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Portuguese Pages [45] Year 2019
Sumário coluna Bianca Santana Marcia Tiburi Wilson Gomes entrevista Adriana Negreiros dossiê Cartografias da Masculinidade Apresentação Homens e armas Revisitando Adão e Eva A normalização das homossexualidades e os destinos do masculino O negro, o drama e as tramas da masculinidade no Brasil Revisitando a aquarela das masculinidades estante cult Só a morte diz a verdade Satanismo, santidade e política colaboraram nesta edição
coluna
À espera de muitos milagres BIANCA SANTANA
Fevereiro, março. Quando Água Preta, Sumaré, Verde – córregos canalizados pelo desenvolvimentismo tacanho – inundam as ruas Turiassú, Francisco Matarazzo, Aspicuelta. A classe média dos bairros de Perdizes, Pompeia e Vila Madalena, a nata da zona oeste paulistana esbraveja. Quem passa, sem dar atenção às placas de “cuidado, risco de alagamento”, pode perder o carro, se machucar. Ou, em casos extremos, morrer afogado, como aconteceu com um rapaz que ficou preso debaixo de um automóvel há cerca de dois anos. O Plano de Avenidas, de Prestes Maia, definiu, no final dos anos 1930, as políticas públicas de expansão da cidade, que passavam por canalizar e ratificar rios e córregos, priorizando os carros. Enchente e trânsito são resultados dessas políticas. Não são acaso, nem naturais. E a culpa não é do PT. A situação é muito pior na zona leste da cidade, onde pessoas mais pobres perdem suas casas ou suas vidas em enchentes e desmoronamentos. Mas, como sempre, os exemplos de desgraça estão atrelados aos mais pobres, a escolha aqui é partir da miséria dos ricos. Ou melhor, da classe média a serviço do capital, que se sente rica. Para lembrar que, contra a força das águas – e da racionalidade no planejamento de políticas públicas – não basta ter os privilégios de classe média, e não há fé ou desenvolvimentismo que se sustente. Nem da prefeitura de São Paulo que, de tempos em tempos, escava em vão um pouco mais para ampliar a capacidade de escoamento das galerias. Nem do atual presidente eleito e seu ministério do agronegócio. Mais do que defender essa ideia, inspirada pelo atual momento da esfera pública em que os argumentos racionais estão em baixa, sigo a linha “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, e enumero pedidos de milagres: 1. Nenhuma arma de fogo será utilizada contra o cidadão de bem, sua esposa ou filhos. Nem em caso de a própria arma desse cidadão ser roubada, como aconteceu com Bolsonaro em 1995; nem nos casos de violência doméstica quando, além de espancar, ele pode atirar; nem em acidentes domésticos, afinal, crianças não terão a curiosidade nem a perspicácia de encontrar armas de fogo guardadas em segurança; 2. Leiloar a Petrobrás e o pré-sal, repassando os lucros com o petróleo para empresas internacionais, vai gerar divisas para o Brasil, em vez de perda econômica e poder político; 3. O veneno pulverizado nos vegetais consumidos pela maior parte da população não provocará doenças, nem por sua ingestão nos alimentos nem pela água contaminada; 4. Crianças, sem o tema da sexualidade na escola, que permite aprender a reconhecer e se proteger de eventuais abusos, estarão mais protegidas; 5. A escola, liberta da ideologia de esquerda, vai formar pessoas criativas e preparadas para lidar com os desafios do futuro; 6. Sem qualquer regulação ambiental, casas de alto padrão construídas em encostas não vão desmoronar, como acontece com casas de pessoas pobres;
7. A falta de água, constante nas periferias de São Paulo mesmo antes da chamada crise hídrica, não vai atingir todos os territórios; 8. A ausência de vacinas, medicamentos e profissionais de saúde não vai aumentar a proliferação de epidemias; 9. O aumento da pobreza não vai gerar mais violência; 10. O incentivo ao encarceramento vai diminuir, ao invés de aumentar, o tamanho e o poder de organizações criminosas; 11. A diminuição do salário mínimo vai aumentar o poder de compra e aquecer a economia; 12. O monitoramento e a perseguição a organizações do terceiro setor e a movimentos sociais vai fortalecer o debate público, a participação cidadã e, por consequência, a democracia; 13. Destituir pessoas de esquerda, petistas, comunistas de cargos públicos vai reafirmar, de uma vez por todas, critérios técnicos para a eficiência da gestão pública; 14. Deixar de reconhecer territórios indígenas e quilombolas para repassá-los a fazendeiros, grileiros, madeireiros, garimpeiros é necessário para que o uso das terras beneficie o coletivo, e não grupos minoritários; e 15. Perseguir religiões não cristãs, apesar de o ensinamento bíblico de Cristo ser o oposto disso, vai honrar valores cristãos e colocá-los acima de tudo. Sem tais milagres, além dos mais pobres, a classe média também vai ser prejudicada pelo atual governo. Mas, quem sabe, a fé em um discurso de “Deus acima de tudo” não seja suficiente para operá-los. Mesmo que não seja, é possível se dar mal e seguir culpando o acaso, a natureza, ou, genericamente, o governo, como faz a zona oeste paulistana no caso das enchentes. De repente, ainda cola dizer que a culpa é do PT. Ou, por milagre, lançar mão da razão, lógica, história, ciência, ancestralidade e até religião para encarar a realidade e se organizar contra a barbárie. E nós? Colunista, leitoras e leitores da CULT? Qual é o nosso papel nesse cenário de barbárie? Passei alguns números da revista argumentando sobre a necessidade de nos aquilombarmos. Ainda me parece urgente perseguir o ideário preto de sociedade comunitária e estarmos entre os nossos, inventando outros modos de existência, buscando a vida fora do dispositivo, tal como nomeado por Foucault. Mas, além do quilombo simbólico dos encontros intelectuais e espirituais, não tenho experimentado rupturas, sigo no mesmo apartamento, com os mesmos trabalhos, pagando as mesmas contas. A maior radicalidade revolucionária da minha vida hoje é fazer a faxina e o almoço, mesmo com o privilégio de poder pagar alguém que fizesse isso por mim, na tentativa de não reproduzir o padrão do país escravocrata, desigual e machista. E sei que não basta. Assim como nossas denúncias, análises e desabafos também não bastam, seja nas redes sociais, seja nas páginas da revista. Repito para cada uma e cada um de nós a pergunta insinuada ao outro: quando vamos, de fato, nos organizar contra a barbárie? Há, cada vez mais, pessoas morando nas ruas. A violência física contra gays, lésbicas e trans só aumenta. Em abordagens policiais a meninos negros, as ameaças vêm acompanhadas do nome do presidente da república, como validação. Organizações do terceiro setor começam a ser monitoradas. Povos indígenas têm seus territórios tomados. E vemos, a olhos nus, o cerco fechar. Espero que estejamos conspirando, em segredo, e nos
preparando para a ação.
coluna
O fracasso da argumentação MARCIA TIBURI
Considerando a cada vez mais comum desvalorização do conhecimento que veio a se transformar em uma verdadeira criminalização da lógica, convém que nos dediquemos a entender as figuras falaciosas por meio das quais podemos compreender a falta de sentido dos argumentos que transitam na vida cotidiana pelos discursos afora e, evidentemente, em nossa época, no desfile de ideias e opiniões que vemos nas redes sociais. Cabe ressaltar que a fala humana é irregular porque marcada por afetividades e por compreensões parciais dos fenômenos. A parcialidade, a não neutralidade, faz parte da vida, porque vemos tudo dentro de nossos horizontes de compreensão, o que envolve nossa tradição e formação. Historicamente confiamos nas pessoas que estudam, que tentam entender um fenômeno, que se dedicam a compreender temas e questões com profundidade mediante pesquisas e investigações. A universidade como instituição surge no final da Idade Média para dar lugar ao intereresse cada vez maior das pessoas com o que se pode saber. Mas também para tratar com seriedade, atenção e cuidado de um aspecto fundamental da vida humana que é a curiosidade, justamente o que nos leva ao conhecimento. E o que é o conhecimento? Ele é o encontro do outro, a sua descoberta. Verdade é o nome próprio daquilo que todas as ciências, as artes e a filosofia sempre buscaram. E a universidade foi a principal instituição a tentar protegê-la. Ao mesmo tempo, é evidente que as instituições implicam o poder. Por isso, fazemos sempre um “contrato social” em torno delas. Elas garantem direitos para todos, para limitar justamente excessos egoístas, parcialidades e arbitrariedades pessoais. FALAR A VERDADE COM AS PRÓPRIAS MÃOS
Muitas vezes esquecemos que a verdade é algo que se busca e passamos a usá-la como se ela fosse algo dado. Nesse momento encontramos o dogmatismo e também o autoritarismo. Esquecemos que a verdade é algo que está além e, ao mesmo tempo, é uma medida, uma importância em relação a excessos ou faltas. Da mentira que a nega à ficção que a transcende, o campo da verdade é imenso. Até mesmo a fantasia e a ilusão, ou a alucinação, podem ter um pouco de verdade. A verdade é uma medida e nem sempre se apresenta pura. A complexidade da verdade causa angústias. E, por isso mesmo, muitas pessoas, muitas vezes até bem intencionadas, resolvem “falar a verdade”. Falam à sua maneira, nem sempre percebem que falam com seus conhecimentos, mas também com suas ignorâncias. Todos nós fazemos isso, mas quando temos consciência de nossos limites, temos mais chance de não cometer tantos erros. É no universo dessa angústia, desamparados por instituições, que as pessoas tentam fazer justiça com as próprias mãos, do mesmo modo que tentam falar a verdade por conta própria.
Cada um se torna “soberano” em si mesmo. Da vontade de falar sem entender de um tema, até a vontade de ter uma arma, sem saber atirar, as pessoas acreditam que elas mesmas podem resolver todos os problemas. Há esse narcisismo em massa entre nós hoje, que esconde uma imensa impotência. Nesse contexto, crescem as falácias que sempre foram usadas em discursos ao longo da história, mas que, em nossa época, voltaram a causar terríveis efeitos. É comum que discursos contenham precariedades e banalidades em alguma medida. Porém, a profusão de falácias de nossa época revela que as pessoas se desacostumaram de pensar. Podem dizer o que quiserem sem maiores consequências. Os governantes fazem isso, os cidadãos se sentem autorizados. As massas autoritárias servem como massa de manobra de ventríloquos interessados apenas em seu próprio umbigo. Mas cada um pensa que pensa e fala por conta própria. Analisar argumentos não é sequer um problema para quem, ajudando no fracasso da linguagem, ocupa o centro do mundo.
coluna
Sobre a ascensão e a queda dos olimpianos morais na política WILSON GOMES
Os brasileiros temos as nossas peculiaridades na política. Você também pode chamar de “esquisitices”, mas é uma manhã de sol e a vida parece boa, então vou escolher uma expressão mais neutra. Dentre as nossas idiossincrasias está o fato de que preferimos escolher candidatos e partidos com base em julgamentos de caráter e avaliações morais. Preferir ou preterir, tanto faz. E é também com base nisso que imaginamos políticas públicas e formas políticas de resolver problemas sociais. Pareço abstrato demais? Tomemos, por exemplo, um dos grandes problemas sociais brasileiros, segundo a percepção mais disseminada neste momento: a corrupção política. Não há respostas fáceis para isso, mas se prestarmos atenção em países em que esse fenômeno não está identificado como um dos maiores problemas sociais, vamos ver que ali estão em funcionamento freios e incentivos que, antes que apostar todas as fichas na conversão dos indivíduos, ganham materialidade institucional. Nota-se, por exemplo, que o aumento dos mecanismos e instituições de controle das contas públicas, da demanda por e da cobrança de transparência de políticos e servidores e das obrigações de prestação de contas elevam os custos da corrupção e diminuem consideravelmente a sua prática. Esse conjunto de medidas institucionalizadas aumenta exponencialmente o risco de o corrupto ser apanhado e de ser punido e, por consequência, diminui consideravelmente a prática da corrupção. A escolha, então, é pelo que os estudiosos de política chamam de “design institucional”: projetam-se e instituem-se medidas para o fim político que se deseja. O caráter das pessoas não entra na equação. Não há, nesse modelo, qualquer suposição de que as pessoas são naturalmente virtuosas (ou viciosas) ou que só se pode esperar uma conduta apropriada do político ou do funcionário público que for uma pessoa de grandes e espontâneas virtudes – um “homem de bem”, como dizem os conservadores brasileiros. Não. As pessoas são o que são e quem aposta no caráter humano como base da comunidade é a religião. Na política, parte-se da premissa de que essa é uma base insegura demais, e que a comunidade política precisa projetar instituições que produzam constrangimentos e ofereçam incentivos em que as pessoas sejam empurradas na direção certa, não importando o seu próprio caráter. A última eleição majoritária brasileira foi uma busca desesperada por uma pessoa que encarnasse o homem de bem. Não acreditamos que mudanças institucionais possam frear apetites, mas cremos de coração que pessoas boas, indivíduos de bom caráter, fazem necessariamente coisas boas, e que só as pessoas más fazem o mal. É assim, por exemplo, que não parece haver problemas na liberação da posse e até do porte de armas, uma vez que só as pessoas de bem terão acesso a elas. E pessoas de bem, como se sabe, não fazem maldades. O que
não se pode, decidiram os brasileiros no referendo de 2005, é deixar armas apenas nas mãos das pessoas más, da bandidagem. As armas não são boas nem más, assim como martelos, carros e liquidificadores, mas podem fazer mal ou bem a depender das pessoas que as usem. Nada mais coerente com essa premissa do que, portanto, armar os homens de bem para que, enfim, alguma coisa boa possa ser feita. A tiros. Na mesma linha de raciocínio, a seleção de líderes políticos nas eleições consiste basicamente em identificar e escolher pessoas de bem. Em 2018 houve um plebiscito geral sobre o caráter do PT e dos partidos de esquerda, e eles perderam. Plebiscito não, referendo. Desde 2015 esse julgamento de caráter vinha sendo feito, com decisões e sentenças aplicadas, por exemplo, no apoio de 2/3 da população ao impeachment de Dilma Rousseff e no resultado das eleições de 2016. Em 2018, referendou-se a decisão. Bolsonaro ganhou a eleição presidencial porque a maioria dos brasileiros foi persuadida a crer que, embora ele fosse um homem sem qualidades, tinha a virtude necessária naquela dimensão que nos convencemos de que era a mais importante naquele momento: a corrupção. “Dele se pode dizer qualquer coisa”, gritavam paradoxalmente orgulhosos do início dessa sentença, os bolsonaristas, “menos que é corrupto”. O “menos que é corrupto” dava indulgência plenária a todo o resto. Obviamente, Bolsonaro não disputou sozinho essa competição de caráter. Não apenas eles, mas Alckmin, o asseadíssimo farmacêutico de Pinda, e Marina, a pura e telúrica criatura das florestas, também disputaram o campeonato do “eu sou diferente de tudo o que está aí”, igualmente preferiram colocar a si próprios e ao seu caráter na bandeja da escolha eleitoral em vez de propostas consistentes de políticas públicas, do mesmo modo trabalharam para ensinar ao eleitor que tudo o que estava em jogo era um julgamento moral baseado no caráter do candidato e na ausência de virtudes dos seus adversários. Para decepção geral dos que gostavam dessas pessoas de tão elevadas virtudes, o capitão pareceu ainda mais impoluto e incorruptível à maioria dos eleitores. Não é, obviamente, a primeira vez em que partidos fazem ofertas políticas morais no Brasil. Antes, a surpresa acontece apenas quando na disputa eleitoral estão postas à mesa exclusiva ou principalmente propostas de políticas públicas, interpretações racionais sobre problemas sociais ou programas políticos consistentes. Mas nem sempre a aposta moral tem um cacife tão alto. Nesse sentido, é justa a comparação com o início dos anos 1990, depois de um duplo ciclo de julgamento e condenação moral da política, das instituições do Estado e até da burocracia estatal. Em 1989, Collor ganhou a eleição porque “não era político”, e tinha ideias punitivas e detergentes para limpar a administração pública, “caçando marajás”. Collor caiu em desgraça, como se sabe, em 1992, em virtude de um gigantesco escândalo de corrupção. A “ética na política” ainda ficou no ar por algum tempo, mas não foi pauta eleitoral decisiva na eleição presidencial seguinte, em 1994. Quando pauta de demonização e exorcismo da política de 1989 soçobra miseravelmente em um mar de lama e, além disso, não resolve os graves problemas econômicos do país, suspende-se o moralismo, e a aposta pragmática passa a ser, então, como resolver o problema da inflação e da ausência de crescimento do país. Coube ao PT, entretanto, manter acesa, por décadas, a chama da indignação moral contra o caráter da classe governante deste país, dos seus partidos, das práticas sistemáticas de
clientelismo e patrimonialismo disseminadas na política e no Estado brasileiros e até do maligno sistema de produção capitalista que domina tudo, inclusive a política. Durante toda a década de 1990, e já antes disso, o PT é todo furor moral e reivindicação do monopólio de virtudes, purezas e autenticidades políticas. Do topo do monte Olimpo moral onde estava, como os deuses de antanho, o PT contemplava e denunciava as mazelas da lida política comezinha e eticamente rebaixada da planície humana brasileira. O problema relacionado ao comportamento moral olimpiano é que, enquanto ele exibe a sua superioridade, vão se empilhando as multidões dos que esperam o estrondo da sua queda. Não há a mínima compaixão pública para um olimpiano em desgraça. Dele não se perdoa ou esquece nem os pecadilhos que cotidianamente acontecem à nossa volta. O atrevimento da reivindicação de superioridade agora volta como combustível para o sentimento geral de ultraje e para a decisão social de que a punição deve ser capital. Assim aconteceu com Collor de Mello, o breve, trucidado à vista de todos entre 1991 e 1992, inclusive e principalmente por aqueles setores da sociedade, mídia inclusive, que se engajaram entusiasticamente na sua eleição. E assim aconteceu com o PT, em geral, e com Lula, em particular, do final de 2014 até hoje. “Lula não tinha o direito de errar assim”, disse-me um amigo recém-convertido ao antipetismo e, em seguida, ao bolsonarismo, em 2018. Quem com indignação ética fere, com furor moral será ferido. Nesse sentido, não deixa de dar uma sensação de déjà vu as rachaduras éticas multiplicandose tão rapidamente na armadura moral dos Bolsonaros. Foi um blefe muito alto a aposta de todas as fichas na incorruptibilidade moral e na mais absoluta diferenciação de caráter dos Bolsonaros do “resto dos políticos”. E um edifício que se ergue sobre uma única coluna pode desmoronar ainda mais rapidamente. Além disso, apesar da tentativa de se dizer que quem se regozija com a contradição moral do bolsonarismo “torce contra o Brasil”, o que se vê é simplesmente a reedição do que já presenciamos na rápida ascensão e queda de Collor e no lento ocaso de Lula e do PT. Não há misericórdia social para os anjos caídos. Os brasileiros adoram fazer escolhas baseadas em caráter, mas também adoram fazer em pedaços os seus olimpianos em desgraça. Bolsonaro que se cuide.
entrevista Adriana Negreiros
Nos rastros de Maria Bonita HENRIQUE WAGNER E GUSTAVO RANIERI
Não faz muito tempo que a visão um tanto romanceada em torno do que os cangaceiros foram e representaram, especialmente nas décadas de 1920 e 1930 – embora o termo e atuação de grupos semelhantes pelo sertão nordestino brasileiro já tenham sido noticiados no século 19 –, passou a ceder lugar para o que atestavam os registros e importantes livros sobre o período: o caráter cruel de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), vulgo Lampião, e os atos aterrorizantes que ele e seu grupo praticaram, como o assassinato e a tortura de famílias inteiras, o estupro e sequestro de mulheres, destruição de propriedades e roubo do que achassem interessante, fosse de pessoas abastadas ou pobres. O rei do cangaço, como era chamado, tinha como companheira Maria Gomes de Oliveira (1910-1938), a Maria de Déa, conhecida na posteridade pelo nome que virou título de uma infinidade de coisas, de grife de moda a grupos de música e salões de beleza: Maria Bonita. E ela, por sua vez, era e representava muito mais do que o posto redutível de esposa, o único com o qual era mencionada pela imprensa e pensadores do período, envoltos pelo obscurantismo machista de boa parte das décadas do século passado – e ainda presente, em certas escalas, nos tempos atuais. Sim, cabia a Maria Bonita satisfazer as vontades de Lampião e cumprir os afazeres do lar; também consta que não participava dos combates. Mas o importante e desconhecido papel histórico que ela e outras mulheres desempenharam no cangaço, assim como as mazelas que viveram, precisavam ainda ser narrados. Desse modo é que o recém-lançado Maria Bonita – Sexo, violência e mulheres no cangaço (Editora Objetiva) preenche essa lacuna. Mais do que isso, o livro de estreia da jornalista Adriana Negreiros oferece o que sempre foi silenciado: a narrativa do cangaço pelo ponto de vista das mulheres. De onde surge a vontade de escrever esse livro? Essa escolha tem duas explicações: uma pessoal e uma política. Do ponto de vista pessoal, o cangaço sempre foi um tema que me fascinou. Nas férias, visitava meus avós em Mossoró. Lá, ouvia de minha avó materna, repetidas vezes, a história da invasão frustrada de Lampião à Capital do Oeste Potiguar, como a cidade é orgulhosamente chamada por seus moradores. No ano de 1927, Virgulino Ferreira da Silva foi recebido por bravos mossoroenses com uma chuva de balas, e aquela derrota seria decisiva, inclusive, para a entrada das mulheres no bando de cangaceiros, em 1930. Assim, quando pensava em escrever um livro, o episódio de Mossoró sempre me aparecia como uma opção. Mas eu ainda precisava de um recorte, e é aí que entra a questão política. No começo de 2015 decidi cursar Filosofia, na USP, e a convivência com os demais estudantes e, sobretudo, as aulas como as que tive com a professora Silvana Souza Ramos, de Ética e Filosofia Política, despertaram-me para algo que, por incrível que pareça,
estava adormecido em mim: o feminismo. A leitura de autoras como Angela Davis, Iris Young, Simone de Beauvoir e a brasileira Flávia Biroli provocou, em mim, um senso de responsabilidade em relação ao silenciamento das narrativas das mulheres. Decidi que, como repórter (o que profissionalmente me define), deveria dar minha contribuição política à causa escrevendo sobre o cangaço do ponto de vista das mulheres, visto que a história é costumeiramente narrada a partir da perspectiva do homem branco e ocidental. Como fio condutor dessa narrativa feminina, escolhi Maria Bonita, a mulher mais importante do cangaço. Pode-se dizer que, tal como se construiu uma visão romanceada em torno dos homens no cangaço, também se criou uma história distorcida da realidade dessas mulheres nos grupos, apontando-as como feministas? Sim, muitos ainda pensam em Maria Bonita e Dadá nesses termos. Na verdade, de feministas elas não tinham nada, e considero que seria até exigir demais, cobrar demais delas uma postura feminista, naquele lugar, naquela época. Maria Bonita, depois, virou uma espécie de ícone feminista equivocadamente. Um dos aspectos centrais do feminismo é a sororidade, mas não havia isso, as mulheres eram extremamente inimigas umas das outras, rivalizavam entre si, disputavam poder. Dadá e Maria Bonita, por exemplo, se detestavam. Havia, ali, um código de conduta extremamente machista, que estabelecia, dentre outros absurdos, pena de morte para as adúlteras. Em vez de rebelar-se contra essa situação, Maria Bonita, por exemplo, defendia o cumprimento rigoroso da pena em caso de “infração”. E há outro equívoco que se criou: o de que as mulheres eram guerreiras, valentonas, que saíam atirando nos inimigos que encontravam pela frente. Com raras exceções, as cangaceiras não sabiam atirar. Dedicavam-se às tarefas domésticas, ainda que suas casas fossem errantes, e à satisfação sexual dos homens aos quais pertenciam. E como lidavam com as atrocidades perpetradas por seus companheiros? Muitas delas, ao entrar no grupo, conforme relatariam depois, sentiam grande pavor ao simplesmente olhar para as armas. Com o tempo, contudo, experimentariam certa naturalização da violência. Quando Lídia foi barbaramente assassinada por Zé Baiano, após ser flagrada com outro cangaceiro, algumas das demais mulheres do grupo, caso de Maria Bonita, consideraram a medida adequada. Você relata no livro que muitas mulheres entraram à força, depois de serem sequestradas, e não raro eram vítimas de estupros e demais violências físicas por parte de seus companheiros. Permanecer no bando era uma forma de garantir a própria sobrevivência? Elas permaneciam no bando porque eram proibidas de sair. Se tentassem, podiam ser mortas, como aconteceu com Rosinha. Nem todas entraram no bando à força. Já Dadá, embora tenha sido sequestrada e violentamente estuprada por Corisco aos 12 anos, diria, depois, que o ódio acabou se transformando em amor. Tenho a impressão de que transformar o pavor que sentia por Corisco em alguma simpatia acabaria por se configurar em uma estratégia de sobrevivência. Maria Bonita decidiu viver com Lampião por amor ou existia também um fascínio pelo poder?
Acho que é difícil estabelecer onde termina o fascínio e onde começa o amor. Em um primeiro instante, o que motivou Maria a seguir com Lampião foi o fascínio que ela tinha por sua figura heroica, de valentão, de homem invencível. Dizia-se que Lampião tinha o corpo fechado, que podia enfrentar tiros e tudo o mais, e não seria abatido. Obviamente que, ao longo da convivência, esse fascínio, estou convencida disso, foi se transformando em um sentimento verdadeiro de afeição, em uma relação carinhosa. Maria Bonita era uma mulher audaciosa? Certamente ela era uma mulher transgressora. Para usar um clichê, uma mulher à frente do seu tempo. De uma mulher casada nos anos 1930, seja no sertão, seja na grande cidade, esperava-se nada além de submissão e certa dose de conformismo, caso o relacionamento não fosse exatamente o esperado. Ela era casada com Zé de Neném, um sapateiro que, ao que tudo indica, era um homem com poucos traços de virilidade. E, a despeito dessa expectativa, largou o marido que não lhe satisfazia sexualmente e trocou-o pelo fora da lei mais procurado do Brasil à época. Portanto, não restam dúvidas de que Maria Bonita era uma mulher inconformada, rebelde e bastante corajosa. Mas daí a dizer que ela era uma feminista é um exagero muito grande. Lampião e Maria Bonita tiveram uma filha, Expedita, entregue por eles aos cuidados de um vaqueiro e sua esposa, quando a filha tinha 21 dias de vida. Como a experiência da maternidade se dava para essas cangaceiras? Como não usavam métodos contraceptivos, elas engravidavam com frequência. Mas não podiam criar seus filhos. Bebês não combinavam com a rotina do cangaço. Além dos cuidados que exigiam, inviáveis com a rotina de fugas pelo sertão, ainda podiam atrair a polícia com o choro. Assim, as mulheres eram obrigadas a abandonar seus bebês tão logo eles nasciam. Alguns eram enviados para famílias da região – geralmente coiteiros, como se chamavam os proprietários rurais que davam abrigo para os cangaceiros. Outros, com menos sorte, eram simplesmente largados em meio à caatinga. A experiência da maternidade, para as cangaceiras, era opressora do começo ao fim – na concepção (muitas vezes fruto de um estupro), na gestação (sem cuidados, enfrentando fome, sede e fugindo da polícia), no parto (sem assistência, o que levou algumas delas à morte) e no puerpério. O presidente Getúlio Vargas insistia em não se ocupar com o cangaço por questões políticas. Isso até que Luís Carlos Prestes e a Aliança Nacional Libertadora começam a ver o bando como um grupo de camponeses revolucionários. Só então Getúlio começa a ficar preocupado, porque surge a ideia de uma “ameaça vermelha”. Quais foram as consequências? Depois da Intentona Comunista, a repressão das Forças Federais fica bem mais severa, com medo de que os cangaceiros fossem apropriados por uma luta da esquerda. Aquela situação bárbara de cangaceiros esfolando pessoas vivas, arrancando a pele delas, cortando seus corpos, colocando em postes para serem comidos por urubus, não combinava com a imagem de um Brasil moderno que Getúlio sustentava.
Gostaria que você falasse sobre a relação, diacrônica, entre Lampião e seus sequazes e as milícias de hoje no Brasil, notadamente as que vêm atuando de forma ostensiva no Rio de Janeiro. Claro que há as devidas diferenças, mas a gente consegue notar algumas semelhanças entre o fenômeno do sertão do Nordeste dos anos 1930 e o fenômeno urbano do Rio de Janeiro contemporâneo, em especial a relação corrupta que há entre os traficantes e as forças repressoras, a polícia. No caso dos cangaceiros, eles compravam armas da polícia, algo muito parecido com o que acontece hoje em dia. Os cangaceiros tinham essa dupla identidade, muitos os viam como uma espécie de força que ocupava um vazio deixado pelo Estado, até em relação a fazer justiça com as próprias mãos, algo semelhante ao que ocorre com traficantes e as milícias, e essa relação com o poder também. A ideia do cangaceiro como um camponês revolucionário é bastante ingênua porque, se Lampião passou 20 anos transitando impunemente pelo sertão, fazendo e acontecendo, tocando o terror, foi por ser um homem bem articulado com a elite. Ele sabia fazer o jogo político? Os grandes aliados de Lampião não eram os pequenos agricultores rurais, de forma alguma, mas sim os coronéis, donos das grandes propriedades, homens que forneciam armas e outros mimos para Lampião, além de abrigo. Um de seus melhores amigos era Eronides de Carvalho, que foi interventor federal de Sergipe e uma pessoa muito próxima ao presidente Getúlio Vargas. Então, assim como hoje a gente consegue estabelecer uma relação entre crime organizado e poder político, na época o mesmo acontecia, razão pela qual os cangaceiros passaram tanto tempo atuando livremente, e tiveram, na figura de Lampião, essa liderança brilhante. E qual é o legado de Maria Bonita? O inconformismo. Maria Bonita foi uma mulher que não cedeu à tentação do estoicismo, uma marca do sertão. Era uma mulher disposta a uma vida aventureira, algo permitido apenas aos homens, e entregou-se a esse desejo. Maria dava vazão às próprias vontades, algo igualmente negado às mulheres, e parecia importar-se pouco ou nada com a estranheza que seu comportamento causava na sociedade em que vivia. Aos que lhe cobravam bom comportamento, respondia com uma sonora gargalhada. São mulheres assim, corajosas e um pouco zombeteiras, que fazem história.
Dossiê Cartografias da Masculinidade
Apresentação PEDRO AMBRA
O que é o homem? Alguns afirmarão sem pestanejar que homem é aquele nascido com cromossomos XY e que, em decorrência dessa condição biológica, deverá interessar-se por mulheres, futebol, armas e, no limite, nutrir uma aversão declarada pela cor rosa. Outros dirão que é uma simples construção social que nada tem de natural. Há ainda a tese de que se trata de uma autoafirmação: homem é quem se diz homem, a despeito tanto de seu fenótipo quanto das imposições da sociedade. Homem é, também, o principal beneficiário de uma cultura patriarcal que violenta e mata mulheres, além de gozar de liberdades e benefícios que vão desde o direito à cidade, ao corpo próprio, até a uma diferença salarial – presente em todos os cargos, níveis de atuação e escolaridade –, que chega, no Brasil, a 53%. Mas notemos que, ainda que sensivelmente diferentes entre si, as respostas possíveis a essa pergunta quase sempre se conjugam num imperativo determinado. Ou melhor, são escutadas e interpretadas pelos homens a partir de uma lógica de “dever ser”. Desde as mais conservadoras representações que ensinam a meninos que homem é quem bate, oprime e silencia o outro, até aquelas segundo as quais é o dever de todo homem desconstruir-se, reconhecer e abrir mão de sua miríade de privilégios, parece que estamos frente a uma pluralidade de ideais que acabam por se reduzir a uma gramática rígida de injunções. Homem é aquele que tem que ser. Mas ser o quê? Muito se fala atualmente em políticas identitárias. Grosso modo, trata-se de demandas, discursos e propostas que teriam seu foco na afirmação das identidades de grupos que sofrem processos de subalternização, como negros, LGBTs e mulheres. Tais políticas são frequentemente acusadas de deixarem de lado pautas mais universais e amplas, que defenderiam a todos e não apenas a grupos específicos. Haveria aí, portanto, uma oposição entre um universal humano genérico e um conjunto de identidades marcadas por traços particulares. Tal compreensão ignora, no entanto, um pequeno-grande detalhe: o homem (presumivelmente branco, heterossexual e urbano) é, ao mesmo tempo, o horizonte dessa universalidade supostamente impessoal e uma identidade em si, como as outras. Esse curto-circuito se exemplifica no próprio título do documento que marca a chegada à modernidade republicana representada pela Revolução Francesa, a Declaração dos direitos do homem e do cidadão. O homem é, assim, a medida fixa do humano e qualquer coisa que escape a essa régua torna-se uma identidade, um caso especial que diverge da regra e até mesmo uma costela, para os mais beatos. Voltemo-nos então à identidade masculina. Como exatamente ela se constitui, tendo como tarefa tanto a correspondência ao universal quanto a injunção, tantas vezes ouvida por meninos em tom ameaçador, “seja homem!”? MASCULINIDADE HEGEMÔNICA: O FANTASMA DO MITO VIRIL
Ao constatar um verdadeiro vazio nos trabalhos sobre masculinidade em psicanálise, empreendi, há alguns anos, uma pesquisa que visava articular os determinantes psíquicos da masculinidade com as questões históricas e sociais que os circundavam. O resultado foi o livro O que é um homem? – Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente (Annablume, 2015). Indico, a seguir, alguns dos achados da pesquisa que possam iniciar os trabalhos e abrir algumas perguntas para esse dossiê. Apoiado tanto nas contribuições freudianas quanto em desenvolvimentos de lógica e matemática, o psicanalista francês Jacques Lacan inovou ao propor que – para além da anatomia ou de construções sociais – homem seria aquele que ocupa o mundo e tem suas relações marcadas por uma contradição entre lei e exceção. Do lado da lei, temos uma espécie de manto de universalidade que faz com que frases como “homem é tudo igual” tenham sentido: a despeito das diferenças e detalhes, parece que sempre será possível reunir os homens sob algum traço, mesmo que não saibamos exatamente qual. Essa lei, por mais estranho que possa soar, é definida por Lacan como lei da castração: homens são, necessariamente, castrados. Isso só é possível porque a castração passa a ser entendida aqui não como uma percepção anatômica da ausência, mas como uma proibição simbólica. Pelo fato de estarmos num mundo fundado pela linguagem e permeado por normas – ditas e não ditas –, não se pode fazer tudo o que se quer e, mais ainda, não se pode conhecer de fato o que se quer. Castração é, portanto, a lei que explica que desejemos, sem saber, o que não podemos ter. Mas a princípio tudo isso valeira também para as mulheres. Qual seria a especificidade do homem, então? Muito provavelmente você já ouviu falar da “crise da masculinidade”. É uma ideia segundo a qual, por conta dos avanços obtidos graças às lutas feministas, os homens não saberiam mais como ser homens, já que seu modus operandi natural de macheza teria sido proibido pelo politicamente correto. Esse exemplo resume bem o tipo de lógica presente no imaginário masculino: existiu, ou existe, em algum lugar inalcançável, uma virilidade verdadeira, não castrada e sem lei. Essa construção pode ser explicada pelo que a psicanálise chama de “pai primitivo”. Trata-se de uma fantasia na qual um pai mítico, representando uma virilidade tirânica, violenta, sexualizada e sem limites, foi, em algum momento, destronado e destruído e, em seu lugar, uma sociedade cheia de regras e limites teria se instalado. Temos aí uma exceção que funda uma regra, como se diz. Assim, para prevenir o retorno da tirania e garantir uma igualdade universal, os homens teriam aberto mão de sua natureza mais radicalmente viril e aceitado uma masculinidade supostamente comedida. Os problemas começam porque – como observamos não só na clínica, mas na política – todo mito tem um quê de farsesco. Voltemos ao constructo ideológico da crise da masculinidade, que pregava ter havido uma era de ouro onde os homens poderiam ser homens de verdade, ceifada pela pós-modernidade globalista. Ao nos aproximarmos dos dados históricos, verificamos que esse passado mítico vai ficando cada vez mais rarefeito, como mostram os estudos em historiografia queer e história das masculinidades. O que se observa é que, desde a modernidade, homens são assombrados por esse passado viril que, mesmo não tendo existido de fato, produz subjetividades dispostas a sustentar esse ideal vazio na tentativa de não ter de se haver com seus próprios limites e seu futuro incerto.
Assim, no campo das fantasias que regulam a masculinidade, podemos dizer que o mito é a ilusão dessa identidade viril perdida e a imposição incessante de resgaste e retorno, produzindo, além da violência contra o outro na busca por referendá-la, sofrimento naquele que, sem sucesso, tenta alcançá-la. Tal precisão é importante na medida em que os nefastos efeitos do machismo estrutural não devem ser lidos necessariamente como um projeto positivo e consciente de dominação e redução da mulher à categoria de objeto, por mais que esses possam ser seus efeitos. Está em jogo, antes de mais nada, uma narrativa idealizada sobre si, fundada na impossibilidade de aceitar o fato de que o mito é, e sempre foi, uma farsa. A chamada masculinidade frágil ou tóxica é, portanto, aquela que não suporta se olhar no espelho e ver-se diferente de seus ideais. E, para combatê-la, é preciso não apenas denunciá-la do ponto de vista de suas consequências, mas, igualmente, compreender como homens representamse a si mesmos, quais fantasmas permeiam seus atos e, principalmente, quais contradições e alternativas podem florescer de uma análise detida sobre a masculinidade. Mais ainda, cabe perguntar se a discussão que orbita ao redor dessa representação hegemônica de masculinidade, no singular, pode abarcar e libertar as mais distintas experiências de homens de diferentes vivências eróticas, corporais, de classe e raça. Afinal, como desconstruir uma masculinidade aprisionada entre o mito e o fracasso, sem tornar a desconstrução um novo ideal inalcançável? NOVOS HORIZONTES PARA A MASCULINIDADE
Nesse sentido, o presente dossiê tem como objetivo não só negritar os impasses e limites de representações problemáticas da masculinidade e seus resultados, mas também apresentar novas perspectivas daquilo que se denomina, no atacado, masculinidade. Abrimos nosso número com uma discussão que assino sobre as dimensões de gênero presentes na recente flexibilização da posse de armas e como a produção de determinados tipos de masculinidade é um fator-chave na análise desse evento. Seguimos com as reflexões de Susana Muszkat, que exploram – partindo da psicanálise e da crítica a um dos principais mitos de gênero do Ocidente, Adão e Eva – as filigranas do que a autora chamou de “desamparo identitário” e de “violência perversa”, desde sua experiência de mais de uma década no atendimento de homens que praticaram violência contra a mulher. No artigo seguinte, Eduardo Leal Cunha discute, valendo-se de pontuações de Foucault, Barthes e Preciado, de que maneira a naturalização narrativa da solidez da identidade masculina acaba por eclipsar o “Outro do homem”: o homossexual. Ademais, sublinha que um movimento de normalização da vida gay parece vir ao encontro da dissolução não apenas da masculinidade mítica, mas de uma desestabilização da noção de identidade como tal. A partir das inquietantes indagações do filósofo martiniquenho Frantz Fanon, Deivison Faustino racializa o problema, explorando a ideia de que o homem negro não seria um homem, na medida em que as condições de colonização o impedem de ser reconhecido enquanto tal. Ao serem considerados sob uma ótica interseccional, os privilégios patriarcais do homem negro apresentam uma série de contradições e perspectivas para o estudo das masculinidades. Por fim, Guilherme Almeida entrelaça suas experiências pessoais como homem trans às modificações pelas quais, nos últimos anos, as masculinidades trans vêm passando no Brasil: o fechamento do
dossiê é, assim, um convite à abertura da caixa de Pandora de novas e plurais maneiras de ser homem. Boa leitura!
Homens e armas PEDRO AMBRA
Para compreender as forças em jogo na construção das masculinidades é preciso não só conhecer seus determinantes históricos e conceituais, mas verificar como elas efetivamente se aplicam e qual a extensão de seus efeitos. Tomemos como caso paradigmático o prometido decreto sobre a flexibilização na posse de armas de fogo, assinado no mês passado. A princípio, trata-se do cumprimento de uma promessa de campanha de Bolsonaro que teria como objetivo armar o dito “cidadão de bem” e, assim, diminuir a violência no país, a despeito da esmagadora maioria dos estudos que comprovam que o impacto sobre a segurança pública é negativo, ocasionando muito mais mortes por arma de fogo do que inibindo a criminalidade. Mas supor que o decreto, suas raízes e consequências se explicam apenas por uma promessa de diminuição de violência seria equivocado. Para além da pirotecnia da medida, é importante lembrar que a liberação da posse de armas tem forte e incontornável componente de gênero. Em primeiro lugar, seu público-alvo são homens. Homens violentos, homens amedrontados, homens frágeis, homens curiosos e homens que ostentam terão, agora, no fetiche da bala, uma ilusão de solução de seus problemas, reais e imaginados. Esse é o que pode ser chamado de “apelo semântico” da medida. Está em jogo fornecer uma significação, uma identidade para vivências que – tanto em decorrência das conquistas da luta feminista, quanto do real aumento da violência no Brasil e de seu alardeamento sensacionalista – se sentem fraturadas e se imaginam encurraladas, perseguidas. A arma é vendida aqui, no fundo, como uma promessa de restituição de sentido, um retorno à virilidade perdida. Mas o decreto não apenas libera a posse àqueles que nutrem uma nostalgia de uma identidade e segurança, e que aguardavam há tempos sua liberação. Mais grave do que isso é o discurso que roteiriza e gera masculinidades que se meçam pelo padrão bala. Eis sua dimensão performativa. Em outras palavras, está em curso uma linha de montagem não só de pistolas e projéteis, mas de subjetividades que terão esse horizonte como ideal. Ao colocar holofotes na cena de assinatura do decreto, chegando inclusive a produzir uma peça publicitária que chancela e defende o ato, o governo está investindo pesadamente na produção de masculinidades marcadas por esse modelo, que tem como alvo crianças, adolescentes, jovens e até mesmo adultos ainda em busca de um ideal de homem para se ancorar. Além disso, o decreto liberou, em toda a extensão do território nacional, a posse e não o porte de armas, ou seja, em teoria as armas só poderiam ficar no trabalho ou em casa. Na prática, isso significa que, num país com índices alarmantes de violência contra a mulher, teremos, a partir de agora, homens incentivados a ter uma arma dentro de casa. É fácil imaginar para aonde vão caminhar as “discussões” de casais Brasil afora. Essa é a dimensão estritamente patriarcal e patrimonialista do problema, na medida em que articula duas das faces mais cruas do
patriarcado: a objetificação da mulher, tratada como uma propriedade sem voz, e a abjeção, que faz de seu corpo um corpo matável. No entanto, considerando tanto a ignorância quanto o desprezo pelas leis, é claro que essas armas circularão. De um lado, teremos não apenas o feminicídio e a violência domésticos, mas um componente adicional nos casos de estupro que, como sabemos, são cometidos também pelos “cidadãos de bem”, e que terão agora um último recurso para não aceitar que não é não. De outro, temos a incitação de violência não só contra a mulher, mas entre homens. Não é preciso ter uma bola de cristal para saber o que serão as baladas, as brigas de trânsito e os desentendimentos entre vizinhos sob o manto desse chamado às armas. E, claro, esses impactos serão sentidos sobretudo na população preta, pobre e periférica. Essa é a “espessura edípica” da questão, que articula, pela suspensão da proibição, tanto a esfera sexual quanto aquela da violência: não nos esqueçamos que Édipo só rompe com a proibição do incesto porque matou seu pai, surpresa, numa briga de trânsito num cruzamento a caminho de Tebas. Por fim, há ainda um último elemento que torna o cenário ainda mais problemático: o consumidor da arma de fogo não necessariamente é seu usuário final. Estamos falando aqui dos suicídios que encontram na posse de armas uma ocasião privilegiada de passagem ao ato. A cultura das armas (cultura entendida aqui não só em seu sentido de culto, mas também em sua acepção bacteriológica) forma um ambiente ideal para a proliferação do caráter quase epidêmico de suicídios em alguns grupos. Estudos feitos pela Universidade de Pittsburgh mostram que o risco de suicídio em adolescentes é 30 vezes maior quando os pais possuem arma em casa. No Brasil, em apenas 5 anos a taxa de suicídios na população negra aumentou 55,4 % em relação aos demais grupos étnico-raciais. Entre mulheres, o aumento no número de suicídios já é duas vezes mais rápido do que em relação aos homens. Há aí, portanto, um insidioso meio de extermínio de grupos minorizados, nos quais a sombra de sua dominação recai sobre o/a próprio assujeitado/a. Eis o caráter melancólico da questão. O que esse decreto tem em seu horizonte não é, portanto, a diminuição da violência, mas aumentar ainda mais o poder de homens privilegiados. Nesse sentido, o decreto assinado é menos uma política pública de segurança e mais um capítulo das políticas de gênero e de aumento das desigualdades que se anunciam.
Revisitando Adão e Eva SUSANA MUSZKAT
Um dos principais mitos constitutivos da cultura ocidental, repetido sem qualquer constrangimento ou questionamento, é o de Adão e Eva. Adão, idealizado e produzido por ninguém menos do que Deus, é criado à sua imagem e semelhança! Para apaziguar seu tédio solitário, de um pedaço de sua costela – região sem qualquer nobreza especial – é feita Eva, com quem, então, inaugura a espécie humana. É notável tal versão inaugural da humanidade, na qual uma inversão absolutamente naturalizada retira da mulher sua condição de quem gesta e pare sujeitos, e torna-a um ser gerada do e feita para o homem. Que consequências subjetivantes terá esse mito fundante exercido em nossa cultura? Ou será que a própria construção do mito é reveladora dos desejos e lugares atribuídos a uns e outros? À mulher caberia estar a serviço do homem? Seria uma categoria humana secundária à masculina? Ou o mito apontaria, ainda, para outra inversão – esta, podemos dizer, de cunho reparador: a de que o homem fálico e autossuficiente não se sustenta, sendo a introdução da mulher em sua vida não a prova do poder de Deus a serviço do gozo masculino, mas sim a constatação da fragilidade humana e sua dependência de um outro para sobreviver e criar descendentes? Enfim, teria nosso mito civilizatório comprometido gravemente a condição mesma de civilidade, ou seria sua formulação o indicador dessa impossibilidade? Freud, ainda distante do atual debate de gênero, mas, não neguemos, já trazendo subsídios, refere, no artigo “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna (1908), um filósofo e psicólogo de nome Von Ehrenfels. Cito-o: “Não é arriscado supor que sob o regime de uma moral sexual civilizada, a saúde e a eficiência dos indivíduos esteja sujeita a danos, e que tais prejuízos causados pelos sacrifícios que lhes são exigidos terminem por atingir um grau tão elevado, que indiretamente ‘cheguem a colocar também em perigo os objetivos culturais’”. E mais adiante, “No entanto, ‘as diferenças naturais entre os sexos’ impõem sanções menos severas às transgressões masculinas, tornando mesmo necessário admitir uma moral ‘dupla’”. Qual será essa dupla moral sexual em que o desejo de poder (fantasia de antídoto contra o desamparo e impotência) autoriza uns à objetalização e/ou desqualificação de outros, transformando-nos todos em qualquer coisa menos civilizados? Durante mais de dez anos trabalhando numa ONG cujo objetivo era a reflexão sobre lugares e papéis de gênero, coordenei grupos de discussão de homens envolvidos em algum tipo de violência praticada contra mulheres. Tais atribuições de lugares e papéis têm, como consequência, que muitas das violências praticadas no âmbito familiar se mantenham e/ou justifiquem, sustentadas nessas mesmas atribuições, ganhando caráter normativo. Ou seja, a construção das identidades de gênero, no mais das vezes, está ligada à ideologia predominante vigente num determinado grupo social, e diretamente relacionadas aos preconceitos, definindo como se deve ser naquele grupo particular. Essas ideias, não nos deixemos enganar, são
partilhadas e perpetuadas tanto por homens quanto por mulheres, adquirindo força controladora e aprisionadora dos sujeitos. Podemos pensar que a perpetuação da dupla moral, que é expressa na disputa pela manutenção de lugares de poder, seja a manifestação disfarçada do temor ao desamparo e à impotência. A eterna busca de completude narcísica às custas de um outro, feito de bode expiatório. Respostas violentas de homens em relação às suas companheiras, assim como contra gays, trans e todas as identidades não heteronormativas, apontam para valores vigentes em nossa cultura, em que o sentimento de humilhação, para muitos, não pode ser admitido como algo do universo masculino. A resposta violenta visa o resgate imaginado da autoestima por meio de uma demonstração de poder sobre a mulher, condição entendida como essencial e natural para a manutenção da virilidade dentro do sistema de valores predominante em nossa cultura. Venho afirmando há alguns anos que, inversamente ao que possa parecer, a necessidade de manutenção de dominação e de poderes fixos constituídos não representa uma condição de poder; pelo contrário, revela a falta do mesmo. Em trabalho anterior, cunhei a expressão “desamparo identitário” para definir um tipo de violência que é praticada não como resultado de sentimento de força e poder de um sobre o outro, mas em função de um sentimento muito desnorteador de precariedade pessoal, de fracasso, de perda de identidade. Assim, o ato violento visa, de forma efêmera e enganosa evidentemente, recuperar o sentimento de virilidade, definido por qualificadores como força, poder e superioridade, que, por sua vez, são traduzidos como elementos definidores da masculinidade. Trocando em miúdos, alguém cuja única fonte garantidora de autoestima é sua posição de superioridade em relação a um outro precisa acreditar que esse outro tenha menos, ou nenhum valor. Dentro da cultura predominante de masculinidade hegemônica, essa crença pode ser sustentada sem muito questionamento... até recentemente, pelo menos. Isso vem mudando! Há um outro tipo de violência, praticada de maneira mais prevalente por homens, que se confunde ao pensar-se “autorizada” pela cultura de masculinidade hegemônica: a violência perversa. Proponho aqui minha leitura sobre esse fenômeno: o primeiro objeto de amor do bebê é, via de regra, a mãe. Mas o que chamamos de amor nessa fase da vida não é exatamente o tipo de relação amorosa que conhecemos quando nos tornamos adultos. O bebezinho não percebe que sua mãe é outra pessoa, diferente dele. Sente, isto sim, que a mãe é um objeto de sua propriedade, sua extensão, que está onde ele o deseja, como já teorizado pelo psicanalista inglês, de bebês e crianças, Donald Winnicott. A “mãe suficientemente boa”, expressão cunhada por ele, presta-se a ser esse objeto que atende às demandas do bebê. Trata-se de um estado de ilusão necessária na vida precoce do bebê. À medida que cresce, se tudo se der de maneira satisfatória em seu desenvolvimento, a criança, e depois o adulto, deve ser capaz de entender que aquela pessoa, sua mãe, é um sujeito diferente dele, com desejos e mente próprios. Entendendo isso, ele deverá, então, ser capaz de tolerar a frustração de abdicar da mãe como um objeto que lhe pertence, depois como objeto de amor
propriamente dito e, finalmente, escolher outra pessoa, um/a companheiro/a, com quem poderá ter uma relação de trocas e parceria amorosa. Desse modo, se na infância precoce de todo ser humano é natural e desejável que a mãe se preste a ser objeto do desejo do bebê, na vida adulta a perpetuação desse tipo de comportamento configura perversão. Perversão é o ato de transformar outra pessoa, com singularidade própria, em objeto de uso de prazer pessoal, sem o consentimento dela. Ao fazer isso, a pessoa é destituída de sua condição de sujeito e tratada como objeto. Esse é exatamente o caso de todos os atos onde mulheres, meninas ou qualquer pessoa em desigualdade de poderes são colocados em situação de objeto, a serviço do desejo exclusivo de alguém, sem que sua condição de sujeito de direito e mente própria seja reconhecido. Ainda, o modelo de sociedade patriarcal, que autoriza o homem a funcionar regido pela pulsão infantil – embora travestido de adulto –, sustenta e mantém esse código perverso de violência endêmica contra mulheres. Ou seja, leva o homem adulto a confundir-se e acreditar que a mulher – representante da mãe arcaica, aquela mãe da primeira infância – lhe pertence. Ainda, em tempo: vale ressaltar a brutal defasagem dos lugares atribuídos a homens e mulheres no imaginário cultural, que não correspondem às práticas sociais de fato. Estatísticas revelam que metade da força de trabalho do país é composta por mulheres, sendo elas mesmas as responsáveis exclusivas pelo sustento de quase metade das famílias brasileiras. É imprescindível que revisitemos e debatamos o mito de Adão e Eva!
A normalização das homossexualidades e os destinos do masculino EDUARDO LEAL CUNHA
A discussão sobre o masculino e suas vicissitudes não nos parece algo muito frequente, como se sobre o ser homem não pairassem dúvidas ou coubesse qualquer indagação. Nesse raciocínio, o homem e o masculino aparecem como mitos, no sentido barthesiano do termo: narrativas que, naturalizadas, convertem-se em verdades últimas, materializadas a seguir em imagens marcadas pela tautologia, como o sedutor do cinema hollywoodiano, o bom malandro ou o cowboy solitário. Imagens que mostrariam o homem como ele é, sem contudo nunca reduzi-lo a objeto. Imagens diante das quais, em geral, não temos muito a fazer senão aceitá-las. Por outro lado, na contracorrente da natureza mitológica do ser homem, nos acostumamos recentemente a dizer que o masculino está em crise, ou pior, falamos agora não mais do masculino, mas em masculinidades, todas elas marcadas por certa indefinição ou instabilidade. Numa leitura usual, tal crise do masculino se articula a mudanças no lugar e nos papéis ocupados pela mulher na sociedade. Mudaram as mulheres, e agora os homens já não sabem quem são ou o que devem fazer. A socióloga Eva Illouz, ao discutir o lugar privilegiado dos afetos no capitalismo contemporâneo, também nos diz que alguns fatos marcantes do século 20, como a difusão da psicanálise e das psicoterapias e a entrada dos psicólogos nas fábricas a partir dos trabalhos de Elton Mayo ainda na primeira metade do século passado, junto com o movimento feminista e, por fim, o desenvolvimento das literaturas de autoajuda contribuíram para uma espécie de feminização das relações sociais e do ambiente de trabalho, com a valorização de atributos normalmente associados ao feminino, como a empatia, a franqueza e a livre expressão e discussão dos sentimentos, os quais vieram substituir valores ditos masculinos, como a disciplina, o recolhimento afetivo e o pragmatismo. Nesse contexto, a suposta crise das masculinidades nada mais seria que o reflexo de tal contaminação do social e, em particular, do ambiente de trabalho por valores fundamentalmente femininos. Aqueles mesmos que, em um livro clássico da autoajuda, servem para nos mostrar que as mulheres vieram de Vênus e os homens são marcianos. Talvez seja possível, no entanto, considerar também a suposta crise da masculinidade e eventuais potências que tal crise torna possíveis a partir das transformações enfrentadas não pelas mulheres ou por causa delas, mas por uma outra figura negativa do masculino, esse outro do homem se vocês quiserem, que é o homossexual masculino, o gay, a bicha, o viado. Meu ponto de partida é a suposição de que a dificuldade em falar de masculinidade, ou melhor, de sentir-se e posicionar-se como homem, vem exatamente do fato de que, no universo
das identidades, a masculina nos pareceu por muito tempo a mais sólida, aquela na qual o projeto identitário se revelou mais completo. Naturalizada, tomada como verdade em si, a imagem do homem nos parecia então algo uno, permanente, íntegro, único. Diante dessa imagem, a figura do homossexual masculino foi sendo construída como seu negativo, num processo marcado pela sua apropriação pela medicina e por sua localização estratégica na construção daquilo que Michel Foucault descreveu como dispositivo de sexualidade: uma forma de relação consigo mesmo e com o corpo próprio marcada pelo estabelecimento de uma ligação direta e absoluta entre sujeito, sexo e verdade. Nesse quadro, o homossexual se viu definido pelo seu desejo por outro homem, desejo que o esvaziaria de sua masculinidade e o colocaria em confronto com sua própria natureza. Assim, a figura do homossexual demarcou historicamente para o homem algo fundamental a qualquer identidade: seu campo de exclusão, o limite para toda e qualquer identificação possível. Ou seja, para corresponder a essa imagem natural do homem, era preciso escapar a qualquer traço, ao menor vestígio dessa outra figura, pertencente não ao mundo da natureza, mas percebida como sua adulteração, sua perversão. Nesse percurso, dois movimentos curiosos se fizeram presentes: por um lado, essa imagem negativa do masculino, instituída como perversão da natureza, vinculou-se ao abjeto, fazendo com que aqueles a ela identificados se tornassem alvo preferencial da injúria. Por outro lado, o desejo homossexual, que representava a verdade íntima a manifestar-se exteriormente naquela imagem, tornou-se uma sombra que ocupava insidiosamente o homem verdadeiro, heterossexual – e também branco e, preferencialmente, europeu –, ainda que tal sombra, paradoxalmente, pudesse desempenhar também um papel positivo, enquanto sustentáculo imaginário do afeto e da solidariedade entre os homens. Pensemos, por exemplo, ao ler a obra de Freud, no papel da libido homossexual sublimada enquanto base das amizades e das associações entre homens, fundamentais ao progresso civilizatório, e que marcam tal progresso precisamente com aqueles valores incorporados à imagem naturalizada do homem moderno: a força, o pragmatismo, a racionalidade, a resistência frente às paixões e afetos, a capacidade e o ímpeto de subjugar e transformar a natureza, o mundo à sua volta e os seres naturalmente inferiores, como as mulheres e os povos ditos primitivos. De todo modo, o limite deveria ser claro, ainda que precisasse ser definido e sustentado continuamente, requerendo para isso a vigilância permanente, tanto das instâncias de controle e agentes da disciplina, como educadores e médicos, quanto do próprio sujeito, sempre atento ao menor vacilo ou sinal de afeição que pudesse ultrapassar os delicados limites do amor fraterno. Mas se esse era o quadro clássico, no qual as fronteiras entre homens e gays pretendiam-se claras e as amizades masculinas estavam acima de qualquer suspeita, algo diferente deve se passar hoje, quando o homossexual não é mais o mesmo e sua imagem se transformou, perturbando mais uma vez, para o bem e para o mal, o sistema de reconhecimento baseado na diferença sexual, e ancorado imaginariamente nessa figura absoluta e natural do homem. Essa transformação corresponde à crescente aceitação dos homossexuais no convívio social, sua revalorização e a consequente perda do seu caráter transgressivo e de abjeção, o que justifica
descrever tal processo como normalização da homossexualidade, até mesmo em duplo sentido: os homossexuais se aproximam da norma e tornam-se também normais, banais. Assim, o homem gay desse princípio do século 21, ao menos na imagem hegemônica que frequenta nossas mentes e, sobretudo, as engrenagens da indústria cultural, já não será um pecador lascivo, mas sim um bom pai de família e, quem sabe, até mesmo um empreendedor de sucesso. Ele terá aspecto viril, muitos músculos e dificilmente usará em seu vestuário antigas marcas do feminino. Com isso, perdem nitidez as fronteiras identitárias entre o Homem e seu Outro. A normalização das homossexualidades, com seus efeitos particulares sobre essa contraimagem do Homem que é o gay, contribuiu de modo decisivo para reduzir, agora utilizando os termos de Paul B. Preciado, a masculinidade, de natureza absoluta, a uma “ficção somática” como outra qualquer. Nessa direção, convém lembrar que, ainda seguindo o raciocínio de Preciado, essa virilidade é construída em academias e alimentada por esteroides, anabolizantes, termogênicos etc. Ou seja, nada tem de natural, e testemunha, tanto quanto as experiências transidentitárias mais recentes, nossa inscrição no registro da biopolítica e do farmacopoder. Com a normalização do homossexual, ao perder seu Outro, ao ver borradas suas fronteiras, a identidade masculina perde a integridade que lhe garantia a ilusão de natureza, e revela-se mais uma ficção, uma construção histórica. Mas talvez isso não se refira exclusivamente aos homens, e o que tenhamos em vista agora seja na verdade não a decadência do homem, mas o colapso das identidades, sobretudo aquelas construídas em articulação com o que o filósofo francês denominou dispositivo de sexualidade. Assim, a suposta crise da identidade masculina poderá ser referida não apenas à nossa dificuldade em lidar com uma ideia de homem que se afasta da natureza e perde suas fronteiras nítidas, mas ao colapso da própria lógica identitária, representada paradoxalmente pelo modo como as identidades e suas fronteiras se multiplicam continuamente e, assim, tornam-se inevitavelmente instáveis e incapazes de oferecer a segurança ontológica que nos prometiam, ou seja, a certeza de ser quem somos e de nos distinguirmos com clareza de quem e do que não podemos ser. A normalização da vida gay parece, desse modo, apontar não apenas para a desestabilização do mito masculino, mas para o paradoxal esgotamento do pensamento identitário enquanto forma hegemônica de enunciação de si e posicionamento no mundo, da qual a identidade de homem era, sem dúvida, o modelo privilegiado. A partir daí, trata-se de pensar nos efeitos de tal colapso do qual a crise nas masculinidades se apresenta como sintoma privilegiado, e também em como podemos reagir diante de tais efeitos. Para muitos, como a nossa nova ministra dos direitos humanos, a saída parece estar simplesmente no reinvestimento das velhas identidades e no fortalecimento das fronteiras entre elas, mesmo que para isso seja preciso apostar na lógica infantil de um mundo todo em azul para os meninos marcianos em paralelo a um universo em cor-de-rosa para as meninas vindas de Vênus.
Para outros, no entanto, a desestabilização das identidades, e seu esgotamento ético, estético e político, pode apontar muito simplesmente para a necessidade urgente de imaginar e fazer operar outras formas de reconhecimento, de enunciação de si e de posicionamento no mundo para além das fronteiras identitárias. O que nos permitirá, por conseguinte, imaginar outras formas de ser homem, outros papéis a desempenhar e – por que não? – novos modos de vivermos as relações entre nós, nossos corpos e os eventuais prazeres e afetos que ali podem se fazer presentes.
O negro, o drama e as tramas da masculinidade no Brasil DEIVISON FAUSTINO
“O homem negro não é um homem!”, afirmava-nos provocativamente o psiquiatra e ativista Frantz Fanon (1925-1961). Em seu diagnóstico da sociedade moderna – leia-se, colonial – o homem negro está imerso em uma série de contradições sociais (racializadas) que o impedem de ser plenamente reconhecido como “homem”. Em nossa sociedade, denuncia Fanon, quando se pensa “o homem” ou o “humano”, o negro não está incluído. O homem negro não é, portanto, humano... O homem negro não é um homem. Esse jogo de palavras acima apresentado nos introduz a três grandes problemas nem sempre equacionados conjuntamente: 1. o machismo; 2. o racismo; 3. o lugar dos homens negros diante de ambos. Tendo em vista o primeiro aspecto, é válido mencionar a já extensivamente debatida sexização da linguagem nas sociedades ocidentais ao destinar à palavra “homem” o status de representante geral do gênero humano. É verdade que em sua origem indo-europeia a palavra homem poderia remeter tanto a “homo” (humano) quanto a “humus” (chão ou terra), marcando a ideia de que os “homens” (seres humanos) seriam seres terrenos, em contraposição aos deuses (celestiais). Mas esse imaginário decidiu em algum momento que o homo (o homem), em seu contraponto progressivo à “natureza original”, seria o macho e este subsumisse a si as demais expressões sexuais – mesmo que a própria Terra, fonte de todo húmus existente, tenha continuado representada como um substantivo feminino. Assim, desde então no Ocidente, não apenas “o homem” é figurado como representante (i)legítimo de toda a humanidade, como também, à própria imagem e semelhança de Deus, invisibilizando as mulheres enquanto representação do humano. Se Deus é homem, os homens são deuses, e as mulheres, quando referidas, no máximo o segundo sexo, lembrando Beauvoir. O segundo problema, muito bem descrito por Frantz Fanon, está relacionado ao racismo antinegro. O autor – que também toma a palavra “homem” como sinônimo de gênero humano – denuncia o caráter necropolítico das sociedades modernas. Para ele, negros e negras não são vistos como humanos porque o desenvolvimento moderno da noção de humanidade teve na Europa colonialista o seu apogeu. Diante dessa realidade, os povos colonizados não poderiam compor a “orquestra da humanidade” como sujeitos, exceto como instrumentos (objetos), via trabalho forçado e apropriação não reconhecida de suas contribuições societárias. O racismo, representa, assim, antes de qualquer coisa, a negação substancial – e não apenas linguística – da humanidade das pessoas negras; por isso, “o negro, não é um homem”. O terceiro aspecto a ser considerado está no cruzamento dos dois problemas anteriores. Não cabe discutir aqui qual deles é mais importante ou determinante (se o machismo ou o racismo), mas sim reconhecer que eles se entrelaçam e se potencializam na sociedade capitalista,
atravessando racialmente a experiência vivida das pessoas negras. Essa trama de relações foi denunciada, primeiramente, pelos movimentos de mulheres negras ao apontar para a composição histórica de um complexo de complexos sociais historicamente determinados, que nega duplamente a humanidade das mulheres negras – como mulher e como negra, conforme lembram Djamila Ribeiro e Grada Kilomba. As perguntas que poderiam ser feitas a partir daí são: qual é o lugar dos homens negros nessa sociedade que, ao mesmo tempo, exalta os homens em detrimento das mulheres, mas inferioriza ou nega a humanidade das pessoas negras? Seriam os homens negros privilegiados ou desprivilegiados das relações de poder? Em que medida partilham das dores e das delícias previstas nos padrões hegemônicos de masculinidades? Para além disso, podemos pensá-los de forma homogênea? Não há espaço aqui para tratar adequadamente de cada uma dessas questões mas, ainda assim, é válido dizer que está emergindo no Brasil, nas encruzilhadas dos estudos de gênero, raça e masculinidade, uma série de reflexões acadêmicas, políticas e culturais sobre masculinidades negras. Essa produção tem apontado para a existência de uma agenda que desafia as abordagens mais maniqueístas ao revelar algumas cisões, flexibilidades e câmbios dialéticos entre as polaridades vítima/algoz, sujeito/objeto, privilegiado/desprivilegiado. É possível que em determinados momentos os homens negros gozem de quase todas as dores e delícias de qualquer homem em uma sociedade patriarcal, interiorizando, re-produzindo e externalizando determinados padrões hegemônicos de masculinidades. No entanto, e ao mesmo tempo, o racismo destina a esses homens um lugar muito particular – para não dizer, ambíguo – na divisão sexo-racial do trabalho na sociedade moderna, limitando quase sempre as possibilidades de corresponder plenamente a esses padrões. Com vistas à história e ao presente do nosso país, poderíamos acrescentar ainda outras perguntas à nossa reflexão: quais seriam as chances, na escravidão, de um homem negro reagir à violência sexual impingida à sua companheira conjugal, por exemplo, já que ele e ela eram apenas propriedade de seus donos brancos? Como esses homens poderiam desempenhar os papéis – patriarcais, lembremos – de provedores em um país que saiu da escravidão não apenas sem indenizar os ex-escravizados, como que substituindo sua força de trabalho por outra estrangeira, negando-lhe, portanto, a possibilidade de ser um assalariado regular na sociedade de classes? Até que ponto se pode falar em “privilégio masculino” quando descobrimos que os homens negros estão abaixo até mesmo das mulheres negras no quesito mortalidade, encarceramento, violência urbana? Pode um homem negro “ser homem” e ser cobrado como tal em uma sociedade racista? Essas perguntas não nos permitem isentar os homens negros de sua responsabilidade e eventuais privilégios enquanto homens em uma sociedade machista, mas considerar, antes de mais nada, que a permanência do colonialismo os lega uma série de estranhamentos que os impedem de corresponder integralmente às expectativas patriarcais de masculinidade. Ao mesmo tempo, a própria crítica à invisibilidade dos homens negros nos estudos mais gerais sobre masculinidade – fato explicado pelo racismo – nos provoca a pensar em quais outras invisibilidades o próprio termo “masculinidade negra” pode conter, uma vez que homens negros
podem ser homens trans, cis, gays, bissexuais, ribeirinhos, classe média jovens, velhos, moradores de rua, universitários ou, simplesmente, “nem-nem”, mas a própria literatura presente no campo, por vezes, o generaliza como cis-hétero, sudestino e urbano da periferia. Se as masculinidades (negras) são plurais, também o são as diversas abordagens e perspectivas teóricas a seu respeito. A produção no campo varia – não sem tensões e rupturas internas – entre perspectivas inspiradas no feminismo negro ao tomar as relações sexo/gênero como estruturais para entender o racismo, até perspectivas que invertem essa equação, argumentando pela centralidade do racismo para entender as relações de gênero nas sociedades marcadas pela colonização. Outros estudos buscam um meio-termo epistêmico que interseccione gênero e raça. O ponto que não se pode mais ignorar é que o drama negro – ou o negro drama – legado pelo racismo e pelas tramas que marcam a procura de sua cura tem, nas relações de gênero (e classe), uma dimensão que também lhes diz respeito e que, felizmente, começa a ser problematizada e publicizada.
Revisitando a aquarela das masculinidades GUILHERME ALMEIDA
O ano era 2012. Fazia alguns anos que eu próprio me afirmara como um homem trans e, aproximadamente há três anos, tinha começado a ganhar visibilidade no país a possibilidade de uma pessoa ser assignada no nascimento como do sexo feminino e, em algum momento da vida, recusar essa assignação, afirmando-se como homem. Duas pesquisadoras fundamentais dos estudos de gênero, Berenice Bento e Larissa Pelúcio, organizavam um dossiê para a revista Estudos Feministas do IFCH/Unicamp sobre transexualidade, e me convidaram para ser um dos autores. Aceitei, e o artigo ganhou o nome de “Homens trans: novos matizes na aquarela das masculinidades?”. A construção interrogativa do título não era mera provocação. Ele retratava o contexto brumoso da própria escrita, onde cores e matizes não eram nítidos. Três anos antes, os homens trans do país estavam na casa das dezenas e, mesmo em 2012, nós ainda conhecíamos quem era quem em cada estado da federação. Se, por um lado, nos conhecíamos, por outro, desconhecíamos como seria quando a transexualidade masculina se tornasse um fenômeno de massa, o que efetivamente aconteceu, sobretudo a partir da segunda metade da década de 2010. De todas as questões que passaram pela minha cabeça ao escrever o artigo em 2012, a que mais me inquietava, epistemológica e pessoalmente, era como aqueles novos homens performariam masculinidades. As transmasculinidades seriam réplicas passivas de modelos préexistentes? Fariam esforços extraordinários para se adequarem aos requisitos das masculinidades hegemônicas? Como trafegariam nas relações de gênero em seu cotidiano familiar, sua rede de amigos, suas relações afetivo-sexuais, seus espaços de trabalho e produção cultural? Algumas pesquisas acadêmicas já foram felizmente produzidas, em contextos específicos, sobre homens trans, e trazem contribuições para o conhecimento dessas masculinidades, mas algumas dessas perguntas, e outras mais, permanecem ainda hoje sem respostas conclusivas. Isso acontece porque, na última década, a aquarela das transmasculinidades se complexificou muito, não só pela entrada numérica de muitos novos sujeitos, mas pelo conjunto de novas questões trazidas por eles. Hoje, a metáfora da aquarela com novos matizes para olhar as transmasculinidades me parece insuficiente. Trago também a da Caixa de Pandora, um artefato da mitologia grega vinculado à criação da primeira mulher por Zeus: Pandora. Ela seria a primeira mulher enviada do Olimpo à Terra para viver com os homens, e Zeus a presenteia com a caixa, que não deveria ser aberta por conter todas as desgraças do mundo: guerra, discórdia, ódio, inveja, doenças e, também, a esperança. Pandora, previsivelmente, não resiste à curiosidade e deixa escapar na terra todo o resto, menos a esperança. Nos últimos anos, as transmasculinidades vazaram da Caixa de Pandora em abundância, e dialogaram ativamente com o conjunto das masculinidades disponíveis nas relações sociais para todos os homens.
Acompanhando como sujeito histórico e como pesquisador/ativista a cena pública dos homens trans e observando as masculinidades ao longo desses anos, desconstruí algumas percepções e construí novas, também a serem revisitadas. A primeira delas era um aforismo muito difundido, sobretudo nos espaços das lutas sociais, de que pessoas trans e, neste caso específico, homens trans, construiriam suas identidades necessariamente em oposição ao binarismo de gênero. Parece óbvio que a existência mesma de pessoas trans colida com a lógica binária que, em grande medida, fundamenta-se na biologia para justificar as diferenças entre homens e mulheres. Todavia, embora as pessoas trans possam infringir potentes ranhuras ao essencialismo biológico, não há nenhuma exigência mecânica de que pessoas trans tenham que romper em suas trajetórias individuais com uma compreensão binária das relações de gênero. O que observei é que, embora alguns homens trans possam ser reconhecidos por um ponto de vista feminista por questionarem a assimetria de direitos entre homens e mulheres, por se oporem à violência contra as mulheres, por assumirem posturas cooperativas no espaço doméstico, por recusarem piadas sexistas, entre outros elementos, essa não é a postura de uma parte dos homens trans. Para esses, a transição de gênero constitui a possibilidade de alcance de pelo menos alguns dos privilégios aquinhoados pelas masculinidades hegemônicas: mais oportunidades de trabalho, melhor renda, menor participação em atividades domésticas, maior liberdade sexual, maior possibilidade do uso da força física e até dos recursos da violência. Nessa lógica, não tem sentido o questionamento à privação das mulheres das mesmas prerrogativas. A despeito da crítica inerente a essa descrição de posicionamentos, precisamos nos perguntar: por que seria diferente? Por que há ampla autorização social para que homens cisgêneros tenham esse último posicionamento, e deveria nos indignar que homens trans também o tivessem? Não seria igualmente opressivo exigir que, por terem experienciado a condição feminina, tais sujeitos necessariamente ou naturalmente teriam que desenvolver empatia com as causas feministas? É possível dizer que o desejo de aceitação social em grupos masculinos, onde a preocupação com as causas feministas passa a quilômetros, pode cooperar para uma adesão à masculinidade em seus termos hegemônicos. Dessa maneira, passei a ter menos estranhamento e mais compreensão quando observei homens trans explorando economicamente mulheres (fossem essas suas parceiras sexuais, mães ou com outra vinculação), coautores de violência doméstica, ou intimidando, por meio de performances violentas, principalmente os indivíduos não binários que performam masculinidades mais fluídas em espaços políticos, por exemplo. Em outras palavras, a construção de masculinidades críticas ao binarismo não é uma consequência inequívoca da transição de gênero, mas produto direto da educação ético-política dos sujeitos. Em direção semelhante, observei muitas vezes a referência aos homens trans como portadores de uma “masculinidade doce”, necessariamente mais empática e sensível, como consequência direta da sua prévia socialização de gênero. Para admitir que essa é uma característica de todos os homens trans, teríamos que admitir, entretanto, que as relações de gênero atuam de forma homogênea e produzem efeitos idênticos sobre todos os indivíduos, o que não é verdade. Também teríamos que admitir que todas as mulheres cisgêneras devam ser percebidas como “doces”, o que é outro sofisma. É possível que alguns homens trans correspondam a esse padrão, mas é comum que outros tantos não correspondam ou o façam parcialmente. É cada vez mais
comum observar a existência de homens trans atuando em profissões como as forças armadas, onde há legitimidade pública do uso da força e repressão, na masculinidade vigente nessas instituições, a comportamentos empáticos, suaves ou hipersensíveis. Recentemente, estive na banca de avaliação da tese de Rafaela Freitas da Psicologia Social da UFMG, que estudou a existência de homens trans atuantes no Corpo de Bombeiros, Polícia e Guarda Municipal que, em sua maioria, performam hipervirilização. Transmasculinidades são efeito de bricolagem, criações produzidas na interseção de necessidades induzidas por marcadores sociais de diferenças tão diversos quanto a classe social e as necessidades econômicas, o contexto geográfico, o pertencimento étnico-racial, a geração e outros tantos, como já dissemos. Não são meras criações individuais. Ao contrário, sua complexificação, nos últimos tempos, vem sendo tributária de fenômenos variados, que envolvem o uso das mídias e redes sociais, o acesso a biotecnologias e aos sistemas de saúde/políticas sociais, a relação com os feminismos revitalizados nas grandes cidades brasileiras, bem como com a existência, mínima que seja, de uma esfera pública de direitos no país e do direito de reclamar direitos. A transexualidade masculina, na última década, atuou como uma estufa de possibilidades no cenário brasileiro. Naquele cenário foi possível ver emergir sujeitos que reivindicam masculinidade sem desejar ser reconhecidos como homens. Foi possível também ver homens trans não binários, homens trans orgulhosamente portadores de uma vulva refutando o paradigma psiquiátrico da aversão à própria genitália, homens trans grávidos sem abrirem mão da afirmação da paternagem, homens trans aderindo à contemporânea formulação de uma paternidade próxima, afetiva e cuidadora, homens trans feministas, homens trans que se afirmam gays ou bissexuais, homens trans trabalhadores sexuais, homens trans se relacionando afetiva e/ou sexualmente com mulheres trans e travestis, assim como homens trans heteronormativos. Todas essas características contribuem para uma miríade de possibilidades no que se refere às transmasculinidades. A despeito da diversidade inerente às transmasculinidades, homens trans incomodam. Eles o fazem ao evidenciarem que o masculino não é presente dos deuses, grande prêmio da loteria genética, nem exclusivo produto da “testosterona rex”, como ironiza a pesquisadora americana Cordelia Fine. A cada vez que um homem trans diz “eu sou homem”, joga luz na dimensão burlesca, sobretudo no que o pensamento conservador considera natural e fundamento do imenso poder investido na categoria homem. A Caixa de Pandora está entreaberta apenas. Descobrir-se homem trans num contexto de recrudescimento do conservadorismo da sociedade e do Estado brasileiros será, assim, um desafio que irá afetar a possibilidade de construção das transmasculinidades nos próximos anos.
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Só a morte diz a verdade DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES
Em 1954, o físico e matemático chileno Nicanor Parra (1914-2018) promoveu, com um livro pequeno mas explosivo, uma Revolução Francesa particular e mandou todos os poetas anteriores a uma guilhotina conceitual. À frente de seus condenados, estava a trinca sagrada do país andino Pablo Neruda, Vicente Huidobro e Pablo de Rokha, além da matriarca Gabriela Mistral. A nata da antiga vanguarda, que fazia uma “poesia de óculos escuros e chapéus de aba larga”. “Segundo os doutores da lei este livro não deveria ser publicado / (...) /E eu decidi declarar guerra aos cavalieri de la luna” O livro em questão é Poemas e antipoemas, plataforma para inovadoras execuções verbais em público, talvez o mais importante da poesia latino-americana no século 20. Anarquista e irônico, Parra coloca o próprio pescoço sob a lâmina – a morte (esse “hábito coletivo”) e o humor (“o saber e o riso se confundem”) são constantes em seus versos coloquiais, contraditórios, de forte personalidade, independentes de qualquer escola ou estilo. “só a morte diz a verdade / a poesia mesmo não convence” Seu alvo é a pomposidade, a pose, o beletrismo, a inspiração romântica, as metáforas artificiais, os adornos inúteis, a vaidosa metafísica. Descabelado, de olhar intenso, maxilar quadrado, “boca de ídolo asteca”, tinha como objetivo buscar nas coisas simples a verdade. Era um autêntico, um provocador – por vezes um amável terrorista. “Durante meio século / A poesia foi / O paraíso do bobo solene / Até que cheguei eu / E me instalei com minha montanha-russa” Com tudo isso, e com todos os prêmios que recebeu (entre eles o Nacional de Literatura em 1969, o Reina Sofia em 2001, e o Cervantes, em 2011, além de ser indicado ao Nobel algumas vezes), é de se estranhar que só agora haja uma edição brasileira à sua altura, trabalho louvável dos tradutores Joana Barossi e Cide Piquet. Só para maiores de cem anos é a melhor introdução possível a essa obra de fato única, um mistério à luz do sol, louvada por Harold Bloom, Roberto Bolaño, Ricardo Piglia, Allen Ginsberg, William Carlos Williams, Lawrence Ferlinguetti (esses três o traduziram para o inglês) e os próprios Neruda e Mistral, entre tantos outros que ele instava a “descerem do Olimpo”. Esta coletânea reúne vários poemas do livro citado – seu segundo (o primeiro, Cancioneiro sem nome, de 1937, uma tentativa de emular Garcia Lorca, ele renegava) – e de outros que preencheram uma surpreendente carreira de 75 anos em 103 de vida! É evidente que qualquer coisa que se diga, tem de passar pela ideia de antipoesia. Muitas vezes falando diretamente ao
leitor, como no famoso verso de Baudelaire, ele a menciona, de diversas formas, com um discurso direto, aparentemente simples, mas com vários momentos de contradição explícita e humor autoderrisório, além do sarcasmo seco e inteligentemente afiado contra seus “pais”, contra a ideia burguesa de poesia, escapista, lírica, “nas nuvens”. “Eu não aceito que ninguém me diga / Que não compreende os antipoemas / Todos devem rir às gargalhadas.” Oito anos antes desses “versos de salão”, já havia advertido ao leitor, com a saudável arrogância de quem realmente não deve nada a ninguém: “O autor não responde pelos incômodos que seus escritos possam provocar: / Ainda que lhe doa / O leitor terá que se dar sempre por satisfeito.” Como ele mesmo diz, “não vê nenhum inconveniente em se meter numa boa enrascada”. E foram muitas. Se a primeira edição de Poemas e antipoemas se esgotou em uma semana e recebeu críticas favoráveis mesmo dentre aqueles contra quem o livro se revoltava (para Neruda, “Entre todos os poetas da América do Sul, poetas extremamente terrestres, a poesia de Nicanor Parra se destaca por sua folhagem singular e suas raízes fortes”), houve quem o rebaixasse, como de Rokha, que o chamou de “uma mancha no sapato de Vallejo”, ou, mais compreensivelmente, como o padre Salvatierra: “é tanto lixo, que nem dá para dizer que é imoral”. Mais adiante, no entanto, o onipresente Bolaño se tornaria seu paladino fiel: “Quem for valente, que siga Parra”, desafiou. No livro Entre paréntesis, ensaia a descrição de um poema, mas que vale para toda a poesia do mestre: “É como uma bomba prestes a explodir para que nós, chilenos, abramos os olhos e deixemos de bobagens, é uma poesia que indaga em quarta dimensão, tal como queria Huidobro, mas em uma quarta dimensão da consciência cidadã, e ainda que à primeira vista pareça uma piada, e muita vezes é mesmo uma piada, um segundo olhar nos revela que é uma declaração de direitos humanos. É uma poesia que, ao menos aos compungidos e atarefados chilenos, nos diz a verdade (...)”. Parra, diga-se, não o escreveu de forma programática (o próprio “Manifesto” da antipoesia surgiria apenas em 1963). Na verdade, juntou poemas que vinha anotando desde 1938 aos mais recentes antipoemas, nome que surgiu por acaso, ao ver o livro de um poeta francês, Henri Pichette, chamado Apoèmes. Como ele mesmo já declarou numa conversa (detesta entrevistas!), o livro que o tornou famoso é dividido em três partes: uma com poemas neorromânticos e pósmodernos, a segunda com poemas expressionistas – na qual se destacam os tão citados “Autorretrato” e “Epitáfio” – e por fim sua marca “anti”: “a palavra arco-íris não aparece em nenhuma parte / Ainda menos a palavra dor, / A palavra torcuato. / Já cadeiras e mesas aparecem a granel, / Ataúdes!, apetrechos de escritório! / O que me enche de orgulho / Porque, a meu ver, o céu está caindo aos pedaços.”
Por outro lado, suas enrascadas com a esquerda e a direita até hoje são motivo de controvérsia. Irmão da cantora e compositora ícone do Chile, militante ardente pelas causas populares, Violeta Parra (1917-1967), a quem adorava, Nicanor, o mais velho de oito filhos de um professor primário e músico e uma costureira – e o único a terminar os estudos –, sempre fez questão de manter-se livre de amarras ideológicas e partidárias, ainda que nunca tenha saído do campo humanista, ou do que poderia se chamar de esquerda humanista (defendia especialmente os índios, “os filhos da terra”. Aos 96 anos, chegou a fazer greve de fome em apoio à causa dos mapuches). Nos anos 1980 e 90, embarcou na causa ecológica – não à toa, as árvores abundam em seus versos, estejam frondosas ou secas pela ação do outono. Antes, curiosamente, editou, em 1965, uma antologia de poesia soviética. Mas em 1970, no auge da Guerra Fria, comunistas e socialistas mais ferrenhos e rígidos, torceram o nariz para uma foto casual de Parra cumprimentando a primeira dama norteamericana Pat Nixon. A imagem, que depois revelou-se um malentendido (Parra estava ali meio de gaiato, num encontro de escritores), valeu-lhe a expulsão do júri do prêmio cubano Casa de Las Americas. Sua oposição à ditadura de Pinochet (1973-1990) também foi considerada pouco enfática. Ele recusou um cargo do governo, mas, crime dos crimes, continuou a lecionar na Universidade do Chile. Os mais dogmáticos talvez não tenham considerado que seu departamento de estudos humanísticos da faculdade de matemática era um espaço livre de resistência intelectual, que contava com nomes como o poeta Enrique Lihn e a escritora Diamela Eltit; tampouco consideraram que muitos dos poemas que publicou nesse período eram críticos aos regime militar. No fim das contas, como as fake news de hoje, a malfadada foto falou mais alto. Sua resposta, tipicamente desafiadora, já tinha sido dada: “Eu não sou de esquerda nem de direita / Eu simplesmente rompo os modelos.” E os rompeu, de fato. De uma forma tão acachapante, que se fala em antes e depois dos antipoemas de Parra. O próprio Neruda seguiu por esse caminho, numa obra que lançou também em 1954, Odes elementares. Como se tivesse concordado com o pedido de Parra, desceu das alturas e tornou-se o “homem invisível das ruas”. A diferença, claro, continuava grande. Neruda agora ria-se dos outros, os poetas que, como ele antes, viviam olhando para o céu e não para as coisas da vida real, mas continuava sua carreira de oráculo, sempre no centro do mundo literário. Parra ria-se não apenas dos outros mas de si mesmo, para não dizer da própria antipoesia. Era rabugento, arredio, publicava menos, desconfiava da glória. Costumava mandar seus filhos e netos para receber os prêmios que lhe outorgavam com frequência. E escreveu irônicos versos à guisa de discursos, publicados em 2006, como Discursos de sobremesa (o que faz pensar no igualmente brilhante Thomas Bernhard – mas essa é outra história) “Eu galã imperfeito / Eu dançarino à beira do abismo, / (...) / Eu violador de tumbas, / Eu satanás doente de caxumba” E mais:
“Me dá sono os meus poemas / E no entanto foram escritos com sangue.” Mesmo “com caxumba”, há um sorriso diabólico por trás de cada verso seu, inteligente, incisivo e com um senso do ridículo e da inutilidade de tudo. Deus, anjos e a fé são alguns de seus alvos. O sagrado não está no céu que “cai aos pedaços”, mas no amor chão, terreno, e no sexo. “Cordeiro de deus que lava os pecados do mundo / Nos deixe fornicar tranquilamente: / Não nos intrometa nesse momento sagrado.” No mesmo livro, Obra gruesa, de 1969, uma coletânea que ele próprio organizou, ajuntada por alguns inéditos, há o poema em que fala de criador para Criador, com divertida condescendência: “Pai nosso que está onde estiver / Rodeado de anjos desleais / Sinceramente: não sofra mais por nós / Você precisa entender / Que os deuses não são infalíveis / E que nós perdoamos tudo.” Aos poucos fica evidente que, a despeito de sua independência feroz, o dadaísmo de Duchamp era um de seus faróis (assim como a poesia falada de Whitman e o teatro de Shakespeare, que inspirou suas muitas vozes e a métrica tradicional, à qual se prendia em vários poemas, como um comentário irônico sobre a liberdade e os limites da linguagem). O mictório deslocado do contexto (“A minha catedral é o banheiro”), a roda de bicicleta incrustada num banco, tornando o movimento imóvel. Coisas. Coisas numa linguagem que não canta nem conta, mas fala; com palavras simples, vocabulário elementar, ideias desconcertantes. “A verdade, como a beleza, não se cria nem se perde / E a poesia reside nas coisas ou é simplesmente uma miragem do espírito.” Shakespeare, que o estimulava a criar múltiplos “Yos”, fantasmas de palco, tão reais como os ataúdes, esculpidos em seu tom pedregoso, era de fato uma de sua obsessões. A ponto de fazer uma retradução do Rei Lear, Lear, rey y mendigo, lançada em 2004, com a ajuda de Alejandro Zambra, o jovem escritor de Bonsai, uma das melhores revelações da prosa chilena. Amigo de Parra nos últimos anos, em que o poeta vivia no balneário de Las Cruces, numa casa de pedra, próximo ao túmulo de Huidobro, Zambra conta que ele nunca estava satisfeito com o trabalho, vivia fazendo emendas e mais emendas, o que mostrava seu lado perfeccionista e inquieto. Como um Picasso ou Matisse das letras, realizava também colagens e invenções visuais, os artefactos visuales , e chegou a expor junto com o genial artista visual catalão Juan Brossa. Uma das tradutoras deste Só para maiores de cem anos, Joana Barossi, foi, acompanhada de Zambra, visitar o poeta recluso. A experiência está narrada num apêndice ao final livro, com humor e rara sensibilidade. Sobre o amigo centenário, Zambra, em seu livro de ensaios No Leer, lembra que conversar com ele era uma aventura – de resto, sentimento compartilhado por Barossi e dos que iam vê-lo,
com sua “irreverência sedutora”, incluindo todos os presidentes chilenos desde Allende. A Barossi, que reparou que ele “fala ritmadamente, em versos”, declarou: “Eu não leio as traduções de meus poemas; elas devem ser uma expropriación revolucionária, quando traduzidos já não me pertencem mais”. Ao que ela ajuntou: “E piscou o olho”. E nisto, nessa piscada de olho, talvez se resuma todo o mistério de sua poesia tão clara, violenta, engraçada e alucinante. É como em seu “Epitáfio”. Depois de descrever suas faces esquálidas, abundantes orelhas, seu nariz de boxeador mulato, banhado por uma luz entre irônica e pérfida, conclui: “Nem muito esperto nem doido varrido / Fui o que fui: uma mescla / De vinagre e azeite de oliva / Um embutido de anjo e de besta!”
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Satanismo, santidade e política CLAUDIO WILLER
A idealização da Idade Média como sociedade harmoniosa, organizada em corporações, voltada para a fé; a defesa do absolutismo. Tal ideário já foi defendido e exposto didaticamente por T. S. Eliot no ensaio The Idea of a Christian Society. Outros gênios literários, desgostosos com a ascensão da burguesia e a sociedade de massas, também o adotaram: Balzac, Flaubert, Yeats. E J.-K. Huysmans, de quem foi lançada no Brasil uma excelente edição de Là-bas (Nas profundezas, Carambaia, tradução de Mauro Pinheiro, posfácio de Pedro Paulo Catharina). Adaptaram, todos, a História a seu horror à sociedade em que viviam. Falsearam-na. A verdade é que, sob o esplendor gótico que maravilhou outro grande tradicionalista, Oswald Spengler, e a impressionante produção literária tão bem examinada por E. R. Curtius, de Chrètien de Troyes a Dante Alighieri, passando pelos provençais, a Idade Média foi caótica. Pipocavam rebeliões religiosas, como bem mostra, entre outros, Norman Cohn em The Search of the Millenium. Guerreava-se constantemente. Dante escreveu a Divina comédia em meio aos sanguinolentos combates entre Guelfos e Gibelinos. Guerras se alternavam com epidemias de peste. A expectativa de vida era de 30 anos. A grande maioria da população, inclusive aristocratas, era analfabeta. Frente aos absolutismos e ao feudalismo, foi real o progresso trazido pelo Iluminismo e pela sociedade burguesa, como observaram não apenas defensores do liberalismo, os Karl R. Popper, Isaiah Berlin ou Raymond Aron, mas o próprio Karl Marx. Personagens ligados ao atual governo brasileiro nos oferecem uma versão caricata do pensamento integrista, atualizando o que pregavam organizações como a TFP, Tradição, Família e Propriedade. Mas com a obliteração do que se sabe sobre a vida naquele tempo. E sem nenhuma grandeza literária – além de adicionarem bobagens, geopolíticas de doido. Por exemplo, ao erigirem Donald Trump, impopular em seu país, a enviado celestial, além das categorias como “marxismo cultural”, “globalismo” ou “ideologia de gênero”. Sob o ponto de vista do valor, estão no polo oposto àquele de um erudito como J.-K. Huysmans. Arquivista e bibliotecário, dá a impressão de que leu todos os acervos a seus cuidados. E foi um escritor movido por paixões. Em especial, pelo desgosto com a sociedade de seu tempo. Nas profundezas termina com seu protagonista, Durtal – alter ego do próprio Huysmans – exclamando que burgueses “encherão suas tripas e evacuarão a alma pelo baixoventre”, como representantes do século que “contamina o sobrenatural e vomita o além”. Final semelhante àquele de outra das suas narrativas importantes, À rebours (Às avessas, Companhia das Letras, tradução e prefácio de José Paulo Paes), o “breviário da decadência”, com o protagonista Des Esseintes – calcado no dandy Robert de Montesquiou, que também inspirou o Barão Charlus de Proust – obrigado a fechar sua mansão para, prostrado, tratar-se em Paris, gritando: “Eh! desaba, pois, sociedade! morre então, velho mundo!”.
Nas profundezas é a narrativa sobre missas negras e enfrentamentos de magos, na qual Huysmans comparou a Idade Média e a sociedade burguesa. Qualquer coisa do passado, para ele, era melhor que seu tempo. Perversões – até mesmo as devastações sanguinolentas promovidas por Gilles de Rais, o senhor feudal, assassino de uma tamanha quantidade de crianças, após seviciá-las e torturá-las, que teria chegado a despovoar regiões da França – mereciam maior apreço que a sociedade de massas. Da abjeção seria possível passar à salvação. Nas páginas finais de Nas profundezas, são ditas em voz alta as orações em latim entoadas por Gilles de Rais ao ser executado, pedindo perdão às famílias de suas vítimas antes de ser queimado vivo, assim transitando à santidade mediante expiação. Mas a recitação é encoberta pelo ruído da multidão nas ruas, comemorando a vitória eleitoral de um líder populista, Boulanger. Huysmans foi um idiossincrático, de um nível extremo. Em Nas profundezas, a sociedade burguesa deixa de ser descrita na forma romanceada, como o haviam feito os naturalistas com os quais rompera, para ser tratada com crueldade. Relata que vai almoçar uma vez por mês em um restaurante, só para observar como clientes regulares do estabelecimento vão morrendo aos poucos, seus rostos cada vez mais esverdeados, com olheiras fundas, como efeito da comida que lhes é servida. Ostensivamente, se compraz ao vê-los se acabarem através de seu modo de vida. Durtal, protagonista de Nas profundezas, visita Tiffauges, as ruínas do castelo de Gilles de Rais (Huysmans fez essa visita enquanto preparava sua narrativa). Delira (assim como deve ter acontecido com Huysmans), e imagina a vida no castelo em seus bons tempos. Obcecado pelo Mal, e, como se forças cósmicas se confrontassem dentro dele, pelo Bem, viveu um combate do qual a luta entre dois de seus personagens, o mago negro Docre, e o mago do bem Johannès, é uma alegoria: “O Princípio do Mal e o Princípio do Bem, o Deus da Luz e o Deus das Trevas, dois Rivais, disputam entre si nossa alma.” Empreendeu a politização do satanismo, ao confrontar o mundo do mal e o mal do mundo. Nas profundezas foi alçado a best-seller pelo relato das sessões de magia e missas negras. Chegou a nossos simbolistas, já inclinados ao tema por meio da leitura de Baudelaire, inspirador de poemas como “Satã” e “Missa negra” de Cruz e Souza. Impressionou, certamente, pela ambivalência, o modo como a perversão transpira de um livro paradoxal: indignado com o mal, porém exibindo-o de modo escancarado. E por ser à clef: para cada personagem, uma ou mais pessoas reais. Madame de Chantelouve, com quem Durtal se relaciona e que o leva aos cultos proibidos, foi Berthe de Courrières, companheira de Rémy de Gourmont. Por sua vez, aquele erudito diretor do Mercure de France – revista e editora importantes para a propagação do simbolismo-decadentismo –, além de comparecer aos salões de magos, como o Sär Joséphin Péladan (aliás, refinado escritor), teria frequentado as sessões de bruxaria. Foi dito que a missa negra de Nas profundezas seria fruto da documentação reunida por Huysmans sobre episódios como os cultos de Madame de Montespan no século 18. Mallarmé, ao resenhar Nas profundezas, o tomou ao pé da letra: havia, sim, missas negras em Paris. Fernande Zayed, em Huysmans, peintre de son époque, afirma que as duas alternativas são corretas: Huysmans se inspirou em documentos sobre o tempo de Luís XV e em magos seus contemporâneos como o abade Boullan. Para saber mais sobre aquela proliferação de grupos voltados para uma diversidade de contatos com o sobrenatural, é recomendável o excelente O
cemitério de Praga de Umberto Eco, alicerçado em sólida pesquisa. Focalizando personagens reais de que Huysmans se apropriou para criar seu relato, fica-se com a certeza de que, no final do século 19, tocaram-se libertinagem e fé, blasfêmia e devoção, em íntima associação com movimentos artísticos e uma poética. Tal poética é exposta em Às avessas, com os elogios aos “poetas em tempos de decadência”, desde o final do Império Romano até Baudelaire, Mallarmé, Verlaine e Corbière. Tal como examinados por Huysmans, nem esses poetas nem suas obras foram decadentes. A verdadeira decadência estaria em outro lugar: na linguagem, degradada na sociedade burguesa. Daí a insistência de Mallarmé em tornar mais puras as palavras, e, em seus artigos, a diferenciação entre poesia e mercado; em suas palavras, “comércio” ou “metalurgia”. José Paulo Paes, no prefácio à edição brasileira de Às avessas, observou que “Huysmans estava era fazendo uma espécie de defesa e ilustração da decadência, quando mais não fosse, para contestar o mito do progresso cultivado pela burguesia”. Edmund Wilson, em O castelo de Axel, havia feito comentários análogos. A noção de decadência e a crônica da bruxaria não bastam para dar conta da contribuição de Huysmans. Deixou uma obra extensa, composta por narrativas e textos sobre artes plásticas. A destacar, En rade (Ao abrigo, na edição de Portugal), cronologicamente entre Às avessas e Nas profundezas. Se, em Às avessas e Nas profundezas, há acerto de contas com a sociedade, em Ao abrigo promove um ataque às idealizações românticas da natureza. Há continuidade entre os pesadelos dos protagonistas e um mundo que se decompõe, do qual um castelo em ruínas que serve como abrigo é a metáfora. Essa continuidade entre os dois mundos foi uma das razões do entusiasmo do surrealista André Breton por Huysmans, leitura de sua formação. Depois de encontrar o regente do mundo cultuado em missas negras, Huysmans foi em busca de Deus. Escreveu obras devocionais como L’Oblat. Isolou-se em um mosteiro trapista – exemplo que poderia ser seguido pelos ruidosos integristas contemporâneos. Mas, aparentemente, não O encontrou: antes de morrer, abandonou o monastério – ao que consta, reclamando da má qualidade da comida lá servida.
colaboraram nesta edição Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da Informação pela USP, autora de Quando me descobri negra (SESI-SP, 2015) Claudio Willer é pós-doutor em Letras pela USP, poeta, ensaísta e tradutor literário. É autor de Estranhas experiências e outros poemas (Lamparina, 2004) e A verdadeira história do século 20 (Córrego, 2016) Daniel De Mesquita Benevides é jornalista com passagens pelas revistas Brasileiros, Trip, Set, Bizz e colaborações para a Folha de S. Paulo, Valor Econômico e Bravo, dentre outros veículos Deivison Faustino é doutor em Sociologia e professor do Departamento de Saúde, Educação e Sociedade da Unifesp. É também integrante do Instituto AMMA Psique e Negritude e do Grupo Kilombagem Eduardo Leal Cunha é psicólogo e psicanalista, doutor em Saúde Coletiva pela UERJ, professor do departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Dentre outros, publicou Indivíduo singular plural: A identidade em questão (7Letras, 2009) Guilherme Almeida é professor da área de Serviço Social e doutor em Saúde Coletiva. É também poeta Marcia Tiburi é filósofa, escritora, pós-doutora em Artes pela Unicamp, autora de Como conversar com um fascista (Record, 2015) e Ridículo político (Record, 2017), entre outros Pedro Ambra é psicanalista, doutor em Psicologia Social pela USP, Psicanálise e Psicopatologia pela Université Paris Diderot e professor titular da Universidade Ibirapuera Susana Muszkat é psicanalista e docente da Sociedade Brasileira Psicanálise de São Paulo, mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP e autora de artigos e livros sobre relações de gênero e psicanálise de casal e família Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA, autor de A democracia no mundo digital: História, problemas e temas (Edições Sesc SP, 2018)