” entendo qualquer gênero de sofrimento físico ou mental (p. 13-4). Assim, O é a afirmação que tem uma “relação evidenciai negativa significativa com o teísmo”. Note-se que O é relativa a cada pessoa: cada um de nós terá a sua O, e a minha O talvez seja diferente da sua. A minha O, poderiamos dizer, estabelece os fatos acerca da magnitude, diversidade, distribuição, duração e aspectos semelhantes (para abreviar, a “disposição”) do prazer e da dor tal como eu os conheço; a sua faz o mesmo para você. Todavia, qual é essa relação evidenciai negativa significativa que O tem com o teísmo? Draper acena aqui na direção de David Hume: a maior parte dos filósofos contemporáneos da religião (em contraste com Hume) “não reconhece que não podemos determinar quais são os fatos acerca do mal que o teísmo precisa explicar ou quão bem tem de explicá-los sem considerar alternativas ao teísmo” (p. 13). A questão importante é “se há alguma hipótese séria que seja logicamente incompatível com o teísmo e explique um conjunto significativo de fatos acerca do mal, ou acerca do bem e do mal, muito melhor do que o teísmo” (p. 13). E a resposta a essa importante questão, diz Draper, é que há realmente uma hipótese séria que é a um só tempo incompatível com o teísmo e explica alguns fatos significativos acerca do bem e do mal muito melhor do que o teísmo. Trata-se da “hipótese da indiferença” (HI, para abreviar): HI: Nem a natureza nem a condição dos seres sencientes na Terra resultam de ações benevolentes ou malevolentes executadas por pessoas não humanas (p. 13).16 H I, é claro, é incompatível com o teísmo (entendendo que este último implica que o mundo foi criado por uma pessoa que é totalmente boa, assim como onipotente e onisciente). A tese de Draper é a seguinte: C: H I explica os fatos relatados por O muito melhor do que o teísmo (p. 14). ,6Em “Evolution and the problem of evil", ele considera que o naturalismo metafísico — em essência, a petspectiva de que não existe Deus nem nada parecido com Deus — é a hipótese alternativa séria. A minha avaliação da abordagem de Draper não depende de escolher entre essas duas candidatas ao posto de hipótese alternativa séria.

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Além disso, ele afirma que, se pudéssemos mostrar que há uma hipótese séria incompatível com o teísmo e que explique O muito melhor do que o teísmo, então “teríamos urna boa razão prima facie para acreditar que essa hipótese alternativa é mais provável do que o teísmo e, portanto, que o teísmo é provavelmente falso”.17 O que significa urna proposição “explicar” os fatos que O relata? Vou reformular C, que passará a ser a tese de que os fatos relatados por O são muito mais surpreendentes dado o teísmo do que dada a HI, ou, mais precisamente, que a probabilidade antecedente de O é muito maior pressupondo que a HI é verdadeira do que pressupondo que o teísmo é verdadeiro (p. 14). Presumo que é a formulação mais precisa que está em operação aqui; não estamos realmente falando de explicação,18 mas apenas acerca das probabilidades antecedentes de O dado o teísmo e dada a H I. Assim, devemos perguntar o que é esta “probabilidade antecedente”. “Por probabilidade antecedente’ de O ”, diz Draper, “entendo a probabilidade de O independentemente das observações e testemunhos que relata (e não anteriormente a eles)” (p. 14). Assim, a probabilidade antecedente de O é a probabilidade de O dado, por exemplo, todo o resto do meu conhecimento.19 Finalmente, a probabilidade em questão é epistêmica e não (por exemplo) lógica, estatística ou física. E o que é a probabilidade epistêmica? A probabilidade epistêmica é um conceito comum de probabilidade para o qual nenhuma análise filosófica adequada foi, na minha opinião, proposta até agora. Como primeira aproximação, contudo, talvez a seguinte análise sirva: Relativamente a K, p só é epistemicamente mais provável do que q, sendo K uma situação epistêmica e p e q proposições, se qualquer pessoa completamente racional em K teria um grau de crença superior em p do que cm q (p. 27, nota 2). Como Draper afirma, a probabilidade epistêmica é um conceito comum, mas difícil de analisar ou explicar; aceitemos provisoriamente a primeira aproximação que ele propõe.20 (Presumo que, implicitamente, estamos nos restringindo às pessoas humanas; como poderíam ser as coisas com respeito a outras criaturas racionais não é o que agora

17“The skeptical theist”, in: EAESL, p. 178. 18Veja a resposta de WiUiam Alston a Draper em “Some (temporarily) final thoughts on evidential arguments from evil”, in: EAESL, p. 3 2 8 3 0 ‫־‬. 19Ou dada talvez uma estrutura noética tão semelhante quanto possível à minha, mas que não contenha nem implique O. Mesmo isso não está bom: a estrutura noctica em questão não pode também conter ou implicar quaüquer proposição quase tão forte quanto O. Talvez devamos pensar, então, em uma estrutura noética que não contenha nenhuma proposição acerca da distribuição de dor c prazer e que seja, afora isso, tão semelhante à minha quanto possível. Quanto a possíveis dificuldades com essa noção, veja Peter van Inwagen, “Reflections on the chapters by Draper, Russell, and Gale”, in: EAESL, p. 222. íüPara um tratamento mais completo de uma noção intimamente relacionada (probabilidade epistêmica condicional), veja os caps. 8 c 9 de Warrant and properfunction (doravante WPF).

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nos preocupa.) O que K inclui? O que configura uma situação epistêmica? Teremos de voltar mais tarde a essa pergunta; por ora, digamos inicialmente que K, para determinada pessoa S, incluiría pelo menos algumas das outras proposições em que S acredita, assim como as experiências atuais de S e talvez as anteriores; incluiría também aquilo de que S se lembra, possivelmente uma especificação do ambiente epistêmico de S e, sem dúvida, outras coisas ainda. Vemos agora a forma geral do argumento: a primeira premissa é C, a tese de que a probabilidade epistêmica antecedente de O dada a H I é muito maior do que a probabilidade antecedente de O dado o teísmo. E, segundo, se C for verdadeira, diz Draper, então “temos uma boa razão epistêmica prima facie para rejeitar o teísmo — ou seja, uma razão que é suficiente para rejeitar o teísmo, a menos que seja anulada por outras razões para não o rejeitar” (p. 12). Ele aparentemente se apoia aqui em um princípio geral, talvez algo como (1) Para quaisquer proposições P e Q e qualquer pessoa S, se S acredita em P e em Q, e há uma hipótese séria, R, incompatível com P e tal que a probabilidade epistêmica antecedente de Q com respeito a R para S seja muito maior do que a probabilidade epistêmica antecedente de Q com respeito a P para S, então S tem uma boa razão epistêmica prima facie para rejeitar P A tese de Draper é que a probabilidade epistêmica antecedente de O dada a H I é muito maior do que dado o teísmo; e, por ser a H I uma hipótese séria e incompatível com o teísmo, temos uma boa razão prima fade para rejeitar o teísmo: Suponha-se agora que consigo demonstrar que C é verdadeira (relativa à minha situação epistêmica e à do meu leitor). Nesse caso, a verdade de C será (para nós) uma boa razão (epistêmica) primafade para acreditar que o teísmo é menos provável que a HI. Assim, dado que a negação do teísmo é obviamente implicada pela HI e consequentemente é pelo menos tão provável quanto a HI, a verdade de C é uma boa razão prima fade para acreditar que o teísmo é menos provável que seu contrário. E dado que é epistemicamente irracional acreditar a um tempo que o teísmo é verdadeiro e que é menos provável que seu contrário, a verdade de C é também uma boa razão primafade para rejeitar o teísmo (ou seja, deixar ou abster-se de acreditar) (p. 14). A tese é, então, que a verdade de C me dá “uma boa razão prima fade para acreditar que o teísmo é menos provável que seu contrário”— isto é, que a sua probabilidade é menor do que .5. Menos provável com respeito a que? A resposta deve ser K. A ideia é que a verdade de C me dá urna boa razão prima facie para pensar que o teísmo é improvável com respeito à minha situação noética; logo, a menos que encontre algumas razões afa vorào teísmo, a atitude racional a tomar é abandoná-lo.21 Poderiamos formular esta ideia 2,Em “Evolution and the problem o f evil”, Draper formula a mesma ideia de modo ligeiramente diferente; falando de um argumento semelhante, afirma: “É por isso que a minha argumentação contra o teísmo é prima facie.

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dizendo que, segundo Draper, o meu conhecimento da verdade de C me dá um anulador do teísmo, a menos que eu encontre algumas razões a seu favor; alternativamente, me fornece um anulador potencial do teísmo, um anulador potencial que será efetivo a menos que eu consiga encontrar razões a favor do teísmo.

2. A c e rc a de se r ev id e n c ia lm en te d esa fia d o Esse é um desafio sutil e um novo e fascinante argumento que entra na lista; Draper o lança com poderio e sofisticação. Contudo, penso que o argumento não é de modo algum bem-sucedido na tarefa de mostrar que o teísmo cristão tradicional é ameaçado por um anulador ou é ameaçado epistemológicamente de qualquer outra maneira. Examinemo-lo mais de perto. Ora, o argumento de Draper tem duas premissas, C e (1). Defendí em outro texto22 a tese de que C é de fato falsa: não é verdadeiro que a quantidade, a duração e a distribuição de dor e prazer, pelo que vejo, seja mais provável dada a H I do que dado o teísmo. Quero centrar-me aqui na outra premissa, a tese de que se, de fato, O é muito mais provável dada uma hipótese alternativa séria como a H I do que dado o teísmo, o teísta tem uma razão prima facie para rejeitar o teísmo. Por que pensar isso? Suponha-se (à revelia dos fatos, tais como os vejo) que C fosse verdadeira: que tipo de desafio ela lançaria ao teísmo e quão poderoso seria esse desafio? Quão comum é esta suposta enfermidade evidenciai? Antes de podermos responder a essa pergunta, precisamos fazer outra: o que é, exatamente, uma hipótese alternativa séria? Resposta de Draper: “Específicamente, uma hipótese é uma alternativa séria’a outra apenas se (i) não é ad hoc — os fatos a explicar não estão arbitrariamente incluídos nela — e (ii) é pelo menos tão plausível inicialmente quanto as outras hipóteses”.23 A condição (i) não exige comentário, por ora, mas que dizer da condição (ii)? Como entender aqui a “plausibilidade”? Penso que Draper pretende fazer uma abstração com base em situações epistêmicas específicas: devemos considerar que a plausibilidade de uma hipótese não depende de considerações como as evidências específicas (proposicionais e não proposicionais) que eu possa ter a seu favor ou contra ela, mas antes de considerações mais gerais como o seu âmbito e especificidade, e talvez como se ajusta ao que se conhece em geral (uma hipótese que implique que o mundo é plano não seria plausível). Assim, por exemplo, ele defende a plausibilidade da H I do seguinte modo: E ela [HI] é pelo menos tão plausível inicialmente quanto G [ou seja, o teísmo]. Afinal, G é uma hipótese sobrenaturalista muito específica com fortes compromissos ontológicos. Tenho o direito de concluir apenas que mantendo-se as outras evidências na mesma situação [...] c altamente provável que o teísmo seja falso”. O que é manter as outras evidências na mesma situação? Eis uma sugestão: seria considerar a probabilidade do teísmo com respeito a uma situação evidenciai tão semelhante quanto possível à minha, desde que não contivesse qualquer evidência a favor ou contra a crença teísta, ou desde que as evidências que contivesse a favor da crença teísta fossem precisamente neutralizadas pelas evidências que contivesse contra a crença teísta. 12“On being evidentially challenged”, EAESL, p. 250ss. 2,“Probabilistic arguments from evil”, p. 3 1 5 6 ‫־‬.

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Se, por outro lado, considerarmos que a Hipótese da Indiferença é a hipótese de que as primeiras causas do Universo, se houver alguma, não são benevolentes nem malévolas, então a Hipótese da Indiferença é compatível com não somente o naturalismo, mas também com várias hipóteses sobrenaturalistas, e os seus compromissos ontológicos são muito mais fracos do que os de G.24 Assim, o que garante a plausibilidade são esses fatos gerais acerca do âmbito e da força relativa. Além disso, se eu devesse considerar as evidências específicas que tenho a favor de H I (preposicionais ou não) para avaliar a sua plausibilidade, deveria considerar quaisquer razões que tenho afavor do teísmo como evidências contra a HI; a H I poderia ser então bastante implausível para mim. Assim, a plausibilidade tem de abstrair evidências específicas como essas. Digamos que uma proposição P seja posta evidencialmente em dúvida para S se satisfizer a antecedente de (1): P é posta evidencialmente em dúvida para uma pessoa S se e somente se S acredita em P e há proposições Q e R tais que S acredita em Q, R é uma hipótese séria, incompatível com P, e Q é muito mais provável com respeito a R do que com respeito a P .O que (1) afirma, consequentemente, é que se uma proposição P é posta evidencialmente em dúvida para S, então S tem prima facie uma boa razão epistêmica para rejeitar P — para ser agnóstico com respeito a ela ou para acreditar na sua negação. Será isso realmente verdadeiro? Será que estar evidencialmente em dúvida é uma desvantagem séria? Bem, quão comum é isso? Quantas das minhas crenças são postas evidencialmente em dúvida, para mim? Mais, talvez, do que se poderia inicialmente pensar. Por exemplo, eis mais três proposições cuja relação, para mim, é semelhante à relação que existe entre o teísmo, O e HI: (2) Jorge é um acadêmico, mas não é católico, (3) Jorge é professor na Universidade de Notre Dame, e (4) Jorge é um acadêmico católico. Primeiro, acredito tanto em (2) como em (3). Segundo, (3) é muitíssimo mais provável dado (4) (relativamente a K) do que dado (2). (Afinal, a proporção de acadêmicos católicos que são professores na Universidade de Notre Dame é bem mais elevada que a de acadêmicos não católicos.) Além disso, (4) é incompatível com (2). Mais ainda, (4) é uma hipótese séria: não é adhoc e é tão plausível quanto (2). (Sim, tenho muitas evidências a 34Ibidem, p. 316.

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favor de (2) — o fato, p. ex., de Jorge ser um líder da Igreja Crista Reformada, que não é católica, o fato de Jorge sempre ter se declarado protestante, e outros — mas, como vimos, essas evidências específicas não são pertinentes à plausibilidade de (4).) Assim, (2) foi posta evidencialmente em dúvida para mim. Será que esse fato me dá urna boa razão para rejeitá-la? (Devo eu reconsiderar: Jorge é professor em Notre Dame, afinal, e isso é muito mais provável dado (4) do que dado (2); assim, talvez ele seja realmente católico?) Não é evidente que isso ocorra. Um trio semelhante de proposições: (2*) Estou no meu escritório, (3*) Estou a um metro de um cão, e (4*) Estou no abrigo municipal dos cães. Uma vez mais, acredito em (2*) e em (3*); (4*) é uma alternativa séria (no sentido de Draper) a (2*), e (3*) é muito mais provável dado (4*) do que dado (2*) (não há habitualmente cães no meu escritório); logo, (2*) foi posta evidencialmente em dúvida para mim. A propósito, o mesmo acontece à própria (3*): (3*) Estou a um metro de um cão, (5) Não ouço quaisquer sons caninos, como latidos, rosnados, arquejos ou tinidos de coleira, e (6) Não estou nas imediações auditivas de qualquer cão. Uma vez mais, (6) é uma hipótese alternativa séria a (3*), e (5) é muito mais provável com respeito a (6) do que o é com respeito a (3*). Esta última, consequentemente, foi posta evidencialmente em dúvida para mim. Mais alguns exemplos: o meu amigo tem um gato chamado Maynard; acredito que Maynard é um gato e também (como conta o meu amigo) que Maynard gosta de feijão-verde cozido; esta última, contudo, é muito mais provável dada a hipótese alternativa séria (no sentido de Draper) de Maynard ser um ser humano natural da Frísia, ou possivelmente da França; assim, a crença de que Maynard é um gato foi posta evidencialmente em dúvida para mim. Acredito (o que é perfeitamente natural) que o leitor é um ser humano; você e eu estamos fazendo uma caminhada na floresta, contudo, de modo que acredito também que você está em uma

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floresta; claro que essa proposição é muitíssimo mais provável dada a hipótese alternativa séria de que você é uma árvore; assim, a crença de que você é um ser humano foi posta evidencialmente em dúvida para mim. (Nessa medida, o mesmo acontece com a crença de que eu sou um ser humano.) Penso que o leitor já entendeu o que se passa. Parece provável que a maior parte das coisas em que acreditamos — pelo menos no que se refere a proposições contingentes no sentido amplamente lógico — está também posta evidencialmente em dúvida. Não sei como apresentar uma demonstração dessa tese (provavelmente não vale a pena passar muito tempo tentando encontrá-la), mas parece certamente provável que seja verdadeira. E isso sugere que ser posto em dúvida, nesse sentido, não é muito significativo em si ou no caso geral. Se a maior parte das proposições em que acredito é posta evidencialmente em dúvida, nada descubro de interesse acerca do teísmo descobrindo que este também é posto em dúvida desse modo. Em que condições (se as houver) seria significativo duvidar nesse sentido? De que gênero de crenças temos uma razão séria para duvidar quando são postas evidenciaimente em dúvida? A primeira que nos ocorre aqui são as hipóteses científicas. Proponho uma hipótese H* para explicar o comportamento dos gases: o leitor observa que alguns dados são mais prováveis com respeito a outra hipótese H ’ incompatível com a minha; isso parece certamente uma forte razão prima fade para duvidar da minha hipótese. Claro que os dados devem ser pertinentes, o gênero de dados que H* pretende explicar. Suponhamos que Samuel sinta agora uma dor ligeira no joelho esquerdo. Isso é muito menos provável com respeito a H* do que com respeito à hipótese H ’: Profundamente espantado ao descobrir que H* éfalsa, Samuel caiu e machucou 0 joelho; contudo, isso não conta nada contra H*. Para a hipótese científica típica H, haverá um corpo de dados pertinentes (do passado e do futuro, assim como atuais) tal que o sucesso de H depende de quão bem explica os dados; e muitas hipóteses científicas (pelo menos nas histórias mais habituais) obtêm todo ou quase todo o seu aval do fato de darem conta dos dados pertinentes.25 Uma proposição desse gênero será seriamente ameaçada se for posta evidencialmente em dúvida de maneira pertinente. Se eu descobrir que uma crença desse gênero foi posta evidencialmente em dúvida, tenho evidências substanciais contra ela e uma forte razão primafacie para abandoná-la. Como argumentei ao longo de todo este livro, contudo, trata-se de um pressuposto completamente descabido pensar que a crença em Deus ou, mais em geral, o conjunto maior de crenças cristãs (ou judaicas ou muçulmanas) a que pertence a crença em Deus é, nesse aspecto, semelhante a uma hipótese científica. E não é apenas um pressupôsto completamente descabido: é também falso. O aval dessas crenças, se a tiverem, não 25Pelo menos quase todo o seu aval original. A relatividade especial, por exemplo, obtém o seu aval para mim não do fato de explicar apropriadamente esses dados, mas antes do fato de me haver sido dito que o faz e de eu acreditar nisso (de um modo que satisfaz as condições do aval). No entanto, se essas condições forem de fato satisfeitas, terá de haver alguém na outra ponta da cadeia testemunhai para quem essas crenças não têm aval somente por meio do testemunho. Veja WPF, cap. 4.

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deriva do fato (se é que é um fato) de explicarem apropriadamente um corpo de dados qualquer. Para a maioria dos crentes, a crença teísta faz parte de um todo mais vasto (um todo cristão, muçulmano ou judeu); é aceita como parte desse todo mais vasto e não é habitualmente aceita por ser uma explicação de algo; logo, a sua racionalidade ou aval, se a tiver, não depende de ela explicar bem determinado corpo de dados.26 Não obstante, será que este fato, ainda que crucialmente importante, salva o teísmo de ser posto evidencialmente em dúvida no sentido de Draper? Será apenas relativamente às hipóteses científicas que ser posto evidencialmente em dúvida é uma coisa séria? Não. Digamos que o leitor tenha a impressão de que seu amigo Paulo esteve de férias no Cabo Cod nas últimas semanas (você se lembra vagamente de ele haver dito que iria de férias para esse lugar), mas os postais que recebe dele foram enviados do Parque Nacional do Grand Teton; no postal ele não diz onde está, mas menciona o ar seco e também as grandes diferenças entre as temperaturas diurnas e noturnas. Nesse caso, penso que a sua crença de que ele está de férias no Cabo Cod foi posta seriamente em dúvida (e urna hipótese alternativa é ele estar de férias no Grand Teton). E isso é verdadeiro mesmo que a sua crença de que ele está de férias no Cabo não tenha recebido aval em decorrência de ser uma explicação adequada de quaisquer dados. Assim, não são apenas as hipóteses científicas que podem ser abaladas por serem evidencialmente postas em dúvida de um modo pertinente. Examinemos as coisas aqui um pouco mais de perto. Que estou no meu escritório (e não no abrigo municipal dos cães), que Maynard é um gato, que você é um ser humano — todas podem ser postas evidencialmente em dúvida; mas é claro que isso não sugere, nem por um momento, que há algo de irracional ou problemático nessas crenças ou que são improváveis com respeito às nossas situações epistêmicas. Por que não? Porque cada uma dessas proposições tem bastante aval para mim, um aval independente das suas relações probabüísticas com as crenças envolvidas quando são postas evidencialmente em dúvida. Em casos assim, ser posto evidencialmente em dúvida pouco significa. E nem sequer é necessário que a crença em questão tenha um grau elevado de aval. Acredito sem grande firmeza (tenho aqui uma memória relativamente fraca) que a população da cidade de Nova York e arredores ultrapassa os 17 milhões; acredito também que a área da cidade de Nova York e arredores é de 2.227 quilômetros quadrados. Essa proposição é muitas vezes mais provável com respeito à hipótese alternativa séria de que a população da cidade de Nova York é inferior a 10 milhões. A minha crença de que a população da cidade de Nova York é superior a 17 milhões foi, consequentemente, posta evidenciaimente em dúvida; esse fato não me dá um anulador prima facie dessa crença, embora ela não tenha um grau elevado de aval. Talvez a maior parte do que acreditamos seja posto evidencialmente em dúvida, mas a maior parte das coisas em que acredito (penso eu) tem também um ou outro tipo de aval; e, quando tem, ser posto evidencialmente cm 2‘Veja o meu “Is theism really a miracle?” e veja também a p. 338ss. Não pretendo negar, é claro, que a crença crista ou teísta possa obter mais aval explicando bem outra coisa qualquer cm que acreditamos.

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dúvida não é muito importante. Em relação à maior parte daquilo em que acredito, ser posto evidencialmente em dúvida não ameaça servir como anulador da proposição em questão, nem o fato de eu saber, se o souber, que tal proposição foi posta evidencialmente em dúvida. Nem o ser posto em dúvida nem o conhecimento disso, no caso das proposições mencionadas, deixa-me em uma condição em que, caso continue a acreditar na proposição posta em dúvida, serei irracional ou estarei cometendo algum outro pecado epistêmico. E isso porque as proposições em questão obtêm o seu aval de fontes como a percepção, a memória, a empatia, o testemunho, a intuição a priori e coisas semelhantes; não dependem, para que tenham aval, da relação delas com as proposições que as põem evidencialmente em dúvida. Muito bem; como ficam as coisas com respeito ao teísmo? Segundo Draper, “Estabelecer a veracidade de H [que a crença teísta é posta evidencialmente em dúvida] seria insignificante se o teísta típico pudesse racionalmente continuar acreditando que Deus existe depois de descobrir que H é verdadeira”.27 O que me proponho argumentar aqui é que o teísta típico pode racionalmente continuar acreditando que Deus existe depois de descobrir que o teísmo é posto evidencialmente em dúvida. Digamos que aceito a crença cristã tradicional, incluindo, é claro, a crença teísta. Digamos agora que passo a acreditar que de fato a crença cristã está sujeita a ser posta evidencialmente em dúvida. Não acredito, realmente, que o padrão de dor e sofrimento no mundo põe evidencialmente em dúvida a minha crença — ou, pelo menos, não penso que o argumento de Draper a favor da sua conclusão seja bem-sucedido —, mas digamos que eu passe a acreditar que a crença cristã ou teísta é posta evidencialmente em dúvida, seja do modo proposto por Draper, seja de outra maneira. Seria isso um anulador da minha crença teísta? Tornaria isso irracional da minha parte continuar a acreditar? Se essa crença tiver qualquer grau significativo de aval para mim, a resposta é não. Suponhamos que a crença cristã e teísta tenha bastante aval para mim por meio da fé e da instigação interna do Espírito Santo (IIES) (veja a p. 268ss.); nesse caso, o fato de o teísmo ser evidencialmente posto em dúvida não me dá um anulador e não torna irracional a minha crença teísta. Compare-se com o caso de Maynard e a minha crença de que ele é um gato. Você observa que essa crença é posta evidencialmente em dúvida: o fato de ele gostar de feijão-verde cozido é muito menos provável dado ele ser um gato do que ele ser um frísio. Eu concordo, mas não recuo, continuando a acreditar, de modo completamente racional, que ele é de fato um gato. Essa crença é racional para mim nessas circunstâncias porque tem aval para mim independentemente da sua relação com a proposição de que Maynard gosta de feijão-verde cozido. E claro que não há qualquer disfunção cognitiva envolvida no fato de eu continuar tendo uma crença significativamente avalizada por fontes como a memória, a percepção, a IIES e outras semelhantes, mesmo depois de descobrir que a crença foi posta evidencialmente em dúvida. O nosso plano de desígnio permite, ou exige, na verdade, que mantenhamos a crença mesmo em 27“Evil and the proper basicality o f belief in God”, p. 138.

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face deste “pôr em dúvida”. E é claro que o mesmo se aplica à minha crença teísta — se, de fato, ela tiver aval do modo pelo qual foi proposto no capítulo 8. E isso é verdadeiro mesmo que eu não acredite que a crença teísta tenha aval para mim. Talvez eu nunca houvesse pensado muito acerca da epistemología e tenha na melhor das hipóteses uma ideia vaga do que é o aval, nunca houvesse considerado questões como a de saber se o fato de uma proposição ser posta evidencialmente em dúvida me dá uma razão para rejeitá-la. O leitor observa que a minha crença de que Maynard é um gato foi posta evidencialmente em dúvida; eu continuo (na minha inocência epistemológica) a acreditar tão firmemente quanto antes que Maynard é um gato; nem a racionalidade nem o aval dessa crença ficam diminuídos. Uma vez mais, o mesmo acontece no caso da crença teísta, se tiver um aval significativo para mim. O leitor observa que o teísmo foi posto evidencialmente em dúvida para mim: eu concordo que sim e continuo a acreditar nele tão firmemente quanto antes; se a crença cristã e, portanto, o teísmo tiverem um aval significativo para mim, continuar a acreditar é totalmente racional e a crença permanece avalizada. E perfeitamente racional, internamente, porque a crença continua parecendo-me obviamente verdadeira; é perfeitamente racional, externamente, porque tenho a crença em questão de um modo que satisfaz as condições do aval. Se a minha crença tinha aval suficiente para o conhecimento antes de você observar que estava evidencialmente em dúvida, também a tem depois disso. Assim, se a crença teísta tem aval suficiente para mim, então (no caso típico e desde que eu não acredite que não tem aval) o fato de passar a acreditar que foi posta evidencialmente em dúvida não me dá um anulador para ela. Vemos aqui um caso especial de um padrão que já encontramos. Argumentei nos capítulos 6 e 8 que se a crença teísta e cristã for verdadeira, então é muito provável que tenha aval. Uma consequência é que se a crença cristã for verdadeira, então é muito provável (no caso típico) que pôr a crença teísta evidencialmente em dúvida não está pondo nada de significativo em dúvida. Entretanto, mesmo que o teísmo tenha pouco ou nenhum aval, podería ainda assim acontecer (e no caso típico acontecerá) que a dúvida evidenciai não o ponha realmente em dúvida nem forneça um anulador prima facie. Analogia: talvez o meu amigo me conte uma vez mais que tem um animal de estimação chamado Maynard, que ele é um gato, mas, apesar disso, adora feijão-verde cozido; como nunca vi esse tal Maynard, acredito com base no testemunho do meu amigo que ele é um gato. Na verdade, o meu amigo está (sem que eu o saiba) dando vazão a seu gosto de contar histórias curiosas (e falsas). Então, a minha crença de que Maynard é um gato tem pouco que se lhe diga quanto ao aval: o miniambiente epistêmico (veja p. 184ss.) não é adequado, estando poluído pela mentira do meu amigo, de modo que a condição ambiental para o aval não foi satisfeita. Apesar disso, a minha crença de que Maynard é um gato é (desde que tudo o mais continue igual) inteiramente racional (ainda que não tenha aval), tanto interna quanto externamente; e isso é assim apesar de eu estar perfeitamente ciente de que foi posta evidencialmente em dúvida. O mesmo se pode dizer da crença teísta. Talvez eu acredite de modo errôneo, mas racionalmente, que ela tem aval; acredito racionalmente

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que alguns argumentos teístas, por exemplo, são muito fortes, ou acredito, erroneamente, em uma história qualquer como a que contei nos capítulos 6 e 8, segundo a qual a crença teísta tem realmente aval. Nessas condições, a minha crença teísta não tem aval de fato; contudo, descobrir que foi posta evidencialmente em dúvida não compromete a sua racionalidade e não me dá um anulador para ela. Assim, quando, afinal, o fato de uma crença ser posta evidencialmente em dúvida (mais exatamente, o meu conhecimento disso) poderia me fornecer realmente um anulador da crença e tornar irracional que eu continue a sustentá-la? Consigo ver dois gêneros de casos em que descobrir que o teísmo foi posto evidencialmente em dúvida poderia ser um anulador dessa crença. Primeiro, suponha-se que sou teísta e sou racional ao aceitar essa crença, mas sustento-a com pouca firmeza e, além disso, penso que as minhas razões a seu favor são absolutamente mínimas — mal são suficientes para sustentar a crença racionalmente. Então, se eu descobrir que o teísmo foi posto evidencialmente em dúvida, talvez tenha um anulador dessa crença. Digo “talvez” deliberadamente; a situação não é realmente clara. O segundo gênero de situação é mais claro. Considere-se uma crença C que aceito porque penso que é a melhor explicação de dado conjunto de dados D; C não tem qualquer aval a não ser o fato de explicar apropriadamente D, e estou ciente disso. Suponho que descobrir que C foi posta evidencialmente em dúvida me fornece um anulador de C — desde que C pretendesse explicar a crença que é mais provável com respeito à hipótese alternativa. Acredito que o culpado foi o mordomo: a minha única razão para acreditar nisso é que essa hipótese é a que melhor explica os fatos e circunstâncias do crime. Agora passo a ver que a hipótese de que Lady Fauntleroy é a homicida explica melhor alguns desses fatos e circunstâncias.28 Nesse caso, a minha crença de que o mordomo é culpado foi posta evidencialmente em dúvida de maneira pertinente, foi posta em dúvida de um modo que é prima fade um anulador dessa crença (claro que não interessa se alguma hipótese alternativa explica melhor o fato de Pequim ser uma cidade de grandes dimensões). Assim, suponhamos que eu aceite o teísmo como hipótese; aceito-o porque penso que é a melhor explicação de um conjunto de fenômenos, incluindo a origem do Universo, a realidade e objetividade da ação correta e incorreta, e também a distribuição de dor e prazer. Suponhamos, além disso, que eu acredite corretamente que não tenho nenhum outro gênero de razão a favor da crença teísta — nada da IIES, do sensus divinitatis ou do testemunho alheio. Acredito que não tenho outra fonte e tenho razão quanto a isso. Agora suponhamos que eu descubra que a Hipótese da Indiferença, o naturalismo ou outra coisa qualquer explique melhor a magnitude, a duração e a distribuição da dor e do prazer; então, a minha crença teísta será posta evidencialmente em dúvida de um modo que será, prima fade, um anulador da crença teísta e uma razão para que eu a abandone (mesmo nesse caso, contudo, eu poderia concluir que o teísmo explica melhor outros fenômenos pertinentes). iBE nesse contexto talvez possamos entender “explicação” como probabilidade.

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Assim, há algumas situações nas quais ser posto evidencialmente em dúvida — não de uma maneira qualquer, mas de maneira pertinente — fornece um anulador: casos em que alguém crê que o aval que a sua crença teísta tem é mínimo, e casos em que essa pessoa acredita que o aval que o teísmo tem para ela depende apenas do fato de ele explicar certo domínio de fenômenos. A maior parte dos teístas, contudo, não está em nenhuma dessas duas condições. Haverá outras condições nas quais os teístas se encontrem, condições em que descobrir que o teísmo foi posto evidencialmente em dúvida fornece realmente um anulador, ou ao menos um anulador primafade, da crença teísta? Duvido muito que o teísta típico se encontre jamais em quaisquer condições desse tipo. Consequentemente, penso que o desafio de Draper, embora sutil e sofisticado, não é bem-sucedido; nas suas próprias palavras, “o teísta típico podería racionalmente continuar a acreditar que Deus existe depois de descobrir que H [que o teísmo foi posto evidencialmente em dúvida] é verdadeira”. II. A nuladores n ã o argumentativos ?29

Esses argumentos novos de Rowe e Draper são sutis e sofisticados; sua discussão suscita muitos tópicos profundos e interessantes. Depois de um exame cuidadoso, contudo, constatamos que eles fracassam redondamente. Não fornecem um anulador da crença teísta e, na verdade, dão à pessoa indecisa poucas razões, se é que dão alguma, para preferir o ateísmo ao teísmo. Não representam grande melhoria relativamente ao tipo de argumento mais antigo — “se não vejo que razão Deus poderia ter para permitir um mal E, é provável que ele não tenha qualquer razão”. Se os fatos do mal põem real e substancialmente em dúvida a crença cristã ou teísta, precisa ser por outra rota inteiramente diferente; as relações probabilísticas para que apontam Rowe e Draper não têm peso epistêmico suficiente. E o fato é que, na verdade, a maior parte dos anuladores não surge em virtude de o sujeito ficar ciente de relações probabilísticas. Sempre pensei que o seu nome era Sam: você me diz que Sam é apenas o seu apelido, sendo o seu nome na realidade Ahab; eu abandono então a crença de que o seu nome é Sam. No entanto, não o faço por pensar que é improvável que o seu nome seja Sam, dado você dizer que é Ahab, ou que é mais provável que você diga que o seu nome é Ahab dada a hipótese de ser Ahab do que dada a hipótese de ser Sam. A anulação não parece ocorrer por via da argumentação probabilística. Vejo o que me parece alguma neve em uma escarpa distante; à medida que me aproximo, contudo, a neve parece mover-se; já não acredito que é neve — talvez seja uma cabra montanhesa? Uma vez mais, não faço raciocínio probabilístico. Penso que o seu CEP é 49506; recebo então uma carta sua com um remetente que inclui o CEP 49508; já não acredito que seja 49506, mas não por causa de um raciocínio probabilístico. Ao que parece, o raciocínio probabilístico não entra na maior parte dos casos reais de anulação.

29Nesta seção, estou em dívida para com John Cooper (sermão na Igreja Cristã Reformada de South Bend, Haas (sermão na mesma igreja, 5/5/1997) e Leonard Vander Zcc (sermão na mesma igreja,

2/28/1992), John 1/5/1997).

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E talvez algo semelhante ocorra com respeito ao mal. Não há qualquer argumento cogente a favor da conclusão de que a existência do mal é incompatível com a existência de Deus; não há também qualquer argumento evidenciai ou probabilístico sério com base no mal. No entanto, não se segue daí que o sofrimento e o mal não constituam um sério obstáculo à crença cristã ou teísta e não se segue que não constituam um anulador delas. Argumentei sempre que a crença em Deus pode ser apropriadamente básica; a crença racional em Deus não depende de se ter, ou haver, bons argumentos a favor da existência de Deus. Será que devemos dizer algo parecido quanto aos fatos do mal, entendidos como potenciais anuladores da crença teísta? Talvez o poder anulador desses fatos não dependa de modo algum da existência de um bom argumento antiteísta (dedutivo, indutivo, abdutivo, probabilístico, seja o que for) baseado nos fatos do mal. Como é claro, o sofrimento e o mal constituem realmente algum tipo de problema para pelo menos alguns crentes em Deus; o Antigo Testamento (em particular Jó e os Salmos) está repleto de exemplos. Na verdade, o próprio Jesus Cristo soltou seu grito agonizante: “M eu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” — um grito no qual faz eco das palavras do Salmo 22. No livro dejó, uma exploração penetrante e poderosa dos fatos do mal e das respostas humanas a este, Jó pensa que Deus foi injusto com ele; irado, desafia Deus a explicar-se e justificar-se. Inúmeros outros, presas do próprio sofrimento cruel ou do sofrimento de alguém que lhes é próximo, viram-se zangados com Deus; há quem fique ressentido, desconfiado, antagônico, hostil. Apesar disso, essas situações não produzem tipicamente um anulador da crença teísta. Não é como se Jesus, ou o salmista, ou Jó estejam inclinados a abandonar a crença teísta. O problema é de outra ordem; é um problema espiritual ou pastoral, não um anulador da crença teísta. Talvez Deus permita que o meu pai, a minha filha, o meu amigo ou eu sofra da maneira mais pavorosa. Posso então pensar o seguinte: “Sem dúvida Deus tem todas aquelas qualidades chiques e sem dúvida tem uma excelente razão para permitir essa abominação — afinal, não me comparo a ele com respeito a apresentar razões, razões que estão completamente além de mim — mas o que ele permite é pavoroso, é algo que eu detesto!”. Posso querer dizer-lhe na cara: “O Senhor pode ser maravilhoso, magnífico, onisciente e onipotente (e pode até ser sumamente bom) e tudo o mais, mas eu detesto o que o Senhor está fazendo!”. Um problema desse tipo não é realmente um problema evidenciai, e não é um anulador do teísmo. Apesar disso, talvez essa não seja a única reação realista aqui: talvez eu possa reagir desse modo, mas não haverá outras reações em que eu teria um anulador? Não poderia o sofrimento e o mal, em algumas circunstâncias pelo menos, servirem mesmo como anulador da crença em Deus? Tomemos alguns exemplos horríveis de mal que nosso triste mundo exibe. A descrição clássica de Dostoievski é fictícia, mas não é menos convincente nem menos perturbadora: — Um búlgaro que conhecí recentemente em Moscou — continuou Ivan, parecendo não ouvir as palavras do irmão — contou-me os crimes cometidos pelos turcos e pelos

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circassianos em todas as partes da Bulgária, por temerem um levantamento geral dos eslavos. Incendeiam povoações, matam, maltratam mulheres e crianças, pregam os prisioneiros às cercas pelas orelhas, abandonam-nos assim até chegar a manhã e então enforcam-nos -— todo o gênero de coisas que não imaginas. As pessoas falam às vezes de crueldade animalesca, mas isso é uma grande injustiça e insulto aos animais; um animal nunca poderá ser tão cruel como um homem, tão artisticamente cruel. O tigre só arranha e morde, é tudo o que pode fazer. Nunca lhe ocorrería pregar pessoas pelas orelhas, mesmo que o pudesse fazer. Aqueles turcos tinham também prazer em torturar as crianças, em arrancar o nascituro do ventre da mãe, em atirar bebês ao ar para apanhá-los com as pontas das baionetas diante de suas mães. Fazê-lo à frente das mães era o que animava a diversão.30 A lista de atrocidades que os seres humanos cometem contra os outros é horrorosa e repugnante; é tão longa, tão repetitiva, que acaba por ser cansativa. Por vezes, porém, atingem-se novos abismos: ' Uma jovem mãe muçulmana foi repetidamente violada, na Bosnia, na frente do marido e do pai, com o seu filho gritando no chão ao seu lado. Quando os autores dos seus tormentos finalmente se cansaram dela, ela pediu permissão para dar de mamar ao bebê. Em resposta, um dos violadores decapitou o bebê de um só golpe e jogou a cabeça no colo da mãe.31 Esses fatos são absolutamente horríveis; é até doloroso considerá-los, pô-los resolutamente perante o espírito. Introduzi-los desse modo na discussão filosófica fria é perturbador e pode ser encarado como coisa inapropriada ou até insensível. E agora a pergunta: não pensaria uma pessoa racional, diante desse tipo pavoroso de mal, que não podería pura e simplesmente haver um ser onipotente, onisciente e totalmente bom supervisionando o nosso mundo? Talvez ela não possa demonstrar que nenhum ser perfeito podería permitir isso; talvez também não haja um bom argumento probabilístico ou evidenciai: e daí? Não é simplesmente evidente, simplesmente visível, que um ser à altura da reputação de Deus não podería permitir fatos desse tipo? Não terei aqui um anulador, mesmo que não haja qualquer bom argumento antiteísta do mal? Talvez eu não abandone efetivamente a crença em Deus diante dos fatos do mal: mas será que isso não acontece meramente porque não consigo suportar a ideia de viver em um universo sem Deus? Por algum mecanismo psicológico que não visa à verdade, talvez o gênero de realização de desejos que Freud sugere? Nesse caso, o sofrimento e o mal (ou antes, a minha apreensão deles) seriam ou poderíam ser um anulador,32 para mim, da crença cristã, ainda que não me façam abandonar tal crença. 30The brothers Karamazov, tradução para o inglês de Constance Garnett (New York: Random House, 1933), p. 245-6 [edição em português: Os irmãos Karamazov (São Paulo: Editora 34,2008)]. 31Eleonore Stump, “The mirror o f evil,” in: Thomas Morris, org., God and the philosophers (New York: Oxford University Press, 1994), p. 239. ” Urn anulador “puramente epistêmico”; veja p. 374.

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Algo assim, penso, é a melhor versão da acusação ateológica do mal. A tese é essencialmente que quem for apropriadamente sensível e estiver apropriadamente ciente do horror do mal que se mostra no nosso mundo sombrio e infeliz vê que nenhum ser do tipo que Deus supostamente é poderia jamais permiti-lo. Trata-se de uma espécie de sensus divinitatis ao contrário: talvez não tenhamos nenhum bom argumento antiteísta do mal, mas nenhum argumento é preciso. Num apelo desse gênero, não se trata de ensaiar argumentos, mas de pôr o interlocutor em uma situação na qual o horror do sofrimento e do mal no mundo se destaque claramente em toda a sua vilania. Na verdade, do ponto de vista ateológico, argumentar aqui tem o efeito oposto ao desejado: permite ao crente em Deus desviar a sua atenção, desviar os olhos da abominação do sofrimento, refugiando-se em discussões antissépticas sobre mundos possíveis, funções de probabilidade e outros mistérios. Desvia a atenção das situações que de fato constituem anuladores da crença em Deus. Examinemos essa tese. Recorde-se que um anulador de uma crença é relativo a uma estrutura noética■, a m inha crença nova C será um anulador da minha crença anterior C* em razão do resto em que acredito e de como é a minha experiência. Acredito que aquela árvore é um bordo; você me diz que é na realidade um elmo; isso anulará a minha crença de que é um bordo se eu pensar que você sabe do que está falando e visa dizer a verdade, mas não se eu pensar que você tem ainda menos informação arbórea do que eu, ou que a hipótese de você estar dizendo o que pensa ser a verdade é de apenas cinquenta por cento. Passar a ver o horror cabal do mal que o mundo exibe poderá ser um anulador da crença teísta com respeito a uma estrutura noética determinada, mas não com respeito a outras. O que quero começar por argumentar é que, se o cristianismo clássico for verdadeiro, a percepção do mal não é um anulador da crença em Deus com respeito a estruturas plenamente racionais — qualquer estrutura noética sem disfimções cognitivas, na qual todas as faculdades e processos cognitivos estão funcionando apropriadamente. Do ponto de vista do cristianismo clássico (em, pelo menos, segundo o modelo dos caps. 6 e 8), isso inclui também o funcionamento apropriado do sensus divinitatis. Alguém em quem esse processo estivesse funcionando apropriadamente teria um conhecimento íntimo, detalhado, vivido e explícito de Deus; teria uma consciência intensa da sua presença, glória, bondade, poder, perfeição, encanto, maravilha e doçura; e estaria tão convencido da existência de Deus como da própria. Podería consequentemente ficar perplexo com a existência do mal no mundo de Deus — pois ele sabe que Deus odeia o mal com uma paixão santa e flamejante — mas a ideia de que Deus talvez não exista nem sequer lhe passaria pela cabeça. Confrontada com o mal e o sofrimento, tal pessoa poderia perguntar-se por que razão Deus os permite; os fatos do mal podem ser um impulso da investigação e da ação. Caso ela não encontre resposta, concluirá sem dúvida que Deus tem uma razão que a ultrapassa; não terá a mínima inclinação para duvidar de que há Deus. Para uma pessoa plenamente racional, consequentemente, a existência do mal nem ao menos dá o passo inicial na direção de se constituir em um anulador da crença em Deus.

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Em um trabalho anterior, expliquei a probabilidade epistêmica condicional (de maneira aproximada e ignorando complicações e ressalvas) como se segue: Assim, a probabilidade epistêmica condicional de A dado B, inicialmente e em uma primeira aproximação, é o grau em que uma pessoa racional, uma pessoa cujas faculdades estejam funcionando apropriadamente, aceitaria A dado ela estar certa de B, estar ciente de haver aceitado B, haver considerado A de maneira refletida à luz de B e não ter nenhuma outra fonte de aval ou de status epistêmico positivo a favor de A ou da sua negação.33 Acrescentei então (sem dúvida graças à juventude, inexperiência e inocência epistêmica) que talvez a existência de Deus fosse, nesse sentido, epistemicamente improvável dada a existência de certos gêneros de mal (p. 576). Todavia, para começar, aquela concepção de probabilidade epistêmica não tem esse resultado — mais exatamente, não se aplica claramente nesse caso ou em qualquer caso no qual a crença tenha aval ou status epistêmico positivo para uma pessoa S apenas em virtude de S ser racional no sentido em questão.34 No modelo Aquino/ Calvino (A/C) estendido, o sensus divinitatis está entre as nossas faculdades ou processos cognitivos; se estiver funcionando apropriadamente em S, a crença de que Deus existe terá automaticamente aval para S. Aplicada à existência de Deus tomada como A e à de qualquer gênero de mal como B, a definição não dá lugar à consequência de que a primeira é improvável dada a segunda; isso porque a condição expressa pela cláusula da definição, “e não ter nenhuma outra fonte de aval ou de status epistêmico positivo a favor de A ou da sua negação”, não será satisfeita pela crença na existência de Deus se as faculdades cognitivas do crente estiverem funcionando apropriadamente. Mais: considere-se uma pessoa S na qual o sensus divinitatis não funciona apropriadamente; S tem apenas uma crença em Deus fraca, residual e pro forma, um remanescente da religião de sua infância. Acrescente-se que £ sofre apenas dessa disfunção cognitiva (e de nenhuma outra). Suponhamos agora que 5 se torne agudamente ciente dos fatos do mal e pense acerca da relação entre eles e a existência de Deus: talvez, nessas condições, S abandone a crença em Deus ou comece a pensar que esta é improvável com respeito às suas evidências. Seguir-se-ia que os fatos do mal são, em algum sentido, evidências negativas em relação à existência de Deus, evidências que são contrabalançadas e ultrapassadas em uma estrutura noética plenamente racional pelas evidências positivas fornecidas por um sensus divinitatis funcionando apropriadamente? Não. Pois talvez vários módulos da estrutura cognitiva tenham sido concebidos para funcionar em conjunto. Nesse caso, os produtos de um módulo m que não esteja em si sujeito à disfunção poderão, apesar disso, não ter nenhum peso epistêmico dado o mau funcionamento de outro módulo m*. No caso de m, funcionar ” “Epistcmic probability and evil”, in: Marco Olivetti, org., Archivo difilosofia (Roma: Cedam, 1988), p. 574. 34Tenho nesse ponto uma dívida profunda para com Richard Otte.

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deste modo — ou seja, o modo que funciona quando há um mau funcionamento de m*, mas não há mau funcionamento de m dado o mau funcionamento de m* — poderá não fazer parte de maneira alguma do plano de desígnio. Quando a corrente elétrica oscila por um problema na fiação, a sirene de alarme de ataque aéreo emite um guincho fraco e patético; não se segue que o disco de vibração que produz o som foi concebido para produzir esse guincho nessas condições. Sim, foi concebido de tal modo que produzirá aquele guincho naquelas condições, mas fazer isso não faz parte do plano de desígnio. Funcionar desse modo naquelas circunstâncias fará parte, é claro, do seu maxi-plzno ( WPF, p. 22ss.). Não se segue, porém, repito, que esse comportamento faça parte do seu plano de desígnio; poderá ser, no máximo, um subproduto não intencional. E o mesmo acontece no caso do sensus áivinitatis e de outros processos efetivamente envolvidos na produção ou supressão da crença teísta. Talvez o sensus áivinitatis e o “sensusprobabilitatis" tenham sido concebidos para trabalhar juntos como uma unidade; nesse caso, os produtos de um na presença do mau funcionamento do outro não precisam ter qualquer grau de racionalidade ou de aval. Logo, a situação imaginada não mostra que os fatos do mal são um tipo qualquer de evidência contra a existência de Deus. Portanto, no modelo A /C , os fatos do mal não constituem sob nenhum aspecto um anulador da crença teísta para uma pessoa plenamente racional, uma pessoa cujas faculdades cognitivas estejam funcionando apropriadamente. Contudo (afirmará o ateólogo astuto), esse fato, na melhor das hipóteses, aplica-se de forma duvidosa à questão de saber se os crentes cristãos em Deus — os que há efetivamente — têm um anulador do teísmo nas aflições do mundo, pois, segundo a própria doutrina cristã, nenhum ser humano goza dessa condição imaculada de completa racionalidade. O sensus áivinitatis foi fortemente prejudicado pelo pecado; para a maioria de nós, na maior parte do tempo, a presença de Deus não é evidente. Para muitos de nós (a maior parte do tempo, pelo menos), tanto a existência de Deus como a sua bondade são indistintas e decrescentes, nem de perto tão evidentes quanto a existência de outras pessoas ou das árvores no jardim. Relativamente a uma estrutura noética plenamente racional (de um ser humano não decaído, por exemplo), talvez o conhecimento dos fatos do mal não constitua um anulador do teísmo; relativamente às estruturas noéticas que os seres humanos efetivamente têm, contudo (continua o ateólogo), constitui. Dados os resultados noéticos do pecado (veja cap. 7), o crente típico em Deus encontra realmente um anulador nos fatos do mal. Ir nessa direção, contudo, seria negligenciar ainda outra característica da crença cristã: que o dano provocado ao sensus áivinitatis é em princípio e progressivamente reparado no processo da fé (veja capítulo 8) e regeneração. A pessoa de fé pode ser tal que, pelo menos em algumas ocasiões, a presença de Deus seja completamente evidente para ela. Além disso, ela conhece o amor divino revelado na encarnação, o esplendor impensável do sofrimento e morte de Jesus Cristo, ele mesmo o divino filho unigénito de Deus, por nós. Claro que esse conhecimento não fornece uma resposta à pergunta “Por que Deus

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permite o mal?”. Contudo, é de importancia crucial aqui.35 Leio acerca de mais urna atrocidade gigantesca e fico talvez abalado. Mas então penso na grandiosidade inconcebível do amor exibido no sofrimento e morte de Cristo, na sua vontade de se despojar e assumir a natureza de um servo, sua disponibilidade para sofrer e morrer de modo que os seres humanos pecadores possam atingir a redenção, e a minha fé pode ser restaurada. Continuo sem conseguir imaginar por que Deus permite esse sofrimento, ou por que permite que as pessoas torturem e se matem, ou por que permite experimentos sociais gigantescos e horríveis como o nazismo e o comunismo, ou por que permite um Holocausto. Contudo, vejo que está disposto a partilhar o nosso sofrimento, submetendo-se a si mesmo a um imenso sofrimento, e fazendo-o por nós. Confrontado com um exemplo particularmente odioso de mal, consequentemente, posso querer questionar Deus, ficando talvez até zangado e ressentido: “Por que eu ou a minha família teremos de sofrer para promover os seus fins (certamente exaltados), quando não faço a mínima ideia de como o meu sofrimento contribui para um bem?”. Mas então penso na disponibilidade divina para sofrer ainda mais em meu nome e fico reconfortado ou, pelo menos, aquietado. E aqui há um aspecto em que o teísmo cristão tem um recurso para lidar com o mal que não está disponível a outras formas de teísmo.36 Note-se que as probabilidades pouco se relacionam com a questão. Essa pessoa não raciocina assim: não é muito provável que uma pessoa onipotente, onisciente e sumamente boa permita tais atrocidades — mas é mais provável que um ser que está disposto a se submeter ao sofrimento em nosso nome as permita. O conforto envolvido aqui não ocorre por meio de raciocínio probabilístico. H á muito a dizer sobre o significado cristão do sofrimento,37 e grande parte disso fornece mais recursos epistêmicos para lidar com o mal. Talvez nosso sofrimento esteja profundamente ligado à possibilidade de salvação dos seres humanos;38 talvez partilhemos o sofrimento de Cristo para que também o nosso sofrimento seja salvífico, e talvez até essencial para o plano da salvação.39 Uma pessoa que sofre pode então esperar receber “ Como Albert Camus (dificilmente um defensor óbvio da crença cristã) claramente reconheceu. Cristo, afirma Camus, é a solução para os problemas do mal e da morte: A sua solução consistiu, primeiro, em ter experiência deles. O homem-Deus sofre também, com paciência. O mal e a morte não podem já lhe ser inteiramente imputados, porque ele próprio sofre e morre. A noite no Gólgota é tão importante na história do homem porque, nas suas sombras, a divindade, abandonando ostensivamente os seus privilégios tradicionais, viveu até o fim a agonia da morte, inclusive o desespero. Assim se explica a Lama sabachthani e a dúvida terrível de Cristo em agonia (Essais [Paris: Gallimard, 1965], p. 444. Citado por Bruce Ward, “Prometheus or Cain? Albert Camus’s account o f the Western quest for justice”, Faith andPhilosophy [Abril de 1991], p. 213; esta passagem foi traduzida por Ward). 36Outra fonte diz respeito ao fato de que, do ponto de vista da doutrina cristã trinitária, as relações pessoais como o amor encontram-se nos níveis mais profundos da realidade; veja p. 334ss. 37Isso é dito em parte na Salvifici doloris, Carta Apostólica de João Paulo II (Boston: Pauline Books and Media), p. 30ss., uma meditação profunda sobre o sofrimento e um esforço poderoso para discernir seu significado de um ponto de vista cristão. 38Salvifici doloris, p. 30ss. 3,Como é sugerido pela enigmática observação de Paulo: “Agora me alegro nos meus sofrimentos por vós e completo no meu corpo o que resta do sofrimento de Cristo” (Cl 1.24).

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a gratidão divina por tomar parte nesse projeto de salvação,40 usufruindo para sempre do amor e aprovação de Deus; ela poderá então concordar com Paulo: “também somos herdeiros, herdeiros de Deus e co‫־‬herdeiros de Cristo, se é certo que sofremos com ele, para que também com ele sejamos glorificados”.41 Ela pode assim refletir que o sofrimento humano é de certo modo uma ocasião de gratidão. Há também outra maneira pela qual talvez seja uma ocasião de gratidão. E plausível pensar que os melhores mundos possíveis que Deus poderia ter efetivado contêm o bem inimaginavelmente grandioso da encarnação e redenção divinas — mas então, é claro, também contêm o pecado e o sofrimento. Deus escolhe efetivar um desses mundos — e nele a humanidade sofre. Contudo, nesse mundo há também a oportunidade maravilhosa da redenção e da irmandade eterna com Deus, um bem inconcebivelmente grandioso que ultrapassa em muito o sofrimento que somos chamados a suportar.42 Além disso, ao ser-nos oferecida a proximidade eterna com Deus, os seres humanos são convidados a juntar-se ao cativante círculo da própria Trindade; e talvez esse convite só possa ser feito a criaturas que caíram, sofreram e foram redimidas.43 Nesse caso, a condição da humanidade é muitíssimo melhor do que teria sido caso não tivesse havido pecado nem sofrimento. 0 Felix Culpa, de fato! Assim, para quem tem fé (aquelas pessoas nas quais o processo de regeneração já ocorreu, ou está ocorrendo), a presença e a bondade de Deus são, em alguma medida, evidentes; de modo que para elas a crença de que Deus existe terá um aval considerável. Também elas, pois, como acontece com quem nunca teve o seu sensus divinitatis danificado, sentirão pouca ou nenhuma inclinação para o ateísmo ou o agnosticismo quando se confrontam com casos de mal horrível. Na presença de males pavorosos no mundo de Deus, podem ficar perplexas, podem ficar chocadas, podem ser impelidas a atuar e a investigar, mas cessar de acreditar não será jamais uma opção. Se o sofrimento em questão for o seu próprio, podem concordar com o autor do Salmo 119.75-76: “S e n h or , bem sei que teus juízos são justos e que me castigaste por causa de tua fidelidade. Que o teu amor sirva para me consolar, conforme a promessa feita ao teu servo”. Podem também usufruir de um contentamento abençoado. Considere-se, por exempio, esta carta de Guido De Bres à sua esposa, escrita momentos antes de ele ser enforcado:

40“Segundo Juliana de Norwich, antes de os eleitos poderem agradecer a Deus por tudo o que ele fez por eles, Deus dirá: ‘Obrigado por todo o teu sofrimento, o sofrimento da tua juventude’” (Marilyn Adams, “Horrendous evils and the goodness o f G od”, Proceedings of the Aristotelian society (1989), vol. suplementar 63, reimpresso com correções em Marilyn Adams; Robert Adams, orgs., The problem of evil (New York: Oxford University Press, 1990), p. 219. A passagem que Adams cita é de Revelations of divine love, cap. 14). 41Romanos 8.17. Compare-se 2Corintios 4.17: “Pois nossa tribuíação leve e passageira produz para nós uma glória incomparável, de valor eterno”. 42Paulo continua em Romanos 8.18: “Considero que os sofrimentos do presente não se podem comparar com a glória que será revelada em nós”. 43Como é o caso de Abraham Kuyper: “Os anjos de Deus não têm conhecimento do pecado, logo não têm também conhecimento do perdão; logo, uma vez mais, não têm conhecimento daquele amor terno que se forma por meio do perdão. Nem têm aquele conhecimento mais rico de Deus que emerge desse afeto mais terno. São como estranhos diante disso e, portanto, diz o Apóstolo que, com respeito a esse mistério, os anjos têm, por assim dizer, o desejo invejoso de ‘examiná-lo’” (70 be near unto God, p. 307).

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A tua dor e angústia, perturbando-me no meio da minha alegria c deleite, são a causa desta carta que te escrevo. Rogo-te firmemente que não sofras além do adequado [...] Se o Senhor houvesse desejado que vivéssemos juntos mais tempo, podería facilmente tê-lo feito [...] Que seja feita a Sua boa vontade, pois, e que seja isso suficiente como razão [‫ ״‬.] Rogo-te, minha querida e fiel companheira, que comigo fiques em alegria e que agradeças ao bom Deus pelo que está fazendo, pois ele nada faz senão o que é plenamente correto e bom [...] Estou fechado na mais inviolável e miserável das masmorras, tão escura e depressiva que é chamada pelo nome de Buraco Negro. Não consigo senão um pouco de ar, e mesmo assim o mais repugnante. Nas mãos e pés tenho pesados ferros que são uma constante tortura, escoriando a carne até aos meus pobres ossos. No entanto, apesar de tudo, o meu Deus não deixa de cumprir a sua promessa e de confortar o meu coração e de me dar o mais abençoado dos consolos.44 De Bres sofreu muitíssimo; contudo, usufruiu do mais abençoado dos consolos. Nada estava mais longe do seu pensamento, sem dúvida, do que a ideia de que talvez Deus não existisse, que talvez estivesse iludido desde sempre. E essa continuação da crença, dado o modelo do capítulo 8, não trai qualquer irracionalidade: não aconteceu de ele ter no seu sofrimento um amolador da crença teísta, mas de algum modo o suprimir e (talvez por meio de um pensamento fantasioso motivado pelo desejo) continuar acreditando. Não; a sua crença era, em vez disso, resultado do funcionamento apropriado dos processos cognitivos — um sensus divinitatis rejuvenescido, a instigação interna do Espírito Santo — que produzem a crença em Deus. Claro que a maioria de nós não se encontra no estado espiritual de Guido De Bres. Não é a maior parte de nós que usufrui daquele conforto e consolo diante do sofrimento. Como observa Calvino (Instituías, III, ii, 15, p. 560), a maioria de nós às vezes tem dificuldade para pensar que Deus é, de fato, benevolente para conosco; e mesmo os grandes mestres da vida espiritual às vezes se encontram nas trevas espirituais.45 Os cristãos precisam admitir que a situação epistêmica e espiritual deles difere muitíssimo de pessoa para pessoa, e até em uma mesma pessoa ao longo do tempo. Não haverá então quaisquer condições nas quais os fatos do mal constituam um anulador da crença cristã? Penso que a resposta correta é “Provavelmente não”. Considere-se uma pessoa na qual o sensus divinitatis não funciona bem de modo algum, uma pessoa que acredita em

4*Citado em Cornelius Plantinga Jr., A place to stand (Grand Rapids: Board o f Publications o f the Christian Reformed Church, 1981), p. 35. De Bres (1522-67) foi o autor da Confissão Belga. 45É o caso de Teresa de Lisieux: Canso-me destas trevas que me rodeiam. [...] É o pior tormento de todos; as próprias trevas parecem retirar, dos pecadores que nela vivem, o dom da palavra. Ouço a sua pronúncia sarcástica: “Não passa de um sonho, essa conversa de um país celeste banhado na luz, deliciosamente perfumado, e de um Deus que fez tudo isso, e que passará a ser teu na eternidade! [...] A morte tornará absurdas as tuas esperanças; será apenas uma noite mais negra do que antes, a noite da mera inexistência”. [...] E sempre é mais do que um mero véu, é uma imensa muralha que chega ao céu e esconde as estrelas.

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Deus de maneira impensada e meramente formal, uma pessoa para quem a crença não tem real vivacidade nem animação — talvez uma pessoa assim, ao se dar conta profiindamente dos fatos do mal, abandone normalmente a crença teísta. Como argumentei, contudo (p. 476ss.), isso não mostra que essa pessoa tenha um anulador da crença teísta. Ela só tem tal anulador se fizer parte do nosso plano de desígnio o abandono da crença teísta nessas circunstâncias; e não temos razão para pensar que isso aconteça. O plano de desígnio inclui o funcionamento apropriado do sensus divinitatis; o modo pelo qual as coisas acontecem quando esse processo não funciona apropriadamentepoderia fazer parte do plano de desígnio; é mais provável, contudo, que seja um subproduto inadvertido e não uma parte intencional do plano de desígnio. No entanto, suponhamos, apenas para efeito de argumentação, que tal pessoa realmente tenha um anulador da crença teísta. O que importa observar aqui é que, se ela tem um anulador, isso só ocorre por falta de racionalidade em algum lugar em sua estrutura noética (talvez haja uma disfunção com respeito ao sensus divinitatis). E agora regressemos à nossa questão original: uma pessoa S, que acredita que Deus existe, tem um anulador nos fatos do mal? Vemos claramente que não há razão para pensar que sim. O próprio fato de S persistir na sua crença teísta é uma evidência de que o sensus divinitatis está funcionando apropriadamente, ao menos em certa medida, e de tal modo que o conhecimento dos fatos do mal não constitui um anulador. E talvez possível (se deixar de acreditar nessas circunstâncias fizer parte do plano de desígnio) que ela tenha um anulador, mas não há razão para pensar isso. Concluo, portanto, que com toda a probabilidade os crentes em Deus não têm anuladores da crença teísta no conhecimento dos fatos do mal. Claro que tudo isto é da perspectiva do teísmo cristão. Se o teísmo cristão for verdadeiro, a existência do pecado, do mal e do sofrimento que vemos não constitui, no caso típico, um anulador da crença em Deus. Em particular, não constitui um anulador para os adultos de Quinn, os “adultos intelectualmente sofisticados da nossa cultura” (p. 363), pelo menos se eles pensaram brevemente na epistemología da questão. Ora, alguém que não aceita o teísmo cristão pode não ficar impressionado com esse fato; pode conceder que, do ponto de vista do teísmo cristão, o sofrimento e o mal não constituem um anulador da crença cristã, mas (dirá ele) o teísmo cristão é falso. Logo, esse fato — que, se fosse verdadeiro, o mal não constituiría um anulador da crença cristã, — em nada se relaciona com a sua tese de que, de fato, o mal constitui um anulador. Todavia, se está pensando em um anulador interno da crença teísta, ele está enganado; o conhecimento dos fatos do mal não constitui um anulador interno, pelo menos para aqueles crentes para quem parece muito claro que Deus existe e que, efetivamente, a narrativa cristã é completamente verdadeira. Para tal pessoa, isso parecerá claro mesmo depois de ela estar plenamente ciente dos males do mundo c de haver pensado profundamente sobre eles. Logo, nada há de internamente irracional na sua crença; não se trata de essa pessoa não acreditar de algum modo no que lhe parece claramente verdadeiro ou de administrar mal questões epistêmicas por meio da experiência. Assim, se há aqui

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irracionalidade, ela deve ser externa; essa inclinação para acreditar, essas evidencias doxásticas, terão de ser produtos de uma disfunção cognitiva ou de processos cognitivos que não visam à verdade. O crente cristão ou teísta, como é natural, não concorda: ele verá a sua crença como o produto de faculdades cognitivas funcionando apropriadamente, funcionando do modo que Deus pretendia que funcionassem (e visando à produção de crenças verdadeiras). O que observamos aqui é outro caso de um padrão geral: parece mais uma vez que as questões acerca da racionalidade da crença em Deus (e de toda a narrativa cristã) não são meramente epistemológicas. O que uma pessoa fará quando confrontada com o sofrimento e o mal depende de qual é o plano de desígnio cognitivo para os seres humanos; entretanto, de uma perspectiva cristã plena, esse plano de desígnio nos diz que alguém que (como Madre Teresa, p. ex.) continue a aceitar a crença cristã diante do sofrimento e mal do mundo não dá mostras de irracionalidade. Na verdade, é a pessoa que abandona a crença em Deus nessas circunstâncias que exibe uma disfunção cognitiva; nela, o sensus divinitatis deve estar pelo menos parcialmente em desordem. O ateólogo só pode apropriadamente defender que o mal constitui um anulador da crença cristã, consequentemente, se começar por pressupor que a crença cristã é falsa. M as então não é sensato esperar que o crente cristão conceda que ele tem realmente um anulador da crença cristã — pelo menos até o ateólogo produzir uma ou duas boas razões para supor que a crença cristã seja falsa. O crente cristão, por ser crente, naturalmente pensará que a sua crença cristã é verdadeira, caso em que os fatos do mal não a anulam. Este capítulo foi dedicado à questão de saber se o conhecimento dos fatos do mal constitui um anulador da crença cristã. Claro que há muitos projetos próximamente relacionados. Um de particular interesse é o uso dos recursos da fé cristã na reflexão acerca do pecado e do mal — não para defender o status epistêmico da crença cristã, mas como parte de um projeto mais vasto de investigação cristã para observar como a crença cristã ilumina muitas áreas importantes de preocupação humana. Essa é uma tarefa extremamente importante que não recebeu, nem de perto, a atenção que merece dos filósofos cristãos.46 Eis um tema que surge nessa área. Segundo a crença cristã, Deus é sumamente bom, mas também perfeitamente amoroso, amando cada uma das suas criaturas com um amor perfeito. Nesse caso, permitiría ele que uma pessoa S sofresse pelo bem de outra (ou, mais em abstrato, permitiría que S sofresse porque o seu sofrimento é um elemento no melhor mundo que Deus pode efetivar)? Se ele é perfeitamente amoroso, não permitiría ele que S sofresse apenas para assegurar um bem superior para S? Esse é um tema fascinante e complexo; não tenho espaço para lidar com ele adequadamente. E claro, contudo, que precisamos de algumas distinções. Primeiro, Deus (pressupondo que é perfeitamente amoroso) podería certamente permitir que alguém sofresse pelo bem de outra pessoa se, como no caso de Cristo, este sofrimento fosse voluntariamente assumido. Suponha-se, portanto, que o meu ·,6Gostaria de recomendar alguns trabalhos interessantes e frutuosos nessa área: Salvifici doloris (veja nota 37), Marilyn Adame, “Horrendous evils and the goodness o f God” (veja nota 40); Diogenes Allen, The traces o f God in a frequently hostile world (Cowley Publications, 1980) e Eleonore Stump, “The mirror o f evil” (veja nota 31).

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sofrimento não seja voluntariamente assumido: por uma razão qualquer, não sou capaz de decidir aceitar o sofrimento (como uma pessoa em coma pode não ser capaz de tomar uma decisão importante que afeta a sua vida). Suponha-se também que Deus sabia que se eu fosse capaz de tomar essa decisão, aceitaria o sofrimento: então também aqui, tanto quanto consigo ver, o fato de Deus ser perfeitamente bom não o impediría de permitir que eu sofresse para o beneficio alheio. Alternativamente, suponha-se que sou capaz de tomar a decisão e de fato não aceitaria o sofrimento; Deus sabe que essa recusa da minha parte se deveria apenas à ignorância: se eu tivesse conhecimento dos fatos pertinentes, aceitaria o sofrimento. Também nesse caso, a perfeita bondade de Deus não o impediría de me permitir sofrer; e isso seria verdadeiro mesmo que eu próprio estivesse inocente de qualquer mal. Suponha-se ainda que o que Deus sabe é que se eu soubesse o suficiente e também tivesse os afetos adequados, eu aceitaria o sofrimento: também nesse caso, tanto quanto consigo ver, o fato de ele ser perfeitamente amoroso não o impediría de me permitir sofrer. Há outra distinção que deve ser feita. Talvez a razão de Deus para me permitir sofrer não seja que, ao submeter-me a esse sofrimento, eu possa atingir então um bem maior (o bem de gozar da sua gratidão, por exemplo: veja nota 40 deste cap.), mas sim porque ele pode dessa forma criar um mundo melhor em geral. Contudo, talvez seja também verdadeiro que ele não me permita sofrer com essa finalidade, uma finalidade que não leve em conta o meu próprio bem, a menos que pudesse também trazer a mim algum bem por meio desse mal. Então, a sua razão para me permitir sofrer não seria o fato de esse sofrimento contribuir para que eu próprio me torne melhor; no entanto, ele não me permitiría sofrer a menos que o sofrimento pudesse de algum modo redundar no meu próprio bem. Uma limitação nas razões de Deus (provocadas, talvez, pelo fato de ele ser perfeitamente amoroso) é uma coisa; uma limitação nas condições sob as quais ele permitiría o sofrimento involuntário e inocente é outra. Para voltar a um exemplo anterior (p. 486), talvez Deus veja que os melhores mundos que pode efetivar incluem o bem inconcebivelmente grandioso da encarnação e expiação divinas. Suponha-se que consequentemente ele efetive um mundo m no qual os seres humanos caem em pecado e no mal, sendo a salvação cumprida pela encarnação e expiação. E suponha-se ainda que a condição final dos seres humanos, em m, é melhor do que nos mundos em que não se cai em pecado, mas também não há encarnação nem redenção. Então, efetivar m, por parte de Deus, envolve sofrimento para muitos seres humanos; a sua razão para permitir esse sofrimento não é que os indivíduos que sofrem serão beneficiados (a sua razão é que ele deseja efetivar um mundo muito bom, com o bem grandioso da encarnação, expiação e redenção). Contudo, a sua perfeita bondade talvez o obrigue a efetivar um mundo no qual quem sofre é beneficiado, de tal modo que a sua condição seja melhor do que naqueles mundos em que não sofre. O livro de Jó dá uma expressão esplêndida a alguns dos temas deste capítulo.47 Quando a história começa, Satanás desafia Deus: o seu servo Jó, afirma, é um bajulador 47Para um comentário profundamente perspicaz dos temas principais de Jó, veja Elconore Stump, “Secondpcr60n accounts and the problem o f evil”, Stob Lecture at Calvin College, Janeiro de 1999 (Grand Rapids: Calvin College, 1999).

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oportunista que se voltará contra Deus e o amaldiçoará face a face se as coisas não lhe correrem bem. Deus discorda e permite que Satanás atormente Jó, cujos amigos Elifaz, o temanita; Bildade, o suíta; e Zofar, o naamatita, vêm reconfortá-lo e dar-lhe consolo. Depois de sete dias e sete noites de silêncio (imaginamo-los agachados à volta da fogueira), dizem-lhe repetida e longamente que quem segue a retidão sempre prospera e os perversos sempre acabam em desgraça: Lembra-te disto agora: Qual foi o inocente que já pereceu? E os corretos? Onde foram destruídos? Pelo que tenho visto, quem planta o pecado e semeia o mal haverá de colher isso (4.7-8). O ímpio vive em angústia todos os dias, assim como o opressor por todos os anos que lhe estão reservados. Sons apavorantes estão sempre nos seus ouvidos; na prosperidade lhe sobrevêm o assolador. Ele não crê que sairá das trevas, mas, sim, que a espada o espera. Anda como um perdido — comida de abutres [...] A angústia e a tribulação o amedrontam... (15.2024‫)־‬. De modo q u ejó tem de ser realmente pecaminoso para chamar a si tanto sofrimento: E graças à tua reverência que ele te repreende ou que entra em juízo contigo? Por acaso a tua maldade não é grande, e as tuas transgressões, sem limites? [...] despojaste as roupas dos que não tinham quase nada. Não deste água a beber ao cansado, e retiveste o pão do faminto. Mas ao poderoso pertencia a terra, e o homem privilegiado habitava nela. Despediste as viúvas sem nada, e os braços dos órfãos foram quebrados. Por isso é que estás cercado de armadilhas, e um pavor repentino te perturba, por isso as trevas são tais que nada podes ver, e a inundação das águas te cobre (22.4-11). Jó deve arrepender-se e corrigir-se: Mas, se te empenhares em buscar a Deus, e fizeres a tua súplica ao Todo-Poderoso, se fores puro e correto, com certeza ele se levantará por ti agora mesmo e te restaurará com justiça (8.5,6). Jó fica compreensivelmente irritado: Sem dúvida, vós sois o povo, e a sabedoria morrerá convosco. Mas tenho tanto entendímento quanto vós... (12.1-3). Todos vós sois consoladores lastimáveis. Não terão fim essas palavras vazias? (16.2,3) Ele sabe que a chuva cai sobre justos e injustos e que os pecadores prosperam frequentemente:

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Por que razão os ímpios vivem, envelhecem e ainda se fortalecem em poder? Os seus filhos se estabelecem à vista deles, e os seus descendentes perante os seus olhos. As suas famílias estão em paz, sem temor, e a ameaça de Deus não está sobre eles. Os seus touros geram sem falhar; as suas vacas dão crias e não abortam. Eles deixam sair os seus pequeninos, como a um rebanho, e as suas crianças andam saltando. [...] Na prosperidade, passam os dias; e tranquilos descem ao Sheol (21.713‫) ־‬. Jó sabe também que nada fez de extraordinariamente odioso ou pecaminoso: “as minhas mãos não viram violência e as minhas preces são puras” (16.17). Sem dúvida que “ninguém faz o bem, não, ninguém”; mas Jó é descrito no prólogo como “sem culpa e pleno de retidão”; ele sabe que não está sendo escolhido por ser muito mais pecador do que o resto da humanidade (em particular, não é mais pecador do que Elifaz, Bildade ou Zofar). Por isso, começa a acusar Deus de o tratar injustamente ao lhe permitir sofrer assim: ... sabei então que foi Deus quem transtornou a minha causa, cercando-me com a sua rede (19.6). Tão certo como vive Deus, que me negou a justiça... (27.2). Ele não teme dizer o que pensa ao Senhor. Na verdade, entrevê-se por vezes certa sugestão de sarcasmo: “Sentes prazer em me oprimir, em desprezar a obra das tuas mãos e em favorecer o plano dos ímpios?” (10.3), assim como certa presunção: “Longe de mim eu vos dar razão; até que eu morra, nunca me afastarei da minha integridade. Eu me apegarei à minha justiça e não a largarei...” (27.5,6). Ele acredita que está inocente de todo o mal e quer levar Deus a tribunal para esclarecer os fatos: Ah! Quem me dera alguém me ouvisse! Esta é a minha defesa [depois de expor longamente as suas virtudes]. Que o Todo-poderoso me responda! Ah, se o meu adversário escrevesse a minha acusação! Por certo eu a carregaria nos ombros, eu a ataria sobre mim como coroa (31.35,36). (Uma vez mais, uma nota de sarcasmo.) Mas quando se lembra que Deus será promotor público, juiz, júri e executor, ele não fica otimista quanto ao resultado: Se eu disser: “Eu me esquecerei da minha queixa, mudarei o meu semblante e ficarei contente”, mesmo assim sinto pavor de todas as minhas dores; pois tenho certeza de que não serei considerado inocente (9.27,28). H á pelo menos duas maneiras de entender Jó aqui. Na primeira, o seu problema é intelectual: não consegue ver a razão que Deus poderia ter para permitir seu sofrimento e inclina-se a concluir, irrefletidamente, que provavelmente Deus não tenha uma boa razão.

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O ponto aqui é que a razão dos sofrimentos de Jó está além do que ele conhece ou do que está ciente, mas nesse caso o fato de ele ser incapaz de ver que razão Deus poderia ter para permitir o seu sofrimento nem sequer tende a sugerir que Deus não tenha razão. E, quando Deus lhe responde, não explica a razão para permiti-lo (talvez Jó nem sequer pudesse apreendê-las ou compreendê-las). Em vez disso, ataca a inferência implícita que parte do fato de Jó não ser capaz de ver qual é a razão de Deus e conclui pela noção de que provavelmente não tem razão alguma; Deus aponta para o imenso abismo entre o conhecimento de Jó e o seu próprio: Depois disso, o SENHOR respondeu a Jó de um redemoinho: Quem é este que obscurece o conselho com palavras sem conhecimento? Agora prepara-te como homem; porque te perguntarei, e tu me responderás. Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Conta-me, se tens entendimento. Quem lhe fixou as medidas, se é que o sabes? Quem a mediu com o cordel? Onde estão fundados os seus alicerces, ou quem lhe assentou a pedra fundamental, quando as estrelas da manhã cantavam juntas, e todos os filhos de Deus gritavam de júbilo? [...] Acaso tu entraste até aos mananciais do mar, ou passeaste pelos recessos do abismo? Ou te foram descobertas as portas da morte? Ou viste as portas da sombra da morte? Compreendeste a largura da terra? Conta-me, se sabes tudo isso. Onde está o caminho para a morada da luz? E, quanto às trevas, onde fica o seu lugar, para que possas levá-las aos seus limites e para que conheças o caminho da sua casa? Por certo tu o sabes, pois já eras nascido e os teus dias são numerosos! (38.1-7,16-21.) Jó se queixa de que Deus parece não ter nenhuma boa razão para permitir o mal que lhe aconteceu. Suspeita que Deus não tenha nenhuma boa razão porque ele, Jó, não consegue imaginar que razão poderia ser essa. Em resposta, Deus não lhe dá a resposta; em vez disso, ataca o pressuposto impensado de Jó de que se ele, Jó, não consegue imaginar a razão de Deus é porque provavelmente Deus não tem razão. E Deus ataca esse pressuposto explicitando quão limitado é o conhecimento de Jó nessas questões.48 E óbvio que ele não consegue ver as razões de Deus, mas nada de interessante se segue disso: em particular, não se segue que Deus provavelmente não tenha uma razão. “Muito bem, Jó. Já que você é tão esperto, já que sabe tanta coisa, me diga! Me diga como o Universo foi criado; me fale dos filhos de Deus que ergueram as vozes com alegria perante a sua criação! Claro que você estava lá, não?”. E Jó vê então o que está em causa: “De fato falei do que não entendia, coisas que me eram maravilhosas demais e eu não compreendia” (42.3). H á outra maneira de entender Jó — uma maneira bastante diferente, mas que pode ser combinada com a primeira. Desse ponto de vista, a ideia não é que Jó suspeita ou tende a pensar que Deus provavelmente não tenha uma razão para permitir seu sofrimento. Trata-se sim de que Jó ficou zangado com Deus, odiou e abominou o que Deus 48Convidando assim Jó a considerar a possibilidade de as razões de Deus para permitir o mal serem mais como borrachudos do que como são-bernardos; veja p. 464.

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lhe fez (ou permitiu que acontecesse), e está dando voz à sua indignação — e tudo isso é perfeitamente independente de ele pensar ou não que Deus tem uma razão. “Claro, talvez Deus tenha uma razão — sendo Deus, é natural que a tenha, não é? Mas eu não consigo ter a mais mínima ideia de qual poderá sê-la e por que preciso sofrer para que ele consiga atingir esses seus fins, sem dúvida elevadíssimos — sem que nem sequer eu seja consultado? Sem nem sequer um com a sua permissão?” Odeio isso! E estou zangado com ele! Essas “razões” dele, sejam elas quais forem, são totalmente inescrutáveis; e por que haveria eu de sofrer por coisas que me ultrapassam? Não quero saber dessas razões e detesto o que ele está fazendo!”. Aqui não há a sugestão de que Deus talvez não tenha razões e seja talvez até injusto·, essa ideia não entra na equação, na verdade, ou pelo menos não tem o papel principal. Há, em vez disso, falta de confiança em Deus. Jó suspeita dele e dos seus fins supostamente magníficos, odeia o que Deus lhe impõe e lhe exige. Há aí uma insinuação, ou mais do que uma simples insinuação, de rebelião. Então, quando Deus vem à presença de Jó no redemoinho, não é para convencê-lo de que realmente tem razões (apesar de poder, de fato, fazê-lo); trata-se sim de acalmar a tempestade da sua alma, aquietá-lo, restaurar a sua confiança em Deus. O Senhor dá a Jó um vislumbre da sua grandiosidade, da sua beleza, da sua esplêndida bondade; as dúvidas e o turbilhão desaparecem e são substituídos, uma vez mais, pelo amor e pela confiança, um estado de espírito expresso em toda a sua completude cristã pelo apóstolo Paulo: Mas em todas essas coisas somos mais do que vencedores, por meio daquele que nos amou. Pois tenho a certeza de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem autoridades celestiais, nem coisas do presente nem do futuro, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8.37-39). E tempo, e mais do que tempo, de concluir este livro e esta trilogia. Em Warrant: the current debate e Warrant and properfunction, o que argumentei, essencialmente, foi que a única resposta viável à pergunta “O que é o conhecimento?” se encontra nas imediações do funcionamento apropriado: uma crença tem aval se e somente se for produzida por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente em um ambiente epistêmico adequado segundo um plano de desígnio que visa com êxito à produção de crenças verdadeiras (essa é a ideia básica; são necessários vários ajustes de detalhes, incluindo alguns apresentados no cap. 6 deste livro). Neste volume final da trilogia, argumentei primeiro, na primeira parte (caps. 1 e 2), que existe realmente uma crença específicamente cristã e que (contra Kaufman, Hick e Kant, em uma interpretação) podemos, de fato, falar e pensar acerca de Deus. Na segunda parte, os três capítulos seguintes, distinguí as objeções dejure à crença cristã das objeções defactor, nas primeiras, a ideia é que tal crença é intelectual ou racionalmente questionável, ainda que verdadeira. Apesar de as objeções dejure terem sido muito comuns desde o Iluminismo, não é fácil dizer o que se espera que sejam. Argumentei que não há qualquer

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objeção de jure viável nas imediações da justificação nem da racionalidade interna. O único candidato inicialmente promissor para uma objeção dejure viável à crença cristã, afirmei, pode ser abordado por meio da tese de Freud de que a crença cristã não tem aval, ou pelo menos aval suficiente para o conhecimento. Freud, contudo, limita-se a pressupor que a crença teísta, e, portanto, a cristã, é falsa; logo, essa suposta objeção dejure não é independente da veracidade da crença cristã. Se a crença cristã fosse falsa, talvez Freud tivesse razão; mas a objeção dejure deveria ser independente da sua verdade ou falsidade; logo, essa objeção de jure não é bem-sucedida. Argumentei, além disso, que qualquer suposta objeção dejure formulada quanto ao aval terá o mesmo destino. Isso porque, se a crença cristã for verdadeira, é muito provável que tenha aval; logo, qualquer objeção à ideia de que tem aval deverá ser uma objeção à ideia de que é verdadeira; mas, nesse caso, a suposta objeção dejure torna-se uma objeção defacto, ou pressupõe uma objeção assim. Portanto, uma atitude agnóstica comum — não faço ideia se a crença cristã é verdadeira, mas sei que é irracional (ou injustificada, ou...) — não pode ser defendida. Na terceira parte do capítulo 6, apresentei o modelo Aquino/Calvino de como a crença em Deus pode ter aval, incluindo um aval suficiente para o conhecimento. No capítulo seguinte, considerei os efeitos noéticos do pecado e como a existência do pecado podería suscitar um problema para o modelo A/C. Nos capítulos 8 e 9, estendi o modelo A /C para lidar a um tempo com o pecado e com a panoplia completa da crença cristã: Trindade, encarnação, expiação, ressurreição. O capítulo 10 trabalhou objeções a esse modelo. Por fim, na quarta parte, voltei-me para os anuladores potenciais ou efetivos da crença cristã — possíveis razões para abandoná-la ou sustentá-la com menos firmeza. Examinamos as teorias projetivistas (cap. 11), a crítica histórico-bíblica contemporânea (cap. 12), o pós-modernismo e o pluralismo (cap. 13) e o velho problema do mal (cap. 14). Nenhum desses, defendí, representa um desafio sério ao aval que a crença cristã tem, se o modelo, e na verdade a crença cristã, forem de fato verdadeiros. Entretanto, será a crença cristã verdadeira? Essa é a pergunta verdadeiramente importante. E aqui ultrapassamos a competência da Filosofia, cuja principal tarefa, nessa área, é elucidar e afastar certas objeções, empecilhos e obstáculos à crença cristã. Falando por mim e não, é claro, em nome da Filosofia, só posso dizer que ela realmente me parece verdadeira e me parece ser a verdade máximamente importante.

índice remissivo A

Abraham, William 113,215,256,303 Adams, Marilyn 486,489 Adams, Robert 52,459,486 afeições religiosas 331 controle voluntário 319 e a justificação 319 e análogos da racionalidade, justificação e aval 218,318 e o pecado 307 graus de 319 Agostinho 51,213,225,226,258,316,321, 379,387,424 Aiken, Henry David 459 Allegro, John 403 Allen, Diogenes 489 Allison, Henry 38 Alston, William 139,197,296,310,322,344, 404,408,424,463,464,469 e a percepção de Deus (em contraste com a experiência) 197,296 sobre a justificação 125 sobre a racionalidade prática 139 Alter, Robert 392 Ameriks, Karl 38,44 Anselmo 312 anuladores 181,206,218,239,252,265,267, 270,271,295,351,360,363,364,365, 366,367,371,372,374,378,423,426, 427,432,479,480,482,488,495 argumentativos/não argumentativos 427 de racionalidade 373 do aval 365 irracionais ou não avalizados 369 parcial 367 puramente cpistêmicos 368

refutantes 270 relativos à nossa estrutura noética 366 “revogador otimista” 367 anuladores da crença cristã 363, 364,371, 372,426,427,432 estudos histórico-críticos da Escritura 379 mal, problema do 457 não argumentativos 479 pluralismo religioso 437 pós-modernismo 423 Aquino/Calvino, modelo Veja modelo A/C 139 argumento do design inteligente 461 argumento evolucionista contra o naturalismo 292,294 argumento ontológico 80 Aristóteles 39, 96,101,131,132,166,423, 425 Armstrong, David 395 Attridge, Harold 419 Auerbach, Erich 329 autoevidência 99,136,137,272 aval 53,54,77,85,135,136,152,157,173, 175,176,177,178,179,180,181,182, 185,186,187,188,195,196,197,198, 199,200,201,202,203,204,205,206, 207,208,210,213,214,215,216,217, 219,221,232,253,255,256,259,260, 265,268,269,270,271,273,274,275, 276,277,278,294,295,296,297,299, 301,315,318,319,333,334,335,336, 337,338,339,340,342,343,344,349, 350,351,352,354,355,356,357,358, 359,360,363,365,369,373,376,379, 380,381,383,384,390,391,412,415, 426,428,429,438,442,453,455,456,

498

CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

458,459,462,474,475,476,477,478, 479,483,484,486,494,495 aval derivado 294 e a basicidade apropriada 195 e a crença falsa 203 e a experiência religiosa 334 e a fé 268 e a função apropriada 174 e a produção sobrenatural da crença 259 e a queixa F&M 181 e a verdade 175 e as condições de resolução 179 e as considerações evidenciais 475 e as evidências enganadoras 177 e as faculdades cognitivas disfuncionais 296 e o ambiente adequado 175 e o plano de concepção 174 e o testemunho 356,369 e os exemplos de Gettier 176 e os mini/maxiambientes cognitivos 178 graus de 455 relativo às circunstâncias/ambiente 429 Ayer, A J. 33,68 B Bailliejohn 335 Barth, Karl 258,379 Beilby, James 242 Bergmann, Gustav 430 Bergmann, Michael 364 Bertrand Russell 68,112,177,201,241,352, 367 Beversluisjohn 189 Bíblia 58,110,153,158,164,217,221,256, 257,261,263,264,272,278,281,282, 285,320,327,333,379,380,381,382, 383,384,385,387,388,389,390,391, 392,400,402,403,404,413,414,415, 420,451,453 autoridade da 387 cânon 381

confiabilidade da 272 e a basicidade apropriada 270 e o comentário bíblico tradicional 387 e os desacordos teológicos 385 estudo científico da 390 inspiração da 263,272,279,281 interpretação da 385 revelação de acontecimentos ou proposições 264 Bird, Graham 38 Blanshard, Brand 112 Boaventura 255 Bodin,Jean 438 BonhoefFer, Dietrich 228 Borg, Marcus 405 Bradley, F. H. 459 Brown, Raymond 388,390 Bultmann, Rudolf 396,405,406,408 C calvinismo 216,265 CalvinoJoão 71, 72,153,160,169,185,186, 188,189,190,191,194,199,215,217, 220,221,226,231,253,255,257,258, 260,261,262,263,264,268,271,272, 273,274,275,278,280,291,301,302, 303,304,314,363,379,380,387,424, 453,454,483,487,495 e o Espírito Santo 268,271 e o sensus divinitatis 188 sobre a Escritura 271 sobre a fé 260,268 sobre o conhecimento da essência de Deus 71 sobre o pecado 226 Camus, Albert 485 Carnap, Rudolf 33,101 Carroll, Michael R 208 Catecismo dc Heidelberg 86,218,223,260, 261,268,298 Catecismo de Westminster 218,325

ÍNDICE REM ISSIVO

Cavin, Robert 286 Celso 288,439 certeza 107 ceticismo 98,169,232,233,234,235,239, 240,253,276,358,380,403,404 Chesterton, G. K. 222,363 Childs, Brevard 402,412 Chisholm, Roderick 117,133,430,444 Cícero 189 circularidade epistêmica 141 Clifford, W. K. 111,112,410 coerência 134 coisas grandiosas do evangelho, as 103,123, 261,262,314 inferência 314 Collins, John 391, 393, 412 condicionalização 419 confiabilidade cognitiva 236 anuladores da 241 pressuposição da 168,171 Confissão Belga 75,383,487 Confissão de Augsburgo 218 conhecimento 96,179,261,268,275,276 contrafactuais 459 conversão 320 Cook, Martin 408 Cooper, John 479 Credo de Niceia 218,285 Credo dos Apóstolos 218 credulidade 168 crença bases da 125 controle voluntário da 118,126 crença a priori 128,133,166,192,193,200, 337 crenças de memória 124,127,128,133 e fatores estéticos 315 e relação com o comportamento 245 ética da 408 se Deus a tem 147 suspensão da 200

499

crença apropriadamente básica. Veja crença em Deus, apropriadamente básica crença em Deus anuladores da 363 apropriadamente básica 192,270 apropriadamente básica com respeito ao aval 203,355 autentica a si mesma 270 como dom sobrenatural 257 como hipótese 114 controle voluntário da crença 190 crença em Deus em contraste com crença de que Deus existe 303 e a Bíblia 380 e afeições religiosas 301 e a experiência 196 e a experiência religiosa 334 e a satisfação de desejos 316 e as coisas grandiosas do evangelho 311 e as explicações naturalistas 165 e as outras religiões 356 e a verdade 186,425 e o conhecimento perceptivo 196 e 0 pecado 200 falsa, mas avalizada? 203 fé e arrogância 265 se for produzida por faculdades comuns 280 teorias projetivistas da 372 verdadeira mas sem aval? 205 Veja também sensus divinitatis crenças básicas 106,192, 350 crenças fundacionais 108 crenças incorrigíveis 99,107 crenças perceptivas 133,139,147,150,151, 152,190,195,198,206,210,269,273, 276,298,299,338,351,378 Criacionismo 231 Crisóstomo,João 379 Crisp, Thomas 179 critica histórico-bíblica

CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

500

argumentos a favor 405 como projeto do Iluminismo 407 duhemiana 398 e a fé 389 não troeltschiana 415 razões para rejeitar 413 crítica histórico-bíblica 364,378,379, 389, 393,412,456,495 e comentário bíblico tradicional 419 espinosista 400 troeltschiana 393 Crosson,John Dominick 404 Cummins, Robert 249 Cupitt, Don 65,165,171,230 D Daniels, Charles 165 Darwin, Charles 158,248 darwinismo. Veja também evolução Davis, Stephen 256 Dawkins, Richard 68,171,194,241,258 De Bres, Guido 486, 487 Dennett, Daniel 68,135,171,194,241,242, 258,390,461 deontologismo clássico variações do 125 Derrida, Jacques 424,427,431,437 Descartes, René 46, 95,107,116,120,134, 146,151,155,169,234,352,395,436 desconstrução 423 Deus impassibilidade 327 percepção de 196 referência a 29 Deus, a liberdade e 0 mal 459 dever epistêmico dever objetivo e contraste com subjetivo 121

e arrogância/egoísmo 448 Veja também deontologismo clássico Devitt, Michael 38

De Vries, Paul 443 Dewey, John 430, 432 discurso divino. Veja também Wolterstorff, Nicholas Dole, Andrew 269 Donne, John 323 Dostoievski, Fyodor 352,480 Draper, Paul 467 Dryer, D. P. 38 Duhem, Pierre 398 Durkheim, Emile 364,372 E Edwards,Jonathan 59,103,122,213,228, 255,262,270,273,297,301,304,310, 322,325,328,359,379,384 acerca do intelecto e da vontade 305 acerca do pecado 307 efetivismo 136 efetivismo sério 452 Einstein, Albert 316,429 Ellis, Albert 208 empatia 140,152,168,234,268,280,389, 476 encarnação 217 Engels, Friedrich 208 Epicuro 458 epifenomenalismo 245,246 epifenomenalismo semântico 245,246,249 epistemología reformada 215 Eros humano em contraste com divino 328 Veja também crença em Deus, e as afeições religiosas escolástica reformada 303 Escritura. Veja Bíblia Espinosa 389,401 Espírito Santo 59,104,122,152,169,196, 200,202,215,216,217,221,256,257, 259,260,262,263,264,265,267,268, 269,270,271,272,276,279,280,281,

ÍNDICE REM ISSIVO

286,287,291,292,294,295,298,301, 302,303,304,306,312,314,315,322, 333,379,380,382,384,387,411,417, 452.453.454.462.476.487 e produção da fé 262 instigação interna 152,169,196,197,217, 221,262,264,265,268,276,279,286, 294,295,298,301,314,333,379,411, 452.454.462.476.487 por que é necessário? 279 Esterson, Allen 213 Evans, C. Stephen 147,256,380 evidencialismo 91, 94,105, 111, 112,113, 114,115,124,125 evidências 92, 93, 94,102,103,104,105,106, 107,108,109,110, 111, 112,113,114, 115,118,122,123,124,125,127,131, 134,135,157,168,170,173,219,263, 271,272,273,274,275,277,282,283, 284,314,316,317,335,338,354,369, 370,371,377,383,391,400,403,404, 409,418,419,420,421,441,447,451, 452,460,462,466,467,471,472,474, 483,489 doxásticas (ou impulsionais) 134 evolução 114,135,137,162,167,171,174, 175,178,241,242,243,246,247,293, 338,439,461 e a crença verdadeira 246 exclusivismo 438,439 como arbitrário 442 definição 439 exemplo de Gettier 177,205,296 experiência religiosa 84, 85,114,157,165, 199,200,270,276,333,334,335,336, 337,338,339,340,342,343,344,345, 346,350,443,447 objeçõcs à ideia de que a crença em Deus recebe aval da 335 Expiação 217

501

F falácia genética 209,210 Fales, Evan 159 fé 35,59,97,100,103,109,185,217,221, 256,257,260,261,262,263,264,267, 268,269,270,271,272,273,274,276, 277,279,280,294,301,302,303,304, 331,339,385,386,393,405,409,411, 413,415,416,417,421,462 como “salto no escuro” 274 conteúdo da 261 definição de Calvino 260 e o aval 268 e o conhecimento 268 e a crítica histórico-bíblica 413 e as evidências 276 e a justificação 265 e a vontade e afeições 221,260 e outros mecanismos de formação de crenças 273 e racionalidade externa 268 opinião de Mark Twain 260 Feenstra, Ronald 325,329 Feldman, Richard 176 fideísmo 97 filosofia grega e a Bíblia 327 Findlay, J. N. 421 Finke, Roger 209 Fitelson, Branden 243 Flew, Antony 33,112 Flint, Thomas 419,460 Fodor,Jerry 242,406 Foucault, Michel 94 Francisco de Sales 322, 323 Fraser, Alexander 95,277 Freddoso, Alfred 105 Frege, Gottlob 351 Frei, Hans 261 Freud, Sigmund 122,157,158,159,160,161, 163,164,165,169,172,173,181,182,

502

CRENÇA CRISTA AVALIZADA

185,201,203,204,207,208,209,210, 211,212,213,216,316,317,323,324, 325,326,364,368,372,373,374,427, 431,481,495 Frye, Northrop 164 Fuller, Margaret 260 função. Veja também funcionamento apropriado; aval fundacionalismo clássico 91,93,105,107, 108,111,115,116,120,124,125,423, 424,436 defesa de Chisholm 117‫־‬ incoerência autorreferencial 116 relação com as evidências 105 variações do 124 fundamentalismo 258 G Gale, Richard 112,310,343 Gaskin, J. C. A. 112 Gellner, Ernest 424 Gilkey, Langdon 397 Gilson, Étienne 188,419 Ginet, Carl 365 God and Other Minds 34,92,104,157 Gõdel, Kurt 440 Goodman, Nelson 317 Grim, Patrick 32,218 Griinbaum, Adolf 172,213 Gutting, Gary 113,344,345,347,431,432, 433,447,448,449,453,454,455 H

Haas, John 479 Hardy, Lee 443 Harvey, Anthony E. 416 Harvey, Van Austin 380,394,403,405,408, 410 Hasker, William 459 Hegel, G.W.F. 162

Heidegger, Martin 223 Hempel, Carl 34 Herbert, George 316 Heródoto 281 Hick, John 30,31,32,57,68,69,70,71,72, 73,74,75,76,77,79,80,81,82,83,84, 85.86.87.428.438.443.444.494 acerca do pluralismo religioso 438 elementos kantianos 68 propriedades positivas e negativas 77 propriedades substanciais em contraste com formais 70 verdade mitológica 81 histórico, relativismo. Veja relativismo, histórico e cultural Howsepian, Albert 217 Hume, David 34, 98,105,112,114,119,120, 152,163,164,175,192,202,216,229, 232,233,234,235,236,237,238,239, 240,241,242,251,252,255,273,295, 308,358,406,421,458,468 Huxley, T. Η. 245 I

Iannaccone, Laurence 209 igreja 287 IIES. Veja Espírito Santo, instigação interna do Iluminismo 105,108,168,172,256,265,379, 389.390.397.405.438.494 imagem de Deus 219 ampla 220 restrita 220 indução 168 intelecto e vontade prioridade 305 relações de dependência entre 310 introspecção 168 involuntarismo. Veja voluntarismo

ÍNDICE REMISSIVO

J James, William 94,111,320,322,335 Jantzen, Grace M. 423 Jeffreys, Derek 220 Jesus Cristo 60, 61,66, 67, 83, 86,196,209, 218,220,256,257,261,266,271,274, 286,290,295,297,301,304,314,330, 333,381,382,402,441,480,484 Jesus histórico 402 necessidade para a salvação 256 ressurreição de 286 sofrimento de 484 João Paulo II, papa 485,489 Johnson, Luke Timothy 218,392,402,416, 417 Jones, E. Μ. 212 Jowett, Benjamin 391,415 justificação (com respeito à epistemología) 94,100,296 e a fé 265 e a racionalidade 131 justificação de Alston 125 objetiva e subjetiva 105 justificação (com respeito à salvação) 276 K Kane, G. Stanley 415,460 Kant, Immanuel 29,30,31,33,34,35,36,37, 38,39,40,41,42,43,44,45,47,50,51, 55,57,68,69,76,84,92,98,105,190, 406,436,494 antinomias 46 interpretação de “dois mundos” 36 interpretação de “um só mundo” 38 referência ao númeno 36 Kaufman, Gordon 30,31,57,386 conexões com Kant 59 objeções a Deus como pessoa 64 objeções à linguagem acerca de Deus 57

503

Kenny, Anthony 113,241 Keynes, J. Μ. 101 Kierkegaard, S0ren 436 Klein, Peter 176 Kretzmann, Norman 105,124 Kuyper, Abraham 323,405,424, 486 L Lacan, Jacques 423 Laplace 114 Lehrer, Keith 152,235,292 Leibniz 77,317 leis da natureza 194,209,217,393,395, 397, 460 Levenson,Jon 391,413,418 Levine, Michael 326 Lewis, C. S. 220,230,326,330 Lewis, David 395,460 Lindars, Barnabas 392,418 Lindbeck, George 261 linguagem religiosa 31,34,57,64,66 Livingston, James C. 408 livre-arbitrio 270,460 defesa do livre-arbitrio 460 seletivo 460 Locke,John 94,95,113,277 acerca da dedução 101 acerca da Revelação 103 acerca da tradição 97 acerca de tipos diferentes de conhecimento 98 acerca do testemunho 107 fideísmo 97 regular a opinião e a razão 97 sobre a opinião 99 sobre a probabilidade 101 sobre a razão 101 Lombardo, Pedro 226 Lüdemann, Gerd 403 Lutero, Martinho 226,258,298,303,304

504

CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

M MacIntyre, Alasdair 33 Mackiejohn 108,112,113,114,122,124, 125,216,337,338,339,340,343,390, 459,461 acerca da experiência religiosa 337 acerca do problema do mal 459 e o evidencialismo 108 Macmillan, Malcolm 111, 213,220,228,245, 326,327,394,410,419 Macquarrie 265,266,396, 397,405,406,407 mal e o sensus divinitatis 482 gratuito 463 moral 457 natural 292 Veja também problema do mal Martin, Michael 351, 352 Marx, Karl 122,157,158,161,162,163,164, 165,169,172,173,182,185,200,201, 207,208,364,372,373,427 Matthews, Η. E. 38 Mayr, Ernst 242 McCloskey, H. J. 459 McFague, Sallie 31 McGonagall, William E. 75 McMullin, Ernán 415 McTaggart.J. 459 Meier, John 390,400,416 Meinong, Alexius 429 Menzel, Christopher 292 Merricks, Trenton 179 metafísica 460 milagres 114,164,261,262,280,295,392, 397,400,401,402,405,406,407,408, 409,413,414,415,417,418 Mill,John Stuart 46,210,459 Milton,John 224,302 Mitchell, Basil 113 modelo A/C 202 c a basicidade com respeito à justificação 194

e a basicidade com respeito ao aval 195 e a basicidade com respeito à racionalidade 192 e o conhecimento perceptivo em contraste com o experiencial 197 e o pecado 200 teses de Plantinga sobre 186,333 modelo A/C estendido 187,214,219,228, 255,279,295,333,338,339,346,350, 352,355,357,359,360,363,384,456 formulação inicial 218 necessidade do 279 objeções ao 333 Moore, Brian 222 mormonismo 217 Morris, Thomas 292,464,481 Muyskens, James L. 274 N naturalismo 438 naturalismo metodológico 390,399 Nature of necessity, The 52,61, 80,137,459 navalha de Ockham 374, 375 Newman, John 119,453,454 Nielsen, Kai 122 Nietzsche, Friedrich 82,122,145,158,163, 216,302,427,437 Noble, Paul 359 Novo Catecismo Católico 218 Nygren, Anders 327 O Oakes, Edward T. 191,229 objeção da Grande Abóbora 352,353 Filho da Grande Abóbora 350 objeções à crença em Deus objeção de facto 185 objeção de jure 91,125 relação entre as objeções de jure e de facto 206 obrigação epistêmica. Veja deontologismo clássico

ÍNDICE REM ISSIVO

O’Hair, Madalyn Murray 68 O’Hear, Anthony 334,335,336,337,338,341 onisciência 32 Orígenes 439 Ostler, Blake T. 217 Ostow, Mortimer 323 Otte, Richard 483 Otto, Rudolf 199 P paridade epistêmica 451,452,453,454 Pascal, Blaise 225,304,436 Paulo, o apóstolo 121,188,214,225,257, 279,290,298,380,439,494 Pauw, Amy Plantinga 323 pecado 110,118,159,185,189,196,200, 202,205,206,214,215,217,218,220, 221,222,223,225,226,227,228,229, 230,231,234,253,255,256,261,269, 270,279,281,282,285,290,291,292, 293,295,298,305,306,307,309,311, 312,313,314,315,324,333,379,384, 391,426,476,484,486,488,489,490, 491.495 como indolência 229 e as consequências de não ter conhecimento de Deus 231 e a ausência de conhecimento 241 e o ceticismo 232 efeitos noéticos do 189,200,221,227,228, 230.253.292.495 remédio divino para o 303 Peirce, Charles Sanders 107,191,229 Penelhum, Terence 113 Perrin, Norman 286 Phillips, D. Z. 34 Piper, John 328 Plantinga, Alvin 32,52,53,92,136,157,190, 218,228,443,459 Plantinga, Cornelius 329,487 Plaskow, Judith 171

505

Platão 96,99,166,173,387,391,410,411 pluralismo religioso 65, 364, 423,437,439, 440,446,455,456 como anulador probabilístico da crença cristã 440 e a arbitrariedade da crença cristã 441 e a arrogância/egoísmo da crença cristã 447 efeito na crença cristã 454 Pollock, John 136,364 positivismo lógico 34 pós-liberalismo 261 pós-modernismo 378,417,423, 424, 426, 436,437,495 acerca da argumentação e dos anuladores 426 acerca da verdade 424 como anulador da crença cristã 423 condicionamento histórico 428 e a morte da epistemología 96 e a intenção do autor 388 inconsistente com a crença cristã? 424 Prática Mística Cristã agnosticismo quanto aos produtos da 153 Preus,J. Samuel 166 Pringle, William 401,402 probabilidade 440 bayesiana 243 e o mal 460 epistêmica 469 objetiva 126 problema do mal 92,137,153,368,458,495 como anulador bem-sucedido da crença cristã 487 como anulador não-argumentativo da erença cristã 479 e o Livro de Jó 490 evidenciai 462 lógico 459 propriedade 40 provas teístas 92,188,192,281 psicanálise 161,211,212

506

CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

a queda, a. Veja tam bém pecado; queixa F&M Veja tam bém Freud, Sigmund; Marx, Karl Quine, Willard van Orman 231,235, 248 Quinn, Philip 117,363,364,371,372,374, 375,377,458,488 R racionalidade 88, 91,92, 93,105,131,132, 133,134,135,137,138,139,142,143, 144,145,146,147,148,149,150,152, 154,155,157,161,187,195,202,206, 207,209,215,216,217,218,219,229, 239,252,253,255,259,265,267,269, 275,278,294,297,301,333,335,344, 353,354,357,365,369,370,371,372, 374,426,439,450,475,477,478,484, 488,489,495 como funcionamento apropriado 132 de meios e fins 138 deontológica 132 e a coerência 134 e as discordancias teológicas 267 e os produtos da razão 135 racionalidade aristotélica 131,133,135,136 racionalidade prática alstoniana 139 Rawls, John 144 razão 167 realismo teológico 165,171 Real, o Veja Hick, John Reason a n d b e lie f in G o d 92,105,106,115, 117,157,190,193,195,228,352 Reforma 94 regeneração. Veja tam bém salvação Reid, Thomas 105,119,120,140,152,168, 192,230,232,234,235,237,239,240, 270,389,421,432

relativismo epistêmico 433 histórico e cultural 438 relativismo cultural representacionismo 432,433 revelação divina 103,104,263,277,278,279, 285,293,379,387,389,398,415 Rey, Abel 398 Rorty, Richard 135,153,223,424,429,432 acerca da verdade 429 Rousseau, Jean-Jacques 163,209 Rowe, William 113,463,464,465,466,467, 479 Runzo,Joseph 439 Russell, Bruce 464 Ryan, Sharon 179 S Sagan, Carl 217 Salmon, Nathan 136 Salmon, Wesley 112 salvação 66,123,196,211,218,220,221,228, 255,256,257,260,261,262,276,279, 282,295,298,302,306,307,309,313, 384,386,393,438,485,490 e a natureza da 220 e as afeições 222 pecado original 222 Sanders, E. R 391,400,418 Sartre, Jean-Paul 326 Satanás 224,226,292,293,350,490 satisfação de desejos Veja tam bém Freud Sigmund 210,219 Schellenberg, J. L. 440,441 Schmidt, Wilhelm 159 Schweitzer, Albert 419 scientia 96,105,262 Scougal, Henry 322 Scriven, Michael 112 semidcismo 406 Seminário Jesus 392,405

ÍNDICE REM ISSIVO

sensus divinitatis 152,153,160,169,189,190, 191,192,193,194,195,196,197,198, 199,200,202,203,206,215,220,225, 229,231,253,259,291,314,338,339, 340,342,343,344,346,347,350,351, 355,452,454,462,478,482,483,484, 486,487,488,489 dano ao 225 reparação do 291 resistência ao 220 Serafim de Sarov, São 303 Sheehan, Thomas 285,402,403,404 Shope, Robert 176 Simon, Herbert 209,228 simplicidade 317 Smith, Huston 405 Smith,J. M. 246 Smith, John E. 270 Smith, Mortdn 285,403 Smith, Wilfred Cantwell 442 Sober, Elliot 243 Sócrates 223 Stark, Rodney 209 Steup, Matthias 173 Strauss, David 396 Stump, Eleonore 105,404,419,481,489,490 Sudduth, Michael 193 Swinburne, Richard 113,173,272,277,281, 282,283,284,288,326,344,345,388 T Talbott, William 368 Tamburello, Dennis 303 Taylor,James 173 teísmo 217 teodiceia 458 teologia de Yale 261 teologia natural 188,192,196 teologia negativa 30 teologia reformada 216,266 Teorema de Bayes 243,244

507

Teorema de Cantor 129 Teresa de Ávila 320,350 Teresa de Lisieux 487 Tertuliano 230 Thiering, Barbara 403 Tillich, Paul 217,229 Tomás de Aquino 39,96,105,185,188,220, 255,262,379,439,440 Tomé, o apóstolo 266,276 Trindade 215,282,287,295,297,298,314, 327,328,329,331,380,387 Trindade social 329 Veja também crítica histórico-bíblica, troeltschiana Turner, Donald 462 Tyrell, James 96 V Van Cleve, James 38 Vander Zee, Leonard 479 van Fraassen, Bas 194,225,241,247,395, 421 van Inwagen, Peter 52, 53,136,380, 459,464, 469 van Til, Cornelius 231 verdade 31,33,35,36,37,38,39,41,42,46, 50,51,58,60,62,63,64,65,68,73, 74,77,78,80,81,83,84,85,86, 87, 91, 93,96,97,100,104,106,109,110, 114,115,121,123,125,126,127,128, 133,135,136,137,138,139,141,143, 145,146,147,150,151,152,153,154, 155,157,158,159,161,164,166,167, 169,170,171,172,173,174,176,177, 180,185,187,188,189,193,195,197, 201,202,203,204,205,206,207,210, 211,213,214,215,216,217,218,219, 221,223,226,229,230,231,233,235, 237,238,240,241,246,250,253,255, 256,257,259,260,261,263,264,266, 267,268,269,270,272,275,277,280,

508

CRENÇA CRISTÃ AVALIZADA

282,285,287,293,295,297,298,301, 302,304,306,310,315,317,318,319, 322,324,325,326,334,339,341,342, 346,347,349,351,352,353,354,356, 357,358,359,363,364,365,367,368, 369,370,373,375,376,379,380,384, 386,387,389,390,392,400,401,402, 403,404,407,410,411,414,416,417, 418,420,421,423,424,425,426,428, 429,430,431,432,433,434,435,436, 437,439,440,443,444,445,446,448, 450,451,453,454,455,462,463,464, 466,470,476,477,479,480,481,482, 489,492,494,495 como construção humana 423 e o falibilismo 437 e a linguagem 434 e a tolerância 443 rejeição da 424 verificacionista, critério de verdade 33,34,60 Vitz, Paul 212 Voltaire, François 209 voluntarismo e as afeições 319 e a crença 118 VoSjArvin 263 W Wainwright, William 113, 310, 344,345, 359,463

Wallace, Anthony F. C. 209 warrant The current debate 92,131,173,235,367, 420.494 Warrant andproperfunction 46, 61, 77,133, 167,200,242,259,264,317,337,370, 381.429.435.469.494 Weinberg, Steven 315,316,317 Wells, G. A. 403 Wesley,John 298,303 Westphal, Merold 35,39,147,158 Wilken, Robert 439 Willard, Samuel 323,325 Williams, Bernard 326 Wilson, Warren 209 Wittgenstein, Ludwig 140,432 Wolterstorff, Nicholas 34, 63, 92, 95,190, 228,264,281,381,424 1 Woozley, A. D. 98 Wykstra, Stephen 113,124,464 Y Yeago, David 390 Z Zagzebski, Linda 105 Zeis, John 105